Livro+O+Antiquário+-+Walter+Scott
December 9, 2016 | Author: Ana Carolina Rodrigues | Category: N/A
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Título: O Antiquário. Autor: Walter Scott. Dados da Edição: Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964. Colecção: "Obras Escolhidas De Autores Escolhidos", nº 63. Título do original inglês: The Antiquary. Género: Romance. Digitalização: Dores Cunha. Correcção: Ana Medeiros. Estado da Obra: Corrigida. Numeração de Página: Cabeçalho. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Walter Scott
Obras Escolhidas De Autores Escolhidos Edição Romano Torres Walter Scott O Antiquário N.º 63 Colecção "Obras Escolhidas De Autores Escolhidos" Colecção "Obras Escolhidas De Autores Escolhidos" 1 Sangue Azul De Jane Austen 2 A Letra Escarlate De Nathaniel Hawthorne 3 O Homem E O Espectro De Charles Dickens 4 O Talismã De Walter Scott 5 Feira Das Vaidades De William Thackeray 6 Quo Vadis? De Henry Sienkiewicz 7 Caminho Da Vida De Samuel Buttler 8 Rómula De George Eliot 9 Ivanhoe De Walter Scott 10 Orgulho E Preconceito De Jane Austen 11 A CAbana Do Pai Tomas De Beecher Stowe 12 O Cavaleiro Da Escócia (Quentin Duward) De Walter Scott 13 O Fauno De Mármore De Nathaniel Hawthorne
14 O Encanto De Lorna Doonb De 15 De 16 De 17 De 18 De 19 De 20 De 21 De 22 De 23 De 24 De 25 De 26 De 27 De 28 De 29 De 30 De 31 De 32 De 33 De 34 De 35 De 36 De 37 De 38 De 39 De 40 De 41 De
R. D. Blackmore Tempos Difíceis Charles Dickens A Mulher De Branco Wilkie Collins A Noiva De Lammermoor Walter Scott O Grande Amor De Jane Eyre Charlotte Brontê Ben-hur Lewis Wallace A Estranha História De Oliver Twist Charles Dickens O Pirata Walter Scott Os Últimos Dias De Pompeia Bulwer Lytton A Dama Velada Nathaniel Hawthorne As Aventuras Extraordinárias Do Sr. Pickwick Charles Dickens Monte Dos Vendavais Charlotte Brontê A Donzela Do Nevoeiro Walter Scott Fabiola Cardeal Wiseman David Copperfield Charles Dickens Rob Roy Walter Scott Tom Jones Henry Fielding A Eterna Cegueira Do Amor Wilkie Collins A Aventura De Waverley Walter Scott A Vida Era Assim Em Middlemarch George Eliot O Diamante Da Lua Wilkie Collins O Romance Da Família Chuzzleit Charles Dickens A Vitória De Montrose Walter Scott O Mistério De Northanger Jane Austen Encantamento Nas Trevas George Eliot Eveline, A Castelã Walter Scott Amélia Henry Fielding Na Corte Da Rainha Isabel Walter Scott
42 Dois Destinos De Wilkie Collins 43 O Mistério De Edwin Drood De 44 De 45 De 46 De 47 De 48 De 49 De 50 De 51 De 52 De 53 De 54 De 55 De 56 De 57 De 59 De 60 De 61 De 62 De
Charles Dickens O Coração De Shirley Charlotte Brontê O Noivado De Adam Bede George Eliot A Lenda Da Dama Branca (The Monastery) Walter Scott O Grande Egoísta George Meredith O Pajem De Maria Stuart Walter Scott Dombey & Filho Charles Dickens O Astrólogo Walter Scott Rienzi, O Ultimo Dos Tribunos Bulwer Lytton Os Mistérios Do Castelo De Udolfo Ann Radcliffe Duas Cidades, Um Amor Charles Dickens Razões Do Coração Jane Austen O Cavaleiro De Woodstock Walter Scott O Jogo Da Vida Anne Brontê E 58 A Pequena Dorrit Charles Dickens A Conquista Lewis Wallace O Anão Feiticeiro Walter Scott Fantasias De Ema Jane Austen O último Dos Barões Bulwer Lytton
O Antiquário Romance Romano Torres Título do original inglês: The Antiquary Tradução De Mário Domingues Edição Da Livraria Romano Torres João Romano Torres & C. "- Casa Fundada Em 1885 Rua Alexandre HerculAno, 70 A 76- Lisboa-1964 Comp, e Imp na Tip H. Torres - R. de S. Bento, 279-1. Lisboa I Chamem um trem! que um trem seja chamado e que o homem que o chamar, sendo o chamador, não chame outra coisa, ao chamá-lo, senão um trem. Um trem! Um trem! Um trem! Ó deuses, um trem!
Chrononhotonthologos (1)
Era de manhã, por um belo dia de Verão, em fins do século XVIII. Um jovem de aspecto distinto, que se dirigia à Escócia, marcara lugar numa das diligências públicas que percorrem toda a estrada de Edimburgo e de Queensferry, local onde, como o nome o indica, todos os meus leitores do Norte sabem que se encontra uma barca para atravessar o estreito de Forth. A carruagem destina-se a acolher regularmente seis viajantes, além daqueles que o cocheiro possa apanhar pelo caminho e que venham comprimir nos seus bancos os legítimos possuidores. Os bilhetes que davam direito a um lugar nessa carruagem pouco cômoda eram distribuídos por uma velha de olhar penetrante, em cujo nariz comprido e afilado se encavalitava um par de óculos. Ela habitava uma loja subterrânea em High-Street, isto é, uma espécie de "cave", para onde se descia por uma escada muito íngreme e estreita. Ali, vendia fitas, linhas, agulhas, meadas de lã, tecidos ordinários e outros artigos de (1) Nome de uma personagem da tragédia burlesca inglesa; que também serve de título à peça. N. do T. 8 capelista, a quem tivesse a coragem e a destreza de descer às profundidades da sua casa, sem lá cair de cabeça para baixo e sem derrubar nenhum dos artigos que, acumulados a cada lado da escada, indicavam o género de comércio que se fazia lá em baixo. O letreiro escrito à mão e colado numa tábua saliente, que anunciava que a diligência de Queensferry, ou a Mosca em Hawes, partia ao meio-dia em ponto de terça-feira, 15 de Junho de 17... a fim de garantir aos viajantes a travessia do Forth com a maré cheia; parecia-se com um boletim; pois, apesar do meio-dia ter soado no relógio de São Giles e o da igreja de Tron o ter repetido, a carruagem não se via no local indicado. É certo que só estavam marcados dois lugares, e é possível que a senhora da loja subterrânea se tivesse entendido com o seu Automedon (1) para deixar decorrer alguns momentos em casos semelhantes, a fim de obter probabilidade de encher os lugares vagos, ou o supradito Automedon tivera possibilidade de servir no cortejo de algum enterro e se demorasse devido à necessidade de retirar do seu veículo os panejamentos de luto; ou talvez se tivesse detido para beber meia pinta a mais com o seu compadre estalajadeiro. O facto é que não aparecia. O jovem, que começava a impacientar-se um pouco, não tardou em ser abordado por um companheiro de infortúnio: a pessoa que marcara o segundo lugar. Quem vai fazer uma viagem, em regra, distingue-se facilmente dos outros concidadãos. As botas, a comprida sobrecasaca, o guarda-chuva, o pequeno embrulho que traz na mão, o chapéu enterrado na cabeça, o ar resoluto, o passo firme e importante, a brevidade das respostas às saudações ociosas dos conhecidos, são indícios pelos quais quem está habituado a viajar em diligência ou mala-posta reconhece de longe o companheiro de jornada, quando ele se apressa a chegar ao local da partida. Ê então que, o que primeiro chegou, com uma prudência um pouco egoísta, se apressa a apoderar-se do melhor lugar da carruagem, e a arrumar a bagagem da maneira mais cômoda (1 Expressão também usada para designar cocheiro. N. do T. 9 antes da chegada dos seus competidores. O nosso jovem, que não era dotado de muita previdência e que, aliás, devido à ausência do veículo, estava
na impossibilidade de aproveitar o direito de prioridade, divertiu-se, para se entreter, a fazer conjecturas sobre as ocupações e o carácter do homem que acabava de chegar. Era pessoa bastante bem parecida, de cerca de sessenta anos, talvez mais; mas a tez viva e a firmeza da marcha indicavam que os anos não tinham alterado nem a sua força nem a sua saúde. A sua fisionomia acusava o verdadeiro carácter escocês: as feições fortemente vincadas e talvez um pouco duras, o olhar vivo e penetrante e uma gravidade habitual animada por um leve espírito satírico. O vestuário era de cor uniforme e adequada à sua idade e à sua gravidade; a peruca bem empoada e protegida por um chapéu de abas derrubadas, dava-lhe o ar de pertencer a uma profissão séria; podia ser um eclesiástico, no entanto o aspecto tinha alguma coisa de mais mundano do que o dos membros da igreja da Escócia, e a sua primeira exclamação tirou logo todas as dúvidas. Chegou a passo apressado e, lançando um olhar alarmado, primeiro para o relógio da igreja, depois para o local onde deveria achar-se a carruagem, exclamou: "Diabos me levem, se cheguei demasiado tarde! " O jovem aliviou-o da inquietação, dizendo-lhe que o veículo ainda não aparecera. O velho gentleman, parecendo ele próprio sentir a sua falta de pontualidade, não se julgou logo com o direito de queixar-se da do cocheiro. Tirou um volume, que aparentava conter um grosso in-fólio, das mãos de um rapazinho que o seguira, e, dando-lhe uma leve palmada na face, recomendou-lhe que regressasse, e dissesse a Mr. B... que, se soubesse que ainda dispunha de tanto tempo, não teria rematado tão facilmente o negócio; depois incitou o pequeno a ser trabalhador e pontual, dizendo-lhe que ele avançaria na sua carreira tão bem como qualquer outro moço de livraria. O rapaz parecia aguardar, talvez na esperança de que ele lhe desse um penny para comprar bolinhas de pedra para brincar, mas nada disso sucedeu. O sujeito idoso encostou o seu pequeno embrulho a um dos barrotes que estavam 10 ao cimo da escada; e, postando-se diante do jovem viajante, esperou em silêncio, durante cerca de cinco minutos, a chegada da diligência. Por fim, depois de ter lançado uma ou duas vezes um olhar impaciente ao grande ponteiro do relógio, de o ter comparado com um velho e pesado relógio de ouro de repetição de que sacara para esse fim, e após ter composto o rosto para dar uma expressão mais enérgica a duas ou três exclamações de cólera, chamou a velha negociante da loja subterrânea. - Boa mulher! Como diabo é o seu nome? Senhora Macleuchar! A senhora Macleuchar, que bem pressentia que seria obrigada a manter a defensiva no assalto que ia ter de suportar, não se apressou a responder. - Senhora Macleuchar! Boa mulher! - continuou ele, alteando a voz; depois, baixando-a, acrescentou Velha bruxa, é surda como uma porta, não é verdade, senhora Macleuchar? - Eu sigo um costume! - exclamou ela - A verdade, querido, é que não lhe posso abater nem um ceitil. - Então julga - prosseguiu o viajante - que temos tempo para a esperar aqui até que a senhora tenha apanhado a essa pobre rapariga meio ano de salários e ganhos? - Apanhado! - exclamou a senhora Macleuchar, aproveitando este ensejo de questionar sobre um ponto mais fácil de defender -Eu rejeito as suas palavras, senhor. O senhor é uma pessoa indelicada; peço que não esteja assim no alto da escada a caluniar-me na minha casa. - Esta mulher - disse o ancião, lançando um olhar malicioso ao seu futuro
companheiro de viagem - não compreende as formas expeditivas. Mulher continuou ele, voltando-se para a "cave" - eu não ataco o teu carácter; queria somente saber o que é feito da tua carruagem. - Que é que o senhor quer? - perguntou a senhora Macleuchar, que voltara a ensurdecer. - Minha senhora - disse o jovem - nós marcámos lugares na sua diligência de Quieensferry. - Que devia estar a meio caminho a esta hora - ajuntou o ancião, o mais impaciente dos dois viajantes, 11 cuja cólera aumentava consoante ia falando e agora é provável que não apanhemos a maré, tendo eu um negócio importante, e a sua maldita carruagem... - A carruagem? Valha-nos Deus! Pois, quê, ainda não está no seu lugar? replicou com espanto a velha, cuja voz guinchava e irritada se adoçou para dar lugar a um tom dolente e quase justificativo - É pela carruagem que os senhores esperam? - E para que havíamos nós de ficar, a grelhar ao sol, ao lado da sua goteira, mulher sem fé? Hem! A senhora Macleuchar apareceu então no alto da escada do alçapão (pois poder-se-ia chamar assim, embora fosse uma escada de pedra), e assomando o nariz ao nível do passeio, limpou os vidros dos óculos, para melhor ver a carruagem que ela sabia muito bem não se encontrar ali; depois, com uma surpresa bastante bem fingida - Santo Deus! -exclamou ela -Já alguma vez se viu uma coisa assim? - Sim - retorquiu, colérico, o viajante idoso - Sim, mulher abominável, já se viu e ver-se-á uma coisa assim, e ainda pior, de cada vez que houver alguma coisa a tratar com o seu sexo maldito. Depois, passeando a grandes passos e cheio de indignação diante da porta da loja, passando e tornando a passar, como um vaso de guerra que defronta um forte inimigo, descarregou uma saraivada de protestos, ameaças e censuras contra a confusa senhora Macleuchar. Tão depressa queria alugar uma cadeira de posta, tão depressa chamar um trem, como tomar quatro cavalos; ele devia, ele precisava de estar no Norte nesse mesmo dia, e todas as despesas da viagem, além dos prejuízos quer directos quer indirectos, deviam recair sobre a cabeça da senhora Macleuchar. Havia alguma coisa de tão cômico neste colérico ressentimento, que o viajante jovem, que não tinha tanta pressa de partir, não pôde deixar de divertir-se, tanto mais que o ancião, apesar de muito indignado, ria-se involuntariamente de vez em quando do calor com que abordava o caso. Mas, como a senhora Macleuchar se permitiu rir também, ele refreou a sua alegria descabida. - Mulher - disse ele, mostrando um papel impresso, todo amarrotado - isto não é uma folha dos teus 12 anúncios? Não anuncias que, com a vontade de Deus, segundo as tuas expressões hipócritas, a diligência de Queensferry, ou a Mosca ãe Hawes, partirá hoje ao meio-dia? Não é agora meio-dia e um quarto? Pois não vemos a tua Mosca ou diligência. Conheces bem as consequências de abusar assim do público com um falso aviso? Sabes que, com isto, podiam fazer-te aplicar a lei contra a impostura? Vejamos, responde. E que seja uma vez na tua longa, inútil e miserável vida, com palavras francas e verdadeiras: tens a tal carruagem, existe ela in rerum natura? Ou este anúncio enganoso não passa de um anzol lançado ao viajante crédulo para lhe fazer perder o seu tempo, a sua paciência e três xelins de prata
deste reino? Pergunto eu: essa carruagem existe, sim ou não? - Oh! Francamente, senhor, e os viajantes conhecem-na bem; é verde, salpicada de vermelho, com três rodas amarelas e uma preta. - Mulher, essa descrição não significa nada. Não passa talvez de uma mentira, e com as circunstâncias - ó senhor, senhor -disse a pobre senhora Macleuchar, acabrunhada por se ver por tanto tempo exposta àquela retórica - receba os seus três xelins, e que eu não o oiça falar mais. - Um momento, um momento, boa mulher: os teus três xelins transportar-meão a Queensferry, conforme a promessa do teu pérfido programa? Ou indemnizam-me do transtorno de ter deixado os meus negócios em suspenso, ou das despesas que serei obrigado a fazer, se me demorar um dia em Southferry para esperar a maré? Chegar-me-ão para alugar uma barca cujo preço vulgar é de cinco xelins? Nesta altura a sua argumentação foi interrompida por um ruído pesado que se reconheceu ser o do veículo que se esperava, e que tratou de chegar com toda a velocidade de que eram capazes as duas pilecas asmáticas que o puxavam. Foi com inexprimível prazer que a senhora Macleuchar viu, enfim, o seu perseguidor instalado na carruagem; mas no momento em que esta partia, ainda ele meteu a cabeça pela portinhola para lhe lembrar, com palavras abafadas pelo ruído das rodas, que se a diligência não chegasse à barcaça a tempo de aproveitar a maré, ela, senhora Macleuchar, seria responsabilizada por todas as consequências. O veículo rodara durante uma ou duas milhas, antes que o estrangeiro tivesse recobrado toda a tranquilidade de espírito, como se podia avaliar pelas exclamações que lhe escapavam de vez em quando sobre a probabilidade ou mesmo a certeza de não apanhar a maré. Gradualmente, porém, a sua cólera ia-se acalmando; limpou a fronte e, desfazendo o embrulho que trazia na mão, tirou o in-fólio, que examinava de quando em quando de olho entendido, admirando a sua altura e estado de conservação e certificando-se por inspecção particular e minuciosa de que cada folha estava completa e em bom estado, desde o título à última linha. O companheiro de viagem tomou a liberdade de lhe perguntar qual era o género dos seus estudos; e o ancião, lançando-lhe um olhar em que entrava alguma coisa de troça, como se o supusesse incapaz de saborear ou mesmo de compreender a sua resposta, informou-o de que aquele livro era o Itinirarium Setentrionale de Sandy Gordon, obra destinada a divulgar as ruínas romanas na Escócia. O jovem, sem se mostrar aturdido com o título erudito, continuou a fazer várias perguntas que mostravam que soubera aproveitar de uma educação esmerada, e que, embora não fosse muito profundo em antigüidades, estudara bastante os clássicos para compreender quem falasse delas, e escutar com interesse. O viandante idoso, notando com prazer quanto o seu companheiro de viagem era capaz de o entender e de lhe responder, não tardou em mergulhar em profundas dissertações sobre túmulos, vasos, altares votivos, fortificações dos Romanos e a arte de arranjar os acampamentos. O prazer desta conversa teve um efeito tão salutar, que, apesar da viagem sofrer duas vezes atraso por circunstâncias cada uma das quais ocasionou uma demora muito mais longa do que aquela que provocara a sua cólera contra a desditosa senhora Macleuchar, o nosso Antiquário não manifestou o seu descontentamento senão por algumas exclamações de impaciência, que pareciam referir-se mais à interrupção das suas sábias dissertações do que ao atraso da viagem. Uma mola partida, que mais de meia hora não chegou 14 para reparar, causou o primeiro atraso; quanto ao outro, o Antiquário
contribuiu muito para ele, se acaso não foi o principal causador, ao notar que um dos cavalos perdera uma ferradura da frente e avisando o cocheiro desse acidente. "É Jamie Martingale quem está encarregado de fornecer os cavalos e de os manter - respondeu John - e eu não devo parar nem sofrer qualquer prejuízo devido a essa espécie de percalços". - E quando tu fores para o diabo, como mereces, patife, quem formará a empresa para te levar? Se não paras imediatamente e não mandas ferrar este pobre animal pelo ferrador mais próximo, mando-te castigar, se se encontrar um juiz de paz em todo o Mid Lothian (1). E, abrindo a portinhola, saltou para fora do veículo, enquanto o cocheiro, resmungava entre dentes que se aqueles senhores faltassem à maré tinham de concordar que era por culpa deles, visto que ele o que queria era avançar. Gostamos tão pouco de analisar a complicação das causas que influem nas acções humanas que não ousaríamos afirmar que a piedade do Antiquário pelo pobre animal não fosse em parte estimulada pelo seu desejo de mostrar ao companheiro os restos de um acampamento, ou de uma fortificação, sobre o qual acabavam de discutir longamente, e do qual se encontravam precisamente vestígios muito curiosos e muito bem conservados nas vizinhanças do local onde esta interrupção se verificou. Mas se quiséssemos dissecar os motivos que fizeram actuar o nosso digno amigo (isto é, o senhor de vestuário simples, peruca bem empoada e chapéu de abas descaídas), teríamos de declarar que, apesar de em caso algum ele permitir ao cocheiro continuar o caminho com um cavalo incapacitado para o serviço, e ao qual a marcha poderia causar sofrimento, no entanto a maneira agradável como o ancião encontrou um meio de preencher este intervalo poupou certamente ao cocheiro violentas reprimendas e injúrias, às quais de outro modo não teria escapado. (1) Distrito ou condado de Edimburgo. - N. do T. 15 Estas interrupções consumiram um tempo tão considerável que, quando desceram a montanha que vem terminar na estalagem do Hawes (é assim que se chama a estalagem instalada do lado sul de Queensferry), o olhar experimentado do Antiquário reconheceu logo, pela quantidade de areia molhada e pelo número de pedras negras e de rochas misturadas com ervas marinhas, que a hora da maré tinha passado. O viajante jovem esperava uma nova explosão de cólera; mas fosse, como diz Croaker no Homem bom, porque o nosso herói se tivesse esgotado antes em protestos contra os seus infortúnios, de maneira a já não os sentir quando realmente sucediam, fosse porque a companhia em que se encontrava se lhe tornasse bastante agradável para o impedir de se queixar das circunstâncias que retardavam a sua viagem, o facto é que se submeteu à sua sorte com muita resignação. - Diabos levem a diligência e a velha bruxa a quem ela pertence! Diligência! Ah! Preguiça é que devia chamar-lhe! A Mosca, dizia ela; sim, realmente, avança como uma mosca embaraçada num tacho de visco. Mas, no entanto, o tempo e a maré não esperam por ninguém; assim, meu jovem amigo, faríamos bem em comer alguma coisa nesta estalagem, que é bastante asseada e terei a satisfação de acabar os pormenores que lhe estava a dar sobre o processo de fortificação dos antigos... castra statiua e castra aestiva, duas coisas que a maior parte dos autores confundiram demasiado. Ah, meu Deus, se eles quisessem certificar-se com os seus próprios olhos, em vez de se referirem cegamente uns aos outros!... Pois bem, estaremos comodamente na estalagem onde a diligência se detém, e como, afinal, teríamos de jantar em qualquer parte, será mais agradável fazer a travessia na vazante e com brisa da tarde. Foi nesta disposição cristã de tomar tudo pelo melhor que os nossos
viajantes se apearam da diligência à porta da estalagem. 16 II Senhor, injuriaram-me aqui. Todos os dias um mísero pescoço de carneiro magro e assado afé se converter em pó e, para o poder engolir, uma missura de cerveja e soro de leite. Isto é contra os meus direitos, o meu pafrimónio. Vinho, Eis a palavra que alegra o coração do homem em minha casa bebe-se vinho. Vinho de Espanha, indica o meu ramo de louro. Rejubilemos e bebamos Xerez. - é o que eu quero. BEN-JOHNSON - A Nova Estalagem Ao descer o ruim degrau da diligência diante da estalagem, o viajante idoso foi cumprimentado pelo seu hospedeiro, homem gordo, gotoso e asmático, com aquele misto de familiaridade e de respeito que os estalajadeiros escoceses da velha escola tinham por costume permitir-se com os seus clientes mais estimados. - Meu Deus, Monkbarns! - disse-lhe ele, tratando-o pelo nome da sua terra, a coisa mais agradável que pode soar aos ouvidos de um proprietário escocês - É bem o senhor? Eu não duvidava de ainda ver Vossa Honra antes do fim da sessão do Estio. - Velho tonto - respondeu o recém-chegado, cuja pronúncia escocesa, antes muito pouco perceptível, se tornava muito mais quando estava encolerizado - Velho idiota, que tenho eu a fazer na sessão, com os patos que se agrupam ou os falcões que se preparam para lhes cair em cima?
- Isso é bem verdade! - disse o estalajadeiro, que não falara senão segundo uma ideia bastante confusa da primeira educação do estrangeiro, mas que se poderia melindrar que o julgassem menos exactamente informado acerca da categoria e da profissão do nosso viajante, ou de qualquer outro que por vezes se detivesse na sua casa -É bem verdade, mas eu julgava que tivesse algum processo a vigiar por sua conta. Eu tenho um; é uma causa pendente que meu pai me deixou, e que também já lhe fora legada por 17 seu pai. Trata-se do nosso saguão... Talvez o senhor tivesse ouvido falar no parlamento, Hutchison contra Mackitchinson. Ah! É uma causa bem conhecida, compareceu quatro vezes perante os juizes, e diabos me levem se o mais sabedor dentre eles percebeu alguma coisa, a não ser mandá-la de novo para a Câmara Superior (1). Oh, é uma bela coisa a lentidão e a reflexão que se usam para fazer justiça neste país! - Cale-se, velho louco - disse o viajante, num tom de boa disposição - e diga-nos o que pode dar de jantar a este jovem gentleman e a mim. - Primeiro, temos peixe, isto é, trutas do mar, e bacalhau - disse Mackitchinson, torcendo o seu guardanapo -: Depois, tem costeletas de carneiro, e há tortas de frutas bem conservadas, e, por fim, há tudo o que o senhor quiser. - O que quer dizer que não há mais nada. Pois bem, seja! O peixe, as costeletas e uma torta chegam; mas não vá imitar os prudentes atrasos que o senhor acaba de gabar aos tribunais; que não haja demora nem na câmara inferior nem na câmara superior: compreende? - Não, não - respondeu Mackitchinson, que, à força de ler com toda a atenção volumes inteiros do Jornal dos Tribunais, fixara alguns termos jurídicos - O jantar será servido quamprimum e peremptorie- e com o sorriso satisfeito de um estalajadeiro de bom augúrio, deixou-os numa
sala térrea, ornamentada com gravuras das quatro Estações. Como, em despeito das promessas, os gloriosos pormenores da lei não deixaram de ser imitados na cozinha da estalagem, o viajante jovem aproveitou par'a sair e fazer algumas perguntas às pessoas da casa sobre a classe e o estado do seu companheiro de viagem. As informações que obteve, embora menos autênticas e de uma natureza mais genérica do que as que nós próprios vamos dar, deram-lhe a conhecer o nome, a história e a posição do gentleman que vamos tentar apresentar ao leitor, o mais brevemente possível. Jonathan Oldenbuck ou Oldinbuck, de que uma (1) Outer-House, literalmente, Casa Exterior. - N. do T. 18 contracção popular fizera Oldbuck, era o segundo filho de um gentleman, possuidor de uns pequenos bens nas vizinhanças de um porto de mar florescente na costa norte da Escócia, e ao qual por várias razões chamamos Fairport. Tinham-se estabelecido, havia algumas gerações, como proprietários na província e na maior parte dos condados de Inglaterra. Esta família teria desfrutado de alguma importância, mas o condado de... estava cheio de gentlemen de origem mais antiga e de fortuna mais considerável. Além disso, todos os gentlemen da região da última geração foram, quase sem excepção, jacobitas, ao passo que os proprietários de Monkbarns, como os burgueses da cidade perto da qual viviam, eram firmes sustentáculos da liga protestante. A família de que falamos tinha porém uma origem da qual se orgulhava tanto como aqueles que a desprezavam sentiam estima, cada um de seu lado, pela sua genealogia saxónia, normanda ou céltica. O primeiro Oldenbuck que se estabeleceu nesta terra descendia, segundo se dizia, de um daqueles que introduziram a imprensa na Alemanha, e abandonara a sua pátria para se furtar às perseguições movidas contra os que professavam a religião reformada. Encontrara asilo na cidade perto da qual moravam os seus descendentes, com tanta mais facilidade que ele era vítima da causa protestante; o que não lhe foi prejudicial, foi o ter trazido bastante dinheiro para comprar o pequeno domínio de Monkbarns, então posto à venda por um laird perdulário, ao pai do qual esse bem fora dado com outras terras da Igreja, por ocasião da destruição de um rico e poderoso mosteiro a que pertencera. Os Oldenbucks eram, pois, súbditos fieis em todos os casos de insurreição; e como estava em bom entendimento com o burgo vizinho, o laird de Monkbarns que vivia em 1745 foi nomeado preboste da cidade durante esse desgraçado ano e distinguiu-se pelo seu zelo em favor do rei Jorge, ao serviço do qual fez despesas, das quais, segundo a liberalidade habitual de todo o governo para com os seus amigos, nunca foi indemnizado. À força de solicitações, porém, e de crédito no burgo, chegou a obter um lugar nas Alfândegas, e como era um homem cuidadoso e pouco gastador, depressa se encontrou em situação de aumentar consideràvelmente 19 a sua fortuna paterna. Tinha dois filhos, dos quais, como já o demos a entender, o lairâ actual era o mais jovem, e duas filhas, uma das quais florescia ainda nas doçuras do celibato, enquanto a outra, muito mais nova, contraira matrimónio de inclinação com um capitão do 42.º, que não tinha outros bens senão a sua companhia e uma genealogia escocesa. A pobreza perturbou uma união que o amor teria tornado feliz, e o capitão Mac Intyre, no interesse dos seus dois filhos, um rapaz e uma menina, viu-se obrigado a procurar fortuna nas índias Orientais. Sendo enviado numa expedição contra Hyder Ally, o destacamento a que pertencia foi cortado em pedaços, e sua infeliz mulher nunca soube se ele perecera no campo de batalha, se fora estrangulado na prisão, ou se sobrevivera no
cativeiro que o carácter de um tirano indiano tornava sem esperança. Ela sucumbiu ao duplo peso da incerteza e da dor, deixando um filho e uma filha a cargo de seu irmão, o lord, actual de Monkbarns. A própria história deste proprietário não será longa. Não sendo mais, conforme dissemos, do que o segundo filho, seu pai destinara-o a participar de empresas comerciais de sólida vantagem, às quais se dedicavam alguns parentes maternos. Mas, como o espírito de Jonathan nunca se pôde conciliar com este projecto, puseram-no em aprendizagem num procurador, onde aproveitou até o ponto de em breve estar informado de todas as formas de investiduras feudais, e experimentava tal prazer em explicar as suas bizarrias e em investigar a sua origem, que o seu patrão concebeu a mais viva esperança de um dia vê-lo hábil notário. Mas deteve-se no limiar da porta doutoral e, embora tivesse adquirido conhecimentos da origem e do sistema das leis do seu país, ninguém o pôde persuadir a fazer deles uso prático e lucrativo. Não era, porém, por inconsciência das vantagens inerentes à posse do dinheiro que assim iludia as esperanças do seu mestre. "Se ele fosse estouvado, insensato, ou ei suse prodigus - dizia o seu patrão - compreendê-lo-ia; mas ele nunca deu um xelim sem examinar, cuidadosamente o troco que trazia. Faz com que uma moeda de seis -pence vá mais longe que uma meia 20 coroa. É capaz de ficar aqui dias inteiros a meditar sobre uma velha cópia em letra gótica de actas do parlamento, em vez de ir ao golfe ou à bolsa, e, no entanto, não dedicaria um dia a um pequeno negócio de rotina que lhe metesse vinte xelins no bolso: misto bem singular de desleixo e de indústria, de economia e descuido pelos seus interesses; em verdade, não compreendo nada. " Mas, com o tempo, o discípulo obteve meios para dispor dele próprio, conforme os seus gostos; porque seu pai morreu, seguindo-o de muito perto o filho mais velho, amador da caça e da pesca, e que faleceu em consequência de uma constipação que apanhou quando se entregava ao pendor favorito de atirar aos patos nos plainos pantanosos chamados Kittlefitting-nioss, em despeito de ter bebido uma garrafa de aguardente, nessa mesma noite, para manter o estômago quente. Jonathan herdou então o domínio e, com ele, os meios de subsistir sem recorrer à odiosa profissão da lei. Os seus desejos eram bastante moderados, e como o rendimento da pequena propriedade aumentara na proporção do melhoramento das terras, depressa ultrapassou em muito as suas necessidades e a sua despesa; e embora demasiado indolente para poder ganhar dinheiro, ele não era de todo insensível ao prazer de vê-lo acumular-se. Os burgueses da cidade vizinha olhavam-no com uma espécie de inveja, como alguém que mostrava manter-se fora da posição que eles ocupavam na sociedade, e cujos estudos e prazeres igualmente lhe pareciam incompreensíveis. No entanto, uma espécie de respeito hereditário, que o conhecimento dos seus meios pecuniários ainda aumentava, conservava-lhe uma certa importância entre esta classe de vizinhos. Os gentlemen da região, que em regra lhe eram superiores em riqueza, mas inferiores em faculdades intelectuais, poucas relações tinham com Mr. Oldbuck de Monkbarns, com excepção de um só, com o qual ele convivia em certa intimidade. Tinha no entanto o recurso habitual do pastor ou do doutor, sempre que desejasse, e além das ocupações e dos prazeres que lhe eram próprios, estava em correspondência com a maior parte dos sábios do seu tempo, que, tal como ele, gostavam de medir fortificações em ruína, de 21 reconstituir os planos de um castelo em ruínas, de decifrar inscrições ilegíveis e de escrever ensaios sobre medalhas, à razão de doze páginas
por cada letra do exergo. Adquirira uma certa irritabilidade de carácter, proveniente em parte, dizia-se, de uma desilusão amorosa que sofrera na sua mocidade e que, segundo ele, o tornara misógamo, mas mais particularmente porque o estragaram as atenções e os cuidados a que o habituaram a sua velha irmã solteira e sua sobrinha órfã, que ele acostumara a olharem-no como o maior homem do mundo, e que gabava como sendo as únicas mulheres suas conhecidas que eram adestradas e submissas ao freio da obediência; o que não impedia que Miss Grizzy Oldbuck se permitisse às vezes respingar quando sentia as rédeas demasiado curtas. Esta história acabará por desvendar o seu carácter, e nós terminamos com prazer a tarefa fastidiosa das explicações. Durante o jantar, Mr. Oldbuck, impelido pela mesma curiosidade que experimentara a respeito do seu companheiro de viagem, fez algumas perguntas que a sua idade e a sua posição lhe permitiam tornar mais directas, para conhecer o nome, a situação e o destino do jovem estrangeiro. O jovem respondeu que o seu nome era Lovel. "Quê! O gato, o rato, e o nosso cão Lovel! " (1). Acaso descendia do favorito do rei Ricardo? Não, não tinha direito algum, dizia ele, a passar por um cão dessa raça. Seu pai era do norte de Inglaterra. Quanto a ele, dirigia-se agora a Fairport, a cidade próxima de Monkbarns; e se o local lhe agradasse, talvez lá passasse umas semanas. A excursão de Mr. Lovel não tinha outro objectivo senão o prazer? - Não, inteiramente. Talvez tivesse negócios com algum dos comerciantes de Fairport? Em parte, era bem por negócios, mas não tinham relação alguma com o comércio. (1) Dos versos tradicionais: A rat, a cat and Lovel our dog: Um rato, um gato e o nosso cão Lovel. - N. do T. 22 Aqui acabou o interrogatório com as respostas, porque Mr. Oldbuck, levando as suas perguntas tão longe quanto a delicadeza lho permitia, foi obrigado a mudar de conversa. O Antiquário, apesar de não sentir aversão pelos bons pitéus, era no entanto inimigo declarado de toda a despesa inútil em viagem; por isso, quando o seu companheiro aludiu a uma garrafa de vinho da Porto, fez uma descrição pavorosa da mistura que se vendia geralmente sob esse nome, ajuntando que um pouco de ponche era muito mais natural na estação que decorria; propunha-se chamar para pedir o que era preciso, mas Mackitchinson determinara já o que eles iriam beber, e apareceu, trazendo na mão uma enorme garrafa de dois litros, chamada na Escócia magnum, toda coberta de poeira e teias de aranha, testemunhos da sua velhice. - Ponche! -disse ele, apanhando esta palavra no ar, ao entrar no refeitório - Diabos me levem se o senhor bebe uma gota de ponche, hoje, aqui, Monkbarns, tenha a certeza. - Que pretende dizer, patife sem vergonha? - Não grande coisa. Mas o senhor lembra-se da partida que me pregou a última vez que veio aqui? - Eu preguei-lhe uma partida? - Sim, Monkbarns, o senhor mesmo. O laird de Tamlowrie, sir Gilbert Grizzlecleuh, o velho Rossballoh e o bailio acabavam de entrar para passar aqui o seu serão; e o senhor, com algumas das suas histórias do mundo antigo às quais as pessoas não resistem, levou-os lá abaixo para verem o acampamento romano. Ah, senhor - ajuntou ele, volvendo-se para
Lovel Ele seria capaz de atrair os pássaros do cimo das árvores quando fala da gente de outrora! E não perdi eu o consumo de seis pintas de bom vinho clarete? Porque, diabos me levem, se algum deles se mexia daqui sem as ter bebido. - Está a ver que velhaco ele me saiu? - disse Monkbarns, a rir; porque o digno estalajadeiro, tal como disso se gabava, conhecia a forma do pé do seu hóspede, tão bem como os sapateiros deste lado do Solway - Pois bem ajuntou ele - pode mandar-nos uma garrafa de Porto. - De Porto! Não, não, deixe o Porto e o ponche aos outros; o clarete é que é digno dos senhores. Atrevo-me 23 a dizer que nenhum desses antigos de quem o senhor fala tanto, bebeu alguma vez um ou outro. - Já viu um velhaco mais completo? Bem, meu jovem amigo, é preciso pelo menos uma vez preferir o Falerno ao vile Siábinum. O obsequioso estalajadeiro desrolhou imediatamente o vinho de Bordéus e vazou-o num frasco de tamanho conveniente, assegurando que o seu perfume embalsamava o aposento; e deixou os hóspedes a formar a sua opinião. O vinho de Mackitchinson era realmente bom e produziu os seus efeitos na cabeça do mais velho dos dois convivas, que contou histórias divertidas, e entrou, por fim numa discussão sábia sobre os antigos autores dramáticos. Encontrou o seu novo conhecido tão firme neste campo que acabou por suspeitar de que ele os tivesse estudado por profissão. E disse com os seus botões: "Ele viaja, em parte por prazer, em parte por negócios; o teatro concilia tudo isso, visto ser um ofício penoso para os actores, e que oferece, ou pelo menos tem forma de oferecer, aos espectadores uma distracção agradável. Em verdade, parece, no que respeita a educação e maneiras, acima da classe de jovem que segue essa carreira; mas lembro-me de ter ouvido dizer que o teatro de Fairport devia abrir com a estreia de um jovem que ainda não aparecera em teatro algum. Se fosse este Lovel?... Sim, justamente, Lovel e Belville são geralmente nomes deste género que os jovens estúrdios adoptam nestas circunstâncias. Palavra que tenho pena deste rapaz. Mr. Oldbuck, em regra, era econômico, mas sem mesquinhez. O seu primeiro pensamento foi poupar ao jovem companheiro a sua parte nas despesas da refeição, que, na sua posição, segundo presumia, poderia afectá-lo, mais ou menos. Aproveitou, pois, o momento para pagar em particular a Mr. Mackitchinson. O jovem viajante protestou contra esta liberalidade, à qual não se submetia senão por deferência pela idade e pelo carácter respeitável do velho genfleman. O mútuo prazer que o convívio proporcionava um ao outro incitou Mr. Oldbuck a propor e Lovel a aceitar pressuroso um meio de rematarem juntos a sua viagem. Mr. Oldbuck manifestou desejo de pagar dois 24 terços do aluguel de uma cadeira de posta, dizendo que ele ocupava bem um lugar proporcional; mas Lovel recusou-o resolutamente. A sua despesa foi, pois, partilhada igualmente, com excepção de um xelim que Lovel metia de vez em quando na mão do postilhão rezingão; porque Oldbuck, agarrado aos seus costumes antigos, nunca estendia a liberalidade para além de três moedas de seis pence por posto. Assim viajaram até Fairport, onde chegaram no dia seguinte pelas duas horas da tarde. Talvez Lovel esperasse ver-se convidado para jantar, após a chegada, pelo seu companheiro de viagem, mas este, que suspeitava de que nada estivesse preparado em sua casa para receber um hóspede imprevisto, e que talvez
ainda tivesse outros motivos, não julgou conveniente, nesse momento, cumulá-lo dessa gentileza. Pediu-lhe somente que viesse visitá-lo tantas vezes quantas pudesse, de manhã, e recomendou-o a uma viúva que tinha quartos para alugar, assim como a uma pessoa que dispunha de uma mesa bastante agradável; mas advertiu ambas separadamente de que, não conhecendo Mr. Lovel senão como um bom companheiro de viagem, não pretendia tornar-se responsável das contas que ele pudesse fazer durante a sua permanência em Fairport. No entanto, o aspecto e as maneiras do jovem, sem falar de uma mala bem recheada que em breve chegou pelo mar com o seu endereço, tiveram provavelmente tanto peso em seu favor como a recomendação limitada do seu velho companheiro de caminho. 25 Possuía uma quantidade de coisas antigas e verdadeiramente singulares. elmos de aço ferrugentos e cotas de malha com ferro suficiente para prover de pregos durante um ano os três Lothians; e caçarolas com saleiros de madeira mais antigos que o dilúvio. BURNS Depois de se ter instalado no seu novo domicílio em Fairport, Mr. Lovel pensou em aceder ao convite do seu companheiro de viagem. Não o fez mais cedo; porque, através de toda a afabilidade e camaradagem do velho gentleman, notara-lhe nas maneiras e na linguagem um ar superior que a diferença de idade não lhe parecia justificar inteiramente. Esperou, pois, que a bagagem chegasse de Edimburgo, a fim de poder vestir-se à moda e que o seu exterior correspondesse à categoria que possuía, ou àquela a que ele se julgava com direito na sociedade. Foi no quinto dia após a chegada que, obtendo as informações necessárias sobre o caminho que devia tomar, partiu com o fim de ir cumprimentar o proprietário de Monkbarns. Um sendeiro que cruzava uma colina coberta de mato e dois ou três prados conduziram-no à sua habitação, situada na vertente oposta dessa colina e dominando uma bela vista da baía e dos navios que ela continha, separada da cidade pela mesma elevação de terreno, que também a protegia dos ventos do Norte. Esta casa tinha um ar de solidão e de isolamento; o exterior era de muito pouca aparência: uma construção irregular, de um gosto antigo, da qual algumas partes tinham pertencido a uma granja ou herdade, ocupada pelo bailio ou o ecónomo do mosteiro, quando este local se encontrava na posse dos monges. Era ali que a comunidade guardava o grão que recebia dos seus vassalos como um tributo territorial; porque, com a prudência que distinguia a sua ordem, todos os direitos do convento eram pagos em 26 espécie, e daí provém, como o proprietário gostava de dizer, o nome de Monkbarns (1). Os habitantes laicos que sucederam fizeram vários acrescentes ao que restava da casa do bailio, devido às necessidades de suas famílias; e como estes trabalhos foram executados com igual desprezo pelas comodidades interiores e pela regularidade exterior da arquitectura, o conjunto parecia-se bastante com um lugarejo que se tivesse detido bruscamente a meio de uma dança campestre conduzida pela música de Orfeu de Anfíon. O edifício achava-se cercado de altas sebes talhadas em teixos e azevinhos, dos quais alguns ainda ofereciam uma amostra da habilidade do artista topiário, e figuravam cadeirões bizarros, torres e imagens de São Jorge com o dragão. O gosto de Mr. Oldbuck não perturbara estes monumentos de uma arte agora desconhecida, e seria tanto menos tentado a fazê-lo, porquanto o velho jardineiro certamente morreria de desgosto. Um
teixo alto e frondoso fora entretanto respeitado pela poda, e foi no banco de jardim, por cima do qual ele estendia a sua sombra, que Lovel encontrou o seu velho amigo, que, de óculos no nariz e tabaqueira a seu lado, estava atentamente ocupado em ler a Cronica de Londres, agradàvelmente afagado pela brisa que agitava a folhagem e pelo murmúrio distante das vagas que vinham quebrar-se na praia. Mr. Oldbuck levantou-se logo e avançou para cumprimentar o seu conhecido de viagem com um cordial aperto de mão. - Palavra de honra - disse ele - começava a supor que o senhor tivesse mudado de ideias e que, achando muito pesados e estúpidos os habitantes de Fairport, indignos de o apreciar, se tivesse despedido deles à francesa, como o fez o meu velho amigo e confrade em antigüidades, Mac Cribb, quando partiu, levando uma das minhas medalhas sírias. - Espero, pelo menos, meu caro senhor, que eu não venha a merecer uma censura semelhante. - Uma mais grave, creia, se fugisse sem me proporcionar o prazer de o tornar a ver: preferiria que (1) Palavras que significam Granja de Monges, - N, do T. 27 me levasse o meu Otho de cobre. Mas venha, quero conduzi-lo ao meu sanctum sanctorum, à minha cela; posso chamar-lhe assim, porque, exceptuando duas impertinentes fêmeas - (por esta frase de desdém, bebida no seu confrade antiquário, o cínico Anthony Wood, costumava Mr. Oldbuck designar o belo sexo em geral, e sua irmã e sua sobrinha em particular) exceptuando, dizia eu, duas impertinentes fêmeas que, sob qualquer ocioso pretexto de parentesco, se instalaram em minha casa, eu vivo aqui tão cenobita como o meu antecessor John Girnell, de quem logo lhe mostrarei o túmulo. Assim falando, o velho gentleman avançou à frente para uma porta baixa; mas, antes de entrar, deteve-se de súbito, a fim de chamar a atenção para uns vestígios do que ele afirmava ser uma inscrição, e sacudindo a cabeça ao declarar que ela estava quase ilegível. - Ah, Mr. Lovel, se soubesse o tempo e o trabalho que os traços apagados destes caracteres me custaram! As dores da maternidade nem se lhes comparam, e tudo isto sem resultado... apesar de eu ter quase a certeza de que estes dois últimos sinais designam as figuras ou as letras L V, o que nos pode ajudar bastante bem a encontrar a data real desta construção, visto que sabemos, aliunde, que foi fundado pelo abade Waldimir a meio do século XIV, e não duvido de que olhos melhores do que os meus possam reconhecer o ornamento que está ao centro. - Parece-me - disse Lovel, querendo adular a mania do velho sábio - que isto se parece um pouco com uma mitra. - Iria jurar que o senhor tem razão, tem razão! Isso nunca me ocorrera! Veja o que é ter olhos jovens! Sim, em verdade, é uma mitra. Isso corresponde-lhe em todos os aspectos. A semelhança não era muito maior do que a nuvem de Polonio com uma baleia ou um melro; mas era o bastante para fazer trabalhar a cabeça do Antiquário. - Uma mitra, meu caro senhor - prosseguiu ele, conduzindo o jovem através de um labirinto de corredores incômodos, ao mesmo tempo que acompanhava a sua dissertação de certos avisos muito prudentes e muito necessários Uma mitra, meu caro senhor, corresponde 28 tanto ao nosso abade como a um bispo. Era um abade mitrado, e absolutamente à cabeça da lista... Cuidado com esses três passos... Eu sei que Mac Cribb contesta este facto, mas também é certo que tomou o meu
Antigonus sem licença. O senhor pode ver o nome do abade Trotcosey, Abbas Trottocosiensis, à cabeça das listas do parlamento nos séculos XIV e XV... É um pouco escuro aqui, e estas malditas fêmeas deixam sempre os seus banquinhos na passagem. Agora, tome cuidado com a esquina, desça doze degraus e pronto. Mr. Oldbuck atingira então o alto da escada de caracol que conduzia aos seus aposentos. Abrindo uma porta e arredando para o lado um pano de tapeçaria que a encobria, a sua primeira exclamação foi: - Que fazem vocês aqui? Uma criada bastante suja e descalça, assustada por se ver surpreendida no delito abominável de arrumar o sanctum sanctorum, largou o seu esfregão e fugiu para longe da vista de seu amo irritado. Uma jovem de rosto agradável, que vigiava a operação, agüentou o embate, mas com alguma timidez. - Em verdade, meu tio, o seu quarto não se encontrava em estado de ser visto, e eu entrei somente para ver se Jenny punha tudo no seu lugar. - E como ousas tu, assim como Jenny, tomar a liberdade de te meter es nos meus assuntos? - (Mr. Oldbuck tinha tanta aversão à palavra arrumar como o doutor Osborne ou qualquer outro sábio de profissão) - Vai para os teus bordados, pequena idiota, e que não volte a encontrarte aqui, se tens amor às orelhas. Asseguro-lhe, Mr. Lovel, que as últimas incursões destas pretensas amigas da limpeza foram tão fatais à minha colecção como a visita de Hudibras à de Sidrophel; e poderia dizer também que depois me faltaram As minhas folhas de cobre e o meu quadrante. lunar, Os meus almanaques e os meus dados de Napier, Os meus cálculos e mais de uma pedra do céu Cuja queda permitiu enfeitar o meu aposento; Enfim, faltaram-me a pulga e o percevejo Que adquiri a muito custo para os ver à minha vontade. E assim por diante, como dizia o velho Butler. 29 Depois de fazer uma reverência a Lovel, a jovem aproveitara o momento para se escapar durante a inumeração das perdas de seu tio. - O senhor vai ficar sufocado com a quantidade de poeira que elas levantaram aqui - continuou o Antiquário - mas asseguro-lhe que, ainda não há uma hora, esta poeira era muito antiga, muito aprazível, muito pacífica, e assim permaneceria durante cem anos, se estas bruxazinhas não se lembrassem de a perturbar, como perturbam, aliás, tudo o que existe no mundo. com efeito, decorreu algum tempo antes de que Lovel pudesse distinguir, através da espessura da atmosfera, uma espécie de covil onde o seu velho amigo escolhera o seu retiro. O compartimento era muito alto, mas de um tamanho normal e recebia uma claridade sombria por altas e estreitas janelas gradeadas. Um dos extremos era inteiramente ocupado por prateleiras, cujo espaço fora excessivamente limitado pelo número de volumes que as enchiam, e com os quais se fizeram duas ou três filas, enquanto uma grande quantidade de outros livros atravancava o chão, no meio de um caos de mapas geográficos, de gravuras, de bocados de pergaminho, de maços de papéis, e de peças de velhas armaduras, de espadas, de punhais, de elmos e de escudos escoceses. Atrás da cadeira de Mr. Oldbuck, antigo cadeirão de couro que o uso tornara luzidio, achava-se um enorme armário de carvalho, ornado a cada canto por querubins holandeses, com suas pequeninas asas de pato depenadas, entre as quais mostravam as grossas cabeças grotescas. A cúpula do armário estava cheia de bustos, de lâmpadas, de páteras
romanas, misturadas com duas ou três figuras de bronze. As paredes do aposento achavam-se em parte tapadas com uma velha e sombria tapeçaria, representando a memorável história das núpcias de sir Gawaine, e na qual se prestou toda a justiça à fealdade da dama em repouso ou lady Lothely, embora as feições com que o gentil noivo estava retratado lhe dessem um pouco de direito a sentir-se revoltado contra aquela união, por causa da desigualdade das vantagens exteriores. O resto do quarto revestia-se de um sombrio lambril de carvalho, do qual pendiam dois ou três retratos de personagens favoritos de Mr. Oldbuck, pertencentes 30 à história da Escócia, e de um número igual de majestosos representantes da sua família, com perucas atadas e fatos bofdados. Acumulava-se numa grande e velha mesa de carvalho toda uma profusão de papéis, de livros e uma infinidade de pequenas coisas, de ninharias e insignificâncias impossíveis de descrever e que não tinham outro preço senão o que lhes dava a ferrugem que atestava a sua antigüidade. Entre todos estes despejos de alfarrábios e utensílios, e com uma gravidade semelhante à de Mário no meio das ruínas de Cartago, achava-se sentado um grande gato preto, que, para as pessoas supersticiosas, poderia representar o genius loci, ou demónio tutelar do aposento. O soalho, tal como a mesa e as cadeiras, estava obstruído pelo mesmo maré magnum, amálgama de velharias de toda a espécie em que seria tão difícil encontrar o objecto que ali se procurasse como servir-se dele depois de o ter descoberto. No meio desta confusão, não era fácil puxar uma cadeira sem cair sobre um in-fólio, ou sem ee expor mais aborrecidamente ainda a derrubar alguma amostra da louça dos Romanos ou dos antigos Bretões. E quando se tivesse alcançado essa cadeira, era preciso desembaraçá-la com cuidado de gravuras que poderiam sofrer dano, ou de antigas esporas e escudos que certamente o causariam se se sentasse sem precaução. O Antiquário teve um cuidado especial em prevenir Lovel a esse respeito, acrescentando que o reverendo doutor Heavysterne, dos Países Baixos, se ferira gravemente por se ter sentado brusca e imprudentemente sobre três antigas armadilhas, que pouco antes se tinham encontrado no pântano perto de Banockburn, e que, depois de terem sido de início colocadas por Robert Bruce para lacerar os pés dos cavalos ingleses, se destinaram com o decorrer do tempo a vir danificar as partes traseiras de um sábio professor de Utreque. Lovel, depois de finalmente se instalar, apressou-se a fazer perguntas sobre os objectos que o cercavam; perguntas às quais o anfitrião estava igualmente disposto a responder. O Antiquário apresentou-lhe uma maça ou um cacete rematado por um pico de ferro, que se encontrara ultimamente num campo do domínio de Monkbarns, adjacente a um antigo lugar de sepultura. Parecia-se muito com aqueles bastões que 31 geralmente usam os ceifeiros das terras altas nas suas excursões anuais às montanhas; mas Mr. Oldbuck estava fortemente inclinado a pensar que, como a forma era estranha, pudesse ser uma daquelas clavas ou maças com que os monges armavam os seus camponeses, em vez de armas mais marciais, e de onde, observava ele, os vilões tinham tirado os nomes colve-carles, ou Kolb-kerls, isto é, clavigeri, ou portadores de clavas. Na afirmação deste costume, ele citava a Cronica de Antuérpia e ia de São Martinho, contra a autoridade da qual Lovel nada tinha a objectar, porque nunca ouvira falar nisso em sua vida. Mr. Oldbuck mostrou em seguida espécies de algemas que serviam para torturar as articulações dos conventuais, e um colar com o nome de um
homem convicto de roubo, e que, como o dizia, a inscrição, tinha sido condenado a servir um barão da vizinhança, em vez do castigo agora usado na Escócia, e que consiste em enviar os culpados a enriquecer a Inglaterra com o seu trabalho e a enriquecerem-se a eles próprios com a sua habilidade. As curiosidades que ele expôs em seguida eram numerosas e variadas, recitando, com complacência, ao mostrar as prateleiras poeirentas onde elas se acumulavam, os versos do velho Chaucer: Preferiria cem vezes ter à minha cabeceira Vinte tomos vestidos de vermelho ou violeta Onde o grande Aristóteles legou o seu gênio, Aos ricos mantos e ao conjunto completo De instrumentos encantadores pela sua doce harmonia. Debitou este expressivo trecho balanceando a cabeça, e dando a cada som gutural a verdadeira pronúncia anglo-saxónica, agora esquecida nos lugares meridionais deste reino. A sua colecção era com efeito curiosa e poderia provocar a inveja de um amador. No entanto, não se constituira aos preços dos nossos tempos modernos, preços cuja enormidade teria apavorado bibliómano mais antigo e o mais decidido, e que, segundo a minha opinião, não foi outro senão o célebre Dom Quixote de la Mancha, visto que, entre outros sintomas de um espírito doente, o seu muito verídico historiador, Cid 32 33 Hamet Benengeli, conta que ele trocou prados e herdades por in-fólios e in-quartos sobre cavalaria. Nesta alta façanha do nosso bom cavaleiro errante o imitou mais de um lorde, de um cavaleiro ou de um escudeiro dos nossos dias, embora, afinal, ninguém fosse capaz de tomar uma estalagem por um castelo ou de arremeter com sua lança contra um moinho de vento. Mr. Oldbuck não seguia as pegadas desses fazedores de colecções a altos preços; mas, pelo contrário, experimentando prazer nas pesquisas difíceis que lhe custava a sua biblioteca, ele poupava o seu dinheiro a expensas do seu tempo e dos seus trabalhos. Não era protector dessa raça engenhosa de intermediários peripatéticos que, tornando-se agentes entre o dono obscuro de uma barraca de venda e o ávido amador, aproveitam igualmente da ignorância do primeiro e dos conhecimentos e do gosto que o outro pagou tão caros. Quando se falava diante dele dessa espécie de pessoas, raramente deixava de fazer notar a que ponto era necessário agarrar de passagem o objecto da sua curiosidade, e de contar a sua anedota predilecta do aspirador David, a propósito do Jogo de Xadrez de Caxton. - David Wilson, vulgarmente conhecido pelo aspirador David, por causa do seu pronunciado pendor para o rapé, era um verdadeiro deus em matéria de descobertas e na exploração de sendeiros obscuros, lojas subterrâneas e tendas ou barracas, em busca de obras raras. Ele farejava a sua presa com a finura de um cão de caça e abatia-a com a destreza de um buldogue. Seria capaz de desencantar uma velha balada em letra gótica no meio das folhas de um "dossier", e uma edição princeps escondida sob a máscara de um Corderius. O aspirador David comprou o Jogo de Xadrez, edição da 1474, o primeiro livro que foi impresso em Inglaterra, numa barraca na Holanda por cerca de dois groschen, ou dois pence na nossa moeda. Vendeu-o em seguida a Osborne por vinte libras esterlinas e um número de livros equivalentes a essa importância. Osborne revendeu essa pechincha ao doutor Askew por sessenta guinéus. À venda do doutor Askew - continuou o velho gentleman, animando-se conforme falava -este inestimável tesouro brilhou em todo o esplendor do seu valor, e foi comprado pelo próprio soberano por cento e setenta libras esterlinas. Se ainda se pudesse encontrar um exemplar, só Deus - exclamou ele com um profundo suspiro e
erguendo as mãos ao céu -só Deus saberia o seu preço e, no entanto, no princípio, o saber e a pesquisa valem a quantia de dois pence. Feliz, três vezes feliz Mr. Davy, o aspirador, e felizes também eram, os tempos em que a tua indústria podia obter semelhante recompensa! "Eu próprio, senhor, embora muito inferior em indústria, em discernimento e em presença de espírito a esse grande homem, poderia mostrar-lhe um pequeno número, um bem pequeno número de objectos que recolhi, não a preço de ouro, como poderia fazê-lo todo o homem rico, embora, segundo o meu amigo Luciano, ele pudesse muito bem (esbanjar o seu dinheiro para melhor fazer brilhar a sua ignorância, mas que obtive de uma maneira que prova que não sou inteiramente ignorante nesse ponto. Veja esse maço de baladas das quais nenhuma tem data mais recente do que 1700, e em que algumas contam mais de uma centena de anos: consegui que mas cedesse uma velha; que as preferia ao seu livro de salmos. Tabaco, senhor, rapé e a Sereia Completa (1), eis tudo o que me custou. Por este exemplar mutilado do Lamento da Escócia ajudei a beber numa reunião doze dúzias de garrafas de cerveja forte com o seu último e sábio possuidor, que, em sinal de gratidão, mo legou no seu testamento. Estes pequenos Elzevires são testemunhos e troféus de vários passeios nocturnos e matinais através de Cowgate, Canongate, Bow e alameda de Santa Maria, em todos os lugares, enfim, onde se encontram alfarrabistas, antiquários e adelos, esses negociantes de objectos diversos, raros e curiosos. Quantas vezes me demorei a discutir um penny, com receio de que, com uma anuência muito fácil ao preço pedido pelo vendedor, ele suspeitasse da importância que eu próPrio atribuía a esse artigo! Como eu temia que aparecesse algum transeunte para me disputar o objecto a que aspirava; olhando cada pobre estudante de teologia (1) The Complete Syren, livrinho de canções escocesas para o povo. - N. do T. 34 que chegava para folhear os livros expostos, como um amador rival ou como um ávido livreiro disfarçado! E depois, Mr. Lovel, a secreta satisfação com que se paga o artigo comprado e se mete na algibeira, afectando um ar frio e indiferente, enquanto a mão treme de prazer! Depois, deslumbrar os olhos desses curiosos rivais mais opulentos, mostrando-lhes um tesouro como este -ajuntou ele, mostrando um pequeno volume enegrecido pelo fumo e com cerca do tamanho de uma cartilha - Gozar a sua surpresa e inveja, disfarçando a superioridade dos nossos conhecimentos e da nossa habilidade sob o véu de uma misteriosa reserva! Eis, meu jovem amigo, eis os momentos brilhantes da vida, aqueles que nos indemnizam das canseiras, dos trabalhos e da atenção assídua que a nossa profissão exige tão particularmente acima das outras! Lovel não se divertia pouco ao escutar o velho discorrer assim, e embora incapaz de compreender todo o mérito do que via, admirou, no entanto, os vários tesouros que Oldbuck lhe mostrou, tanto quanto dele se podia esperar. Aqui, edições muito estimadas porque eram as mais antigas; ali, outras que não o eram menos, como sendo as últimas e as melhores; aqui, um livro precioso porque tinha correcções finais do autor; além -coisa bizarra! -um outro que se procurava porque não as encontravam; um era precioso porque era um in-fólio; outro porque era um duodécimo; uns porque eram longos, alguns outros porque eram curtos. O mérito deste estava no titulo, o daquele no arranjo das letras da palavra finis; enfim, parecia que não havia sinal particular, por insignificante ou ligeiro que fosse, que não pudesse dar preço a um volume, contanto que se lhe atribuísse a qualidade indispensável de raridade.
Não menos mágica era a folha volante ou disparada o tiro, contendo "As últimas palavras" ou "O abominável assassínio"... "Ou o crime sangrento"... A maravilha das maravilhas na sua condição de rasgada, tal como foi apregoada primitivamente nas ruas e vendida pela quantia módica e fácil de realizar de um -penny. O nosso Antiquário debruçava-se com entusiasmo sobre estes objectos, e lia numa voz encantada os títulos elaborados, que eram pouco mais ou 35 menos, na proporção do seu conteúdo, o que são para o peso dos animais representados no cartaz de uma barraca de feira os que se mostram lá dentro. Mr. Oldbuck, por exemplo, ufanava-se de possuir um impresso único, intitulado: Novidades estranhas e maravilhosas de Chipping-Norton, no condado de Oxon; de certas aparições terríveis que se viram no ar, a 26 de Julho de 1610, às nove e meia da manhã, e que continuaram até às onze, prazo durante o qual se viram várias espadas flamejantes, estranhos movimentos das esferas superiores à claridade cintilante e extraordinária das estrelas, e a sua sinistra continuação, com a descrição da maneira como o céu se abriu e das coisas singulares que se mostraram; acompanhado de outras circunstâncias prodigiosas de que nunca se ouviu falar em século algum, para grande espanto de todos os que foram testemunhas, e segundo a comunicação que foi feita numa carta a um tal Mr. Colley, morador em West Smithfield, e que foi atestada por Thomas Brown, Elisabeth Greenaway e Anna Gutheridge, espectadores ou testemunhas das ditas terríveis aparições. E se alguém desejar certificar-se melhor da verdade desta narrativa, dirija-se a Mr, Nightingale, estalagem do Urso, em West Smithfield, onde obterá toda a satisfação. - Isto fá-lo rir - disse o proprietário da colecção e eu desculpo-o. Confesso que os encantos que constituem as nossas delícias não impressionam mais os olhos da juventude do que os de uma linda mulher; mas o senhor tornar-se-á mais prudente e verá com mais nitidez quando usar óculos... Entretanto, espere, ainda tenho um bocado de antigüidade de que talvez goste mais. Assim falando, Mr. Oldbuck abriu uma gaveta e tirou dela um molho de chaves, depois arredou um Pano de tapeçaria que ocultava a porta de um pequeno gabinete, ao qual se descia por quatro degraus de Pedra, e, após uns tinidos de garrafas e copos, voltou a sair com dois copos altos e de pé em forma de sino, como se vêem nos quadros de Teniers, uma pequena garrafa do que ele chamava excelente vinho das Canárias, com um bocado de bolo numa bandeja de Prata de um omato antigo e delicado. - - Não digo nada da bandeja - observou ele - embora 36 a julguem obra daquele velho louco florentino, Benvenuto Cellini. Mas, Mr. Lovel, os nossos antepassados bebiam vinho das Canárias; o senhor, que é admirador do drama, conhece o fundo da questão. Bebo pelo êxito dos seus assuntos em Fairport. - E eu, senhor, ao aumento dos seus tesouros, sem mais dificuldades da sua parte do que as necessárias para tornar uma aquisição mais preciosa. Após uma libação tão adequada ao género de distracção em que acabavam de ocupar-se, Lovel levantou-se para se despedir, e Mr. Oldbuck preparou-se para o acompanhar uma parte do caminho e mostrar-Lhe uma coisa digna de atenção no seu regresso a Fairport. 37 IV.
O velho manhoso, encurtando a distância, aproximou-se humildemente de mim, com inúmeros bons-dias e boas-tardes, e disse-me Meu bom senhor, teria a bondade de dar asilo a um simples e pobre homem como eu 9 O Homem do Alforge
Os dois amigos atravessaram um pequeno pomar cujas velhas árvores bem carregadas de frutos demonstravam, como muitas vezes sucede na proximidade dos mosteiros, que a vida dos frades nem sempre era passada na indolência, mas que frequentemente se dedicavam à agricultura e à jardinagem. Mr. Oldbuck não deixou de fazer notar a Lovel que os plantadores de então possuíam o segredo actual de impedir que as raízes das árvores frutíferas penetrassem no terreno, e de as obrigar a estender-se numa direcção lateral, por meio de pavimentes que colocavam debaixo das árvores de maneira a interpor-se entre as suas fibras e a profundidade do solo. - Esta velha árvore -disse ele -que foi abatida no Verão passado, e que, apesar de meio debruçada para a terra, ainda está coberta de frutos, foi dotada de uma barreira semelhante entre as suas raízes e o terreno ingrato. Conta-se uma anedota acerca desta 37 árvore. Os seus frutos chamam-se mapas ãe abade. A mulher de um barão vizinho era tão gulosa que visitava, frequentemente, Monkbarns, para ter o gosto de colher os frutos na árvore. O marido, homem ciumento, talvez suspeitasse de que um gosto semelhante ao da nossa mãe Eva prognosticasse uma queda semelhante. Como se tratava da honra de uma nobre família, não direi mais sobre o assunto. Simplesmente os domínios de Lochard "e de Cringlecut ainda pagam anualmente uma multa de seis sacos de cevada para apagar o crime do seu temerário senhor que, nas suas suspeitas mundanas, se atreveu a violar o retiro onde o abade recebia a penitente. Admire esta pequena torre de sino que se ergue acima do pórtico forrado de era. Houve ali um hospitium, haspitale ou hospitamentum (porque esta palavra encontra-se de todas estas maneiras nos escritos e nos velhos autos), onde os monges recebiam os peregrinos. Eu sei que o nosso pastor disse, no seu relatório estatístico, que o hospitium é nas terras de Haltweary ou nas de Half-starvet, mas é inexacto, Mr. Lovel. Eis a entrada, ainda chamada porta do Peregrino, e o meu jardineiro, cavando o terreno para o aipo de Inverno, encontrou várias pedras de talha, das quais enviei amostras aos meus sábios amigos e a diversas sociedades de antiquários de que sou membro indigno. Mas não direi mais, presentemente; é preciso guardar alguma coisa para outra visita, e temos agora diante de nós um objecto digno de toda a nossa curiosidade. Dizendo isto, adiantou-se a passo rápido e, cruzando duas ou três ricas pastagens, atingiu uma charneca descoberta, pertencente à comuna, e sobre uma pequena eminência. - Mr. Lovel - disse ele - eis um lugar verdadeiramente notável. - A vista é soberba - declarou o seu companheiro, relanceando o olhar. - É verdade; mas não foi por causa da vista que eu o trouxe aqui... Não vê nada mais, nada de notável, não nota nada na superfície do terreno? - Perdão, vejo uma coisa que se parece com um fosso confusamente traçado. - Confusamente! Desculpe, senhor, mas a confusão está toda nas suas faculdades visuais; nada pode 38 estar mais claramente indicado. É bem o agger ou valliim verdadeiro, com o seu fosso, fossa, correspondente Confusamente, diz o senhor? Deus o
ajude! Mas a minha sobrinha, essa jovem tão tonta como qualquer ave do seu sexo, viu ao primeiro relance os vestígios de um fosso. Confusamente! com a breca, o posto importante de Ardoch ou o de Burnswark no Annandale vêem-se mais distintamente, sem dúvida, porque são fortes estacionários, ao passo que este não foi mais do que um acampamento momentâneo. Confusamente! Mas pense que labregos, aldeões, idiotas lavraram esta terra, e, como animais e ignorantes selvagens que são, apagaram os dois lados do bloco, e danificaram muito o terceiro; mas veja, senhor, o quarto está inteiro. Lovel tentou desculpar-se e explicar a sua frase desastrada, alegando a sua inexperiência. Mas não o conseguiu logo inteiramente. A sua primeira exclamação saira com excessiva franqueza, e de maneira demasiado natural para não alarmar o Antiquário, que teve dificuldade em refazer-se do choque que sofrera. - Meu caro senhor - continuou o ancião - aos seus olhos não falta experiência e presumo que distingue um fosso de um terreno liso. Confusamente! Mas a gente do povo, o insignificante rapazito que vem pastorear uma vaca, chama-lhe Kaim de Kinprunes (1), e se isto não significa um antigo camp, acampamento, não sei o que seja. Lovel concordou e, logrando enfim acalmar a vaidade irritada e suspicaz do Antiquário, este continuou na sua tarefa de cicerone. - É preciso que o senhor saiba - disse ele - que os arqueólogos escoceses estiveram muito divididos relativamente à localização da última batalha entre Agrícola e os Caledónios. Sustentam uns que foi em Ardoch, no Strathallan, outros em Innerpeffrey; e há os que querem que seja em Raedykes, no Mearns, enquanto outros colocam o teatro desta acção no norte de Blair, em Athole. Ora, depois de todas estas discussões continuou o velho gentleman, com um desses olhares expressivos de uma secreta satisfação (1) Kaim corrupção da palavra camp. - N. do T. 39 - que diria Mr. Lovel se acontecesse que a cena memorável dessa acção se tivesse passado no próprio lugar chamado Kaim de Kinprunes, na propriedade da humilde pessoa que lhe fala agora? Depois de se ter detido um momento para dar tempo ao seu companheiro de se refazer do espanto em que tão importante novidade o devia lançar, prosseguiu na sua dissertação num tom mais elevado:
- Sim, meu bom amigo, enganar-me-ia eu muito se este local não correspondesse a todos os sinais que indicam o célebre lugar desse combate. Foi perto dos montes Grampians; o senhor está a vê-los ali, erguendo assuas cristas até as nuvens e disputando-lhes o limite do horizonte. Foi in conspectu classis, à vista da frota romana; algum almirante romano ou bretão poderia desejar uma baía mais propícia do que esta que o senhor vê à mão direita? É espantoso como nós, arqueólogos, por vezes somos cegos; sir Robert Sibbald, Saunders Gordon, o general Roy, o doutor Stukely, não tiveram esta ideia. Eu evitava dizer alguma palavra, antes de me assegurar da posse do terreno, porque este pertencia ao velho Johnnie Howie, um laird camponês daqui perto, e tivemos várias conferências para nos podermos entender. Por fim, quase tenho vergonha de o dizer, decidi-me a dar-lhe o mesmo número de acres dos meus bons campos de trigo em troca deste terreno estéril. Mas também era um interesse nacional, e quando o teatro de um acontecimento tão célebre me pertence, sinto-me bem indemnizado. Quem, haverá que o patriotismo não aqueça, como diz o velho Johnson, no plaino da Maratona? Comecei a fazer revolver o
terreno para ver o que se poderia descobrir, e ao terceiro dia, senhor, encontrámos uma pedra que mandei transportar para Monkbarns, a fim de moldar a escultura em gesso de Paris. Representava um vaso de sacrifícios, com as letras A. D. L. L. que não é difícil explicar assim: Agricola dicauit libens, lubens (1). - Certamente, senhor, visto que os arqueólogos holandeses reivindicam para Calígula a invenção dos (1) Agrícola dedicou de boa vontade. - A", do T. 40 faróis, sob a única autoridade das letras C. C. P. F. que eles interpretam por Caius Caligula pharum fecit (1). - É verdade, e essa interpretação sempre se considerou muito justa. Vejo que vou fazer alguma coisa do senhor, mesmo antes de usar óculos, apesar de ter achado os vestígios daquele soberbo acampamento confusos, à primeira vista. Com o tempo e por meio de boas instruções... o senhor tornar-se-á mais hábil... Não tenho a menor dúvida... Aquando da sua nova primeira visita a Monkbarns, terá de ler o meu livrinho Ensaio sobre a Castrametation, com algumas anotações especiais sobre os vestígios das antigas fortificações ultimamente descobertas pelo autor no Kaim de Kinprunes. Creio ter revelado o segredo infalível de reconhecer o que pertence à antigüidade. Começo por algumas regras gerais que se ligam a este ponto, saber, sobre a natureza dos testemunhos que se devem recolher em semelhante caso. Entretanto, queira notar, por exemplo, que eu poderia ter-me apoiado no famoso verso de Cláudio: lile Caledoniis posuit qui castra pruinis (2) Porque pruinis, embora interpretado por geadas brancas, às quais, confesso, estamos muito sujeitos nesta costa nordeste, poderia também significar uma localidade, como Prunes; o Castra pruinis posita seria pois o Kaim de Kinprunes. Mas ponho isto de lado, porque sinto que os críticos poderiam apoiar-se nisso para arremessar o meu castra para o tempo de Teodósio, pois que Valentiniano não fez a expedição à Bretanha senão nas proximidades do ano 367. Não, não meu bom amigo, eu faço apelo aos olhos das pessoas: não está aí a porta Decuman; e aqui, se não fosse por causa dos estragos dessa horrível charrua, como diz um sábio amigo, não encontramos a porta Pretoriana à mão esquerda? O senhor pode ver alguns ligeiros vestígios da porta Sinistra, e à direita, a um lado, a porta Dextra quase toda inteira. Coloquemo-nos, pois, sobre estes (1 Caius Caligula inventou o farol. -N, do T. (2) Aquele que vem acampar nas geadas da Caledónia. N. do T. 41 tumulus, que mostra os fundamentos de construções arruinadas, no ponto central, o prsetrorium sem dúvida do acampamento. Deste lugar, que já quase não se distingue do resto das fortificações senão por uma ligeira eminência e pela erva mais verde que a cobre, podemos supor que Agrícola contemplou o imenso exército dos caledónios a ocupar a vertente da colina oposta; a infantaria erguendo-se fila por fila, e a forma do terreno a alastrá-la em toda a sua vantagem; a cavalaria e os covinarii, os quais eu depreendo serem os que tripulavam os carros, outra espécie de gente diferente dos elegantes de Bond Street, que conduziam quatro cavalos a percorrerem lá em baixo os espaços mais lisos. Veja, Lovel, veja descer as montanhas Esse exército que inunda os nossos soberbos campos! Veja o brilho dos cavaleiros, no horizonte,
A eclipsar em sua frente as escamas do dragão! O ruído das fileiras cresce: é o ruído do trovão, Que começa ao longe e ameaça a terra. Olhe, contemple esses Romanos belicosos, E veja Roma, por fim, desaparecer com eles! " - Sim, meu caro amigo, depois desta estância (1), é provável - que digo eu? - é certo que Julius Agrícola contemplou o que o nosso Beaumont tão admiràvelmente descreveu do alto deste preetorium". Uma voz que soou à retaguarda veio interromper esta descrição entusiástica. - Pretoriano para aqui, pretoriano para acolá, lembro-me bem de quando isto foi construído. Ambos se voltaram; Lovel somente com espanto, e Oldbuck com surpresa e indignação, por se ver interrompido de maneira tão pouco delicada. Uma testemunha, que eles não viram nem ouviram, deslizara até junto deles, no meio das declamações enérgicas do Arqueólogo e da atenção respeitosa que Lovel lhe prestava. O seu aspecto era o de um mendigo. Um (1) Excerto de uma tragédia inglesa de Beaumont, autor contemporâneo de Shakspeare. - N. do T. 42 grande chapéu de abas derrubadas, uma longa barba branca que se misturava com o cabelo grisalho, um rosto envelhecido pelos anos, mas notável pela sua expressão, e que o vento constante ao qual se expunha tingira de um moreno vermelho-escuro, um comprido roupão azul com uma placa de estanho no braço direito; dois ou três sacos ou alforges para guardar as diversas qualidades de farinha quando recebia a esmola em géneros daqueles que não eram mais ricos do que ele: todos estes sinais indicavam ao mesmo tempo um mendigo de profissão, e um daqueles que pertencem a essa classe privilegiada que na Escócia se chama Bedesrnen do rei, ou vulgarmente os túnicas azuis. - Que dizia, Edie? - perguntou Oldbuck, esperando talvez que os seus ouvidos o tivessem enganado De que falava? - Dos vestígios de construção, Vossa Honra - respondeu o imperturbável Edie - Lembro-me em que ocasião se construiu aí. - Como, velho louco, já lá estavam antes de tu nasceres e estarão ainda muito tempo depois de te enforcarem. - Enforcado ou afogado, aqui ou além, morto ou vivo, isso não impede que eu me recorde da origem desses vestígios. - O senhor... O senhor!... - disse o Arqueólogo, titubeando de confusão e de raiva -Velho vagabundo, que diabo podes tu saber? - Oh! Tudo o que sei! E que proveito tiraria eu de lhe dizer uma mentira, Monkbarns? Tudo o que sei é que há uns vinte anos, eu e outros bons rapazes como eu, cont os pedreiros que construiram o fosso que se estende além, ao longo da avenida, e dois ou três pastores talvez, metemos mãos à obra e construímos aqui uma cerca, da qual o senhor vê além as ruínas a que chama... o... praetorium E tudo isto para poder lá dançar na boda do velho Aiken Drum, e lá dançámos alegremente, digo-lho eu, apesar do tempo chuvoso. Em testemunho disto, Monkbarns, se o senhor mandar revolver os escombros, como parece ter começado a fazer, encontrará, se acaso já o não encontrou, uma pedra na qual um dos pedreiros, para fazer partida ao noivo, gravou estas quatro letras: 43 A. D. L. L. isto é, Aiken Drum's Lang Ladle (1), porque Aiken era um dos grandes comilões de couves do condado de Fife.
"Isto, pensou Lovel, é uma excelente contrapartida da história de Keip on thís syde". Aventurou-se então a lançar um olhar ao Antiquário, mas logo o desviou por pura compaixão; porque, amigo leitor, se já alguma vez viu o rosto de uma rapariga de dezasseis anos cujo romance de amor acaba por ser rematado por uma descoberta prematura, ou uma criança de dez anos cujo castelo de cartas foi destruído por um camarada malicioso, posso assegurar-lhe que Jonathan Oldbuck não tinha um ar menos confuso nem menos descontente. - Há nisso alguma coisa de menosprezo - disse ele, voltando bruscamente as costas ao mendigo. - Diabos me levem, se é da minha parte - respondeu o obstinado pobre - Eu não tenho essa espécie de desdéns. O senhor tem aí, Monkbarns, com Vossa Honra, um jovem gentleman que talvez despreze um velho labrego como eu, enquanto eu aposto que poderia dizer-lhe onde estava ele ontem à noitinha, se talvez não lhe fosse aborrecido ouvir falar em companhia. Todo o sangue de Lovel lhe subiu às faces, com o calor e a vivacidade dos vinte e dois anos. - Não dê ouvidos a esse velho tonto -disse Mr. Oldbuck -e não suponha que eu tenha menos consideração por si por causa da sua profissão. Só um fátuo ou um néscio com preconceitos pode pensar de outra maneira. O senhor lembra-se do que disse o Cícero na sua arenga pro Archia poeta, a propósito de alguém da sua profissão: Quis nostrum iam animo agresti ac duro fuit ut... ut... Esqueci o meu latim, mas o sentido é este: Quem será tão grosseiro, tão bárbaro, que não se comova com a morte do grande Roscius, a qual, apesar da sua idade avançada, estávamos tão longe de esperar, antes esperaríamos que um homem tão perfeito, tão superior na sua arte, estivesse isento da sorte que submete todos os outros à (1) A grande colher de Aiken Drum. Aiken Drum o herói de uma canção escocesa. - N. do T. 44 morte. É assim que o príncipe dos oradores fala do Teatro e dos que fazem dele profissão. As palavras do velho sábio chegaram aos ouvidos de Lovel sem levarem ao seu espírito qualquer ideia precisa, porque estava profundamente ocupado em pensar por que meios o velho mendigo, que continuava a olhá-lo com um ar de inteligência e de malícia que se lhe tornava insuportável, conseguira achar-se assim no conhecimento dos seus assuntos. Meteu a mão ao bolso, como processo mais rápido de lhe dar a entender que desejava segredo e assegurar-se da sua discrição, e, dando-lhe uma esmola, mais proporcionada aos seus receios do que à sua caridade, olhou-o com expressão significativa, que o mendigo, fisionomista de profissão, pareceu entender perfeitamente. - Não se apoquente comigo, senhor, eu não sou um divulgador de histórias; mas há no mundo outros olhos além dos meus - respondeu ele, metendo no bolso a dádiva liberal de Lovel, e isto em tom de ser ouvido só por este e com uma expressão que supria tudo quanto não ajuntava. Depois, voltando-se para Oldbuck - Vou para o presbitério, e se Vossa Honra tem algum recado para lá, ou para sir Arthur, eu volto antes da noite para o castelo de Knockwinnock. Oldbuck estremeceu como se acordasse de um sonho, e num tom breve, que indicava o seu despeito e o desejo de o ocultar, disse, lançando o seu tributo no chapéu enxovalhado e luzidio de Edie: - Vai a Monkbarns e pede de jantar; se fores ao presbitério ou a Knockwinnock, é inútil contares essa estúpida história.
- Quem, eu? - replicou o mendigo - Deus abençoe Vossa Honra, jamais alguém ouvirá uma palavra da minha boca, como se estas ruínas aí estivessem desde o dilúvio. Mas, santo Deus! asseguraram-me que Vossa Honra deu acre por acre a Johnnie Howie das suas boas terras em troca desta ruim charneca. Ora, se ele o ludibriou a respeito das ruínas ao ponto de o levar a acreditar que eram as de uma antiga obra de arte, a minha opinião é de que o negócio não é bom, e seria anulado, se o senhor se resolvesse a fazê-lo julgar pela lei, dizendo que o enganaram. - Diabos levem o patife! - murmurou entre dentes o Antiquário, irritado Hei-de dar a conhecer o 45 teu dorso ao chicote do carrasco! -e ajuntou, mais alto - Não te apoquentes com isso, Edie, não passa de uma desconsideração. - Sim, é o que eu penso - ajuntou o seu perseguidor, que parecia achar prazer em irritar-lhe as feridas-Foi o que eu sempre pensei, porque ainda não há muito tempo dizia eu à velha Luckie GenunelSi: Acredita, Luckie, que Sua Honra Monkbarns iria fazer a asneira de dar boas terras, que que valem bem cinquenta xelins o acre, por uma terra estéril que não vale uma libra da Escócia? Não, não, ajuntei eu, tenho a certeza de que o laird foi enganado por esse velho demónio do Johnnie Howie... Mas, valha-nos Deus, replicou ela, como se pode fazer isso, sendo o laird tão sábio nos livros que não há outro igual para estes lados do país e Johnnie Howie mal tem inteligência para chamar as vacas para fora do estábulo?... Está bem, está bem, respondi eu, mas você deve ter ouvido dizer que ele o enleou com algumas daquelas velhas histórias do Outro Mundo, pois o senhor bem se recorda, laird, daquele caso do bodle que tomou por uma velha moeda. - Vai para o diabo! -exclamou Oldbuck; e acrescentou, num tom mais doce Vamos, despache-se para ir a Monkbarns, e no meu regresso mando-lhe uma garrafa de cerveja à cozinha. - Deus pague a Vossa Honra -estas palavras foram pronunciadas num tom arrastado de mendigo; e, mantendo o bastão ferrado à sua frente, começou a andar na direcção de Monkbarns - Mas, a propósito - disse ele, voltando-se - Vossa Honra nunca fez com que lhe devolvessem o dinheiro que dera ao bufarinheiro por essa bodle? - Maldito sejas! Vai à tua vida. - Vamos, vamos, senhor, Deus abençoe Vossa Honra, mas espero que faça dançar Johnnie Howie e que eu viva o bastante para o ver. Dizendo isto, o velho mendigo retirou-se finalmente e aliviou Mr. Oldbuck de recordações que só lha eram desagradáveis. - Quem é este velho familiar? - indagou Lovel, quando o mendigo já se afastava. - Oh! Um dos flagelos do país. Fui sempre contrário às taxas para os pobres e para as casas de 46 trabalho; mas julgo que acabaria por votar em seu favor, para lá meter este velho tonto. Realmente, semelhante hóspede em breve o conhece tão bem como à sua escudela, e torna-se tão familiar consigo como aqueles animais domésticos e amigos do homem que geralmente se ligam aos da sua profissão. Quem é ele? pergunta o senhor. Exerceu todos os misteres; foi soldado, cantor de baladas, caldeireiro ambulante e ei-lo hoje mendigo. É adulado por todos os nossos imbecis gentlemen que se riem das suas saídas e repetem os bons ditos de Edie tão exactamente como os de Joe Miller. - com efeito, a liberdade que ele parece tomar pode dar um certo
atractivo ao seu espírito. - Oh, liberdade não lhe falta! Geralmente, inventa alguma maldita mentira bastante insensata para atormentar as pessoas, como essa estupidez que debitou há pouco. Não é que eu não queira, entretanto, antes de publicar o meu Ensaio, examinar a coisa a fundo. - Em Inglaterra - disse Lovel - um mendigo assim não tardaria em ser metido na prisão. - Sim, os vossos bedeis e os vossos oficiais de polícia teriam pouco respeito pelo seu bom humor; mas, aqui, este maldito homem é uma espécie de peste privilegiada, uma das derradeiras amostras do antigo mendigo escocês, que tinha por hábito dar a sua volta por um espaço particular, e era o portador de notícias, o menestrel e por vezes o historiador do distrito. Este velho patife, por exemplo, sabe mais de velhas canções e de tradições do que nenhum outro indivíduo desta paróquia e das quatro paróquias vizinhas; e afinal - continuou ele, amansando conforme ia fazendo a descrição dos dons naturais de Edie - o maroto não deixa de ter espírito e bom humor. Suportou a sua triste sorte com uma alegria inalterável, e seria crueldade recusar-lhe a consolação de rir à custa dos que são mais felizes. O prazer de me ter feito afinar vale para ele o de beber e comer durante um ou dois dias. Mas preciso de regressar para o ter debaixo de olho, senão espalha a maldita história por meio país. Assim falando, os nossos heróis separaram-se; Mr. Oldbuck voltou ao seu hospitium de Monkbarns, e Lovel continuou o seu caminho para Fairport, onde chegou sem outra aventura. 47 V Lancelot Qobbo: Reparai em mim vou erguer es águas. SHAKSPEARE - O Mercador de Veneza
O teatro de Fairport estava aberto; mas ninguém com o nome de Lovel aparecera no seu palco. Nada tão-pouco no porte e nos hábitos do jovem que o usava autorizava as conjecturas de Mr. Òldbuck a tal respeito. O Antiquário não deixava de pedir regularmente notícias desse pequeno teatro a um velho barbeiro que penteava as três únicas perucas da paróquia que, em despeito das taxas e âa dureza dos tempos, ainda se sujeitavam à operação do pó e do frisado, e dividia assim o tempo entre as três práticas que a moda lhe deixara. Mr. Òldbuck, dizia eu, informava-se, pois, regularmente junto deste personagem do que se passava no teatro, esperando todos os dias ouvir falar da estreia de Mr. Lovel, circunstância em que o velho gentleman resolvera meter-se em despesas em honra do seu jovem amigo, e não só ir ele próprio ao espectáculo, mas também levar as fêmeas. O velho Jacob Caxon, porém, não lhe trouxe informação alguma que pudesse justificar uma diligência tão decisiva como a de reservar um camarote. Pelo contrário, contou que havia um jovem em Fairport, nesse momento, que era um enigma para toda a cidade, isto é, para todas as comadres que, não tendo assuntos pessoais, preenchiam os seus ócios ocupando-se dos outros. Não procurava relações e antes parecia evitar as que a delicadeza e a doçura das suas maneiras, ajudadas por um grãozinho de curiosidade, induziram várias pessoas a oferecer-lhe. Nada era mais regular e menos se assemelhava ao de um aventureiro do que o seu género de vida, que era simples, mas tão conforme a todas as conveniências que todas as pessoas que tinham qualquer contacto com ele não cessavam de se ufanar disso
altamente. Estas virtudes, em regra, não são as de um jovem atacado da loucura do teatro, pensava Òldbuck; e 48 embora habitualmente muito obstinado nas suas opiniões, ele seria obrigado a abandonar a que formara neste caso, se não fosse um pormenor de Caxon: "Ouve-se muitas vezes, disse este, o jovem falar sozinho e gesticular como as pessoas de teatro". Entretanto, nada, a não ser esta circunstância, veio confirmar a suposição de Mr. Oldbuck, e cada um perguntava-se, como questão muito embaraçosa a resolver, o que podia vir fazer a Fairport um jovem bemeducado, onde não tinha amigos, nem parentes, nem emprego de espécie nenhuma. Nem o vinho do Porto nem o whist pareciam ter encantos para ele. Recusara jantar à mesa dos voluntários que acabavam de ser incorporados, e evitara juntar-se às reuniões de um e de outro dos dois partidos que dividiam então Fairport, como dividiam todas as localidades mais importantes. Tinha muito pouco de aristocrata para fazer número no clube de Royal True Blues, e não tinha bastante de democrata para confraternizar numa sociedade filiada nos chamados amigos do povo, que o burgo também se honrava de possuir. Tinha os "cafés" em aversão, e, custa-me dizê-lo, pouca inclinação para a mesa do chá. Em suma, desde que o seu nome estava em moda nos romances, isto é, há muito tempo, nunca houve um Mr. Lovel de quem se soubesse tão pouca coisa de positivo, e, para acabar o retrato, que tão universalmente fosse descrito por negativas. Uma dessas negativas, porém, era importante. Ninguém dizia mal de Lovel; e se mal existisse, rapidamente se tornaria público; porque o desejo natural de dizer mal do próximo não seria combatido, neste caso, por nenhum sentimento de interesse por um ser tão insociável. Numa só circunstância ele se tornou suspeito. Como fazia frequentemente uso do seu lápis nos seus passeios solitários, e desenhara várias vistas do porto nas quais a torre dos sinais e mesmo as quatro baterias de canhão tiveram o seu lugar, alguns zelosos amigos do público fizeram circular o boato de que aquele misterioso estrangeiro era certamente um espião francês. Em Consequência disto, o sherif foi apresentar os seus cumprimentos a Mr. Lovel; mas na entrevista que se seguiu, parece que ele dissipou inteiramente as suspeitas do magistrado" visto que não só 49 não sucedeu que o perturbassem no seu retiro, mas também até contou que ele lhe enviara dois convites para jantar, que de ambas as vezes receberam uma delicada recusa. O magistrado, no entanto, guardou profundo silêncio sobre o género de explicação que houvera entre eles, não só para o público, mas também para o seu substituto, o seu escriturário, sua mulher e suas duas filhas, que constituíam o seu conselho particular em todas as circunstâncias oficiais. Todos estes pormenores, fielmente relatados por Mr. Caxon a seu patrão Monkbarns, contribuíram muito para elevar Lovel na opinião do seu companheiro de viagem. "É um rapaz modesto e sensato, pensou ele, que desdenha imiscuir-se nas frivolidades e loucuras destes imbecis de Fairport. Preciso de demonstrar-lhe alguma consideração; quero oferecerlhe um jantar; e vou escrever a sir Arthur convidando-o a vir a Monkbarns nesse dia. Tenho de consultar as fêmeas". Por isso, depois desta consulta, um mensageiro; especial que não era outro senão o próprio Caxon, recebeu ordem de se preparar para partir
para o castelo de Knockwinnock, com uma carta dirigida ao respeitável sir Arthur, de Knockwinnock, baronnet, cujo conteúdo rezava assim: "Meu caro sir Arthur, "Terça-feira, 17 do corrente, stylo novo, tenho um symposium cenobítico em Monkbarns, ao qual peço que assista às quatro horas em ponto. Se a minha bela inimiga, Miss Isabel, puder e quiser honrar-nos com a sua companhia, as minhas fêmeas sentir-se-ão orgulhosas da assistência de uma tal auxiliar da liga de resistência oposta aos direitos da supremacia; de contrário mandarei as minhas fêmeas passar o dia no presbitério. Tenho um novo conhecimento que desejo apresentar-lhe; é um jovem dotado de mais bom-senso do que o destes tempos de frivolidade, que sonharam os de uma idade mais madura, que possui algumas noções dos clássicos, e como, com estas qualidades, ele deve naturalmente experimentar desdém pelos habitantes de Fairport, desejo proporcionar-lhe o prazer 50 de um convívio tão judicioso e sensato como respeitável. "Sou, meu caro sir Arthur, etc... " - Voa a Knockwinnock com esta carta, Caxon disse o velho sábio, entregando-lhe a missiva-; e traze-me a resposta. Vai depressa, como se o conselho da cidade reunido esperasse o preboste, e como se o próprio preboste esperasse pela sua peruca emproada de fresco. - Ah, senhor-respondeu o mensageiro com um profundo suspiro - esses dias passaram há muito tempo! Diabos me levem se um preboste de Fairport usou uma peruca desde os tempos do velho Jervie; e havia uma velhaca de uma criada que a penteava com cabo da candeia e uma droga, em lugar de pó que não era senão farinha- Mas eu sou do tempo, Monkbarns, em que o conselho da cidade de Fairport poderia passar sem o seu escriturário, ou sem o seu cálice de aguardente, antes de se mostrar sem uma decente peruca bem polvilhada, bem justa na cabeça. Ai, senhores, que admira que as comunas estejam descontentes e se revoltem contra a lei, quando se vêem os magistrados, os bailios, os decanos e o próprio preboste de cabeças tão nuas como a minha? - E bem mobiladas, também, lá por dentro, Caxon. Realmente, tens uma excelente maneira de encarar os problemas, e aposto que puseste o dedo na causa do descontentamento popular, tão justo como o preboste poderia ter feito o mesmo. Mas apressa-te a partir Caxon. Caxon meteu-se ao caminho de Knockwinnock que era a três léguas dali... Ele coxeava, mas tinha coragem intrépida; Enfim, não pôde tornar sua marcha mais rápida. Enquanto ele vai a caminho, não será descabido dar algumas informações ao leitor acerca do proprietário do castelo ao qual foi enviado. Dissemos que Mr. Oldbuck frequentava pouco os gentlemen da vizinhança, com excepção de um só: era sir Arthur Wardour, descendente de uma antiga 51 família, e possuidor de uma fortuna considerável, mas embaraçada. Seu pai, sir Anthony, zeloso jacobita, apoiara com todo o entusiasmo este partido, enquanto não foi preciso senão palavras para o servir. Ninguém espremia uma laranja com um gesto mais significativo (1); ninguém sabia fazer mais habilmente um brinde sedicioso sem se arriscar às leis penais, e sobretudo ninguém bebia pelo êxito da causa com mais ardor e fé. Mas, à aproximação do exército dos montanheses em 1745, parece que o zelo do digno baronnet se moderara um pouco, e no próprio momento em que a sua energia poderia tornar-se mais importante. Em verdade, falava frequentemente em armar-se em favor dos direitos da Escócia e de Carlos Stuart; mas a sua sela de guerra não servia senão a um dos seus cavalos, e era precisamente o que não podia habituar-se a ver fogo. Talvez o
venerável proprietário não estivesse longe de partilhar os receios deste judicioso quadrúpede, e começasse a pensar que uma coisa tão temida pelo cavalo não fosse senão muito dura para o cavaleiro. De qualquer modo, enquanto sir Anthony Wardour falava, bebia e se quedava hesitante, o preboste de Fairport, homem resoluto e que nós já demos a conhecer como pai do nosso Antiquário, saiu do seu antigo burgo à frente de um corpo de burgueses whigs, e, em nome de Jorge II, apoderou-se do castelo de Knockwinnock, dos quatro cavalos de tiro, e quase da pessoa do proprietário. Sir Anthony foi, pouco depois, enviado a Londres, devido a um mandado do Secretário de Estado, com seu filho Arthur, então um jovem. Mas como nada indicava um acto claro de traição, pai e filho foram restituídos à liberdade e regressaram ao seu castelo de Knockwinnock para beberem mais do que nunca à saúde da família exilada e falarem dos sofrimentos Que suportaram pela causa real. Isto degenerou de tal forma num hábito em sir Arthur que, mesmo depois da morte de seu pai, o capelão não juramentado tinha Por costume rezar regularmente pela restauração do (1) Os inimigos do rei Jack tinham por chefe o príncipe de Orange, que significa Laranja, e eram conhecidos por orangistas. - N. do T. 52 soberano legítimo, pela queda do usurpador e por ver a família livre dos seus inimigos crueis e sanguinários, embora seguramente toda a ideia de oposição séria à casa de Hanover há muito estivesse desvanecida, e essa liturgia sediciosa fosse conservada mais pela forma do que pela intenção que se lhe atribuía. Isto era de tal maneira verdade que, por volta do ano de 1770, por ocasião de uma eleição contestada que se realizou no condado, o digno cavaleiro pronunciou os juramentos de abjuração e de obediência, a fim de servir um candidato por quem se interessava, abandonando assim o herdeiro para a restauração do qual implorava ao céu todas as semanas, e reconhecendo o usurpador pelo destronamento do qual não cessava de pedir. E para agravar este triste exemplo de incongruência humana, sir Arthur continuou a rezar em favor da casa Stuart, mesmo depois da extinção da família; e quando, na sua lealdade toda teórica, se comprazia em olhá-la como viva, não deixava de ser, em todas as ocasiões de serviço real e de actuação prática, um súbdito zeloso e devotado de JorgeIII. Noutros aspectos, sir Arthur Wardour levava a vida da maior parte dos gentlemen dos condados da Escócia. Ia à caça, à pesca, dava e aceitava jantares, seguia as corridas de cavalos, era tenente-delegado ou comissário em todos os actos públicos que respeitavam ao condado: mas, avançando em idade, como se tornasse muito negligente e muito pesado para se entregar a exercícios no exterior, substituiu-os lendo uma vez por outra a história da Escócia; e tomando gradualmente gosto pelas antigüidades, embora este gosto não fosse nem muito profundo nem muito correcto, relacionou-se com o seu vizinho Mr. Oldbuck de Monkbarns e juntou-se aos seus trabalhos e às suas pesquisas. Havia, porém, entre estes dois excêntricos, pontos de diferença que por vezes conduziam à discórdia. Sir Arthur, como antiquário, tinha uma fé sem limites, e Oldbuck, em despeito do praetorium de Kaim de Kinprunes, era muito mais escrupuloso em receber, velhas lendas por moeda corrente e autêntica. Sir Arthur julgar-se-ia réu de crime de lesa-majestade se duvidasse da existência de um só indivíduo desse formidável catálogo dos cento e quatro reis da Escócia, 53 admitido por Boethius, e tornado clássico por Buchanan, em virtude do qual James reclamava o trono do seu' antigo reino, e cujos retratos ainda
nos olham carrancudos das paredes de Holyrood. Oldbuck, pelo contrário, homem penetrante e desconfiado, e que não tinha grande respeito pelo direito divino de hereditariedade, propendia a discutir um pouco essa lista sagrada e a sustentar que toda essa sequência de posteridade de Fergus, que enche todas as páginas da história da Escócia, tinha tão pouca realidade e substância como as aparições luminosas dos descendentes de Banquo na caverna de Hécate. Outro ponto muito delicado era a boa reputação da rainha Maria, de quem o baronete era o defensor mais cavalheiresco, ao passo que o escudeiro o atacava, em despeito da sua beleza e das suas desditas. Quando, por infelicidade, a conversa incidia sobre os tempos mais recentes, os assuntos de discórdia apresentavam-se quase em cada página da história. Oldbuck era por princípio um firme presbiteriano. Eles coincidiam, é certo, no seu sentimento de dedicação e obediência ao rei que ocupa agora o trono (1); mas era este o seu único ponto de concordância. Havia, pois, muitas vezes, entre eles discussões bastante vivas, nas quais Oldbuck nem sempre podia conter o seu humor cáustico, enquanto o baronnet achava, por seu lado, que o descendente de um impressor alemão cujos pais tinham procurado a convivência vil de desprezíveis burgueses, se esquecia estranhamente e tomava na discussão liberdades injustificáveis, dada a classe e a antiga origem do seu antagonista. A recordação da velha injúria feita a seu pai pelo de Mr. Oldbuck, quando foi apoderar-se dos cavalos, do solar e da torre fortificada, vinha também juntar-se ao resto para inflamar simultaneamente as faces e os argumentos do baronnet. E Mr. Oldbuck, que, sob vários aspectos, via o seu digno amigo e compadre quase como um néscio, acabava muitas vezes por lho dar a entender um pouco mais claramente do que a delicadeza requeria. Em casos semelhantes, separavamse amiúde profundamente (1) O autor referia-se a JorgeIII. - N. do T. 54 irritados e resolvidos a evitar daí em diante a companhia um do outro; Mas a reflexão vinha no dia seguinte E então apertavam-se as mãos novamente. com efeito, como cada um por seu lado sentia que o hábito lhe tornara necessária a companhia do outro, não tardava a verificar-se uma reaproximação. Nessas ocasiões, Oldbuck, pensando que a irritabilidade do baronnet se assemelhava à de uma criança, mostrava a superioridade do seu bom-senso dando os primeiros passos para a reconciliação. Mas, por mais de uma vez, sucedeu que o orgulho aristocrático do cavaleiro de elevada origem tomara uns ares mais ofensivos para o descendente do impressor. Então, a rutura entre os dois excêntricos ter-se-ia tornada eterna sem a intervenção e os benignos esforços da filha do baronnet, Miss Isabel Wardour, a qual, mais um filho que servia então no estrangeiro, era tudo o que restava de sua família. Ela sabia até que ponto o pai precisava de Mr. Oldbuck para se distrair; e raro era que ela se interpusesse sem resultado, quando a picante causticidade de um ou os ares de superioridade do outro tornavam a sua mediação necessária. Sob a doce influência de Isabel, seu pai esquecia os ultrajes feitos à honra da rainha Maria, e Mr. Oldbuck perdoava as blasfêmias que tinham manchado a memória do rei Guilherme. No entanto, como, nessas discussões, Isabel tomava sempre de brincadeira o partido de seu pai, Oldbuck chamava-lhe habitualmente a sua bela inimiga, apesar de fazer mais caso dela que de qualquer outra do seu sexo, do qual, como já vimos, não era admirador.
Havia entre estes dois dignos gentlemen outro ponto que tinha alternadamente uma influência atractiva ou repulsiva na sua intimidade. Sir Arthur estava sempre necessitado de dinheiro; Mr. Oldbuck nem sempre estava disposto a emprestar-lho. Mr. Oldbuck, per contra, queria ser sempre reembolsado com pontualidade; sir Arthur não estava sempre, nem mesmo frequentemente preparado para satisfazer esse desejo muito razoável; e, nos arranjos que se verificavam entre pessoas de inclinação tão opostas, surgiam de quando 56 quando pequenos atritos. No entanto, um espírito de acordo mútuo dominava geralmente, e seguiam o caminho como dois cães atrelados a par, não sem dificuldade e sem mostrarem por vezes os dentes e se atirarem às goelas um do outro. Uma leve nuvem como as que acabamos de mencionar, proveniente de negócios ou de política, dividira as casas de Knockwinnock e de Monkbarns até o momento em que o enviado desta última se apresentou no desempenho da sua missão. O baronnet estava sentado num antigo locutório gótico cujas janelas davam de um lado para o inquieto Oceano e do outro para a longa e recta avenida do castelo. Alternadamente, ele passava as páginas de um in-fólio ou lançava um olhar enfadado para a folhagem de um verde sombrio onde brincavam os raios de sol, ou para o tronco liso e polido das altas e espessas tílias de que a avenida estava ornada. De súbito - oh, espectáculo agradável! -um objecto vivo acaba de aparecer, e o seu aspecto, dá lugar a perguntas vulgares: Quem é ele e que vem fazer? O velho fato de um cinzento esbranquiçado, o andar manquejante, o chapéu meio derrubado, meio levantado, depressa fizeram reconhecer o velho cabeleireiro decaído e não permitiram mais dúvidas senão sobre o segundo ponto, que depressa foi esclarecido pela entrada de um criado no locutório, com uma carta de Monkbarns. Sir Arthur pegou na carta com toda a importância dignidade convenientes. - Levem esse velho à cozinha e dêem-lhe um refresco - disse a jovem, que notara, de olhar compadecido, a sua cabeça grisalha e calva e o seu ar fatigado. - Meu amor - disse o baronnet, após um momento de silêncio - Mr. Oldbuck convida-nos para jantar na terça-feira, 17 do corrente. Realmente, parece-me ter-se esquecido de que há pouco não se portou comigo daquela maneira que eu tinha direito a esperar dele. - O meu querido senhor tem tantas vantagens sobre Mr. Oldbuck que não é de admirar que ele tenha por vezes humour; mas eu sei que ele sente bastante estima pela sua pessoa e pela sua conversa, e que nada lhe causaria mais desgosto do que faltar-lhe realmente ao respeito. 56 - É verdade, Isabel, é preciso conceder-lhe alguma indulgência ao pensar na sua primitiva origem: ainda há no seu sangue alguma coisa da grassaria alemã e um resto de oposição republicana e revolucionária às categorias e aos privilégios estabelecidos. Deve ter notado que ele nunca pôde registar vantagem alguma sobre mim na discussão, a não ser que recorra a essa espécie de conhecimento chicaneiro que ele possui das datas, dos nomes e de factos insignificantes e se sirva da fatigante e inútil exactidão de uma memória que não deve senão à sua baixa extracção. - Ela deve, porém, servir-lhe nas suas pesquisas históricas, ao que parece, senhor - disse a donzela. - Sim. mas fê-lo adquirir uma maneira de discutir tão cortante como indelicada, e nada mais desarrazoado do que vê-lo atacar a bela tradição de Hector Boethius, por Bellenden, que eu tenho o gosto de possuir e que é um in-fólio gótico de grande valor; e isto apoiado na autoridade de uns
velhos bocados de pergaminho que arrancou à sorte que os esperava, a de cortar-se em medidas para alfaiates. Depois, aquele hábito da exactidão minuciosa e fatigante engendra uma maneira mercantil de tratar os assuntos à qual deveria ser superior um proprietário de bens territoriais, cuja família atravessou duas ou três gerações. Duvido que haja um comerciante em Fairport que saiba tirar uma conta de juros melhor do que Oldbuck. - Mas o senhor aceita o seu convite? - Ah!... sim; creio que não temos compromisso algum para esse dia. Quem poderá ser o jovem de quem nos fala? Ele raramente trava novos conhecimentos, e não tem outros parentes, que eu saiba. - Provavelmente é algum parente do cunhado, do capitão Mac Intyre. - É muito possível. Sim, aceitamos. Os Mac Intyre são de uma família muito antiga do Norte. Isabel, pode responder afirmativamente a esse bilhete; por mim, não tenho vagar para tomar o lugar de caro senhor. Ficando resolvido este importante assunto, Miss Wardour escreveu "que ela apresentava a Mr. Oldbuck os cumprimentos de sir Arthur e os seus, e que teriam muita honra em aceitar o seu convite, ajuntando 57 eme Miss Wardoour aproveitava essa ocasião para recomeçar as hostilidades com Mr. Oldbuck, por causa da sua longa ausência de Knockwinnock, onde se recebiam as suas visitas com tanto prazer". O seu bilhete rematava nestas expressões pacíficas. Entregou-o ao velho Caxon, que, depois de retomado o fôlego e de se ter refrescado suficientemente, se meteu a caminho da casa do Antiquário. VI Por Woden, deus dos Saxões, de que provém a palavra quarta-feira, isto é, dia de Woden. A verdade será para mim uma coisa sagrada atéé o dia em que descer ao túmulo. O Ordinário, de CARTWRIOHT O nosso jovem amigo Lovel, que recebera um convite semelhante, pontual à hora marcada, chegou a Monkbarns cerca de cinco minutos antes das quatro horas do dia 17 de Julho. O calor fora sufocante durante todo o dia e grossas gotas de água caíram por diversas vezes, embora estes aguaceiros ameaçadores as tivessem afastado. Mr. Oldbuck recebeu-o à chamada porta do Peregrino. Vestia um fato de fazenda castanha, com meias de seda cinzenta, e ostentava uma peruca empoada com toda a arte de Caxon, o veterano cabeleireiro que, tendo farejado o jantar, tivera o cuidado de não acabar a sua obra senão no mesmo instante em que se ia pôr a mesa, esperando assim obter o seu quinhão. - Seja bem-vindo ao meu symposium, e permita-me que lhe apresente o meu clogdogdo, como tom Otter chama à minha maliciosa raça de fêmeas, mate bestiae, Mr. Lovel. - Ficarei muito surpreendido, senhor, se as senhoras merecerem a sua sátira. - Tréguas aos cumprimentos, Mr. Lovel, elas não passam de amostras do seu sexo. Mas ei-las, e, 58 para seguir por ordem, apresento primeiro a minha muito discreta irmã, Griselda, que despreza a simplicidade e a paciência que o nome da sua pobre patrona Grizzel sugere; e a minha muito preciosa sobrinha Maria, cuja mãe se chamava Maria e por vezes Molly.
O roçagar ou rumor dos tafetás e dos cetins anunciara a velha solteirona, que trazia na cabeça um edifício semelhante ao penteado das damas do Jornal de Modas de 1770; soberbo pedaço de arquitectura que se poderia comparar a um castelo gótico, em que os "caracóis" representavam as torres, os ganchos pretos os cavalos de frisa, e os ornamentos de gaze as bandeiras. Esta figura que, tal como as antigas estátuas de Vesta, era coroada de torres, era alta, larga, tinha nariz e mento com borbulhas, e parecia-se sob outros aspectos de uma maneira tão flagrante com Mr. Jonathan Oldbuck que se não aparecessem ambos juntos, como Sebastião e Viola na última cena da Noite dos Reis, (1), Lovel julgaria que o rosto que tinha diante dos olhos era o do velho amigo disfarçado de mulher. Um vestido de seda antiga com flores ornava a pessoa extraordinária que trazia aquele penteado sem igual e que, segundo seu irmão, mais parecia feito para servir de turbante a um discípulo de Maomé do que para cobrir a cabeça de uma criatura razoável e cristã. Dois longos braços descarnados, guarnecidos até os cotovelos por punhos de renda em tripla fileira, estavam cruzados diante dela, e, ornados de luvas altas, de um vermelho gritante, assemelhavam-se muito a um par de lagostas. Sapatos de salto e uma pequena manta de seda negligentemente lançada pelos ombros, completavam a toilette da menina Griselda. Sua sobrinha, que Mr. Lovel avistara na sua primeira visita a Monkbarns, era uma juvenil e bonita pessoa, elegantemente vestida à moda da época, e que tinha um arzinho travesso que lhe ficava muito bem; possuía talvez a causticidade natural da família materna, mas que muito se adoçara ao transmitir-se até ela. Mr. Lovel apresentou as suas homenagens às duas (1 Twelfth night, drama de Shakspeare. - N. do T. 59 damas, e, em troca, recebeu da mais velha uma daquelas profundas mesuras de 1760 e imitada dessa memorável época, Em que o benedicile Ocupava metade de uma hora, Em que a sexta-feira festejada Não tinha em cada lar, Para jantar, sopa e manteiga Mas um só prato muito escasso, enquanto a jovem lhe fazia uma reverenciazinha modesta que, tal como o benediciíe dos nossos eclesiásticos actuais, foi de muito pouca duração. Durante esta troca de cumprimentos, sir Arthur, trazendo pelo braço a sua encantadora filha, depois de ter despedido a sua carruagem, parou à porta do jardim, e apresentou os seus cumprimentos às damas em todas as formas. - Sir Arthur e minha bela inimiga - disse o Antiquário - permitam-me que lhes apresente o meu jovem amigo, Mr. Lovel, que, apesar da epidemia de escarlatina que reina presentemente na nossa ilha, tem o bom-senso e a decência de aparecer vestido com um fato de cor honesta. Como vêem, porém, essa cor da moda, que ele exclui do seu vestuário, refugiou-se nas suas faces. Sir Arthur, admita que eu o relacione com um jovem que o senhor achará, após melhor conhecimento, grave, sensato, educado, erudito e versado na leitura e na ciência das Belas Letras, e profundamente iniciado nos mistérios mais herméticos do teatro e dos bastidores, desde o tempo de Davie Lindsay (1) até os dias de Dibdin. Ei-lo a corar ainda, o que é bom sinal. - O meu irmão - disse Miss Griselda, dirigindo-se a Lovel - tem uma maneira de se exprimir que só lhe pertence a ele; ninguém faz caso do que diz Monkbarns, por isso peço-lhe que não se perturbe com as (1) Autor da mais antiga peça escocesa. - N. doT. 60 suas asneiras. O senhor deve ter tido bastante calor durante o caminho, com este sol escaldante; quer tomar alguma coisa, um copo de vinho de
cidra? O Antiquário exclamou, antes de que Lovel pudesse responder: - Deus nos acuda, bruxa! Quer envenenar os meus hóspedes com as suas malditas mezinhas? Esqueceu a sorte do eclesiástico a quem convenceu a provar a sua pérfida beberagem? - Ah, meu irmão! Sir Arthur, já ouviu alguma coisa semelhante? Nada se pode fazer senão conforme as suas ideias, de contrário, ele inventa destas histórias. Mas aí está Jerry, que vai tocar a sineta para nos anunciar que o jantar está servido. De uma economia rígida, Mr. Oldbuck não tinha criado masculino, e disfarçava-a com o pretexto de que o sexo forte era demasiado nobre para se empregar nesses actos de servidão pessoal, que, nos primitivos tempos da sociedade, eram unicamente impostos à mulher. - Por que motivo - dizia ele - por que razão Tom Rintherout, que eu, instigado por minha prudente irmã, e com igual prudência, consenti em experimentar, me roubava as maçãs, passava o seu tempo a apanhar ninhos, e, por último, roubara-me os óculos, se acaso ele não estivesse tomado daquela alta ambição que agita o coração das pessoas do nosso sexo? Ambição que o conduziu à Flandres, de espingarda ao ombro e que, decerto, o faria ganhar o glorioso cinturão ou talvez até a forca. E por que razão esta jovem, sua irmã legítima, Jenny Rintherout, segue o seu caminho num passo sossegado e seguro, calçada ou descalça, brando como o passo de um gato, e dócil como um cão fraldiqueiro, porquê? Ê que segue a sua vocação. As mulheres que nos sirvam, sir Arthur, que nos sirvam; é a única coisa para que elas foram feitas. Todos os antigos legisladores, desde Licurgo a Mohammed, corrupção chamada Maomé, estão de acordo em colocá-las no lugar subalterno que lhes convém, e foram as cabeças loucas dos nossos antepassados cavalheirescos que erigiram as suas Dulcineas em princesas tirânicas. Miss Wardour protestou altivamente contra a pouca galantaria desta doutrina; mas a sineta soou para o 61 jantar, e o velho gentleman ofereceu-lhe o seu braço e disse: - Que uma bela antagonista me permita desempenhar junto dela todos os deveres da cortesia. Recordo-me, Miss Wardour, de que Mohammed, vulgarmente chamado, Maomé, estava embaraçado sobre a maneira de chamar os seus "moslems" ou muçulmanos, à oração. Rejeitava os sinos de que os cristãos se serviam e as trombetas, que eram o sinal dos guebros ou parsis; acabou por adoptar a voz humana. Eu experimentei o mesmo embaraço para mandar anunciar o meu jantar. Os gongos, agora em uso, parecem-me uma nova invenção toda paga, e a voz da espécie feminina desagrada-me igualmente, tão ácida como discordante; foi por isso que, contrariamente ao dito Mohammed ou Maomé, regressei ao som da sineta; ela tem uma propriedade local, visto que era o sinal do convento para anunciar os repastos no refeitório; e tem esta vantagem sobre a língua de Jenny, o primeiro ministro de minha irmã, que, apesar de um pouco menos alta e aguda, deixa de soar no momento em que se larga a corda, ao passo que sabemos o contrário, por triste experiência, que tentar fazer calar Jenny é incitar Miss Oldbuck e Maria Mac Intyre a elevarem a voz para fazerem coro em seu favor. Ao terminar este discurso, chegou ao refeitório, que Lovel ainda não tinha visto. Era forrado de madeira e continha algumas pinturas curiosas. Jenny, servia à mesa; mas uma velha vigilante, espécie de mordomo-fêmea, mantinha-se junto do bufete, e teve de suportar algumas reprimendas de Mr. Oldbuck, e algumas censuras menos directas, mas ainda mais azedas, da
parte de sua irmã. O jantar era tal como se devia esperar em casa de um antiquário confesso: achavam-se várias amostras de pratos escoceses muito saborosos, apesar de banidos agora das mesas onde se afecta elegância. Havia pato de Solan, de gosto requintado, e cujo perfume era tão forte que nunca mais se desvanecia do interior das casas. Infelizmente, estava a sangrar, o que fez com que Oldbuck quase ameaçasse de atirar a ave aquática à cabeça da imprevidente dispenseira que, servindo de sacerdotisa nessa ocasião, apresentara 62 a aromática oferenda. Mas, por boa sorte, ela fora mais feliz no hotchpotch (1), que foi unanimemente considerado incomparável. - Julgo - disse o velho Oldbuck, num ar triunfante - que nisto atingimos o ideal, porque Davie Dibble, o jardineiro, velho solteirão como eu, tem o cuidado de evitar que o diabo das mulheres desonrem os nossos legumes. Eis o peixe com molho e cabeças de bacalhau. Concordo que as nossas mulheres se esmeraram neste prato; permite-lhes o prazer de tagarelar durante meia-hora, pelo menos duas vezes por semana, com a velha Maggy Mucklebackit. Recomendo-lhe, Mr. Lovel, o pastelão de aves feito segundo uma receita que me deixou minha avó de grata memória; e se quer experimentar um copo deste vinho, achá-lo-á digno daquele que professa a máxima do rei Afonso de Castela: Queimem os velhos bosques, leiam os velhos livros, bebam velho vinho e conversem com velhos amigos, sir Arthur; e jovens também, Mr. Lovel. - E novidades da sua viagem, Monkbarns? - indagou sir Arthur. -Como vai a velha enfumadorada1)? - O mundo está louco, sir Arthur, louco sem remédio, e resistirá a todos os remédios vulgares, como os banhos de mar e doses de heléboro. A pior de todas as loucuras, a loucura militar, apoderou-se dos homens, das mulheres e das crianças. - É bem oportuna, creio eu - observou Miss Wardour - quando estamos ameaçados de uma invasão estrangeira e de uma insurreição interna. - Oh, duvido muito de que o senhor se junte aos casacas encarnadas contra mim; as mulheres, como os perus, sempre se perturbaram com o escarlate. Que diz a isto, sir Arthur? - Eu digo, Mr. Oldbuck - replicou o gentleman que, tanto quanto posso ajuizar, devemos resistir cum toto corpore regni (é esta a frase, se acaso não esqueci completamente o meu latim) a um inimigo que nos (1) Espécie de sopa escocesa, à base de costeletas de carneiro e ervilhas. - N, do T. (2) Alusão à cidade de Edimburgo. - N. do T. 63 vem propor uma espécie de governo whig, um sistema republicano, e que é ajudado e defendido pela pior qualidade de fanáticos que o país tem no seu seio. Eu tomei algumas precauções, tal como convinha à minha classe adoptar, e ordenei aos oficiais de polícia que detivessem esse velho patife de mendigo, Edie Ochiltree, que espalha o descontentamento contra a Igreja e o Estado por todas as paróquias. Ele diz claramente ao velho Caxon que a gorra de Willie Howie oculta mais sensatez do que as três perucas da paróquia. Penso que é tempo de compreender isso; mas temos de ensinar esse sujeito a viver. - Oh, não, meu querido senhor - exclamou Miss Wardour -não ao velho Edie que nós conhecemos há tanto tempo; asseguro-lhe que ficaria a detestar o oficial de polícia que executasse semelhante ordem. - Ora vejam! - disse o Antiquário - Sir Arthur, o senhor que é um firme tory, aumentou no seu seio um belo rebento do whigismo. Ah! Miss Wardour,
sozinha, bastaria para dominar toda uma sessão. Uma sessão! Que digo eu? Uma assembleia geral. É uma Boadiceia, uma Amazona, uma Zenóbia. - E no entanto, com toda a minha coragem, Mr. Oldbuck, tenho o gosto de perceber que o nosso povo se arma. Vai armar-se. Deus lhe acuda! O senhor nunca ouviu contar a história de sóror Margarida, história concebida por uma cabeça que, apesar de velha e grisalha agora, encerra mais senso e sã política do que o senhor não encontrará em nossos dias em todo o sinodo? Recorda-se do sonho da ama, nessa excelente obra, que ela conta numa tão grande angústia de espírito a Hubble Bubble, quando, na sua visão, ela queria apanhar um bocado de pano e se ouviu uma detonação como a de uma peça de artilharia; e quando estendia a mão para agarrar um fuso, este se transformou em pistola apontada ao seu rosto? Sucedeu-me Pouco mais ou menos a mesma coisa em Edimburgo. Eu ia consultar o meu advogado, ele estava com uniforme de dragões, de cinturão e capacete, pronto a montar o cavalo, que o seu escriturário, vestido de atirador, passeava de um lado para o outro diante da Porta. Passei por casa do meu agente de negócios, Para o censurar por me ter mandado consultar semelhante 64 louco; mas ele tinha posto na cabeça a pena, nos dias em que era sensato, se limitava a tê-la na mão, e figurava de oficial de artilharia. O meu fanqueiro, com baquetas de tambor na mão, servia-se delas em lugar da vara, para medir a sua fazenda. O empregado do banqueiro, encarregado de verificar as minhas contas de caixa, enganou-se três vezes, por ter a cabeça transtornada com a recordação do comando militar do exercício da manhã. Senti-me doente e chamei um cirurgião; Ele veio, mas o seu olhar brilhava de uma tal coragem, E sua espada ao lado cíntilava com tal brilho, Que dir-se-ia vir para um assassínio E não para me curar, em sua douta mensagem, Recorro a um médico; mas também ele praticava um género de homicídio mais geral do que aquele que lhe é sempre atribuído e que a sua profissão autoriza; e agora, depois do meu regresso aqui, apercebi-me de que este espírito bélico dominou os nossos prudentes vizinhos de Fairport. Um pato bravo ferido não detesta mais do que eu uma espingarda, um quaker não odeia mais o som de um tambor; e eis que na praça da cidade não cessam de rufar, de disparar, tão bem que cada descarga e cada rufo de tambor vêm aqui penetrar-me até o fundo da alma. - Meu querido irmão, não fale assim dos gentlemen voluntários; eles têm o mais Lindo uniforme! Ai, molharam-se até os ossos por duas vezes a semana passada. Encontrei-os a marchar num triste estado, e alguns apanharam uma constipação nesse dia. Penso que os trabalhos que eles suportam bem merecem a nossa gratidão. - Também meu tio lhes enviou vinte guinéus para os auxiliar nas despesas de equipamento. - Era para comprarem sumo de alcaçuz e açúcar cândi - disse o cínico - a fim de encorajar o comércio daquela cidade, e refrescar a goela dos oficiais que, se constiparam ao serviço do país. - Cuidado, Monkbarns, não tardaremos em contá-lo entre os Gralhas. - Não, sir Arthur, eu não passo de um velho descontente, e não reclamo senão o privilégio de grasnar. 65 anui no meu canto, sem juntar a minha voz ao grande coro das rãs. Ni quito rey, ni pongo rey, não me meto a fazer nem a desfazer reis, como
diz Sancho Pansa, mas limito-me a pedir sinceramente pelo nosso próprio soberano, a pagar a minha quota-parte do imposto, e a amaldiçoar por vezes o cobrador de taxas. Mas eis o queijo de leite de ovelha que chega muito a propósito; é melhor digestivo do que a política. Quando acabou o jantar e as garrafas de vinho foram colocadas na mesa, Mr. Oldbuck propôs um brinde à saúde do rei; foi pressurosamente correspondido por Lovel e pelo baronnet, cujo jacobitismo não era mais do que uma espécie de opinião imaginária, a sombra de uma sombra. Depois de se terem retirado as damas, o dono da casa e sir Arthur enfronharam-se em várias discussões eruditas, nas quais o jovem, ou devido à erudição abstracta em que eles mergulhavam, ou por outro motivo, não participou senão fracamente: até que, por fim, ele foi subitamente despertado do profundo devaneio a que se entregara por um apelo feito à sua opinião. - Guiar-me-ei pelo que Mr. Lovel me disser; nasceu no norte de Inglaterra, e talvez conheça esse local. Sir Arthur disse que julgava pouco provável que um homem tão novo prestasse muita atenção a uma coisa desse género. Lovel foi obrigado a confessar que se encontrava na situação ridícula de quem ignorava igualmente o assunto da conversa e o da discussão que os ocupava havia uma hora. - Deus valha ao pobre rapaz! O seu pensamento anda muito longe. Eu suspeitava de que assim seria desde que as mulheres fossem admitidas entre nós, e Que não haveria meio de obter uma palavra sensata ?o jovem, mesmo mais de seis horas depois. Escute, Pois: houve outrora um povo chamado Piks. - Ou antes, Pieis - emendou o baronnet. - Eu digo Piks, Pikar, Plhar, Piochtar, Piagther ?u Peughtar! - exclamou Oldbuck - Falavam dialecto gótico. - O verdadeiro céltico - emendou de novo o baromnet. 66 - O gótico; eu morra se não era gótico - retorquiu o cavaleiro. - Mas parece-me, senhores - disse Lovel - que esse ponto pode ser facilmente esclarecido pelos filólogos se houver restos dessas línguas. - Não há senão uma só palavra - disse o baronnet - Mas apesar de toda a persistência de Mr. Oldbuck, ela resolve a questão. - Sim, em meu favor - ajuntou Oldbuck -Mr. Lovel ajuizará. Nisto tenho o sábio Pinkerton do meu lado. - E eu, do meu, o erudito e infatigável Chalmers. - Gordon sustenta a minha opinião. - Sir Robert Sibbald é pela minha. - Innes está comigo - vociferou Oldbuck. - Ritson não opõe qualquer dúvida! - exclamou o baronnet. - Verdadeiramente, senhores - disse Lovel - antes de reunir as vossas forças e de me esmagarem com todas essas autoridades, gostaria de conhecer a palavra que dá motivo à discussão. - Benval - disseram os dois antagonistas ao mesmo tempo. - Que significa caput valli - ajuntou sir Arthur. - A cabeça da parede - disse Oldbuck. Houve um momento de silêncio. - Eis uma base que me parece um pouco fraca para nela fundamentar uma hipótese - observou o jovem árbitro. - Nada disso! - exclamou Oldbuck - Os homens não combatem melhor do que num círculo estreito. A vastidão do terreno de nada serve a uma luta deste género.
- Ela é decididamente céltica - disse o baronnet Não há uma montanha nas terras altas que comece por Ben. - Mas que nos diz de vai, sir Arthur; não é claramente a palavra saxónica wáll? - É a palavra romana valiam-disse sir Arthur Os Picts pediram emprestada essa parte da palavra. - Isso, não: se eles tivessem de pedir emprestada alguma coisa, seria o seu Ben, que poderiam tomar dos seus vizinhos Bretões de Strath Cluyd. - Era preciso que os Piks, ou Picts - disse Lovel 67 - tivessem um dialecto singularmente pobre, visto que última palavra que resta do seu vocabulário, pan que não se compõe senão de duas sílabas, foram evidentemente obrigados a pedir emprestada uma a outro idioma; parece-me, senhores, com todo o respeito por ambos, que esta discussão não é muito diferente do combate daqueles dois cavaleiros que se bateram por causa de um escudo que era preto de um lado e branco do outro. Cada um dos senhores reclama metade da palavra e parece abandonar a outra metade. Mas o que mais me impressiona é a pobreza de uma língua que não deixou dela senão tão fracos vestígios. - O senhor está enganado - disse sir Arthur -era uma língua rica, e era um povo grande e poderoso, que construiu duas igrejas, uma em Brechin, outra em Abemtíthy. As filhas do sangue real dos Picts eram educadas no castelo de Edimburgo, chamado, por causa disso, Castrum puellarum. - Tudo isso não passa de uma lenda pueril - disse Oldbuck - inventada para dar importância a fêmeas estúpidas. Chamavam-lhe o castelo da Virgem, qiiasi lucus a non lucendo, porque resistira a todos os ataques, coisa que as mulheres nunca fazem. - Há uma lista de reis - insistiu sir Arthur - da qual não se põe a autenticidade em dúvida, a contar desde Crentheminacheryme, cujo reinado é um pouco incerto, até Drusterstone, cuja morte terminou a dinastia. Metade desses nomes começa pelo Mac patronímico céltico; Mac, ou seja filius. Que diz a isto, Mr. Oldbuck? Há Drust Macmorachin, Trynel Maclachlin, o primeiro deste antigo clã segundo todas as probabilidades; e Gormach Macdonald, Alpin Macmetegus, Drust Mactallargam - (Nesta altura foi interrompido Por um ataque de tosse) Hum! Hum! Hum!... Goj-arge Macchan... Hum! Hum!... Macchanam... Hum! Macchananail, JCenneth, hum! Macferedith; Eachan Macfungus, e vinte outros nomes, todos evidentemente célticos, que eu lhe citaria se esta maldita tosse mo Quisesse permitir. - Beba um copo de vinho, sir Arthur, para fazer correr esse catálogo de nomes bárbaros que estrangulariam o diabo; o último desseis nomes é o único inteligível; são todos da tribo de Macfungus, raça e monarcas que proliferaram como cogumelos, e que 68 não é mais do que o produto da cabeça leve de algum bardo escocês, nascido dos vapores da vaidade e da loucura, talvez não sem alguma mistura de artifício. - Estou admirado de o ouvir falar assim, Mr. Oldbuck. O senhor sabe, ou devia saber, que a lista desses soberanos foi copiada por Henrique Maule de Melgum, segundo as cronicas de Lock-Leven e de Santo André' e dada por ele na sua curta mas satisfatória História dos Reis, impressa por Robert Feebairn, de Edinburgo, e vendida por ele na sua loja, na cerca do Parlamento, no ano da graça de 1705 ou 1706, não estou absolutamente certo; mas tenho um exemplar em minha casa, ao lado do meu exemplar de
in-12 das Actas escocesas, e que ocupa bem o seu lugar nas minhas prateleiras, junto deste último. Que tem a dizer-me a isto, Mr. Oldbuck? - Tenho a dizer que me rio de Henrique Maule e da sua história respondeu Oldbuck - e que acedo assim ao seu pedido, tratando-o como ele merece. - Não se ria do que vale mais do que o senhor replicou sir Arthur, um tanto desdenhosamente. - É o que eu não julgo fazer, rindo-me dele ou da sua história. - Henrique Maule de Melgum era um gentleman, Mr. Monkbarns. - Suponho que não é nisso que ele tinha vantagem sobre mim - replicou o Antiquário, um pouco azedamente. - Perdão, Mr. Oldbuck, era um gentleman de alta família, de uma origem antiga, e é por isso que... - O descendente de um impressor da Vestefália não deve falar dele senão com respeito: assim deve ser a sua opinião, sir Arthur, mas não é a minha. Eu sou de opinião que a origem que tenho desse laborioso e industrioso tipógrafo Wolfbrand Oldenbuck, que, no mês de Dezembro de 1493, sob o patrocínio de Sebaldus Scheyter e de Sebastião Kammermaister, como nos diz o índice, acabou a impressão da Cronica de Nurembergu; sou de opinião, dizia eu, que essa origem é muito mais honrosa para mim, como homem de letras, do que se eu contasse na minha genealogia todos os velhos barões góticos, de grandes cabeças e punhos ferrados, que datam do tempo de Crentheminacheryme, e dos quais nenhum, ia apostar, sabia escrever o seu nome. 69 - Se essa observação é uma troça alusiva aos meus antepassados - disse o baromnet, tomando um tom de superioridade e de nobre desdém -tenho o prazer de o informar que o nome de um dos meus avoengos, Ganielyn de Guardover, Miles, está nitidamente escrito pelo seu próprio punho na mais antiga cópia da declaração de Ragnian. - O que não serve senão para provar que foi um dos primeiros a dar o exemplo de uma baixa submissão a Eduardo I. Depois de uma tal traição, que tem a dizer-me em favor da lealdade sem mancha de sua família, sir Arthur? - Basta, senhor! - exclamou sir Arthur, levantando-se altivamente e arredando a sua cadeira - Há-de decorrer muito tempo antes de que eu honre com a minha companhia alguém que corresponda tão mal ás minhas condescendências. - Nisso fará o que mais lhe convier, sir Arthur; mas espero que, como eu não sentia toda a extensão da obrigação que lhe devia quando entrou na minha humilde casa, achará desculpável que não tenha levado o meu reconhecimento até o servilismo. - Está bem, está bem, Mr. Oldbuck, desejo-lhe boa noite. Mr. Lovel, desejo-lhe boa noite. E sir Arthur, irritado, precipitou-se para fora do refeitório, como se fosse impelido pelo espírito dos cavaleiros da Távola Redonda, e cruzou a grandes Passos o dédalo de passagens que conduzia ao salão. - Já viu uma velha cabeça tão estúpida? - disse Oldbuck, dirigindo-se bruscamente a Lovel -Mas preciso de não o deixar partir daquela maneira louca. Assim falando, correu empós o baronnet, seguindo-lhe o rastro pelo ruído das portas que ele abria e fechava com violência à procura da que devia conduzir ao salão.
- O senhor magoa-se! -gritou o Antiquário - Qui ambulat in tenebris, nescit quo vadit (1). O senhor cai Pela escada abaixo. Sir Arthur chegara ao meio das trevas, cujo efeito calmante é bem conhecido das criadas e das governantas que têm de vigiar crianças traquinas. Mas se (1 ) Quem anda nas trevas não sabe para onde vai. - N. Do T. 70 a obscuridade não acalmou a irritação do baronnet pelo menos retardou-lhe o passo, e Mr. Oldbuck, que conhecia melhor do que ele o local, alcançouo quando ele lançava a mão ao fecho da porta do salão. - Espere um minuto, sir Arthur - disse Oldbuck, opondo-se à sua entrada brusca -Não seja tão precipitado, meu velho amigo. Confesso a minha falta de delicadeza para consigo a propósito de sir Gamelyn, e no entanto é um dos meus velhos conhecimentos, mesmo um dos meus favoritos. Foi companheiro de Bruce e de Wallace; e eu juraria, sobre uma bíblia gótica, que ele não assinou o acto em questão senão na louvável e legítima intenção de manietar o traidor inglês. Foi um autêntico ardil escocês; vamos, vamos, olvido e perdão. Convenha em que demos a este jovem o direito de nos olhar como dois velhos loucos. - Fale por si, Mr. Jonathan Oldbuck - disse sir Arthur, com majestade. - Bem, bem... Deve deixar-se o caminho livre aos teimosos. A porta abriu-se, e o imponente sir Arthur entrou no salão com uma cara que ainda parecia mais comprida e mais magra que de costume. Mr. Oldbuck e Lovel seguiram-no; todos três tinham um ar um pouco perturbado. - Estava à sua espera, senhor - declarou Miss Wardour - para lhe propor irmos de passeio ao encontro da carruagem; a tarde está tão bela! Sir Arthur apressou-se a anuir a esta proposta, que bem convinha à irritação de espírito em que estava; e, de acordo com o hábito estabelecido em casos de despeito, recusando o café e o chá que lhe ofereciam, tomou o braço de sua filha e, depois de cumprimentar as damas com cerimónia e Oldbuck muito secamente, retirou-se. - Parece-me que sir Arthur ainda leva um cão preto atrás dele (1) proferiu Miss Oldbuck. - Diabos levem o seu mau humor! É mais absurdo (1 Has got the black dog on his back again, provérbio escocês, que poderíamos traduzir por "ainda vai em sombria disposição". - N. do T. 71 uma mulher. Que diz a isto, Lovel? com a breca o jovem também se foi embora? -'Ele despediu-se enquanto Miss Wardour se preparava para se retirar; mas creio que o tio não fez reparo. - Diabos os levem! Eis o que se ganha com os cuidados, os embaraços e os trabalhos que temos para os receber a jantar, sem contar com a despesa. O Seged, imperador da Etiópia! -exclamou ele, segurando com uma mão a sua chávena de chá e com a outra um volume do Vagabundo (porque era seu hábito regular ler, quando bebia e comia em presença de sua irmã, manifestando, com este costume, o seu desprezo pelo convívio das mulheres e a sua decisão de aproveitar todos os momentos para se instruir) - ó Seged, imperador da Etiópia, tu falavas com sabedoria. Quem de entre nós poderá dizer: "Este dia decorrerá em felicidade! " Oldbuck continuou os seus estudos, durante perto de uma hora, sem ser interrompido pelas damas, que, ambas em profundo silêncio, se ocupavam de algum trabalho do seu sexo. Por fim, ouviu-se bater à porta do parlatório com uma pancada leve e modesta. - É você, Caxon? Entre, entre, homenzinho.
O velho abriu a porta e não entremostrando senão o seu magro rosto, para o qual descaíam alguns cabelos grisalhos, e a mancha do seu fato esbranquiçado, disse em voz baixa e misteriosa: - Desejava falar-lhe, senhor. - Então, entra, velho imbecil, e diz o que tens a dizer! - Eu não queria assustar as damas - disse o antigo cabeleireiro. - Assustar! -estranhou o Antiquário - Que queres dizer? Não te apoquentes com as damas; tens ainda algum fantasma de Humlock Knove? - Não, não, senhor; não se trata de fantasma desta Vez; mas não tenho o espírito tranquilo. - Já viste alguém que o tivesse? - replicou Oldouck - E com que direito um velho e mísero fabriCante de perucas como tu teria o espírito mais tranquilo do que o resto do género humano? - Não é por mim que eu receio, senhor; mas a 72 noite ameaça tornar-se terrível; e sir Arthur e Miss Wardour, a pobre menina - Bem, devem ter encontrado a sua carruagem no princípio da avenida, e com certeza que já estão em casa há muito tempo. - Não, senhor, eles tomaram pelo caminho grande para irem ao encontro da carruagem. Foram pela praia. Esta palavra produziu sobre Oldbuck um efeito de electricidade. - Pela praia! - exclamou ele -Não é possível! - Ai, senhor, foi o que eu disse ao jardíneiro; mas este assegurou-me que os viram voltar para Mussel Craig. Palavra, disse-me ele, se é assim, Davie, receio que... - Um almanaque! Um almanaque! - exclamou Oldbuck, erguendo-se muito alarmado - Não, esse não disse ele, repelindo um pequeno almanaque de bolso que sua sobrinha lhe apresentava - Santo Deus! Pobre querida Miss Isabel! Procurem-me depressa o almanaque de Fairport - Foi-lhe trazido, consultado, e aumentou grandemente a sua agitação - Irei eu mesmo; chamem o jardineiro e o moço da lavoura, que tragam cordas e escadas; digam-lhes para trazerem um ajudante com eles; que subam e sigam pelos rochedos, e que os avisem com os seus gritos; eu também vou a correr. - Mas que se passa então? - exclamaram ao mesmo tempo Miss Oldbuck e Miss Mac Intyre. - A maré! A maré! - respondeu o Antiquário, aterrado. - Se mandássemos Jenny a casa de Saunders Mucklebackit, dizer-lhe que metesse o seu barco ao mar; mas não, vou lá eu a correr -disse vivamente a jovem, que partilhava dos receios de seu tio. - Muito bem, minha querida, é a coisa mais razoável que disseste até agora; trata de correr para lá... Ir pela praia! - disse ele, pegando na bengala e no chapéu - Já alguma vez se ouviu falar de tal extravagância? 73 VII Dedicaram-se um momento a contemplar o espectáculo aterrador e novo do vasto mar. As águas, ao retirar-se, tinham-lhe primeiro permitido seguir a margem alargada da costa mas em breve elas tornaram a invadir o caminho que eles percorriam, e diminuem de momento a momento o espaço que os separa. CRABDE
A notícia de Davie Dibble, que espalhava um alarme tão geral em Monkbarns, não era senão demasiado exacta. Sir Arthur e sua filha tinham partido, como se propunham, primeiro pela estrada principal; mas quando atingiram o começo da álea marginada de sebes, que de um lado servia de certo modo de avenida à casa de Monkbarns, avistaram, a pouca distância deles, Lovel, que marchava a passo lento, como se tivesse desejo de se lhes juntar. Então, Miss Wardour propôs a seu pai tomar por outro caminho, e, como o tempo estava muito ameno, regressar pela praia que se prolonga a baixo de uma cadeia de rochedos pitorescos, oferecendo em todas as épocas uma passagem mais agradável entre Knockwinnock e Monkbarns do que a estrada principal. Sir Arthur anuiu de boa vontade. Seria bastante desagradável, dizia ele, ser abordado por aquele indivíduo que Mr. Oldbuck tomara a liberdade de apresentar-lhe com a sua educação de antigos tempos, sir Arthur não possuía aquela facilidade dos nossos dias de se desfazer de uma pessoa com a qual se Passou uma semana, desde o momento que se julgue que o seu conhecimento pode tornar-se importuno. Resolveu-se, pois, a enviar um rapazinho, que, para ganhar um penny, devia ir ao encontro do cocheiro e preveni-lo de que levasse a carruagem para Knockwinnock. Isto combinado e expedido o pequeno mensageiro, o gentleman e sua filha abandonaram a estrada principal, e, seguindo uma senda sinuosa pelas alturas 74 arenosas cobertas de giestas e juncos, depressa atingiram a beira-mar. Faltava muito para que a maré estivesse tão afastada quanto eles supunham, mas isto não os alarmou logo, porque havia só dez dias no ano em que ela se aproximava dos rochedos o bastante para não deixar uma passagem seca. No entanto, em épocas de Primavera, ou mesmo quando os ventos fortes aceleravam o fluxo vulgar, o mar cobria inteiramente esse caminho, e a tradição conservara a memória de vários acontecimentos funestos, ocorridos nessas circunstâncias. Tais perigos, porém, tinham-se apresentado tão raramente que os tomavam como pouco prováveis, e essas histórias, assim como outras lendas, serviam mais para distrair o serão do que para impedir alguém de passar pelas areias, com o fim de ir de Knockwinnock a Monkbarns. Caminhando com seu pai e desfrutando do que tinha de agradável a frescura da marcha pela praia rija e húmida, Miss Wardour não deixou de notar que a última maré se elevara a uma altura considerável acima das marcas que geralmente fixava. Sir Arthur fez a mesma observação, sem que o menor receia alarmasse o espírito de um ou de outro. O sol repousava o seu disco imenso nos confins do vasto oceano, e dourava em formas bizarras as nuvens através das quais viajara todo o dia, e que, acumuladas agora por todos os lados, pareciam anunciar os desastres que acompanham a decadência de um império ou a queda de um monarca. E no entanto o seu esplendor moribundo lançava uma sombria magnificência sobre aquele amálgama formidável de vapores, e dava àquela maça aérea a forma fantástica de pirâmides e de torres, das quais umas ofereciam um reflexo dourado, enquanto outras se cobriam de tintas púrpuras, ou de um vermelho sombrio e escuro. O vasto mar, estendendo-se sob este dossel pomposo e variado, repousava numa calma quase assustadora, e reflectia os raios brilhantes do astro no seu declínio, e o colorido rebrilhante das nuvens emque se deitava. Perto da costa, a onda vinha borbulhar e formar vagas cintilantes de espuma, que, imperceptivelmente, mas com rapidez, avançava a todos os momentos sobre a areia, com o espírito ocupado por esta cena pitoresca, ou talvez agitado por qualquer outro problema, Miss
75 Wardour marchava em silêncio ao lado de seu pai, cuia dignidade recentemente ofendida não o dispunha a prestar-se à conversação. Seguindo as voltas da praia, atravessaram uma após outra várias passagens escarpadas e acharam-se, por fim, sob a imensa cadeia de rochedos pela qual esta costa é em alguns sítios defendida. Longos recifes, que se estendiam sob a água, e cuja existência não era indicada senão por uma ponta nua que aparecia aqui e além, e pela espuma das vagas que vinham quebrar-se contra eles que estavam parcialmente cobertos, tornavam a baía de Knockwinnock muito temida dos pilotos e dos mestres dos navios. Os rochedos que orlam a praia, e que se erguem à altura de duzentos ou trezentos pés, oferecem as suas cavidades a um número infinito de aves marinhas, um asilo que parece fora do alcance da cobiça do homem. Vários desses bandos selvagens, com o instinto que os faz procurar terra antes do começo de uma tempestade, principiaram a voar em torno dos seus ninhos, com aquele grito agudo e aflitivo que anuncia a perturbação e o alarme. O disco do sol escurecera pouco a pouco antes de descer inteiramente abaixo do horizonte, e trevas súbitas e prematuras velaram o longo crepúsculo de uma tarde de Verão. O vento não tardou a levantar-se, mas fez ouvir seus gemidos tristes e lúgubres, e agitou o seio do oceano algum tempo antes de se fazer sentir em terra. A massa de águas, que se tornara sombria e ameaçadora, começou a encrespar-se profundamente; suas vagas, levantadas, avolumavam e formavam montanhas de escuma sobre os cachopos, ou arremessavam-se contra a praia com um ruído de trovão ao longe. Atemorizada por esta brusca mudança de tempo, Miss Wardour aproximou-se de seu pai e apertou mais fortemente o seu braço. - Eu preferiria - disse ela, por fim, mas quase em voz baixa e como se tivesse receio de exprimir o" seu terror nascente - eu preferiria que tivéssemos continuado a seguir a estrada principal, ou esperado em Monckbarns a chegada da carruagem. Sir Arthur olhou em sua volta, mas não viu nada, ou não quis confessar que via sinais de uma tempestade próxima. Teriam tempo, disse ele, de chegar a 76 Knockwinnock antes do começo da tempestade; mas a rapidez do seu passo, que Isabel tinha dificuldade em acompanhar, denunciava bem que ele julgava que todos os seus esforços eram necessários para realizar essa predição consoladora. Aproximavam-se então do centro de uma baía estreita mas profunda, formada por duas rochas escarpadas e inacessíveis, cujas pontas avançavam em saliência para o mar, como as de um crescente. Nenhum deles ousava comunicar ao outro o receio que começavam a experimentar de que os progressos rápidos da maré os impedissem de dobrar o promontório que estava diante deles, ou de retomar o caminho que ali os tinha trazido. Quando apressavam o passo, aspirando sem dúvida a trocar a linha curva que as sinuosidades da baía os obrigavam a adoptar, por um carreiro mais direito e mais directo, embora menos conforme as regras da beleza, sir Arthur avistou na praia um vulto humano que avançava ao encontro deles. - Louvado seja Deus! - exclamou ele - Podemos voltar para Halket Head, aquela pessoa deve passar para lá. Assim se abandonou à expansão de uma esperança, depois de ter reprimido a do terror. - Ah, sim louvado seja Deus! -repetiu sua filha, menos distintamente, e
como que exprimindo interiormente o reconhecimento que experimentava. O vulto que avançava ao encontro deles fez-lhes sinais, que o vapor da atmosfera agitada pelo vento e por uma fina chuva os impediu de ver ou de compreender distintamente. Algum tempo antes de se reunirem, sir Arthur reconheceu o velho mendigo de túnica azul, Edie Ochiltree. Diz-se que no momento em que o perigo se torna eminente e comum, os próprios animais esquecem os seus ressentimentos e as suas antipatias. A praia que dominava Halket Head, diminuindo rapidamente de extensão pelas invasões da maré impelida por um vento noroeste, era um campo neutro onde mesmo o juiz de paz e o mendigo vagabundo podiam encontrar-se com mútua benevolência. - Volte, volte para trás! - bradou o mendigo Porque não voltaram quando eu lhes fiz sinal? 77 - Julgávamos - disse sir Arthur muito agitado que teríamos tempo de atingir Halket Head. - Halket Head! O mar cobre neste momento Halket Head e lança-se daí, como da cascata de Fyers. Tudo o que pude fazer, há vinte minutos, foi dobrálo; a água chega lá por três pontos ao mesmo tempo. Talvez possamos voltar ainda pela ponta de Bally-burgh Nesse. Que Deus nos proteja, é a nossa única via de salvação. Ainda podemos experimentar. - Santo Deus, minha filha! - Meu pai, meu bom pai! - exclamaram ao mesmo tempo pai e filha, enquanto o terror lhes dava forças e agilidade; voltaram para trás, tentando dobrar a ponta que forma a extremidade meridional da baía. - Eu soube que estavam aqui pelo rapazinho que o senhor mandou ao encontro da carruagem - disse o mendigo, avançando a passo vigoroso atrás de Miss Wardour -e não pude pensar sem tremer no perigo que corria esta jovem e delicada menina, sempre tão bondosa para os corações aflitos que se refugiam junto dela. Observei então os progressos das ondas, e disse para comigo que, se pudesse chegar a tempo de os avisar que voltassem para trás, ainda tudo poderia correr bem. Mas receio, receio ter-me enganado, porque qual será o mortal que alguma vez viu o mar avançar tão furiosamente como agora? Vejam além a rocha de Ratton; sempre a vi erguer o seu topo acima da água. Pois bem! Está agora coberta. Sir Arthur lançou um olhar para o lado indicado pelo velho. Viu que um imenso rochedo que, geralmente na maré alta, ostentava uma maça semelhante à quilha de um grande navio, estava agora todo debaixo de água, sem que nada marcasse o seu lugar senão o refervilhar e o refluxo das vagas que vinham lutar e quebrar-se contra aquele obstáculo submarino. - Despache-se! Despache-se, minha boa menina continuou o velho - e talvez ainda cheguemos. Tome o meu braço; agora é velho e fraco, mas já defrontou mais de um temporal; apoie-se nele, minha bela menina! Vê além aquele ponto negro no meio das vagas escumosas? Esta manhã era tão alto como o mastro de um brigue; está bem pequeno agora, mas enquanto ele ocupar tanto espaço como a forma da 78 meu chapéu, não desespero de que possamos tornejar o Bally-burgh Nesse, apesar do estado em que nos encontramos. Isabel aceitou em silêncio o apoio que o velho lhe oferecia, e que sir Arthur não estava em estado de lhe proporcionar. As vagas avançavam então de tal maneira sobre a praia que eles foram obrigados a abandonar o caminho sólido e liso que tinham primeiro seguido sobre a areia, por uma
senda áspera que contornava o precipício e que mesmo em alguns sítios atravessava as anfractuosidades existentes no seu rebordo. Teria sido absolutamente impossível a sir Arthur e a sua filha descobrirem um caminho entre aqueles escolhos, se não fossem guiados e encorajados pelo mendigo, que já ali se encontrara pelas marés altas, embora nunca, confessou ele, por uma noite tão assustadora como aquela. A noite era, de facto, assustadora; e o mugido da tempestade misturava-se com os gritos das aves marinhas e ecoava como um sino funério sobre aquelas três vítimas que, suspensas entre os dois objectos, não os mais magníficos, mas os mais temíveis da Natureza, um mar em fúria e um abismo sem fundo, prosseguiam o seu caminho difícil e perigoso, muitas vezes batidos pela onda escumosa e gigantesca, que se elevava na praia por cima das que a tinham precedido. O seu inimigo, a cada minuto, ganhava imperceptivelmente terreno sobre eles! Entretanto, não podendo decidir-se a abandonar uma última esperança de salvação, eles fixaram seus olhares no rochedo negro que Ochiltree lhes mostrara. Ainda era fácil distinguilo entre os cachopos, e continuou a sê-lo até que, seguindo o seu caminho duvidoso, chegassem a uma esquina onde uma saliência de rocha veio ocultá-lo de repente aos seus olhos. Privados do seu único farol, com o qual tinham contado, acharam-se então entregues à dupla angústia da incerteza e do terror. Esforçaram-se, no entanto, por continuar, mas quando chegaram ao ponto de onde deveriam descobrir o rochedo negro, ele deixara de estar visível. Esse sinal de salvamento achava-se perdido no meio das ondas esbranquiçadas que, quebrando-se na ponta do promontório, se erguiam, em prodigiosas montanhas de escuma, à altura de um 79 mastro de navio de guerra, contra a fronte lúgubre do precipício. O velho empalideceu. Isabel soltou um grito débil. O seu guia pronunciou num tom solene: "Deus tenha piedade de nós! " e sir Arthur repetiu num tom lamentoso: "Minha filha, minha Isabel! Morrer de uma tal morte! " - Meu pai! Meu bom pai! -exclamou sua filha, agarrando-se a ele - E o senhor, também - ajuntou ela, olhando para o mendigo - perde a vida, ao tentar salvar a nossa! - Ela não vale a pena ser mencionada - respondeu o velho - Já vivi o bastante para estar farto da existência; quer seja aqui, quer seja além, à beira de um fosso, num montão de neve ou no seio de uma vaga, que importa o fim do pobre mendigo! - Homem - disse sir Arthur - não pode encontrar nenhum meio, nenhum socorro? Farei a sua fortuna, dar-lhe-ei uma herdade eu... - As nossas riquezas em breve serão iguais - respondeu o mendigo, contemplando o progresso das águas - Já o são, porque eu não tenho terras, e o senhor dará os seus campos férteis e a sua baronia por uma toeza quadrada de rocha que se conserva seca durante doze horas somente. Enquanto trocavam estas palavras, atingiram a mais alta saliência da rocha a que puderam chegar; pois parecia que um esfoço mais para ir avante não serviria senão para apressar a sua perda. Aí, não lhes restava mais do que esperar os progressos lentos mas seguros do elemento furioso, lembrando assim de certo modo aqueles primeiros mártires da Igreja que, expostos pelos tiranos pagãos para serem lançados às feras, eram obrigados a contemplar durante algum tempo a impaciência e a raiva que agitavam aqueles animais, que esperavam que o sinal dado para abrir as jaulas lhes permitisse arremessar-se sobre as suas vítimas. No entanto, esta pausa terrível deu a Isabel tempo de reunir todas as
suas faculdades de um espírito naturalmente firme e corajoso, e que retomasse forças nesta temível conjuntura. - Será preciso - disse ela - abandonar a vida sem tentar um derradeiro esforço? Não há uma senda, 80 qualquer que seja o perigo que ofereça, pela qual possamos subir esta rocha, ou atingir um ponto bastante elevado acima do mar para aí podermos ficar até de manhã, ou pelo menos até que venha um socorro? Deve conhecer-se a nossa situação, e em breve virá toda a gente em nosso auxílio. Sir Arthur, que ouviu, mas quase sem compreender, as perguntas da filha, voltou-se como que por instinto para o lado do mendigo, como se suas vidas estivessem nas suas mãos. Olchitree reflectiu. - Outrora - disse ele - trepava eu ousadamente os rochedos, e derrubava mais de um ninho de falcão no meio destas mesmas rochas negras; mas isso foi há muito tempo, muito tempo, e era com 9 auxílio de cordas, porque nenhum mortal o poderia fazer sem isso; e mesmo que eu tivesse uma, já não tenho o golpe de vista tão justo, nem o pé tão seguro, nem a mão tão firme como tinha então. Como poderia eu, pois, salvá-los? Mas havia outrora um carreiro por aqui que, se o vissem, talvez preferissem ficar onda estão. Bendito seja o Senhor! - exclamou ele bruscamente - Eis alguém que desce neste mesmo instante pela rocha! - Depois, erguendo a voz com toda a sua força, para aquele cuja intrepidez desafiava semelhantes perigos, começou a dar-lhe todas as instruções que a sua antiga prática e a recordação das circunstâncias locais apresentaram de repente ao seu espírito - Vai bem, vai bem!... Por aqui, por aqui!... Amarre bem a corda em volta do Chifre Crummie; é essa pedra que vê aí tão negra, dê-lhe duas voltas; é isso: agora avance um pouco mais para Leste, ainda um pouco, até a outra pedra: dantes havia aí a raiz de um roble; aí, é isso; detenha-se agora, retome fôlego e descanse, meu rapaz; que o Senhor o abençoe! Não tenha pressa. bom! Agora, é preciso chegar àquela outra pedra larga e azulada que se chama avental de Bessy, e depois julgo que, com a sua ajuda e com essa corda, chegarei até o senhor; depois poderemos subir a jovem lady e seu pai... O intrépido aventureiro, seguindo os conselhos do velho Edie, lançou-lhe a ponta da corda, que o mendigo atou em volta do corpo de Miss Wardour, envolvendo-a primeiro, cuidadosamente, com o seu manto azul, para a resguardar tanto quanto possível das injúrias do 81 tempo- depois, servindo-se ele próprio da corda que estava amarrada na outra extremidade, começou a subir a superfície da rocha, empresa perigosa e capaz de provocar vertigens, mas que depois de o ter exposto a cair uma ou duas vezes, o conduziu enfim são e salvo à larga pedra plana junto do nosso amigo Lovel. As suas forças reunidas conseguiram elevar e depor Isabel no lugar de salvamento que eles tinham atingido. Lovel desceu depois, a fim de socorrer sir Arthur, em volta do qual atou a corda; em seguida, tornando a subir ao seu lugar de refúgio, conseguiu com a assistência de Ochiltree e os esforços que sir Arthur fez por se ajudar a ele próprio, elevar-se acima do alcance das ondas. A certeza de serem arrastados para uma morte próxima e inevitável teve sobre eles efeito diferente; pai e filha lançaram-se nos braços um do outro, abraçaram-se e choraram de alegria, conquanto o seu salvamento
fosse acompanhado da perspectiva de passarem uma noite tempestuosa sobre a perigosa saliência de um rochedo que apenas apresentava o espaço suficiente para os quatro infelizes que, tremendo e aproximando-se uns dos outros, como as aves marinhas que os cercavam, se agarravam àquele lugar que lhes devia servir de asilo contra o elemento destruidor que ululava abaixo deles. As ondas escumosas, que atingiam gradualmente e de uma maneira assustadora o sopé do precipício, depois de terem inundado a praia em Que eles estiveram momentos antes, erguiam-se tão alto como o seu lugar de refúgio temporário e, pelo ruído atroador que faziam ao bater nos flancos das rochas menos elevadas, pareciam exigir os fugitivos na sua voz de trovão, como vítimas que lhes estivessem destinadas. Era, na verdade, uma noite de Verão; no entanto, parecia pouco provável que um corpo tão delicado como o de Miss Wardour pudesse resistir até de manhã àquela inundação de espuma; e o fustigar da chuva, acompanhado de longos e violentos turbilhões de vento, juntava-se a tudo o que a sua posição tinha de perigoso e difícil. - Pobre menina! Pobre e boa menina! - disse o velho - Já passei mais de uma noite semelhante, exposto às injúrias do tempo; mas, valha-nos Deus, como a vai ela suportar? 82 Estes receios eram comunicados a Lovel, a meia voz; porque, por aquela espécie de instinto que faz com que os espíritos firmes e empreendedores se entendam e por assim dizer se reconheçam no momento do perigo, eles sentiam um no outro uma confiança mútua. - Vou subir de novo a rocha - disse Lovel - Ainda há bastante claridade para me guiar; atinjo o topo e chamo por socorro. - Vá, vá por amor de Deus! -disse sir Arthur, em tom desesperado. - Está louco? - exclamou o mendigo - Francisco de Fowlsheugh, o rapaz mais intrépido da região para subir às rochas e procurar as aves nos seus próprios ninhos; o pobre diabo despedaçou-se sobre o Dunbuy Slaines. Pois bem, ele nunca se arriscaria a ir ao cimo do Halket depois, do pôr do Sol. É por graça de Deus, e mesmo por milagre, que o senhor não se encontra no meio das ondas depois de tudo ao que se arriscou. Eu não acreditava que ainda existisse um homem que descesse as rochas como o senhor o fez. Duvido de que eu próprio fosse capaz, àquela hora e com este tempo, quando tinha a força e a agilidade da juventude; mas experimentar subir de novo agora, seria tentar a Providência. - Nada receio - replicou Lovel - fixei perfeitamente todos os sítios onde me detive ao descer, e ainda está bastante dia para os ver distintamente. Tenho pois a certeza de chegar sem perigo. Fique aí, meu bom amigo, junto de sir Arthur e da menina. - Se o senhor lá vai - disse o bedesman - diabos me levem se não vou também, porque haverá bastante que fazer para nós dois ao chegar ao topo da rocha. - Não, não, fique aqui junto de Miss Wardour; bem vê que sir Arthur está completamente exausto- Fique então o senhor, e vou eu -propôs o velho-Que a morte poupe o trigo verde e ceife o que está maduro! - Fiquem os dois, rogo-lhes eu -disse Isabel, em voz fraca -Estou bem e posso passar a noite aqui; sinto-me muito melhor. Ao dizer estas palavras, a voz faltou-lhe, e ela teria caído do rochedo se Lovel e Ochiltree não a agarrassem e a colocassem, meio deitada, meio sentada, 83 lado de seu pai, inteiramente abatido pela fadiga do corpo e do espírito, tão violenta como extraordinária, já sentado numa
pedra, numa espécie de alheamento. - É impossível deixá-la - disse Lovel -Que havemos de fazer. Escute! Não é um grito que eu oiço? - -É o grito de um mergulhão, reconheço-o bem. - Não, por Deus - redarguiu Lovel - é uma voz humana. Fez-se ouvir de novo um grito distante, e apesar do estrondo dos elementos em fúria, e dos guinchos das gaivotas que os cercavam, chegou distintamente até eles. O mendigo e Lovel responderam, dando à sua voz toda a extensão que lhes era possível, o primeiro agitando o lenço branco de Isabel na ponta do seu bastão para indicar o local onde se encontravam. Embora os gritos fossem repetidos, decorreu algum tempo antes de que respondessem exactamente aos deles, deixando os nossos infelizes na incerteza de se, no meio das trevas que se adensavam e da tempestade que crescia, teriam podido fazer reconhecer o seu lugar de refúgio às pessoas que cruzavam, o rebordo do precipício para lhes trazer socorro, Por fim, receberam uma resposta regular e distinta aos seus gritos, e a sua coragem foi alimentada pela certeza de estarem ao alcance de voz, se não ainda não reunidos aos amigos que os vinham salvar. VIII Há um rochedo cujo cimo gigantesco e saliente domina de uma altura medonha o Oceano, ao qual serve de limite. Trata de me conduzires lá e eu acabarei com a miséria que te aflige. SHAKSPEARE - Rei Lear O ruído das vozes humanas que vinha de cima não tardou em aumentar, e o clarão dos archotes dePressa se juntou à frouxa claridade do crepúsculo que a obscuridade do temporal deixara. Os infelizes, do seu Precário asilo, e, do alto das rochas, os que vinham socorrê-los, tentaram mutuamente fazer-se entender mais distintamente; mas o rugido da tempestade limítou 84 as suas comunicações aos gritos tão inarticulados como os dos habitantes alados daqueles retiros selvagens, que alarmados pelo som repetido das vozes humanas, ali onde tão raramente se faziam ouvir, formavam um triste concerto com seus guinchos. Entretanto, um grupo inquieto reunira-se na crista do precipício; Oldbuck era o primeiro e o mais impaciente, e avançava com uma angústia inexprimível para a beira do rochedo, estendendo a cabeça, à qual o seu chapéu e a sua peruca estavam atados com um lenço, num ar de resolução que fez tremer os seus companheiros mais timoratos. - Cuidado! Cuidado, Monkbarns! -bradou Caxon, agarrando-se às abas da labita do patrão, e puxando-o com tanta insistência quanto as suas forças lho permitiam-Cuidado, por amor de Deus! Sir Arthur já se afogou e se o senhor também cair no abismo, não haverá mais na paróquia senão a peruca do pastor. - Estou a vê-los! Estou a vê-los! - exclamou Oldbuck - Ali, em baixo, na pedra plana. Olá! Olá Oh!... - Também os vejo - disse Mucklebackit - Estão juntos lá em baixo, como caranguejos em tempo de nevoeiro. Mas julga que os ajudará, ficando a gritar como um velho mocho durante a tempestade? Steenie, meu rapaz, traz para aqui o mastro; eu levanto-os como levantávamos outrora os barris de genebra e aguardente; pega na enxada, faz um buraco para o mastro, arranja sòlidamente a cadeira de corda, experimenta-a bem com toda a tua força.
Os pescadores tinham trazido com eles o mastro de um barco, e como uma parte da pessoas da região acorrera por zelo ou por curiosidade, depressa o mergulharam na terra, onde ficou fortemente cravado. Uma vara atada em cruz à parte superior do mastro, com uma corda ao longo e nas extremidades da qual se suspendeu um grande peso, formou uma espécie de guindaste que proporcionava o meio de descer uma cadeira, sòlidamente atada, até a esplanada de rocha onde os infelizes se tinham refugiado. A alegria destes ao ouvir os preparativos que se faziam para o seu salvamento foi extremamente moderada quando se aperceberam por que precário meio de transporte iam atravessar as regiões do ar. A cadeira balouçava a cerca de uma toeza acima do lugar que eles ocupavam, 85 descendo a todos os impulsos da tempestade e do vento e dependendo inteiramente da solidez de uma vida, que na obscuridade sempre crescente, não parecia mais do que um fio imperceptível. Além do perigo de confiar uma criatura humana aos espaços vazios do ar numa tão frágil máquina, havia o perigo mais terrível ainda de a cadeira e quem a ocupasse serem precipitados pelo vento, ou pelo balanço da corda, contra os flancos rochosos do precipício. Mas para diminuir o risco tanto quanto possível, o marinheiro experimentado descera com a cadeira uma outra corda que, ficando atada e segura pelas pessoas que permaneciam em cima, podia servir de corda de retenção e tornar o transporte mais regular e mais firme. No entanto, para se confiar a semelhante máquina, no meio da fúria da tempestade, batido pelos ventos e pela chuva, com um rochedo inacessível por cima da cabeça e um abismo sem fundo debaixo dos pés, era precisa aquela coragem que não pode nascer senão do desespero. Contudo, por mais ameaçadora que fosse de todos os lados a perspectiva do perigo, e por mais incerto e perigoso que fosse esse meio de salvação, Lovel e o velho mendigo, depois de se terem consultado um momento, e depois de o primeiro, por um vigoroso esforço e com risco de sua vida, se ter assegurado da solidez da corda, concordaram que o melhor era atar Miss Wardolur à cadeira, e confiá-la aos cuidados e à afeição daqueles que vinham em seu socorro para a transportar sã e salva para o cimo do rochedo. - O meu pai que suba primeiro! -exclamou Isabel- Por amor de Deus, meus amigos, cuidem dele Primeiro. - É impossível, Miss Wardour; primeiro, é preciso salvar a sua vida. A corda que pode suportar o seu peso poderia... - Não, não cedo a um tal sentimento de egoísmo! - Mas é preciso ceder, minha boa menina - disse Ochiltree - porque disso depende a vida de todos nós. E depois, quando chegar lá acima, poderá informá-los da nossa situação neste lugar, porque julgo que neste momento sir Arthur não é capaz disso. Tocada pela justeza deste raciocínio, ela exclamou: - É verdade! Estou pronta e disposta a expor-me 86 ao perigo em primeiro lugar. Que devo dizer aos nossos amigos, lá em cima? - Que tomem cautela a corda não roce na superfície da rocha, depois baixarem a cadeira e elevá-la com mão firme e sem desvios; daremos sinal por meio de gritos. com a terna solicitude que demonstra um pai por seu filho, Lovel atou Miss Wardour, com o seu lenço, a sua gravata e o cinturão de couro do mendigo, às costas e aos braços da cadeira, certificando-se bem da solidez de cada nó, enquanto Ochiltree procurava tranquilizar sir Arthur,
que bradava: - Que querem fazer de minha filha? Não a separem de mim! Isabel, ordenote que fiques comigo! - Santo Deus, sir Arthur, cale-se e agradeça ao Céu que estejam aqui pessoas mais prudentes do que o senhor para orientar todo este assunto! gritou o mendigo, fatigado das exclamações insensatas do baronnet. - Parem um pouco agora, rapazes! - bradou o velho Mucklebackit, que estava encarregado do comando - Voltem um pouco a vara; bom, é isso. Ei-la sã e salva em terra firme! Gritos de triunfo anunciaram o êxito da empresa aos companheiros de sofrimento de Isabel, que responderam de baixo com alegres aclamações. Monkbarns, no êxtase do seu contentamento, despojou-se da sua sobrecasaca e envolveu a jovem com ela. Ele teria tirado também a sua labita, o seu colete e o seu chapéu, se o prudente Caxon não lho tivesse impedido. - Cuidado, Vossa Honra vai matar-se com o tempo que está; serão precisos mais de quinze dias para o curar da constipação que apanhar esta noite, e isso não será bom nem para si nem para os outros. Não! Não! A carruagem está aí perto; não vale mais que duas destas pessoas levem para lá a menina? - Tem razão - disse o Antiquário, tornando a enfiar as mangas da labita Tem razão, Caxon: é uma noite péssima para passar ao ar livre. Miss Wardour, deixe-me conduzi-la à sua carruagem. - Não, nem pelo Mundo inteiro, sairei daqui sem que meu pai esteja a salvo. E de uma maneira confusa, que indicava até que ponto a sua coragem se sobrepusera ao receio mortal 87 He uma situação tão perigosa, ela explicou o melhor que pôde a situação em que eles se encontravam em baixo, e as recomendações de Lovel e de Ochiltree. - 'É justo, muito justo. Eu próprio estou impaciente por ver o filho de sir Gamelyn de Guardover em terra firme. Tenho a impressão de que nesse instante consentirá em assinar o juramento de abjuração. e ainda por cima a famosa lista de rendição, e até reconheceria a rainha Maria pelo que ela foi em realidade, a fim de se encontrar mais perto da minha garrafa de velho Porto, da qual se separou quando ela ainda estava no começo. Mas ele está agora em segurança, e ei-lo que aí vem - porque a cadeira descera de novo, na qual sir Arthur fora colocado, sem quase se aperceber disso - Puxem, rapazes. Detenham-se um momento por ele; uma genealogia tão antiga repousa numa corda de dez penes. Toda a baronia de Knockwinnock depende de três bocados de cânhamo. Respice finem, respice fanem, prestem atenção ao fim e á corda. Seja bem-vindo, meu bom velho amigo, à terra firme, embora não possa dizer à terra seca, e não faça calor aqui. Viva uma corda contra cinquenta toezas de água, embora não seja no sentido do provérbio vulgar: "Vale mais suspenso pelos rins do que Pelo pescoço". Enquanto Oldbuck assim discorria, sir Arthur, chegado sem acidente, era ternamente apertado nos braços de sua filha, que, tomando então a autoridade que as circunstâncias requeriam, ordenou a algumas pessoas presentes que o transportassem à carruagem, Prometendo segui-los dentro de alguns minutos. Ela continuou no rochedo, apoiando-se no braço de um velho camponês, sem dúvida desejosa de ver chegar em segurança aqueles com quem acabava de partilhar os perigos. - Quem vem aí? - indagou Oldbuck, quando a máQuina subiu mais uma vez Quem temos ali, debaixo daqueles andrajos? Depois, reconhecendo as faces crestadas e os cabelos grisalhos do velho
Edie, quando o clarão dos archotes o iluminou, acrescentou: - Quê! És tu, velho trocista? Temos de voltar a ser amigos... Mas, quem diabo é o quarto que está lá em baixo? 88 - Alguém que vale bem dois como nós, Monkbarns; é o jovem estrangeiro a quem chamam Lovel e que se portou, nesta bem-aventurada noite, como se tivesse várias vidas em seu poder, e as quisesse dar todas antes de expor as dos outros. Redobrem de cuidado, meus senhores, se quiserem ter em conta a bênção de um velho. Pensem que não há agora mais ninguém em baixo, para dirigir a corda de retenção... Cuidado com a Orelha do Gato... Tratem de evitar o Chifre da Vaca. - Sim, tenham cuidado - repetiu Oldbuck - Quê! Ê o meu rara avis, o meu cisne negro, o meu fénix dos companheiros da cadeira de posta! Redobre de cuidado, Mucklebackit! - Ponho nele tanto cuidado como se se tratasse de uma velha caixa de aguardente, e não poderia fazer mais, mesmo que os seus cabelos se parecessem com os de John Harlowe. Vamos, meus filhos, icem-no como deve ser. Lovel corria, de facto, muito mais risco do que os que o tinham precedido. O seu peso não era suficiente para dar solidez à máquina durante a sua ascenção; foi, pois, balouçado como uma pêndula em movimento, com o perigo de se despedaçar contra alguma rocha. Mas era jovem, enérgico e ousado, e com a ajuda do bastão ferrado do mendigo, que guardara a seu conselho, conseguiu evitar todo o choque contra a rocha, e, o que mais perigoso era ainda, contra as saliências que eriçavam a sua superfície. Flutuando no imenso espaço vazio, como leve pena que o vento impele, com um balanço capaz de lhe causar o aturdimento do medo ou de lhe provocar vertigens, conservou no entanto a presença de espírito e a liberdade de acção que lhe eram necessárias, e só quando se encontrou deposto em segurança no topo da rocha experimentou uma tontura momentânea. Quando se refez daquela espécie de desmaio, lançou olhares em redor; o objecto que ele tão ardentemente desejaria encontrar afastava-se nesse momento. Não se avistava mais do que o vestido branco de Isabel, que seguia a senda por onde devia reunir-se a seu pai. Ela não quisera abandonar aquele local sem ter visto livre de perigo o último dos seus companheiros de sofrimento, e sem que a voz rouca de 89 Mucklebackit lhe desse a certeza de que o jovem chegara, com os seus membros inteiros, e que estava apenas um pouco aturdido. Mas Lovel até ignorava que ela tomara pela sua sorte aquele grau de interesse, porque, embora nada mais houvesse nesse sentimento do que o bem legitimamente devido àquele que a socorrera em semelhante perigo, ele não julgava comprá-lo demasiado caro se defrontasse perigos ainda maiores do que aqueles a que acabava de se expor. Ao retirar-se, Isabel recomendara ao mendigo que fosse essa mesma noite a Knockwinnock; ele, porém, excusouse. "Pelo menos, que eu o veja amanhã", ajuntou ela. O velho prometeu lá ir; Oldbuck meteu-Lhe qualquer coisa na mão; Ochiltree, à claridade dos archotes, viu o que era e devolveu-lha. - Não, não, eu nunca recebo ouro, Monkbarns... e amanhã o senhor poderia lamentar-se - Voltou-se então para o grupo de pescadores e camponeses, e indagou - Qual dos senhores me dá de cear esta noite e palha fresca para descansar? - Eu! Eu! Eu! - exclamaram pressurosamente várias vozes.
- Pois bem, visto que assim é e que não posso dormir senão numa granja de cada vez, irei esta noite com Saunders Mucklebackit; ele tem sempre alguma coisa de bom. para a ceia; quanto a vocês, meus rapazes, viverei talvez para lhes recordar que me prometeram um abrigo e uma esmola. Dizendo estas palavras, retirou-se com o pescador. Oldbuck apoderou-se de Lovel. - Diabos me levem - disse ele - se o senhor volta esta noite para Fairport. Tem de vir comigo para Monkbarns... Quê, meu jovem, mas o senhor portou-se como um herói! O senhor é sob todos os aspectos um William Wallace. Vamos, meu rapaz, tome o meu braço; eu sou um apoio bastante firme para tanto vento; mas Caxon ajudar-nos-á. Aqui, velho imbecil, dê-lhe o seu braço do outro lado... E como diabo desceu o senhor àquele infernal Avental de Bessy, pois é assim que lhe chamam? Malditos sejam Bessy e o seu avental! Tudo o que tem nome de mulher ou pertence a uma mulher significa ruína ou destruição. - Não é a primeira vez que trepo rochas - disse 90 Lovel - e já observara há muito tempo os caçadores de pássaros, quando desciam ao longo deste precipício. - Mas por que milagre veio o senhor a descobrir o perigo do extravagante baronnet e de sua interessante filha? - Avistara-os da beira do precipício. - Da beira? Diabo! E havia, pois, de o impelir dumosa pendere procul de rupe? (1) Embora dumosa não seja o termo apropriado (2). Que diabo, dizia eu, o impeliu para a beira do precipício? - Confesso-lhe que gosto de ver acumular-se e ouvir rosnar a tempestade que se aproxima, ou, segundo as suas expressões clássicas, Mr. Oldbuck, suave mari, magno, etc. Mas eis a volta do caminho para Fairport, vou desejar-lhe muito boas noites. - O senhor não se desvia nem um passo nem uma polegada, ou o comprimento de um salmão, palavra que, diga-se de passagem, tem embaraçado vários pretensos antiquários. O senhor sabe perfeitamente que o espaço que as leis concedem para a passagem de um salmão através de uma represa, de um dique, é precisamente o mesmo que é necessário aos movimentos de um porco gordo. Agora, pretendo eu provar-lhe que, da mesma forma que se faz uso dos objectos terrestres para estabelecer as medidas submarinas, se deve supor que os produtos das águas se consideraram como bases para medir as terras. Shathmant. salmão, o senhor vê a ligação íntima dos sons; toda a diferença consiste em suprimir duas letras e em juntar uma nova. Seria de desejar que um antiquário não exigisse mais difíceis concessões quando se propõe determinar uma etimologia. - Mas, meu caro senhor, tenho realmente necessidade de ir para minha casa... estou encharcado até os ossos. - Terá o meu roupão e as minhas pantufas, e tome cuidado, jovem, não apanhe a febre antiquária, como se apanha a peste ao usar o vestuário de um (1) Suspenso de uma rocha forrada. - N. do T. (2) Decerto porque o rochedo era nu e não forrado. N. do T. 91 estífero. Vamos, eu adivinho, o senhor receia meter um velho solteirão em despesas. Mas, acaso, não temos nós os restos daquele excelente pastelão de aves, que, meo arbítrio, é melhor frio do que quente, e aquela garrafa do meu velho vinho do Porto, do qual aquele imbecil do baronnet, a quem já não perdôo a estupidez desde que evitou quebrar o pescoço, não tomara
senão um copo quando a sua má cabeça começou a desvairar a propósito da Gamelyn de Guardover? E assim falando, arrastou Lovel até a porta do Peregrino de Monkbarns. Talvez nunca dois peões mais fatigados tivessem franqueado o seu limiar. O exercício que Monkbarns fizera, fora de um género bem diferente dos seus hábitos vulgares, e o seu companheiro, mais jovem e mais robusto, experimentara essa tarde uma agitação de espírito que o maçara ainda mais do que as fadigas corporais e extraordinárias que sofrera. IX Se o senhor for valente, disse ela, ainda o poderemos alojar aqui; porque o quarto onde aparecem os espíritos é o mais belo da casa. Assim, pois, se a sua coragem não se abala por ouvir o chocalhar das correntes e por ver os seus cortinados agitar-se; se, quando o fantasma horrível se aproximar do seu leito, a sua língua intrépida encontrar força para proferir palavras e interrogá-lo sobre o motivo que o faz deixar o túmulo, fale, e eu vou preparar os lençóis e eu vou conduzi-lo ao quarto. História verdadeira Chegaram à sala onde tinham jantado, e foram alegremente acolhidos por Miss Oldbuck. - Onde está a jovem? - indagou o Antiquário - Em verdade, meu irmão, em toda esta desordem, Maria não quis guiar-se por mim; teve de partir também para Halket Head, e estou admirada de que o senhor a não tenha visto. - Eh, como? Que diz, minha irmã? Essa jovem, com semelhante tempo, foi a Halket Head? Santo Deus! 92 As desgraças esta noite ainda não chegaram ao seu termo! - Mas o senhor não me dá tempo de falar, Monkbarns; é tão imperioso e tão impaciente. - Tréguas à estupidez, minha irmã! - disse o Antiquário, agitado - Onde está a minha querida Maria? - Onde o senhor devia estar, Monkbarns, lá em cima no seu leito bem quente. - Tê-lo-ia jurado - disse o Antiquário, evidentemente, muito aliviado Tê-lo-ia jurado. A pequena preguiçosa inquietava-se muito pouco se nos tivéssemos todos afogado além; mas para que me disse que ela saira? - Não me deixou terminar, Monkbarns; ela saiu, com efeito, e não voltou com o jardineiro senão quando teve a certeza de que nenhum de vós caira no precipício, e viu Miss Wardour sã e salva na sua carruagem. Não há mais de um quarto de hora que ela entrou, pois são perto de dez horas, e a pobre pequena estava tão encharcada que lhe misturei um copo de Xerez no caldo de farinha. - Fez bem, Grizel; nada como vós, mulheres, para saberem tratar-se umas às outras. Mas escute, minha venerável irmã. e que esta palavra venerável a não faça recuar, porque se aplica a várias qualidades recomendáveis independentemente da idade, que é muito respeitável também, embora este seja o último título pelo qual as mulheres desejariam ser homenageadas; mas escute, dizia eu, mande-nos trazer imediatamente o resto do pastelão de aves e a garrafa de Porto. - O pastelão de aves, o Porto, meu Deus! Não resta senão os ossos do pastelão, e apenas uma gota de vinho na garrafa. A fronte do Antiquário ensombrou-se, embora ele fosse muito bem educado para exprimir em presença de um estranho a sua desagradável surpresa por
falta dos pitéus com os quais tão confiadamente contava para cear. Mas sua irmã compreendeu os seus olhares irritados. - Oh, Monkbarns - disse ela - para que apresentar esses modos? - Eu não apresento modos, segundo a tua expressão. - Não; de que serve fazer assim essa cara por 93 causa de uns ossos descarnados? Se quer saber a verdade, dir-lhe-ei que o ministro veio esta tarde, o digno homem! e estava muito inquieto pela vossa precária situação, foi a palavra de que ele se serviu, porque, como sabe, o Céu concedeu-lhe o dom da palavra; não quis sair daqui senão quando teve a certeza de como o caso se volveu em vosso favor. Disse-me tão belas coisas sobre a resignação que se deve observar perante a vontade da Providência, o digno homem! Oldbuck replicou no mesmo tom: - O digno homem! Tenho a impressão de que ele não se aborreceria de ver o domínio de Monkbarns passar para a minha herdeira. E foi enquanto prodigalizava as suas consolações cristãs sobre males futuros que o pastelão de aves e o vinho do Porto desapareceram? - Meu caro irmão, como pode pensar nessas ninharias depois de ter escapado assim ao abismo? - Quisesse Deus, minha querida Grizzie, que a minha ceia tivesse escapado ao abismo ou à gula do pastor! Devorou tudo, suponho eu? - Ah, Monkbarns, o senhor fala como se estivéssemos desprovidos por completo de carne nesta casa. Deveria eu proceder de outro modo senão oferecendo a esse honesto homem que se refrescasse e restaurasse, depois de ter vindo do presbitério até aqui? Oldbuck recitou, meio assobiando, meio cantando, este velho refrão escocês: Regalaram-se primeiro com chouriços brancos As marcelas vieram depois; E bebeu-se e comeu-se tão depressa Que a mim próprio me engoliriam, julgo eu. Sua irmã apressou-se a acalmar os seus murmúrios, propondo alguns outros restos do jantar. Falou de outra garrafa de vinho do Porto, mas recomendou de preferência um copo de aguardente, que, de facto, era oprima. Como nenhuma instância pudera persuadir Lovel a envergar o roupão de florinhas e a gorra de veludo, Oldbuck, que pretendia ter conhecimentos da arte médica, aconselhou-o a deitar-se o mais cedo possíveL, e propôs enviar no dia seguinte, de manhã cedo, o infatigável 94 Caxon a Fairport para lhe trazer a roupa branca e o fato. Ao ouvir dizer, pela primeira vez, que o jovem forasteiro devia ser seu hóspede durante a noite, Miss Oldbuck foi atingida por uma tal surpresa que, sem a preponderância do peso que lhe atravancava a cabeça e que já descrevemos, seus cabelos grisalhos ter-se-iam eriçado de maneira a derrubarem todo o edifício. - Valha-nos Deus! - exclamou a velha solteirona, toda confusa. - Então que tem, Grizel? - De que falava neste momento, Monkbarns? - De que falava? Não ouviu? Dizia que tinha necessidade de me ir deitar, assim como este pobre jovem, a quem é preciso preparar um leito imediatamente. - Um leito! Deus nos livre! - exclamou de novo Grizel. - Mas, que significa isso? Não há bastantes quartos e leitos na casa? Não era antigamente um hospitium, no qual, ouso dizer, se dava todas as noites de dormir a uma vintena de peregrinos, pelo menos?
- Ó Monkbarns, quem sabe o que então se fazia! Foi há tanto tempo! Mas nos nossos dias... Não é, no entanto, que faltem camas aqui, nem quartos tão-pouco; mas bem sabe que ninguém se deita neles Deus sabe há quanto tempo, e que os quartos nem sequer foram abertos. Se nós soubéssemos, Miss Maria e eu teríamos ido para o presbitério; temos a certeza de dar sempre prazer a Miss Beekie, assim como ao ministro; mas agora Deus nos livre... - E não há o quarto verde, Grizel? - É verdade, e esse está em ordem, apesar de ninguém ter dormido nele depois do doutor Heavystente; mas... - Mas... quê? - Quê? Deve recordar-se da noite que ele lá passou, e o senhor certamente não quer expor este jovem gentleman a passar uma noite semelhante. Ao ouvir esta discussão, Lovel quis fazê-la terminar, protestando que antes preferia regressar a pé a Sua casa do que causar-lhes o menor incômodo. O exercício, disse ele, far-lhe-ia bem; conhecia perfeitamente a estrada de Fairport, tanto de noite como de 95 dia' aliás, a tempestade abrandava; e a isto ajuntou tudo o que a delicadeza lhe pôde sugerir para escapar-se a uma hospitalidade que parecia dever ser para os seus hóspedes mais incomodativa do que ele previra. Mas o ulular do vento e o ruído que a chuva fazia ao fustigar as vidraças, juntos ao pensamento das fadigas a que estivera exposto toda a tarde, teriam impedido Oldbuck de consentir na retirada do seu jovem amigo, mesmo que este lhe inspirasse menor interesse. Além disso, tinha a honra de mostrar que não se deixava governar por mulheres. - Sente-se, jovem, sente-se - repetiu ele por várias vezes - Nunca mais desrolharia uma garrafa se o senhor e eu nos separássemos assim, e eis precisamente uma de excelente ale (1), verdadeiro anno Domini... nada que se pareça com os vossos pérfidos cozimentos, mas o licor natural, fabricado com cevada de Monkbarns. John de Girnel nunca abriu uma garrafa melhor para um menestrel errante ou peregrino que trouxesse as novidades mais frescas da Palestina. E para dissipar de vez do seu espírito o menor desejo de partir, saiba que, se o fizer, a sua reputação de valente cavaleiro se perderá para sempre. Ah! É uma autêntica aventura dormir no quarto verde de Monkbarns! Minha irmã, trate de o mandar preparar, e embora o aventureiro doutor Heavysterne não tenha sonhado senão desgostos e dor nesse compartimento encantado, não é razão para que um bravo campeão como o senhor, duas vezes tão grande e com metade do peso do doutor, não possa defrontar o encanto e destruí-lo? - Como? É então um quarto de fantasmas? - Exactamente... Cada casa desta região tem de ufanar-se da antigüidade dos seus fantasmas, e não se deve julgar que nós sejamos menos favorecidos do que os nossos vizinhos. Em verdade, eles começam a Passar um pouco de moda. Recordo-me do tempo em que se o senhor se permitisse duvidar da realidade de um espectro num velho solar, corria o risco, como diz Hamlet, de transformar-se em espectro. Sim, se o senhor tivesse contestado a existência do capuz vermelho no castelo de Glenstirym, o velho sir Peter Pepper(1) Cerveja forte. - N. do T. 96 brand chamá-lo-ia ao seu pátio e obrigá-lo-ia a recorrer à sua arma, e se o senhor não fosse o mais destro no combate, ele amarrá-lo-ia com um cadeado à grade da sua residência baronial. Eu próprio escapei por pouco a semelhante desafio. Mas humilhei-me perante o capuz vermelho e apresentei-lhe as minhas desculpas; porque, mesmo no tempo da minha
juventude, nunca fui partidário da monomaquia ou do duelo, e estimei mais a companhia do padre que a do cavaleiro; e já não me preocupo em dar provas de bravura. Mas graças a Deus, eis-me velho, agora, e posso abandonar-me às minhas vivacidades, sem ser obrigado a defendê-las à ponta de espada. Nesse momento, Miss Oldbuck tornou a entrar, com uma atitude singularmente grave. - A cama de Mr. Lovel - disse ela - está pronta, meu irmão; acabam de lhe pôr lençóis brancos e secos, uma acha arde na chaminé... E asseguro-lhe, Mr. Lovel, que não lastimo o trabalho, e de todo o meu coração lhe desejo uma boa noite; mas... - Mas, entretanto - disse o Antiquário - a senhora está decidida a fazer tudo o que puder para o perturbar. - Eu? Asseguro-lhe que não disse nada, Monkbarns. - Minha querida senhora - proferiu Lovel - permita-me que lhe pergunte a causa da solícita inquietação que experimenta a meu respeito. - Oh! Monkbarns não gosta de ouvir falar disso... no entanto, ele sabe muito bem que o quarto tem má fama. Ainda não se esqueceu de que era lá que dormia o velho Rab Tull, o notário da cidade, quando ele teve aquela comunicação maravilhosa relacionada com o grande processo então pendente entre nós e os feudatários de Mussel Craig. Custou montes de dinheiro, Mr. Lovel, porque os processos, então como hoje, não se mantêm sem isso, e o Monkbarns desse tempo, nosso digno antepassado, Mr. Lovel, estava quase a perder em juízo por falta de um papel. Monkbarns bem sabe de que papel falo, embora não queira ajudar-me a dizê-lo... Não importa! Era um papel de grande importância para o processo, e sem o qual estávamos perdidos! Pois bem, a causa estava marcada para julgamento antes de quinze dias... como se diz, 97 creio eu, e o velho Rab Tull, o notário que seguia este pleito veio dedicar-se a uma derradeira busca' desse Papel que era Preciso antes de que meu avô partisse de Edimburgo, a fim de terminar o processo; já não tinha senão muito pouco tempo diante dele... Rab não passava de um pobre homem, segundo ouvi dizer; mas era notário da cidade de Fairport, e os herdeiros de Monkbarns sempre o utilizaram por causa das suas relações com a cidade, como sabe. - Isso torna-se insuportável, mana Grizel - disse o Antiquário, interrompendo-a - Declaro que a senhora teria tido tempo de evocar a sombra de todos os abades de Trotcosey, a contar de Waldimir, desde que iniciou a sua introdução à história de um só mísero espectro. Aprenda, pois, a usar de concisão nas suas narrativas, imite o laconismo do velho Aubrey, muita experiente neste assunto, e que contava os exemplos no seu jornal, no estilo breve e preciso de um negociante, exempli gratia: "Em Cirenscester, a 5 de Março de 1670, houve uma aparição: à pergunta se era um bom ou mau espírito, nenhuma resposta foi dada, mas tudo desapareceu, deixando um perfume singular e uma vibração harmoniosa. Vide as suas Miscelâneas, página 18, se a memória me não falha, a meio da página. - Por Deus, Monkbarns, julga que toda a gente é tão sábia como o senhor? O seu gosto é obrigar as pessoas a fazer má figura: isso acontece muitas vezes com sir Arthur, e até com o pastor. - A natureza favoreceu-me nesses dois casos, Grizel, e num terceiro de que não falarei; mas tome um um copo de ale, irmã Grizel, e acabe a sua história, que se faz tarde.
- Jenny está a aquecer o seu leito, Monkbarns, e o senhor tem de esperar que ela acabe... Pois bem, estava eu então à procura do que o nosso digno antepassado, o Monkbarns de então, fazia com a ajuda do velho Rab Tull. Mas, por mais que procurassem nada puderam encontrar que lhes servisse, e assim, depois de folhearem numa velha carteira de couro, e de engolirem muita poeira, Rab tomou a sua gota de ponche para limpar a goela; nunca houve grandes bebedores nesta casa, Mr. Lovel; mas aquele homem es-i tava tão habituado a ir beber com os bailios e os decanos, 98 quando se reuniam para tratar dos interesses da região (e era quase todas as noites), que já não podia dormir sem aquilo. Depressa ele bebeu o seu ponche e se foi deitar; a meio da noite, teve um despertar terrível, tão terrível que depois disso, segundo se diz nunca mais foi o mesmo homem, e morreu de uma paralisia quatro anos depois, mais dia menos dia. Ele julgou então ouvir, a meio da noite, o roçagar dos seus cortinados, Mr. Lovel, e começou a olhar, pensando, o pobre homem, que talvez fosse o gato... Mas viu, Santo Deus, toda eu me arrepio, embora já tenha contado esta história pelo menos vinte vezes; viu, dizia eu, à luz do luar, um velho gentleman de boa cara, de pé junto do seu leito, vestido de maneira estranha, com muitos botões e cordões no casaco e essa parte do seu vestuário que não convém a uma dama citar (1), era ampla, comprida e tão longa como o que usam os marinheiros holandeses. Também tinha barba e os bigodes no lábio superior erguidos a cada canto e de um comprimento terrível. Rab forneceu ainda outros pormenores, mas agora já estão esquecidos, porque se trata de uma velha história... Ora, Rab era um homem honesto, apesar de procurador de província, e assustou-se menos do que se poderia esperar; perguntou ao espectro o que lhe desejava, mas este respondeu numa língua desconhecida; em seguida, Rab disse que experimentou falar-lhe em erse, porque viera na sua mocidade da região de Glenlivat; mas não se fez entender melhor; então, lembrou-se de duas ou três palavras latinas que aprendera nos processos da cidade, e mal tentara dizê-las ao espírito, logo este o inundou de súbito com um tal dilúvio de latim que o pobre Rab Tull, que não era muito forte nesse capítulo, ficou todo confuso. Contudo, não perdeu a cabeça, e lembrou-se do nome latino do documento que procurava, à força de ouvir o espectro gritar sempre carter, carter. - Carta - emendou Oldbuck - não desnature a língua, por favor! Porque se o meu avoengo não aprendera outra no Outro mundo, é pelo menos provável (1) Refere-se às calças em que uma pudica dama inglês" de outrora não falava. - N. do T. 99 que não tivesse esquecido o latim, pelo qual fora tão célebre neste. - Pois bem, seja carta; mas os que me contaram a história disseram-me carter. Ele gritava sempre carta, visto que é carta, e fez sinal a Rab para o seguir. Rab tinha a coragem de um montanhês; saltou do leito, lançou mão às primeiras roupas que encontrou e seguiu a aparição escadas acima, escadas abaixo, até ao sítio a que nós chamamos pombal. É uma espécie de pequena torre à esquina da velha casa, onde havia uma porção de malas velhas e velhos baús; aí, o espectro arremessou Rab com um pontapé contra aquele velho armário gótico que meu irmão tem no seu gabinete perto da estante, e depois desapareceu como o fumo de um cachimbo, deixando o pobre Rab num estado deplorável. - Ttennues secessit in auras (1) - disse Oldbuck Realmente, senhor, mctnsít odor(2); mas o que é certo é que o documento foi encontrado numa gaveta desse móvel esquecido, que continha vários papéis muito curiosos, cuidadosamente etiquetados e postos em ordem, e que parece terem
pertencido ao meu avô, primeiro proprietário de Monkbarns. O documento encontrado de tão estranha maneira era a carta original da fundação da abadia de Trotcosey, das terras abaciais e assim, sucessivamente, de um senhorio soberano em favor do primeiro conde de Glengibber, favorito de James VI. Ostentava a assinatura do rei e a data de Westminster, do 17º dia de Janeiro anno Domini, ou ano da graça de 1612 ou 13. É inútil repetir o nome das testemunhas. - Gostaria - disse Lovel, que começava a excitar-se - de conhecer a sua opinião sobre a maneira como esse documento foi descoberto. - Mas, se eu tivesse necessidade de um apoio para a minha lenda, encontraria um nome não menos respeitável do que o do próprio Santo Agostinho, o qual conta a história de um personagem defunto que apareceu a seu filho, perseguido por uma dívida já paga, e lhe indicou onde se encontrava o roubo; mas confesso (1) Desvaneceu-se no ar ligeiro V. do T. (2) O perfume ficou. - N. do T. 100 que sou antes da opinião de lorde Bacon, que disse que a imaginação tem muita parte na fé que damos a estes milagres. Sempre correram boatos acerca deste quarto, onde se pretendia que fazia a sua aparição o espírito do meu trisavô Aldobrand Oldenbuck; o meu trisavô ou o meu três vezes avô. É vergonhoso que na língua inglesa não tenhamos uma maneira menos ridícula de exprimir esta relação de parentesco de que tantas vezes temos ensejo de falar (1). Ele era estrangeiro e trazia o costume nacional de cuja tradição nos conservou uma descrição exacta; há mesmo uma gravura, atribuída a Reginald Elstracke, onde o apresentam a manobrar por suas mãos a prensa de onde saíram as folhas da sua edição rara da Confissão de Augsburgo. Ele era tão bom químico como mecânico, e cada uma destas qualidades bastava então para ser acusado de magia branca. O piedoso procurador supersticioso sabia tudo isto e provavelmente acreditava-o, e durante o seu sono a imagem e o pensamento do meu velho avô recordou a do velho armário, de que se tinham desembaraçado, atirando-o para o pombal, com o menosprezo que muitas vezes se mostra pelas antigüidades e pela memória dos nossos pais. Ajunte a tudo isto aquele qwntum sufficit de exagero, e terá a chave de todo o mistério. - ó meu irmão, meu irmão! O senhor esquece o doutor Heavysterne, cujo sono foi tão horrivelmente interrompido, que declarou que não passaria outra noite no quarto verde, nem que lhe dessem todo o domínio de Monkbarns, se bem que Maria e eu fôssemos obrigadas a ceder-lhe o nosso... - É preciso dizer, Grizel, que o doutor é um bom e honesto alemão de cabeça pesada, embora de muito mérito no seu género, mas que sempre foi admirador do místico e do maravilhoso, como todos os seus compatriotas. A senhora e ele não fizeram outra coisa essa noite senão falar dessa espécie de histórias; ele brindara-nos com os seus contos de Mesmer, de Shropfar e de Cagliostro, e outros que pretendem deter o segredo (1) Para designar o parentesco de trisavô, o autor empregou esta palavra composta: great-great-great-grandfather. - N. do T. 101 de evocar os espíritos e descobrir tesouros, em troca das lendas do quarto verde que soubera por si. Ora, considerando que o ilustríssimo doutor comera libra e meia de picado escocês, à ceia, que fumara seis cachimbos e bebera ale e aguardente em proporção, não é muito de admirar que fosse assaltado por pesadelos. Mas tudo está preparado agora; permita-me que o alumie até o seu quarto, Mr. Lovel; tenho a certeza de que o senhor tem necessidade de sono, e espero que o meu trisavô conheça
muito bem os deveres da hospitalidade para não perturbar o repouso que o senhor tanto merece pela sua brava e generosa acção. Assim falando, o Antiquário pegou num castiçal de prata maciça e de forma antiga, o qual, observou ele, fora forjado com prata encontrada nas minas das montanhas de Harz e pertencera ao mesmo personagem que acabava de ser o tema da conversa. Concluindo assim, marchou à frente, cruzou diversas passagens sombrias e tortuosas, subiu e desceu várias vezes antes de chegar ao compartimento destinado ao seu jovem hóspede. X Quando a noite, na ausência da Lua, cobriu os céus com seu véu funéreo mas passageiro, à hora em que os mortais dormem, em que só os mortos velam e saem dos seus túmulos, nenhuma aparição cruel vem perseguir-me, nenhum pálido fantasma vem atemorizar-me no leito, mas, ai, minha imaginação confempla uma imagem ainda mais triste: é o fantasma da felicidade que há muito tempo me fugiu. W. E. SPENSER Quando chegaram ao quarto verde, pois é assim que lhe chamam, Oldbuck pôs a luz em cima da mesa de toilette, diante de um largo espelho com moldura negra do Japão e caixas semelhantes. Relanceou um olhar, com uma leve expressão de intranquilidade, e disse: - Venho raras vezes a este aposento, mas nunca aqui entro sem experimentar a influência de uma 102 sensação de tristeza, não certamente por causa das histórias pueris que Grizel lhe contou, mas pela recordação de circunstâncias ligadas a uma afeição da mocidade que não foi nada feliz. É em semelhantes momentos, Mr. Lovel, que nos apercebemos dos efeitos do tempo. Estão diante de nós os mesmos objectos esses objectos inanimados contemplámo-los nós nos dias da infância caprichosa, da mocidade ardente; da preocupada e empreendedora maturidade; permaneceram os mesmos: mas se os olhamos de novo quando já chegou a fria e insensível velhice, que poderemos dizer a nós próprios, mudados como estamos no carácter, nos gostos, nos sentimentos; mudados no aspecto das feições, da figura e das forças? Ou não deveremos antes lembrar-nos com espanto de que fomos outrora seres tão diferentes, tão distintos do que somos agora? O filósofo que chamava Filipe abrasado pelo vinho ao Filipe nas suas horas de sobriedade, não escolhia um juiz tão diferente como se chamasse Filipe jovem ao Filipe na sua velhice. Não posso deixar de me sentir comovido por estes sentimentos tão bem expressos num pequeno poema que ouvi recitar: Sinto meus olhos cheios de lágrimas infantis; Sinto também meu coração loucamente, agitado; O mesmo som que escutava outrora Chega-me aos ouvidos, agora, no meio das colina". Esta lisonjeira ilusão Ainda perdura na velhice; E no entanto a fria razão Lamenta menos, em sua sabedoria, O que o tempo derruba na sua ceifa Do que o que deixa depois de passar. "Pois bem, diz-se, cura todas as feridas, e embora a cicatriz fique e ainda por vezes possa ser dolorosa, já vai longe a primeira angústia que elas causaram. Depois de assim falar, apertou cordialmente a mão de Lovel, desejou-lhe boa noite e deixou-o. Lovel pôde contar cada passo do anfitrião, enquanto este se retirava ao
longo das diversas passagens, e ouviu 103 cada porta bater atrás dele com um ruído mais distante e mais surdo. Quando todo o rumor cessou e se encontrou por assim dizer separado dos vivos, pegou na luz e começou a examinar o aposento. Um lume claro ardia na chaminé; Miss Grizel cuidara de que lhe deixassem madeira para o caso de ele querer alimentá-lo. Se o quarto não tinha um ar alegre, pelo menos nada faltava para que nele se estivesse à vontade. As paredes achavam-se cobertas por uma espécie de tapeçaria de Arras, do século XVI, e que o sábio tipógrafo de quem tantas vezes se falara, trouxera com ele como amostra das artes do continente. O assunto era uma partida de caça; e como as ramagens tufadas das árvores de uma floresta se estendiam pela tapeçaria e constituíam a sua cor dominante, dera-se àquele aposento o nome de quarto verde. Figuras gesticulantes, em velhos trajos flamengos, de gibões debruados de fitas, com mantos curtos e botas altas, ocupavam-se em suster os lebreus pela trela ou em incitá-los contra os animais que caçavam. Outros, com picos, espadas e espingardas de forma antiga, atacavam javalis e veados que tinham cercado. Os ramos das árvores estavam cobertos de aves de diversas espécies, cada uma representada com a plumagem que lhe era própria. Parecia que o artista flamengo fora animado daquela imaginação fecunda, daquela riqueza de invenção que distingue o nosso velho Chaucer. Assim, Oldbuck mandara bordar em letras góticas, numa espécie de debrum acrescentado à tapeçaria, os seguintes versos daquele antigo mas excelente poeta: Aí descobrir os grandes robles, Tão direitos como freixos jovens, Ensombrando uma relva ridente. Cada árvore prospera e ergue-se, Separada da sua companheira, Rica de nova seiva, E bela de uma folhagem tenra, Dourada pelo sol nascente. 104 A outro canto estavam gravados ainda estes versos do mesmo autor: Brinca em minha volta o veado ou o gamo, Escoltado pela cabra ou pelo bode selvagem; E o esquilo, empoleirado na árvore de verdes ramos, Trinca avelãs e ri-se da tempestade. O leito era de um verde sombrio e seco, feito para dizer com a tapeçaria, mas trabalhado por mão mais moderna e menos hábil. As pesadas e enormes cadeiras estofadas, de espaldar de ébano, eram bordadas segundo o mesmo modelo, e um largo espelho, por cima da antiga chaminé, estava emoldurado como o do antigo toilette, ao qual correspondia. - Diz-se - pronunciou Lovel a meia voz, ao examinar o quarto e o seu mobiliário - que os fantasmas escolhiam sempre o melhor aposento da casa onde se instalavam, e devo confessar que o espírito do impressor da Confissão de Augsburgo não tinha pior gosto do que os outros. Contudo, agitado pelos seus próprios desgostos, não lhe foi possível concentrar a atenção nas histórias que acabava de ouvir acerca de um aposento para o qual elas pareciam tão bem feitas que ele quase lamentava a ausência dessas agitações, excitadas em parte pelo medo, em parte pela curiosidade, que suscitam estes velhos contos em que o assustador se mistura com o sobrenatural, mas cujas inquietações demasiado reais, ligadas a uma paixão infeliz, o tornavam nesse momento incapaz. Essas comoções eram todas semelhantes às que se encontram expressas nestes versos: Ai, quanto, cruel donzela, Tua presença mudou meu coração!
Ele foi seduzido pela tua doçura; E agora que te chamo, Do teu sofro o rigor. Ele procurou em vão dar ao seu espírito uma disposição análoga à situação em que se encontrava; seu coração, porém, não podia prestar-se às conveniências da sua imaginação. A imagem de Miss Wardour, resolvida a não o reconhecer quando não pôde evitar 105 o seu convívio, e mostrando desejo de lhe fugir, bastaria para o ocupar exclusivamente. Mas recordações que, por serem menos penosas, não o perturbavam menos vivamente, juntavam-se ainda para o agitar. A maneira milagrosa como Miss Wardour escapara à morte, o serviço que ele tivera a felicidade de lhe prestar e que ela tão mal lhe pagara "(pois não abandonara ela o rochedo num momento em que ainda era incerto que o seu salvador conservasse a vida, que por ela não receara expor? seguramente tudo isto pedia, ao menos, que revelasse algum interesse pela sua sorte... Mas era bem ela que se mostrava egoísta e injusta? Não, tais defeitos não pertenciam à sua alma. Sem dúvida, queria ela por este meio aniquilar-lhe toda a esperança e, por piedade por ele, extinguir uma paixão que ela nunca poderia partilhar. Estes raciocínios, porém, dignos de um amante, não eram nada apropriados para o reconciliar com a sua sorte, visto que, quanto mais lhe apresentavam Miss Wardour pela feição estimável, menos sentia poder conformar-se com a perda das suas esperanças. Ele sabia que em certos pontos tinha maneira de dissipar os preconceitos que ela alimentava a seu respeito; mas neste mesmo extremo, e antes de se arriscar a parecer-lhe importuno com tais esclarecimentos, resolveu primeiro certificar-se, segundo o seu primitivo pro"jecto, de que ela própria os desejaria. No entanto, examinando as coisas por todos os lados, não podia decidir-se a abandonar toda a esperança; porque, através da surpresa e da gravidade de Isabel quando lhe foi apresentado por Oldbuck, ele notara um leve cambiante de embaraço, e, pensando bem nisso, podia ser que fosse para lho ocultar que ela dera ao seu olhar aquela expressão severa. Não podia resolver-se a renunciar a um amor que já lhe causara tanto desgosto; e projectos tão romanescos como ia cabeça que os concebera sucederam-se uns aos outros no seu espírito, e, por muito tempo depois de se ter deitado, impediram-no de desfrutar do repouso de que tinha tanta necessidade. Por fim, cansado pela incerteza e pelos obstáculos que envolviam cada um dos seus planos, decidiu-se ao penoso esforço de vencer a sua paixão, expulsar o amor da sua alma, como; o leão que sacode as gotas 106 do orvalho caídas na sua juba, no dizer de Shakspeare e retomar os estudos e a carreira que aquele amor tão mal correspondido o obrigara a abandonar, havia tanto tempo, e procurou firmar-se nesta última resolução por todos os motivos que o orgulho, bem como a razão, lhe oferecia. - Ela não suporá - disse ele - que, valendo-me de um serviço acidental prestado a ela e a seu pai, quero tentar atrair sobre mim uma atenção à qual não me julga com qualquer direito. Não a verei mais, regresso àquele país onde, se não existe mulher que a ultrapasse em beleza, haverá talvez quem a iguale e, pelo menos, de orgulho menos intransigente. Amanhã quero dizer adeus a este frio clima e àquela que encontrei ainda mais fria e mais severa. Depois de ter pensado por algum tempo nesta heróica resolução, cedeu por fim ao esgotamento e à fadiga, e, em despeito da sua cólera, das suas
dúvidas e das suas inquietações, acabou por adormecer. É raro que o sono que se segue a agitações tão violentas seja profundo e reparador. O de Lovel foi perturbado por mil visões confusas e estranhas. Tão depressa ele era uma ave, tão depressa um peixe, ou pelo menos ele voava como uma e nadava como outro faculdades que lhe teriam sido muito úteis algumas horas antes. Depois, Miss Wardour era uma sereia ou "ma ave do paraíso; seu pai era um tritão ou uma gaivota, e Oldbuck alternadamente um golfinho ou um corvo marinho. Estas agradáveis imagens eram acompanhadas de todas as características inerentes aos Sonhos que se experimentam durante a febre; o ar recusava-se a suportá-lo... a água escaldava... as rochas contra as quais era arremessado pareciam-lhe almofadas de penas... tudo o que ele empreendia se malograva de qualquer maneira inesperada e estranha, e tudo o que lhe atraía a atenção, quando queria examiná-lo mais de perto, sofria alguma metamorfose assustadora ou esquisita, enquanto o seu espírito conservava sempre uma espécie de instinto da ilusão de que em vão se esforçava por livrar-se pelo despertar... todos os sintomas de febre, que todos os que são atreitos a pesadelos (a que os sábios chamam Efialtes) conhecem tão bem. Por fim, porém, esta fantasmagoria desconexa e inconsequente tomou uma 107 forma mais regular, se acaso a imaginação de Lovel (pois não era a faculdade que menos lhe faltava) não arranjou ao seu despertar, insensivelmente, sem intenção e mesmo sem se aperceber, uma cena da qual o seu sono não lhe apresentava senão um esboço mais confuso; ou talvez ainda a agitação da febre o ajudasse a formar essa visão. Mas, deixando aos sábios esta questão, diremos que, após uma sequência de imagens extravagantes tais como as que descrevemos, o nosso herói (pois é preciso confessar que é o nosso herói) retomou suficiente conhecimento dos locais para se lembrar onde estava, e a mobília do quarto apresentouse de novo aos seus olhos cheios de sono. Que me seja permitido aqui protestar mais uma vez que, se nesta geração perspicaz e céptica ainda existem pessoas que conservaram intacta a boa fé dos antigos tempos para acreditar que o que se segue foi uma visão mais do que um sonho, não serei eu quem atacará a sua crença. Lovel estava, pois, ou imaginava estar de olhos completamente abertos no quarto verde, e fixando-os na chama passageira e cintilante que lançavam de vez em quando os restos das achas ainda não queimadas, à medida que caíam uma após outra sobre o bocado de brasa vermelha que a madeira que acabava de ser sumida formara, apagando-se. Insensivelmente, a lenda de Aldobrand Oldenbuck e suas misteriosas visitas ocuparam de novo o seu espírito, e excitaram, como sucede muitas vezes nos sonhos, uma expectativa inquieta e dolorosa que raramente deixa de apresentar à imaginação o objecto que causa receios. Faúlhas mais vivas escaparam-se da chaminé e lançaram uma luz tão brilhante que o quarto se iluminou, a tapeçaria agitou-se estranhamente na parede, até que as figuras sombrias que a cobriam começaram a animar-se. Os caçadores sopraram a trompa, o veado desatou a fugir, o javali a defender-se e os cães a assaltar um e a perseguir o outro. Os gritos do gamo esfacelado pelos cães furiosos, os brados dos homens e o tropel dos cavalos pareciam envolvê-lo todo ao mesmo tempo, enquanto cada grupo prosseguia com todo o ardor da caça a ocupação em que o artista os representara. Lovel contemplava aquela estranha cena sem espanto (raramente o experimentamos nos sonhos), mas
108 com uma inquieta sensação de terror. Por fim, uma só figura entre todas as dos caçadores, no momento em que os olhava com mais atenção, pareceu destacar-se da tapeçaria e aproximar-se do seu leito. Ao vê-lo mais de perto, o seu rosto pareceu mudar; a trompa que tinha na mão transformouse num livro fechado por fivelas de cobre; o seu boné de caça tomou a forma das gorras guarnecidas de peles com que Rembrandt cobriu a cabeça dos seus burgomestres. O seu trajo flamengo não se modificou, mas as suas feições, deixando de ser agitadas pelo furor da caça, tomaram aquela expressão severa e imponente que parecia dever convir aos primeiros proprietários de Monkbarns, segundo o retrato que deles traçaram os seus descendentes durante o serão anterior. Consoante esta metamorfose se operava, o ruído e o movimento cessaram entre as outras personagens da tapeçaria na imaginação do sonhador, então exclusivamente ocupado com o vulto que se aproximara. Lovel tentou interrogar esse terrível personagem por meio de um exorcismo adequado à circunstância, mas sua língua, como é de uso nos sonhos aterradores, recusou-lhe esse serviço e permaneceu imóvel, pregada ao céu da boca. Aldobrand levantou o dedo no ar, como que para impor silêncio ao hóspede presunçoso que viera apossar-se do seu quarto, e começou a abrir com lentidão as fivelas que fechavam o venerável volume. Quando o livro ficou aberto, passou vivamente as folhas durante algum tempo, depois, endireitando-se a toda a altura do seu vulto e conservando o livro aberto na mão esquerda, apontou o passo de uma página. Apesar do idioma ser ignorado do nosso sonhador, seus olhos e sua atenção foram fortemente atraídos para a linha que o vulto parecia querer fazer notar, e cujos caracteres, brilhantes como uma luz sobrenatural, ficaram profundamente gravados na sua memória, No momento em que a aparição fechou o volume, os sons de uma música deliciosa encheram o aposento. Lovel estremeceu, e acordou completamente. A música, porém, continuou a fazer-se ouvir, e não tardou que ele não reconhecesse distintamente a cadência de uma velha ária escocesa. Sentou-se na cama e tentou expulsar da cabeça os fantasmas que o tinham perturbado durante toda 109 aquela noite fatigante. Os raios de um sol matinal mostravam-se através dos batentes de madeira da janela meio fechados do seu quarto, e difundiam claridade suficiente. Ele relanceou um olhar pela tapeçaria; mas os diversos grupos de caçadores que ali estavam tecidos em seda, ali ficaram tão imóveis quanto os puderam fixar os pregos que prendiam o tapete, ligeiramente agitado pelo vento matinal que, penetrando por uma fenda da janela gradeada, vinha roçar pela sua superfície. Lovel saltou para fora do leito e envolveu-se num roupão que tiveram a previdência de colocar junto dele; aproximou-se da janela que dava para o mar, cujas vagas ruidosas anunciavam que ainda estava agitado pela tempestade da noite anterior, embora a manhã fosse calma e serena. A janela de uma torrinha que avançava saliente de uma esquina da parede, e que se encontrava assim muito perto do quarto de Lovel, achava-se meio aberta, e de lá ainda vinha a mesma música que provavelmente interrompera o seu sono. Ao deixar de pertencer à sua visão, ela perdera muito dos seus encantos, e agora não passava de uma ária bastante aceitàvelmente executada ao piano. Porque assim é o capricho da imaginação relativamente à influência das Belas-Artes. Uma voz de mulher cantava com gosto e simplicidade as estâncias seguintes, cujo efeito tinha tanto de hino como de canção: Para que ficar sobre as ruínas Deste monumento antigo, Velho cuja cabeça
embranquecida Ostenta suas dores pungentes? Recordas o teu esplendor? Ou ainda pensas na tua dor? Bem devias reconhecer-me, Respondeu sua voz austera, A mim que em tudo reino como senhor, A mim que teu orgulho mil vezes Acusa antes de desaparecer. 110 Ante o meu sopro destruidor, Tal como a palha incendiada, O homem de honrarias insaciável Some-se como o fumo. Sou árbitro dos humanos; E os tronos, frutos de minhas mãos, Caem sob a minha vara irada. Aproveita, pois, os teus instantes Enquanto minha ampulheta dura; E lembra-te de que teus tormentos Ou tua alegria e seus doces pendores, Acabam com o decorrer do Tempo, Para quem tudo morre e se consome. Enquanto se cantavam estes versos, Lovel regressara ao seu leito; despertaram nele uma série de pensamentos romanescos e agradáveis, tais como o espírito se comprazia em criar, e, adiando para o resto do dia a escolha ainda incerta da resolução que ia tomar, abandonou-se à doce languidez causada pela música, e não foi acordado senão muito tarde pelo velho Caxon, que deslizava no seu aposento para lhe oferecer seus serviços na qualidade de criado de quarto. - Senhor, escovei o seu fato - disse o velho, ao ver que Lovel estava acordado -O rapaz trouxe-o esta manhã de Fairport, porque aquele que tinha ontem mal secara, embora ficasse toda a noite junto do lume da cozinha, e limpei os seus sapatos. Suponho que o senhor não precisa de que eu ate os seus cabelos, porque todos os jovens gentlemen os usam curtos agora - ajuntou ele com um meio suspiro - Mas trouxe aqui o ferro de frisar para os virar um pouco sobre a testa, se quiser, antes de aparecer diante daquelas damas. Lovel, que entretanto se levantara, recusou os serviços do bom homem no que se referia ao seu ofício, mas acompanhou a sua recusa de uma gratificação que muito suavizou o desgosto de Caxon. - É pena que ele não queira frisar e empoar o cabelo - disse o antigo cabeleireiro, quando se encontrou de novo na cozinha, na qual, sob qualquer pretexto, ele passava três quartos do tempo em que não tinha nada que fazer -É pena, porque é um bonito rapaz. 111 - Quer calar-se, velho cuco? - disse Jenny Rintherout - Quer ir engraxar os seus belos cabelos castanhos com o seu óleo vil e depois empoá-los como a peruca do velho pastor? Olhe, pense antes em almoçar, não se deve zangar com isso, ia apostar; eis uma boa tijela de parritch (1) para si, e o senhor faria melhor se a comesse com leite coalhado do que ocupar-se do penteado de Mr. Lovel. com certeza que o senhor seria capaz de estragar a melhor cabeleira do condado e da cidade de Fairport. O pobre barbeiro suspirou, ao pensar no menosprezo em que a sua arte caíra; mas Jenny era uma pessoa demasiado importante para que uma pessoa se arriscasse a ofendê-la, contradizendo-a. Sentou-se, pois, sossegadamente na cozinha, engolindo ao mesmo tempo a sua mortificação e o conteúdo de uma tijela cheia de uma espessa cozedura de farinha de
aveia que ela acabava de lhe entregar. XI Por vezes, julga que é o Céu quem lhe envia aquela visão, assim como todas as que sucessivamenfe vêm surpreender o seu olhar; por vezes, tomaas por caprichos da imaginação em delírio, por recordações confusas e sem nexo das imagens que o preocuparam duranfe o dia. Anonimo Devemos pedir agora ao leitor que passe ao locutório onde se servira o pequeno almoço de Mr. Oldbuck, que, desprezando o chá e o café, preferia a essas beberagens modernas uma alimentação mais sólida, e se regalava com fatias frias de vaca assada, acompanhadas de uma espécie de licor chamado mum, fabricado com cevada e ervas amargas, e que se assemelhava muito a ale forte. Esta bebida é inteiramente desconhecida (1) Prato escocês composto de farinha de aveia com leite. N. do T. 112 da actual geração, e apenas se pode encontrar o seu nome nas actas dos rendimentos do Parlamento, entre os de cidra e perry (1) e outros licores sujeitos a imposto. Lovel, que foi convidado a provar teve dificuldade em conter-se que não a declarasse detestável; mas, no entanto, conseguiu-o, porque viu que ofenderia gravemente seu hóspede, o qual mandava preparar este licor todos os anos com um cuidado muito especial, segundo uma receita que provinha daquele Aldobrand Oldenbuck de quem já se falou tantas vezes. Graças aos cuidados hospitaleiros das damas, Lovel teve um almoço mais adequado aos gostos actuais, e enquanto tomava a sua parte, foi assaltado por perguntas indirectas sobre a maneira como passara a noite. - Não podemos cumprimentar Mr. Lovel esta manhã pelo seu bom parecer, meu irmão - proferiu Miss Oldbuck - E embora ele não queira confessar que alguma coisa o perturbou esta noite, o certo, porém, é que está muito pálido, ao passo que, quando chegou, achava-se fresco como uma rosa. - Mas pense, minha irmã, que essa rosa de que fala foi batida por ventos e tempestades, sem mais respeito do que por um molho de espinhos; como diabo quer que ele tenha conservado as suas cores? - É certo - disse Lovel - que ainda estou um pouco fatigado, apesar do excelente acolhimento que me fez a vossa hospitalidade. - Ah! - observou Miss Oldbuck, olhando-o com um sorriso significativo ou que, pelo menos, procurava torná-lo como tal - Por delicadeza, o senhor não quer confessar que foi molestado. - A verdade, minha senhora, é que não sofri qualquer incômodo; pois não posso chamar assim à música com que uma fada benfazeja me brindou. - Eu bem suspeitava de que Maria o acordava com as suas canções. Ela não sabia que eu deixara uma abertura na sua vidraça; porque, além do fantasma, ainda há fumo no quarto verde por ocasião dos grandes ventos. Mas presumo que esta noite o senhor ouviu mais alguma coisa do que as árias de Maria. (1) Bebida feita de sumo de pera. - N. do T. 113 Em verdade, é preciso que os homens sejam bem corajosos para suportar tudo isso. Quanto a mim, se tivesse de sofrer provas dessa natureza, isto é, fora das leis da Natureza, teria começado por gritar de maneira a fazer acordar toda a casa, quaisquer que fossem as conseqüências; e apostaria em como o pastor faria outro tanto, como já lhe disse. Eu não conheço senão meu irmão Monkbarns que possa resistir a coisas
semelhantes, a não ser o senhor, Mr. Lovel. - Minha senhora, um homem tão sábio como Mr. Oldbuck - respondeu o jovem - não está exposto aos mesmos inconvenientes do procurador de que me falou ontem à noite. - Ah! Ah! O senhor compreende agora onde reside a dificuldade? Está em perceber a sua linguagem, não é verdade? Mas, quanto a meu irmão, ele tem maneiras de falar e de proceder que afugentariam todos os espectros do condado; e no entanto não gosta de ser indelicado, mesmo com um fantasma. Mas se alguém ainda tiver de dormir naquele quarto, estou decidida, meu irmão, a aplicar aquela receita que me mostrou um dia no seu livro, embora realmente eu pense que, por caridade cristã, fosse melhor mandar atapetar o quarto. É um pouco húmido e pouco claro; mas nós raramente precisamos de um leito de hóspedes! - Não, não, minha irmã, receio mais a humidade e a falta de luz do que os próprios espectros. Os outros são espíritos de luz; prefiro que a senhora recorra ao encantamento. -Fá-lo-ia da melhor vontade, Monkbarns, se tivesse os ingredientes, palavra de que se serve o meu livro de cozinha. Havia a verbena e o endro, isso recordo-me; Davie Diblle deve conhecer isso, embora talvez lhe dê nomes latinos; e depois pimentão. Têmo-lo em quantidade. - Hipericão, e não pimentão, sua louca! - exclamou Oldbuck, encolerizado - Julga que se trata de um molho picante, ou imagina que um espírito, lá porque é feito de ar, possa ser repelido por uma receita contra os ventos? Minha muito sábia irmã lembra-se, com uma exactidão de que Mr. Lovel vai ser testemunha, de um encantamento de que lhe falei uma vez, e que, tendo impressionado a sua cabeça supersticiosa, nela ficou melhor gravado do que qualquer 114 outra coisa com um fim mais útil que lhe tivesse repetido durante dez anos. Mas mais de uma velha como ela... - Velha, Monkbarns! -exclamou, interrompendo-o Miss Oldbuck, saindo um pouco fora dos limites da sua submissão habitual - Francamente, o senhor não é nada delicado comigo. - Não sou senão justo, Grizel; no entanto, eu incluo na mesma classe mais de um nome bem sonoro, desde Jâmblico até Aubrey, tudo pessoas que perderam o seu tempo a imaginar remédios contra os males quiméricos. Mas espero, meu jovem amigo, que, sob encantamento ou não, protegido pelo poder do hipericão, Da verbena e do endro Que afrontam todo o poder oculto ou exposto de novo sem defesa às excursões do mundo invisível, o senhor desafie pela segunda vez os terrores do aposento encantado, e conceda outra noite aos seus amigos fieis e leais. - Desejá-lo-ia de todo o meu coração; mas... - Vamos, nada dos seus mas, eu resolvi que o senhor ficasse. - Fico-lhe extremamente agradecido, meu caro senhor; mas... - Quê? Ei-lo outra vez com o seu mas! Saiba que detesto essa palavra; não conheço forma de expressão, sob a qual ele me possa parecer suportável; mas é para mim uma combinação de letras mais odiosa do que o próprio não. Não assemelha-se a um franco e honesto rapaz um pouco brusco, que diz o que pensa sem consideração por ninguém, e caminha direito ao objectivo sem se deter; mas é uma espécie de conjunção artificiosa, um pretexto, uma desfeita delicada que nos vem arrebatar o copo no momento em que o
levamos aos lábios: Basta de mas! essa palavra envenena Todo o bem que a -precedeu; É, para quem quer que deduza, Como um carcereiro decidido, Que nos anuncia em pessoa O criminoso que ele conduza. 115 - pois bem, então - disse Lovel, ainda hesitante sobre o que devia fazer -o senhor não associará a uma partícula tão insociável a recordação do meu nome. Receio ser em breve obrigado a abandonar Fairport; e visto o senhor ser tão bom que o deseja, aproveito esta ocasião para passar outro dia consigo. - E será recompensado, meu rapaz. Primeiro, verá o túmulo de John Girnel; depois, iremos sossegadamente ao longo da praia (depois de primeiramente nos termos informado do estado da maré; porque estamos fartos de aventuras desse género) até o castelo de Knockwinnock, para saber notícias de sir Arthur e da minha bela inimiga; é uma atenção que lhes devemos, e depois... - Peço perdão, meu caro senhor; mas talvez fizesse melhor em retardar a sua visita até amanhã; não passo de um estrangeiro, e... - Por esse mesmo motivo deve ser mais delicado, em minha opinião. Mas peço desculpa se me sirvo de uma palavra que talvez não convenha a um amador de antigüidades. Sou da velha guarda, eu, Desse bom tempo em que, plenos de entusiasmo, Os jovens, em sua ternura, Voavam de condado em condado Para obter com singeleza um só olhar dessas beldades A quem, no baile, sua nobre destreza Guiava os passos precipitados; E certificar-se, apesar da neblina, Que depois de então essas deidades Não apanharam uma constipação. - Bem! Se o senhor acha que é uma coisa aceitável Creio que o melhor é ficar. - Vamos, vamos, meu bom amigo, tão-pouco estou no caso de insistir numa coisa que lhe pode ser desagradável. Para que eu renuncie a isso, bastame descobrir alguma remora, algum motivo de repugnância, algum obstáculo de que eu não tenho o direito de me informar. Talvez o senhor ainda esteja fatigado? Nesse caso, prometo-lhe que encontrarei maneira de ocupar o seu espírito sem cansar as suas pernas. Eu próprio 116 não sou partidário de um exercício violento; um passeio no jardim uma vez por dia, é tudo quanto basta a todo o ser pensante; só um néscio ou um caçador pede mais. Vejamos, por onde vamos começar? pelo meu Ensaio sobre a arte dos acampamentos? Não, reservo isso para a nossa tarde cordial: mostrar-lhes-ei antes a controvérsia entre mim e Mac-Cribb sobre os poemas de Ossian. Eu sou pelo penetrante adversário Orcadian, ele pelos partidários da autenticidade. A discussão começou em termos polidos e brandos; mas consoante avançávamos, a vivacidade e a acrimónia foram-se misturando; ela já pouco tem do estilo do velho Scaliger. Temo que o meu adversário venha a descobrir essa história de Ochiltree; mas, em todo o caso, tenho a minha réplica pronta a respeito daquela desaparição de Antígona. Vou mostrar-lhe a sua última epístola e a minuta da minha resposta; verá que é um homem que nada entre duas águas.
Ao dizer estas palavras, o Antiquário abriu uma gaveta e começou a folhear uma mistura considerável de papéis antigos e modernos. O nosso sábio tinha a infelicidade, como tantos outros sábios e não sábios, de se encontrar, em tais circunstâncias, no embaraço, das suas riquezas; em outros tempos, a abundância da sua colecção impedia-o muitas vezes de encontrar o objecto que procurava. - Malditos sejam os papéis! - praguejou Oldbuck, misturando-os ainda mais - Creio que arranjam asas para voarem aos bandos como gafanhotos. Mas, olhe, entretanto, veja este pequeno tesouro. Assim falando, depôs nas mãos de Lovel uma caixa de carvalho, ornada nos quatro cantos de placas de prata cinzelada. - Carregue nesse botão - acrescentou ele, ao notar que o jovem procurava a mola. Ele obedeceu, a tampa levantou-se, e revelou-lhe um magro in-quarto curiosamente encadernado em marroquim preto. - Mr. Lovel, eis a obra de que lhe falei ontem à noite; é o raro inquarto da Confissão de Augsburgo; o alicerce e a muralha da reforma, erguidos pelo venerável Melanchton, defendidos pelo eleitor de Saxe e os outros valentes guerreiros que se reuniram para sustentar a sua fé, mesmo contra um imperador póderoso 117 e triunfante; foi esse escrito impresso pelo não menos venerável e recomendável Aldobrand Oldenbuck, meu feliz trisavô, durante as campanhas tirânicas de Filipe II para algemar ao mesmo tempo a liberdade civil e a liberdade religiosa. Sim, senhor, foi por ter imprimido esta obra que esse homem superior foi expulso da sua pátria ingrata e forçado a estabelecer, os seus deuses penates em Monkbarns, mesmo no meio das ruínas da superstição e do domínio papal. Veja essas veneráveis efígies, Mr. Lovel, e respeite a honrada ocupação em que ele está representado a trabalhar pessoalmente na prensa para a divulgação da instrução cristã e política; veja aqui a sua divisa favorita e que exprime tão bem a sua independência, e aquela confiança nos seus próprios meios, que desdenhava dever à protecção o que não fora concedido ao mérito, e que não exprime menos aquela firmeza de espírito e aquela tenacidade de intenção recomendadas por Horácio. Era em realidade um homem que não se podia abalar, mesmo que toda a sua tipografia as suas impressoras, as suas formas, os seus grandes e pequenos caracteres se despedaçassem em sua volta. Leia, por favor, a sua divisa; porque cada impressor tinha a sua, quando esta arte ilustre nasceu. A do meu antepassado exprimia-se, como vê, por esta frase teutónica: Kunst Macht Gunst, isto é, que a habilidade e a prudência de nos servirmos das nossas vantagens e dos nossos talentos naturais acabassem por conquistar a aprovação e o favor que os preconceitos ou a ignorância nos tinham primeiro arrebatado. - E é isso - disse Lovel, após um momento de silêncio pensativo - é isso o que significam estes caracteres germânicos? - Sem dúvida alguma. O senhor compreende a sua justa aplicação a um sentimento de mérito interior, e de excelência de uma arte útil e estimável. Todos os impressores desse tempo tinham a sua divisa impressa, se assim lhe posso chamar, tal como cada brioso cavaleiro do mesmo século que frequentava as justas e os torneios. O meu antepassado orgulhava-se tanto disso como se a desfraldasse no campo de batalha conquistado ao inimigo, embora fosse o emblema da difusão das ciências e não da efusão de sangue. E no entanto nós temos uma tradição de família que atribui a escolha 118 que ele fez a uma circunstância bastante romanesca.
- E qual foi essa circunstância, meu caro senhor? - perguntou o jovem. - Devo confessar-lhe que é uma história que altera um pouco a reputação de prudência e de sensatez do meu respeitável avoengo; sed semel insanivimus omnes; mas não há homem que não fosse louco uma vez na sua vida. Diz-se que esse meu avô, quando estava em aprendizagem em casa de um descendente daquele velho Fust, que a tradição popular mandou para o diabo sob o nome de Fausto, se enamorou de um rostozinho simpático de rapariga: era a filha do seu mestre, que se chamava Berta. Fizeram juramentos recíprocos, trocaram aneis, enfim, não esqueceram nenhuma das frivolidades vulgares em semelhantes circunstâncias. Em breve, depois de Aldobrand partir para percorrer a Alemanha, como convinha a um honrado artífice; porque era o costume de então todos os que tinham um ofício irem exercê-lo por algum tempo em cada uma das maiores cidades do império antes de abrir um estabelecimento para a sua vida. Era um costume muito atilado, porque esses artífices viajantes eram recebidos por toda a parte como irmãos pelos do seu próprio ofício, e não podiam deixar de adquirir mais saber ou de comunicá-lo aos outros. No seu regresso de Nuremberga, diz-se que meu avô soube da morte recente do seu mestre e encontrou vários jovens galantes, daqueles rebentos arruinados, de velhas famílias sem dúvida, que cortejavam, em concorrência uns com os outros, a jovem cujo pai lhe deixava, segundo se dizia, uma fortuna que podia bem equivaler a dezasseis quartos de nobreza. Entretanto, Berta, que não era a pior amostra do seu sexo, jurava não desposar senão aquele que pudesse fazer funcionar a imprensa de seu pai tão habilmente como este. Como a habilidade e o saber eram muito raros nesses tempos, este expediente desembaraçou-a da maior parte dos pretendentes, que eram tão capazes de manejar uma varinha mágica como o componedor. Alguns tipógrafos vulgares também prestaram a sua prova; nenhum teve, porém, artes de sair vitorioso. Mas estou a aborrecê-lo, talvez? 119 - Absolutamente nada; continue, peço-lhe, Mr. Oldbuck; escuto-o com o maior interesse. - Ah! No entanto, tudo isto não passa de uma loucura. Aldobrando apresentou-se com o trajo habitual de um operário impressor; era o mesmo com o qual atravessara a Alemanha e conversara com Lutero, Melanchton, Erasmo e outros sábios que não desprezaram os seus conhecimentos e a arte que possuía de os propagar, embora oculto sob um vestuário tão grosseiro. Mas ninguém se admirara de que o que parecera respeitável aos olhos da sabedoria, da religião, da ciência e da filosofia, parecesse baixo e repugnante aos de uma mulher vaidosa e frívola. Berta recusou-se então a reconhecer o seu antigo namorado sob a veste rasgada, o gorro de pele, o avental de couro e os sapatos ferrados de artista viajante. No entanto, ele reclamou o privilégio de ser admitido à prova, e, depois de todos os outros pretendentes se terem recusado a tentá-la ou terem feito uma bodega que nem o próprio demónio poderia ler, todos os olhos se volveram para o estranho. Aldobrand avançou então graciosamente, alinhou os caracteres sem omissão de uma simples letra, de uma vírgula ou de um ponto, colocou-os na prensa sem desalinhar um só espaço, e tirou a primeira folha tão nítida e tão isenta de erros como se fosse uma quarta prova. Todos aplaudiram o sucessor do imortal Fust. A jovem corou, e reconheceu que se enganara ao fiar-se mais no julgamento dos seus olhos do que no do seu bom-senso. Foi então que o feliz noivo escolheu para sua divisa estas palavras adequadas à situação: a habilidade conduz ao êxito.
Mas, que tem o senhor? Ei-lo numa sombria meditação. Vamos, eu bem lhe disse que era uma conversa muito fútil para seres pensantes. Encontrei agora a minha polêmica ossiânica. - Peço-lhe desculpa - disse Lovel - vou sem dúvida parecer-lhe extravagante e caprichoso, Mr. Oldbuck; mas se é verdade, como o senhor disse ainda agora, que a delicadeza exige que faça uma visita a sir Arthur... - Ora, ora! Eu posso desculpá-lo; e depois, se o senhor pensa em breve abandonar-nos, que lhe importa estar tanto nas suas boas graças? Aliás, eu adverti-o de que o meu Ensaio sobre a arte dos 120 acampamentos é um pouco prolixo, e ocupará tempo que nos restar depois do jantar; o senhor arrisca-se a perder a polêmica ossiânica, se não lhe consagrarmos toda a manhã. Vamo-nos instalar lá em baixo, à sombra do meu berço favorito, sob uma árvore sagrada, e lemos isso fronde super viriã. Cantemos o azevinho e sua verdura Porque a amizade, como o amor, Não brilha muitas vezes num só dia, E nada neste Mundo, nada dura. Mas, que diabo! - continuou o velho gentleman, interrompendo a sua canção - Observando-o de mais perto, começo a julgar que o senhor é de outra opinião. Se é -assim, amem de todo o meu coração; não me prendo com as manias de cada um, contanto que elas não embatam nas minhas, de contrário, cuidado com os seus olhos! Mas, vejamos, que diz o senhor? Em linguagem do Mundo e dos seus vis habitantes, se puder descer a uma esfera tão humilde, vamos ou não? - Pois bem, na linguagem do egoísmo, que também é a do Mundo, vamos, se isso não o incomoda. - Amen! Amen! como diz o oficial da coroa - respondeu Oldbuck, trocando as pantufas por um par de fortes sapatos reforçados por polainas de pano negro. Não interrompeu o passeio senão com um leve desvio que os conduziu ao túmulo de John Girnel, tido como o último bailio da abadia que morreu em Monkbarns. Sobre uma pequena colina cujo pendor aprazível se estendia brandamente para o Sul, e de onde a vista, depois de se ter detido em dois ou três lugares, podia abarcar uma extensão distante do mar e do Musselcrag, sob as frondes de um velho roble, achava-se uma pedra coberta de musgo, colocada em memória do falecido bailio. Tinha uma inscrição, na qual, segundo Mr. Oldbuck (embora muita gente o duvidasse), os caracteres apagados apresentavam este sentido: Aqui jaz o douto John Girnel, O galo, em baixo, o proclama ao céu. Aos sessenta anos ainda era querido Das crianças e das mulheres. 121 Dividia os seus potes de cerveja Em cinco partes: quatro para a Igreja, Dizia ele, ou antes para o episcopado, E a quinta ou última Para a carinha mais gentil. - Veja - disse o Antiquário - até que ponto o autor deste epitáfio era modesto; limita-se a dizer-nos que John dividia em cinco partes, em vez de quatro, a medida da cerveja; que dava a quinta às "mulheres ou à carinha mais gentil da paróquia, e dava conta das outras quatro ao abade e ao cabido; que no seu tempo as galinhas punham sempre, e que o diabo podia agradecer-lhes se elas comessem um quinto das rendas da abadia; que nunca faltavam ao bom homem crianças em torno da sua lareira, coisa tão espantosa como esta série de milagres. Mas deixemos aí John de Girnel e avancemos para a beira do areal, onde o mar, qual inimigo em repouso,
abandona agora o terreno onde nos deu batalha ontem à noite. Assim falando, encaminhava-se para o lado das areias. Havia sobre as dunas que eles marginavam quatro ou cinco choças habitadas por pescadores cujos barcos estavam varados na praia. Sob a influência dos raios de um sol escaldante, um vapor de alcatrão misturava o seu cheiro com o que exalavam os restos de peixe e outras imundícies geralmente acumuladas em volta das cabanas escocesas. No meio desta atmosfera infecta, da qual parecia não se aperceber, uma mulher de meia idade, cujo rosto dir-se-ia ter desafiado mil tempestades, remendava uma rede à porta de uma dessas cabanas. Trazia um lenço enrolado na cabeça; e um fato, que outrora pertencera a um homem, dava-lhe um ar másculo que mais aumentava a sua força, a sua alta estatura e a dureza da sua voz. - De que precisa hoje Vossa Honra? - perguntou ela, ou antes, bradou ela a Oldbuck -Quer bacalhau ou pescadinhas, solhos ou patrúcias? - A como são os solhos e as patrúcias? -indagou o Antiquário. - Quatro belos xelins e meio - respondeu a náiade. - Quatro diabos que a levem! - exclamou o Antiquário - Julga que eu sou doido, Maggie? - E o senhor julga - retorquiu o virago, de punhos 122 cerrados nas ancas - que o meu homem e Os meus rapazes podem ir ao mar, com um tempo como o de ontem e de hoje, com um mar como o que ainda está agora, e dar o seu peixe por nada e ainda por cima ouvir razões? Não é o peixe o que o senhor compra, Monkbarns, é a vida dos homens. - Olhe, Maggie, eu ofereço-lhe um preço razoável; dou-lhe um xelim por cada dois peixes, ou seis penes por cada um separadamente; e se todo o seu peixe for assim bem pago, o seu homem e os seus rapazes não terão feito má viagem. - Antes o diabo espatifasse o barco contra o Bell Rock, e das duas -ainda seria a melhor viagem. Pode-se oferecer um xelim por estes dois belos peixes? - Vamos, vamos, velha louca, leve, se quiser, o seu peixe a Monkbarns, e veja o que minha irmã lhe dá. - Não, não, isso não, Monkbarns, gosto mais de ter negócios consigo; porque, embora o senhor seja bastante avaro, Miss Grizel tem a mão ainda mais fechada. Olhe - acrescentou ela, num tom mais suave - dou-lhos por três xelins e meio. - Um xelim e meio, ou nada! - Xelim e meio! - exclamou ela, elevando a voz num ar de surpresa, e baixando-a num tom choroso, ao ver que o seu freguês lhe voltava as costas - O senhor quer então o peixe - E mais alto, à medida que ele se afastava - Eu dou-lho, com meia dúzia de caranguejos para fazer o molho, em troca de três xelins e uma pinga de aguardente. - Meia coroa e a pinga, Maggie. - Vamos, temos sempre de passar por onde o senhor quer; mas o copo de aguardente vale dinheiro, agora que as destiladas estão fechadas. - Sim, e espero não as ver reabertas tão depressa - disse Oldbuck. - Decerto que é fácil a Vossa Honra e às pessoas da sua categoria falarem assim; aos senhores não falta nada, estão bem alojados, bem alimentados, bem vestidos, e sentam-se muito à vontade junto da lareira bem quente. Mas se lhes faltassem o lume, a alimentação e as roupas enxutas; se se sentissem molhados e a morrer de frio, e, o que é pior ainda, com o coração cheio de tristeza, e não tivessem senão dois 123
pence no bolso, bem gostaria de comprar com isso um cordial que lhes desse alegria e coragem, e substituísse as roupas, a ceia, até à manhã seguinte. - Isso que diz não é senão uma grande verdade, Maggie; mas, diga-me, seu marido foi para o mar depois das fadigas de ontem? - Meu Deus, foi, sim, Monkbarns. Saiu esta manhã, pelas quatro horas, quando o mar ainda estava todo inchado como fermento pelo vento de ontem à noite. Era ver o nosso pequeno barco dançar sobre as ondas como uma rolha de cortiça. - Vamos, seu marido é um homem diligente. Leve o peixe a Monkbarns. - Vou já; ou antes, vou lá mandar a pequena Jenny; corre mais depressa do que eu. Mas irei pessoalmente pedir o copinho de aguardente a Miss Grizel, e digo-lhe que foi o senhor quem me enviou. Uma espécie de animalzinho que chafurdava num charco, no meio das rochas, e que quase se poderia tomar por uma sereia, foi chamado para terra pela voz aguda de sua mãe. Esta última, depois de a arranjar decentemente, em sua opinião, o que ela fez juntando uma capa vermelha a uma saia que compunha primeiro o seu único vestuário e que apenas descia até os joelhos, mandou a filha com um cabaz que continha o peixe, e um recado de Monkbarns para que lhe dessem o dinheiro. - Há-de correr muito tempo -disse Oldbuck com satisfação - antes de que as minhas fêmeas façam um negócio semelhante com esta velha harpia, embora muitas vezes as oiça discutir durante uma hora debaixo da janela do meu gabinete de trabalho, como três gaivotas a guinchar em ocasião de temporal. Mas, continuemos o nosso caminho para Knockwinnock. 124 XII Um mendigo, dizeis vós? Eu sou o único homem livre do país, mais independente do que nenhum Escocês livre. Não obedecemos a outras leis, a outra autoridade, a outra religião senão às que nos deram os nossos antigos costumes, ou que nos impusemos a nós próprios; e no entanto não somos rebeldes. BROME com licença do leitor, ultrapassaremos o passo firme mas um pouco lento do Antiquário, que se voltava a cada instante para o seu companheiro, a fim de lhe chamar a atenção para alguma coisa no campo, ou para apoiar algum tema favorito com mais ênfase do que lhe permitia o movimento da sua marcha; e fez pausas tão frequentes que o seu percurso se atrasou consideravelmente. Apesar dos perigos e das fadigas da noite antecedente, Miss Wardour achava-se em estado de se lervantar à hora normal e de retomar as suas ocupações habituais, depois de ter apaziguado a sua inquietação (acerca da saúde de seu pai. Sir Arthur não sentia outra indisposição senão a que era consequência de uma grande agitação e de um exercício forçado, mas no entanto suficiente para o fazer guardar o leito. Era penosa para Isabel a recordação dos acontecimentos da véspera. Devia a vida de seu pai e a sua à pessoa do mundo a quem ela mais temia dever obrigações, porque lhe era difícil dedicar-lhe a expressão de um reconhecimento natural, sem encorajar esperanças que podiam vir a ser funestas para ambos. "Porque estou eu destinada a receber semelhantes serviços, pensava ela, serviços prestados com perigo da sua própria vida, de uma pessoa a quem me esforcei obstinadamente por desencorajar a paixão
romanesca? Porque havia a sorte de lhe dar essa vantagem sobre min? Oh! E porque motivo um sentimento mal abafado no meu fraco coração, em despeito de toda a 125 minha razão, me inspira uma secreta alegria porque ele a obtivesse? " Quando Miss Wardour censurava assim a incoerência dos seus sentimentos, viu avançar pela avenida, não o jovem salvador que ela tanto temia, mas o velho mendigo que desempenhara um papel tão notável no drama da noite anterior. Ela chamou o criado e ordenou-lhe que mandasse subir o velho. O criado voltou um minuto depois. - Recusa-se absolutamente a subir, minha senhora; diz que os seus sapatos ferrados nunca pisaram um tapete em sua vida, e, se Deus quiser, nunca o pisarão. Mando-o entrar para o vestíbulo? - Não; espera: preciso de lhe falar. Onde está ele? Perdera-o de vista quando ele se aproximara da casa. - Está sentado ao sol, no pátio, no banco de pedra que fica encostado à janela do locutório térreo. - Dize-lhe que fique aí; vou descer ao locutório e falo-lhe da janela. Ela desceu, com efeito, e encontrou o mendigo meio estendido no banco de pedra junto da janela. Edie Olchitree, apesar de velho e mendigo, tinha aparentemente algum sentido interior da impressão faforável causada pela sua alta estatura, pelas suas fei-" ções imponentes, pela sua barba e pelos seus cabelos brancos. Notava-se que todas as suas atitudes punham em relevo, quase sempre com vantagem, os seus dons naturais. Nesse momento, estava ele meio deitado, rosto enrugado, mas animado e ainda fresco, e olhos cinzentos e penetrantes, erguidos para o céu: o bastão e o alforge achavam-se a seu lado. A expressão de sagacidade natural e de causticidade ironica que animava o seu rosto, enquanto relanceava alternadamente olhares em volta do pátio ou os erguia ao céu, teria oferecido um modelo ao artista que quisesse representar um velho filósofo da seita dos cínicos a meditar sobre a frivolidade das ocupações dos homens, sobre a pouca solidez dos bens que eles possuem neste mundo, e levantando os olhos para a única fonte de onde pode vir uma felicidade sólida. O porte elegante e leve da jovem, quando se aproximou da janela aberta, mas separada do pátio pela 126 grade que, segundo o uso de velhos tempos, guarnecia as janelas baixas do castelo, deu a esta cena um interesse de género diferente. Uma imaginação romanesca poderia então representar nestas duas pessoas uma donzela cativa a fazer a descrição da sua angústia a um peregrino, para que ele apelasse para a valentia de todos os cavaleiros que encontrasse nas suas andanças, a fim de virem em socorro da bela oprimida. Depois de Miss Wardour expressar ao mendigo, nos termos melhor concebidos para lhe serem agradáveis, os agradecimentos que, disse ele, iam muito além do que merecia, ela começou a falar de uma maneira que julgou mais apropriada para lhe demonstrar o seu reconhecimento. Ainda não sabia, dizia ela, quais eram as intenções positivas de seu pai relativamente ao seu salvador; mas certamente seriam de molde a assegurar-lhe bem-estar por toda a sua vida: no caso de ele gostar de residir no castelo, daria ordens O velho sorriu, meneou a cabeça e interrompeu:
- Eu seria ao mesmo tempo um fardo para os seus elegantes criados, e um objecto que os faria corar, minha boa menina, e que eu não saiba em minha vida o que é estar a cargo de alguém. - A esse respeito sir Arthur dará as ordens mais severas. - A menina é muito bondosa, não o duvido; mas há coisas que um amo pode ordenar e outras sobre as quais nada pode. Acredito que ele os proibiria de me porem a mão, e, palavra, penso que ninguém se atreveria a isso; mandá-los-ia dar-me a minha sopa e o meu pedaço de carne; mas, julga que as ordens de sir Arthur poderiam impedir que se exercesse a malícia da sua língua, ou reprimir os olhares desdenhosos? Que pudessem obrigá-los a dar-me o quinhão de alimento com aquele ar de benevolência que torna a digestão tão fácil, ou que pudessem colocar-me ao abrigo daqueles sarcasmos e daquelas atitudes insultuosas que fazem, mais mal do que as palavras mais duras? Depois, eu sou o ente mais preguiçoso que alguma vez existiu: não sei sujeitar-me a horas regulares para comer e para dormir; e, para dizer honestamente a verdade, seria um muito mau exemplo numa casa bem ordenada. 127 - Pois bem, então, Edie, que pensa de uma pequena choupana muito limpa, com um belo jardim, um torrão aprazível, sem outra coisa que fazer senão cavar o seu jardim quando lhe apetecer? - E quantas vezes isso sucederá, minha boa lady? Talvez uma só, entre a festa das candeias e o São João. E mesmo que eu não tivesse de me ocupar de coisa alguma, mesmo que fosse como o próprio sir Arthur, não suportaria permanecer sempre no mesmo sítio, ver todos os dias e todas as noites os mesmos vigamentos, as mesmas traves por cima da minha cabeça. Depois, tenho o meu espírito, que pode convir muito bem a um mendigo vagabundo, palavras com as quais ninguém se preocupa: mas a menina sabe que sir Arthur tem as suas esquisitices, e se me sucedesse troçá-las ou rir-me delas, com certeza que se zangariam comigo, e então seriam capazes de me enforcar. - Oh! O senhor é um homem privilegiado! - disse Isabel - Dar-lhe-íamos toda a liberdade razoável. Faria então bem em deixar-se guiar por mim, e em pensar na sua idade. - Mas eu ainda não sou assim tão velho - replicou o mendigo - e ontem, à noite, depois de ter exercitado por uns momentos os meus membros, fiquei tão ágil como uma enguia. E que faria toda a região circunvizinha se perdesse o velho Edie Ochiltree? Pense que é ele quem leva todas as novidades e histórias de granja em granja; quem dá os pães de mel às raparigas, ajuda os rapazes a consertar os seus violões, as donas de casa a remendar as suas caçarolas; que faz as espadas de junco e os bonés de granadeiro, aos seus filhos; que percebe de curar vacas e cavalos; que sabe mais canções e contos sozinho do que toda a baronia junta, e que leva com ele a alegria a toda a parte onde vai. Não, palavra de honra, minha boa lady, não posso abandonar a minha vocação; seria uma calamidade pública. - Bem, Edie, se atribui à sua importância uma ideia tão forte que não possa sequer ser abalada pela perspectiva da independência... - Não, minha bondosa menina, é que eu sinto-me mais independente como estou. Eu não peço em cada casa mais carne do que a necessária para uma refeição, por vezes mesmo para uma dentada: se mo recusam num sítio, tenho a certeza de o obter em outro. Não se pode, pois, dizer que dependa de alguém em particular, mas somente do país em geral.
- Então, prometa-me ao menos que, ao avançar em idade, e tornando-se menos capaz de dar as suas voltas habituais, se experimentar o desejo de instalar-se de uma maneira segura, será a mim que o dará a conhecer; e, entretanto, tome lá isto. - Não, não, minha boa laãy; eu não aceito tanto dinheiro de uma só vez, contra a nossa regra; e depois consta, embora talvez não me fique bem repeti-lo, que o dinheiro vai tornar-se raro em casa de sir Arthur, e que ele se deixou arruinar por todas essas pesquisas que se mandaram fazer além, para encontrar minas de cobre e de chumbo. Havia uns tempos que Isabel experimentava secretas inquietações do mesmo género; mas ficou assustada por ver que se falava tão publicamente nos embaraços em que seu pai se encontrava; como se à maledicência, que estima sobretudo alimentar-se dos erros do homem de bem, da queda do homem poderoso, ou da ruína do rico, pudesse escapar um tema que lhe era tão agradável. Miss Wardour soltou um profundo suspiro. - Não importa, Edie - disse ela - apesar de tudo o que se possa dizer, ainda nos resta o bastante para pagar as nossas dívidas, e a que contraímos para consigo é uma das mais sagradas; aceite, pois, esta quantia da minha mão. - Quê! Para me encontrarem uma noite roubado e assassinado na estrada de uma cidade para outra? Ou, o que seria ainda pior, para que eu viva no receio constante de que isso me aconteça? Não, não e ajuntou, baixando a voz e lançando um olhar penetrante em sua volta - E depois eu não sou por completo um desprevenido; e mesmo que venha a morrer à beira de um fosso, encontrar-me-ão na dobra deste velho roupão azul com que sepultar-me decentemente como um cristão, e dar aos rapazes e raparigas com que façam a velada dos meus funerais. O velho mendigo preveniu-se para o seu enterro; de que mais precisa? Se alguma vez vissem um pobre diabo como eu trocar um guinéu, quem seria bastante doido para ainda lhe dispensar caridade? A notícia 129 propagar-se-ia pelo país como incêndio de guerra; dir-se-ia que Edie praticara tal ou tal má acção, e se eu mendigasse, ninguém me daria nem um mísero osso ou um bodle (1). - Não haverá então nada que possa fazer por si? - Oh, sim! Continuarei a vir buscar a minha esmola como de costume, e por vezes terei muito gosto em servir-me de uma pitada de rapé; depois, é preciso que se fale aos oficiais de polícia, para que não façam caso de mim. Talvez a menina também tenha a bondade de dizer duas palavras ao moleiro Sanndie Netherstanes, para que prenda o seu grande cão. Eu não desejaria, porém, que ele maltratasse o pobre animal, que não faz senão o seu dever ao ladrar a um mendigo como eu. Ainda teria outra coisa a pedir-lhe, mas talvez ache que é demasiado atrevimento um homem como eu falar-lhe disso. - De que se trata, Edie? Se for coisa que me diga respeito e que esteja ao meu alcance, prometo-lhe que se fará. - Só diz respeito a si; está ao seu alcance, e não fique zangada, mas tenho de lha dizer: a menina é muito bela, e sobretudo muito bondosa, demasiado bondosa para não ser sensível. Escute, não continue, pois, a repelir o jovem Lovel como o fez, há tempo, na Avenida Brierybank, onde os vi e ouvi a ambos, embora não se tivessem apercebido. Seja menos severa com esse jovem, porque ele ama-a muito; e é só a ele, e não ao que eu pude fazer, que sir Arthur e a menina ficaram devendo a vida ontem à noite.
Pronunciou estas palavras em voz baixa mas distintamente, e, sem esperar resposta, avançou para uma porta baixa que conduzia aos compartimentos dos criados, e entrou assim na casa. Miss Wardour quedou-se um momento ou dois na mesma posição em que escutara as últimas e estranhas palavras do velho; encostada aos varões da janela, incapaz de se decidir a responder com uma só palavra a um assunto tão delicado, até que o mendigo (1) Pequena moeda talvez equivalente a meio tostão dos nossos dias. - N. do T130 desapareceu. Sentiu-se dolorosamente impressionada ao pensar que o segredo da entrevista e da conversa que tivera com o jovem estrangeiro estava em poder de uma pessoa que pertencia à última classe em que uma donzela devia escolher um confidente, de alguém, enfim, que fazia, por assim dizer, no país, profissão de bisbilhotice. Em verdade, ela não tinha razão alguma para acreditar que o velho pudesse revelar alguma coisa voluntariamente para a ferir; mas só a liberdade com que ele lhe falara naquele assunto denunciava bastante a ausência daquela delicadeza que de facto não se podia esperar encontrar nele. Por isso, ela tinha razão para recear que um tão ardente partidário da liberdade não tivesse grandes escrúpulos em dizer ou fazer a primeira coisa que lhe passasse pela cabeça. Esta ideia assustou-a e atormentou-a de tal modo que ela quase desejava, quaisquer que fossem as consequências, não ter recebido o socorro e os serviços de Lovel e de Olchitree na noite anterior. Quando ela se entregava a esta agitação de espírito, viu de repente entrarem no pátio Oldbuck e Lovel. Imediatamente se afastou da janela, o bastante para não ser vista e poder observar o Antiquário, que se detivera diante do edifício e que, ocupado em mostrar as diversas armas dos antigos proprietários, parecia fornecer a Lovel muitas informações, sem dúvida curiosas e de erudição, que, pelo olhar distraído do seu ouvinte, Isabel adivinhou facilmente estarem a perder-se. A necessidade de tomar uma decisão tornava-se premente. Chamou, pois, um criado e ordenou-lhe que mandasse entrar os dois visitantes para o salão, enquanto, por outra escada, ela alcançava o seu quarto para reflectir, antes de aparecer, na atitude que iria adoptar. Segundo a ordem que ela dera, os visitantes foram introduzidos no salão onde geralmente se recebiam as pessoas de qualidade. 131 XIII Houve tempo em que eu te odiava e presentemente ainda te não amo. No entanto, suportei a tua presença, que outrora me era odiosa, - mas não espero outra recompensa. SHAKSPEARE - Como vos Aprover A tez de Miss Isabel Wardour estava extremamente animada quando, após a demora necessária à arrumação das suas ideias, se apresentou no salão. - Sinto muito prazer em que tenha vindo, minha bela inimiga - declarou o Antiquário ao cumprimentá-la com um ar cheio de afeição - porque tinha aqui no meu jovem amigo um dos ouvintes mais refractários ou menos atentos, quando tentava dar-lhe a conhecer a história do castelo de Knockwinnock. Creio que os perigos da última noite perturbaram a cabeça do pobre rapaz. Mas, quanto a si, Miss Isabel, dirá quem a vir que esteve no seu elemento natural. A sua tez está mesmo melhor do que ontem, quando
honrou o meu hospitiwn. E Sir Arthur? Como vai o meu bom e velho amigo? - Muito devagar, Mr. Oldbuck, e não bastante bem, receio eu, para receber as suas felicitações e apresentar a Mr. Lovel os agradecimentos que lhe são devidos pelos seus inacreditáveis esforços. - Assim o creio; ele necessita de uma boa almofada de penas para repousar a cabeça depois de tão rudemente se ter deitado no maldito Avental de Bessy. - Eu não tinha a intenção - disse Lovel (olhos fixos no chão, enquanto falava hesitante e com uma comoção mal contida) -não tinha a intenção de importunar sir Arthur ou Miss Wardour com a minha presença, que, bem o sinto, não pode senão ser-lhe desagradável; quero dizer, que lhes desperta aborrecidas recordações. - Não julgue que meu pai seja tão ingrato e tão injusto - replicou Miss Wardour - Não duvido - continuou ela, partilhando do embaraço de Lovel -de que ele se sinta feliz em testemunhar-lhe o seu reconhecimento 132 por todos os meios possíveis, isto é, por todos os meios que Mr. Lovel achar conveniente indicar-lhe - Co'os diabos! -exclamou Oldbuck, interrompendo-a-Que espécie de reticência é essa? Palavra que me lembra o nosso ministro que, como um velho presumido e cerimonioso que é, querendo beber um dia pela realização dos desejos de minha irmã, julgou necessário ajuntar esta cláusula restritiva: contanto, minha senhora, que eles sejam virtuosos. Vamos, deixamo-nos de todos esses cumprimentos. Estou em crer que um destes dias sir Arthur nos receberá em pessoa; entretanto, que novidades temos nós dos reinos das trevas subterrâneas e das esperanças fugitivas? Que oráculo revelou o espírito tenebroso das minas? Sir Arthur teve alguma notícia das últimas pesquisas no Glen-Withershins Miss Wardour meneou a cabeça. - Bastante más, creio, Mr. Oldbuck, mas eis algumas amostras que nos enviaram. - Ah, meu pobre cento de libras que sir Arthur me persuadiu a trocar por uma acção desta sedutora empresa! Chegaria para comprar com elas a carga de um homem em amostras minerológicas! Assim falando, sentou-se, no recanto do salão, diante de uma mesa onde as produções minerais estavam colocadas, e começou a examiná-las, murmurando e soltando exclamações de desdém todas as vezes que pegava numa e a repunha no seu lugar. Durante este tempo, Lovel, a quem esta ocupação de Oldbuck deixava numa espécie de conciliábulo com Miss Wardour, aproveitou essa ocasião para lhe dirigir estas palavras em voz baixa e entrecortada: - Espero, Miss Wardour, que desejará atribuir a circunstâncias quase irresistíveis a presença de uma pessoa cuja visita há razão para supor tão pouco agradável aqui. - Mr. Lovel - respondeu Miss Wardour, no mesmo tom cauteloso - espero que não abusará... julgo-o mesmo incapaz de abusar das vantagens que lhe dão os serviços que nos acaba de prestar, serviços que, no que se referem a meu pai, nunca podem ser bastante reconhecidos, bastante pagos... Se Mr. Lovel pudesse ver-me sem que o repouso da sua vida fosse perturbado, se me pudesse olhar como uma amiga, como 133 Uma irmã, ninguém seria e, segundo tudo o que ouvi dizer de Mr. Lovel, teria o direito de ser recebido com mais prazer aqui. Mas... Lovel repetiu intimamente os anátemas de Oldbuck contra a maldita
conjunção mas. - Perdoe-me, se a interrompo, Miss Wardour; não deve recear que eu a importune de novo falando-lhe de um assunto sobre o qual já fui severamente repelido; mas contente-se em rejeitar os meus sentimentos sem querer acrescentar a tanto rigor a exigência de que eu os negue... - Embaraça-me cruelmente, Mr. Lovel, com a sua... como direi? Não queria empregar uma palavra que o ferisse... com a sua tenacidade romanesca e sem esperança... É por si próprio que eu luto neste momento, para que, reflectindo que o seu país reclama os seus serviços e o seu talento, deixe de abandonar a sua imaginação às ilusões perigosas de um afecto mal dirigido, e de perder um tempo que, doravante melhor aproveitado, deve conduzi-lo à promoção e às próximas distinções. Permita-me ajuntar que tomaria uma digna resolução... - Basta, Miss Wardour; estou a ouvir-lhe de mais. - Mr. Lovel, o senhor sente-se ferido... e creia que eu sofro com o desgosto que lhe causo. Mas poderei eu, por mim, por si, proceder de outra maneira? Sem o consentimento de meu pai, nunca hei-de encorajar esperanças a ninguém, e o senhor próprio compreende até que ponto é impossível que ele aprove os sentimentos com que o senhor me honra, e mesmo... - Não, Miss Wardour - disse Lovel, interrompendo-a num tom suplicante e apaixonado - não diga mais; não lhe basta aniquilar toda a esperança na nossa actual posição? Não leve mais longe a crueldade; para que serve dizer-me qual seria a sua atitude, se os obstáculos fossem retirados do lado de sir Arthur? - É realmente inútil - disse Miss Wardour - visto que é impossível que alguma vez o sejam; devo somente, como sua amiga e como pessoa que lhe deve a vida e a de seu pai, suplicar-lhe que vença essa desditosa afeição, que deixe um país que não oferece espaço bastante vasto para os seus talentos e que retome a carreira honrosa que o senhor parece ter abandonado. 134 - Bem, Miss Wardour, os seus pedidos serão executados. Tenha paciência ainda só por um mês, e se durante este curto espaço não conseguir fazê-la aprovar os motivos da prorrogação da minha permanência em Fairport, direi adeus a este país, bem como a todas as minhas esperanças de felicidade. - Não, Mr. Lovel, não será assim. Está-lhe reservado, espero eu, um grande número de anos de uma ventura merecida e fundada em bases mais razoáveis do que aquelas em que repousam agora os seus votos. Mas esta conversa já durou de mais. Não posso impedir a entrada na casa de meu pai a quem salvou a sua vida e a minha. No entanto, quanto mais Mr. Lovel puder resignar-se rapidamente à perda das esperanças tão precipitadamente formadas, mais ganhará na minha estima. Entretanto, e no seu interesse como no meu, não me quererá mal que eu lhe proíba doravante um assunto de conversa tão doloroso. Um criado veio então anunciar que sir Arthur desejava falar a Mr. Oldbuck no seu quarto. - Permita-me que o conduza - propôs Miss Wardour, que parecia recear a continuação do diálogo a sós com Lovel. E acompanhou o Antiquário ao quarto de seu pai. Sir Arthur achava-se estendido num canapé, com as pernas embrulhadas em flanela. - bom dia, Mr. Oldbuck - disse ele -Espero que se tenha safado melhor do que eu daquele terrível tempo de ontem à noite. - Mas, sir Arthur, também eu não estive tão exposto. Fiquei em terra
firme, ao passo que o senhor esteve entregue ao ar húmido e frio da noite da maneira mais completa. Mas tais aventuras assentam melhor num bravo cavaleiro como o senhor do que num humilde escudeiro como eu. Elevar-se nas regiões do ar! Penetrar nas entranhas da terra! E a propósito, que novas esperanças subterrâneas da terra incógnita de Withershins? - Ainda nada de bom - respondeu o barão, voltando-se bruscamente, como se sentisse o aguilhão de uma dor de gota - Mas Dousterswivel não desespera. - Ele não desespera? - disse Oldbuck - Pois bem, eu, sob os seus bons auspícios, desespero. Saiba que 135 o doutor H... me disse, quando estive em Edimburgo, que, pelas amostras que lhe apresentei, nunca encontraremos bastante cobre para um par de brincos de seis pence; e não creio que haja grande diferença na qualidade daquelas que vi lá dentro em cima da mesa. - O sábio doutor não é talvez infalível. - Não, mas é um dos nossos primeiros químicos, e tenho a impressão de que o seu filósofo, esse Dousterswivel, é um dos mais hábeis aventureiros de quem Kircher diz: Artem habent sine arte, partem sine parte; quorum -médium est mentiri, vita corum mendicatum ire )1); isto é, Miss Wardour... - É inútil traduzir essas palavras - proferiu Miss Wardour - compreendo perfeitamente o que o senhor quer dizer; mas espero que Mr. Dousterswivel se mostre menos indigno da nossa confiança. - Duvido muito - disse o Antiquário - e vamos por mau caminho, se ele não descobrir finalmente esse infernal filão que nos predisse há dois anos. - O senhor não tem senão um pequeno interesse neste negócio, Mr. Oldbuck - disse o baronnet. - É já de mais, sir Arthur. No entanto, por amor da bela inimiga que aqui está, consentiria de boa vontade em perder tudo, desde que o senhor não tivesse um mais considerável. Houve um momento de doloroso silêncio, porque sir Arthur tinha demasiado amor-próprio para confessar que via dissiparem-se os seus sonhos dourados, embora não lhe fosse mais possível ocultar a ele próprio que tal devia ser o desfecho da aventura. - Eu soube - disse ele, por fim - que o jovem a cuja coragem e presença de espírito nós ficámos ontem à noite tão devedores, me honrou com a sua visita. Lamento não estar em estado de receber neste momento outra pessoa que não seja um velho amigo como Mr. Oldbuck. Um movimento da hirta espinha dorsal do Antiquário serviu de agradecimento a esta marca de distinção. (1) Têm arte sem arte, uma parte sem parte: o seu recurso é a mentira, a sua sorte é a de mendigar. - N. do T. 136 - O senhor travou certamente conhecimento com este jovem em Edimburgo? Oldbuck contou de que maneira se encontraram - Então - disse o baronnet - minha filha conhece Mr. Lovel há mais tempo do que o senhor. - Sim? Não sabia isso - respondeu o Antiquário um pouco surpreendido. - Encontrei Mr. Lovel - disse Isabel, corando levemente - em casa de minha tia, senhora Wilmot, onde passei uns dias na Primavera passada. - No condado de York? E qual era a sua reputação? Que profissão era a sua? -indagou Oldbuck Como foi que o não reconheceu quando lho apresentei? Isabel limitou-se ao que havia de menos embaraçoso naquelas perguntas. - Tinha uma posição no exército, e servia, creio eu, com distinção; era
geralmente estimado como jovem bem-educado e que dava as melhores esperanças. - E sendo isso - prosseguiu o Antiquário, que não estava disposto a contentar-se com uma só resposta para as suas duas perguntas diferentes diga-me, por favor, porque não lhe falou quando o encontrou em minha casa? Em verdade, Miss Wardour, eu supunha-a acima desse miserável orgulho feminino. - Minha filha tinha uma razão para isso - declarou sir Arthur com dignidade - O senhor conhece as opiniões, no seu critério talvez preconceitos, da nossa casa sobre a pureza do nascimento; o jovem é, ao que parece, filho ilegítimo de um homem rico, e a minha filha não julgou conveniente renovar o conhecimento com ele, antes de saber se eu aprovaria tais relações. - Se fosse por causa de sua mãe - disse Oldbuck, com a liberdade cáustica que lhe era peculiar -eu poderia achar excelentes os seus motivos. Ah! pobre rapaz! Aí está a razão por que ele tinha um ar tão distraído e tão perturbado, quando eu lhe explicava a causa da barra de bastardia que se encontra no escudo de uma das torrinhas do castelo. - É verdade - disse o baronnet, complacente - É o escudo de Malcome, cognominado o Usurpador. A torre que ele construiu, chamou-se, como ele, torre de Malcome, e mais frequentemente torre de Misticot, que 137 não deve ser senão a corrupção de Misbegot (1). Na genealogia latina da nossa família há a denominação de Milcolumbus Nothus; e a invasão temporária dos nossos domínios, assim como as suas injustas tentativas para estabelecer o seu ramo ilegítimo nas terras de Knockwinnock, causaram tantas divisões e desgraças na família que daí sem dúvida nasceram esta antipatia e este horror que sempre tivemos pela ilegitimidade e os matrimónios desiguais, sentimentos que me foram transmitidos pelos meus antepassados. - Conheço essa história - declarou Oldbuck - e cõnteia-a a Lovel, não há muitos instantes, ajuntando-lhe a influência que ela teve nas opiniões da sua família, e as prudentes máximas que daí resultaram. Pobre rapaz, deve ter ficado bem ferido! E eu que tomara o seu ar distraído por uma falta de atenção, que me irritara um pouco, ao passo que se tratava de uma prova de muita sensibilidade! Espero, no entanto, que o senhor não atribua menos valor à vida, por ter sido ele quem lha conservou. - Não creia; que o meu salvador seja menos bem visto por mim! Terá doravante entrada na minha casa e a liberdade de se sentar à minha mesa como se descendesse da mais pura linhagem. - Vamos, estou bem contente: ele saberá, pois, onde encontrar de jantar quando disso tiver necessidade. Mas quais serão os seus propósitos nestas vizinhanças? Tenho de interpelá-lo a esse respeito; e se ele precisar dos meus conselhos, ou mesmo que não precise, não lhos pouparei. Depois de fazer esta promessa liberal, o Antiquário despediu-se de Miss Wardour e de seu pai, impaciente por começar as suas operações sobre Lovel. Comunicou-lhe resumidamente que Miss Wardour lhe apresentava os seus cumprimentos, e ficava junto de seu pai, e, tomando-o pelo braço, levou-o para fora do castelo. Knockwinnock ainda conservava em grande parte os atributos exteriores de uma residência senhorial. Tinha as suas pontes levadiças, embora nunca estivessem levantadas, e os seus fossos, secos é certo, (1) Que significa mal nascido. - N. do T. 138 mas cujas margens se encontravam plantadas de arbustos sempre verdes; acima deles erguia-se o velho edifício, alicerçado em parte na rocha
granítica cuja vertente se estendia até à beira-mar, e em parte sobre um montículo relvado que servia de rebordo aos fossos. Além das árvores da avenida de que já falámos, havia-as em grande número em volta do castelo, cuja beleza e vigor pareciam refutar o preconceito que a vizinhança do Oceano prejudica a força da vegetação.
Os nossos passeantes detiveram-se e voltaram-se para ver o castelo, quando chegaram ao cimo de uma elevação atravessada pelo caminho que devia conduzi-los a Monkbarns; pois não se suporá facilmente que eles se aventurassem a correr o risco da maré, regressando pela praia. O edifício projectava a sua sombra majestosa sobre a folhagem tufada dos arbustos que o cercavam, enquanto as vidraças cintilavam aos raios de sol que incidiam na fachada. Cada um deles contemplava aquele espectáculo com impressões muito diferentes. Lovel, com o ardor ávido de uma paixão que se alimenta de ninharia, tal como o camaleão vive, segundo se diz, do ar ou dos insectos invisíveis que este contém; Lovel esforçava-se por adivinhar qual daquelas numerosas janelas pertencia ao quarto que a presença de Miss Wardour embelezava. As meditações do Antiquário tinham uma cor mais sombria, e foram em parte sugeridas pela exclamação de cito peritura (1) que soltou ao voltar-se. Lovel, saindo do seu devaneio, fitou-o como que para lhe pedir explicação daquelas palavras sinistras. - Sim, meu jovem amigo - disse ele - suponho, e o meu coração sangra com esse pensamento, que esta velha família está muito perto da sua ruína. - Deveras! - exclamou Lovel - O senhor surpreende-me enormemente! - É em vão que nos tentamos endurecer - disse o Antiquário, continuando o curso dos seus pensamentos e das suas sensações - para contemplar com indiferença aqueles que merecem as vicissitudes deste mundo, (1) Quem deve perecer em breve. - N. do T. 139 onde tudo é precário e Instável. Procuramos em vão chegar àquele estado de invulnerabilidade de um ser que se basta a ele próprio, de teres atque rotundus (1) do poeta: mas essa indiferença estóica, com a qual a filosofia pretende ensinar-nos a suportar os desgostos e os reveses da vida, é tão imaginária como esse estado de quietismo místico e de perfeição moral ao qual aspiraram extravagantes entusiastas. - Que o céu nos livre de semelhante estado! exclamou Lovel, com calor Que nos salve dessa fria filosofia cujo efeito seria secar e endurecer os nossos corações até o ponto de nos tornar insensíveis a tudo que não toque directamente os nossos interesses pessoais. Eu não posso desejar mais o triste estoicismo que transformaria o meu coração num bocado de mármore do que desejar ver paralisar-se a minha mão a fim de evitar o golpe que pode vir a feri-la. O Antiquário olhou o seu jovem companheiro com um misto de compaixão e de interesse e, encolhendo os ombros, respondeu: - Escute, jovem, quando a sua barca estiver batida durante sessenta anos pelas tempestades que agitam a vida humana, saberá então dirigir as suas velas e fazê-las obedecer pelo leme, ou, para falar a linguagem do mundo, terá bastantes vicissitudes e desgostos para orientar a sua sensibilidade sem se meter no destino dos outros mais do que o estritamente necessário. - Bem, Mr. Oldbuck, isso é possível; mas até ao presente eu pareço-me consigo ainda mais na prática do que na teoria, porque não posso deixar de tomar o mais vivo interesse pela sorte da família que acabamos de deixar. - E ela tem direito a isso neste momento - respondeu Oldbuck - porque os
embaraços de sir Arthur se tornaram tão numerosos e tão prementes que me admira de que não tivesse ouvido falar neles. E depois, aquelas operações absurdas e ruinosas que dirige esse aventureiro alemão, o tal Dousterswivel!... - Creio ter visto esse personagem, quando uma vez (1) Concentrado nele próprio, expressão de Homero. N. do T. 140 por'acaso me sucedeu entrar no "café" de Fairport: é um homem alto, pesadamente construído, com as sobrancelhas espessas e unidas, que se pôs a tagarelar sobre assuntos científicos com mais segurança do que saber, pelo menos, segundo o que eu, ignorante, pude julgar; pareceu-me apresentar a sua opinião de uma maneira cortante e absoluta e misturar os termos de ciência com um calão bizarro e místico. Um jovem que lá estava, teve a simplicidade de me dizer que ele era um iluminado, e que mantinha relações com o mundo invisível. - Ah! É bem ele, é ele mesmo: tem bastantes conhecimentos práticos para falar desenvolta e judiciosamente àqueles cuja penetração ele teme; e, para dizer a verdade, essa faculdade junta à sua extrema imprudência enganou-me também, por algum tempo, a seu respeito quando comecei a conhecê-lo. Mas ouvi dizer depois, que, quando está no meio de ignorantes " de mulheres, se mostra um verdadeiro charlatão, fala do magisterium, das simpatias e antipatias, da cabala, da vara divinatória, enfim de todas as necessidades com a ajuda das quais os rosa-cruz ludibriaram séculos menos esclarecidos, e que, para nossa eterna vergonha, reconquistaram algum favor no nosso. O meu amigo Heavysterne conheceu esse homem no continente; e sem o querer, pois é preciso que o senhor saiba que ele próprio é uma espécie de crente, ajudou-me a adivinhar uma grande parte deste carácter. Ah, se eu fosse califa durante um só dia, como o desejava o honesto Abu-Hassan, mandaria expulsar do reino esse malabarista à chicotada! Seduzem o espírito das pessoas ignorantes e crédulas com o seu palavriado místico, tão poderosamente como se lhes tivessem toldado o cérebro com genebra, e aproveitam a sua cegueira para as despojar com a mesma facilidade. E é assim que esse charlatão vagabundo acaba de dar o último empurrão para a ruína a uma antiga e nobre família. - Mas como pôde ele ludibriar sir Arthur por tanto tempo até o conduzir à ruína? - Que sei eu? Sir Arthur é um honesto e respeitável gentleman; mas, como o senhor pôde avaliar pelas suas ideias desconexas a respeito da linguagem dos Pictes, não é muito forte em faculdades intelectuais. Os seus bens estão em regime de substituição 141 ou morgadio inalienável, e tem andado sempre com os seus negócios muito embaraçados. Aquele intrigante prometeu-lhe montes de ouro, e encontrou uma companhia inglesa que adiantou grandes quantias em dinheiro, e, receio eu, com a garantia de sir Arthur; alguns particulares, e eu fui tão parvo que me incluí no número, tomaram pequenos interesses neste negócio; o próprio sir Arthur fez grandes despesas. Fomos arrastados pelas aparências plausíveis, por mentiras ainda mais plausíveis, e agora abrimos os olhos e, como John Bunyan, julgamos que não passa de um sonho. - Estou surpreendido por o senhor, Mr. Oldbuck, ter encorajado sir Arthur com o seu exemplo. - Que quer o senhor? - replicou Oldbuck, baixando as suas largas
sobrancelhas grisalhas e tufadas - Também me vê surpreendido e quase envergonhado de mim próprio. Certamente não era a avidez do ganho, porque embora homem ponderado, ninguém dá mais valor ao dinheiro do que eu: mas julgava poder arriscar essa pequena quantia. O mundo espera, embora em verdade eu não saiba a razão, que eu dê alguma coisa àquele que queira desembaraçar-me daquela pequena, a Maria Mac Intyre, minha sobrinha. Talvez se julgue também que deva fazer alguma coisa pela promoção pelo mau sujeito do irmão que está no exército; e se eu pudesse triplicar a quantia que arriscava, isso ter-me-ia ajudado nessas duas circunstâncias. Aliás, eu tinha a impressão de que os fenícios tinham outrora explorado uma mina de cobre neste mesmo local. O hábil patife do Dousterswivel que o céu o confunda! - descobriu o meu lado fraco, e soube fabricar tão estranhas histórias de restos de flechas encontradas e de vestígios de pesquisas feitas de uma maneira muito diferente da dos tempos modernos, que... enfim, fiz uma asneira; eis o facto. Da minha perda nem vale a pena falar, mas os compromissos de sir Arthur são, segundo se diz, muito consideráveis, e eu sinto a alma realmente pesarosa por ele, e sobretudo pela interessante jovem que deve partilhar da sua desventura. 142 XIV Se me atrever e acreditar nas lisonjeiras imagens do sono, os meus sonhos pressagiem a aproximação de uma alegre notícia. O meu coração repousa mais ligeiramente no meu seio, - e rodo o dia, animado pelos transportes de uma alegria pouco vulgar, eu pulo de contentamento e mal toco no chão ao andar. SHAKSPEARE - Romeu e Julieta A narrativa da infeliz empresa de sir Arthur desviara um pouco Oldbuck de interrogar Lovel sobre os motivos da sua permanência em Fairport, Estava, decidido a não deixar escapar a ocasião. - Miss Wardour acaba de me dizer que o senhor já a conhecia, Mr. Lovel. Lovel respondeu "que tivera o prazer de a ver em casa da senhora Wilmot, no condado de York". - Até o momento em que o senhor me apresentou - disse Lovel, muito atrapalhado - ignorava que fosse a mesma pessoa, e o meu dever, nesse caso, era esperar que ela me reconhecesse primeiro. - Compreendo a sua delicadeza. O gentleman é um velho louco preconceituoso; mas asseguro-lhe que a filha está acima de todos esses ridículos preconceitos. E agora que o senhor encontrou aqui novos amigos, posso perguntar-lhe se tenciona deixar Fairport tão depressa como se propunha? - Que diria se eu respondesse à sua pergunta com outra - replicou Lovel e se lhe perguntasse qual é a sua opinião acerca de sonhos? - Os sonhos, jovem louco! Que quer o senhor que eu pense senão que são desvios da imaginação, quando a razão lhe solta as rédeas? Não conheço outra diferença entre eles e as aberrações da loucura. Nos dois casos, os cavalos, entregues a eles próprios, arrastam a carruagem, a fugir, somente num caso o cocheiro está embriagado, ao passo que no outro não faz senão dormitar. Si insanorum visis fides non est habenda, cur 143 curcredatur samnientium visis quae multo etiam perturbatiora sumt, non intelligo (1). - Sim, senhor; mas Cícero diz-nos também que aquele que passa todo o dia a arremessar dardos deve por vezes atingir o seu alvo, de maneira que no meio da névoa dos sonhos nocturnos pode apresentar-se um que se relacione
com os acontecimentos futuros. - O que significa que, em sua sagaz opinião, o senhor deve atingir o alvo. Meu Deus, meu Deus, que loucura vai por este mundo! Não importa, alguma vez hei-de reconhecer a ciência onirocrítica; acreditarei na explicação dos sonhos e direi que apareceu um outro Daniel para os interpretar, se o senhor me puder provar que esse sonho que teve lhe indica um procedimento sensato e prudente. - Diga-me, pois - prosseguiu Lovel -por que motivo, no momento em que hesitava em se devia ou não abandonar uma empresa começada, me sucedeu sonhar a noite passada que via o seu antepassado indicar-me com o dedo uma divisa que me encorajava a seguir avante? Como sonharia eu essas palavras, que não me lembro de ter ouvido antes, que estão numa língua que me é desconhecida, e cuja tradução encerra no entanto uma lição tão aplicável à circunstância em que me encontro? O Antiquário desatou a rir. - Desculpe, meu jovem amigo, mas é assim que nós, pobres mortais, gostamos de nos ludibriar, procurando fora motivos que têm sua origem na nossa vontade interior. Creio que o posso ajudar a encontrar a fonte dessa visão. O senhor estava tão mergulhado nas suas meditações, ontem depois de jantar, que não se preocupou com a conversa que se estabeleceu entre mim e sir Arthur senão no momento em que ela degenerou numa discussão sobre os Pictes, que terminou tão bruscamente. Mas recordo-me de que mostrei a sir Arthur um livro impresso pelo meu avoengo, e que o fiz reparar na divisa. O seu espírito estava algures, mas o seu ouvido, maquinalmente (1) Se não se acredita nas visões dos loucos, para que acreditar nas das pessoas adormecidas, e que ainda são mais ininteligíveis? Eis o que eu não compreendo. - N. do T. 144 atingido pelas minhas palavras, reteve-as, e a sua activa imaginação, fermentando com a lenda de Grizel, introduziu no seu sonho essa divisa alemã. Quanto a essa sagacidade que, no seu sonho, o fez aproveitar uma circunstância tão frívola como desculpa para persistir numa atitude que o senhor não pode justificar com uma razão melhor, é precisamente um dos ardis que o mais esclarecido dentre nós se permite por vezes para satisfazer a sua inclinação em prejuízo da sua razão. - Concordo-declarou Lovel, corando muito-Creio, Mr. Oldbuck, que o senhor tem razão, e sinto que devo perder na sua estima por ter atribuído um momento de importância a um tal absurdo. Mas eu flutuava entre desejos e resoluções contraditórios, e o senhor sabe que a corda mais leve pode dirigir uma barca quando está entregue às ondas, ao passo que o rijo cabo mal a abana quando ela está em seco, na praia. - É verdade, é verdade - disse o Antiquário - mas para que fala em perder na minha opinião? Não é nada disso: eu não o estimo senão cada vez mais, meu rapaz. Agora, temos cada um de nós a nossa história, e eu envergonhar-me-ei menos de recordar a daquele maldito pretorium, embora não esteja menos convencido de que o acampamento de Agrícola deve ter sido algures nestas vizinhanças. E agora, Lovel, meu bom amigo, seja franco comigo: que é que o retém afastado de Wittenberg? Porque deixou o seu país e os deveres da sua profissão, por uma residência ociosa num local como Fairport? Gosta de correr Mundo, receio eu? - Talvez - respondeu Lovel, submetendo-se com paciência a um interrogatório que não podia evitar Aliás, estou tão isolado no Mundo, existem nele tão poucos seres que me interessem ou que se interessem por
mim, que este mesmo estado de abandono constitui a minha independência. Aquele cujo bom ou mau destino não toca senão a ele próprio deve ter o direito de dispor da sua pessoa como lhe apeteça. - Perdoe-me, jovem - disse Oldbuck, pousando-lhe afectuosamente a mão no ombro, e detendo-se completamente - Sufflamina (1), um pouco de paciência, por (1 ) Retardar. - N. do T. 145 favor. Quero admitir que o senhor não tenha amigos para partilhar dos seus êxitos no mundo e regozijarem-se com eles; que não possa lançar um olhar à retaguarda para aqueles a quem o senhor deve reconhecimento, e para aqueles que teriam o direito de vir em seu apoio: é o senhor menos obrigado a marchar a passo firme pela senda do dever?... Porque não é somente para com a sociedade que o senhor é devedor do exercício activo das suas faculdades, mas também o é por gratidão para com o Ente supremo, que o tornou membro dela e que o dotou de meios de ser útil a si e aos outros. - Mas eu não tenho a consciência de possuir tais faculdades - declarou Lovel, com um pouco de impaciência- Não peço à sociedade senão licença de continuar sossegadamente o meu caminho na vida sem atropelar os outros e sem eu próprio me deixar atropelar. Disponho de meios para viver numa independência completa, e os meus desejos são tão moderados neste país que mesmo esses meios, apesar de limitados, ainda são ultrapassados. - Então - disse Oldbuck, deixando cair a mão e retomando a marcha - se o senhor é assaz filósofo para se considerar suficientemente rico, não há nada a dizer. Não me sinto com o direito de o aconselhar; está no pináculo, no auge da perfeição. E como se compreende que Fairport fosse escolhida para asilo de um filósofo tão austero? Como se um sectário da verdadeira religião tivesse instalado o seu acampamento no meio das hordas idolatras da terra do Egipto. Não há um homem em Fairport que não seja devotado adorador do bezerro de ouro, do Marnmon de iniquidade, e eu próprio, meu rapaz, contagiado pela epidemia dessa maldita vizinhança, sinto-me por vezes inclinado a actos de idolatria. - A literatura constitui a minha principal distracção - declarou Lovel e como certas circunstâncias, no relato das quais não posso entrar, me decidiram a abandonar, pelo menos durante algum tempo, o serviço militar, escolhi Fairport como local onde pudesse entregar-me às minhas ocupações predilectas, sem ser desviado por nenhuma dessas tentações que um círí culo mais elegante de sociedade poderia oferecer-me. -Ah! Ah! - respondeu Oldbuck com finura 146 Começo a compreender a aplicação da divisa do meu antepassado; o senhor é um candidato ao favor público, embora de uma maneira diferente do que eu primeiro supusera; aspira a brilhar na carreira literária, e espera chegar ao triunfo pelo trabalho e pela perseverança. Lovel, que se encontrava cercado de perto pelas perguntas do velho gentleman, concluiu que mais valia deixá-lo no erro em que acabava de cair. - Sempre fui bastante louco - disse ele - para me entregar a pensamentos desse género. - Ah, pobre rapaz, nada pode ser mais triste do que isso; a não ser, porém, o que sucede por vezes aos jovens, que o senhor estivesse enamorado de alguma fêmea útil o que verdadeiramente, como tão bem o disse Shakspeare, é servir-se ao mesmo tempo do chicote e da espora para correr mais depressa para a sua perdição. Em seguida, continuou a fazer perguntas às quais tinha por vezes a
complacência de ele próprio responder; porque o bom velho gentleman, em consequência das suas pesquisas em antigüidades, contraira o gosto de construir conjecturas sobre bases que muitas vezes estavam longe de oferecer a superfície necessária; e sendo, como o leitor já pôde notar, razoavelmente teimoso, não suportava facilmente ser encaminhado, quer sobre os factos, que sobre o juízo que sobre eles formava, mesmo por aqueles que estavam mais interessados nos temas das suas reflexões. Prosseguiu, pois, esboçando ele próprio a carreira literária de Lovel. - E por onde tenciona começar os seus ensaios de homem de letras? Eu adivinho: pela poesia... a poesia... essa amável sedutora da mocidade. Sim, na modesta confusão do seu olhar e da sua atitude há qualquer coisa que me anuncia que acertei. E qual é o género das suas inspirações? Está disposto a desferir o seu vôo para as altas regiões do Parnaso ou a voltejar somente a base da montanha sagrada? - Ainda não tentei senão alguns trechos líricos disse Lovel. - Como lhe disse a propósito: roçando as moitas num vôo modesto. Mas lisonjeia-me que o senhor erga um vôo mais ousado. Note, porém, que não sou eu que desejo encorajá-lo a seguir uma ocupação tão pouco lucrativa; mas não me disse que era inteiramente independente dos caprichos do público? - Inteiramente - respondeu Lovel. - E que está resolvido a não adoptar um género de vida mais activo? - Tal é neste momento a minha decisão - respondeu o jovem. - Então, nada mais me resta senão dar-lhe os melhores conselhos, e toda a assistência que puder sobre o género ao qual deverá entregar-se. Eu publiquei dois ensaios no Repositório de Antigüidades; sou, pois. autor por experiência. Um, contendo as minhas anotações "sobre a edição de Hearne, de Robert de Gloucester, era assinado Escrutinador, e o outro, assinado Indicador, dissertava sobre um passo de Tácito. Poderia falar também de um artigo inserto no Gentleman's Magazine, que produziu ao tempo uma grande sensação, sobre a inscrição CElia Lelia, e que eu assinei Édipo. Como vê, não sou um noviço na profissão de autor, e devo por conseguinte conhecer o gosto e o espírito do nosso tempo. E agora, mais uma vez, por onde quer o senhor começar? - Não tenho nenhum projecto de publicação de momento. - Ah, não é isso que é preciso! O senhor deve ter, em todos os seus empreendimentos, bem presente a seus olhos o receio do público. Ponderemos um pouco: Uma recolha de poesias fugitivas... mas não, haveria a recear que elas ficassem em casa do livreiro. É preciso, ao mesmo tempo, alguma coisa de sólido e de atraente; nada dos vossos romances ou novidades anticlássicas. É necessário escolher imediatamente um campo vasto. Vejamos, que pensa de um poema épico? O verdadeiro, o antigo poema histórico que englobe doze ou vinte e quatro cantos? É isso; eu dar-lheei um tema. A batalha entre os Caledónios e os Romanos; dar-lhe-á o título de A Caledónia ou a Invasão Repelida. Agradará ao gosto actual e o senhor poderá fazer uma alusão ao nosso século. - Mas a invasão de Agrícola não foi repelida. - Não; mas o senhor é poeta; e, como tal, livre no seu vôo, e tão pouco escravo da verdade e do provável 148 como o próprio Virgílio; o senhor pode vencer os Romanos, em despeito de Tácito. - E colocar o acampamento de Agrícola no Kaim de... como lhe chama o senhor? - disse Lovel - Em despeito mesmo de Edie Olchitree. - Poupe-me nesse ponto... E no entanto é possível que, nestas duas circunstâncias, o senhor esteja mais perto da verdade do que pensa, em
despeito da toga do historiador e do roupão azul do mendigo. - O senhor dá-me bons conselhos; farei todo o possível por aproveitá-los, mas será preciso que a sua complacência venha em meu socorro para as informações sobre as localidades. - Quê, meu amigo? Mas a minha intenção é escrever as notas históricas e críticas no seguimento de cada canto, e eu próprio lhe traçar todo o plano. Também tenho as minhas pretensões ao gênio poético, Mr. Lovel; simplesmente, nunca pude fazer versos. - É uma pena que lhe falte uma faculdade que é bastante essencial nessa arte! - Essencial, não: é a parte puramente mecânica. Um homem pode ser poeta sem conhecer, como os antigos, a métrica e o dáctilo, ou fazer rimar no fim das linhas, como os modernos; assim como se pode ser arquitecto, embora incapaz de trabalhar como pedreiro. Pensa que Vitrúvio e Paládio alguma vez carregaram o coche da cal? - Nesse caso, será então preciso que haja dois autores para fazer um poema: um para a invenção e plano e outro para o executar. - Isso não estaria mal; em todo o caso, faremos a experiência. Não é porque me preocupe mostrar o meu nome ao público; mas num prefácio, após todas as belas coisas que o senhor julgar lá meter, poderá o senhor reconhecer que um sábio amigo o ajudou nos seus trabalhos; contudo, repito-o, sou inteiramente alheio à vaidade de autor. Lovel divertiu-se muito interiormente com esta profissão de fé, que se harmonizava mal com a pressa que o seu velho amigo mostrava em aproveitar todas as ocasiões para se apresentar ao público, embora de maneira a lembrar mais aquele que sobe para as traseiras de uma carruagem do que quem vai dentro. O Antiquário achava-se nesse instante no cúmulo do 149 contentamento; porque, semelhante a outros indivíduos que passam a sua vida em ocupações literárias obscuras e ignoradas, sentia a secreta ambição de se ver impresso; ambição que acessos de desconfiança reprimiam de vez em quando, o receio da crítica, e velhos hábitos de indolência que o levaram sempre a tudo guardar para o dia seguinte. "Mas, pensava ele então, eu posso, como um segundo Teucer, disparar os meus dardos da sombra do escudo do meu aliado; e, supondo que ele não seja um poeta de primeira ordem, não sou de maneira alguma responsável pela fraqueza dos seus versos; e boas anotações podem vir em reforço de um texto bastante medíocre. Contudo, este rapaz deve dar um bom poeta; nota-se nele toda a distracção comum aos filhos do Parnaso; raramente responde a uma pergunta que não se lhe tenha repetido duas vezes, engole o chá a escaldar, e come sem saber o que tem na boca. É bem o AEstus, o awen do bardo galés, o divinus afflatus (1), que transporta o poeta para além dos limites das coisas sublunares; as suas visões também apresentam todos os sintomas do delírio poético. Preciso de não me esquecer de mandar esta noite Caxon ver se ele apaga o castiçal; os poetas e os visionários estão sujeitos a negligenciar estas coisas". Depois, volvendo-se para o seu companheiro, continuou a falar-lhe assim, mas em voz alta: - Sim, meu caro Lovel, o senhor não deixará de ter anotações, e creio até que podemos introduzir no apêndice o meu ensaio sobre a arte dos antigos acampamentos. Isso dará muito valor à obra. Faremos, pois, reviver essas antigas e respeitáveis formas tão vergonhosamente abandonadas nos nossos tempos. O senhor invocará a Musa, e certamente ela deve ser propícia a um autor que, num século de apostasia, fica afeiçoado, com a fé de Abdiel, às antigas cerimonias do culto. Em seguida, precisamos de uma visão em que o gênio da Caledónia apareça a Galgacus e faça passar diante dele toda a posteridade dos verdadeiros monarcas escoceses; e nas notas eu
disparo uma frecha contra Boécio. Mas não, não se deve tocar (1) Sopro divino. - N. do T. 150 nesse assunto, agora que o pobre sir Arthur está ameaçado por tantos tormentos e desgostos; mas esmagarei Ossian, Macpherson e Mac Cribb. - Mas é preciso reflectir a quanto subirão as despesas de impressão disse Lovel, querendo experimentar se esta frase não esfriaria um pouco o calor do zelo que animava o seu futuro colaborador. - As despesas! -exclamou Mr. Oldbuck, detendo-se e metendo maquinalmente a mão ao bolso - É verdade Eu faria qualquer coisa... mas a sua intenção não seria publicar por assinatura? - Não, certamente! - Não, não - acrescentou o Antiquário - Não é honroso. Mas, eu lhe digo, conheço um livreiro que faz algum caso da minha opinião, e que não receará arriscar a sua impressão e o seu papel; e eu promoverei a venda de tantos exemplares quantos me seja possível. - Ah! Eu não sou um autor mercenário - respondeu Lovel -Desejo somente não me arriscar a perder. - Bem, bem! Veremos isso; é preciso que os editores corram todos os riscos. Estou impaciente por vê-lo começar os seus trabalhos; o senhor escolhe sem dúvida o verso branco; é o mais nobre, o mais majestoso para um tema histórico, e por interesse por si, meu amigo, creio que é também o mais fácil. Esta conversa levou-os até Monkbarns, onde o Antiquário teve de suportar um sermão de sua irmã, que, embora não fosse filósofa, o esperava sob o pórtico para lhe arengar. - Santo Deus, Monkbarns! Não basta já ser tudo bastante caro, e ainda o senhor aumenta o preço do peixe dando a essa descarada Maggie tudo o que ela lhe pede. - Como assim, Grizel! - replicou o sábio, um pouco desconcertado por aquele ataque imprevisto - Eu julgava ter feito uma boa compra. - Boa compra, quando lhe deu mais de metade do que ela pedia! Se o senhor quiser fazer de dona de casa e comprar o peixe, não deve oferecer mais de um quarto. E depois a descarada não teve vergonha de vir pedir-me o copinho de aguardente. Mas asseguro-Lhe que Jenny e eu a arranjámos bem!... - Realmente - disse Oldbuck, lançando um olhar 151 de soslaio ao seu companheiro - creio que devemos abençoar a sorte propícia que nos fez escapar ao in-" conveniente de ouvir essa discussão. Vamos, Grizel, procedi mal uma vez na minha vida: Ultra crepidam (1) concordo francamente; mas ponhamos de parte a despesa. As precauções matariam um rato; comeremos peixe, qualquer que seja o seu preço. E, além disso, Lovel, fique sabendo que lhe pedi para ficar hoje, porque temos comida um pouco melhor que da costume, por ter sido ontem jantar de gala. Prefiro à própria festa o dia seguinte à festa. Gosto dos sobejos, das miscelâneas, se assim lhes posso chamar, do jantar da véspera que se tornam a servir nestas ocasiões. Vamos, vê, Jenny já está a tocar a sineta. XV Que esta carta seja entregue a toda a pressa, com toda a pressa de que o correio for capaz. Corre, galopa, patife, como se disso dependesse a vida, a tua vida, sim, a tua vida.
Antiga recomendação das cartas de importância Deixamos Mr. Oldbuck e o seu amigo diante do peixe adquirido tão caro e permitimo-nos transportar, com o leitor, às traseiras da loja do chefe do correio de Fairport, onde sua mulher (por ele se encontrar ausente) se ocupava em classificar as cartas chegadas pelo correio de Edimburgo, pela ordem em que deviam ser entregues. É aquela hora do dia pela qual é por vezes agradável às comadres de uma pequena cidade entrarem em casa do homem ou da mulher das cartas, a fim de poderem, pelos sobrescritos, e, se não estiverem bem fechadas, por vezes também pelo conteúdo das epístolas, divertirem-se a colher informações ou a formar conjecturas sobre a correspondência (1) Neê sutor ultra crepidam, "que o sapateiro só trate de sapatos", que se exprime pelo rifão português: "Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão". - N. do T. 152 e os negócios dos seus vizinhos. No momento em que falamos, estavam duas mulheres a ajudar, ou antes, a atrasar a senhora Mailsetter no seu dever oficial. - Deus nos acuda! - exclamou a mulher do magarefe - Eis dez, onze, doze cartas para a casa & Cª Aquela gente faz mais negócios do que todo o resto da cidade. - Ah! Sim... mas veja, minha filha - respondeu a mulher do padeiro - há duas que são sobrescritos bem fechados e lacrados nos dois extremos. Desconfio que contêm letras protestadas. - Chegaram cartas para Jenny Caxon? - perguntou a mulher das miudezas de carneiro - Há três semanas que o tenente partiu. - Faz terça-feira oito dias que chegou uma - disse a mulher das cartas. - Vinha por barco? -perguntou a Fornarina. - Sim, garanto-lhe. - Então era do tenente - replicou a mulher dos pãezinhos, um pouco desapontada - Nunca acreditei que ele pensasse nela depois de partir. - Irra, cá está outra! - exclamou a senhora Mailsetter - Uma carta de barco, carimbada de Sunderland. As outras duas mulheres levantaram-se para se apoderarem dela. - Não, não, minhas senhoras - disse a senhora Mailsetter, opondo-se estou farta disso. Não sabem que Mr. Mailsetter foi muito belamente admoestado pelo secretário em Edimburgo, por causa de uma queixa que se fez a respeito daquela carta de Aily Bisset, que a senhora abriu, senhora Shortcake? - Que eu abri! - exclamou a esposa do principal padeiro de Fairport - A senhora sabe que ela se abriu sozinha nas minhas mãos. Que podia eu fazer? As pessoas que escrevem deviam servir-se de melhor lacre... - Está bem, devo confessar que tem razão - declarou a senhora Mailsetter, que tinha uma loja de mercadorias várias -e nós temos um lacre que podemos recomendar em consciência, se a senhora conhecer alguém que precise dele. Mas a verdade é que perdemos o lugar, se continuarem queixas deste género. 153 - Ora, minha filha, o preboste teria o cuidado de o impedir. - Não, não, não me fio nem no preboste, nem no bailio - disse a mulher do correio - No entanto, não peço mais do que ser amável com os meus vizinhos, e tão-pouco os impeço de ver uma carta por fora. Vejam... Há uma âncora no sobrescrito desta: o autor serviu-se de um "dos seus botões, ia apostar.
- Vejamos, vejamos! - exclamaram, ao mesmo tempo as mulheres dos principais cortador e padeiro da cidade; e lançaram-se sobre a suposta carta de amor, como as três bruxas de Macbeth sobre o polegar do piloto, com uma curiosidade tão ávida e quase tão maldosa. A senhora Heukbane era uma mulher alta, tinha a preciosa epístola muito perto dos olhos e da janela. A senhora Shortecake, que era baixa e atarracada-, erguia-se, e mantinha-se nos bicos dos pés para obter a sua parte no exame. - Realmente, é dele, não há dúvida -disse a esposa do padeiro - Posso ler a sua assinatura, Richard Taffril, ao canto, e o papel está cheio de uma ponta a outra. - Ponha-a mais baixo! - exclamou a senhora Shortcake, cochichando um pouco mais alto do que o não desejaria a prudência exigida pela sua ocupação - Ponha-a mais baixo; julga que mais ninguém senão a senhora sabe ler? - Chiu! Chiu! Por amor de Deus, minhas senhoras - disse a mulher do correio - está gente na loja... - depois, em voz alta -Baby, atende os clientes. Baby respondeu em voz aguda: - É só Jenny Caxon, minha senhora, que vem ver se há correspondência para ela. - Dize-lhe - replicou a íntegra mulher do correio, fazendo sinais às suas comadres - que venha amanhã de manhã, às dez horas, para eu lhe responder; ainda não tivemos tempo de reconhecer e distribuir as cartas. Ela tem sempre tanta pressa como se as suas cartas fossem mais importantes que as do primeiro negociante da cidade. A pobre Jenny, jovem de uma beleza e de uma modéstia notáveis, puxou a sua capa para o peito; decerto com o fim de ocultar o suspiro de desgosto 154 que soltou, e encaminhou-se vagarosamente para sua casa, a fim de aí padecer durante toda uma noite aquela tristeza e aquele desânimo que se apoderam de um coração cuja esperança acaba de ser iludida. - Há alguma coisa a respeito de uma agulha e de um pólo (1) - disse a senhora Shortcake, a quem a sua rival em bisbilhotice, de estatura mais alta, permitira finalmente lançar um olhar ao objecto da sua curiosidade. - com certeza; é uma autêntica vergonha - disse a senhora Heukbane fazer pouco daquela pobre parva depois de a namorar durante tanto tempo. e de obter tudo o que quis, sem dúvida. - Não se pode duvidar - concordou a senhora Shortcake - Ir censurá-la por o pai não ser mais do que um barbeiro e por ter um poste à sua porta, e que ela própria não passava de uma costureira: apre, já não há vergonha! - Nenhuma! - exclamou a senhora Mailsetter - A senhora não percebe. Trata-se de uma coisa que foi tirada de uma dessas canções de marinheiro em que se fala de ser fiel como a agulha de marear o, é ao pólo; lembrome de lha ouvir cantar. - Bem, bem, faço votos por que assim seja, mas a senhora concorda que não é bonito uma menina como ela estar em correspondência com um oficial ao serviço do rei. - Não digo o contrário - respondeu a senhora Mailsetter-mas tem de convir que as cartas de amor constituem uma boa receita para a administração do correio. Olhem, aqui estão cinco ou seis cartas para sir Arthur Wardour, a maior parte fechadas com obreias e não com lacre. Creiam-me, há-de haver em breve modificações naquela casa. - São decerto cartas de negócios, e não dos seus amigos grandes senhores,
que lacram sempre com os seus brasões, como eles lhes chamam - disse a senhora Heukbane - Aquilo vem a acabar mal; o orgulho daquela gente há-de abaixar-se. Há vn ano que (1) fale significa simultaneamente pólo ou estaca ou vara, o que se presta em inglês a uma expressão de duplo sentido - N. do T. 155 não faz contas com o meu marido, tenho a impressão de que está naufragado. - Nem connosco há seis meses - ajuntou a senhora Shortcake - É um cesto roto. - Eis uma carta - prosseguiu a mulher do correio - que vem do seu filho capitão, suponho eu; o lacre tem as mesmas armas que estão na carruagem dos Knockwinnock: vai certamente regressar para ver o que pode salvar do incêndio. Depois de acabarem de se ocupar do baronnet, as fêmeas passaram ao escudeiro. - Duas cartas para Monkbarns; vêm sem dúvida de alguns sábios seus amigos: vejam como a letra é apertada, vai até o lacre, e isto para evitar porte duplo. É bem como o próprio Monkbarns; quando estampilha uma carta, tem o cuidado de que ela pese uma onça tão exacta que um grão de alcaravia faria pender a balança. Ah! Ver-me-ia obrigada a abrir falência se pesasse com tanta exactidão às pessoas que vêm comprar-me pimenta ou enxofre, e outras especiarias. - O laird de Monkbarns não passa de um sovina - disse a senhora Heukbane - Não quer pagar um quarto de carneiro mais caro em Agosto do que se fosse um traço de vaca. E se nós tomássemos mais uma pinga desse licor, senhora Mailsetter? Ah, minhas amigas, se conhecessem como eu o seu irmão! Quantas vezes ele deslizou para a minha casa, com um par de patos bravos na bolsa, quando o meu pri meiro marido estava na feira de Falkirk!... Ah, meu Deus, para que serve falar disso agora? - Eu não digo mal de Monkbarns - declarou a senhora Shortcake - O seu irmão nunca me trouxe patos bravos, mas este é um homem honesto e digno. Somos nós que fornecemos pão à família, e ele paga-nos todas as semanas. Apenas se encolerizou quando lhe enviámos um livro das talhas, que, dizia ele, era o verdadeiro e antigo costume de fazer contas entre os padeiros e os seus fregueses, e não deixava de ter razão nisso. - Mas vejam isto, minhas senhoras - disse a mulher do correio -eis uma coisa que vale a pena. Que não dariam para saber o que contém esta carta? Eis alguma coisa de novo; nunca vi coisa semelhante: 156 Para William Lovel, Esquire, em casa da senhora Hadoway, High-Street, Fairport, por Edimburgo. N. B. É justamente a segunda carta que ele recebe desde que aqui está. - Por amor de Deus, vejamos, minha querida; vejamos um pouco, por favor: é aquele de quem toda a cidade nada sabe, e, além disso, é um belo rapaz. Deixe-nos ver! Deixe-nos ver! - exclamaram aquelas duas dignas filhas da nossa mãe Eva. - Não, não, minhas senhoras - respondeu a senhora Mailsetter - não toquem aí, peço-lhes. Não se trata de uma daquelas cartas de quatro pence, cujo valor nós poderíamos repor no correio, se sucedesse algum percalço. O porte desta é de vinte xelins, e há uma ordem do secretário para a enviar ao jovem por um expresso, no caso de ele não se encontrar em casa. Não
lhe ponham pois as mãos, por favor; não se deve tocar-lhe. - Mas deixe-nos ver somente o sobrescrito. O sobrescrito não podia fornecer nenhuma informação, nada a não ser as diversas características que os filósofos atribuem aos objectos materiais: comprimento, largura, espessura e peso. O volume era composto de um papel muito espesso; impenetrável aos olhos curiosos das comadres, embora elas os fixassem de modo a fazê-los sair das suas órbitas; o lacre trazia uma marca nítida e profunda de armas, e pela sua solidez parecia desafiar todas as artimanhas da curiosidade. - Meu Deus, minha querida - suspirou a padeira, sopesando a carta na sua mão, enquanto desejaria que o lacre, aí, demasiado sólido, pudesse derreter-se ou dissolver-se - como eu gostaria de saber o que está lá dentro! Porque este Lovel constitui o tormento de toda a cidade de Fairport: ninguém sabe verdadeiramente o que pensar dele. - Bem, minhas senhoras - disse a mulher do correio - sentemo-nos para conversar um pouco. Baby, traze-nos a água para o chá. Estou-lhe muito agradecida pelos seus bolos, senhora Shortcake. Vamos fechar a loja e jogar uma partida de cartas até que o meu marido volte, e depois saborearemos o arroz de carne que a senhora Heukbane teve a bondade de mandar. 157 - Mas não vai remeter a carta a Mr. Lovel? lembrou a mulher do cortador. - Não sei quem lá mandar até que meu marido regresse, porque o velho Caxon disse-me que Mr. Lovel passava todo o dia em Monkbarns. Apanhou uma boa febre, ao retirar do mar o laird e sir Arthur. - E que necessidade tinham essas duas velhas cabeças - disse a padeira de ir banhar-se numa noite como a de ontem. - Constou-me - disse a senhora Heukbane - que foi o velho Edie quem os salvou; que ele os tirara a todos três do velho tanque onde Monkbarns os levara para verem as obras antigas dos monges. - Ora, ora, isso são fábulas! - respondeu a mulher do correio - Vou contar-lhes tudo como Caxon mo contou. Saiba que sir Arthur e Miss Wardour e Mr. Lovel jantaram em Monkbarns. - Mas, senhora Mailsetter- disse ainda a mulher do cortador; interrompendo-a - não vai mandar um expresso com essa carta? O nosso cavalo e o nosso rapaz estão prontos, e já serviram de expresso ao correio; o cavalo ainda hoje não percorreu trinta milhas; Jack levava-o para a cocheira, quando eu saía. - Quanto a isso, senhora Heukbane - respondeu a mulher das cartas, beliscando os lábios - como sabe, meu marido gosta ele próprio de encarregar-se das mensagens. É preciso pensar nos nossos interesses antes de pensar nos dos estranhos, e todas as vezes que ele monta no seu jumento, ganha um bom meio guinéu. Tenho a certeza de que não tardará em voltar, e depois virá a dar na mesma que o jovem venha a receber a sua carta esta tarde ou amanhã de manhã. - A não ser que Mr. Lovel talvez já tenha voltado à cidade antes da partida do expresso - disse a senhora Heukbane - E depois? Mas, ao menos, já sabe o que tem a fazer. - Bem, senhora Heukbane - replicou a senhora Mailsetter, com um pouco de espírito e mesmo um pouco de confusão - a senhora bem sabe que sou boa vizinha e que gosto de viver e deixar viver toda a gente, como é costume dizer-se; e visto que fiz a asneira de lhe mostrar a ordem do correio, não há dúvida de que devo executá-la; mas agradeço-lhe o seu rapaz, não precisarei dele, mando o pequeno,
158 David no seu cavalo, e serão cinco xelins e dois pence para cada uma, como sabe. - O David? Deus a ajude! O pequeno ainda não tem dez anos e, para lhe falar francamente, o nosso cavalo é um pouco manhoso, pode escoucear no caminho, e ninguém o sabe conduzir senão Jack. - Tenho pena - disse a mulher do correio, em ar grave - Nesse caso, teremos de esperar o regresso de meu marido, porque não quero ficar com a responsabilidade de ter confiado uma carta ao seu filho Jack. O nosso David de certo modo pertence à estação do correio. - Bem. bem, senhora Mailsetter, vejo onde quer chegar; mas se a senhora arrisca o seu filho, eu consinto em arriscar o meu animal. Deram ordens em conformidade. O cavalo, que não consultaram, foi retirado da cocheira onde repousava sobre palha, e arreado para a partida. David, com o saco de couro oficial suspenso do ombro, foi içado à sela, lágrima no olho e verdasca na mão. Jack teve a complacência de conduzir o animal fora da cidade, e, pelos estalidos do chicote e os incitamentos de uma voz muito conhecida, obrigou-o a tomar o caminho de Monkbarns. Entretanto, as comadres, como as sibilas depois de terem consultado os oráculos, compuseram e combinaram as novidades da noite, que se difundiram no dia seguinte de manhã no mundo de Fairport por mil fontes diferentes, e com mil variações. Notícias e conjecturas estranhas foram as consequências daqueles boatos. Uns diziam que a casa Tennant & C. a estava em falência, e que todas as suas letras voltavam protestadas; outros que ela fizera contrato com o governo para uma compra considerável, e que recebia cartas dos principais negociantes de Glásgua que desejavam comprar acções dessa empresa. Por um lado, corria o boato de que o tenente Taffril reconhecera definitivamente o seu casamento secreto com Jenny Caxon; por outro, que escrevera uma carta em que censurava a baixeza do seu nascimento e da sua educação, e lhe dizia um eterno adeus. Dizia-se por toda a cidade que os negócios de sir Arthur Wardour estavam irremediavelmente perdidos; e as pessoas prudentes não duvidavam destes relatos porque partiam da loja da 159 senhora Mailsetter, fonte mais célebre pela circulação de notícias do que pela sua exactidão. Mas toda a gente era unânime em dizer que viera um volume do ministério dirigido a Mr. Lovel, trazido por um dragão de ordenança que tinham despachado do quartel-general de Edimburgo, e que atravessara Fairport a galope sem se deter, a não ser para perguntar o caminho de Monkbarns. Os motivos de uma mensagem tão extraordinária para um indivíduo tão sossegado e tão recolhido como Mr. Lovel eram explicados de diversas maneiras. Uns diziam que Lovel era um nobre emigrado, nomeado para ir comandar uma insurreição que acabava de eclodir na Vendeia, outros que era um espião, outros ainda que era um oficial-general em secreta visita à costa; e, finalmente, havia pessoas que queriam que fosse um príncipe de sangue a viajar incógnito.
Entretanto, o volume que dava ensejo a tantas reflexões experimentara mais de um perigo e de um atraso no caminho de Monkbarns. O portador, David Mailsetter, que tão pouca semelhança possível tinha com um dragão de ordenança, foi levado em frente pelo caminho direito enquanto o cavalo teve presente na memóri'a o estalado do seu instrumento habitual de correcção e a voz do rapaz do cortador. Mas quando se apercebeu de como
David, cujas pequenas pernas lhe não permitiam conservar o equilíbrio, balouçava no seu lombo, resolveu não obedecer mais às ordens que recebera. Começou, então, por não ir mais do que a passo. Isto não seria motivo de conflito entre ele e o seu cavaleiro, que fora muito perturbado pela rapidez dos seus primeiros movimentos e que se apressou a aproveitar o momento em que ele afrouxava o passo para roer um bocado de pão de gengibre que sua mãe lhe metera na mão, a fim de bem dispor o jovem empregado do correio a cumprir o seu dever. Mas, gradualmente, a maliciosa cavalgadura aproveitou este relaxamento de disciplina para se desembaraçar da brida, retirando-a pouco a pouco da mão de David, e começou a tosar a erva à beira do caminho. Apavorado por estes sintomas de rebelião obstinada, e sentindo-se tão assustado em ficar sentado como em apear-se, o pobre David ergueu a voz a chorar com 160 força. O cavalo, ouvindo todo este barulho por cima da sua cabeça, começou aparentemente a pensar que o melhor partido a tomar para ele e o seu companheiro era voltar para de onde vieram; por isso, fez um movimento de retrocesso para Fairport. Mas assim como todas as retiradas estão sujeitas a acabar em completa derrota, assim o animal, alarmado pelos gritos da criança, lançou-se em tal velocidade que, supondo que David se mantivesse na sela, coisa que parecia bastante duvidosa, não tardaria em depô-lo diante da cocheira do cortador, se não surgisse um auxiliar muito a propósito sob a forma do velho Edie Ochiltree, que se apoderou das rédeas e o obrigou a deter-se na sua corrida, bradando: - Quem és tu, rapaz? Por que motivo vais a galopar assim? - A culpa não é minha - respondeu o expresso, a soluçar - Eu sou o pequeno David. - E onde ias tu? - Vou a Monkbarns levar uma carta. - Mas, menino, tu não estás no caminho de Monkbarns. David não pôde responder a isto senão por meio de soluços e lágrimas. O velho Edie era muito sujeito à compaixão, quando se tratava de uma criança. "Eu não ia para lá, pensou ele, mas o que há de bom no meu género de vida é que nunca estou fora do meu caminho. Dar-me-ão abrigo em Monkbarns com tão boa vontade como noutro sítio qualquer; encaminho-me, pois, para lá com o pequeno, porque se ele não tiver ninguém para lhe guiar o cavalo, o pobre rapaz parte a cabeça". - Dizes então que tens uma carta, meu rapaz? Queres mostrar-ma? - Eu não devo mostrar a carta a ninguém - disse o pequeno, sempre a soluçar - antes de a entregar a a Mr. Lovel; porque eu sou um fiel servidor do correio; o resto é tudo culpa do cavalo. - Está muito bem, meu homenzinho - disse Olchitree, voltando a cabeça ao cavalo, apesar da repugnância do pobre animal, para o lado de Monkbarns Mas por muito teimoso que ele seja, havemos de levá-lo nós dois. Na própria eminência de Kinprunes, onde Oldbuck 161 atraira Lovel depois de jantar, o Antiquário, reconciliado com os campos outrora degradados, entregava-se com complacência às inspirações que o lugar lhe oferecia para a descrição do acampamento de Agrícola, ao romper do dia, quando de repente o seu olhar se deteve no mendigo e seu protegido. - Co'os diabos! Eis o velho Edie, creio eu, com saco e bagagem!
O mendigo explicou o objectivo daquela viagem, e David, que tinha de cumprir literalmente a sua missão indo até Monkbarns, teve dificuldade em deixar-se persuadir a entregar a mensagem ao seu proprietário, porque o encontrava uma milha mais perto do que o local onde se dirigia. - Mas a mamã disse que era preciso não deixar de levar vinte e cinco xelins pelo porte da carta e dez xelins e meio pelo expresso. Eis o papel. - Vejamos, vejamos - disse Oldbuck, pondo os óculos e examinando a folha garatujada dos regulamentos que David chamava em seu apoio - Por um expresso, homem e cavalo não serão pagos por dia mais de dez xelins e meio. Por um dia! Não houve mais de uma hora. Um homem e um cavalo, dizse! com a breca, não vemos aqui senão um macaco e um gato magro. - Meu pai teria vindo no jumento ruço, se o senhor pudesse esperar até amanhã de manhã. - Vinte e quatro horas depois da data regular da entrega da carta! - exclamou o Antiquário - Pinto mal saído da casca, ovo de basilisco, cedo aprendeste a enganar os outros? - Vamos, Monkbarns, não se zangue com o pequeno - disse o velho pedinte Pense que o cortador arriscou a sua cavalgadura, e a boa mulher o seu filho, e que dez xelins e meio não são muito por tudo isso. O senhor não foi tão rigoroso com John Howie quando... Lovel que, sentado no pretenso Praetorium, passara o olhar pelo conteúdo do pacote, pôs fim à altercação pagando a David o que ele pedia. Depois, voltando-se para Oldbuck num ar muito agitado, desculpou-se de não poder voltar com ele para Monkbarns. - Preciso de ir sem demora a Fairport, que posso 162 ser obrigado a abandonar de um momento para o outro. Nunca esquecerei, Mr. Oldbuck, as gentilezas que teve para comigo. - Espero que não tenha recebido más notícias disse o Antiquário. - São muito misturadas. Adeus. Na boa e na má sorte guardarei sempre a recordação do interesse que me testemunhou - Mas mas espere então um momento e fazendo um esforço sobre ele próprio - Se tem algum embaraço pecuniário, eu tenho cinquenta. mesmo cem guinéus à sua disposição, até Pentecostes, ou em verdade por todo o tempo que o senhor quiser.
- Estou-lhe muito grato, Mr. Oldbuck; mas, nesse capítulo, estou amplamente provido - disse o seu misterioso amigo - Queira desculpar; não me encontro realmente em estado de manter uma longa conversa; escreverlhe-ei ou vê-lo-ei antes de deixar Fairport, no caso de me ver forçado a isso. Ao terminar estas palavras, apertou afectuosamente a mão do Antiquário e, sem escutar mais perguntas, meteu-se rapidamente a caminho da cidade. - Tudo isto é muito extraordinário - disse Oldbuck - Mas há neste rapaz alguma coisa que eu não pude devassar, e no entanto é-me impossível fazer má opinião a seu respeito. Tenho de regressar e apagar o lume do quarto verde - ajuntou ele - porque tenho a certeza de que nenhuma das fêmeas se atreveria a lá entrar depois do crepúsculo. - E como vou eu voltar para casa? - perguntou, a chorar, o rapaz do correio. - A noite está bela - disse o mendigo, olhando para o céu - é para mim o mesmo voltar à cidade para tomar conta desta criança.
- Faz bem, Edie - e remexendo no vasto bolso do seu casaco até encontrar o que procurava - Tome ajuntou o Antiquário - aí tem seis pence para comprar rapé. 163 XVI O patife embruxou-me com a sua companhia. Eu seja enforcado se o velhaco não me deu drogas para que eu o estimasse tanto. Não pode ser de oufra maneira. Devo ter tomado drogas. SHAKSPEARE - Henrique I Durante uns quinze dias, Oldbuck informou-se regularmente junto do veterano Caxon acerca do que ouvira dizer de Lovel, e as respostas de Caxon também foram regularmente as mesmas. A cidade, dizia ele, nada sabia a seu respeito, a não ser que recebera uma ou duas grandes cartas do Sul e que nunca mais o viram sair. - E de que maneira vive ele, Caxon? - A senhora Hadoway prepara-lhe um bife ou uma costeleta de carneiro, ou um fricassé de frango, enfim, o que ela própria julga conveniente, e ele come no pequeno locutório vermelho, ao lado do seu quarto. Não consegue que ele prefira uma coisa a outra; faz-Lhe chá todas as manhãs, e ele paga-lhe honradamente todas as semanas. - Mas nunca sai? - Abandonou por completo os seus passeios, e fica todo o dia no quarto, a ler e a escrever. Escreveu várias cartas; mas não quis metê-las no correio da cidade, apesar da senhora Hadoway se ter oferecido para ela própria as levar. Preferiu enviá-las num sobrescrito ao sherife, e, na opinião da senhora Mailsetter, este mandou-as meter, pelo seu criado, no correio em Tannonburgh. Tenho a impressão da que suspeita de que vêem as cartas no posto da Fairport, e nisso não se engana, porque a minha pobre filha Jenny... - Alto, Caxon! Vais aborrecer-me com as tuas histórias de mulheres? Mas falemos desse pobre rapaz: não escreveu senão cartas? - Oh, não, senhor! A senhora Hadoway disse que ele enche folhas inteiras com outras coisas. Bem desejaria ela poder convencê-lo a passear um pouco; 164 acha-lhe agora muito mau aspecto, e notou que ele perdeu completamente o apetite. Mas nem quer ouvir falar em ultrapassar as umbreiras da porta, ele que estava habituado a fazer tanto exercício. - Faz mal. Calculo de que ele se ocupa; mas também é preciso que não trabalhe de mais. Vou hoje mesmo visitá-lo. Não há dúvida de que mergulhou na Caledónia. Tomando esta enérgica resolução, Oldbruck equipou-se para a sua excursão; calçou os seus fortes sapatos de viagem e empunhou a sua bengala de castão de ouro, repetindo ao mesmo tempo as palavras de Falstaff que pusemos à cabeça deste capítulo; pois Antiquário admirava-se do grau de afeição que não podia deixar de experimentar por aquele jovem estrangeiro. Não era, porém, muito difícil explicar a causa: Lovel, além das suas atraentes qualidades, conquistara o coração do nosso Antiquário por se mostrar geralmente muito atento em escutá-lo. Um passeio a Fairport tinha-se tornado um verdadeiro acontecimento na vida de Oldbuck, que não se preocupava em empreendê-lo muitas vezes. Detestava os cumprimentos que tinha de receber na praça do mercado; depois, as ruas estavam geralmente cheias de ociosos que não deixavam de
o perseguir com as novidades do dia, ou a propósito de pequenos interesses públicos. Nessa ocasião, mal ele se mostrou nas ruas de Fairport, foi assaltado por um "bom dia, Mr. Oldbuck! Em verdade, o senhor torna-se bem raro! Que pensa das notícias que o jornal de hoje publica? Diz-se que a grande empresa começa decididamente dentro de quinze dias". - Desejaria que começasse e acabasse, para nunca mais ouvir falar dela. - Monkbarns - disse um jardineiro florista - espero que Vossa Honra ficasse satisfeito com as plantas, e se o senhor precisa de belas sementes de flores recentemente chegadas da Holanda - baixando a voz e de uma ou duas caixas de água de Colonia, um dos nossos navios entrou ontem no porto. - Obrigado, obrigado, de momento não preciso de nada, Mr. Crabtree disse o Antiquário, continuando sempre a avançar corajosamente. - Mr. Oldbuck - disse o notário da cidade, personagem 165 mais importante que veio apresentar-se diante do velho gentleman, aventurando-se a detê-lo - o preboste, que acaba de saber que o senhor está na cidade, pede-lhe instantemente que não pense em deixá-la sem o ver. Quer falar-lhe a respeito da fonte de Fairwell, porque talvez seja preciso que ela atravesse uma parte das suas terras. - Que diabo, não há outras terras senão as minhas, para fazer todo esse desgaste? Diga-lhe que não consinto. - E o preboste - ajuntou o notário, sem dar atenção a esta recusa - o preboste, assim como o conselho, consentem que o senhor mande retirar as pedras antigas da capela de São Donagild que o senhor parece desejar. - Como, que diz? Ah, isso e outro negócio! Pois bem, eu passo por casa do preboste, e depois falamos.
- Mas é preciso que o senhor diga imediatamente, Monkbarns, se deseja as pedras, porque o diácono Harlewalls pensa que essas estátuas, todas mutiladas como estão, fariam bom efeito no frontão da nossa nova sala do conselho. Colocar-se-iam as duas figuras de pernas cruzadas, a que chamam vulgarmente Robbin e Bobbin, a cada lado da porta, e a terceira, que se chama Ailie Dailie, por cima. O diácono diz que seria de bom gosto e precisamente no estilo gótico moderno. - Deus me livre dessa geração gótica! - exclamou o Antiquário - A estátua de um cavaleiro templário a cada lado de um pórtico grego e uma Madona por cima! O crimini. Pois bem, diga ao preboste que desejo essas pedras, que não haverá oposição "no caso da fonte. Foi uma felicidade o acaso trazer-me hoje aqui. Separaram-se mutuamente satisfeitos; mas o manhoso notário tinha razão para se felicitar pela sua habilidade, porque a proposta de uma troca entre os monumentos (que o conselho resolvera mandar retirar como um entrave na via pública em cerca de três pés) e o privilégio de fazer chegar a água à cidade através do domínio "de Monkbarns, fora uma ideia que a circunstância subitamente lhe inspirou. Através destes diversos obstáculos, Monkbarns, para usar a frase pela qual ele era conhecido na região, acabou por chegar a casa da senhora Hadoway. Esta 166 boa mulher, viúva da um eclesiástico de Fairport, pela morte do marido, caira no estado de embaraçosas dificuldades a que as viúvas dos membros do clero escocês ficam muitas vezes reduzidas. O mobiliário que conservara permitia-lhe alugar uma parte da sua casa mobilada, e como
encontrara em Lovel um inquilino sossegado e afável, cuja estada em sua casa lhe fora vantajosa no aspecto pecuniário, e agradável pela brandura e delicadeza que ele sempre imprimira a todas as suas relações, afeiçoara-se-lhe sinceramente, e tinha com ele todos os pequenos cuidados e todas as atenções pessoais que as circunstâncias lhe permitiam. Era um prazer para ela preparar um prato de uma maneira um pouco mais requintada para o jantar do pobre jovem gentleman, ou aproveitar-se da boa vontad daqueles que estavam dispostos a servi-la por respeito pela memória de seu marido, ou por deferência por ela, a fim de obter algum legume raro, ou algum acepipe, que julgava, na sua simplicidade, dever oferecer ao gosto do seu locatário; mas quanto mais se comprazia em cercá-lo de cuidados, tanto mais procurava ocultá-los do conhecimento daquele que deles era objecto. No entanto, se guardava o segredo destas benévolas atenções, não era para evitar o sorriso trocista daqueles que poderiam supor que um rosto oval e agradável, embelezado por dois grandes olhos negros e uma tez morena clara e animada, embora pertencente a uma mulher de quarenta e cinco anos e mostrando-se sob a humilde e modesta touca de viúva, ainda pudesse aspirar a fazer conquistas; porque, para falar francamente, como nunca uma ideia tão ridícula entrara na sua cabeça, ser-lhe-ia difícil emprestá-la à dos outros. Mas ocultava simplesmente os cuidados que tinha, por um motivo de delicadeza em relação ao seu locatário, cujos meios de acudir àquele pequeno acréscimo de despesa suspeitava não estarem em relação com o desejo que ele teria, e a quem queria evitar o desgosto de ter contraído, obrigações que lhe fosse impossível saldar. Ela abriu a porta a Oldbuck, e a surpresa e a alegria que experimentou ao vê-lo foram tais que as lágrimas lhe vieram involuntariamente aos olhos. - Tenho muito prazer, verdadeiramente muito prazer 167 em vê-lo - disse - Receio que o meu pobre jovem esteja doente. Quer crer, Mr. Oldbuck, que ele não quer ver nem o médico, nem o pastor, nem o notário? E pense um pouco no que sucederia, se, como dizia o falecido Mr. Hadoway, morresse sem a ajuda das três faculdades sábias! - Achar-se-ia muito melhor - resmungou o cínico Antiquário - Só lhe digo, senhora Hadoway, que o clero vive dos nossos pecados, o médico das nossas doenças e os homens de leis das nossas desgraças. - Oh, Monkbarns! Como pode ouvir-se uma coisa dessas de um homem como o senhor? Mas suba e veja o nosso jovem. Ah, senhor, um rapaz tão novo e tão bonito e vê-lo comer todos os dias um pouco menos de tal forma que presentemente mal toca em alguma coisa, só se serve de um bocado no seu prato por pró forma; as pobres faces tornam-se dia a dia mais pálidas e mais magras, de maneira que neste momento tem ar tão envelhecido como eu, que poderia ser sua "mãe; não absolutamente, mas não falta muito. - E porque não faz ele exercício? -indagou Oldbuck. - Creio que conseguimos finalmente persuadi-Lo, porque comprou um cavalo de Gibbie Golightly, o alquilador; e Gibbie disse à nossa criada que ele era conhecedor de cavalos, pois lhe apresentara primeiro um que julgava dever convir bastante a um homem de gabinete; mas Mr. Lovel nem sequer quis olhá-lo segunda vez e comprou outro que poderia servir a um mestre de equitação. Tratam-no nas cocheiras das Armas de Grseme, aí defronte na rua, e ontem e hoje foi passear a cavalo antes do almoço. Mas não quer subir ao quarto dele? - Vou já, Vou já. Diga-me, ninguém o veio "procurar. - Oh, meu Deus, Mr. Oldbuck, ninguém! Se ele não queria visitas quando
estava alegre e bem disposto, imagine, se se apresentasse alguém de Fairport, se ele o receberia agora. A boa dona da casa conduziu Oldbuck por uma escadinha estreita, advertindo-o a cada volta e sempre a lamentar ser obrigada a fazê-lo subir tão alto. Por fim, bateu brandamente à porta do locutório do seu 168 inquilino. "Entre", disse Lovel; e a senhora Hadoway introduziu o laird de Monkbarns.
O pequeno aposento era de um asseio notável, decentemente mobilado, e ornamentado por alguns trabalhos de agulha que a senhora Hadoway conservara da sua primeira juventude; mas era baixo e abafado, e Oldbuck receou que não fosse saudável para um jovem de saúde delicada, observação que o confirmou num projecto que já se apresentara ao seu espírito em favor de Lovel. Estava este sentado num canapé, em roupão e pantufas; uma secretária cheia de papéis e de livros achava-se diante dele. O Antiquário assustou-se com a mudança que se verificara na sua pessoa. Uma palidez mortal cobria a sua fronte e as suas faces, à excepção das maçãs do rosto, de um vermelho vivo, semelhante ao que geralmente indica a tísica, e tão diferente das frescas cores da saúde, animadas por um ligeiro tom crestado, que tão pouco tempo antes era a tez habitual do seu rosto. Oldbuck notou pelo seu vestuário, e por um casaco preto colocado numa cadeira a seu lado, que o jovem estava de luto carregado. Quando o Antiquário entrara, Lovel levantara-se para ir ao seu encontro. - Eis quem é muito amável - disse ele, apertando-lhe a mão e agradecendolhe cordialmente a vinda -E o senhor adianta-se a uma visita que tencionava fazer-lhe. Saiba que fiz há pouco a aquisição de um cavalo. - Foi o que me disse a senhora Hadoway. Espero apenas, meu caro amigo, que a sua escolha tenha recaído sobre um cavalo manso. A mim sucedeu-me comprar um imprudentemente, uma vez, a esse mesmo Gibbie Golightly. Ora, o dito animal desatou a correr comigo no lombo, pelo espaço de duas milhas, atrás de uma matilha de cães, com a qual eu tinha tanto que ver como com a neve do ano passado, e depois de ter proporcionado um divertimento inexcedível a um grupo de caçadores, teve a bondade de me depor num fosso seco. Espero que o seu seja mais pacífico. - Espero, pelo menos, que nos entendamos melhor sobre a escolha das nossas excursões. - Isso significa que o senhor se julga bom cavaleiro. 169 - Não admito facilmente que seja mau. - É isso: os senhores, os jovens pensam todos que se podem qualificar-se a eles próprios, como os alfaiates. Mas tem tido experiência? Porque, credo experto (1), um cavalo furioso não é brincadeira. - Certamente, não tenho a ambição de passar por um excelente calção; mas quando servia na qualidade de ajudante-de-campo de sir... numa acção de cavalaria, o ano passado, vi desmontar melhores cavaleiros do que eu. - Ah! O senhor já contemplou de frente o terrível deus dos combates? Conheceu os furores de Marte? Não lhe faltava senão isso para acabar de se tornar digno da epopeia. Lembre-se, entretanto, de que os bretões combatiam nos seus carros; covínarii é a frase de Tácito. O senhor recorda-se da bela des crição da maneira como eles se lançavam sobre a infantaria romana, embora o historiador nos diga quanto a superfície montanhosa do país era pouco adequada a um combate equestre; e realmente eu sempre perguntei com espanto que espécie de carros se podiam arrastar na Escócia, fora das grandes estradas. Pois bem, vejamos, as Musas
visitaram-no? Tem alguma coisa para me mostrar? - O meu tempo - disse Lovel, lançando um olhar às suas roupas pretas foi menos agradàvelmente consumido. - Perdeu algum amigo? -indagou o Antiquário. - Sim, Mr. Oldbuck, quase o único amigo que me ufanava de ter encontrado. - Sim? -disse então o velho gentleman num tom sério muito diferente da sua gravidade habitual A morte, levando-lhe um amigo, quando a vossa mutua afeição ainda estava em toda a sua força, em todo o seu calor e que nenhuma recordação de frieza, de desconfiança ou de traição vem misturarse com o amargor das lágrimas que verte pela sua perda, evita-lhe talvez uma provação ainda mais cruel. Olhe em sua volta: são bem poucas as ligações formadas na primeira idade da existência que o senhor vê envelhecer. A fonte em que haurimos em comum (1) Crede no experiente. - N. do T. 170 os nossos prazeres vai secando à medida que avançamos na viagem, e procuramos outras, das quais os primeiros companheiros de caminhada são muitas vezes excluídos; o ciúme, a inveja, as rivalidades, vêm sucessivamente afastar de nós aqueles que julgamos nossos melhores amigos. Ficamos sós com aqueles que o hábito mais do que a inclinação nos conserva, e que não se ligando a nós por outro elo senão o do sangue, ficam junto do velho durante a sua vida para não serem esquecidos na sua morte. Hoec data poena diu viventibus (1). "Ah, Mr. Lovel! a sua sorte é atingir essa sombria e melancólica época da existência, lembre-se dos desgostos da sua mocidade como de leves nuvens que interceptaram por um momento os raios do sol nascente. Mas estou a cansar os seus ouvidos com palavras que não trazem nenhuma convicção ao seu espírito. - Sou sensível ao seu benévolo interesse - disse o jovem -mas uma ferida tão recente deve sangrar dolorosamente; e no meu desgosto actual, perdoeme falar-lhe assim, seria uma ideia pouco consoladora essa que me apresentaria o futuro a reservar-me uma série de desgostos ainda mais crueis. Permita-me acrescentar, Mr. Oldbuck, que o senhor tem menos razão do que qualquer outro para encarar a vida sob um aspecto tão triste. O senhor é abastado, goza da estima pública, pode, segundo as suas próprias expressões, vacare Musis, entregar-se a ocupações para que se sente inclinado; tem a faculdade de escolher a sociedade no exterior, e encontra no interior os cuidados afectuosos e assíduos dos mais próximos parentes. - Sim, as fêmeas! As minhas fêmeas, devido à maneira como as eduquei, são muito corteses e muito tratáveis. Têm o cuidado de não me perturbar nos meus estudos da manhã, e de atravessar brandamente o quarto com o passo leve de um gato, quando, depois do jantar ou do chá, me sucede fazer um sono no meu (1 É o castigo reservado aos que vivem muito tempo. - N. do T. 171 cadeirão... Tudo isso está muito bem, mas preciso de qualquer coisa mais, alguém com quem possa trocar ideias, enfim, com quem possa falar. - Então, porque não chama para junto de si o seu sobrinho, o capitão Mac Intyre, de quem toda a gente fala como de um jovem cheio de vivacidade e de ardor? - Quem? - exclamou Monkbarns - O meu sobrinho Heitor? O Hotspur (1) do
Norte? Deus me livre! Preferia lançar um tição aceso no meu celeiro de feno. É um cérebro exaltado, um ferrabraz, com uma genealogia escocesa tão comprida como a grande rua de Fairport "e uma espada ainda mais comprida do que a sua genealogia, e que a desembainhou para o doutor, a última vez que esteve aqui. Estou à espera dele por estes dias, mas vou mantê-lo em respeito, asseguro-lhe. Ele tornar-se-á membro da minha família, para pôr tudo em desordem na minha casa e até fazer tremer as mesas e as cadeiras! Não, não; não quero o Heitor Mac Intyre. Mas escute, Lovel; o senhor é um rapaz cortês e sossegado, não faria melhor vir instalar-se em Monkbarns durante um mês ou dois, visto eu ver que não está decidido a deixar imediatamente o país? Mando abrir uma porta no seu quarto para o jardim; isso custa uma ninharia. Houve uma outrora que muralharam há muito tempo. Desta maneira, o senhor pode entrar e sair no quarto verde sem incomodar o velho anfitrião e sem ser incomodado. Quanto à forma de viver, a senhora Hadoway disse que o senhor é muito sóbrio na alimentação, segundo a sua expressão; assim, deve contentar-se com a nossa modesta mesa. Para o tratamento da roupa... - Permita-me que o interrompa, meu caro Mr. Oldbuck - disse Lovel, sem poder reprimir um sorriso - e antes que a sua penhorante hospitalidade acabe projectos e arranjos que me seriam tão agradáveis, deixe-me agradecer sinceramente essa amistosa oferta. Não me é possível aceitá-la neste momento; mas antes das minhas despedidas à Escócia, espero ter maneira de ir passar uns dias consigo. A fronte de Oldbuck anuviou-se. (1) Esporão quente, em tradução literal. - N. do T. 172 - Quê? Quando eu julgava ter concebido um plano que melhor poderia convir a ambos! E quem sabe o que poderia seguir-se com o tempo, e nunca mais nos deixássemos? Sou senhor dos meus bens, meu caro amigo; é a vantagem de descender de um homem que tinha mais bom-senso do que orgulho. Não me podem obrigar a transmitir as minhas propriedades mobiliárias e imobiliárias e a minha herança senão à minha vontade. Os meus caprichos ou as minhas predilecções não serão perturbados pelo vôo de herdeiros substitutos, tão inúteis como os bocados de papel enfiados na cauda de um papagaio de papel. Mas vejo que o senhor não se quer deixar tentar presentemente. A Caledónia está, porém, em marcha, espero eu. - Oh! Certamente - disse Lovel - Não posso abandonar um plano de tão belas esperanças. - É, realmente - disse o Antiquário, erguendo gravemente os olhos ao céu (porque, com toda a sua penetração e bom-senso para apreciar os diferentes planos formados pelos outros, tinha sempre naturalmente uma opinião muito exagerada acerca da importância dos que ele próprio concebia) - é, realmente, um daqueles empreendimentos que, realizados com o mesmo espírito que os ditou, pode vingar a literatura actual da acusação de frivolidade que lhe fazem. Foi interrompido por uma pancada que se ouviu na porta; era a senhora Hadoway que trazia uma carta para Mr. Lovel, e dizendo que um criado esperava a resposta. - O senhor é interessado neste assunto, Mr. Oldbuck - disse Lovel, depois "de ter percorrido com o olhar o bilhete que mostrou ao Antiquário. Era uma missiva de sir Arthur Wardour, escrita em termos extremamente delicados. Lamentava que um acesso de gota o tivesse impedido até então de testemunhar a Mr. Lovel, de qualquer maneira, a gratidão que sentia pela sua corajosa acção; desculpava-se de não vir pessoalmente apresentar-lhe os seus cumprimentos, mas esperava que Mr. Lovel quisesse pôr de parte toda a cerimónia e se juntasse à sua sociedade para ir
visitar as ruínas da abadia de Santa Ruth e vir em seguida jantar e passar a tarde no castelo de Knockwinnock. Sir Arthur terminava, dizendo que enviara à família de Monkbarns um convite 173 para se lhes juntar no projectado divertimento. O lugar do encontro estava marcado na barreira colocada a igual distância dos diferentes pontos de partida dos convidados. - Que fazemos? - indagou Lovel, olhando o Antiquário, mas já resolvido no partido a tomar. - Vamos, com certeza. Ora, vejamos: custará uma cadeira de posta inteirinha, onde caberemos muito à vontade, o senhor e eu, com Maria Mac Intyre; a minha outra fêmea pode ir visitar a irmã do pastor, e a cadeira ainda o pode trazer a Monkbarns, visto que a alugaremos ao dia. - Mas parece-me que eu faria melhor indo a cavalo. - É verdade, já me esquecia do seu Bucéfalo. E a propósito, o senhor foi um louco em comprar esse animal; teria feito melhor em alugar um cavalo, se gosta mais de se fiar em outras pernas do que nas suas. - Sim, como os cavalos têm a vantagem de marchar muito mais depressa, e têm dois pares de pernas em vez de um, confesso que prefiro... - Basta, basta; faça como quiser. Então levo Grizel ou o pastor, porque quando alugo cavalos de posta gosto de aproveitar bem o meu dinheiro. Assim, encontrar-nos-emos sexta-feira, ao meio-dia em ponto, na barreira de Terlingen. Isto combinado, os dois amigos separaram-se. 74 XVII Outrora, nestes lugares, padres cercados de sombrios archotes dirigiam ao céu as suas preces ferventes ou entoavam o hino nocturno. Ali se refugiava a desdita; ali viram expirar vingança e o ódio, - o remorso, abrandado pela piedade, ali sentia dissipar metade dos seus terrores, e o orgulho vergado ali derramava as lágrimas da penitência. CRABBE - O Burgo A manhã de sexta-feira estava tão bela, tão calma, como se não houvesse projectos de distracções, circunstância quase igualmente rara na vida real e nos romances. Lovel, reanimado pela influência propícia do tempo e pelo pensamento de se encontrar ainda uma vez com Miss Wardour, dirigiuse a cavalo para o local do encontro, menos triste e melhor disposto do que não o estivera há muito tempo. Sob vários aspectos, o futuro parecia esclarecer-se a seus olhos, e a esperança, embora comparável aos raios do sol matinal que se mostravam entre brumas e nuvens, parecia querer brilhar sobre a estrada que ele percorria. Nesta disposição de espírito, era muito natural que fosse o primeiro a chegar ao lugar do encontro, e mais natural ainda que os seus olhares se fixassem tão atentamente na estrada de Knockwinnock que não se apercebesse da chegada de Monkbarns à barreira, antes de que o chicote do postilhão e o pesado rodar da cadeira de posta que o seguia o tivessem advertido. " Naquela pesada máquina achavam-se encerradas, primeiro, a majestosa figura de Oldbuck, depois a não menos corpulenta pessoa do reverendo Blattergowl, sacerdote de Trotcossy, paróquia em que estavam situados Knockwinnock e Monkbarns. Este reverendo personagem vinha embiocado numa peruca crespa, no alto da qual se via um retorcido chapéu de três bicos. Era a sua o modelo que impunha das três últimas perucas que restavam na paróquia e que diferiam entre
175 elas, segundo a expressão de Monkbarns, como os três graus de comparação; sendo a peruca chata de sir Arthur o positivo, a sua, de um feitio em pouco mais antigo, o comparativo, e a incomparável peruca grisalha do digno eclesiástico, o superlativo. O superintendente destes antigos ornamentos, julgando ou fingindo julgar que não podia estar ausente numa circunstância que reunia todos três, sentara-se na prancha suspensa atrás da carruagem, a fim de ali estar se aqueles senhores tivessem necessidade de lhes dar uns retoques antes de jantar. Entre as duas pesadas pessoas do Antiquário e do pastor, achavase a delgada e delicada forma de Maria Mac Intyre, pois sua tia preferira um dia passado no presbitério a conversar com a sua amiga Miss Beckie Blattergowl, ao exame das ruínas da abadia de Santa Ruth. Quando Lovel cumprimentava a família de Monkbarns, avistou-se a carruagem do baronnet que chegava ao local do encontro. Era uma caleça descoberta que, pelos seus cavalos escumosos, seus elegantes postilhões, seus paineis brasonados, e pelos dois criados a cavalo que a precediam, formava um contraste assás flagrante com o máqluina desengonçada e as duas pilecas que tinham trazido o Antiquário e a sua companhia. Os lugares de honra da carruagem vinham ocupados por sir Arthur e sua filha. Ao primeiro olhar que trocaram Miss Wardour e Lovel, a tez da jovem tingiu-se de um vivo rubor; mas ela parecia ter formado o plano de o tratar como um amigo, porque correspondeu com tanto à-vontade como graça ao cumprimento que ele lhe dirigiu e que traía bastante a sua agitação. Sir Arthur deteve a caleça para apertar cordialmente a mão do seu jovem salvador e exprimir-lhe o prazer que experimentava em aproveitar aquela ocasião para lhe apresentar os seus agradecimentos pessoais. Depois, num tom bastante ligeiro e como se não ligasse importância ao caso, disse: - Mr. Lovel, apresento-lhe Mr. Dousterswivel. Lovel lançou um olhar ao alemão, que ocupava na caleça o banco da frente, geralmente concedido aos subalternos e aos inferiores. O sorriso afectado e o cumprimento obsequioso com que o estrangeiro se apressou a corresponder à leve inclinação de cabeça de Lovel aumentaram a espécie de aversão que 176 este já experimentava interiormente por ele, e era evidente, pelo franzir do espesso sobrolho do Antiquário, que ele também via com descontentamento, aquele indivíduo fazer parte do rancho. O resto da companhia cumprimentou-se de longe por sinais, e as carruagens recomeçaram a rodar durante cerca de três milhas a contar do local onde se encontraram. Por fim, detiveram-se diante uma pequena estalagem à beira do caminho, com a tabuleta de Quatro Ferraduras do Cavalo, onde Caxon abriu humildemente a portinhola e baixou o estribo da cadeira de posta, enquanto os elegantes criados da caleça ajudavam sir Arthur e sua filha a sair.
Aqui, recomeçaram os cumprimentos. As jovens deram a mão uma à outra e Oldbuck, que se encontrava no seu elemento, principiou a marchar à frente, para servir de guia e de cicerone ao rancho, que avançava para o local que se propusera ver. O Antiquário teve o cuidado de reter Lovel perto dele, como o melhor ouvinte do grupo, e uma vez por outra dirigia uma palavra de explicação e de instrução a Miss Wardour e a Maria Mac Intyre, que o seguiam imediatamente. Ele evitava o baronnet e o pastor, porque sabia que estes dois personagens pretendiam perceber tão bem ou melhor do que ele do assunto de que se ia tratar; e quanto a
Dousterswivel, além de o considerar um charlatão, a sua vista lembravalhe de tal modo a perda que receava sofrer na companhia das minas que não podia suportar a sua presença. O homem de igreja e o químico eram, pois, dois satélites que acompanhavam o planeta de sir Arthur, do qual, aliás, eles se aproximavam mais como personagem mais importante da sociedade. Sucede muitas vezes na Escócia que os pontos de vista mais belos se ocultam no fundo de algum vale solitário, e que atravessamos o país em todos os sentidos sem suspeitar de que estamos perto de um lugar digno de atrair o nosso interesse, a não ser que um acidente ou a nossa intuição lá nos conduza. Isto aplica-se principalmente à região que circunda Fairport, e que é em geral nua e descoberta. Mas aqui e acolá o curso de um regato ou de um pequeno ribeiro vai lançar-se num vale, sobre as margens rochosas e altas onde se refugiaram árvores e arbustos de toda a espécie, 177 que crescem com uma profusão tanto mais agradável que forma um contraste inesperado com a superfície geral do país. Encontravam-se sítios deste género à aproximação das ruínas de Santa Ruth, por um pequeno caminho que se estendia ao longo de uma montanha "escarpada e estéril, e que de início não parecia ser mais do que um sendeiro percorrido pelos animais. Mas gradualmente e consoante ia descendo e mergulhava nas voltas da montanha, começava-se a ver surgir árvores, primeiro afastadas umas das outras, definhadas e desfolhadas, e cujos troncos, em alguns pontos cheios de flocos de lã, ofereciam cavidades no interior onde os carneiros tanto gostavam de repousar: espectáculo mais agradável aos olhos de um admirador do género pitoresco do que aos de um cultivador ou proprietário de florestas. Pouco a pouco, as árvores formaram-se em pequenos grupos rodeados de espinhos e de moitas, e por fim estes grupos aglomeraram-se de tal modo que, apesar de se abrirem aqui e acolá para criarem uma clareira, sombreada de ramagens, e de se encontrar de onde em onde um pequeno espaço nu, de charco ou de charneca estéril que recusava alimentar os rebentosque as árvores lançavam em sua volta, o aspecto neste local, no seu conjunto, era decididamente o de uma floresta. As vertentes do vale principiaram a aproximar-se, ouvia-se em baixo o rumor de um regato, e através das aberturas do bosque podia-se ver por intervalos as suas claras águas precipitarem o seu curso rápido sob o dossel de verdura que as cobria. Oldbuck arrogou-se então toda a autoridade de um verdadeiro cicerone e recomendou seriamente aos companheiros que não se afastassem nem um passo do caminho que ele lhes indicava, se queriam desfrutar em toda a sua perfeição do espectáculo que vinham contemplar. - Tem a felicidade de me ter por guia, Miss Wardour - disse o velho sábio, erguendo a mão e marcando, com o movimento da cabeça, a cadência destes versos que recitou com ênfase: 178 No meu curso tributário Percorri os recantos ridentes E todas as sendas verdejantes Deste bosque solitário; Conheci cada sarca densa E cada sombra tutelar, Quando minha mocidade alegre Folgava sobre a relva espessa. "Oh! Demónios o levem... Este ram'o do espinheiro estragou inteiramente todo o trabalho de Gaxon, e por pouco não me atirou a peruca ao regato. Ora, aí está o que é recitar ou declamar fora de propósito". - Console-se, meu caro senhor - disse Miss Wardour - tem muito perto o seu fiel cabeleireiro para reparar semelhantes desastres; e quando ele restituir à sua peruca o seu primitivo esplendor, poderei por meu turno
fazer uma citação. Assim o astro resplandecente Ao deitar-se e descer Ao leito do Oceano imenso, A espaços, em silêncio, Ergue sua pálida fronte, Colorindo-se num derradeiro raio, E ainda assoma ao horizonte, Fazendo brilhar um jogo moribundo. " - Oh, basta, basta! - respondeu Oldbuck - Eu devia saber o que é dar-lhe vantagens contra mim. Mas eis o que deterá a sua veia satírica, porque eu sei que é uma admiradora da natureza. com efeito, depois de terem passado através da brecha de um muro arruinado, uma perspectiva tão inesperada como interessante surpreendeu os espectadores. Achavam-se colocados a uma altura bastante considerável à beira do vale, que de repente se alargara de maneira a formar uma espécie de anfiteatro que continha no seu recinto o lago límpido e profundo, cuja área de vários acres estava rodeada de um terreno liso e nivelado. Suas margens eram cercadas 179 de alturas muito escarpadas, onde a rocha se mostrava nua em alguns sítios, ao passo que noutros se cobria de um souto, que de uma maneira irregular atapetava ligeiramente a superfície, e contrastava por suas cores variadas com a verdura uniforme da relva que revestia o terreno. Em baixo, o lago despejava-se num ribeiro rápido e rumoroso que acompanhava o seu trajecto desde que eles entraram no vale, e, muito perto do lugar onde se separava da fonte que alimentava o seu curso, encontravam-se as ruínas, objecto da sua curiosidade. Não eram de grande extensão, mas a beleza singular, tanto como o carácter solitário e selvagem dos lugares que as circundavam, dava-lhes uma importância e sobretudo um interesse muito superior àquele que podem inspirar restos de uma arquitectura muito mais consideráveis, mas colocados no meio de casas vulgares e privados de acessórios tão românticos. A janela da igreja que contemplava a aurora permanecia inteira, com todos os seus ornamentos, e esta parte do edifício era amparada por ligeiros arcobotantes, que, destacados da parede contra a qual estavam colocados e ornados de esculturas e de ameias elegantes, davam ao edifício, pelo seu suporte, por assim dizer aéreo, uma leveza cheia de graça. O tecto e a parte central da igreja estavam completamente arruinados. No entanto, ela parecia ter ocupado a ala de um quadrilátero cujas ruínas do convento formavam outros dois lados, e o jardim um quarto.
Os edifícios arruinados deste convento que dominava o regato foram em parte assentes sobre uma rocha escarpada ou íngreme; este local servira mais de uma vez de posto militar e não foi sem muito sangue que o tomaram nas guerras de Montrose. O terreno que o jardim outrora ocupara ainda estava indicado por algumas árvores de fruto. Um pouco mais longe do edifício viam-se os carvalhos, os ulmeiros e castanheiros isolados que atingiram uma grossura notável. O resto do espaço que separava as ruínas da vertente da montanha achava-se coberto de uma erva fina e curta que a visita diária de rebanhos mantinha em melhor estado do que se a foice por lá passasse. Toda esta cena respirava uma calma majestosa e 180 impressionante sem ser monótona. A larga e profunda bacia onde o lago depositava as suas águas azuis e límpidas, nas quais se reflectiam os lírios aquáticos que cresciam na margem; as árvores que aqui e ali
estendiam sobre o lago os seus ramos vigorosos, ofereciam um belo contraste com a impetuosidade e o ruído do regato, que se lançava fora da abertura como se saísse do cativeiro e se precipitava através do vale, contornando a base da rocha que obstruía a sua passagem. A verde pastagem que rodeava as ruínas, as grandes árvores que por ali estavam dispersas, ofereciam o mesmo contraste com os rebordos escarpados que a circundavam, e, ora cobertos de uma leve vegetação, ora de um mato avermelhado, apresentavam, por vezes bruscamente, saliências rochosas e acinzentadas, onde se agarrava o líquen e aquelas outras plantas robustas que criam raízes nas fendas mais áridas dos rochedos. - Aqui foi o retiro das ciências nos tempos do obscurantismo, Mr. Lovel disse Oldbuck, em volta do qual os excursionistas se agrupavam e admiravam a amplitude inesperada de um espectáculo tão romântico - Aqui repousaram os sábios fatigados do Mundo, consagrando-se àquele que há-de vir, ou ao serviço da geração que devia segui-los. Vou já mostrarlhes a biblioteca. Vejam esta extensão de parede com suas janelas em ogiva. Aqui se recolheram cinco mil volumes, como o afirma um velho manuscrito que eu possuo, e eu andaria bem em continuar aqui as lamentações do sábio Leland que, lastimando a destruição das bibliotecas dos conventos, exclama, como Raquel chorando seus filhos, que se as leis papais, os decretos, as decretais, as clementinas e outras drogas desse género, sem exceptuar os Sofismas de Heytesburg, a Lógica de Aristóteles, a Teologia de Dunse, com outros frutos do inferno, saltassem destas bibliotecas para a loja do merceeiro, ainda nos poderíamos consolar; mas fazer servir as nossas antigas cronicas, as nossas nobres histórias, os nossos sábios comentários, os nossos monumentos nacionais para um uso tão vil, tão degradante, eis o que nos desonra aos olhos da posteridade até os tempos mais distantes, ó descuido demasiado fatal ao nosso país! - ó John Knox - exclamou o baronnet - sob a influência 181 e os auspícios do qual a nossa missão patriótica foi cumprida! O Antiquário, cuja situação se assemelhava um pouco à da galinhola presa na sua armadilha, voltou-se a tossir para ocultar um leve rubor, enquanto meditava a resposta. - Quanto ao apóstolo da reforma... Mas Miss Wardour interrompeu uma conversa que ela julgava ser perigosa. - Por favor, Mr. Oldbuck, qual era o autor que o senhor citava? - O sábio Leland, Miss Wardour, que perdeu a cabeça ao ver a destruição das bibliotecas dos conventos em Inglaterra. - É possível - replicou a jovem - que essa desgraça tenha conservado a razão a muitos antiquários modernos, que certamente teriam engolido um vasto mar de ciência, se a propósito ela não tivesse sido diminuída. - Pois bem, graças a Deus, não há perigo presentemente, pelo pequeno espaço que nos resta. Assim falando. Oldbuck conduziu-os por uma senda escarpada que em breve os levou ao lugar onde se situavam as ruínas. - Foi aqui que eles viveram - continuou o Antiquário - consagrando inteiramente o seu tempo a esclarecer pontos de uma alta antigüidade, copiando manuscritos e compondo novas obras para a instrução da posteridade. - E - ajuntou o baronnet - a exercer ritos da devoção com uma pompa e cerimonias dos ministros dos altares. - E se sua excelência me dá licença - disse o alemão, inclinando-se humildemente - os frrades tampem faziam experriências muito curriosas nos
seus laporatórrios, querr em química, querr em magia naturral. - Parece-me - disse o pastor - que eles já tinham bastante que fazer com a cobrança de dízimos e foros de três boas paróquias. - É verdade - interveio Miss Wardour, lançando um olhar malicioso ao Antiquário - que eles não eram importunados pelo sexo feminino? - Tem razão, minha bela inimiga; era um paraíso 182 onde nenhuma Eva se admitia; o que deve redobrar o nosso espanto por nossos bons pais o poderem perder. A fazer reflexões deste género sobre as ocupações dos antigos possuidores daquelas ruínas, deambularam algum tempo de uma pedra musgosa a outra, guiados por Oldbuck, que lhes pormenorizava com bastante verosimilhança o primeiro plano do edifício, lendo-Lhes e explicando-lhes velhas inscrições de que se encontravam ainda vestígios sobre os túmulos dos mortos ou por cima dos nichos nos quais estiveram colocadas outrora as imagens santas. - Por que razão - perguntou, por fim, Miss Wardour - a tradição nos conservou tão pouca coisa sobre os antigos habitantes destes majestosos edifícios erguidos com tanta despesa e cuidados, e cujos proprietários foram no seu tempo personagens tão temidas por seu poder e sua importância? A mais pequena torrinha de um barão ou de um escudeiro salteadores, que vivia da sua lança ou da sua espada, é consagrada pela recordação de alguma lenda, e o insignificante pegureiro dir-nos-á com exactidão o nome e os feitos dos seus antigos possuidores; mas pergunte a um camponês informações sobre estes vastos e magníficos despojos, sobre estes campanários, sobre estes arcobotantes, estas janelas em ogiva, erguidos com tanto dispêndio, e responder-nos-á com três palavras: "Os (monges construíram isto em tempos".
A pergunta era um pouco embaraçosa. Sir Arthur levantou os olhos ao céu na esperança de lá encontrar uma inspiração que lhe permitisse responder; Oldbuck reajustou a sua peruca; o ministro era de opinião de que os seus paroquianos estavam demasiado profundamente compenetrados da verdadeira doutrina presbiteriana para guardarem alguma lembrança dos padres papistas que tinham enxameado o país, e que não passavam de rebentos de uma grande árvore de iniquidade que tem suas raízes nas entranhas de sete colinas de abominação. Lovel pensava que se poderia resolver melhor a questão examinando quais eram os acontecimentos que deixavam impressões mais profundas no espírito do povo. - Não são - ajuntou ele -os que se assemelham aos progressos graduais de um rio, cujas águas espalham a fertilidade e a abundância, mas antes os que 183 se podem comparar ao curso furioso de uma torrente devastadora que tudo derruba na sua passagem. As épocas pelas quais o vulgo dividiu o tempo tiveram sempre relação com o aparecimento de um flagelo, e data a sua era de um dilúvio, de um tremor de terra ou de uma guerra civil. Tais factos são os que ficam por mais tempo gravados na memória do povo, poder-nosemos admirar de que ele se recorde do guerreiro sanguinário enquanto os pacíficos abades caem no olvido? - com licença, gemtlemen e senhorras, e com perdão de sir Arthur, de Miss Wardour e do digno eclesiástico, do meu bom amigo e compatriota Mr. Oltenpuck e do bom Mr. Dofel, creio que tudo isso provém da mão de glórria. - Da mão de quê? - exclamou Oldbuck. - Da mão de glórria, meu bom MeisterOltenpuck; é um grande e terrível
segredo com a ajuda do qual os monges ocultarram seus tesourros quando forram expulsos de seus claustros por aquilo que os senhorres chamam reforma. - Diabo! -disse Oldbuck - Explique-nos isso, porque são segredos que vale a pena conhecer. - Ah, meu bom msinherr Oltenpuck! O senhor está a trroçar de mim. Mas a mão de glórria é bem conhecida nos países que os seus antepassados habitaram outrorra; é uma mão que se deve corrtar a um morto que tenha sido enforrcado por assassínio, e que se seca ao fumo do zimbro, e se o senhor lhe juntar um pouco de madeirra de azevinho, a coisa não irrá melhor, querro dizer não irrá senão melhor; depois o senhor obtém um pouco de gordurra de urso, de texugo, de javali, e de criança de mama que não tenha sido baptizada (porque é coisa muito essencial) e faz uma vela, mete na mão de glórria; e a uma certa horra e com certas cerrimónias; e aquele que procurrar os seus tesourros pode ter a certeza de nunca os encontrar. - Sobre isso, posso jurar pela minha cabeça disse o Antiquário - E era costume na Vestefália, Mr. Dousterswivel, servirem-se desse elegante candelabro? - Sempre, MeisterOltenpuck, quando não se querria que alguém descobrisse o que se fazia. E os monges 184 serviam-se sempre disso, quando escondiam a prrata da igreja, os seus grandes cálices, as suas gemas preciosas e as suas jóias.
- O que não impede sem dúvida que os senhores, cavaleiros rosa-cruz, tenham achado meio de quebrar o encanto, e de encontrar o que os pobres monges tiveram tanto trabalho em ocultar. - Ah, bom meinhrr Oltenpuck - replicou o alemão, meneando misteriosamente a cabeça - o senhor é bem incrédulo! Mas se tivesse visto grandes objectos de prrata tão maciços, sir Arthur, e bem trravalhados, iMiss Warrdour, e a cruz de prrata que nós encontrámos, Shrrepfer e eu, para o barrão Blunderhaus, então terria de acrreditar. - Acredita-se no que se vê. Mas que arte, que mistério utiliza, Mr. Dousterswivel? - Ah! Ah! meinhsrr Oltenpuck, esse é o meu pequeno segrredo. E o senhor perdoa-me se eu não Lho disser. Mas ainda há outros meios. Se, por exemplo, o senhor tiver o mesmo sonho trrês vezes seguidas, é um bom sinal. - Tenho muito gosto em saber isso - replicou Oldbuck, lançando a Lovel um olhar de soslaio - Tenho um amigo que é muitas vezes favorecido pelos sonhos. - Sim, há simpatias e antipatias, e proprriedades singulares, e virtudes naturrais e sobrenaturrais de certas ervas e a varra divinatórria... - Eu achava mais curioso ver esses milagres do que ouvir falar neles declarou Miss Wardour. - Ah, minha estimável donzela, é que aqui não há lugar nem ocasião de descobrir os tesouros e a prratarria da Igreja! Mas para lhe agradar a si, e a sir Arthur meu patrrão, ao reverrendo eclesiástico, e ao bom Mr. Oltenpuck, e ao jovem Mr. Lofel, que também é um digno gentleman, vou mostrar que é possível, e muito possível encontrarr uma nascente de água ou uma pequena fonte escondida debaixo da terra, sem o auxílio da enxada ou da pá. - Diabo! - disse o Antiquário - Já ouvi falar deste sortilégio; mas não será uma arte muito produtiva no nosso país. O senhor faria melhor em ir
explorar esse segredo em Espanha ou em Portugal. - Ah, meu bom Mr. Oltenpuck, é que lá existem a 185 Inquisição e os autos-de-fé. Eu, simples filósofo, serria queimado como brruxo. - Só perderiam a lenha das fogueiras - disse baixinho Oldbuck a Lovel Mas se o açoitassem publicamente como o velhaco mais descarado que alguma vez existiu, não teria senão o castigo que merece. Vejamos, creio que nos vai mostrar algumas das habilidades. com efeito, o alemão avançara para um pequeno souto, a certa distância das ruínas, onde afectava estar muito ocupado em procurar uma vara que pudesse convir à sua misteriosa operação. Depois de ter cortado, examinado e rejeitado várias, deteve-se por fim num pequeno ramo de aveleira cortado em forquilha, e que ele declarou possuir a virtude necessária para a prova que ia tentar. Mantendo as duas extremidades em forma de forquilha da vara entre os dedos e o polegar, e erguendo-a assim a direito, começou a percorrer as alas arruinadas do claustro, seguido do resto do rancho, que formava atrás dele uma procissão atenta.
- Mim julgarr não haver água aqui - disse o alemão, depois de dar volta ao recinto sem notar nenhuma das indicações que fingia procurar - Temos de acrreditar que estes frrades escoceses achavam a água demasiado frria para o clima, e que se limitavam a beber o bom e reconfortante vinho do Reno. Mas, ah, vejam! - Logo toda a gente fixou os olhos na vara, que pareceu girar na sua mão, embora ele pretendesse mantê-la fortemente apertada - Haver água aqui, tenho a certeza - acrescentou ele; e voltando para um lado e para outro, conforme parecia aumentar ou diminuir a agitação da vara divinatória, chegou enfim ao meio de um lugar vago e descoberto, que outrora fora a cozinha da abadia, onde a vara se vergou de maneira a indicar quase directamente o sítio que estava em baixo - É aqui - disse o alemão - e se os senhores não encontrarrem uma nascente no meio, consinto em que me chamem descarado velhaco. - É uma liberdade que eu tomarei em todo o caso - disse em voz baixa o Antiquário a Lovel. Um criado que seguira o grupo com um cabaz cheio de carnes frias, foi então enviado à cabana de um lenhador vizinho, para trazer uma enxada e uma pá. 186 Retirados os escombros e as pedras do local indicado pelo alemão, depressa se encontraram os rebordos de um poço regularmente construído; e o lenhador, auxiliado por seus filhos, desobstruindo-o das pedras de alvenaria que o enchiam à profundidade de vários pés, a água começou a jorrar para grande satisfação do filósofo, para surpresa das damas, de sir Arthur, do pastor e mesmo um pouco de Lovel, e para confusão do incrédulo Antiquário, que não deixou no entanto de protestar ao ouvido de Lovel contra aquele milagre. - Isto não passa de um ardil - disse ele - O maroto, por um meio qualquer, teve a habilidade de certificar-se da existência deste velho poço antes de nos cegar com esta charlatanice. Mas repare no que vai seguir-se agora. Enganar-me-ei muito se não se trata do prelúdio para uma fraude mais séria. Veja o ar importante que o patife se dá! Como ele triunfa com o êxito da sua experiência, e como o pobre sir Arthur escuta o dilúvio de asneiras que ele lhe debita, e que ele o faz tomar por princípios de ciências ocultas! - O senhor vê, meu bom patrrão, vêem as boas meninas, vê o digno
MeisterBladdergowl, e Mr. Oltenpuck e Mr. Lofel também poder ver se quiserem, qe a arte não tem outro inimigo senão a ignorância. Vejam esta pequena varra de nogueira, não parrece boa senão para castigar as crrianças pequenas - ("Era de um bom vergalho que precisavas", resmungou baixinho o Antiquário) - Pois bem, metam-na na mão de um filósofo e, pronto! Servese dela para grrandes descobertas. Mas tudo isto não é nada, sir Arthur, absolutamente nada, tigno Mr. Bladdergowl, menos que nada, minhas jovens damas, uma misérria, Mr. Oltenpuck e Mr. Lofel, em comparração com o que a arte ainda pode fazer. Ah, se eu encontrasse um homem de corração e de corragem, mostrar-lhe-ia outra coisa bem diferrente da água num poço. Mostrrava-lhe... - E algum dinheiro seria decerto previamente necessário, não é verdade? disse Oldbuck. - Ora, uma ninharria! Poderia ser necessárria uma pequena quantia de que nem vale a pena falar. - É o que eu julgo - disse secamente Oldbuck E eu, entretanto, sem o auxílio da vara mágica, mostrar-lhe-ei um excelente pastelão de caça com uma 187 garrafa de um certo Madeira igual a tudo o que a arte de Mr. Dousterswivel nos pode fazer ver. A refeição foi servida fronde super viridi (1), como disse Oldbuck, debaixo de uma velha árvore de uma dimensão enorme chamada o Castanheiro do Prior, e o rancho, sentando-se em volta, começou a fazer as honras ao conteúdo do cabaz. XVIII Tal como o grifo que de um amplo vôo atravessa o deserto, passa as montanhas, os vales e as torrentes em perseguição do Arimáspio que roubou o rufo de ouro confiado à sua guarda vigilante; com o mesmo ardor do demónio MILTON - Paraíso Perdido Quando a colação terminou, sir Arthur retomou o assunto dos mistérios da vara divinatória de que falara antes com Dousterswivel. - O meu amigo Mr. Oldbuck - disse o baronnet estará agora disposto, Mr. Dousterswivel, a escutar com mais atenção a história que o senhor trouxe das descobertas feitas ultimamente na Alemanha pelos membros da sua associação. - Ah, sir Arthur, não é coisa para se falar diante destes gentlemen; porque é a falta de credulidade, a que o senhor chama fé, que estraga as belas empresas. - Pelo menos, minha filha lera a narrativa que a história de Martin Waldeck lhe proporcionou. - Ah! É uma história muito verdadeirra. Mas Miss Wardour tem tanto espírrito e malícia que lhe deu todo o ar de romance. Não, palavrra de homem honrrado, Wisland e Goethe não terriam feito melhor. - Para falar francamente, Mr. Dousterswivel - respondeu a jovem - o maravilhoso desta lenda sobrepassa tanto o provável que era impossível a uma (1) Debaixo das verdes frondes. - N. do T. 188 admiradora do reino das fadas, como eu, não lhe ajuntar alguns traços para a tornar mais perfeita no género. Mas ei-la; e se não estão
dispostos a abandonar esta sombra enquanto o calor do dia não abrandar um pouco, e se prometerem a vossa indulgência pela má composição, talvez sir Arthur ou Mr. Oldbuck queira encarregar-se de a ler. - Eu, não - declarou sir Arthur - Nunca gostei de ler de alto. - Nem eu tão-pouco - disse Oldbuck - porque me esqueci dos meus óculos; mas está aqui Lovel, que tem bons olhos e bons pulmões, pois sei que Mr. Blattergowl nunca lê nada, com receio de que suponham que lê também os seus sermões. A tarefa de leitor foi, pois, imposta a Lovel, que recebeu, com um pouco de nervosismo das mãos de Míss Wardour o manuscrito que ela própria lhe entregou com certo embaraço, e que estava traçado por aquela mão cuja posse ele desejava como o bem mais precioso que o mundo lhe poderia oferecer; mas forçado a conter a sua comoção, ele passou por um momento o olhar pelo caderno, como que para se familiarizar com os caracteres, recolheu-se, e leu aos circunstantes o seguinte conto: " AS AVENTURAS DE MARTIN WALDECK (1) É na solidão da floresta de Harz, na Alemanha, sobretudo nas montanhas chamadas Blockberg, ou antes, Brockenberg, que geralmente se situa a cena das aparições, dos contos de feiticeiros e de demónios. As ocupações dos habitantes, na maior parte operários mineiros ou rachadores de lenha, são de um género que parece torná-los mais acessíveis à superstição, e dos fenômenos da Natureza de que eles por vezes são testemunhas no exercício da sua profissão solitária ou subterrânea, são muitas vezes atribuídos por eles à intervenção dos espíritos ou ao poder da (1) O fundo desta história foi tirado do alemão, conquanto o autor não possa recordar-se neste momento em qual das diversas colecções de lendas populares nesta língua se encontra o original. 189 magia. Entre os diversos contos divulgados nesta região selvagem, há um ao qual é particularmente atribuído, e que supõe que Harz tem o seu demónio tutelar, que se mostra sob a forma de um homem de estatura gigantesca, a cabeça, bem como a cintura, cercada de folhas de carvalho, e trazendo na mão um pinheiro arrancado pela raiz. A verdade é que muitas pessoas afirmam ter visto uma figura, que corresponde a esta descrição, atravessar a grandes passos, e numa linha paralela à do próprio caminho, o topo oposto da montanha de que se encontravam separadas pelo estreito vale; e o facto desta aparição é tão geralmente admitido que a incredulidade moderna não encontrou outro recurso senão atribuí-la a uma ilusão de óptica. Em tempos mais antigos, o demónio mantinha com os habitantes relações mais frequentes; e, segundo as tradições de Harz, tinha por costume imiscuir-se nos assuntos dos mortais, com o capricho atribuído a estes demónios da terra, umas vezes para seu bem outras vezes para seu mal. Mas tinha-se notado que mesmo as suas dádivas se tornavam, com o tempo, funestas para aqueles que as receberam. E era coisa vulgar que os pastores, no zelo da sua solicitude pelos seus rebanhos, compusessem longos sermões cujo refrão tendia sempre a adverti-los de se absterem de toda a relação directa ou indirecta com o demónio de Harz. As aventuras de Martin Waldeck foram muitas vezes citadas pelos velhos à mocidade imprevidente, quando a ouviam troçar de um perigo que lhe parecia imaginário. Um capuchinho viajante apoderara-se do púlpito da humilde igreja coberta de colmo de uma pequena aldeia chamada Morgenbrodt, situada no distrito de Harz. Aí, declamava contra a perversidade dos habitantes, suas ligações com os demónios, os feiticeiros e as fadas, e sobretudo com espírito da floresta de Harz. A doutrina de Lutero já começava a
divulgar-se entre os camponeses, pois este acontecimento situa-se no reinado de Carlos V, e eles troçavam do zelo com que o venerando monge insistia neste assunto. Gradualmente, aumentou a sua violência, ao ver a sua obstinação. Os habitantes não gostavam de ouvir comparar um demónio familiar e pacífico que frequentava 190 Brockenberg havia tantos séculos, a Belphegor, Astaroth ao próprio Belzebu, e a vê-lo condenado sem apelo à eternidade do inferno. O receio de que o espírito tentasse vingar-se neles por terem escutado semelhantes discursos veio juntar-se ainda ao interesse nacional que o inspirava. Um monge errante, diziam eles, que hoje está aqui e já cá não estará amanhã, pode dizer o que lhe aprouver; mas somos nós, habitantes antigos e sedentários da região, que ficamos expostos à vontade do demónio ofendido e que devemos pagar por todos. Na irritação que estas reflexões ocasionaram, os camponeses, depois das injúrias, passaram às pedradas; e depois de quase delapidarem o pobre padre, expulsaram-no da paróquia, para que ele fosse pregar noutra parte contra os demónios. Três jovens que estavam presentes nessa ocasião, e que mesmo tinham tomado parte no motim, regressaram à sua cabana, onde se entregavam à trabalhosa e vil ocupação de fazer carvão para o serviço das forjas. Durante o caminho, a conversa recaiu naturalmente sobre o demónio de Harz e os sermões do capuchinho. Max e George Waldeck, os dois irmãos mais velhos, embora concordando que as palavras do monge tinham sido indiscretas e dignas de censura, por fazerem um juízo temerário da natureza do demónio e o local que ele habitava, admitiam no entanto que era perigoso aceitar as suas dádivas ou manter qualquer relação com ele. Era poderoso, é certo, mas excêntrico e caprichoso, e os que mantiveram relações com ele raramente tiveram bom fim. Fora ele quem dera ao bravo cavaleiro Ecbert de Rabenwald aquele famoso cavalo negro que o tornou vencedor de todos os campeões no torneio de Bremen; mas este mesmo corcel não se precipitara com seu cavaleiro num abismo tão terrível e tão profundo que nem o homem nem o cavalo nunca mais apareceram? Se a dama Gertrude Trodden obtivera um maravilhoso segredo para fazer manteiga, não acabara por ser queimada como feiticeira, pelo grande juiz criminal do eleitorado, por se servir desse dom? A estes exemplos juntaram ainda outros das desgraças e das fatalidades que acabaram por seguir-se aos benefícios aparentes do demónio de Harz. Mas nada disto impressionava o espírito de Martin Waldeck, o irmão mais novo. 191 Martin era jovem, impetuoso e temerário; salientava-se em todos os exercícios que distinguiam um montanhês, e os perigos que os acompanhavam tinham-no tornado bravo e intrépido. Ria-se da timidez de seus irmãos.
- Não me digam semelhantes asneiras - opunha ele - o demónio é um bom demónio; vive entre nós como se fosse um dos nossos camponeses; frequenta os rochedos solitários e as cavernas das montanhas, como um pastor e como um caçador; e aquele que se deleita na floresta de Harz e no meio dos seus lugares selvagens não pode ser indiferente à sorte dos robustos filhos da terra. Mas se o demónio fosse tão malicioso como dizem, como obteria ele o poder sobre os mortais que se limitam a aceitar as suas dádivas sem se comprometerem a submeter-se às suas vontades? Quando levam o vosso carvão ao forno, o dinheiro que vos paga o blasfemo Blaize, esse velho réprobo do intendente, não é tão bom como se o recebessem das mãos do próprio pastor? Não são os presentes do demónio que podem tornar-se
perigosos, mas o uso que façam deles. E se ele acabasse de me aparecer neste momento e me indicasse uma mina de ouro ou de prata, eu começaria por procurá-la, mesmo antes de que ele me voltasse as costas, e considerar-me-ia sempre como sob a protecção de um ser bem maior do que ele, desde que fizesse bom uso das riquezas que ele me levasse a descobrir. A isto o irmão mais velho respondeu que "um bem mal adquirido é quase sempre mal gasto"; enquanto o presunçoso Martin não receava afirmar "que todos os tesouros de Harz não trariam a mais pequena mudança aos seus hábitos, aos seus costumes e ao seu caracter". O irmão de Martin pediu-lhe que não falasse tão ousadamente daquele assunto, e conseguiu não sem custo distraí-lo, chamando a sua atenção para a próxima caçada ao javali. Esta conversa levou-os até junto da sua cabana, que não passava de uma mísera choça situada à beira de um vale estreito, pitoresco e selvagem, nas gargantas do Brockenberg. Aliviaram sua irmã da penosa operação de carbonizar madeira, que requer uma atenção constante, e dividiram entre eles o cuidado de vigiá-la durante a noite, ficando dois 192 a dormir enquanto o outro permaneceria levantado, como era seu costume. Max Waldeck, o mais velho, velou durante as duas primeiras horas, e ficou muito alarmado ao notar, no rebordo oposto do vale, uma grande fogueira cercada de várias figuras que parecia girarem com gestos aterradores. Max teve primeiro vontade de chamar os dois irmãos; mas pensando no carácter ousado do mais novo, e vendo que era impossível chamar o outro sem despertar Martin; imaginando também que o que via podia ser uma ilusão do demónio e consequência das expressões atrevidas usadas por Martin na tarde anterior, julgou que mais valia acolher-se à protecção das preces que o medo lhe permitiu murmurar, e continuou a observar com um terror curioso aquela estranha e aterradora aparição Depois de terem brilhado algum tempo, os lumes extinguiram-se, e o resto do tempo que Max passou a velar não foi perturbado senão pela lembrança do seu pavor. George tomou em seguida o lugar de Max, que se foi deitar, e a aparição da grande fogueira flamejante no lado oposto do vale apresentou-se igualmente a seus olhos. Tal como antes, estava cercada de vultos cujas formas opacas se desenhavam aos olhares dos espectadores sobre a chama avermelhada do lume, movendo-se e gesticulando em volta, como se se ocupassem de alguma cerimónia mística. George, embora tão prudente como seu irmão, era de um carácter um pouco mais ousado. Resolveu examinar mais de perto o objecto do seu assombro, e tendo por isso atravessado o pequeno regato que separava as duas encostas do vale, trepou a vertente oposta e aproximou-se, a distância de um vôo de frecha, do fogo que ardia com tanta vivacidade como quando' ele o vira primeiro. Os que o Acercavam pareciam-se com aqueles fantasmas que se nos apresentam num pesadelo, e persuadiu-se da ideia que de início concebera de que não eram seres pertencentes à espécie humana. No meio daquelas formas sobrenaturais e bizarras, George Waldeck notou a de um gigante todo coberto de pelos, tendo na mão um pinheiro desenraizado com o qual parecia de vez em quando atiçar o lume flamejante, e não trazendo outro vestuário senão uma grinalda de 193 folhas de carvalho em torno da cintura e da cabeça. George sentiu oprimir-se-lhe o coração ao reconhecer nele a aparição bem conhecida do demónio de Harz. tal como muitas vezes o ouvira descrever pelo velho padre e pelos caçadores que tinham visto a sua forma gigantesca cruzar a montanha. Fez um movimento para fugir, mas, reflectindo "e censurando-se
de cobardia, recitou intimamente o versículo do salmo Que todos os bons anjos louvem o Senhor! que naquela região é tido como um poderoso exorcismo; depois, voltou-se ainda uma vez para o lugar onde vira o lume, mas tudo havia desaparecido. Só a pálida lua iluminava então a beira do vale, e quando George, a passo trêmulo, fronte coberta de suor e cabelos eriçados sob o gorro de carvoeiro com que se cobria, chegou ao lugar onde o fogo momentos antes fora tão visível, e que se distinguia por um roble derrubado, não pôde encontrar vestígio algum do espectáculo que acabara de lhe aparecer. O musgo e as flores silvestres achavam-(se em toda a sua frescura e os ramos da árvore que um momento antes lhe pareceram envoltos em chamas e fumo estavam húmidos do orvalho da noite. George voltou para a sua cabana, a tremer de medo, e, tal como seu irmão mais velho, resolvido a nada dizer do que vira, com receio de excitar em Martin aquela curiosidade temerária, que ele considerava flagrante impiedade. Foi em seguida a vez de Martin velar. O galo da família já dera o primeiro sinal e a noite estava quase decorrida. Ao examinar o estado do forno, onde depusera a madeira para ser carbonizada, ficou surpreendido ao ver que o lume não fora bem mantido, porque, na sua excursão e na agitação que se lha seguira, George esquecera o principal objectivo da velada. O primeiro pensamento de Martin foi chamar os seus dois irmãos adormecidos, mas notando que seu sono era mais forte e mais profundo que de costume, respeitou-lhes o repouso, e começou a carregar o forno sem mais ajuda. A madeira que ele acumulava estava aparentemente húmida, pois o fogo pareceu mais extinguir-se do que reanimar-se. Martin foi em seguida buscar algumas achas a uma pilha de madeira que fora cuidadosamente cortada e seca para 194 esse uso; mas, ao regressar, encontrou o lume completamente apagado. Era um percalço sério, e que os levava à perda de mais de um dia de trabalho. Inquieto e atormentado, o pobre rapaz quis usar a pederneira para reacender o lume, mas a isca estava molhada, e todos os seus esforços se malograram. Ia decidir-se então a chamar seus irmãos, pois as circunstâncias tornavam-se prementes, quando através das janelas e das fendas da sua mísera cabana avistou jactos de luz, e foi surpreendido pela mesma aparição que sucessivamente alarmara seus dois irmãos durante a sua vigilância nocturna.
A sua primeira ideia foi que os Muhllerhaussers, com quem estavam em rivalidade de ofício e com os quais já haviam tido várias questões, tivessem vindo de noite invadir os seus limites, a fim de lhes roubarem as madeiras. Resolveu então acordar os irmãos e vingar-se da sua audácia. Mas um momento de reflexão, o exame que fez dos gestos e atitudes dos que pareciam assim trabalhar no meio do fogo, depressa lhe dissiparam esse pensamento, e, embora bastante incrédulo em tais assuntos, concluiu que o que via era um fenômeno fora das leis da Natureza. "Quer sejam homens, quer demónios - pensou o intrépido rachador que vejo entregarem-se além àquelas cerimonias e àqueles gestos excêntricos, vou-lhes pedir lume para acender a minha fornalha". Ao mesmo tempo abandonou o projecto de acordar os irmãos, porque geralmente se julgava que era preciso estar só para empreender aventuras do género daquelas que ele estava prestes a tentar. Também receava que a timidez escrupulosa de seus irmãos se opusesse à realização do exame que resolvera fazer; assim, pois, desprendendo o seu pico da parede, o intrépido Martin Waldeck partiu sozinho para aquela
empresa. com a mesma facilidade de seu irmão George, mas animado de uma coragem muito superior, Martin atravessou a torrente, galgou a montanha e aproximou-se bastante da assembleia dos espíritos para poder reconhecer na figura principal os atributos do demónio de Harz. Pela primeira vez na sua vida um arrepio lhe percorreu as veias, mas ao lembrar-se de que desafiara, e mesmo desejara de longe a circunstância que se lhe apresentava agora, sentiu fortalecer-se-lhe 195 a coragem, e, o orgulho substituindo a firmeza que podia faltar-lhe, avançou para o fogo com bastante decisão; as figuras que o cercavam pareciam-lhe cada vez mais selvagens, esquisitas e sobrenaturais, conforme se aproximava delas. Foi acolhido por gargalhadas roucas e bizarras que se afiguraram mais assustadoras aos seus ouvidos aturdidos do que a reunião dos sons mais funestos e mais lúgubres que se pode imaginar. - Quem és tu? -perguntou o gigante, esforçando-se por emprestar às suas feições ferozes e desproporcionadas uma espécie de gravidade, ao mesmo tempo que eram agitadas pelas caretas de um riso que em vão procurava reprimir. - Martin Waldech, o lenhador - respondeu o intrépido moço-E vós quem sois? - O rei da floresta e da mina - replicou o espectro - E quem te deu audácia para vires perturbar os meus mistérios? - Vim procurar lume para acender o meu forno - respondeu Martin, ousadamente; e depois, sem se intimidar, perguntou por seu turno - Que mistérios são esses que celebrais aqui? - Celebramos - respondeu o demónio, complacente - as núpcias de Hermes com o dragão negro. Mas toma o lume que vieste buscar e retira-te: nenhum mortal nos pode ver por muito tempo e viver. O camponês mergulhou a ponta do seu pico no meio de uma larga acha ardente, que levantou com certo custo, e com a qual retomou o seu caminho para a cabana. As gargalhadas recomeçaram atrás dele com triplicada violência, e ecoaram muito longe no estreito vale. Por muito assombrado que estivesse do que acabava de ver, o primeiro cuidado de Martin, ao chegar, foi ajeitar no meio da madeira o lume que trazia, de forma a reacender o seu forno o mais rapidamente possível; mas após inúmeros esforços, o tição que trouxera do lume do demónio apagou-se totalmente sem se ter pegado ao resto. Voltou-se e viu as chamas continuarem a brilhar na montanha, embora os vultos que gesticularam em torno tivessem desaparecido. Como pensou que o espectro troçara dele, abandonou-se à temeridade natural do seu carácter e resolveu levar a aventura até ao fim; retomou o caminho para o sítio onde estava o fogo, do qual, sem a menor 196 oposição por parte do demónio, trouxe da mesma maneira um bocado de lenha ardente, mas que não conseguiu, tal como o anterior, reacender o seu lume. Como a impunidade incitara ao cúmulo a sua audácia, resolveu-se a fazer uma terceira tentativa, e a aproximar-se do fogo como das outras vezes. Mas quando ele se voltava, depois de ter retirado um novo bocado de brasa, ouviu a voz rouca e bizarra que primeiro o interrogara pronunciar estas palavras: "Livra-te de aqui voltares quarta vez". Não conseguindo desta vez mais do que das outras reacender o seu lume, Martin renunciou àquela inútil empresa, e atirou-se para o leito de folhas, resolvido a guardar para a manhã seguinte a narrativa daquela aventura a seus irmãos. Foi arrancado ao pesado sono em que o tinham
mergulhado a fadiga do corpo e a agitação de espírito que experimentara, por violentas exclamações de surpresa e de alegria. Ao levantar-se, seus irmãos, admirados de encontrar o lume apagado, começaram a dispor a lenha de maneira a renová-lo, e encontraram nas cinzas três grossas maças de metal que o seu saber naquele género (porque os camponeses de Harz são quase todos mineiros práticos) os fizera reconhecer como ouro puro. A sua alegria foi um pouco empanada, ao saberem por Martin de que maneira lhes viera aquele tesouro, tanto mais que a sua própria experiência da noite lhes não permitia conceber a menor dúvida sobre a sua narrativa; mas não tiveram forças para resistir à tentação de partilhar das riquezas de seu irmão. Colocando-se então à testa da casa, Martin Waldeck comprou terras e bosques, construiu um castelo, obteve títulos de nobreza e, para indignação da antiga aristocracia da região, foi investido de todos os privilégios de um nascimento ilustre. A sua coragem nas guerras públicas, bem como nas questões particulares, e o número de dependentes que mantinha de soldada, sustentaram-no algum tempo contra o ressentimento e o ódio que a sua súbita ascensão e a arrogância das suas maneiras tinham suscitado. O exemplo de Martin Waldeck veio então juntar-se a muitos outros para provar que não existe homem que possa prever o efeito que uma prosperidade inesperada terá sobre o seu carácter. As suas 197 más inclinações naturais, que a pobreza contivera e reprimira, desenvolveram-se sob a influência fatal da tentação, e os meios de se lhes abandonar produziram os mais tristes resultados. O demónio da avareza evocou o do orgulho, e esse orgulho não podia manter-se senão pela opressão e pela crueldade. O carácter de Waldeck, sempre ousado e empreendedor, mas tornado arrogante e cruel pela prosperidade, depressa o fez odioso não somente aos nobres, mas também às classes inferiores, que viram com duplo ressentimento os direitos opressores da nobreza do Império exercidos de uma forma tão absoluta por um homem saído da massa do povo. A sua aventura, embora cuidadosamente oculta, começou também a divulgar-se, e o clero não foi lento a apontar e a cobrir de vergonha, como bruxo e cúmplice dos demónios, aquele que, depois de ter adquirido de tal maneira tão imenso tesouro, não procurara santificar a aquisição consagrando uma parte considerável às necessidades da Igreja. Cercado de inimigos públicos e particulares, rodeado de mil ódios e ameaçado de excomunhão pela Igreja, Martin Waldeck, ou antes, como então se chamava, o barão Von Waldeck, lamentou mais de uma vez com amargura os trabalhos e os desalentos da sua obscura pobreza. No entanto, no meio de tantos escolhos, a sua coragem não o abandonou, e pareceu antes aumentar na proporção em que estes perigos se acumulavam em sua volta. Mas um acidente veio acelerar a sua ruína. Uma proclamação do duque de Brunswick, então reinante, convidara para um torneio solene todos os nobres alemães de nascimento honroso e sem mancha, e Martin Waldeck, armado com magnificência e acompanhado de seus dois irmãos e de um séquito numeroso e brilhante, teve a insolência de aparecer entre os cavaleiros da província e de pedir licença para entrar na liça. Isto foi olhado como o cúmulo da sua audácia. Mil vozes bradaram ao mesmo tempo: "Não queremos carvoeiros nos nossos jogos de cavalaria! " Irritado até ao desvario, Martin puxou da sua espada e abateu o arauto que, obedecendo ao clamor geral, se opusera à sua entrada. Um milhar de espadas saiu da bainha para vingar um crime que, nesses tempos, não podia ser ultrapassado senão pelo sacrilégio ou o 198 regicídio. Waldeck, depois de se ter defendido como um leão, foi preso e
condenado imediatamente, pelos juizes da liça, ao castigo decretado contra aquele que violou a paz do seu soberano e atentou contra a pessoa sagrada de um arauto de armas, isto é, a ter a mão direita cortada, a ser vergonhosamente privado das honrarias da nobreza, das quais se mostrava indigno, e expulso da cidade. Depois de ser despojado das suas armas e de ter sofrido a mutilação imposta pela rigorosa sentença, esta infeliz vítima da ambição foi entregue à populaça, que, acusando-o alternadamente de tirano e de mágico, o seguiu com gritos e ameaças que acabaram em actos de violência. Seus irmãos (porque seu séquito se dispersara em fuga) não conseguiram arrancá-lo às mãos daquela multidão furiosa senão quando, saciada de crueldade, o deixou meio morto em consequência da perda de sangue e dos golpes recebidos. Mas a engenhosa barbaridade dos seus inimigos não lhes permitiu servirem-se de outro meio de transporte senão de uma carroça de carvão, semelhante àquela de que ele se servira outrora, e na qual seus irmãos o depuseram sobre um molho de palha, esperando apenas chegar com ela a um lugar de refúgio, antes de que a morte viesse pôr termo aos seus sofrimentos.
Quando os Waldeck, que seguiram o seu caminho desta maneira deplorável, se encontraram perto dos limites da região natal, avistaram, na senda cavada entre duas montanhas, um vulto que avançava para eles, e que à primeira vista lhes pareceu um homem de idade. Mas à medida que se aproximavam, seus membros e sua estatura aumentaram, o seu bastão de peregrino transformou-se num pinheiro desenraizado, e a figura gigantesca do demónio de Harz apareceu-Lhes, com todos os seus terrores. Quando ele se encontrou diante da carroça na qual jazia o mísero Waldeck, suas feições monstruosas distenderam-se e deixaram escapar um riso infernal, exprimindo ao mesmo tempo desprezo e inexprimível malignidade, dirigindo simultaneamente esta pergunta ao paciente: "Como achas o fogo que os meus tições acenderam? " A faculdade de se mover, suspensa pelo terror que gelava seus irmãos, pareceu reanimar-se em Martin com a energia da sua coragem. Soergueu-se na carroça 199 e, ameaçando o espectro com seu punho fechado com violência, lançou-lhe um olhar cheio de ódio, que parecia desafiá-lo ainda. O demónio desapareceu como de costume, fazendo ouvir as suas gargalhadas terríveis, e deixou Waldeck exausto no último esforço da natureza moribunda. Aterrorizados, seus irmãos dirigiram a carroça para as torres de um convento que se erguia no meio de um pinhal, perto do caminho. Foram caridosamente acolhidos por um capuchinho descalço e de longa barba. E Martin não sobreviveu senão o tempo necessário para acabar a primeira confissão que fez desde a época da sua repentina ascensão, e para receber a absolvição daquele mesmo padre que três anos antes ele ajudara a escorraçar da aldeia de Morgenbrodt. Supõe-se que esses três anos de uma prosperidade precária tinham uma relação misteriosa com o número de visitas que ele fizera ao fogo do espectro na montanha. O corpo de Martin Waldeck foi sepultado no convento onde expirou e no seio do qual seus irmãos, tomando o hábito da ordem, viveram e morreram no cumprimento de actos de devoção e de caridade. Suas terras, sobre as quais ninguém reclamou direito algum, ficaram incultas até que voltaram à posse do imperador; e as ruínas do castelo, ao qual Waldeck dera o seu nome, ainda são evitadas pelos mineiros e pelos lenhadores, como retiro de espíritos malignos. Assim, as aventuras de Martin Waldeck se destinam a fornecer um novo exemplo das desgraças que acompanham sempre o mau emprego dos bens demasiado rapidamente adquiridos.
200 XIX Houve uma altercação tão perigosa entre meu primo capitão e aquele militar, não sei a propósito de quê! Foi verdadeiramente por um nada. Tratava-se de rivalidades, de patentes e distinções militares. A Amável Discussão Depois de ter escutado atentamente o conto que se acaba de ler, o auditório dirigiu à sua amável autora todos os cumprimentos requeridos pela delicadeza. Só Oldbuck beliscou o lábio e notou que se podia comparar o talento de Miss Wardour ao dos alquimistas, visto que achou maneira de extrair uma sã e sólida moral de um conto frívolo e ridículo. - Ouvi dizer - ajuntou ele - que é moda admirar estas composições extravagantes; quanto a mim, Possuo um coração inglês, pouco atreito ao pavor Que um fantasma ou ossos quebrados geram. - com sua licença, meu bom Mr. Oltenpuck, Miss Wartour fez desta histórria, como de tudo em que ela toca, uma coisa muito bonita, em verdade: mas quanto à aparição do demónio de Harz e da sua corrida por meio das montanhas desertas, com um grrande pinheirro a servir de bengala, e uma grrinalda de folhas em volta da cabeça e da cinturra, tudo isso é tão verdade como eu ser um homem honesto. - Não há forma de negar uma coisa cuja verdade é tão garantida - replicou o Antiquário secamente. Mas neste momento aproximou-se um estranho que veio interromper a conversa. O recém-chegado era um belo cavaleiro de cerca de vinte e cinco anos, fardado de oficial, e cujo ar e tom tinham um carácter militar que talvez ultrapassasse um pouco o à-vontade de um homem bem-educado, cujas maneiras não devem geralmente deixar supor a profissão. A maior parte dos circunstantes apressou-se a cumprimentá-lo. 201 - Meu querido Heitor! - exclamou Miss Mac Intyre, correndo a apertar-lhe a mão. - Heitor, filho de Priam, de onde vens tu? perguntou o Antiquário. - Do condado de Fife, senhor - respondeu o jovem militar. E depois de cumprimentar os presentes e, de uma maneira particular sir Arthur e a filha, continuou: - Quando vinha a caminho de Monkbarns, onde tencionava ir apresentar-lhe os meus respeitos, soube, por um criado que encontrei, que estavam todos aqui e aproveitei pressurosamente esta ocasião para vir prestar as minhas homenagens a vários dos meus amigos ao mesmo tempo. - E arranjar mais um, meu bravo Trajano - disse Oldbuck - Mr. Lovel, apresento-lhe o meu sobrinho, o capitão Mac Intyre. Heitor, terei muito prazer em ver-te cultivar a amizade de Mr. Lovel. O jovem militar lançou a Lovel um olhar penetrante e cumprimentou-o com mais frieza do que cordialidade; e como o nosso herói julgou encontrar nesta reserva alguma coisa de desdenhoso, correspondeu ao cumprimento com a mesma altivez. Assim, desde o primeiro instante do seu conhecimento uma secreta prevenção pareceu erguer-se entre eles. As observações de Lovel durante o resto do dia não foram de molde a fazêlo olhar mais favoravelmente o recém-chegado. O capitão Mac Intyre, com a galantaria peculiar da sua idade e da sua profissão, tornou-se assíduo
junto de Miss Wardour, apressando-se a prestar-lhe todos os pequenos cuidados que Lovel, retido pelo receio de lhe desagradar, daria tudo no mundo para ousar oferecer-lhe. Era com uma sensação, ora de irritação, ora de sombrio abatimento que ele via aquele jovem oficial arrogar-se junto dela todos os privilégios de um chichisbéu. Ele apresentava as luvas a Miss Wardour, ele ajudava-a a pôr o xaile, caminhava ao lado dela durante o passeio" pronto a afastar todos os obstáculos que pudessem deter seus passos e a oferecer-lhe o braço, para a suster, quando o caminho se tornava áspero e difícil. Era a ela que dirigia mais vezes a palavra e, quando as circunstâncias o permitiam, falava-lhe exclusivamente. 202 Lovel sabia perfeitamente que tudo isto podia muito bem não ser senão aquela espécie de galantaria nascida do amor-próprio, que leva tantos jovens dos nossos dias a dar-se ares de ocuparem a atenção toda inteira da mais bonita mulher de uma sociedade, como se os outros fossem indignos das suas atenções. Mas ele julgava ver nas maneiras do capitão Mac Intyre uma marcada expressão de ternura, feita para despertar todos os ciúmes de um amante. Miss Wardour também aceitava os seus cuidados; e embora fosse obrigado a confessar que eram de um género de não poderem ser repelidos sem alguma afectação, no entanto, o vê-la aceitá-los enchia-lhe o coração de uma inexprimível amargura. As angústias que estas reflexões lhe ocasionaram, dispuseram-no bastante mal para ouvir as ávidas discussões com que Oldbuck, que continuava a exigir a sua atenção exclusiva, não cessava de persegui-lo; e suportou, com acessos de impaciência que se tornavam quase em desespero, um curso de lições sobre arquitectura monástica, nos seus diferentes estilos; desde o pesado saxãp até o elegante gótico, e daí ainda ao género misto e composto de James I, onde, segundo Oldbuck, todas as ordens se confundiram, e das colunas de diversas se erguiam ao lado ou por cima umas das outras, como se a simetria fosse esquecida, e os principais elementos da arte tivessem caído no caos. - Que espectáculo pode ser mais pungente - exclamou Oldbuck num transporte de veemência - que o dos males de que somos forçados a ser testemunhas, e os quais não temos maneira de remediar! - Lovel respondeu por um gemido involuntário - Vejo, meu jovem amigo, que os nossos espíritos se entendem; e que estas monstruosidades o chocam tanto como a mim. O senhor nunca se aproximou de tais infâmias, sem experimentar o desejo de as desfigurar, de as mutilar, de as aniquilar? - Infâmias! - repetiu Lovel - Sob que aspecto? - Quero dizer pela vergonha que recai sobre as artes. - Mas onde?... Como?... - Pelo pórtico das escolas de Oxford, por exemplo, onde, com despesas imensas, um arquitecto ignorante, 203 excêntrico e bárbaro, quis que a fachada do edifício representasse ao mesmo tempo cinco ordens arquitectónicas. com ataques deste género, Oldbuck, longe de suspeitar que torturava Lovel, obrigava-o a conceder-Lhe uma parte da sua atenção, tal como um hábil pescador, por meio da sua linha, conserva a sua influência nas convulsivas contorções da sua desditosa presa. Regressaram então ao lugar onde as carruagens os esperavam; e, durante este curto passeio, Lovel, cansado das contínuas narrativas e declamações do seu companheiro, mandara mais de uma vez para o diabo, ou para quem quer que o libertasse delas, as ordens ou as desordens da arquitectura, inventadas ou combinadas desde a construção do templo de Salomão até os
nossos dias. Um ligeiro incidente, porém, forneceu ocasião ao nosso Antiquário de moderar os seus acessos de impaciência. Miss Wardour e o seu cavaleiro precediam um pouco os outros na estreita senda, quando a jovem, desejando sem dúvida cortar a conversa com o oficial, parou de súbito até que Mr. Oldbuck se lhes juntasse, e dirigiuse a este: - Eu desejava, Mr. Oldbuck, fazer-lhe uma pergunta sobre a data destas interessantes ruínas. Não seria prestar justiça à habilidade de Miss Wardour supor que ela não previsse a extensão pouco vulgar da resposta que provocava. O Antiquário, endireitando-se como um cavalo de batalha ao som de uma trombeta, mergulhou todo inteiro nos diversos argumentos pró ou contra a data de 1273, que fora atribuída à abadia de Santa Ruth, por uma publicação nova sobre as antigüidades da arquitectura escocesa. Estadeou os nomes de todos os abades que governaram esta instituição, de todos os nobres que lhe fizeram doações de terras, e de todos os monarcas de que esta vasta igreja fora derradeiro lugar de repouso. Assim como um rastilho de pólvora que se incendeia não pode deixar de incendiar a que se encontra na sua vizinhança, assim o baromnet, agarrando-se ao nome de um dos seus antepassados que figurava na dissertação de Oldbuck, se lançou na narração das suas guerras, dos seus altos feitos e dos seus troféus. E o 204 digno doutor Blattergowl, ouvindo falar de uma doação de terras, cum ãecimis inclusis tom vicariis quam garbalibus et numquam antea separatis (1), entrou numa longa explanação relativa à interpretação que o tribunal dos dízimos dera a uma cláusula deste género, que se apresentara num processo que ele tivera ultimamente para anexar à sua paróquia um aumento de receita. Os oradores, como três cavalos de raça, precipitaram-se separadamente para a meta, sem se preocuparem com entravarem ou deterem a corrida dos seus rivais. Oldbuck arengava, o baronnet declamava, Blattergowl esplanava e citava a lei, e todos três faziam uma mistura implacável das fórmulas latinas das doações feudais, dos termos técnicos do brasão e do calão ainda mais bárbaro do tribunal dos dízimos da Escócia. - Ele era - exclamou Oldbuck, que falava do abade Adhemar- era com efeito um prelado exemplar, e pela severidade dos seus costumes, pelo estrito cumprimento da penitência, bem como pela caridade natural da sua alma, e pelas enfermidades provocadas pela sua grande idade e pelos seus hábitos ascéticos... Aqui, teve a infelicidade de tossir, e sir Arthur replicou, ou antes, continuou: - Chamaram-lhe popularmente Inferno Ajaezado. Trazia um escudo forrado de zebelina, que depois deixámos de usar, e pereceu na batalha de Vemeuil, em França, depois de ter morto seis ingleses pela sua própria... - Mandado de certificação - continuou o pastor naquele tom uniforme e lento, que, primeiro abafado pela veemência dos adversários, ameaçava entretanto vir ao de cima, e manter-se muito mais tempo naquela luta de frases - Um mandado de certificação foi produzido e as partes, dando-se por convencidas, julgou-se que se ia concluir a prova, quando o advogado fez uma moção para que a causa fosse exposta de novo, havendo testemunhas a produzir como era hábito transportar as ovelhas prestes a ter crias na terra franca (1) com os dízimos tanto em servos como em moios de trigo, e que antes não estavam separados. - N. do T. 205 de dízimos, o que não passava de um meio evasivo para...
Nesta altura, como o baronnet e Oldbuck haviam retomado o fôlego e continuado as respectivas arengas, os três fios da conversa reataram-se e entrelaçaram-se de novo numa inextricável confusão.
No entanto, por muito insípida que fosse esta tripla algaraviada, era evidente que Miss Wardour a preferia a dar ao capitão Mac Intyre ensejo de retomar a sua conversa. Assim, depois de ter esperado alguns momentos com um desagrado que seu rosto altivo mal disfarçava, ele abandonou-a ao seu mau gosto; e, tomando o braço de sua irmã, reteve-a um pouco à retaguarda do resto do grupo. - Vejo, Maria, que, durante a minha ausência, o vosso círculo de relações nem se tornou mais alegre nem mais sábio. - Falta-nos a tua paciência e a tua sensatez, Heitor. - Obrigado, querida irmã! Mas, à falta de sensatez, o teu círculo foi acrescido de um componente que ofusca o teu indigno irmão, se acaso é tão absolutamente alegre como ele. Quem é, por favor, este Mr. Lovel, que tão bem conquistou as boas graças do nosso velho tio? Geralmente, este não é tão acessível aos estranhos. - Meu irmão, Mr. Lovel é um jovem muito bem educado. - Sim, isso quer dizer que cumprimenta ao entrar num aposento e não traz o casaco roto nos cotovelos. - Não, meu irmão, isto significa que as suas maneiras e a sua linguagem denunciam os seus sentimentos e uma educação da melhor classe. - Mas eu desejaria saber qual é o seu nascimento e o seu lugar na sociedade, e que título tem ele para ser admitido no círculo onde o encontro tão familiarmente recebido. - Se queres saber como foi admitido em Monkbarns, podes perguntar a meu tio, que sem dúvida responderá que recebe em sua casa as pessoas que lhe apraz; se também queres pedir contas a sir Arthur, saberás que Mr. Lovel lhe prestou, bem como a Miss Wardour, um serviço da mais alta importância. - Como, essa história romanesca é então verdadeira? 206 E esse valente cavaleiro aspira, como se costuma ver em semelhantes casos, à mão da dama que arrancou do perigo? É a regra nos romances, eu sei; e pareceu-me achar-lhe um tom muito seco para comigo, sempre que passeámos juntos. Ela tinha mesmo o ar de temer, de vez em quando, ofender o seu galante cavaleiro. - Meu caro Heitor - disse-lhe a irmã - se realmente alimentas ainda alguma afeição por Miss Wardour... - Se, Maria? Porque é esse se? - Confesso que vejo a tua insistência com pouca esperança. - E porquê sem esperança, minha querida irmã? Miss Wardour, no estado em que se encontram os negócios de seu pai, não pode pretender a uma grande fortuna; e, quanto a família, creio que os Mac Intyre não são inferiores - Mas, Heitor - continuou sua irmã - sir Arthur vê-nos como sendo membros da família Monkbarns. - Sim, Arthur pode ver-nos como quiser - respondeu o jovem escocês em tom altivo-mas todos os que têm senso comum sabem que a mulher toma a classe do seu marido, e que meu pai, descendendo de quinze avoengos sem mancha, podia bem enobrecer minha mãe, apesar da tinta do impressor Aldobrand que lhe corria nas veias. - Por amor de Deus, Heitor - replicou sua irmã, com inquietação - toma cuidado com as tuas palavras; uma só expressão desse género, repetida a meu tio por qualquer ouvinte oficioso, indiscreto, ou interessado em
prejudicar-te, far-te-ia perder para sempre a sua amizade e toda a esperança à sucessão dos seus bens.
- Seja assim! - respondeu o jovem, impaciente Pertenço a uma profissão sem a qual o mundo nunca pôde passar, e da qual terá mais necessidade do que nunca daqui a meio século; e meu tio pode, se quiser Maria, dar-lhe os seus domínios e o seu nome plebeu como presente de núpcias; e a minha irmã também pode, se quiser, desposar o seu favorito, e viver em paz com ele, se aprouver ao céu: quanto a mim o meu partido está tomado; não irei mendigar, pela lisonja, uma herança que me pertence por direito de nascimento. 207 Miss Mac Intyre, pousando a mão no braço do irmão, suplicou-lhe que reprimisse aquela exaltação, - Quem te faz mal ou procura fazer-to - disse ela - senão a tua própria impetuosidade? Irritas-te com perigos que não existem senão na tua própria imaginação. O nosso tio, até o presente, não cessou de nos testemunhar uma bondade toda paternal, e porque supões que ele se vá mostrar de futuro tão diferente do que tem sido para nós desde que somos órfãos? - Confesso que é um excelente homem - respondeu Mac Intyre - e fico furioso contra mim próprio quando me sucede ofendê-lo; mas, verdadeiramente, ás suas eternas arengas sobre um bico de alfinete, e que não valem a faúlha de uma pedreneira; as suas pesquisas sobre velhos potes e velhas marmitas, fazem-me perder a paciência. Tenho alguma coisa de Hotspur, minha irmã, concordo. - Alguma coisa de mais, meu muito querido irmão. Ai, a quantos perigos, dos quais a maior parte, perdoa-me dizer-to, nada tinha üe respeitável, esse carácter violento e exclusivo te tem arrastado! Não deixes que o tempo que vais passar entre nós seja perturbado por arrebatamentos desse género. Que o nosso velho benfeitor tenha a satisfação de ver seu sobrinho tal como é: franco, vivo e generoso; mas sem mistura de brusquidão, de obstinação e de violência. - Bem - respondeu o capitão Mac Intyre - eis-me catequizado. Deus queira que eu aproveite. E, para principiar, vou mostrar-me delicado com o teu novo amigo. Preciso de entabular conversa com esse Mr. Lovel. Nesta resolução, que era de momento muito sincera, juntou-se ao rancho que marchava à frente. A tríplice dissertação terminara, enfim, e sir Arthur falava de novidades estrangeiras e da situação política e militar do país, assunto sobre o qual não há homem que não se julgue capaz de dar a sua opinião. Como a conversa recaira sobre uma acção que se verificara no ano anterior, Lovel, que interviera por acaso, referiu a esse respeito uma circunstância de cuja exactidão o capitão Mac Intyre não pareceu inteiramente convencido, embora as suas dúvidas fossem delicadamente expressas. - Deves confessar que te enganas nesse caso, Heitor 208 - disse seu tio - embora ninguém esteja menos disposto do que tu a fazer tal confissão; mas tu estavas em Inglaterra nessa época, e Mr. Lovel estava, provavelmente, presente no caso. - Falo então com um militar? - indagou Mac Intyre - Posso perguntar-lhe a que regimento pertence, Mr. Lovel? - Lovel deu-lhe o número do seu regimento-É estranho que não nos tenhamos encontrado antes, Mr. Lovel; conheço perfeitamente, e servi com ele por diversas vezes.
Um leve rubor animou o rosto de Lovel. - Há muito tempo que não sigo o meu regimento - disse ele - servi na última campanha, sob as ordens do general sir X... - Realmente, isto torna-se ainda mais estranho; porque, embora não tenha servido com o general sir X... tive no entanto ocasião de conhecer os oficiais que o rodeavam, e não me lembro de que existisse um com o nome de Lovel. A esta observação, o rubor de Lovel tornou-se tão vivo que atraiu a atenção de todo o rancho, enquanto um sorriso desdenhoso denunciava em Mac Intyre uma espécie de triunfo. "Há nisto alguma coisa de extraordinário, disse Oldbuck com seus botões, mas não posso resolver-me a julgar tão levianamente a fénix dos companheiros de viagem; as suas acções, o seu procedimento e a sua linguagem pertencem a um verdadeiro gentleman". Entretanto, Lovel tirara da sua carteira uma carta, cujo sobrescrito rasgou, e apresentou-a a Mac Intyre. - Provavelmente, o senhor conhece a letra do general? Talvez eu não devesse mostrar estas expressões exageradas de estima e de interesse que contêm. Aquela carta continha cumprimentos muito lisonjeiros da parte daquele oficial, relativamente a uma ocasião em que o nosso jovem se distinguira militarmente. Mac Intyre, ao primeiro olhar que lhe lançou, não pôde negar que reconhecia a letra do general, mas observou secamente que não havia endereço. - O endereço, capitão Mac Intyre - respondeu Lovel no mesmo tom -estará à sua disposição quando o senhor se quiser informar. - É o que não deixarei de fazer - replicou o jovem oficial 209 - Vamos! Vamos! - exclamou Oldbuck - Que quer tudo isso dizer? Trazes-nos a discórdia? Não queremos aqui fanfarrão e jovem louco. Vens do teatro da guerra para provocar questões domésticas nos nossos lares pacíficos? És então como os cães novos que, quando o touro está fora da arena, procuram lutar entre eles, dilacerando-se e mordendo as pernas das pessoas que estão em sua volta? Sir Arthur disse que esperava que eles não se esquecessem até o ponto de se irritarem por uma coisa tão insignificante como o reverso de uma carta. Os dois contendores protestaram contra qualquer intenção desse género e, faces inflamadas e olhos cintilantes, juraram que nunca estiveram tão calmos em sua vida. No entanto, um embaraço evidente pareceu tolher todo o rancho; cada um estava demasiado preocupado com as suas próprias reflexões para tentar ser amável, e Lovel, julgando-se objecto dos olhares frios e suspicazes do resto da sociedade pensando também que as suas respostas indirectas poderiam ter dado lugar a estranhas opiniões a seu respeito, tomou a corajosa resolução de sacrificar o prazer que se lhe prometia de passar o resto do dia em Knockwinnock.
Fingiu então queixar-se de uma violenta dor de cabeça ocasionada pelo calor do dia, ao qual ele não se expusera desde a sua doença, e apresentou desculpas muito delicadas a sir Arthur, que, já escutando mais uma suspeita recente do que o reconhecimento devido a serviços passados, não insistiu para que ele ficasse, além do que absolutamente exigia a mais estrita urbanidade. Quando Lovel se aproximou para despedir-se das damas, notou nas maneiras
de Miss Wardour uma espécie de interesse que ainda não lhe tinha encontrado. Ela exprimiu por um rápido olhar lançado ao capitão Mac Intyre, e do qual só Lovel pôde aperceber-se, a natureza do seu alarme, e disse, numa voz menos segura que a habitual, que esperava que não fosse um compromisso mais grave que os privava da companhia de Mr. Lovel. Ele assegurou-lhe que nenhum compromisso se verificava, que se tratava somente do reaparecimento de um mal a que era atreito havia bastante tempo. 210 - O melhor remédio em semelhante caso é a prudência e espero... e todos os amigos de Mr. Lovel esperam que não deixará de a usar. Lovel inclinou-se profundamente, corando muito, e Miss Wardour, como se receasse ter falado de mais, voltou-se e subiu para a carruagem. Lovel ainda tinha de despedir-se de Oldbuck, que, durante este intervalo, com a ajuda de Caxon, reparara a desordem da sua peruca, e escovara o fato, que se ressentia em alguns sítios da sua passagem pelas sendas difíceis que tinha percorrido. - Quê, jovem! Espero que não nos vá deixar por causa da indiscreta curiosidade e da veemência do louco do Heitor! É um rapaz incoerente, um menino mimado desde o tempo em que andava ao colo da ama. Um dia, atiroume com a sua roca e o seu guiso à cabeça por eu lhe ter recusado um bocado de açúcar; mas o senhor tem bastante bom-senso para não prestar atenção às palavras desse desmiolado; aequam servare mentem, é a divisa do nosso amigo Horácio (1). Já dou uma descompostura ao Heitor, e arranjo tudo isso. Mas Lovel persistiu em voltar para Fairport. O Antiquário afectou então um tom mais grave. - Tome cuidado, jovem, com os sentimentos que o agitam neste instante. A vida foi-lhe concedida para um objectivo nobre e útil, e o senhor deve conservá-la para ilustrar a literatura do seu país, quando não for chamado a expô-la para sua defesa, ou para servir de apoio à inocência. Os combates particulares - continuou ele - desconhecidos na civilização antiga, são, de todos os absurdos introduzidos pelas tribos góticas, o mais ímpio e o mais bárbaro. Não quero mais ouvir falar desses conflitos absurdos, e hei-de mostrar-lhe o tratado sobre o duelo que eu compus, quando o notário da cidade e o preboste Mucklewhame quiseram dar-se ares de gentlemen desafiando-se para o duelo. Eu tencionava mandar imprimir o meu ensaio; mas a coisa tornou-se inútil, porque o conselho da cidade arrumou o assunto. - Mas asseguro-lhe, meu caro senhor, que entre (1) Conserva uma alma igual (liv. II, ode in). - N. do T. 211 mim e o capitão Mac Intyre não há coisa alguma que possa necessitar de uma intervenção tão respeitável - Assim seja! Porque de contrário eu serviria de padrinho às duas partes. -
Em seguida, o velho gentleman entrou na cadeira de posta, junto da qual Miss Mac Intyre retivera até ali seu irmão, pelo mesmo motivo talvez que faz com que o dono de um cão bulhento o mantenha a seu lado para o impedir de ir atacar outro. Mas Heitor conseguiu iludir a sua precaução, porque, estando a cavalo, seguiu por algum tempo as carruagens até que elas tiveram de voltar a esquina da avenida de Knockr winnok; depois, voltando a cabeça ao seu cavalo, cravou-lhe as esporas e galopou em
sentido oposto. Poucos minutos bastaram para alcançar Lovel, que, adivinhando sem dúvida a sua intenção, pusera o seu cavalo a passo, quando um galope precipitado lhe anunciara o capitão Mac Intyre. Este jovem militar, cuja veemência ainda fora aumentada pela rapidez da corrida, deteve subitamente a montada ao lado da de Lovel e, tocando levemente o chapéu, perguntou no mais altivo tom: - Que quis o senhor dar-me a entender, ao dizer-me que o seu endereço estava à minha disposição? - Simplesmente, senhor, que o meu nome é Lovel, e que a minha residência é neste momento em Fairport, como pode ver por esta carta. - E eis todas as informações que o senhor está disposto a dar-me? - Que eu saiba, o senhor não tem o direito de pedir-me outras. - Encontrei-o no círculo de minha irmã e tenho o direito de procurar conhecer aqueles que aí vejo admitidos. - Tomarei a liberdade de contestar esse direito respondeu Lovel, num tom tão altivo como o do jovem militar - O senhor encontrou-me numa sociedade que se contentou com o grau de confiança que eu julguei a propósito conceder-lhe sobre os meus assuntos, e o senhor, que me é estranho, não tem o direito de ir mais além. - Mr. Lovel, se o senhor serviu, como diz... 212 - Se? - interrompeu Lovel-Se eu servi, como o digo? - Sim, senhor, essa é a minha expressão. Se serviu, como diz, tem a obrigação de saber que me deve uma explicação qualquer. - Se essa é a sua opinião, ficarei encantado em dar-lha, capitão Mac Intyre, da maneira que geralmente a entendem as pessoas bem-educadas. - Muito bem, senhor - respondeu Heitor e, voltando o seu cavalo, partiu a galope para ir juntar-se ao rancho. A sua ausência já fora notada, e sua irmã, mandando parar o veículo, estendia a cabeça para fora da portinhola, a fim de ver onde ele estava. - Que mais há ainda? - indagou o Antiquário Que andas tu a correr assim, para trás e para diante, como se a tua cabeça estivesse em jogo? Porque não te manténs ao lado da carruagem? - Fui buscar a minha luva que deixara cair. - Buscar a tua luva! Presumo que queres dizer que foste atirá-la; mas eu terei cuidado contigo, meu rapaz; terás a bondade de vir esta noite comigo para Monkbarns. E ao acabar estas palavras, ordenou ao posttilhão que continuasse. XX Se em tal ocasião falares à honra, terás de renunciar para sempre a servir, terás de dizer adeus ao nobre mister das armas, e ser-te-á arrancado o nome glorioso de soldado, como a coroa de louros mutilada pelo raio cai da fronte que foi indigna de a usar. A Amável Discussão Cedo, no dia seguinte, apresentou-se um gentlemon em casa de Mr. Lovel, que estava levantado e pronto a recebê-lo. Era um oficial, amigo do capitão Mac Intyre, então em Fairport em serviço de recrutamento. Lovel e ele conheciam-se superficialmente. - Presumo, senhor -disse Mr. Lesley (era o nome deste oficial) - que deve adivinhar o motivo por que venho incomodá-lo tão cedo. 213 - Vem sem dúvida da parte do capitão Mac
Intyre? - Precisamente: ele sente-se ofendido pela maneira como o senhor ontem se recusou a responder a certas perguntas que se julgava no direito de fazer a um gentleman que se encontrava tão intimamente ligado à sua família. - Ousarei perguntar-lhe, Mr. Lesley, se o senhor estaria disposto a satisfazer pedidos feitos de maneira tão brusca e tão altiva? - Talvez não; e é porque conheço o ardor do meu amigo Mac Intyre em tais ocasiões que desejo vivamente servir aqui de conciliador... Pelas maneiras nobres e distintas de Mr. Lovel, deve cada um ardentemente desejar vê-lo repelir todas as suspeitas que a malquerença possa fazer pairar sobre uma situação que está envolta em mistério; se quiser permitir-me, por meio de um acordo amistoso, comunicar ao capitão Mac Intyre o seu verdadeiro nome, pois, temos razão para concluir que o de Lovel é suposto - Peço-lhe perdão, senhor; mas não posso admitir essa conclusão. - Ou, pelo menos - prosseguiu Lesley - que não é o que Mr. Lovel sempre usou. Se Mr. Lovel quiser explicar essa circunstância, o que, em minha opinião, devia fazer por respeito a si próprio, eu respondo por uma solução amistosa deste desagradável incidente. - Isto é, Mr. Lesley, se eu quiser responder às perguntas que ninguém tem o direito de fazer-me, e que me são agora dirigidas, sob pena de incorrer no ressentimento do capitão Mac Intyre recusando-me a responder, o capitão Mac Intyre condescenderá em dar-se por satisfeito. Mr. Lesley, não tenho senão uma palavra a dizer a esse respeito: não tenho dúvida alguma de que o meu segredo, admitindo que eu teria algum, não pudesse estar em toda a segurança confiado à sua honra, mas não me julgo obrigado a ceder à curiosidade de ninguém. O capitão Mac Intyre encontrou-me numa sociedade que era por ela própria uma garantia bastante para toda a gente, e que sobretudo devia sê-lo para ele, que era um gentleman. Em minha opinião, ele não tem direito de ir mais longe, ou de inquirir do nascimento, da categoria e dos negócios 214 de um estranho que, sem procurar uma ligação particular com ele ou com os seus, se encontra a jantar por acaso com seu tio ou a passear com o mesmo círculo de relações de sua irmã. - Nesse caso, o capitão Mac Intyre encarrega-me de o informar de que deve renunciar de futuro a fazer visitas a Monkbarns, e a abandonar toda a relação com Miss Mac Intyre, como lhe sendo desagradável. - com toda a certeza - respondeu Lovel - eu irei visitar Mr. Oldbuck quando me convier, sem nenhum respeito pelas ameaças de seu sobrinho ou pelo seu descontentamento. Quanto à jovem, tenho demasiado respeito por ela, embora nada possa ser mais superficial do que o nosso conhecimento, para querer misrturar o seu nome numa questão deste género. - Visto ser essa a sua resolução, senhor - replicou Lesley -o capitão Mac Intyre espera Mr. Lovel, a não ser que queira expor-se a passar por um homem de carácter muito equívoco, para lhe conceder o favor de uma entrevista, esta tarde às sete horas, na moita de espinhos, no pequeno vale que fica perto das ruínas de Santa Ruth. - Pode assegurar-lhe que lá estarei. Não há senão uma dificuldade: preciso de encontrar um amigo que me acompanhe; e onde encontrar um num prazo tão curto, eu, que não conheço ninguém em Fairport? No entanto, estarei no local; o capitão Mac Intyre pode ter a certeza disso. Lesley pegara no chapéu e avançara até à porta do aposento, quando de súbito, e como que comovido pela situação particular de Lovel, se voltou e disse: - Mr. Lovel, há qualquer coisa de tão singular em tudo isto que não posso
deixar de tornar ao assunto: o senhor próprio deve sentir, neste momento, o inconveniente de guardar semelhante incógnito. Embora eu esteja bem convencido de que o senhor não tem, para isso senão motivos cuja causa não pode ser desonrosa; no entanto este mistério, numa situação"! tão delicada, cria obstáculos a que o senhor obtenha! facilmente a assistência de um amigo. Permita-me mesmo acrescentar que certas pessoas verão no procedimento de Mac Intyre uma espécie de dom-quixotísmo 215 em medir-se com um homem cujo carácter e situação ficam envoltos em tal obscuridade. - Compreendo-o, senhor - respondeu Lovel - e embora haja nas suas palavras coisas íeitas para parecerem duras, não me ofendo com elas, porque creio que as suas intenções são boas; mas, em minha opinião, aquele a quem a sociedade em que vive não pode censurar de nenhuma acção pouco honrosa, e que sempre se conduziu como um gentleman, tem o direito de reclamar privilégios. Quanto a um padrinho, ufano-me de encontrar alguém que me queira servir; e se ele tiver neste género menos experiência do que eu poderia desejar-lhe, tenho a certeza de que não sofrerá com isso, visto ser o senhor quem serve de testemunha ao meu adversário. - A sua opinião não será errada; mas eu próprio desejo partilhar o peso de semelhante responsabilidade com alguém que seja capaz de me secundar. O brigue do tenente Taffril entrou ontem no porto; ele próprio está neste momento na cidade, onde mora com o velho Caxon. Ele é, creio eu, tão seu conhecido como meu; e pela razão que eu não hesitaria em prestar-Lhe semelhante serviço, se não estivesse comprometido pelo outro lado, estou convencido de que o senhor o encontrará disposto ao primeiro pedido... - Assim, pois, na moita dos espinhos, Mr. Lesley, às sete horas da tarde. Quais são as armas? A pistola, suponho eu.
- Exactamente; Mac Intyre escolheu a hora em que lhe será mais fácil escapar-se de Monkbarns: esteve esta manhã em minha casa às cinco horas, a fim de poder estar de volta antes de seu tio se levantar. bom dia, Mr. Lovel. E Lesley abandonou o aposento. Lovel era tão valente quanto um homem o pode ser; mas não há nenhum que possa encarar uma catástrofe semelhante à que se aproximava sem se sentir agitado por uma sensação de terror e de dúvida. Dentro de algumas horas, ele poderia ter de responder, em outro mundo, por uma acção que o seu raciocínio mais calmo lhe dizia ser injustificável aos olhos da religião; ou talvez, errante como Caim, o sangue de um irmão recaísse sobre a sua cabeça? Tudo isto podia ser evitado por uma só palavra! Mas o orgulho 216 dizia-lhe que pronunciar essa palavra agora seria atribuído a um motivo que o feriria ainda mais do que os motivos mais injuriosos que pudessem emprestar ao seu silêncio. Toda a gente, incluindo Míss "Wardour, o olharia então como um cobarde e um homem sem coração, ao qual o medo de se medir com o capitão Mac Intyre arrancara uma explicação que ele recusara às instâncias calmas e delicadas de Mr. Lesley. Aliás, a atitude insolente de Mac Intyre a seu respeito, as pretensões que ele parecia ter sobre Miss Wardour, e a arrogância, a indelicadeza e a extrema injustiça das suas perguntas a um estranho, pareciam autorizá-lo a repelir inteiramente um interrogatório tão rude. Em suma, tomou a resolução que se podia esperar de um homem tão novo, isto é, abafar a voz da fria razão para não escutar senão a do orgulho ofendido. E foi com este desígnio que
se dirigiu a casa do tenente Taffril. O tenente recebeu-o com a delicadeza de um homem de sociedade e a franqueza de um marinheiro, e não escutou sem surpresa os pormenores de que ele precedeu o seu pedido de servir de testemunha no seu encontro com o capitão Mac Intyre. Quando ele terminou, Taffril levantou-se e, dando duas ou três voltas ao aposento, disse: - Eis um caso bem singular, realmente. - Eu sinto, Mr. Taffril, o pouco direito que tenho ao serviço que lhe peço; mas a urgência da minha posição não me permite escolher. - Dê-me licença de que lhe faça uma só pergunta - disse o marinheiro - Não há nada que o faça corar nas circunstâncias que se recusou a revelar? - Não, pela minha honra, não há nada que eu não possa, dentro de muito pouco tempo", publicar à face do mundo. - Espero que esse mistério não provenha de alguma má vergonha sobre a obscuridade de seus pais, ou talvez de suas ligações? - Não, sob minha palavra. - Pouca pena terei dessa fraqueza, e não me podem realmente atribuir muita, a mim, que me veria atrapalhado para lhe descobrir a origem, a não ser a de que sou descendente do mastro grande e que penso em breve constituir uma ligação que o mundo não 217 deixará de verberar pela baixeza. Vou casar com uma jovem muito interessante, à qual me afeiçoei desde a mais tenra mocidade, quando morávamos porta com porta e eu estava longe de prever com que honra progrediria no serviço do mar. - Asseguro-lhe, Mr. Taffril, que, qualquer que fosse a categoria dos meus pais, nunca pensaria em ocultá-la por um sentimento tão mesquinho. Mas a minha situação é tal neste momento que deveres de compromisso me não permitem explicar-me a respeito da minha família. - É quanto basta - respondeu o honesto marinheiro - Dê-me a sua mão, servi-lo-ei da melhor vontade neste caso, embora ele seja bastante desagradável; mas que importa? Depois da pátria, devemos tudo à honra. O senhor é um rapaz de coração, e confesso que Mr. Heitor Mac Intyre, com a sua longa genealogia e os seus ares altivos, me parece ter todo o ar de um impertinente. Seu pai era um soldado prático como eu sou um oficial de marinha. Ele próprio que mais é? Tem toda a benevolência de seu tio: a única diferença que existe entre nós é que um procura a fortuna por terra, e outro pelo mar, o que, julgo eu, vem a dar mais ou menos o mesmo. - Absolutamente - respondeu Lovel. - Bem, então - disse o seu novo aliado - jantaremos juntos e faremos todas as nossas combinações. Espero que conheça o manejo da arma? - Não precisamente - replicou Lovel. - Lamento, porque se diz que Mac Intyre é bom atirador. - Também lamento, por ele e por mim. É preciso que eu então trate, para minha própria defesa, de visar o melhor possível. - E eu vou avisar o nosso ajudante cirurgião para se dirigir ao local indicado; é bom rapaz e hábil em reparar o dano causado por uma bala. Também prevenirei Lesley de que ele lá estará pronto, à disposição das duas partes em caso de acidente. Há alguma coisa que eu possa fazer por si? - Pouco tenho a pedir-lhe - disse Lovel - Este pequeno embrulho contém a chave da minha secretária, que encerra os meus papéis secretos. Há uma carta na secretária -a voz traía-lhe o coração oprimido -que 218
lhe peço-por favor que seja entregue por sua própria mão. - Compreendo-o - disse o marinheiro - Não, meu amigo, não core por causa disso: uma lágrima vertida em recordação de um terno afecto, mesmo no momento de uma acção, não desonra um homem sensível. Creia-me, quaisquer que sejam as suas recomendações, Daniel Taffril respeitá-las-á como últimas vontades de um irmão moribundo. Mas, que estupidez! Vamos, precisa de se preparar para o combate; janta comigo e com o meu pequeno cirurgião nas Armas de Greme, no outro lado da rua; às quatro horas-, a pequena estalagem que o senhor conhece. - De acordo -disse Lovel. - Está combinado - confirmou Taffril; e separaram-se. Era uma bela tarde de Estio, e a sombra de uma solitária moita de espinhos estendia-se suavemente, pela verde relva do estreito vale debruado pelos bosques que cercavam a abadia de Santa Ruth.
Lovel e o tenente Taffril, acompanhados do cirurgião, dirigiram-se ao prado com intenções bem opostas ao carácter calmo, tocante e aprazível que o lugar e a hora respiravam. As ovelhas que, durante o calor escaldante do dia, se tinham recolhido nas cavidades que lhes ofereciam as rochas onde se encontram as raízes das velhas árvores desfolhadas, espalharam-se pela superfície da montanha para tomarem o repasto da tarde, chamando-se umas às outras por balidos dolentes que animam a paisagem e ao mesmo tempo difundem um quê de solidão. Taffril e Lovel chegaram embrenhados numa conversa séria. com receio de que os cavalos os fizessem descobrir, tinham-nos reenviado para a cidade pelo criado do tenente. Os seus antagonistas ainda não tinham chegado; mas ao aproximarem-se do terreno, viram, sentado nas raízes de um velho espinheiro, um vulto tão vigoroso no seu declínio como os ramos nodosos e cobertos de musgo que protegiam de sombra a sua cabeça. Era o velho Ochiltree. - Isto é embaraçoso - disse Lovel - Como nos havemos de livrar deste velhote? - Venha cá, tio Edie - gritou-lhe Taffril, que conhecia o mendigo havia muito tempo - Aqui tem 119 meia coroa; preciso de que vá à Quatro Ferraduras do Caualo, a pequena estalagem que o senhor conhece lá em baixo. Pergunta se um criado de libré azul e amarela já chegou; se lá não estiver ainda, espere-o, e diga-lhe que nos reuniremos ao seu amo dentro de pouco mais de uma hora. Em qualquer caso, fique na estalagem até nós regressarmos. Vamos, siga, levante ferro. - Agradeço a sua esmola - disse Ochiltree, metendo o dinheiro no bolso -mas peço-lhe desculpa, Mr. Taffril; não posso fazer o seu recado neste momento. - E porque não, homenzinho? Que é que o impede? - Tenho uma palavra a dizer ao jovem Mr. Lovel. - A mim? - perguntou Lovel - Que quer dizer-me? Vejamos, fale, seja breve. O mendigo, afastando-se com ele uns passos, disse: - O senhor deve alguma coisa ao laird de Monkbarns? - Se eu devo? Não, realmente. Porquê? Que foi que o levou a supor isso? - Fique sabendo que estive hoje em casa do sheriff, porque, graças a Deus, deambulo por todos os lados como uma alma penada; e quem eu vi lá chegar todo azafamado em cadeira de posta não foi outro senão o próprio Monkbarns; e sabe-se que não é por dá cá aquela palha que Sua Honra aluga
uma cadeira de posta dois dias seguidos. - Bem, e que tenho eu com isso? - Oh! O senhor vai ouvir. Pois bem, Monkbarns fechou-se com o sheriff, enquanto as outras pobres pessoas ficavam à porta. O senhor não duvida disto; estes gentlemen são sempre tão delicados uns com os outros! - Por amor de Deus, meu velho amigo... - Porque não me manda já para o diabo, Mr. Lovel? Mais valia do que pronunciar o nome de Deus com tal impaciência. - Mas tenho aqui um negócio urgente com o tenente Taffril. - Bem, bem! Não há tempo perdido - disse o mendigo- Eu posso tomar certas liberdades com Mr. Daniel Taffril; trabalhei mais de uma vez para ele; 220 porque eu exerci o ofício de marceneiro tão bem como o de caldeireiro. - Está louco, Edie, ou quer que eu endoideça?
- Nem uma coisa nem outra - replicou Edie, trocando bruscamente o tom arrastado de mendigo por um tom mais breve e decidido - O sheriff mandou chamar o seu escriturário, que é um rapaz com a língua demasiado comprida, e eu descobri que ele mandava passar um mandado de prisão contra o senhor. Julguei que era uma detenção por dívidas, porque toda a gente sabe que o laird não gosta de que lhe mexam na algibeira. Mas tenho de me calar. Já vejo além o jovem Mac Intyre e Mr. Lesley, e adivinho agora que a intenção de Monkbarns era melhor do que a que os traz aqui neste momento. Os antagonistas então aproximaram-se e cumprimentaram-se com a fria delicadeza adequada àquela circunstância. - Que faz aqui, velho mendigo? -indagou Mac Intyre. - Sou um velho mendigo - respondeu Edie - e sou também um velho soldado de seu pai, e servi com ele no 42.º. - Servisse onde lhe aprouvesse, isso não o autoriza a vir aqui perturbarnos - disse Mac Intyre - Deixe-nos, senão... E levantou a bengala para assustar o velho, embora sem intenção de lhe bater. Mas a coragem de Ochiltree excitou-se com este insulto. - Baixe a bengala, capitão Mac Intyre. Eu sou um velho soldado, como já lhe disse, e tenho suportado muito do filho de seu pai, mas não me deixarei tocar enquanto o meu pau ferrado me defender. - Vamos, vamos, procedi mal, concordo; tome lá esta coroa e siga o seu caminho. Então, que mais quer ainda? O velho endireitou-se de forma a destacar a sua' estatura; e apesar do seu vestuário, que, no entanto, mais se parecia com o de peregrino do que com o de um vulgar mendigo, pela sua corpulência pouco normal, pela energia da sua voz e dos seus gestos, todos o tomariam por um viajante dos lugares santos, ou por um eremita pregador, dando conselhos espirituais aos jovens que o cercavam, mais do que um alvo da 221 sua caridade. As suas palavras eram em verdade tão simples como a sua vestimenta, mas tão ousadas, tão enérgicas como a sua atitude desassombrada e imponente. - Que vindes aqui fazer, jovens? - disse ele, dirigindo-se aos seus ouvintes surpreendidos - Vindes ao meio das belas obras de Deus para faltar às suas leis? Deixastes as obras dos homens, as suas cidades e as suas casas, que tal como eles não passam de lama e poeira, para vir a estas montanhas sossegadas, ao lado destas águas tranquilas que durarão enquanto o mundo for mundo, e isso para vos destruirdes um ao outro e
arrancardes uma vida cujo termo já é curto segundo as leis da natureza, e da qual tereis de dar longas e terríveis contas? ó meus filhos! Não tendes pais, irmãos, irmãs que vos cuidaram, mães que tanto sofreram para vos trazer ao mundo, e amigos que vos consideram1 uma parte da sua carne e dos seus ossos? E quereis assim privá-los dos seus filhos, dos seus irmãos e dos seus amigos? Ai, triste combate esse em que o vencedor é o mais infeliz! Pensai nisso, meus amigos. Não passo de um pobre homem; mas também sou um velho; e os meus cabelos grisalhos, e sobretudo a sincera convicção que dita as minhas palavras, devem, creio eu, dar-lhes vinte vezes mais força que o peso da minha pobreza não lhes pode retirar. Qualquer dia, os franceses vêm atacar-nos (1); então, não vos faltam combates, e talvez o velho Edie se arraste atrás de vós, se puder encontrar uma trincheira para aí pousar a sua espingarda, e ele ainda poderá viver bastante tempo para vos dizer qual dos dois sabe bater-se melhor, quando se tratar de uma boa causa. Havia no tom intrépido e independente do velho, na energia dos seus sentimentos e na sua máscula e rude eloquência alguma coisa que produziu o seu efeito no jovens, sobretudo nas testemunhas, cujo orgulho não estava interessado em que o conflito tivesse um desfecho sangrento, e que, pelo contrário, espreitavam o momento de propor uma reconciliação. (1) Esperava-se por essa época a invasão da Inglaterra por Napoleão. - N. do T. 222 - Palavra de honra, Mr. Lesley, o velho Edie falou como um oráculo disse Taffril -Os nossos amigos aqui presentes estavam ontem muito irritados e por conseguinte muito desarrazoados. Creio que, tanto de um lado como do outro, a palavra de ordem deveria ser esquecimento e perdão; que todos devemos apertar a mão, deitar fora essas malditas armas, e irmos cear juntos à Armas de Grazme. - Sou sinceramente da sua opinião - declarou Lesley - pois, no meio de muito calor e de irritação de parte a parte, confesso que não sou capaz de descobrir nenhum motivo razoável para se baterem. - Meus senhores - disse Mac Intyre friamente era antes que deviam ter pesado tudo isso. Em minha opinião, pessoas que, depois de terem levado uma questão tão longe, se separassem em seguida sem a ter terminado, poderiam ir cear muito alegremente à Armas de Grazme, mas levantar-se-iam amanhã com uma reputação tão esfarrapada como a vestimenta do nosso amigo orador, que veio mostrar-nos uma eloquência sem a qual teríamos passado muito bem. Falo-lhes assim por mim, vejo-me constrangido a pedir-lhes que acabem sem demora. - E como eu também nunca desejei nenhuma disse Lovel - peço a estes senhores que queiram regular os preliminares tão rapidamente quanto possível. - Crianças! Crianças! - bradou o velho Ochiltree; mas vendo que já não o escutavam - Loucos! deveria eu dizer: que o sangue recaia sobre vossas cabeças! O velho retirou-se então do terreno, que foi medido pelas testemunhas, enquanto ele continuava a falar com ele próprio e a murmurar com sombria indignação, mesclada, porém, de um vivo sentimento de inquietação e de uma dolorosa curiosidade. Sem se preocuparem mais com a sua presença ou com a sua reprimenda, Lesley e o tenente fizeram os preparativos necessários para o duelo, e ficou convencionado que as duas partes disparariam ao mesmo tempo que Lesley deixasse cair o seu lenço. Foi dada a indicação fatal, e os dois tiros soaram quase ao mesmo tempo. A bala do capitão Mac Intyre roçou pelo seu adversário, mas não lhe provocou sangue; a de Lovel foi mais fiel ao alvo. Mac Intyre cambaleou e
caiu; mas, soerguendo-se sobre um braço, 223
a sua primeira exclamação foi: "Não é nada, não é nada; dêem-nos as outras pistolas". No entanto, ajuntou um momento depois, numa voz mais fraca: "Creio que tenho a minha conta; e, o que é pior, julgo não ter senão o que mereço. Mr. Lovel, ou qualquer que seja o seu nome, fuja, salve-se... São todos testemunhas de que fui eu quem provocou esta questão". Depois, soerguendo-se ainda no braço, ajuntou: "Lovel, dê-me a sua mão; estou convencido de que o senhor é um gentleman: perdoe a minha impertinência como eu lhe perdôo a minha morte... Minha pobre irmã!... " O cirurgião chegou para desempenhar o seu papel naquela tragédia; Lovel permanecia imóvel a contemplar o mal de que era a causa activa, embora involuntária, de olhos desvairados. Foi arrancado ao seu torpor pelo mendigo. - Para que fica aí a ver a sua obra? O que é ordenado deve-se cumprir; o que está feito já não se pode emendar. Fuja, se quer salvar a sua juvenil cabeça de uma morte vergonhosa. Vejo vir lá em baixo os homens que chegam demasiado tarde, mas, ai! ainda bastante e demasiado cedo para o levar à cadeia. - Ele tem razão. Tem razão! - exclamou Taffril Não se deve expor a seguir pela estrada; embrenhe-se nos bosques até à noite; o meu brigue estará preparado, e às três da madrugada, se a maré for boa, mando um barco esperá-lo a Mussel Crag. Mas fuja, fuja, por amor de Deus. - Ah! Sim, sim, fuja! - repetiu o ferido, cuja voz era entrecortada por movimentos convulsivos. - Venha comigo - disse o pedinte, arrastando-o quase à força - O conselho do tenente é o melhor. Vou conduzi-lo a um lugar onde poderá ficar escondido, mesmo que eles lançassem cães de caça em sua perseguição. - Vá, vá - apoiou o tenente - ficar aqui é uma verdadeira loucura. - Foi muito maior ter vindo - replicou Lovel, apertando-lhe a mão - Mas adeus. E seguiu Ochiltree para as profundezas do bosque. 224 XXI O senhor abade tinha uma alma de fogo e que reunia também todas as propriedades, ardente, subtil e penetrante. Descia por escadas magníficas a profundidades subterrâneas semelhantes ao inferno, como se o ouro estivesse confiado á guarda dos demónios pois é certo que ele o trazia de lá. Esse ouro estava oculto em "caves" que não são conhecidas senão por mim. A Maravilha de um Reino
Lovel seguia quase maquinalmente o velho, que o conduzia num passo firme e rápido através dos soutos e das moitas, evitando a senda calcada e voltando-se muitas vezes, a fim de verificar se alguém os perseguia. Umas vezes, desciam mesmo ao leito da torrente, outras seguiam uma vereda estreita e pouco segura, que as ovelhas - que deviam à negligência que se nota geralmente na Escócia em propriedades deste género, a liberdade de pastar nos bosques - tinham traçado na sua orla. De vez em quando, Lovel podia avistar a senda que percorrera na véspera, na companhia de sir Arthur, do Antiquário e das jovens. Abatido, desorientado, agitado por mil inquietações como se encontrava então, quanto não teria ele dado para
reencontrar aquele sentimento interior de inocência que, só ele, pode contrabalançar tanto mal! "E se como eu estava então - pensava ele involuntariamente, na sua turbação - isento de censuras e estimado pelos que me cercavam, achava ainda de que me queixar, que direi eu agora que minhas mãos estão tintas do sangue daquele jovem? Agora, que o sentimento de orgulho que me levou a este acto me abandona, como o próprio demónio abandona, diz-se, o mortal que acaba de arrastar ao crime", Tudo, até a sua afeição por Miss Wardour, foi por um momento esquecido perante as primeiras angústias do remorso. E ele pensava que consentiria com alegria em suportar os tormentos de um amor desdenhado, 225 para poder reencontrar-se como estava de manhã, com uma consciência pura e aliviada do peso esmagador de ter vertido sangue de outrem. Estas dolorosas reflexões não foram interrompidas pela conversa do seu guia, que, precedendo-o através do souto, ora afastava os ramos para lhe tornar a passagem mais fácil, ora o exortava a apressar-seg e murmurava entre dentes, segundo o costume de uma velhice muitas vezes solitária e descuidosa, palavras que teriam escapado ao ouvido de Lovel, mesmo que ele estivesse mais atento, e que, ainda que as ouvisse, eram demasiado soltas e desconexas para formarem um sentido bem ligado. Este hábito de falar só se observa por vezes nas pessoas de idade e da profissão do mendigo. Por fim, Lovel, enfraquecido pela sua recente indisposição, pelas angustiosas sensações que o agitavam e pelos esforços que tivera de fazer para seguir o seu guia por um caminho tão escarpado, começava a afrou xar e a ficar para trás, quando dois ou três passos perigosos o levaram de repente à beira de um precipício quase inteiramente coberto de sarças. Aí, uma caverna, cuja entrada era tão estreita como uma toca de raposa, estava indicada por uma pequena fenda na rocha, coberta pelos ramos de um velho carvalho, que, segurando-se sòlidamente à parte superior da rocha por raízes grossas e tortuosas, lançava para diante as suas longas ramagens, bastante pendentes para ocultarem perfeitamente a entrada do subterrâneo. Até podia escapar à atenção dos que se encontrassem muito perto, de tal modo a fenda pela qual o mendigo deslizou parecia inacessível; mas o interior da caverna era mais alto e mais espaçoso do que se poderia imaginar. Dois ramos opostos, que se juntavam no meio, formavam o emblema da cruz e indicavam que aquele lugar servira outrora de retiro a algum anacoreta. Há muitas grutas desta espécie em diversas partes da Escócia. Não citarei senão a de Gorton, perto de Rosslyn, sítio bem conhecido dos admiradores de uma natureza pitoresca. A claridade que recebia não passava de um crepúsculo incerto, que cessava totalmente quando se mergulhava nas profundezas. - Poucas pessoas conhecem este luga - disse o 226 velho -Tanto quanto me recordo, agora não existem mais que duas pessoas, sem contar comigo, que são Jingling Jock e Lang Linker... Já pensei mais de uma vez que, quando me sentir demasiado velho, abandonado, incapaz de gozar por mais tempo os bens do ar, arrastar-me-ei até aqui, com uma pequena provisão de farinha de aveia, e, veja, há ali uma nascente que corre sempre, Verão e Inverno, e nada de melhor terei a fazer senão instalar-me aqui à espera do meu fim, como um cão velho que arrasta, para o canto de uma moita ou para dentro de algum fosso" a sua feia e mutilada carcaça, para poupar a vista aos vivos quando morrer; e depois, quando os cães ladrarem à porta da granja isolada, a dona da casa bradará: "Silêncio! Silêncio! É o velho Edie! " E os pequenitos virão em seu passinho incerto até a porta para a abrir ao velho do roupão azul que
lhes conserta os brinquedos. Mas então já não haverá mais Edie. Conduziu Lovel, que o seguia sem resistência, a uma das cavidades interiores da caverna. - Aqui - disse ele - há uma pequena escada de caracol que comunica com a velha igreja. Há pessoas que dizem que este lugar foi perfurado pelos monges, há muito tempo, para nele ocultarem os seus tesouros; outros ajuntam que eles tinham por costume introduzir durante a noite, na abadia, coisas que não se preocupavam em trazer abertamente e em pleno dia; e há quem conte também que um deles se tornou santo (ou talvez o quisesse fazer acreditar), e que se instalou na cela de Santa Ruth (era assim que o povo outrora chamava a este local) e que foi ele quem construiu esta escada a fim de poder subir à igreja quando se celebrava o ofício divino. O laird de Monkbarns teria de que falar sobre este assunto (como o faz por vezes sobre coisas de somenos) se acaso conhecesse este lugar. Mas quem pode decidir se ele foi feito para servir aos desígnios do homem ou ao serviço de Deus? Vi acontecer muita coisa no meu tempo, e eu próprio tomei parte em muitas outras, sim, nesta mesma caverna sombria. Mais de uma dona de casa se admirava de não ouvir cantar de manhã o galo caseiro, quando nós o tínhamos assado neste escuro buraco, pobre bicho!... Ai, eu desejaria nunca ter 227 feito pior do que isso! Que barulho nós fazíamos aqui, mesmo no meio das entranhas da terra, e que terrores causámos a Sanders Aikwood, que era guarda florestal nesse tempo, e que é o pai de Rigan, que vive ainda, quando ele ia à noite, batendo os bosques e vigiando a caça do laird, e avistava o clarão dos archotes que passava pela abertura da caverna, e projectava aqui e além o seu brilho sobre as nogueiras que estão defronte! Era ouvir depois Sanders contar as suas histórias de espíritos e feiticeiros que povoavam o bosque de noite, e de fogos que ele vira, e de gritos que lhe chegavam aos ouvidos, quando não havia outros olhos abertos senão os dele! E era a mim e aos meus companheiros a quem vinha repetir as suas histórias de aparições, e era ver como eu lhe pagava na mesma moeda e tinha sempre à mão um conto para cada um dos seus, embora no fundo soubesse um pouco melhor do que ele a que ater-me! Sim, sim, pregámos mais de uma boa partida. Mas, ai, tudo isso não passava de vaidade e loucura, e é justo que quem levou uma vida de dissipação e futilidade, e que abusou dos seus meios durante a juventude, lhes sinta a falta, agora que está velho.
Enquanto Ochiltree contava assim os ardis e as façanhas dos seus primeiros anos, num tom em que a facécia e o arrependimento dominavam cada um por sua vez, o seu triste companheiro sentara-se no banco do eremita, cavado na rocha, e abandonava-se àquela lassidão de espírito e de corpo que geralmente se segue às agitações que ambos experimentaram. A enfermidade recente, que muito debilitara a sua constituição, contribuía bastante para aquele abatimento letárgico. "Pobre rapaz - pensou o velho Edie - se ele passar a noite neste subterrâneo húmido, talvez nunca mais acorde ou talvez apanhe alguma doença perigosa. Ele não é como nós, que podemos dormir em toda a parte, quando temos o estômago cheio". - Levante-se, Mr. Lovel, meu rapaz. No fim de contas, apostaria em como o jovem capitão se safa desta, e, depois, o senhor não é o primeiro a quem sucede semelhante desgraça. Já vi matar mais de um homem, e eu próprio ajudei a matar mais de um, embora não houvesse questões entre nós; e se não é crime matar pessoas com quem não estamos em 228
conflito, mas somente porque trazem outro distintivo no chapéu, não vejo porque não haja desculpa para aquele que mata o seu inimigo mortal, que veio a terreno, armado contra a sua vida. Não digo que isso esteja bem, Deus me livre! E que não seja um grande pecado tirar a um homem o sopro que Deus lhe deu e que ninguém lhe pode restituir; mas digo que é um pecado que o arrependimento deve fazer perdoar. Nós todos não somos senão pecadores; mas, se o senhor quiser escutar uma velha cabeça grisalha que reconheceu os seus antigos erros, há nas promessas do Velho Testamento com que salvar o mais perverso de entre nós, contanto somente que ele queira e creia. Foi com semelhantes encorajamentos e fragmentos de devoção que sua memória lhe pôde fornecer que o mendigo se esforçou por atrair e forçar a atenção de Lovel, até que a noite sucedeu ao crepúsculo. - Agora - disse Ochiltree - vou levá-lo a um lugar mais cômodo, onde eu próprio me detive mais de uma vez a ouvir o grito da coruja entre a era tufada e a ver o nascer da lua das velhas janelas destas ruínas. Ninguém vem aqui a esta hora da noite, e esses velhacos dos agentes do sherifj e dos oficiais de polícia devem ter cessado as suas pesquisas. Garanto-lhe que, apesar dos seus mandados e das suas chaves do rei (1), são tão grandes poltrões quanto possa haver. Cheguei-lhes algumas vezes, no meu tempo, quando não estavam muito longe de mim; mas, graças a Deus, agora não têm outro direito sobre mim senão como sobre um velho e um mendigo, e a minha placa é uma boa protecção; e, depois, Miss Isabel Wardour ainda é para a minha pessoa um apoio mais sólido, sabe? - Lovel suspirou - bom, bom, não se deixe abater A partida ainda não está perdida... dê-lhe tempo para saber o que ela quer. É a flor do país pela beleza, e é também para mim uma boa amiga e uma protectora. Eu passo presentemente ao lado da casa de correcção, com tanta segurança como junto da (1) Chaves então usadas para forçar fechaduras e arrombar portas, por mandado do rei, ou em nome da lei. - N. do T. 229 igreja em dia de domingo. Diabos me levem se algum deles ousaria tocar num cabelo da cabeça do velho Edie, agora! Sigo pelo passeio, quando vou à cidade, e roço pela manga do próprio bailio, com tanta tranquilidade como se passasse junto de uma panela velha. Assim falando, o mendigo, a um canto da caverna, tratava de retirar umas pedras que caíam quase por si, e que obstruíam a entrada da escada de que já falara; feito isto, subiu à frente e Lovel seguiu-o num silêncio passivo. - O ar circula bastante bem aqui - disse o velho
- os monges tiveram cuidado nisso, porque era uma geração que não tinha o fôlego longo; eles fizeram pequenas aberturas que dão acesso ao ar livre e mantêm a escada tão fresca como um pé de couve. Lovel achou realmente a escada bem arejada; embora pouco larga, nem estava arruinada nem era comprida, e conduziu-os rapidamente a uma galeria estreita que, pelo interior, seguia ao longo da parede que cercava a igreja, e recebia o ar por meia de pequenas aberturas engenhosamente dissimuladas nos ricos ornamentos da arquitectura gótica. - Esta passagem secreta circula em volta de uma grande parte do edifício - disse o mendigo - e ao longo da parede do local a que Monkbarns chama o refratório (queria provavelmente dizer refeitório) e estende-se em seguida até à cela do abade. É provável que se servisse disto para escutar o que os frades diziam durante o repasto; depois do que podia
voltar para aqui e certificar-se de que eles estavam ocupados em cantar os Salmos. Depois, quando tinha a certeza de que tudo estava em ordem, podia descer para aqui, e fazer entrar uma bonita rapariga pelo subterrâneo, porque eram uns bons pândegos esses monges! A menos que tenham dito deles muitas mentiras. Mas, depois, os que tiveram conhecimento destes lugares têm tido muito trabalho em murar esta passagem em alguns sítios e em abatê-la noutros, com receio de que algum importuno aqui se introduzisse e descobrisse as partidas que vinham aqui pregar. Em verdade, seria para nós um mau negócio. com certeza, alguns dos nossos pescoços ressentir-se-iam disso. Chegaram em seguida a um sítio onde a galeria 230 se alargava e formava um pequeno círculo suficiente para conter um banco de pedra. Um nicho, construído precisamente em frente, avançava em saliência pela igreja, e como os seus ornamentos rendilhados, que lhe cobriam os lados, formavam uma espécie de encaniçado, dali se descobria facilmente tudo o que se passava no interior da nave. Este local, como dizia Edie, fora verosimilmente imaginado como uma espécie de posto secreto de onde o superior da ordem podia vigiar o procedimento dos seus monges e certificar-se, por inspecção pessoal, de que eles eram rigorosos no cumprimento daqueles ritos de devoção de que a sua categoria o dispensava de tomar parte. Como este nicho pertencia a uma série de nichos semelhantes que se estendiam ao longo da parede da igreja, e nem de qualquer modo diferia deles pelo exterior, dissimulado como estava pela estátua de São Miguel e do dragão e pelos ornamentos rendiLhados que o cercavam, era impossível notar-lhe a existência. A galeria secreta, retomando a sua primitiva largura, estendera-se, na origem, para além deste banco; mas as inquietas precauções dos vagabundos que anteriormente tinham frequentado a caverna de Santa Ruth, inspiraram-lhes murar cuidadosamente esse lugar com pedras de talha que tiraram das ruínas.
- Estamos melhor aqui - disse Edie, sentando-se no banco de pedra, estendendo por baixo uma parte do seu roupão azul e fazendo sinal a Lovel para se sentar ali. - Estamos melhor aqui do que lá em baixo, o ar é mais vivo e mais leve, e o perfume dos goiveiros e de outras plantas que crescem na parede arruinada é bem mais saudável do que as exalações húmidas que se respiram lá em baixo. Cheiram muito melhor de noite, estas flores, e encontramo-las quase sempre no meio de edifícios arruinados; o senhor, que é um sábio, Mr. Lovel, não poderia dar-me uma explicação disto? Lovel respondeu negativamente. - Elas fazem-me pensar nas boas qualidades de certas pessoas - prosseguiu o mendigo - que são mais flagrantes na adversidade; talvez também seja uma parábola para nos ensinar a não desprezar os que mergulharam nas trevas do pecado ou que estão carregados de tribulações, mostrando-nos que Deus envia 231 perfumes para refrescar os lugares mais sombrios, e que faz crescer as flores e as plantas odoríferas nos velhos edifícios arrumados. Eu gostaria de que um sábio me pudesse dizer se o céu vê com mais prazer o espectáculo que temos agora perante os nossos olhos, deste belo luar que espalha tão pacificamente os seus grandes raios pelo pavimento desta velha igreja, e cujo reflexo também chega ao meio das colunas e dos suportes destas janelas góticas esculpidas, enquanto a cada sopro, o
vento agita além a era sombria, lança sobre ela uma trêmula claridade; gostaria de saber, disse eu, se este espectáculo não é mais agradável aos olhos de Deus do que quando a igreja era iluminada por círios, lâmpadas e archotes, e nela sem dúvida se queimava o incenso e a mirra de que fala a Escritura; quando sem dúvida nela ecoava a voz dos cantores e das cantoras, o som do órgão, dos tímpanos e de outros instrumentos. Eu pergunto se ele teria prazer com essa vista, ou se não era como nas cerimonias da idolatria, de que a Escritura diz: Elas são abominação. Mas eu penso, Mr. Lovel, que se as preces de dois pobres pecadores, como o senhor e como eu, podem obter a graça perante... - Chiu! - sussurrou Lovel, pousando vivamente a mão no braço do mendigo Chiu! Ouvi alguém falar. - Tenho o ouvido um pouco duro - respondeu Edie, em voz baixa - Mas devemos estar aqui em segurança De onde vem o som? Lovel apontou a porta da nave situada no lado oeste do edifício. Esta porta, coberta de ornamentos de arquitectura, era encimada por uma janela em ogiva de uma escultura não menos notável, e que recebia nesse momento ondas de luz argêntea. - Aliás, não pode ser nenhum dos meus homens disse Edie no mesmo tom de precaução - Não há senão duas pessoas que conhecem este lugar, e elas encontram-se a mais de uma milha daqui, se acaso não acabaram já a sua triste peregrinação. Eu nunca acreditaria que pudessem ser os oficiais a esta hora da noite, e não creio nos contos de fantasmas que narram as pobres mulheres, embora isto aqui seja um lugar apropriado. Mas, quer eles venham deste mundo ou do outro, ei-los! São dois homens com uma lanterna. 232 Efectivamente, enquanto o mendigo falava, a sombra de dois vultos humanos desenhou-se à entrada da nave, da qual abriram a porta que dava para o prado, iluminada em cheio pela lua. E a pequena lanterna, que um deles trazia, lançava uma claridade tão fraca junto dos intensos raios daquele astro, como a estrela da tarde, quando ela se mostra entre os derradeiros palores do dia. A primeira ideia e a mais natural era que, em despeito das afirmações de Edie, as pessoas que se aproximassem das ruínas a uma hora tão extraordinária, devessem ser oficiais de justiça em perseguição de Lovel. No entanto, nada na atitude delas justificava essa opinião. Um sinal do velho pedinte e umas palavras pronunciadas ao ouvido advertiram então o jovem de que o melhor partido que tinha a tomar, era ficar quieto e vigiar-lhes os movimentos do lugar onde se ocultavam. Se sobreviesse algum incidente que tornasse necessária a sua retirada, tinham atrás deles a pequena escada secreta que os conduziria à caverna, pela qual podiam fugir para os bosques, muito tempo antes de correrem o- risco de serem perseguidos de perto. Mantiveram-se, pois, tão quietos quanto possível, observando com ávida curiosidade todos os movimentos daqueles passeantes nocturnos. Depois de terem conversado uns momentos -em voz baixa, os dois vultos avançaram até o meio da nave, e uma voz, que Lovel reconheceu logo pelo som e pela pronúncia como a de Dousterswivel, disse, num tom um pouco mais alto, embora receoso ainda: - Em verdade, meu bom senhorr, não pode haver horra e ocasião mais propícia para este grande desígnio. Já vai ver que Mr. Oldenpuck disparata, e não conhece do assunto mais do que uma crriança. Palavra, ele esperrava tornar-se tão rico como um judeu pela míserra quantia de cem libras esterlinas, com as quais eu me preocupo tanto, sob minha palavrra de homem honrrado, como com cem míserros dinheirros. Mas é a si, meu muito generroso e respeitável patrrão, que eu querro mostrar todos os
segredos que a arte pode desenvolver, sim, mesmo o segredo do grande Pymander. - O outro - disse Edie, baixinho - não pode ser senão sir Arthur Wardour; não conheço ninguém senão 233 ele que possa vir aqui a esta hora com este velhaco do alemão. Dir-se-ia que o embruxou; verdadeiramente, fá-lo-ia tomar giz por queijo... Vejamos o que eles vão fazer. Esta interrupção fez perder a Lovel a resposta de sir Arthur, tanto mais que este falava em voz baixa; não entendeu senão estas duas palavras em que o baronnet se apoiou: "muita despesa"; ao que Dousterswivel respondeu prontamente:
- Despesa... certamente... isso requer grandes despesas... o senhor não pode esperar colher antes de ter semeado... a semente é a despesa... As riquezas e os metais que as grandes minas oferecem, e também as grandes e pesadas caixas repletas de prataria, são a colheita, palavrra de honrra... Ora, os dez guinéus que o senhor semeou esta noite, sir Arthur, são uma pequena pitada de semente, pouco mais ou menos, como uma pitada de rapé; e se o senhor não colher já uma abundante searra, isto é, abundante relativamente à semente, pois, como sabe tudo deve ser em proporção, Herman Dousterswivel nunca poderá chamar-se un homem honrrado. O senhor vê agorra, meu bom patrrão este pequeno quadrante de prata... O senhor sabe que a Lua percorre todo o zodíaco, e no espaço de vinte e quatro dias... não há crriança que não saiba isto; pois bem, eu pego neste quadrante de prrata quando ela está na sua décima quinta estação e gravo de um lado as palavras schedharschemoth schartachan; é o emblema da inteligência da Lua... depois traço a sua figura sob a forma de uma serpente voadora com uma cabeça de peru; bem... depois, do outro lado faço uma mesa da lua, que é um quadrado de nove que se multiplica por oitenta números de cada lado, e nove em diâmetro; ora, isto servir-me-á em cada mudança de quarto de lua, a fim de poder encontrar o produto da despesa que farei em fumigação, e que deve ser o que nove é em nove multiplicado por ele próprio... Mas esta noite talvez não encontre mais de duas ou três vezes nove, porque há nos astros uma influência contrárria. - Mas, Dousterswivel - disse o ingênuo baronnet isso não se parece com a magia? Eu sou um servo fiel, embora indigno, da igreja episcopal, e não quero relacionar-me com o espírito imundo. 234 - Orra, orra, não há a menorr magia nisto; tudo se baseia na influência planetárria, na simpatia e na força dos números... Eu lho demonstrarrei... Não digo, porém, que as fumigações não evoquem um espírrito, mas se o senhor tiver medo, ele ficarrá invisível. - Não tenho nenhuma vontade de o ver - disse o baronnet, cuja pronúncia acusava uma certa tremura que parecia anunciar que a sua coragem sofrera um acesso de febre. - Tenho muita pena - disse Dousterswivel - porque gostaria de lhe mostrar o espírito que se assemelha a um cão ferroz, para guarda deste tesourro. Mas eu conheço maneira de o demosticar. Não tem empenho em vê-lo? - Absolutamente nenhum - disse o baronnet, afectando um ar de indiferença - Aliás, julgo que não temos tempo a perder. - Desculpe, meu patrrão, ainda não é meia-noite, e meia-noite em ponto é a nossa horra planetárria. Eu poderia, pois, mostrrar-lhe muito bem o espírrito, entretanto, só para o distrrair. Olhe, eu traçava um pentágono
no interrior de um círculo, o que é muito fácil, e aí nós estaríamos como num castelo forte, e o senhor empunharria a espada, enquanto eu recitasse as palavrras necessárrias. Então, o senhor verria a parrede sólida abrrir-se de repente como a porta de uma cidade e... depois vejamos. Ah, sim! O senhor verria primeiro um veado perseguido por trrês cães de caça prretos que o abaterriam como se ele fosse a caça do grrande eleitor... e depois um patife de um negrinho surgirria e arrebatava-lhes o viado e... pf... tudo se sumirria... Depois, o senhor ouvirria trompas de caça soar de maneira a fazer ecoar as ruínas... Palavra que eles tocarriam árrias de caça tão belas como as de Fischer no seu oboé. Em seguida, virria um arauto com sua trompa; depois surgirria o grrande Peolphan, chamado o grande caçador do Norte, montado no cavalo prreto. Mas o senhor não se preocupa em ver tudo isso. - Bem vê que eu não tenho medo - respondeu o baronnet - se... isto é... não podem suceder grandes desgraças em semelhantes ocasiões? - Ora, desgraças, nenhumas. Por vezes, porém, se 235 o círculo não estiver completamente justo, ou se aquele que o olha for um poltrrão que se deixa aterrorizar e não tiver a espada firme e dirreita diante dele, então o grrande caçador aprroveita para o atrrair fora do círculo e estrangulá-lo. Isso já se viu algumas vezes. - Bem, Dousterswivel, com toda a espécie de confiança na sua habilidade e na sua coragem, deixaremos esta noite de lado a aparição, e ocupar-nosemos do assunto que aqui nos trouxe. - De todo o meu corração, isso para mim é absolutamente a mesma coisa; eis chegada a horra, segurre a espada enquanto eu acendo um bocado de madeirra. Douterswivel lançou em seguida fogo a bocadinhos de madeira preparados com uma substância betuminosa que os fez arder muito depressa, e quando a chama atingiu o seu maior brilho, cobrindo as ruínas com a sua claridade fugaz, o alemão lançou-lhe um punhado de perfumes que espalharam um aroma forte e penetrante. O exorcista e o seu discípulo foram ao ponto de tossirem e espirrarem violentamente, e como o vapor se elevou em volta das colunas do edifício e penetrou através das aberturas, produziu o mesmo efeito em Lovel e no mendigo. - Isto é o eco? - perguntou o baronnet, admirado do espirro que acabava de soar por cima dele; e aproximando-se do alemão -Ou será o espírito de que falou a troçar dos nossos esforços para descobrir os seus tesouros ocultos? - Não, não - balbuciou o outro, que começava a partilhar dos terrores do seu discípulo. Nesta altura, uma violenta explosão de espirro que o mendigo não conseguiu reter, e que de forma alguma podia passar pelo som atenuado de um eco, acompanhado de um ruído abafado semelhante a tosse longamente contida, veio consternar os dois pesquisadores de tesouros. - O Senhor tenha piedade de nós! - pronunciou o baronnet. - Alie guten Geistern loben den Herrn(1)! - exclamou (1) Todos os bons espíritos amem o Senhor. - N. do T. 236 o químico, aterrado - Começo a pensar - ajuntou ele - que isto se arria melhor em pleno dia... e que, por agorra, ser mais segurro retirrar. - Impostor miserável! - bradou o baronnet, em quem estas palavras despertaram de repente uma suspeita, que, ligando-se ao sentimento de desespero que lhe causava a perspectiva da sua ruína próxima, se sobrepôs a todo o seu terror - Vil charlatão, são ainda as tuas habilidades para te eximires à execução das tuas promessas, como já tem acontecido muitas
vezes; mas, por Deus, esta noite saberei a quem me confiei quando me deixava conduzir cegamente por ti à minha ruína. Continua, quero eu; demónio ou mágico, hás-de mostrar-me esse tesouro, ou tomar-teei por um velhaco e um impostor, e, pela minha fé de homem perdido e reduzido ao desespero, enviar-te-ei para o lugar onde encontrarás bastantes espíritos. O pesquisador de tesouros, tremendo do duplo terror que lhe causavam os espíritos sobrenaturais de que se julgava rodeado e do furor de um homem em desespero, à mercê do qual a sua vida se encontrava nesse momento, não pôde senão balbuciar: - Meu bom patrrão, isso não é a maneirra... considerre, meu muito estimável senhor, que os espírritos... Nesta altura, Edie, que começava a divertir-se com a cena, soltou um gemido extraordinário, espécie de lamento prolongado, de tom arrastado e queixoso com o qual geralmente suplicava a caridade. Dousterswivel caiu de joelhos. - Meu carro Mr. Arthur, partamos, ou deixe-me partir. - Não, vil intrujão - disse o cavaleiro, desembainhando a espada que trouxera para efeitos do exorcismo - essa nova habilidade não resultará. Há muito tempo que Monkbarns me advertira de que eras um intrujão miserável. Quero ver esse tesouro antes de deixar este lugar, ou, pelo Céu, confessas que és umimpostor; de contrário, atravesso-te o corpo com esta espada, mesmo que as sombras de todos os mortos nos venham cercar. - Por amor de Deus, tenha paciência, meu estimável patrrão, e o senhor terá o tesourro em questão. Mas não fale assim de espírritos, para não os irritar. Edie Ochiltree já se preparava para fazer ouvir outro gemido, mas foi impedido por Lovel, que começava a tomar um vivo interesse por aquela cena, ao notar o ar resoluto e quase desesperado de sir Arthur. Dousterawivel, que tinha ao mesmo tempo diante dos olhos o medo do espírito maligno e o da violência de sir Arthur, desempenhou muito mal o seu papel de mágico, não ousando tomar o grau de segurança próprio para ludibriar o baronnet, com receio de ofender o invisível autor dos seus alarmes. No entanto, depois de ter rolado os olhos e murmurado umas fórmulas de exorcismo em alemão, acompanhadas de gestos e contorsões que eram mais o efeito do terror de que estava possuído que o resultado de uma fraude premeditada, avançou finalmente para um canto do edifício, onde uma pedra lisa pousada no chão representava, esculpida em relevo, a efígie de um guerreiro armado numa posição inclinada. - É aqui, bom patrrão - balbuciou ele - Deus tenha piedade de nós todos! Sir Arthur, que, depois de ter dominado o primeiro movimento dos seus receios supersticiosos, parecia reunir então toda a firmeza de que sua alma era capaz para levar até ao fim aquela aventura, prestou auxílio ao químico para remover a pedra por meio de uma alavanca de que o alemão se munira, e com a qual, reunindo as suas forças, realizaram a custo essa operação. Nenhuma luz sobrenatural jorrou de baixo para indicar a existência do tesouro subterrâneo, nenhuma aparição houve de espíritos terrestres ou infernais. Mas, depois de Dousterswivel ter dado, a tremer muito, algumas enxadadas e, com igual precipitação, levantado duas ou três pás de terra (porque tinham trazido com eles os instrumentos necessários), ouviu-se soar alguma coisa que parecia o som de um objecto de metal, e Dousterswivel, apoderando-se à pressa do que o produzira, e que sua pá fizera cair com a terra, exclamou: - Palavra de honra, meu patrrão, eis tudo... sim, realmente tudo... quero dizer tudo o que podemos fazer esta noite... E relanceou olhares inquietos e receosos, como que procurando de que
canto da igreja iria surgir o vingador da sua impostura. 238 - Vejamos - disse sir Arthur, e repetiu num tom ainda mais severo - Quero desta vez julgar por meus próprios olhos. Então, aproximou da luz da lanterna o objecto encontrado. Era uma pequena caixa ou cofre (porque Lovel estava muito afastado para lhe distinguir a forma) mas que, pelo que pôde concluir pela exclamação do baronnet, estava cheia de peças de metal. - Até que enfim -. disse o baronnet - eis um acontecimento feliz; e se ele for presságio de outro na proporção de um adiantamento mais considerável, esse adiantamento realizar-se-á. Aquelas últimas seiscentas libras, juntas com outras reclamações prementes, ter-me-iam levado infalivelmente à ruína; mas se o senhor julga que podemos triunfar repetindo esta experiência, por exemplo, na próxima mudança de lua, arriscarei os adiantamentos necessários, não importando como poderei obtê-los. - Oh, meu bom patrrão, não me fale agora disso! - suplicou Dousterswivel - Ajude-me somente a repor as pedras, e retomemos o nosso caminho. Efectivamente, logo que as pedras foram repostas, ele arrastou sir Arthur, que se abandonou de novo ao seu guia, para fora de um local onde a má consciência deste último e os seus terrores supersticiosos pressentiam um espírito ou um demónio oculto atrás de cada coluna, pronto a castigar a sua impostura. - Alguma vez se viu coisa semelhante? - disse Edie, depois de eles terem desaparecido como sombras pela porta por onde tinham entrado - Alguma pessoa viva viu coisa parecida?... Mas que podemos nós fazer por este pobre diabo de cavaleiro baronnet?... Irra, que ele mostrou muito mais coragem do que eu nunca lhe suporia; acreditei verdadeiramente que ele ia trespassar aquele miserável com a sua espada... Sir Arthur não teve sequer metade da temeridade, naquela noite, no Avental de Bessy; mas aqui o sangue subiu-lhe à cabeça, e mostrou-se muito diferente. Já vi muitos homens capazes de matar outros quando estavam encolerizados, e que teriam feito uma triste figura na ponta de Crummie nesse dia... Mas que há a fazer? - Creio - disse Lovel - que o patife não tenha reconquistado inteiramente a sua confiança com esta 239 descoberta, que sem dúvida estava preparada de antemão. - Quê? A prata... sim, sim; lembre-se disto: ninguém sabe melhor encontrar do que aquele que esconde. Ele não quer senão apanhar-lhe o último guinéu, e depois foge para o seu país, patife como ele é!... Gostaria de me ter colocado atrás dele e de lhe dar uma cacetada com o meu pau ferrado; tomá-la-ia por uma bênção de algum dos velhos que aí estão sepultados... Mas vale mais ser prudente; a manha aqui vale mais do que a força; hei-de pagar-Lhe isto qualquer dia. - Se o senhor informar Mr. Oldbuck - disse Lovel. - Oh, não sei! Monkbarns e sir Arthur ora são amigos, ora não o são... Há momentos em que Monkbarns tem influência sobre sir Arthur e outras em que sir Arthur não se preocupa mais com ele do que comigo. Monkkbarns, em certos assuntos, nem sempre é muito prudente. Dar-nos-á um óbolo por uma medalha romana e tomará um fosso por um acampamento, se alguém se der ao trabalho de lho fazer acreditar. Eu fi-lo engolir mais de uma história, eu, que Deus me perdoe... Mas tudo isto não impede que tenha muito pouca
caridade pelos outros e que se mostre impiedoso pelas suas fraquezas, como se não tivesse as suas. Escutá-lo-á todo um dia, se o senhor quiser contar-lhe histórias sobre Wallace, Henrique o cego e Davie Lindsay; mas não se lhe deve falar de fadas, de espectros, de espíritos ou de aparições semelhantes. Esteve quase a atirar o velho Caxon pela janela, e teria também deitado fora a sua bela peruca, só por lhe ter dito que vira um fantasma em Humlock Knowe. Ora, se ele soubesse deste caso, mortificaria o orgulho do baronnet, e resultaria mais mal do que bem; isso já sucedeu duas ou três vezes a propósito daquelas obras das minas, e dir-se-ia que à medida que Monkbarns advertia sir Arthur, este tinha prazer em afundar-se cada vez mais. - Então - disse Lovel - que pensa se informasse Miss Wardour desta circunstância? - Oh, pobre criança! Como poderia ela impedir o pai de fazer a sua vontade? E, aliás, para que serviria isso? Há um processo por causa dessas seiscentas libras 240 esterlinas, e um procurador de Edimburgo persegue sir Arthur com todos os rigores da lei, e mete-o entre a espada e a parede para o fazer pagar, de tal maneira que, se ele não puder, terá de ir para a prisão ou fugir do país. É um homem em desespero e que se agarra à derradeira probabilidade que julga ter de escapar à ruína total. Assim, para que atormentar a pobre criança com uma desgraça sem remédio? E, aliás, para lhe dizer a verdade, não me convém divulgar o segredo deste lugar. É um esconderijo bastante cômodo, como o senhor vê, e apesar de eu não estar no caso de precisar dele agora, e espere, pelo poder da graça, nunca fazer alguma coisa que mo possa tornar necessário, no entanto, não sabemos a que tentações podemos estar expostos; e, em suma, não poderia suportar a ideia de que outra pessoa, a não ser eu, conhecesse este lugar. É costume dizer-se: guarda uma coisa durante sete anos e encontrarás meio de te servires dela; e poderia suceder que eu precisasse da caverna, se não para mim: talvez para outro. Este argumento, no qual o velho Edie Ochiltree, em despeito das suas máximas divinas e morais, parecia, talvez por antigo hábito, pessoalmente interessado, não podia ser convenientemente combatido por Lovel, no momento em que ele próprio colhia as vantagens de que o ancião parecia tão cioso. A cena que acabava de ver-se prestara um serviço a Lovel, distraindo o seu espírito do infeliz acontecimento da tarde, e reanimando a energia que a primeira sensação da sua desgraça, por assim dizer, paralisara. Reflectiu que uma ferida podia ser perigosa sem ser necessariamente mortal; que mesmo nesse aspecto ele ainda estava na incerteza, pois fora arrastado para fora do terreno antes de o cirurgião exprimir a sua opinião sobre o estado do capitão Mac Intyre; e admitindo que as coisas degenerassem no pior, pensou que havia no mundo deveres a cumprir que, se não pudessem devolver-lhe a paz da alma e o primeiro sentimento da sua inocência, fá-lo-iam pelo menos suportar a vida e consagrá-la de futuro activamente a obras inspiradas pelo amor da humanidade. Tais eram os pensamentos de Lovel quando, segundo o cálculo de Edie, que, por qualquer processo seu, como por exemplo a observação dos corpos celestes, 241 sabia passar sem relógio, soou a hora de deixar o seu asilo secreto e dirigir-se à costa marítima para aí esperar o barco que o tenente Taffril devia lá mandar, segundo o combinado.
Retiraram-se pela mesma passagem que os conduzira ao banco secreto do abade, e quando saíram da gruta, os pássaros que começavam a pipilar, e mesmo a cantar, anunciaram-lhes a aproximação do dia. Disso se convenceram absolutamente, quando, ao saírem do souto, puderam descobrir o horizonte e o viram cheio de leves nuvens douradas que se elevavam acima do mar. Quando se diz que a manhã é propícia às musas, é sem dúvida por causa do efeito que ela produz sobre a imaginação e as faculdades do homem. Mesmo para aquele que, como Lovel, passara uma noite em branco e cheia de inquietações, a brisa do crepúsculo refresca o espírito e o corpo e devolve-lhe a vivacidade e a força. Foi, pois, com um renovamento de saúde e de vigor que Lovel, guiado pelo fiel mendigo, pisou o orvalho ao atravessar as dunas que separavam do mar a solidão de Santa Ruth, nome que se dava aos bosques que circundavam as ruínas. O primeiro raio de sol nascente, no momento em que o seu disco rebrilhante começou a sair do seio do Oceano, veio incidir sobre o pequeno brigue que estava ancorado na baía. A chalupa já esperava perto da margem, e o próprio Taffril, envolto na sua capa de marinheiro, achava-se sentado à popa. Saltou em terra quando avistou o mendigo e Lovel e, apertando cordialmente a mão deste último, exortou-o a não se deixar abater. O ferimento de Mac Intyre, disse ele, era bastante grave, mas não desesperado. O tenente tivera a atenção de mandar transportar a bagagem de Lovel para bordo do brigue, e ajuntou que, se Lovel quisesse ficar no navio, ele não duvidava de que a única consequência desagradável desse caso seria a de ver-se condenado a um curto cruzeiro. Quanto a ele, era suficientemente livre no seu tempo e nos seus movimentos, exceptuando a obrigação necessária de ficar naquela estação. - Falaremos dos nossos movimentos ulteriores disse Lovel - quando estivermos a bordo do seu navio. Depois, volvendo-se para Edie, tentou meter-lhe dinheiro na mão. 242 - Creio - disse Edie, devolvendo-lho - que esta gente enlouqueceu ou fez voto de arruinar a minha profissão, como se diz que demasiada água afoga o moleiro. Já me ofereceram mais ouro, há duas ou três semanas, do que eu vi em toda a minha vida. Guarde o seu dinheiro, meu rapaz; o senhor terá necessidade dele, garanto-lhe, quanto a mim não saberia o que fazer-lhe. O meu vestuário não é grande coisa, e recebo todos os anos um roupão azul, novo, com tantos xelins quantos anos conta o rei (Deus o proteja). O senhor e eu, como sabe, capitão Taffril, servimos o mesmo amo. Eis-me, pois, provido de vestuário; e quanto à comida e à bebida, obtenho-a, pedindo-a nas minhas digressões, ou sucede-me por vezes passar um dia sem isso; porque eu estabeleci a regra de nunca pagar uma refeição a mim próprio. De maneira que todo o dinheiro de que necessito é para comprar rapé e por vezes um copo de aguardente, num dia frio, porque, para mendigo, não sou grande bebedor. Retome, pois, o seu ouro e dê-me somente um belo xelim bem brilhante. Como não havia nem eloquência nem preces que pudessem demover Edie destas excentricidades, que ele considerava como que inerentes à honra da sua profissão, e como neste assunto era inabalável como uma rocha, Lovel viuse obrigado a retomar o dinheiro que lhe destinava e, despedindo-se amistosamente do mendigo, apertando-lhe a mão com cordialidade, assegurou-lhe que estava sinceramente reconhecido pelos serviços essenciais que recebera dele e recomendava-lhe ao mesmo tempo segredo sobre as circunstâncias de que foram testemunhas durante a noite. - Não tenha receio - disse Edie - eu nunca conto história alguma dessa
caverna, embora lá tenha visto coisas curiosas na minha vida. A chalupa afastou-se. O velho ficou a contemplá-la enquanto, com a ajuda dos vigorosos esforços de seis remadores, ela se aproximava rapidamente do brigue, e Lovel viu-o agitar ainda uma vez o seu boné azul em sinal de adeus, antes de mudar de atitude, após o que começou a andar lentamente ao longo da praia, retomando o seu trajecto quotidiano, segundo o hábito da sua vida errante. 243 XXII Raimundo, fechado no seu gabinete, ri-se dos que correm tais perigos e semelhantes aventuras, ele, que em busca do ouro já viu dissipar-se em fumo metade das suas terras, cujo túnel, objecto das suas esperanças, acaba de desmoronar-se pela segunda vez. Mas não importa - se o terceiro vier a resistir, tudo em sua casa, sim, até as suas marmitas e seus fogões se destinarão a fazer ouro. Cerca de uma semana depois das aventuras de que o nosso último capítulo deu conta, Mr. Oldbuck, tendo descido ao locutório onde se almoçava, não encontrou, como de costume, as fêmeas entregues ao seu dever, as torradas não estavam feitas, e o jarro de prata que habitualmente continha aquela espécie de cerveja chamada mum, de que já falámos, não estava junto do lume, como se tinha por costume colocar antes de se servir o líquido. "Maldito seja aquele maluco! - pensou ele - Agora, que começa a estar livre de perigo, já não posso suportar mais esta vida... Anda tudo aqui sem rei nem roque Uma desorientação universal parece ter sucedido à boa ordem e à pontualidade que reinam geralmente na minha casa pacata. Chamo minha irmã, nada de resposta... Chamo, grito, invoco os meus deuses penates por mais nomes do que os romanos nunca deram aos deles... Finalmente, Jenny, de quem oiço há meia hora a voz esganiçada atravessar as regiões subterrâneas da cozinha, quer condescender em escutar-me e responde-me, mas sem se dignar subir a escada, de maneira que a conversa tem de realizar-se à custa dos meus pulmões". Nesta altura começou de novo a gritar: - Jenny, onde está Miss Oldbuck? - Miss Grizel está no quarto do capitão. - É isso, tenho a certeza... E onde está minha sobrinha? - Miss Maria está a fazer o chá ao capitão. 244 - Até o apostava... E onde está Caxon? - Foi à cidade buscar a espingarda do capitão e o seu cão de caça. - E quem diabo arranjará a minha peruca, imbecil que tu és? Como pudeste deixar partir Caxon por uma tal ninharia, quando sabes que Míss Wardour e sir Arthur devem aí chegar depois do almoço? - E como podia eu impedi-lo, senhor? Vossa Honra não desejaria, com certeza, que se atrevessem a contrariar o capitão neste momento, quando ele está a morrer. - A morrer! - exclamou o Antiquário, alarmado Como? Acaso está pior? - Não, não está pior, que eu saiba. - Então, está melhor... E que necessidade temos nós de um cão de caça e de uma espingarda? Um para estragar os móveis, roubar as provisões, esganar o gato, talvez; a outra para meter chumbo nos miolos de alguém. Parece-me que ele deve estar farto, por uns tempos, de pistolas e espingardas.
Neste momento, Miss Oldbuck entrou no locutório, à porta do qual se encontrava seu irmão embrenhado nesta conversa com Jenny, ele gritando do cimo da escada, ela esganiçando-se de baixo, ao responder-lhe. - Meu querido irmão - disse-lhe a velha solteirona - vai enrouquecer à força de gritar. Faz tanto barulho quando está alguém doente em casa? - com a breca, não há mais ninguém senão o doente em toda a casa! Ainda estou em jejum e, provavelmente, também terei de passar sem a minha peruca; e, no entanto, não devo sequer queixar-me de fome ou de frio, no receio de perturbar o meu gentleman deitado, que está separado daqui por seis quartos, e que se encontra suficientemente bem para mandar buscar a sua espingarda e o seu cão, embora ele saiba até que ponto eu odeio tais objectos desde que o nosso irmão mais velho, o pobre Williewald, deixou este mundo por ter molhado os pés ao caçar nos paúis de Kittlef itting. Mas tudo isso não é nada... Suponho que se espera, sem dúvida, ver-me eu próprio a pegar num dos varais da liteira do senhor escudeiro Heitor, se lhe apetecer ir entregar-se às suas excentricidades de caça e experimentar as suas forças a atirar aos meus pombos e aos meus patos... 245 porque creio que uma parte das ferae naturaz (1) nada terá a recear dele durante algum tempo. Miss Mac Intyre entrou então e começou a desempenhar as funções quotidianas, preparando o pequeno almoço do tio, com a pressa de alguém que está em atraso e quer recuperar o tempo perdido; mas isso não lhe serviu de grande coisa. - Cuidado, palerminha - disse-lhe o tio - esse mum está muito perto do lume; a garrafa vai estalar... e suponho também que tencionas reduzir a cinzas essa torrada, para fazer com elas uma oferenda a Jimo. Não é isso, ou é pelo menos um nome mitológico desse género que chamas à cadela que ali vejo, e que teu irmão, com a sua habitual sagacidade, julgou digna de tornar-se comensal da minha casa, o que lhe agradeço, e aumentar o número de todas as fêmeas de que já estou cercado? - Meu querido tio, suplico-lhe que não queira mal a esse pobre bicho; tinham-na prendido no quarto de meu irmão em Fairport, mas ela quebrou por duas vezes a sua corrente para vir aqui juntar-se-lhe. Tenho a certeza de que não quer que batam neste fiel animal para o escorraçar. Ele uiva à porta do seu dono, como se tivesse o instinto da infelicidade sucedida ao pobre Heitor, e temos as maiores dificuldades do mundo para o fazer calar. - Como? -replicou o tio - Disseram-me que Caxon tenha ido a Fairport buscar a sua espingarda e o cão! - Ó meu Deus; não, senhor - respondeu Miss Mac Intyre - Foi buscar as coisas necessárias para o penso do seu ferimento; e como tinha de ir a Fairport, Heitor pediu-lhe que trouxesse ao mesmo tempo a sua espingarda. - Vamos, a coisa não é absolutamente tão absurda como eu a julgava, ao pensarmos que tantas fêmeas se ocuparam dela... É justo que se preocupem com o seu penso; mas quem arranja a minha peruca? Vamos, Por hoje ajuntou o solteirão, vendo-se ao espelho basta que Jenny tente torná-la apresentável... e agora a temos de comer como pudermos. Era caso para dizer a Heitor o que sir Isaac Newton disse ao seu (1) Animais selvagens. - N. do T. 246 cão "Diamante" (detesto estes animais! quando ele derrubou uma vela acesa sobre os cálculos que ocupavam o filósofo havia vinte anos, reduzindo-
lhos a cinzas: "Diamante, Diamante, tu nem supões o mal que fizeste! " - Asseguro-lhe - respondeu a sobrinha - que meu irmão lamenta o arrebatamento do seu acto, e reconhece que Mr. Lovel se portou muito bem com ele. - Isso recompõe bem as coisas, depois de o pobre rapaz se ver obrigado a fugir do país. Digo-te, Maria, que não está ao alcance da inteligência de Heitor, e com mais forte razão da de uma fêmea, compreender toda a extensão da perda que ocasionou ao nosso século e à posteridade Aureum quidem opus (1). Um poema sobre um tão belo assunto, com notas relativas tanto aos passos obscuros como aos passos que o não são, mesmo aqueles que, não sendo nem claros nem obscuros, flutuam ainda no crepúsculo duvidoso de antigüidades caledonianas! Eu daria uma lição aos panegiristas celtas com as minhas pesquisas. Fingal, como eles imaginaram chamar a Fin Mac Coul, envolvendo-se de novo na sua nuvem, teria desaparecido como o espírito de Loda... Um homem já velho e cujos cabelos embranquecem, talvez nunca possa esperar encontrar uma oportunidade como esta. E vê-la fugir devido à estúpida exaltação de uma cabeça esquentada! Mas temos de nos resignar; seja feita a vontade de Deus. Durante o almoço, o Antiquário não cessou de repisar daquela maneira, segundo a expressão da irmã; e em despeito do mel, do açúcar e de todos os doces que na Escócia geralmente nos oferece a mesa do almoço, esta refeição, para aquelas que o partilhavam com ele, ressentia-se do amargor das suas reflexões e da sua disposição. Mas elas conheciam a natureza do homem, e, como o dizia baixinho Miss Grizel Oldbuck à sua amiga Miss Rebecca Blattergowl, Monkbarns ladrava mais do que mordia. O facto é que Mr. Oldbuck, que experimentara as mais vivas inquietações quando seu sobrinho estivera verdadeiramente em perigo, julgava-se autorizado, (1) A obra de ouro. - N. do T. 247 ao vê-lo entrar na convalescença, a dar largas às suas queixas sobre o embaraço que tivera e a interrupção causada às suas ocupações eruditas. Encorajado pelo respeitoso silêncio com que sua irmã e sua sobrinha o escutavam, exalou o seu descontentamento em murmúrios semelhantes aos que mencionámos, dirigindo ao mesmo tempo os seus sarcasmos à raça feminina, aos militares, aos cães e às espingardas, que todos considerava causas mais ou menos directas de ruído, de discórdia e de desordem, e que declarava ter em abominação. Esta expansão de bílis ou esta erupção de splsen foi bruscamente interrompida pelo rumor de uma carruagem que se detinha à porta. Este incidente dissipou no mesmo instante o mau humor de Oldbuck, que se apressou a subir ao quarto e a descer à pressa, coisa de absoluta necessidade, para receber convenientemente Miss Wardour e o pai à porta de sua casa. Depois de se terem cumprimentado com cordialidade de parte a parte, sir Arthur, que por várias vezes mandara informar-se do estado do capitão Mac Intyre, pediu mais particularmente notícias. A resposta foi: - Vai melhor do que merece, depois de nos ter atormentado a todos com seus conflitos disparatados e violado a paz de Deus e do rei. - O jovem gentleman foi um pouco imprudente - disse sir Arthur -mas indicou que se tinha obrigação de ter notado um carácter suspeito na pessoa do jovem Lovel. - Não mais suspeito do que o dele - respondeu o Antiquário, ardoroso a defender o seu favorito - Obstinouse loucamente em não responder às impertinentes perguntas de Heitor, eis tudo. Mas, sir Arthur, Lovel sabe escolher melhor os seus confidentes... Sim, Miss Wardour, está a olhar
para mim? Mas a coisa é verídica. Foi a mim que ele confiou os secretos motivos da sua residência em Fairport, e não há esforços que eu não tenha feito para o ajudar a atingir o objectivo que se propôs. Ao escutar esta magnânima declaração do Antiquário, Miss Wardour mudara vária vezes de cor, e mal podia acreditar nos seus ouvidos; porque em 248 assuntos de amor (e era natural que ela supusesse tratar-se desse assunto), de todos os confidentes que se poderia escolher, depois de Edie Ochiltree, Oldbuck parecia-lhe o mais estranho e o mais bizarro, e ela não podia refazer-se do espanto e desagrado que lhe causava uma combinação de circunstâncias tão singulares como as que ofereciam um segredo de natureza tão delicada à posse de indivíduos menos indicados para serem seus depositários. Ela também pensava, receosa, na maneira como Oldbuck se abriria sobre este assunto com seu pai, pois não duvidava de que fosse essa a sua intenção. Bem sabia que o velho gentleman, embora muito violento nos seus preconceitos, tinha muito pouco respeito pelos dos outros, e receava uma forte explosão quando se verificasse algum esclarecimento entre eles. Foi, pois, com grande inquietação que ela ouviu seu pai pedir uma entrevista particular, e que viu Oldbuck levantar-se prontamente e conduzi-lo à sua biblioteca. Ficou, porém, no seu lugar, tentando conversar com as damas de Monkbarns, mas com a turbação e o terror que agitam Macbeth forçado a dissimular as inquietações de uma consciência culpada para apurar o ouvido e responder às reflexões dos chefes que o rodeiam, sobre a tempestade da noite anterior, enquanto todas as faculdades da sua alma se concentram para escutar o primeiro alarme de assassínio que não pode deixar de difundir-se por aqueles que acabam de entrar no aposento onde dorme o rei Duncan (1). Entretanto, a conversa entre os dois sábios incidira sobre um assunto bem diferente daquele que Miss Wardour temia. - Mr. Oldbuck - disse sir Arthur, após as delicadezas do estilo e se terem instalado no sanctum sanctorum do Antiquaria - o senhor, que está tão bem informado acerca dos meus negócios de família, vai sem dúvida admirar-se da pergunta que estou para lhe fazer. - Palavra, sir Arthur, se é relativa a dinheiro, tenho muita pena, mas... - Sim, Mr. Oldbuck, é relativa a dinheiro. (1) Alusão a uma cena de Macbeth, de Shakspeare. - N. Do T. 249 - Então, realmente, sír Arthur - continuou o Antiquário-no estado actual dos negócios e em vista da baixa dos fundos... - O senhor engana-se acerca da minha intenção, Mr. Oldbuck - disse o baronnet -Eu quero pedir a sua opinião sobre a colocação de uma grande importância em dinheiro. - Diabo! -exclamou o Antiquário; e, sentindo que esta involuntária expressão de surpresa era um tanto indelicada, procurou justificá-la, exprimindo a sua alegria por ver à disposição de sir Arthur uma grande quantia em dinheiro, quando esta mercadoria era tão rara - E quanto à maneira de o empregar - disse ele, depois de uma pausa - os fundos estão baixos neste momento, como já disse, e há boas aquisições a fazer em parcelas de terras. Mas não andaria melhor, sir Arthur, em começar por liquidar as dívidas? Temos primeiro aquela quantia de o-brigação pessoal, depois três outras assinaturas - continuou ele, tirando da gaveta da direita do seu armário um certo "dossier", encadernado de vermelho, o qual sir Arthur, por experiência de frequentes apelos que lhe foram
feitos anteriormente, aborrecia só de o ver -com1 o juro da dita importância, sobe tudo a... vejamos... - Cerca de mil libras esterlinas - acudiu sir Arthur vivamente - O senhor disse-me a soma o outro dia. - Mas há ainda uma outra conta de juros vencidos depois, sir Arthur, e essa sobe agora, salvo erro, a mil cento e treze libras esterlinas, sete xelins, cinco pence e três quartos de -penny. Mas faça o senhor a soma. - Não, não, não duvido de que esteja certo, meu caro senhor-disse o baronnet, repelindo o livro com a mão, mais ou menos da mesma maneira que alguém procura esquivar-se àquela delicadeza de antigos tempos que lhe apresenta com importunidade iguarias de que já comeu até mais não poder -Está perfeitamente certa, não o duvido; e no espaço de três dias, o máximo, o senhor receberá todo o valor... isto é, se o senhor quiser aceitá-lo em barras. - Em barras! Imagino que o senhor quer falar de chumbo? Diabo, encontrámos finalmente o famoso filão?... Os antigos abades de Trotcosey poderiam ter 250 coberto com ele a sua igreja e o seu mosteiro, mas eu... - Quando digo barras - interrompeu o baronnet quero dizer metais preciosos... ouro, prata. - Realmente? E de que Eldorado se deve importar esse tesouro? - Não longe daqui - disse sir Arthur, num tom significativo - E já que falamos nisso, o senhor poderá ver todo o processo, com uma pequena condição. - Qual? - indagou o Antiquário. - É que preciso de que a sua amizade venha em meu auxílio, adiantando-me cerca de uma centena de libras. Mr. Oldbuck, que já imaginava que tinha em capital e juros a importância de uma dívida que ele considerava quase perdida, ficou tão aturdido por lhe apresentarem tão inopinadamente o reverso da medalha que não pôde senão repetir num tom cheio de dor e de surpresa: - Adiantar-lhe uma centena de libras esterlinas! - Sim, meu caro senhor - prosseguiu sir Arthur - mas com a maior certeza possível de ser reembolsado dentro de dois ou três dias. Houve uma curta pausa: ou os músculos do maxilar inferior de Oldbuck não retomaram a sua elasticidade por forma a permitir-lhe pronunciar uma negativa, ou a sua curiosidade o obrigava a guardar silêncio. - Eu não lhe pediria que me prestasse este serviço - continuou sir Arthur - se não possuísse provas certas da realidade das esperanças de que acabo de lhe falar. E asseguro-lhe, Mr. Oldbuck, que ao abrir-me consigo como o faço sobre este assunto, a minha intenção é provar-lhe a minha confiança e a grata recordação que conservo dos serviços que por várias vezes recebi da sua amizade. Mr. Oldbuck agradeceu-lhe, mas evitando cuidadosamente avançar até o ponto de prometer novos auxílios. - Como Mr. Dousterswivel - disse sir Arthur - descobriu Aqui o Antiquário interrompeu-o, com os olhos cintilantes de indignação: - Sir Arthur, já tantas vezes o adverti da aldrabice 251 desse velhaco charlatão que muito me admira que o senhor venha falar-me dele! - Mas escute, ao menos, escute - disse sir Arthur por seu turno - isso
não poderá fazer-lhe mal nenhum. Em suma, Dousterswivel persuadiu-me a presenciar uma experiência que fez nas ruínas de Santa Ruth... e que julga o senhor que lá encontrámos? - Outra nascente, sem dúvida, da existência da qual aquele patife não deixou de certificar-se de antemão. - Não, realmente... Uma caixa cheia de moedas de ouro e de prata... Eilas. Logo sir Arthur tirou do bolso um chifre de carneiro, fechado com uma tampa de cobre, e contendo uma considerável quantidade de moedas, de prata em sua maior parte, onde se encontravam misturadas algumas de ouro. Os olhos do Antiquário animaram-se ao espalhá-las em cima da mesa. - Eis, realmente, algumas moedas escocesas, inglesas e estrangeiras dos séculos XV e XVI, e algumas destas peças rari et rariores, etiam rarissimi (1). Eis o gorro de James V; o licorne de James II e o velho tosão de ouro da rainha Maria, com a sua efígie e a do delfim... E tudo isto encontrou ele realmente nas ruínas de Santa Ruth? - Sem dúvida alguma... Fui testemunha ocular. - Bem - prosseguiu Oldbuck - tem de explicar-me agora onde, quando e como isso se passou. - Quando? - respondeu sir Arthur - Foi à meia-noite, quando a lua estava em seu pleno; o lugar, comlo já lhe disse, é as ruínas da abadia de Santa Ruth; e quanto à maneira, foi uma experiência nocturna feita por Dousterswivel, acompanhado só por mim. - Sim? - disse Oldbuck - E que meio de descoberta empregou ele? - Apenas uma simples fumigação - declarou o baronnet - mas, note que a fizemos à hora planetária favorável. - Uma simples fumigação! Uma simples mistificação! (1) Raras, mais raras e muito raras. - N. do T. 252 À hora planetária!... Um ludibrio!... Como o persuadiu ele dessas impertinentes ninharias?... Sapiens áominábitur astris (1) Meu caro sir Arthur, esse homem enrolou-o de todas as maneiras. - Estou-lhe certamente muito grato, Mr. Oldbuck, pela opinião favorável que tem do meu descernimento; mas, no entanto, espero que acredite que vi o que vi. - Seguramente, sir Arthur, porém, só até certo ponto; é que eu sei que sir Arthur não dirá ter visto senão o que julgou ver. - Pois bem - replicou o baronnet - Tão verdade como haver um céu por cima das nossas cabeças, eu vi com os meus próprios olhos encontrar estas moedas, após uma pesquisa feita no coro da igreja de Santa Ruth, à meianoite. E quanto a Dousterswivel, embora esta descoberta seja fruto da sua arte, no entanto, para falar francamente, eu não acredito que ele tivesse firmeza de espírito para continuar a prova, se eu não estivesse junto dele. - Ah, sem dúvida! - disse Oldbuck no tom de quem deseja ouvir o fim da narrativa antes de se entregar aos seus comentários. - Sim, em verdade, garanto-lhe que eu estava em guarda - continuou sir Arthur - Ouvimos sons muito estranhos, é certo, e que pareciam vir das ruínas. - Oh! Oh! - exclamou Oldbuck - Era um comparsa que estava escondido, aposto. - Nada disso - opôs o baronnet - O ruído, embora de um carácter aterrador e sobrenatural, assemelhava-se mais ao de um homem que espirra violentamente do que a outra coisa. Além disso, ouvi com certeza um profundo gemido, e Dousterswivel assegurou-me que era o espírito de
Peolphan, o grande caçador do Norte - (procure-o no seu Nicholaus Remigius ou no seu Petrus Thyracus, Mr. Oldbuck), que imita a acção de tomar rapé e os efeitos que ele provoca. - Por muito singular que isso seja, como provindo de uma tal personagem, não se pode pelo menos negar que tenha a propósito; pois o senhor vê que a caixa (1) O sábio submete-se aos astros. - N. do T. 253 que contém estas moedas se assemelha pela forma àqueles velhos moinhos de tabaco de que se serviam na Escócia. Mas o senhor teve a coragem de continuar, em despeito dos espirros do espírito? - Confesso que é possível que um homem vulgar pudesse ceder ao terror; mas eu suspeitava de uma impostura, e aliás, sentindo que o meu nome me dita o dever de mostrar uma coragem superior a todas as circunstâncias, forcei Dousterswivel, por ameaças sérias e violentas, a continuar a sua operação; e o senhor está a ver a prova do seu saber e da sua probidade neste amálgama de moedas que tem na sua frente, e dentre as quais lhe peço que escolha as moedas e as medalhas que lhe convenha juntar à sua colecção. - Nesse caso, sir Arthur, visto que tem essa bondade, e na condição de me permitir avaliá-las segundo a apreciação feita no catálogo de Pinkerton, e abatê-las na sua conta no meu livro vermelho, escolherei com muito prazer. - Não, não -i- disse sir Arthur Wardour - não quero que a veja de outra maneira senão como uma dádiva de amizade, e ainda menos desejaria submeter-me à avaliação do seu amigo Pinkerton, que atacou as antigas e respeitáveis autoridades, pilares veneráveis sobre os quais assenta a honra das antigüidades escocesas. - Sim, sim -replicou Oldbuck -o senhor que fala, julgo eu, de Mair e Boece, de Jachin e Boaz, os apóstolos da fraude e da mentira. Pois bem, apesar de tudo o que me disse, considero o seu amigo Dousterswivel tão apócrifo como qualquer deles. - Então, Mr. Oldbuck - disse Sir Arthur - sem despertar antigas discussões, devo supor que o senhor julga que, só porque acredito na história antiga do meu país, não tenho olhos nem ouvidos para me certificar dos acontecimentos de que sou testemunha. - Perdão, sir Arthur - redarguiu o Antiquário -. mas encaro a afectação de terror que o seu colaborador, esse digno gentleman, quis fingir, como fazendo parte da farsa e do mistério que representou então. E quanto às moedas de ouro e de prata, elas estão tão misturadas e são tão diferentes de países e de datas, que não posso acreditar que tenham sido realmente acumuladas e escondidas com um fim vulgar; penso 254 que se assemelham mais às bolsas colocadas na mesa ao procurador de Hudribas. É dinheiro colocado para amostra, Como ninhos enganosos onde a galinha encontra Ovos que a convidam a chocar; Cliente ao qual se deseja roubar O preço de vís conselhos dados pró ou contra. É um ardil comum a todas as profissões, meu caro sir Arthur; mas posso perguntar-lhe quanto lhe custou esta descoberta? - Cerca de dez guinéus. - com os quais o senhor ganhou o equivalente a vinte guinéus talvez em peso real, aproximadamente o dobro deste valor aos olhos loucos como os nossos, que queremos pagar a raridade. Vamos, temos de convir que, para
primeira oportunidade que lhe oferece, o lucro é bastante tentador. E que propõe ele arriscar para a segunda? - Cento e cinquenta libras esterlinas, das quais lhe dei um terço, tendo pensado que o senhor desejaria fornecer-me o resto. - Não penso que seja esse o último golpe; a coisa não me parece de muito grande importância. É provável que ele ainda nos deixe ganhar esta partida: é assim que os charlatães se conduzem para seduzir os que começam a jogar. Sir Arthur, não duvida, espero eu, do meu desejo de o ajudar? - Certamente, Mr. Oldbuck, e creio ter-lhe dado bastantes provas da minha confiança. - Pois bem, então, deixe-me falar com Dousterswivel. Se o dinheiro puder ser adiantado para um fim útil ao seu interesse, por consideração pela antiga vizinhança, não o recusarei; mas se, como suponho, eu puder descobrir esse tesouro sem fazer-lhe nenhum adiantamento, presumo que o senhor também não se oporá. - Não posso opor-me de maneira alguma. - Então, onde encontrarei eu Dousterswivel? perguntou o Antiquário. - Para lhe dizer a verdade, está na minha carruagem, à porta; mas, conhecendo as suas prevenções contra ele... 255 - Graças a Deus, não tenho prevenções contra ninguém, sir Arthur; são os sistemas e não os indivíduos que incorrem na minha reprovação - tocou a campainha - Jenny - disse ele à criada que se apresentou-vai informar o senhor que espera lá em baixo na carruagem, que sir Arthur e eu lhe enviamos os nossos cumprimentos e lhe pedimos que suba. Jenny foi levar o recado. Não entrara nos projectos de Dousterswivel admitir Mr. Oldbuck no pretenso mistério. Calculara que sir Arthur obteria o dinheiro que lhe era necessário, sem discussão alguma sobre a maneira como se propunha empregá-lo e esperava em baixo, com o fim de se apoderar o mais cedo possível desse depósito, pois previa que estava no termo da sua carreira. No entanto, quando lhe pediram que se apresentasse perante sir Arthur e Mr. Oldbuck, resolveu ousadamente confiar nos recursos daquela natural impudência de que o céu liberalmente o muniu, como o leitor já pôde notar. XXIII O seu compadre, esse doutor de barba suja e enfumarada, é capaz de meter todo este ouro na cabeça de um prego, depois de substituir outro por mercúrio sublimado que se dissolveré ao calor e evaporar-se-á tudo em fumo. O Alquimista - Como tem passado, meu bom Mr. Oltenpuck? Esperro que o capitão Mac Intyrre, essa amável gentleman, esteja melhor. Ai, é um mau negócio quando os jovens metem assim chumbo no corrpo. - Creio, realmente, Mr. Dousterswivel, que todas as aventuras em que entra chumbo são bastante precárias; mas eu soube com prazer, por sir Arthur - continuou o Antiquário - que o senhor escolheu melhor género de indústria, e que anda agora a descobrir ouro. - Oh! Mr. Oltenpuck, o meu bom e respeitável patrrão não lhe devia ter dito nem uma palavrra deste Pequeno negócio; porque, emborra eu tenha plena e 256
inteirra confiança na prudência e na discrição do bom Mr. Oltenpuck, na grande amizade que ele tem por sir Arthur Wartour, isto, meu Deus, é um segrredo de grande peso. - Sim, de maior peso do que todos os metais de que lhe devemos a descoberta - respondeu Oldbuck. - Isso depende da fé e da paciência que o senhor dedicar à grrande prrova. Se o senhor se juntar a sir Arthur que deve emprregar cento e cinquenta libras esterlinas (veja, já estão cinquenta dessas más notas no seu banco de Fairport); se o senhor juntar cento e cinquenta libras em más notas desse género, recolherrá em ourro e em prrata pura, nem sei quanto. - E ninguém o sabe, creio eu - disse o Antiquário - Mas, escute, Mr. Dousterswivel: suponhamos que, sem importunar com novas fumigações o espírito dos espirros, nós íamos em corpo, em pleno dia, com o amparo de uma boa consciência, e sem empregar outros instrumentos de magia senão enxadas e pás bem sólidas, revolver de uma ponta à outra o solo da igreja de Santa Ruth, e, sem arriscar despesa alguma, certificar-nos da existência desse suposto tesouro (as ruínas pertencem a sir Arthur, e não pode haver nisto obstáculo), julga que conseguiríamos alguma coisa, procedendo desta maneira? - Ora, não encontraríamos nem um dedal de cobre... mas sir Arthur farra a sua vontade... Eu mostrei-lhe de que maneira é possível, muito possível mesmo, obter grrandes quantias em dinheirro para as suas necessidades... Mostrei-lhe a verdadeirra experriência... Se ele não quiser acreditar, meu bom Mr. Oltenpuck, não faz mal a Herman Dousterswivel; perde somente as despesas e toda a prrata, e todo o ourro que teria encontrado... eis tudo. Sir Arthur Wardour lançou um tímido olhar a Oldbuck, que, apesar da sua frequente diferença de opiniões, tinha, sobretudo quando estava presente, verdadeira influência sobre ele. De facto, o baronnet tinha a sensação, que mal confessava a ele próprio, de que o gênio do Antiquário intimidava o seu. Apreciava-o intimamente como um carácter penetrante, observador e cáustico; receava o seu espírito ironico, e não dei xava de ter confiança na sagacidade das suas opiniões em geral. Dousterswivel sentiu então que corria o 257 perigo de ver escapar a sua presa, se não conseguisse produzir qualquer impressão favorável no seu conselheiro. - Eu sei, meu bom Mr. Oldenpuck, que é uma vaidade falar-lhe de espíritos e de demónios. Mas veja este currioso chifrre; não ignoro que o senhor conhece as curriosidades todas do país, e que sabe como o grrande chifrre de Oldenburgo, que ainda se mostra no museu de Copenhaga, foi dado ao duque de Oldenburgo por um espírrito fêmea dos bosques... O senhor vê, pois, que se eu quisesse, não podia enganá-lo, visto que o senhor conhece ao primeirro relance o que é currioso... Examine, pois, este chifrre, eu não lhe dirria nada. - Em verdade, este chifre empresta alguma força ao seu argumento - disse Oldbuck - Era um utensílio modelado pelas mãos da Natureza e do qual, por conseguinte, as nações bárbaras se serviam muito, embora provavelmente os chifres, no sentido dado a esta metáfora, se tivessem tornado mais vulgares devido ao progresso da civilização. Quanto a este chifre que aqui está - ajuntou ele, esfregando-o na sua manga - é uma preciosa e respeitável relíquia, que sem dúvida foi destinada por alguém a cornucópia, mas é permitido duvidar se para o subalterno ou para o
patrão. - Vamos, Mr. Oldenpuck, vejo que o senhor continua incrrédulo, mas permita-me, no entanto, assegurar-lhe que os monges entendiam o magisterium. - Deixemos o magisterium de lado, Mr. Dousterswivel, e ocupemo-nos um pouco do magistrado. Sabe Que essa ocupação à qual o senhor se entrega é contra as leis da Escócia, e que sir Arthur, e eu somos da comissão dos juizes de paz? - Meu Deus! Que relação pode isso ter comigo, que lhes faço todo o bem que posso? - É preciso que o senhor saiba que, quando se aboliram as leis crueis contra a bruxaria, como não havia esperança de se destruir nos homens esse pendor Para a superstição que lhe serve de base, quis-se pelo menos prevenir tanto quanto possível o abuso que disso podiam fazer as pessoas mal intencionadas e artificiosas. Por conseguinte, foi decretado pelo 29ºo estatuto de George II, 5. capítulo, que quem pretendesse, por meio do seu suposto conhecimento das ciências 258 ocultas, descobrir objectos que tivessem sido perdidos, roubados ou escondidos, sofreria a pena do pelourinho e da prisão, como charlatão e como impostor. - É essa a lei? - perguntou Dousterswivel, com alguma inquietação. - O senhor pode certificar-se - respondeu o Antiquário. - Então, despeço-me dos senhores, eis tudo. Eu não gostarria nada de me ver no que os senhorres chamam pelourrinho; é uma maneirra muito má de tomar ar; tão-pouco gosto de prrisões onde não se pode respirar. - Se é esse o seu gosto, Mr. Dousterswivel, aconselho-o a ficar onde está, porque não o posso deixar partir, a não ser acompanhado de um oficial de polícia; e, aliás, espero que nos acompanhe agora às ruínas de Santa Ruth e que nos indique o lugar onde se propõe encontrar esse tesouro. - Meu Deus! Mr. Oldenpuck, é assim que se trata um velho amigo? Quando eu lhe disse claramente que se o senhor lá fosse agorra, não encontrarria o valor de uma pobre moeda de seis pence. - Farei no entanto a experiência, e o senhor será tratado conforme o êxito que ela tiver... sempre com licença de sir Arthur. Durante esta conversa, sir Arthur parecia muito embaraçado, e, para me servir de uma frase trivial mas enérgica, estava realmente de orelha murcha. A obstinação incrédula de Oldbuck levava-o a suspeitar fortemente da impostura de Dousterswivel, e a maneira como o químico defendia o seu terreno não era tão resoluta como ele desejara; contudo, não o abandonou inteiramente. - Mr. Oldbuck - disse ele - o senhor não presta justiça a Mr. Dousterswivel. É pelo uso da sua arte que ele se propõe fazer esta descoberta, e pela aplicação dos caracteres que representam as inteligências que presidem à hora planetária em que a experiência deve ser feita. E o senhor intima-o a proceder, sob pena de punição e sem o deixar usar os meios preliminares que devem assegurar-lhe o êxito. - Eu não disse isso absolutamente. Exijo estar presente à pesquisa, e não os deixar durante essa operação Receio que não haja inteligência com as inteligências 259 de que fala, e que o que possa estar escondido em Santa Ruth não venha a
desaparecer antes de que lá cheguemos. - pois bem, senhorres - disse Dousterswivel, num ar resoluto mas sombrio - não ponho dificuldades em segui-los, mas declarro de antemão que não encontrarão nada que valha sequer a pena arredar vinte passos de sua casa. - Vamos fazer a experiência - disse o Antiquário. Tomada esta decisão, subiram para a carruagem do baronnet, e Miss Wardour foi advertida de que seu pai desejava que ela ficasse em Monkbarns até o regresso de um passeio que ia dar. A jovem teve alguma dificuldade em conciliar esta circunstância com o assunto que ela supunha dever ter ocupado sir Arthur e o Antiquário, mas viu-se obrigada a permanecer ainda algum tempo naquele doloroso estado de incerteza. O trajecto foi bastante triste para os nossos pesquisadores de tesouros. Dousterswivel guardou sombrio silêncio, meditando ao mesmo tempo na perda das suas esperanças e no receio de um castigo. Sir Arthur, cujos sonhos dourados se desvaneciam gradualmente, contemplava a triste perspectiva de todos os males que o ameaçavam, e Oldbuck, que sentia que, avançando tanto nos negócios do seu vizinho, lhe dava o direito de esperar dele algum socorro eficaz, reflectia tristemente até que ponto seria obrigado a alargar os cordões à bolsa. Assim, cada um, por seu lado, mergulhava em reflexões bastante desagradáveis, e ninguém Pensou em pronunciar palavra até que se atingiu a Pequena estalagem das Quatro Ferraduras do Cavalo, pela qual era conhecida. Aí obtiveram homens e utensílios necessários à pesquisa, e foram de súbito abordados pelo velho mendigo Edie Ochiltree. - Deus abençoe Vossa Honra - começou o roupão azul, no verdadeiro tom arrastado e queixoso de mendigo - e que lhe conceda longa vida... Tenho o Prazer de saber que o jovem capitão Mac Intyre já selevanta... Não esqueça hoje o seu bem-estar... - Oh, eis-te, meu velho valente!... Porque diabo não foste a Monkbarns, depois dos perigos que correste em terra e mar?... Olha, eis qualquer coisa para comprares tabaco... 260 E, remexendo na algibeira, para procurar a sua bolsa, tirou ao mesmo tempo o chifre que continha as moedas. - Sim, eis uma coisa para o meter-disse o mendigo, lançando um olhar ao chifre -Isso que o senhor aí tem, é um dos meus velhos conhecimentos... Poderia jurar que reconheceria esse chifre de tabaco entre milhares de outros. Usei-o durante muitos anos, até o momento em que o troquei por esta caixa de folha, com o velho George Glen, o serralheiro mineiro, quando lhe deu na mania de ir trabalhar na mina de Glen Withershins, lá em baixo. - Ah, sim? - disse Oldbuck - Então, deu-a em troca a um mineiro? Mas suponho que nunca a viu tão bem cheia. E assim falando, abriu-a e mostrou as moedas. - Palavra de honra, posso jurar-lhe, Monkbarns; quando esse chifre me pertencia, nunca tinha lá dentro mais de seis pence de rapé preto de uma vez. Mas não vai agora fazer disso uma antigüidade, como já fez de outras coisas? Diabo! Gostaria que alguém se dispusesse a fazer de mim uma antigüidade, também; mas as pessoas que descobrem valor em semelhantes bugigangas de cobre, de ferro e de chifre, não se preocupam com um velho labrego da sua espécie e do seu país. - O senhor pode agora adivinhar - disse Oldbuck, voltando-se para sir Arthur - aos bons ofícios de quem o senhor deve a descoberta dessa
memorável noite. Saber que este chifre pertenceu a um dos seus mineiros é descobrir uma relação assaz directa com alguém do nosso conhecimento. Espero que obtenhamos êxito esta manhã, sem que isso nos custe nada. - E onde tencionam ir Vossas Honras, com todas estas enxadas e pás? indagou o mendigo - Trata-se ainda de uma das suas partidas, Monkbarns. Vai consultar algum dos seus velhos monges, além nos seus túmulos, e fazê-los sair antes do dia de juízo. Mas, com sua licença, tenho vontade de os seguir e de ver o que vão fazer. O rancho depressa chegou às ruínas da abadia, e quando atingiu o coro, deteve-se para reflectir no que se devia fazer. Ao mesmo tempo, o Antiquário dirigiu-se assim ao alemão: 261 - Mr. Dousterswivel, por favor, diga-me, qual é a sua opinião neste assunto? Há mais probabilidade de êxito em pesquisar de Leste para Oeste, ou de Oeste para Leste? Auxilia-nos com o seu frasco cheio de orvalho de Maio ou com a vara divinatória da aveleira consagrada à bruxaria? Ou talvez o senhor tenha a bondade de vir em nossa ajuda fornecendo-nos alguns termos bem roufenhos, bem sonoros, do ofício, no caso de falharem aqui o seu efeito, poderem ser úteis aos que não tiveram a felicidade de ser rapazes, para fazer calar os seus filhos quando forem maus. - Mr. Oldenpuck - disse Dousterswivel, de má catadura - já disse que o senhor não farria nada aqui, e encontrarei talvez um meio de em brreve lhe agradecer as delicadezas que tem tido para comigo. - Se Vossas Honras tencionam cavar o solo - disse o velho Edie - e quiserem seguir o conselho de um pobre homem, eu começaria além, debaixo daquela grade de pedra, no meio da qual vejo um homem estendido de costas. - Tenho alguma razão para crer que faríamos bem - disse o baronnet. - E eu não tenho nenhuma para me opor - ajuntou Oldbuck - Não é muito raro esconderem-se tesouros nos túmulos dos mortos... Podem citar-se vários exemplos, desde Bartholinus e outros. Aquela sepultura, a mesma sob a qual sir Arthur e o alemão tinham encontrado os objectos de metal, foi mais uma vez aberta, e a terra cedeu facilmente à enxada. - É terra recentemente removida - disse Edie não resiste... Eu conheço disto, porque já trabalhei todo um Verão com o velho Will Winnet, o coveiro, e cavei mais de uma sepultura na minha vida; mas deixei-o durante o Inverno, porque fazia demasiado frio nesse trabalho; depois, veio um Natal, e as pessoas Corriam como moscas, pois até se diz que a festa do Natal enche os cemitérios. Mas eu nunca gostei de trabalhar duro na minha vida, fui-me embora, e deixei Will cavar sozinho essas últimas moradas, por ele e por Edie. Os trabalhadores chegaram então a um ponto que Permitiu distinguir que os lados da sepultura que eles escavavam tinham sido, na origem, cercados por quatro 262 muros de cantaria, formando um paralelogramo, destinado provavelmente a receber o caixão. - Nem que fosse só por curiosidade - disse o Antiquário - valia a pena continuar estes trabalhos Gostaria de saber quem é aquele cujo túmulo custou tantos cuidados e canseiras. - As armas do escudo - disse sir Arthur, com um suspiro - são as mesmas que se vêem na torre de Misticot, que se supõe terem constituído as do usurpador. Ninguém soube onde ele foi sepultado, e há uma velha profecia
na nossa família que não pressagia nada de bom para quando se descobrir o seu túmulo. - Eu recordo-me - interveio o mendigo - de tê-la ouvido citar muitas vezes, quando ainda era criança; ei-la: Quando se tiver a certeza do túmulo de Malcolm, Os bens de Knockwinnock serão todos perda ou ganho. Oldbuck, com os óculos na ponta do nariz, já se pusera de joelhos sobre o monumento, e observava, meio com os olhos, meio com os dedos, os restos apagados da efígie do falecido guerreiro. - São com certeza as armas de Knockwinnock esquarteladas com as dos Wardour! - exclamou ele. - Ricardo, cognominado Wardour Mão Sangrenta, desposara Sibila de Knockwinnock, herdeira desta família saxónia, e por essa aliança - disse sir Arthur deu ao castelo e ao território o nome de Wardour, no ano de Jesus Cristo de 1150. - É absolutamente verdade, sir Arthur, e aqui está a barra fatal, sinal de ilegitimidade, que se estende em diagonal sobre os dois lados representados pelo escudo. Onde tínhamos nós então os olhos para não termos notado mais cedo este curioso monumento. - E onde está então a pedra que o cobria? - observou Edie Ochiltree - E como não atraiu os olhares até o presente? Porque, homem ou criança, eu conheço esta velha igreja há sessenta longos anos, e nunca a notara antes... No entanto, ela não é tão pequena que se tornasse notada na freguesia. Cada um interrogava então a sua memória sobre o estado em que sempre vira as ruínas nesta parte da igreja e todos concordaram em recordar-se de que 263 este recanto estivera obstruído por um monte considerável de escombros que fora necessário retirar para que o túmulo se tornasse visível. Sir Arthur só se poderia lembrar de que vira o monumento pela última ocasião que ali viera, mas seu espírito estivera demasiado ocupado então para notar o que havia de novo nessa circunstância. Enquanto o grupo se ocupava destas recordações e discussões, os operários continuavam o trabalho. Já tinham escavado cinco ou seis pés de profundidade quando o solo, tornando-se cada vez mais duro, começara a fatigá-los nos seus esforços. - Chegámos agora ao fundo - disse um deles - não há aqui nem caixão, nem outra coisa, outros mais espertos do que nós passaram por cá primeiro, sem dúvida. E, dizendo isto, saiu do fosso. - Sai daí, rapaz! - disse Edie, colocando-se no seu lugar - Deixa-me experimentar o velho ofício de coveiro. Vocês procuram bem, meus filhos, mas encontram mal. Assim que entrou na cova, bateu vigorosamente com o seu pau ferrado na terra, e, sentindo uma forte resistência, exclamou como o colegial ao achar alguma coisa: - "Não há ninguém para metade, nem para um quarto; é tudo inteiro para mim, e nada para os meus vizinhos". Toda a gente, desde o baronnet abatido e desanimado até o sombrio e taciturno alemão, animada de um movimento de curiosidade, se aglomerou em volta do túmulo e teria saltado lá para dentro se o espaço o permitisse. Os trabalhadores, que tinham começado a fatigar-se da tarefa monótona e em aparência inútil, retomaram logo os utensílios e recomeçaram a cavar
com todo o ardor da expectativa. Em breve, suas enxadas encontraram uma superfície dura como a de madeira, e que, à medida que a terra foi retirada, tomou a distinta forma de uma caixa, mas muito mais pequena do que a de uma urna vulgar. Todas as mãos se apressaram a levantá-la do solo, e todas as vozes proclamaram o seu peso e auguraram bem o seu valor. Não se enganavam. Quando a caixa ou cofre foi colocado no chão 264 e se levantou a tampa com uma pancada de pá, encontrou-se primeiro uma cobertura de talagarça ou serapilheira, depois uma grande quantidade de estopa e por debaixo várias barras de prata. Uma aclamação geral acolheu descoberta tão assombrosa e tão inesperada. O baronnet ergueu os olhos e as mãos ao céu, no êxtase silencioso de um homem que se vê livre de inexprimivel angústia moral. Oldbuck, que mal podia acreditar nos seus olhos, tocava as barras de prata, uma após outra. Não havia inscrição, nem gravura, excepto uma só que parecia espanhola. No entanto, não se cansando de examinar peça por peça, fileira por fileira, esperava encontrar nas de baixo um menor valor. Mas não pôde notar diferença alguma, e foi forçado a admitir que sir Arthur Wardour se tornara possuidor de um peso de metal que podia valer um milhar de libras esterlinas. Sir Arthur prometeu então a todos os assistentes que seriam largamente recompensados do seu trabalho, e começou a ocupar-se da maneira como se transportaria aquela brilhante captura para Knockwinnock. O químico, então, recompondo-se da surpresa, que igualava pelo menos a de todas as outras pessoas presentes, puxou-lhe pela manga e, apresentandolhe as suas humildes felicitações, voltou-se em seguida para Oldbuck, num ar de triunfo: - Eu bem lhe dizia, meu bom Mr. Oldenpuck, que encontraria uma ocasião para lhe agradecer as suas delicadezas. Ora, não acha que arranjei um meio muito bom de lhe aprresentar os meus agradecimentos? - Como, Mr. Dousterswivel, acaso pretende o senhor alguma parte no nosso feliz êxito? O senhor esquece que recusou o auxílio da sua arte. E está aqui desprovido das armas com que deveria entregar-se ao combate em que pretende agora ter vencido em nosso favor. O senhor não se serviu nem dos encantamentos, nem dos talismãs, nem da vara, nem do espelho mágico, nem das figuras de geomancia (1). Onde está então (1) Arte de adivinhar por pontos ou linhas traçadas ao acaso. - N. do T. 265 todo o seu aparato, meu feiticeiro, o seu Abracadabra, O seu feto de Maio, a sua verbena, Os seus sapos, os seus corvos, os seus dragões, as suas panteras, A sua lua ou sol e o seu firmamento, A sua Latona, Azoch, os seus Zernichs ou megeras, Os seus filtros, os seus cozimentos, e outros materiais Que só de nomeá-los fariam rebentar um homem? Ah, impagável Ben Jonson, paz eterna às tuas cinzas, tu que foste o flagelo dos charlatães do teu século, esperarias vê-los reviver no nosso? A resposta que o químico deu a esta tirada encontra-se no capítulo a seguir. XXIV Clause - Conheceis então a pérola dos mendigos do rei. Sim, antes de amanhã, sereis obrigado a alojá-lo aqui; e podeis não me acreditar, porque, se eu existir, pregar-vos-ei uma partida que não esperais. A Moita do Mendigo
O alemão, decidido a aproveitar a vantagem que acabava de recuperar com esta descoberta inesperada, tomou um ar imponente e majestoso para repelir os ataques do Antiquário. - Meister Oldenpuck - disse ele - tudo isso pode ser muito cômico e muito espirrituoso, mas não tenho nada a responder, absolutamente nada, a pessoas que não querrem acreditar na evidência dos seus próprios olhos. Somente desejarria pedir, meu bom, generroso e respeitável patrrão, que meta a mão na algibeirra esquerda do seu casaco e me mostre o que lá encontrar. Sir Arthur meteu efectivamente a mão no seu bolso e tirou a pequena placa de prata de que se servira na vez anterior sob os auspícios do químico. - Isto é verdade - disse sir Arthur, olhando gravemente o Antiquário eis os cálculos planetários graduados, 266 com a ajuda dos quais Mr. Dousterswivel e eu dirigimos a nossa primeira empresa. - Ora, ora, meu caro amigo - replicou Oldbuck - O senhor é demasiado sensato para acreditar na influência de um mísero escudo que foi batido para o achatar, e sobre o qual gravaram umas figuras. Só lhe digo, sir Arthur, que se Mr. Dousterswivel soubesse onde estava escondido este tesouro, o senhor não possuiria agora nem a mais pequena parte dele. - Em verdade - disse Edie, que metia o bedelho em todas as oportunidades - se não desagradar a Vossa Honra, eu penso que, visto que Mr. Dousterswivel teve todo o mérito de descobrir aqui estas riquezas, que o menos que poderia fazer-lhe era dar-lhe pelo seu trabalho as que estiverem por descobrir; porque, sem dúvida, quem soube encontrar tantas, não terá dificuldade em encontrar ainda mais. A fronte de Dousterswivel ensombrou-se extremamente perante esta proposta da o colocar à mercê de outra descoberta, segundo o conselho de Edie; mas o mendigo, puxando-o de parte, disse-lhe ao ouvido duas ou três palavras que pareceram exercer nele uma impressão séria. Entretanto, sir Arthur, a quem esta boa fortuna reaquecera o coração, disse em voz alta: - Não se inquiete com o nosso amigo Monkbarns, Mr. Dousterswivel, mas vá amanhã ao castelo, e eu provar-lhe-ei que sei reconhecer os conselhos que me deu neste assunto. E, entretanto, a má nota do banco de Fairport, como lhe chamou ainda agora, está cordialmente às suas ordens. Vamos, meus filhos, tratem de repor a tampa desse precioso cofre. Mas, na confusão, a tampa caira provavelmente no meio dos escombros ou da terra que se tirara da cova; em suma, não se encontrou em parte alguma. - Não faz mal, bravos rapazes, tapem a caixa com o bocado de serapilheira e amarrem-na em volta, e levem-na para a carruagem. Monkbarns, quer vir a pé? Preciso de passar por sua casa, para trazer Miss Wardour. - E também espero conservá-lo lá para jantar, sir Arthur, e beberemos juntos um copo de vinho como regozijo desta feliz aventura. Aliás, terá de escrever imediatamente ao tesoureiro da Fazenda, para prevenir 267 Toda a reclamação da parte da Coroa. Como é senhor da abadia, poder-se-á facilmente supor um acto de doação, no caso de isso se tornar necessário. Temos, pois, de nos documentar. - E recomendo a todos os presentes o mais absoluto silêncio - disse o baronnet, olhando em torno; todos se inclinaram e protestaram a sua discrição.
- Quanto a isso - observou Monkbarns - recomendar segredo a uma dúzia de pessoas sobre as circunstâncias que se quer ocultar, equivale a pôr a história em circulação sob vinte formas diferentes; mas não importa, nós faremos um relatório fiel aos barões, e é tudo o que é preciso. - Gostaria de enviar um expresso ainda esta tarde - disse o baronnet. - Tenho um famoso a recomendar a Vossa Honra - lembrou Ochiltree - o pequeno Davie Mailsetter com o jumento teimoso do cortador... - Falaremos disso em Monkbarns - disse o baronnet - Meus filhos continuou ele, dirigindo-se aos trabalhadores - venham comigo à Quatro Ferraduras do Cavalo, para tomar os nomes de todos. Dousterswivel, não o convido a vir connosco a Monkbarns, cujo anfitrião discorda muito evidentemente das suas opiniões; mas não deixe de ir visitar-me amanhã. Dousterswivel murmurou uma resposta em que as palavras "tessourro, terrei a honra, muito respeitável patrrão" foram as únicas que se puderam distinguir. E depois de o baronnet -e o seu amigo terem deixado as ruínas, seguidos dos criados e dos operários que, na esperança de uma recompensa, os acompanharam alegremente, o alemão quedou-se absorto num sombrio devaneio, junto da cova aberta. - Quem poderia adivinhar isto, meu bom Deus! - exclamou ele inconscientemente - Muitas vezes ouvi falar de coisas semelhantes, e eu próprio muitas vezes falei nelas; mas, céus, nunca julgarria vê-las! E se eu tivesse escavado a terra mais dois ou três pés, tudo isto teria sido para mim. E eu que tive tanto trrabalho para apanhar muito menos a este velho louco! Aqui o alemão cessou o seu estranho solilóquio, porque, ao erguer os olhos, encontrou os de Edie Ochiltree, que não seguira o resto do rancho, mas que, encostado como de costume ao seu pau ferrado, se postava 268 do outro lado do túmulo. A fisionomia do velho, que possuía naturalmente um notável carácter de inteligência e de argúcia, tomou então uma expressão tão penetrante e tão subtil que Dousterswivel, embora aventureiro de profissão, não pôde sustentar-lhe o olhar. Mas sentiu necessidade de um esclarecimento e, apelando para a sua presença de espírito, começou a sondar o mendigo sobre os acontecimentos do dia. - bom senhor Edie Ochiltree... - Edie Ochiltree não é um senhor; é um pobre mendigo, um Bedesman do rei - respondeu o roupão azul. - Pois bem, então, bom Edie, que pensa de tudo isto? - Eu estava a pensar que Vossa Honra é muito bondoso (não me atreveria a dizer muito ingênuo) em dar a estes dois ricos gentlemen que têm terras e senhorios, e tanto ouro quanto querem, um tão grande tesouro -em prata (três vezes provada ao fogo, como diz a Escritura) e que poderia ter feito a sua fortuna e a sua felicidade, a sua e a "de duas ou três honestas pessoas como o senhor. - com efeito, Edie, meu brravo amigo, é bem verdade. Simplesmente, eu não sabia, isto é, não tinha bem a certeza onde eu próprio encontraria o tesouro. - Quê? Não foi segundo o conselho de Vossa Honra que Monkbarns e o cavaleiro de Knockwinnock vieram logo aqui? - Ah, sim! Mas foi por efeito de outrra circunstância. Eu não sabia que eles encontrariam o tesourro, embora o barrulho, os espirros, a tosse e os gemidos do espírrito que ouvi uma noite nestas ruínas, me tivessem
feito pressentir que havia tesourros e barras ocultos. Ah, meu Deus, aquele espírrito geme e suspirra sobre as riquezas como um burgomestre holandês que conta os seus dólares, depois de um grrande jantar oferecido na casa do município. - Acredita realmente nisso, Mr. Dousterswivel? Um homem tão sábio como o senhor, não tem vergonha? - Meu bom amigo - respondeu o químico, constrangido pelas circunstâncias a falar um pouco mais do que estava habituado - eu não acreditava mais do que o senhor ou qualquer outro, até à noite de que lhe 269 falo, e em que eu próprio ouvi os espírritos reunidos queixarrem-se e suspirrarem, e até a explicação que me deram hoje pela descoberta desta grrande caixa de prrata purra do México. Que querr, pois, o senhor que eu pense de tudo isto? - E que daria o senhor a alguém - indagou Edie - que o ajudasse a encontrar outro cofre como aquele? - O que lhe darria, meu Deus?... Um grrande quarto do conteúdo. - Para mim - disse o mendigo - se o segredo me pertencesse, desejaria metade; porque, embora eu não seja, como o senhor vê, mais do que um pobre homem andrajoso, e não possa ir vender barras de ouro e de prata, com receio de ser preso, no entanto, não faltariam pessoas que se encarregassem de me desembaraçar disso, com mais facilidade do que o senhor talvez pense. - Meu Deus, meu bom amigo, que disse eu? Era três quartos para seu quinhão que eu queria dizer, e um só quarto para o meu. - Não, não, Mr. Dusterdiabo, partilharemos igualmente o que encontrarmos, como dois irmãos... Ora, veja esta tábua que eu tive o cuidado de atirar para aquele canto escuro, fora de todos os olhares, enquanto Mjonkbarns se extasiava a contar o monte de prata; porque, sabe, ele é esperto, Monkbarns, e eu gostava que isto não lhe caísse nas mãos... O senhor lê sem dúvida a letra melhor do que eu, porque não sou muito culto, e depois não estou muito habituado. com esta modesta confissão da sua ignorância, Ochiltree tirou de trás de um pilar a tampa do cofre do tesouro, que, depois de arrancada dos gonzos, fora atirada para o lado com indiferença, enquanto cada um se impacientava por certificar-se do conteúdo da caixa, e, ao que parece, recolhida pelo mendigo. Havia uma palavra e um número na prancha, e o mendigo tornou-os mais visíveis cuspindo no seu velho lenço azul e limpando a terra que cobria a inscrição. Era em grossas letras pretas. - Compreende alguma coisa? Pode decifrá-la? perguntou Edie ao químico. - - disse o filósofo, como uma criança que soletra a sua lição no alfabeto ou abecedário - P, R, O, C, U, R, E, procure. Ah! É procure o número 1: é bem 270 isso, meu bom amigo; por procure entende-se escave, e isto não é senão o número 1. Meu Deus, há certamente algum grande lote para nós na roda da fortuna, meu bom Mr. Ochiltree. - Bem, é possível... mas não podemos pesquisar agora, porque levaram todos os utensílios com eles, e sem dúvida que mandarão alguém atulhar a cova e repor tudo no seu lugar... Mas se entretanto o senhor quiser vir comigo ao bosque, eu provarei a Vossa Honra que encontrou justamente o único homem do país que lhe pode contar a história de Malcolm Misticot e dos seus tesouros ocultos... Mas, primeiro, faremos bem, por prudência, em apagar os caracteres que se encontram nesta tábua e que nos poderiam
trair. E, com a ajuda da sua faca, o mendigo começou a raspar e a mutilar os caracteres de maneira a torná-los indecifráveis, depois cobriu a prancha com terra para fazer desaparecer as marcas. Dousterswivel olhava-o em silêncio e na dúvida. Havia nos movimentos do velho uma inteligência e uma prontidão que indicavam que ele não se deixava facilmente apanhar, e no entanto (porque os próprios velhacos reconhecem de certo modo o direito de prioridade) o nosso químico sentiase humilhado por desempenhar um papel secundário e por partilhar as descobertas com tão vil associado. No entanto, a avidez do lucro foi bastante poderosa para sobrepor-se às susceptibilidades do seu orgulho; e embora mais habituado a ser impostor do que ludibriado, não era sem uma certa credulidade pessoal que sentia fé nas grosseiras superstições que o ajudavam a enganar os outros. Mas, habituado a proceder como chefe neste género de ocasiões, sentia-se humilhado por se encontrar na situação de um abutre que um corvo encaminha para a sua presa. "Mas vejamos, escutemos essa história até o fim, pensou Dousterswivel, e muita infelicidade será se eu não fizer as minhas contas melhor do que Edie Ochiltree julga". O filósofo, assim transformado em discípulo de um mestre de artes ocultas, seguiu passivamente Ochiltree ao roble do prior, que, como o leitor recordará, não estava longe das ruínas, e onde se sentou e esperou em silêncio as comunicações do mendigo. 271 - Mr. Dustandsnivel (1) - disse o narrador - há muito tempo que ouvi contar esta história; porque saiba que os senhores de Knockwinnock, tanto sir Arthur, como seu pai e mesmo seu avô, que de todos me recordo um pouco, nunca gostaram de ouvir falar dela. Hoje também não gostam, mas não importa; isso não impede que ela seja assunto na cozinha, assim como outras coisas que, numa grande casa, são temas proibidos na sala. Eu soube as circunstâncias pelos velhos servidores da família; e nos dias em que vivemos, quando se deixa de recordar essas velhas histórias de antigos tempos em volta da lareira, ao serão, depressa a memória se apaga, de tal maneira, que eu não creio agora que exista um indivíduo no país capaz de lhe contar essa, excepto o próprio laird, porque há na biblioteca do castelo de Knockwinnock um livro em pergaminho que contém a narrativa. - Tudo isso está muito bem... mas continue a sua histórria, meu bom amigo - disse Dousterswivel. - Ora, como sabe - prosseguiu o mendigo -é um assunto que se passou naqueles velhos tempos em que o país estava cheio de discórdias e conflitos, quando cada um vivia por si e Deus por todos, e que a um homem não faltavam bens, se tivesse força para se apoderar deles e conserválos, contanto que tivesse poder para os manter. Era então quem mais podia sobrepor-se ao seu vizinho pela violência, por todos esse lado do Leste, e as coisas provavelmente passavam-se do mesmo modo no resto da Escócia. "Ora, pois, nesse tempo, Sir Ricardo Wardour chegou ao país, e era o primeiro desse nome que se via Por cá. Houve muitos outros depois, e a maior parte, incluindo o cognominado Inferno Armado, dormem agora sob estas ruínas. Era uma raça de homens orgulhosa e cruel, mas valente, no entanto, e que sempre se mostrou pronta a defender os interesses do País. Que Deus os salve a todos!... é um voto em que não entra muito papismo'... Chamavam-lhes os Wardour normandos, embora tivessem vindo do sul Para esta região. Ora, pois, esse sir Ricardo, que se
(1) Nova alteração maliciosa do nome do químico e que desta vez corresponde a "Senhor que não ouve bem". - N. do T. 272 chamava Mão Vermelha ou Mão Sangrenta, entrou em acordo com o velho Knockwinnock, porque já havia Knockwinnocks no país, e quis à força desposar sua filha única, que devia herdar o castelo e as terras; a pobre menina, Sibila Knockwinnock (foi o nome que lhe deram os que me contaram esta história) tinha grande aversão por este casamento, porque se afeiçoara de todo o coração a um dos seus primos, a quem o pai detestava. Sucedeu que após quatro meses de casamento, pois parece que ela foi obrigada a casar, e embora não houvesse senão só quatro meses, isso não impediu que ela lhe fizesse presente de um belo rapazinho Houve então na família um escândalo de que nem se faz ideia... A dar-lhes ouvidos, ela não servia senão para queimar e ele para enforcar. Tudo, porém, se arranjou, não sei como, e o filho foi enviado para fora do país, a fim de ser educado nas Highlands e cresceu, para se tornar um soberbo rapaz como tantos outros que provêm de ramo bastardo. Em seguida, sir Ricardo teve descendência sua, e tudo decorreu pacificamente até que o depuseram no túmulo. Mas então chegou Malcolm Misticot. Sir Arthur pretende que se deve dizer Misbegot, mas sempre lhe chamaram Misticot nos tempos antigos. Veio, pois, esse Malcolm, de Glen Island, com um bando de montanheses no seu rastro, sempre prontos a arranjar conflitos com os outros; apoderouse do castelo e das terras, como filho mais velho de sua mãe, e pôs todos os Wardour na rua... Houve nessa ocasião combates e carnificina, porque os gentlemen se dividiram por diferentes lados; Malcolm esteve muito tempo por de cima, fortificou o castelo e construiu aquela grande torre que ainda hoje se chama a torre de Misticot. - Meu velho e bom amigo meister Edie Ochiltree, - disse o alemão, interrompendo-o - eis uma histórria que vale a de um barrão de dezasseis quartos do meu país, e que é assim tão comprrida; mas gostarria mais de ouvir falar do ourro e da prrata. - Espere - continuou o mendigo - Este Malcolm era bem apoiado por um tio, irmão de seu pai, que era abade de Santa Ruth, aqui, e reuniram muitos tesouros entre eles para assegurar à sua casa a sucessão das terras de Knockwinnock. Há pessoas que dizem que os 273 monges nesses tempos, conheciam a arte de multiplicar os metais; de qualquer forma, eram muito ricos. Por fim, sucedeu que o jovem Wardour, que era o filho mais velho do Mão Sangrenta, desafiou Misticot para um combate em campo fechado, como se dizia então, pelo que eles entendiam um recinto que se cercava de paliçadas, como se faz para os combates de galos. Pois bem, Misticot ficou vencido e à mercê de seu irmão; mas este não quis que lhe tirassem a vida, por causa do sangue de Knockwinnock que corria nas veias de ambos. Malcolm foi então obrigado a fazer-se frade, e em breve morreu na abadia, de desgosto e de despeito. Ninguém soube nunca onde seu tio abade o sepultou, nem o que foi feito do seu ouro e da sua prata, porque ele defendia os direitos da Santa Igreja e não queria dar contas a ninguém. Mas difundiu-se uma profecia pelo país de que, quando se encontrasse o túmulo de Misticot, as terras de Knockwinnock estariam perdidas ou ganhas. - Ah, meu bom amigo Edie, isso não é muito improvável, se sir Arthur quiser malquistar-se com os seus bons amigos para agradar a Mr. Oldenpuck! E assim, o senhor acredita que estes são os tesourros de ourro e prrata pertencentes a esse bom meister Misticot? - Palavra que o creio, Mr. Dousterdiabo. - E acredita que ainda há outros desta espécie escondidos?
- com certeza que acredito: como seria possível de outro modo? Procure, nº I é como se se dissesse: Procura, e encontrarás o nº II. Aliás, não há senão Prata neste cofre, e eu ouvi dizer que no tesouro de Misticot havia muito belo ouro. - Então, meu bom amigo - disse o alemão, levantando-se bruscamente porque não nos atirramos imediatamente a esse pequeno negócio? - Por duas boas razões - respondeu o mendigo, que continuava a ficar tranquilamente sentado - primeiro, porque, como já disse, não temos nada para cavar, visto que levaram as enxadas e as pás, e, segundo, porque haveria uma "troupe" de basbaques de curiosos que viriam ver o que fazíamos, enquanto fosse dia, e que o laird também deve mandar alguém encher o fosso; assim, de todas as maneiras, seríamos 274 apanhados. Mas se o senhor quiser encontrar-se comigo aqui, à meia-noite, com uma lanterna furta-fogo, eu terei todos os utensílios preparados e ambos nos poderemos consagrar tranquilamente ao nosso negócio sem que ninguém o saiba. - Mas mas, meu bom amigo - objectou Dousterswivel, em quem a recordação da última aventura nocturna ainda não se desvanecera, nem mesmo com as brilhantes esperanças que Edie lhe apresentava - não é bom nem seguro ir junto do túmulo de meister Misdigot, a essa hora da noite: o senhor esqueceu-se do que lhe contei dos espírritos que eu ouvir suspirrar e gemer. Assegurro-lhe que aquele local não é tranquilo. - Se tem medo dos fantasmas - disse friamente o mendigo - eu farei a coisa sozinho e levo-lhe a sua parte da prata ao local que o senhor indicar. - Não, não, meu brravo meister Edie, isso dar-Lhe-ia muito trabalho. Eu venho, é melhor; porque, meu velho amigo, bem sabe que foi Herman Dousterswivel quem descobriu o túmulo de Mr. Misdigot, o bastardo, ao procurar um sítio onde pudesse ocultar umas moedas, para prregar uma partida ao meu amigo sir Arthur, somente para rir e por purra brincadeira: sim, fui eu quem retirou os escombros que estavam sobre o túmulo monumental, e que o encontrrei; sou eu, pois, que devo ser o seu herdeirro, e não serria honesto de minha parte não vir eu próprio buscar a minha herrança. - Então, à meia-noite - disse o mendigo - encontrar-nos-emos debaixo desta árvore. Eu estarei à espreita uns momentos e verei se alguém vem para junto do túmulo. Não direi senão que o laird o proibiu. Depois, irei comer alguma coisa para cear com Ringan, o carpinteiro, que é muito perto daqui, e peço-lhe para dormir na sua granja, e saio de mansinho durante a noite, sem que ninguém me veja. - Está bem, meu bom Mr. Edie, eu virrei esperrá-lo neste mesmo lugar, mesmo que todos os espírritos do outro mundo espirrem ou gemam. Assim falando, apertou a mão ao velho Edie, e depois de terem prometido um ao outro serem pontuais ao encontro, separaram-se. 275 XXV Mostra-me os sacos escondidos pela cupidez dos abedes, devolve a liberdade aos anjos (1) prisioneiros, e verás que os sinos, os livros e os círios me não repelem, quando o ouro e a prata me convidarem a aproximar-me. Rei João A noite anunciava-se tempestuosa, por vento e por aguaceiros que caíram
por várias vezes. "É preciso confessar, pensou o velho mendigo, vindo colocar-se sob o velho carvalho para aí esperar o seu companheiro, é preciso confessar que a natureza humana é maligna e obstinada. Não é uma grande avidez de lucro o que pode conduzir este Dousterswiv-el a um local tão selvagem como este, à meia-noite e com semelhantes rajadas de vento, para se entregar a pesquisas sob muros tão poeirentos como estes? E eu, por meu lado, não serei ainda mais doido em esperá-lo? " Fazendo estas sensatas reflexões, envolveu-se bem na sua capa e começou a contemplar a Lua, que se mostrava e desaparecia a espaços sob as nuvens sombrias e chuvosas que o vento fazia perpassar pela sua face. Os raios pálidos e incertos, que lançava "e cada vez que lograva desembaraçar-se da sombra que vinha obscurecê-la, caíam em cheio sobre as abóbadas fendidas e as janelas góticas do velho edifício, que, com a ajuda desta claridade passageira, mostrava visível por um instante no seu estado de ruína, ao passo que um momento depois não oferecia mais do que uma massa negra e confusa. O pequeno lago também recebia a sua parte dos fugitivos raios lunares e as águas, ora esbranquiçadas pelo seu reflexo, ora encrespadas pelo vento tempestuoso, (1) Nome que se dava antigamente às moedas de ouro. - N. Do T. 276 deixavam de indicar a sua existência quando as nuvens voltavam a invadir a Lua, a não ser pelo ruído monótono que faziam ao vir molhar a praia. O pequeno vale revestido de bosques, a cada rajada de vento que vinha engolfar-se no seu estreito recinto, repetia os diferentes gemidos das árvores agitadas pela tempestade, e que, enfraquecendo com o turbilhão, degeneravam num murmúrio surdo e ininterrupto, semelhante aos suspiros de um criminoso cujas forças acabaram de esgotar-se nas angústias da tortura. Estes sons melancólicos eram de molde a servir de alimento à superstição, excitando os terrores que ela receia e nos quais no entanto se compraz. Mas o velho Ochiltree não estava sujeito a sensações deste género e o seu espírito evocava nesse momento diversas recordações da mocidade. "Estive de guarda nos postos avançados, tanto na Alemanha como na América, pensava ele, em noites piores do que esta, e sabendo que talvez houvesse no bosque, diante de mim, uma dúzia dos seus atiradores. Mas permaneci sempre firme no meu posto; ninguém pôde dizer que apanhou Edie a dormir". Assim falando com ele próprio, pôs quase maquinalmente o pau ferrado ao ombro, tomou a atitude de uma sentinela e, ouvindo os passos de um homem que avançava para a árvore, exclamou num tom mais de harmonia com as recordações militares do que com a sua situação actual: - Alto! Quem vem lá? - Como diabo, meu bom Edie, fala o senhor tão alto como um baarrenhauter, a que os senhores chamam uma sentinela? - É que eu julgava sê-lo neste momento - respondeu o mendigo -Eis uma noite terrível: trouxe a lanterna e um saco para meter a prata? - Sim, sim, meu bom amigo - disse o alemão Ei-la, e eis também um par de alforges, um para si, outro para mim; ponho-os no meu cavalo para lhe poupar o trabalho de levar o seu por causa da sua idade avançada. - Tem então um cavalo? -perguntou Edie Ochiltree. - Oh! sim, meu bom amigo! -respondeu o químico - Está preso à sebe. 277
- Nesse caso, tenho uma palavra a dizer-lhe antes de concluirmos o nosso contrato: é que a minha parte da prata não irá no lombo do seu animal. - De que é que o senhor tem medo? - indagou o estrangeiro. - Apenas de perder de vista o cavalo, o homem e a prata - respondeu o pedinte. - Fique sabendo que está a tomar um gentleman por um grrande marroto! - Não seria o primeiro gentleman que se mostraria como tal - respondeu Ochiltree - Mas para quê questionar? Se tem vontade de continuar, marchemos; se não, volto para a granja de Ringan, para cima daquela boa palha de aveia que tive tanta pena de deixar e reponho a pá e a enxada onde as encontrei. Dousterswivel reflectiu um momento se não faria melhor em deixar partir Edie. para assegurar a posse exclusiva da totalidade das riquezas que esperava encontrar: mas a falta de utensílios para escavar a terra e a incerteza de saber se poderia sem auxílio cavar a tumba à profundidade necessária, sobretudo a relutância que experimentava em defrontar sozinho o terror que lhe inspirava o túmulo de Misticot, após a noite horrível que ali passara, todas estas considerações convenceram-no de que seria temeridade arriscar-se, só, àquela empresa. Procurando então o tom de lisonja que lhe era peculiar, embora intimamente muito irritado contra o mendigo, pediu ao seu bom amigo Edie Ochiltree que marchasse à frente e assegurou a sua adesão a tudo o que um tão excelente amigo pudesse propor. - Está bem - disse Edie - vamos, e tome cuidado com os seus pés no meio da erva, que é tão alta e dos escombros. Oxalá possamos conservar a nossa luz, com este vento terrível... Felizmente que ainda temos de vez em quando uns raios de lua. Assim falando, o velho Edie, seguido de perto Pelo químico, encaminhavase para o lado das ruínas. Mas parou de repente, quando chegou diante delas. - O senhor que é um sábio, Mr. Dousterswivel, e Que sabe tantas coisas sobre as obras maravilhosas da natureza, poder-me-ia responder a uma pergunta? Acredita nos fantasmas e nas aparições dos espíritos que dam pela terra? Vejamos: acredita ou não? 278 - Meu bom Mr. Edie - respondeu Dousterswivel, em voz baixa e suplicante por favor, é este o lu gar e a hora para fazer semelhantes perguntas? - Sem dúvida que é uma coisa e outra, Mr. Dousterswivel, porque me julgo obrigado a dizer-lhe que corre o boato de que o velho Misticot aparece. Ora, seria um mau encontro para nós esta noite, e quem sabe até que ponto ele gostaria da nossa intenção de visitar os seus tesouros? - Alle Quter Geister (1) - murmurou o alemão, tornando-se o resto do exorcismo indistinto devido ao tremor da sua voz - Tenho de pedir-lhe, Mr. Edie, que não fale assim, porque, pelo que ouvi a outra noite, tenho razão para crer... - Quanto a mim - disse Edie, entrando na nave e agitando um braço em sinal de desafio, e fazendo estalar os dedos - preocupa-me tanto como nada vê-lo aparecer neste momento; porque, afinal, é um espírito sem corpo, ao passo que nós somos espíritos e temos um corpo. - Pelo amor de Deus - suplicou Dousterswivel não fale assim nem de espírritos nem de corpos. - Bem - disse o mendigo - aqui está ainda a pedra; e quer haja um espírito ou não, nem por isso deixarei de escavar um pouco mais esta sepultura - Saltou então para dentro da cova de onde se retirara de manhã o precioso cofre - Estou velho e fraco agora, e não posso trabalhar muito tempo seguido; aliás, é justo que cada um faça o seu turno; tem que se
colocar no meu lugar e pegar na pá para retirar toda esta terra; em seguida, volto eu depois do senhor. Dousterswivel tomou então o lugar do mendigo, e trabalhou com o zelo que podia excitar numa alma cúpida, suspicaz e cobarde como a sua, o poderoso interesse da avareza junto com o desejo ardente de terminar a sua empresa, para deixar o mais cedo possível um lugar que lhe inspirava tanto terror. Edie, muito à vontade ao lado da cova, limitava-se a exortar o seu sócio a trabalhar firme. - Palavra que poucas pessoas já trabalharam por (1) Todos os bons espíritos. - N. do T. 279 tão bom salário; se a caixa que esperamos encontrar tivesse a décima parte do tamanho do cofre nº I ainda valia o dobro, se estivesse cheia de ouro em vez de prata. Diabo! O senhor trabalha como se tivesse sido educado para a enxada e a pá! Sabe que poderia ganhar meia coroa por dia? Tome cuidado com essa pedra, desvie os pés - disse ele, empurrando com o pé uma larga pedra que o alemão tivera o trabalho de levantar e que Edie empurrou para a cova sem piedade pelas pernas do seu sócio. Assim exortado pelo mendigo, Dousterswivel suava e cavava no meio das pedras e da terra barrenta, trabalhando como um cavalo e blasfemando intimamente em alemão. Quando alguma destas exclamações sacrílegas se escapava dos seus lábios, Edie, mudando de bateria, exclamava: - Não blasfeme, não blasfeme, não se pode saber quem nos escuta... Eh! Deus nos acuda! Que vejo eu além? Ah! Não é mais do que um ramo de era que se agita contra a parede. Quando a Lua o ilumina, dir-se-ia o braço de um morto a segurar um archote. Julguei que fosse o próprio Misticot. Mas não se apoquente com isso, continue a trabalhar, atire bem a terra para fora do caminho Diabos me levem se o senhor não percebe do ofício de coveiro tão bem como o próprio Will Winnet. Então, porque se detém? O senhor está precisamente no bom momento, agora. - Porque me detenho? -disse o alemão, num tom colérico e desapontado com a brreca, cheguei à rocha sobre a qual estas malditas ruínas (que Deus me perdoe) estão assentes. - Pois bem - replicou o mendigo - é justamente o sítio mais provável... Decerto não é senão uma grossa pedra que foi aí colocada para cobrir o ouro. Redobre o esforço, meu camarada; vamos, firme, uma boa enxadada quebrá-la-á, garanto-lhe... bom, é isso. com a breca, o senhor tem o braço tão vigoroso como Wallace. com efeito, o alemão, animado pelas exortações de Edie, descarregara duas ou três pancadas desesperadas que conseguiram, não fender o objecto sobre o qual incidiram, e que era realmente a rocha viva como ele conjecturara primeiro, mas quebrar o utensílio, 280 fazendo-o sentir nos dois braços uma sacudidela que se repercutiu até o ombro. - Bravo, meu rapaz! Eis a enxada de Ringan partida! É uma vergonha para aquela gente de Fairport, fabricar instrumentos tão fracos; experimente a pá' não desanime, Mr, Dousterswivel. O outro, sem dar resposta, subiu para fora do fosso, que podia ter seis pés de profundidade e dirigiu-se ao companheiro, numa voz trêmula de cólera. - Mr. Edie Ochiltree sabe com quem está a brincar, e conhece aquele a quem dirrige esses maus gracejos?
- Sim, conheço-o bem, Mr. Dousterswivel, e não é de hoje; mas não há nenhuma brincadeira da minha parte. Estou impacientemente à espera dos nossos tesouros; já devíamos ter enchido os dois alforges; espero que sejam suficientemente grandes para conter as nossas riquezas? - Tome cuidado, velho labrego - disse o filósofo, irritado - Se ainda se permitir uma brrincadeira, tome cuidado que eu racho-lhe o crrânio com esta enxada! - E onde estariam então as minhas mãos e o meu pau ferrado? -replicou Edie, num tom que não traía o menor receio - Não, não, Mr. Dousterswivel, eu não vivi tanto tempo neste mundo para me deixar pôr fora da porta dessa maneira. Mas porque diabo, camarada, se zanga assim com os amigos? Aposto em como vou encontrar o tesouro num minuto, eu. E, saltando para o fosso, pegou na enxada. - Jurro - disse o alemão, cujas suspeitas tinham despertado completamente - que se o senhor tiver a audácia de me pregar semelhante partida, pagama de uma maneira terrível. - Ora, oiçam-no agora! - exclamou Ochiltree - Pelo menos, ele lá sabe como fazer as pessoas encontrar tesouros! com a breca, isto leva-me a crer que já alguém usou deste meio com ele. Ao ouvir esta alusão muito clara à cena que se passara entre sir Arthur e ele, o filósofo acabou por perder a paciência e, abandonando-se à violência natural das suas paixões, ergueu o cabo da enxada partida para o abater sobre a cabeça do velho. O golpe, segundo todas as aparências, teria sido fatal, se aquele 281 a quem ameaçava não tivesse exclamado em voz máscula e firme: - Tenha vergonha, homem ruim! Julga que o céu e a terra o deixariam assassinar um velho que poderia ser seu pai? Olhe para trás de si. Dousterswivel voltou-se maquinalmente e viu, para sua extrema surpresa, um vulto alto e sombrio que se encontrava de pé, atrás dele. A aparição, sem lhe dar tempo de recorrer ao exorcismo ou à fuga, empregou imediatamente as vias de facto e por duas ou três vezes tomou as medidas dos ombros do químico com bordoadas tão substanciais que ele caiu e ficou uns minutos privado dos sentidos, em consequência da sua consternação e terror. Quando voltou a ele, encontrou-se só, na igreja arruinada, deitado na terra mole e húmida que retirara do túmulo de Misticot. Soergueu-se com uma sensação confusa de cólera, de dor e de pavor; e não foi senão ao cabo de uns minutos que pôde conseguir bastante clareza de ideias para se lembrar de como ali viera e com que fim. Conforme a memória lhe voltou, não pôde conceber dúvidas de que o isco que Ochiltree lhe apresentara para o atrair a um lugar tão solitário, os sarcasmos com os quais provocara um conflito e o rápido socorro que ali se encontrara tão a propósito para o resolver, fosem combinações de um plano consertado para lançar a vergonha e o dano sobre a pessoa de Herman Dousterswivel. Pareceu-lhe POUCO provável que devesse a fadiga, o medo e as Pancadas que tivera de sofrer, só à malícia de Ochiltree, e concluiu que o mendigo não desempenhara senão o papel que lhe fora designado por uma personagem mais importante. Hesitava nas suas suspeitas entre Oldbuck e sir Arthur Wardour. O primeiro nunca procurara ocultar a aversão que sentia por ele; mas ele fizera tanto mal ao último, que, embora não pensasse que já lhe conhecesse toda a extensão, podia facilmente supor que soubera o bastante para se sentir animado do desejo de vingança.
Ochiltree também fizera alusão a uma circunstância, que o alemão tinha razões para julgar particular, a sir Arthur e a ele, e que o mendigo não pudera saber senão pelo primeiro. Também se lembrava de que a linguagem que Oldbuck usara com ele denunciava uma 202 convicção da sua charlatanice, e que sir Arthur a escutara sem empregar nenhuma vivacidade em defendê-lo. Enfim, a maneira como Dousterswivel supunha que o baronnet exercera a sua vingança não era nada incompatível com os usos dos países estrangeiros, que o químico conhecia melhor do que os do norte e a Grã-Bretanha. Nele, como na maior parte dos maus, a suspeita de uma injúria era sempre acompanhada de projectos de vingança; e mal Dousterswivel recobrou o uso das suas pernas, jurou a ruína do seu benfeitor, acontecimento que infelizmente ele não tinha senão demasiados meios para acelerar. Mas, embora o desígnio de se vingar se apresentasse ao seu espírito, não era aquele o momento de se entregar a semelhantes reflexões. A hora, o lugar, o estado em que se encontrava, e talvez a presença e a vizinhança dos seus assaltantes, exigiam que primeiro se ocupasse da sua própria segurança. A lanterna caira e apagara-se na zaragata. O vento, que gemia antes com tanta violência através das alas do edifício arruinado, abrandado pela chuva, extinguira-se quase inteiramente. A Lua também, pela mesma causa, desaparecera por completo; e apesar de Dousterswivel conhecer bastante as ruínas e de saber que devia tentar atingir a porta de Leste, as suas ideias ainda estavam tão confusas que hesitou algum tempo antes de certificar-se para que lado devia voltar-se, a fim de a encontrar. Nesta perplexidade, os terrores da superstição, aos quais as trevas e uma consciência culposa davam nova força, vieram apavorar ainda mais a sua imaginação perturbada. "Ora, pensou ele, não passam de necessidades; tudo isto provém desta maldita impostura. Como diabo esse baronnet escocês de cabeça dura, que eu conduzo pela arreata há cinco anos, pôde troçar assim de Herman Dousterswivel?... " Acabava esta reflexão quando sobreveio um incidente feito para abalar de novo a sua coragem. No meio dos últimos gemidos do vento e do ruído melancólico produzido pela chuva que caía nas folhas e nas ruínas, pareceu-lhe ouvir de repente, e não muito longe, o coro de uma música vocal, tão triste e tão solene que parecia ser o dos queixumes dos espíritos que pertenceram aos antigos proprietários daquelas ruínas desertas, e que chorassem agora a solidão e o abandono 283 do seu recinto sagrado. Dousterswivel, que se levantara e que tacteava ao longo da parede da igreja, sentiu seus pés agarrarem-se à terra devido ao terror que lhe causou este novo fenômeno. Todas as faculdades da sua alma pareceram, de momento, concentradas no sentido do ouvido, e todas se juntavam para o convencer de que o cântico lúgubre e pro"longado que ouvia era a música consagrada a um dos hinos fúnebres, os mais solenes da igreja de Roma. Mas porquê e para quê era ela cantada no seio de uma tal solidão? Era uma pergunta que a imaginação turbada do químico, presa de mil terrores e cheia de todas as superstições alemãs, nem mesmo ousava formular. Outro dos seus sentidos veio em breve tomar parte neste exame. Num dos extremos da igreja, na base de uma escada de alguns degraus, estava uma pequena porta de ferro gradeada, que abria, tanto quanto podia recordarse, para uma espécie de sala abobadada ou sacristia. Volvendo os olhos para o lado de onde partiam os cânticos, notou o reflexo de uma luz
avermelhada através da grade e nos degraus que lá conduziam. Dousterswivel ficou um momento indeciso sobre o que devia fazer; depois, bruscamente, tomando uma resolução desesperada, começou a encaminhar-se para o local de onde vinha a luz. Encorajado pelo sinal da cruz, e por tantos exorcismos quantos lhe pôde fornecer a memória, avançou para a grade, através da qual podia, sem ser notado, ver tudo o que se passava no interior da sala baixa. Quando se aproximava a passo incerto e trêmulo, o cântico, após duas ou três cadências estranhas e prolongadas, cessou e tudo foi substituído de repente por um profundo silêncio. Aproximando-se da grade, o interior da sacristia ofereceu-lhe um espectáculo singular: viu um túmulo aberto, aos quatro cantos do qual estavam quatro brandões de cerca de seis pés de altura, um ataúde no qual se encontrava um cadáver envolto no sudário, e os braços cruzados sobre o peito, colocado em cima de cavaletes, ao lado do túmulo, como se estivesse prestes a ser sepultado. Um padre, revestido de sobrepeliz e estola, segurava aberto o livro do ofício; outro eclesiástico de vestes sacerdotais trazia a caldeirinha e duas crianças 284 de sobrepeliz branca seguravam nos turíbulos com incenso. Um homem de luto carregado, de alta estatura e porte imponente outrora, mas agora curvado pela idade ou pela doença, estava sozinho junto do féretro. Tais eram as figuras mais notáveis deste grupo. A certa distância, achavam-se duas ou três pessoas dos dois sexos, cobertas por capas e grandes capuzes negros, e cinco ou seis outras no mesmo traje fúnebre, ainda mais afastadas do corpo, alinhavam-se imóveis ao longo da parede da sala abobadada, tendo cada uma na mão uma grande vela de cera preta. A luz e o fumo que se evolavam de tanto círio faziam brilhar a atmosfera num vapor avermelhado, misterioso e estranho desta singular aparição. A voz do padre, alta, clara e sonora, começou então a ler, no breviário que tinha na mão, aquelas palavras solenes que o rito da Igreja católica quis consagrar ao momento em que o pó regressa ao pó. Entretanto, Dousterswivel permanecia ainda indeciso (e não é para admirar, atendendo à hora, lugar e inesperado do espectáculo) sobre se o que via era uma representação autêntica ou sobrenatural daquelas cerimonias outrora tão familiares àquelas paredes, mas que se tornaram agora muito raras nos países protestantes, e que quase não se viram mais na Escócia. Hesitava sobre se devia esperar o fim daquela cena ou se tentaria voltar à nave, quando uma mudança de posição o fez notar, através da grade, por uma das pessoas de luto. Esta denunciou por um sinal a sua descoberta ao indivíduo que se encontrava à parte, perto da urna, e que respondeu por outro sinal a duas pessoas que, destacando-se do grupo e saindo sem ruído, e como que receando interromper o serviço, vieram abrir a grade que os separava do estranho. Cada uma tomou-o por um braço e, exercendo um grau de força ao qual ele seria incapaz de resistir, mesmo que o medo lhe permitisse tentá-lo, colocaram-no no pavimento da igreja e sentaramse cada uma de seu lado, como que para o reter. Convencido de que estava entre as mãos de mortais semelhantes a ele, o alemão desejaria fazer-lhes algumas perguntas; mas enquanto um erguia a mão para a abóbada, onde a voz do padre se fazia ouvir distintamente, o outro levava o dedo aos lábios em sinal de silêncio, 285 recomendação à qual o filósofo julgou que o mais prudente seria obedecer. Retiveram-no assim até que um sonoro "aleluia", ecoando sob os arcos desertos de Santa Ruth, pôs termo à singular cerimónia, da qual quisera o acaso que ele fosse testemunha.
Quando o hino deixou de soar, um dos seus negros guardiões disse-lhe, numa voz e num dialecto que lhe eram familiares. - Meu Deus, Mr. Dousterswivel, é o senhor? Não nos podia ter dito que desejava assistir à cerimonia? Milorde não pôde ficar contente de o senhor vir dessa maneira, às escondidas. - Em nome do céu, diga-me quem é? - perguntou o alemão, por sua vez. - Quem sou? E quem quer o senhor que eu seja senão Ringan Aikwood, o caseiro de Knockwinock. E que pode o senhor fazer aqui, a esta hora da noite? A não ser que não tenha vindo para assistir aos funerais da dama. - Declaro-lhe, meu bom senhor caseiro Aikwood disse o alemão, levantandose - que esta mesma noite fui assassinado, roubado e posto em perrigo de vida. - Para homem assassinado, o senhor está razoavelmente no uso da palavra; e quem diabo poderia roubá-lo aqui e pôr a sua vida em perigo, Mr. Dousterswivel? - Vou dizer-lho, senhor caseiro Aikwood Ringan; não foi outro senão o velho miserável e andrajoso do roupão azul, a quem chamam Edie Ochiltree. - Não posso acreditar nisso - respondeu Ringan Edie é meu conhecido, e era-o de meu pai antes de mim, como um homem franco, leal e incapaz de uma acção covarde. Olhe, está precisamente deitado na nossa granja, onde dorme desde as dez horas da noite. Assim, ter-lhe-á tocado quem o senhor quiser, Mr. Dousterswivel, mas, se acaso alguém lhe tocou, garanto-lhe que Edie está inocente. - Mr. Ringan Aikwood caseirro, não sei o que o senhor quer dizer por inocente, mas declarro-lhe eu que o seu frranco e leal amigo Edie Ochiltree me roubou cinquenta libres esterlinas e que está agorra tanto na sua granja como eu estou no reino do céu. - Pois bem, senhor, se quiser vir comigo, como as pessoas do enterro se dispersaram, arranjamos-lhe uma 286 cama lá em casa e veremos se Edie está na granja. Havia dois tipos de mau aspecto que deixavam a granja quando nós chegámos com o corpo, é certo; e o padre, que não gosta de que nenhum herético seja testemunha das nossas cerimonias religiosas, mandou atrás deles dois dos homens a cavalo, segundo ouvimos dizer. Assim falando, o obsequioso caseiro, ajudado por um personagem silencioso, que era seu filho, desembaraçou-se da sua capa negra e preparou-se para acompanhar Dousterswivel a um lugar onde este pudesse encontrar do que tanto carecia. - Amanhã, dirrijo-me ao magistrado - disse o alemão - e farrei pôr em execução a lei contra todos esses esfarrapados. Assim jurando vingança contra os autores da sua desgraça, atravessava as ruínas em passo cambaleante, amparado por Ringan e seu filho, num estado de fraqueza que necessitava de socorro. Quando chegaram fora da abadia e alcançaram a relva que a cercava, Dousterswivel pôde ver os archotes, que lhe tinham causado tantos alarmes, sairem das ruínas em procissão irregular e lançarem a sua claridade como a de fogos-fátuos sobre as margens do lago. Depois de terem iluminado a vereda durante algum tempo, de maneira vacilante, as luzes apagaram-se de repente. - Apagamos sempre os nossos brandões no poço da Santa Cruz, nesta espécie de ocasiões - disse o caseiro ao alquimista. Efectivamente, nenhum vestígio visível da procissão continuou a oferecerse aos olhos de Dousterswivel, embora ele pudesse ouvir ainda, de vez em
quando, o eco repetir o ruído distante e sempre a decrescer das patas dos cavalos para os lados onde o cortejo fúnebre se encaminhara. 287 XXVI Vamos Que a pequena canoa singre bem e obtenha uma pesca melhor! Que ela siga bem É o ganha-pão dos filhos. A canoa singra, a canoa singra E que seja bem alegre a vida dos que trazem o peixe e a canastra. Velha Balada Vamos agora introduzir o leitor na cabana do pescador de que tratámos no capítulo XI desta história edificante. Desejaria poder dizer que a ordem e o asseio reinavam lá dentro e que estava decentemente mobilada, mas sou, pelo contrário, forçado a confessar que tudo ali era confusão, desordem e sujidade, o que não impedia que os seus moradores, isto é, Luckie Mucklebackit e sua família, tivessem um ar de abastança e mesmo de opulência que parecia justificar um velho provérbio escocês: engorda-se na porcaria. Apesar de se estar no Verão, um grande lume ardia na lareira e servia ao mesmo tempo para iluminar, aquecer e preparar as refeições. A pesca fora boa, e a família, com a sua peculiar imprevidência, não cessava, desde que fizera a descarga, de grelhar e de fritar uma assaz grande quantidade de peixe reservada ao consumo caseiro, enquanto as espinhas e as escamas se amontoavam nos pratos de madeira com bocados de biwmocks (1) entre jarros ornados de mossas, meio cheios de cerveja. A figura alta e atlética de Maggie, movendo-se entre um bando de filhas e filhas mais pequenos, repelindo ora um, ora outro, com esta exclamação carinhosa: "Não estorvem o caminho, ruins sujeitos! ", formava um flagrante contraste com o olhar fixo e o ar meio cretino da mãe de seu marido. Era uma mulher chegada ao último período da vida humana. Estava sentada na sua cadeira habitual, muito perto do lume, do qual procurava o calor e ao (1) Bolos de farinha de aveia grelhados nas brasas. -N. Do T. 288 que, no entanto, ficava quase insensível. Ora parecia murmurar alguma coisa entre dentes, ora sorria vagamente às crianças, que puxavam, a brincar, a sua touca ou as pontas do seu avental de quadrados azuis. com sua roca no seio e o fuso na mão, fiava negligentemente e como que num movimento maquinal, segundo a antiga moda escocesa. As crianças mais novas passavam entre as pernas dos mais velhos, observavam os movimentos do fuso da avó conforme ele girava e, uma vez por outra, aventuravam-se a interromper a sua marcha quando lhe sucedia rolarem no chão, acidente ao qual as fiandeiras já não estão expostas, desde que o uso da roda foi geralmente adoptado na Escócia, de forma que até a bela Princesa do bosque adormecido poderia percorrer todo o país sem risco de encontrar um fuso que lhe picasse as mãos. Apesar de ser mais de meia-noite, ainda toda a família estava de pé e não parecia disposta a deitar-se. A dona da casa achava-se muito ocupada em grelhar os bolos de aveia; e a filha mais velha, essa náiade seminua de quem já falámos algures, preparava uma pilha de peixe seco ao fumo de madeira verde, para ser comido com aqueles bolos saborosos. A meio destas ocupações, ouviu-se uma pequena pancada na porta, acompanhada desta pergunta: "Ainda estão de pé?... ". A resposta foi: "Sem dúvida, sem dúvida; entre, minha querida", e, levantando-se a aldrava, viu-se aparecer Jenny Rintherout, criada do nosso Antiquário.
- Ah, santo Deus! - exclamou a dona da casa És tu, Jenny? Tornaste-te muito rara, minha filha. - Realmente, temos andado tão ocupadas com o ferimento do capitão Heitor, lá em casa, que há quinze dias que nem posso deitar o nariz de fora; mas agora está melhor, e o velho Caxon dorme no seu quarta para o caso de ele precisar de alguma coisa. E assim que a nossa gente foi para a cama, não fiz mais do que pôr a touca e, deixando a porta fechada na aldrava, para o caso de alguém querer entrar ou sair enquanto estou fora, vim ver se havia alguma novidade por esta casa. - Sim, sim - respondeu Luckie Mucklebackit - Já vejo que vens muito enfeitada; é Steenie que vens procurar, mas ele não está em casa esta noite; e, 289 aliás tu não és o que convém a Steenie, minha filha; uma' rapariga como tu não está apta a manter um homem. - Tão-pouco Steenie é o que mais me convém respondeu Jenny, com um meneio de cabeça que não ficaria mal a uma menina de mais alto nascimento - Eu quero um marido que possa manter a sua mulher. - Deixa-te disso, minha amiga, são ideias que arranjaram nas cidades e nas vilas. Mas as mulheres dos pescadores não são assim tão parvas; elas são as donas do homem, da casa e da bolsa. - Isso não as impede de trabalhar como bestas de carga -disse a ninfa da terra à ninfa das águas Desde que o barco vara a praia, o mandrião do pescador não presta para nada, e é a mulher quem tem de ir chafurdar na água para procurar o peixe e trazê-lo para terra. Quanto ao homem, tira o seu fato molhado para vestir o seco, e senta-se ao pé do lume, de cachimbo na boca, sua pinta de aguardente ao lado, tão descansado como um velho burguês, e não se rala nada enquanto o barco não estiver a flutuar. Mas a pobre mulher tem de levar os remos às costas até casa, depois tem de levar o peixe à cidade próxima, e grita, e discute com cada freguesa que venha comprar, até conseguir vender-lho. E eis a vida das mulheres dos pescadores; não passam de pobres escravas. - Escravas! Deixa-te disso, minha amiga; vê-se bem que não sabes nada do que dizes, quando chamas escravas às donas de casa. Cita-me, pois, uma só palavra que o meu Saunders ouse dizer, um só passo Que ouse dar na casa, a não ser para beber e comer e brincar um pouco com os nossos filhos. Ele é demasiado sensato para se julgar dono de alguma coisa aqui, desde o tecto ao pequeno prato partido que está ali naquele banco. Ele sabe muito bem quem o alimenta, Quem o veste, quem mantém tudo em bom estado e a boa ordem na casa, enquanto o seu barco balouça no treito. Pobre rapaz! Não, não, minha filha, aquela que vende a mercadoria detém a bolsa, e quem tem a bolsa governa a casa. Mostra-me um dos teus caseiros Que queira deixar sua mulher levar o gado ao mercado e receber o dinheiro. Não, não, nada disso. 290 - Pois bem, Maggie, cada terra com seu uso. Mas que é então feito de Steenie, esta noite, à hora a que toda a gente recolheu e se deitou? E onde está o seu homem? - Meti o meu homem na cama, porque já não podia mais, e Steenie foi fazer uma expedição nocturna com o velho mendigo Edie. Não tardarão em voltar; senta-te. - Bem, boa mulher, eu não tenho muito tempo para me demorar. Mas tenho de contar-lhe as novidades. Decerto ouviu dizer que sir Arthur encontrou um grande cofre cheio de ouro, em Santa Ruth. Ficará mais orgulhoso do que nunca; não se atreverá a espirrar com medo de ver os seus sapatos.
- Sim, sim, correu por aí esse boato; mas o velho Edie acha que aumentaram vinte vezes mais do que foi, e ele viu-o desenterrar. Ah! Não seriam pobres como nós que fariam semelhante achado. - Isso é bem verdade. E já sabe, sem dúvida, da morte da condessa de Glenallan, e como foi exposta numa cama sumptuosa, e como se deve sepultar esta mesma noite em Santa Ruth, à luz de archotes; e os criados papistas, e Ringan Aikwood, que também é papista, devem todos lá estar. Deve ser a coisa mais bela que se possa ver. - Olha, minha filha - respondeu a nereida - se lá não forem senão papistas, não terá muita gente; porque, como diz o honesto Mr. Blattergowl, ao falar da igreja católica, não há muita gente que beba a sua taça de encantamentos neste recanto de terra de eleitos. Mas que ideia foi essa de enterrar a velha dama (e era uma rude patroa) assim de noite? Ia apostar em como a avó sabia isso. Nesta altura, elevando a voz, chamou por duas ou três vezes: "Avó! Avó! " Mas, mergulhada na apatia da velhice e atacada de surdez, a velha sibila a quem se dirigia continuava a mover o seu fuso, sem ouvir o apelo que lhe tinham feito. - Fala à tua avó, Jenny. Quanto a mim, preferia chamar o barco a meia milha daqui, com o vento nordeste a soprar-me na cara. - Boa mãezinha - disse a pequena náiade, numa voz mais familiar à anciã -minha mãe pergunta porque 291 é que os Glenallan enterram sempre os seus à luz de archotes nas ruínas de Santa Ruth. A velha deteve-se no momento em que virava o seu fuso; voltou-se para o resto da família, levantou a mão amarelada, trêmula e ressequida, e mostrou um rosto terroso e enrugado, que não diferia do de um cadáver senão pelo movimento assaz vivo de dois olhos azuis claros; e como se um ponto de contacto a tivesse de novo associado ao mundo dos vivos, respondeu: - A pequena não pergunta porque é que os Glenallan enterram os seus mortos à luz de archotes? Morreu algum Glenallan há pouco tempo? - Poderíamos todos morrer e ser enterrados. - disse Maggie - que julgo que a senhora não se aperceberia - Depois, elevando a voz de maneira a fazer-se ouvir por sua sogra, ajuntou -Foi a velha condessa. - Deixou finalmente este mundo? - disse a anciã, numa voz que denunciava mais agitação do que a sua extrema velhice e apatia geral do seu carácter pareciam susceptíveis - Foi chamada, enfim, às suas derradeiras contas, depois de uma tão longa carreira de orgulho e de tirania? Oh, Deus se digne perdoar-Lhe! - Mas a mãe perguntava - insistiu a jovem -porque é que a família dos Glenallan enterram sempre os seus mortos à luz de archotes. - É o costume deles - disse a avó - desde a data em que o poderoso conde caiu na terrível batalha de Harlaw, onde se diz que o cântico fúnebre foi entoado desde a embocadura do Tay até a do Cabrach, não se ouvia outro som senão o dos queixumes e lamentos sobre a morte de tão ilustres guerreiros que iram em combate contra Donald das Ilhas. Mas a filha do grande conde vivia ainda. As mulheres da casa dos Glenallan foram sempre uma raça dura e orgulhosa. Ela não quis que entoassem o cântico fúnebre Por seu filho; mas, no silêncio da noite, foi depô-lo no lugar de repouso sem nenhum cântico ou hino fúnebre, e sem a cerimónia do festim. Ela disse que no dia da sua morte ele tinha morto
bastante gente para que as viúvas e as filhas dos que cairam sob os seus golpes, ao entoarem o cântico funério em honra dos que elas perderam, cantassem também por 292 seu filho. É uma frase de que a família se ufana, e depois teve a honra de a respeitar, mas sobretudo nos últimos tempos, porque de noite celebram mais livremente as suas cerimonias papistas e mais secretamente que de dia. Pelo menos, era assim no meu tempo. Poderiam ser então perturbados pelas autoridades de Fairport. E pode ser agora, como já ouvi dizer, que os deixem tranquilos; o mundo está muito mudado; muitas vezes eu própria nem sei se estou sentada ou de pé, morta ou viva. E olhando em volta do lume com aquele ar vago e confuso que parecia denunciar a incerteza de que se queixava, a velha Elspeth recomeçou, segundo o seu hábito, a mover maquinalmente o fuso. - Meu Deus - disse a meia voz Jenny Rintherout à sua vizinha - é medonho ver a sua velha mãe quando ela começa a declamar desta maneira: é como um morto que falasse aos vivos. - Não te enganas; ela nada sabe do que se passa em sua volta; mas metamna nas suas velhas histórias e não se fará rogada para falar. Sabe bem outras sobre essa família Glenallan. O pai do meu homem foi seu pescador há muito tempo. Fica sabendo que os papistas comem muito peixe; pelo menos, há isso de bom na sua religião, seja lá ela o que seja no resto. Eu tinha sempre a certeza de vender o mais belo peixe, e ao mais alto preço, para a mesa da condessa, principalmente à sexta-feira. Mas olha como a velha mãe mexe as mãos e os lábios: a sua cabeça fermenta agora como levedura; vai talvez falar toda a noite, enquanto por vezes está toda uma semana sem dizer palavra, a não ser às crianças. - Palavra, senhora Mucklebackit - replicou Jenny - é uma mulher que tem alguma coisa de extraordinário; mete-me medo. Julga que ela seja o que devia ser? Há pessoas que dizem que ela não vai à igreja e nunca se aproxima do ministro, e que outrora era papista, mas que, depois do marido morrer, ninguém mais sabe o que ela é. Julga que ela não seja um pouco bruxa? - Bruxa? Estás doida Por se ser velha, é-se bruxa? Se me falasses de Alison Breck, então, em consciência, não poderia responder por ela; vi as suas canastras repletas de peixe quando... 293 - Silêncio, Maggie - disse Jenny, baixinho - Julgo que a sua velha mãe ainda vai falar. - Alguém me disse - perguntou a velha sibila a não ser que o tivesse sonhado, ou que me fosse revelado das alturas, que Joscelind, a dama de Glenallan, morrera e se enterrara esta noite? - Sim, boa mãe! - exclamou a nora -É verdade. - Faça-se a vontade de Deus - disse a velha Elspeth -Ela fez alguns infelizes no seu tempo! Sim, até o seu próprio filho... Ele vive ainda? - Sim, vive ainda; mas quem poderá dizer se por muito tempo? Não se lembra de que ele veio perguntar por si, esta Primavera, e que lhe deixou dinheiro? - Pode ser, Maggie, mas já o esqueci. Era um belo homem outrora, e seu pai tinha-o sido antes dele; e se vivesse muito tempo, poderiam ter sido todos muito felizes. Mas morreu, e a condessa apoderou-se do espírito do filho, e fê-lo acreditar no que ele nunca deveria ter acreditado, e praticar uma acção de que ele nunca cessou de se arrepender, e que nunca deixará de lamentar, ainda que a sua vida seja tão longa, tão fatigante como a minha. - Oh, que foi, avó? - Que foi, boa mãe? - Que foi. Luckie Elspeth? -
bradaram ao mesmo tempo, as crianças, a mãe e Jenny Rintherout. - Não mo perguntem, e peçam a Deus para que nunca as abandonem ao orgulho e à obstinação de vossos corações. Há paixões tão poderosas na cabana como no castelo; posso dar-lhes disso um triste testemunho. Oh! Aquela triste e horrível noite nunca sairá da minha velha cabeça? Vê-la-ei sempre estendida no chão, com os seus longos cabelos todos encharcados de água salgada. O céu vingar-se-á um dia de todos os que tomaram parte nisso. Meu Deus, meu filho estará no mar nesta noite de temporal? - Não, não, minha mãe, não há barco que possa aguentar-se com o vento que faz. Ele está ali na cama. - E Steenie foi para o mar? - Não, avó; Steenie foi com o velho Edie Ochiltree, o mendigo. Talvez fossem ver os funerais. - Isso não pode ser - disse a dona da casa - porq1 nada sabíamos quando Jock Rand entrou e nos disse que os Aikwood tinham recebido ordem para lá 294 ir; eles têm o cuidado de manter essas coisas secretas e devem ter trazido o corpo do castelo, que fica a dez milhas daqui, a coberto das trevas da noite. Ela esteve exposta durante mais de dez dias na grande câmara forrada de preto e iluminada por círios. - Deus a queira absolver! - exclamou a velha Eispeth. cuja cabeça parecia toda ocupada na morte da condessa -Era um bem duro coração de mulher; mas foi dar contas das suas acções Àquele cuja misericórdia é infinita... Deus permita que ela a experimente também! E recaiu num silêncio que não quebrou mais durante o resto da noite. - Gostaria de saber o que aquele velho louco do mendigo e o nosso filho Steenie podem fazer a esta hora da noite - disse Maggie Mucklebackit, cuja exclamação de surpresa foi repetida por Jenny -Uma de vós, pequenas - ajuntou ela - que suba ao alto do rochedo e comece a gritar por eles, para o caso de estarem ao alcance de voz: "Os bolos vão redu zir-se a cinzas! " A rapariga partiu; mas uns minutos depois voltava, a gritar: - Ah, mãe! Ah, avó! Eis um fantasma branco que precipita dois fantasmas negros do alto dos rochedos!... Mal esta singular notícia era anunciada, ouviu-se o ruído de uns passos, e o jovem Steenie Mucklebackit, seguido de perto por Edie Ochiltree, meteu-se precipitadamente na cabana. Ambos estavam sem fôlego. A primeira coisa que Steenie fez, foi procurar a tranca que fechava a porta, e que sua mãe lhe lembrou ter queimado num Inverno muito duro, três anos antes. - E - disse ela - que necessidade tinham de uma tranca, pessoas como nós? - Ninguém vem atrás de nós - disse o mendigo, depois de retomar o fôlego - Nós somos precisamente como os maus, que fogem quando não se pensa em persegui-los. - Mas, palavra, que vinha alguém na nossa peugada - replicou Steenie Era um espírito ou coisa que o valha. - Era um homem de branco, a cavalo - disse Edie 295 - e cujo cavalo se atascou na terra, muito mole para o nortar, e derrubou o cavaleiro para o lado; eu bem me apercebi disso. Francamente, nunca acreditei que as minhas velhas pernas me trouxessem tão depressa... Corri quase tanto como se estivesse em Prestonpans (1) - com a breca! - disse Maggie - Foram ambos bem prudentes; era, sem dúvida, um dos cavaleiros que escoltava o enterro da condessa.
- Quê! - exclamou Edie - A velha condessa foi sepultada esta noite em Santa Ruth? Ia jurar que foram o ruído e as luzes que nos fizeram partir. Se soubesse isso, tê-los-ia esperado, e não teria lá deixado o homem; mas eles hão-de tratá-lo; bateu com muita força, Steenie; receio que o tenha abatido. - Nada disso - replicou Steenie, a rir - Ele tem boas costas, bastante largas, e não fiz mais do que tomar-lhes a medida com o meu cacete. com os diabos, se eu não tivesse chegado a tempo, ele ia fazer-lhe saltar os miolos, meu velho rapaz. - Pois bem, visto que me tirei são e salvo desta questão, resolvi não mais tentar a Providência; mas não posso acreditar que haja mal em pregar uma partida desta espécie a um velhaco tão consumado que não vive senão de enganar as pessoas honestas. - Mas que vamos fazer a isto? - disse Steenie, mostrando uma pequena carteira. - Deus nos acuda! - exclamou Edie, muito alarmado- Para que tocou nisso? Sabe que basta uma só folha desse livro para nos fazer enforcar aos dois? - Não sabia - respondeu Steenie - Sem dúvida, este livrinho caiu da algibeira dele, porque o encontrei debaixo dos meus pés, quando tentava repô-lo sobre as suas pernas, e meti-o no bolso para que não se Perdesse; depois, ouvimos os passos de cavalos, e o senhor gritou-me que fugisse, de forma que não Pensei mais na carteira. - É preciso encontrar meio de lha entregar de (1) Cidade perto de Edimburgo, onde se travou uma batalha entre Charles Edward, neto de James II, e as tropas reais, em 1745. - N. do T. 296 qualquer maneira; talvez seja melhor levá-la o senhor mesmo a casa de Ringan Aikood, ao romper do dia. Nem por cem libras esterlinas eu desejaria que a encontrassem nas nossas mãos. Steenie prometeu seguir este conselho. - Eis uma linda noite que acaba de passar. Mr. Steenie - disse Jenny Rintherout, que, aborrecida por não ter sido notada, veio apresentar-se diante do jovem pescador - Uma linda noite, realmente! A correr como vagabundos e a fazer-se perseguir por lobisomens, quando devia estar na cama a dormir, como o seu honesto pai. Esta tirada valeu-lhe uma resposta do jovem pescador no mesmo tom de troça; após o que se atirou aos bolos de aveia e ao peixe fumado, que se encontravam reforçados com uma ou duas pintas de cerveja forte e uma garrafa de genebra. O mendigo retirou-se em seguida para um barracão vizinho, onde se estendeu sobre a palha fresca; as crianças, uma após outra, deslizaram para o seu ninho; a velha mãe foi deposta no seu leito de crina; Steenie, apesar das fadigas anteriores, teve a galantaria de acompanhar Miss Jenny Rintherout a casa dela, e a história não diz a que horas regressou. Por fim, a dona da casa, depois de cobrir o lume e de imprimir uma espécie de ordem ao aposento, foi a última a ir deitar-se. XXVII Há muitos dos grandes que dariam metade dos seus bens para conhecer a maneira e ler a honra de mendigar em grande estilo. A Moita do Mendigo
O velho Edie levantou-se com a cotovia, e o seu primeiro cuidado foi informar-se de Steenie e da carteira. O jovem pescador fora obrigado a acompanhar o pai antes da alvorada, a fim de aproveitar a maré; mas
prometera que, a seguir ao seu regresso, a carteira, com o seu conteúdo, cuidadosamente enrolada num bocado de lona de vela, seria entregue por ele a Ringon Aikwood para a dar a Dousterswivel, seu proprietário. 297 A dona da casa preparara a refeição da manhã para a família e, carregando o seu cesto de peixe aos ombros, encaminhou-se a passo firme para Fairport. As crianças estavam a brincar junto da porta, porque fazia bom tempo e havia sol. A velha avó, de novo sentada na sua cadeira de verga, retomara o seu eterno fuso, perfeitamente impassível aos gritos e aos choros dos pequenos, assim como aos ralhos da mãe, que precedera a dispersão da família. Edie arranjara os seus vários sacos e preparava-se para recomeçar as suas digressões, segundo o costume da sua vida vagabunda; mas, antes de partir, avançou, como pensou que a civilidade requeria, para se despedir da velha matrona. - Desejo-lhe muito bom dia, comadre, e mais de um ainda como este; voltarei no fim da ceifa, e espero encontrá-la então de boa saúde. - Peça para me encontrar na paz do túmulo - disse a anciã em voz cava e sepulcral, mas sem que as suas faces denotassem a menor agitação. - A senhora está velha, comadre, e eu estou velho, também, mas temos de esperar a vontade do Todo Poderoso; não nos esquecerá na nossa vez. - Ele não esquecerá tão-pouco as nossas acções disse a anciã - O espírito responderá pelos erros da carne. - Não é senão muito verdade; e mais do que a outro, eu posso aplicar essa frase a mim próprio, eu, que levo uma vida errante e desordenada. Mas a senhora foi sempre uma mulher honesta; somos todos pecadores, mas com certeza não o foi de forma a desesperar. - O peso podia ter sido maior; mas, tal como é sim, tal como é ainda, nem tanto seria preciso para submergir o mais soberbo brigue que alguma vez saiu da baía de Fairport. Não me disse alguém, pelo menos ficou-me essa impressão no espírito, mas os velhos têm por vezes a cabeça fraca; não me disse alguém que Joscelind, condessa de Glenallan, deixara este mundo? - Quem o disse falou verdade - respondeu o velho Edie - Foi sepultada ontem à noite em Santa Ruth; e eu, como um velho louco, fugi ao ver os archotes e os cavaleiros. 298 - Tal tem sido o seu costume desde a morte do grande conde que caiu em Harlaw: fazem-no para mostrar que desdenham morrer e ser enterrados como os outros homens. As mulheres da casa de Glenallan não choram os seus maridos nem as irmãs os irmãos. Mas é realmente verdade que foi enfim chamada à prestar as suas últimas contas? - Tão verdade como a senhora e eu o seremos um dia - respondeu Edie. - Então, aliviarei o meu espírito do peso que o esmaga, suceda o que suceder. Pronunciou estas palavras com mais vivacidade do que quando falava vulgarmente, e acompanhou-as de um movimento de mão, como se afastasse alguma coisa para longe dela. Levantou-se então e, endireitando o seu vulto que outrora fora majestoso e que ainda o parecia, embora curvado pela idade e pelas doenças, permaneceu diante do velho, oferecendo a imagem de uma múmia que, animada por um espírito sobrenatural, acaba de experimentar uma ressurreição temporária. Seus olhos de um azul claro divagaram por aqui e por além, como se ela ora esquecesse, ora recordasse o que sua mão seca e engelhada tentava encontrar entre diversos objectos no fundo de um amplo bolso, à moda antiga. Por fim, tirou uma pequena caixa de palha e, abrindo-a, dela retirou uma jóia preciosa na qual se
encastoava uma mecha de cabelos de duas cores, uns negros, outros castanhos-claros, entrelaçados e cercados de diamantes de valor considerável. - bom homem - disse ela a Ochiltree - se quiser merecer a misericórdia divina, vá levar esta mensagem de minha parte ao castelo Glenallan, e peça para falar ao conde. - Ao conde de Glenallan, comadre! Como quer que ele receba um pobre vagabundo como eu, ele, que não quer ver nenhum dos gentlemen do país? - Vá sempre, e experimente; dir-lhe-á que Elspeth de Craigburnfoot (recordar-se-á melhor de mim por este nome) pede para o ver antes de partir para a sua longa peregrinação, e que ela lhe envia esta jóia em testemunho do assunto de que lhe quer falar. Ochiltree observou o anel e admirou o seu valor aparente; depois, tornando a colocá-lo cuidadosamente 299 caixa, que embrulhou num velho lenço rasgado, meteu o volume no peito. - Bem, boa senhora - disse ele - farei o recado, se me for possível; mas com certeza nunca presente tão precioso foi enviado a um conde da parte de uma velha mulher de pescador, e por intermédio de um velho mendigo como eu. Após esta reflexão, Edie pegou no pau ferrado, pôs o chapéu de aba larga e partiu para o seu destino. A velha ficou algum tempo de pé, numa atitude imóvel, olhos voltados para a porta por onde o seu mensageiro acabava de sair. Pouco a pouco, a aparência de vivacidade que este diálogo excitara nela abandonou o seu rosto; recaiu na sua cadeira habitual, e retomou o fuso e a roca com o costumado ar de apatia. Entretanto, Edie Ochiltree avançava na sua viagem. A distância até Glenallan era de dez milhas, e o velho soldado percorreu cerca de doze para realizar esta marcha com a curiosidade natural dos hábitos ociosos do seu estado e a actividade da sua imaginação. Todo o caminho se esforçou por adivinhar qual podia ser o fim da misteriosa mensagem de que se encarregara, e que relação o orgulhoso, o rico e poderoso conde de Glenallan podia ter com os crimes ou o arrependimento de uma velha quase na segunda infância, cuja categoria na sociedade era muito pouco superior à do seu mensageiro. Tentou recordar tudo o que soubera ou ouvira dizer da família Glenallan, e depois de o ter feito, não se sentiu mais capaz de estabelecer qualquer conjuntura sobre o assunto. Ele sabia que os grandes bens e ricos domínios desta antiga e poderosa família eram devolutos à condessa que acabava de morrer, e que herdara da maneira mais notável o carácter severo, altivo e inflexível que distinguira a casa de Glenallan, desde Que ela começara a figurar nos anais da Escócia. Tal como o resto dos seus antepassados, ela zelosamente permaneceu fiel à fé católica romana, e desposara um gentleman inglês da mesma confissão e de grande fortuna, que não sobreviveu mais de dois anos ao casamento. A condessa viu-se então muito nova com a administração absoluta dos grandes bens dos seus dois filhos. O mais velho, lorde Geraldin, ficara totalmente 300 dependente de sua mãe enquanto ela viveu O segundo, na sua maioridade, tomou o nome e as armas de seu pai, e entrou na posse dos seus domínios segundo as condições do contrato matrimonial da condessa. Desde essa época, ele vivera quase sempre em Inglaterra, e não fizera a sua mãe e a seu irmão senão visitas muito raras e muito curtas, das quais acabou mesmo por se dispensar por completo, em consequência da sua conversão à religião reformada
Mas mesmo antes de ter tão mortalmente ofendido sua mãe, a residência de Glenallan oferecia muito poucos encantos a um jovem tão vivo e tão alegre como Edward Geraldin Neville, embora a austeridade e a tristeza daquele retiro parecesse convir melhor aos hábitos melancólicos e ao carácter frio e reservado de seu irmão mais velho. Lorde Geraldin, ao entrar na vida, era um jovem cujos talentos davam as mais belas esperanças; aqueles que o conheceram por ocasião das suas viagens formaram a mais elevada opinião acerca da sua carreira futura. Mas tão brilhantes presságios vieram muitas vezes a obscurecer-se de uma maneira estranha. O jovem lorde regressou à Escócia, e depois de ter vivido cerca de um ano em companhia de sua mãe no castelo de Glenallan, pareceu ter adoptado toda a austeridade e lúgubre melancolia do seu carácter. Excluído das funções públicas pela religião que professava, e, por sua própria deliberação, de qualquer outra distracção menos séria, lorde Geraldin vivia no mais profundo recolhimento. O seu convívio habitual compunha-se de um eclesiástico da sua comunhão que vinha de vez em quando ao castelo; e muito raramente, isto é, em dias designados de grandes festas, recebia-se com cerimónia uma ou duas famílias que professavam também a religião católica. A isso se limitava o círculo das suas relações, das quais os seus vizinhos heréticos estavam inteiramente excluídos. Mesmo os católicos que se recebiam em Glenallan nas grandes ocasiões de que acabamos de falar, não viam nada para além do fausto e da pompa estadeados nessas refeições de aparato e regressaram sempre igualmente impressionados com as maneiras imponentes e severas da condessa, e com o sombrio abatimento que nem por um instante deixava de obscurecer o semblante do filho. 301 A morte da mãe acabava de colocá-lo na posse da fortuna e do seu título, e já se perguntava entre os vizinhos se a alegria renasceria com a sua independência; mas aqueles que tiveram ocasião de penetrar algumas vezes na intimidade da família espalharam o boato de que a constituição do conde estava minada pelas austeridades religiosas e que provavelmente não tardaria em seguir sua mãe ao túmulo. Este acontecimento parecia tanto mais provável porque o irmão morrera de uma doença de languidez que, nos últimos anos da sua vida, afectara igualmente as faculdades físicas e morais, de maneira que os genealogistas já pesquisavam nos seus registos, com o fim de descobrir o herdeiro desta desditosa família, enquanto os homens de negócios falavam com prematura satisfação da probabilidade de um processo a propósito da sucessão Glenallan. Ao aproximar-se da fachada do castelo de Glenallan, antigo edifício de uma grande extensão e cuja parte mais moderna se atribuía ao desenho do célebre Inigo Jones, Edie Ochiltree começou a reflectir de que maneira lhe seria mais fácil ser recebido para transmitir a sua mensagem; e, após algum tempo de indecisão, resolveu por fim enviar ao conde a jóia de que era portador, por um dos seus criados. com este intuito, deteve-se numa choupana, onde obteve os meios de encerrar o anel num pequeno embrulho lacrado, com este endereço: Para ser entregue a Sua Honra o conde de Glenallan. No entanto, sabendo que missivas deste género metidas no correio das grandes casas por pessoas da sua espécie nem sempre chegam ao destino, resolveu Edie, como velho soldado, reconhecer o terreno antes de começar o ataque. Ao aproximar-se do cubículo do porteiro, viu, pelo número de pobres que se alinhavam em frente, dos quais alguns eram indigentes das vizinhanças e outros mendigos vagabundos da sua classe, que ia haver uma distribuição geral de esmolas.
"Uma boa acção - pensou Edie - nunca deixa de ter recompensa. É possível que eu receba aqui uma esmola, que não obteria se não me tivesse encarregado da missão daquela velhinha". Por conseguinte, foi juntar-se ao grupo andrajoso, procurando quando possível colocar-se entre os primeiros, 302 distinção que ele julgava devida tanto ao seu roupão azul e à sua placa como à sua idade e à sua experiência; mas depressa se apercebeu de que havia naquela assembleia um outro princípio de precedência de que não suspeitara. - Tem direito à tripla parte, amigo, para se colocar assim tão decididamente à frente? Creio que não, porque não há católicos que usem essa placa. - Não, não, eu não sou romano - declarou Edie. - Então, vá alinhar com as da dupla, ou da simples ração, isto é, com os episcopais, ou os presbiterianos, que estão à retaguarda: é uma vergonha ver um herético com uma barba tão comprida que faria honra a um eremita. Ainda repelido do meio dos mendigos católicos; ou que pelo menos se faziam passar como tais, Ochiltree foi ocupar lugar entre os pobres da comunhão da igreja de Inglaterra, aos quais a nobre donatária concedia um duplo quinhão nas suas caridades. Mas nunca sucedeu a um pobre não conformista ser mais rudemente repelido por uma assembleia da alta igreja, mesmo quando esta matéria era agitada com o maior furor nos tempos da boa rainha Ana. - Vejam-no com a sua placa - disseram eles Ouve todos os anos, no dia do aniversário natalício do rei, um sermão pregado por um dos ministros presbiterianos da corte, e queria fazer-se passar por um filho da igreja episcopal! Não, não, nós metemo-lo na ordem. Edie, repelido igualmente por Roma e pelo episcopado, foi pois obrigado a ir meter-se, sob as risadas dos seus confrades, entre o pequeno grupo de presbiterianos que se tinha recusado a ocultar suas opiniões religiosas pelo interesse de um aumento de esmola, ou que talvez soubessem que semelhante ludibrio não deixaria de ser descoberto. As mesmas distinções se observaram na maneira como se distribuíram as esmolas, que consistiam numa ração de pão, de vaca, e de uma moeda por cada indivíduo das três classes. O esmoler, eclesiástico de aspecto grave e severo, vigiava pessoalmente a distribuição feita aos mendigos católicos, fazendo a cada um deles uma ou duas perguntas ao entregar-lhe o seu quinhão e recomendando as orações de todos a 303 alma de Joscelirid, condessa de Glenallan, e mãe do seu benfeitor. O porteiro, que se distinguia pela sua longa bengala de castão de prata e pela sua comprida túnica preta debruada de um galão da mesma cor, que ele vestira, de harmonia com o luto geral da família, distribuía as esmolas pelos episcopais; e os filhos menos favorecidos da igreja presbiteriana recebiam as suas das mãos de um velho criado. Como este estava em discussão com o porteiro, o seu nome, que foi pronunciado por acaso, surpreendeu Ochiltree e despertou-lhe antigas recordações. O resto do grupo retirara-se, quando o criado, aproximandose do sítio onde Edie permanecia ainda, lhe disse, com pronúncia muito acentuada do condado de Aberdeen: - Que faz aí, velhote, porque não se vai embora, já que recebeu a carne e o dinheiro?
- Francis Macraw - respondeu Ochiltree - já se esqueceu de Fontenoy? "Todos em linha, em frente, marche! " - Oh! Oh! -exclamou Francis, num grito de surpresa peculiar nos países do Norte - Ninguém podia ter dito assim estas palavras senão o meu velho chefe de fila Edie Ochiltree; mas sinto-me consternado por encontrá-lo em tão mísero estado, meu bravo. - Não tão miserável como julga, Francis; mas não queria deixar este lugar sem conversar um pouco consigo, porque não sei se o tornarei a ver tão depressa; a sua gente, diz-se, não faz bom acolhimento aos protestantes; é por isso que eu nunca vim por aqui. - Ora, ora! -replicou Francis - Deixe lá falar essa gente e venha comigo; dar-lhe-ei alguma coisa melhor do que um osso de vaca. Dizendo em seguida umas palavras ao ouvido do porteiro (sem dúvida para lhe pedir a sua concordância) e esperando que o esmoler regressasse a casa, o que este fez num passo lento e solene, Francis Macraw introduziu o seu velho camarada no pátio do castelo de Glenallan, por cima de cujo pórtico sombrio se via o largo escudo, onde se encontravam misturados, como de costume, com os ornamentos do brasão, sinais faustuosos do orgulho humano, os emblemas fúnebres do nada da vida. A cota de armas hereditária da 304 condessa, com seus numerosos quartos dispostos em losangos e cercados dos escudos de seus antepassados paternos e maternos, estava semeada e entremeada de fachos, ampulhetas, crânios e todos os símbolos daquela morte que nivela todas as classes. Fazendo o seu amigo atravessar o grande pátio calcetado, tão rapidamente quanto possível, Macraw conduziu-o por uma porta lateral a um pequeno aposento, perto da sala dos criados, do qual ele tinha o uso exclusivo devido ao seu serviço particular junto da pessoa do lorde Glenallan. Obter carnes frias de diversas espécies, cerveja forte e mesmo um copo de cordial, não era coisa difícil para um personagem tão importante como Francis, a quem o sentimento da dignidade não fizera esquecer a hábil previdência do seu país que manda estar em boas relações com o copeiro. O nosso mensageiro mendigo bebeu a cerveja e conversou longamente de histórias de velhos tempos, até que, começando a conversa a esmorecer, resolveu abordar o assunto da sua embaixada, que durante uns momentos quase se lhe apagara da memória. Disse que tinha uma petição a fazer ao conde, porque julgou prudente não falar do anel, não sabendo como o confessou depois, até que ponto os costumes de um simples soldado puderam não se corromper no serviço de uma grande casa. - Oh, o conde não quer receber petições! Mas eu posso entregá-la ao esmoler. - Mas ela refere-se a um segredo que o lorde decerto gostaria de ser o único a conhecer. - É justamente a razão pela qual o esmoler terá muito prazer em conhecêla primeiro. - Mas eu vim aqui com o fim de entregar-lha, Francis, é realmente preciso que me ajude um pouco a sair deste embaraço. - E farei tudo o que puder - respondeu o escocês do Norte - Aliás, por muito maus que sejam, mais não podem do que expulsar-me, e eu pensava justamente em despedir-me e ir acabar os meus dias em Inverury. Nesta generosa resolução de servir o seu amigo em despeito de todos os perigos, e tanto mais que não havia nenhum que o pudesse inquietar muito, Francis 305
Macraw deixou o aposento. Não voltou senão muito tempo depois, e, ao regressar, as suas maneiras denunciavam surpresa e agitação. - Não sei - disse ele - se o senhor é bem Edie Ochiltree, da Companhia de Carry, da 42.a, ou se é o diabo que tomou a sua semelhança. - E por que motivo fala assim? - perguntou o mendigo, surpreendido. - Porque lançou milorde numa perturbação e numa surpresa como nunca em minha vida vi um homem; mas ele recebe-o, já ganhei isso, pelo menos. Esteve durante uns minutos como que desnorteado, julguei mesmo que ele ia desmaiar e, quando voltou a ele, perguntou-me quem trouxe o embrulho... E que julga o senhor que eu lhe respondi? - Que foi um velho soldado - respondeu Edie É o que soa melhor à porta de um gentleman; à de um rendeiro, é melhor dizer que se é caldeireiro, se se pretende obter uma guarida, porque se pode apostar que o trem de cozinha tem sempre qualquer coisa para se consertar. - Mas não disse nem uma coisa nem outra - prosseguiu Francis - porque milorde não se preocuparia com isso... Ele faz mais caso dos que podem consertar as nossas consciências. Assim, disse-lhe que o Papel me fora trazido por um velho de longa barba branca que poderia ser um frade capuchinho, pelo que eu podia julgar, porque vestia como um velho Peregrino; de maneira que ele vai mandá-lo chamar, logo que esteja bastante refeito para lhe falar. "Desejaria ficar quite deste assunto - pensou Edie Há muitas pessoas que pretendem que o conde não tá bom de cabeça; e quem poderá dizer se ele não terá ofendido por me atrever a meter-me nisto? " Mas em breve a retirada se tornou impossível; uma campainhada soou num ponto afastado do castelo, e Macraw disse, em voz abafada, como se já estivesse em presença de seu amo: - Eis a campainha de milorde; siga-me, e ande ao leve e sem ruído. Edie seguiu o seu guia, que marchava como se tivesse medo de ser ouvido, e que o fez percorrer uma longa passagem e subir uma escada que os conduziu aos aposentos de família. Eram de uma vasta extensão 306 e mobilados com um fausto que indicava a antiga importância e o esplendor daquela casa. Mas todos os ornamentos pertenciam a uma época muito afastada, e poder-nos-íamos imaginar no meio dos salões de um senhor escocês antes da reunião das duas coroas. A última condessa, tanto por altivo desprezo pelo tempo em que vivia como por um sentimento de orgulhoso respeito por sua família, não quisera permitir que se mudasse coisa alguma do mobiliário de Glenallan, enquanto ela ali residisse. A parte mais magnífica dos seus ornamentos era uma colecção preciosa de quadros dos melhores mestres, cujas molduras maciças estavam um pouco embaciadas pelo tempo, e atestavam também os gostos sombrios dos seus proprietários. Além disso, havia alguns belos retratos de família, pintados por Van Dyck e outros mestres célebres. Mas o que dominava na colecção eram os santos e os mártires de Doménico, Velasquez e Murillo, e outros temas do mesmo género, que se tinham escolhido de preferência a paisagens ou a composições históricas. A maneira como estes assuntos aterradores, e mesmo hediondos, estava representada, achava-se em perfeita harmonia com a sombria tristeza dos aposentos; e esta circunstância não deixou de impressionar o velho enquanto os cruzava sob a escolta do seu antigo camarada. Ia exprimir uma sensação deste género, quando Francis, impondo-lhe silêncio por um sinal e abrindo uma porta situada ao fim da longa galeria de quadros, o introduziu numa pequena antecâmara forrada de negro. Aí encontraram o esmoler, de ouvido aplicado a uma porta oposta àquela por onde acabavam de entrar, na atitude de quem escuta com atenção e que, no entanto, receia ser surpreendido nessa
situação. O velho criado e o padre estremeceram quando se avistaram reciprocamente, mas o esmoler recompôs-se primeiro e, avançando para Macraw, disse em voz baixa, mas num tom autoritário: - Como ousa aproximar-se do aposento de Sua Graça, sem bater? Quem é esse estranho que o acompanha? Que vem aqui fazer? Retire-se para a galeria e espere que eu lhe vá falar. - É-me impossível obedecer neste momento a Vossa Reverência - disse Macraw, erguendo a voz de maneira 307 a ser ouvido no aposento vizinho (porque ele pressentia que o padre não sustentaria aquela discussão tão perto dos ouvidos de seu amo) - A campainha do senhor conde acaba de me chamar. Mal ele pronunciou estas palavras, a campainha reuniu de novo com mais violência que da primeira vez, e o eclesiástico, vendo que qualquer outra explicação era impossível, ergueu o dedo para Macraw com uma expressão ameaçadora e abandonou o aposento. - Eu bem lhe tinha dito - murmurou baixinho ao ouvido de Edie o homem de Aberdeen. Depois, apressou-se a abrir a porta junto da qual surpreendera o capelão de sentinela. XXVIII Este anel, este pequeno anel doado por uma potência mágica, acaba de evocar a meus olhos aterrados fantasmas de prazer, de horror e de amor, apresenta-mos sob tais formas que a minha razão se transtorna de terror. O Casamento Fatal As antigas formas de luto eram observadas no castelo de Glenallan, apesar da insensibilidade com Que o povo supunha que os membros daquela família recusavam aos mortos o costumado tributo de lágrimas. Notou-se que, quando a condessa recebeu a carta fatal que lhe anunciava a morte de seu filho mais novo (que sempre se supôs ser o seu favorito), sua mão não denunciou mais agitação, seus olhos ficaram tão secos como à recepção de uma vulgar carta de negócios. Só o céu pôde saber se o sacrifício da sua dor matternal, que ela julgou dever fazer ao seu orgulho, não contribuiu secretamente para apressar a sua morte. Pelo menos, a suposição geral foi de que o ataque e apoplexia que, tão pouco tempo depois, acabou com a sua existência, foi uma espécie de vingança da natureza ultrajada pelo constrangimento tirânico que exercera sobre ela. No entanto, embora lady Glenallan se 308 proibisse dar qualquer sinal aparente de desgosto, mandou forrar uma parte dos seus aposentos, e particularmente o seu e o de seu filho, com esses panejamentos fúnebres de que geralmente a dor se rodeia. O conde de Glenallan estava então sentado no seu aposento ornado de panos negros que flutuavam em sombrias pregas ao longo das altas paredes. Um guarda-vento coberto do mesmo tecido, colocado ao lado da alta janela, interceptava ainda uma parte da claridade descolorida que penetrava através das vidraças pintadas, que representavam, com toda a arte de que o século XIV era capaz, a vida e os desgostos do profeta Jeremias. A mesa, junto da qual o conde se encontrava, era iluminada por duas lâmpadas de prata cinzelada, que espalhava aquela claridade duvidosa e desagradável que produz a mistura da luz artificial com a do dia. Sobre a mesma mesa achavam-se pousados um crucifixo e dois ou três livros
encadernados em pergaminho e fechados por fivelas. Um grande quadro de Spagnoletto, de uma pintura estranha, representando o martírio de Santo Estêvão, constituía a única decoração do aposento. O habitante e senhor desta lúgubre câmara era um homem ainda na flor da idade, mas de tal maneira emurchecido pelas enfermidades e pelas dores de alma, tão magro e tão descarnado, que já não possuía mais do que um corpo decrépito e arruinado; e quando se levantou para ir ao encontro do que o vinha visitar, este esforço pareceu ter esgotado o que lhe restava de forças. Nada mais flagrante do que o contraste que ofereciam estes dois seres avançando um para o outro no meio do aposento. As faces coradas, O passo firme, o busto direito, o ar e a atitude segura do velho mendigo, denunciavam a paciência e o contentamento na idade mais avançada da vida e no estado mais baixo em que a humanidade pode cair, ao passo que os olhos encovados, as faces cavadas e o passo vacilante do senhor, demonstravam a insuficiência da riqueza, do poder, e mesmo das vantagens da mocidade, para assegurarem o repouso da alma e a saúde do corpo. O conde avançou ao encontro do velho até o meio da câmara e, ordenando ao seu criado que se retirasse para a galeria e não deixasse entrar ninguém na antcâmara 309 a não ser que ele tocasse, esperou, com um misto de impaciência e de inquietação, que ele fechasse, primeiro, a porta do seu quarto, em seguida, a da' antecâmara, na qual se correu um ferrolho. Quando se certificou de que já não corria o risco de ser ouvido, lorde Glenallan acercou-se do mendigo, que ele tomou provavelmente por um indivíduo disfarçado pertencente a uma ordem religiosa, e num tom rápido, embora entrecortado, disse-lhe: - Em nome de tudo o que a nossa religião tem de mais sagrado, diga-me, reverendo padre, o que devo esperar de uma comunicação que me é anunciada por uma jóia que me evoca tão horríveis recordações. O velho, interdito por palavras tão diferentes das que esperara de um poderoso e orgulhoso conde, experimentou embaraço em responder-lhe e desenganá-lo. - Diga-me - continuou o conde com uma comoção e uma angústia sempre crescentes - diga-me, vem anunciar-me que tudo o que se fez para expiar um atentado tão horrível ficou muito abaixo de tal crime, e vem anunciarme novos meios de cumprir a minha penitência de uma maneira mais eficaz e mais rigorosa? Nada me fará recuar, padre; antes o meu corpo sofra o castigo do meu crime neste mundo do que a minha alma na eternidade! Edie recobrou então bastante presença de espírito para se aperceber de que, se não se apressasse a interromper as confissões a que lorde Glenallan se entregava, ia talvez tornar-se confidente de segredos dos quais não seria prudente, para sua segurança, obter assim conhecimento. Apressou-se, pois, a dizer, numa voz trêmula: - Vossa Honra engana-se a meu respeito; eu não sou da sua religião, nem mesmo um eclesiástico, mas, com o respeito que é devido a Vossa Senhoria, não passo do pobre Edie, o bedesman do rei e de vossa Honra. Acompanhou esta explicação de uma profunda reverência à sua maneira, depois, endireitando-se, apoiou o braço no pau ferrado, atirou para trás os longos cabelos brancos e fixou os olhas no conde à espera da sua resposta. 310 - Então - disse lorde Glenallan, após uma pausa produzida pela surpresa o senhor não é um padre católico
- Deus me livre! -exclamou Edie, esquecendo, na sua confusão, a quem falava - Eu não sou, como já lhe disse, senão o bedesman do rei e de Vossa Honra. O conde voltou-se bruscamente, cruzou o aposento por duas ou três vezes, a grandes passos, como que para se refazer da perturbação em que o seu equívoco o lançou; depois, aproximando-se do mendigo, perguntou-lhe em tom imperioso e severo qual era o seu objectivo ao penetrar assim nos seus segredos e de quem recebera o anel que julgara conveniente enviarLhe. Edie, naturalmente dotado de muita firmeza, ficou menos perturbado com esta maneira de interrogar do que o fora com o tom de confidencia em que o conde iniciara o diálogo; e quando a pergunta de quem recebera aquele anel lhe foi repetida, respondeu com calma: - De alguém que é mais conhecido do senhor conde que de mim. - Mais meu conhecido? -disse lorde Glenallan A quem se refere? Expliquese imediatamente, ou vai experimentar quanto custa vir perturbar os momentos consagrados à dor. - Foi a velha Elspeth Mucklebackit quem me mandou aqui - disse o mendigo - com o fim de lhe dizer - Está a disparatar, ancião - disse o conde - Nunca ouvi esse nome... Mas, à vista desta jóia, recordo-me. - Eu recordo-me também, milorde - adiantou-se Ochiltree - de que ela me disse que Vossa Senhoria a conhece melhor pelo nome. de Elspeth de Craigburnfoot. Chamavam-lhe assim quando ela vivia nas terras de Vossa Honra, isto é, da falecida e digna mãe de Vossa Honra, que misericórdia lhe seja feita. - Realmente - disse o lorde dèbilmente e cujo rosto se cobriu de uma cor ainda mais lívida - esse nome está escrito na página mais trágica de uma história deplorável! Mas que pode ela querer-me? É viva ou morta? - Está viva, milorde, e suplica a Vossa Senhoria que a vá ver antes da sua morte, porque tem qualquer 311 coisa que lhe pesa na alma, e diz que não poderá dormir em paz enquanto não lhe falar. - Enquanto não me falar! Que quer ela dizer-me? Mas ela caiu na segunda infância devido à velhice e às enfermidades. Digo-te, amigo, que, sabendo eu que ela estava na miséria, fui eu próprio à sua choupana, há um ano apenas, e não me reconheceu nem pelo rosto nem pela voz. - Se Vossa Honra quisesse permitir-mo - disse Edie, a quem a extensão da conferência devolvia uma parte da audácia da sua profissão e da liberdade de linguagem que lhe era peculiar - se Vossa Honra quiser permitir-mo, salvo o respeito que devo ao critério superior de Vossa Senhoria, a velha Elspeth assemelha-se àquelas antigas ruínas de castelos e fortalezas que nós vemos no meio das montanhas: há partes do seu espírito que parecem, se assim me posso exprimir, derrocadas e devastadas, ao passo que outras parecem tanto maiores, tanto mais fortes e tanto mais imponentes, quanto mais se erguem como fragmentos no meio dos despojos do resto. É uma mulher que tem qualquer coisa de terrível. - Foi sempre assim - disse o conde, quase repetindo maquinalmente a reflexão do mendigo - Foi sempre diferente das outras mulheres, assemelhando-se mais do que qualquer outra, pelo carácter e pela têmPera do seu espírito, àquela que já não existe. Ela deseja ver-me, diz o senhor? - Antes de morrer - respondeu Edie - solicita ardentemente esse prazer. - Não será um prazer para nenhum dos dois - declarou o conde, num ar
sombrio - no entanto, sua vontade será satisfeita. Ela mora, diz o senhor, no cimo da falésia do lado sul de Fairport? - Entre Monkbarns e o castelo de Knockwinnock, mais perto de Monkbarns. Vossa Honra conhece sem dúvida o laird e sir Arthur? Um movimento do conde, como se não tivesse compreendido a pergunta, foi a resposta que ele deu. Edie viu que o seu espírito estava algures, e não se aventurou mais a repetir uma interrogação que tão Pouco se relacionava com o assunto que ali o trouxera. - Ancião, é católico? -indagou o conde. - Não, milorde - respondeu Ochiltree, em tom firme, 312 porque a desigualdade da divisão das esmolas se apresentava nesse momento ao seu espírito - Graças a Deus, sou um bom protestante. - Aquele que pode do fundo da consciência chamar-se bom, tem efectivamente razão para dar graças ao céu, qualquer que seja a forma da sua crençamas quem é que pode ter essa presunção? - Não sou eu -disse Edie -Espero estar isento do pecado da presunção. - Qual foi a sua profissão na mocidade? - Fui soldado, milorde, e muitos dias da minha vida se passaram nas canseiras dos campos e dos bivaques. Devia ter-me feito sargento; mas... - Soldado! Nesse caso, matou, queimou, saqueou, - pilhou! - Não pretendo ter sido melhor que os meus vizinhos - replicou Edie - É um rude ofício o da guerra; só os que o exerceram podem falar dele. - E ei-lo agora velho e miserável, pedindo a uma caridade precária o pão que na sua mocidade arrancou das mãos do pobre camponês! - Sou mendigo, é certo, milorde; mas, no entanto, ainda não sou tão completamente miserável. Quanto aos meus pecados, Deus fez-me a graça de me arrepender e de me descarregar do seu peso sobre aqueles que estão em melhor estado do que eu para os suportar; e, para o meu quinhão de alimento, ninguém recusa a um pobre homem um pouco de comida e de bebida. Vivo conforme posso e estou pronto a morrer quando for chamado por minha vez. - Assim, pois, com uma vida cujo passado não lhe oferece quase nenhuma recordação satisfatória, e com uma perspectiva ainda mais triste para os dias que lhe restam viver, o senhor arrasta-se contente para o termo da sua carreira! Vá: que a velhice, a miséria e a fadiga nunca o façam invejar a sorte do dono deste castelo, nem no seu sono, nem nas suas vigíliasTome, eis qualquer coisa para si. O conde meteu cinco ou seis guinéus na mão do velho. Edie talvez tivesse feito objecções sobre a importância da esmola, como em outras ocasiões; mas o tom de lorde Glenallan era demasiado absoluto para permitir um comentário ou mesmo uma resposta. O conde chamou então o seu criado. 313 - Conduza este velho até fora de casa, e não admita que ninguém lhe fale. E você, amigo, retire-se, e esqueça o caminho que conduz à minha casa. - Ser-me-á difícil - disse Edie, vendo o ouro que ainda tinha na mão Ser-me-á difícil depois de Vossa Honra me ter dado tão boa razão para dele me recordar. Lorde Glenallan olhou-o num ar de espanto, como se mal pudesse compreender a ousadia do velho, que se atrevia a responder-lhe tão familiarmente; depois, com a mão, fez-lhe outro sinal de despedida, ao qual o mendigo obedeceu imediatamente.
XXIX Ele intervinha em todos os seus divertimentos; era o monarca que governava aquela pequena corte, era ele quem encurvava o arco, e quem preparava o pião, a bola ligeira e o papagaio de papel. CRABBE - A Aldeia Francis Macraw, de harmonia com as ordens de seu amo, acompanhou o mendigo, a fim de o ver fora do recinto do castelo sem lhe permitir trocar uma palavra com nenhum dos criados ou dependentes do conde. Mas, reflectindo sensatamente que essa ordem não o abrangia a ele, encarregado da escolta, empregou todos os meios possíveis para arrancar a Edie algumas informações sobre a natureza da entrevista secreta e confidencial que tivera com lorde Glenallan. Mas Edie, que em tempos passara por mais de um interrogatório, iludiu facilmente a pergunta do seu antigo camarada. Os segredos dos grandes, dizia ele, com os seus botões, são como animais ferozes, que se guardam em aulas; mantenham-nos bem fechados, e não haverá perigo: mas se os deixarem sair uma vez, eles voltar-se-ão contra nós para nos despedaçar. Não esqueci o que sucedeu a Dugald Gunn por ter dado largas à sua língua a respeito da mulher do major e ao capitão Bandilier. 314 Francis não teve, pois, êxito nos ataques à discrição do mendigo e, como um mau jogador de xadrez de cada vez que tropeçava na marcha, dava mais vantagem ao adversário. - Acha então que não tinha nenhum assunto particular a comunicar a milorde? - Era a respeito dessas ninharias que eu trouxera do continente - disse Edie - Sei que os vossos papistas são amadores dessas relíquias de santo e de igreja que vêm de longe. - com a breca, era preciso que meu amo estivesse completamente doido, Edie, para sofrer semelhante comoção por causa do que o senhor lhe trouxe. - Talvez não esteja muito longe da verdade, camarada; pode ser que o laird tivesse tido grandes desgostos na mocidade, e por vezes isso basta para turbar a razão das pessoas. - Palavra, Edie, o que diz é verdade; e, visto ser provável que o senhor nunca mais cá volte, e, se voltar, eu já cá não esteja, sempre lhe digo que na sua juventude ele teve desgostos tão violentos que me admira que tenha resistido tanto tempo. - Ah! sim? - disse Ochiltree - Foi com certeza por causa de uma mulher. - Deu no alvo - respondeu Macraw - Foi uma das suas primas, Miss Eveline Neville se chamava ela. Isso fez então escândalo no país; mas, como este assunto pertencia aos grandes, depressa foi abafado. Foi há mais de vinte anos. Oh, sim, deve haver uns vinte e três anos! - Eu estava então na América - disse o mendigo - e longe para saber as histórias do país. - Não se falou nisso muito tempo. Ele amava a jovem e queria desposá-la; mas sua mãe descobriu-o, e então foi o diabo. Por fim, a pobre menina atirou-se do alto do rochedo de Craigburnfoot para o mar, e eis como isso acabou. - Sim, para a pobre menina - disse o mendigo mas não para o conde, segundo creio. - Não terá fim senão com o da sua vida - disse o homem do condado de Aberdeen. - Mas porque motivo a velha condessa impediu esse casamento? -continuou o
insistente perguntador. - Porquê! Talvez ela própria não soubesse bem 315 porquê, pois era preciso obedecer à sua vontade sem se informar de se ela tinha ou não razão. Mas constou que a jovem era notada por algumas das heresias do pai; e, depois, lembro-me agora, ela era parente mais próxima do que as regras da nossa Igreja permite para se casar. Foi o que levou a menina àquele acto de desespero; e, depois, o conde nunca mais levantou a cabeça. - Pois bem - disse Edie - no entanto, é estranho que nunca tivesse ouvido falar dessa história. - É mais estranho que o saiba agora, porque era o diabo se algum dos criados ousasse falar enquanto a velha condessa foi viva. Ah, meu rapaz, era uma patroa, essa mulher! Teria sido preciso um homem hábil acertar com ela; mas já está no túmulo, e agora pode-se dar um momento à língua, quando se encontra um amigo. Adeus, Edie, tenho que regressar para o ofício da tarde. Se for a Inverurie daqui a seis meses, talvez, não se esqueça de perguntar por Francis Macraw. Edie prometeu de boa mente cumprir esta recomendação amistosa, e os dois camaradas, separando-se assim com demonstrações de benevolência mútua, o criado do lorde Glenallan retomou o caminho do castelo de seu amo, e deixou Ochiltree recomeçar a sua peregrinação habitual. Era uma bela tarde de Verão, e o mundo, isto é, o círculo que só ele e o mundo para a pessoa habituada a percorrê-lo, oferecia-se todo inteiro diante de Edie para que ele aí procurasse guarida para a noite. Quando deixou as terras menos hospitaleiras de Glenallan, viu-se na situação de optar, para passar a noite, entre tantos lugares de refúgio diferentes, que se sentiu embaraçado e mostrou-se mesmo difícil na escolha. A estalagem de Ailie Sim ficava para um lado da estrada cerca de uma milha dali, mas por causa da noite de sábado, encontraria ali um bando de jovens que impediam qualquer conversa razoável. Outros bons homens e boas mulheres, segundo o nome que se dá na Escócia aos rendeiros e às rendeiras, também estavam à sua disposição. Mas um era surdo, o outro não tinha dentes, não podia entender o segundo, nem fazer-se entender pelo primeiro; este era de um humor resmungão, aquele tinha um cão 316 de um humor pior ainda. Em Monkbarns e em Knockwinnock podia contar com uma recepção favorável e hospitaleira, mas um e outro estavam demasiado afastados para que ele comodamente pudesse lá chegar ainda essa tarde. "Não sei como é isto, pensou o velho, mas sou mais sensível a uma guarida para a noite do que nunca o fui em minha vida. Creio que a vista de todas aquelas belas coisas, ao reconhecer que se pode ser mais feliz sem elas, me tornou orgulhoso da minha própria sorte. Deus queira que não me suceda mal nenhum, porque o orgulho anuncia sempre a ruína do homem. Em todo o caso, a pior granja ainda é uma guarida mais agradável do que o castelo de Glenallan com todos os seus reposteiros de veludo preto, seus quadros e todas as riquezas que lhe pertencem. Bem, é preciso acabar com isto, e, decididamente, vou pedir dormida a Ailie Sim". No momento em que o velho descia a colina que dominava a pequena aldeia para a qual dirigia os seus passos, o sol acabava de pôr termo aos trabalhos dos habitantes, e a gente nova, aproveitando a bela tarde, ocupava-se em jogar à bola no terreno da comuna, enquanto as mulheres e os velhos a observavam. Os gritos, as risadas, as exclamações dos vencidos e dos vencedores, formavam um coro ruidoso que chegava até à
senda pela qual Ochiltree descia a encosta, e vieram-lhe à memória aqueles dias em que ele próprio era competidor entusiasta e, por vezes vitorioso, em todos os exercícios que demandavam força e agilidade. É raro que recordações deste género não arranquem um suspiro, mesmo ao que, no ocaso da sua vida, contempla um horizonte mais brilhante que o do nosso velho pobre. "Nessa época, reflectia ele naturalmente, eu não teria prestado mais atenção ao velho peregrino que descia a colina de Kinblythemont do que estes rapazes tão vivos prestam ao velho Edie". Regozijou-se, porém, ao ver que a sua chegada constituía uma circunstância mais importante do que a sua modéstia previra. Entre os dois grupos de jogadores levantara-se uma discussão acerca de um lanço; e como o arqueador favorecia um partido, e o mestre de escola acudia por outro, podia-se dizer que a questão estava a cargo de altas potências. O moleiro e o 317 ferreiro também tinham alinhado por diferentes lados e reflectindo na vivacidade dos dois argumentadores, podia-se recear que a discussão não terminasse amigavelmente. Mas o primeiro que avistou o mendigo, exclamou: - Ah! Aí vem o velho Edie que conhece as regras de todos os jogos da região, melhor do que qualquer homem que já lançasse a bola ou atirasse o eixo; não discutamos, rapazes, mas sujeitemo-nos ao julgamento de Edie. Edie foi, pois, recebido e instalado na qualidade de árbitro, com aclamações gerais; com toda a modéstia de um bispo a quem impõem a mitra, ou de um novo presidente chamado à sua cátedra, o velho recusou o encargo e a responsabilidade de que se propunham investi-lo. Em contrapartida, por este acto de desinteresse e de humildade, teve ele o prazer de ver reiterar a certeza dos velhos e dos de meia idade, de que, por todas aquelas redondezas, era ele o mais capaz de desempenhar as funções de árbitro. Após tais encorajamentos, tratou gravemente do cumprimento do seu dever, e proibindo seriamente toda a expressão injuriosa de um lado ou doutro, ouviu de uma parte o ferreiro e o arqueador, e do outro o moleiro e o mestre de escola, como um conselho composto de jovens e anciãos; Edie, porém, já julgara o caso antes de que se começasse a pleitear, à semelhança de alguns juizes que não deixam de ver todas as passagens do processo, e que se vêem obrigados a suportar em toda a sua extensão a eloquência e os argumentos do foro. Depois de tudo se ter dito de ambos os lados e mesmo repetido mais de uma vez, o nosso ancião, tendo madura e devidamente considerado, pronunciou a sentença moderada e conciliadora de que o lanço contestado era um lanço nulo, e por conseguinte não contaria para nenhum dos dois partidos. Esta judiciosa decisão restabeleceu a concórdia entre os jogadores; recomeçaram a arranjar os seus partidos e os seus apostadores com a ruidosa alegria peculiar em todos os jogos de aldeia, e os mais entusiastas já despiam os seus casacos e entregavam-nos com os lenços de cor ao cuidado de suas mulheres, de suas irmãs ou de suas namoradas, quando de súbito a sua alegria foi estranhamente perturbada. 318 Fora do grupo dos jogadores, um rumor muito diferente do que a alegria dos jogos provocava, começou a fazer-se ouvir. Depressa se pôde distinguir confusamente aquela espécie de suspiros e exclamações abafadas que proferem aqueles que acabam de saber a primeira notícia de um desertor ou de uma infelicidade. No meio do burburinho das mulheres puderam-se notar estas palavras: "Ah, meu Deus morrer assim tão jovem, e de repente! " Em breve este boato chegou até os homens, e fez calar num instante as expressões de alegria. Cada um percebeu que uma calamidade acabava de suceder na região, e cada um perguntava a causa, a seu
vizinho, que não estava mais informado. Por fim, a novidade chegou mais claramente aos ouvidos de Edie Ochiltree, que se encontrava no centro da assembleia. O "barco de Mucklebackit, esse pescador de quem temos falado tantas vezes, naufragara e os quatro homens pereceram, afirmava-se, incluindo Mucklebackit e o filho. A voz pública, porém, neste caso como em tantos outros, ia além da verdade. O barco afundara-se, realmente, mas Stephen, ou, como lhe chamavam, Steenie, fora o único homem que se afogara. Embora o género de vida deste jovem e o local que ele habitava o afastassem do convívio dos camponeses, não deixaram porém de interromper os seus jogos campestres, e de pagar a essa desgraça inesperada o tributo de compaixão e de interesse que quase nunca se recusa a acontecimentos tão súbitos e tão raros. Foi sobretudo a Ochiltree que esta notícia vibrou um golpe verdadeiramente sensível. Sentiu-se tanto mais aflito quanto mais se censurava de ter muito recentemente utilizado a ajuda daquele jovem para pregar uma partida que não podia ser vista como seriamente culpável, visto que não tinham a intenção de fazer experimentar ao químico alemão nenhum prejuízo, ou mesmo nenhuma injúria grave, mas que, no entanto, não era a maneira mais edificante de empregar as últimas horas da sua vida. Uma desgraça nunca vem só. Quando, num ar pensativo, apoiado no seu pau ferrado, Ochiltree juntava os seus lamentos aos dos camponeses da aldeia que deploravam a morte súbita do jovem, e secretamente se acusava de o ter metido numa questão pouco 319 louvável, foi agarrado pela gola por um oficial de paz, que estendeu a sua bengala com a mão direita, e exclamou: - Em nome do rei! O arqueador e mestre de escola empregaram toda a sua retórica para demonstrar ao oficial de polícia e seu ajudante que não tinham o direito de prender um bedesman do rei como vagabundo; e a muda eloquência do moleiro e do ferreiro, a qual se encontrava nos seus punhos cerrados, preparava-se para dar um apoio escocês ao seu árbitro. O seu roupão azul, diziam eles, era garantia de poder viajar por todo o país. - Mas o seu roupão azul - respondeu o oficial de polícia - não o autoriza, penso eu, a atacar, roubar e assassinar; o mandato que tenho contra ele é por causa desses crimes. - Assassinar! - exclamou Edie - Assassinar! Quem foi que eu assassinei? - O senhor alemão Dousterswivel! O agente das minas de Glenwithershins. - Assassinar Dousterswivel? Deixe-se disso; ele está tão vivo e tão são como o senhor. - Não faltou vontade de sua parte; ele teve de lutar duramente para defender a sua vida, e você tem de responder a essa acusação, conforme a lei. Os defensores do mendigo recuaram ao ouvir a gravidade da acusação formulada contra ele, mas mais de uma mão benfazeja estendeu a Edie carne, pão -e moedas para o sustentar na prisão onde os oficiais de paz o iam conduzir. - Obrigado, Deus os abençoe, meus filhos; já saí de mais de uma armadilha, quando merecia a libertação muito menos do que presentemente; ainda heide escapar a esta, como o pássaro escapa ao passarinheiro. Continuem a jogar, não se preocupem comigo... Sinto mais desgosto pelo pobre rapaz que acaba de perecer do que por tudo o que eles me possam fazer. Em seguida, o preso deixou-se levar sem resistência, enquanto aceitava
maquinalmente e enchia o seu alforje de esmolas que lhe choviam de todos os lados; e, antes de deixar a aldeia, estava tão carregado como um fornecedor do governo. No entanto, não tardou em ser aliviado da fadiga que lhe causava o aumento do fardo, pelo oficial, que arranjou uma carroça com 320 um cavalo para levar o velho ao magistrado, a fim de ser interrogado e metido na prisão. A infelicidade de Steenie e a detenção de Edie puseram fim aos jogos da aldeia, cujos habitantes mais graves começaram a meditar nas vicissitudes das coisas humanas, que tão subitamente arremessaram um dos seus camaradas para o túmulo, e que colocavam o juiz dos seus jogos numa situação em que corria o risco de ser enforcado. Como o carácter de Dousterswivel era geralmente conhecido, o que quer dizer bastante geralmente detestado, muitas pessoas conjecturavam que a acusação podia muito bem ser falsa e tendenciosa; mas todos convinham em que se Edie Ochiltree tivesse procedido de maneira a merecer o castigo nessa ocasião, era pena que não a merecesse por ter morto realmente Dousterswivel. XXX Quem é ele? É um homem que, se a terra lhe faltasse, combateria sobre as águas, - desafiou outrora a grande baleia, e por todos os seus títulos de leviatã, de hipopótamo e assim sucessivamente; quebrou uma lança contra um tubarão; e pela minha fé, senhor, foi o peixe quem levou a melhor. O nosso campeão ainda sofre com esta aventura. Comédia Antiga
- Assim, esse pobre rapaz Steenie Mucklebackit deve ser sepultado esta manhã - disse o nosso velho amigo Antiquário, trocando o seu roupão pelo fato preto de moda antiquada, que ele envergou em lugar do fato cor de tabaco que trazia habitualmente - E espera-se, presumo eu, que me incorpore no funeral? - Ai, sim! - respondeu o fiel Caxon, escovando oficiosamente os fios brancos e as manchas que se encontravam no fato do patrão - Diz-se que o corpo se mutilou de tal maneira contra os rochedos que se viram obrigados a apressar o enterro... O mar não deixa de ter perigos, como eu digo. a minha filha, 321 quando quero fortalecer-lhe a coragem, pobre criança; o mar, digo-lhe eu, Jenny, é uma profissão tão incerta... - Como a de um velho cabeleireiro a quem a moda dos cabelos curtos e o imposto sobre o pó subtraíram os seus clientes. Caxon, os teus temas de consolação são tão mal escolhidos como estranhos ao assunto que nos ocupa. Quid mihi cum faemina? (1) Que tenho eu com a raça das fêmeas, eu, que tenho bastantes, para dar e vender, por minha conta? Pergunto-te mais uma vez se aquela pobre gente conta comigo para acompanhar os funerais? - Oh! Sem dúvida, Vossa Honra é esperado - disse Caxon - Creio bem que contam com Vossa Honra... O senhor sabe que neste país se considera uma honra os gentlemen acompanharem o corpo durante o percurso das suas terras... O senhor não necessita de ir mais longe do que ao alto da avenida. Não se espera que Vossa Honra ultrapasse os limites do seu domínio, é somente um comboio ãe Kelso, um passo ou dois para lá do limiar da porta. - Um comboio de Kelso - repetiu o curioso Antiquário - E porquê um
comboio de Kelso, em vez de um comboio vulgar? - Meu Deus, senhor! - respondeu Caxon -Como o hei-de saber? É apenas um ditado do país. - Caxon - prosseguiu Oldbuck - tu não serves senão para pentear perucas. Se tivesse feito a pergunta a Ochütree, ele teria uma lenda pronta para me servir. - Nada tenho que ver - respondeu Caxon, com mais vivacidade do que a habitual - senão com o exterior da cabeça de Vossa Honra, como o senhor tem Por costume dizer. - É verdade, Caxon, é verdade, e não se pode censurar um pedreiro de não ser estofador. Pegou no seu livro de apontamentos e registou: "Comboio de Kelso: avançar um passo e meio para além do limiar da porta: citação - Caxon... Perguntar sua origem? Para memória: escrever ao doutor Graysteel a este respeito". Acabando de anotar, a juntou: (1) Que tenho eu de comum com uma mulher? - N. do T. 322 - Quanto a este costume observado pelos proprietários do país, de acompanharem ao túmulo o corpo de um camponês, aplaudo, Caxon. Ele vem de antigos tempos, e baseou-se nas noções de auxílio e de dependência mútuos que existem entre o proprietário e o cultivador do solo... Nisto, devo confessar que o sistema feudal (como também na cortesia para com as mulheres, que foi levada ao excesso); nisto, dizia eu, os usos feudais mitigaram e adoçaram a severidade dos tempos antigos. Qual foi o homem, Caxon, que alguma vez ouviu falar de um espartano a acompanhar os funerais de um ilota? E no entanto iria afirmar que John de Girnell... já ouviste falar dele? - Sim, sim, senhor; ninguém pode estar muito tempo na sua companhia sem ouvir falar desse gentleman. - Pois bem - continuou o Antiquário - apostaria alguma coisa em como não haveria um kolbkerl, ou servo ou camponês, adscriptus glebas, que morresse no território dos monges, que John de Girnell o não mandasse enterrar decente e honestamente. - Sim, sim; mas, não se zangue Vossa Honra, diz-se que ele se preocupava mais com os nascimentos do que com os enterros. Ah! Ah!... Esta reflexão foi acompanhada de uma gargalhada de satisfação. - Bravo, Caxon! Muito bem; em verdade, estás a distinguir-te esta manhã. - E além disso - acrescentou Caxon, num ar insinuante, encorajado pela aprovação de seu amo - também se diz que os padres católicos, nesses tempos, recebiam qualquer coisa para ir ao enterro. - Justamente, Caxon, justo como a minha luva; e, diga-se de passagem, julgo que esta expressão provém do costume de lançar a luva como prova da inviolabilidade da sua fé. Justo como a minha luva, dizia eu, Caxon; mas nós, protestantes, temos tanto mais mérito em cumprir esse dever por nada, quanto é certo que se lhe atribuiu um salário sob o império da fé católica, esse reino da superstição que Spenser designa assim na sua frase alegórica: A filha do cego, como se lhe chamou; Abessa, que -por pai tivera Corecca. 323 Mas porque vou eu contar-te estas histórias, a ti?... O meu pobre Lovel transtornou-me e acostumou-me a falar alto quando não tenho mais ninguém para me ouvir... Onde está o meu sobrinho Mac Intyre? - Está no locutório, senhor, com as damas.
- Bem - disse o Antiquário - vou até lá. - Agora, Monkbarns - disse sua irmã, quando o viu entrar -não se vá zangar. - Meu querido tio - começou Miss Mac Intyre. - Que quer tudo isso dizer? - indagou Oldbuck, alarmado pelo prenuncio de alguma má notícia e augurando mal o tom suplicante das damas, tal como uma fortaleza pressente um ataque ao primeiro som de trombeta que se faz ouvir -Que vem a ser isso? Porque invocam a minha paciência? - Nada especial, senhor, ouso dizer - declarou Heitor, que, com o seu braço ao peito, estava sentado à mesa do almoço -No entanto, qualquer que possa ser a importância, sou eu o responsável; como o sou também de todos os incômodos que tenho ocasionado em sua casa, os quais não tenho meios para indemnizar senão por agradecimentos. - Não, não, tu és bem-vindo aqui - disse o Antiquário - não falemos disso... Somente que te sirva de lição e te ponha em guarda contra os teus acessos de cólera, que não são outra coisa senão uma breve alienação, ira furor brevis... Mas qual foi o novo desastre? - O meu cão teve a infelicidade de derrubar... - Praza a Deus que não fosse o lacrimatório encontrado no Clochnaben! exclamou Oldbuck. - Em verdade, meu tio - disse o jovem - tenho muito medo... Era aquele que estava em cima do bufete... O pobre animal não queria senão comer a manteiga fresca... - O que conseguiu completamente, pelo que vejo, visto que não há senão manteiga salgada na mesa; isso ainda não seria nada, mas o meu lacrimatório, a poluna fundamental em que, a despeito da obstinada ignorância de Mac-Crib, me apoio para provar que os romanos atravessaram os desfiladeiros destas montanhas e deixaram atrás deles vestígios das suas armas e das suas artes; esse precioso monumento está que324 brado, aniquilado, reduzido a estilhas que já não o distinguem de um mísero vaso de flores partido... Heitor, eu estimo-te, Mas nunca mais és o meu oficial. - com efeito, julgo que faria má figura num regimento que o senhor comandasse. - Pelo menos, Heitor, meteria na ordem o teu comboio de campanha, e farte-ia viajar expeãitus ou relictis impedimentís. Não podes imaginar quanto estou farto da tua cadela. Rouba com arrombamento, ao que parece, porque a ouvi acusar de ter forçado a cozinha, depois de todas as portas estarem fechadas, e de lá ter furtado uma perna de carneiro. Se os nossos leitores se recordam da precaução de Jenny Rintherout, de deixar aberta a porta na noite em que foi à cabana do pescador, provavelmente absolveriam a pobre Juno desse agravamento de crime, que os homens de leis chamam claustrum fregií, e que constitui a distinção entre roubo com arrombamento e roubo simples. - Estou verdadeiramente desolado, senhor -disse Heitor -por Juno ter causado tanta desordem; mas Jack Muirhead, que se encarregava de domesticar os cães, nunca a pôde dominar; ela já viajou mais do que qualquer outra cadela que eu conheço; mas... - Então, Heitor, desejaria que ela fosse viajar, para longe de minha casa. - Faremos ambos a nossa retirada amanhã ou hoje; mas ficaria desolado por me retirar amuado com o irmão de minha mãe, por causa de um ruim vaso partido. - ó meu irmão, meu irmão! - exclamou Miss Mac Intyre, na angústia do efeito que ia produzir aquele epíteto injurioso.
- Então, como querias que eu lhe chamasse? -" continuou Heitor -É precisamente de uma coisa deste género de que se servem no Egipto para refrescar o vinho, o sorvete ou a água. Trouxe um par, poderia ter trazido vinte. - Quê! -disse Oldbuck -Do feitio daquele que o teu cão partiu? - Sim, senhor, uma espécie de vaso de barro no 325 género daquele que estava em cima do bufete. Estão na minha habitação em Fairport; trouxemos alguns para refrescar o nosso vinho durante a travessia; desempenharam muito bem as suas funções. Se pudesse supor que eles poderiam reparar a sua perda ou serem-lhe agradáveis, sentir-me-ia muito honrado se o senhor os quisesse aceitar. - Em verdade, meu querido filho, ficaria encantado se os possuísse; há muito tempo que é meu estudo favorito procurar a relação das nações entre elas pelos seus usos e pela semelhança dos utensílios de que se servem; e tudo o que me pode apresentar alguma relação desse género se me torna precioso. - Pois bem, então, senhor, dar-me-á o maior prazer em aceitá-los com algumas ninharias da mesma espécie. E posso esperar agora que me tenha perdoado? - ó meu querido filho, tu não és senão um pouco estouvado e um pouco maluco. - Mas asseguro-lhe que Juno tão-pouco passa de uma estouvada. O domesticador destes cães disse-me que ela não tinha vício nenhum, nem obstinação. - Bem! Incluo Jwno na amnistia, com a condição de a imitares, evitando como ela o vício e a obstinação, e que de futuro ela será banida do locutório de Monkbarns. - Meu tio - disse o jovem militar - sentir-me-ia envergonhado, e mesmo não me atreveria a oferecer em expiação dos meus pecados e nos da minha cadela, um objecto que eu não julgasse digno de ser aceito Por si; mas, agora, que tudo está perdoado, quer permitir ao sobrinho órfão, ao qual o senhor deseja servir de pai, que lhe faça presente de uma ninharia que me asseguraram ser verdadeiramente curiosa e que Se o contratempo do meu ferimento impediu de lha entregar? É um presente de um sábio francês a quem Prestei um serviço no caso da Alexandria. O capitão depôs nas mãos do Antiquário uma pequena caixa, que este abriu e na qual encontrou um amel antigo de ouro maciço, com um camafeu de muito Bela execução a representar uma cabeça de Cleópatra. O Antiquário caiu em êxtase, sacudiu cordialmente a mão de seu sobrinho, agradeceu-lhe uma centena de vezes e mostrou o anel a sua irmã e a sua sobrinha. a última teve bastante tacto para lhe conceder um 326 grau de conveniente admiração; mas Miss Griselda, apesar da sua afeição pelo sobrinho, não teve habilidade para a imitar. - É bonito - disse ela - e suponho que é precioso também, mas não percebo nada disso, e não posso ser juiz nessas coisas. - Foi bem Fairport que falou por uma só voz! exclamou Oldbuck - Foi bem o espírito desta cidadezinha que nos infectou a todos. Também me parece que me cheira a fumo desde há dois dias que o vento tem soprado constantemente do nordeste; e sabe Deus se os seus prejuízos se estendem
ainda mais longe do que as suas exalações! Acredita, meu caro Heitor, se eu passeasse na Rua Direita, ostentando este precioso anel aos olhos de todos os que encontrasse, ninguém, desde o preboste ao pregoeiro da cidade, se deteria para me perguntar a sua história; mas se eu levasse uma trouxa de roupa debaixo do braço, não chegaria até o mercado de cavalos sem ser assediado de perguntas sobre a sua qualidade e o seu preço. Poder-se-ia parodiar esta ignorância grosseira com estes versos de Gray: Vesti à harpa e à intriga A mortalha de espírito e de senso; Vesti de pesadas vestimentas Que logo a censura reclama Contra os que passam por indigentes. A prova mais notável de que aquela oferenda de paz fora muito agradável está em que, enquanto Antiquário declamava estes versos, Juno, que tivera medo, segundo aquele instinto muito acentuado pelo qual os cães descobrem instantaneamente as pessoas que os estimam e as que não os estimam, metera Por várias vezes o focinho pela porta e, não farejando nada de hostil no ar, arriscara-se finalmente a introduzir-se toda inteira e, encorajada pela impunidade, atreveu-se a comer as torradas que Mr. Oldbuck tinha na mão enquanto, olhando ora um, ora outro dos seus ouvintes, declamava com complacência: Vesti à harpa e intriga, etc. 327 - Tu lembras-te daquele passo das três Parcas, que, diga-se de passagem, não é tão belo como no original. Mas, como diabo desapareceu a minha torrada? Ah! Verdadeiro tipo'da raça fêmea, é de admirar que elas se ofendam por serem tratadas pelo teu nome! - assim falando, com o punho ameaçava Juno, que fugiu para fora do aposento - Entretanto, como, segundo Homero, Júpiter não conseguia governar Juno. no céu, e como, segundo Heitor Mac Intyre, o domesticador de cães Jack Muirhead não foi mais feliz na terra, suponho que é preciso renunciar a isso. Esta reflexão indulgente foi considerada pelo irmão e pela irmã como um pleno perdão dos crimes de Juno, e sentou-se cada um muito satisfeito à mesa do almoço. Quando acabaram, o Antiquário propôs a seu sobrinho ir acompanhar o enterro. O jovem desculpou-se por não ter fato preto. - Oh, não faz mal! A tua presença é tudo o que se pede. Asseguro-te que hás-de ver alguma coisa que te divertirá; não, a palavra é imprópria, mas que te interessará pela semelhança que vais encontrar entre os nossos costumes populares em tais ocasiões e os dos antigos. "Deus tenha piedade de mim! -pensou Mac Intyre - nunca me comportaria convenientemente, e vou arriscar-me a perder todo o crédito que acabo de obter tão recentemente e por um tão grande acaso". Quando partiram, disciplinado como estava pelos sinais e pelos olhares suplicantes da sua irmã, o nosso jovem militar ia fortemente decidido a abster-se de Qualquer atitude de desatenção ou de impaciência que Pudesse ferir seu tio; mas as nossas melhores resoluções estão sujeitas a malograr-se quando se encontraram contrariadas pelas nossas inclinações. O nosso Antiquário, para não deixar a desejar nenhuma explicação, começara pelos ritos fúnebres dos antigos escandinavos, quando seu sobrinho o interrompeu ao notar que uma enorme ave marinha, que havia algum tempo voltejava em torno deles, se aproximava por duas vezes ao
alcance de um tiro de espingarda. Mas, confessado e perdoado este desvio, Oldbuck continuou a sua dissertação. - São circunstâncias de que devias ocupar-te e 328 que deveriam ser-te familiares, meu caro Heitor; porque entre os estranhos acontecimentos da guerra que agita agora todos os cantos da Europa, quem sabe onde podes ser chamado a servir. Se fosse na Noruega, por exemplo, ou na Dinamarca, ou em qualquer parte da antiga Escânia ou Escandinávia, como nós lhe chamamos, que vantagem não encontrarias em saber na ponta da língua a história das antigüidades desse velho país, a ofjicina gentiumi, a mãe da Europa moderna, o berço daqueles heróis firmes na dor, firmes nos combates, Sorrindo mesmo quando soa a sua hora! Que estimulante para ti, por exemplo, encontrares-te, ao cabo de uma marcha fatigante, na vizinhança de um monumento rúnico, e descobrires que armaras a tua tenda junto do túmulo de um herói! - Julgo, senhor, que o nosso rancho ficaria melhor servido se nos sucedesse acampar na vizinhança de uma grande capoeira bem guarnecida. - Meu Deus! Como podes tu falar assim? Quem se pode admirar de que os tempos de Crécy e de Azincourt se tenham dissipado, quando o respeito devido ao antigo valor deixou de animar o coração do soldado bretão! - Nada disso, senhor, de maneira alguma, embora eu ouse afirmar que Eduardo, Henrique e o resto desses heróis pensassem no seu jantar, antes de se darem ao trabalho de examinar um velho túmulo! mas isso não faz com que sejamos insensíveis às recordações da glória de nossos pais, afiançolhe. Tem-me sucedido muitas vezes, à noite, fazer cantar ao velho Rory Mac Alpin versos tirados de Ossian acerca das batalhas de Fingal e de Lamon Mor, e de Magnus e do espírito de Muirartach. - E és tão ingênuo - perguntou o Antiquário, que principiava a animar-se - que acredites na antigüidade real de toda essa verborreia de Macpherson? - Se acredito, senhor! Como não havia de acreditar, se oiço estas canções desde a minha infância? - Mas não as mesmas do Ossian inglês de Macpherson. Espero que não sejas tão absurdo que sustentes 329 isso? - disse o Antiquário, cuja fronte se ensombrara de cólera. Mas Heitor estava resolvido a defrontar a tempestade. Como mais de um celta obstinado, imaginava que a honra do seu país e da sua língua natal estava ligada à autenticidade desses poemas populares, e teria combatido e renunciado aos seus bens e à sua vida para não ceder uma linha. Foi por isso que ele sustentou com intrepidez que Rory Mac Alpín podia recitar o livro inteiro do princípio ao fim, e não foi senão sobre outro assunto que ele mo'dificou uma asserção tão generalizada, ajuntando: - Pelo menos, se lhe dessem um whisky recitaria tanto quanto o quisessem escutar. - Sim, sim - disse o Antiquário - e não seria por muito tempo. - É certo, senhor, que tínhamos de nos ocupar dos nossos deveres, que não nos permitiam ficar toda a noite a ouvir um tocador de gaita de foles. - Bem. Lembras-te agora - disse Oldbuck, cerrando fortemente os dentes e falando sem os abrir, hábito que adquirira quando o contradiziam lembras-te de alguns desses versos que nós achámos tão belos e tão interessantes? Porque tu és, não o duvido, um famoso juiz nessa espécie de coisas.
- Não pretendo ser muito sabedor, meu tio; mas será razoável zangar-se comigo porque admiro mais as antigüidades do meu país do que as dos Harold, dos Harfager, dos Haco, de que o senhor é tão entusiasta? - Mas esses godos poderosos e indomáveis foram teus antepassados; esses celtas seminus que eles subjugaram, e aos quais concederam uma vida que esse povo medroso ocultava nos retiros dos seus rochedos, esses celtas não eram mais do que mancipia (1) e seus servos. Foi a vez de a fronte de Heitor se cobrir de rubor. - Senhor - disse ele - eu não entendo muito bem o que quer dizer mancipia e servos, mas o suficiente no entanto para sentir que esses nomes são aplicados muito pouco a propósito aos montanheses escoceses. (1 ) Escravos. - N. do T. 330 Nenhum outro homem, a não ser o irmão de minha mãe, teria ousado servirse de tal linguagem na minha presença, e não posso ocultar que essa maneira de se expressar fere ao mesmo tempo a hospitalidade, a delicadeza e a amizade que, como seu hóspede e parente, tenho o direito de esperar de si. Os meus antepassados, Mr. Oldbuck... - Eram valentes e poderosos chefes, não o duvido, Heitor; e, realmente, eu não tinha o intuito de ofender-te tão seriamente ao tratar um tema de uma antigüidade tão recuada, e perante o qual eu próprio me encontro frio, desinteressado e imparcial. Mas tu és tão irritável e tão fogoso como Heitor, Aquiles e o próprio Agamémnon. - Tenho pena de me ter exprimido com tanta vivacidade, meu tio, sobretudo consigo, que se tem mostrado sempre tão generoso e tão bom; mas os meus antepassados... - Não falemos mais nisso, meu rapaz, não queria de modo algum insultarte. - Tenho prazer em ouvir isso, senhor, porque a casa de Mac Intyre... - A paz seja com ela e com cada um dos seus membros. Mas, voltando ao assunto de que falávamos, lembras-te, dizia eu, de alguns desses poemas que te inspiraram tanto interesse? "É pena - pensou Mac Intyre - que ele se ocupe com tanto deleite de tudo o que é antigo, e que não abra excepções senão para a minha família". E após algum esforço de memória, ajuntou em voz alta: - Sim, senhor, creio que me lembro de alguns versos, mas o senhor não compreende gaélico. - E dispenso-me muito bem de o entender; mas podias dar-me uma ideia do sentido no idioma que falas. - Serei um mísero tradutor - disse Mac Intyre, recordando o texto, em que se encontrava abundância de aghes, aughs, oughs e outros sons guturais, depois, tossiu e apurou a voz como se a tradução lhe tivesse ficado na garganta. Em seguida, prevenindo que o assunto do poema era um diálogo entre o poeta Oisin ou Ossian e Patrick, o santo tutelar da Irlanda, e que era extremamente difícil, para não dizer impôssível, 331 dar o requintado encanto das duas ou três primeiras linhas, disse que este era mais ou menos o seu sentido: Patrick, de salmos grande cantor, Visto que não queres ouvir Os contos que te quero ensinar, E que no entanto eu sei de cor Tenho pena de to dizer: Pouco mais vales que um asno. - óptimo! - exclamou o Antiquário - Mas continua. Eis um excelente gracejo. Não duvido de que o poeta tivesse razão. Que respondeu o santo?
- A resposta condiz bem com o seu carácter disse Mac Intyre - Mas é a Mac Alpin que é preciso ouvir cantar o original. As palavras de Ossian são num tom de baixo-cantante; as de Patrick requerem voz de tenor. - Como a trompa de Mac Alpin e a sua gaita de foles, por certo - disse Oldbuck - Mas continua, por favor. - Pois bem, então Patrick respondeu a Ossian: Palavra de honra, filho de Fingal, Quando eu estou entoando salmos, O clamor das histórias das tuas velhas Perturba a devoção dos meus exercícios. - Excelente! Cada vez melhor. Creio, porém, que São Patrick cantava melhor que o clérigo do Blattergowl, ou a escolha devia ser difícil de fazer entre o salmista e o poeta; mas o que eu mais admiro é a cortesia desses dois eminentes personagens um para com o outro. É pena que não haja uma única palavra disso na tradução de Macpherson. - Se tem a certeza disso - observou gravemente Mac Intyre -foi porque ele tomou estranhas liberdades com o original. - É o que acabarão por descobrir; mas continua, peço-te. ( 332 - Em seguida - disse Mac Intyre - eis a resposta de Ossian: Ousas comparar os teus salmos Tu, filho de - Filho quê? - exclamou Oldbuck - Significa, penso eu - disse o jovem militar, com certa relutância filho da fêmea do cão. Comparas os teus salmos Às histórias das mulheres Fenianas de braços nus. - Tens a certeza de que estás a traduzir correctamente esse epíteto, Heitor? - Absoluta certeza - respondeu Heitor, de bom humor. - É que eu iria pensar que a questão da nudez entre os Fenianos se referia a outra parte do corpo. Desdenhando responder a esta alusão, Heitor continuou a recitar: Não vejo grande mal Em arrancar-te a cabeça de entre os ombros. Mas, que temos nós lá em baixo? - disse Heitor, interrompendo-se bruscamente. - Algum tresmalhado do rebanho de Proteu disse o Antiquário - É uma espécie de foca ou lobo-marinho que dorme na praia. Mac Intyre, com toda a vivacidade de um jovem caçador, esquecendo ao mesmo tempo Ossian, Patrick e seu tio, e exclamando: "Vou apoderar-me dele!", arrancou precipitadamente a bengala das mãos do Antiquário atonito, com risco de o atirar ao chão, lançou-se rapidamente sobre o animal para o impedir de regressar ao mar, para o qual já se dirigia à pressa e assustado. O próprio Sancho, quando seu amo interrompeu a narrativa que fazia dos combatentes de Pentapoün de braços nus, e avançou em pessoa contra um rebanho de carneiros, não ficou mais confundido que Oldbuck com esta súbita escapada do sobrinho. - Tem o diabo no corpo! -foi a sua primeira exclamação 333 - Vai perturbar o animal, que não pensava nele? - depois, elevando a voz - Heitor, meu sobrinho, estás doido, deixa a foca, deixa a foca! Mordem como diabos, digo-to eu. É o mesmo que estar a falar para uma parede, não me dá ouvidos... Pronto... Lá se combatem agora... bom! A foca leva a melhor! Pois bem, estou contente - disse ele no azedume da sua cólera, embora no fundo realmente alarmado com o perigo que o sobrinho corria Sim, palavra de honra, regozijo-me de todo o meu coração.
com efeito, o animal, vendo a retirada cortada pelo jovem militar, fezlhe frente com bravura e, recebendo uma pancada vigorosa, franziu as sobrancelhas, segundo o costume dos lobos marinhos quando estão irritados, e, servindo-se ao mesmo tempo das patas dianteiras e da sua força maciça, arrancou a arma das mãos do assaltante, atirou-a à areia e mergulhou no mar sem lhe fazer outro mal. O capitão, Mac Intyre, um pouco confuso do remate do seu nobre feito, levantou-se a tempo de receber as felicitações ironicas de seu tio sobre um combate singular digno de ser celebrado pelo próprio Ossian. - Visto que o teu magnânimo adversário - ajuntou ele - fugiu, embora não com as asas da águia, para longe do seu inimigo derrotada. Diabo! O bicho retirou-se todo bamboleante com as honras do triunfo, e levou a minha bengala, também, creio eu, como "polia opima. Mac Intyre não tinha grande coisa a responder, senão que um montanhês não podia deixar passar um gamo, um lobo-marinho ou um salmão, sem procurar medir a sua destreza com a dele, e que se esquecera de que tinha o braço ao peito. Também se desculpou com a queda para regressar a Monkbarns, e assim se escapou aos gracejos de seu tio e às lamentações que lhe arrancava a perda da sua bengala. - Eu tinha-a cortado - dizia ele - nos bosques clássicos de Hawthornden, na época em que não acreditava dever ficar sempre solteiro. Não a daria nem por uma carga de lobos-marinhos. Ó Heitor, Heitor, o teu Patrono nasceu para sustentáculo de Tróia, e tu para seres a ruína de Monkbarns! 334 XXXI Não me digas isso As lágrimas da mocidade são semelhantes ao morno orvalho do meio-dia; mas de nossos olhos envelhecidos o desgosto faz ceir gotas que se assemelham é saraiva do norte, e que gelem os sulcos das faces emurchecidas. Tão frias como nossas esperanças, são obstinadas como a dor. As que os jovens vertem não deixam marcas, as nossas caem nos corações; aí se aglomeram e destroem todo o calor. Comédia Antiga
Ficando só, o Antiquário apressou o passo, que fora retardado pelas diversas discussões e pelo encontro que as terminara, e depressa chegou à vista das choupanas de Musselcrag, que não iam além de uma meia dúzia. Ao seu habitual aspecto de sujidade e de miséria juntavam nesse momento os tristes atributos que distinguem uma casa enlutada. Os barcos estavam todos alinhados na praia, e, embora o tempo estivesse bom e a estação favorável, não se ouviam nem as cantigas costumadas dos pescadores que estão no mar, nem a algazarra das crianças, nem a voz aguda da mãe de família quando cantava à porta, enquanto remendava as redes. Alguns vizinhos, uns, vestindo antigos fatos pretos quase novos, outros, nos seus trajes habituais, mas apresentando todos no rosto a expressão do triste interesse que uma desgraça tão inesperada e súbita suscitava, achavam-se reunidos à porta da choupana de Mucklebackit, e esperavam que se levasse o corpo. Quando viram aproximar-se o laird de Monkbarns, cederam-lhe lugar para entrar, tirando-lhe os seus chapéus e bonés, quando ele passou, com um ar de civilidade melancólica, saudação a que ele correspondeu da mesma maneira. O interior da cabana oferecia uma cena que só o nosso Wilkie poderia pintar com aquele requintado sentimento da natureza que caracteriza as
suas deliciosas produções. 335 O corpo estava colocado no caixão que tinham posto em cima da madeira do leito que o jovem pescador ocupava em vida. A certa distância, encontrava-se o pai, cujas feições rudes e fatigadas pelos ultrajes das estações e do tempo estavam sombreadas pelos cabelos grisalhos e atestavam que defrontara mais de uma noite tempestuosa e mais de um dia semelhante a essas noites. Parecia ocupado em recordar a sua perda com aquele sentimento de dor amarga que pertence aos caracteres sombrios e violentos, e que se transforma quase em ódio ao mundo e àqueles que ficam depois de se ter retirado o objecto da sua afeição. O velho fizera os mais desesperados esforços para salvar o filho e fora precisa uma força superior para o impedir de os renovar no momento em que, sem qualquer possibilidade de o arrancar à morte, apenas teria perecido com ele. Todas estas recordações lhe fervilhavam, sem dúvida, na mente; o olhar dirigia-se para o lado do caixão, mas de uma maneira indirecta e como que para um objecto que não tinha coragem de fixar e do qual, contudo, não podia desviar a vista. As respostas às perguntas indispensáveis que lhe faziam, uma vez por outra, eram breves, duras e quase ferozes. A família ainda não se atrevera a dirigir-lhe uma palavra de consolação ou de piedade. Sua mulher, apesar do carácter másculo e imperioso e embora governasse despòticamente a família nas ocasiões normais, como tinha o direito de se gabar, aterrada por aquela grande perda e reduzida ao silêncio e à submissão, era forçada a ocultar aos olhares do marido as explosões de dor maternal. Como ele recusara todo o alimento desde que a desgraça acontecera, não ousando aproximar-se dele, nesse mesmo dia, por um afectuoso artifício usara do auxílio do filho mais pequeno, o predilecto da família, para apresentar ao marido alguns alimentos. O seu primeiro movimento fora repeli-lo com violenta cólera que assustara o rapazinho, o segundo tomá-lo nos braços e devorá-lo com beijos. - Serás um valente rapaz, se me fores conservado, Patie. Mas, nunca, nunca, podes ser o que ele era para mim. Manobrava o barco comigo desde a idade de dez anos, e não havia outro igual para puxar 336 uma rede, aqui, em Buchan Ness. Diz-se que o homem, deve submeter-se; está bem, vou tentar. E depois guardou silêncio até que foi constrangido a responder às perguntas necessárias de que falámos. Tal era o desesperado estado do pai. A mãe estava sentada no outro canto da choupana, o rosto coberto com o avental, que assim lançara por suas mãos e que torcia com angústia, e a agitação convulsiva do seio, que ela não pudera ocultar, cobrindo-o, denunciava bem a natureza da sua dor. Duas das comadres debitavam-lhe em voz baixa aqueles sediços lugares-comuns sobre a resignação necessária numa desgraça sem remédio, e parecia procurarem aturdir a dor que não podiam consolar. No desgosto dos filhos misturava-se o espanto que lhes causavam os preparativos que viam fazer em volta deles, e sobretudo a abundância extraordinária de pão de fermento e de vinho, que o mais pobre dos camponeses ou dos pescadores oferece aos seus hóspedes nestas tristes ocasiões; de maneira que os seus lamentos pela morte do irmão se confundiam com a admiração que o esplendor dos funerais suscitava. Mas a figura da avó era a mais notável deste consternado grupo. Sentada no lugar habitual, com o costumado ar de apatia e de indiferença por tudo
o que a cercava, parecia, uma vez por outra, e como que maquinalmente, retomar o movimento de fazer girar o fuso, depois procurar no seio a sua roca, embora um e outro estivessem postos de parte. Lançava em seguida olhares em volta, como que surpreendida de não encontrar esse instrumento da sua indústria, e parecia impressionada com a cor negra do vestido que lhe tinham envergado e atrapalhada com o número de pessoas que a rodeavam. Por fim, levantava a cabeça e, com uma expressão sinistra, dirigia os olhos para aquele leito que continha o caixão do neto, como se, de repente e pela primeira vez, recobrasse a razão para compreender a sua inexprimível infelicidade. Estes diferentes sentimentos de embaraço, de assombro e de dor, sucederam-se alternadamente mais de uma vez nas suas faces, em que havia muito tempo parecia reinar o torpor. Mas ela não pronunciou uma palavra, assim como não vertera uma 337 lágrima, e ninguém da família podia depreender por algum olhar, por alguma expressão do seu rosto, até que ponto ela sentia o movimento extraordinário que se fazia em sua volta. Assim, permanecia nesta assembleia fúnebre como um elo da cadeia entre os parentes desolados e o corpo inanimado daquele cuja perda deploravam. Era um ser no qual as sombras da morte já obscureciam rapidamente a chama da vida. Quando Oldbuck entrou naquela casa de luto foi recebido por uma inclinação de cabeça silenciosa e geral e, segundo o costume escocês em semelhantes ocasiões, ofereceram a todos os hóspedes em redor o pão, o vinho e os licores. Elspeth, ao serem apresentados estes refrescos, surpreendeu e fez estremecer toda a gente, detendo a pessoa que lhos apresentava; depois, pegando num copo, levantou-se e, com o sorriso da demência nas faces enrugadas, pronunciou em voz cava e trêmula: - Uma boa saúde para todos, meus senhores, e que muitas vezes possamos ter alegres reuniões como esta! Toda a gente se arrepiou com o sinistro brinde e pousou o seu copo sem o ter levado aos lábios, com aquele grau de horror e de medo que não assombrará os que sabem a quanta superstição ainda está sujeita a classe baixa da Escócia neste género de ocasiões. Mas, quando a velha provou o licor, exclamou bruscamente, numa espécie de brado: - Que é isto? Não é vinho? Quê! Haverá vinho em casa de meu filho? Ah, sim! - continuou ela, com um gemido abafado - Compreendo agora a triste causa. E, deixando cair o copo da mão, quedou-se uns momentos de pé, a olhar fixamente o leito, em cima do qual tinham colocado o caixão de seu neto. Depois, Decaindo gradualmente na cadeira, tapou os olhos e a fronte com a mão lívida e ressequida. Nesse momento, entrou o ministro na choupana. " Blattergowl, apesar de terrível falador, principalmente a respeito de aumentos, alugueres, dízimos e Aberturas na sessão daquela assembleia geral, onde, desgraçadamente para os auditores, ele estivera a actuar durante um ano como moderador, era no entanto um bom cristão perante Deus e perante os homens, em toda a extensão da expressão escocesa. Nenhum 338 eclesiástico era mais cuidadoso em visitar os doentes e os aflitos, em moralizar a juventude, em instruir a ignorância e em destruir o erro. Assim, não obstante a impaciência que causavam ao nosso amigo Antiquário a prolixidade e os preconceitos pessoais e o seu apego à profissão e, apesar de um certo desprezo habitual pela sua capacidade, especialmente em matéria de imaginação e de gosto, sobre os quais Blattergowl era
geralmente muito difuso, se bem que tivesse a esperança de chegar um dia a uma cátedra de retórica ou de belas-letras; apesar, dizia eu, da espécie de prevenção que todas estas circunstâncias excitavam contra ele, Mr. Oldbuck tinha muita es- tima e respeito pelo dito Blattergowl, embora eu seja forçado a confessar que, em despeito do sentimento das conveniências e das solicitações das suas fêmeas, raramente ele se deixava arrastar a ouvi-lo pregar. Mas desculpava-se regularmente todos os domingos, dia em que Blattergowl era convidado a jantar em Monkbarns; querendo com isto testemunhar os seus respeitos ao eclesiástico de uma maneira que julgava dever ser-Lhe pelo menos agradável, também, e que contrariava muito menos os hábitos pessoais do velho sábio. Regressando de uma divagação que não pôde servir senão para fazer compreender melhor o honesto clérigo, diremos que, logo que Mr. Blattergowl entrou na choupana e que recebeu as tristes e mudas saudações dos circunstantes ali reunidos, se aproximou do infeliz pai e pareceu tentar oferecer-lhe algumas palavras de condolências ou de consolação. Mas o velho ainda estava incapaz de as receber. No entanto, inclinou-se bruscamente e sacudiu a mão do pastor, como que a reconhecer as suas boas intenções, mas não quis ou não pôde dar outra resposta. O ministro avançou em seguida para junto da mãe, marchando sobre o sobrado a passo lento, receoso e silencioso, como se temesse que o solo, como um gelo pouco sólido, viesse a quebrar-se-lhe sob os pés, e que o primeiro eco dos seus passos destruísse algum mágico encantamento e mergulhasse a cabana e os circunstantes num abismo subterrâneo. Não se pode julgar o que ele disse à pobre mulher senão pelas suas respostas, que, abafadas pelos soluços que ela não podia reter e pelo avental que lhe cobria a 339 cabeça, se faziam confusamente ouvir a cada pausa do discurso do ministro: - Sim, senhor, sim... O senhor é muito bom... é muito. - sem dúvida, sem dúvida... o nosso dever é conformarmo-nos... Mas, ó meu Deus, o meu pobre Steenie... o orgulho do meu coração, ele era tão belo, tão bom; a alegria e o sustentáculo da sua família, era a consolação de nós todos, e não havia ninguém que não tivesse prazer em vê-lo!... ó meu filho, meu filho! Porque é que estás aí estendido sem vida e porque é que fiquei para te chorar? Não se podia discutir com esta explosão de dor e de afeição maternal. Oldbuck recorreu por várias vezes à sua tabaqueira para ocultar as lágrimas, porque, em despeito do carácter severo e cáustico, não era insensível a cenas deste género. As mulheres que estavam presentes choravam, e os homens mantinham as boinas diante da cara e falavam à parte e em voz baixa. O clérigo quis dirigir em seguida piedosas consolações à velha avó. Primeiro, ela escutou-o, ou pareceu escutá-lo, com toda a apatia habitual e como se não o entendesse; mas, em apoio do discurso, ele aproximou-se tanto do seu ouvido que as palavras acabaram por torná-lo inteligível, embora as pessoas mais afastadas não as pudessem ouvir; então o rosto da avó tomou aquela expressão sombria e carregada que a caracterizava durante os curtos interregnos da razão. Endireitou a cabeça e o corpo de uma maneira que denunciava a impaciência, se não o desprezo que lhe inspiravam aqueles conselhos, e agitou ligeiramente a mão, mas com um gesto bastante expressivo para indicar a todos os que eram testemunhas que repelia com profundo desdém as consolações espirituais que lhe eram oferecidas. O pastor recuou uns passos, como se se sentisse empurrado, e, erguendo a mão ao céu, deixou-a recair brandamente de uma maneira que expressava ao mesmo tempo assombro,
desgosto e compaixão pelo estado deplorável do seu espírito. O resto dos assistentes partilhou destes sentimentos, e circulou entre eles um murmúrio que indicava a que ponto o endurecimento do seu desespero os penetrava de receio e mesmo de horror. Nesse instante, a assembleia fúnebre completou-se 340 com a chegada de duas ou três pessoas que se esperavam de Fairport. O vinho e os licores circularam de novo e trocaram-se mais uma vez mudos cumprimentos. A velha avó pegou num copo pela segunda vez, e exclamou com uma espécie de riso: - Ah! Ah! Já hoje provei vinho duas vezes... Há quanto tempo isto não me acontece, meus senhores?... Nunca desde... Aqui dissipou-se a efêmera vivacidade que reanimara o seu rosto e, pousando o copo, recaiu no lugar de onde se levantara para o agarrar.
Quando o assombro geral se desvaneceu, Mr. Oldbuck, cujo coração sangrava com este espectáculo, que considerava como que as divagações de um espírito debilitado a lutar contra o gélido entorpecimento da velhice e da dor, lembrou ao eclesiástico que era tempo de começar a cerimónia. O pai estava incapacitado de dar uma ordem; mas o mais próximo parente da família fez um sinal ao carpinteiro, que em casos semelhantes cumpre o dever de coveiro, para meter mãos à obra. O estalido dos parafusos anunciou que a tampa desta derradeira moradia do homem ia fechar-se para sempre sobre quem a ocupava. Este acto que nos separa para todo o sempre dos despojos da pessoa que choramos, produz geralmente os seus efeitos, mesmo sobre os corações mais indiferentes, mais egoístas e mais duros. Por espírito de contradição, que nos perdoarão considerar um acanhado preconceito, os padres da igreja escocesa rejeitavam, mesmo num momento tão solene, toda a espécie de oração à Divindade, com medo de que os acusassem de aprovar os rituais de Roma e do anglicanismo. Por efeito de um critério mais liberal e mais sensato, a maior parte dos eclesiásticos escoceses adoptaram agora o costume de aproveitarem esse momento para pronunciarem uma prece e uma exortação próprias para fazer impressão nos vivos, enquanto têm perante os olhos os restos daquele que tão pouco tempo antes era semelhante a nós, e que é então o que eles devem tornarse um dia. Mas este costume judicioso e louvável ainda não se adoptara no tempo de que falamos, ou pelo menos Mr. Blattergowl não se conformara com ele, e a cerimónia começou sem nenhum exercício de devoção. 341 O caixão, coberto por um pano mortuário e seguro sobre varas pelos mais próximos parentes, apenas aguardava que o pai, segundo o costume, iniciasse o cortejo; mas ele não respondeu senão com um aceno da mão e fazendo sinal de recusa. Numa melhor intenção do que critério, os amigos, que encaravam aquilo como um acto de dever para o vivo e de decência para com o morto, dispunham-se a insistir, quando Oldbuck se interpôs entre o pai desolado e os seus perseguidores bem intencionados, e lhes declarou que seria ele quem, na qualidade de proprietário e amo do defunto, iria à frente do préstito até ao túmulo. Apesar de tudo o que a circunstância tinha de triste, o coração dos parentes encheu-se de alegria por uma distinção tão marcada por parte do laird, e a velha Alison Breck, que estava presente entre outras mulheres de pescadores, jurou quase em voz alta que nunca faltariam ostras em casa de Sua Honra Monkbarns (sabia-se no país quanto ele gostava delas) nem que tivesse de ir ela própria pescá-las no mar com o vento mais forte. Tal é o carácter do povo humilde da Escócia, que Mr. Oldbuck, só por aquela atitude de complacência com os
seus costumes e respeito pelas suas pessoas, obteve mais popularidade do que por todas as quantias que tinha por hábito distribuir todos os anos à paróquia para se aplicarem em caridade pública e particular. A triste procissão começou a marchar a passo lento, precedida dos bedeis, chorosos, com seus bastões, homens muito idosos, de aspecto miserável, que vacilavam como se eles próprios estivessem à beira daquela cova para a qual escoltavam outro, e envergando, segundo o uso escocês, fatos pretos cocados e levando uma espécie de boné de caça ornado de um velho crepe já arroxeado. Se tivesse sido consultado, Monkbarns teria desaprovado aquela despesa supérflua, mas com isso teria provavelmente melindrado ainda mais aquela pobre gente do que a lisonjeara a sua condescendência em conduzir o préstito; e, nesta convicção, absteve-se prudentemente de lhes fazer as suas críticas numa ocasião em que a censura não produziria mais efeito do que os seus conselhos. É um facto que os camponeses da Escócia ainda são tão atreitos àquela fúria de cerimonias que outrora foi 342 tão notável entre os grandes do reino, que o parlamento escocês aprovou uma lei sumptuária com o fim de a reprimir. Conheci várias pessoas da classe mais humilde que se abstinham não só dos doces, mas quase das primeiras necessidades da vida, a fim de juntar uma importância em dinheiro que permitisse aos parentes que lhes sobrevivessem enterrá-los como cris tãos, segundo a sua expressão; e nunca os fieis executores de suas vontades, embora igualmente na miséria, puderam deixar-se persuadir a empregar nas necessidades dos vivos um dinheiro loucamente gasto no enterro dos mortos. Até o cemitério, que ficava a cerca de meia milha de distância, a procissão seguiu com a triste solenidade vulgar nestas ocasiões. O corpo foi entregue à terra que o alimentou e quando os coveiros encheram o túmulo e o cobriram de verdura, Mr. Oldbuck, tirando o seu chapéu, cumprimentou os assistentes que se encontravam em volta num silêncio melancólico e, com este adeus, despediu o cortejo. O pastor ofereceu-se ao nosso Antiquário para o acompanhar a casa; mas Mr. Oldbuck ficara tão impressionado com a dor do pescador e sua mulher que, movido pela compaixão e talvez também por aquela curiosidade que nos leva a procurar os objectos cuja vista deve suscitar em nós sensações penosas, preferiu regressar sozinho ao longo da costa, para, de passagem, visitar a choupana mais uma vez. XXXII Que crime secreto é esse, que misteriosa história que nenhum artifício pode descobrir, nenhum arrependimento expiar?... Os músculos estão imóveis; nenhum rubor súbito lhe coloriu as faces; seus lábios não tremeram. WALPOLE - A Mãe Misteriosa Depois do caixão ser levado, os assistentes, segundo a categoria ou o parentesco que os ligava ao morto, foram abandonando gradualmente a choupana para o acompanhar. Os irmãos mais pequenos também foram conduzidos no rastro da urna do irmão, e observavam com espanto uma cerimónia que mal podiam compreender. As vizinhas levantaram-se em seguida para partir, e, por consideração pela situação dos pais, levaram as filhas com elas, a fim de proporcionarem ao infeliz casal a facilidade de expandirem os seus corações mutuamente e de suavizarem a sua dor comunicando-a um ao outro; mas a benévola intenção não teve efeito.
Mal a última delas obscurecera, com sua sombra, ao retirar-se, o limiar da porta, que puxara brandamente atrás de si, o pai, certificando-se primeiro por um rápido olhar que não havia mais estranhos, levantou-se em sobressalto, juntou as mãos, torcendo-as com violência acima da cabeça, soltou aquele grito de desespero que retinha havia tanto tempo e, com toda a impotente impaciência da dor, meio lançando-se, meio arrastando-se para o leito onde estivera o caixão, Precipitou-se sobre ele e, mergulhando a cabeça nos cobertores, deu livre curso a todo o excesso do seu desespero A infeliz mãe, aterrada pela violência da "lição do marido (aflição tanto mais assustadora por Se tratar de um homem cujas maneiras eram rudes e a constituição robusta), abafando os soluços e as lágrimas e puxando-lhe pelas roupas, suplicou-lhe em vão que se levantasse e não se esquecesse de que embora um dos filhos se perdesse, ficavam-lhe ainda 344 outros, e que também tinha uma mulher a confortar e a sustentar. Este apelo foi demasiado cedo, e num momento em que sua dor não era capaz de escutar coisa alguma, e nem sequer foi ouvido; continuou deitado, revelando por soluços tão amargos e tão violentos que abalavam; o leito e o tabique, pelos seus punhos cerrados que apertavam fortemente os cobertores e pelo movimento brusco e convulsivo das suas pernas, quão profundas e terríveis são as angústias da dor paternal. - Oh, que dia este, que dia este! -exclamava a pobre mãe, cuja aflição feminina já quase se esgotara em lágrimas e soluços, e que quase se apagava perante o terror que lhe causava o estado em que via seu marido Oh, que momento este! E ninguém que venha em socorro de uma pobre mulher abandonada! Boa mãe! Se pudesse dizer-lhe uma palavra? Somente a senhora lhe poderia dizer que tivesse coragem! Para seu grande espanto, e até acréscimo do seu terror, a mãe de seu marido ouviu aquele apelo, e correspondeu-lhe. Levantou-se, atravessou o quarto sem apoio e sem muita aparência de fraqueza e, ficando de pé junto do leito sobre o qual seu filho se estendera, disse-lhe: - Levanta-te, meu filho, e não chores aquele que está ao abrigo do pecado, da tentação e da dor. É preciso chorar os que ficam neste vale de misérias e trevas. Eu, que não chorei, que já não posso chorar por ninguém, preciso mais do que ele de que chorem todos por mim. A voz de sua mãe, que há tantos anos não ouvira tomar parte nos deveres activos da vida, e da qual ele não recebera nem conselhos nem consolações, produziu o seu efeito no filho. Levantou-se, sentou-se na beira do leito, e o seu ar, a sua atitude, os seus gestos deixaram de oferecer a imagem de um furioso desespero, já não exprimiram senão o abatimento da mais profunda dor. A avó foi retomar o lugar habitual, e a mãe pegou maquinalmente numa Bíblia desmantelada na qual pareceu ler, embora os olhos estivessem cheios de lágrimas. Estavam todos três nesta posição, quando uma pancada violenta se fez ouvir na porta. - Meu Deus! - exclamou a pobre mãe - Quem pode 345 vir assim, neste momento? com certeza que não sabem da nossa infelicidade. A pancada repetiu-se. Ela levantou-se e foi abrir a porta, dizendo em tom irritado: - Quem vem assim perturbar uma casa de luto? Achava-se diante dela um homem de alta estatura e vestido de preto; ela reconheceu logo o lorde Glenallan. - Não há aqui - indagou ele - nesta cabana, ou numa das cabanas vizinhas,
uma mulher idosa, chamada Elspeth e que há muito tempo morou em Craigburnfoot de Glenallan? - É minha sogra, milorde - respondeu Maggie mas ela não pode ver ninguém neste momento. Ai, acabamos de ser atingidos por um grande golpe: sofremos uma cruel provação! - Deus me livre - disse lorde Glenallan - de vir perturbar inconsideradamente a vossa dor; a sua sogra está no último período da velhice, e, se não a vir hoje, podemos nunca mais nos encontrar neste mundo. - E que pode o senhor ver - respondeu a mãe, aflita- numa pobre mulher quebrada pela idade e pelo desgosto? Gentleman ou outro qualquer, ninguém passará o limiar da minha porta no dia em que por ela saiu o corpo de meu filho. Assim falando e abandonando-se à irritabilidade do seu carácter e do seu estado, que começava a misturar-se com a sua dor, cuja primeira explosão já passara, ela mantinha a porta entreaberta e colocara-se na abertura, como que para tornar a entrada impossível ao visitante. Mas a voz do marido fez-se ouvir lá dentro: - Quem é, Maggie? Porque os mandas embora? Deixa entrar. Que importa agora quem entre ou quem saia? Preocupo-me tanto com isso como uma corda velha. A mulher, obedecendo à ordem do marido, desviou-se para o lado e deixou entrar lorde Glenallan na choupana. O abatimento que o seu vulto curvado e o seu rosto magro denunciavam, ofereciam um flagrante contraste com os efeitos produzidos pela dor no rosto robusto e crestado do pescador, e as faces másculas de sua esposa. Aproximou-se da anciã sentada no 346 seu lugar habitual e perguntou, tão alto quanto a fraqueza da sua voz lho permitiu: - É a Elspeth de Craigburnfoot de Glenallan? - Quem pergunta pela morada infecta desta má mulher? - foi a resposta àquela pergunta. - O desditoso conde de Glenallan. - O conde, o conde de Glenallan! - O que se chamou William, conde lorde Geraldin, e que a morte de sua mãe fez conde de Glenallan. - Abre a janela -disse a anciã, num tom firme e precipitado, a sua noraabre depressa a janela, para que eu possa ver se é bem o verdadeiro lorde Glenallan, filho da minha patroa, o que eu recebi nos meus braços na hora do nascimento, o que tem razão para me amaldiçoar por não o ter estrangulado antes de que essa hora decorresse. A janela, cerrada para que um sombrio crepúsculo viesse aumentar a solenidade da cerimónia fúnebre, foi aberta por sua ordem, e lançou uma claridade viva e súbita na atmosfera vaporosa e enfumarada da choupana. Incidindo em cheio sobre a chaminé, os raios iluminaram, à maneira de Rembrandt, as feições do desditoso conde e as da velha sibila, que, então de pé, e estendendo a mão, fixava ansiosamente, com seus olhos de um azul-claro, todos os seus traços, enquanto passeava lentamente o dedo descarnado, erguido a pouca distância do rosto do conde, e parecia seguir todos os seus contornos e procurar reconciliar o que via com as suas recordações. Ao terminar o exame, disse, com um profundo suspiro: - A mudança foi terrível... terrível!... E de quem é a culpa?... Mas isso está escrito num livro que fará fé; está gravado nas tábuas de bronze com aquela pena de aço que nelas inscreve tudo o que pertence à carne... E
que quer lorde Geraldin - disse ela, após uma pausa - a uma pobre velha criatura como eu, já morta em parte, e que já não pertence ao resto dos vivos senão por ainda não estar deitada debaixo da terra? - Sou eu - respondeu lorde Glenallan - que venho perguntar em nome do céu porque desejou com tanto empenho ver-me, e porque apoiou esse pedido com um penhor ao qual bem sabe que eu nada ousaria recusar. 347 Assim falando, tirou da sua bolsa o anel que Edie Ochiltree lhe entregara no castelo de Glenallan. A vista da jóia produziu um efeito estranho e instantâneo na anciã; a tremura do receio veio juntar-se nela à da velhice, e começou a procurar nos bolsos com a agitação precipitada e trêmula de quem tem medo de ter perdido um objecto de grande importância; depois, como se se convencesse da realidade dos seus receios, voltou-se para o conde e perguntou-lhe: - Como caiu nas suas mãos? Como sucedeu isso? Creio tê-lo posto em segurança... Que dirá a condessa? - Sabe - disse o conde - pelo menos, deve ter sabido que minha mãe morreu? - Morreu! Não se engana? Abandonou finalmente as suas terras, os seus senhorios, os seus títulos? - Tudo, tudo - respondeu o conde - como os mortais devem deixar todas as vaidades humanas. - Lembro-me agora de já ter ouvido dizer; mas, depois disso, houve tanta dor nesta casa, e a minha memória está tão enfraquecida... Mas tem a certeza de que a condessa sua mãe já não existe? O conde assegurou-lhe de novo que a sua antiga ama já não existia. - Então - disse Elspeth - posso aliviar o meu espírito desse fardo! Quando ela era viva, quem se atreveria a dizer uma palavra do que ela queria manter em segredo? Mas ela já não vive, posso confessar tudo. Depois, voltando-se para o lado de seu filho e de sua nora, ordenou-lhes imperiosamente que saíssem e deixassem o lorde Geraldin, como lhe chamava ainda, sozinho com ela; mas Maggie Mucklebackit, passada a primeira efusão da dor, não estava nada disposta à obediência passiva na sua casa perante sua sogra, autoridade que as pessoas da sua classe suportavam em geral muito impacientemente e que ela viu renascer com mais assombro por parecer abandonada e esquecida, havia muito tempo. - Teria graça -disse ela, murmurando em tom rezingão (porque a categoria de lorde Glenallan tinha alguma coisa de imponente) - teria graça ordenar a uma mãe que deixasse a sua casa, no momento em que o corpo de seu filho mais velho acaba de ser 348 levado, e quando os seus olhos ainda estão cheios de lágrimas. O pescador, num tom duro e sombrio, ajuntou alguma coisa no mesmo sentido. - Não é dia para contar as suas velhas histórias, minha mãe. Milorde, visto que é um lorde, pode voltar outro dia, ou pode dizer o que tem a dizer diante de nós, se quiser; ninguém se preocupará em escutá-lo, nem tão-pouco à minha mãe. Aliás, lorde ou camponês, gentleman ou rendeiro, eu não abandonarei a minha casa para prazer pessoal no dia em que o meu pobre... Nesta altura a voz faltou-lhe e não pôde acabar; mas como ele se levantara quando lorde Glenallan entrara e ficara de pé, atirou-se então bruscamente para uma cadeira, com o ar sombrio e resoluto de quem está decidido a manter a palavra.
Mas a velha, a quem esta crise parecia ter devolvido em toda a sua superioridade as faculdades intelectuais que outrora possuira em alto grau, levantou-se e, avançando para ele, disse-lhe em voz solene: - Meu filho, se quiseres evitar ouvir a vergonha de tua mãe, e não queres ser testemunha voluntária da confissão de seu crime, se desejas escapar à sua maldição e ser abençoado, intimo-te por aquele corpo que levaste e que alimentaste, a deixar-me a liberdade de falar com lorde Geraldin. Obedece-me, para que, quando cobrirem a minha cabeça de terra... oh! que esse dia chegue em breve! porque não veio já esse dia?... te recordes deste momento sem teres de te censurar de haveres desobedecido à derradeira ordem que tua mãe te deu neste mundo. Os termos desta ordem solene despertaram no coração do pescador aquele hábito de obediência cega na qual sua mãe o educara e à qual ele se submetera enquanto ela conservara a faculdade de a exigir. Uma lembrança que surgiu então no seu espírito veio ainda fortificar o novo sentimento que o dominava. Lançou um olhar ao leito onde o corpo repousara e murmurou: - Ele nunca me desobedeceu com ou sem razão, porque hei-de eu contrariála? Torniando então o braço de sua mulher, apesar da sua repugnância, levou-a para fora da cabana e fechou a aldrava atrás deles. 349 Quando os desditosos pais se retiraram, lorde Glenallan, para impedir a velha de recair na sua letargia, insistiu para que se explicasse sobre a comunicação que lhe queria fazer. - Em breve a ouvirá -disse ela -o meu espírito esclareceu-se bastante; agora não julgo que possa haver receio de que me esqueça do que tenho a dizer. A minha moradia em Craigburnfoot está presente a meus olhos, como se a visse em realidade. Vejo o prado cuja orla se estendia até o rochedo que o mar tocava, os dois pequenos barcos com suas velas enroladas, ancorados na baía natural que ele formava, o rochedo escarpado que o separava do parque de Glenallan e que se debruçava sobre o regato... Ah, sim, posso esquecer que tive um marido e que o perdi... que não me resta senão um dos quatro belos rapazes que tivemos... que as desgraças acumuladas engoliram os nossos bens mal adquiridos... que o corpo do filho mais velho de meu filho foi levado esta manhã desta casa; mas nunca, oh! nunca, poderei esquecer os dias que passei em Craigburnfoot! - A senhora era a predilecta de minha mãe? disse lorde Glenallan, desejando reconduzi-la ao ponto de onde ela se afastara. - Sim, era... não tem necessidade de mo recordar Ela educou-me acima da minha condição e deu-me mais instrução do que a que possuem os meus iguais. Mas, como o tentador do mundo, com o conhecimento do bem, ela deu-me também o do mal. - Por amor de Deus, Elspeth! - pronunciou o conde, admirado - Acabe, se puder, de explicar as palavras misteriosas e terríveis que se lhe escaparam. Sei muito bem que é confidente de um segredo tão horrível que só a sua narrativa faria desabar o tecto que nos cobre... mas, por favor, fale... - Sim - disse ela - falarei... mas tenha paciência comigo um momento ainda. E pareceu perder-se de novo nas suas recordações, mas esta absorpção já não era mesclada de idiotismo ou de apatia. Ia explicar-se sobre um assunto que havia muito tempo acabrunhava o seu espírito, e que sem dúvida absorvia toda a sua alma quando parecia morta para todos os que a cercavam. E ajuntarei, como um facto notável, que a energia do seu espírito
350 actuou com tal poder sobre as suas faculdades físicas e sobre o seu sistema nervoso, que, apesar da surdez habitual, cada uma das palavras de lorde Glenallan, embora pronunciadas com o tom concentrado do horror e do desespero, chegava tão distintamente ao ouvido de Elspeth como noutra época da sua vida. Ela própria falou claramente e com lentidão, como se desejasse que a narrativa fosse perfeitamente compreendida. Ao mesmo tempo, imprimiu-lhe concisão e nenhum termo daquela loquacidade e daqueles circunlóquios peculiares às mulheres da sua condição. Em suma, a linguagem denunciava uma educação mais elevada, assim como um espírito de uma firmeza e de uma energia pouco vulgares, e um daqueles caracteres dos quais se deve naturalmente esperar grandes virtudes ou grandes crimes. Veremos no capítulo seguinte qual foi a natureza das suas comunicações. XXXIII O remorso nunca nos deixa. Semelhante ao cão de caça de sangue exaltado, persegue os nossos passos rápidos através do dédalo pavoroso por onde nos transviam as paixões da mocidade, sem se fazer ouvir, talvez, até a velhice as vencer. Então, quando o tempo gelou nossos membros e nos furtou toda e esperança de combater ou de fugir, ouvimos a sua voz ameaçadora anunciar-nos a vingança, o desespero e o castigo que nos esperam. Comédia Antiga - Não tenho necessidade de lhe dizer que eu era a predilecta e a confidente de Joscelind, condessa de Glenallan (que Deus tenha) - começou a anciã, dirigindo-se ao conde de Glenallan. Fez o sinal da cruz e prosseguiu - E o senhor tão-pouco deve ter esquecido que durante muitos anos fiz parte da sua estima; pagava-lhe com a afeição mais sincera, mas caí em desgraça por um ligeiro acto de desobediência que foi contado a sua mãe por uma pessoa que me olhava, 351 e não se enganava, como espia dos seus actos e do senhor. - Mulher - disse o conde em voz trêmula de comoção-ordeno-te que não a nomeies na minha presença. - É preciso - prosseguiu a penitente, em voz calma e firme - Como poderia eu fazer-me compreender? O conde encostou-se a uma das cadeiras de madeira da choupana, puxou o chapéu para os olhos, juntou as mãos, cerrou os dentes, como alguém que concentra toda a coragem para sofrer uma operação dolorosa, e fez-lhe sinal para continuar.
- Dizia eu, pois - prosseguiu ela - que fiquei devendo em parte a minha desgraça junto de minha ama a Miss Eveline Neville, educada então no castelo como filha de um primo co-irmão, de um íntimo amigo de seu falecido pai. Havia muito mistério na sua história; mas quem se atreveria a perguntar mais do que a condessa queria que se soubesse? Toda a gente em Glenallan gostava de Miss Neville; toda, excepto duas pessoas, sua mãe e eu... porque ambas a odiávamos. - Santo Deus! E por que razão, visto que uma criatura tão meiga, tão boa, tão feita para inspirar afeição jamais pertenceu a este mundo miserável? - Podia ser - respondeu Elspeth - mas sua mãe odiava tudo o que pertencia à família de seu pai, excepto ele. Os motivos para isso provinham de uma desinteligência que sobreviera pouco tempo depois do casamento e cujos pormenores são inúteis para aqui. Mas quanto mais ainda ela odiou Miss
Neville quando se apercebeu da afeição nascente que se formava entre o senhor e essa infeliz jovem lady! O senhor pode recordar-se de que a aversão da condessa, de início, não se exprimia senão pela frieza... pelo menos, não se via mais do que isso; mas explodiu mais tarde com tal violência que Miss Neville acabou por ser obrigada a refugiar-se no castelo de Knockwinnock, junto da esposa de sir Arthur (Deus a abençoe! que ainda era viva. - A senhora despedaça-me o coração, recordando-me esses pormenores; mas continue, e possam as minhas actuais torturas ser admitidas em expiação do meu crime involuntário! - Havia meses que ela estava ausente - continuou Elspeth - quando, uma noite, em que esperava na 352 minha choupana o regresso de meu marido, que fora à pesca, vertendo secretamente aquelas lágrimas amargas que arrancava ao meu orgulho a recordação da minha desgraça, a porta se abriu de repente e a condessa sua mãe entrou na minha casa. Julguei ver um espectro, porque, mesmo no cúmulo do meu favor, fora uma honra que ela nunca me fizera. E estava tão pálida, tão terrível como se tivesse saído do seio do túmulo. Sentou-se e sacudiu a água que escorria da sua capa e da sua cabeleira, porque a noite estava nevoenta e ela atravessara as plantações, todas molhadas do orvalho. Entro nestes pormenores para que o senhor julgue até que ponto tenho essa noite presente na minha memória, e não é sem razão. Fiquei surpreendida de a ver, mas não me atrevi a falar primeiro, como se visse um fantasma, eu, que vi, sem tremer, mais de um espectáculo de horror. Após um momento de silêncio, disse ela: "Elspeth Cheyne (porque me dava sempre o nome de solteira), não és filha daquele Reginald Cheyne que morreu para salvar o seu senhor, lorde Glenallan, no campo de batalha de Sheriff muir"? E eu respondi quase com tanto orgulho como ela: "Sou-o, tão realmente como a senhora é filha daquele conde de Glenallan, a quem meu pai salvou a vida nesse dia com a sua morte". Aqui Elspeth fez uma longa pausa. - Que sucedeu em seguida? Continue, por amor de Deus, boa mulher; devo servir-me desta palavra? Mas não importa; mesmo que fosse culpada, ordeno-lhe que fale.
- Preocupar-me-ia pouco uma ordem terrestre respondeu Elspeth - se esta voz que me fala durante o sono e nas minhas vigílias me não forçasse a contar esta triste história. Pois bem, milorde, a condessa disse-me: "Meu filho ama Eveline Neville; eles estão de acordo, fizeram as suas juras; se tiverem um filho, perco os meus direitos sobre Glenallan e, então, desço do lugar de condessa ao de uma mísera doatária a quem se dá uma pensão. Eu, que trouxe a meu marido terras, vassalos, um sangue ilustre, uma fama antiga, devo deixar de ser a ama e senhora quando meu filho tiver um herdeiro varão? Mas não quero saber disso. Se ele desposasse outra que não fosse desses odiosos Neville, suportá-lo-ia com paciência. Mas, 353 eles! Que sejam eles e os seus descendentes que desfrutem dos direitos e das honras de meus antepassados? Este pensamento entra no meu coração como um punhal de dois gumes. E essa rapariga, detesto-a! " Respondi-lhe então, porque as suas palavras inflamaram o meu coração, que o meu ódio era igual ao dela. - Miserável! - exclamou o conde, apesar da sua resolução de guardar silêncio - Mulher miserável! Que motivos de ódio te poderia ter dado um
ser tão inocente e tão doce? - Eu odiava o que minha ama odiava, como o faziam os fieis vassalos da casa Glenallan; porque, milorde, embora eu tivesse contraído matrimónio abaixo da minha educação, nunca nenhum dos seus antepassados apareceu no campo de batalha sem que uma das avós da velha, inútil e mísera criatura que lhe fala neste momento, levasse o escudo diante dele. Mas isso não era tudo - continuou a anciã, cujas paixões terrestres e rancorosas se reacenderiam, consoante se acalorava na sua narrativa - Não era tudo; eu odiava Miss Neville por um motivo pessoal. Tinha-a trazido de Inglaterra e, durante toda a viagem, ela fez troça do meu trajo escocês e arremedou a minha pronúncia, como o faziam as suas amigas e as suas camaradas do Sul no pensionato onde se educaram. Por estranho que isto possa parecer, ela falava de uma ofensa que uma pensionista alegre lhe fizera sem intenção, com um grau de ressentimento que nem um insulto mortal, após tão longo intervalo de tempo, teria justificado nem mesmo excitado num espírito sensato. Sim - ajuntou ela - desprezou-me e achincalhou-me. Mas os que troçam do tartan temem o dirk (1). Deteve-se para prosseguir: - Contudo, não nego que o meu ódio foi exagerado. Mas, voltando ao assunto, a condessa minha ama continuou a dizer-me: "Elspeth, aquele filho rebelde quer aliar-se ao pérfido sangue inglês. Se estivéssemos nos dias de outrora, poderia lançá-la na (1) Ditado escocês formado com as palavras Tartan (tecido de que se fazem as capas escocesas) e dirk (punhal). - N. do T. 354 prisão de Glenallan e reter o meu filho cativo no torreão de Strathbonnel. Mas esse tempo passou, e a autoridade que deviam exercer os nobres do país foi delegada em míseros chicaneiros e seus vis subordinados. Escuta, Elspeth Cheyne: como tu és realmente tão filha de teu pai como eu sou do meu, hei"-de encontrar meio de os impedir de se casarem. Ela passeia muitas vezes por este rochedo suspenso sobre a vossa moradia, a fim de contemplar o barco do amante (lembra-se, milorde, de quanto gostava de navegar? ; que ele a encontre quarenta pés mais abaixo do que imagina". Sim, o senhor pode tremer, franzir o sobrolho e juntar as mãos; tão verdade como eu devo um dia comparecer perante o único ser que sempre temi... ai, porque não o temi mais ainda? tais foram as palavras de sua mãe. Para que serviria mentir-lhe? Eu não anuí em manchar as minhas mãos de sangue. Então, ela disse-me: "Segundo a religião da nossa santa Igreja, eles são demasiado próximos parentes para se poderem unir; mas calculo que ambos se tornarão hereges, como já são rebeldes e réprobos". Então, por instigação do espírito maligno, que se compraz principalmente em actuar sobre espíritos como o meu, cuja subtileza e orgulho estavam para além da minha condição, então, dizia eu, quis a fatalidade que eu ajuntasse: "Mas poder-se-ia achar meio de os persuadir de que existe entre eles um grau de parentesco que faz com que toda a lei cristã proíba o seu casamento". Aqui, o conde de Glenallan repetiu estas últimas palavras com um grito tão agudo que o tecto da choupana estremeceu. - Ah, meu Deus! Eveline Neville não era, pois. a... a... - A filha de seu pai, quer o senhor dizer? - continuou Elspeth-Não. Quer seja para si um tormento ou uma consolação, fique sabendo a verdade: ela era tanto filha de seu pai como eu o sou. - Mulher, não me enganes, não me faças amaldiçoar a memória daquela mãe que recentemente depus no túmulo, demonstrando-me que ela participou da mais cruel, da mais infernal conjura.
- Pense bem, lorde Geraldin: antes de amaldiçoar a memória de uma mãe que já não é deste mundo, não 356 existe ainda alguém do sangue de Glenallan cujas faltas conduziram a essa catástrofe terrível? - Refere-se a meu irmão? - perguntou o conde Mas ele morreu também. - Não - replicou a velha - refiro-me a si próprio, lorde Geraldin; não faltou à submissão de um filho, desposando secretamente Eveline Neville durante a sua residência em Knockwinnock? A nossa conjura bem podia separá-los durante algum tempo; mas o remorso, pelo menos, não teria azedado a vossa dor: foi o vosso próprio procedimento que envenenou o dardo que nós lhe arremessámos, e que os trespassou com tanta mais força quanto se precipitaram ao seu encontro. Se o vosso casamento tivesse sido um acto público e reconhecido, não teríamos tido então nem poder nem vontade de inventar um tal estratagema para vos criar um obstáculo que, na vossa situação, teríamos encarado como intransponível. - Meu Deus! -exclamou o desditoso lorde - Parecer-me que o véu que vendava os meus olhos acaba de se rasgar. Sim, compreendo agora essas consolações confusas proferidas por minha infeliz mãe e que tendiam a contradizer a evidência dos horrores com os quais, por seus artifícios, conseguira persuadir-me de que eu era culpado. - Ela não podia falar mais claramente - respondeu Elspeth - sem confessar a sua própria falta, e ela gostaria mais de deixar-se despedaçar por cavalos furiosos do que revelar o que fizera; e se ainda fosse viva, eu faria outro tanto por amor dela. Eram corações intrépidos os da raça de Glenallan, homens e mulheres; e assim eram todos aqueles que, em tempos de outrora, repetiam o grito da sua contra-senha de clochnaben. Eram inabaláveis; nenhum homem teria abandonado o seu chefe, com ou sem razão, por amor do ouro ou por uma sedução qualquer. Os tempos estão bem mudados, segundo oiço dizer agora. O infeliz conde estava demasiado absorto em reflexões capazes de lhe perturbarem a razão, para notar as expressões desta fidelidade feroz em que, mesmo no último período da sua vida, a desditosa autora da sua própria miséria parecia encontrar constantemente uma fonte de sombrias consolações. - Deus poderoso! - exclamou ele - Estou, pois, 356 isento do crime mais horrível que pode manchar um homem, e cujo sentimento, por muito involuntário que esse crime fosse, destruiu o meu repouso, arruinou a minha saúde, e curvou-me para o túmulo antes de tempo'. Santo Deus! - ajuntou ele com fervor, erguendo os olhos ao céu aceita as minhas humildes acções de graças. Se vivi desventurado, pelo menos não inrcorri nesse ultraje contra a natureza. E tu continua, se tiveres ainda alguma coisa a dizer; continua, enquanto te restar força para falar, e a mim para te ouvir. - Sim - replicou a velha - o tempo que nos resta, a si para ouvir e a mim para falar, decorre com efeito rapidamente: a morte imprimiu o seu selo na sua fronte e eu sinto, dia a dia, que o seu sopro gela cada vez mais o meu coração. Portanto, não me interrompa mais com gemidos e exclamações, mas escute a minha narrativa até o fim. Se é como um verdadeiro lorde Glenallan, semelhante àqueles de quem se falava no meu tempo, ordene à sua gente que ajunte espinheiros, mato e azevinho, faça um molho mais alto do que o tecto da casa, e queime, queime a velha bruxa Elspeth, e
tudo o que lhe possa lembrar tal criatura que alguma vez rastejou na superfície da terra. - Continue - disse o conde - continue, não a interrompo mais. Falou numa voz meio sufocada e no entanto resoluta, decidido a que nenhuma irritabilidade da sua parte o privasse da ocasião de adquirir provas da estranha história que ouvia. Mas Elspeth estava exausta por uma narração contínua de tal extensão; os pormenores subsequentes da sua história foram interrompidos, e, embora muito inteligíveis na maior parte, já não tinham aquela clareza e aquela concisão que caracterizaram o início de uma maneira tão espantosa. Depois de ter tentado em vão, por várias vezes, retomar o seguimento, lorde Glenallan viu que era necessário ajudar-lhe a memória perguntando-lhe que provas podia ela dar da verdade de uma narrativa tão difrente da que ela fizera na origem. - As provas - replicou ela -do real nascimento de Eveline Neville estavam nas mãos da condessa com os motivos por que se conservaram por algum tempo secretas, hão-de encontrá-las, se ela não as destruiu 357 na gaveta da esquerda do armário de ébano que está no seu quarto de vestir. A sua intenção fora suprimi-las até que o senhor partisse em viagem; então, contava ela, antes do seu regresso, enviar Miss Neville para o seu país, ou dispor dela, casando-a. - Mas não me mostrou as cartas de meu pai que me pareceram, a não ser que os meus sentidos estivessem alterados nesse horrível momento, confessarem o laço que o unia a essa desventurada? - É verdade; e, com o meu testemunho, nem o senhor nem ela puderam duvidar do facto; mas nós suprimimos a verdadeira explicação dessas cartas, que era que seu pai julgava conveniente que a jovem passasse por sua filha durante algum tempo, por motins de família que então existiam. - Mas por que razão, quando soube da nossa união, persistiram nesse horrível artifício? - Não foi-replicou ela -senão depois da comunicação dessa suposta história que lady Glenallan suspeitou de que estavam realmente casados, e mesmo assim o senhor não o confessou ao ponto de a convencer de que a cerimónia realmente se celebrara. Mas o senhor recorda-se, ou não pode deixar de recordar-se, do que se passou nessa terrível entrevista! - Mulher, juraste sobre os Evangelhos a verdade dos factos que desmentes agora. - Assim o fiz, e seria perjura de um juramento ainda mais solene se porventura existisse. Não teria poupado nem o sangue do meu corpo nem a salvação da minha alma para servir a casa Glenallan. - Miserável! Chamas a esse perjúrio horrível, seguido de um resultado mais horrível ainda, um serviço à família dos teus benfeitores? - Eu servi aquela que era então o chefe da casa Glenallan, da maneira que ela me ordenou: é responsável perante Deus e $ sua consciência pelos motivos Que teve para proceder assim, e eu também o sou Pela maneira como lhe obedeci. Ela já foi prestar as suas contas e eu não tardarei em segui-la. Ter-lhe-ei dito tudo? - Não - respondeu lorde Glenallan - não me disse tudo: falta-lhe falar-me da morte daquele anjo que o seu perjúrio impeliu para o desespero, considerando-se manchada por um crime tão horrível. Diga a verdade: 358 aquele acidente terrível - mal pôde articular estas palavras - passou-se como se contou, ou foi nova obra de uma crueldade ainda mais atroz da parte dos outros - Compreendo-o - disse Elspeth - mas o relato foi verdadeiro. É demasiado verdade que o nosso falso testemunho foi a causa, mas aquele acto foi
fruto do seu desespero. No dia dessa comunicação terrível, quando o senhor se precipitou para fora de casa da condessa e, selando o seu cavalo, desapareceu como um relâmpago, a condessa ainda não descobrira o casamento secreto. Ignorava que essa união, que ela procurava quebrar forjando aquela história fatal, estivesse realmente consumada. O senhor fugiu do castelo como se o fogo do céu ali fosse cair, e Miss Neville, cuja razão estava quase alterada, foi posta sob boa guarda; mas a guardiã adormeceu e a prisioneira velava; a janela estava aberta, a ocasião propícia; de um lado o rochedo e do outro o mar... Oh, quando me abandonará essa recordação? - E morreu assim, como me contaram?
- Não, milorde. Eu fora à baía; era a hora da maré, e, se bem me recordo, vinha molhar a base dessa rocha. Era uma grande vantagem para o negócio de meu marido... Mas para onde me desvio eu? Vi no alto do rochedo um objecto branco que parecia uma gaivota através da neblina; depressa, o repuxo das águas me mostrou que era uma criatura humana que caira nas ondas. Eu era forte, ousada e habituada ao mar; lancei-me, agarrei-a pelo vestido, e carreguei com ela aos ombros. Seria capaz de carregar duas como ela. Levei-a para a minha cabana e estendi-a sobre o meu leito. Vieram vizinhos trazer-me socorro; mas as palavras que pronunciava no seu delírio, eram tais que foi preciso mandá-los embora e enviar uma mensagem a Glenallan. A condessa mandou-me Teresa, a sua criada de quarto espanhola; se alguma vez houve sobre a terra um demónio com feições de mulher, foi ela. Ambas devíamos velar junto da desventurada não deixar aproximar ninguém. Só Deus sabe que parte Teresa teve nisto; mas o céu se encarregará da conclusão. A pobre dama sentiu as dores da maternidade antes do prazo, deu ao mundo um filho varão, e morreu nos braços da sua mortal inimiga. 359 Pode chorar; era uma bela e desditosa criatura. Mas julga que, se não a chorei então, a possa chorar hoje? Não, não. Deixei Teresa junto do corpo e da criança recém-nascida; e fui receber ordens da condessa sobre o que devia fazer: embora fosse muito tarde, acordei-a, e ela deu ordem para chamar seu irmão. - Meu irmão! - Sim, milorde, o seu irmão, a quem, segundo dizem certas pessoas, ela sempre desejava fazer seu herdeiro; de qualquer modo, ele era o mais interessado na sucessão de Glenallan. - É então possível que meu irmão, impelido pela avidez de se apoderar da minha herança, se prestasse a um estratagema tão cruel e tão baixo? - Sua mãe acreditou-o - disse a velha, com um sorriso infernal - Não fui eu quem imaginou isto; mas não contarei o que se passou entre eles, porque não fui testemunha. Tiveram uma longa conferência no aposento dos lambris negros, e sem dúvida muito agitada; porque, quando seu irmão atravessou a câmara onde eu esperava, pareceu-me, como muitas vezes o pensei depois, que o fogo do inferno ardia nas suas faces e nos seus olhos. Ela entrou no aposento como uma mulher em demência, e as primeiras palavras que disse, foram: "Elspeth Cheyne, tu nunca arrancaste um botão de flor recentemente desabrochada? " "Algumas vezes", respondi eu, sem a compreender. "Então, disse ela, saberás destruir melhor o rebento herético e bastardo, cujo nascimento acaba de desonrar, esta noite, a ilustre casa de meu pai. Olha, disse-me ela, apresentando-me uma agulha de ouro, só o ouro deve derramar o sangue de um Glenallan. Essa criança já está contada entre os mortos, visto que só Teresa e tu conhecem a sua
existência; disponham dela de maneira que não tenham de responder senão a mim" Após estas palavras, afastou-se com fúria, e deixou-me da agulha na mão. Ei-la: com o anel de Miss Neville, e tudo o que me ficou de tantos bens tão mal adquindos; porque os bens não me faltaram depois disso; e Se guardei tão bem o segredo, não foi, porém, por causa do seu ouro e dos seus presentes. A sua mão seca e descarnada estendeu a lorde Glenallan uma agulha de ouro, que ele imaginou ver a gotejar sangue do seu filho. 360 - Miserável, tiveste coragem? - Não sei se a teria ou não... Voltei para a minha choupana sem sentir a terra que os meus pés pisavam; mas Teresa e a criança não estavam lá, tudo o que era vivo desaparecera, nada mais restava senão o corpo morto. - E nunca soubeste da sorte de meu filho? - Não posso senão adivinhá-lo. Já lhe disse quais eram as intenções de sua mãe. Teresa era um demónio. Não a tornaram mais a ver na Escócia, e soube que ela voltara para o seu país. Um véu espesso cobriu o passado, e o pequeno número de pessoas que souberam alguma coisa, não puderam conjecturar senão vagamente uma sedução e um suicídio. Mesmo o senhor - Eu sei... sei tudo o que se seguiu - disse o conde. - com efeito, o senhor sabe tudo o que eu tinha a dizer... E agora, herdeiro de Glenallan, pode perdoar-me? - Peça o seu perdão a Deus e não aos homens respondeu o conde, afastandose. - E como pedirei eu a um ser perfeito e sem mancha o que me é negado por um pecador como eu? Tive eu um só dia de paz, uma hora mesmo de calma, desde que essas longas tranças de cabelos encharcados de água salgada repousaram no meu travesseiro em Craigburnfoot?... Não ardeu a minha casa com o meu filho no berço? Não naufragaram os meus barcos, enquanto todos os outros resistiam aos ventos?... Os que me pertenciam e me eram queridos não participaram do castigo do meu crime?... Oh! - ajuntou ela, com um prolongado gemido e erguendo primeiro os olhos ao céu e baixando-os depois ao chão - Porque não se junta a terra também para aquela que há tanto tempo tarda em reunir-se-lhe! Lorde Glenallan chegara à porta da choupana; mas a generosidade do seu carácter não lhe permitiu abandonar aquela infeliz mulher àquele estado de reprovação e de desespero. - Possa Deus, mísera mulher - disse ele - perdoar-te tão sinceramente como eu o faço! Volve-te para o lado do único que pode fazer-te graça, e possam as 361 tuas preces ser ouvidas, como se fossem as minhas... Enviar-te-ei um eclesiástico. - Não, um padre, não! Um padre, não! - exclamou ela; e a porta da choupana, abrindo-se quando ela falava, impediu-a de continuar. XXXIV Os nervos hirtos e gelados daquela mão sem vida ainda têm uma certa relação com o coração palpitante de seu pai, tal como o membro que se decepou e sepultou na terra dizem que conserva uma misteriosa comunicação com o tronco mutilado a que pertenceu, e cujos músculos ainda se agitam na sua incompleta existência. Comédia Antiga
O Antiquário, conforme informámos o leitor no fim do trigésimo primeiro capítulo, desembaraçara-se da companhia do digno Mr. Blattergowl, apesar deste lhe ter prometido regalá-lo com o melhor discurso que ele teria ouvido alguma vez sobre o tribunal dos dízimos pelo advogado incumbido de defender os interesses da Igreja no processo memorável da paróquia de Gatherem. Mas o nosso velho gentleman, resistindo a essa tentação, preferiu tomar, sozinho, por uma senda afastada que o conduziu à choupana de Mucklebackit. Quando chegou diante desta, viu um homem ocupado a trabalhar, e que parecia consertar um barco muito estragado, varado na praia; aproximou-se dele e ficou surpreendido ao ver que era Mucklebackit. - Estou muito satisfeito - disse ele, com interesse - muito satisfeito, Saunders, porque se sinta capaz de fazer esse esforço. - E que quer o senhor que eu faça - respondeu bruscamente o pescador - a não ser que queira ver morrer de fome quatro filhos, porque tinha um que se afogou? Ficar em casa com o lenço nos olhos, quando se perde um parente, é bom para os gentlemen; mas as pessoas como nós precisam de se atirar 362 logo ao trabalho, mesmo que as pulsações do coração sejam tão violentas como marteladas. Sem se preocupar mais com Oldbuck, continuou o trabalho, e o Antiquário, que se comprazia em observar a natureza sob a influência mais própria para a agitar, manteve-se junto dele, atento e silencioso, como se seguisse os progressos da obra. Notou por mais de uma vez nas feições rudes deste homem um movimento provocado pela força do hábito, como se ele se preparasse para acompanhar o ruído da serra e do martelo com uma canção popular que costumava cantar ou assobiar; mas, antes de que o som se lhe escapasse, via-se, pelo movimento dos lábios e do peito, que a causa que o impedia de continuar acudia de súbito à sua mente. Por fim, depois de ter remendado uma abertura considerável, e prestes a tapar outra, as suas sensações pareceram não lhe permitir mais a faculdade de dar ao trabalho o grau de atenção que pedia. O bocado de madeira que devia pregar ficou primeiro muito comprido; depois serrou-o demasiado curto e, por fim, escolheu outro que não servia melhor. Por último, atirando-o fora com irritação e limpando com mão trêmula os olhos turvos de lágrimas, disse: - Há uma maldição contra mim ou contra este velho barco, que arranjei e manobrei, em terra e no mar, e que consertei e preguei durante tantos anos para acabar por afogar o meu pobre Steenie! Que vá para o diabo! Arremessou o martelo contra o barco, como se fosse a causa voluntária da sua desventura. Depois, caindo em si, ajuntou: - Porque hei-de detestar este barco que não tem alma nem razão? Ai, eu próprio não as tenho! Não passa de um conjunto de velhas pranchas apodrecidas, pregadas umas nas outras, e moídas pelo vento e pelo mar; e eu sou um pobre diabo batido pela tempestade no mar e em terra, ao ponto de me ter tornado quase tão insensível como ele. No entanto, precisa de ficar reparado para a maré de amanhã; é uma coisa de necessidade. Assim falando, foi apanhar as suas ferramentas, e tentava recomeçar o trabalho, quando Oldbuck, pegando-lhe dum braço, com bondade, lhe disse: 363 - Vamos, vamos, Saunders, não deve trabalhar hoje; eu mando o carpinteiro
Shavings consertar-lhe o barco e ele mete na minha conta esse dia de trabalho; o melhor também é não sair amanhã e ficar a consolar a sua família na aflição em que está. O meu jardineiro traz-lhe de Monkbarns legumes e farinha. - Agradeço-lhe, Monkbarns - respondeu o pobre pescador - Eu sou um homem franco e grosseiro, que não sabe dizer belas frases. Talvez tivesse podido aprender com minha mãe, há muito tempo, maneiras mais polidas, mas nunca vi o que ela ganhou com o saber mais do que eu. No entanto, agradeço-lhe, repito. Sempre o achei bom e obsequioso com os vizinhos, embora se diga que o senhor é muito observador; e nesta época em que se quer revoltar os pobres contra os ricos, tenho dito muita vez que nenhum homem se atrevesse a tocar num só cabelo de Monkbarns, enquanto Steenie e eu tivéssemos força para mover um dedo; e Steenie dizia o mesmo. Vamos, Monkbarns, quando o senhor o conduziu ao túmulo, e mil graças lhe sejam prestadas pela honra que nos deu, o senhor viu cobrir de terra o corpo de um rapaz honesto que o estimava muito, apesar de tão-pouco saber dizer grandes frases. Oldbuck, vencido na sua orgulhosa afectação de cinismo, não se importaria nada de ali se encontrar alguém para lhe citar as suas máximas favoritas de filósofo estóico. Grossas lágrimas caíam rapidamente dos seus olhos, enquanto exortava aquele pai, que de novo se enternecera ao recordar os sentimentos honestos e generosos de seu filho, a não se abandonar a um desgosto inútil, e o conduzia pelo braço à sua humilde habitação, onde uma nova cena esperava o nosso Antiquário. A primeira pessoa que avistou, ao entrar, foi lorde Glenallan. Os seus rostos expressaram mútua surpresa quando se cumprimentaram um ao outro, Oldbuck com fria reserva, o conde com algum embaraço. - É milorde Glenallan, creio eu - disse Oldbuck. - O próprio, embora muito mudado desde o tempo em que o conheceu, Mr. Oldbuck. - Não era minha intenção - disse o Antiquário incomodar Vossa Senhoria; vinha somente ver esta infeliz família. 364 - E encontrou alguém, senhor, que ainda tem mais direito à sua compaixão. - À minha compaixão? Lorde Glenallan não pode ter necessidade da minha compaixão; e se isso fosse possível, nem sequer penso que ma pedisse. - As nossas relações anteriores... - disse o conde. - São de uma data tão antiga, tiveram uma duração tão curta, e foram acompanhadas de circunstâncias de uma natureza tão dolorosa, que podemos, creio eu, dispensar-nos de as renovar. Assim falando, o Antiquário voltou as costas e saiu da cabana, mas lorde Glenallan seguiuo; e, sem se deixar repelir por um bomdia muito breve, pediu-Lhe que lhe concedesse uns momentos de conversação e o socorro dos seus conselhos num assunto muito importante. - Vossa Senhoria encontrará pessoas mais capazes do que eu de o aconselharem, milorde, e que tomarão como uma honra que as consulte. Quanto a mim, sou um homem retirado de negócios e do mundo, e não me preocupo com o que pode trazer-me à memória os acontecimentos passados da minha vida inútil. E perdoe-me ajuntar que é com particular sentimento de mágoa que recordo essa época em que procedi como um insensato, e Vossa Senhoria como Deteve-se de chofre. - Como um celerado, desejaria o senhor dizer? Porque assim lhe devo ter parecido.
- Milorde, milorde. não tenho prazer algum em ouvir a sua confissão disse o Antiquário. - Mas, senhor, se eu puder provar-lhe que sou tão vítima como culpado, que fui mais infeliz do que nenhum termo o pode definir e que, ainda neste momento, um túmulo é o único lugar de repouso que eu posso antever, o senhor já não recusará a confidencia que, considerando a sua presença neste instante crítico com um sinal do céu, insisto em suplicar-lhe que receba. - com certeza que, milorde, depois dessas palavras, não me recusarei mais a evitar essa extraordinária entrevista. - Devo, porém, recordar as circunstâncias em que nos encontrámos, há mais de vinte anos, no castelo de Knockwinnock. e não tenho necessidade de lembrar-lhe 365 uma jovem lady que estava então junto dessa família. - A desditosa Miss Neville, milorde? Não a esqueci. Ela inspirava-me sentimentos muito diferentes daqueles que sempre experimentei pelas do seu sexo. A sua brandura, a sua docilidade, o prazer que ela sentia pelos estudos que eu lhe indicava, ligaram-me a ela mais do que convinha à minha idade, que, no tanto, ainda não era então muito avançada, e à gravidade do meu carácter. Mas eu não tenho necessidade de recordar a Vossa Senhoria de que maneira se divertiu à custa do sábio desastrado que, habituado ao estudo e ao recolhimento, veio cobrir-se de ridículo pelo embaraço que sentia em exprimir sentimentos que eram tão novos para ele. Não duvido de que a jovem tomasse parte nestas troças: é assim que procedem todas as mulheres. Expliquei-me sobre o que se refere aos votos que formulei então, e à maneira como foram repelidos, a fim de convencer Vossa Senhoria de que todas essas circunstâncias estão bem presentes na minha memória, e para que possa empreender a sua narrativa sem que o detenha, no que se me refere qualquer vão escrúpulo de delicadeza. - Assim farei - anuiu lorde Glenallan - Mas, primeiro, permita-me que lhe diga que comete uma injustiça para com a memória dessa que foi a mais meiga, a mais amável, como a mais desditosa das mulheres, ao supor que ela pudesse meter a ridículo a respeitável afeição de um homem como o senhor. Posso esperar agora que me perdoe a jovialidade trocista que tão justamente o ofendeu então? O estado do meu espírito nunca mais me colocou na necessidade de pedir desculpa dos dichotes inconsiderados de uma louca alegria. - Milorde, perdoo-lhe de todo o coração - disse Oldbuck - e o senhor deve saber que eu ignorava então, assim como toda a gente, que estava em rivalidade com Vossa Senhoria. Eu supunha Miss Neville naquele estado de dependência em que devia parecer-Lhe preferível uma fortuna suficiente e a mão de um homem honesto. Desejaria que me fosse possível acreditar que todas as vistas que se dirigiram para ela tivessem sido tão respeitáveis como as minhas. - Mr. Oldbuck julga com severidade. 366 - E não foi sem motivo, milorde, quando o único magistrado deste país que não tinha ligações com a sua poderosa família ou que não teve a cobardia de a temer; quando, dizia eu, fiz um inquérito sobre a maneira como Miss Neville morreu. Eu magoo, milorde, mas devo ser franco... Confesso que tive todas as razões possíveis para acreditar que se procedera com ela de uma maneira indigna, que ela fora ludibriada por um casamento fingido, ou que se tomaram as providências mais fortes para abafar e destruir as
provas de uma união que tivesse sido real. De maneira alguma posso duvidar tão-pouco que essa crueldade de Vossa Senhoria, quer ela fosse efeito da sua própria vontade, quer influência da última condessa, impeliu a infeliz jovem lady ao acto de desespero com que terminou sua vida. - As conclusões que o senhor foi induzido a formar não são justas, Mr. Oldbuck, embora pareçam resultar naturalmente das circunstâncias que lhes deram lugar. Acredite, nunca o estimei tanto como no momento em que mais receava as suas investigações sobre as infelicidades da nossa família. O senhor mostrou-se mais digno de Miss Neville do que eu, pela coragem com que persistiu em justificar a sua honra, mesmo depois da sua morte. Os seus esforços, por bem intencionados que eram, não podiam senão pôr a claro uma história demasiado horrível para ser conhecida, e só essa convicção me levou a secundar a minha infeliz mãe no seu projecto de fazer sumir todas as provas do casamento legítimo que se celebrara entre Eveline e eu. Mas, sentemo-nos neste banco, porque não me sinto em estado de permanecer de pé muito tempo, e tenha a bondade de escutar a descoberta extraordinária que fiz hoje. Sentaram-se, pois, e lorde Glenallan contou resumidamente a sua fatal história, o seu casamento secreto, a horrível impostura com que sua mãe quisera tornar impossível uma união já consumada. Entrou no pormenor dos artifícios da condessa, que, tendo em suas mãos todos os documentos relativos ao nascimento de Miss Neville, não mostrara senão aqueles que se referiam a uma época em que, por razões de família, seu pai consentira em fazer passar a jovem por sua filha natural, e demonstrou a impossibilidade em que 367 se encontrava de descobrir a fraude que sua mãe imaginara e que fizera apoiar em juramentos solenes de suas duas criadas, a Elspeth e a Teresa. - Abandonei o tecto paterno - disse ele, ao terminar-como um homem perseguido pelas fúrias do inferno. Viajei com uma rapidez frenética, sem um objectivo definido. Não me ficou a menor recordação do que fiz nem do lugar onde fui, até o momento em que fui descoberto por meu irmão. Não quero maçá-lo com a narrativa da minha doença e do meu restabelecimento; tão-pouco me deterei no momento em que, aventurando-me, muito tempo depois, a perguntar o que fora feito da desventurada que partilhara da infelicidade, soube que o seu desespero a levara a encontrar um remédio terrível para todos os males da vida. A primeira circunstância que me forçou a reflectir foi o boato que me chegou do inquérito que o senhor fazia sobre esse cruel assunto, e o senhor não se pode admirar de que, na convicção que me tinham dado, me tivesse juntado a minha mãe e a meu irmão nas providências que eles tomaram para deter as suas investigações. As informações que lhes dei sobre as circunstâncias e as testemunhas do nosso casamento secreto puseram-nos em situação de frustrar os esforços do seu zelo. O eclesiástico e as testemunhas, que não actuaram neste assunto senão para se tornarem agradáveis ao poderoso herdeiro de Glenallan, não podiam deixar de ser acessíveis às suas promessas e às suas ameaças, e manobraram-nos de tal maneira que eles não tiveram dificuldade em trocar este país por outro. Quanto a mim, Mr. Oldbuck continuou o desditoso lorde - desde esse momento, não cessei de me considerar como irradiado do número dos vivos e como não tendo mais nada a fazer neste mundo. "Minha mãe empregou todos os meios possíveis Para me reconciliar com a vida, mesmo por insinuações onde eu não posso ver agora senão a intenção de lançar dúvidas no meu espírito sobre a horrível história que ela forjara, meios que então me pareciam invenções engenhosas da ternura
maternal. Mas coíbo-me de toda a censura; ela já não existe; e, como disse a sua mísera cúmplice, ela não sabia que o dardo estava envenenado e até que ponto devia mergulhar no meu coração, quando de início mo arremessou. Ah! Acredite, 368 Mr. Oldbuck, se durante estes vinte anos algum ser digno da sua piedade se arrastou na face da terra sou eu esse desgraçado. Os meus alimentos não me alimentavam, o meu sono não me confortava, mesmo as minhas orações não me davam consolação! Tudo o que fortifica o homem e lhe é necessário se converteu para mim em veneno. As raras e curtas relações que era forçado a manter com os estranhos tornavam-se-me insuportáveis. Pareciame que ostentava a mancha de um crime contra a natureza e de um género inexprimível, no meio de seres inocentes e felizes. "Em outras ocasiões, abandonava-me a pensamentos muito diferentes: desejaria mergulhar nos perigos da guerra ou defrontar os perigos que oferecem as viagens nos climas bárbaros e remotos, embrenhar-me nas intrigas da política ou sepultar-me no austero recolhimento dos mosteiros da nossa religião. Todos estes projectos ocupavam alternadamente a minha imaginação, mas cada um exigia para o executar uma energia de que a minha alma já não era capaz, depois do golpe esmagador que a destroçara. Vegetei conforme pude no mesmo lugar, enquanto a imaginação, a sensibilidade, o raciocínio e a saúde declinavam gradualmente em mim, tal como degenera uma árvore cuja casca foi destruída; primeiro, caem os seus frutos, depois os ramos, até que por fim se torna semelhante a tronco mirrado e moribundo, que é o que o senhor tem neste momento diante de si. Concede-me agora piedade e perdão? " - Milorde - respondeu o Antiquário, muito comovido - não tem que pedir a minha piedade, o meu perdão, porque a sua triste história explica não só tudo o que nesse tempo me pareceu misterioso e suspeito, mas também constitui uma narrativa capaz de arrancar aos seus mais crueis inimigos e eu nunca pertenci a esse número - lágrimas de compaixão. Permita-me, porém, que lhe pergunte o que conta fazer e porque me honrou, a mim, cuja opinião tão pouca importância tem, com a sua confiança nesta ocasião. - Mr. Oldbuck - respondeu o conde - como eu nunca poderia prever a natureza da confissão que me foi feita hoje, não tenho necessidade de lhe dizer que não concebera o projecto de o consultar, ao senhor 369 ou a qualquer outro, sobre os acontecimentos de que eu nem sequer podia suspeitar; mas estou sem amigos, sem hábito de negócios e, devido ao meu longo recolhimento, igualmente ignorante das leis do país e dos usos da actual geração. Encontrando-me, pois, inopinadamente mergulhado nos assuntos que eu menos conhecia, escolhi, como um homem que se afoga, o primeiro apoio que encontrei. É o senhor esse apoio; Mr. Oldbuck; sempre ouvi citá-lo como homem cheio de sagacidade e de prudência, eu próprio o conheci como um espírito firme e independente, e há uma circunstância que de certo modo deve aproximar-nos: é o de ambos termos rendido a mesma homenagem às virtudes da desditosa Eveline. Foi o senhor que encontrei no momento necessário, o senhor que já conhecia as minhas desventuras; é ao senhor que eu peço consolação, conselho e socorro. - Não os pedirá em vão, milorde - respondeu Oldbuck-pelo menos, até onde os meus fracos meios possam chegar, e sinto-me honrado pela preferência, que foi determinada pela escolha ou pelo acaso. Mas é um assunto que requer madura reflexão. Posso perguntar-lhe qual é neste momento o seu principal objectivo?
- Saber da sorte de meu filho - disse o conde Quaisquer que sejam as consequências, e prestar justiça a honra de Eveline, de quem não deixei suspeitar senão para evitar que ela fosse atingida pela mais horrível mancha, na qual me fizeram crer. - E a memória de sua mãe? - Suportará o peso - disse o conde, com um suspiro-Não valeria mais que ela confessasse uma imPostura, se isso fosse preciso, do que deixar uma acusação bem mais criminosa pesar sobre a cabeça de seres inocentes? - Então, milorde, a nossa primeira diligência deve ser a de dar às declarações da velha Elspeth uma forma regular e autêntica. - Receio - observou lorde Glenallan - que isso, neste momento seja impossível. Ela própria está exausta e, aliás, cercada por toda a família. Amanhã, talvez, quando estiver sozinha... E ainda duvido, segundo as noções imperfeitas que ela tem do bem e do mal, poder convencê-la a falar diante de outra testemunha que 370 não seja eu. Eu próprio estou excessivamente fatigado. - Então - disse o Antiquário, cujo interesse nesse momento o elevava acima daquelas considerações de despesa e de estorvo que tinham, em regra, bastante peso sobre ele - aconselho Vossa Senhoria, em lugar de regressar a Glenallan, tão fatigado como está, ou de o ver reduzido à pior alternativa de se ir meter numa ruim estalagem em Fairport, para despertar a atenção de todos os curiosos da cidade; eu proponho-lhe, dizia, tornar-se meu hóspede por esta noite, em Monkbarns. Amanhã, esta pobre gente terá retomado as ocupações habituais, porque o desgosto neles não dá para afrouxarem o trabalho, e poderemos ver a velha Elspeth sozinha, e reduzir a escrito as suas declarações. Após algumas desculpas delicadas pelo estorvo que podia causar a sua visita, lorde Glenallan consentiu em acompanhar o Antiquário, e submeteuse pacientemente, durante o caminho, a ouvir toda a história de John Girnel, que Mr. Oldbuck nunca perdoou a quem quer que cruzasse o limiar da sua porta. A chegada de um estranho de tanta distinção com dois cavalos pela arreata e um criado, o qual trazia coldres de pistolas no arção da sua sela e uma coroa de conde por cima, provocou uma comoção geral em casa de Monkbarns. Jenny Rintherout, mal refeita dos ataques de nervos que sofrera ao saber da desgraça do pobre Steenie, caçava aqui e acolá os perus e as galinhas, gritando e guinchando mais forte do que eles, e acabou por matar metade a mais. Miss Griselda fez sérias reflexões sobre o erro de seu irmão que ocasionara tão grande razia, trazendo de repente um lorde papista. E arriscou-se a mandar transmitir a Mr. Blattergowl alguns informes sobre a extraordinária carnagem que se verificara na capoeira, o que trouxe o honesto eclesiástico para se informar de que forma decorrera o regresso de Monkbarns e como se encontrava depois dos funerais; e chegou no momento em que estava quase a soar a sineta para o jantar, de maneira que o Antiquário não pôde deixar de o convidar a ficar e abençoar a refeição. Miss Mac Intyre, por seu lado, não estava isenta de certa curiosidade de ver aquele poderoso conde, de quem toda a gente 371 ouvira falar, tal como os súbditos de um califa do Oriente ouvem falar do seu senhor, e experimentou alguma timidez à ideia de se encontrar com uma personagem de modos insociáveis e de hábitos austeros, do qual se contavam tantas histórias que o seu receio igualava pelo menos a curiosidade. A velha despenseira não estava menos aturdida e perturbada com as ordens numerosas e contraditórias de sua ama relativamente às conservas, doces e frutas e à maneira de pôr a mesa e servir o jantar, à
necessidade de evitar que o molho branco talhasse e ao perigo de deixar que Juno, apesar de banida do refeitório, assaltasse os postos avançados e pudesse entrar na cozinha. O único habitante de Monkbarns que se quedara inteiramente indiferente nessa grande ocasião fora Heitor Mac Intyre, que tanto se preocupava com um conde como com um burguês, e que não se interessava por esta visita inesperada, a não ser que ela pudesse subtraí-lo ao descontentamento que o tio poderia experimentar por não o ter acompanhado aos funerais, e sobretudo às suas reflexões satíricas sobre o combate singular, heróico mas infeliz, com a foca ou lobo-marinho. Oldbuck apresentou os diversos membros da família ao conde de Glenallan, que suportou com paciente delicadeza os pesados discursos do honesto clérigo e as longas desculpas de Miss Griselda Oldbuck, que seu irmão tentou em vão abreviar. Antes de jantar, o lorde pediu licença de se retirar um momento para o seu quarto. Oldbuck acompanhou o hóspede ao quarto verde que se preparara à pressa para o receber. Este percorreu-o com os olhos, num ar de tristeza, porque lhe despertava no espírito penosas recordações. - Creio - observou, por fim - Creio, Mr. Oldbuck, que já me encontrei neste aposento. - Sim, milorde - respondeu Oldbuck - por ocasião de uma excursão que se fez de Knockwinnock até aqui; e visto que tocámos num assunto tão triste, o senhor deve lembrar-se, talvez, qual foi a pessoa cujo gosto escolheu os versos de Chaucer que serve de divisa a esta tapeçaria. - Adivinho-o, sem me lembrar - replicou o conde Ela levava-me vantagem no gosto e conhecimento 372 que possuía de literatura, como em todas as vantagens que ela reunia, aliás; e é um dos decretos mais incompreensíveis da Providência que uma criatura tão perfeita pelas qualidades do espírito e do corpo fosse aniquilada de uma maneira tão miserável, em consequência da sua fatal afeição por um desgraçado como eu. Mr. Oldbuck não tentou responder a esta efusão da dor que não cessava de torturar o coração do seu hóspede, mas apertou a mão de lorde Glenallan numa das suas e, passando a outra pelas espessas sobrancelhas, como que para afastar uma nuvem que lhe obscurecesse a vista, deixou ao conde liberdade de dispor de si próprio até ao jantar. XXXV Em si, a vida aquece a imaginação e palpita em cada veia... é o licor crepitante servido a um alegre conviva e que lhe reanima o coração e lhe exalta o espírito. - mas a minha já não é mais do que um triste resíduo no copo, insípido e sem sabor, só manchando com a sua borra o vaso que o contém. Comédia Antiga - Ora veja, Mr. Blattergowl - disse Miss Griselda que espécie de homem é meu irmão, para prudente e sábio, trazer-nos este conde a casa, sem ter dito uma palavra a ninguém!... A desgraça sucedida aos Mucklebackit faz com que não possamos ter peixe... é demasiado tarde para mandar a Fairport buscar carne de vaca, e o carneiro foi abatido de fresco! Para cúmulo de infelicidade, essa maluquinha da Jenny Rintherout caiu em ataques de nervos, e não faz senão rir e chorar, há dois dias; de maneira que foi preciso pedirmos a esse criado estranho, que é tão grande e tão grave como o amo, para se manter ao bufete para servir. Eu tão-pouco
posso ir à cozinha dar alguma ordem, porque o encontro sempre para cá e para lá, tratando de preparar algum acepipe para milorde, que, ao que parece, não come como toda a gente; e 373 depois, de que maneira faremos jantar este criado estranho? Em verdade, Mr. Blattergowl, creio que a cabeça me anda à roda. - É certo, Miss Griselda - replicou o ministro que Monkbarns procedeu sem reflectir... Ele devia ter escolhido um dia para este convite, como se faz com a aceitação de um titular nas transacções de avaliação e de venda. Mas essa grande personagem não podia cair subitamente em nenhuma casa da paróquia que estivesse melhor abastecida... Tenho de convir que o cheiro que se escapa da cozinha seduz agradàvelmente o meu olfacto... Se tem alguns afazeres, Miss Griselda, não me trate como um estranho; posso passar muito bem o meu tempo com a grande edição do Institutos de Erskine. Apoderando-se então deste Escocês sobre Líttleton), livro segundo, e depressa rendimentos temporais dos
interessante in-fólio (comentários de Coke abriu-o como por instinto no décimo título do mergulhou numa discussão obscura sobre os benefícios.
Serviu-se, enfim, a refeição acerca da qual Miss Oldbuck exprimira tantas inquietações, e o conde de Glenallan, desde a época da sua desdita, sentou-se pela primeira vez a uma mesa estranha, cercado de estranhos. Experimentava a sensação de um homem que sonha ou cuja cabeça ainda não se recompôs de uma poção excitante. Aliviado, como o fora essa manhã, da imagem daquele crime que aterrorizava havia tanto tempo a sua imaginação, o peso dos seus desgostos Parecia-lhe mais leve e mais suportável, mas ainda não estava em estado de se imiscuir na conversa que se sustentava em sua volta. Ela era, em verdade, de um género muito diferente daquela a que estava habituado. A brusquidão de Oldbuck, as fatigantes Apologias da irmã, o pesado pedantismo do eclesiástico e a vivacidade do jovem militar, que denunciava mais as maneiras do acampamento que as da corte, tudo era novo para um nobre lorde que vivera tantos anos no recolhimento mais triste e mais profundo, e ao qual os usos do mundo pareciam tão estranhos como importunos. Só Miss Mac Intyre, pela delicadeza e simplicidade naturais, parecia pertencer àquela classe da sociedade à qual fora acostumada em dias mais felizes e já tão distantes. 374 Não surpreendeu menos os convivas a maneira de ser de lorde Glenallan. Apesar de se ter servido um jantar simples, mas excelente (pois, como dizia Mr. Blattergowl, era impossível encontrar Miss Griselda desprevenida) e apesar do Antiquário gabar o seu melhor "Porto" e o comparasse ao falerno de Horácio, lorde Glenallan mostrou-se inacessível às seduções de um e de outro. O seu criado colocou diante dele um pequeno prato composto de diversos legumes, o mesmo cuja confecção tanto alarmara Miss Griselda, e que fora preparado com o cuidado e o asseio mais escrupulosos. Comeu mediocremente desse acepipe, e um copo de água pura recentemente tirada da fonte completou esse frugal repasto. Tal era o regime de Sua Senhoria, havia muitos anos, excepto em dias de grande festa da Igreja, em que se recebia no castelo de Glenallan pessoas de primeira sociedade. Nessas ocasiões, ele afrouxava um pouco a austeridade habitual e permitia-se um ou dois copos de vinho. O nosso Antiquário era, como dissemos, um gentleman pelos sentimentos, mas brusco e pouco moderado nas expressões, devido ao hábito que tinha de viver com seres que não lhe inspiravam constrangimento algum. Censurou,
pois, sem cerimónia o nobre lorde pela severidade do seu regime. - Uns legumes meio frios e umas batatas com um copo de água gelada para os empurrar! A Antigüidade não nos oferece nenhum exemplo semelhante, milorde. Esta casa foi outrora um hospitium, um lugar de refúgio para os cristãos, mas o regime de Vossa Senhoria é o de um pitagórico do paganismo, ou de um brâmane indiano. - O senhor sabe que eu sou católico - disse lorde Glenallan, esperando escapar a esta discussão - e não ignora que a nossa igreja... - Tem por princípio recomendar várias regras severas de mortificação acrescentou, imperturbável, o Antiquário - Mas nunca ouvi dizer que ela as pusesse tão rigorosamente em prática, como testemunha o meu predecessor, John de Girnel, o jovial abade que deu o seu nome a esta maçã, milorde. E descascando o fruto apesar dos "então, Monk-barns!" de sua irmã e da prolongada tosse do ministro 375 acompanhada do estremecimento da sua enorme peruca, o Antiquário começou a contar a intriga que dera origem à reputação das maçãs do abade, com mais minúcia e jovialidade do que a necessária. Mas o gracejo, como facilmente se depreende, falhou o objectivo, porque esta anedota de galantaria monástica não pôde provocar o menor sorriso no rosto do conde. Oldbuck retomou em seguida o tema de Ossian Mac-i pherson e Mac Cribb; mas lorde Glenallan achava-se tão pouco ao corrente da literatura moderna que nunca ouvira falar de nenhum dos três. A conversação estava, pois, em perigo de esmorecer ou de cair nas mãos de Mr. Blattergowl, que acabava de pronunciar as palavras temíveis do livro de impostos, quando se citou a revolução francesa, acontecimento que lorde Glenallan encarava com toda a reserva e horror de um católico ferrenho e de um aristocrata zeloso. Oldbuck estava longe de reprovar tão excessivamente os princípios. - Houve muitos homens na primeira assembleia constituinte - disse ele que tinham princípios de oposição bastante razoáveis, e cuja intenção era estabelecer uma constituição que concedesse ao povo uma liberdade prudente. Se agora um grupo de insensatos furiosos se apoderou do governo, não é senão um acontecimento comum a todas as revoluções, em que as providências extremas se tomaram na violência do momento, e em que o Estado se assemelha a um pêndulo perturbado, que se agita por algum tempo em todos os sentidos até retomar o balanço habitual. Poder-se-ia comparar ainda a um turbilhão tempestuoso que causa grandes estragos nas regiões que atravessa, e que no entanto leva os vapores insalubres e estagnados que lá se encontravam e repara, pela salubridade e pela abundância que se lhe seguem, os estragos e os desastres que assinalaram a sua passagem. O conde meneou a cabeça; mas, não tendo desejo, nem força para manter a discussão, deixou passar o raciocínio sem o combater. Esta discussão deu ensejo ao jovem militar de Mostrar que já tinha experiência de guerra; falou das acções em que se encontrara, com modéstia, mas ao mesmo tempo com um entusiasmo de coragem e de 376 zelo que encantou o conde, educado, como todos os da sua casa, na opinião de que o ofício das armas era o primeiro dever do homem, e que pensava que voltá-las nesse momento contra os franceses era uma espécie de cruzada santa. - Que pão daria eu-disse o conde, à parte, a Oldbuck, quando se levantaram para se reunirem às damas - que não daria eu para ter um filho cheio de ardor e de coragem como este jovem! As suas maneiras não estão
ainda formadas; falta-lhe um pouco aquela prática do mundo que o contacto da boa sociedade depressa lhe daria. Mas, com que zelo e ardor ele se se exprime! Como ama a sua profissão! Que calor revela ao louvar os outros! E com que modéstia fala dele próprio!
- Heitor está muito grato à sua indulgência respondeu o tio, com uma satisfação que não ia, porém, até dissimular o sentimento que tinha da sua superioridade intelectual sobre o jovem militar - Creio, sob minha palavra de honra, que nunca alguém disse dele metade do bem que o senhor disse, excepto talvez o sargento da sua Companhia quando quer adular algum recruta escocês; é, no entanto, um valente rapaz, embora não seja inteiramente o herói que Vossa Senhoria vê nele, e a bondade do seu carácter parece-me mais digna de louvores do que a sua vivacidade. De facto, este ardor que o caracteriza é uma espécie de veemência que faz parte da sua constituição, que o acompanha em todas as acções e muitas vezes não deixa de estar a cargo dos seus amigos. Vi-o hoje medir-se corpo a corpo com uma foca ou lobo-marinho (a nossa gente, ao pronunciar este nome no seu dialecto, conserva a gutural gótica); pois bem, empenhou-se com tanto ardor nisso como se combatesse contra Dumourier. Palavra, milorde, a foca levou vantagem, como o próprio Du mourier pôde dizer que a tivera sobre certas pessoas. Ele falar-lhe-á quase com tanto entusiasmo das qualidades de uma cadela de caça como de um plano de campanha. - Visto que ele gosta tanto da caça - disse o conde - dar-lhe-ei plena liberdade de se entregar a esse exercício nas minhas terras. - Vai afeiçoá-lo a si, milorde, para a vida e para a morte; permitir-lhe descarregar a espingarda sobre 377 um pobre bando de perdizes ou de galos bravos é o suficiente para o conquistar em corpo e alma. Vou encantá-lo com essa notícia. Ah, milorde, se o senhor tivesse conhecido o meu amigo Lovel, o meu fénix; é o modelo e o herói dos jovens do século, e cheio de coragem, também. Asseguro-lhe que deu uma boa lição ao meu petulante sobrinho ad quid pro quo, e mostrou-lhe um Rolando por um Olivério, segundo o ditado vulgar que faz alusão aos dois célebres paladinos de Carlos Magno. Depois do café, lorde Glenallan pediu uma entrevista particular ao Antiquário, e foi introduzido na sua biblioteca. - Desculpe - disse ele - arrancá-lo à sua amável família para o fazer partilhar das perplexidades de um desventurado. O senhor conhece o mundo do qual estou exilado há tanto tempo, visto que o castelo de Glenallan era para mim menos uma moradia do que uma prisão, da qual, porém, não tinha decisão nem força para me escapar. - Permita que primeiro pergunte a Vossa Senhoria quais são os seus desejos e os seus projectos neste assunto. - O meu voto mais ardente - respondeu lorde Glenallan - é tornar pública a minha desditosa união e reparar o ultraje feito à honra da infeliz Eveline, se acaso o senhor julgar que haja possibilidade de o fazer sem divulgar o procedimento de minha mãe. - Siium cuique tribuito (1) - disse o Antiquário - Faça-se justiça a cada um. A memória dessa jovem e desditosa lady sofreu demasiado tempo, e creio que ela poderia ser justificada sem sobrecarregar a de sua mãe, dando-se a entender ao mundo que ela se opusera encarniçadamente ao matrimónio. Desculpe-me, milorde, mas todos os que ouviram falar da condessa de Glenallan aceitarão isso sem muita surpresa.
- Mas o senhor esquece uma circunstância terrível... disse o conde, em voz agitada. - Qual? - indagou o Antiquário. - A sorte da criança, a sua desaparição com a (1) Dá a cada um o que lhe pertence. - N. do T. 378 mulher de confiança de minha mãe, e as horríveis conjecturas que se devem formar segundo a conversa que tive com Elspeth. - Se quer que lhe dê francamente a minha opinião- disse Oldbuck - e se o senhor não a receber com demasiada avidez como motivo de esperança, dirlhe-ei que acho muito possível que o seu filho exista; porque cheguei a certificar-me pelas investigações que fiz sobre o acontecimento dessa terrível noite, que uma mulher e uma criança foram essa mesma noite levadas da choupana de Craigburnfoot, numa carruagem atrelada a quatro cavalos, por seu irmão Eduardo Geraldin Neville, cujo rastro segui durante alguns postos pela estrada de Inglaterra, com seus companheiros de viagem. Julguei ao tempo que um dos projectos dessa conjura de família era levar uma criança que o senhor quisesse manter na ilegitimidade, para fora de um país onde o acaso poderia proporcionar-lhe protectores e provas dos seus direitos. Mas a minha opinião, agora, é que seu irmão, tendo motivos para acreditar, como o senhor, que a criança estava maculada pela mais indelével vergonha, subtraira-a, em parte, por causa do risco que poderia correr na vizinhança de lady Glenallan. Enquanto ele falava, o conde tornara-se extremamente pálido; parecia quase cair da sua cadeira; o Antiquário, alarmado, correu aqui e acolá em busca de remédios, mas seu museu, apesar de repleto de um assaz grande número de artigos inúteis, não continha nada que fosse bom para qualquer coisa nessa ocasião, ou mesmo noutras. Correndo para ir pedir os sais de sua irmã, não pôde coibir-se de se deixar empolgar pelo seu carácter e soltar magoados murmúrios e expressões de espanto acerca dos diversos acidentes que converteram a sua casa, primeiro numa espécie de hospital para um duelista ferido e que a faziam agora servir de asilo a um moribundo par do reino. "No entanto - dizia com seus botões - sempre me mantive afastado dos militares e dos pares. Já não falta ao meu coenobitium senão transformarse num hospício de parturientes, e as suas metamorfoses ficarão completas"." Quando regressou com o remédio, lorde Glenallan 379 já estava muito melhor. A claridade súbita e inesperada que Oldbuck lançara sobre a triste história de sua família causara-lhe uma comoção acima das suas forças. - Mr. Oldbuck pensa, então, porque está apto a pensar, e eu não o estou; o senhor pensa então que é possível, ou seja, que não é impossível que o meu filho esteja vivo? - Creio - disse o Antiquário - que a sua vida não pôde correr nenhum risco nas mãos de seu irmão. Ele era conhecido por gostar da dissipação e dos prazeres, mas não como um homem cruel ou capaz de uma acção desonrosa; e se ele tivesse intenções criminosas, não se teria adiantado para se encarregar dessa criança como vou provar a Vossa Senhoria que o fez. Ao falar assim, Oldbuck abriu uma gaveta do antigo armário de seu avô Aldobrand e tirou um pacote de papéis atado com uma fita negra e com esta etiqueta: Interrogatório feito por Jonathan Oldbuck, J. P. em 18 de
Fevereiro de 37... Um pouco acima estava escrito em pequenos caracteres: Eheu Evelina! As lágrimas corriam abundantes dos olhos do conde quando tentava desatar o nó que segurava os papéis. - Vossa Senhoria - disse Oldbuck - andará melhor em não ler esses papéis agora: fatigado como está, e com o que nos resta fazer, não deve esgotar as suas forças. A herança de seu irmão pertence-lhe agora, presumo eu, e ser-lhe-á fácil fazer investigações entre os seus criados e pessoas da casa, para descobrir seu filho, se por felicidade ainda for vivo. - Mal me atrevo a ter esperança - respondeu o conde, com um profundo suspiro - Por que motivo meu irmão mo teria ocultado? - Como, pelo contrário, milorde, queria o senhor que ele lhe revelasse a existência de um ser que o senhor supunha fruto de... - É bem verdade; aí está um motivo palpável para explicar um silêncio que a própria humanidade prescrevia; porque se alguma coisa pudesse aumentar o horror desse pensamento atroz que envenenava a minha existência, seria certamente saber que esse filho de miséria existia. - Então - prosseguiu o Antiquário - como não se 380 pode concluir, por simples presunção, que fosse destruído na infância, deve admitir-se que existe ainda, após um lapso de mais de vinte anos, e confesso que o aconselho a começar imediatamente as suas pesquisas. - Vou ocupar-me disso - respondeu lorde Glenallan, agarrando avidamente a esperança que se lhe oferecia, e a primeira que o reanimava após tantos anos - vou escrever a um fiel amigo, que foi intendente de meu sobrinho e desempenha esse cargo junto de meu irmão Neville. Mas, o senhor enganase, Mr. Oldbuck, eu não sou herdeiro de meu irmão. - Sim? Lamento, milorde. Ele tinha uma bela propriedade, e só as ruínas do velho castelo de Neville, que ostentam os mais magníficos despojos de arquitectura anglo-normanda que existem nesta parte do país, são uma propriedade digna de inveja. Creio que seu pai não tinha outro filho, nem mesmo parente próximo. - Isso é verdade - replicou lorde Glenallan - mas meu irmão adoptara princípios políticos, assim como uma forma de religião, estranhos aos que sempre distinguiram a nossa casa. Os nossos caracteres sempre divergiram, e minha infeliz mãe não encontrou nele a submissão que exigia. Em suma, houve uma questão de família, e meu irmão, que podia dispor livremente de seus bens, aproveitou a liberdade que tinha de escolher um herdeiro fora da casa, É uma circunstância que nunca me pareceu do menor interesse; porque se os bens deste mundo pudessem consolar as penas da alma, estaria bastante e até demasiado fornecido. No entanto, eu podia lamentá-la hoje se devessem resultar obstáculos às nossas investigações, o que tenho motivo para recear; porque, no caso de que meu irmão morresse sem progenitura, tendo eu um filho, os bens de meu pai caberiam a essa criança. Não é, pois, provável que esse herdeiro, quem quer que seja, nos ajude a fazer uma descoberta que lhe pode ser tão prejudicial. - É provável, também, que o intendente de que Vossa Senhoria falou tenha ficado ao seu serviço. - É provável. Aliás, sendo esse homem um protestante, até que ponto será prudente fiar-se nele? - Supunha, milorde - respondeu gravemente Oldbuck - que um protestante pudesse mostrar-se tão 381 digno de confiança como um católico. Estou duplamente interessado em defender a fé protestante, milorde: um dos meus antepassados, Aldobrand
Oldenbuck, imprimiu a célebre Confissão de Augsburgo; posso mesmo mostrar-lhe a edição original que possuo aqui. - Não tenho a menor dúvida a esse respeito, Mr. Oldbuck - replicou o conde - Creia que tão-pouco foi um espírito de prevenção e de intolerância que me fez falar; mas é presumível que o intendente protestante favoreça o herdeiro protestante mais do que o herdeiro católico: se acaso meu filho foi educado na fé de seu pai, ou se, devo dizê-lo antes, ainda for vivo. - É preciso reflectir nisto seriamente - disse Oldbuck-antes de arriscar alguma coisa. Há um literato meu amigo em York, com quem estou há muito tempo em correspondência a respeito de uma trompa saxónia que se conservou na catedral. Há seis anos que nos escrevemos, e até o presente ainda não conseguimos decifrar a primeira linha da inscrição. Vou escrever imediatamente a esse gentleman, o doutor Dryasdust, e pedir-lhe informações exactas sobre a reputação do herdeiro de seu irmão, sobre a pessoa que tem a cargo os seus negócios, enfim, acerca de tudo o que possa servir de esclarecimento a Vossa Senhoria. Entretanto, o senhor tratará de reunir as provas do seu casamento, que, espero eu, poderão ser encontradas. - Sem a menor dúvida - respondeu o conde As testemunhas que nesse tempo tivemos o cuidado de subtrair às suas pesquisas existem ainda. O meu preceptor, que celebrou o matrimónio, é cura em França; regressou há pouco, tendo emigrado de um país onde foi vítima do seu zelo e da sua fidelidade à legitimidade e à religião. - Eis, pelo menos, um feliz resultado da Revolução Francesa, no caso que lhe toca, há-de convir, milorde - disse Oldbuck - Mas nada receie; hei-de proceder com tanto entusiasmo nos seus assuntos como se fosse da sua crença em política e em religião. E acredite, se quer que uma questão importante seja bem tratada, meta-se nas mãos de um antiquário; porque, devido a ele exercitar continuamente o seu talento na pesquisa das pequenas coisas, é impossível que não triunfe nas 382 grandes. É o hábito que conduz à perfeição; assim, o contingente que mais vezes se exercita na parada e o que actuará com mais prontidão no dia de batalha. Eu lia de boa vontade a Vossa Senhoria alguma coisa sobre este tema para lhe fazer passar o tempo até à ceia. - Suplico-lhe que não perturbe por minha causa os hábitos de sua família - disse lorde Glenallan mas não costumo tomar coisa alguma depois do pôr do sol. - Nem eu, milorde, apesar de dizerem que isso foi costume dos antigos. Mas, ao contrário de Vossa Senhoria, também janto bem, e, por conseguinte, estou mais em estado de passar sem essa ostentação de iguarias com que as minhas fêmeas (refiro-me' a minha irmã e a minha sobrinha, milorde) enchem a mesa, mais para mostrar a sua competência e o talento em matéria de culinária do que para real satisfação das nossas necessidades. No entanto, um grelhado, um peixe fumado, umas ostras, ou uma fatia de presunto que nós próprios salgamos, com uma torrada e um jarro de cerveja, ou qualquer coisa parecida, para não nos deitarmos com o estômago vazio, não fazem parte do meu sistema de abstinência, nem, espero eu, do de Vossa Senhoria. - É que literalmente nunca ceio, Mr. Oldbuck, mas assisto à sua refeição com prazer. - Bem, milorde - disse o Antiquário - esf orçar-me-ei, pelo menos, por
brindar os seus ouvidos com alguma coisa que lhes seja agradável, visto que não posso tentar o seu paladar: o que vou ler a Vossa Senhoria refere-se aos estreitos vales destas montanhas. Embora lorde Glenallan preferisse voltar ao assunto das suas ansiedades, viu-se obrigado a fazer um cerimonioso sinal de triste anuência. O Antiquário pegou então numa carteira cheia de papéis soltos e, depois de prevenir que os pormenores topográficos que dava se destinavam a um pequeno ensaio sobre a arte de formar acampamentos à maneira dos antigos, que fora acolhido com indul gência pelas várias sociedades de antiquários, começou como segue: - O tema, milorde, é a montanha fortificada de Quickens-bog, da qual Vossa Senhoria, sem dúvida, conhece perfeitamente a posição. Encontra-se no meto 383 de dependências da sua herdade de Mantanner, na baronia de Clochnaben. - Realmente, julgo ter ouvido o nome desses sítios - disse o conde, em resposta ao apelo do Antiquário. - Ouvido o nome? Que diabo, uma herdade que rende seiscentas libras esterlinas! o Senhor! Não foi possível ao Antiquário reter esta exclamação; no entanto, os seus sentimentos de hospitalidade sobrepuseram-se à surpresa, e começou a ler o seu ensaio em voz alta e inteligível, encantado por ter encontrado um ouvinte paciente, entregando-se à doce ilusão de interessar. Dispensamo-nos de reproduzir aqui a leitura de Mr. Oldbuck, que tinha por tema uma dissertação tão longa como sábia sobre a etimologia e as causas prováveis do nome de uma pequena montanha fortificada com a qual ninguém se preocupava. Nós mostrar-nos-emos também mais generosos com o leitor do que o foi o nosso Antiquário, que, não tendo muitas ocasiões de se fazer ouvir com paciente atenção por uma pessoa tão importante como lorde Glenallan, usou ou, para melhor dizer, abusou tanto quanto pôde da que se lhe oferecia.
XXXVI A velhice desgostosa harmoniza-se mal com a mocidade estouvada: uma é cheia de cuidados, a outra toda dada aos prazeres -, a mocidade assemelha-se a uma manhã de Estio em que a Natureza desenvolve toda a sua riqueza e frescura, a velhice à noite de Inverno sombria e nua. SHAKSPEARE - Miscelâneas No dia seguinte, o Antiquário, que era um pouco preguiçoso em sair da cama de manhã, foi chamado por Caxon bem uma hora antes da habitual. - Que há? -exclamou ele, bocejando e estendendo a mão para o grosso relógio de ouro, de repetição, que repousava molemente sobre um lenço de seda da índia junto do seu travesseiro - Que há então, Caxon? Ainda não podem ser oito horas? 384 - Não, senhor; mas o criado de milorde veio procurar-me, porque imagina que sou o criado de quarto de Vossa Honra, e com efeito sou-o de Vossa Honra e do pastor, pelo menos o senhor não tem outro, e também dou uma ajuda a sir Arthur, mas é mais no género da minha profissão. - Está bem! Está bem! Já chega. Homem feliz aquele que é seu próprio criado de quarto! Mas que necessidade há de me incomodarem tão cedo? - Ah, senhor, é que a grande personagem está a pé desde o romper do dia, e mandou à cidade pedir um expresso que fosse buscar a sua carruagem. O
expresso estará de volta em breve, e ele deseja ver Vossa Honra antes de se retirar. - com a breca! - disse Oldbuck - Estas grandes personagens dispõem da casa e do tempo de cada um como se fossem bens delas. Vamos, paciência, é uma vez por todas. Bem, Caxon, Jenny já recuperou os sentidos? - Palavra, senhor, que só metade; ainda está muito aturdida a fazer o chocolate, via-a no momento em que ia deitá-lo na tijela, e talvez bebêlo ela própria numa das suas crises! Conseguiu sair-se bem, no entanto, corri a ajuda de Miss Mac Intyre. - Então, todas as minhas fêmeas estão a pé e lidam na casa, de maneira que, se quiser que tudo corra bem, tenho de renunciar a repousar mais tempo esta manhã. Dá-me o roupão, Caxon... Que há de novo em Fairport? - Não há nada de novo - respondeu o velho cabeleireiro - a não ser o que se propala, como grande notícia, desta visita que veio fazer a Sua Honra este milorde que, como se "diz, não passa o limiar desta porta há vinte anos. - . Ah! Ah! - riu Monkbarns - E que dizem, eles, Caxon? - Verdadeiramente, senhor, há diversas opiniões. Aquelas pessoas que se chamam democratas e que são contra o rei, a lei e a moda do pó e das perucas, o que demonstra que não passam de uma canalha, dizem que milorde não veio incomodar Vossa Honra senão, para lhe propor os seus rendeiros e os seus montanheses, a fim de dissolver as assembleias dos amigos do povo; e quando eu disse que Vossa Honra nunca 385 se metia em questões onde pudesse haver golpes a receber e sangue a derramar, responderam que, se não era o senhor, seria seu sobrinho; que ele era bem conhecido por realista que se bateria com arreganho; que o senhor era a cabeça e ele o braço, e que o conde devia fornecer os homens e o dinheiro. - Vamos - disse o Antiquário, a rir - tenho muito prazer, pelo menos, em que a guerra não me custe senão conselhos. - Oh! Quanto a isso - observou Caxon -ninguém acredita que Vossa Honra quisesse combates em pessoa ou que desse apenas um ceitil a um ou a outro partido. - Diabo! É essa a opinião dos democratas? Mas que diz o resto de Fairport? - Em verdade - respondeu o ingênuo Caxon -não posso dizer que valha muito mais. O capitão Coquet, que faz parte dos voluntários, aquele que deve ser o novo colector, e alguns gentlemen do clube dos azuis, dizem que é perigoso deixar assim os papistas percorrerem o país, como o conde de Glenallan que pode ter tantos amigos em França... Mas o senhor provavelmente vai zangar-se. - Não, não, Caxon, descarrega toda a metralha do capitão Coquet; estou apto a resistir. - Pois bem, diz-se que, como o senhor não apoiou a petição a respeito da paz, como se opôs à de um novo imposto, e como sempre o viram fazer intervir o grupo dos caseiros nos motins do povo, a fim de arranjar as coisas com os oficiais de polícia; em vista de tudo isto, diz-se que o senhor não é um verdadeiro amigo do governo, e que esta espécie de entrevistas entre um fidalgo tão poderoso como o conde e um homem tão sábio como o senhor são suspeitas, e merecem que se ocupem delas. Há quem diga que não se faria mal em mandar os dois para a fortaleza de Edimburgo. - Palavra de honra - disse o Antiquário - que estou infinitamente grato aos meus vizinhos pela boa opinião que têm a meu respeito. De maneira que eu, que nunca me meto nas suas questões, eu, que sempre recomendei
providências pacíficas e moderadas, sou dado pelos dois partidos como homem capaz do crime de alta traição contra o rei e contra o povo, 386 Dá cá o meu fato, Caxon, dá cá o meu fato: é uma felicidade que a minha reputação se faça em despeito das suas referências. Há alguma notícia de Taffril e do seu navio? Caxon tomou um ar melancólico. - Não, senhor, os ventos são fortes e a nossa costa é terrível, para a cruzar, quando eles sopram de Leste. Os escolhos erguem-se tão alto que um navio vem despedaçar-se contra eles em menos tempo do que eu levo a afiar a minha navalha; depois, não há nenhuma baía, nenhum lugar de refúgio na nossa costa; não há senão rochedos e cachopos. Um navio que vem embater nas nossas costas voa em poeira, como o pó quando eu sacudo a borla, e também é difícil apanhar os despojos. São coisas que eu sempre repito a minha filha, quando ela se apoquenta por não ter notícias do tenente Taffril: tenho sempre uma desculpa pronta para ele; não se pode condená-lo, minha filha, digo-lhe eu, quem sabe o que lhe terá acontecido? - Ai, Caxon, tu és tão bom consolador como hábil criado de quarto... Dáme um colarinho branco, meu rapaz: achas que eu possa descer com um lenço ao pescoço, com visitas em casa? - Meu querido senhor, o capitão Heitor disse que um lenço de três pontas é o que há de mais à moda, e que esses colarinhos são bons para Vossa Honra e para mim, que somos pessoas do antigo regime; peço-lhe perdão de me citar ao lado do senhor, mas foi o que ele disse. - O capitão é um vaidoso e tu és um parvo, Caxon. - Isso é muito possível - respondeu o barbeiro, complacente - É o que Vossa Honra pode avaliar melhor do que eu. Antes de almoço, lorde Glenallan, que parecia menos abatido que na véspera, percorreu com cuidado os vários documentos e informes que Oldbuck conseguira reunir em tempos, e explicando-lhe os meios que tinha de acabar de provar o seu casamento, exprimiu a sua decisão de se ocupar imediatamente da difícil tarefa de recolher e pôr em ordem as provas do nascimento de Eveline Neville, que Elspeth dissera encontrarem-se entre os papéis de sua mãe. - E entretanto, Mr. Oldbuck - ajuntou ele - eu acho-me no estado de um homem que recebe notícias 387 importantes antes de estar bem acordado e que ainda duvida de que elas tenham relação com a vida real ou se não serão ainda a continuação do seu sonho. Esta mulher, esta Elspeth, chegou ao último degrau da velhice, e parece muitas vezes recaída na infantilidade Não terei eu, e isto seria uma dúvida atroz, sido muito precipitado em admitir as provas que ela me deu ontem, e que desmentem todas as que ela apresentou outrora? Oldbuck reflectiu um momento e respondeu com firmeza: - Não, milorde, não creio que tenha razão para suspeitar da verdade da confissão que ela fez, e para a qual não parece ter sido impelida senão pela força dos seus remorsos. A sua confissão foi voluntária, desinteressada, precisa e de acordo com ela própria, e com as outras conhecidas deste assunto. Creio, porém, que é preciso ocupar-se sem perda de tempo de examinar e pôr em ordem os outros documentos de que ela falou, e penso também que a sua declaração devia ser tomada em forma. Falámos de tratar disso juntos, mas sem dúvida eu pouparia a Vossa Senhoria uma tarefa dolorosa e talvez mostrasse mais imparcialidade indo
eu só, e procurando interrogá-la na minha qualidade de magistrado. Fá-loei, isto é, tentarei fazê-lo, logo que a veja numa disposição de espírito bastante favorável para lhe permitir suportar um interrogatório. Lorde Glenallan apertou a mão do Antiquário num sinal de reconhecimento. - Não sei expressar-lhe, Mr. Oldbuck - disse ele Quanto o seu apoio e a sua cooperação" neste triste e tenebroso caso, me inspira confiança e me proporciona alívio. Não posso deixar de me aplaudir por ter cedido ao súbito impulso que por assim dizer me arrastou a forçá-lo a receber as minhas confidencias, e que era originado pela recordação da firmeza com que o vira cumprir os seus deveres de magistrado, e procurar justificar a memória da infeliz Eveline, de quem se mostrou então zeloso defensor. Qualquer que seja o desfecho desta questão, e ouso ufanar-me de que um raio de esperança começa a iluminar o futuro da nossa casa, embora eu não esteja destinado a vê-lo realizar-Se; mas, repito-o, qualquer que seja o desfecho, minha 388 família e eu contraímos para consigo neste momento obrigações eternas. - Milorde - respondeu o Antiquário - tenho, sem dúvida, o maior respeito pela família de Vossa Senhoria, que é, sei-o bem, uma das mais antigas da Escócia, visto que encontra certamente a sua origem em Alexandre II, e que uma tradição do país, menos autêntica, embora bastante provável, faz remontar a Marmor de Clochnaben. No entanto, apesar de toda a minha veneração pela antigüidade da sua ilustre casa, devo confessar que o meu alvoroço e o meu desejo de o servir, tanto quanto em mim caiba, me são inspirados principalmente pelo interesse sincero que tomo pelos seus desgostos e pelo meu horror à impostura de que o senhor foi vítima. Mas, milorde, a refeição da manhã deve estar pronta. Permita-me guiar Vossa Senhoria através de todos os atalhos do meu coenobitium, que mais se assemelha a uma combinação de celas acumuladas umas sobre outras do que a uma casa regular. Espero que se compense hoje da dieta que fez ontem. Mas isso não entrava nas ideias de lorde Glenallan: cumprimentando os convivas com aquela delicadeza grave e melancólica que caracterizava as suas maneiras, viu o seu criado colocar diante dele o pão torrado e um copo de água pura, de que se compunha o seu dejejum habitual. Quando o velho Antiquário e o jovem oficial tomavam o seu de uma maneira um pouco mais sólida, fez-se ouvir o ruído das rodas de uma carruagem. - Creio que é a carruagem de Vossa Senhoria disse Oldbuck -Aí está, palavra de honra, uma elegante rapariga, pois tal era, segundo o melhor scholium, a vox signata dos romanos para um carro atrelado a quatro cavalos, como o de Vossa Grandeza. - . E ouso afirmar - disse Heitor, observando os cavalos pela janela, com ardente admiração - que nunca quatro cavalos baios mais belos e mais iguais foram atrelados a um veículo! Que belo porte! Que magníficos cavalos de esquadrão eles dariam! Posso perguntar a Vossa Senhoria se são raça das suas cavalariças? - Assim o julgo - disse lorde Glenallan - Mas confesso que negligenciei de tal maneira os meus assuntos 389 domésticos que sou obrigado a recorrer a Calvert para me certificar. - São produtos da coudelaria de Vossa Senhoria - disse Calvert - Descendem de tom e de Jemima e Yarico, os dois jumentos de raça, de Vossa Senhoria. - E produziram outros? -perguntou o conde. - Mais dois, milorde, um que tem quatro anos feitos, e o outro cinco; são
ambos dois belos animais. - Então, mande-os trazer amanhã a Monkbarns por por Dawkins - disse o conde - Espero que o capitão Mac Intyre me dê o prazer de os aceitar, se os achar capazes de lhe serem úteis. Os olhos do capitão Mac Intyre cintilaram de alegria, e ele expressou o seu reconhecimento a lorde Glenallan com a vivacidade de que era susceptível, enquanto o Antiquário, agarrando o conde pela manga, tentava opor-se a um presente que lhe parecia de mau agoiro para as suas provisões de aveia e feno. - Milorde, Milorde, o senhor é excessivamente bondoso, mas Heitor é de Infantaria, nunca montou a cavalo durante uma batalha. Pertence ao corpo dos montanheses, e mesmo o seu uniforme não conviria ao serviço de cavalaria. Macpherson nunca nos representou os seus antepassados a cavalo, embora tenha a impudência de dizer que eles nasceram para o carro. E, milorde, o que dá volta à cabeça de Heitor, e ele desejaria mais o exercício de carro que o de cavalo: fiunt quos currículo pulverem Olympicum Collegisse juvat. A sua fantasia seria ter um curriculum, mas não teria mais dinheiro para o comprar do que teria, creio eu, habilidade para o conduzir; e ouso assegurar a Vossa Senhoria que a posse de dois semelhantes quadrúpedes ser-lhe-ia mais perigosa do que nenhum dos seus duelos, sem mesmo exceptuar o da minha amiga foca. - Neste momento, o senhor tem o direito de exigir tudo de mim - disse o conde com delicadeza mas atrevo-me a pensar que não desejará privar-me mais tarde de oferecer ao meu jovem amigo alguma coisa que possa ser-lhe agradável. - Alguma coisa de útil, milorde, mas não um curriculum. Seria mais razoável para ele uma 390 quadriga, primeiro. Mas, a propósito, que vem cá fazer aquela velha cadeira de posta de Fairport? Eu não a pedi! - É para mim, senhor -disse Heitor, um tanto secamente, pois estava pouco satisfeito com a oposição que seu tio fizera ao presente que o conde lhe destinava, e que tão-pouco lhe estava agradecido pela maneira como rebaixara a sua habilidade em manejar cavalos, nem pelas alusões que fizera ao mau resultado da sua aventura com o lobo-marinho. - Para ti? - replicou lacònicamente o Antiquário - E que necessidade tens tu de uma cadeira de posta? Esta brilhante equipagem a que eu poderia chamar biga, vai servir de introdução à quadriga ou ao curriculum? - A verdade, senhor - declarou o jovem militar visto que deseja uma explicação precisa, é que vou a Fairport para um pequeno assunto. - Ser-me-á permitido perguntar de que natureza é esse assunto, Heitor? redarguiu seu tio, que gostava de exercer passageiramente uma autoridade de que não desfrutava muitas vezes sobre o sobrinho - Parece-me que todos os assuntos relativos ao regimento podem confiar-se ao teu digno delegado sargento, um homem honesto que tem a bondade de considerar Monkbarns como sua casa desde que chegou. Parece-me, digo eu, que podes encarregá-lo de todos os teus assuntos, sem que te seja preciso despender o pagamento de um dia por um mau cabaz de lenha podre, atrelado a duas pilecas, como o que está à porta, e que não passa de um esqueleto de cadeira de posta. - Não é um assunto do regimento que me chama a Fairport, senhor; e visto que insiste em conhecer a causa, dir-lhe-ei que, informando-me Caxon de
que o velho mendigo Ochiltree deve sofrer hoje um interrogatório antes de ser levado a julgamento, eu terei muito interesse em ver como se vai proceder com esse velho diabo. Eis tudo. - Ah, sim! Já ouvi qualquer coisa a esse respeito, mas não julguei que fosse tão grave. Mas, capitão Heitor, dize-me tu, que te mostras sempre tão pronto a servir de padrinho a toda a gente, em todas as ocasiões de conflito civil ou militar, por terra ou 391 por mar, sem exceptuar à beira-mar, dize-me que interesse especial tomaste pelo velho Ochiltree. - Foi soldado na campanha de meu pai -respondeu Heitor - e, além disso, um dia em que eu ia cometer um acto bem insensato, apresentou-se para mo impedir e deu-me tão bons conselhos como o senhor mos daria nessa ocasião. - E com o mesmo êxito, iria jurá-lo! Vamos, Heitor, confessa que os seus bons conselhos se perderam, - Confesso-o, senhor; mas não vejo porque a minha má cabeça me impeça de reconhecer as suas boas intenções. - . Bravo, Heitor! Eis a coisa mais razoável que já te ouvi dizer; mas confia-me os teus projectos sem reserva, meu rapaz. Bem vês, eu próprio vou contigo. Tenho a certeza de que o pobre diabo não é culpado e posso ser-lhe de socorro mais real do que tu nesse embaraço. Aliás, isto poupate meio guinéu, meu caro, consideração que deves sinceramente ter diante dos olhos muitas vezes. Depreendendo em poucas palavras quem era o mendigo e a acusação formulada contra ele, acusação que Oldbuck não hesitou em atribuir à malícia de Dousterswivel, lorde Glenallan perguntou se o indivíduo em questão não fora soldado em tempos. Responderam-lhe afirmativamente. - Não usa - continuou Sua Senhoria - um roupão azul, grosseiro, com uma placa? Não é um homem de alta estatura, de barba e cabelo grisalhos, que se mantém muito direito, e que fala com um ar de segurança e de liberdade que contrasta flagrantemente com a sua posição? - É o exacto retrato do homem - respondeu Oldbuck. - Nesse caso - disse lorde Glenallan - eu conheço-o; e embora receie não lhe poder ser útil na posição em que me encontro agora, no entanto contraí com ele uma dívida de reconhecimento, por me ter trazido a primeira das muito importantes notícias. Ofereço-lhe de boa vontade um retiro tranquilo para a sua vida, quando ele sair dos embaraços em que se encontra, - Creio, milorde, que será muito difícil fazê-lo abandonar os seus hábitos de vagabundo e convencê-lo a aproveitar-se da sua generosidade; sei, pelo menos, 302 que já foi tentada uma coisa parecida e sem resultado. Acha-se muito mais independente em mendigar ao público em geral os socorros necessários ao sustento da sua vida do que julgaria sê-lo se os devesse todos à liberalidade de uma só pessoa. Tem uma espécie de despreocupação filosófica que o faz desprezar toda a regularidade no emprego das horas e do tempo. Quando tem fome come, quando tem sede bebe, quando está fatigado dorme, e com uma tal indiferença pela maneira como satisfaz estas diversas necessidades que não creio que ele alguma vez tivesse chegado a jantar mal ou a achar-se mal alojado. Depois, é preciso dizer que, até certo ponto, ele é o oráculo da região que percorre. É o genealogista, o novelista, o organizador dos jogos, o doutor e o teólogo, quando necessário. Asseguro-lhe que tem muitos deveres, e os cumpre com demasiado zelo para que se possa persuadi-lo a abandonar a sua profissão.
Mas eu ficaria sinceramente aborrecido se retivessem na prisão o pobre velho por algumas semanas; por muito despreocupado que ele seja, estou persuadido de que a clausura seria a única coisa que ele não poderia suportar; morreria de desgosto. A conversa ficou por ali; lorde Glenallan, depois de se despedir das damas, reiterou ao capitão Mac Intyre a oferta de caçar nas suas terras sempre que lhe fosse agradável, e o jovem aceitou-a com alegria. - Ajuntarei - disse ele - que se o triste convívio do castelo de Glenallan nada tiver de assustador para a alegria do seu carácter, as portas de minha casa estarão sempre abertas. Sexta-feira e sábado são dois dias em que não saio dos meus aposentos; mas terá em substituição um convívio menos aborrecido que o meu, o de Mr. Gladsmoor, o meu esmoler, e que é, asseguro-lhe, um sábio e um homem de sociedade. Heitor, com o coração a pulsar de alegria pela ideia de percorrer os bosques particulares de Glenallan, " os pauis bem protegidos de Clochnaben, e sobretudo pela alegria inexprimível de caçar o gamo na floresta de Strathbonnel, mostrou-se extremamente sensível àquela honra, e agradeceu vivamente ao conde. Oldbuck pareceu reconhecido pelas bondades que o conde tinha para com seu sobrinho. Miss Mac Intyre sentiase feliz pela felicidade do irmão. Miss Griselda Oldbuck 393 sonhava satisfeita com todas as bolsas de caça e todas as presas que estavam reservadas à sua cozinha, lembrando-se de quanto o reverendo Mr. Blattergowl era apreciador. com cada um nesta disposição, o conde não tardou em despedir-se, e os seus quatro cavalos baios, objectos de admiração de Heitor, mal tinham desaparecido, já todas as bocas se abriam para pronunciarem os seus elogios, coisa que aliás sucede sempre que um homem de alta posição deixa uma família à qual procurou parecer obsequioso. Mas Oldbuck cortou cerce o panegírico, subindo com seu sobrinho para a cadeira de posta, que, com um cavalo que trotava e outro que era forçado a marchar, aos solavancos, começou a seguir conforme pôde o caminho do nosso célebre porto de mar, de uma maneira que contrastava singularmente com o movimento rápido e suave que levava a equipagem de lorde Glenallan. XXXVII Oh, amo a justiça tanto quanto possa imaginar Mas a boa dama, como é cega, desculpar-me-á se eu julgar conveniente e de propósito ficar calado. Não quero dar lugar, com minhas palavras, a que a palavra me seja cortada um dia. Comédia Antiga Devido à caridade das pessoas da cidade e com a ajuda da carga de provisões que levara com ele para a prisão, Edie Ochiltree passou um ou dois dias no cativeiro sem demasiada impaciência, tendo aliás um pouco menos razão para lamentar a sua falta de liberdade, por causa do tempo, que estava mau e chuvoso. - A prisão - dizia ele - não é um lugar absolutamente tão triste como se julga: dispõe-se sempre do abrigo de um bom tecto para se defender das injúrias do tempo e, se as janelas não tivessem vidros, não seria senão mais arejada e mais agradável no Verão. Não faltariam pessoas para conversar, e para comer 394 havia mais pão do que o necessário. Que precisão haveria, pois, para nos inquietarmos com o resto?. Contudo, a coragem do nosso mendigo filósofo
começou a baixar quando os raios de um sol sem nuvens vieram brilhar nos varões ferrugentos da grade da sua prisão, e quando ouviu um pobre pintarroxo, que um preso conseguira pendurar na sua gaiola à janela, principiar a saudá-los com os seus gorjeios. - Estás mais alegre do que eu - disse Edie, dirigindo-se ao pássaro porque não posso assobiar, nem cantar, quando penso nos aprazíveis outeiros, nos bosques frescos e verdes onde eu poderia ir deambular, por um tempo como este! Mas, olha, aqui tens migalhas de pão que te dou eu, por seres tão jovial; e, palavra, podes cantar, tu, porque não tens culpa de estares engaiolado, ao passo que eu só posso agradecer a mim próprio o encontrar-me encerrado neste triste lugar. O solilóquio de Ochiltree foi interrompido por um oficial de paz que veio intimá-lo a apresentar-se perante o magistrado. Saiu sob a triste escolta de dois guardas de decrépito aspecto e muito menos robustos do que ele, para ser conduzido ante o juiz de instrução. O povo exclamava, ao ver aquele velho preso entre dois guardas velhíssimos: - Vejam este velho de cabeça grisalha que cometeu um assalto na estrada, embora já esteja com os pés para a cova! E as crianças cumprimentavam os oficiais, que para elas eram objectos ora de riso ora de temor, por levarem um preso tão velho como eles. Assim acompanhado, Edie foi introduzido, e não certamente pela primeira vez, perante o bailio Little-John, ou Joãozinho, que, desmentindo a ideia que seu nome exprimia, pelo contrário, era um alto e corpulento magistrado, ao qual os banquetes da corporação não foram dados em vão. Além disso, era um realista daqueles tempos de zelo, pouco rigoroso e absoluto no cumprimento do seu dever e razoavelmente cheio do sentimento da sua importância e do seu poder; quanto ao resto, cidadão probo, útil e bem intencionado. - Tragam-no, tragam-no à minha presença! - exclamou ele - Palavra de honra, vivemos em estranhos 395 e terríveis tempos; os Bedesmen do rei e os seus servidores são os primeiros a infringir as leis. Eis um velho roupão azul que acaba de cometer um roubo; imagino que outro que me trouxerem mostrará o seu reconhecimento pela caridade real que lhe forneceu o seu fato, a sua pensão e a licença de mendigar, metendo-se numa conjura de alta traição, ou de sedição, pelo menos. Mas tragam-no! Edie cumprimentou, ao entrar, depois manteve-se, como de costume, firme e direito, rosto um pouco erguido, como que para não perder uma palavra de todas as que o magistrado lhe pudesse dirigir. Às' primeiras perguntas gerais, que não se referiam senão ao seu nome e à sua profissão, o mendigo respondeu prontamente e com exactidão; mas quando o magistrado, depois de mandar registar as suas respostas ao escrivão, começou a perguntar-lhe onde dormira a noite em que sucedera o percalço a Dousterswivel, Edie recusou-se a responder a esta pergunta. - Pode dizer-me, senhor bailio - disse ele ao magistrado - o senhor que conhece as leis, que bem me advirá em responder a todas as suas perguntas? - Que bem? Nenhum bem, certamente, meu amigo, a não ser que, dando conta exacta e sincera do seu procedimento, me forneça meios de lhe restituir a liberdade, se estiver inocente. - Mas parece-me mais razoável que o senhor bailio, ou outro qualquer que tenha a dizer alguma coisa contra mim, prove primeiro o meu crime, em vez de me pedir provas da minha inocência.
- Eu não me sento aqui - disse o magistrado para discutir consigo sobre os pontos da lei. Pergunto-lhe se quer responder a esta pergunta: esteve em casa de Aikwood no dia que eu especifico? - Realmente, senhor, não me sinto capaz de me lembrar - respondeu o prudente Bedesman. - Durante esse dia ou essa noite - continuou o magistrado - viu Steenie ou Steven? Conhecia-o, suponho eu. - Oh! Conhecia evidentemente esse pobre rapaz! - replicou o preso - Mas não posso dizer-lhe precisamente em que dia o vi pela última vez. - Foram às ruínas de Santa Ruth, durante essa noite? 396 - Bailio Little-John - disse o mendigo - se é do gosto de Vossa Honra, ficamos por aqui, e dir-lhe-ei muito belamente que não tenho nenhuma vontade de responder a todas essas perguntas. Sou demasiado velho peregrino para suportar que a minha língua me meta em sarilhos. - Escreva - ordenou o magistrado - que ele se recusa a responder a todas as perguntas, porque, dizendo a verdade, julga prejudicar-se. - Não, não - opôs Ochiltree - eu não quero que se escreva isso como fazendo parte da minha resposta; quero apenas dizer que a minha experiência e a minha memória não me oferecem exemplo de que se possa ficar bem respondendo a perguntas inúteis. - Escreva - disse o bailio - que um longo hábito, dando-lhe conhecimento dos interrogatórios judiciais, e que, tendo-se prejudicado ao responder a perguntas que lhe foram feitas nessas ocasiões, o declarante recusa - Não, não, bailio - tornou Edie - não deve torcer as minhas palavras dessa maneira. - Então, dite a sua resposta, amigo - disse o magistrado - e o escrivão registará segundo a sua própria boca. - É isso, é isso - disse Edie - eis o que se chama fazer bom jogo; vou responder sem perda de tempo. Assim, pois, meu rapaz, escreva que Ochiltree, o declarante, reclama a liberdade. Não, tão-pouco se deve falar dessa maneira; não pertenço à facção da liberdade, combati contra ela por ocasião dos motins de Dublin. Além disso, como o pão do rei há mais de um dia. Espere um pouco; vejamos. É isto. Escreva que Edie Ochiltree, roupão azul, reclama a prerrogativa: trate de soletrar bem esta palavra, é comprida... a prerrogativa dos súbditos deste país, e não responderá a uma única das perguntas que lhe são dirigidas, a não ser que tenha razão para isso. Escreva, jovem. - Então, Edie - advertiu o magistrado - visto que não me quer dar nenhum esclarecimento sobre este assunto, tenho de o reenviar à prisão para lá aguardar o curso normal da lei. - Bem, senhor, é a vontade de Deus e dos homens, tenho de me submeter. Não tenho grande coisa a dizer contra a prisão, excepto não haver liberdade de sair; 397 se não se importasse, bailio Little-John, eu dava-lhe a minha palavra em como compareceria perante os lordes no tribunal ou onde quisesse, no dia que achasse conveniente indicar-me. - Receio, meu bom amigo - respondeu o bailio Little-John - que a sua palavra seja garantia demasiado fraca; se vir o seu pescoço em perigo, sou levado a acreditar que abandonará a precaução. Se o senhor estivesse em situação de me oferecer uma garantia suficiente... Nesse momento, entraram o Antiquário e o capitão Mac Intyre.
- bom dia, meus senhores - disse o magistrado Encontram-me ocupado nos meus trabalhos habituais, perseguindo as iniquidades do povo, trabalhando pelo bem da comunidade, Mr. Oldbuck, servindo o rei nosso amo, capitão Mac Intyre, porque, como o senhor sabe, também empunhei a espada. - É um dos emblemas da justiça; mas parece-me que as balanças lhe conviriam melhor, bailio, tanto mais que as tem prontas no seu armazém. - Muito bem, Monkbarns, excelente. Mas não é como magistrado que eu empunho a espada, é como militar e, em verdade, eu devia antes dizer a espingarda e a baioneta... Ei-las atrás do espaldar do meu cadeirão. Devo confessar, porém, que a gota ainda me incomoda um pouco para fazer exercícios, pois tive uma pequena visita da nossa antiga conhecida podagra; no entanto, começo a ter-me nas pernas, enquanto o nosso sargento me ensina a manobra. Gostaria bem de saber, capitão Mac Intyre, se ele se pauta exactamente pelas regras. Parece-me que nos manda segurar a espingarda de maneira muito desajeitada. E assim falando, avançou a coxear para a sua arma, como que para dar exemplos do que aprendera, bem como das suas dúvidas sobre a habilidade do sargento. - Regozijo-me de ver que temos tão zelosos defensores, e tenho a certeza antecipada de que Heitor lhe dará cumprimentos pelos progressos na sua nova profissão. Então, o meu caro senhor rivaliza com Hécate dos antigos: negociante no mercado, magistrado no município e soldado em armas; quid non pro 398 patria (1)? Mas, hoje, é com a justiça que tenho de ver; ponhamos de parte o comércio e a guerra. - Bem, meu caro senhor, que deseja de mim? - O senhor tem aqui um dos meus velhos conhecimentos que alguns dos seus homenzinhos encerraram na prisão, em consequência de um pretenso assassínio cometido na pessoa de um tal Dousterswivel, da acusação do qual eu não acredito nem uma palavra. O semblante do magistrado tornou-se muito grave. - O senhor deve estar informado de -que o acusam de roubo, bem como de assassínio. É um caso realrmente muito sério: não são muitas as vezes que eu tenho conhecimento de casos tão criminosos. - E por isso, quando a ocasião se apresenta, trata de não a deixar escapar. Mas admite-se que este pobre homem se encontre numa situação tão grave? - Embora seja contra as regras - disse o bailio como o senhor é da comissão, não hesito em mostrarlhe a queixa de Dousterswivel e o resto dos depoimentos. com efeito, meteu os papéis nas mãos do Antiquário, que pegou nos óculos e se sentou num canto para os examinar. Os oficiais receberam então ordem de transportarem o preso a outro aposento; mas, antes de que isto se fizesse, o capitão Mac Intyre achou meio de dizer algumas palavras de encorajamento ao velho Edie e de lhe meter um guinéu na mão. - Deus abençoe Vossa Honra! -disse o ancião É uma dádiva de um jovem militar, deve dar sorte ao velho soldado: não a recuso, embora isto seja uma excepção à regra que me impus; porque, se tiver de ficar aqui muito tempo, os meus amigos depressa me esquecerão. Nada mais verdadeiro do que o provérbio que diz que os "ausentes estão sempre mal", e não seria muito respeitável para mim, bedesman do rei, e autorizado a pedir esmola de viva voz, descer um fio pela janela da prisão para assim pescar uns
cobres. Ao acabar esta observação, foi levado para fora da sala. (1) Que não fazer pela pátria? - N. do T. 399 O depoimento de Mr. Dousterswivel continha uma narrativa exagerada da violência que sofrera e da perda que tivera. - Mas eu gostaria de lhe perguntar - disse Monkbarns - qual era o seu objectivo ao passear nas ruínas de Santa Ruth a semelhante hora, e com um companheiro como Edie Ochiltree. Não há estrada que passe por lá, e não me convenço facilmente de que a paixão do pitoresco pudesse levar o nosso alemão a esse lugar, numa noite tão tempestuosa... Ele meditava, não tenhamos dúvidas, alguma patifaria, e foi provavelmente apanhado na sua armadilha. Nec lex justior ulla (1). O magistrado admitiu que havia alguma coisa de misterioso nessa circunstância, e desculpou-se de não ter forçado Dousterswivel a explicar-se melhor sobre o que a sua declaração tinha de voluntário. Mas, em apoio da acusação fundamental, mostrou o depoimento de Aikwood sobre o estado em que Dousterswivel fora encontrado, e estabeleceu o facto importante de o mendigo ter deixado a granja onde se alojara e não ter voltado. Duas pessoas dependentes do cangalheiro e que essa noite, tinham feito parte do cortejo que acompanhava o funeral de lady Glenallan, declararam que, mandados em perseguição de dois indivíi duos suspeitos que se escaparam das ruínas de Santa Ruth, quando o cortejo fúnebre se aproximou, e que se supunha poderem roubar alguns ornamentos preparados para a cerimónia, foram vistos e perdidos de vista e reencontrados algumas vezes, por causa da natureza do terreno, que não era favorável aos cavaleiros, mas que vira entrar os dois na choupana de Mucklebackit; um desses homens ajuntou que, apeando-se do cavalo e aproximando-se da janela da cabana, vira o velho roupão azul e o jovem Steenie Mucklebackit com outros, a comerem; e a beberem lá dentro, e que também notara que o dito Steenie mostrava uma pequena carteira aos outros... O declarante não tinha a menor dúvida de que Ochiltree e Steenie Mucklebackit fossem os indivíduos que o seu 1) Não há lei mais justa. - N. do T. 400 camarada e ele perseguiram. Sobre a pergunta que lhe fizeram, porque não entrara na dita cabana, declarara que, não estando autorizado a fazê-lo, e que tendo ouvido dizer que Mucklebackit e sua família eram pessoas bruscas e duras, ele, declarante, não tinha nenhum desejo de meter-se nos seus assuntos. Causa scientix paiet, todas as coisas que declarava eram verdadeiras, etc. etc. - Que me diz a essa massa de provas contra o seu amigo? -perguntou o magistrado, quando notou que o Antiquário voltara a última folha. - Confesso que, se se tratasse de outra pessoa, conviria em que o caso, à primeira vista, prima acie, não parece bonito. Mas é-me difícil verberar alguém por ter batido em Dousterswivel; porque se eu fosse um pouco mais novo, ou que tivesse apenas uma centelha do seu espírito guerreiro, bailio, há muito tempo que teria feito o mesmo, É nebulo nebulonwm, um impudente, astucioso e pérfido charlatão, cuja charlatanice me custa cem libras esterlinas, e ao meu pobre vizinho sir Arthur, Deus sabe quanto! Além disso, bailio, creio que é um homem perigoso para o governo. - Em verdade - disse o bailio - se eu o acreditasse, o caso mudaria de figura. - Sem dúvida - prosseguiu Oldbuck - porque ao dar-lhe uma tareia, o
mendigo não teria feito senão testemunhar o seu reconhecimento ao rei e, roubando-o, não teria senão pilhado um egípcio, cujos despojos são um prêmio legítimo. Suponhamos agora que esta entrevista nas ruínas de Santa Ruth tinha relação com a política, e que essa história de tesouros ocultos fosse um isco oferecido pelo partido do outro lado do Estreito a alguma grande personagem, ou ainda que os fundos se destinassem à manutenção de um grupo sedicioso. - Meu caro senhor -disse o magistrado, agarrando avidamente aquela ideia -vem precisamente ao encontro do que eu penso. Que feliz não me sentiria se pudesse tornar-me o humilde instrumento que pusesse esse caso a claro! Não acha que faríamos bem em avisar os voluntários para estarem de prevenção? - Ainda não, sobretudo quando a gota, podagra, os priva de um membro tão essencial ao seu batalhão. Mas quer deixar-me interrogar Ochiltree"? 401 - Certamente; mas o senhor não tira nada dele. Deu-me claramente a entender que conhecia o perigo de uma declaração judicial da parte do acusado, o que, para dizer a verdade, já fez enforcar mais do que um melhor do que ele. - É possível; no entanto, bailio, não se opõe a que eu experimente? - Absolutamente nada, Monkbarns... Estou a ouvir o sargento a berrar, lá em baixo; vou fazer um exercício de manobra durante esse tempo... Baby, traz-me a espingarda e a baioneta... Fazem menos barulho quando levamos armas. O belicoso magistrado saiu, seguido da criada, que levava a espingarda. - Esta rapariga é o digno escudeiro deste campeão gotoso - disse Oldbuck - Heitor, meu rapaz, é preciso seduzi-lo. Vai com ele, entretém-no lá em baixo durante meia hora, pelo menos; distrai-o com alguns termos de guerra, e sobretudo gaba-lhe o uniforme e a habilidade. O capitão Mac Intyre, que, como a maior parte dos da sua profissão, olhava com infinito desprezo os burgueses soldados, que tinham pegado em armas sem que nenhum título os autorizasse a usá-las, levantou-se com muita repugnância, fazendo notar a seu tio que não saberia que dizer a Mr. Little John, e que era verdadeiramente ridículo ver um velho lojista gotoso esforçar-se por cumprir os deveres e fazer os exercícios de um soldado. - Pode ser, Heitor - disse o Antiquário, a quem raramente sucedia estar logo de acordo com a opinião da pessoa com quem falava - pode ser neste caso e talvez em outros; mas neste momento o país assemelha-se àquelas pessoas em demanda por uma pequena dívida, e que, não tendo dinheiro para pagar aos heróis do foro, defendem elas próprias a sua causa. Respondo que neste caso nunca teremos de lamentar a falta de subtileza e esperteza dos advogados, e pela mesma razão espero que no outro nos salvaremos com a nossa coragem e as nossas espingardas, embora possamos falhar por vezes nas formas da tua disciplina. - É-me perfeitamente indiferente, senhor - diss Heitor, bem disposto que o mundo inteiro se bata, se isso lhe aprouver, contanto que me deixe tranquilo. 402 - Sim, sim, efectivamente, és uma pessoa tranquila, tu, que pelo teu gênio belicoso nem sequer deixas dormir em paz, na costa, uma pobre foca... Mas Heitor, vendo o caminho que a conversa tomava, e detestando toda a espécie de alusão ao desaire que lhe infligira o anfíbio, apressou-se a
sair antes de que o Antiquário acabasse a frase. XXXVIII Pois bem, no pior caso, não é supondo mesmo que eu soubesse quando o túmulo se abriu para os suspeitava, uma leal troca Comédia Antiga
um crime de roubo nem de moeda falsa, tudo isso de que me acusa de conhecer. E entregar os seus tesouros a alguém que não não foi roubo, mas antes pura liberalidade.
Querendo aproveitar a autorização que se lhe dera de interrogar o acusado, o Antiquário preferiu dirigir-se à cela de Edie a fazer o seu exame em forma de segundo interrogatório, mandando-o vir de novo à sala do magistrado. Encontrou o ancião sentado perto da janela que dava para o mar, e, enquanto o contemplava, grossas lágrimas se escapavam dos seus olhos como se não desse por isso, e corriam-lhe pelas faces e pela barba branca. No entanto, as feições estavam calmas e sérias; a atitude indicava paciência e resignação. Oldbuck aproximara-se dele sem ser ouvido e tirou-o do seu devaneio, dizendo-lhe com bondade: - Tenho pena, Edie, de ver que se deixa abater nesta conjuntura. O mendigo estremeceu, apressou-se a limpar os olhos com a manga do roupão e, procurando retomar o tom habitual de indiferença e de jovialidade, respondeu, mas numa voz mais trêmula que de costume: - Eu devia ter calculado, Monkbarns, que era alguém do seu género que vinha interrogar-me; porque 403 uma das grandes vantagens das prisões e dos tribunais é que podem lá entrar e sair quando lhes apetece sem que nenhuma pessoa das que lá estão empregadas lhes pergunte o motivo. - Bem, Edie, espero que a causa que o apoquenta agora não seja tão desesperada que não se possa remediar. - E eu deveria esperar, Monkbarns - respondeu o mendigo em tom de censura - que o senhor me conhecesse o bastante para não acreditar que semelhante ninharia pudesse fazer correr lágrimas dos meus velhos olhos; não, não, é preciso outra coisa para isso. Mas foi a filha de Caxon, essa pobre criança, que veio aqui procurar consolações e não as encontrou. Não teve notícias do brigue de Taffril desde os últimos ventos, e corre o boato no cais de que um navio do rei se despedaçou nos escolhos de Rattray, e que a tripulação se perdeu. Deus nos livre, porque tenho tanta certeza como a de estar a vê-lo aí, Monkbarns, de que o pobre Lovel, que o senhor estimava tanto, terá perecido! - Deus nos livre, realmente! - exclamou o Antiquário, empalidecendo Preferia que se pegasse fogo a Monkbarns! Meu pobre amigo, meu querido colaborador! vou já ao cais. - Não saberá mais do que lhe disse, senhor - observou Ochiltree - porque os oficiais aqui são muito honestos, isto é, para pessoas da sua espécie, e tomaram todas as informações que a sua autoridade lhes permitia, sem por qualquer forma obterem nenhum esclarecimento. - Isso não pode ser, não será - disse o Antiquário -e não o acreditaria mesmo que o fosse. Taffril é um excelente marinheiro, e Lovel, o meu pobre Lovel, tem todas as qualidades úteis e agradáveis de um companheiro de viagem, quer por terra, quer por mar; é o único, Edie, que, pela candura do seu carácter, eu escolheria, se empreendesse uma viagem por mar, o Que nunca faço senão para atravessar o estreito, jragilem mecum solvere phaselum (1), para companheiro dos meus perigos; como um ser
contra o qual os elementos (1) Embarcar comigo numa frágil canoa. - N. do T. 404 não podem alimentar nenhuma vingança. Não, Edie, repito-o, não é nem pode ser verdade; é uma ficção daquele descarado boato que eu desejaria ver enforcado com sua trombeta ao pescoço, que não serve senão para fazer perder a cabeça às pessoas honestas com os seus rumores sinistros. Mas vejamos: dize-me como te meteste neste sarilho. - Pergunta-me isso como magistrado, Monkbarns, ou apenas para sua própria satisfação? - É para minha satisfação pessoal - declarou o Antiquário. - Meta então a sua agenda e a sua pena de aço no bolso, porque não lhe direi nada enquanto lhe vir nas mãos com que escrever; isso faz medo às pessoas ignorantes como eu. com a breca, está na sala contígua um escrivão que porá o preto no branco o bastante para enforcar um homem, antes de que ele saiba o que disse. Para acalmar o espírito do velho, Monkbarns pôs de lado a sua agenda. Edie começou então a contar com a maior franqueza toda aquela parte da sua história já conhecida do leitor; descrevendo ao Antiquário a cena de que fora testemunha entre Dousterswivel e o seu patrão nas ruínas de Santa Ruth, confessou francamente que não pudera resistir à tentação de arrastar o químico mais uma vez até junto do túmulo de Misticot, para tirar uma vingança burlesca do seu charlatanismo; que não tivera dificuldade em persuadir Steenie, que era um rapaz atrevido e resoluto, a colaborar com ele nessa partida, mas que a brincadeira fora levada muito mais longe do que estava nas suas intenções. A respeito da carteira, disse que exprimira a sua surpresa e desgosto ao saber que fora apanhada por inadvertência; que Steenie se comprometera publicamente, em presença de todos os moradores da choupana, a entregá-la no dia seguinte, e que disso fora impedido pela sua morte prematura. O Antiquário reflectiu um momento e disse em seguida: - O teu relato parece muito plausível, Edie, e acredito nele, segundo o que conheço dos participantes; mas também creio que sabes muito mais do que achas conveniente dizer acerca do tesouro encontrado. Suspeito 405 de que tenhas desempenhado o papel do deus familiar de Plauto - espécie de demónio, Edie, para melhor me compreenderes - que tem à sua guarda os tesouros ocultos. Lembro-me de que foste a primeira pessoa que encontrámos quando sir Arthur fez o feliz ataque ao túmulo de Misticot; e que quando os trabalhadores começaram a afrouxar, também foste tu, Edie, quem primeiro saltou para o fosso e fez a descoberta do tesouro. Agora, tens de me explicar tudo isso, a não ser que queiras que te trate tão mal como Euclio trata Estáfilo na Aulularia (1) - Meu Deus, senhor! Que entendo eu da sua Howlowlaria; isso parece mais linguagem de cão que de homem! - No entanto, sabias que o cofre do tesouro estava ali? - insistiu Oldbuck. - Meu caro senhor - respondeu Edie, com o ar da maior simplicidade julga que uma pobre e velha criatura como eu teria conhecido existência de semelhante coisa sem disso sacar alguma vantagem? E o senhor vê bem que não a procurei nem a tive; que interesse teria eu em meter-me nisso? - É precisamente o que eu quero que me expliques, porque tenho positivamente a certeza de que sabias o que estava lá. - Vossa Honra é um homem teimoso, Monkbarns, e para teimoso devo
confessar que tem muitas vezes razão. - Então, Edie, concordas que a minha opinião é bem fundada. Edie fez um sinal afirmativo. - Então, queres explicar-me todo o caso desde o começo até o fim? - Se fosse um segredo que me pertencesse, Monkbarns - replicou o mendigo - não teria de mo pedir duas vezes; porque lhe digo agora o que tenho dito muitas vezes nas suas costas: é que, apesar de todas as extravagâncias que lhe passam pela cabeça, o senhor ainda é o mais sensato e o mais discreto de todos os gentlemen da região. Mas serei franco consigo (1) Comédia de Plauto. - A', do T. 406 e confesso-lhe que é o segredo de um amigo, e que antes me deixaria esquartejar por cavalos selvagens, como os filhos de Ámon, do que dizer uma palavra mais sobre este assunto, excepto que não se lhe quis fazer mal, mas, pelo contrário, muito bem, e que tive por objectivo servir pessoas que valem dez mil como eu. Creio que não há lei que possa considerar um crime saber onde está escondida a prata dos outros, desde que não se lhe ponha as mãos em cima por sua conta. Oldbuck cruzou por duas ou três vezes o compartimento em profunda abstracção, procurando encontrar alguma razão plausível para transacções de um género tão misterioso; mas a sua imaginação falhou por completo. Colocou-se então diante do preso e olhou-o de frente. - Amigo Edie - disse ele - a tua história é um verdadeiro enigma, e seria preciso um segundo Édipo para a adivinhar. Outro dia qualquer dir-te-ei o que é isso de Édipo, se mo lembrares. De qualquer modo, ou por efeito da sensatez ou por efeito das extravagâncias que me dás a honra de me atribuires, estou fortemente disposto a acreditar que me disseste a verdade, tanto mais que não te serviste desses atestados de poderes supremos, como já notei que os teus semelhantes nunca deixam de fazer quando querem enganar as pessoas - (Aqui, Edie não pôde deixar de sorrir) - Por isso, se quiseres responder-me a uma pergunta, tratarei de te fazer restituir à liberdade. - Se quiser dizer-me que pergunta é essa - replicou Edie com a prudência de um verdadeiro escocês verei se posso responder ou não. - É dizer-me somente - disse o Antiquário - se Dousterswivel sabia alguma coisa desse cofre de barras escondidas. - Ele! O velhaco! -respondeu Edie, com brusca franqueza - Nada teria ficado, se Dousterswivel tivesse sabido que aquele tesouro estava ali. - Era o que eu pensava - disse Oldbuck - Bem, Edie, se eu conseguir restituir-te à liberdade, terás de ser pontual no dia em que te intimarem, a fim de libertares a minha garantia; porque não é em tempos como os nossos que homens prudentes podem expor-se a perder a sua caução, a não ser que me pudesses 407 indicar outro aulam auri plenam quadrilibrem (1), um outro Search Nº I. O mendigo meneou a cabeça e disse: - Ah! Suspeito de que a galinha que punha esses ovos de ouro voou. Mas nada receie, Monkbarns, serei pontual nesse dia, não perderá nem um penny por minha causa; e, palavra, não me desagradaria sair, agora que o tempo está bonito; e depois estarei mais perto das primeiras notícias que tenhamos dos nossos amigos. - E eu, Edie, como sinto que o barulho cessou um pouco lá em baixo, presumo que o bailio Little-John já despediu o seu preceptor militar e
que trocou os trabalhos de Marte pelos de Témis. vou, pois, falar-lhe. Quanto às deploráveis notícias que me deste, não quero acreditar nelas. - Deus queira que Vossa Honra tenha razão disse o mendigo. E Oldbuck saiu do compartimento. O Antiquário foi encontrar o magistrado, exausto pelo exercício, a repousar no seu cadeirão de doente e a trautear a canção Vivamos alegremente, alegres soldados e, entre cada verso, reconfortando o estômago com uma colh-erada de sopa de tartaruga. Ordenou que trouxessem um acepipe igual para Oldbuck, que o recusou, fazendo-lhe notar que, não sendo militar, não pensava em renunciar ao seu hábito de nunca comer entre as horas regulamentares das suas refeições. - É bom para soldados como o senhor, que aproveitam a ocasião de comer quando ela se apresenta. Mas, a propósito, soube com desgosto que há más notícias do brigue de Taffril. - Ah, pobre diabo! - disse o bailio - Dava tanta honra à cidade. Distinguira-se muito no 1.o de Junho. - Assusta-me ouvi-lo falar assim no passado disse Oldbuck. - Creio que não há senão muitas razões para isso, Monkbarns; no entanto, ainda não se deve desesperar por completo. Diz-se que esse desastre ocorreu na baía de Rattray, a cerca de vinte milhas ao norte, e perto da baía de Dirtenalan. Mandei colher informações, e (1) Outro pote de quatro libras cheio de ouro. - N. do T. 408 o seu sobrinho saiu a correr como se fosse buscar o boletim de uma vitória. Nesse momento, Heitor entrou a gritar: - Julgo que tudo isso não passa de uma maldita mentira. Não encontro nenhuma autoridade que confirme esse boato. - E dize-me, por favor, Mr. Heitor -disse seu tio - se isso for verdade, quem é o culpado de Lovel ter embarcado? - Eu, evidentemente - respondeu Heitor - mas em consequência da minha infelicidade. - Realmente - disse o tio - nunca teria pensado nisso. - Mas, no -entanto, senhor, apesar da sua tendência para me encontrar defeitos - respondeu o jovem militar-tem de convir pelo menos que nesta ocasião não se pode duvidar das minhas intenções. Visei Lovel o melhor possível e, se tivesse acertado, é evidente que ele teria o meu mal e eu o dele. - E a quem te preparas tu para visar, agora que trazes contigo esse armazém de pólvora para canhão? - Preparo-me para a caça nos pauis de lorde Glenallan, que é para o dia doze. - Ah! Heitor, essa grande caçada seria melhor Omne cum Proteus perus egit altos Visere montei (1) se, em vez dos nossos tímidos pássaros das moitas, tivesses de combater contra alguma foca belicosa. - Diabos levem o lobo marinheiro ou a foca, se assim lhe quiser chamar!... É bem duro ouvir constantemente censurar uma asneira que se fez. - Vamos, vamos - disse Oldbuck - tenho a certeza de que somos bastante sensatos para nos envergonharmos disso; mas, como detesto toda a raça de Nimrods, desejo a todos a mesma sorte... Vamos, não te irrites com uma brincadeira, meu rapaz, acabei com o assunto da foca, embora apostasse que o bailio nos poderia (1) Quando Proteu levou seus rebanhos marinhos ao alto dos montes. - N. do T.
409 dizer qual é ao certo o valor da pele dos lobos-marinhos. - É cara, muito cara; a pesca não tem sido feliz ultimamente - disse o magistrado. - Nós podemos testemunhá-lo - acudiu o exuberante Antiquário, encantado com a vantagem que esta circunstância lhe dava sobre o jovem caçador-Só mais uma palavra, Heitor, e depois com a pele que para si tem tanto valor, Cobriremos um corpo jovem e cheio de calor. Ah! Ah! meu pobre rapaz!... Vamos, acabou-se, não pensemos mais nisso; tenho de ocupar-me dos negócios. Bailio, uma palavra, por favor. É preciso que o senhor receba a minha caução, uma importância moderada, evidentemente, que responderá pela presença do velho Ochiltree. - O senhor não pensou no que pediu - respondeu o bailio - Pondere que é um crime de assassínio, de roubo. - Silêncio! Não insista nisso. Bem sabe o que lhe dei a entender; informá-lo-ei melhor mais tarde; asseguro-lhe que há um segredo neste caso. - Mas, meu caro Oldbuck, se o Estado está nisso interessado, eu, que durante o ano me aborreço com tantos casos insignificantes, tenho o direito de ser consultado, e até que eu saiba... - Chiu! Chiu!-interrompeu o Antiquário, piscando-lhe o olho, e pousando o dedo na boca - O senhor; terá toda a honra e toda a direcção quando as coisas estiverem maduras. Mas estamos a contas com um velho obstinado que não quer ouvir falar em meter neste momento duas pessoas no seu segredo, e ele não me deu bem o fio dessas intrigas de Dousterswivel. - Ah! Ah! Nesse caso, julgo que se terá de aplicar a lei de emigração a esse maroto. - Para dizer a verdade, não me desagradaria. - Não diga mais - prosseguiu o magistrado - a coisa faz-se imediatamente... Será afastado tanquam suspect... Creio que esta é uma das suas frases, Monkbarns. - É clássica, bailio, o senhor faz progressos. - No entanto, tenho estado tão assoberbado de afazeres 410 públicos que me vi obrigado a dar sociedade ao meu aprendiz. Tive duas correspondências diferentes com o subsecretário de Estado; uma a respeito da taxa projectada sobre o cânhamo de Riga, e outra sobre o projecto de aniquilar as associações políticas. Como vê, o senhor faria bem em comunicar-me o que sabe da descoberta desse velho mendigo, visto que se trata de uma conjura contra o Estado. - Assim farei quando estiver senhor do assunto - replicou Oldbuck Detesto o embaraço que causa a direcção desta espécie de assuntos. Lembre-se, porém, de que eu não disse positivamente uma conjura contra o Estado; disse apenas que esperava descobrir, por intermédio deste homem, uma conjura criminosa. - Se há conjura, deve haver traição ou sedição, pelo menos. Quer caucioná-lo por quatrocentos marcos? - Quatrocentos marcos por um velho roupão azul! Lembre-se do decreto de 1701, sobre o regulamento de cauções... Tire uma cifra a essa importância, e eu consinto em dar-lhe uma garantia por quarenta.
- Bem, Mr. Oldbuck, o senhor sabe que toda a gente em Fairport está disposta a ser-lhe agradável; e, além disso, conheço-o por homem prudente e que não se exporia voluntariamente a perder mais quarenta marcos do que quatrocentos. Assim, aceito a sua caução meo perícúlo. - E eu garanto Edie Ochiltree, meo periculo (1)" também -disse Oldbuck Mande, pois, passar o documento de caução pelo seu escrevente, e eu assino. Quando este assunto terminou, o Antiquário comunicou a Edie a feliz notícia de que estava mais uma vez em liberdade, e aconselhou-o a dirigir seus passos para Monkbarns. Tomou ele próprio esse caminho com o sobrinho, depois de praticar esta boa acção. (1) A meu risco ou perigo. - N. do T. 411 XXXIX Este cheio de citações eruditas, antigas e modernes. SHAKSPEARE - Como lhe aprouver - Por amor de Deus, Heitor - disse o Antiquário, na manhã seguinte, ao almoço - gostaria que tivesses respeito pelos meus nervos, e que não andasses sempre com aquele maldito arcabuz. - Tenho muita pena de o aborrecer, senhor -respondeu o sobrinho, continuando a manusear a espingarda de caça-mas é uma arma excelente; é de Joe Manton, e custa quarenta guinéus. - Um louco tem sempre pressa de se desfazer do seu dinheiro, meu sobrinho - replicou o Antiquário Estou muito satisfeito por teres tantos guinéus para esbanjar. - Cada um a seu gosto, tio; o senhor gosta de livros. - Sim, Heitor, e se a minha colecção vier a pertencer-te, depressa se verá dispersar e passar ao armeiro, ao alquilador, ao domesticador de cães: Coemptos undique nobiles libros mutare loricis Iberis (1). - Não me servirei dos seus livros, é verdade, meu querido tio - disse o jovem militar - e o senhor fará bem em deixá-los em melhores mãos; mas não acuse o meu coração dos erros da minha cabeça. Eu não me desfaço de um cordão que tenha pertencido a um velho amigo, por umas parelhas de cavalos como as de lorde Glenallan. - Não, não o acredito, meu rapaz, não o acredito - disse o tio, abrandando-se - Gosto de te arreliar às vezes, isso dá ao espírito disciplina e hábito de subordinação mas tu passas o tempo aqui mais suavemente, sob as minhas ordens, do que sob as do teu capitão, (1) Trocar por armaduras ibéricas nobres obras compradas por toda a parte. - N. do T. 412 coronel, ou cavaleiro de armas, como diz Milton, e em vez dos franceses prosseguiu ele, recaindo em seu humor satírico - não tens outros inimigos a combater senão gens humida ponti(1); porque, como Virgílio, Slernunt se somno divertes in littore phocee o que se poderia traduzir assim: As focas dormitando esperam na praia Do montanhês Heitor a agressão selvagem. Vamos, não te zangues, acabou. Aliás, vejo que o velho Edie "está no pátio, e tenho necessidade de lhe falar. Até à vista, Heitor; lembra-te da maneira como mergulhou no mar, tal como seu dono Pro teu: Et se jacta deãit exquor in lItiim. Depois de esperar que a porta se fechasse, Mac Intyre abandonou-se a toda
a impaciência natural do seu carácter. - Meu tio é o melhor homem do mundo, e no seu género o mais benfeitor; mas para não continuar a ouvir falar dessa maldita foca, como ele gosta de lhe chamar, passo a um dos regimentos que estão na América, e não torno a vê-lo na minha vida. Miss Mac Intyre, cujo reconhecimento e amizade a ligavam a seu tio, e que amava apaixonadamente o irmão, servia geralmente de medianeira nessas ocasiões. Apressou-se a procurar o tio antes de que ele entrasse no locutório. - Então, vejamos, menina minha sobrinha, que quer dizer esse rosto suplicante? Juno fez mais alguma desgraça? - Não, meu tio, mas é o dono de Juno que receia novos gracejos a respeito do lobo-marinho. Asseguro-Lhe que eles o mortificam muito mais do que está na sua intenção; é uma fraqueza dele, concordo, mas também o senhor tem uma maneira engraçada de meter as pessoas a ridículo... - Bem, minha querida - respondeu Oldbuck, a quem este cumprimento dispunha favoravelmente (1) O povo humilde das ondas. - N. do T. 413 eu vou conter a minha sátira, e se for possível não falo mais em foca. Eu não sou monitoribus asper (1), mas, Deus o sabe, pelo contrário, o mais doce, o mais pacífico, o mais fácil dos humanos, e que irmã, a sobrinha e o sobrinho levam para onde querem. Depois deste pequeno elogio à sua docilidade, Oldbuck entrou no locutório e propôs a seu sobrinho um passeio a Mussel Craig. - Tenho umas perguntas a fazer a uma mulher na choupana de Mucklebackit ajuntou ele -e gostaria de ter comigo uma testemunha de bom-senso. Assim, à falta de melhor, Heitor, tenho de me contentar contigo. - O velho Edie, ou Caxon, não poderiam ocupar melhor o meu lugar? -respondeu Mac Intyre, a quem a perspectiva de uma longa conversa com seu tio alarmava um pouco. - Palavra, jovem, que me indicas bons companheiros, e estou-te muito grato pela delicadeza - replicou Oldbuck -Não, senhor, levarei comigo o velho roupão azul, não como testemunha competente, visto que ele agora, como o disse o nosso amigo bailio Little John (Deus abençoe a sua ciência! tanquam suspectus (2), mas tu serás suspicione major (3), como o exige a lei. - Bem desejaria ser major - disse Heitor, não se detendo senão na última palavra da frase, como sendo a que naturalmente devia despertar mais a atenção do jovem militar-mas sem dinheiro e sem crédito não há esperança de subir de posto. - Não importa, valente filho de Priam - disse o Antiquário - deixa-te dirigir pelos teus amigos e não desesperes. Vem comigo, entretanto; assistirás a um interrogatório que poderá ser-te útil, se algum dia te suceder ocupares lugar num tribunal marcial. - Já participei de mais de um conselho de guerra no nosso regimento respondeu o capitão Mac Intyre Mas, tio, aqui tem uma bengala nova que eu lhe peço para aceitar. (1) Rebelde aos conselhos. - N. do T. (2) Como suspeito. - N. do T. (3) Acima de suspeita. - N. do T. 414 - Muito obrigado, muito obrigado. - Comprei-a ao nosso tambor-mor, que entrou no nosso regimento depois de
ter pertencido ao exército de Bengala, quando regressou ao longo do mar Roxo; asseguro-lhe que foi cortada nas margens do Ganges. - Palavra que é um belo bambu e que substitui bem a bengala que a fo... diabo, que ia eu dizer? Acompanhado de seu sobrinho e do mendigo, o Antiquário tomou o caminho de Mussel Craig, pelo areal. Ia na melhor disposição do mundo a comunicar as suas luzes aos companheiros, e o militar, sob a impressão das bondades passadas de seu tio, e não sem esperança de alguns novos favores, escutava-o com uma atenção muito decente. Tio e sobrinho marchavam juntos, o mendigo a um ou dois passos à retaguarda, e bastante perto para que o seu patrão pudesse falar-Lhe inclinando ligeiramente a cabeça sem ter a maçada de se voltar por completo. Petrie, no seu Ensaio sobre a boa educação, dedicado aos magistrados de Edimburgo, segundo a sua própria experiência como preceptor de uma família distinta, recomenda esta atitude a todos os homens de alta categoria e aos preceptores dependentes e inferiores de todos os géneros. Assim escoltado, o Antiquário prosseguiu o caminho, todo cheio da importância do seu saber, e voltandose ora para bombordo ora para estibordo, para atirar uma descarga aos companheiros. - Julgas então - disse ele ao mendigo - que aquele achado, aquela arca auri, segundo Plauto, não ajudará muito sir Arthur nas suas necessidades. - Seria preciso que ele pudesse encontrar dez vezes mais - disse o mendigo - e é do que eu duvido muito. Ouvi falar disso a Puggie e àquele outro pobre oficial do xerife, e as coisas vão mal quando pessoas da sua espécie podem falar tão cruamente dos negócios de um gentleman. Receio muito que sir Arthur seja em breve metido entre quatro paredes por dívidas, a não ser que obtenha um socorro rápido e sólido. - Falas como um ignorante - replicou o Antiquário - Meu sobrinho, é coisa notável neste venturoso país que um homem nunca possa ser legalmente preso por dívidas. - Isso é verdade, senhor? - disse Mac Intyre - Eu 415 duvido. Essa parte das nossas leis conviria muito a alguns dos nossos oficiais. - Se não os prendem por dívidas - observou Ochiltree - o que é que pode obrigar tantas pobres pessoas a ficar na prisão de Fairport? Todos dizem que foram lá metidas pelos seus credores. com a breca, se lá ficam voluntariamente, é porque ali se divertem muito mais do que eu. - Essa tua observação é muito natural, Edie, e vários dos teus superiores já a fizeram, mas funda-se unicamente na ignorância do sistema feudal. Heitor, tem a bondade de me escutar, a não ser que estejas à procura de uma outra... Hem -. Entendes-me? - compreendendo a alusão, Heitor esforçou-se por lhe dar toda a atenção - E tu, Edie, isto pode ser útil, rerum cognoscere causas. A natureza e a origem de um mandado de captura é uma coisa haud alienum a Scaevolae studiis (1) Fica sabendo mais uma vez que ninguém pode ser detido por dívidas na Escócia. - Não estou muito interessado nisso, Monkbarns, porque ninguém desejaria dar crédito de um óbolo a um mendigo. - Silêncio, homenzinho! No entanto, como seria precisa uma compulsão ao pagamento, à qual o devedor tivesse natural repugnância, segundo tive ocasião de me convencer por minha própria experiência, temos cartas de quatro formas: primeiro, num convite delicado pelo qual, em nome do nosso soberano e senhor rei, que se interessa, como o deve fazer um monarca, pela regularidade dos negócios dos seus súbditos, empregam-se de início
exortações indulgentes; em seguida, vêm cartas contendo convites expressos, intimações mais rigorosas... Que estás a ver de extraordinário nesse pássaro, Heitor? Não passa de uma gaivota. - É um pica-peixe, senhor - disse Edie. - Bem, que seja; que tem isso que ver agora? Mas, como vejo que estás impaciente, ponho de parte as cartas em quatro formas, e chego ao processo moderno da diligência. Supões agora que um homem é metido na prisão por não poder pagar a sua dívida? Nada disso: (1) Coisa não estranha aos estudos de Cévola. - N. do T. 416 a verdade é que é o rei, que tem a bondade de intervir a pedido de um credor, e de enviar ao devedor a sua ordem real de a liquidar num certo espaço de tempo, quinze dias, por exemplo, ou seis meses, mais ou menos, conforme os casos. Bem, se o homem resistir e desobedecer, que sucede? É legal e formalmente declarado rebelde para com o nosso gracioso soberano, às ordens do qual desobedeceu, e isto por três vezes, ao som da trompa, e na praça do mercado de Edimburgo, capital da Escócia. Em seguida, é legalmente encarcerado, não por causa da sua dívida civil, mas pelo seu menosprezo pelo mandato real. Que dizes a isto, Heitor? está alguma coisa de novo para ti. - Não, meu tio; mas se eu não tiver dinheiro para pagar as minhas dívidas, ficarei mais grato ao rei por me demitir do que me declarar rebelde por causa da minha impossibilidade de obedecer. - A tua educação não te tornou apto a reflectir sobre estas matérias disse seu tio - És incapaz de apreciar a delicadeza desta lei engenhosa e a maneira como ela sabe conciliar o rigor, que para protecção do comércio se é obrigado a exercer sobre os devedores refractários, com o mais escrupuloso respeito pela liberdade individual. - Eu não sei -replicou o sobrinho, cujas luzes não se estendiam tão longe - mas se um homem tem de pagar a sua dívida ou ir para a prisão, pouco importa, parece-me, que lá seja conduzido como rebelde ou como devedor. Mas o senhor diz que a ordem do rei concede um prazo de alguns dias; palavra, se eu estivesse num aperto, batia em retirada, e deixaria o rei e o credor arranjarem-se entre eles, antes de chegar a essa extremidade. - E eu também -disse Edie - dar-lhes-ia a caução das minhas pernas. - Isso era bom - disse Monkbarns - mas com aqueles que a lei supõe quererem subtrair-se assim às suas decisões, procede por meios mais expeditos e menos cerimoniosos, e trata-os como pessoas indignas da sua indulgência e da sua paciência. - Compreendo isso - declarou Edie - É sem dúvida o que se chama mandatos de fuga; sei alguma coisa disso. No sul também são mandatos; são providências bastante violentas. Fui detido uma vez na 417 feira de Saint James e encerrado na igreja de Kelso, um dia e uma noite; asseguro-lhes que era um local muito sombrio e muito frio. Mas quem é aquela mulher com um cesto às costas? É a pobre Maggie, creio -eu. Era ela, com efeito. Se o sentimento da perda que tivera não se atenuara nesta mulher, era pelo menos combatido pela necessidade de ocupar-se dos meios de alimentar a família; e cumprimentou Oldbuck num tom em que estranhamente se mesclavam as solicitações prementes que tinha por hábito dirigir aos clientes e as lamentações que lhe arrancava a infelicidade recente. - Como passa hoje, Monkbarns? Ainda não tive coragem de ir agradecer a
Vossa Honra o favor que fez ao pobre Steenie de ir à frente até a sua sepultura; pobre filho! - aqui, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, e limpou-as com uma ponta do seu avental azul -No entanto, a pesca não foi muito má, embora o meu homem ainda não tivesse coragem de voltar ao mar... Tive vontade de lhe dizer que lhe faria bem meter mãos à obra, mas quase receio falar-lhe; e é bem singular ouvir uma de nós dizer isto a propósito de um homem. Não faz mal, tenho hoje pescadinhas excelentes, e dava-as por três xelíns a dúzia, porque não sinto disposição para vender bem: tenho de aceitar o que alguma boa alma me oferecer, sem negociar nem discutir. - Que havemos de fazer, Heitor? - perguntou Oldbuck, detendo-se - Caí em desgraça, um dia, perante as minhas fêmeas devido a um mau negócio de peixe que me atrevi a fazer; estes animais marítimos, Heitor, trazem desgraça à nossa família. - Ora! Que queria o senhor fazer? Dê à pobre Maggie o que ela lhe pede, ou permita-me enviar hoje um prato de peixe a Monkbarns. E apresentou-lhe o dinheiro; Maggie retirou a mão. - Não, não, senhor capitão, vê-se que o senhor é muito novo e desperdiça o seu dinheiro... Nunca se deve concluir um negócio de peixe à primeira palavra; penso que o melhor que tenho a fazer é ir procurar a velha despenseira a Monkbarns, e talvez Miss Grizel também me dê alguma coisa... Não desgostarei de ver também o que é feito de Jenny Rintherout. 418 É uma criatura muito sensível; disseram-me que estava doente. Pobre louca! Deve estar acabrunhada por causa de Steenie, como se o meu pobre rapaz tivesse voltado a cabeça para ver uma rapariga como ela... Vamos, Monkbarns, o senhor pode ter a certeza de comer boas pescadinhas, embora não me dêem grande coisa em sua casa, e vou ver se precisam de croppitheads (1) hoje. Retomou a marcha com a sua carga, os pensamentos partilhados entre a dor e o reconhecimento pela compaixão que os superiores lhe testemunhavam, e aquele amor ao negócio e ao lucro, inerente à profissão que exercia. - Agora, que estamos diante da porta da choupana - disse o mendigo - desejaria saber, Monkbarns, porque vem a aturar-me todo este tempo. Digo-lhe francamente que não tenho prazer algum em lá ir. Não gosto do que me lembre que vi a mocidade cair a meu lado, e que fiquei só como um velho tronco inútil que apenas conservou uma folha verde. - A velha avó - disse Oldbuck - mandou-te levar uma mensagem ao conde de Glenallan, não é verdade? - Ah, sim! - replicou o mendigo, surpreendido Como chegou o senhor a saber isso? - O próprio lorde Glenallan mo disse - respondeu o Antiquário - Assim, não há delação, violação de confiança da tua parte; e como ele deseja que eu tome por escrito a sua declaração sobre um importante assunto de família que lhe diz respeito, trouxe-te comigo porque, no estado em que ela está, e com aquele misto de infantilidade e clarões de razão, é possível que a tua voz e o teu aspecto despertem nela uma série de recordações que eu próprio não teria meio de suscitar O espírito humano... Que estás a fazer, Heitor? - Assobio à minha cadela - respondeu o capitão - Afasta-se sempre para muito longe; eu bem sabia que ia ser para si um companheiro importuno. (1) Prato conposto de pescadinhas e farinha de aveia - N. do T. 419 - Nada, absolutamente nada - replicou Oldbuck, continuando a dissertação
- É preciso tratar o espírito humano como uma meada de seda embaraçada, na qual se tem de apanhar cuidadosamente uma ponta antes de se poder esperar desembaraçá-la. - Nada sei a esse respeito - disse o mendigo Mas se ela continuar a ser a minha velha conhecida de outrora, ou que ainda se lhe assemelhe, o que poderá suceder é ela embrulhar-nos a nós. É uma coisa terrível vê-la e ouvi-la, quando começa a agitar os braços e a falar o seu inglês, exactamente como se fosse um livro impresso... Ela pode ser a viúva de um pescador, mas isso não impede que tenha recebido uma grande educação e visse muito mundo antes de se casar, como o fez, um pouco abaixo da sua condição. É mais velha do que eu uns vinte anos, mas recordo-me bem de que se fez tanto barulho na altura do seu casamento desproporcionado com Simão Mucklebackit como se ela pertencesse à classe dos gentlemen. No entanto, reconquistou o prestígio após ter caído em desgraça; depois, voltou a cair ainda, como ouvi dizer a seu filho quando ele ainda era criança. Parece que receberam muito dinheiro quando deixaram as terras da condessa para se instalarem aqui, mas desde então nada lhes saiu bem. De qualquer modo, é uma mulher que sabe muito e, se ela se agarrar ao seu inglês, como já a ouvi fazer; algumas vezes, é possível que nos embarace. 420 XL O curso da vida numa tão extrema velhice é imperceptível e silencioso; foge tão lento como a maré que abandona gradualmente aquele navio encalhado na praia. Ültimamente, ainda balouçava com alegria ao menor impulso que recebia do vento ou das ondas; mas agora a quilha está enferrada na areia, o mastro forma com o céu um ângulo imóvel; cada vaga ao retirar-se agita-o num movimento mais fraco, afé que por fim, sepultado na areia, quedar-se-á inútil e impassível. Comédia Antiga No momento em que o Antiquário levantou a aldrava da porta, teve a surpresa de ouvir a voz aguda e trêmula de Elspeth cantar uma balada num tom queixoso e estranho: O arenque ama o luar; A sarda precisa do vento; De dia gosta a ostra do archote: Sua origem é menos conhecida. Diligente em recolher todos os fragmentos de antigas poesias populares, seus pés detiveram-se no limiar, com o ouvido assim ocupado, e, como que por instinto, levou a mão ao livro de apontamentos e ao lápis. De vez em quando, a velha parecia falar aos seus netos. - Chiu, chiu, meninos; canto-lhes uma que será mais bonita do que a outra... Ora, calem-se, homens e mulheres; Escutem bem, pequenos e grandes: vou celebrar nos meus cantos O ilustre chefe dos Glenallans, Cujo coração valia mil almas Quando combatia nos campos De Harlow, em sangrentas façanhas. 421 O coronach (1) fez-se ouvir nas margens tristes do Don, E da alta montanha ao vale Foi descendo o ruído sinistro. Não me recordo bem dos versos que se seguem: falta-me a memória e a minha mente é perturbada por estranhos pensamentos. Deus nos livre da tentação! Aqui a voz sumiu-se e não se ouviu mais do que um murmúrio confuso. - É uma balada histórica - disse Oldbuck, com vivacidade - Sem dúvida, um fragmento intacto e verdadeiro dos antigos menestreis... Percy admiravalhes a simplicidade... Ritson não lhes podia negar a au tenticidade...
- Sim, mas é uma coisa triste -disse Ochiltree ver a natureza humana reduzida a este grau de enfraquecimento, que a leva a cantar velhas canções semelhantes, depois de uma perda como a que sofreu. - Chiu, chiu! - ordenou o Antiquário - Volta a encontrar o fio da sua história. E enquanto ele falava, a velha recomeçou a cantar: Selaram cem corceis brancos, A cem negros puseram a brida, com um caparão de aço Em cada um dos seus cavalos E um bom cavaleiro em cima do lombo - Caparão! -exclamou o Antiquário - Talvez signifique cheveron; o termo vale um dólar. E continuou a escrever no seu livro vermelho. Galopam uma ou duas milhas Depois Donald vem cair-lhes em cima, Escoltado por vinte mil bravos, Livres, e não vis escravos; Seus mantos flutuam ao vento; Aos raios do sol nascente Brilhava o gládio cintilante, Enquanto a aguda gaita de foles (1) Cântico fúnebre da Escócia. - N. do T. 422 Fazia ouvir de fila em fila Sua harmonia áspera e confusa. O conde sobre os seus estribos Ergueu-se para ver esses guerreiros Chegados do alto das montanhas. - Ah! disse ele para os nossos cavaleiros, Receio um pouco nestas campanhas. Nobre escudeiro, que farias tu Perto do palafrém de teu amo, Se por ele pudesses passar: Se, pelo perigo abatido, Voltasses a brida como traidor? Fugir seria de um covarde, talvez; Combater é correr para a morte: Que farias tu, pois, Roland Cheyne, Se avançasses para o campo, Ocupando o meu lugar e a minha sorte? É preciso que saibam, meus filhos, tão velha e pobre como me vêem, aqui sentada a um canto da chaminé, ele era meu avô; e era um homem terrível em dia de combate, sobretudo depois de que o conde pereceu, porque ele lamentava-se do conselho que lhe dera de combater antes de que o Mar chegasse com Mearns, Aberdeen e Angus. Sua voz tornou-se mais forte e animou-se, ao recitar o conselho bélico de seu avô: Se eu hoje fosse o conde de Glenallan, E o senhor fosse Roland Cheyne, O esporão cravava no flanco do corcel, E sobre as suas crinas, num impulso, Deixaria flutuar a dupla rédea. Que me importam seu número e seus gládios erguidos? Contra nós dês vezes dez avancem à pressa Mas um manto é sua única defesa E nós temos uma armadura de aço. Já meu soberbo corcel Percorreu suas fileiras com aquela segurança Que revela ao trilhar os pauis. sangue que corre nas nossas veias, Longe de se desmentir, clama altos feitos E a esses montanheses escoceses, Esperamo-los nas nossas planícies. 423 - Ouves isto, meu sobrinho? -indagou Oldbuck Como vês, os guerreiros da planície não tinham outrora muito respeito pelos teus antepassados gaélicos. - Eu oiço - disse Heitor - uma velha imbecil cantar uma velha canção que já não tem sentido para ela. Estou verdadeiramente surpreendido por o
senhor, que não queria escutar os cantos de Ossian sobre Selma, poder prestar atenção a uma coisa tão lamentável. Declaro-lhe que nunca ouvi essas baladas que se gritam a um penny e que não valem mais do que esta; o senhor não encontrará uma tão má em nenhum bufarinheiro do país. Eu teria vergonha de pensar que tão míseros versos pudessem sequer atingir a honra dos montanheses. Pronunciou estas palavras, meneando a cabeça num ar de indignação e desdém. A anciã pareceu ter ouvido o som das suas vozes, porque, cessando de cantar, disse em voz alta: - Entrem, entrem, senhores; a boa amizade nunca se detém no limiar da porta. Entraram e, com grande surpresa, encontraram Elspeth só, sentada perto da lareira; o rosto cadavérico era a personificação da velhice, tal como é representada na canção do caçador do mocho, coberto de rugas, descarnado, hediondo, olhos apagados, pele descolorida e em estado de embrutecimento e de torpor, - Sairam - disse ela, quando eles entraram - Mas se quiserem descansar um momento, algum deles vai regressar. Se têm alguma coisa a tratar com minha nora, ou com o meu filho, eles não tardam aí. Eu nunca trato de negócios... Meninos, tragam cadeiras os pequenos saíram, creio eu? -olhando em volta Tentava fazê-los estar quietos um momento, mas escaparam-se sem que me apercebesse. Sentem-se, senhores, eles já voltam. A sua mão abandonou então o fuso, fê-lo rolar pelo chão, e em breve dirse-ia exclusivamente ocupada em regular o movimento, tão indiferente à categoria dos estranhos como ao assunto que os podia trazer, e parecendo mesmo não se aperceber da sua presença. - Desejaria - disse Oldbuck - que ela retomasse o canto e acabasse aquele antigo romance histórico. 424 O Sempre suspeitei de que houvera uma escaramuça de cavalaria antes da verdadeira batalha de Harlaw. - Se não agrada mais a Vossa Honra - disse Edie i-ocupar-se do assunto que nos traz aqui, comprometo-me a obter esse romance outro dia qualquer. - Creio que tens razão, Edie: do manus. Submeto-me. Mas como havemos de proceder? Ei-la diante de nós, patenteando a imagem completa da imbecilidade. Fala-lhe, Edie. Vê se podes recordar-lhe que te mandou ao castelo de Glenallan. Edie levantou-se e, atravessando o compartimento, colocou-se na mesma posição que ocupara durante a sua primeira conversa com ela. - Tenho muito prazer em vê-la de tão boa saúde, comadre, tanto mais que a infelicidade a visitou depois de eu ter estado sob o seu tecto. - Sim - disse Elspeth, mas mais segundo uma ideia geral de desventura do que pela recordação exacta do que lhe acontecera - Houve aflições entre nós, há pouco tempo. Não sei como os que são mais jovens as suportam. Não posso ouvir assobiar o vento ou mugir o mar que não julgue ver o barco ir ao fundo e algum dos nossos debater-se contra as vagas! Ah, senhores! que sonhos fatigantes se têm nesta dormência que não é vigília nem sono, e antes de se adormecer por completo nesse longo sono que nunca mais é interrompido. Às vezes, quase chego a julgar que o meu filho ou o meu neto Steenie morreu, e que vi o seu funeral. Não é um estranho sonho para uma velha criatura como eu? Que esquisito que algum deles morresse antes de mim... Não está no curso da natureza, como sabem. - Eu creio que o senhor não tirará grande coisa desta velha imbecil -
disse Heitor, que talvez nutrisse contra ela alguma aversão por causa do desprezo com que o seu romance tratava os seus compatriotas - Creio que tirarão muito pouca coisa, senhores, e que é perder o nosso tempo ficar aqui a escutar os seus desatinos. - Heitor - disse o Antiquário, com indignação - se não respeitas os seus infortúnios, respeita ao menos a sua idade e os cabelos brancos. É o último período da existência, tão bem descrito pelo poeta latino: 425 Membrorum áamno major àementia, quep. nec Nomina servorum, nec vulíus agnoscit amici Cum quo prseterita cnenavit nocte, nec illos Quos genuit, quos eduxit (1). - É latim -disse Elspeth, animando-se e parecendo escutar os versos que o Antiquário declamava com muita ênfase -É latim! -e relanceando um olhar assustado - Então, existe aqui um padre? - Vê, meu sobrinho, que a sua compreensão relativamente a este belo passo é quase igual à tua. - Espero, senhor, que me concederá o ter compreendido tão bem como ela que era latim? - Palavra, quanto a isso... Mas vejamos, ela vai falar. - Não quero padre, não quero - repetiu a velha, com uma violência impotente - Quero morrer como vivi. Nenhum poderá dizer que traí a minha ama, nem que fosse para salvar a minha alma. - Eis que mostra uma má consciência - disse o mendigo - Gostaria que ela aliviasse o coração, nem que fosse para seu próprio repouso. E voltou a assediá-la. - Pois bem, boa comadre, levei a sua mensagem ao conde. - A qual conde? Eu não conheço condes. Conheci outrora uma condessa, e Deus quisesse que eu nunca a tivesse visto, porque esse conhecimento trouxe-me - parecia contar pelos dedos, enquanto falava - primeiro o orgulho, depois a maldade, depois a vingança, depois o falso testemunho; e o assassínio, embora não tivesse entrado, seguiu-os, no entanto, até à porta. Não eram hóspedes agradáveis para virem alojar-se no coração de uma mulher? Palavra, não lhes faltava companhia. - Mas, comadre - continuou o mendigo - não era (1) Demência mais fatal ainda que a fraqueza, quando leva a esquecer os nomes dos seus servidores, o rosto de um amigo com quem ela ceou, e não reconhecer aqueles que gerou, nem os que educou. - N. do T. 426 da condessa de Glenallan que lhe queria falar, mas do filho que se chama lorde Geraldin. - Recordo-me agora - disse ela - Não o vi durante muito tempo, e tivemos pela última vez uma grande conversa. Ah, meu Deus! O jovem e belo senhor tornou-se tão velho e tão alquebrado como eu. O desgosto, as penas de coração, e a oposição que se atravessa num amor sincero, tudo isso exerce um terrível efeito sobre a gente nova; mas isso nada valia para sua mãe? Nós não estávamos lá senão para lhe obedecer, como sabem. Ninguém, tenho a certeza, me pode censurar. Um não era meu filho, a outra era minha patroa. Sabem o que diz a trova; quase esqueci como se canta agora, ou então esta ária saiu da minha velha cabeça: Não desprezemos nossa mãe: Posso reencontrar amores; Mas uma mãe no caixão,
Ai! Está perdida para sempre. Depois, ele não pertencia senão por metade à família, e ela era, afinal, ela era o sangue puro dos Glenallans. Não, não, não devo lamentar o que fiz e o que sofri pela condessa Jocelin; não, não o lamento. - Ouvi dizer - prosseguiu o mendigo, regulando-se pelo que Oldbuck lhe dissera da família de Glenallan - ouvi dizer, comadre, que uma má língua se metera nos assuntos de lorde Geraldin e sua noiva. - Uma má língua? - repetiu ela vivamente, num ar alarmado - Que tinha ela a recear de uma má língua? Ela era bastante bondosa e bastante bela para nada recear; pelo menos, era o que toda a gente dizia: ah, se ela própria se abstivesse de exercer a sua língua sobre outras pessoas, ainda hoje poderia viver, feliz e grande dama, apesar de tudo! - Mas ouvi dizer, boa comadre - continuou Ochiltree - que se espalhara o boato pelo país de que eles eram demasiado próximos parentes para se casarem. - Quem ousa falar disso? - pronunciou a velha, bruscamente - Quem ousa dizer que eles eram casados? Quem sabe alguma coisa disso? Não foi a condessa, nem eu. Se se casaram secretamente, separaram-se. Beberam a taça de impostura que prepararam. 427 - Não, velha miserável! -exclamou Oldbuck, que não pôde guardar silêncio por mais tempo - Beberam o veneno que tu e a tua criminosa patroa prepararam! - Ah! Ah! - replicou a velha - Sempre pensei que chegaríamos a isso; mas eu não tenho senão de guardar silêncio quando nos interrogarem. Já não há tortura nos nossos tempos; e se houvesse, que me despedaçassem se quisessem, não seria a boca do vassalo que trairia aquele de quem comeu o pão. - Fala-lhe, Edie -disse o Antiquário - ela conhece a tua voz e respondete melhor. - Não tiraremos mais nada - replicou Ochiltree porque quando ela se põe, assim, de braços cruzados, dizem que está muitas vezes semanas inteiras sem falar. Aliás, parece-me notar-lhe uma grande mudança nas feições, desde que entrámos. No entanto, ainda vou tentar, para satisfazer Vossa Honra. - Assim, pois, comadre, não pode convencer-se de que sua antiga ama, a condessa de Glenallan, tenha abalado deste mundo? - Abalado! - exclamou ela, porque o nome da condessa nunca deixava de produzir efeito sobre ela Então devemos todos segui-la, é preciso que toda a gente esteja a cavalo quando ela estiver sobre a sela. Diga-lhes que advirtam lorde Geraldin que nós vamos à frente. Tragam-me a touca e o véu: não julguem que vou subir para a carruagem com milady, com os cabelos nesta desordem. Ergueu os braços descarnados e fez o movimento de uma mulher que ajeita o seu manto no momento de sair, depois deixou-os recair lentamente e com rigidez; e com esta mesma ideia de viagem a flutuar sempre na sua mente, continuou num tom breve e entrecortado: - Chamem Miss Neville. Que querem dizer com a vossa lady Geraldin? Eveline Neville, digo eu, e não lady Geraldin; não há lady Geraldin; digam-lhe bem isso e recomendem-lhe que mude as suas roupas molhadas e não mostre o rosto tão pálido. Quem fala de um filho? Que faria ela de um filho? As meninas não os têm, espero eu. Teresa, Teresa, milady chamanos; traga uma luz, a escadaria nobre está tão escura como uma noite de
Inverno... Já vou, já vou, milady! 428 Ao terminar estas palavras, revolveu-se na cadeira e caiu no chão. Edie correu para a segurar, mas, mal a sentiu nos braços, disse: - Acabou tudo! Foi-se, ao pronunciar a última palavra. - É impossível! -exclamou Oldbuck, que avançara à pressa, bem como seu sobrinho. Mas nada era mais verdadeiro. Ela expirara com a última palavra que a sua boca proferira, e diante deles nada mais restava senão os despejos mortais de uma criatura que por muito tempo lutara contra o remorso secreto de um crime oculto, junto a todos os males da velhice e da pobreza. - Deus queira que ela tenha ido para um lugar, mais tranquilo - disse Edie, olhando o corpo inanimado - Oh! Alguma coisa devia pesar-lhe muito terrivelmente no coração; já vi morrer muita gente, tanto no campo de batalha como no seu leito, mas nunca testemunhei uma morte tão aterradora como a sua. - É preciso chamar os vizinhos - disse Oldbuck, quando se refez um pouco do seu espanto e horror - e anunciar-lhes este acréscimo de desventura. Lamento que não se pudesse levá-la a uma confissão; e, embora isto seja uma coisa menos importante, gostaria de ter transcrito aquele fragmento de poesia: mas seja feita a vontade de Deus! Abandonaram, pois, a choupana e difundiram aquela notícia pela aldeia, cujas matronas se apressaram a acorrer para compor os membros e velar o corpo daquela que poderia considerar-se a veterana da comunidade. Oldbuck prometeu assistir ao funeral. - Vossa Honra - disse Alison Breck, que era a mais idosa depois da falecida - devia enviar-nos alguma coisa para nos sustentar durante a velada fúnebre, porque toda a genebra do pobre Saunders se bebeu nos funerais de Steenie, e não se encontrará muita gente que queira ficar junto do corpo, de garganta seca. Elspeth era uma sábia no tempo da sua juventude, mas houve sempre estranhas suspeitas a seu respeito. Não se deve falar mal do próximo, e ainda menos de uma comadre e de uma vizinha. Mas correram boatos singulares acerca de uma jovem dama e de uma criança 429 antes de ela deixar Craigburnfoot, e, palavra, vai ser uma pobre velada a sua, se Vossa Honra não nos enviar alguma coisa para nos agüentar. - Terá whisky - disse Oldbuck - tanto mais que a senhora conservou esse antigo costume de velar os mortos. Repara, Heitor, que a origem desta palavra é puramente teutónica, embora a mudassem e corrompessem nos tempos modernos. "Creio - disse Heitor a si próprio - que meu tio daria o seu domínio de Monkbarns a alguém que lho viesse pedir em autêntico teutónico. É bem certo que estas velhas não obteriam nem uma gota de whisky, se a sua velha presidente não a pedisse para manter este antigo costume. " Enquanto Oldbuck dava outras ordens e prometia a assistência, um criado de sir Arthur chegou a todo o galope pelo areal e deteve o cavalo, ao ver o Antiquário. Coisas muito sérias - disse ele - acabavam de passar-se no castelo; não podia ou não queria dizer de que género, e Miss Wardour mandara-o a Monkbarns pedir a Mr. Oldbuck que fosse procurá-lo sem demora. - Tenho medo - disse o Antiquário - de que as coisas tenham chegado à
última extremidade! Que hei-de fazer? - Não há senão um partido a tomar, senhor! exclamou Heitor, com a impaciência que o caracterizava - Monte a cavalo, volte a brida para o lado de Knockwinnock, e estará no castelo em dez minutos. - É um cavalo muito bom, senhor - disse o criado, apeando-se e ajustando a silha e os estribosi - só escouceia um pouco quando sente o peso do cavaleiro. - E não tardaria em desembaraçar-se, deitando-me a terra - acrescentou o Antiquário - Que diabo, meu sobrinho, estás farto de mim, ou supões que eu o esteja da vida, para quereres fazer-me trepar ao lombo de semelhante Bucéfalo? Não, não, meu amigo; se tiver de ir hoje a Knockwinnock, será simplesmente nas minhas pernas, o que vou tentar fazer o mais rapidamente possível; o capitão Mac Intyre pode montar esse cavalo, se quiser. - Não tenho esperança de lhes ser útil, meu tio, mas não posso pensar na sua infelicidade sem desejar mostrar-lhe a parte que tomo nela; assim, vou partir 430 à frente e anunciar-lhes a sua chegada... Posso pedir-Lhe as suas esporas, meu amigo? - Não precisa delas, meu senhor - respondeu o criado, tirando-as e ajustando-as às botas do capitão Mac Intyre - Ele tem uma andadura bastante franca. Oldbuck ficou confundido com este último rasgo de temeridade. - Estás louco, Heitor! - exclamou ele - Ou esqueceste o que é dito por Quintus Curtius, que, na qualidade de soldado, devias ao menos conhecer, Nobilis eguus umbra quidim virgee regilur; ignavus ne calcari quiáem excitari potesi? (1) O que demonstra claramente que as esporas são sempre inúteis, e ajuntarei, a maior parte das vezes perigosas. Mas Heitor, que, em tal assunto, não se preocupava nada com a opinião de Quintus Curtius, nem mesmo com a do Antiquário, respondeu estouvadamente: Àquelas palavras, larga a brida ao seu corcel, E a espora sangrenta logo o aguilhoa; Como um intrépido guerreiro, Devora o caminho e não escuta ninguém. - Ei-los que partem e, palavra, formam um bom par - disse Oldbuck, vendoos correr - Um cavalo fogoso e um jovem louco, as duas criaturas mais indomáveis da cristandade! E tudo isto para chegar meia hora mais cedo ao sítio onde ninguém precisa dele, porque duvido da que o nosso estouvado cavaleiro possa fazer alguma coisa às dificuldades de sir Arthur. Aquilo deve ser resultado da patifaria de Dousterswivel, por quem sir Arthur tanto fez, e não posso deixar de notar aqui que a máxima de Tácito pode aplicar-se a algumas índoles: Beneficia co usque lesta sunt, dum viãentur exsolvi poste; ubi multum anlevenere, pró graíia adiam reãditur (1); de onde um homem sensato (1) Basta a sombra de uma vara para guiar um nobre corcel; o cavalo preguiçoso, nem mesmo com espora se pode pôr a galope. - N. do T. (2) Recebem-se com prazer os benefícios enquanto se julga poder pagá-los; mas quando ultrapassem a medida, o ódio sucede à gratidão. - N. do T. 431 fica advertido para não favorecer outro para além dos meios de que ele dispõe para se desobrigar, evitando que o seu devedor faça também bancarrota do reconhecimento. Recitando para ele próprio sentenças semelhantes de filosofia cínica, o nosso Antiquário continuava a marchar ao longo da praia para o castelo de Knockwinnock. Mas temos que ultrapassá-lo para explicar os motivos que faziam com que se desejasse tão impacientemente a sua presença.
XLI Assim, quando a galinha de que nos fala a fábula estava a chocar os seus ovos de ouro, o cruel rapaz, impaciente por destruí-la, deslizou para junto do ninho solitário, agarrou-a com mão ávida e bárbara, e em breve das suas visões douradas não restava mais do que uma ave moribunda cujas asas palpitantes cessam de debater-se e cujo derradeiro grilo se faz ouvir. Os Amores das Plantas Marinhas
Depois de sir Arthur Wardour se tornar possuidor do tesouro descoberto no túmulo de Misticot, o estado do seu espírito pareceu ter mais de êxtase que de senso comum. Por mais de uma vez, sua filha receou seriamente que ele perdesse a cabeça; porque, plenamente convencido de que detinha o meio de assegurar a posse de riquezas sem limites, a sua linguagem e procedimento eram os de um homem que encontrou a pedra filosofal. Falou em adquirir as propriedades vizinhas das suas, que o conduziriam de uma ponta à outra da ilha, como se ele resolvesse não poder suportar outra vizinhança senão o mar. Escrevera a um arquitecto célebre, sobre o projecto que havia de fazer reconstruir o castelo dos seus antepassados sobre um plano cuja magnificência rivalizaria com o de Windsor, e propunha-se mandar desenhar o parque de maneira que lhe correspondesse. Já via em imaginação os vestíbulos repletos de uma turba de 432 lacaios de libré, etc. pois a que não pode aspirar o possuidor de riquezas ilimitadas? A coroa de um marquês ou mesmo de um duque já cintilava diante dos seus olhos. A que partidos sua filha não poderia aspirar? Uma aliança com o sangue real não estava fora das suas esperanças; seu filho já era general e, quanto a ele, tornava-se tudo o que os sonhos extravagantes da ambição lhe podiam sugerir. Nesta disposição, se alguém tentava trazer sir Arthur às realidades da vida, ele respondia pouco mais ou menos como o velho Pistol: Pouco me importa o mundo e seus vis habitantes: Falo da África e de todos os seus presentes. O leitor pode conceber qual fora o espanto de Miss Wardour, quando, em lugar de ser interrogada sobre as suas relações com Lovel, como ela esperara depois da longa conferência que o pai tivera com Mr. Oldbuck, na manhã do dia memorável em que o tesouro fora descoberto, a conversa de sir Arthur lhe revelou uma imaginação exaltada pela esperança de possuir riquezas inesgotáveis. Mas ela alarmou-se seriamente quando, no dia seguinte de manhã, seu pai mandou procurar Dousterswivel, se fechou com ele, consolou-o do seu desastre, tomou o seu partido e indemnizou-o da sua perda. Todas as suspeitas que aquele homem lhe inspirava, havia muito tempo, se fortificaram ao vê-lo alimentar as brilhantes quimeras do pai e, sob diversos pretextos, atrair às suas mãos tudo o que pôde do tesouro que tão estranhamente a sorte proporcionara a sir Arthur. Outros sintomas assustadores se sucederam rapidamente uns aos outros. Cada correio trazia cartas que sir Arthur, depois de ver o endereço, se apressava a atirar ao lume, sem se dar ao trabalho de as abrir. Miss Wardour não podia deixar de suspeitar de que aquelas epístolas, das quais seu pai, como por instinto, parecia adivinhar o conteúdo, vinham de credores impacientes. Durante esse tempo, o tesouro temporário que o achado lhe proporcionara escoara-se rapidamente. A maior parte fora absorvida pela necessidade de pagar aquela letra de câmbio de seiscentas
libras esterlinas que ameaçava sir Arthur de ruína imediata. 433 Uma parte do resto fora dada ao alemão, outra esbanjada em despesas loucas que o pobre baronnet julgava plenamente autorizadas pelas esperanças de realização das que imaginava vir a receber. Uma pequena parte também servira para fechar a boca àqueles impertinentes que, cansados de belas promessas, se tornaram da opinião de Harpagão, que era preciso que elas fossem acompanhadas de alguma coisa de substancial. Enfim, as circunstâncias provaram demasiado claramente que dois ou três dias depois da descoberta já não tinha qualquer perspectiva de socorro pecuniário. Sir Arthur, naturalmente impaciente, começou a censurar de novo Dousterswivel por faltar àquelas promessas que lhe fizera de que todo o seu chumbo se converteria em ouro. Mas aquele digno gentleman já estava servido e, tendo bastante pudor para não ser testemunha da queda de quem ele arruinara, fez algumas despesas em obras para tranquilizar sir Arthur e para que este não se atormentasse antes de tempo. Em seguida, despediuse dele, prometendo-lhe voltar no dia imediato a Knockwinnock com novidades que tirariam para sempre sir Arthur da sua aflição. - Porque, desde que estudo este génerro de negócios - disse Mr. Herman Dousterswivel - nunca estive tão perto do arcano que se chama o grrande mistérrio de Panchresta, ou Polychresta... Sei tanto como Pelaso de Taranta ou Basilius, dentrro de dois ou trrês dias hei-de trrazer-lhe o númerro trrês de Mr. Misbigot ou Mishdigoat, de contrárrio, dou-lhe licença que me chame ladrão e que nunca mais olhe para a minha carra em sua vida. O alemão abalou depois de ter dado esta garantia, na intenção de manter pelo menos a última parte, nunca mais se apresentando diante do seu patrão tão ofendido. Sir Arthur ficou entregue à inquietação e à dúvida. Os protestos positivos do charlatão, com as temíveis palavras de Panchresta, Basilius e outras, produziam algum efeito no seu espírito, mas ele fora enganado vezes em demasia com aquele calão para depositar uma confiança absoluta. Retirou-se essa noite para a sua biblioteca num estado de agitação de alguém que, suspenso à beira de um precipício e sem meio de lhe escapar, sente a pedra em que se apoia 434 desprender-se gradualmente do resto do rochedo e prestes a despenhar-se sob os seus pés. Os sonhos da esperança dissiparam-se, e ele sentiu crescer em proporção aquela angústia dilacerante com a qual um homem criado na opulência e no sentimento da sua categoria, sustentáculo de um nome ilustre e pai de dois filhos que anunciavam um tão belo futuro, pode ver aproximar o momento que vai privá-lo de todo o seu esplendor, que o hábito lhe tornou necessário, e condená-lo a lutar sozinho no mundo contra a pobreza e o desprezo. Presa desta perspectiva sinistra, o seu carácter, alterado pelo desgosto de ver as suas esperanças constantemente iludidas, tornou-se irritável e melancólico, e as suas palavras como as suas acções exprimiam muitas vezes a inconsciência do desespero. Já vimos em circunstâncias precedentes que sir Arthur tinha paixões vivas e violentas, tanto quanto sob outros aspectos era fraco de carácter. Estava pouco habituado à contradição e, se até então parecera alegre e fácil, era porque provavelmente o decurso da vida não lhe oferecera contrariedades capazes de tornar habitual a sua irritabilidade. Na manhã do terceiro dia depois da abalada de Dousterswivel, o criado
colocou como de costume em cima da mesa do almoço os jornais e as cartas que o correio trouxera. Miss Wardour apoderou-se dos primeiros, evitando parecer notar o mau humor constante de seu pai, que se encolerizara violentamente porque as torradas estavam muito queimadas. - Estou a ver o que é -disse ele, em conclusão do seu discurso sobre este importante assunto - Os meus criados, depois de terem partilhado da minha fortuna, começam a pensar que nunca mais de futuro poderão enriquecer tanto à minha custa; mas enquanto eu for o amo destes patifes não lhes perdoarei a menor negligência; não suportarei que eles se des leixem no respeito que tenho o direito de exigir deles. - Estou pronto a deixar agora mesmo o serviço de Vossa Honra - disse o criado a quem aquela falta era censurada - logo que ordene o pagamento dos meus salários. Sir Arthur estremeceu como se fosse picado por um dardo de serpente; meteu a mão no bolso, tirou 435 todo o dinheiro que ele continha, mas que era insuficiente para satisfazer aquele homem. - Tens dinheiro contigo? - perguntou ele a Miss Wardour com uma calma afectada, e que mal disfarçava uma violenta excitação. Miss Wardour deu-lhe a sua bolsa. Ele tentou contar as notas que continha, mas não pôde chegar ao fim. Depois de se ter enganado duas vezes na contagem, atirou tudo a sua filha e disse-lhe em voz severa: - Paga a esse patife, e que saia imediatamente da minha casa. Depois de assim falar, retirou-se da sala. A jovem patroa e o criado ficaram igualmente confusos com a violência e a excitação a que ele acabava de se entregar. - Asseguro-lhe, minha senhora - disse o homem que se eu julgasse estar em erro quando sir Arthur me censurou, não me permitiria responder-lhe. Estive muito tempo ao seu serviço, e ele foi sempre bom patrão, e a senhora uma excelente ama, e não gostaria que me julgassem capaz de os deixar por uma vivacidade... Lamento ter falado nos meus salários, e concordo que foi muito mal da minha parte fazê-lo num momento em que sir Arthur talvez tivesse alguma coisa que o atormentasse... Ser-me-ia cruel deixar desta maneira o serviço da família. - Vá lá para baixo, Roberto - disse-lhe sua ama deve ter sucedido alguma coisa a meu pai para se irritar: fique lá em baixo, e Alick que responda à campainha. Quando o criado deixou o aposento, sir Arthur entrou, como se não tivesse esperado senão a sua saída. - Que significa isto? -perguntou ele bruscamente, ao ver o dinheiro que ficara em cima da mesa - Ele ainda não partiu? Não posso, então, fazer-me obedecer nem como amo, nem como pai? - Foi fazer as suas contas com a despenseira, senhor... Não julguei que houvesse assim tanta pressa... - Muita pressa, Miss Wardour - respondeu seu pai, interrompendo-a - O que me resta fazer na casa de meus pais deve realizar-se agora, ou nunca... 436 Sentou-se em seguida e tomou a chávena de chá que estava preparada para ele, demorando a engoli-lo, como que para retardar, ao mesmo tempo a necessidade de abrir as cartas colocadas em cima da mesa, e às quais lançava um olhar, de vez em quando. Dir-se-ia que via um ninho de víboras prontas a animar-se e a lançar-se sobre ele. - O senhor deve gostar de saber - anunciou Miss Wardour, tentando
arrancar seu pai às sombrias reflexões em que mergulhara - deve gostar de saber que o brigue do tenente Taffril entrou sem acidente na enseada de Leith. Acabo de saber que houve receios acerca da sua sorte. Estou muito satisfeita por não ter sabido nada, antes de que essas notícias fossem desmentidas. - E que me interessa a mim Taffril e o seu brigue? - Senhor! - exclamou Miss Wardour, assombrada; porque sir Arthur, no seu normal, tomava uma espécie de interesse e curiosidade pelos mexericos do dia e por todas as pequenas notícias do país. - Eu disse - repetiu ele, num tom ainda mais impaciente e mais irritado que pouco me importa que se salvasse ou se perdesse. Que me pode isso interessar? - Não sabia que se preocupava com outra coisa, sir Arthur, e como Mr. Taffril é um bravo oficial e um compatriota, pensei que o senhor gostaria de saber... - Oh! Tenho muito gosto, encantado; e para te encantar por minha vez, vou dar-te as minhas boas notícias - E pegando numa carta, disse - Pouco importa a que vou abrir... São todas no mesmo tom. Quebrou o lacre à pressa, percorreu-a com a vista e atirou-a a sua filha. - Justamente! - exclamou ele - Não podia cair melhor. Isto prepara o resto. Num silencioso terror, Miss Wardour pegou na carta. - Lê-a, lê-a de alto - disse seu pai - Por vezes, não se entende muito bem; aliás, servirá para te preparar para outras boas notícias do mesmo género, Ela começou a ler, em voz entrecortada: "Caro senhor". - Trata-me assim por caro senhor, esse desavergonhado 437 criado de procurador, que, há um ano, ainda não tinha categoria para sentar-se à mesa dos meus criados; em breve, presumo eu, chamar-me-á "caro cavaleiro". - "Caro senhor" - repetiu Miss Wardour; depois, interrompendo-se - Mas, senhor - disse ela - vejo que o conteúdo desta carta é pouco agradável e, se eu a ler de alto, não fará senão irritá-lo. - Se quiseres permitir-me que proceda como me aprouver, por favor, Miss Wardour, tem a bondade de continuares; se a coisa fosse inútil, não te daria esse trabalho. Miss Wardour retomou a leitura da carta: "Caro senhor, tendo entrado há pouco em sociedade com Mr. Gilbert Greenhorn, filho do seu falecido correspondente e homem de negócios, de quem dirigi durante vários anos os assuntos como escriturário do parlamento, e cujos negócios se farão de futuro sob a firma de Greenhorn e Grinderson (do que peço favor de lembrar-se ao endereçar de futuro as suas cartas), e tendo, na ausência do meu dito sócio Gilbert Greenhorn que foi às corridas de Lamberton, tomado conhecimento da carta com que ultimamente nos honrou, tenho a honra de responder à dita carta... " - Como vês, eis um amigo que tem método, e que começa por me assinalar as causas que me arranjaram um correspondente tão distinto e tão modesto. Continua, eu tenho paciência. Ao falar assim, riu-se com aquele riso amargo que é talvez a mais temível expressão dos tormentos de que o espírito é presa. Tanto receando prosseguir; como desobedecer, Miss Wardour continuou a leitura: "Por minha conta pessoal e na minha qualidade de sócio, tenho muita pena
de que não possamos ser-Lhe úteis obtendo-lhe as quantias de que nos fala ou concedendo uma prorrogação no negócio de crédito Goldiebird, o que é incompatível com os nossos deveres, estando encarregados de proceder como procuradores autorizados e homens de negócios do dito Goldiebird, em virtude da cujo título o processamos, como o senhor deve estar avisado pela citação que recebeu, pela quantia de 4756 libras, 5 xelins, 6 pence e 4 dinheiros esterlinos, que, com os juros e custas, serão pagos, como deve presumir, no prazo fixado, para prevenir 438 inconvenientes mais graves. Tenho ao mesmo tempo necessidade de o avisar de que teremos muita satisfação de receber o pagamento da nossa conta pessoal, no montante de 769 Libras, 10 xelins e 6 pence esterlinos; mas como temos entre mãos todos os seus papéis, títulos e documentos de hipoteca, não teremos dificuldade em conceder-lhe um prazo razoável até o próximo vencimento. Por minha conta e como sócio, tenho o desgosto de ajuntar que as instruções de Mr. Goldiebird são de proceder peremptorie e sine mora (1); do que tenho o prazer de o prevenir para evitar qualquer erro a este respeito, reservando-nos actuar em conformidade. Por minha conta e como sócio, caro senhor, sou seu humilde e obrigado servidor Gabriel Grinerson, por Greenhorn e Grinderson. " - Miserável ingrato! - exclamou Miss Wardour. - Nada disso, é a regra geral, suponho eu; faltaria alguma coisa a este golpe, se fosse vibrado por outra mão. As coisas são o que devem ser - A calma que o pobre baronnet afectava, ao falar assim, era estranhamente desmentida pelo tremor dos seus lábios e pelo desvario dos seus olhos Mas há um pósescrito em que não fiz reparo; vejamos, pois, o final dessa epístola. "Tenho a acrescentar (não por mim, mas pelo céu sócio Mr. Greenhorn) que se pode chegar a um acordo, aceitando o seu serviço de prataria, e os seus cavalos baios se estiverem em bom estado sob uma avaliação, razoável e por conta do pagamento do seu memorial". - Que o céu o confunda! - exclamou sir Arthur, não sendo mais senhor dele perante esta prova de condescendência-O seu avô ferrava os cavalos de meu pai, e esse descarado descendente de um mísero íerrador queria surripiarme os meus. Mas eu vou responder-lhe à letra. Sentou-se e começou a escrever com muita rapidez, depois de teve-se e leu de alto: "Senhor Gilbert Greenhorn, em resposta a duas cartas de uma data recente, recebi uma carta de um indivíduo que se diz chamar-se Grinderson, e que se anuncia como seu sócio. Quando me dirijo a alguém (1) Peremptòriamente e sem demora. - N: do T. 439 não estou habituado a que se sirvam de outro para me responder. Creio ter sido útil a seu pai, e que o senhor sempre me encontrou obsequioso e delicado; tenho, pois, motivo para me admirar... " E no entanto - disse ele, detendo-se de repente - porque hei-de admirar-me disto ou de outra coisa qualquer, e para que perder o meu tempo a escrever a semelhante patife? Talvez não fique toda a vida na prisão; e quando sair, a primeira coisa que farei é quebrar os ossos a esse vaidoso! - Na prisão, senhor! -exclamou Miss Wardour, em voz sufocada. - Sem dúvida, na prisão, podes duvidar? Ou não compreendes a bela carta do senhor procurador, ou talvez tenhas 4.000 e não sei quantas 100 libras, xelins e pence esterlinos para me dar a fim de satisfazer a dita reclamação, para falar a sua linguagem? - Eu, senhor! Deus quisesse que eu possuísse esses meios! Mas onde está o meu irmão? Porque não vem ele, desde que está na Escócia? Teria podido
fazer alguma coisa para nos ajudar. - Quem? Reginald? Foi, suponho eu, com Mr. Greenhorn, ou qualquer ilustre personagem desse género, às corridas de Lamberton. Há mais de uma semana que o espero. Mas devo admirar-me de que meus filhos me desprezem como o resto do mundo? Perdão, meu amor, não era contigo que eu devia falar assim, contigo, que nunca me desprezaste nem ofendeste na tua vida! Ao falar assim, beijou enternecidamente a face de sua filha, que lhe passara os braços em torno do pescoço e o apertava carinhosamente. Abandonou-se a esta consolação que traz sempre ao coração de um pai, a quem os desgostos possam oprimir, a doce convicção de que possui toda a ternura de um filho. Miss Wardour aproveitou aquele regresso de sensibilidade para tentar abrandar e acalmar o espírito de seu pai. Lembrou-lhe que ele tinha muitos amigos. - Houve tempo em que tinha muitos - disse sir Arthur - mas há aqueles a quem os meus projectos extravagantes maçaram. Uns não estão em situação de me socorrer; outros não têm vontade disso... Está tudo perdido para mim... Possa a minha imprudência servir de lição a Reginald! 440 - Senhor, se eu mandasse a Monkbarns? - lembrou sua filha. - Para quê? Oldbuck não me pode emprestar semelhante quantia; e, se pudesse, não o desejaria, porque sabe que, além do mais, estou afogado em dívidas; e não faria senão maçar-me com as suas máximas de misantropo e as suas citações latinas. - Mas Mr. Oldbuck possui bom-senso e sagacidade; além disso, foi criado nos negócios, e tenho a certeza de que sempre gostou da nossa família. - Sim, acredito... A que situação estamos reduzidos, para que um Wardour se encontre na [necessidade de precisar da amizade de um Oldbuck! Mas visto que as coisas chegaram ao extremo de que estamos ameaçados, podes, se quiseres, mandá-lo buscar. E agora, minha filha, vai dar o teu passeio habitual... Tenho o espírito mais sossegado do que antes de te ter feito esta dolorosa comunicação. Conheces o pior, e sabes o que devemos esperar a toda a hora, e a todo o momento Mas vai, peço-te, vai passear... Aliás, sentir-me-ei satisfeito por ficar só uns instantes. Ao deixar o aposento, o primeiro cuidado de Miss Wardour foi aproveitar aquela espécie de autorização que arrancara a seu pai, enviando a Monkbarns o mensageiro que, como já relatámos, encontrara o Antiquário e seu sobrinho no caminho da praia. Indiferente à direcção que tomava, e mal a notando apenas, ela dirigiu seus passos para o passeio solitário que se chamava monte dos Espinheiros. Um regato, que outrora fornecera água aos fossos do castelo, descia ao longo de um estreito vale, onde o gosto de Miss Wardour mandara arranjar uma vereda já indicada pela Natureza, e cujo pendor suave e fácil nada se ressentia da triste regularidade da arte. Estava em harmonia com o carácter daquele pequeno vale, cercado de bosques, principalmente compostos de cedros e aveleiras, e entremeados de diversas espécies de espinheiros e silvas. Fora naquele local que se dera, entre Miss Wardour e Lovel, a explicação de que o velho Edie Ochiltree fora testemunha. Coração predisposto ao enternecimento pelas desditas que ameaçavam seu pai, Miss Wardour lembrou-se nesse momento de cada palavra, cada argumento de que Lovel se servira para defender a causa do 441 seu amor, e não pôde deixar de confessar que o pensamento de ter
inspirado a um jovem daquele mérito uma paixão tão violenta e desinteressada, era bem de molde a lisonjear o seu orgulho. Havia pessoas que podiam qualificar de romanesco o sentimento que o levara a abandonar uma profissão na qual se dizia achar-se em posição de fazer um rápido progresso, para vir enterrar-se num lugar tão pouco atraente como Fairport, sem outra consolação a não ser a kãe meditar sobre um amor que não era partilhado; mas, decerto, aquele excesso de apego devia parecer bem desculpável àquela que era o objecto. Se ele tivesse uma posição independente, por modesta que fosse, ou se pudesse provar que tinha direitos incontestáveis à classe para ornamento da qual parecia ter sido feito, poderia ela partilhar o seu destino; encontrar-se-ia ela agora em situação de oferecer em sua casa, a seu pai, um asilo para a sua desgraça. Estes pensamentos, tão favoráveis ao amante ausente, sucediamse-lhe, alternadamente no espírito, e a memória reproduzia-lhe cada uma das suas expressões, cada um dos gestos, dos olhares, com uma exactidão que provava que, ao rejeitar-lhe os votos, ela escutava mais o dever do que a sua inclinação. Meditava, pois, Isabel neste tema e nas desventuras do pai, quando, num local onde a vereda seguia o desvio de um outeiro coberto de sarças, se encontrou de repente diante do velho roupão azul. Num ar que parecia indicar ter alguma coisa de importante e misterioso a comunicar-lhe, Edie tirou o chapéu e, avançando com precaução, disse-lhe, num tom que revelava receio de ser ouvido: - Desejava muito encontrar Vossa Senhoria; pois sabe que não me atrevo a vir ao castelo, por causa de Dousterswivel. - com efeito -disse Miss Wardour, lançando qualquer coisa no chapéu do mendigo - constou-me que o senhor cometeu uma acção muito louca, muito censurável, e isso causou-me verdadeiro desgosto. - Ah, meu Deus! Minha boa lady, o mundo está cheio de loucos: como havia de ser o velho Edie único sensato?... E quanto ao mal que lhe fiz, aqueles que conhecem Dousterswivel que se pronunciem sobre se ele teve o que merece. 442 - Isso pode ser verdade, Edie - respondeu Miss Wardour - mas o senhor não deixou de sofrer grandes contrariedades. - Não o nego. Mas hoje não tenho tempo para discutir esse assunto, é de si que eu quero falar: sabe o que ameaça a casa Knockwinnock? - Receio grandes infortúnios, Edie - disse Miss Wardour - admira-me, porém, que já sejam tão públicos. - Públicos! Como poderia ser de outra maneira?... Sweepclean virá hoje aqui com todo o seu bando; soube-o por um dos seus confrades que foi avisado para se lhes juntar, e não tardarão em meter mãos à obra. Quando passam por qualquer parte, não é preciso perguntar o que resta após eles; tosquiam as pessoas ao vivo. - Eu sei que esse momento fatal há-de chegar; mas tem a certeza, Edie, de que está tão próximo? - O que lhe digo, milady, não é senão demasiado verdadeiro; mas não se deixe abater... Há agora um Deus a velar por si, como velava naquela noite terrível, entre o cabo de Bally Burgh e o topo de Halket. Julga que aquele que repeliu as águas não possa protegê-la contra a cólera dos homens, mesmo que venham armados de toda a autoridade humana? - Ai! é a nossa única esperança! - Não sabe o que pode acontecer. É o momento em que a noite é mais sombria do que a alvorada do dia que vai surgir. Se eu tivesse um bom cavalo, e força para o montar, julgo que encontraria meio de lhe ir
buscar socorro. Contava subir para a imperial da diligência da Royal Charlotte; mas parece que se voltou em Kittlebrig. Vinha um gentleman na almofada, a quem apeteceu conduzir, apeteceu a Tom Sang, que devia ter mais juízo, fazer-lhe a vontade, se bem que ele nunca pudesse tornear a esquina da ponte; cortou muito curto, e partiu a carruagem como quem parte um vidro. Foi uma felicidade eu não ir nela. Vim, pois, com alguma esperança de conseguir o que desejava: ver se a menina me quer lá enviar, - Mas, Edie, onde quer ir? - perguntou a jovem lady. - A Tannonburgh, minha boa lady (é o primeiro posto depois de Fairport, mas muito mais perto de 443 Knockwínnock), e isso sem demora; é para os seus próprios negócios. - Os nossos negócios, Edie; ai, faço justiça às suas boas intenções, mas... - Não há mas, nem meio mas, lady; é preciso que eu vá -insistiu o mendigo. - Mas que quer o senhor fazer em Tannonburgh, e como pode ser útil aos negócios de meu pai? - Palavra de honra, minha boa lady - disse o velho pedinte - é um pequeno segredo confiado à cabeça grisalha do velho Edie, e sobre o qual não é preciso fazer perguntas. Certamente, se arrisquei de boa vontade a minha vida para a salvar na noite da tempestade, não pode julgar-me capaz de querer aumentar os seus desgostos em semelhante dia de tristeza. - Bem, Edie, siga-me, e vou tratar de enviá-lo a Tannonburgh. - Então, apresse-se, apresse-se, minha boa lady, por amor de Deus! E continuou a incitá-la a apressar-se, até atingirem o castelo. XLII Os que gostam desse espectáculo que o vão ver. Quanto a mim, não me agradaria; porque, admitindo que ele foi escravo dos preconceitos da classe e do luxo, e de todas as frivolidades que a rigorosa necessidade lhe rouba hoje, é, no entanto, triste ver a sua fronte vergada, onde o orgulho tenta em vão cobrir com seu véu transparente as marcas profundas que nela traçam o arrependimento e a dor. Comédia Antiga Ao chegar ao pátio do castelo, ao primeiro olhar Miss Wardour notou que já estava cheio de oficiais de justiça. Verificava-se um misto de confusão, de inquietação, de mágoa e de curiosidade no rosto dos criados, enquanto os oficiais de justiça andavam de um lado para o outro, fazendo o inventário dos utensílios e móveis que lhes pareciam penhoráveis. O capitão Mac Intyre voou para ela, enquanto a jovem, consternada 444 pela convicção da ruína de seu pai, permanecia imóvel no limiar da porta. - Minha querida Miss Wardour - disse ele - acalme a sua inquietação; meu tio vai chegar dentro de instantes, e tenho a certeza de que encontrará qualquer forma de os desembaraçar destes patifes. - Ai, capitão Mac Intyre, receio que seja demasiado tarde. - Não - respondeu Edie com impaciência - se eu puder chegar a Tannonburgh... Em nome do céu, capitão, arranje qualquer meio para me poder transportar, e será para esta infeliz família arruinada a melhor obra que se fará desde o tempo de Mão Vermelha; porque, dando crédito a um velho ditado, o castelo e a terra de Knockwinnock serão hoje perdidos ou salvos. - E que quer o senhor, fazer nisto, ancião? -replicou Heitor.
Mas Roberto, o criado de quem sir Arthur estivera descontente essa manhã e que parecia espreitar ocasião para demonstrar o seu zelo, avançou rapidamente e disse a sua ama: - com sua licença, minha senhora, permito-me observar que este velho, Edie Ochiltree, tem muito saber e experiência em muitas coisas, tais como doenças de animais e assuntos semelhantes, e tenho a certeza de que não é sem motivo que ele quer hoje ir a Tannonburgh, sobretudo pela maneira como insiste; e se agradar à senhora, vou lá levá-lo na caleça em menos da uma hora. Ficarei bem contente por ser útil em alguma coisa; porque sinto vontade de arrancar a minha língua quando penso nesta manhã. - Agradeço-lhe muito, Roberto - respondeu Miss Wardour - e se julga que há realmente ocasião para um mínimo de utilidade... - Em nome do céu! -exclamou o velho - Roberto, atrele a caleça, e se eu não conseguir ser útil de qualquer maneira, dou-lhe licença de que me atire por cima da ponte de Kittlebrig, no nosso regresso. Mas, o meu amigo, despache-se, porque os momentos são hoje preciosos. Roberto olhou para sua ama, que entrava em casa, e, vendo que ela nada lhe proibia, correu à cocheira que havia no pátio, a fim de atrelar o veículo; porque, 445 muito embora um velho mendigo fosse a última pessoa de quem se pudesse esperar socorro efectivo numa casa de aflição pecuniária, toda a gente da classe inferior que conhecia Edie tinha geralmente sobre a sua sagacidade e a sua prudência ideias que autorizavam Roberto a concluir que ele não insistiria tanto na necessidade dessa viagem se não estivesse convencido da sua utilidade. Mas, ainda bem o criado não se apoderara de um cavalo para o atrelar à caleça, já um dos oficiais de justiça lhe batia no ombro e lhe dizia: - Meu amigo, não deve tocar nesse cavalo; está abrangido pelo inventário. - Quê! - exclamou o criado - Não posso levar o cavalo do meu patrão para fazer um recado a minha ama? - Não se pode tocar em coisa alguma daqui - disse o homem da lei - de contrário será responsável pelas consequências. - Que diabo é isso, senhor! - disse Heitor, que, tendo seguido Edie no intuito de o interrogar sobre a natureza dos seus projectos e das suas esperanças, já começava a eriçar-se como um cão "terrier" habitante das suas montanhas nativas - Como diabo tem o senhor o descaramento de impedir o criado de obedecer às ordens de sua ama? Alguma coisa no ar e no tom do jovem militar parecia anunciar que a sua intervenção não se limitaria a simples raciocínios, e que, se ele acabasse por dar ao seu adversário a vantagem de lhe instaurar um processo de violência e de maus tratos, não seria sem que estes últimos tivessem previamente os mais fundamentados motivos. O oficial da lei, em presença de um oficial do exército, agarrou com mão pouco firme o bastão sujo destinado a apoiar a sua autoridade, e com a outra apresentou a sua pequena vara oficial, cuja ponta, como de costume, era de prata, com um anel passado por dentro. - Capitão Mac Intyre, não tenho questão consigo, mas se me interromper no exercício das minhas funções, quebro a vara da paz e declaro que o senhor me fez violência... - E que diabo me preocupa isso? - replicou Heitor, absolutamente ignorante dos termos de uma acção judicial -E quanto a quebrar a sua vara de paz, como 446
o senhor gosta de lhe chamar, tudo o que sei é que lhe quebro os ossos se impedir este rapaz de atrelar os cavalos para obedecer às ordens de sua ama. - Tomo por testemunhas todos os que aqui estão - exclamou o oficial - em como lhe mostrei o símbolo do meu ministério! E quem quiser a guerra, terá a guerra. E, ao falar assim, fez deslizar o seu anel enigmático de uma ponta à outra do bastão, que é o sinal que dá um oficial da lei quando é interrompido pela violência no exercício do seu dever. O honesto Heitor, mais habituado à artilharia do campo de batalha do que à das leis, assistiu a esta cerimónia misteriosa com grande indiferença e não se inquietou nada ao ver o oficial sentar-se para redigir o auto de violência; mas nesse momento e muito a propósito, para evitar a severa multa em que o inconsiderado mas benévolo escocês ia incorrer, chegou o Antiquário, a suar e a soprar, com o lenço debaixo do chapéu e a peruca na ponta da bengala. - Então, que diabo se passa aqui? -exclamou ele, ao ajustar à pressa a sua peruca na cabeça - Segui-te na esperança de ver-te quebrar essa maldita cabeça contra algum rochedo, e encontro-te aqui separado do teu Bucéfalo, mas a questionar com Sweepclean. Tu bem sabes, Heitor, que um beleguim é um inimigo mais temível do que uma foca, quer seja a phoca barbata quer a phoca vitulina (1) que tu combateste, ultimamente. - Maldita seja a foca! - bradou Heitor -Ou uma ou outra, o diabo que leve as duas! Gostaria de ver-me ficar quieto, enquanto um patife como este, a pretexto de executar as ordens do rei (e espero que os últimos lacaios do rei valham mais do que este) vem insultar uma jovem dama da categoria de Miss Wardour? - Falas bem, Heitor - disse o Antiquário - mas os reis, como outras pessoas, têm de tempos a tempos vis missões a mandar cumprir, para as quais são obrigados a empregar gente vil. No entanto, supondo mesmo que ignoras os decretos de Guilherme, o Leão, (1) A foca barbuda ou o lobo-marinho. - N. do T. 447 nos quais o delito de violência se chama despectus áomini regis, isto é, desprezo pelo próprio rei, em nome de quem se faz toda a perseguição legal, devias compreender, pelo que tive o trabalho de explicar-te esta manhã, que aqueles que interrompem os oficiais que vêm executar uma penhora são tanquam participes criminzs rebellionis, participam da própria rebelião- Mas vou desembaraçar-te disso. Aproximou-se então do oficial, que, à sua chegada, abandonara a esperança de arranjar ali, como por acaso, um bom processozinho de violência, e que se contentou com a garantia de Mr. Oldbuck de que o cavalo e a caleça estariam de regresso dentro de duas ou três horas. - Muito bem, senhor - disse o Antiquário - e para reconhecer a sua delicadeza vou arranjar-lhe um pequeno negócio da sua competência e de melhor género. É uma questão de política; é um delito punível por legem Juliam (1). Mr Sweepclean, escute-me um momento. Depois de lhe ter falado em voz baixa durante cinco minutos, deu-lhe um bocado de papel, recebido o qual o oficial montou a cavalo e, seguido de um dos seus assistentes, partiu em andamento bastante bom. O homem que ficou pareceu demorar propositadamente as suas operações; continuou a tarefa lentamente e com a precisão e o cuidado de alguém que se sente vigiado por um inspector instruído e severo. Entrementes, Oldbuck agarrara seu sobrinho por um braço e fizera-o entrar
em casa. Foram conduzidos junto de sir Arthur, que, presa das angústias do orgulho ferido, dos receios mais pungentes do futuro e dos vãos esforços que fazia por ocultá-los sob um ar de indiferença, oferecia um espectáculo digno de piedade. - Tenho muito prazer em o ver, Mr. Oldbuck, sempre muito prazer em ver os meus amigos, tanto no mau como no bom tempo - disse o pobre baromnet, afectando mostrar, não calma, mas uma alegria que evidentemente desmentiam o aperto de mão convulsivo (1) Lei de Júlia. - N. do T. 448 e demorado com que acompanhava estas palavras, e toda a excitação visível na sua pessoa - Tenho muito gosto em vê-los; vieram a cavalo, pelo que vejo; espero que no meio de toda esta desordem cuidem dos vossos cavalos; sempre gostei de que tratassem dos cavalos dos meus amigos como se fossem os meus. com a breca, agora serão os únicos que terão os meus cuidados, porque, como vêem, provavelmente não me deixam nenhum. Ah! Ah! Ah! Mr. Oldbuck. Este esforço por gracejar foi acompanhado de um riso convulsivo, ao qual o pobre sir Arthur queria dar um ar de negligência. - O senhor sabe que eu nunca monto a cavalo, sir Arthur - disse o Antiquário. - Peço-lhe perdão, mas tenho a certeza de ter visto chegar seu sobrinho a cavalo, há uns momentos. É preciso que o cavalo de um oficial seja bem tratado; o seu era o mais belo cavalo cinzento que eu já vi. Sir Arthur preparava-se para tocar a campainha, quando Oldbuck lhe disse: - Meu sobrinho veio no seu cavalo cinzento, sir Arthur. - No meu? - disse o pobre baronnet - No meu, diz o senhor? Deve-me ter batido o sol nos olhos. Vamos, não sou digno de ter um cavalo, visto que não reconheço o meu quando o vejo. "Santo Deus! -pensou Oldbuck - quanto este pobre homem desceu da rigidez cerimoniosa das suas maneiras. Isto tem alguma coisa de loucura. Delira no infortúnio, sed pereunti mille figurse" (1)- E acrescentou em voz alta: - Sir Arthur, temos necessariamente de nos ocupar de negócios. Espero que tenhamos melhores ocasiões para gracejar; desipere in loco é a máxima de Horácio. Tenho fortes suspeitas de que tudo isto foi engendrado pela charlatanice de Dousterswivel. - Nunca pronuncie esse nome, senhor - disse sir Arthur, cuja vã afectação de alegria se transformou, com estas palavras, na agitação do furor; os seus olhos cintilaram, a sua boca escumou, as suas (1) Mil fantasmas se apresentam à imaginação moribunda. - N. do T. 449 mãos fecharam-se com violência - Nunca pronuncie esse nome, senhor, a não ser que queira ver-me enlouquecer. Como pude ser tão néscio, tão fútil, tão asno, para me deixar conduzir e cavalgar por esse mísero malandro e cair em ciladas tão ridículas: Mr. Oldbuck, este pensamento martiriza-me. - Queria apenas informá-lo de que esse homem vai provavelmente encontrar a recompensa e espero que no seu pavor possamos arrancar alguma coisa que lhe seja útil. Ele tem, com certeza, alguma correspondência secreta com o outro lado do mar. - Acredita nisso? Acredita, realmente? Então, que a casa, os cavalos e o resto vão para o diabo! Não me preocupo mais; irei satisfeito para a prisão, Mr, Oldbuck. Espero que o céu permita que haja o bastante para o
mandar enforcar. - É provável - disse Mr. Oldbuck, querendo sustentar esta ideia, na esperança de que imprimisse um desvio às sensações que ameaçavam perturbar, a razão do pobre baronnet - Já homens mais honestos passaram pela corda, ou então a justiça foi furiosamente frustrada nos seus direitos. Mas falemos deste desgraçado negócio. Não se pode fazer nada? Vejamos a ultimação. Pegou nos papéis e, ao lê-los, o rosto alterou-se e tomou um ar sombrio que dizia bastante que não havia esperança alguma. Miss Wardour, que entretanto entrara no aposento e fixara os olhos em Mr. Oldbuck, como se quisesse ler a sorte nas suas faces, apercebeu-se facilmente, pela alteração dos seus olhares e o alongamento do maxilar inferior que as coisas estavam quase desesperadas. - Estamos então arruinados sem remédio, Mr. Oldbuck? - indagou a jovem. - Sem remédio? Espero que não. Mas a reclamação é considerável, e, sem dúvida alguma, outras se seguirão muito numerosas. - Sim, sim, pode ter a certeza, Monkbarns. Onde há carnagem, vêem-se as águias acumular-se; eu sou como um carneiro que acaba de cair num precipício, ou que sucumbe de doença. Ainda não há dez minutos; que está estendido por terra, já meia dúzia de corvos mesmo que não se tenha visto um único há quinze 450 dias, vêm comer-lhe os olhos - e ele passou a mão pelos seus - e devorarlhe o coração antes de que -o pobre animal tenha soltado o último suspiro... E onde está o infernal abutre cujo faro subtil me persegue há muito tempo, o senhor tem pelo menos a certeza, espero eu... - Oh, nada receie - atalhou o Antiquário - O nosso gentleman quis levantar vôo esta manhã e escapar-se-nos pela diligência de não sei que sítio cujo nome esqueci. Em todo o caso, havia de encontrar um bico de obra em Edimburgo; mas não deve chegar tão longe, porque o veículo voltou-se. E como podia chegar sem desastre, levando um tal Jonas! Quanto a ele, deu uma queda abominável, e levaram-no para uma choupana perto de Kittlebrig, onde, para impedir toda a possibilidade de evasão, enviei o nosso amigo Sweepclean para o trazer a Fairport in nomine regis (1), ou para lhe servir de enfermeiro, se julgar mais conveniente. "E agora, sir Arthur, permita-me que converse consigo sobre o triste estado actual dos seus negócios, e dos meios que teremos de usar para os remediar. Ao falar assim, o Antiquário dirigiu-se para a biblioteca, onde o desditoso gentleman o seguiu. Havia cerca de duas horas que estavam encerrados, quando Miss Wardour entrou com a sua capa pelos ombros, como se se preparasse para partir. O rosto, muito pálido, no entanto apresentava a marca da calma inerente ao seu carácter. - O oficial está de volta, Mr. Oldbuck. - De volta? Diabo! Espero que não tenha deixado escapar-se o seu homem? - Não. Ouvi dizer que o conduziu à prisão, e agora regressa para lá levar o meu pai, e, diz ele, não pode esperar muito tempo. Ouviu-se então na escada uma discussão muito ruidosa, na qual dominava a voz de Heitor. - Você diz que é oficial, com esta tropa de maltrapilhos, de miseráveis, de mendigos! Juntem-se, multipliquem-se (1) Em nome do rei. - N. do T. 40 por nove, e veremos depois a vossa força efectiva. Soou a voz rabujenta do homem da lei, a murmurar uma réplica à qual
Heitor respondeu: - Vamos, vamos, senhor, isso não há-de passar-se assim; mande sair a sua tropa, visto que lhe chama assim, para fora de casa imediatamente, senão não tardo em mostrar-lhe o caminho. - Diabos levem o Heitor! - disse o Antiquário, dirigindo-se à pressa para o local da discussão - Eis de novo o sangue escocês a aquecer, e agora vamos vê-lo bater-se em duelo com o oficial Vamos, Mr. Sweepclean, tem de nos dar um pouco de tempo, o senhor não quer apressar sir Arthur até esse ponto. - Sem dúvida alguma, senhor - disse o homem, tirando o chapéu, que enterrara na cabeça para defrontar as ameaças do capitão Mac Intyre - Mas o seu sobrinho serve-se de uma linguagem desbragada, e já lha suportei muito tempo. Para mais, as minhas instruções não me permitem deixar o prisioneiro aqui, a não ser que receba o pagamento das quantias exaradas no meu mandato. Falando assim, apresentou um papel, apontando com a temível vara que tinha na mão direita as cifras não menos temíveis que formavam a soma. Do outro lado, Heitor, embora guardando silêncio por respeito por seu tio, respondeu a este gesto mostrando ao beleguim o punho cerrado, com o faiscante olhar de todos os irritáveis escoceses. - Está quieto, jovem louco - disse Mr. Oldbuck e vem comigo àquele aposento. Este homem não faz senão cumprir o seu miserável dever, e só pioravas as coisas, opondo-te Receio, sir Arthur, que o senhor seja obrigado a acompanhar este homem. É difícil neste momento proceder de outra forma. Eu segui-lo-ei para ver consigo que decisão poderemos tomar depois. O meu sobrinho escoltará Miss Wardour até Monkbarns, onde espero que ela fixe residência até que estes desagradáveis negócios estejam arrumados. - Eu vou com meu pai, Mr. Oldbuck - declarou Miss Wardour com firmeza Preparei os seus pertences e os meus. Suponho que nos permitirão servirnos da carruagem? - Eu não me oporei a nada que seja razoável452 disse o oficial -Já a encomendei e está à porta. Subo para a almofada com o cocheiro. Não desejo importuná-los com a minha presença, mas dois dos meus homens seguirão a cavalo. - Eu seguirei também - disse Heitor, que saiu para se apoderar de uma montada. - Temos então de partir? - indagou o Antiquário. - Para a prisão - disse o baronnet, com um involuntário suspiro - Bem, afinal - continuou ele num tom que tentava tornar alegre - trata-se apenas de uma casa de onde não se pode sair! Suponhamos um ataque de gota, e Knockwinnock seria para mim a mesma coisa. É isto, Monkbarns; diremos que é um ataque de gota, ainda que não seja acompanhada da maldita dor. Mas, enquanto assim falava, seus olhos enchiam-se de lágrimas e o som entrecortado da voz revelava até que ponto lhe custava aquela afectação de alegria. O Antiquário apertou-lhe a mão e, como os banianos índios que detêm as condições de importante negócio por meio de um sinal, e enquanto aparentemente falam de coisas indiferentes, sir Arthur, pelo aperto convulsivo da mão, exprimiu ao amigo a resposta, o seu reconhecimento e as secretas angústias que o dilaceravam. Desceram a passo lento a magnífica escadaria, parecendo-lhes que cada objecto que lhes era
familiar se lhes apresentava de uma maneira mais chocante e animar-se de um novo interesse aos olhos do infeliz pai e de sua filha, como se devessem atrair a sua atenção pela última vez. No primeiro patamar, sir Arthur pareceu demasiado comovido para continuar; mas, vendo que o Antiquário o olhava com inquietação, disse com afectada dignidade: - Sim, Mr. Oldbuck, pode-se perdoar ao descendente de uma velha família, ao representante desse Ricardo Mão Vermelha e de Gamelyn de Guardover, soltar um suspiro ao abandonar o castelo de seus pais, cercado de semelhante escolta. Quando fui mandado para a Torre em 1745, com o meu falecido pai, era pelo menos um encargo digno do nosso nascimento, numa acusação de alta traição, Mr. Oldbuck. Mas fomos escoltados desde Highgale por uma tropa de guardas de corpo por mandado do secretário de Estado; 453 e eis-me agora, na velhice, arrancado de minha casa por um mísero beleguim, e por uma lamentável questão de dinheiro! - Pelo menos - disse Oldbuck - o senhor tem junto de si uma filha dedicada e, permita-me ajuntar, um amigo sincero: há nisto alguma consolação, sem contar que não se trata, nesta circunstância, nem de ser enforcado nem de ser esquartejado. Mas ainda oiço a voz do meu exaltado sobrinho que grita mais alto do que nunca. Queira Deus, não tenha feito outra asneira! Que maldito acaso o trouxe aqui para estragar tudo? De facto, um rumor súbito, em que ainda dominava a pronúncia muito alta e um pouco escocesa de Heitor, interrompeu esta conversa; mas veremos a causa no capítulo seguinte. XLIII A fortuna foge-nos, dizeis vós? Não, sa esvoaça apenas em nossa volta, como ágil pássaro do mar em torno do esquie de onde o passarinheiro atento espia os seus movimentos; ora desaparece na bruma, ora raza a vela branca do barco com uma asa temerária e que parece oferecer-se ao tiro: assim a experiência espreita o momento favorável de agarrar a fortuna e de a colocar no alto da sua roda. Comédia Antiga Os gritos de triunfo de Heitor tinham um tom bélico que dificilmente os distinguiam dos seus gritos de guerra; mas em breve não se duvidou mais de que a causa desta nova algazarra fosse de natureza agradável, quando o viram precipitar-se para a escadaria, com um pacote na mão e a bradar: - Viva o velho soldado! Eis o velho Edie com uma colheita de boas notícias! Entregou a volumosa carta a Oldbuck, apertou 454 cordialmente a mão a sir Arthur e felicitou Miss Wardour, com toda a franqueza do seu carácter e do seu país. O oficial, que, como por instinto, tinha um certo terror do capitão Mac Intyre, aproximou-se do preso e manteve prudentemente o olhar fixo nos movimentos do jovem militar. - Julga que me preocupo consigo, amigo? - disse-Lhe o jovem - Olhe, aqui tem um guinéu pelo medo que lhe meti: eis um velho bravo do 42.º, que era para si melhor antagonista do que eu. O meirinho, que era um daqueles miseráveis que embolsam de boa vontade um mau cumprimento que lhes renda alguma coisa, reteve na mão o guinéu que
Heitor lhe atirou à cara e começou a observar prudentemente a volta que o caso ia dar. Entretanto, todas as vozes se erguiam para fazer perguntas, e ninguém pensava em responder. - Então, que há, capitão Mac Intyre? - indagou sir Arthur. - Pergunte ao velho Edie - respondeu Heitor - só sei que tudo vai bem e que tudo está salvo. - Que vem a ser tudo isto, Edie? - perguntou Miss Wardour ao mendigo. - Vossa Senhoria deve perguntá-lo a Monkbarns, é ele quem tem a correspondência epistolar. - Viva o rei! -exclamou o Antiquário, após o seu primeiro olhar ao conteúdo do pacote; e, esquecendo, ao mesmo tempo o decoro, a filosofia e a fleuma habitual, atirou ao ar o seu chapéu de abas arrebitadas que ficou preso, ao cair, num braço do candelabro; depois, passando alegre olhar em volta, levou a mão à peruca e ia talvez fazê-la seguir o caminho do chapéu, se Edie não lhe agarrasse a mão e dissesse: - Senhor meu Deus, está quase louco! Lembre-se, Monkbarns, de que não está aí Caxon para lhe reparar o mal. Toda a gente assaltou o Antiquário e o cumulou de perguntas sobre a causa de semelhante entusiasmo; e ele, um pouco envergonhado daquele delírio, voltou-lhes resolutamente as costas, como uma raposa aos latidos de uma matilha de cães, e, subindo os degraus a dois e dois, até chegar ao cimo, deteve-se no patamar e, voltando-se, dirigiu-se assim aos seus ouvintes surpreendidos: 455 - Meus bons amigos, favete linguis (1). Para os informar do que se passa, é preciso primeiro, segundo todos os lógicos, que eu próprio o saiba: assim, pois, com vossa licença, vou retirar-me para a biblioteca, sir Arthur e Miss Wardour terão a bondade de passar ao locutório; Mr. Sweepclean, secede paulisper (2), ou para falar a sua linguagem, queira conceder-nos um suplemento de cinco minutos; Heitor, retire as suas forças e escolha outro campo de batalha, enfim, tenham todos um pouco de coragem e de paciência até o meu regresso, que será breve. O conteúdo do volume era tão inesperado que é preciso perdoar ao Antiquário, primeiro o seu êxtase, depois o desejo de demorar a comunicação das novidades, até ele próprio se compenetrar delas e pôr ordem nas suas ideias. Dentro do envólucro estava uma carta dirigida a Jonathan Oldbuck, squire, proprietário de Monkbarns, cujo texto era o seguinte: "Meu caro senhor, é a si que me dirijo como ao amigo mais fiel e mais precioso de meu pai, estando eu retido aqui por deveres militares de uma natureza muito importante. Deve conhecer neste momento o estado complicado dos nossos negócios, e sei que terá prazer em saber que me sinto bastante feliz por me encontrar subitamente colocado em situação que me permite ajudar poderosamente a arrumá-los. Soube que sir Arthur está ameaçado de perseguições rigorosas por parte de indivíduos que outrora actuaram como procuradores autorizados; e, segundo a opinião de um respeitável homem de negócios, obtive o documento incluso, que deterá as suas perseguições até que os seus direitos tenham sido legalmente discutidos e justamente reduzidos. Envio também mil libras esterlinas em notas, a fim de pagar as reclamações mais prementes, exigindo à sua amizade que faça delas o uso que a sua prudência entender. Ficará talvez surpreendido por lhe dar este trabalho, quando seria mais natural deixar a meu pai cuidado de dirigir (1) Contenham as línguas. - N. do T. (2) Afaste-se um pouco. - N. do T.
456 os seus próprios negócios; mas ainda não tenho a certeza de que seus olhos estejam abertos acerca do carácter de um homem de quem o senhor muitas vezes o avisou que desconfiasse, e cuja influência fatal foi a causa de todas as suas desgraças. Aliás, devendo à generosidade de um amigo incomparável os meios de socorrer sir Arthur, é dever da minha parte velar pelo emprego dos fundos destinados a esse uso, e sei que para isso posso confiar-me inteiramente à sua sensatez e à sua prudência. O amigo que reclama uma porção do seu interesse, explicar-lhe-á a sua opinião numa carta inclusa. Sendo a fidelidade do posto de correio de Fairport um pouco suspeita, envio esta carta por Tannonburgh; mas o velho Ochiltree, que circunstâncias particulares me fizeram conhecer como digno de toda a confiança, está informado do momento provável da chegada do pacote, e terá o cuidado de lho entregar. Espero ter em breve ocasião de me desculpar pessoalmente de todo o trabalho que lhe dou, e tenho a honra de me subscrever seu devotado servidor Reginald Gamelyn Wardour Edimburgo, 6 de Agosto de 179... " O Antiquário quebrou à pressa o lacre da outra carta, cujo conteúdo pareceu causar-lhe tanta surpresa como prazer. Quando se sentiu um pouco refeito da turbação em que tantas notícias inesperadas o lançaram, examinou cuidadosamente os outros papéis, que todos se relacionavam com os negócios, meteu as notas no bolso, escreveu um curto bilhete a acusar a recepção, para se meter no correio nesse mesmo dia, porque era extremamente metódico em todos os assuntos que tratassem de dinheiro, e, por fim, cheio da importância da sua descoberta, desceu ao locutório. Ao entrar, disse ao oficial, que permanecia respeitosamente à porta: - Sweepclean, tem de afastar-se do castelo de Knockwinnock, e o seu séquito que saia imediatamente da casa. Vê este papel? - Um mandato de suspensão - disse o meirinho em tom desgostoso - Eu sempre pensei que seria estranho 457 que as coisas fossem à última extremidade com um gentleman como sir Arthur... Bem, senhor, vou retirar-me com a minha gente; e quem me pagará as despesas? - Os que te empregaram - respondeu Oldbuck sabe-lo tão bem como eu... Mas aí vem um expresso. com a breca, hoje é o dia das novidades. Era Mr. Mailsetter, a chegar de Fairport no seu jumento, com uma carta para sir Arthur e outra para o meirinho, ambas para serem entregues imediatamente. O meirinho abriu a sua, e, ao observar que Greenhorn e Grinderson estavam bem em estado de responder pelas despesas, e que lhe escreviam a ordenar que cessasse a acção, abandonou imediatamente o aposento e, gastando apenas o tempo de reunir o bando, evacuou o território, para nos servirmos da expressão de Heitor, que vigiava a sua retirada com os olhos com que um cão irritado segue os passos de um mendigo que se afasta. A carta dirigida a sir Arthur era de Mr. Greenhorn, e assaz curiosa no seu género. Reproduzimo-la com os comentários do digno baronnet.
"Senhor... [Ah! Já não sou "caro senhor"; as pessoas não são "caras" aos senhores Greenhorn e Grinderson senão quando estão na adversidade]. Senhor, fiquei muito apoquentado por saber, no meu regresso do campo onde me chamara um negócio importante [Sim, alguma aposta, suponho. que o meu sócio tivera o despropósito de seguir os interesses de Mr. Goldiebird de preferência aos seus, e de lhe escrever de uma maneira inconveniente.
Peço-lhe que aceite as minhas mais humildes desculpas e as de Mr. Grinderson... [Vamos, vejo que este escreve em seu nome tão bem como em nome do seu sócio. e espero que o senhor não me tivesse julgado capaz de esquecer, ou de pagar com ingratidão a protecção constante que a minha família [A sua família! Maldito seja o presumido! encontrou na de Knockwinock. Numa entrevista que tive hoje com Mr. Wardour vi com desgosto que ele parecia muito irritado, e devo confessar que não era sem razão. Mas a fim de reparar, tanto quanto em mim caiba, o menosprezo de que ele se queixa [Bonito menosprezo, realmente, 458 mandar meter o seu protector na prisão!] enviei este expresso para suspender todas as acções contra a sua pessoa e os seus bens, e para lhe transmitir ao mesmo tempo as minhas humildes desculpas. Resta-me acrescentar que a opinião de Mr. Grinderson é de que, se nos honrar com a renovação da sua confiança, ele poderá indicar-lhe circunstâncias relativas às actuais reclamações de Mr. Goldiebird, cujo total reduzirão grandemente. [Assim, ele não pede senão para fazer patifaria para os dois lados]. Quanto à nossa conta, o pagamento não é nada premente. Sou, tanto por Mr. Grinderson como por mim; meu caro senhor [Ah! Ah! Ei-lo que se torna familiar. seu muito obrigado e muito humilde servidor, Gilbert Greenhorn. " - Bem dito, Mr. Gilbert Greenhorn - disse o Antiquário - agora vejo para que pode servir a sociedade de dois procuradores. Os seus movimentos assemelham-se aos do homem e da mulher do barómetro holandês: quando faz bom tempo para o cliente, um dos gentlemen associados sai e vem lamberlhe os pés como um cão fraldiqueiro; quando está mau tempo, fecha-se e o outro gentleman vem mostrar os dentes como um buldogue. Quanto a mim, agradeço a Deus que o meu procurador ainda use um chapéu revirado de três bicos, resida na cidade velha, tenha tanto medo de um cavalo como eu, jogue a pela ao sábado, vá à igreja ao domingo e que, não tenddo sócio, não seja responsável senão pelas suas próprias asneiras. - Há procuradores muito honestos - disse Heitor - Bem gostaria de ouvir dizer a alguém que o sétimo filho do meu primo Donald Mac Intyre Strathtudlem, cujos seis irmãos estão no exército, não é um homem honesto. - Sem dúvida, sem dúvida, Heitor, todos os Mac Intyre o são, têm um diploma disso, meu rapaz... Mas eu ia dizer que numa profissão em que é necessário inspirar uma confiança sem limites, não é nada de admirar que se encontrem néscios que se mostrem indignos pela sua negligência e charlatães de má fé. Tudo isto mais honra aqueles que (e digo que ainda há 459 vários) unindo a integridade ao saber e à aplicação, seguem uma linha direita e respeitável nessa carreira que oferece tantos escolhos e tropeços aos seus confrades. A tais homens podem os seus compatriotas confiar sem receio o cuidado de proteger os interesses do seu patrimonio, e o país pode entregar com uma segurança igual o depósito ainda mais sagrado das suas leis e dos seus privilégios. - Afinal, quanto menos negócios com eles, melhor - disse Ochiltree, metendo a cabeça pela porta do locutório; porque, não tendo ainda passado a confusão geral que reinava na família, os criados, semelhantes a vagas no fim de uma tempestade, ainda não tinham reentrado nas suas funções habituais, mas percorriam a casa por aqui e por acolá, com agitação. - Ah! Ah! Eis-te, meu velho! -exclamou o Antiquário - Sir Arthur, permita-me que lhe apresente um mensageiro da boas novas, apesar de estar um pouco coxo. O senhor falava dos corvos que pressentiam de longe a
carnagem; mas está a ver aqui um pombo azul, um tanto velhote, um pouco corioso, confesso, que farejou as boas notícias a seis ou sete milhas daqui, e voou a buscá-las na caleça, e voltou com o ramo de oliveira. - Deve-o ao pobre Roberto que lá me conduziu -. disse o mendigo - O pobre rapaz está bem apoquentado, receia ter caído em desgraça perante sir Arthur e milady. Roberto mostrou o seu rosto confuso e arrependido por cima do ombro do mendigo. - Em desgraça! - exclamou sir Arthur - Como pode ser isso? - A irritação que experimentara a propósito da torrada já estava esquecida havia muito tempo - Ah, lembro-me agora, Roberto! Eu estava exaltado, e tu procedeste mal... Não pensemos mais nisso; vai ao teu serviço, e nunca te lembres de responder a um amo quando ele estiver irritado. - Nem a ninguém - disse o Antiquário - A cólera deixa-se sempre desarmar pela doçura e pela submissão. - E dize à tua mãe, que sofre tanto do reumatismo, que venha amanhã procurar a despenseira - aconselhou Miss Wardour - Veremos se poderemos fazer alguma coisa para a aliviar. 460 - Que o céu abençoe Vossa Senhoria - disse o pobre Roberto - e Vossa Honra, sir Arthur, o jovem laird e toda a família de Knockwinnock nos seus ramos mais afastados. É uma casa que sempre foi boa e caridosa para com os pobres, há várias centenas de anos. - Bem! - disse o Antiquário a sir Arthur - Não quero discutir consigo, mas veja que o reconhecimento do pobre se liga às virtudes cívicas da sua famíliaNunca os ouve falar do Mão Vermelha ou do Inferno Ajaezado. Quanto a mim, devo dizer: oãi accipitrem qui semper vivit in armis f1). Assim, pois, bebamos e comamos tranquila e alegremente, sir cavaleiro. Pusera-se uma mesa à pressa no locutório, e os circunstantes sentaram-se jovialmente para tomar uma alegre refeição. A pedido de Oldbuck, Edie teve licença de sentar-se ao lado do bufete, numa grande cadeira de couro que se colocou de certa maneira atrás de um guarda-vento. - Consinto com tão boa vontade - declarou sir Arthur-quanto me lembro de que no tempo de meu pai era esta cadeira ocupada por Ailshie Gourley, que" pelo que sei, foi o último louco ou bobo privilegiado que se sustentou em alguma família de distinção na Escócia. - Quanto a isso, sir Arthur - disse o mendigo, que era dos que nunca hesitavam, entre um amigo e um bom dito - vê-se mais de um sensato na cadeira de um louco, e mais de um louco ocupar o lugar de um sensato, sobretudo nas famílias de distinção. Miss Wardour, receando o efeito desta saída nos nervos irritáveis de seu pai (por muito ufana que ela estivesse de Ailshie Gourley ou de qualquer outro bobo privilegiado), apressou-se a perguntar se não ordenaria uma distribuição de cerveja forte e carne de vaca aos criados e a todos os que esta novidade reunira em volta do castelo. - Certamente, meu amor - respondeu seu pai foi sempre esse o uso na nossa família depois de se levantar um cerco. (1) Detesto a ave de presa que vive sempre no meio dos combates. - N. do T. 461 - É isso, um cerco posto pelo meirinho Saunders Sweepclean e levantado pelo mendigo Edie Ochiltree, par nobile ratum (1) - disse Oldbuck - duas personagens de uma categoria igualmente distinta. Mas é a mesma coisa, sir Arthur, os particulares já não são sitiados em nossos dias senão
desta maneira, e nem por isso devemos deixar de beber à nossa feliz libertação um copo deste excelente vinho... palavra de honra, julgo que é Borgonha! - Se houvesse alguma coisa de melhor na adega - declarou Miss Wardour - apressar-me-ia a mandá-lo servir; nada me parece bastante digno de lhe ser oferecido depois dos trabalhos que a sua amizade acaba de suportar por nossa causa. - Se fala assim, minha bela inimiga - respondeu o Antiquário - vai obrigar-me a encher o meu copo mais uma vez e a oferecer-lhe um golo em acção de graças... Possa eu vê-la de novo assediada, mas daquela maneira que as mulheres nunca receiam de ser; e tenha de assinar em breve os termos da capitulação na capela de São Winnox! Miss Wardour corou; Heitor mudou várias vezes de cor. - Minha filha está-lhe muito grata, Monkbarns - respondeu sir Arthur - Mas, a não ser que o senhor a queira aceitar, não vejo que esperança de união possa ter, nestes tempos mercenários, uma filha de um pobre baronnet. - Eu, diz sir Arthur? Não, não; mas reclamo o privilégio do antigo costume do combate singular, e não podendo comparecer em pessoa, faço-me representar por um campeão: falaremos disso mais tarde. Que estás tu a ver de tão interessante nesses papéis, Heitor, que baixas a cabeça como se estivesses -a sangrar do nariz? - Nada de especial, senhor. Estava a pensar que, estando o meu braço quase sarado, não faria mal em desembaraçá-lo da minha companhia, dentro de um ou dois dias, e em partir para Edimburgo. Vejo pelos jornais que o major Neville já chegou e terei muita satisfação em vê-lo. (1 Nobre par de irmãos. - N. do T. 462 - O major quem? -perguntou o tio. - O major Neville - respondeu o jovem militar. - E quem diabo é o major Neville? - indagou o Antiquário. - Mr. Oldbuck - interveio sir Arthur - é um jovem oficial verdadeiramente distinto; o senhor recorda-se, sem dúvida, de ter visto frequentemente o seu nome nos jornais. Mas tenho a satisfação de informar Mr. Mac Intyre de que não lhe é necessário deixar Monkbarns para o ir ver, porque meu filho escreveu-me a dizer que o major deve vir com ele a Knockwinnock; e não preciso de declarar que ficarei encantado em apresentá-lo a esse senhor, a não ser que já se conheçam. - Não - disse Heitor - não o conheço pessoalmente, mas tive ocasião de ouvir falar dele muitas vezes, e estou relacionado com vários amigos seus, do número dos quais é o capitão Wardour. No entanto, preciso de ir a Edimburgo, porque vejo que meu tio começa a estar farto de mim, e eu próprio receio - Estar farto dele - disse Oldbuck - Tenho medo de que o estejas hoje... Mas esqueces-te de que se aproxima esse famoso dia 12 de Agosto, e que estás comprometido a juntares-te à caçada que deve realizar-se nas terras de lorde Glenallan para tormento da pacífica raça alada. - É verdade, é verdade, meu tio, já me esquecia! - exclamou o versátil Heitor - Desculpe-me, o senhor disse alguma coisa ainda agora que me varreu da cabeça qualquer outro pensamento. - com licença de Vossas Honras - disse o velho Edie, assomando a cabeça branca ao guarda-vento, atrás do qual se regalara abundantemente de carne fria e cerveja - com licença de Vossas Honras, direi alguma coisa que reterá o capitão entre nós, tão bem como a caçada. Nunca ouviu dizer que
os franceses iam fazer um desembarque? - Os franceses? Velho louco! -exclamou Oldbuck. - A semana passada - disse sir Arthur Wardour não tive tempo de ler a minha correspondência de governador da costa. Em regra, tenho por hábito ocupar-me disso apenas à quarta-feira, excepto em casos prementes, porque faço tudo por ordem; mas 463 depois de relancear um olhar pelas cartas, vi efectivamente que não deixava de haver alarme. - Alarme! -exclamou Edie - Palavra, deve haver alarme, porque o preboste apressou-se a mandar colocar um farol no alto de Halket, o que se devia ter feito há seis meses; e quem o conselho nomeou para guarda do farol não foi outro senão o velho Caxon. Há pessoas que dizem que foi em atenção ao tenente Taffril, pois parece decidido este casar-se com Jenny, Caxon; outros dizem que foi para agradar a Vossas Honras que usam peruca; e há também quem fale de uma velha história de uma peruca que ele fez para um dos bailios e que nunca foi paga. De qualquer modo, ei-lo empoleirado como uma gaivota no alto do rochedo, para guinchar como ela quando faz mau tempo. - Aí está um bonito guarda, palavra de honra -. disse Monkbarns - E quem há-de tratar da minha peruca? - Foi a pergunta que eu lhe fiz - respondeu Edie - e ele disse-me que podia passar todas as manhãs por sua casa e dar-lhe uns retoques antes de se ir deitar, porque há outro homem para ficar durante o dia; e, aliás, Caxon diz que frisa a peruca de Vossa Honra, tão bem a dormir como acordado. Estas notícias imprimiram outro rumo à conversa, que versou então os meios de defesa do país e dever imposto a cada cidadão de se armar para repelir a invasão. Chegou o momento de se separarem, e o Antiquário retomou com seu sobrinho o caminho de Monkbarns, depois de deixar os moradores de Knockwinnock com as mais sinceras expressões de interesse mútuo e de terem prometido voltar a ver-se o mais cedo possível. 464 XLIV; Afinal, se ela não me ama, tenho de tomar a minha decisão. Devo empalidecer porque uma bea corou ou suspirar porque ela sorriu, e sorriu a um rival? Não, por Deus, o meu repouso é-me demasiado caro para que, à semelhança das plumas que se balouçam na sua cabeça, cada movimento ditado pelo seu capricho tenha o poder de me agitar. Comédia Antiga - Heitor - disse Oldbuck a seu sobrinho, ao regressarem a casa -há um ponto sobre o qual estou por vezes tentado a acreditar que tu és louco. - Se me julga louco sobre um único ponto, faz-me realmente um favor que eu não esperava e que não mereço. - Quero dizer um ponto por excelência - continuou o Antiquário - Pensei por vezes que lançasses os olhos sobre Miss Wardour. - Bem, senhor! - respondeu Heitor, num ar muito calmo. - Diabos o levem com o seu "bem, senhor"! - exclamou o tio - Responde-me com tranquilidade, como se fosse a coisa mais simples do mundo-, ele, simples capitão do exército e nada mais, pensar em desposar a filha de um baronmet. - Ouso julgar, senhor - disse o jovem escocês que, sob o aspecto de
família, não seria uma união desigual para Miss Wardour. - Oh, Deus nos livre de abordar esse assunto! Não, não: perfeita igualdade dos dois lados; ambos no quadro da nobreza do país e com igual direito de olhar com desprezo toda a classe plebeia da Escócia. - E pelo lado de riqueza estamos mais ou menos num pé de igualdade, visto que nem um nem outro a tem - continuou Heitor - Pode, pois, haver erro na minha escolha, mas não presunção. - Sim; mas aí está onde se encontra o erro, visto ser assim que lhe chamas: ela não te ama, Heitor. 465 - Está convencido disso? - Tenho a certeza; e, para mais te convencer, digo-te que ela ama outro. Equivocou-se no sentido de umas palavras que uma vez lhe disse, e depois eu próprio adivinhei a interpretação que lhes deu. Eu não era então capaz de explicar o seu rubor e o seu embaraço; mas, recordando-os agora, vejoos, meu pobre Heitor, como um sinal de morte para as tuas esperanças e pretensões. Aconselho-te, pois, a bater em retirada, a retirar as tuas forças o mais cedo possível, porque há uma guarnição muito boa no forte para que possas tomá-lo de assalto. - Não tenho necessidade de bater em retirada, meu tio - disse Heitor, mantendo-se muito direito e marchando com uma espécie de gravidade enfadada e ofendida - Não há motivo para retirar quando não se avançou. Existem na Escócia outras mulheres, além de Míss Wardour, e de família igualmente boa. - E de um melhor gosto. Existem, sem dúvida, Heitor; e embora eu deva confessar que é uma das mulheres mais sensatas e mais bem educadas que conheço, duvido muito, porém, de que fosses capaz de apreciar o seu mérito. Uma mulher de ar desenvolto e taful, em cuja cabeça se erguesse um penacho vistoso, que usasse um vestido de amazona da cor do teu uniforme, que hoje guiasse o cabriolet e amanhã passasse em revista o regimento no cavalo cinzento que na véspera puxava a carruagem, hoc erat in votis (1) eis a que te subjugaria, sobretudo se a estas qualidades reunisse o gosto da história natural e tivesse curiosidade de ver uma amostra de phoca. - É duro ouvir lançar-me constantemente em rosto o maldito lobo-marinho disse Heitor - Mas não me importa, e não tenho vontade alguma de morrer de desgosto pelos bonitos olhos de Miss Wardour. Ela tem a liberdade de escolher quem lhe agradar; desejo de todo o meu coração que seja feliz. - Ó generosidade magnânima, digno sustentáculo; de Tróia! Tranquilizasme, Heitor; tinha medo de uma cena; tua irmã dissera-me que estavas apaixonadamente fascinado por Miss Wardour. (1) Tais eram os teus desejos. - N. do T. 466 - O senhor queria - replicou o jovem - que eu estivesse apaixonadamente fascinado por uma mulher que não se preocupa comigo? - Não, meu sobrinho - disse o Antiquário mais seriamente - Há com certeza muito bom-senso no que dizes, e muito teria eu dado há vinte e cinco anos para poder pensar como tu. - Julgo que toda a gente pode pensar como lhe aprouver sobre semelhantes casos. - Não, segundo os usos do antigo regime - disse Oldbuck - mas, como já o disse, o costume do século parece-me muito sensato, embora feito para inspirar menos interesse. Mas, vejamos, dize-me quais são as tuas ideias a respeito dessa invasão de que se fala tanto; o clamor geral é de que eles vêm. Heitor, digerindo a sua mágoa, que desejava sobretudo ocultar dos olhares
satíricos de seu tio, apressou-se a mergulhar numa conversa que devia desviar seus pensamentos de Miss Wardour e do lobo-marinho. Ao chegarem a Monkbarns, depois de tratarem de contar às damas os acontecimentos ocorridos no castelo e de escutarem por seu turno o relato das suas incertezas, e quanto hesitaram em ir para a mesa antes do regresso do Antiquário, os dois assuntos tão temidos voltaram a apresentar-se. No dia seguinte, de manhã, o Antiquário levantou-se cedo e, como Caxon ainda não aparecera, começou a lamentar interiormente a falta de notícias e dos mexericos da cidade, que o ex-cabeleireiro não deixava de relatarlhe fielmente todos os dias. O hábito tornara a sua tagarelice quase tão necessária ao nosso Antiquário como a pitada de rapé, que ele tomava de vez em quando, embora afectasse olhar ambas as coisas com o mesmo desprezo. Foi, porém, distraído da espécie de vácuo que resultava daquela privação, pela presença do velho Ochiltree, que passeava ao longo das sebes bem talhadas de teixos e azevinhos, no ar de quem está em sua casa. com efeito, ele tornara-se ultimamente de tal modo comensal da casa que uno já não ladrava ao vê-lo, limitando-se a segui-lo de olho atento e vigilante. O nosso Antiquário em roupão e dirigiu-se ao velho. - Bem, ei-los que chegaram sãos e salvos, Monkbarns - disse Ochiltree Vim expressamente de Fairport 467 para lhe dar esta notícia. O Search acaba de entrar na nossa baía, e dizse que foi perseguido por uma fragata francesa. - O Search! - exclamou Oldbuck, parecendo reflectir -Oh! Oh! - Sim, o brigue canhoneiro do tenente Taffril. - Isso terá alguma relação com Search - disse Oldbuck, colhendo como um traço de luz a aproximação que este nome podia ter com o cofre misterioso em em que se encerrava o tesouro. O mendigo, como um homem apanhado em flagrante num estratagema, pôs o gorro diante da cara e não pôde deixar de rir com vontade. - O senhor tem o diabo no corpo, Monkbarns, para se lembrar das coisas e aproximá-las. Quem imaginaria que o senhor pensava nisso? Fui apanhado, é claro. - Agora compreendo tudo - disse Oldbuck - como a legenda de uma medalha bem conservada. A caixa onde as barras foram encontradas pertencia ao brigue, e o tesouro ao meu fénix (Edie fez um sinal afirmativo) e foi ali enterrado para socorrer sir Arthur na sua aflição. - Fui eu que me encarreguei disso, com dois homens da tripulação do brigue, mas que não conheciam o conteúdo, e que supunham que era um pequeno negócio de contrabando do capitão. Velei noite e dia até tudo cair nas mãos daquele a quem se destinava; e quando o demónio do alemão procurava a tampa do cofre, porque ele estava enfeitiçado, julgo que foi um demónio escocês que me meteu na cabeça pregar-lhe aquela partida. O senhor bem vê que, se eu tivesse dito um pouco mais ou um pouco menos ao bailio Little-John, toda a história se descobriria, e sabe Deus como Mr. Lovel lamentaria aparecer metido nisso; assim, decidi-me a suportar tudo para o evitar. - Sou obrigado a confessar - disse Oldbuck - que ele não se enganou na escolha do seu confidente, embora pareça um pouco estranho. - Posso dizê-lo em meu favor, Monkbarns - respondeu o mendigo - E que sou talvez em todo o país a pessoa a quem se pode confiar dinheiro com mais segurança, pela razão de que não preciso dele, de que 468 não o desejo e não saberia em que empregá-lo, se o tivesse. Mas o pobre
rapaz não tinha ninguém por onde escolher neste caso, porque julgava abandonar o país para sempre (espero agora que se tenha enganado); e quando soubemos, por um singular acaso, da aflição de sir Arthur, a noite já ia avançada e Lovel devia estar a bordo ao romper do dia. No entanto, cinco ou seis dias depois, o brigue veio passar a noite na enseada; fui avisado para o alcançar em chalupa, e foi então que enterrámos o tesouro onde depois se encontrou. - Devo confessar que foi uma façanha muito extravagante, bem romanesca disse Oldbuck - Porque não se fiar em mim ou noutro amigo? - Ele tinha as mãos tintas do sangue do filho de sua irmã - disse Edie e iria talvez responder pela sua vida; seria esse o momento de ir pedirlhe conselho? E que tempo tinha para se consultar a ele próprio ou outro qualquer? - Tens razão; mas se Dousterswivel se adiantasse? - Não havia grande receio de que ele lá fosse sem ser acompanhado de sir Arthur. Apanhara um susto enorme numa das noites anteriores, e não pensava em aproximar-se daquele local, a não ser que o levassem à força. Sabia bem que o primeiro achado fora escondido por ele próprio; como podia esperar o segundo? Não fizera aquilo senão para tirar melhor partido de sir Arthur. - Então - disse Oldbuck - como esperavas que sir Arthur fosse lá sozinho? - Oh! - respondeu Edie, gracejando - Eu tinha cá uma certa história sobre Misticot que o levaria, bem como ao senhor, a mais de quarenta milhas de distância. Aliás, devíamos supor que ele seria atraído de novo ao local onde encontrara a primeira prata, visto que não conhecia nem uma palavra do enigma. Em suma, tendo a prata aquela forma, encontrando-se sir Arthur na mais premente necessidade dela e não estando Lovel resolvido a deixar suspeitar de onde lhe vinha o socorro (pois era a coisa em que mais insistia), não encontrámos melhor expediente do que aquele, depois de termos dado muitas voltas ao miolo sobre o assunto. E se, por um estranho acaso, Dousterswivel lhe pusesse as garras em cima, eu iria imediatamente 469 a sua casa ou da do xerife, para o desmascarar. - Bem, apesar de todas as vossas prudentes precauções, penso que o expediente resultou melhor do que se devia esperar. Mas como diabo possuía Lovel uma tal porção de barras de prata? - É o que não posso dizer; aquilo foi posto a bordo com outros pertences que ele tinha em Fairport, sem dúvida. De qualquer forma, metemo-las numa das caixas de munições do brigue, para sua segurança e comodidade de transporte. - Santo Deus! - exclamou Oldbuck, cuja memória recuava ao começo do seu conhecimento com Lovel Esse jovem a quem eu paguei o jantar em Queens Ferry, para quem queria fazer uma subscrição em Fairport, arrisca tanta prata num caso desta natureza! E sempre mantiveste correspondência com Lovel? - Recebi dele um bilhetinho a dizer-me que teria ontem um pacote em Tannonburgh com cartas muito importantes para a família de Knockwinnock, pois ele suspeitava de que lhe abriam as cartas no posto de Fairport. Deve ser verdade, pois ouvi dizer que Mr. Mailsetter ia perder o lugar, por se ter ocupado em demasia com os negócios dos outros e não com os seus. - E que recompensa esperas tu, Edie, por teres sido conselheiro, mensageiro, guarda e confidente de todos esses assuntos? - Que diabo quer o senhor que eu espere, com excepção de que alguns
gentlemen do país venham ao enterro do velho pobre e que o senhor vá à cabeça do cortejo, como o fez com o pobre Steenie Muckíebackit? Que pena ele me causou! É-me indiferente ir para um lado ou para outro, eu, que ando sempre pelos caminhos. Mas, por exemplo, confesso que me senti muito feliz ao sair da prisão, porque receava que aquela maldita carta chegasse enquanto eu ali estivesse fechado como uma ostra, e que tudo corresse mal por eu não poder ir buscá-la. Havia ocasiões em que pensava em descarregar tudo aquilo sobre o senhor, mas seria desobedecer às ordens peremptórias de Mr. Lovel; e eu sabia que ele tinha necessidade de avistar-se com alguém em "Edimburgo antes de fazer o que queria por sir Arthur e sua família. 470 - E agora vejamos um pouco os negócios públicos, Edie. Diz-se que eles desembarcam, não é verdade? - É verdade, senhor, chegaram ordens severas para que os voluntários e as forças que estão aqui estivessem de prevenção. Também se diz que vai chegar um jovem oficial de mérito para examinar os meios de defesa. Eu vi a criada do bailio, que levava o seu cinturão e as calças brancas, e ajudei-a um pouco, porque ela não se entendia com aquilo; tão bem que soube todas as notícias sem dificuldade. - E que pensas de tudo isso, tu, como velho soldado. - Bem, não sei... Se eles vierem em tão grande número como se diz, estarão em força contra nós... Entre os nossos voluntários também não faltam velhos solteirões, embora me não convenha falar da incapacidade dos outros, eu, que já não presto agora para grande coisa... mas, apesar disso, havemos de fazer o melhor que pudermos. - Quê! Acaso o espírito guerreiro desperta em ti, Edie? Aqui arde o fogo até às cinzas. Acreditarias; Edie, que servisses de grande coisa para defender? - Eu, senhor! Não sirvo de grande coisa!... E então o país, e as encostas, e os vales, que eu tanto gosto de percorrer! E os lares onde encontro o meu bocado de pão! E as crianças que acorrem para brincar comigo quando eu chego à entrada de uma cidade! Diabo! - continuou ele, agarrando o bastão com muita energia - se eu tivesse tanto vigor como boa vontade, por uma tão boa causa ainda estenderia alguns por terra. - Bravo, bravo, Edie! Um país nunca estará bem em perigo, enquanto houver um mendigo tão disposto a combater pela sua escudela como um senhor pelos seus bens. A conversa recaiu em seguida sobre os pormenores da noite que Edie e Lovel passaram nas ruínas de Santa Ruth, os quais divertiram muito o Antiquário. - Eu teria dado um guinéu - disse ele - para ver 471 esse patife do alemão presa das angústias do terror que o seu charlatanismo inspirava aos outros, e receando alternadamente o furor do patrão e a aparição de algum diabrete. - 'Palavra - disse o mendigo - era tempo que aquilo acabasse para ele, porque dir-se-ia que o espírito do Inferno Ajaezado se apoderara de sir Arthur. Mas que vai ser feito desse vagabundo? - Soube esta manhã, por uma carta que recebi, que ele te iliba da acusação formulada contra ti e que se oferece para fazer revelações que tornarão a solução dos negócios de sir Arthur mais fácil do que se esperava. Foi o que me escreveu o xerife, e ajunta que comunicou algumas
informações secretas ao governo, em consequência das quais deve, diz-se, enviá-lo ao seu país para lá realizar as suas proezas de charlatão. - E todas as galerias, rodas, guindastes, máquinas que se fizeram para Glenwithershins, que se fará de tudo isso? -indagou Edie. - Espero que os operários, antes de se retirarem, farão uma alegre fogueira de todos esses maquinismos, como um exército que inutiliza a artilharia quando é obrigado a levantar um cerco; e quanto às galerias, talvez ainda possam servir de armadilha àqueles que, com tanta esperteza como nós, também queiram largar a presa para agarrar a sombra. - Senhor meu Deus! Queimar todas essas máquinas! É no entanto uma grande perda; o senhor não faria melhor em tentar apanhar o que pudesse das suas cem libras esterlinas, vendendo esses objectos? alvitrou o mendigo, num tom que parecia denotar interesse. - Nem um ceitil - disse o Antiquário com mau humor, afastando-se dele dois ou três passos; depois, voltando, "e meio a sorrir da sua irritabilidade, disse-lhe Entra em casa e lembra-te do conselho que te dou, de nunca falares de minas diante de mim, nem diante de meu sobrinho de uma foca ou lobo-marinho, como vocês lhe chamam. - Preciso de voltar a Fairport - disse o velho errante - para ver o que se diz da invasão; mas lembrar-me-ei do que Vossa Honra acaba de me dizer, de nunca lhe falar de um lobo-marinho, nem ao capitão 472 Heitor das cem libras esterlinas que o senhor deu a Dousterswivel. - Diabos te levem... Não te disse já que não me falasses nisso? - Meu Deus! - exclamou Edie, simulando um ar de surpresa - Julgava que não era proibido gracejar ao conversar com Vossa Honra, a não ser sobre o assunto do Petrorium e do óbolo que o bufarinheiro lhe vendeu por uma medalha antiga. - Ora, ora - disse o Antiquário, afastando-se rapidamente e entrando em casa. O mendigo ficou um momento a segui-lo com os olhos, depois soltou uma gargalhada, tal como uma pega ou um papagaio que se aplaude do êxito de alguma das suas maliciosas partidas; em seguida, retomou mais uma vez o caminho de Fairport. O hábito de deambular sem descanso tinha-lhe dado uma espécie de inquietação e necessidade de mudar de lugar, que ainda aumentavam pelo prazer de colher novidades. Depressa voltou à cidade, que de manhã não abandonara por outro motivo senão para ter uma pequena conversa com Monkbarns. LXV O fogo cintila num clarão avermelhado no sito de Pownelí. Três sinais estavam colocados sobre o Skiddaw... O som da trompa não cessava de ecoar nos bosques e nos vales. JAMES HOQQ A sentinela que velava na montanha julgou sem dúvida estar a sonhar quando viu a fatal floresta de Birnam pôr-se em marcha para Dunsinane; assim o velho Caxon, que, empoleirado na barraca no alto do seu rochedo, se desenfadava sonhando com o próximo casamento de sua filha e com a dignidade de sogro do tenente Taffril, foi colhido de igual surpresa, quando os olhares que lançava uma vez por outra, para descargo de consciência, ao sinal que correspondia ao seu, notou uma luz nessa direcção. Esfregou os olhos, olhou de novo, socorrendo-se de uma balestra 473 que ali fora colocada para visar precisamente a ponta e, para seu grande
terror, viu a luz aumentar como um cometa aos olhos de um astrónomo, e cujo aspecto vem ameaçar as nações de desordem. - O Senhor nos ajude! - proferiu Caxon - Que se deve fazer agora?... Por felicidade, isso compete a melhores cabeças do que a minha; no entanto, vou acender o farol. Acendeu efectivamente o seu farol, que derramou pelos céus um longo rastro de luz, cuja claridade, atemorizando as aves marinhas, expulsandoas dos seus ninhos, projectou ao longe, sobre as ondas do mar, um reflexo avermelhado. Os outros guardas, confrades de Caxon, tão diligentes como ele, avistaram o seu sinal e acenderam os seus. Em breve, todos os fogos brilhavam no alto dos promontórios, no topo das montanhas interiores, e esses sinais espalharam por todo o país o alarme da invasão. O nosso Antiquário, cabeça bem aquecida por dois duplos barretes de dormir, saboreava um pacífico repouso, quando foi acordado em sobressalto pelos gritos de sua irmã, de sua sobrinha e das duas criadas. - Que diabo vem a ser isto -indagou ele, sentando-se na cama - Todas as fêmeas no meu quarto, a esta hora da noite!... Estão todas doidas? - O sinal, meu tio! - bradou Miss Mac Intyre. - Os franceses que nos vêm massacrar! - exclamou Miss Grizel. - O sinal! O sinal!... Os franceses! Os franceses! A morte, a morte! Ou talvez pior que a morte! - exclamaram as duas criadas, em coro como na ópera. - Os franceses! - disse Oldbuck, levantando-se bruscamente - Fora do meu quarto, fêmeas que vocês são, quero vestir-me. E escutem: tragam-me a minha espada. - Qual, Monkbarns? -gritou-lhe sua irmã, apresentando-lhe, com uma mão, uma espécie de cutelo recurvo de cobre, do tempo dos romanos, e com a outra uma lâmina de punhal sem cabo. - A mais comprida, a mais comprida! - bradou Jenny Rintherout, arrastando atrás dela um montante para duas mãos, do século XII. - Fêmeas, fêmeas - exclamou Oldbuck, muito excitado 474 - acalmem-se e não se entreguem a vãos terrores!... Têm a certeza de que eles chegaram? - A certeza, mais do que a certeza! - exclamou Jenny - Todos os que estão em estado de pegar em armas sobre a terra e sobre o mar, todos os voluntários e batalhões de rendeiros estão a pé e marcham para Fairport, tão depressa quanto homens e' cavalos se podem mover... e o velho Mucklebackit lá foi também, como se ele pudesse servir para alguma coisa. Ai, é agora que se vai sentir a perda daquele que bem poderia servir o seu rei e o seu país! - Dá-me - disse Oldbuck - a espada que meu pai levou em 45; não tem cinturão nem bainha, mas passaremos sem eles. Ao falar assim, enfiou o ferro na algibeira das calças. Nesse momento entrou Heitor, que estivera numa eminência vizinha a certificar-se da realidade desse alarme. - Onde estão as tuas armas, meu sobrinho? - perguntou Oldbuck - Onde está a tua espingarda de dois canos, que nunca abandonavas quando não era precisa? - Ora, ora - disse Heitor - a quem já se viu pegar numa espingarda de caça para um combate?... Como vê, enverguei o meu uniforme... Creio ser de mais utilidade, se me derem um comando, do que dez espingardas de dois
canos; e quanto ao senhor, faria bem em dirigir-se a Fairport, a fim de dar ordens para que tratem de prover ao alojamento e à alimentação dos homens e dos cavalos, e impedir a desordem. - Tens razão, Heitor; creio que a minha cabeça será mais útil do que o meu braço. Mas aí está sir Arthur que, entre nós, não é capaz de grande coisa, tanto de uma maneira como de outra. Sir Arthur era provavelmente de opinião diferente; porque, envergando o seu uniforme de governador da costa, se dirigia a Fairport, e entrara de passagem para levar Mr. Oldbuck, cuja sagacidade, depois dos últimos acontecimentos, lhe inspirava mais confiança do que nunca. Em despeito de todas as súplicas das fêmeas, que o Antiquário quis deixar em Monkbarns, à guisa de guarnição, aceitou imediatamente, com seu sobrinho, a oferta de sir Arthur. Só os que foram testemunhas de semelhante cena podem fazer uma ideia do barulho e do movimento que 475 perturbavam a cidade de Fairport. Viam-se através das vidraças inúmeras luzes que, aparecendo e desaparecendo sucessivamente, denunciavam a confusão que reinava no interior das casas. As mulheres da classe baixa estavam reunidas e peroravam na praça do mercado. Os voluntários dos campos chegavam de todos os concelhos, galopavam pelas ruas, separadamente ou em grupos de cinco e seis, segundo se encontravam na estrada. Os tambores e os pífaros dos voluntários, tocando às armas, misturavam-se com a voz dos oficiais, e com o som das trompas e o repique dos sinos. Os navios no porto estavam iluminados, e escaleres enviados pelas fragatas aumentavam a confusão geral ao desembarcarem homens e armas destinados à defesa da praça. Era Taffril quem vigiava, com muita actividade, esta parte dos preparativos. Dois ou três navios ligeiros tinham-se desprendido dos seus cabos e alcançado o largo para irem à descoberta do inimigo. Tal era a cena de confusão geral através da qual sir Arthur Wardour, Oldbuck e Heitor atingiram a praça principal, onde estava situado o município. Este achava-se iluminado, e os magistrados tinham-se reunido com os principais burgueses; e nessa ocasião, como em todas do mesmo género na Escócia, notava-se a que ponto o bom-senso e a firmeza natural deste povo supriram tudo o que pudesse faltar-lhe em experiência. Os magistrados eram assediados pelos quarteis-mestres dos diversos corpos a fim de entregarem bilhetes de alojamento para homens e cavalos. - Bem - disse o bailio Little John - metamos os cavalos nos nossos armazéns e os homens nos nossos locutórios; partilhemos as nossas ceias com uns e as nossas ferragens com os outros. Enriquecemos sob um governo livre e paternal, chegou o momento de lhe mostrarmos que conhecemos o preço. Todos os que estavam presentes lhe responderam com um grito geral de aprovação; e os bens dos ricos, assim como as pessoas dos indivíduos de todas as classes, foram unanimemente consagrados à defesa da pátria. O capitão Mac Intyre actuou nesta ocasião como conselheiro militar e ajudante-de-campo do principal 476 magistrado; nessa qualidade, revelou um grau de presença de espírito e um conhecimento da sua profissão que seu tio estava longe de esperar. Este último, lembrando-se do seu estouvamento e impetuosidade habituais, olhava-o de vez em quando com assombro, ao notar a maneira calma e pausada com que ele explicava as diversas providências de precaução que a
experiência lhe sugeria, e dava ordens para as fazer executar. Achou os diferentes corpos em boa ordem, e viu os elementos irregulares de que se compunham, grande força pelo número e cheios de confiança e de coragem. A experiência militar tinha nesse momento um preço importante que se sobrepunha de tal maneira a todos os outros direitos de distinção, que até o velho Edie, em lugar de ser desdenhado como Diógenes em Sinope, que o deixavam rolar o seu tonei quando em sua volta se preparavam para combater, foi encarregado de vigiar a distribuição de munições, dever de que se desincumbiu muito bem. No entanto, ainda se esperava com impaciência duas coisas: a primeira, a presença dos voluntários de Glenallan, de que se formara um batalhão particular por deferência pela importância daquela família, e a segunda, a chegada do oficial que se anunciara, e que, encarregado do comando em chefe de todas as providências de defesa da costa, estava autorizado pela sua missão a dispor inteiramente da força militar. Por fim, o ruído das trompas anunciou a chegada de todos os rendeiros de Glenallan, e o próprio conde, para grande surpresa de todos que conheciam os seus hábitos e estado de saúde, apareceu à sua frente, fardado. Formavam um belo esquadrão, bem encavalgado, inteiramente constituído por rendeiros das terras baixas do conde, e eram seguidos por um regimento de quinhentos homens que o conde mandara descer das suas montanhas, completamente equipados em traje nacional e com as suas gaitas-de-foles a tocar na vanguarda. O asseio e ar marcial deste corpo de vassalos excitaram a admiração do capitão Mac Intyre; mas seu tio ficou ainda mais impressionado, ao ver a que ponto a constituição débil do seu chefe parecia reanimada nesse momento de crise, pelo espírito cavalheiresco e guerreiro que sempre caracterizara a sua casa. Reclamou e obteve para ele e para os seus 477 o posto mais exposto ao perigo, revelou a maior prontidão nas disposições que foi preciso tomar, e não mostrou menos sagacidade ao discutir a sua utilidade. Os primeiros raios do dia vieram brilhar sobre o conselho militar de Fairport ainda reunido, e encontraram toda a gente ocupada, com o mesmo ardor, nos preparativos de defesa. Finalmente, ouviu-se um brado no meio do povo; - Eis o bravo major Neville que chega com outro oficial! E a sua cadeira de posta, atrelada a quatro cavalos, atravessou a praça, sob as aclamações dos voluntários e dos habitantes. Os magistrados, acompanhados dos adjuntos da tenência, apressaram-se a ir recebê-lo às portas do município; mas qual não foi a sua surpresa, e sobretudo a do Antiquário, ao reconhecerem sob o elegante uniforme e chapéu militar as feições do pacífico Lovel. Afectuosos abraços, um cordial aperto de mão, foram necessários a Oldbuck para se convencer de que seus olhos não se enganavam. Sir Arthur não ficou menos surpreendido ao reconhecer o filho, capitão Wardour, no companheiro de Lovel, ou antes, do major Neville. As primeiras palavras dos jovens oficiais foram para dar positiva certeza a todos que estavam presentes de que o ardor e o zelo que acabavam de patentear não podia ter outra utilidade senão demonstrar quanto se podia contar, em caso de necessidade, com a sua actividade e a sua coragem. - O guarda instalado no topo de Halket - disse o major Neville - segundo o que soubemos por informações colhidas no caminho, foi muito naturalmente induzido em erro pela fogueira de festa que alguns ociosos acenderam na montanha que domina Glenwithershins, e precisamente na linha do sinal a que o seu corresponde.
Oldbuck lançou então um olhar significativo a sir Arthur, que respondeu com outro não menos embaraçado e um encolher de ombros. - Provavelmente, são as máquinas que em nossa cólera condenámos à fogueira - disse o Antiquário, recobrando coragem, embora interiormente estivesse envergonhado de ter sido a causa de tanta desordem Desejaria do fundo do coração que esse Dousterswivel 478 fosse para o diabo! Dir-se-ia ter-nos deixado em herança uma série de erros e de asneiras, como se, ao partir, acendesse um rastilho de pólvora. Qual será o primeiro petardo que irá agora partir-nos as pernas! Mas eis que chega o prudente Caxon. Vamos, levante a cabeça, imbecil. Têm os seus superiores de suportar a censura das suas asneiras; e olhe, tome lá este instrumento - (deu-lhe a espada) - em verdade, não sei que teria respondido ontem a um homem que me dissesse que eu hoje havia de trazer esta arma ao meu lado. Nesse momento, sentiu que lorde Glenallan lhe apertava brandamente o braço, o levava a um aposento isolado e lhe dizia: - Por Deus, quem é aquele jovem que se parece de uma maneira tão flagrante... - com a desditosa Eveline - disse Oldbuck, interrompendo-o - O meu coração sentiu-se atraído por ele, desde o primeiro dia, e Vossa Senhoria explica-me neste momento a causa. - Mas quem, quem é ele? - continuou lorde Glennallan, apertando o Antiquário num movimento convulsivo. - Dantes chamar-lhe-ia Lovel; mas parece agora que se transformou em major Neville. - Aquele que meu irmão criou como seu filho natural, que nomeou seu herdeiro. Deus da bondade, é o filho da minha Eveline! - Alto, milorde, um momento! - disse Oldbuck Não se entregue com excessiva pressa a tal suposição; que probabilidades há? - Não é uma probabilidade, é uma certeza absoluta. Recebi ontem uma carta do agente de que lhe falei, a informar-me de toda a história. Não foi senão apenas ontem que soube tudo; mas, por amor de Deus, Mr. Oldbuck, traga-mo, para que seu pai possa nele fixar os olhos e abençoá-lo antes de expirar. - Certamente; mas, no interesse de ambos vós, dê-me uns momentos para o preparar. Saiu, resolvido a colher informações mais exactas, antes de se deixar arrastar à convicção de um facto tão estranho, e encontrou o major Neville a expedir as ordens necessárias para dispersar as forças que se tinham reunido. 479 - Dê-me o prazer, major Neville, de abandonar por um momento essa tarefa aos cuidados do capitão Wardour e de Heitor, com o qual espero já se tenha reconciliado por completo - (Neville começou a rir e estendeu a mão a Heitor do outro lado da mesa) e, por favor, queira conceder-me uns instantes de audiência. - O senhor tem o direito de dispor de mim, Mr. Oldbuck, mesmo que o assunto de que me ocupe seja ainda mais urgente - respondeu Neville - Não me esqueci de que o enganei com um nome suposto e que recompensei a sua hospitalidade ferindo seu sobrinho. - O senhor tratou-o como ele merecia - disse Oldbuck-embora eu deva convir de passagem que ele hoje mostrou tanto bom-senso como coragem. Palavra, se ele quisesse estudar um pouco e ler César e Políbio e os
Stratagemata Polyxni, creio que avançaria no exército, e eu ajudá-lo-ia, com certeza. - Ele é absolutamente digno - respondeu NeviiLe - Agradeço-lhe, por meu turno, a indulgência que me concede, e que mereço tanto mais que talvez não tenha a felicidade de ter mais direito ao apelido de Neville, pelo qual sou geralmente tratado, do que ao de Lovel, sob o qual me conheceu. - Sim? Pois bem, é preciso então que procuremos outro ao qual o senhor possa ter um direito sólido e legal. - Senhor, lisonjeia-me que a desdita do meu nascimento não lhe pareça assunto que possa prestar-se a gracejos. - De modo algum, jovem - respondeu o Antiquário, interrompendo-o - Creio saber mais do que o senhor sobre o seu próprio nascimento, e, para o convencer, dir-lhe-ei que o senhor foi criado e conhecido como filho natural de Geraldin Neville, de Nevillesburgh, em Yorkshire, e destinado, suponho eu, a ser seu herdeiro. - Perdoe-me. Não fui autorizado a conceber tais esperanças: não se poupou nada para a minha educação e empregou dinheiro e crédito para me fazer avançar no exército; mas creio que meu suposto pai teve por várias vezes ideias de casamento, embora nunca as realizasse. - Porque diz meu suposto pai? Que é que o pode 480 levar a acreditar que Mr. Geraldin Neville não era realmente seu pai? - Estou convencido, Mr. Oldbuck, de que o senhor não me faz perguntas sobre um ponto tão delicado para apenas satisfazer uma vã curiosidade; confesso-lhe, pois, que o ano passado, enquanto ocupámos uma pequena cidade da Flandres francesa, encontrei num convento, perto do qual me alojava, uma mulher que falava inglês de maneira notável... Era espanhola e chamava-se Teresa d'Acunha... Durante o nosso conhecimento, descobriu quem eu era e deu-se-me a conhecer como pessoa que cuidara da minha infância. Deu-me a entender por várias vezes que eu pertencia a uma classe elevada, que se tinham cometido injustiças a meu respeito, e prometeu-me uma revelação mais completa no caso da morte de uma dama que estava na Escócia, e durante a vida da qual ela resolvera guardar segredo. Também declarou que Mr. Geraldin Neville não era meu pai. Fomos atacados pelo inimigo e expulsos da cidade, que foi entregue à pilhagem e ao furor dos republicanos. As ordens religiosas eram principalmente objecto do seu ódio e da sua crueldade... O convento foi totalmente queimado, nele pereceram várias religiosas, entre outras Teresa, e eu perdi com ela toda a esperança de alguma vez conhecer o segredo do meu nascimento... Tudo, porém, me leva a crer que foi acompanhado de circunstâncias trágicas. - Raro antecedentem scelestum, ou, como posso dizer aqui, scelestam disse Oldbuck - dveruit pozna (1), os próprios epicureus o dizem... Mas que fez o senhor então? - Escrevi a Mr. Neville a este respeito, mas sem resultado... Obtive em seguida uma licença e vim lançar-me a seus pés, suplicando-lhe que completasse a informação que Teresa começara a dar-me. Recusou-se e, ante as minhas instâncias, lamentou com indignação os favores de que me cumulara... Achei que ele abusava dos direitos de benfeitor, visto que fora forçado a concordar que tinha poucos aos de um pai. Renunciei então ao apelido de Nevilla e (1) Raramente o culpado escapa ao castigo. - N. do T. 481 tomei aquele sob o qual me conheceu. Foi por essa época que, morando perto de um amigo que auxiliava o meu disfarce, travei conhecimento com
Miss Wardour e fui assaz romanesco para a seguir até à Escócia. O meu espírito flutuava entre vários projectos de futuro, mas resolvi, por fim, fazer uma derradeira tentativa junto de Mr. Neville para saber o segredo do meu nascimento... Estive muito tempo sem receber a sua resposta; o senhor estava presente quando ela me foi entregue. Informava-me do mau estado da sua saúde e suplicava-me, no meu próprio interesse, que não procurasse descobrir o grau de parentesco que nos unia, nem a natureza das minhas relações com ele, mas que me contentasse com a certeza de que eram bastante próximas e bastante íntimas para o autorizar a constituirme seu herdeiro. No momento em que me preparava para ir visitá-lo, um segundo expresso trouxe-me a notícia de que ele deixara de existir. A posse de uma tão grande fortuna não pôde distrair-me do remorso que experimentava, ao pensar na minha atitude para com o meu benfeitor; e algumas expressões da sua carta, que pareciam insinuar que uma mancha mais vergonhosa que a da ilegitimidade assinalara o meu nascimento, excitaram a minha inquietação ao lembrar-me dos preconceitos de sir Arthur. - E o senhor adoeceu à força de alimentar ideias tão melancólicas, em vez de vir consultar-me e contar-me toda a sua história? - É verdade. E em seguida vieram o meu duelo com o capitão e a necessidade de abandonar Fairport e suas vizinhanças. - E de dizer adeus a Miss Wardour, à Caleáónia... - O senhor o diz. - E depois disso ocupou-se, suponho eu, em projectos para socorrer sir Arthur? - Sim, senhor, com a ajuda do capitão Wardour, em Edimburgo. - E tendo aqui Edie Ochiltree por ajudante... Como vê, estou ao corrente de toda a história... Mas como obteve aquelas barras? - É uma quantidade de prata que pertenceu a Mr. Neville, e que fora deixada em depósito em casa de alguém de Fairport; algum tempo antes de morrer, dera ordem para a fundir. 482 - Agora, major Neville, ou permita-me antes que diga Lovel, porque me agrada sobretudo chamar-lhe assim, creio que em breve terá de trocar esses dois nomes pelo do estimável William Geraldin, ou melhor, lorde Geraldin. O Antiquário contou-lhe então em pormenor as circunstâncias estranhas e melancólicas da morte de sua mãe. - Não tenho a menor dúvida - ajuntou ele - de que seu tio quis fazer acreditar que o filho desse desditoso casamento não existia... talvez tivesse mesmo em vista a herança de seu irmão. Ele era então um jovem estouvado e perdulário... Mas o seu relato e a história de Teresa absolvem-no igualmente de ter a menor intenção malévola contra a sua pessoa, apesar das suspeitas que a excitação em que aparecera perante Elspeth fizera admitir. Agora, meu caro amigo, que seja eu quem tenha o prazer de o conduzir aos braços de seu pai. Não tentaremos descrever tal entrevista. As provas dos dois lados foram completas e não deixaram nada a desejar, porque Mr. Neville escrevera uma narrativa exacta de todo esse acontecimento e fechara-a num sobrescrito que deixara nas mãos do seu intendente de confiança, com ordem de não permitir que abrissem senão depois da morte da velha condessa. O motivo que o fizera guardar o segredo por tanto tempo estava no receio que poderia produzir uma tal descoberta sobre um carácter tão violento e tão imperioso como o dela.
Na noite desse dia memorável, os rendeiros e voluntários de Glenallan beberam pelas prosperidades do seu jovem amo. Um mês depois, lorde Geraldin desposou Miss Wardour, e foi o Antiquário quem apresentou à noiva o anel nupcial, um anel de ouro maciço de um trabalho antigo, no qual estava gravada a divisa de Aldobrand, Kunst macht gunst (1). O velho Edie, o homem mais importante que alguma vez usou roupão azul, deambula livremente, e ora vai a casa de um amigo, ora a casa de outro, e gaba-se de nunca viajar senão em dias de sol. ültimamente, (1) A habilidade e a tenacidade conduzem ao êxito. - N. Do T. 483 porém, notou-se nele alguma disposição para se fixar, vendo-se frequentemente numa linda choupana entre Monkbarns e Knockwinnock, para onde Caxon se retirou depois do casamento de sua filha, a fim de se encontrar no centro das três perucas da paróquia, que ele continua a tratar, mas apenas por gosto. Ouviu-se Edie repetir que era um local muito alegre, e que era consolador pensar que se tinha um cantinho semelhante para se abrigar num dia de chuva. Como seus músculos começavam a inteiriçar-se um pouco, julgou-se que ele acabaria por fixar-se ali. Protectores tão generosos como opulentos, lorde e lady Geraldin não esqueceram nas suas liberalidades nem a senhora Hadoway nem os Mucklebackit. A primeira fez digno uso dos seus benefícios, os últimos não souberam aproveitá-los. Contudo, continuam a recebê-los, mas sob a administração do velho Edie, que se encarregou de lhos levar, e eles aceitam-nos sem protestarem por recebê-los da sua mão. Heitor progride rapidamente no exército. O seu nome apareceu mais de uma vez na gazeta, e ganhou em proporção as boas graças de seu tio. Uma circunstância não menos agradável para o jovem militar, foi que matou dois lobos-marinhos, o que pôs termo aos constantes gracejos do Antiquário acerca da phoca. Há pessoas que falam de um casamento de Miss Mac Intyre com o capitão Wardour; mas não damos esta notícia senão como boato ainda não confirmado. O Antiquário faz frequentes visitas aos castelos de Glenallan e de Knockwinnock... Parece ter intenção de dar a última demão em dois ensaios, um sobre a cota de malha do grande conde, outro sobre a manopla esquerda do Inferno Ajaezado... Nunca deixa de perguntar a cada passo se lorde Geraldin começou a Caledónia. Entretanto, já completou as suas notas, que, segundo julgamos, ficarão para benefício de quem as publicar, sem qualquer risco ou encargo para o Antiquário. FIM
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