Livro_surrealismo_e_a_estetica_fotografica

April 12, 2018 | Author: jmlanita | Category: Surrealism, Paintings, Renaissance, Reality, Beauty
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BRAUNE. Fernando. O surrealismo e a estética fotográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

Capturar visualmente o mundo e narrá-lo, sob este ponto de vista, ontologicamente (mesmo que apenas sob a forma de um registro gratuito de seus aspectos óbvios e cotidianos) tem sido um dos desejos mais arraigados do homem ocidental. Tal anseio “óptico” de representação conduziu, em termos imagéticos, a uma autêntica “quebra” do, até então prestigiado, ato pictórico, ao ser implementado, em pleno século XIX, o agenciamento técnico final do dispositivo fotográfico. Este fato se deveu a pioneiros do naipe de Thomas Wedgwood, Joseph Nicephore Niepce, Louis Jacques Mande Daguerre, Hippolyte Bayard e William Henry Fox Talbot - para citar apenas os mais bem sucedidos, dentro de uma legião de engenhosos pretendentes – precisamente em agosto de 1839, quando o governo francês comprou a patente do daguerreótipo, disponibilizando-o para o uso público, já com o nome “fotografia” (híbrido dos termos gregos p h o s , “luz” e graphein, “escrever”, literalmente significando “escrita – ou registro – luminosa”) – sugerido, à época, por Sir John Herschel. O referido agenciamento simplesmente arrematava uma série de esforços, remissíveis à arquetípica câmera obscura, tão cara aos renascentistas, em não só dar conta de uma representação mais “pura” do real, quanto em disseminá-la e partilhá-la em nome da racionalidade científica triunfante ou, pelo menos, para a fruição simbólica das classes, que então agentes oficiais do poder, nela investiam. Autêntica interface do técnico e do estético, do jogo duro da representação e da maleabilidade conceitual críticomoderna, a fotografia tem se constituído em um domínio, sem dúvida, privilegiado – principalmente se levarmos em conta o fato de ela não poder apelar, como pôde o cinema, para a codificação fácil do binômio narrativa ficcional-movimento no tempo – no que tange a uma melhor elucidação da sensibilidade contemporânea. No entanto, e apesar disso, são ainda relativamente ouças, em nosso idioma, as incursões teóricas de qualidade, no que diz respeito à linguagem fotográfica e seu entorno poético. A exemplo dos ensaios, por aqui já traduzidos, de Philippe Dubois (O Ato Fotográfico) e de JeanMarie Schaeffer ( A Imagem Precária: Sobre o Dispositivo Fotográfico ), O Surrealismo e a Estética Fotográfica, de Fernando Braune, persegue um novo approach dessa ordem, revelando-se enriquecedor não só por sua tentativa de (re)discussão dos aspectos intrínsecos da fotografia, como também por sua proposta de elucidação de um certo elemento de “surrealidade” impregnante do olhar fotográfico. Se o principal percalço de uma reflexão incisiva sobre a fotografia ainda repousa sobre o cotejamento, em tese improvável desde Platão, entre as ordens lógicometafisicamente excludentes da representação-simulação e da objetividade-verdade, uma análise inter-faceante, como a aqui fomentada, do projeto surrealista – no caso, pela caudalosidade de um Giorgio de Chirico, um Max Ernst, um Joan

Miró ou um Marcel Duchamp – em sua intencionalidade “de afrontamento da passividade, do enfado e da alienação impostos pela racionalidade moderna”, decerto nos conduz a um instigante sobrevôo emancipatório. Urge acrescentar que a qualidade visual de tal sobrevôo jamais deixa de ser-nos garantida pelos recortes vigorantes com que Fernando trata de municionar nossa leitura e que, indo, entre outros, da dicção cega das lentes de Evgen Bavcar ao voyeurismo paralisante do estranho de Diane Arbus, balizam com acuidade todo o percurso. Jorge Lucio de Campos

SUMÁRIO INTRODUÇÃO [7] I – A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE [9] O referente [9] O atrelamento da fotografia às artes plásticas [10] A busca da autonomia [12] II - O OLHAR SOCIAL URBANO [15] A periferia [15] A surrealidade em Arbus e Seurat [16] O deslocamento do conceito do belo [20] As bases do Surrealismo [21] A dessacralização do nu [21] A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista [24] Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia) [26] A surrealidade fotográfica de Miró [27] III - A IMAGEM SUBVERTIDA [30] Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista [32] A surrealidade em Picasso [33] De Chirico [34] Duchamp e os ready-mades [34] Magritte [36] IV - O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTO SURREALISTA [38] A fotografia inserida na filosofia do 2º Manifesto Surrealista [40] V - A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA [49] VI - A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA [53] A transgressão do espaço [54] A grande angular [57] O ângulo superior [57]

A fotografia aérea e antiaérea [59] VII - O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL [62] O O O O O O

aspecto psicológico [62] aspecto cultural [63] aspecto social [66] aspecto temporal [69] confronto espaço x tempo [71] percurso espaço-tempo nas artes [72]

VIII - A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE [77] A surrealidade fotográfica em Magritte [80] Tragédia e talismã [82] O tempo fotográfico em De Chirico [82] O tempo fotográfico em Tanguy [83] IX - A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA [86] X - O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA [94] XI - O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA [100] A visão do cego historicamente [100] O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental [100] Evgen Bavcar [102] O cego e a questão mimética da fotografia [103] A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelo cego [106] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [112]

Para Marcia, Fernanda e Laura portos que me amparam, velas que me fazem navegar.

À Daniel & Cia, que acreditou neste trabalho.

INTRODUÇÃO Este livro nasceu da necessidade que percebo em se discutir, cada vez mais, a fotografia por dentro, em seus mais amplos espectros. Ative-me, de maneira mais específica, à surrealidade impregnada à fotografia, não exclusivamente ao Movimento Surrealista em si, embora este tenha-se configurado como o fio condutor para os principais questionamentos. Parti do princípio de que o Surrealismo seria um veio interessante para se discutir a fotografia, porque as suas próprias origens apontam para esse caminho. Em meio ao alucinante ritmo desenvolvimentista do século XIX, assolado pela Revolução Industrial, nasce a fotografia, num clima permeado pelo mundano, pelo desajuste social e por tudo o que poderia levar o homem a uma total padronização de sentidos, apontando, assim, para a sua aniquilação como ser individual. Embora o Surrealismo, como movimento, tenha surgido um pouco mais tarde, as suas raízes percorrem o rastro de toda a desarticulação social da urbanicidade, e essa referência será o grande elemento de comunicação entre a linguagem fotográfica e o Movimento Surrealista em si. O projeto surrealista teve como balizamento o direto e objetivo afrontamento à passividade, ao enfado, à alienação, enfim, a toda racionalidade que a modernidade acabou por impor ao ser humano. O Surrealismo simbolizou uma luta no sentido de devolver ao homem a sua potencialidade criativa, retirando-o de uma estagnação paralisante e da alienação, ao libertá-lo das forças constrangedoras e opressoras de coação, fontes da lógica, da razão e da moral, com o intuito de promover a verdadeira harmonização entre as suas instâncias consciente e inconsciente. A fotografia, de uma certa forma, perfaz o mesmo caminho, porém por outro viés, de maneira sutil, quase imperceptível. A carga desarticuladora, mobilizadora da fotografia concentra-se de forma mais acentuada no que ela deixa de mostrar, no que esta implícito, em tudo aquilo que não nos é dado de pronto, de imediato pela imagem fotografada – há que se mergulhar na virtualidade da fotografia para, de fato, tocá-la e ser tocado, ungido surrealisticamente. Neste livro, proponho trazer à tona artistas e intelectuais que, de alguma forma, participaram, direta ou indiretamente do Movimento Surrealista, e do qual tornaram-se referencias marcantes, como Breton, Masson, Tanguy, Max Ernst, Duchamp, Magritte, Miró, Dalí, De Chirico, Seurat, Picasso, Mallarmé, Appolinaire, Artaud, entre outros. As filosofias que permearam as obras desses artistas serviram-me de gancho, de ponto de ignição para discutir a surrealidade

impregnada na fotografia, na tentativa de estabelecer uma relação de vasos comunicantes entre as diversas linguagens.

I - A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE É mais do que plausível que, desde o anúncio oficial de sua criação, em 1839, por Daguerre, a fotografia tenha sofrido as mais severas críticas e ataques de todos os lados. Ela é uma atividade que nasce dúbia, permeia terrenos até então inimagináveis de se postarem juntos – fascina, deslumbra, mas aterroriza, amedronta. Que atividade tão perigosa e surreal é essa, nascida da pesquisa científica, das experiências da química e da física e que, ao mesmo tempo, insere-se no contexto artístico? E ciência ou arte? A sociedade sempre foi ávida pela classificação, pelo enquadramento, para que, a partir de uma definição, possa exercer seu poder sobre as atividades e manipulá-las da maneira que melhor lhe convier. E o ponto nevrálgico está exatamente aí, pois a fotografia é escorregadia, e aí está o seu perigo, pois quando se pensava estar amarrada aos cânones estabelecidos, ela transmutava, percorria outros caminhos, deambulava pela própria escuridão, na retomada do que era genuinamente da sua natureza. Por isso a fotografia foi, durante um longo período, tão desrespeitada. Ao mesmo tempo em que as primeiras fotografias mostravam imagens tipicamente dentro do cenário pictórico (temas alegóricos, históricos, naturezas-mortas etc.), o discurso em tomo delas nascia preso ao caráter científico de suas abordagens, apregoando uma fiel e exata representação da realidade. O referente A partir daí, a fotografia passou a enredar-se em suas próprias teias. O cerne da questão encontra-se dentro da própria linguagem fotográfica, no que há de inerente ao seu próprio meio, que é o referente. Por mais abstrata que seja uma fotografia, por mais que ela "minta", por mais que nela sejam adicionadas interferências de quaisquer categorias, por mais surreal que possa vir a ser uma fotografia, ela não deixa de estar atrelada ao referencial, Aquilo que, no exato momento em que o disparador da câmara foi acionado, estava lá – presença incontornável –, caso contrário não haveria algo fotografado, não haveria a fotografia. Como disse Roland Barthes em A câmara clara, o referente adere, por mais que queiramos nos desvencilhar dessa característica. Essa condição indiciária, referencial, no entanto, que é a ontologia da fotografia, por ter sido mal interpretada e pouco compreendida, acabou por levá-la à condição de mimese, de "espelho da realidade". Essa condição mimética atribuída à fotografia vem do

inquestionável deslocamento da realidade do objeto fotografado à película no instante em que se fotografa, de sua condição pragmática e existencial amarrada a um instrumento mecânico, que só sobrevive em simbiose com a realidade, o resto sendo retórica. Ficava, portanto, estabelecido que a "imitação mais perfeita da realidade" estava nas mãos da atividade fotográfica, ficando o universo artístico relacionado a outras atividades mais nobres, mais sublimes. Essa visão estabelecida pela sociedade vinha respaldada por intelectuais e críticos de arte da época, que entendiam a arte como uma atividade da imagística, de abstração da realidade, onde o sujeito, o ser humano, interpreta o mundo à sua maneira. A atividade artística, enfim, era vista como algo intimamente ligado à autoria , enquanto a fotografia, atividade regida por um instrumento mecânico e pelas leis da ótica e da química, nada mais fazia, segundo essa visão, do que registrar, com fidedignidade, a realidade através da luz, sendo-lhe negada qualquer tipo de intelectualidade, de criatividade e interpretação. Entendia-se, assim, que nenhum tipo de interferência era requerida pelo sujeito que a operasse, ou seja, encontrava-se a fotografia bloqueada pelo fundamento da atividade artística, que era a autoria. Já que a arte era, conceitualmente, criação, e a fotografia era considerada mero registro fidedigno da realidade, isenta, portanto, de qualquer indicio criativo, passava esta a ser excluída do circulo artístico, fato que se constituiu num erro crasso de interpretação do "índice fotográfico", uma vez que índice não implica, necessariamente, em mimese. Esse conceito gerou as mais fantásticas discussões em torno da atividade fotográfica, e muito embora ainda hoje, nos meios menos atentos, a condição indiciária da fotografia seja muito confundida e mal interpretada como mimética da realidade, foi a partir, exatamente, de uma nova conceituação e discussão em torno do índice que a fotografia passou a constituir-se como meio de expressão com linguagem própria, autônoma, independente das amarras que a prendiam aos conceitos próprios da pintura, tornando-se, assim, parte do cenário artístico. O atrelamento da fotografia as artes plásticas Antes de entrarmos na discussão da independência da atividade fotográfica, seria interessante uma digressão em tomo da dependência em que ela se manteve por tanto tempo. A época do surgimento da fotografia, a pintura, que era o meio de representação do mundo, já carregava em seus ombros o pesado fardo de pertencer às "Belas Artes", além de carregar, por praticamente quatro séculos, o vicio do olhar

renascentista. Obviamente, não se trata aqui de uma negação ou critica desfavorável ao movimento renascentista, só que os seus fundamentos e noemas encontravam ressonância nos contextos social, político, psíquico e científico da sociedade quatrocentista, que deixava de ser regida pelos poderes divinos, deixava de ser meramente um reflexo do pensamento de Deus, passando a colocar o homem como centro de todas as coisas. A herança renascentista vem da perspectiva linear euclidiana,1 colocada em pratica por Brunelleschi, 2 que fazia com que o mundo passasse a ser representado a partir de um único ponto de vista, fixo, ideal, perpendicular ao plano do quadro, induzindo o encontro das linhas paralelas em um ponto de fuga, ou seja, nos dando a representação tridimensional do mundo de forma idealizada, bela, em um espaço bidimensional – a tela. Essa visão de representação do mundo atrelada ao conceito do belo e conquistada pela pintura, portanto, alijava qualquer outra visão que não pertencesse aos seus princípios. Em vista desse cenário, os fotógrafos, por não encontrarem suporte dentro da própria linguagem fotográfica para alcançarem "um lugar ao sol", e, assim, pertencerem a uma das "Belas Artes", passavam a utilizar-se dos meios da pintura para conseguir o status tão desejado, negando todos os princípios da fotografia, até mesmo evitando serem chamados de fotógrafos, preferindo denominações como pintores-fotógrafos, escultores-fotógrafos, fotógrafosartistas. De forma a tirar a fotografia do seu caráter "mundano”, "prosaico", houve, pois, uma grande corrida para a abordagem de temas históricos, literários, anedóticos, típicos da pintura plenamente assimilada pela sociedade da época, já que, além da mera mecanicidade atribuída à fotografia, havia um total descrédito a essa atividade que tratava de temas urbanos, comuns e vulgares, sem o comprometimento com o belo. Os chamados fotógrafos pictorialistas perseguiram de forma incansável os cânones das "Belas Artes", chegando ao ápice da negação da linguagem fotográfica com fotomontagens inspiradas nas pinturas pré-rafaelistas3, principalmente 1

Euclides: matemático grego (séc. III a.C.) autor de Elementos, base da geometria elementar que contém o Postulado de Euclides. 2 Brunelleschi (Fillipo): arquiteto italiano (Florença,13771446). Considerado o maior iniciador da Renascença, construiu em Florença a cúpula da catedral de Santa Maria Del Fiori. 3

Pré-rafaelismo: escola de pintura surgida na Inglaterra em 1848, capitaneada por William Hunt e Dante Gabriel Rossetti.

através de Reijlander e Robinson4, que fotografavam vários planos de uma cena, já que os recursos da fotografia, na época, não permitiam todos os planos em foco, para que, em seguida, fossem montados. Essas composições compreendiam um caráter eminentemente caricatural, de exacerbação de gestos e atitudes, o mais próximo possível da pintura acadêmica, diferentemente das fotomontagens tratadas pelo Movimento Surrealista, de que falaremos adiante. A busca da autonomia Se por um lado as fotomontagens dos fotógrafos pictorialistas, baseadas na perfeição de detalhes das pinturas pré-rafaelistas, afastavam a fotografia das características próprias de sua linguagem, por outro lado apontavam para um caminho até então inimaginado para esta atividade, o qual voltava-se para a criatividade, a intervenção direta do sujeito na obra enfim, a autoria. A fotomontagem permitia selecionar, criar, inventar uma imagem, e assim abria-se um veio de discussão de extrema importância. Uma vez que os fotógrafos da época sentiam a necessidade de lançar mão de montagens para conseguir imagens o mais próximo possível da realidade, ficava claro que a fotografia não possuía meios suficientes para ser credenciada como a linguagem mais exata para representar o mundo. Vendo-se diante de tais constatações, algumas correntes de fotógrafos passaram a discutir a atividade fotográfica por dentro, através das características de sua própria natureza, deixando de lado tudo o que não pertencia à sua linguagem, voltando-se para o exame dos seus próprios fundamentos, em suma, assumindo sua autocrítica.

Acreditando que a arte tinha tornado um rumo errado a partir do "estilo grandiloqüente" de Rafael, de idealização da natureza, tendo como modelo os grandes nomes do Renascimento, Os pintores pré-rafaelistas remontam ao período pré-Rafael, não mais idealizando e sim trabalhando a natureza com tudo o que existia. Por não desprezarem nem selecionarem nada da natureza, as suas pinturas eram riquíssimas em detalhes, representando a natureza o mais fidedignamente possível. 4 Oscar Reijlander (1813-1875) e Henry Peach Robinson (1830-1901): fotógrafos que realizaram as mais famosas fotomontagens alegóricas, lendárias e heróicas, utilizando-se de todos os recursos na tentativa de imitação da pintura acadêmica, principalmente da pintura holandesa de Rembrandt, Frans Haals e Jan Van Dyck.

A fotografia seguia, assim, na esteira da crítica kantiana,5 fundamentada numa autocrítica de dentro para for a, onde cada área do saber deveria estabelecer os seus próprios limites, em oposição à religião, que, ao apoiar-se no dogma (dogma por definição é inquestionável, indiscutível), negava seu questionamento, sua autocrítica e, por isso mesmo, veio perdendo poder ao longo dos anos. Cada meio de expressão tenta buscar as qualidades intrínsecas, únicas de sua linguagem, procurando uma depuração, uma espécie de catarse, com o objetivo de despoluir-se, principalmente, de tudo o que não é seu para tornar-se plena, independente, até mesmo para ter condições claras, sem receios ou traumas, de misturar-se, fundir-se a outras linguagens, sem com isso perder a sua individualidade. Essa inter-relação entre as linguagens tem sido, desde Marcel Duchamp6, a tendência natural das artes plásticas, ratificada de forma mais acentuada a partir da Pop Art7, principalmente a partir de Robert Rauschenberg,8 que, através de suas “Combine Paintings”, integrava, em um mesmo espaço, vários meios de expressão, cada um deles guardando a sua própria autonomia. No caso específico da pintura, um longo caminho teve de ser percorrido até que se percebesse a sua singularidade diante das outras formas de expressão, o que havia de genuinamente seu, que era exatamente a tela. A partir do momento em que a pintura enxergou a bidimensionalidade da tela como o que havia de particularmente seu e de mais nenhum outro meio de expressão, os pintores passaram, pouco a pouco, 5

Kant (Emanuel) : filósofo alemão (1724-1804), autor da Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica do Juízo e dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes. 6 Marcel Duchamp : artista francês (1887-1968). Inicialmente influenciado pelo Cubismo, teve depois participação importante no movimento Dadá e no Surrealismo. Fixou-se nos Estados Unidos onde dedicou-se à “antiarte” e em 1914 criou o seu primeiro ready-made. 7 Pop Art : Escola de pintura surgida nos Estados Unidos por volta de 1960, caracterizada por utilizar elementos da tecnologia industrial dos grandes centros urbanos. Tinha como fonte de inspiração os cartazes de publicidade, automóveis, eletrodomésticos, comestíveis enlatados, histórias em quadrinhos, fotomontagens com personagens mundialmente conhecidos, enfim, tudo o que estava relacionado à cultura de massa. 8 Robert Rauschenberg : pintor norte-americano (1925-), criou as “Combine Paintings”, em que misturava elementos fotográficos, pictóricos, escultóricos, ao lado de tintas industriais em um mesmo suporte.

a desvencilhar-se da pintura escultórica, da representação da tridimensionalidade do mundo, entregando-se às pesquisas do plano, alavancadas por Braque9 e Picasso, 10 resultando em sua total autonomia, já que estavam a lidar com o que era realmente seu.

9

George Braque : pintor francês (1882-1963). Participou primeiramente do Fouvismo. Em 1908 fez uma exposição onde se observavam “pequenos cubos”nem suas telas, surgindo, daí a expressão “cubismo”. De 1909 a 1913 trabalhou com Picasso, criando o Cubismo analítico. Foi Braque quem executou as primeiras colagens na pintura. 10 Pablo Picasso : pintor espanhol (1881-1973). O mais célebre artista do século XX, embora tenha sido ligado ao Cubismo com Braque, permaneceu um criador independente de qualquer escola. Realizou obras de cerâmica, escultura, desenho e gravura, além da pintura.

II – O OLHAR SOCIAL URBANO A fotografia apontou para a vertente natural de sua linguagem, que compreendia o lado social-urbano, assolado por uma infinidade de contrastes e perturbações. Nessa atmosfera nascia a fotografia, integrada às suas mais ocultas realidades. A periferia O olho do fotógrafo voltava-se, portanto, para tudo o que era não-oficial, enveredando pelos becos escuros, conferindo importância aos desvalidos, a uma sociedade marginal, onde o ser humano encontrava-se em total desarmonia com a euforia desenvolvimentista da modernidade, dirigindose, enfim, para uma realidade banida dos privilégios burgueses, ou seja, para a supra-realidade, aos olhos da sociedade oficial. A atividade fotográfica antecipava, de certa forma, o ambiente surrealista, os meandros pelos quais os surrealistas iriam vaguear. A periferia, habitat natural do fotógrafo, compreenderia, da mesma forma, o ponto de partida dos trabalhos de vários pintores surrealistas como Yves Tanguy,11 por exemplo, que, ao colocar em questão o relacionamento do ser humano com o mundo moderno, apresentou espaços abertos, desérticos, construções industriais em ruínas, restos do desenvolvimento; s”ao ambientes assombrosos, de grande malestar, onde raramente há qualquer referência humana, e quando há, é marcada pelo isolamento, pela solidão humana, pela sua total desconexão com a sociedade, prevendo um futuro ameaçador e de incertezas. Esse desajuste do homem frente a sociedade, preconizado por Tanguy e trabalhado pelos fotógrafos será, em sua essência, a mola mestra de onde partirão os ideários surrealistas. Embora o Movimento Surrealista bretoniano12 tenha tido diversos desdobramentos no percurso da história, o fio condutor que o levou à sua formação foi, sem dúvida, um 11

Yves Tanguy : pintor americano, de origem francesa (19001955). Foi introduzido ao Surrealismo em 1925, onde participou de todas as exposições do movimento. Suas obras foram realizadas com um cuidado rigoroso e podem ser consideradas das mais ricas plasticamente e das mais características do Surrealismo. 12 O Movimento Surrealista enquanto uma Escola: criado pelo escritor francês André Breton (1896-1967). Breton fundou a revista Litterature, órgão do movimento Dada, que preconizava a destruição dos valores lógicos, morais e artísticos. O culto do irracional o conduziu ao Surrealismo, do qual ele foi e continuou sendo o principal articulador, chegando a ser chamado de “O Papa do Surrealismo”. Em 1924 escreveu o 1º Manifesto do Surrealismo e em 1930, o 2º Manifesto.

total desagravo à sociedade vigente. De fato, as conseqüências da Revolução Industrial acabaram por criar todo um clima favorável à formação de um movimento com as características do Surrealismo. A mecanização da indústria propiciou um aumento na oferta e na qualidade dos bens de consumo, criando grandes atrativos para que as pessoas deixassem o trabalho escravo do campo e fossem em direção aos grandes centros, em busca de melhores ofertas de emprego. Além disso, a própria mecanização da agricultura, ao demandar menos mão-de-obra, favorecia o fenômeno da urbanização, gerando uma concentração exagerada e desordenada da população nas cidades. Por outro lado, a dinâmica da Revolução Industrial exigia transformações urgentes, tendo como conseqüências profundas e radicais alterações no comportamento da classe trabalhadora, que se viu frente a péssimas condições de trabalho e à exigência da produção em série extremamente maçante e alienante, aliada aos baixos salários. Assim, se por um lado todo esse sistema pôde proporcionar melhorias na qualidade de vida da população, por outro gerou uma imensa massa de trabalhadores desajustados, com sérios problemas sociais, perdendo cada vez mais a sua identidade. Como reflexo de toda essa situação, as artes plásticas, de um modo geral, passaram a ser permeadas não apenas pelos novos desenvolvimentos científico-tecnológicos, mas pelo profundo embate do ser humano frente a tamanhos desajustes proporcionados pela modernidade. Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensa e importante na formação da nova psicologia da sociedade urbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a face oculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado por tabus, enfim, voltando-se para aqueles a quem a sociedade tinha virado as costas. A surrealidade em Arbus e Seurat Vários foram os fotógrafos que se alinharam a essa vertente, porém creio ter sido Diane Arbus (1923-1971) quem, com maior sensibilidade, entendeu e participou, de forma profunda, desse mundo, bem ao gosto surrealista. Arbus teve a capacidade de não se enfronhar nesse mundo marginal de forma chã. Não era seu interesse tratar da pobreza material dos desprotegidos. O seu projeto ia muito além de inventário documental da evidente e incontestável situação por que passava boa parte da população urbana, e é aí que se forma o seu vínculo com o Surrealismo. Os elegidos de Arbus eram aqueles que não participavam do processo produtivo da sociedade, por isso sendo excluídos, independentemente de sua condição social ou financeira. A miséria de que trata Arbus passa muito mais por um caráter interno, privado, do que externo. Todos os seus personagens, quer se trate de doentes mentais, travestis, anões, quer se trate de um cidadão comum das ruas, carregam dentro de si o grotesco, o insano, o monstro, frente aos padrões sociais

estabelecidos. Todos pertencem ao mesmo universo dos desajustados, dos excluídos. Se os personagens de suas fotos são repulsivos, não estabelecem com o espectador a mesma relação, não há um desejo imediato de repúdio contra o que se está vendo, nem mesmo de compaixão para com essas pessoas. Arbus não está a fotografar o criminoso que acabou de ser assassinado, a criança que acabou de ser estuprada e esfaqueada, não há sangue em suas fotos, por isso o seu “repulsivo” não afasta, ao contrário, nos traz para perto, nos remete a pensar sobre esse mundo tão estranho e assombroso que há por trás de cada um desses rostos. A própria postura de Arbus diante da pessoa a ser fotografada nos dá indícios de sua intenção. Não há flagrante, nada é feito às escondidas, todos sabem que estão sendo fotografados, têm consciência de que estão a posar para uma foto. Poderíamos dizer que estabelece-se aí uma relação inconsciente de uma conivência quase ingênua entre as partes. Do lado de Arbus não há intenção de marcar a anomalia em si, de mostrar a pessoa como um doente, e sim de apontar para as relações humanas, para o distanciamento e mesmo o desligamento entre as pessoas; em outras palavras, para a surrealidade de tamanhos desencontros. Por outro lado, a pessoa diante da câmara não se concebe como monstruosa, excêntrica ou grotesca, já que permite e colabora com o ato de ser fotografada. Não há consciência da sua dor. A própria frontalidade com que Arbus normalmente as fotografava nos leva a crer nessa teoria, pois ser fotografado de frente marca não apenas o respeito para com o espectador, mas, sobretudo, a manifestação da essência da pessoa fotografada. Os mosaicos bizantinos de Ravena já nos mostram que todas as pessoas eram representadas de frente como sinal de solenidade e respeito ao público e, principalmente, ao chefe do Estado, da religião e do exército, aos quais os artistas eram subjugados. Essa frontalidade típica de Arbus (assim como a máscara de Górgona,13 que, invariavelmente, encara de frente o espectador que a observa) induzia os personagens a tornaremse ainda mais estranhos, pois os incitava a permanecer em pose, sem qualquer falso naturalismo. Diane Arbus, ao apresentar a solidão e o absurdo das relações entre os seres humanos, nos remete à obra de Seurat,14 que abriu definitivamente caminho para o pensamento surrealista. 13

Referência aqui feita a Górgona “Medusa”. George Seurat: pintor francês (1859-1891). Adotou um método científico baseado na “mistura ótica dos tons” para a realização dos seus trabalhos. Ao adotar um “método”, os seus quadros são realizados de forma extremamente impessoal, tudo tendo a mesma regularidade, tudo sendo espaço, que se confundo com as figuras, por terem o mesmo tratamento. Suas figuras não têm mais massa e volume como as tradicionais, não possuem vida, individualidade, pois obedecem a esquemas matemáticos. 14

O caráter intuitivo, da percepção direta e da ação imediata da pintura impressionista, mais próxima de um esboço do que de um quadro acabado dentro das tradições acadêmicas, passou a ser questionado por Seurat, não apenas no sentido de dar ao quadro uma estruturação maior, uma composição mais trabalhada, mas sobretudo por incorporar as manifestações tanto tecnológico-científicas quanto psicológicas da sociedade moderna. Seurat renunciou ao traço renascentista (não à composição), abolindo as linhas e os desenhos que eram preenchidos com as cores e lançou mão de um método científico calcado na física e na matemática, no qual as cores eram colocadas lado a lado através de pontos ou manchas. Esse tratamento era dado em toda a superfície da tela e, com isso, as figuras e o espaço em que elas estavam inseridas não mais se distinguiam, o distanciamento sujeito-objeto, típico da cultura renascentista, estava sendo colocado por terra. O método de Seurat fazia com que a figura e o fundo fossem feitos da mesma matéria, as manchas criando personagens com características irreais, diferentes das tradicionais, por não apresentarem volume, massa, peso. Ao obedecer a esquemas formais de um método, os personagens eram estruturados de maneira completamente impessoal, como manequins humanos sem vida e sem individualidade, não havendo qualquer tipo de comunicação, de interlocução entre eles, caracterizando o absurdo dos relacionamentos humanos e o total desajuste do homem na sociedade. Ao colocarmos lado a lado uma fotografia de Arbus (sem título), de 1971, (figura 1) e um quadro de Seurat (“Um Domingo de Verão na Grand-Jatte”), de 1885, (figura 2) seremos capazes de observar uma enorme comunicação entre eles, por mais distantes que estejam no tempo (quase um século os separa) e por mais diferentes que sejam as linguagens empregadas. De fato, o que sustenta ambos os trabalhos é a surrealidade que eles carregam. Por mais que se especule sobre o caráter técnico da obra de Seurat, constatase que o que permanece, o que a faz transpor mais de um século de escolas e correntes artísticas das mais diversas e continuar sendo fonte recorrente de grande parte dos artistas, admirada pelo público, é o seu caráter intrigante. Isto porque há aí embutida uma característica cultural típica do homem ocidental, que sempre se percebeu, principalmente depois de Descartes, como um ser simplesmente racional. A partir do momento em que se coloca esse homem frente a uma instância inconsciente, por ele desconhecida, e, portanto, fora dos seus controles, tudo passa a ser muito enigmático, e por isso, atraente. É exatamente nesse nível, nessa instância inconsciente que trabalham as obras de Seurat e Arbus, nos envolvendo, nos remetendo aos mais recônditos universos supra-reais. Os personagens, tanto do quadro de Seurat quanto da foto de Arbus aos quais nos referimos, possuem tais qualidades. Frente ao “Grand-Jatte”, vivenciamos um mundo assolado por uma atmosfera de profundo silencia, e no entanto de extrema

conturbação interna de seus personagens, sem qualquer tipo de comunicação entre eles. Cada pessoa vive isolada e voltada para seu próprio mundo, embora estejam todas juntas num dia de lazer em um parque. As pessoas de pé, junto ao lago, parecem ter seus olhares perdidos em outras águas; o casal no primeiro plano, postado de forma imóvel, não faz nenhum tipo de menção de, ao menos, se entreolhar; o rapaz de costas para o lago entretém-se sozinho; até mesmo a criança que aparece correndo transmite solidão por estar brincando isoladamente. Todos esses personagens poderiam, sem dúvida alguma, pertencer a uma foto de Arbus; esta cena de Seurat poderia certamente ser uma cena fotografada por Arbus, pois os três personagens da sua foto que citamos estão, da mesma forma, juntos numa área de lazer, envoltos cada um em seu próprio mundo. O diferencial de suas obras está apenas no fato de que, enquanto Seurat lida com pessoas típicas da classe média, inclusive dentro dos padrões estéticos da sociedade, Arbus elege os realmente desajustados e de aspecto desagradável esteticamente. Não há, de fato, em Arbus, qualquer intenção em lidar com a beleza atemporal padronizada, muito embora as suas fotos, e de forma geral a fotografia, tenham essa capacidade de revelar beleza em meio ao grotesco, ao desagradável, característica, aliás, inerente à própria linguagem fotográfica. O deslocamento do conceito do belo Há tempos a revelação da beleza atrelada aos aspectos grotescos tem sido reforçada por diversos fotógrafos. Um exemplo típico e bastante conhecido entre nós é a obra de Sebastião Salgado (1944-), que vem sistematicamente fotografando a pobreza e a miséria entre os povos dos países do terceiro mundo e que, apesar de apresentar imagens de um conteúdo estético terrível, consegue, dentro desse contexto lúgubre, passar uma beleza que transcende a própria imagem representada. Neste caso, a fotografia desloca o conceito clássico greco-romano de beleza para uma outra instância, para um lugar onde ela encontra o traço surrealista, ou seja, um lugar onde o belo perde toda a sua condição absoluta e se incorpora nas mais diversas situações, podendo estar presente no grotesco, no desagradável ou, até mesmo, numa circunstância o mais banal possível. O gosto surrealista de beleza afina-se com a atividade fotográfica, que procura o belo onde os olhos menos atentos o ignoram, debruçando-se sobre a fealdade e revelando o maravilhoso através da descoberta de imagens de assuntos e lugares jamais considerados como tal. A beleza fotográfica, que é eminentemente surrealista, encontra ressonância no envolvimento emocional, na comoção com a cena fotografada, transformando-se numa questão interna, que vai depender das experiências e vivências culturais, sociais e psicológicas de cada espectador, sem permanecer atrelada a um conceito externo, absoluto. Esse investimento no surreal fotográfico

nos remete a uma situação de mobilização interna, de proximidade e envolvimento com a cena fotografada, arrancando-nos do torpor contemplativo, passivo e distante, que nos foi dado como modelo para o relacionamento com o mundo. As bases do Surrealismo O Surrealismo surgiu apoiado na filosofia nietzschiana, no sentido de tirar-nos de tantos séculos de letargia social, tentando libertar o homem da alienação oriunda de uma sociedade calcada nos preceitos da razão, da ética, da moral e dos cânones religiosos erigidos sobre as bases da verdade absoluta e da inquestionabilidade dos dogmas. André Breton, no 2º Manifesto Surrealista, chega a radicalizar suas posições contra a sociedade, ao dizer que “todos os meios devem ser considerados aceitáveis para torpedear as idéias de família, pátria e religião”, demonstrando, aí, todo o seu poder de revolta contra a imobilidade, o enfado e a solidão impostos por uma civilização decadente. Aí o Surrealismo bretoniano encontra-se em perfeita harmonia com o pensamento de Nietzsche, centrado na embriaguez dionisíaca, que tenta devolver ao homem todo o seu potencial criativo, sua força e movimentação, em que todas as correntes opressoras e castradoras não encontram espaço. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche nos apresenta uma fala de Zaratustra que invoca o indivíduo a falar, cantar e dançar, não importando se ordenada ou desordenadamente. O que vale é o “embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontade de viver”. Nietzsche, através de Zaratustra, nada mais pretende do que nos remeter à nossa criatividade por meio das manifestações espontâneas. O Surrealismo, por seu lado, pretende alterar a vida ao desencadear uma crise moral na sociedade, “desalienando o homem dos preconceitos, dos formalismos e das convenções, não apenas pretendendo criar uma escola literária ou uma escola de pintura”, de acordo com a visão de Breton. A fotografia, da mesma forma, sobretudo por não ter nenhum compromisso com a grande arte do passado, ao debruçar-se sobre o antioficial, redimindo e tirando do limbo o kitsch e o promíscuo, pratica a anti-arte, e, assim, se adentra pelo mundo surrealista. Sob essa visão, a fotografia questiona o que era inquestionável, relativiza o que era absoluto, traz à tona uma nova visão de mundo, mais despojada e leve, embora crítica, dinâmica e participativa. A dessacralização do nu Mesmo ao lidar com temas “sacralizados” pelas belas artes, como o nu, a fotografia, assim como o Surrealismo de forma geral, dará a eles um tratamento peculiar, típico de uma visão niilista da tradição histórica. Se tomarmos, por exemplo, uma foto de um nu de Weston (1886-1958), “Hand on Breast” (1923) (figura 3), poderemos fazer algumas

especulações sobre ela. De imediato, observamos que todas as regras sacrossantas da beleza do nu são colocadas água abaixo. Na realidade, Weston nos põe frente a um num quase repugnante, em que o único seio a mostra, já que o close é bastante fechado, só é reconhecido devido ao mamilo, caso contrário poderíamos supor tratar de um pedaço de carne cravado por grandes unhas. Ao mutilar todo o resto do corpo, arrancando-lhe tudo o que lhe confere equilíbrio e, portanto, beleza, ao desvincular o nu feminino de toda a carga de sensualidade que ele traz, constatamos um apelo proposital em evidenciar o quão grotesco é o ser humano. Aqui, o espaço virtual, ou seja, o espaço não representado pela imagem, nos remete a um ser humano decadente, exaurido de todas as suas qualidades sexuais, em franca desarmonia consigo mesmo. É difícil imaginarmos por trás dessa foto de Weston uma Vênus de Botticelli com toda a sua graciosidade, seu nu sensual e, ao mesmo tempo, harmonioso, no qual impera uma atmosfera de sedução e idealização. Antes de Weston, no entanto, Duchamp foi o artista que mais intensamente criticou a tradição artística, muitas vezes tendo o num como ponto de partida. Em seu quadro “o Nu Descendo a Escada”, o que à primeira vista poderia parecer uma apologia à mecanicidade, como se Duchamp tivesse aderido aos aspectos da modernidade, ao Futurismo italiano15 reverenciado pela vanguarda da época, é exatamente o inverso. O manequim com roupas metalizadas é fragmentado pela repetição dos gestos num movimento descendente, carregando consigo a idéia de uma fuselagem em franca decadência, o que revela, aí, o caráter descrente e destruidor de Duchamp frente à modernidade. Por outro lado, o nu, que em toda a história da arte sempre representou a beleza, a sensualidade, como os nus beatificados de Rafael ou as madonas nuas de Rubens, descaracteriza-se por completo em Duchamp, que leva a uma espécie de desmistificação do nu feminino, não só porque efetivamente não há nu, já que o manequim está vestido com roupas metalizadas, como a atração pelo “nu” se dá através de uma visualidade negativa, e não pela beleza ou sensualidade. Nesses dois rápidos exemplos, tanto a foto de Weston quanto o quadro de Duchamp nos fazem pensar sobre toda uma conceituação arraigada da beleza idealizada que a sociedade ocidental nos impôs como referencial inquestionável, como é o caso típico da referida Vênus, de Botticelli, em que as proporções dos ombros e do pescoço da deusa foram alteradas para que se atingisse uma beleza máxima, idealizada. Esse modelo, de certa forma, passou a ter um outro equilíbrio, um outro peso na sociedade muito em função da fotografia, que, ao produzir imagens aleatórias do mundo, desierarquizou os temas e se alastrou de forma rápida por 15

Futurismo: Movimento artístico italiano iniciado em 1909 por Filippo Tommaso Marinetti, afirmando a primazia da velocidade. Reagindo contra o Cubismo, julgado estático demais, os futuristas buscavam “a sensação dinâmica eternizada enquanto tal”.

todos os lugares. É muito recorrente em fotografia a beleza de uma imagem vir do acidente, do acaso. Muitas vezes, é exatamente o que foge ao programado, a tudo aquilo que nos predeterminamos realizar, que faz de uma foto uma grande foto. Não estamos aqui falando do instantâneo programado quando estamos prontos ao que pode vir a acontecer, do momento exato de captarmos uma cena, típico da escola bressoniana,16 mas sim do acidente momentâneo inconsciente, característica que fez da fotografia a linguagem mais afinada com os ideais do Movimento Surrealista. A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista O acaso, inerente à própria linguagem fotográfica, funciona através de espasmos que, por vezes, deixamos escapar da armadura racional que nos impomos, é a nossa passagem a uma outra realidade diferente daquela que estamos acostumados a vivenciar, bloqueada e permeada por regras. Se por um lado a fotografia é a forma mais próxima da representação da realidade, por outro é ela quem desvenda o que há de mais desconhecido e surpreendente no ser humano. Através do acidente fotográfico, exercemos a nossa instância inconsciente, reveladora de nós mesmos, de toda nossa vaidade escamoteada, face oculta manifesta. Como desdobramento, a foto será um tanto mais arrebatadora quanto mais profundamente conseguir atingir esse universo do espectador, já que a ele se abrirá o lúdico, o maravilhoso, o desconhecido, enfim, tudo o que há de mais primário dentro de si e que o remeterá a sua própria existência. Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeira investida do Movimento Surrealista, que, através do seu “Primeiro Manifesto”, começa por fazer uma distinção bastante clara entro o que pertence à racionalidade e o que pertence ao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão se afastar da realidade, mergulhando em um mundo até então totalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico e o maravilhoso se fazem presentes. Desse modo, a razão humana perde todo o seu controle, abrindo espaço para que a imaginação, sem qualquer tipo de freios ou críticas, manifeste-se forma plena. De acordo com o teatrólogo PierreAlbert Birot, “o maravilhosos, cada vez mais livre de entraves, toma o caráter de surpreendente realidade em si, de Surrealismo...” e Louis Aragon17 escreve: “Além do real, há outras relações que o espírito pode apresentar e que são tão primárias quanto o acaso, a ilusão, o fantástico e o sonho. Essas diferentes espécies reúnem-se e conciliam-se num gênero que é a supra-realidade.” 16

Escola bressoniana : Estilo criado pelo fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) de captar o momento ideal, o instante exato para se tirar uma fotografia. 17 Louis Aragon : Poeta e romancista francês (1897-1982), um dos fundadores do Surrealismo.

Além de Birot, um autor teatral que trabalhou com a idéia do afastamento da realidade cotidiana para mergulhar numa realidade onde o ser humano é remetido aos seus instintos mais primitivos foi Antonin Artaud,18 para quem o verdadeiro objetivo do teatro é “traduzir a vida sob um aspecto universal, intenso, dela extraindo imagens com que gostaríamos de nos encontrar. O teatro deve ser considerado a cópia, não desta realidade cotidiana e direta da qual vai-se reduzindo pouco a pouco a ser apenas uma inerte reprodução, tão inútil como inexpressiva, mas sim de uma outra realidade, perigosa e típica, em face da qual os princípios se apressam a voltar à obscuridade como os golfinhos quando vêm à tona d’água. Ora, esta realidade não é humano mas inumano e o homem com seus costumes ou seu caráter, é preciso dizer, quase nada contribui para ela.”

E acrescenta: “O teatro deve reconduzir o espectador ao mundo dos sonhos e dos instintos, que é sanguinário e inumano. Exprimindo as forças recalcadas do homem, uma obra o liberta; igualmente, encontrando os espectadores pelos meios plásticos, a encenação deverá, por assim dizer, fazê-lo entrar em transe.”

Da mesma forma, uma foto se sustentará, perdurará no tempo não em função de sua técnica ou características composicionais, mas ao conseguir mobilizar internamente as pessoas, fazer com que o espectador, ao se ver frente a ela, dê um passo em direção ao mundo desconhecido, por ter tido o seu inconsciente acionado. O caminho trilhado pelos surrealistas para se abstraírem da realidade foi através do automatismo puro, daí o movimento ter surgido muito mais com um caráter literário do que plástico, e a linguagem fotográfica ter sido o seu grande veículo visual. Em pintura, por mais automáticas que seja uma representação, há a tela, os pincéis, a paleta, enfim, já toda uma condição processual do fazer do quadro, aliás condição esta que a caracterizou como uma das belas artes. O fazer do artista sempre encerrou não somente a condição autoral do trabalho de pintura, como também a criatividade e a individualidade do artista, que a colocou, de fato, frente à problemática surrealista. Se o Surrealismo nasce como uma atividade criativa na qual deve prevalecer o fluxo livre das associações, o automatismo psíquico puro, o inconsciente trabalhando sem qualquer tipo de barreiras, como poderia existir uma pintura realmente surrealista, se a própria linguagem plástica exigia fases intermediárias para sua realização? Como o inconsciente poderia de fato se efetivar 18

Antonin Artaud: Escritor, poeta e dramaturgo francês (18961948). Distiguiu-se sobretudo pelos seus ensaios dramáticos.

de forma automática, com o pintor tendo de lançar mão de diversos materiais e, conseqüentemente, realizar seu trabalho em vários estágios? Há um filme sobre Matisse no qual o artista é flagrado desenhando um retrato com gestos aparentemente irrefletidos e inconscientes, mas que, na seqüência seguinte, a câmera lenta, ao mostrar a mesma cena, nos faz ver a sua permanente escolha sobre que caminho seguir, a mão, pouco a pouco, encadeando todo um processo, uma seqüência de observações do mundo. Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia) Das inúmeras analogias metafóricas que até então já se fizeram utilizando-se Roma e Pompéia, inclusive no âmbito fotográfico (vide O Ato Fotográfico de Philippe Dubois), cabe-nos, aqui, pensar as linguagens fotográfica e pictórica nessas circunstâncias. Poderíamos dizer que a pintura está para Roma assim como a fotografia está para Pompéia. Ao se tirar uma fotografia, tudo é escuridão, a imagem impregnada na película permanecerá em latente escuridão e só será reconhecida, só virá à tona após a sua revelação, assim como Pompéia, que após a catástrofe ficou em estado de latência, de escuridão, até que as pás viessem revelar o que o Vesúvio imortalizou/ mortalizou em um único instante; aí se completa a outra metáfora, a da instantaneidade, do momento decisivo e único, em que tudo se passa de uma única vez. Apertado o obturador, tudo se dá; o presente de imediato torna-se passado e o futuro, expectativa. A imagem é captada de forma totalizante e única, a luz/ larva varre e paralisa o que vê pela frente de forma instantânea, sem chances para qualquer tipo de arranjo ou racionalização. A pintura, por outro lado, perfaz um outro caminho; o fazer de um quadro compreende um processo, um tempo, há sobreposição das camadas de tinta, é Roma com seu acúmulo de histórias, as camadas do tempo agindo sobre ela de forma fragmentária, porém contínua. Percebemos aí que a foto-Pompéia é mais próxima do Surrealismo que a pintura-Roma. Por melhor que seja a composição de uma foto, por mais perfeita que seja a técnica empregada, a força motriz, geradora de sua grande mobilização entre as pessoas está no detalhe (o que para Barthes é o “Punctum”), principalmente se ele provier do acidente, do acaso, pois o fascínio que a fotografia suscita vem muito de sua condição enigmática, de apreender em uma fração mínima do tempo o incidental, sobre o qual nem mesmo o fotógrafo tem controle. No exato momento do ato fotográfico, tudo é inconsciente, por maior que seja seu controle racional sobre o assunto a ser fotografado, até porque o ato fotográfico se dá no escuro, é o único momento em que o fotógrafo nada vê sobre o que está fotografando, já que o obturador, ao ser acionado, faz levantar o espelho, tornando o fotógrafo cego diante da imagem a ser fotografada.

A síntese do ato fotográfico compreende, pois, exatamente essa fração mínima do tempo em que tudo se dá de forma inconsciente, totalizante e de uma única vez, sem hesitação. A surrealidade fotográfica em Miró Não se pode negar que, da mesma forma, a pintura, em alguns momentos, tenha-se apresentado com escrita direta, imediata, em uma relação mais estreita com o automatismo, típico da primeira fase do Surrealismo. Yves Tanguy e André Masson, certamente, percorreram o automatismo seguindo seus impulsos internos, mas foi Miró (1893-1983), sem dúvida alguma, quem melhor navegou por esses mares e, por isso mesmo, mais próximo esteve da filosofia/ concepção da linguagem fotográfica. O fio da pintura Mironiana apresenta em uma das pontas a poesia, na outra, a fotografia. A poesia simbolista de Mallarmé,19 do final do século passado, talvez tenha sido o foco de maior influência na pintura de Miró. Mallarmé inaugurou uma nova época na literatura ao quebrar toda a estrutura da poesia parnasiana e mesmo da vanguarda romântica de Baudelaire. Os seus versos passam a ser estruturados de forma que as palavras percorram um fluxo contínuo de associações e simbologias, um entrelaçamento de idéias, como se existissem vários poemas dentro de um só; a própria técnica de montagem das palavras induz a essa sobreposição. Mallarmé foi quem primeiro recorreu a um espaçamento entre as palavras, jogou com a paravisualidade, com o espaço virtual do branco do papel, criando um campo de ação para que o leitor, agora também autor, pudesse percorrer, igualmente, o seu próprio fluxo de associações de forma livre e desbloqueada, em consonância com as suas vivências e experiências. Um trecho do poema básico para essa nova trajetória de Mallarmé, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, ilustra a análise anterior. Um lance de dados jamais abolirá o acaso (trecho) Stéphane Mallarmé FOSSE origem estelar SERIA pior não mais nem menos indiferentemente mas outro tanto O NÚMERO 19

Stéphane Mallarmé : poeta francês (1842-1898). Sua obra, embora breve, foi determinante para a evolução da literatura no século XX.

EXISTIRIA senão como a alucinação dispersa da agonia COMEÇARIA E CESSARIA brotando qual negado e fechado quando surgido enfim por alguma profusão espargida em raridade CIFRAR-SE-IA evidência da soma por pouco fosse uma ILUMINARIA O ACASO Cai

a pluma rítmica pausa do sinistro sepultar-se nas escumas originais donde há pouco sobressaltara seu delírio até um cinco esmaecido pela neutralidade idêntica do abismo Appolinaire20 foi outro poeta que, neste século, influenciou diretamente a pintura de Miró e, na realidade, o Surrealismo como um todo, dando inclusive o nome ao movimento, quando escolheu como subtítulo de sua peça “Lês Mamelles de Tirésias” a expressão “Drame Surrealiste”. Miró desdobra a experiência adquirida na literatura em verdadeiros “campos visuais”, não existindo mais a tela tratada como espaço renascentista no qual os elementos eram inseridos. Através dos seus “campos visuais”, Miró nos apresenta um mundo encantado com uma imensidão de símbolos e signos que percorremos em um fluxo, sem interrupção de linhas, formas ou cores, levando o espectador a uma viagem ao seu universo interior que tão pouco conhece. Há a formação de um emaranhado, de uma teia de imagens envolvendo entrelaçamentos e conexões entre os diversos elementos representados, permitindo que o espectador percorra continuamente a tela a partir de qualquer ponto, ou mesmo depare-se com o todo simultâneo do quadro, que, referido em Miró, não significa a tela fechada em si própria, o espaço representado preso a um tema, a uma literalidade, característica do Classicismo, em que tudo é equilíbrio, é harmonia. Muito pelo contrário, a sensação de “vivo” em Miró vem exatamente dessa antítese. Suas telas vibram, transmitem dinâmica pelo caos instalado, transcendente do espaço representado, que não se esgota por si só, tornando-se um simulacro de visão. Assim, o olhar agitado do espectador 20

Guillaume Appolinaire : poeta e crítico de arte francês (1880-1918). Orientou a poesia simbolista par aos novos caminhos que já anunciavam o Surrealismo.

procura no espaço virtual a continuidade do momento inaugurado na tela, que serve apenas como estopim para arrancá-lo do torpor contemplativo tão habitual e fazê-lo “viajar” em si. O incidental, o acaso a que nos referimos anteriormente, que constitui o punctum fotográfico, é, da mesma forma, o catalisador de toda a obra de Miró. Segundo o próprio pintor catalão, a força inicial que move o seu trabalho parte muito do acidente, podendo uma gota de tinta caída ao acaso numa tela ser o suficiente para detonar em seu inconsciente todo um arsenal de fantasias e imaginação que comporão o quadro, assim como um acidente no exato momento do “clic” fotográfico poderá constituir-se na força da imagem, por mobilizar alguma instância dentro do espectador, que não a mera visualidade contemplativa racional. A concepção da obra de Miró, tal qual a fotografia, aproxima-se mais de Pompéia do que de Roma, já que os seus “campos visuais” se dão ao espectador de forma totalizante, servindo como pontes para a ultrapassagem dos limites da tela, transcendência que constitui o cerne da linguagem fotográfica, pois uma fotografia é, antes de tudo, um recorte, uma subtração de um universo que esteve ali, presente no instante do ato fotográfico, mas excluído do espaço representado. Assim, uma fotografia não precisa, necessariamente, valer-se do corte, do sangramento explícito de uma imagem para ligar-se ao continuum do mundo, já que, inexoravelmente, ela traz dentro de si tal compreensão. Seria pobre, superficial, analisar ou simplesmente ver uma fotografia apenas dentro dos limites da representação, uma vez que ela própria, por compreender sempre uma imagem parcial do mundo, nos dá a “dica”, nos induz a ver o que está além dos nossos olhos, nos convida a uma viagem para além da realidade explícita ou explicitamente, independente da sua característica formal, uma surrealidade, mesmo que a nossa vivência n”ao queira ou mesmo não permita assim vê-la. O espaço virtual em fotografia é, em muitos casos, mais importante do que o próprio espaço representado, o ausente tendo a força da presença, assim com em Miró. Essa ausência mobiliza, atinge de tal forma as pessoas que ela é, de uma maneira ou de outra, muito recorrente entre os fotógrafos, que lançam mão dessa capacidade, própria da fotografia, para transportar o espectador ao desconhecido, ao enigmático, a tudo que é intrigante e assim o é exatamente por pertencer a um universo distante de sua realidade habitual, cotidiana, cuja passividade, na maioria das vezes, bloqueia os seus instintos e o impede de viver o maravilhoso.

III – A IMAGEM SUBVERTIDA Além do corte natural pura e simplesmente, que é o “sangramento” da imagem, ao qual nos referimos anteriormente, a realidade explícita pode ser subvertida dentro do próprio espaço de representação, como se o espaço virtual não estivesse mais em seu “off” habitual, mas sim estivesse nele inserido técnica. Esta é muito recorrente em fotografia, como por exemplo em Minor Whithe (1908-1976) “Windowsill Daydreaming” (julho 1958) (figura 4), em que vivenciamos uma expectativa, uma instabilidade interior, ao sermos remetidos a um espaço enigmático para além da janela entreaberta por uma cortina oscilante. Da mesma forma, alguns pintores surrealistas como De Chirico (1888-1978) e, principalmente, René Magritte (1898-1967), utilizaram-se do irrealismo fantástico para transfigurar o mundo exterior, criando uma atmosfera de mistério e suspense ao representar um espaço enigmático, a partir do qual iniciamos uma viagem para além do espaço representativo da tel. Ainda dentro do próprio espaço de representação, a realidade pode ser subvertida surrealisticamente quando se lança mão de colagens de quaisquer objetos que venham, de alguma forma, produzir efeitos de mascaramento total ou parcial na imagem representada, desestruturando o espaço e, conseqüentemente, quebrando a homogeneidade do olhar, não apenas por interromper a linearidade e continuidade da leitura, como por introduzir novas texturas e campos, que alterarão os sentidos e remeterão o espectador a experimentar novas vivências. Conforme Tristan Tzara21 (1896-1963), “a diferença das matérias que o olho é capaz de transformar em sensação tátil dá uma nova profundidade ao quadro...” Quando impregnada por tais interferências, a fotografia abraça as artes plásticas, tornando-se linguagens unas. Frente às colagens/ montagens, pintores e fotógrafos põem-se diante de iguais propostas. Seja em Rauschenberg ou Man Ray,22 Max Ernst23 ou Moholy-Nagy, 24 os embates transcorrerão por 21

Tristan Tzara : (Romênia 1896 – França 1963). Um dos fundadores do Movimento Dada, que teve início em 1916 em Zurique, insurgindo-se contra os absurdos de sua época e contestando radicalmente todos os meios de expressão tradicionais. 22 Man Ray : pintor e fotógrafo americano (1890-1976). Foi um dos criadores do Movimento Dadaísta em 1917, em Nova York, e juntou-se ao Surrealismo em 1920. Criou as “raiografias” e realizou diversos filmes surrealistas. 23 Max Ernst: pintor francês de origem alemã (1891-1976). Foi um dos fundadores do Dadaísmo, participou do Surrealismo, criou as fotomontagens surrealistas e a frottage (processo com base na ação de esfregar a matéria). Repeliu sistematicamente qualquer disciplina, utilizando inúmeras técnicas e temas.

vasos comunicantes, cujas descobertas fluirão pelos mesmos canais, principalmente se pensarmos no Surrealismo. Não seria arriscado afirmar que o Surrealismo encontrou as suas maiores transgressões através das colagens/ montagens, exatamente por elas permitirem uma infinidade de combinações de imagens e elementos dentro das propostas do movimento. As colagens surrealistas têm seu fundamento no confronto de imagens díspares, que nos colocam frente a situações absurdas, paradoxais, violentas, nos remetendo a uma realidade que não apresenta qualquer nexo com a realidade cotidiana, liberando o espírito para um mundo novo, suprareal, caotizado pelos imprevistos choques de imagens. Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista A colagem/ montagem surrealista iniciou-se, efetivamente, com Max Ernst, que, ao beber nas fontes cubistas de Braque e Picasso, deu um novo rumo à técnica por eles utilizada. É interessante reproduzir pelas próprias palavras de Max Ernst a maneira pela qual surgiu a colagem surrealista, para que possamos fazer uma ponte entre o seu nascimento e o seu desdobramento futuro: “Num dia chuvoso, em Colônia, o catálogo de uma casa que vende material escolar desperta-me a atenção. Vejo ali exemplares de todos os gêneros, manuais de matemática, de geometria, antropologia, zoologia, botânica, anatomia, mineralogia, paleontologia, etc., elementos de natureza tão diversas que a absurdidade do seu reagrupamento me perturba a vista e os sentidos, desencadeando em mim alucinações e conferindo aos sujeitos representados uma sucessão de significados novos e mutantes. A minha atividade visual ficou de repente tão agudizada que consegui ver os objetos que se formavam imediatamente sobre um fundo novo. Para o fixar bastava um pouco de tinta, algumas linhas, um horizonte, um deserto, um céu, uma divisória ou coisas idênticas. Assim se fixou a minha alucinação.” (ERNST, Max – Taschen, p.18)

Assim, Max Ernst iniciava o que viria a ser um dos grandes trunfos dos surrealistas, que, através das colagens, passavam a estabelecer relações diferentes das habitualmente conhecidas entre os objetos e os seres, tirando-os do seu caráter absoluto, de suas identidades pró-fixadas, indo ao encontro do fortuito, das relações relativas, circunstanciais e, por isso mesmo, mais verdadeiras; a realidade do encontro entre objetos, estabelecida por uma montagem, encerra o seu caráter verdadeiro só e somente só enquanto esta durar, isto é, em uma outra situação, em uma outra montagem, esses mesmos 24

Laszlo Moholy-Nagy : escultor e fotógrafo húngaro (18951946). Realizou esculturas construtivistas, foi professor da Bauhaus e fundador da Nova Bauhaus em Chicago (1938). Dedicou-se à fotografia, onde marcou sua obra por fotografias com ângulos oblíquos.

objetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo, assim, identidades diferentes. Desse modo, quando Man Ray fotografa um guarda-chuva na presença de uma máquina de costura em cima de uma mesa de dissecação, estabelece uma realidade nova e instigante entre esses três objetos que, anteriormente, sozinhos ou em outras montagens, possuiriam realidades diferentes. A surrealidade em Picasso A circunstancialidade da montagem é extremamente renovadora exatamente pela dinâmica e pelo caráter transformador que ela impõe à realidade de cada objeto. Imbuído desse espírito, Picasso, no começo do século, revolucionou a linguagem escultórica quando, ao criar “A Guitarra”,25 retirou a escultura do monólito, do pedestal, do seu caráter absoluto, fixo e imutável de representação, dando-lhe uma característica de mobilidade, de realidade relativa, em que os objetos usados na construção de sua “Guitarra”, em outras circunstâncias, comporiam outra escultura e, portanto, compreenderiam outra realidade. Assim como Picasso, que, utilizando-se dos princípios da circunstancialidade, revolucionou de forma radical a escultura ocidental através da sua “Guitarra”, a fotomontagem, a partir dos surrealistas, inaugurou uma nova concepção na linguagem fotográfica, dando-lhe autonomia, retirando-a do pesado fardo de desempenhar o papel da fiel representadora do mundo, do seu caráter mimético. A unicidade, a integridade da fotografia se esvai não apenas em função da provisoriedade da montagem, que a retira da temporalidade, mas por ela tornar a imagem representativa bidimensional em tridimensional, dessacralizando-a, submetendo-a à condição de objeto manipulável, compreendendo tantas realidades quanto possibilidades de suas montagens. A visão fotográfica habitual do mundo é infringida pela montagem, uma vez que ela é construída em função do que se faz no espaço, dos choques entre as imagens sobrepostas, evidenciando que cada imagem assim construída vive uma experiência própria, única, não guardando mais o conceito de espaço pronto, preconcebido por leis matemáticas dentro da teoria euclidiana de comprimento, largura e altura. A montagem, na realidade, vem a ser um desdobramento natural da concepção filosófica do nosso século. Enquanto o século XIX carregava o sentido de tempo aristotélico, linear, no qual tudo tinha seqüencialmente um início, um meio e um fim com desfechos lógicos, o século XX vivencia a concepção 25

Desde a Grécia que a escultura tinha o seu conceito de unicidade, nos dando a individualidade das formas. A “Guitarra” de Picasso, ao contrário, é construída a partir da junção de elementos planos curvados, não sendo mais a imitação do objeto guitarra, mas a construção de um objeto, sem a integridade, a característica monolítica da escultura convencional.

do todo, da simultaneidade, simbolizada pela linha de montagem automobilística, em que o automóvel é concebido como um todo, sendo montado parte por parte num processo de préfabricação. Esse é o sentido de tempo contemporâneo, em que os elementos se justapõem, nada mais sendo do que a colagem e a montagem das artes plásticas. Sem dúvida, toda essa nova potencialidade emanada pelas colagens e montagens nas artes plásticas em geral incluindo, aí, a linguagem fotográfica, que viria ratificar a força do movimento surrealista foi fruto de um longo processo de experiências antecedentes. De Chirico Nas artes plásticas, um dos primeiros sinais de manifestação apontando diretamente para uma realidade adversa à nossa veio com a fase metafísica de Giorgio De Chirico (1888-1978). Numa época em que o Futurismo realizava experiências com composições dinâmicas e tumultuadas e o Cubismo chegava ao plano total com Braque e Picasso levando às telas a funcionalidade, a mecanicidade do mundo através das fragmentações e multiplicidades dos pontos de vista, características da modernidade, De Chirico apontava para uma vertente diametralmente oposta a toda essa racionalidade ocidental, o que, posteriormente, viria a ser a pedra de toque do Surrealismo. Seus trabalhos, nesse período, foram marcados pela total descontextualização dos objetos, com o confronto entre imagens díspares num mesmo espaço, remetendonos a uma nova realidade, sendo o potencial revelador dessa nova imagem tanto maior quanto mais antagônicas fossem essas imagens e mais distantes da nossa realidade nos remetesse. Essa descontextualização dá-se de forma extremamente enigmática, estranha, em cenários e ambientes da mesma forma estranhos, silenciosos, fantasmagóricos, potencializando ainda mais a descontextualização. Essas características fazem do mundo de De Chirico um mundo à parte, que nada tem a ver com a realidade existente. A tônica da fase metafísica de De Chirico apresenta estreita relação com a montagem surrealista, que se estrutura não em função da comparação, mas do confronto entre imagens antagônicas. Duchamp e os ready-mades Paralelo a De Chirico, correm as especulações de Marcel Duchamp (1887-1968), cujas obras apontariam para um direto desdobramento no Surrealismo, tendo Man Ray como um de seus principais interlocutores. Dentre as diversas transgressões praticadas por Duchamp, nosso interesse, no momento, se atém mais a uma investigação

sobre seus ready-mades,26 não quanto ao seu caráter indiciário ou de traço, mas no que eles podem nos ajudar na compreensão de suas relações com a filosofia do Surrealismo, sobretudo com as montagens/ colagens surrealistas de que estamos tratando. Duchamp constata que o mundo moderno rejeita, repele qualquer gesto individual, que é inútil e inócua qualquer ação individual do ser humano frente à massificação e a standardização imposta pela sociedade. Assim, parte para a realização dos seus ready-mades , em que, na realidade, ele nada fez além de selecionar objetos já prontos, industrializados, entregando-os ao mundo como sendo obras de arte, já que o mundo considera arte sempre o objeto final, acabado, e não o gesto artístico que o gerou, o potencial intelectual existente no fazer da obra de arte. Por isso, Duchamp vai salvaguardar o seu gesto, não fazendo, por perceber que iria se perder e conseqüentemente ser ignorado, o que acaba por colocar em cheque toda uma tradição que sempre esteve presente na história da arte: o f a z e r artístico. Quando Duchamp fixa uma roda de bicicleta a um banco e os define como arte, estabelece-se de imediato um deslocamento conceitual, já que é o próprio Duchamp que, ao acoplar dois objetos já prontos, diz que o que está ali é uma obra de arte, não possibilitando a intermediação da instituição para definir e validar aquele objeto como obra de arte. Há, portanto, uma subversão à tradição não somente por lhe ser negado o privilégio de definir o que vai ou não ser uma obra de arte, mas, sobretudo, por transferir essa responsabilidade para o artista, potencializando o seu gesto individual, marcando uma postura singular do ser humano em oposição à massificação estabelecida. Essa mobilização interna era acentuada pela maneira como Duchamp escolhia os objetos para a concepção dos ready-mades, pois eles deveriam ser isentos de qualquer qualidade estética, tanto negativa quanto positivamente. Deveriam ser a não-significação, o supra-sumo da assepsia estética, para que o seu caráter atrativo e, portanto, interativo se desse, efetivamente, em função da total descontextualização de suas realidades próprias, no novo ambiente em que eles agora se encontravam. De acordo com a visão do próprio Duchamp: “O grande problema era o ato de escolher. Tinha que escolher um objeto sem que ele me impressionasse e sem a menor intervenção, dentro do possível, de qualquer idéia ou propósito de deleite estético. Era necessário reduzir o meu gosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um objeto que não nos interessa absolutamente não só no dia em que o elegemos, mas para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de

26

Ready-Made: Criado por Marcel Duchamp, é um objeto já manufaturado, pronto, promovido ao nível de arte pela simples escolha do artista.

tornar-se algo belo, agradável ou feio...” (DUCHAMP, Marcel – O Castelo da Pureza, p.27)

De fato, colocar alguns cubos de mármore e um termômetro dentro de uma gaiola ou acoplar uma roda de bicicleta a um banco é retirar completamente as funções habituais de cada um desses objetos, é alterar radicalmente os significados individuais de cada um deles, e, por isso mesmo, pela união de realidades individuais tão desconexas é que se dará a potencialização de uma realidade nova, intrigante e de caráter interativo tão grande com o espectador, que ele estará possibilitado a vivenciar uma experiência interna surpreendente e, portanto, mobilizadora. O caráter desses encontros entre objetos que compõem os r e a d y - m a d e s é o mesmo que acompanha as fotomontagens surrealistas, em que a fronteira entre a realidade que de fato existe e uma outra realidade inconsciente é muito tênue, o que nos torna perplexos, sem saber ao certo onde começa e onde termina a realidade concreta. Duchamp, da mesma forma, instaura esse mesmo tipo de realidade nas poucas pinturas (se é que assim podem ser chamadas) realizadas entre os seus ready-mades, como é o caso do “Grande Vidro” também intitulado “A Noiva e seus Celibatários, Mesmo”. É uma pintura sobre vidro onde ele descreve um truncado mecanismo nas relações entre a noiva e os celibatários, que, supostamente, estão representados no quadro. O “Grande Vidro” é acompanhado de uma série de notas na “Caixa Verde”, que vão explicar a funcionalidade do quadro. Grande parte dessa descrição literal, no entanto, não corresponde ao que está de fato representado, criando, assim, uma fragmentação, uma ausência de integridade, sendo essa desvinculação da realidade visual geradora de uma reflexão sobre que realidade é essa que nos é imposta, em que a lógica do que se vê é meramente arbitrária, convencionada. Magritte As fotomontagens surrealistas, por meio de justaposições de imagens e palavras, percorrem o mesmo questionamento. Essa absurdidade duchampiana é, da mesma forma, colocada nos trabalhos de René Magritte (1898-1967), que desafia a lógica da realidade ocidental instaurando o irracional, o onírico, através de uma perfeita manipulação da realidade, ao retirar os objetos de suas banalidades cotidianas, inserindo-os em situações sem uma coerência aparente, onde se instalam o mistério e o fantástico de tal forma que somos postos frente a uma “realidade totalmente verossímil (ele não inventa nada) e absurda ao mesmo tempo”. O mundo de Magritte é permeado pelo mistério, em que o desconhecido surge do conhecido. No quadro “A Chave dos Campos”, há a representação de uma janela de vidro que dá para uma paisagem, sendo que os vidros, ao serem quebrados, caem ao chão e cada pedaço de vidro caído continua conservando a imagem da paisagem vista através da janela, misturando, aí, realidade e ficção, como

afirma o próprio autor: “Criando um novo mundo a meio caminho entre o sonho e a fantasia.” Essa manipulação da realidade interage simbioticamente com as operações de fotomontagem surrealista, pois Magritte, com tinta e tela, instaura o mesmo tipo de realidade que Hannah Höch, Robert Rauschenberg, John Heartfield, Max Ernst, assim como tantos outros artistas, que o fazem através de justaposições de imagens, nas quais cada realidade fotografada (e por isso mesmo, de fato, existente) ao se juntar em um mesmo espaço a outras imagens igualmente verídicas, existentes, alteram-se a si próprias, inaugurando uma desorganização da visualidade aparente e criando, a partir desse “caos”, uma realidade além daquela que estamos habituados a vivenciar, ou seja, uma supra-realidade. No entanto, não é apenas através dos aspectos pictóricos de seus quadros que Magritte nos apresenta toda a ilogicidade do mundo, pois ele lança mão de um outro elemento, que é a escrita, para descontextualizar ainda mais a realidade existente. Nesse caso, embora se configure uma verdadeira operação duchampiana pelas suas propostas, a formalização se dá diferentemente. Ao contrário de Duchamp, a escrita, em Magritte, faz parte, efetivamente, do campo da representação do quadro, em cuja obra a imagem plástica e a imagem gráfica são colocadas no mesmo espaço, configurando-se como verdadeiras montagens surrealistas, pela total desconexão entre o que se vê e o que se lê. O que Magritte faz é representar objetos dentro de compartimentos com um nome em baixo de cada representação, que, na realidade, nada tem a ver com a representação em si. Quando Magritte pinta um cachimbo e coloca em baixo o título “Isto não é um cachimbo”, está nos chamando a atenção para a arbitrariedade da linguagem, uma vez que é mera convenção o que liga o nome cachimbo ao objeto que o representa. Desse modo podemos perceber que as relações que sustentam o mundo têm seu suporte em valores preconcebidos e por isso mesmo frágeis, e conseqüentemente passíveis de modificações. Transmutá-los é o que se pretende com o Surrealismo.

IV – O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTO SURREALISTA Toda a incerteza vivenciada através das imagens surrealistas, em que os dados da realidade concreta se entrelaçam às visões fantasiosas do inconsciente, encontra respaldo nas experiências com os doentes paranóicos. Uma característica peculiar da paranóia, e que, por isso, suscitou grande interesse entre os surrealistas, é que o doente paranóico interpreta os fenômenos que ocorrem na realidade em função de suas obsessões, realizando, continuamente, uma síntese entre o real e o imaginário, fazendo com que o mundo do delírio se transporte ao plano da realidade. Debruçado em tais experiências, Salvador Dalí27 elaborou o seu método “paranóico-crítico”, com o qual ele propõe um componente ativo na elaboração das imagens. Segundo o próprio Dalí, “o método que leva em conta apenas o papel exclusivamente passivo e receptor do sujeito surrealista deve ser substituído por um método ativo, capaz de realizar materialmente este mundo delirante da irracionalidade concreta”. Por isso, em sua fase paranóico-crítica Dalí preconizava que toda a sua ambição no plano pictórico consistia em materializar, com a maior precisão possível, as imagens da irracionalidade concreta e que o mundo imaginário e a irracionalidade concreta tivessem a mesma evidência objetiva, a mesma consistência, a mesma expressão persuasiva e comunicável que o mundo exterior da realidade fenomênica. Uma das características marcantes do seu método, no plano pictórico, foi a imagem dupla, ou seja, aquela imagem que, sem a necessidade de alterações, pode representar, ao mesmo tempo, duas ou mais realidades diferentes. É o caso do retrato feito por Dalí de Mae West, em que os traços faciais da atriz representam também um mobiliário. O artista sustentava que qualquer imagem pode multiplicar seus significados até o infinito, dependendo, exclusivamente, da capacidade delirante do espectador. As imagens do método paranóico-crítico tiveram um desdobramento extremamente interessante na construção dos objetos surrealistas, que se prestavam a um mínimo de funcionamento mecânico, cumprindo única e exclusivamente a função de representante dos delírios do inconsciente, muitas vezes desorientando mais o público do que os próprios quadros ou poemas surrealistas. Um exemplo do objeto surrealista 27

Salvador Dalí : pintor espanhol (1904-1989). Um dos personagens mais complexos das artes do século XX. Interessou-se pelo Cubismo, pelo Futurismo e pela pintura metafísica de De Chirico. Estudou profundamente a obra de Freud e a partir daí criou o método paranóico-crítico, logo incorporado ao Movimento Surrealista. Em 1937 rompeu com o Surrealismo, retornando à pintura influenciada pela Renascença Italiana, dedicando-se posteriormente à pintura religiosa.

proposto por Dalí foi a “reprodução de grandes automóveis, três vezes maiores que os normais e com todas as minúcias de pormenores dos originais, em gesso, para que, envoltos em roupas femininas, fossem enterrados em sepulturas, cujo lugar seria reconhecido apenas por um delicado relógio de palha”. O Movimento Surrealista, que vinha, de uma certa forma, sofrendo desgaste em se utilizar apenas do automatismo puro, tendo como proposta o total afastamento da realidade, encontrou em Salvador Dalí uma fonte renovadora ao absorver o método paranóico-crítico, que, em última instância, resgatou o retorno à realidade da qual se afastaram, sugerindo a integração dos delírios do inconsciente com os dados da realidade vivida. Dalí propõe, assim, com o seu método, a síntese inconsciente + consciente, para se chegar à suprarealidade e, conseqüentemente, à harmonia do ser humano consigo próprio. A partir daí, as experimentações surrealistas passaram por um processo contínuo de transição, em que se verificou que o mundo vive numa permanente inter-relação entre o racional e as fantasias subjetivas, negando, assim, todo o sistema cultural do Ocidente, que acentua de forma negativa esses aspectos paradoxais do mundo. Para os surrealistas, a supra-realidade é “o ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente” e, portanto, passam a realizar obras em que combinam todos esses elementos contraditórios do mundo, acreditando numa verdadeira relação de “vasos comunicantes”, em que tais elementos juntos, ao invés de se oporem, como é acentuado culturalmente, interagem, de maneira a se chegar à plenitude do ser humano. A supra-realidade já não representa, portanto, o absolutismo do inconsciente, a total evasão da realidade, mas se correlaciona com ela à procura da unidade, abrindo canais através de imagens para que o mundo real seja o reflexo do espírito humano. Uma das concretizações mais evidentes do novo rumo tomado pelo Surrealismo em sua segunda fase foi a transformação do título do quadro “Revolução Noturna” de Max Ernst, para “Revolução Diurna”, apontando, aí, para um retorno à realidade, agora com a clareza da vivência experimentado no mergulho ao inconsciente; os surrealistas, retornam, então, à realidade concreta da mesma forma que os personagens de Platão, que ao terem contato com a luza após viverem um longo período na escuridão, retornam à caverna enriquecidos com a experiência vivida. Dessa forma, o contato com o cotidiano não representou um retrocesso dos surrealistas, já que o cotidiano passou a ser vivenciado à luz de uma experiência enriquecedora da primeira fase do movimento, na qual se debruçaram total e completamente sobre o mundo do inconsciente. Toda a teoria da segunda fase do Movimento Surrealista teve suas bases calcadas na psicologia freudiana, que libertou o indivíduo das concepções morais da sociedade, para

que, enriquecido com essa vivência, pudesse experimentar uma nova relação com a realidade cotidiana. Esse retorno ao concreto acabou por desdobrar-se no materialismo dialético de Marx, que encarava o homem como “um conjunto de forças livremente desabrochadas”, o qual iria reconciliá-lo com as duas faces de si mesmo: consciência + inconsciência. Por isso, seria mais do que natural o Movimento Surrealista encontrar respaldo nos estatutos de Marx, que possibilitavam a união de forças contraditórias, chegando a uma “filosofia particular da imanência, segundo a qual a suprarealidade estaria contida na própria realidade (não seria nem superior, nem inferior). E reciprocamente, pois o continente seria também o conteúdo. Tratar-se-ia quase de um vaso comunicante entre conteúdo e continente.”

A fotografia inserida na filosofia do 2º Manifesto Surrealista Essa pequena imersão nos desdobramentos do Movimento Surrealista nos coloca diante da qualidade fundamental da fotografia, que é a oscilação entre o real e o inconsciente. De fato, a fotografia percorre esses dois caminhos concomitantemente. Não há imagem fotográfica que deixe de carregar dentro de sai a realidade existente na hora do ato fotográfico, juntamente com a carga psicológica e subjetiva por ela emanada. Essa carga inconsciente, com certeza, é a face mais complexa de uma imagem fotográfica, uma vez que ela provém de várias instâncias que se intercomunicam e se desdobram em outras tantas realidades subjetivas. Envoltos em tais complexidades, encontram-se o sujeito fotografado, o sujeito que fotografa e o espectador, cada qual contribuindo com suas próprias experiências e vivências culturais, sociais e psicológicas, que farão da imagem de fato existente, fotografada, uma obra sempre em aberto à mercê de quem a olha. Se pensarmos, primeiramente, no fator técnico, podemos observar que a linguagem fotográfica por si só já trabalha com uma realidade deturpada. Mesmo lançando mão de uma lente dita “normal” de 50mm, ela jamais corresponderá exatamente à visão humana, sempre estará ocorrendo algum tipo de desvirtuamento da realidade vista pelo olho humano. A realidade, no entanto, estará clara e patentemente deturpada ao trabalharmos com uma lente grande angular, que nos dará uma imagem bastante distorcida, ou uma teleobjetiva, que apresentará planos achatados. Todas essas imperfeições ou anormalidades impostas à realidade como o desfoque, a silhueta, o tremido, a dupla exposição e tantas outras mais, são recursos eminentemente fotográficos que, de imediato, já nos colocam frente a uma realidade diferente da que vivenciamos em nosso cotidiano. A linguagem fotográfica, portanto, tem a capacidade de nos prover, através do seu aparato técnico, de todo um manancial de informações visuais

extremamente libertárias que podem alterar o nosso sentido e relacionamento espacial com a realidade. Ao estarmos diante de uma imagem distorcida da realidade, caso típico de uma lente grande angular, experimentamos, de alguma forma, um certo tipo de desconforto, de mal-estar. Essa recusa que a princípio se instala, tem suas raízes na ausência de correspondência entre o espaço que estamos acostumados a vivenciar, dentro do qual os nossos sentidos habitualmente já respondem a todas as solicitações, e essa imagem distorcida. O homem sempre procurou ratificar a sua presença no mundo buscando algo que o remetesse a sua semelhança e ao espaço, que é a sua condição básica de relacionamento com o mundo, o seu grande referente. Caso esse referente não encontre correspondência, isto é, caso o homem não encontre semelhança entre o que sente e o que vê, instaura-se o caos, pois aí lhe é negada a condição primária de se sentir parte do mundo. Essa vivência, de certa forma, é ainda mais acentuada ao se tratar de uma imagem fotográfica, já que a fotografia sempre foi culturalmente encarada, desde a sua criação, como a mais fiel representante da realidade, o referente mimético da natureza. A partir do momento em que ela nega e frustra essa expectativa de apresentar uma realidade com a qual estamos habituados a conviver e que, inconscientemente, desejamos que seja mostrada, há, sem dúvida, uma desarticulação interna, tendo como conseqüência natural a negação de toda e qualquer imagem que venha quebrar esse estatuto. O fato é que a linguagem fotográfica traz já dentro do seu próprio meio de expressão a qualidade de apresentar uma realidade existente e, ao mesmo tempo, transcendente a ela própria, quer dizer, a fotografia já carrega, intrinsecamente, a surrealidade dentro de si. Por mais sofisticada que seja a aparelhagem fotográfica, por maiores que sejam os avanços da tecnologia ótica, a instância inconsciente do sujeito que fotografa, no exato momento em que o obturador é acionado, justapõe-se a toda essa racionalidade, impondo sua carga expressiva à imagem e, certamente, a força dessa imagem será diretamente proporcional a esse investimento do sujeito. Não há como ter total controle sobre todos os parâmetros no momento em que se está fotografando, até porque nem tudo depende apenas do fotógrafo. Sempre há algum tipo de interferência externa, como a mudança de luminosidade, um movimento imprevista da cena, a entrada inesperada de algum objeto ou de alguém no espaço a ser fotografado. Há, enfim, todo um contexto que resvala ao controle único e exclusivo do fotógrafo. A racionalização, a consciência sobre o que se quer fotografar pode, e até deve, existir (se for o caso) anteriormente ao acionamento do obturador. O ato fotográfico em si é pura inconsciência, pois nesse exato momento tudo é escuridão (não apenas teoricamente, já que nesse mo mento o espelho se fecha), nesses décimos de segundo tudo ocorre de

forma totalizante e de uma única vez, não havendo tempo para etapas processuais, para se voltar atrás. As imagens que ficam, perduram no tempo, conseguem atravessar gerações e, mesmo assim, continuam emocionando as pessoas, com certeza não o fazem pelas suas qualidades técnicas. Um fotógrafo medíocre, com uma sofisticada aparelhagem, pode estar, tecnicamente, ao lado de um grande fotógrafo, e mesmo assim continuar medíocre, sem brilho, sem conseguir emocionar as pessoas. Por isso, por mais que a tendência do mercado seja a de padronizar tecnicamente as aparelhagens, de colocar as pessoas com praticamente o mesmo tipo e nível de material, sempre haverá fotógrafos e fotógrafos. Paradoxalmente, quanto mais se assemelham os equipamentos, mais se nota a diferença entre a boa e a má produção de imagens; o que se esperava de uma padronização dos fotógrafos em função da sofisticação tecnológica, dos imensos recursos que os deixariam em “pé de igualdade”, veio somente acentuar diferenças, as quais configuram-se pela “marca” de cada ser humano. Essa “marca” a que nos referimos e a que chamam estilo, esse diferencial, é produto do inconsciente de cada ser humano, uma vez que, frente a um meio de criatividade, sai da latência e torna-se arte. Por isso, uma imagem fotográfica, ao ser produzida, leva consigo a realidade de fato existente, juntamente com o manancial inconsciente do sujeito que a produz, desdobrando-se em uma supra-realidade, em uma realidade que não se configura apenas através do palpável, mas, isto sim, através da inter-relação do que há de inconsciente na produção e do que foge a tudo isso, característico da instância inconsciente. A unicidade consciente/ inconsciente, portanto, tão procurada e desejada pelo Movimento Surrealista, é não somente parte integrante como pedra fundamental, dado inseparável da linguagem fotográfica. O sujeito fotografado, da mesma forma, atua intensamente nesse processo. Um olhar ou um gesto qualquer, por mais imperceptível que possa parecer diante do todo ou da atenção central de uma imagem, pode alterar por completo, ou então acentuar o sentido da cena, principalmente se esse gesto não fizer parte diretamente do contexto da foto. Sebastião Salgado flagrou no “Raso da Catarina” (Bahia) (figura 5) uma cena que nos remete a uma reflexão sobre essa situação. O cenário compreende uma noiva dentro de um carro aguardando a chegado do noivo. Uma das portas do carro encontra-se aberta, onde se vê uma mulher de pé, fora do carro, apoiada com um dos braços sobre a tal porta. Quando olhamos essa foto, as nossas atenções voltam-se imediatamente para a noiva, em seu estado de resignação, quase patético, aguardando o momento tão desejado. Ali, tudo é espera: o chão batido à espera do calçamento, a construção (ao fundo) à espera de sua finalização, o lugar vazio do motorista à espero do suposto noivo e, principalmente, a noiva, concentrando em si toda a emocionalidade da foto. No entanto, após um certo tempo, sinto que a força realmente

expressiva da cena encontra-se na mulher que está fora do carro, não por ela estar efetivamente em estado de espera, pois está grávida, mas pelo seu olhar – não há como evitar nossas atenções sobre ela. A espera que há em seus olhos vai além da gestualidade concentrada na noiva, pois nos pega mais pelo que não está representado, ou seja, a espera de que falam esses olhos não é de fato a espera pelo noivo, vai muito além disso. A profunda desesperança nesse olhar não corresponde a uma espera momentânea, objetiva, que, na maioria das vezes, nesse tipo de situação, se desfaz. Esses olhos trazem toda uma vida de espera, no sofrimento de sua situação sertaneja. É possível perceber que essa mulher olha para um nada, para um vazio, pois é um olhar que está perdido dentro dela própria, tão longe e tão próximo. A superficialidade do que seria uma cena óbvia de espera torna-se contundente diante do que, a princípio, se dava como algo secundário a ela, ou seja, esse “secundário” à cena é que a qualifica, tornando-a presente dentro do espectador que a olha, sem poder evitar o seu comprometimento com ela. Assim, mais uma vez, a força dessa imagem não se encontra, de fato, no espaço representado, e sim na virtualidade a que ela nos remete. Nos chamados “flagrantes”, aquelas fotos em que o sujeito não percebe que está sendo fotografado, é muito recorrente este tipo de situação. Pelo fato de ser surpreendido pela câmara, sua participação no contexto da imagem fotografada é toda inconsciente e esse dado tem um caráter fundamental na animação da foto, que, no caso, refere-se à maneira pela qual a imagem atinge o espectador. A mobilização, aí, diz respeito não a perturbações ou choques estéticos, mas ao confronto com o desconhecido, com o oculto revelado do sujeito. Cartier-Bresson (1908-2004) é o grande mestre na arte do “momento decisivo” não por conseguir emocionar o mundo através de imagens chocantes, carregadas de emoção ou cheias de retórica, mas por tocar no inconsciente do espectador. Utilizando-se de imagens extremamente simples, quase minimalistas, Bresson faz surgir o que há de oculto, de inconsciente nas pessoas, o qual jamais seria revelado se elas tivessem consciência de estarem sendo fotografadas. “Momento decisivo” é, portanto, essa fração de segundo em que deixamos a latência inconsciente tornar-se realidade; é aí, nessa instância, que o espectador é seduzido, é como se ele pegasse o “gancho” dessa revelação inconsciente e trouxesse para si, revelando-se a si próprio. Assim, esse gesto, ato inconsciente, realiza o caminho de volta, fotografando o espectador, que, ao ser atingido por este punctum, mobiliza-se internamente, passando a formar um emaranhado de associações que lhe darão possibilidades de articular dentro de si tantas realidades quantas seu inconsciente permitir. O espectador, portanto, participa dessa trilogia (juntamente com o sujeito que fotografa e o que é fotografado), mas não como um sujeito pronto a fechar um ciclo, muito pelo contrário, abrem-se sempre novas

possibilidades associativas a cada instante em que ele for acionado por esse p u n c t u m inconsciente, já que suas experiências e vivências mudarão de caráter a cada momento. Poderíamos, então, dizer que uma imagem fotográfica é sempre vista com olhos surrealistas, pois o sujeito que fotografa, o sujeito que é fotografado e o espectador estarão sempre de alguma maneira inter-relacionados tanto através da realidade existente (dado fundamental da linguagem fotográfica) quanto por suas instâncias inconscientes (estas dependendo das vivências e experiências individuais de cada um). É interessante ressaltarmos aqui a diferenciação do caráter de supra-realidade existente em fotografia e em outras áreas de criatividade, especialmente em pintura. A configuração da existência de uma supra-realidade, ou seja, da convivência concomitante entre uma realidade consciente e uma realidade inconsciente, em fotografia compreende uma qualidade específica, já que ela é a única linguagem artística em que o dado de realidade, o referente, o traço, aparecem como características inseparáveis do seu sistema, sem os quais ela não existiria, e isto muda tudo. Se tomarmos, por exemplo, Magritte, que foi um dos pintores surrealistas que mais trabalhou com a realidade consciente e inconsciente num mesmo espaço, deveremos sempre estar atentos para o fato de que a realidade ali posta sobre a tela é pura representação, não há qualquer vínculo de traço entre o que ele está realizando com suas tintas e pincéis e a realidade de fato existente (Foucault dizia que “pintar não é afirmar”). Aliás, o próprio Magritte joga muito com esse noema representacional da pintura. Conforme já foi enfocado, a pintura de um cachimbo com o título “Isto não é um cachimbo” nada mais faz do que ratificar que o que está ali pintado na tela não é, de fato, um cachimbo e sim a representação do objeto pintado. Além disso, nos lembra a impossibilidade da total e fiel representação de um objeto tridimensional em um espaço bidimensional (a tela), diferentemente da fotografia, que, embora nos apresente uma imagem, da mesma forma, bidimensional, essa imagem não se constitui como uma representação e sim como a própria realidade impressa no papel. A imagem de um cachimbo impressa em um papel fotográfico sempre terá, indefectivelmente preso a ela, o traço do objeto cachimbo que a originou. Uma imagem fotográfica, portanto, compreende uma maior complexidade quanto aos aspectos formais da supra-realidade, visto que a realidade existente (racional), já de imediato, imprime-se no papel fotográfico, enquanto a realidade inconsciente, embora tenha seu ponto de partida na imagem representada, é encontrada fora dela. De outra forma, poderíamos colocar que a subjetividade de uma imagem fotográfica só pode ser buscada fora (embora a partir) dela, uma vez que o que está no papel é pura realidade. Então, da mesma maneira que o referente, o dado de realidade, é incondicional à fotografia, a sua virtualidade também o é. Já em uma pintura, por ela não ter nenhum comprometimento com a

realidade, esse processo se dá de forma diferente. Por constituir-se de uma representação (mesmo que seja a representação de um sonho, de uma visão, de um estado de espírito), a realidade apresentada em uma tela já carrega dentro de si a sua própria subjetividade. Entendo, portanto, que essa inexorabilidade da realidade que a fotografia traz consigo seja a resposta procurada por tantos fotógrafos atraídos por temas tão diferentes. Não há fotógrafo que, em algum momento, não tenha empunhado a sua câmara na compulsão de flagrar um assunto de total estranheza para ele. Mesmo quando se trata do banal, do corriqueiro, do que há de mais comum, lá está o olhar do fotógrafo focado (ou desfocado) naquilo que os olhos menos atentos não estão a enxergar. Há, de fato, uma tendência, mesmo inconsciente, de se buscar o adverso, o contrário, o não trivial, isto é, aquilo que está implícito na visão imediata. Seja no fotojornalismo, nos ensaios pessoais, nas fotografias de moda ou em quaisquer outras áreas da linguagem fotográfica, o fotógrafo é seduzido pelo grotesco, por tudo aquilo que, de alguma forma, não esteja direta ou explicitamente relacionado à própria realidade do objeto fotografado, à sua função primordial, mesmo que esteticamente. Desse modo o fotógrafo encontra a sua saída, o veio para transpor a realidade indiciária e referencial que faz parte e que está dentro da fotografia. É como se o fotógrafo, aí, tentasse a todo custo desafiar o próprio meio que está expressando, burlando uma realidade que, de fato, existe. Conseqüentemente ele insiste incessante, na busca de apreender o extraordinário, o que foge a todo e qualquer domínio da racionalidade possivelmente apreensível pelo homem. É a busca do desconhecido. Aqui podemos perceber por que foi a fotografia a linguagem artística que, com maior profundidade, levou adiante as propostas do Movimento Surrealista. Um dos princípios básicos do 1º Manifesto Surrealista fundamenta-se na tentativa da criação de uma crise moral na sociedade, passando, obviamente, pelo desvirtuamento, pela adulteração da realidade existente em todas as formas de expressão utilizadas pelo Movimento. A poesia, a pintura, a escultura e o próprio teatro lidam com linguagens subjetivas, enquanto a fotografia é a única delas em que a realidade é parte integrante e inquestionável de sua linguagem, a única em que a subjetividade, a instância inconsciente, encontra-se fora dela. Da mesma forma devemos abrir aqui um espaço para a arte de “assemblage”28(também conhecida quando introduzida no Movimento, como “objeto surrealista”). Na assemblage, o meio de expressão não faz referência à realidade, não a tem como índice ou traço, como na fotografia, mas é a própria 28

Assemblage: Termo cunhado na década de 50 por Jean Dubuffet para denotar obras de artes elaboradas a partir de fragmentos de materiais naturais ou fabricados, como o lixo doméstico. Usado para definir desde fotomontagens até instalações.

realidade que transfigura, assume um novo valor. A assemblage lida com objetos do cotidiano, cujas funções habituais para os quais foram feitos são anuladas, compreendendo, após um processo de seleção e montagem com outros objetos, um novo contexto. A escolha desses objetos, portanto, passa pela instância inconsciente do artista, que, ao lançar mão de todo os seu aparato fantasioso, seleciona-os de acordo com as suas próprias necessidades internas para atingir uma nova realidade. Esses objetos, assim, livres das limitações estabelecidas por suas funcionalidades racionais, possibilitam novas relações entre o ser humano e o meio em que vive. Salvador Dalí foi um dos artistas que mais contribuíram na elaboração de objetos surrealistas, os quais denominava “objetos que, prestando-se a um mínimo de funcionamento mecânico, estão baseados nos fantasmas e representações suscetíveis de serem provocados pela realização de atos inconscientes”. Toda essa manipulação de objetos do cotidiano para a realização de assemblages (aqui entendidas como objetos surrealistas) nos remete de imediato à obra de Duchamp, principalmente aos seus ready-mades . Ocorrem aí, de fato, verdadeiras operações duchampianas, em que o encontro insólito de objetos com realidades tão díspares proporciona um deslocamento na realidade interna de cada espectador, que passa a ter de buscar outros referenciais, novos parâmetros de entendimento, visto que a a s s e m b l a g e exige u m envolvimento participativo do espectador no sentido de transcender as realidades dadas, já existentes em cada um de seus objetos. Todo esse caráter mobilizador da assemblage encontra perfeita ressonância nos princípios surrealistas, por ela gerar efetivamente uma crise moral, isto é, por acionar no espectador todo um mecanismo de desprendimento ao que é pré-conceituado, ao que é dado de maneira pronta e acabada, já que o seu conhecimento e entendimento, a sua conceituação e valor da realidade serão transitórios, alterarão a cada nova obra apresentada. Assim, subverter a realidade de forma a se criar uma outra mais profunda a partir dessa própria realidade, isto é, atingir uma supra-realidade calcada diretamente na realidade existente exige um outro approach , principalmente por se saber que esse estágio de supra-realidade em fotografia depende de uma participação mais direta do espectador, já que a potencialidade de uma imagem fotográfica concentra-se, acentuadamente, na sua virtualidade, que, obviamente, depende da vivência de cada espectador. A transcendência da realidade concreta provida por uma imagem fotográfica, portanto, será tanto maior e tanto mais profunda quanto maior for o seu potencial de afastamento em relação à realidade do espectador. Esse distanciamento entre o que o espectador vê e as suas experiências e vivências de vida no mundo, o hiato criado por essas diferenças de percepção é que o levará à construção de um novo universo, onde o consciente e o inconsciente, ao invés de serem vividos

como instâncias antagônicas, serão parte de um mesmo sistema, voltado para um equilíbrio que não seja mais linear, mecânico, estabelecido por regras racionais, mas sim um equilíbrio em que prevaleça uma organização assimétrica, não repetitiva, um caos aparente, visto que luz/ escuridão, vida/ morte, preto/ branco e finalmente consciente/ inconsciente construirão, simultaneamente, esse sistema, cuja existência será facultada pela presença de ambos, não mais como conflito, oposição, mas como correntes de um mesmo fluxo. Essa realidade à qual nos referimos constitui-se, primordialmente, pela relação espacial que o ser humano guarda com o mundo que o cerca.

V – A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA O espaço não é uma realidade em si, dada, já pronta, na qual o homem tenha de se adaptar, e sim uma experiência de cada um. Ele é função direta de todas as nossas experiências e vivências anteriores, ou seja, o espaço está todo em nós, pois, a cada novo espaço em que nos encontramos, somos remetidos à memória de nossos comportamentos anteriores para, então, criarmos e sentirmos esse espaço, que terá, pois, o caráter experimental. Certamente as vivências espaciais de um cidadão urbano, de um índio do Alto Xingu e de um primitivo em uma ilha do Pacífico são completamente diferentes, visto que suas experiências culturais, sociais e corporais compreendem qualidades divergentes. Desde que nascemos, desenvolvemos as nossas noções de espaço, de acordo com as sensações que passamos a experimentar. Os fantásticos estudos de Piaget demonstraram que a percepção espacial é cumulativa, que a sua compreensão é determinada pelas diversas etapas por que passa o indivíduo. As primeiras sensações espaciais de uma criança pertencem a um universo unidimensional, sem formas fixas, medidas, perspectivas, proporções. Fazem parte de uma representação confusa do mundo, através de sensações fugidias, mas que são ponto de partida e dado fundamental para a nossa compreensão posterior do espaço no mundo. Segundo Piaget, “o primeiro universo do homem é topológico-deformável, baseado em noções de separação e proximidade, de sucessão e de ambiente, de envolvimento e de continuidade, independentemente de qualquer esquema formal e de qualquer escala fixa de medida.” (DUBOIS, Philippe – O Ato Fotográfico)

A criança passa, em seguida, por uma fase projetiva do espaço, em que ela percebe um mundo bem mais definido, com corpos fixos e independentes, providos de formas e classificação, ainda que sem a noção de escala. Aos poucos, no entanto, vai havendo o enriquecimento das sensações com o apoio da memória, abrindo-se o mundo das várias dimensões, das relações de grandeza entre objetos, das relações lógicas e assimétricas, enfim, de todo um sistema codificado de perspectiva, calcado na geometria euclidiana. Piaget, no entanto, nos chama a atenção: “a passagem de um estágio a outro não implica o desaparecimento total dos sistemas de percepção anteriormente adquiridos e dominados. As representações topológicas do espaço, por exemplo, permanecem latentes para sempre em nosso espírito, elas não são expulsas pelas representações projetivas e perspectivas que se lhes superpõem.” (DUBOIS, Philippe – O Ato Fotográfico)

Crescemos, portanto, carregando o pesado fardo da representação espacial da perspectiva euclidiana, que o Ocidente, de forma contundente, privilegiou. Esse sistema, especulação máxima do Renascimento, propunha que o espaço teria a aparência de um cubo, onde todas as linhas de fuga se reuniriam em um ponto único situado dentro do quadro e correspondendo à visão a partir de um ponto de vista único do olho humano. Vários séculos habituaram-nos a aceitar tais convenções como dogmas verdadeiros e perfeitos de representação da realidade, pois são elas a base de todo o sistema educacional do Ocidente, que, ao desenvolver nossas faculdades matemáticas e visuais, nos torna cidadãos moldados e deformados por uma cultura particular. Sem dúvida alguma, esse conjunto de articulações e métodos de representação espacial, perspectivado, compreendeu um valor inestimável durante o período renascentista por permitir imensos avanços nas ciências aplicadas e humanas, nas descobertas e conquistas territoriais, no conhecimento do mundo. De uma forma geral, proporcionou desenvolvimentos incalculáveis de toda sorte, porém é preciso entender que tais sistemas não são, de forma alguma, os valores imutáveis e irrepreensíveis de representação do mundo. Muito pelo contrário, são sistemas arbitrados e inventados em concordância com todo o padrão socioeconômico, cultural e político vivenciado durante a época renascentista. Hoje ele não constitui mais a nossa verdade. As convenções arbitrárias de fonte única de luz e da visão perspectivada monocular já não coincidem mais com os valores do nosso tempo, pois deformações, mobilidade, velocidade, plasticidade, materialidade, experimentação se opõe, de forma radical, à estabilidade, equilíbrio e permanência da sociedade renascentista. Por isso, a questão espacial é, atualmente, tão ampla e abertamente discutida. Hoje lidamos com o espaço de uma forma muito mais experimental, imaginativa e comportamental, do que através de teorias e métodos dados, já prontos. A representação espacial renascentista de que estamos tratando passou a ter os seus primeiros questionamentos no século XIX, exatamente quando a fotografia é inventada. Embora o cubo cenográfico e a perspectiva linear ainda estivessem presentes em praticamente todos os artistas do século XIX, os primeiros realistas seguidos pelos impressionistas e pós-impressionistas já levantavam algumas discussões em torno da representação espacial que havia quatro séculos seguia como dogma inquestionável. Manet foi um dos primeiros a abrir uma discussão sobre a linguagem pictórica em si, trazendo a reboque a questão do plano da tela, ou seja, contestar a representação tridimensional do mundo em uma superfície bidimensional, que é a superfície da tela, em contraposição à geometria euclidiana, que tenta nos passar de forma ilusória a tridimensionalidade do mundo no plano da tela. Monet, através de trabalhos como “Catedrais”, “Pontes de Londres” ou mesmo “As Mulheres no Jardim”, embora faça

referências ao espaço cúbico do Renascimento, ao tradicional enquadramento e segregação dos planos em profundidade, já coloca a questão do espaço fragmentado (através de manchas adjacentes umas às outras) e a questão da maior proximidade entre figura e fundo (em função da maior semelhança entre eles). Renoir, em alguns quadros, já sugere fundos desfocados e achatados, assim como algumas representações em close no caso do “Busto de Mulher” (estudo de nu), no qual o fundo é indeterminado, o espaço feito da mesma matéria que a mulher, evidenciando a aproximação figura/ fundo, e, principalmente, pelo fato de o quadro deixar de ser estruturado em função exclusivamente de um ponto de vista único (típico da representação renascentista) para ser tratado por vários pontos de luz (impingindo, portanto, uma mobilidade do olhar) centrados na boca, ombro e seio. Degas, da mesma forma, não poderia deixar de ser aqui mencionado, por ter abordado questões espaciais cruciais que abriram caminhos para investigações futuras e também por ter tido a fotografia como uma de suas atividades de expressão. A pesquisa de Degas é a pesquisa do movimento do espaço, por isso a linha para ele tinha uma conotação muito mais dinâmica do que formal. Embora Degas tenha composto uma série de temas sugerindo movimento (caso das bailarinas, corridas de cavalos, etc.), o que lhe interessava realmente era passar a idéia do movimento pelo deslocamento do olhar no quadro, para que assim o espaço se alterasse a cada instante. A qualidade do espaço em Degas passava, então, de uma instância rígida, fixa, proveniente das regras do Renascimento (altura, largura e profundidade), para uma maior relatividade. O espaço passava a ser definido pela nossa própria experimentação e percepção do espaço. Em “O Absinto”, Degas sugere um espaço vertiginoso, desequilibrado, em direção ao espectador e, literalmente, nos insere na cena ao cortar todos os lados do quadro. Esses “sangramentos” nas quatro direções (em cima, embaixo, dos lados) retiram o espectador da mera posição contemplativa, distante, tornando-o participativo, dentro do espaço representado, agindo sobre ele e recebendo dele toda a sua influência. Degas, aí, já coloca uma questão fundamental e extremamente atual ao tratar da interação sujeito/ objeto, homem/ mundo, revelando-se uma proximidade inexistente na cultura ocidental desde o Renascimento. Enquanto a sociedade da Idade Média acreditava que tudo estava em Deus e, por isso, nenhuma distância deveria haver entre as coisas, já que elas eram manifestações de uma essência única, o Renascimento cortava esse vínculo, propondo uma separação homem/ Deus e afirmando que o homem passava a ser a medida de todas as coisas. A partir desse conflito, vem toda uma filosofia de separação, afastamento do homem em relação à natureza, o que, certamente, iria desdobrar-se na representação espacial, pois era de maneira distante, separada, que o homem se percebia, se relacionava com o mundo. Por isso, todo o sistema representacional legado pela

sociedade renascentista era calcado nas leis fixas e imutáveis do mundo exterior. No entanto, todo esse conjunto de regras arbitradas pelos teóricos e decodificadas pela sociedade da época, aos poucos foi perdendo sustentação perante novas experiências vivenciadas, e esses princípios estabelecidos foram sofrendo modificações e renúncias em função das transformações filosóficas, espirituais e sociais que o homem passava a sustentar diante do novo mundo. A modificação nas concepções de distância social passava a alterar a relação comportamental de espaço do homem com o mundo, e aí retornamos à modernidade atribuída a Degas, por ter, de fato, sido sensível a tais transformações. Quando Degas propõe um espaço interativo, nos colocando próximos à cena representada, através dos sangramentos, antecipa-nos o ambiente onde viveríamos; um mundo que age sobre nós de todas as formas e de todos os lados; um mundo que não está mais distante de nós, de que deixamos de ser meros contempladores; um mundo que nos exige total percepção e interação, hajam vista as constantes interferências que sofremos em nosso cotidiano. O século XIX, dessa forma, constituía-se num grande laboratório cujas experiências que vinham sendo maturadas havia algum tempo, passavam a ser efetivamente postas em prática, em consonância com todas as emergentes transformações sofridas pela sociedade. Ficava patente, no entanto, que todas essas alterações e deslocamentos tinham, em sua essência, uma maior aproximação e interação do homem com o seu meio. Em contraponto ao distanciamento e à visão global do mundo, imposta desde o Renascimento, estava a visão próxima, fragmentária e direcionada aos detalhes. Essa mudança de atitude refletia-se na maneira de ver as coisas no mundo, e, conseqüentemente, no modo de representá-las. A pintura, principalmente a partir dos impressionistas, e a fotografia tiveram de lidar diretamente com o problema do espaço em função de uma psicologia social que aos poucos foi se instalando, e também pelo fato de o espaço constituir-se numa característica inerente a suas linguagens. Por isso, não é à toa que Renoir, muitas vezes, sugere a figura e o fundo num mesmo plano de interesse; que Degas propõe uma visão próxima, tátil, através de fundos abstratos colocados ao primeiro plano ou através de seus diversos closes ; que Cézanne trabalha as pesquisas da construção da totalidade das coisas apresentando um todo simultâneo de superfície e profundidade. Está colocado, então, o grande embate entre como representar o mundo em função das novas relações espaciais vivenciadas pela sociedade e toda uma carga de quatro séculos de cultura assimilada a partir do Renascimento. Muitos têm sido os artistas plásticos e fotógrafos empenhados nessa empreitada desde o final do século passado até hoje.

VI – A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA A questão espacial, em fotografia, é, de fato, delicada, e por isso mesmo compreende uma de suas vertentes surrealistas mais interessantes. O aparato técnico da fotografia, bem como o sistema cultural do Ocidente, induzemnos sempre a vermos o mundo de uma única maneira, caracterizando-se como engrenagens arbitradas e articuladas em função da nossa própria condição no mundo. Quando os teóricos do Renascimento engendraram seu sistema de representação espacial, assim o fizeram tomando por base o ponto de vista único, monocular, ideal, acima da testa, perpendicular ao plano do quadro. Isso, logicamente, só pôde ser possível levando-se em consideração a ortogonalidade do homem em relação ao mundo. Afinal, como afirma Philippe Dubois, “somos seres eretos, vivemos de pé, postados verticalmente diante da horizontalidade do solo, e essa é a condição fundamental para o nosso relacionamento espacial com o mundo.” Ao olharmos uma imagem, de imediato é formada a relação entre o espaço fotográfico propriamente dito e a nossa presença no espaço. O fato é que o modelo arbitrado par anos fornecer o espaço fotográfico é construído em torno da ortogonalidade, ou seja, de retângulos ou quadrados, dependendo de cada caso, mas sempre a partir do sistema das horizontais x verticais, o que, na realidade, não corresponde ao aspecto natural, pois a imagem provida pelas lentes da objetiva é, a princípio, circular, assim como a imagem formada na nossa retina. Para tanto, todo um aparato é construído de maneira a forçar o espaço fotográfico a se dobrar a essa estruturação ortogonal; é “janela” na câmara com telêmetro, espelho e visor nas câmaras reflex, janelas nos ampliadores, marginadores para os papéis e até nas moldura para exposição: “Nada além de retângulos e quadrados que se duplicam ao infinito.” (DUBOIS, Philippe – O Ato Fotográfico) Assim, todo esse modelo tem como objetivo harmonizar-se à nossa postura, ao nosso posicionamento no mundo, que é também ortogonal. Por isso é que quando uma pessoa quer tirar uma fotografia dita harmoniosa, dentro dos padrões normais, ela faz valer, o quanto possível, toda a correspondência de paralelismos entre espaços, ou seja, todas as verticais, assim como todas as horizontais do espaço a serem inseridas na fotografia devem estar paralelas às verticais e horizontais do visor da câmara, para que, conseqüentemente, a imagem esteja em equilíbrio com a nossa posição no espaço, a mesma forma vertical em relação à horizontalidade do solo. Isso, portanto, faz com que a foto tenha um aspecto natural, ilusório aos olhos do observador, por possibilitar uma identificação com a sua experiência e percepção do espaço. Uma vez cortada essa correspondência entre o espaço fotográfico e o espaço vivenciado pelo sujeito, surge um certo mal-estar e, por conseguinte, uma atitude de não

aceitação da imagem vista, em função de um sentimento de rejeição, de exclusão de sua própria presença no mundo. Diante desse verdadeiro “cut” , o espectador experimenta a ausência de referências de sua própria realidade, a desorientação do espaço que lhe é comum e, conseqüentemente, o afastamento, o distanciamento de sua realidade racional, e a criação, então, de uma outra realidade, em que o inconsciente se faz presente. A tônica do movimento surrealista recai exatamente sobre esse distanciamento. De Chirico foi quem, através de seus trabalhos da fase metafísica, constituiu-se na pedra de toque para tal questionamento. A perspectiva, em seus quadros, não encontra ressonância nem na representação renascentista da geometria euclidiana, com um ponto de vista único, nem tampouco na representação plana do Cubismo de Braque e Picasso, pois, embora utilizando-se de uma multiplicidade de pontos de vista (como o Cubismo), eles eram de uma total incoerência conduzindo a uma impossibilidade espacial, a uma representação da realidade em que bom senso e lógica estão totalmente afastados. Esses trabalhos de De Chirico causamnos mal-estar não apenas em função de suas figuras grotescas, de sua incoerência temporal ou da ilogicidade de seus temas, mas sobretudo pelo distanciamento espacial a que eles nos remetem, pela total falta de correlação entre o espaço vivenciado por nós e o espaço da imagem representada; aí, literalmente, perdemos a noção do espaço. A transgressão do espaço A fotografia, conforme apontamos, não se absteve, da mesma forma, de subverter o espaço plástico arbitrado pelos métodos renascentistas, muito embora – e talvez sobretudo por isso – o seu meio de representação seja todo construído em conformidade com tais teorias. A câmara fotográfica proporciona uma visão que, na realidade, não corresponde à visão normal do homem, visto que ele se utiliza de um ponto de vista único, monocular, em função de uma objetiva única que nos seleciona um recorte (retangular ou quadrado) a partir de um padrão ortogonal, forjado pelo dispositivo que chamamos de “janela”. Esse espaço, que é provido pelo próprio meio de representação fotográfica, passou a ter intensas transgressões no fluxo das experimentações do Movimento Surrealista. O close constituiu-se numa das formas de desarticulação do espaço perspectivo. A visão habitual do homem, que era global e distanciada, de maneira a corresponder ao modelo imposto desde o Renascimento, encontra o seu contraponto no c l o s e . Primeiramente porque o c l o s e ao compreender essencialmente um fragmento de algo, exige uma maior atividade do olhar, induz a uma maior participação do espectador no desvendar dos detalhes. O close , por isso, demanda um maior aprofundamento e portanto uma maior aproximação em relação à obra. No entanto, essa aproximação é

muito mais sensitiva, está muito mais relacionada a um aspecto intuitivo de identificação com as demandas internas do observador, ávido por estabelecer relações que o coloquem em harmonia com o mundo, do que uma aproximação de fato especial. Muito pelo contrário, o close nos traz um brutal afastamento de nossa realidade espacial, aliás, ele só permite a aproximação da instância inconsciente por afastarnos de nossa realidade cotidiana. Uma imagem em close retira a noção de representação tridimensional do objeto na superfície plana do suporte (papel, tela, madeira, pano etc.), pois as linhas de fuga e todo o sistema da geometria linear perspectivada são eliminados. O close aproxima-se mais da representação espacial planar do Cubismo do que da perspectiva renascentista, pois a imagem em close realiza um fechamento do plano no suporte, afastando assim a noção da tridimensionalidade à qual nos acostumamos a ver representada no plano. Alguns fotógrafos ligados ao Movimento Surrealista utilizaram-se do close em diversas ocasiões, na intenção de propiciar uma relação diferenciada do homem com o mundo, exatamente pelo fato de a imagem em close possibilitar um afastamento da realidade espacial habitual. Afinal, quando, frente a uma imagem, não encontramos correspondência com o nosso próprio sistema espacial, quando somos privados do nosso reconhecimento topológico no mundo, instala-se uma verdadeira ausência da realidade racional, com a conseqüente predisposição à aceitação de um novo referente, de uma nova realidade, cujas relações se dão de forma mais intensa, mais profunda. Uma referência significativa com relação a esse tipo de imagem é uma foto de Paul Strand (1890-1976) “Wire Wheel” (N.Y. 1918) (figura 6), na qual ele apresenta um c l o s e lateral de um carro. Ali, nossas referências habituais de espaço perdem força em face do comprometimento de todo o modelo de representação perspectivado; não há mais o distanciamento que nos possibilite fazer desse suporte, que é o papel fotográfico em si, uma “janela”, a típica representação ilusória tridimensional do mundo. A relação com essa imagem é participativa, o constante movimento dos olhos é reflexo da dinâmica, do estado interativo sujeito/ imagem, já que, para compreendermos e, verdadeiramente, sentirmos o que essa imagem pode nos dar, é necessário percorrermos um caminho dentro da foto, como se estivéssemos fechando a grade do plano, que, interessantemente, pode ser, explicitamente, vivenciado através dos raios da roda do carro. Assim, toda a nossa placidez contemplativa habitual, validada pela total correspondência entre a nossa tridimensionalidade no mundo e a tridimensionalidade de uma imagem, é abalada, e em função desse distanciamento do espaço racional criado é que se efetiva a maior inter-relação com a imagem; é a procura de uma nova realidade interna, em detrimento de uma outra realidade já desgastada.

A grande angular Um outro aspecto que nos remete a um distanciamento do nosso espaço cotidiano e que se caracteriza como um dado de surrealidade tipicamente fotográfica é a distorção pela lente grande angular. Por possuir uma grande profundidade de campo, a grande angular aproxima e aumenta o primeiro plano, afastando os planos posteriores para o infinito. Dessa forma, ao mesmo tempo em que ela, por esse motivo, reforça o sistema de representação tridimensional, as linhas verticais são distorcidas em direção ao espectador, para o centro da foto. Uma imagem concebida por uma lente grande angular transgride a visão normal que temos do mundo e, por isso mesmo, nos atenta para o fato de que essa dita “visão normal” nada mais é do que um modelo inventado, arbitrado, e que não corresponde, em hipótese alguma, à única e inquestionável visão do mundo. Há, de fato, uma resistência à aceitação de uma imagem feita por uma lente grande angular porque ela desarticula, na verdade, as leis convencionais de ortometria a que nos habituamos, causando-nos uma certa sensação de malestar ao percebermos algo fora do lugar, pois outras instâncias sensitivas do nosso organismo são acionadas, além da realidade racional. É interessante observar que com a grande angular é como se o próprio meio se auto-adulterasse, já que o seu sistema (o da grande angular) forja todo o padrão de construção do aparato fotográfico, calcado nos modelos rígidos da ótica e da mecânica, dispostos a proporcionar uma visão a mais harmônica possível à nossa visão dita normal. O ângulo superior O espaço é igualmente sentido de forma libertária frente a uma composição realizada a partir de um ponto de vista superior, aéreo ou mesmo antiaéreo (da terra, fotografar algo no espaço). Rodchenko (1891-1956), Moholy-Nagy, Kertész (1894-1985) e vários outros fotógrafos ligados ao Movimento Surrealista construíram boa parte de suas obras experimentando as contracomposições oblíquas, ou seja, tirando fotos de um ângulo superior em diagonal. Não foi gratuitamente que esses artistas ativeram-se de forma tão profunda a esse tipo de pesquisa. A composição oblíqua superior marca acentuadamente a dinâmica, o movimento. A dinâmica tratada aí, no entanto, não intenciona de forma alguma passar a idéia de deslocamentos rápidos, de mostrar que as coisas apresentadas estão de fato se movendo, até porque esse tipo de sensação poderia ser dada utilizando-se o recurso das velocidades ultrabaixas do obturador da câmara, onde as imagens apareceriam em “ f l o u ” , borradas, sem definição clara. A dinâmica, nesse caso, está mais na sensação de quem vê tais imagens. Na foto “Boats In The Old Port Of Marseilles” (1929) (figura 7) de Moholy-Nagy, por exemplo, todos os barcos estão completamente parados, mas devido ao ângulo de onde a foto foi tirada, temos a nítida

sensação de que os barcos estão se movendo e de que vão escorrer pelas bordas do papel fotográfico. Neste caso, Moholy-Nagy acentua ainda mais esse tipo de sensação, quando, ao utilizar-se do sangramento da imagem (vazamento dos objetos representados pelos quatro cantos do papel), nos coloca como se estivéssemos realmente dentro do espaço representado, como se fôssemos parte ativa do acontecimento, recurso este já bastante utilizado por Degas exatamente com o mesmo intuito, conforme vimos anteriormente. À parte essa primeira interação com a imagem sugerida pelo sangramento, há uma natural dinâmica interna do observador, por ele perder os seus pontos fixos de referência habituais de espaço dentro da foto. Afinal, a tomada de ângulo da foto proporciona uma imagem cujo espaço não corresponde efetivamente ao nosso espaço ortogonal em relação à horizontalidade do solo. A instabilidade criada é a mesma que se estivéssemos dentro de um desses ba r cós, flutuando sobre as águas, vivenciando diferentes pontos de referência espacial a cada movimento provocado pelas águas, criando nossa própria noção de espaço a partir de cada deslocamento do barco, em total oposição à noção pré-fixada de espaço por teorias e regras matemáticas que tentam generalizar a sensação de espaço e, conseqüentemente, padronizar o comportamento humano. A mobilidade dessa foto é gerada, portanto, muito mais em função de uma desarticulação espacial do que pela própria representação do objeto fotografado. As suas linhas de composição são linhas oblíquas, transversais, que cortam toda a imagem numa composição de espaço tipicamente barroca, na qual as diagonais cortavam toda a superfície na intenção da instabilidade, do movimento, da exacerbação pela desordem, em oposição à serenidade, intelectualidade e estabilidade renascentistas. A desordem barroca, sugerida pelas diagonais, encontra o Surrealismo, até mesmo confirmando que as desarticulações espaciais, a procura de uma nova vivência espacial, deferente da nossa noção de espaço racional, é inerente a todo ser humano, em qualquer época que ele viva. Seja nas formas dinâmicas e sensuais de um Bernini, nas composições tumultuadas e dramáticas de um Tintoretto ou nas contracomposições oblíquas de Rodchenko ou Moholy-Nagy, o homem está sempre buscando novas realidades, distantes da sua postura fixa, arraigada à terra. A fotografia aérea e antiaérea A fotografia aérea propriamente dita já coloca uma outra questão, extremamente moderna, por vir de encontro às discussões e pesquisas que estavam sendo realizadas nas artes plásticas com relação ao plano da tela. Não vamos, aqui, nos ater às fotografias aéreas feitas por Nadar (1820-1910) no final do século XIX, que compreendiam aspectos mais intuitivos do que experimentais, mas sim àquelas vinculadas às investigações do espaço na composição.

Toda a representação tridimensional, marcada pela orientação do horizonte, onde os planos superpostos e separados dão a noção de profundidade e todas as coisas podem ser perfeitamente localizadas dentro de um espaço compreendendo comprimento, altura e largura, fica comprometida frente a uma fotografia aérea. Nesse tipo de foto (insisto em que estamos tratando das vistas aéreas tiradas de avião) chega-se, efetivamente, ao plano total, assim como Picasso chegava ao plano por meio de suas pesquisas cubistas. Isso altera completamente a nossa percepção de espaço e, conseqüentemente, a nossa relação com o mundo, até porque o espaço plano de uma fotografia aérea demanda uma decodificação, uma interpretação, já que o côncavo e o convexo, as saliências e as reentrâncias não são perceptíveis, tudo pertence ao mesmo plano de maneira alternada, e a representação figurativa da realidade não encontra ressonância em nossa maneira habitual de visualização. Essa abstração, esse distanciamento de nossa realidade racional é ainda realçado pela perda do referencial fixo a que estamos subjugados por não estarmos presos à terra firme. A fotografia aérea, por ter a sua origem em um ponto de vista especial, implica uma total liberdade, autonomia e, principalmente, mobilidade na maneira de observá-la. O seu flutuar no espaço exige, para que dela nos aproximemos, o mesmo tipo de sentimento, pois a possibilidade de interação com a imagem estará condicionada ao nosso desprendimento de toda a ortogonalidade clássica, rígida, a que estamos acostumados, para que possamos, da mesma forma, experimentar uma realidade autônoma, livre, regida única e exclusivamente pelas instâncias inconscientes. O mesmo tipo de analogia pode ser feita ao se fotografar do solo o espaço aéreo, alterando-se apenas o referencial de partida. Stieglitz (1864-1946) foi quem, com maior profundidade, se dedicou a esse estudo, ao ficar anos a fio fotografando nuvens, cujas fotografias denominou “Equivalências”. Muitos foram os autores que se debruçaram exaustivamente sobre as “Equivalências” de Stieglitz, razão pela qual me permito ser breve quanto ao comentário relativo à obra do referido fotógrafo. Para mim, o que há de fundamental no que diz respeito, especificamente, ao assunto aqui tratado, por compreender o dado efetivamente surreal nas “Equivalências”, é o fato de Stieglitz estabelecer, através dessas imagens, um corte radical na concepção das relações correspondentes entre o espaço representado pela imagem fotográfica e o nosso espaço topológico no mundo. As fotografias de nuvens, por não possuírem qualquer orientação ortogonal, por apresentarem total e completa autonomia espacial, não nos deixam o mínimo vestígio referencial que leve a uma relação com o nosso espaço habitual. Essas imagens comprovam, efetivamente, que toda e qualquer tentativa no sentido de atrelar, obrigatoriamente, a harmonia entre o espaço proporcionado pela linguagem fotográfica e a nossa maneira de ver o mundo é

pura retórica, pois, afinal de contas, as “Equivalências” não deixam de ser fotografias, sem, com isso, apresentarem qualquer sinal ou traço de nossa espacialidade racional. Sem dúvida alguma, essas imagens de nuvens proporcionaram autonomia à linguagem fotográfica, não por elas abandonarem o sistema figurativo de representação, tampouco por elas deixarem de lado o modelo mimético de reprodução da tridimensionalidade do mundo, mas principalmente, e sobretudo, pela carga de sensações a que somos remetidos quando com elas interagimos; aí tudo é liberdade, independência, ausência de domínio sobre o espaço vivenciado, sensações essas configuradas pela relação de equilíbrio entre o inconsciente e uma nova realidade diferente da que nos é dada a priori, o que nada mais é do que a própria surrealidade.

VII – O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL O que torna a linguagem fotográfica um meio de expressão essencialmente surrealista é a sua capacidade de proporcionar imensos afastamentos da realidade do observador, nos mais diferentes níveis. Seja no aspecto cultural, temporal, estético, espacial, social, psicológico, seja em qualquer outra instância em que se configure um distanciamento da realidade vivida por uma pessoa, instala-se a surrealidade. O excêntrico, o exótico, o grotesco, conforme vimos anteriormente, se por um lado provoca repulsa, angústia, aversão, por outro atrai, fascina, estimula, exatamente pelo fato de sermos colocados frente ao desconhecido, a tudo aquilo que não sabemos bem do que se trata, por nos faltar dados suficientes de classificação. Podemos, então, formular a equação: afastamento externo é inversamente proporcional a aproximação interna, isto é, quanto mais distante da nossa realidade racional (externa) estiver uma imagem, para mais próximos da nossa realidade interna, sensitiva, inconsciente, seremos remetidos e, conseqüentemente, maiores serão as possibilidades de harmonia com o universo que nos cerca. O aspecto psicológico Neste momento, não poderíamos deixar de citar, novamente, a obra de Diane Arbus, por ser praticamente toda ela calcada em um afastamento que não se sabe, por certo, de onde vem. Há sempre algo de velado em seus personagens, é como se Arbus apontasse para alguma coisa que não se encontra, efetivamente, no que se vê, ou seja, ela acaba trabalhando mais profundamente com a virtualidade da imagem e, por conseguinte, com o inconsciente do observador. Desse modo, Arbus nos aterroriza, principalmente porque, com essa atitude, nos coloca uma imensa responsabilidade diante de cada imagem sua, uma vez que pede para vermos algo que, de fato, não se encontra explícito. Então, somos obrigados a formular toda uma compreensão subjetiva da imagem, somos levados a refazer todo o percurso elaborado pelo autor e, diante de tal participação, nos comprometemos com a imagem, tornamo-nos cúmplices do ato realizado e, portanto, coautores da obra. Convenhamos que o sentimento de co-autoria em uma imagem de Arbus traz, no mínimo, fortes arrepios. Mas por que isso? O fato é que as suas fotografias sugerem, de uma maneira ou de outra, imagens carregadas de angústia, mesmo que o assunto não implique necessariamente tal sentimento. A vivência que temos quando Diane Arbus nos apresenta uma fotografia de uma criança chorando, de uma família reunida em pleno lazer de domingo ou de uma mulher comum porto-riquenha é a mesma que experimentamos quando estamos frente a suas fotografias realmente grotescas, como as dos decadentes travestis, das figuras circenses, da Albina engolidora de espadas, do hermafrodita ou de quaisquer outras figuras excêntricas. O

que permeia todas elas é o distanciamento que sentimos, e isso se dá porque nas suas imagens há sempre a lembrança da anomalia, da doença mental, qualquer que seja o tema, o que nos remete, conseqüentemente, ao afastamento, ao distanciamento psicológico, por isso é tão aterrorizador. Vivemos, de imediato, uma dissociação entre o nosso mundo racional, ordenado, filtrado por regras, e por isso dentro de todo um limite bastante previsível, e o mundo desses loucos, doentes mentais, atravessado pela fantasia e inconseqüência. O que se passa é que esses personagens, em função de suas anomalias mentais, ou mesmo devido às suas próprias características de exotismo e excentricidade, não estão a sofrer, a dor não lhes pertence, mas está dentro de nós, observadores “normais”. Somos nós que, talvez por um processo de transferência, por sentirmos, de uma certa forma, responsabilidade por tais danos, colocamos a dor, a infelicidade nessas pessoas. E a partir do momento em que as fazemos infelizes (já que elas não possuem, de fato, a consciência do estado em que se encontram), somos tomados pelo sentimento gerador da culpa, da angústia, do medo e, conseqüentemente, do afastamento. As fotografias de Arbus, assim, não permitem que o espectador se afaste do tema fotografado, justamente por estarem alicerçadas nos distanciamentos psicológicos entre o universo vivido pelo sujeito fotografado e aquele vivido pelo observador, pois é em função desse distanciamento que o observador é colocado frente a sua própria realidade interna, que se torna isenta de todos os controles racionais, e, por isso mesmo, carregada de tamanha mobilização; é o encontro com o desconhecido, com o inconsciente. Ao longo de tudo o que temos visto até aqui, podemos observar que a surrealidade em fotografia, o alcance de uma realidade mais intensa, próxima das nossas sensações mais profundas e, por isso, mais verdadeiras, não está única e exclusivamente relacionada ao Movimento Surrealista em si, mas sim constitui-se como característica inerente à própria fotografia. A linguagem fotográfica por si só já guarda a qualidade surrealista de reter atemporalmente todo seu afastamento da realidade racional, independente de qualquer engajamento ou intenção. O aspecto cultural Diante de tal articulação, encontramos August Sander (1876-1964), que, embora tenha-se constituído como um fotógrafo extremamente eclético (sua obra apresenta uma variedade imensa de diferentes temas), marcou a sua presença de forma definitiva na história ao realizar o seu projeto que foi um verdadeiro inventário do povo alemão. Sander efetivou uma varredura em praticamente todo tipo de profissão e classe social de forma imparcial, através de um olhar neutro (em oposição a Diane Arbus). O que importava era a tipologia, o que cada uma dessas pessoas representava na sociedade. Todos, independentes da sua posição social, recebem o mesmo tipo de

tratamento por parte do autor, que afirmou: “Não é minha intenção nem criticar, nem descrever estas pessoas.” Por trás deste discurso frio, distante e racional, no entanto, um universo permeado por incógnitas, estranhezas, exotismos e tudo o que há de mais intrigante se descortina à nossa frente. Sander lançou mão do mais puro padrão convencional, tanto formal quanto temático, para justamente desarticular o que estava por trás disso tudo. Não era sua proposta discutir o espaço plástico em si, assim como não era a dos artistas surrealistas. Utilizou-se ortodoxamente de toda a estrutura ortogonal construída em torno do aparato fotográfico – afastamento dos planos, típico da relação figura/ fundo em que o centro de atenção da cena destacava-se claramente dos planos secundários; ratificação da representação mimética tridimensional do mundo na bidimensionalidade do papel (característica do ponto de vista único e fixo); composição equilibrada, tudo isso disposto em torno do assunto, da mesma forma, de extremo convencionalismo da linguagem fotográfica – o retrato. Os retratos de Sander, no entanto, não permaneceram para a história, não atravessaram gerações devido a suas belas composições. Há algo de inquieto flutuando sobre seus personagens, algo de indefinido, de que só nos damos conta após uma imersão na imagem. (Os retratos de Sander, de uma certa forma, desmobilizam a retórica criada em torno da instantaneidade da fotografia, em que o instantâneo é substituído pelo simultâneo, pois assim como um quadro de Miró, que, a princípio, se dá de forma totalizante, eles exigem um certo tempo, demandam que percorramos os seus meandros, que viajemos sobre a sua surrealidade para irmos além da visualidade explícita.) Sander, em sua fase dos retratos, realiza um verdadeiro contraponto com o método paranóico-crítico de Salvador Dalí, já que, enquanto este descobre novos significados no irracional, fazendo com que o mundo do delírio passe ao plano real, aquele parte de uma realidade o mais convencional possível ao alcance do delírio imagético. Dentre as suas composições durante esse período, “The Wife of the Painter Peter Abeleen” (1926) (figura 8) não poderia deixar de ser mencionada. Aí percebemos a transcendência de que estamos falando. Ao olharmos essa foto sem lermos seu título, não encontraremos indícios suficientes que nos garantam tratar-se de um homem ou de uma mulher, nem tampouco caracteriza-se um homossexual; tudo é incógnito, é velação, não apenas observado nos trajes ou no penteado do personagem, mas, sobretudo, na sua postura, em que a maneira típica masculina do cigarro pendurado na boca é contraposta ao seu olhar, que, direto e fixo sobre nós, parece questionar o modelo de classificação, identificação e definição adotado em relação aos seres humanos. Em contrapartida, isentos de qualquer referencial que nos situe dentro desses padrões já predeterminados, somos exigidos a buscar, dentro de nossas próprias experiências e vivências, dados de reconhecimento, que só terão sentido em sua instância à parte da realidade

racional, em que conceitos, dogmas, ou qualquer tipo de doutrina moralizante ou de conduta não estão presentes, pois elementos relacionados a instâncias inconscientes, fora de nosso controle, pertencentes a uma supra-realidade estão sendo acionados. Essa mobilização interna, que nos afasta do estado letárgico em que freqüentemente nos encontramos e que se constitui como o ponto de partida, vem a ser a questão fundamental do Surrealismo, que, neste caso, apresenta-se a reboque de um distanciamento caracteristicamente cultural, mais do que propriamente psicológico, caso típico da obra de Arbus. Sander, de fato, navegou por mares cáusticos, principalmente elevando em consideração que a sua fase dos retratos se deu no período entre guerras, que foi marcado pela exacerbação de um modelo de eficiência e moralidade imposto pelo fascismo e pelo nazismo. Desse modo, Sander se viu obrigado a abandonar o seu projeto e passar a fazer fotografia de paisagens. Toda essa qualidade meio dissimulada da obra de Sander, na qual o que parece explícito e racional encontra-se apenas a serviço de toda uma elaboração subjetiva, profunda e inconsciente, encontra respaldo na sua própria filosofia de trabalho, quando afirma que uma de suas maiores influências coube a Kandinsky, nada menos do que o precursor da pintura abstrata. O aspecto social O distanciamento cultural que aqui tentamos mostrar por meio de especulações sobre a obra de Sander nada mais é do que uma derivação do aspecto social, eminentemente característico da fotografia. Desde a sua criação, a fotografia circulou pelos meandros da sociedade, em especial através do retrato, a ponte de ele tornar-se sinônimo de fotografia, e a câmara, “máquina de tirar retrato”. Esse veículo (o retrato) foi e é de extraordinária riqueza no sentido de possibilitar a ampliação do (re)conhecimento das diversas classes sociais, , suas inter-relações, conflitos e, sobretudo, seus comportamentos. Se hoje temos, no Brasil, uma iconografia profunda de nossa sociedade, devemos a todos esses fotógrafos (além das entidades públicas e colecionadores que possibilitam a continuidade de suas obras) que se dedicaram ao retrato desde os primórdios até a atualidade, refletindo toada a evolução do pensamento social, passando pela nobreza do Império, pelos senhores de engenho, políticos, intelectuais, comerciantes, escravos, camponeses etc. O retrato nos dá evidências não apenas dos tipos físicos que compõem a sociedade, mas também de sua ambientação, modo de trajar, de calçar, de pentear. Independentemente da época em que é realizado, seja em sua fase daguerreotípica, seja atualmente, o retrato nos dá pistas, nos aponta de uma maneira sutil para o confronto com a nossa própria realidade. Para a classe média, por exemplo (a grande consumidora da fotografia), a nobreza possui um

caráter tão intrigante quanto a pobreza, pois o que entra em jogo, nesse caso, é o distanciamento imposto pelas classes sociais, o que na realidade constitui-se como fato (meramente) relativo, já que o que para determinado grupo de pessoas pode parecer estranho, não necessariamente o é para um outro. O retrato tem sido sempre o grande catalisador dessas discussões. Se tomarmos como exemplo os primeiros retratos em daguerreótipos no Brasil (placas de cobre banhadas com prata e polidas em seguida), ali está estampada, representativamente, a burguesia emergente de meados do século passado, que, na realidade, se aproveitou de tal processo para perpetuar-se na história, da mesma forma que os nobres o conseguiram, só que através dos célebres pintores. Uma vez que almejavam alcançar o mesmo status da nobreza, os burgueses chegavam a limites excessivos de sofisticação e opulência na realização dos daguerreótipos, não apenas nos trajes e ambientação como também nas suas próprias confecções e acabamentos. Era comum os daguerreótipos virem dentro de estojos luxuosos, feitos em madeira, revestido de couro, com forros de veludo, molduras douradas, placas com aplicações douradas, tudo isso envolvendo retratos de personagens dentro de suas mais rebuscadas roupagens e ambientação. Abstraindo-se da distância temporal (a qual trataremos adiante), um cidadão comum, sem acesso a tais meios, frente a imagens de tamanha sofisticação, sentiria-se tão deslocado quanto se estivesse diante da mais parca pobreza ou mesmo diante dos escravos fotografados por Marc Ferrez (1843-1923) ou dos camponeses de Walker Evans (1903-1975), pois o que importa, aí, é a distância social entre o sujeito que observa e o sujeito fotografado, e essa distância é que confere todo o caráter de surrealidade da imagem. Certamente para a classe média do nosso século assistir ao casamento da princesa Diana com o príncipe Charles, em toda a sua opulência, foi tão surreal quanto observar a pobreza existente nas ruas das grandes cidades. O que marca, o que caracteriza todo esse tipo de situação é a distância, sempre a distância... Uma imagem que me parece colocar de uma só vez essa questão é a fotografia “A Rainha Vitória”, de 1863 (figura 9), tirada por G.W.Wilson (1823-1893). Lá está a rainha Vitória sobre o seu cavalo, como que guardada dentro do seu manto, invocando extrema austeridade (aqui não há qualquer sugestão de opulência ou sofisticação). Há, no chão, ao lado do cavalo, um cavalariço ou criado, que imagina-se escocês por estar vestindo um kilt . Frente a frente, em um mesmo espaço (fotográfico), encontram-se o dominador e o dominado, o que seria para a sociedade britânica o representante máximo de tudo o que determina e impõe ao lado do que acata e serve. A distância existente na composição da fotografia entre o criado e sua majestade demonstra radicalmente a que classe cada um pertence: o criado no chão, próximo ao animal, distante da nobreza (a rainha). Tanto para um quanto para outro, por mais conveniente que seja a circunstancialidade da situação em que se encontram (querendo ou não, há dependência

mútua entre ambos), há uma imensa carga de surrealidade, marcada pela diferença social. Ambos, embora pertencentes a um espaço comum, não fazem a menor menção de interlocução, de comunicação entre si, caracterizando o absurdo das relações humanas, o surrealismo que permeia a convivência entre os indivíduos, sobretudo quando salientado por fatores externos, que, no caso, é a distância social. Por este aspecto, a fotografia da rainha Vitória, de G.W.Wilson, encontra boa parte da obra de Seurat, calcada justamente no disparate da convivência humana, que, na realidade, serviu como um dos pontos de partida para o Movimento Surrealista. O aspecto temporal Lidar com distanciamento, afastamento, diferenças, em fotografia é, antes de qualquer coisa, lidar com o mistério da temporalidade implicada em sua linguagem. Nenhuma análise relacionada à fotografia alcança tamanha complexidade se não for comparada a sua questão temporal. Se o estudo do tempo tem sido palco de profundas e infinitas discussões por toda intelectualidade (filósofos, artistas plásticos, matemáticos, físicos, astrônomos etc.) desde os primórdios das civilizações, a fotografia veio fertilizar ainda mais esse solo já tão profícuo a tais questionamentos. Por séculos a fio, tempo e espaço conviveram como entidades antagônicas, contraditórias e independentes uma da outra. Na realidade, somente no século XX com os relativistas, principalmente através da Teoria da Relatividade de Einstein, é que espaço e tempo passaram a fazer parte de um mesmo universo, passaram a ser enxergados como um conjunto unívoco. Antes, porém, de focarmos objetivamente o surrealismo temporal que permeia a fotografia, seria interessante a deambulação por algumas fases de determinadas sociedades cujo binômio espaço-tempo tenha sido, em algum nível, discutido de forma mais direta. A minha intenção, neste momento, é revisitar a maneira pela qual algumas sociedades vivenciaram a questão temporal sob a ótica das artes plásticas, acreditando na possibilidade de uma maior estrutura para o entendimento e aprofundamento dessa discussão no âmbito da fotografia. Qualquer experiência estética está atrelada, de um amaneira ou de outra, ao tempo. Por mais que se queira atribuir uma instantaneidade, um imediatismo de visão em relação a uma imagem, a sua apreensão só se dará numa dimensão temporal, pois é impossível absorver algo de representação plástica como uma olhada instantânea (supondose esta possibilidade real). Quando se diz, por exemplo, que um quadro de Miró se dá de forma imediata, como um todo, sem dúvida alguma se está lançando mão de uma retórica para o melhor entendimento do trabalho, pois no exato momento em que o visualizamos, uma série de associações ligadas a nossa experiência começa a se delinear, instalando-se aí, obviamente, o fenômeno temporal.

Cézanne, da mesma forma, estabelece em seus quadros uma relação temporal extremamente interessante: quando tudo parece dado num único instante, captado como um todo imediato em uma primeira olhada, como o decorrer do tempo, após várias outras visadas, passamos a perceber em seus trabalhos que tudo está em ebulição, que todos os objetos relacionam-se uns com os outros, ocasionando tensão e dinâmica, a ponte de termos a sensação de que tudo pode despencar se tirarmos algo de seu lugar. Não é necessário, portanto, que se estabeleça uma seqüência de imagens para que haja a configuração do tempo; não há imagem fixa – por mais que a sua figuração o seja, a sua percepção é dinâmica. Quando nos postamos diante de uma imagem, os nossos olhos varrem o espaço de representação e, mesmo quando somos atraídos a uma parte específica do todo e ali permanecemos fixos, a dinâmica não cessa. O nosso espírito e o nosso cérebro não param de estabelecer associações e diferenciações com todo um arsenal de conhecimentos acumulados, pois cada elemento da representação, por mais isolado que possa parecer, adquire sentido em quem o vê quando, internamente, articula-se a integração entre as partes e quando o relacionamos às nossas próprias vivências adquiridas. Por isso a visão é sempre ativa, o espírito nunca permanecendo em total passividade (a não ser na escuridão total da imobilidade da morte), pois a percepção só existe atrelada à dinâmica, à mobilidade, compreendida numa dimensão temporal, já que o encadeamento de fatos, idéias e elementos sucessivos só se dá no tempo. Na realidade, a apreensão temporal de uma obra é questão de referencial, é função dos parâmetros internos de cada pessoa. E é por isso que temos tanta dificuldade em reconhecer algo que não apresente qualquer ligação com a nossa própria cultura. Por isso nos sentimos muitas vezes incapazes de analisar obras de outras civilizações, das quais não temos conhecimento prévio. A temporalidade da visão só faz sentido quando a integramos em um sistema coerente com o nosso saber, com o nosso conhecimento prévio. Daí nasce a impossibilidade de pessoas de civilizações e épocas diferentes terem o mesmo comportamento analítico diante de uma obra de arte. Quando a visão está incorporada em um determinado tempo, a memória coletiva passa a fazer parte de cada imagem, razão pela qual, por mais estranhas que possam parecer as obras de arte atuais, elas estão em sintonia com o momento psicológico da sociedade atual. O fato é que qualquer imagem incorpora elementos retirados do real com elementos retirados da experiência pessoal de cada indivíduo, ratificando, assim, a proposição da impossibilidade de se reter o conteúdo de uma imagem no real imediato. Assim, enquanto o espaço é função da estrutura física de cada objeto, o tempo depende do encadeamento de idéias dos elementos compreendidos na memória, sendo, em última instância, função direta da cultura de cada um. A elaboração será tanto maior quanto maiores forem os recursos cognoscíveis do espectador, mas sempre, por menores que sejam

as condições de articulação, ou mesmo por menos complexa que seja uma imagem, o tempo estará presente. O nosso cérebro permanece em constante atividade, assim como o universo em constante movimento. O fator cultural de cada época, portanto, determina, de uma certa forma, o grau de complexidade nas articulações, ou seja, a maior ou menor possibilidade de associações e aprofundamento na leitura de uma imagem. A Idade Média, por exemplo, vivia uma situação em que a sociedade estava completamente subjugada ao poder divino, e por isso suas aspirações iam aonde os dogmas da igreja permitiam. Qualquer reflexão fora do âmbito eclesiástica era sumariamente inaceitável. Diante dessa conjuntura, os temas para as representações eram todos retirados da religião. O pouco acesso que as pessoas tinham a algum tipo de imagem dava-se através da observação dos retábulos e dos vitrais das igrejas, os quais compreendiam cenas de ensinamentos sagrados, constituindo um universo de reflexão e questionamento extremamente restrito. Por mais que o grau de complexidade nas elaborações e análises das imagens fosse incomparavelmente menor do que o que temos hoje, ou seja, por mais familiar e mais diretas que fossem as referências, a temporalidade, no entanto, sempre aparecia impregnando, fazendo parte da captação de cada imagem. O confronto espaço x tempo O inter-relacionamento, a interdependência entre tempo e espaço é inerente a qualquer imagem, assim como a combinação entre o tempo individual do autor, o tempo relativo às articulações dos elementos culturais e da experiência (vivência) do espectador e o tempo referente à memória coletiva do meio quando da observação da imagem, não havendo, assim, a possibilidade da apreensão instantânea, imediata, de uma obra de arte. Embora o espaço compreenda convergência, unificação, concentração (já que implica localização) e o tempo pertença ao universo da divergência, da dispersão, da distribuição (por implicar desenvolvimento entre passado, presente e futuro, por compreender memória), o binômio espaço-tempo não pode ser visto como uma dicotomia, e sim como uma unidade constituída de entidades recíprocas, uma atuando com a outra, pensamento este em total oposição aos princípios newtonianos sobre espaço e tempo que vigoraram por séculos e que encontram respaldo nas criações artísticas. Segundo Newton, “o espaço é essencialmente um recipiente absoluto, independente, infinito, tridimensional, eternamente fixo e uniforme, dentro do qual Deus depositou o universo material no momento da criação. O tempo é estrutura absoluta, independente, infinita, unidimensional, fixa e uniforme.”

si

Para Newton, portanto, espaço e tempo são quantidades em mesmas, possuindo existências independentes, não

relacionais e que compreendidas de propriedades invariáveis e absolutas. Estes “principia” de Newton só passaram a cair por terra quando os relativistas começaram a criar modelos e teorias apontando para um continuum de pontos de espaçotempo. Para os relativistas, “não se pode mais identificar uma porção única de tempo que represente todo o universo num instante e à qual todos os eventos próximos e distantes possam ser referidos (...) a única idéia de movimento com sentido é a de movimento relativo a outros objetos materiais (...) o espaço-tempo abandona a noção de se estar no mesmo lugar em momentos diferentes, deixando a noção de estrutura geral rígida no sentido newtoniano.”

A Teoria da Relatividade de Einstein, ao questionar o tempo e o espaço, passou a alterar as relações do universo, desdobrando-se nas artes plásticas. O percurso espaço-tempo nas artes Um longo caminho teve de ser percorrido pelos teóricos e artistas plásticos até que se chegasse aos níveis de questionamento sobre tempo e espaço que vemos atualmente. A arte bizantina29 assentava-se de forma extremamente rígida sobre o dogma cristão. O segmento mais poderoso da sociedade bizantina (em oposição aos iconoclastas) tentava sustentar-se no poder através do mais extremado rigor cristão. Para eles, as imagens eram verdadeiros ícones, razão pela qual os artistas eram obrigados a fecharem-se em torno dos temas sagrados. Não havia possibilidade de se aceitar uma representação que guardasse qualquer semelhança com a ordem natural, visto que o universo, para eles, nada mais era do que a continuação, o desdobramento do pensamento de Deus. Não poderia haver um espaço figurado, criado, se o universo como um todo era uno, proveniente das leis divinas, nada existindo além da essência de Deus. No transcorrer da sociedade bizantina, já em finais da Idade Média, o tempo e o espaço passaram a ter uma nova configuração, principalmente através das experiências de Giotto.30 O dito sistema figurativo moderno passou a existir, efetivamente, no decorrer dessa época, em que os artistas 29

Arte bizantina : oriunda da antiguidade helenística e romana, foi essencialmente religiosa, utilizando-se muito dos afrescos e dos mosaicos (igrejas de Ravena). 30 Giotto di Bondonne : pintor e arquiteto italiano (12661337). Famoso pelos murais e afrescos, sua arte modificou radicalmente toda a concepção da pintura ao passar a representar as cenas sagradas como se elas estivessem acontecendo diante dos nossos olhos, superando, assim, a rigidez do espaço unitário da arte bizantina. Foi Giotto quem redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa superfície plana, relacionando o universo divino ao terreno.

passaram a representar signos, nos quais tempo e espaço colocavam-se como valores ligados à vida terrena, comum da sociedade, desligados de sua afeição direta à tradição evangélica, em que os temas, ainda que vinculados à religiosidade, aos santos, passavam a ser trazidos para um nível da vida cotidiana, havendo, portanto, a dessacralização da imagem, ou seja, a “modernização do sagrado”. O objetivo da arte agora deixava de ser única e exclusivamente o de servir aos ensinamentos da igreja, de cultuar só o que vem das leis divinas, passando a uma preocupação voltada para os valores do homem na terra. Por constituir-se como passagem, como intensa transição, é comum encontrar-se, em uma mesma representação dessa época, referências a tempos e espaços diferentes. O tempo lendário e o tempo contemporâneo, muitas vezes, misturaram-se em uma mesma composição, havendo já aí a introdução de um tempo relativo à memória, onde o que se vê é diferente do que se sabe. Uma vez que a representação incorpora elementos da experiência individual, do acontecimento cotidiano do mundo, remeterá o espectador a efabulações e articulações ligadas ao seu arsenal de conhecimento, à sua bagagem cultural, refletindo, assim, em uma alteração na análise e na absorção da obra de arte, pois que o tempo, agora, deixa de estar atrelado exclusivamente a uma referência única, a da eternidade celeste, para incorporar a experiência individual do espectador. Levando-se em conta essas articulações que acabamos de ver, podemos observar que as representações na Idade Média, em suas últimas fases, compreendem uma temporalidade mais próxima da concepção relativista de Einstein do que da absolutista de Newton, uma vez que o entendimento da obra de arte passava a ser também função da vivência pessoal de cada um, isto é, relativa a cada espectador. Assim, as especulações góticas (plasticamente mais bem representadas por Giotto) dentro do desenvolvimento de toda uma mentalidade e cultura sociais da época, servirem de estofo e de ponte para toda a experimentação renascentista. Seria leviano pensar que Brunelleschi, dentro do seu gênio, tenha descoberto uma fórmula matemática mágica capas de alterar de uma hora para outra todo um sistema figurativo para criar o que se chamou de Renascimento. Não há como duvidar: no mundo, qualquer transformação, qualquer desenvolvimento exige uma temporalidade em seu encalço. A concepção renascentista, portanto, voltava-se, total e completamente, para a racionalidade do mundo, em que o homem passava a se colocar como o centro, “a medida de todas as coisas”, Brunelleschi, Uccello, Donatello e vários outros renascentistas aproveitaram-se das teorias da matemática e da geometria desenvolvidas, principalmente, por Alberti e Euclides, para formular um novo espaço figurativo, criando assim um modelo estético que acabaria por revolucionar o mundo da representação e, por que não dizer, alteraria por completo as relações do homem com seu meio ambiente. O sistema por eles idealizado, em oposição ao sistema de blocos

da Idade Média, baseava-se na perspectiva linear euclidiana, na qual as imagens deveriam estar representadas como s e estivessem dentro de um cubo aberto de um lado ( a chamada “janela de Alberti”) e vistas a partir de uma visão monocular, fixa, em que as leis da física e da ótica prevaleceriam, de forma que qualquer objeto do universo pudesse ser medido e localizado no espaço segundo uma mesma escala, permitindo-lhes reduzir o universo da maneira desejada. De posse de tão poderoso instrumento para a representação exata do mundo exterior, em função de tamanho investimento na representação espacial do mundo, o binômio espaço-tempo deixa de existir como funções recíprocas, surgindo, assim, a concepção do espaço unitário, homogêneo e atemporal. O Renascimento, assim, ao contrário do que vimos em relação à Idade Média, por alijar a temporalidade do seu sistema figurativo, dando total ênfase à representação espacial, aproximou-se mais claramente daquilo que viria a ser a teoria absolutista de Newton do que da relatividade einsteiniana. O Renascimento criou a noção do espaço absoluto, completamente mensurável, perspectivado, em completa oposição à futura noção de relatividade do mundo, em que tempo e espaço passariam a constituir um todo, relacionar-se-iam entre si, enfim, o tempo constituindo-se como a 4ª dimensão do espaço. Tratar do tempo, em fotografia, é lidar diretamente com o momento único em que o obturador [e acionado. Ao olharmos de forma separada e específica o ato fotográfico em si, essa fração de segundo que o acompanha, podemos dizer que, de fato, há um corte na continuidade do tempo e que, por se tratar de um tempo pontual, há separação, há abstração de algo do mundo, em que, a princípio, pela imobilização de um momento, toda a temporalidade encerrada parece estagnar-se imediatamente, de uma vez por todas, como que jogada às trevas e esquecida. A sensação que se tem diante do exato momento em que é consumado o ato fotográfico não é, como veremos adiante, a de ausência por se ter retirado algo de algum lugar. A idéia de que o tempo da imagem fotografada se interrompe quando ela é captada e fixada na superfície do papel não se sustenta, pois a fotografia na pára aí. Muito pelo contrário, aí tudo começa, todas as especulações e vivências em torno de uma imagem fotográfica são feitas a partir desse momento. A fragmentação temporal que a fotografia instala, a instantaneidade e pontualidade do tempo que seu processo compreende é, sem dúvida alguma, o traço característico que a faz distinta de qualquer outra linguagem artística. Esse “momento” único, entretanto, não seria mágico se aí permanecesse, se aí se esgotasse. A temporalidade instantânea, imediata, de que estamos aqui tratando, foi sem dúvida um dos grandes catalisadores do pensamento surrealista. Duchamp utilizou-se desse conceito para conceber as suas obras revolucionárias no mundo das artes plásticas, o qual se viu questionado em seu mais profundo pilar, que era o fazer artístico, pois jamais se

conceberia a realização de uma obra de arte sem que houvesse a intervenção direta, a participação efetiva do autor (que compreende o tempo do fazer do artista). Duchamp, porém, como num ato fotográfico, criou seus ready-mades, integrando-se na concepção da temporalidade imediata. Selecionar um mictório e elevá-lo imediatamente ao nível de um objeto de arte, denominando-o “A Fonte” é afastar, por completo, a idéia do fazer artístico, de toda a concepção processual que sempre caracterizou uma obra de arte. O tempo de Duchamp, em seus ready-mades , é muito mais fotográfico (Pompéia) do que pictórico (Roma), pois através de um simples gesto seu, de sua própria vontade e desejo, um objeto industrializado, já pronto, passa imediatamente de um nível utilitário, prático, ao status de objeto de arte. De modo a ratificar a filosofia da temporalidade fotográfica de Marcel Duchamp, lembremos que uma de suas obras mais fantásticas “O Grande Vidro”, permaneceu em processo de concepção por quase 10 anos e só foi dada como finalmente terminada quando, durante o seu transporte, o vidro rachou. Para Duchamp, o exato momento em que o vidro se quebrou revestiu a obra de um mistério que ela não possuía, concedeu à obra desdobramentos ainda não alcançados. Precisou o tempo imediato (fotográfico), pontual, instantâneo, agir sobre a obra para eternizá-la no próprio tempo. Assim, “O Grande Vidro” de Duchamp torna-se a grande metáfora fotográfica, pois o momento da quebra do vidro (o momento do ato fotográfico, do acionamento do obturador) não faz com que ela se esgote nesse instante, não destrói a obra, mas a transporta para uma outra temporalidade, em que infindáveis especulações se seguirão, e o tempo imediato, desamarrado, passa a se articular com o tempo memorial. Daí surge o grande mistério, a grande complexidade que envolve a fotografia – o fato de ela compreender de uma só vez presente, passado e futuro. Através de um corte no presente, a fotografia perpetua para o futuro o que já se tornou passado. Toda a perplexidade da fotografia converge como que por inteiro para esse momento único em que se aperta o obturador da câmara. Esse instante, particularmente, faz da fotografia uma linguagem absolutamente diferenciada de todas as outras, que compreendem um fazer contínuo. A pintura, conforme vimos anteriormente, por mais que jogue com o fluxo livre do inconsciente, com o imediatismo, é composta por diversos momentos (em uma mesma obra), nos quais o autor, pelo fato de lançar mão do pincel, espátulas, tinta e outros materiais, já suscita uma temporalidade progressiva. A fotografia, ao contrário, se dá toda de uma única vez, não há recuo, não há vacilação, nem tampouco esboços, rascunhos, retoques, a não ser no produto final. Uma vez apertado o obturador, a imagem vista está, imediata e irremediavelmente, inscrita nos grãos de prata da película; nada mais há que fazer, tudo está inscrito para todo o sempre. Sem dúvida alguma, nada acontece sem que o obturador seja acionado, daí esse momento ser o mais crucial e, por

isso mesmo, o mais complexo da fotografia, pois tudo gira a partir dessa fração de segundo. A caça só morrerá após o gatilho da arma ser acionado pelo caçador, mas, uma vez consumado o ato e uma vez morta, a caça se desfaz no tempo, desaparece. A surrealidade temporal fotográfica aparece justamente porque ela desfaz esse processo, construindo o seu próprio modelo, pois o acionamento do gatilho (obturador) provê a morte, que será perpetuada no tempo. Em fotografia, a “caça”, após sua morte (captada pelo ato fotográfico) pe embalsamada para sempre (no que se refere ao tempo de sua duração, pois a fotografia não se constitui como um objeto eterno em si). Ao adquirir o caráter de permanência, de ser o seu próprio contínuo (por fazer parte da história), transporta-se do tempo cronológico a um tempo memorial afetivo. O exato momento do acionamento do obturador retira o sujeito do tempo para inseri-lo no seu próprio “tempo”, que seguirá seu caminho como memória, vivificando a “morte”, reanimando o que se tornou pedra. Pr isso, o mito da Górgona Medusa vir sempre atrelada à metáfora da morte fotográfica. Não é somente o fato de ela transformar em pedra todos os que cruzam o seu olhar, levando-os à eterna imobilização, que a faz próxima da fotografia; esse fato se dá, sobretudo, pela petrificação ocorrer exatamente no momento em que sua cabeça é decapitada, o que torna os seus poderes eternamente ativos. Ou seja, a sua morte (por ter sido olhada) não a levou para o reino das trevas, mas lhe possibilitou conservar os seus poderes para sempre, perpetuando-os ativamente (aí é que vejo sua estreita relação com a fotografia, por isso acho que a câmara é a própria máscara de Gorgó, que petrifica, imobiliza todos os que a olham, sem jogá-los no limbo do tempo, mas transportando-os a um continuum memorial).

VIII – A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE Fotografar é testemunhar a mortalidade, é participar ativamente da “inexorável dissolução do tempo”, é entrar em confronto com a sua própria morte e com a do sujeito fotografado. Apertar o obturador é lançar o dardo de Ártemis, a deusa cretense. “Senhora dos Animais”, cujas flechas não só abatem os animais, como, muitas vezes, atingem as mulheres, dando-lhes morte súbita. Poe matar brusca e imediatamente, sem que se perceba, as flechas de Ártemis são “doces” e a morte que proporciona, uma “terna morte”; o simples toque no obturador determina a mesma morte súbita provocada por Ártemis, uma morte terna e doce. Fotografar é a inserção imediata num tempo póstumo, pois que é a travessia instantânea do sujeito que ali estava, preso à sua temporalidade cronológica, ao sujeito-imagem memória. A fotografia atua como uma “crônica de uma morte anunciada” (conforme García Márquez) e, talvez, seja também esse um dos determinantes para o mal-estar que a maioria das pessoas sente ao saber-se sendo fotografada. O fantasma da morte (mesmo que inconsciente) que ronda a fotografia (é mais do que sabido que há inúmeras comunidades e sociedades que não se deixam fotografar em hipótese alguma, por medo de serem tiradas as suas vidas) nos coloca, de uma certa forma, cara a cara com a nossa própria fragilidade com a nossa vulnerabilidade de meros seres humanos à espera da nossa irrefutável passagem, aqui não mais metafórica. É desse grande mistério, aterrorizador pelo desconhecido, que nos fala a fotografia; é como se ela, a cada momento, nos lembrasse que também (como ela) somos nada mais do que passagem. Deixar-se fotografar é, de alguma maneira, permitir que seja realizado o ensaio da morte; é admitir que o momento que estamos vivendo compreende não um todo-momento, mas apenas parte de uma universalidade; é presentificar a nossa ausência, nos fazendo ver o que há de unicamente implacável em nossas vidas – a morte. Quem sabe não seja talvez esse grande mistério vida/ morte que envolve o que está sub-repticiamente por trás da fotografia, o seu determinante para que a sociedade contemporânea, cada vez mais e mais, faça uso de sua linguagem? A fotografia, para manter a vida, proporciona a morte (seu grande paradoxo), e o sujeito, no afã desesperado de manter-se vivo, sucumbe ao risco da imobilização na busca da perpetuação de si, nem que seja através da sua imagem. A perpetuação de que trata a linguagem fotográfica, porém, não enseja o mesmo enfoque de eternidade absoluta, não compreende o mesmo caráter de perenidade associado à psicologia das sociedades mais antigas, cujas lembranças da vida eram eternizadas através dos monumentos monolíticos, absolutos em suas próprias concepções eternas e materiais, sem risco de se perderem no tempo. A perenidade do monumento monolítico era a certeza inquestionável da lembrança da vida.

A partir do momento em que a sociedade tomou conhecimento da fotografia e passou a adotá-la como paradigma de tudo o que pudesse remeter à lembrança, à memória, o seu relacionamento coma morte deslocou-se da instância absoluta, dogmática. A absorção da linguagem fotográfica trouxe à sociedade moderna um maior sentido de transitoriedade, de fugacidade, exatamente pelo fato de a fotografia também participar direta e fisicamente da mortalidade. Não é apenas por testemunhar o envelhecimento do sujeito fotografado que a fotografia fala da morte. Também carrega dentro do seu próprio meio a noção do perecimento, pois a própria imagem impressa no papel é assolada pela ação do tempo, através da luz, umidade, calor, etc., o que a faz deixar o sentido absoluto, monolítico, do monumento, colocando-a no reino da transitoriedade. A fotografia, assim, relativiza não apenas o modo de olhar, como vimos anteriormente, mas também o tempo (através da morte). Dessa forma, a psicologia da sociedade moderna, ao incorporar a fotografia, despreza o monumento, rechaça a perenidade, o tempo absoluto e imutável, optando por uma forma fugaz de tratar a morte, daquilo que fica da morte, relativizando a eternidade temporal. Quando, anteriormente, falamos da inscrição perpétua da imagem no papel fotográfico e de que ela estaria para sempre imortalizando/ mortalizando o sujeito fotografado, apontamos, da mesma forma, para o sentido “relativo” de “perpetuação” e “eternidade” compreendidos na linguagem fotográfica. Afinal de contas, o estado de desgaste a que chega a fotografia é uma das características que a aproximam do gosto surrealista e dadaísta. Por ter como objetivo central desmobilizar as concepções morais da sociedade, as quais estavam atreladas a toda uma tradição cultural do Ocidente, fincadas em preconceitos, regras e doutrinas inquestionáveis e preestabelecidas, é que os surrealistas e dadaístas passaram a desmistificar todo o conceito de arte, e assim o fizeram lançando mão de tudo o que poderia ir contra a tradição artística. Começaram, assim, a trabalhar com materiais de uso comum, de baixo valor, usados, principalmente, com refugos e sucatas, extremo oposto aos materiais estereotipados das academias de Belas Artes. Nada mais apropriado, portanto, do que utilizar a fotografia como meio de expressão composta por esses objetos baratos, encontrados em qualquer canto, jogados em qualquer gaveta, retirados de revistas e jornais, facilmente reproduzíveis, carregando consigo fragmentos do mundo prestes a seguirem juntos viagem rumo ao envelhecimento, tempo afora. A fotografia, assim, já nasce com a marca surrealista incorporada em si, que de latente passa a ser explicitamente percebida no decorrer do tempo, pois se por um lado ela envelhece a imagem captada, por outro, como objeto, sobre o seu próprio processo de desgaste. Conseqüentemente, torna-se inevitável o seu encontro com a surrealidade, visto que o tempo, de uma maneira ou de outra, encarrega-se de afastá-la de nossa realidade. Como objeto, há dois caminhos a seguir: se o tempo a faz marginal pela sua própria decomposição,

tornando-a desprezível pela qualidade visual que apresenta, fazendo dela um objeto obsoleto, de outra forma, cobre-a de uma aura que jamais alcançara antes do envelhecimento. Nesse caso, a surrealidade provém do fato de a fotografia acabar tornando-se, por si própria, uma antiguidade, uma raridade, uma relíquia mesmo, tamanha a distância que guarda do momento de sua realização. É interessante observar como a fotografia, com o passar do tempo, vai adquirindo um certo status, prestígio e, até mesmo, um respeito que antes não possuía. A viragem sépia (amarronzada), bastante recorrente entre os fotógrafos, pressupõe carregar precocemente a fotografia dessa aura que o tempo lhe assegura. O tempo, aqui, aproxima a fotografia bem mais da arquitetura do que da pintura: por menor que seja a beleza estética das ruínas romanas, o tempo impregna cada uma daquelas pedras com tamanha força emotiva, que os seus desgastes não apenas as retiram de uma conceituação plástica como lhes asseguram um peso e uma intensidade jamais provida pelo novo. Assim também é a fotografia: o desbotamento, a mancha, a sua degeneração enfim, lhe proporcionam uma beleza intrínseca que se sobrepõe a qualquer análise estética, ao contrário da pintura, que sempre carregou o conceito do belo de forma explícita. O fato é que o envelhecimento da fotografia traz consigo o envelhecimento da própria realidade fotografada, presentifica “os estragos do tempo”, comove pelo que já passou. A fotografia age, portanto, como a efetiva premonição do amanhã, o que, sem dúvida, lhe confere imensa mobilização. Toda essa carga que envolve a fotografia vem a reboque do que há de mais peculiar em sua linguagem e que a torna única: a referência. Por pior que seja a imagem (fora de foco, tremida, desbotada, mal iluminada), incorporada a ela está a referência do sujeito (ele esteve lá, caso contrário não teria havido fotografia). O sujeito transmuta, desloca-se de sua própria realidade para a realidade do papel fotográfico, e juntos seguem seu envelhecimento. O desenho e a pintura, por mais perfeitos e fiéis que sejam, não são o modelo, do qual são separados por um imenso abismo. Por isso a questão temporal em fotografia apresenta uma surrealidade bem mais profunda, o que significa, de fato, sem rodeios, trazer o sujeito para envelhecer junto. Os álbuns de família nada mais são do que bancos depositários do tempo (leia-se aí tempo como momento) de vida de cada sujeito fotografado. Esse fato faz, na realidade, com que fotografias geralmente muito mal tiradas possuam um nível de mobilização e envolvimento tão intenso. E cada vez que se revisitam tais álbuns, o grau de surrealidade das fotos é maior. É a distância temporal agindo sobre elas, que confere a tais imagens tamanha força e violência, o que explica voltarmos de forma recorrente a esses álbuns, na intenção de recuperarmos o irrecuperável, de testemunharmos a nossa juventude, de possuirmos uma realidade já inatingível. O tempo acaba por revestir a fotografia não apenas do sentido da lembrança do vivido, de todo o manancial emotivo

que ela evoca, mas também de uma excentricidade que a faz extremamente intrigante, e a excentricidade será tanto maior quanto mais distante no tempo, em relação a nossa realidade atual, a imagem se apresentar. Os retratos fotográficos são um grande exemplo dessa situação, uma vez que, mesmo sendo os grandes representantes da tradição e da ortodoxia em fotografia, mostram o tempo alterando de tal forma os hábitos apresentados pelos modelos fotográficos – o vestuário, os penteados, as suas posturas – que o exotismo com que os vemos nos remete a uma surrealidade muito mais intensa do que algumas das montagens fotográficas contemporâneas mais inventivas. O nosso interesse diante de uma fotografia antiga, o poder de atração que ela exerce sobre nós está intimamente relacionado a essa inexorável circunstância do tempo, que tudo envelhece, afasta, atribuindo um caráter de mistério e excentricidade ao passado, constituindo-se, por isso mesmo, no termômetro do presente. Não é à toa que a fotografia causa tão grande fascínio. Mesmo as mais recentes já estão investidas de um passado irrecuperável, em desaparecimento, o que nos faz sair em busca do que já foi e garimpar dentro da imagem impressa o que gostaríamos que fosse o presente. O sentido arqueológico, muitas vezes depositado no fotógrafo, transporta-se para o observador, que, uma vez tocado pelo interesse por uma imagem, realiza uma verdadeira incursão fotográfica adentro. É de fato uma arqueologia contemporânea, em que escava-se um passado quase presente, e a decalagem temporal entre o presente e o passado, por menor que seja, transforma, imediatamente, o momento em antiguidade, aqui vivenciado como um resumo fragmentário e surrealístico do mundo, pois que pertencente, então, ao excêntrico, ao grotesco, ao exótico. A característica arqueológica do observador diante de uma fotografia pressupõe um sentido surrealista por se dar não uma investigação dos vestígios de civilizações antigas, mas por se vasculhar, “escavar” a própria civilização atual, que , por um simples (porém irremediável) toque no obturador, passa a representar uma “antiguidade instantânea”. Essa arqueologia contemporânea, imediata, está em plana harmonia com a filosofia da sociedade atual, que, na verdade, se organiza e se concebe a partir de fragmentos de passados recentes. Essa sociedade, que cada vez mais se forma a partir do refugo, do descartável, do que já foi posto fora por terse tornado velharia, é a sociedade da reciclagem. Toda essa velharia a que me refiro, se pensarmos, compreende a própria fotografia, pois, para a sociedade atual, o que aconteceu ontem, ou , mais especificamente, há alguns décimos de segundo (pelo obturador), já faz parte de um passado arqueológico. A surrealidade fotográfica em Magritte de

Esse mergulho – a que chamei incursão – rumo ao mistério uma imagem fotográfica carrega a mesma vivência

estabelecida nas obras de Magritte. É, como já vimos, fazer surgir o desconhecido do conhecido. O que há de surrealístico impregnando o universo das obras de Magritte também permeia a imagem fotográfica, porque as correlações se passam de forma paralela. Magritte utiliza-se de situações e coisas conhecidas, retiradas da própria realidade, mas envoltas em uma atmosfera misteriosa, por possuírem identidades ocultas. Penetrar em uma obra de Magritte é desvendar, pouco a pouco, os véus do óbvio, para então embrenhar-se na floresta oculta, onde a realidade explícita cede lugar a uma série de articulações sucessivas do inconsciente, que, livre de toda e qualquer regra pertencente à racionalidade, retira o modelo (sujeito ou objeto representado) de sua banalidade, de sua apreensão lógica. Esse processo faz surgir a verdadeira face oculta do modelo, revelando o que os olhos da superficialidade não podem alcançar. As obras de Magritte nos transportam a sucessivas viagens de idas e vindas, ao passarmos de uma realidade racional, explícita, em que todos os elementos do quadro são representados de maneira extremamente clara, dentro do mais puro figurativismo, a uma outra realidade, em que esses elementos juntos potencializam as realidades particulares (explícitas) de cada um, fazendo surtir do banal, do trivial, o novo, o maravilhoso. É uma verdadeira investida no que não se conhece, no que, a princípio, não se vê; é partir do concreto, do que já está preestabelecido e definido, de antemão, em direção à real essência das coisas, ao que elas não deixam transparecer de imediato. Uma leitura mais atenta de uma fotografia não deixa de constituir-se como uma operação magrittiana, talvez mesmo um aprofundamento dessas qualidades, uma vez que ela lida direta e implacavelmente com a realidade. Enquanto Magritte, através da pintura, trabalha a representação, a interpretação de aspectos da realidade, a fotografia parte sempre e inexoravelmente da realidade existente, retomando, mais uma vez, o fato de ela ser fundamentalmente referência da realidade. Assim sendo, a grande “descoberta” de uma imagem fotográfica passa sempre, primeiramente, pelo que é retirado da realidade existente, pelo que é dado explicitamente, para, aí sim, começarem as articulações e deambulações imagem adentro (caso seja do desejo do observador). Ao lermos uma fotografia (ou ao observarmos um quadro de Magritte) acontece justamente isto, o ir e vir de uma realidade a outra, até sabermos, ao certo, em qual delas nos encontramos, pois estamos diante de três realidades e três tempos diferentes de uma só vez: a nossa realidade em si, a realidade imposta pelo fotógrafo – o que, em última instância, é a realidade da própria imagem impressa – e a realidade construída por nós, a partir das articulações provenientes das duas primeiras, o que faz com que cada fotografia estabeleça com o observador uma ligação tão misteriosa. O tempo participa também de forma contundente nesse mistério, uma vez que o tempo fotográfico e o tempo cronológico são postos lado a lado, estabelecendo embates dos

mais diversos cada vez que nos encontramos frente a uma fotografia. A temporalidade fotográfica nos investe tanto de um fascínio quanto de um temor muito grande, sobretudo quando se trata de pessoas que já morreram. Tragédia e talismã Após a morte do meu pai, resolvi escolher uma fotografia dele para tê-la comigo em meu dia-a-dia. Talvez por não poder mais desfrutar de sua presença na vida real, tenha tido esse anseio de carregá-lo perto de mim, ao menos na sua realidade fotográfica. Dentre as diversas fotos que conheci do meu pai nas mais diferentes épocas de sua vida, fui acometido compulsivamente pelo desejo de escolher uma, muito embora ela apresente todos os defeitos técnicos que uma boa fotografia não deveria ter. Lá estava o meu pai em pé, em uma estação de trem, abraçado à sua irmã mais velha, por volta dos seus seis anos de idade. Por que escolhi especificamente esta foto e não uma outra qualquer de sua fase mais adulta, que o representasse melhor e que guardasse uma lembrança mais próxima da época em que convivemos juntos? Acredito que o fascínio pela escolha dessa foto esteja relacionado à implacável condição, inerente à própria fotografia, de se jogar com o tempo de forma tão incontestável, fato que nos remete às mais diversas inquietações. Há algo de extremamente perturbador ao observar o meu pai ali tão novo, com um futuro tão grande à sua frente, e saber que ele já está morto. Que tragédia é essa, imposta pela fotografia, se no exato momento da sua realização condena irremediavelmente o sujeito fotografado à morte? Que aponta de forma tão cruel (exatamente porque não está mentindo) para a morte? Ratificamos mais uma vez essa grande surrealidade fotográfica, de brincar de vida e morte de uma só vez, de fazer com que, no instante em que o obturador é acionado, surja uma imagem natimorta. Se por um lado ela imortaliza o sujeito naquele tempo, por outro ela declara a sua morte, condena-o à morte futura. Apesar dessa catástrofe fotográfica, no entanto, volto todos os dias àquela imagem, talvez por me sentir redimido desse drama, por perceber que a fotografia me possibilita alcançar (mesmo que só por uns instantes) a realidade inatingível da presença daquela pessoa que tanto amei. Por isso, acho essa capacidade da fotografia de conviver, a todo momento, com os mais profundos paradoxos, o seu grande mistério – ser tragédia e talismã, ao mesmo tempo. Essa inquietação provocada pela temporalidade fotográfica é sentida de forma tão surrealista como nas obras de De Chirico e Tanguy, dois pintores que seguiram caminhos plásticos bastante distintos, mas que apontaram para a questão temporal com a mesma dramaticidade que a fotografia. Aqui, o tempo pictórico e o fotográfico suscitam surrealidades paralelas. O tempo fotográfico em De Chirico

A obras de De Chirico apresenta questionamentos marcantes em relação ao espaço, onde ele experimenta representações em oposição tanto à perspectiva linear vigente desde o Renascimento quanto em relação ao plano cubista, criando, assim, uma espacialidade nova, de nulidade, aparentemente de total incoerência (conforme já vimos). A sua obra, porém, questiona sobretudo o tempo, de onde vem a sua maior aproximação com a fotografia. As obras metafísicas de De Chirico apresentam, de forma bastante recorrente, uma falta de unidade temporal muito grande, por apresentarem, em um mesmo espaço, diversos tempos diferentes (colunas gregas, arcadas romanas, elementos da Idade Média, da modernidade...), o que nos traz uma certa sensação de desconforto pela perda de um referencial coerente, linear, e por não sabermos, de fato, a que realidade estamos sendo remetidos. O que, a princípio, é percebido apenas como um mal-estar transforma-se num gancho para uma investida mais profunda na surrealidade temporal instalada. De imediato, o tempo fotográfico presentifica-se na obra de De Chirico quando percebemos que o que está representado ali na tela se passa como um flagrante instantâneo transposto direto para a tela, como se De Chirico, num passe de mágica, tivesse captado através de pincéis e tintas um momento único (fotográfico), embora de uma realidade que, definitivamente, não pertence à nossa vida. As suas imagens, de fato, nos levam a crer que as cenas apresentadas pertencem a um tempo congelado de uma realidade indeterminada, freqüentemente composta com relógios marcando as horas da tarde, assoladas por um sol causticante que, ao varrer toda a cena, nos deixa o enigma causado pelas sombras. De Chirico, aí, nos leva novamente ao mesmo mistério fotográfico da ausência/ presença da ambigüidade, vivenciada através das sombras humanas que deixam o rastro desse passado recente congelado (fotográfico) e que nos faz experimentar o grande paradoxo fotográfico de vida e morte, ao imortalizar/ mortalizar o sujeito representado (fotografado) como sombra. Tudo isso está envolto pela atmosfera de uma realidade extremamente inquietante, por ser desconhecida e enigmática, em oposição à realidade fotográfica (que, por mais abstrata que seja, é proveniente da realidade existente), mas que, por isso mesmo, vem acentuar drasticamente a sua temporalidade misteriosa, como a realidade fotográfica. O tempo fotográfico em Tanguy A obra de Tanguy, por seu lado, não encontra a temporalidade fotográfica através da captação do momento único, do congelamento instantâneo da realidade. Muito pelo contrário, os seus quadros nos mostram ambientes silenciosos, sombrios, abissais, de uma imensa solidão, com total ausência do ser humano, com referências feitas apenas a alguns tipos de vidas amorfas, compreendidos em um tempo em suspenso. Tudo parece estar há muito tempo parado, de uma estática

verdadeiramente incômoda, pairando sobre a cena um grande mistério pelo fato de o espectador se perceber diante de um passado ilocalizável, confuso e, por isso mesmo, melancólico. As suas representações nos causam estranheza, até porque, normalmente, não sabemos ao certo de que se tratam; ora parecem formas orgânicas pertencentes ao fundo do mar, ora lembram cidades arrasadas por uma catástrofe atômica, ou mesmo um parque industrial abandonado com um amontoado de sucatas. A força dessas imagens, a excentricidade que as envolve e que, na realidade, nos arrebata, não está nas representações plásticas, no sistema figurativo em si, por mais exótico que nos possa parecer, mas provém da distância temporal que vivenciamos. Justamente aí é que vejo o gancho da obra de Tanguy com a fotografia; pos as suas representações estão de tal forma investidas de um afastamento no tempo, de uma distância tão brutal da nossa realidade cotidiana, que somos levados ao mesmo embate que ocorre quando estamos diante de uma fotografia que nos toca. O fascínio pelo que se há a descobrir, esse grande mistério de se desvendar o desconhecido, o que se encontra por trás da realidade explícita das coisas, surge ao mesmo temo em que somos tomados exatamente pelo medo dessa descoberta, pelo devir de uma realidade que não sabemos qual. A fotografia nos coloca essa questão bem de perto, por lidar com uma realidade existente e uma outra que se esconde atrás dela. A obra de Tanguy me parece aprofundar ainda mais essa discussão por lançar mão de uma realidade a princípio possível, mas que, jogada em um abismo temporal tão grande, torna-se total e completamente desconhecida por nós, marcando, assim, de maneira mais intensa, um afastamento da nossa realidade, tanto por nos dar esse passado tão longínquo como por passar uma visão tão aterrorizada e desarticulada do futuro. A obra de Tanguy, portanto, tal qual a fotografia, sustenta uma premonição do futuro, mas sempre de maneira muito negativa. Assim, a distância temporal trabalha aqui, mais uma vez, apontando para uma descontextualização da visão que temos das coisas e trazendo consigo a sua própria carga surrealista. Na realidade, tanto De Chirico quanto Tanguy instigaram constantemente os nossos sentidos por jogar com a latência, com a virtualidade impregnada na distância temporal de suas imagens. A obra de Tanguy é permeada pela virtualidade, na medida em que ele prioriza um tempo em suspenso, parado no ar e nos joga, irremediavelmente, a um passado desconhecido, sem qualquer vínculo referencial interno, apontando, conseqüentemente, para um futuro ameaçador, incerto, sem garantias. As representações de Tanguy, por flutuarem no tempo, nos provocam uma instabilidade muito grande em relação ao que poderá vir adiante. Tudo parece estar por fazer, como se algo estivesse prestes a acontecer, mas permanecesse ainda em seu estado de latência, em potencial, gerando muita angústia e ansiedade por sermos levados a especular e prever algo a partir do desconhecido.

De Chirico, por sua vez, em meio a uma atmosfera já tão carregada de mistério, coloca em suas representações sombras humanas “sangrando” pelos espaços entre as construções. Na realidade, as únicas possibilidades de movimento (que é o que nos faz especular sobre o corte fotográfico do momento instantâneo de suas cenas) frente a representações tão estagnadas, em que não transparece qualquer tipo de animação, são as tais sombras humanas. Quantas elucubrações e fantasias não nos passam pela cabeça ao nos depararmos com aquelas imagens virtuais de seres humanos que passaram ou passarão por aquele local? Não há como evitar especulações em torno de quem seriam essas figuras que estariam transitando em locais tão estranhos, ou que pessoas conviveriam em lugares tão misteriosos. A virtualidade imposta por essas sombras provoca o mesmo tipo de inquietação estabelecida pelas imagens fotográficas quando ainda não foram reveladas; tudo é especulação, é fantasia. Embora somente o próprio De Chirico pudesse nos dar a certeza de suas intenções, creio que, nesses casos, ele brinca de fotografia, por ela invadir, literalmente, a pintura, fazendo parte dela, como se uma linguagem se transpusesse virtualmente, assim como a sombra para dentro de outra. Tal fato constitui-se em mais um elemento de desarticulação na obra de De Chirico, pois ele intensifica a surrealidade da sua pintura através do pensamento fotográfico.

IX – A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA Quando tratamos de tempo em fotografia, todas as suas correlações com os ready-mades de Marcel Duchamp que citamos anteriormente caem por terra. Neles, o objeto é o próprio índice, ele é, ao mesmo tempo, signo e referência, ao passo que, em fotografia, por mais próxima que ela esteja do objeto que representa, seja por raiografia, por cópia contato, fotograma, ou qualquer outra forma, lá está o tempo, irredutivelmente agindo como elemento de corte, de separação, afastando a imagem do seu próprio índice. É dentro desse espaço de tempo, entre o exato momento em que o obturador é acionado (e a foto realizada) e a imagem revelada, que transcorrem as mais diversas e profundas especulações em torno da fotografia. Nesse intervalo, toda e qualquer racionalidade que se possa ter da imagem que se fotografou se esvai por completo, foge do nosso controle, deixa de ser uma verdade para tornar-se mera conjectura, pois passamos, aí, a atuar no campo das fantasias, que nunca poderão ser comprovadas, nem mesmo diante da foto, pois, nessa defasagem, o tempo já atua de forma a fazer com que a imagem revelada denote algo sempre diferente do que imaginamos. Aliá, um outro fator que torna a fotografia uma linguagem tão fascinante é verificar, em cada foto que tiramos, que ela jamais corresponde exatamente ao que pensávamos ver. A cada filme que revelo, ao observar o resultado alcançado, me convenço mais de que a ligação da fotografia se dá de forma muito mais profunda com o inconsciente, com algo que foge a todo e qualquer controle, do que com a racionalidade que lhe é atribuída. A partir daí, podemos especular que esse talvez seja um dos maiores atestados de que a fotografia já nasce carregando dentro de si uma excessiva dose de surrealidade, independentemente de ela estar ou não engajada em qualquer movimento ou escola. A surrealidade é ratificada a cada nova imagem revelada, já impressa com o golpe da fatalidade de se opor à nossa fantasia. Justificam-se, então, o medo e a ansiedade que nos ocorrem nessa transição, entre o ato fotográfico em si e a foto já pronta. Sempre ficará no ar, sem resposta, o que realmente foi visto durante a sua realização, ou seja, uma vez pronta, a foto servirá apenas como uma referência, sugestão de um momento, o que nos levará a questionar a respeito do que pertencia ao reino da nossa imaginação e o que de fato estava posto como realidade em si. A foto aponta para todo um lado inconsciente, ligado às nossas efetivas intenções e desejos escamoteados por trás da realidade racional dada. Ao invés de perguntarmos o que, realmente, tínhamos visto, somos levados a pensar no que realmente queríamos ver, e a partir daí uma série de intruncadas articulações começa a se dar, do consciente ao inconsciente, da realidade racional a uma supra-realidade, na tentativa de

dar conta, de harmonizar ou mesmo de separar dentro de nós o universo fantasioso do real. Nesse caso, a fotografia trabalha no sentido de quebrar todas as certezas que temos das realidades vivenciadas. As incertezas que experimentamos diante de uma fotografia pertencem ao mesmo universo das discussões colocadas por Magritte quando ele desarticula a escrita da imagem, empregando títulos que nada têm a ver com a imagem representada. Ao desenhar um cachimbo, não se faz necessário escrever embaixo que aquilo se trata, de fato, de um cachimbo, pois a associação daquele objeto com o nome cachimbo é criada imediatamente em nossa mente. Quando Magritte, no entanto, pinta um cachimbo e escreve embaixo, no mesmo espaço de representação, “Isto não é um cachimbo”, coloca-nos não apenas diante da arbitrariedade da linguagem, da fragilidade da comunicação, da mera convencionalidade que rege as relações do mundo, mas sobretudo chama-nos a atenção para as inquestionáveis verdades que simplesmente passamos a admitir, sem ao menos pensarmos sobre elas. Magritte, com esse gesto, dilui as nossas certezas racionais e aponta para a existência de uma outra realidade permeada pela ficção e pelo imaginário, desfazendo, assim, a inabalável segurança de identidade do ser humano com o mundo palpável, fazendo-nos desconfiar do nosso modo de ver a realidade, de aceitar e reconhecer as coisas do universo como elas nos são dadas. Enquanto a fotografia instaura uma enorme perturbação interna, em relação ao seu período de latência diante do resultado final, ao levantar conjecturas sobre o que se imaginava ter visto durante o ato fotográfico, Magritte, nessa sua fase, não sugere, não lança suposições nem suscita dúvidas, mas aponta direta e objetivamente para a questão, nos fazendo crer que, definitivamente, o que estamos vendo não corresponde à imagem representada (no caso da fotografia, imagem fotografada). Afinal de contas, estar diante da representação de um cachimbo e do título “Isto não é um cachimbo” é presentificar, efetivamente, a desarticulação e desarmonia entre o signo e o nome que lhe é atribuído; é olhar algo e perceber que aquilo não corresponde ao que estamos vendo. O que se observa aí é que Magritte conserva para sempre a inquietação provocada pela latência fotográfica. Em outras palavras, enquanto a perturbação provocada pela latência fotográfica se dilui, se dispersa com o tempo, Magritte estampa e inscreve para sempre, num mesmo espaço de representação, que o que vemos não corresponde, necessariamente, ao que a realidade nos mostra. A superposição desse conceito de latência entre as linguagens pictórica e fotográfica vem amarrada à noção de passagem, de mudança de condição, de um estado primitivo (no sentido de primeiro) a um estado avançado no tempo. Essa passagem pode constituir-se através de um processo, de uma evolução gradual (pintura/ Roma) ou pode se dar de uma só vez como um todo (fotografia/ Pompéia). Talvez o estado de latência em fotografia nos mobilize de uma maneira tão angustiante e ansiosa justamente pelo fato de o processo

fotográfico trabalhar sempre nos dois extremos, pois antes da revelação nada se tem, não há absolutamente nada a não ser fantasias, imaginações, conjecturas, que são bloqueadas e rompidas de uma só vez no exato momento em que o filme é retirado do tanque de revelação e estirado contra a luz. A passagem do nada para o tudo é imediata, não há como alterar a imagem captada durante esse processo (a não ser tecnicamente, o grão, o contraste etc.). A latência fotográfica pode, assim, ser vista aqui metaforicamente como uma mola comprimida que, quando solta, explode de imediato todo o potencial acumulado, sem qualquer passagem intermediária (podemos até mesmo comparar o susto que se tem ao se abrir uma dessas caixas que possuem em seu interior brinquedos de mola, ao “susto” que se tem quando da revelação de um filme – tudo é surpresa, tudo é sobressalto diante do imprevisto). Não podemos esquecer, entretanto, que o rito da passagem relacionado à latência fotográfica, por mais que se dê de forma brusca, imediata, envolve uma grande soma de etapas processuais que vão desde o acionamento do obturador até o filme revelado, sendo que o resultado final da imagem compreenderá, cumulativamente, cada um desses resultados, isto é, embora o processo de visão manifeste-se apenas nas duas pontas da cadeia (na hora do ato fotográfico e no momento do filme já revelado), cada etapa realizada na escuridão vai sendo guardada como memória, influenciando no resultado final. No curso do pensamento da latência fotográfica, vislumbramos novamente o mito de Artemis, a sagitária selvagem, que percorre os mesmos rituais de passagem. Ela acompanha todos os passos dos seres, desde o embrião ao nascimento e à juventude, até tornarem-se adultos, estabelecendo, precisamente, as delimitações dessas diversas etapas e fazendo as ligações entre elas. Ártemis proporciona a passagem, a mudança de condição, representa a ponte entre passados e futuros, de tal forma que as diversas fases dessas passagens não sejam esquecidas e apagadas. Ela é, portanto, a grande representante mitológica da latência fotográfica, já que cuida para que todos os estágios intermediários de mudanças de condição sejam realizados sem atropelos, sem que nada se perca. Ártemis é a própria imagem do que existe entre a latência e a revelação. Percebe-se, então, que o mito de Ártemis articula-se de forma bastante interessante com a fotografia, principalmente em função do seu sentido de administração e coordenação entre as passagens. As fotografias, em muitos casos, possuem a capacidade de funcionar como verdadeiras bombas-relógio à medida que estão sendo reveladas, e quando já prontas, de fato, explodem dentro de nós com tamanho impacto que somente clamando por Ártemis, para que com o seu poder concilie, restabeleça a ordem perdida. É como se a fotografia necessitasse embutir a presença de Ártemis em sua linguagem para nos livrarmos do susto de sermos acometidos, subitamente, por tamanhas mobilizações internas e,

conseqüentemente, remetidos aos mais imprevistos encontros com o nosso inconsciente. Essas mobilizações são provocadas pela virtualidade temporal inerente à própria fotografia. De fato, intensas articulações internas são suscitadas quando uma imagem está impregnada com um tempo virtual. Passamos, aí, a lidar novamente com o desconhecido, como que poderá vir a acontecer, e, muitas vezes, o desfecho da cena dependerá da nossa própria imaginação, das nossas próprias fantasias. É justamente essa aproximação, esse chegar tão próximo aos nossos desejos mais recônditos, que nos faz tremer e nos faz pensar sobre o imenso potencial bélico (já que falamos de bomba) acumulado, latente, dentro de nós. Assim, a virtualidade temporal tornou-se uma referência marcante e recorrente em praticamente todos os pintores surrealistas, exatamente por ela possibilitar remeter o espectador, de forma imediata e intensa, aos seus desejos irrealizáveis, a tudo aquilo que a realidade racional, por força das circunstâncias, afasta e impede que se efetue. Trabalhar com o tempo virtual é percorrer a sugestão, é insinuar, é gerar um grande veio de inspiração para que o espectador, a partir de uma imagem inicial que guarda um imenso potencial imaginário, possa dar continuidade à cena vista, tendo como referência as suas próprias experiências e fazendo delas a sua grande ferramenta de criatividade, de liberação do seu inconsciente. O tempo virtual é a própria surrealidade, pois ele só existe, só faz sentido, dentro do universo imaginário e fantasioso. Parte sempre de uma realidade dada (através de uma imagem) para, então, tomar o seu rumo, encontrar o seu desenvolvimento no inconsciente de cada um. Por isso, uma obra permeada pela virtualidade temporal jamais configura-se como sendo de um único autor; há sempre a presença (virtual) de quem quer que seja, para lhe dar a completude. A sensação de vazio, de um certo mal-estar do incompleto, do faltar algo na imagem é justamente o estopim para a mobilização, para que o espectador participe de forma tão intensa diante de tais imagens, no impulso de dar continuidade àquela realidade. Assim, uma vez iniciado o processo de criação, o que era malestar agora é pulsação, é verve, é tudo aquilo que possa remeter à plenitude, pois, atravessada a ponte da racionalidade para a estrada do inconsciente, a possibilidade deixa o campo da dúvida para se deleitar à mercê do desejo – basta o desejo para a conquista. Essas imagens têm algo de vento, de soltura, de desvario, até porque experimentamos mesmo a embriaguez. Navegar pela virtualidade temporal é partir do porto seguro da realidade racional em direção aos “mares nunca dantes navegados” do inconsciente, é ter a coragem de desamarrar os sapatos de ferro que nos prendem à terra. Deixar-se levar por tais imagens é não se contentar em ser um mero espectador, é sair do estado contemplativo para a real participação, percorrendo a obra de um ponto de vista do artista para recriá-la dentro de suas possibilidades e desejos, é, enfim, passar do apolíneo ao dionisíaco.

A virtualidade temporal, que para os pintores do Movimento Surrealista constituía-se uma questão intencional de mobilização interna, no sentido de gerar crise, de retirar o ser humano de seu estado de torpor e passividade habituais, passou a ser trabalhada pelos fotógrafos de uma maneira mais intuitiva, embora igualmente impregnada de uma carga de mobilização muito grande, vindo daí mais um gancho para a proximidade com a arte surrealista. Conforme já mencionado anteriormente, praticamente todos os pintores surrealistas, em algum momento e em algum nível, trabalharam com a virtualidade temporal, o que nos impossibilita ver aqui toda a sua abrangência, de forma totalizante. Podemos pinçar, no entanto, um quadro do Dalí, “A Persistência da Memória”, que aponta de forma bastante clara a investida na virtualidade temporal. O cenário é extremamente fantasmagórico, tendo ao fundo um mar (como um espelho d’água totalmente parado) e uma montanha, dando para uma faixa de terra que se estende até o primeiro plano, que compreende três relógios deformados, como se estivessem derretendo, cada um deles pendurado sobre um galho de árvore, uma mesa e um objeto não identificado. Dalí, ao apresentar um ambiente de total paralisação, não está, com isso, transmitindo passividade; muito pelo contrário, utiliza-se desse estado de estagnação no sentido de potencializar a representação, de criar uma força motriz capaz de retirar o espectador do mal-estar gerado por tamanha inércia. A impressão que se tem é que Dalí, nesse quadro, coloca de forma plena e explícita uma questão fundamental entre nós, que é a de decidirmos tomar ou não as rédeas de nossas vidas, de enfrentarmos o medo do passo adiante, quando tomados pela angústia da paralisação diante da vida. A virtualidade temporal presentifica-se nesse quadro de forma intensa por vir carregada de dois aspectos que se complementam e se potencializam. Inicialmente, há toda uma vivência da expectativa do que pode vir a acontecer a partir desse ambiente, típico da virtualidade temporal em si, quando somos levados a desdobrar a cena representada ao sabor dos nossos desejos e fantasias. Instala-se, portanto, aí, o primeiro temor do que podemos ou do que, de fato, vamos (leia-se, aí, nosso inconsciente) fazer a partir dessa realidade com a qual nos defrontamos, principalmente a partir dessa imagem, em especial, que oculta um acúmulo imenso de informações e ramificações represadas, prestes a eclodir. O segundo aspecto que a meu ver atua no sentido de intensificar a virtualidade temporal de fato é justamente esse equilíbrio extremamente instável entre todos os elementos da cena, de que a estática está a serviço, sustentando-se na realidade, em função das diversas forças de tensão que atuam em cada objeto. Assim, se por um lado Dalí nos provê, através dessa imagem, de um veículo riquíssimo que nos possibilita entrar em contato com as nossas fantasias e “quereres”, liberando o nosso inconsciente para trabalharmos livres o rumo a ser dado àquela cena, por outro gera uma imensa angústia no afã de

darmos esse passo. Afinal de contas, a exagerada inércia que permeia a cena é pura aparência, é como se estivéssemos diante de diversos barris de pólvora interligados por pavios, que, na primeira fagulha, colocariam tudo pelos ares, provocariam o desarranjo total da cena. O grande medo, portanto, reside exatamente aí – colocados frente à possibilidade de experimentar algo novo, fustigados a viajar pelos meandros da temporalidade virtual, somos acometidos, repentinamente, pelo temor de tudo desarticular, de gerar um imenso desequilíbrio em cadeia, pois deslocar qualquer peça dessa imagem tão tencionada é correr o risco do total descontrole, de não darmos conta do que provocamos. Se vivenciamos esse embate frente a essa imagem é porque ele está, da mesma forma, presente em nossas vidas, e a força de “A Persistência da Memória” manifesta-se, justamente, quando ela passa de mera representação, quando sai do quadro, da parede, e ganha vida, desdobra-se literalmente dentro de cada espectador. A fotografia, por seu lado, quando banhada pela virtualidade temporal, enriquece e aprofunda tudo o que discutimos em relação à pintura (mais especificamente em relação ao quadro de Dalí) pelo fato de estar sempre presa ao índice, à referência. Assim, todo o temor ao qual nos referimos quando tratamos das obras representadas pelos pintores surrealistas toma um outro corpo, configura-se de forma diferente, quando falamos da fotografia, pois nesse caso estamos lidando com a própria realidade. Não partimos mais de uma ficção, de uma representação, e sim da própria realidade, do que, de fato, esteve lá. Uma imagem fotográfica com a qualidade da virtualidade temporal avança um passo dentro da surrealidade, uma vez que, qualquer que seja o caminho, o desdobramento dado à imagem, o perigo iminente instaurado sai do mero estado representacional para o real, como se o que imaginamos pudesse, realmente, vir a acontecer, afinal de contas, a imagem de onde partimos, de fato, aconteceu. Há uma fotografia realizada por um fotógrafo anônimo que demonstra tipicamente esse estado de angústia e ansiedade. A imagem nos mostra um equilibrista num circo, flagrado no exato momento em que cai da corda onde estava executando a sua apresentação. Por ter sido tirada de uma distância muito grande e por estar muito escura, a foto não nos permite observar a reação facial do equilibrista diante da queda. Tanto melhor, pois ao refletirmos sobre a virtualidade temporal, esse fato só intensifica a nossa análise, por fazer com que a imagem deixe todas as elucubrações ao nosso encargo. Por não nos ser possível ver o rosto do equilibrista, a foto nos obriga a partir apenas do fato ocorrido em si, não nos deixando qualquer referencial do artista a que nos apegarmos. Estaria ele dando gargalhadas por provocar, intencionalmente, o pânico no público e deixarse cair em uma rede, ou será que, efetivamente, a queda existiu independentemente de seu desejo? O fato é que, embora o público tenha vivenciado um momento de pânico e tensão em

quaisquer das duas situações, a realidade mostrou, logo em seguida, o desfecho do ocorrido, pois, pelo bem ou pelo mal, a cena se fechou ali, enquanto que, na fotografia, principalmente do ângulo em que foi tirada, tudo fica por conta da nossa imaginação e fantasia, a captação e a paralisação da cena naquele exato momento impõem uma infinidade de desdobramentos. Não estamos, então, diante do que a realidade irá nos mostrar (a morte ou a gargalhada?). O pânico de que estamos falando, em fotografia, inserese num outro contexto, visto que ele não vem de fora para dentro e nós não ficamos à mercê do que a realidade irá nos impor, mas porque caberá a nós dar o destino que bem entendermos ao equilibrista. O temor talvez não esteja relacionado ao rumo que daremos àquele equilibrista, especificamente, até porque a realidade já lhe deu uma direção de qualquer maneira. O medo está, provavelmente, relacionado àquilo de que o nosso inconsciente será capaz, pois, diante de uma imagem como essa, que certamente se abrirá a desdobramentos, todo o nosso poder fantasioso estará à flor da pele e, então, entraremos em contato íntimo com a nossa verdadeira e mais pura realidade interna, o que, possivelmente, nos causará assombro. Muitas vezes a nossa racionalidade não sustenta, não se dá conta do que se passa em nosso inconsciente, que, na realidade, é quem representa os nossos verdadeiros desejos e instintos. Saber-se, experimentar-se desejoso de danos e estragos nos causa não apenas mal-estar e incômodo, mas também um grande medo de sabermos que somos capazes de tais atos. As primeiras perguntas que, de imediato, vêm a nós, diante de uma cena como essa, são: Qual deve ter sido a reação do equilibrista nessa hora? O que estaria ele pensando? O que estaria passando em sua mente? Essas perguntas, no entanto, perdem peso, se esvaem e se esvaziam no tempo quando nos damos conta de que são perguntas, na realidade, que estamos nos fazendo, apontando para dentro de nós mesmos. Daí o temor dos desdobramentos, o temor de “viajarmos” na virtualidade temporal da imagem, que nada mais é do que responder a todas essas questões através de uma realidade que não é a racional, limitada e controlada, mas a que não tem regras nem medidas e que, por isso mesmo, constitui-se como a que mais se aproxima da nossa verdadeira identidade, que se pode dizer, a nossa própria surrealidade. Dentre as inúmeras situações em que a fotografia joga com a virtualidade temporal, há uma outra que lida com um aspecto diferente daquela que foi vista em relação ao equilibrista. Trata-se das imagens em que o autor induz, direciona a sensação da virtualidade temporal de forma mais objetiva para o próprio sujeito fotografado. Nesses casos, saímos do domínio do susto, do sobressalto, e adentramos num universo mais denso, silencioso e de maior introspecção. Refiro-me, aqui, às incontáveis fotografias tiradas nos campos de concentração durante o período de guerra, e mesmo àquelas realizadas ainda hoje como registros nos presídios antes da execução sumária de um preso. Todas apresentam o

mesmo fio de ligação – a morte. Nesses casos, o aspecto fantasioso desloca-se de forma mais intensa do espectador para o sujeito fotografado porque o desfecho, o desdobramento da cena possui um espectro mais reduzido, por já estar amarrado a um final que, de antemão, sabemos que será. Por mais terrível que seja a sensação, partimos do princípio de um final conhecido e irremediável e, por isso mesmo, transferimos, intuitivamente, a vivência do tempo virtual para aquele que experimenta, efetivamente, a sensação de estar com a sua vida por um fio. A “viagem” virtual, nestes casos, fica mais relacionada ao fato de se saber o que deverá se passar na cabeça de uma pessoa que tem a certeza da morte tão próxima, qual a história dessa pessoa, o que a levou, durante a sua trajetória no mundo, a ser conduzida a tamanha tragicidade. Essas fotos carregam grande tensão e ansiedade referentes à idéia de “passagem”, pois a virtualidade temporal, aqui, incorpora-se a tudo o que diz respeito a uma mudança de estado, à travessia – vida/ morte. A fotografia, por ser um recorte do mundo, a captação de um momento único do universo, de uma maneira ou de outra, sempre lida com a virtualidade temporal, mesmo que essa questão não esteja estampada de forma explícita na imagem (como é o caso do equilibrista). Ela, de fato, se presta de forma fantástica a esse tipo de elucubração, por sempre permitir uma brecha, sempre deixar algo no ar a ser dito, o que, aliás, configura-se como uma das grandes características surrealistas. Uma fotografia jamais se encerra dentro de si própria, jamais se fecha em um universo unívoco e unilateral. Ao contrário, constitui-se sempre como uma obra em aberto, permeada por vasos comunicantes, em que o espectador é tão parte da produção e da autoria da imagem quanto o próprio fotógrafo, o que conduz a fotografia a uma grande surrealidade, uma vez que cada espectador desdobrará a imagem de maneira particular, por ter acúmulos de experiências diferenciadas.

X – O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA Pensar em tempo fotográfico é pensar em passagem, transposição de estados, latência/ revelação, vida/ morte, que, em fotografia, adquirem a capacidade de conviver não de forma paradoxal, mas complementar e, mais do que isso, de inter-relacionar-se a tal ponto que uma não encontra sentido sem a outra. A toda essa concepção incorpora-se o significado da luz, em fotografia. Não há como exercer a atividade fotográfica sem que haja luz, pois ela é vital, é elemento primeiro como ferramenta de trabalho. A luz, em fotografia, desempenha idêntico papel que o oxigênio em nossas vidas, pois sem oxigênio não há como sobrevivermos, é ele que nos dá a vida e também nos tira a vida, já que todo o nosso processo de envelhecimento provém da oxidação de nossas células, da “corrosão” provocada pela ação do oxigênio em nosso organismo (por mais paradoxal que possa parecer, o mesmo elemento que nos dá vida, nos tira!). A luz se processa da mesma forma. Uma vez captada, impressa na película e guardada como imagem latente, deverá ser evitada, rechaçada, pois haverá o risco de, literalmente, essa luz destruir (matar) a imagem a ser manifestada. Além disso, a luz deverá sofrer uma série de controles para trabalhar efetivamente como geratriz de imagem, pois o seu excesso (ou a sua falta) no momento em que atinge a película poderá, igualmente, destruir, fazer desaparecer a imagem, configurando-se, aí, de maneira mais clara a metáfora do oxigênio. A fotografia constitui-se como escritura feita pela luz, que é o seu princípio ativo, acionador de todo o seu processo. A luz, em fotografia, nos faz lembrar o mito Jano, um dos antigos deuses romanos, representado por dois rostos opostos. O seu nome já o designa como passagem, tanto espacial quanto temporal. Espacialmente, tem como representação a porta, que implica sempre dois lugares, um que se deixa e outro em que se penetra (por isso a sua imagem ter dois rostos, duas frentes); e, temporalmente, carrega o símbolo de princípio, o mês Januarius lhe é atribuído, ponte entre o ano que findou e o que está a começar. Jano é uma “divindade circular”, sendo o início o seu próprio fim. É reflexivo por desdobrar a sua imagem, pois, da mesma forma, recebe-a de volta para o início de um outro ciclo. A luz, em fotografia, apresenta a mesma duplicidade, sendo início de tudo e, concomitantemente, o seu próprio potencial destruidor, aniquilador de tudo o que fez construir. Tem-se, então, a irrefutável condição da imagem fotográfica: pela luz gerada (início), pela luz destruída (fim). Uma vez a luz presentificada, marcada a sua aparição inicial, qualquer nova manifestação apontará para o fim do que foi o seu próprio início. Assim, a luz compreende, intrinsecamente, a sua negação, e é essa condição de negação que acaba por ser a sua grande força motriz, pois gera em si o seu grande enigma e, conseqüentemente, torna a imagem fotográfica tão reflexiva.

A metáfora da luz fotográfica extrapola, transcende a linguagem artística e incorpora-se em nossas vidas, pois vivemos, diariamente, o mesmo drama da película e da imagem fotográfica. Somos todos os dias assolados, banhados pela luz do sol que nos dá a vida e que nos proporciona o verdadeiro espetáculo da visão, pois é a sua luz que nos faz enxergar o mundo. Paradoxalmente, é justamente essa mesma luz que tudo pode escurecer, levando-nos à total escuridão, se nela fixarmos o nosso olhar. Somos remetidos às trevas pela falta e pelo excesso da luz do sol. Assim, o sol. Cumpre sobre nós, surrealisticamente, a mesma trajetória de duplicidade feita pela luz, de maneira generalizada, em relação à imagem fotográfica – tanto pode compreender vida quanto morte para o nosso olhar; tanto nos traz a claridade quanto pode nos trazer a escuridão. O sol nesse caso, realiza a grande ligação, ou melhor, a “re-ligação” (re-ligião) entre as trevas e a claridade, por isso não podemos olhar diretamente para ele sem correr o risco de ter somente trevas. Nesse mesmo domínio, evocamos e deixamo-nos seduzir pelos objetos de Marcel Duchamp. Ao mesmo tempo em que ele tenta desvalorizar a arte enquanto um fazer, ao materializar a sua idéia através dos objetos visuais, como os ready-mades, por exemplo, toda a ironia incorporada a eles acaba negando o seu próprio conceito de idéia, por apresentar-se como crítica. Duchamp, a todo momento, joga com o paradoxo, com a ambivalência de sentidos. A sua arte configura-se, no fundo, com a negação de si própria, sendo, ao mesmo tempo, a negativa do fazer artístico e do seu próprio conceito de idéia e constituindo-se como a metáfora da luz na imagem fotográfica. Esta ambivalência de Duchamp torna-se mais explícita quando da realização de “O Grande Vidro”, até porque o vidro, por si só, já traz o paradoxo de afastar e unir (o vidro nos possibilita enxergar o que está do outro lado, e permite a ligação visual e/ ou espiritual a algo que ele mesmo separa), principalmente nesse caso, em que a obra é realizada no próprio vidro. Como havia comentado anteriormente, “O Grande Vidro” é acompanhado, paralelamente, de toda uma descrição em que Duchamp narra, minunciosamente, a presença de diversos objetos e personagens que estão compreendidos na obra, mas que não estão explicitamente, representados. Dentre esses personagens, a noiva é colocada como uma das figuras centrais; por isso mesmo, prendemo-nos à sua pseudopresença de forma ambígua. Na realidade, não há uma presença propriamente dita, pronta a consumirmos e contemplarmos como imagem dada, já pronta. O que há, na verdade, é um vislumbramento, uma aparição de algo a ser decifrado e que, por isso mesmo, está diretamente ligado aos nossos sentidos. O que ocorre de fato são rápidas aparências que se manifestarão à medida que os nossos sentidos (e, obviamente, os nossos desejos) estiverem predispostos à sua presença, e que logo desaparecerão. A noiva é, portanto, uma idéia que se nega e se destrói a cada aparição, continuamente aniquilada a cada nova manifestação, quando não conseguimos detê-la como

presença, mas como simples aparição que a cada momento deverá ser refeita por nós para termos a sua aparência. É esse jogo de ambivalência o enigma da presença-ausência, da construçãodestruição (assim como a luz em fotografia) manipulado por Duchamp, que faz a sua obra tão hermética e reflexiva que, conseqüentemente, nos faz sair da condição de meros contempladores, voyeurs, para, efetivamente, participarmos da sua elaboração. O fenômeno psíquico de passagem que vivenciamos em uma situação de latência fotográfica é paralelamente acompanhado e só existe frente ao fenômeno de mudança do estado físico da luz, visto que, uma vez apreendida, a luz só será imagem na extremidade final do processo, quando a química se sobrepuser a ela. O papel desempenhado pela luz no desenvolvimento da realização de uma fotografia como um todo adquire um caráter de extremos, em função da relação que ela mantém com o fotógrafo. Há, de fato, uma procura incessante da luz para que a sua inserção sobre a película possa gerar a imagem desejada, mas uma vez estabelecido esse laço afetivo de tamanha entrega e intensidade e o obturador acionado, ou seja, consumado o ato de amor, a relação esvazia-se por completo, tomando um rumo diametralmente oposto. O fotógrafo agora passa a ter verdadeira ojeriza, repugnância a qualquer raio de luz, configurando-se mesmo numa verdadeira neurose. Uma bateria de verificações e checagens percorre a sua cabeça, motivado pelo pânico de a imagem ser destruída exatamente pelo que a gerou. Será que a câmara está, realmente, vedada o suficiente para que nenhum facho de luz venha penetrá-la? Será que o filme está totalmente rebobinado ao se abrir a câmara para retirá-lo? O laboratório está de fato em completa escuridão? Haverá vazamento de luz no tanque de revelação? Os papéis fotográficos estão devidamente protegidos em suas embalagens? Em suma, todas essas questões e muitas outras relacionadas aos cuidados com a luz certamente já passaram em algum momento pela cabeça de um fotógrafo. Há realmente uma relação de amor e ódio, assim como na vida, em que se tem ódio somente de quem realmente se ama, ou seja, para o fotógrafo, a luz identifica-se como os dois lados de uma mesma moeda. Fotografia é, ao mesmo tempo, de uma só vez e complementarmente, corpo físico e corpo químico. Dois estados coabitam, transfiguram-se um no outro como o intuito de garantir a sobrevivência, caracterizando, assim, materialmente, a vivência psicológica que temos da passagem do que acontece em um nível inconsciente para o racional. Conforme vimos, o ato fotográfico em si, este exato momento em que o obturador é acionado, configura-se de maneira mais próxima a uma atitude inconsciente do que propriamente racional, haja vista a impossibilidade de se manter o total controle de tudo o que acontece diante da cena a ser captada. Por mais sofisticados que sejam os aparatos técnicos e por maior que seja a atenção e o controle psicológico do sujeito que fotografa, há sempre algo que

escapa e que foge do nível racional, algo que não conseguimos ou não queremos ver com os olhos da realidade consciente. E é esse lapso, essa “falha” que, muitas vezes, dá consistência e qualifica a imagem. Tanto é assim que, freqüentemente, nos surpreendemos com o resultado final do trabalho, com o que, de fato, a fotografia após revelada nos mostra. A passagem que se efetua do ato fotográfico em si para a fotografia já pronta não deixa de ser passagem do inconsciente para o consciente. A fotografia, de forma bastante interessante, materializa essa travessia por meio da luz e da química. Todo o aspecto inconsciente que permeia o momento em que o obturador é acionado é efetivado sempre (nunca de outra forma) pela luz, enquanto que a racionalização, a mudança desse estado de fantasias e imaginações, diante da imagem já pronta, só poderá ser concretizado através da química. Em outras palavras, em fotografia a luz caracteriza-se como o inconsciente, enquanto a química como o consciente, e ambas, por coabitarem o mesmo espaço e qualificarem o mesmo universo, presentificam a surrealidade embutida na fotografia, que nada mais é do que a manifestação inconteste da convivência mútua entre o consciente e o inconsciente. A analogia que acabamos de fazer, relacionada à surrealidade existente na convivência mútua entre dois estados materiais diferentes (luz/ química) no mesmo universo da película fotográfica, pode ser encontrada, de maneira similar, nas pinturas de Dalí, em sua fase paranóico-crítica, não mais através de estados materiais e sim por meio de estados psíquicos diferentes. Dalí, nesses casos, realiza uma síntese entre o real e o imaginário, propondo a sua desarticulação por parte do espectador. Os seus quadros da fase paranóico-crítica apresentam, normalmente, dois veios a serem percorridos. Primeiramente, Dalí utiliza-se de todo o seu virtuosismo técnico para nos dar uma imagem de total compreensão, dentro do mais puro figurativismo estético, o mais próximo possível da nossa realidade racional. Em meio a essa primeira fase representativa, Dalí compõe outras figuras e objetos entremeados, a princípio imperceptíveis. Assim, temos várias imagens compreendidas em níveis diferentes, adentro de um mesmo universo espacial, no caso a tela. Tudo agora dependerá do espectador, que desdobrará a cena representada de acordo com o seu manancial de experiências acumuladas. Em uma primeira visada, ficamos absortos na extraordinária e fantástica plasticidade que essas imagens apresentam, tamanha a versatilidade e, portanto, proximidade com a natureza das coisas. Em uma segunda instância, no entanto, obviamente se for do interesse e do desejo do espectador ater-se de forma mais profunda à cena representada, começaremos a desvendar o que há nas entrelinhas, o que está por trás daquela imagem primeira, nítida e chapada. Passaremos a vislumbrar um universo infinito de associações de imagens. Nesse momento, estaremos transpondo a barreira do racional e adentrando no mundo das articulações inconscientes, a partir do qual desdobraremos a cena

representada em tantas outras imagens quanto estivermos predispostos a fazê-lo. Dalí em sua fase paranóico-crítica dispõe, em um mesmo espaço representativo, coabitando de forma integrada (assim como no caso da fotografia), elementos que fazem parte nitidamente da realidade racional, que são aqueles de apreensão imediata, objetiva e direta, com elementos direcionados à realidade inconsciente, instigadores do nosso sistema de autodefesa. Basta, então, a nós, espectadores, fazermos a passagem do que está latente ao que será manifesto, de realizarmos uma verdadeira transfiguração que partirá de uma imagem figurativa identificada com a realidade cotidiana, e que nos remeterá às inúmeras associações de imagens que, a princípio, estavam em potencial, sem serem reconhecidas, em imagens agora manifestas através do nosso inconsciente. Constata-se aí a surrealidade dalineana, por surgirem em um mesmo espaço de articulação as instâncias racional e inconsciente concomitantemente, assim como na película fotográfica. A ambivalência físico-química da imagem fotográfica reflete-se na ambivalência psíquica dalineana e a absorve novamente, metaforicamente, como a caverna de Platão, de maneira enriquecida e iluminada, uma vez que a instância material da linguagem fotográfica nada mais é do que a ratificação, a confirmação palpável de todas as articulações vivenciadas por nós a nível inconsciente. Talvez o mais puro ideal surrealista, tão exaustivamente procurado por André Breton em todos os seus manifestos, esteja sub-repticiamente cristalizado na fotografia, em transe com a pintura. Walter Benjamin (1892-1940) já apontava para um “inconsciente ótico” existente em cada um de nós, o qual só é manifesto através da fotografia. Benjamin estava aí a falar das diversas experiências e atitudes que vivenciamos inconscientemente, mas que só são percebidas e flagradas pelo olhar da câmara. É como se a fotografia possibilitasse a revelação do “inconsciente ótico”, tornasse consciente, fizesse surgir o vivido, enfim, desse forma, geografia, ao que era apenas experimentado. Segundo Benjamin: “A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude através de seus recursos auxiliares. Só a fotografia revela esse inconsciente pulsional.” (BENJAMIN, Walter – O b r a s Escolhidas, p.94)

Essa aparição, visão do inconsciente de que estamos falando, só é possível através da luz, a grande intermediária de todo esse processo. Conforme Giordano Bruno, “para que a visão seja constituída não bastam o olho e o objeto a ser olhado, é necessária uma intermediação que é a luz”. Por tratar-se de ponte, mediadora entre duas instâncias, a luz

comporta-se tanto como remédio quanto como veneno. Remédio por proporcionar a emersão, realizar a verdadeira esporulação, por dar origem e forma às vivências e experiências que são apenas sentidas, mas que ainda não foram localizadas e articuladas; remédio também, no sentido de “curar”, preparar e tratar a película fotográfica para se chegar à imagem desejada (a película, para deixar o seu estado cru, original e tornar-se imagem, atinge a cura pela luz, a “fotocura”), assim como no sentido filosófico e psicológico de fazer vir à tona todos os nossos sonhos e desejos, inscritos através de imagens. Paradoxalmente, nesse mesmo sentido ela se torna veneno, por matar justamente o que lhe deu vida, pois se a luz se faz remédio pelo fazer surgir, assim o é devido aos impulsos inconscientes, que, imediatamente, são aniquilados como tais, a partir do exato momento de sua materialização. Desse modo, a luz trabalha para dar vida e morte ao inconsciente. Todo esse intrincado embate vivenciado em função da luz apareceu também, interessantemente, na 2ª fase do Movimento Surrealista que presentifica a Primavera do mito grego Perséfone. Após ter sido raptada, Perséfone, a “Rainha dos Infernos”, comeu três grãos de romã, o que a ligou, definitivamente, ao reino das sombras. Deméter, sua mãe, que saiu desesperada à sua procura, com um archote em cada mão, só retornou ao Olimpo (monte considerado como a morada dos deuses) com a promessa de que, a cada primavera, Perséfone voltaria à luz. O Surrealismo cumpre, assim, o mesmo ciclo percorrido por Perséfone. Para chegar à luz, portanto, foi preciso que a “Rainha dos Infernos” permanecesse um longo período na escuridão – a luz só lhe foi possível, só lhe foi concedida a partir da escuridão. É essa escuridão, entremeada de mistério e sabedoria, que nos interessa como reflexão, frente ao contraponto da visualidade e da luz, vitais à linguagem fotográfica.

XI – O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Refletir sobre instâncias opostas como luz e escuridão sempre gerou infindáveis discussões, principalmente em se tratando da sociedade ocidental, que, continuamente, privilegiou tais instâncias como entidades paradoxais, contraditórias e não complementares e inter-relacionais. A escuridão da cegueira, talvez por envolver-se de intenso mistério, tem sido, ao longo da história, palco de inúmeras considerações e estudos. A visão do cego historicamente E meio à preparação de sua E n c i c l o p é d i a , Diderot formulou um tratado relacionado a essa discussão em suas “Cartas sobre os cegos para o uso dos que vêem”, em que, interessantemente, a cegueira é examinada exatamente no Século das Luzes. Paradoxalmente, o cego presentificou-se como emblema do “Homem da Luz” justamente por participar, por estar imerso em regiões a que outros não têm acesso. O cego carrega um saber diferenciado, vê de outra forma e, como tal, sempre surpreende, por olhar com os olhos de um mago que está pronto a revelar algo que só a ele cabe e que só ele conhece. Já no século VI a.C., um dos primeiros poetas gregos, Homero (que era cego), era tido como o “mestre da verdade inacessível”. O cego Tirésias, da peça Antígona, de Sófocles, era vidente; mais recentemente, no século XX, podemos falar do escritor argentino Jorge Luis Borges, que ficou cego nos anos mais produtivos de sua vida literária, deixando uma obra de extraordinário valor pela visão filosófica e metafísica que tinha da vida. Todos eles, dentro das suas diferentes temporalidades, representavam sábios diferentes, apontavam para uma nova ordem filosófica, baseada em uma nova maneira de se perceber o mundo. Ao mergulharmos um pouco mais fundo no século XVIII e em seu Iluminismo, percebemos que os seus próprios teóricos incorporaram a escuridão em seu pensamento, levando-nos a crer que a luz (a razão) associava-se à escuridão para fazer dela o seu próprio fermento, ou seja, que o caminho para se chegar à razão (à luz) deveria, necessariamente, passar pelas trevas. Quando Diderot coloca Saunderson, um cego de nascença, como personagem principal de seu livro, identifica a sabedoria com a escuridão, inclusive reforçando a sua formulação ao colocá-lo como um geômetra (nada mais paradoxal para nós, que enxertamos, do que um geômetra cego). A outra leitura, que faz parte do mesmo pensamento, seria a de que Diderot, através do Saunderson, nos fala da insipiência, da superficialidade e, mesmo, da vaidade daqueles que vêem, principalmente dos que vêem demais. O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental

O sentido do “ver demais” acaba por atualizar, por inserir o pensamento de Diderot na contemporaneidade, porque vivemos, hoje, a cegueira por vermos demais. A nossa civilização privilegia, acima de tudo, o olhar , mais que qualquer outro sentido. No mundo grego, pré-socrático, o mundo do mito, o homem é levado pela força da música (Mellus). Percebendo que ela se destrói, se dissolve, o homem trata de criar Apolo, representante da imagem, para se ater a uma aparência, para buscar a sua estabilidade, para se perpetuar no mundo e, então, não desaparecer. A partir daí, a nossa civilização passa a valorizar a imagem, o visual, o que vem do olhar, e desde então temos sido, pouco a pouco, e cada vez mais, envolvidos por imagens, principalmente após a Revolução Industrial. Em função da pressa, da agilidade com que as coisas acontecem no mundo, a cultura ocidental contemporânea passou a ser calcada na fragmentação (o cubismo já apontava esse caminho), na redução do todo, buscando na fração, no fragmento, a síntese, o máximo de informação, num mínimo de tempo despendido. Nesse sentido, o texto, a literalidade passou a sucumbir frente à imagem, e desde então temos sido abarrotados, literalmente “metralhados” por toda sorte de imagem, a todo momento. Assim, ironicamente, a contemporaneidade nos coloca diante do mesmo impasse vivido pela fotografia (uma de suas filhas mais rebeldes) diante da luz – o excesso como fator destruidor, aniquilador e paralisante. Quando nos defrontamos com o imenso acúmulo de imagens a que somos submetidos, corremos sério risco de nada vermos, da saturação tornar-se prenúncio da não-absorção e metafórica e paradoxalmente, da própria escuridão. Essa talvez seja a verdadeira cegueira, pois ao contrário daquele que, de fato, não enxerga, temos sido privados do nosso sentido de visão seletiva, e nem por isso nos aguçamos, nos esmeramos em nossos outros sentidos. Ao contrário do que deveria acontecer, encontramo-nos progressivamente mais embotados, indiferentes e apáticos, e esse estado letárgico, por comprometer a nossa visão, faz da fotografia um verdadeiro instrumento seletivo daquilo que se vê, ou melhor, do que se quer ver e não se consegue. De outra maneira, poderíamos dizer que o olhar passou a ser de tal forma privilegiado em nossa cultura, que os outros sentidos atrofiaram-se ou não se desenvolveram o suficiente. Quando o próprio sentido visual torna-se velado pelo excesso do que há para ser visto, deparamo-nos de frente com todas as nossas fragilidades sensitivas e, conseqüentemente, com uma brutal dificuldade em reagir às intempéries do mundo moderno. Dentro deste contexto específico, o cego (aquele que, de fato, não possui o sentido da visão) não apenas integra-se à contemporaneidade como interage com ela de maneira muito mais intensa. Justamente por encontrar-se privado do sentido de maior valoração em nossa cultura é que o cego potencializa todos os seus outros sentidos e, conseqüentemente, a sua relação com o mundo passa, obrigatoriamente, por canais diferenciados. A sua noção de tempo, de espaço e toda a sua atitude diante das coisas do mundo são trabalhadas em função

dos sentidos extremamente aguçados de que dispões. Por isso ficamos tão perplexos ao percebermos a interação do cego com o meio em que vivemos. Ao cego, no entanto, falta a luz, e “para que a visão se constitua torna-se imprescindível a mediação da luz” (G.Bruno). A escuridão, portanto, seria a própria negação da fotografia, a sua maior antítese, já que a sua existência depende, irredutivelmente, do que vem da luz. Não por não ter a luz, mas por não vê-la, é que o cego constitui-se teoricamente, como o grande paradoxo da fotografia, que, necessariamente, exige a visão. Mas qual é essa visão? Será que a visão de que fala a fotografia está conectada, única e exclusivamente, ao olhar, isto é, ao poder da visualidade em si? Evgen Bavcar Se todas as reflexões, por mais pertinentes que sejam, v em ensejar qualquer dúvida a respeito do que foi dito acima, faz-se necessário tomar conhecimento da obra do fotógrafo cego esloveno Evgen Bavcar. Neste momento, abandonamos o universo da visão do olho para penetrarmos na visão sensitiva. Bavcar é o fotógrafo da sombra, não da luz; é a própria redundância por ser, como ele mesmo diz, “uma câmara escura atrás de uma câmara escura”. Na verdade, o que ele faz é inverter o processo da caverna de Platão, a fim de nos provar que é preciso um retorno à escuridão para que se possa voltar, efetivamente, a enxergar, e para que, na escuridão das trevas, as pessoas possam encontrar as imagens que realmente procuram. Conforme pudemos refletir anteriormente, a fotografia carrega algo de vidente em sua linguagem, aponta para algo que os olhos comuns não vêem, revela para o futuro situações imperceptíveis e que escapam à realidade cotidiana, principalmente à contemporânea, já tão impregnada e poluída visualmente, na qual pouco se pode ver, não somente pelo excesso do que há para se ver como também pela crescente padronização das imagens com as quais nos deparamos. Essa vidência fotográfica à qual nos referimos nada mais é do que o resultado lógico da ansiedade vivida pelo homem contemporâneo. É como se ele tivesse encontrado na fotografia a sua própria redenção, o veículo necessário para reencontrar a imagem perdida, enfim, tivesse adquirido olhos contemporâneos, uma vez que o homem passou a ter, necessariamente, de reavaliar todo o seu processo de visão, selecionar as imagens a ele impostas, de modo a não sucumbir perante o clichê e não perder a sua identidade diante da massificação. Assim, fugindo da cegueira contemporânea o olhar retoma um outro caminho, realiza uma espécie de assepsia, no sentido de afastar tudo o que é excesso, tudo o que é retórica, impondo a si mesmo um processo de reeducação. O olho, então, mais seletivo, mais esmerilhado, encontrar-seá capacitado a ver o que outros não vêem, ou mesmo, o que ele antes não via. Esse processo, portanto, em função da apuração

do olhar, leva ao que estamos chamando de vidência, de ver o invisível. Por mais contraditório que possa parecer, o olho, para efetivamente ver, deve aproximar-se cada vez mais da redução, de algo minimalista, em franca oposição à redundância, e Bavcar leva essa proposição às últimas conseqüências. Mais do que realizar um processo de redução, ele é a própria redução, a própria negação da visualidade, faz verdadeira “tabula rasa” do que é o olhar. Com ele, há o rompimento da barreira da apuração máxima do olhar por materializar a visualidade através da fotografia, estando, literalmente, na escuridão. Bavcar vê o invisível, mas o invisível para nós, que enxergamos, pois ele vê de forma diferente, sem fazer da fotografia uma atividade reprodutora da natureza. A partir do momento em que um cego realiza ensaios fotográficos, toda e qualquer discussão em torno da fotografia ser ou não mimese da realidade cai por terra. A sua postura diante da fotografia, a maneira como ele lança mão dessa linguagem é única e exclusivamente de forma criativa, materializando e dando formas às imagens através de um processo de construção, elaborado em sua imaginação via sensações adquiridas. Talvez aí esteja o ponto nevrálgico da autonomia tão procurada pela fotografia, que parece estar se autodriblando (pois que há, de fato, a “finta”, mas ainda prevalecendo o total controle do meio). O cego e a questão mimética da fotografia Quando os fotógrafos pictorialistas tentaram, a todo custo, retirar da fotografia o pesado fardo que lhe tinha sido imposto, que era o de ser o mero “espelho da realidade”, acabaram por torná-la um verdadeiro pastiche da pintura, de cujos princípios ficou dependente e servil. De lá para cá incontáveis discussões e questionamentos relacionados ao jugo da fotografia à realidade e à pintura têm sido levantados, embora essa discussão já tenha se esvaziado por si mesma, pois vivemos hoje uma época das artes visuais, em que as linguagens artísticas não se percebem mais de forma cindida, seccionada, mais inter-relacionada (hoje o conceito de “artes visuais” é bem mais apropriado do que o de “artes plásticas”, haja vista a total inter-relação entre as linguagens, a imensa impregnação de uma linguagem em outra, e o fato de o suporte, a materialização e a desmaterialização estarem sendo tão amplamente discutidos). Evgen Bavcar dá um passo fundamental em torno de toda essa discussão ao exercer o seu processo de criação através da fotografia, ao mesmo tempo afastando-a de toda e qualquer submissão tanto em relação à pintura, conforme o conceito dos pictorialistas, quanto em relação à realidade. Ele se utiliza da luz que a natureza lhe proporciona (e que lhe foi negada) para construir a sua arte, tendo a fotografia como veículo, não fazendo dela um meio para repetir a realidade. Por faltar-lhe o sentido da visão, tudo passa a ser pura criação, o que afasta a conceituação mimética imposta à fotografia

desde a sua criação, e que, porventura, ainda possa permanecer entre os menos atentos. A fotografia, aí, é livre, plenamente independente, desprovida de qualquer amarra, seja ela no sentido conceitual ou moral. É interessante observar a plena autonomia da fotografia (linguagem eminentemente visual) aparecendo justamente na abstração da visão, como se tivesse havido a necessidade de se limpar total e completamente a visão do olhar, realizar a sua inteira despoluição, para se chegar à sua plena liberdade. Enxergar não pode caracterizar-se como um processo meramente visual, pois seria banalizar, superficializar em demasia a condição humana. Homero, Tirésias de Sófocles, Borges e tantos outros entraram para a história, e de alguma forma influenciaram na transformação das sociedades em que viveram, privados do sentido da visão. Nesse contexto, podemos falar também de Bavcar, por ele ter tido a ousadia de resgatar a questão do sentido da visão em uma sociedade como a nossa, extremamente racional, calcada nos cânones aristotélicos, em que o ver relaciona-se estreitamente – e, por isso mesmo, reduz-se bruscamente – aos elementos intelectuais e às relações entre as idéias. Bavcar, de uma certa forma, radicaliza a sua contraposição a toda essa cultura, por levantar essa questão justamente através da linguagem que exige o olhar como o elemento ativo. Por não possuir a visão, a postura e a relação do cego com o mundo passa não apenas pelos outros sentidos já tão aguçados, como pela memória que ele guarda das coisas a partir desses estímulos sensitivos. O trabalho de Bavcar estrutura-se, basicamente, em função do conceito da memória conectado aos sentidos, não a memória conceitualmente histórica e usualmente tratada por nós. Assim como as pessoas que enxergam possuem a memória visual das coisas (muitas vezes tida como “memória fotográfica”), o cego exercita a sua memória através do olfato, da audição, das sensações de frio e quente, do sopro do vento sobre as coisas (Bavcar costuma dizer que fotografa contra o vento para perceber a forma e a posição das coisas) e, principalmente, através do tato, que pode tornar-se extremamente refinado em decorrência de constantes exercícios. Assim, percebemos em Bavcar a própria totalidade do artista, a plena inserção e integração no trabalho, uma vez que o seu processo de criação passa, essencialmente, tanto pelo corpo quanto pelo espírito, por todos os sentidos e pela mente. Assim como Picasso por meio de “Máscaras Africanas”, “Guitarra”, “Demoiselles D’Avignon” e tantos outros trabalhos revolucionou a cultura ocidental ao negar qualquer tipo de hierarquia entre os objetos (orgânico e inorgânico) e entre os valores provenientes do Oriente e do Ocidente, Bavcar afasta a noção de subordinação e hierarquia entre o racional e o inconsciente, exercendo, de fato, a plena surrealidade. Ao visitar a belíssima exposição do fotógrafo esloveno no Museu da República (Rio de Janeiro), tive a oportunidade de observar algumas pessoas extremamente mobilizadas pelo que estavam vendo, não apenas pelo fato de aquelas imagens terem

sido captadas por um fotógrafo cego, mas pela própria estranheza das imagens em si. Havia algo desconectado, algo de diferente naquelas imagens, de forma a suscitar tamanhos questionamentos, os quais, em última instância, acabavam por localizar o trabalho como surrealista. Confesso que fui tomado por todas aquelas articulações, a ponto de me perguntar por que tais pessoas haviam associado aquelas imagens ao Surrealismo. O que seria esse “Surrealismo” ao qual se referiam? Estaria esse “Surrealismo” no lugar exatamente de uma falta de definição? (É comum as pessoas fazerem referência ao Surrealismo quando estão diante de algo estranho, diferente.) Penso em que deslocamentos, na realidade interna de cada uma daquelas pessoas, tais imagens poderiam ter provocado para que elas passassem a reagir com tamanha estranheza. Certamente, em alguma instância algo rompeu-se, desfezse na relação entre a realidade racional do espectador e a vivência inconsciente experimentada diante daquelas imagens, para que houvesse tal mobilização. Não acredito que as características técnicas das fotografias (ângulo de tomada, pontos de vista bastante insólitos, em alguns casos, perda da profundidade de campo, sobreposição de planos etc.) por mais que apresentem aspectos realmente incomuns, possam ter sido o fator determinante para o questionamento. Creio que poderíamos pensar em algo mais além, em algo que, a princípio, estaria velado, escamoteado por trás do exotismo técnico, mas que, talvez, possa ter servido de estopim, de elemento desencadeador, e por isso de gancho de união e mobilização com o espectador. Primeiramente, é preciso atentar para a extrema dificuldade que temos em admitir e absorver algo que venha caracterizar-se como uma visão nova e diferente do mundo, e Bavcar coloca isso de imediato, até porque ele, realmente, vê diferente. Enquanto a nossa visão é truncada, afastada e carregada de uma imensidão de vícios, críticas e regras, haja vista toda a teorização que trazemos desde o Renascimento, a visão do Bavcar é total e participativa. Nela, corpo e mente são acionados de uma só vez, interagindo constantemente um com o outro e proporcionando, desta forma, uma imagem liberta, isenta do vício cultural, moral, e racional, vinda do exterior. Se as suas fotografias são realmente diferentes das que normalmente encontramos, se causam tamanho espanto e perplexidade, é justamente porque a sua visão é mais profunda, mais completa, realizada de dentro de cada situação, uma vez que não são “tiradas” em decorrência de apenas um dos nossos sentidos (a visão). Para nós que enxergamos, fotografar pode depender única e exclusivamente da visão, e, obviamente, de um mínimo de conhecimento técnico, enquanto que para um cego esse processo certamente terá de envolver a memória sensitiva captada de vários sentidos, aliada a uma profunda percepção inconsciente do mundo. Assim sendo, não há dúvidas de que o envolvimento e o investimento colocados em uma fotografia realizada por um

cego são, incomparavelmente, maiores do que as que executamos e, por isso mesmo, ela parece tão diferente para nós. Ao fotografar, o cego efetiva a síntese do Surrealismo, atua a plena comunhão entre a realidade racional existente, que lhe serve como referencial e índice, e a realidade inconsciente, que, intrínseca, faz parte do seu universo em trevas, que só a ele pertence. A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelo cego Quando refletimos a respeito do momento mágico em que o obturador é acionado, momento único, capaz de integrar naquele décimo de segundo a síntese surrealista, pois este é o instante em que o espelho se fecha proporcionando a escuridão, quando mergulhamos na instância inconsciente (em harmonia com a instância racional da realidade dada), estamos nos referindo ao universo do cego, ao único momento em que experimentamos, embora de maneira tênue, a vivência do cego. Dessa forma, Bavcar não apenas vive a escuridão, como é o próprio espelho fechado. O que, para nós, passa-se em alguns décimos de segundo, para ele identifica-se com a sua própria existência. A escuridão lhe proporciona um estado natural de constante vigília inconsciente. Diríamos que ele representaria o nosso “negativo”, por percorrer um sentido inverso ao nosso, pois enquanto nós, para realizarmos uma fotografia, temos, de antemão, a realidade racional dada e saímos em busca do décimo de segundo da nossa escuridão (instância inconsciente), Bavcar já parte da sua própria escuridão, ávido pela realidade racional. Assim, o seu percurso, ao fotografar, compreende uma carga inconsciente extremamente acentuada, o que lhe confere uma visão diferenciada do mundo. A condição do cego, enquanto fotógrafo, identifica-se de certa forma com os “Penetráveis” de Hélio Oiticica31 e com os “Contra-Relevos” do artista russo Vladimir Tatline, um dos elaboradores do Construtivismo russo. Os “Contra-Relevos” são planos abertos e vazados cujos espaços internos compreendem o mesmo espaço externo (exterior) do espectador. Então o que é o espaço interior dele? É o meu espaço exterior. Não há, portanto, espaço interno e espaço externo, tudo é uma coisa só, ou seja, o “Contra-Relevo” está totalmente imerso no ambiente em que se encontra e que o qualifica. Enquanto o relevo nos passa a ilusão da saliência, do estar para fora, o “Contra-Relevo” se insere no ambiente. A postura do Bavcar, 31

Hélio Oiticica : artista brasileiro (1937-1980). Transformava os processos de arte em sensações de vida. Considerava como “problemas sensoriais básicos aqueles relacionados à sensação de estímulo-reação condicionados a priori ”. Para ele, a “participação sensorial” deveria ser relacionada a um sentido supra-sensorial, no qual o participante iria elaborar dentro de si mesmo suas próprias sensações.

ao fotografar, é justamente a da plena inserção, em que o nosso espaço externo caracteriza-se como o seu espaço interno, exatamente como o “Contra-Relevo”. Para Bavcar, os espaços interno e o externo fazem parte de um mesmo universo, não havendo diferenciação entre ambos, uma vez que “o seu lugar é o de dentro”, o da plena imersão no ambiente, e é precisamente essa postura que o leva a participar da contemporaneidade de forma tão absoluta. Se observarmos um pouco o desenvolvimento da sociedade ocidental e o seu percurso até o atual momento em que nos encontramos, podemos perceber que o homem sempre buscou uma dualidade (sujeito/ objeto, tempo/ espaço, corpo/ alma), identificando, assim, uma cisão ao se afastar do mundo e, conseqüentemente, de si próprio. O mundo encontrava-se lá fora, e o homem, postado à distância, observava todos os acontecimentos e fenômenos de forma racional, sem qualquer envolvimento direto. Não é por acaso que a pintura (reflexo da sociedade) manteve-se praticamente, durante quatro séculos (do Renascimento a Cézanne) representando a figura destacada do fundo. Partia-se do pressuposto de que havia uma estrutura preconcebida do espaço onde o objeto era, então, inserido, e a garantia de que, naquele espaço, haveria a inserção de um objeto, o que nos leva a pensar que, ao se pintar primeiro um fundo e depois a figura, o homem se pressupõe num mundo em que há uma estrutura prévia a qualquer acontecimento, com uma ordem espacial garantindo os acontecimentos do mundo. Essa atitude aponta para uma total falta de integração do homem com o mundo (falta de integração figura/ fundo). Somente nos finais do século XIX, com Cézanne, é que essa relação do homem com o universo em que vive começa a aparecer de forma diferenciada. Cézanne passa a trabalhar na tela experiências percebidas a partir de uma nova qualidade no relacionamento homem/ mundo, pois passa a ser a tônica da arte contemporânea a proximidade, a interação. Até o século XIX, os mecanismos da cultura ocidental tentaram, o quanto puderam, manter distantes a intelectualidade e tudo o que pudesse remeter à emoção e à afetividade, estigmatizando o desenho como o representante da racionalidade (intelectualidade) e a cor como pertencendo à emoção. Esses universos eram postos à parte com o intuito de sustentar o distanciamento do homem em relação ao seu universo. Historicamente, ou se era desenhista, pertencente à escola florentina, ou se era colorista, segundo a tradição veneziana. Na realidade, essa conceituação arrastou-se até as proximidades do Impressionismo, que trabalhava, exclusivamente, a sensação visual através da cor, abstraindose de uma maior estruturação do quadro. Matisse, que certamente bebeu na fonte dos trabalhos de Gauguin, quebrou o ciclo estabelecido ao construir os seus quadros, racionalmente, através da cor. O equilíbrio, embora extremamente instável, verificado em seus trabalhos, vem da construção racional das massas de cores no plano (ora “esfriando”, ora “esquentando” as cores), sendo que a cor, aí, representa também o intelectual, não estando, apenas, a

serviço da pura emoção. Matisse chega à extrema síntese desenho/ cor quando passa a realizar a découpage, que são os recortes em papel colorido, os quais eram compostos e colados. Há, aí, a total integração desenho/ cor, pois forma e cor são, agora, uma única coisa, como se Matisse passasse a pintar com a tesoura e, assim, representasse a total interação do homem com o mundo. O Cubismo, por outro lado, perseguiu a mesma harmonia e equilíbrio, mas pelas vias da intelectualidade, pois objeto e espaço eram integrados através da pesquisa racional, na busca representativa da nova relação de aproximação e participação homem/ mundo. Ao observarmos a obra de Bavcar parece-nos que ele perfaz ambos os caminhos trilhados por Matisse e Picasso ao mesmo tempo, como se ele fosse a própria síntese dessas vertentes. SE, por um lado, prescindir do olhar lhe rouba o veículo privilegiado pela nossa civilização, por outro lhe confere a plena integração, o que o coloca no cerne do embate contemporâneo, que é a divisão, o afastamento entre as instâncias racional e emocional, afetiva (em última instância, inconsciente). Bavcar nega todo esse arcabouço construído em função da separação, uma vez que a sua condição não permite o distanciamento imposto pelo sentido da visão, em que não há superficialidade, não há voyeurismo, não há meias palavras, pois que sua visão é dentro, é tátil, é, como disse anteriormente, o próprio “Contra-Relevo” de Tatline. A partir daí, Bavcar nos faz perceber que o seu trabalho é, efetivamente, inter-relacional, que a realidade racional e o inconsciente, que a materialidade das coisas e a sua espiritualidade pertencem a uma mesma hierarquia, em que nada se sobrepõe a nada, pois sujeito/ objeto, figura/ fundo, dentro/ fora, corpo/ alma, tudo carrega o seu próprio grau de luminosidade e reflete o brilho a cada entidade complementar. Assim, a equação Matisse/ Picasso refaz-se no decorrer da obra de Bavcar. A carga inconsciente que permeia de forma intensa o seu trabalho resgata o investimento emocional depositado por Matisse através da cor (por mais paradoxal que possa parecer um fotógrafo cego evocar a cor como uma de suas referências), ao mesmo tempo em que a sua efetivação só se dá se estiver sustentada pela sensibilização de seus outros sentidos que não a visão, adquirida através da materialidade das coisas da realidade existente. Configura-se, aí, a própria estruturação do trabalho, a real construção da imagem, surgindo, então, o referencial da obra de Picasso. Para Bavcar, fotografar é entregar-se, literalmente, de corpo e alma, é perceber-se Matisse e Picasso, é ser-se matéria e espírito, consciência e inconsciência concomitantemente. Por estar dentro, por estar efetivamente inserido, fazendo parte do ambiente que está fotografando, é que as imagens de Bavcar transmitem uma extraordinária carga de materialidade. A cegueira o leva a fotografar através do tato (mais do que qualquer outro sentido), pois ele toca, apalpa o objeto antes de fotografar, fazendo com que o universo ao seu redor torne-se parte integrante do seu próprio universo. Com isso, interpõe matéria sobre matéria à imagem, sem lançar

mão, na realidade, de qualquer tipo de material, o que acaba por aproximar a sua obra fotográfica à pintura. Essa aproximação não se dá de acordo com o que “fotógrafos pintores” no final do século XIX tentaram fazer. Ao contrário de Robinson e Reijlander – que ansiavam por elevar a fotografia ao status que a pintura havia alcançado na época, e que, em função disso, tiveram de abrir mão das características inerentes à própria linguagem fotográfica em prol dos meios típicos da pintura – a obra de Bavcar remete à pintura e interage com ela a partir da sua própria postura diante da imagem a ser fotografada. Ele altera o que seria o nosso ponto de vista porque, na realidade, ele não o tem. O seu deslocamento, por não ter o vício do ponto de vista único, possibilita vários pontos de vista diferentes e, freqüentemente, as suas “tomadas” são angulosas, oblíquas, produzindo imagens cujos planos sobrepõem-se uns aos outros, remetendo a uma materialidade típica da linguagem pictórica, em função das diversas superfícies planares em contigüidade. Aí, sim, a fotografia encontra a pintura sem traumas ou complexos, sem o medo da sua própria descaracterização por querer ser o outro; a partir daí torna-se totalmente inócua a discussão que gira em torno do fato de a fotografia pertencer ou não às artes plásticas, e de ter o status de outras atividades artísticas, de tentar ou não fazer da pintura o sue próprio noema. A obra de Bavcar nos faz perceber que é possível a interação e a aproximação entre as linguagens artísticas, sem que com isso haja a perda da integridade de cada meio, até porque ao evocar, de alguma forma, a pintura em seus trabalhos, reafirma toda uma conceituação e princípios próprios da fotografia, ao mesmo tempo em que deixa-se permear por manifestações externas. Pensar a obra de Bavcar é ver a fotografia por dentro, com tudo o que ela tem de escuridão, sem restrições ou limites; é possibilitar-nos tirar o véu do meio tom, restando-nos o preto e o branco, que, afinal, é a linguagem por ele escolhida para trabalhar. De fato, é bastante coerente, para um cego que fotografa, a escolha pelo processo em preto e branco, pois, afinal de contas, essa linguagem apresenta um grau interpretativo muito maior do que a linguagem em cor. De imediato, a fotografia em preto e branco distancia-se da realidade existente, que é colorida. A relação que mantemos com o meio em que vivemos sempre se deu de forma colorida. Assim, uma fotografia colorida, por pior que seja (tecnicamente falando), encontra-se muito mais próxima da nossa realidade, já apresenta, de antemão, o mesmo código intelectivo da nossa realidade. Por isso a fotografia colorida ser considerada (muitas vezes equivocadamente) mais fácil de se fazer. É como se ela permitisse uma margem de erro muito maior, pois só pelo fato de possuir a cor já encontra ressonância, já possibilita um maior entendimento para o espectador. A cor, no entanto, ao mesmo tempo em que compreende um fator de aproximação com a realidade, pode, por outro lado, banalizar a fotografia, levá-la ao constante

risco da retórica. Em função da maior compreensão da foto colorida, o mercado de consumo passou a ser massificado pela linguagem em cor e, com isso, a “boa” fotografia colorida passou a sofrer um processo de desvalorização artística muito grande. Assim, essa referência mais explícita à realidade dada acaba por tornar a fotografia colorida desprovida de elementos subjetivos mais intensos, comprometendo, conseqüentemente, o seu valor criativo. Por outro lado, a fotografia em preto e branco afasta-se da realidade existente por não lhe prover códigos de entendimento compatíveis com os seus, o que a leva a desfrutar de um maior descomprometimento mimético. O lastro de sua autonomia amplia-se à medida que ela prescinde do seu maior referencial com a pintura, que é a cor. Uma fotografia em preto e branco, por melhor que represente a realidade, por mais que dela se aproxime, guarda consigo alguma coisa de oculto, de não revelado. Ela é uma linguagem que pressupõe algo além da mera contemplação, não há como estar realmente envolvido, “tomado” por uma imagem em preto e branco com uma postura simplesmente voyeurista, pois essa implicação exige desvendar as suas entrelinhas, descobrir, pouco a pouco, o que a imagem nos proporciona implicitamente, o que há para ser visto por trás dos claros e escuros. Então, há de se fazer da fotografia em preto e branco um verdadeiro palimpsesto, em que os diversos planos de sombras e luzes vão, passo a passo, desdobrando-se em outras visões dentro do mesmo espaço fotográfico, no mesmo suporte. A fotografia em preto e branco, portanto, independentemente de sua abordagem, já parte de um intenso dado reflexivo, que a coloca, de alguma forma, como referência à interiorização, ao estar dentro, ao profundo. Quando Evgen Bavcar debruça-se sobre a fotografia por meio da linguagem em preto e branco, configura-se a pura essência do que se poderia chamar de Surrealismo, uma vez que a realidade existente, racional, integra-se, de forma plena, à instância inconsciente, produzindo, assim, a fotografia surrealista contemporânea por excelência. A constante atualização e, portanto, a grande contemporaneidade da fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga surrealista de oscilar constantemente entre o real e o imaginário, em convivência mútua. A fotografia pertence ao universo científico e artístico ao mesmo tempo, além de possibilitar o automatismo através do acidente, o acaso. Trabalhando ininterruptamente a distância espacial, social, cultural e psicológica, a linguagem fotográfica coloca-nos frente ao desconhecido, ao que é estranho à nossa vivência comum, tendo como fio o excêntrico, o exótico, proporcionando, assim, um vasto manancial de questionamento. Por tudo isso, a fotografia nos faz ver que o surrealismo a ela incorporado não se adequa única e exclusivamente a uma época ou ao Movimento Surrealista em si, mas sim ao que pode ser identificado tanto em um retrato de

Julia Margaret Cameron (1815-1879) quanto em uma imagem contemporânea de Bavcar.

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