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Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
Cuiabá, MT. 2013
© Fernando Silva Teixeira Filho | Wiliam Siqueira Peres | Carina Alexandra Rondini | Leonardo Lemos de Souza, 2013. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98. A EdUFMT segue o Acordo Ortográico da Língua Portuguesa em vigor no Brasil desde 2009. A aceitação das alterações textuais e de normalização bibliográica sugeridas pelo revisor é uma decisão do autor/ organizador.
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Sumário Prefácio............................................................................................... 7 Anna Paula Uziel
Seção I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea ........................................................................................ 15 Diálogos sobre la adopción en españa por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias............. 17 Rosa Borge Bravo Raquel (Lucas) Platero
La dignidad gay ........................................................................................ 27 Marina Castañeda
Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina ...................................................................... 35 Ana María Fernández
“Quem se importa com experimentos?” ontologias variáveis, inquietações queer ................................................................. 59 Dolores Galindo
Psicologia e Políticas Queer.................................................................... 75 Wiliam Siqueira Peres
La sexualidad, aún un desafío para la Psicología.............................. 89 Gloria Careaga Pérez
Tópicos e desafios para uma psicanálise queer ................................. 99 Patricia Porchat
Biopolítica, Subjetivação e Saúde .......................................................113 Cristiane Gonçalves da Silva
em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia ...........123 Sandra Azerêdo
Gênero e suas expressões em um contexto educacional e de atendimento à infância e à adolescência em uma cidade do interior paulista ...................................................................141 Fernando Silva Teixeira-Filho Nayara Lima Longo Juliane Campos de Souza
Seção II – Queering e as Práticas “Psis” .........................................159 Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes ............................................................................................161 Juliana Helena Faria
Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade ....................177 Márcio Alessandro Neman do Nascimento
estudios de Género y LGBTI na Psicología Latinoamericana ...........195 Gloria Careaga Pérez ......................................................................................................................................
Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo, para onde caminharia o Movimento LGBT? .......................................................203 Tânia Pinafi
‘Pesquisa-aquendação’: Derivas de uma epistemologia libertina........... 213 Fernando Pocahy
educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira ..........................................................................235 Carina Alexandra Rondini Fernando Silva Teixeira Filho Lívia Gonsalves Toledo
estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal ..........................253 Cíntia Helena dos Santos
Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura............267 Paola Zordan
Vapores etnografados: Dos desejos de clientes, michês e pesquisador ............................................................................285 Elcio Nogueira dos Santos
Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres ...........................................................301 Lívia Gonsalves Toledo
Prefácio Anna Paula Uziel
Tania Navarro Swain abre seu texto Identidade nômade perguntando: “que estamos fazendo de nós mesmos?” (p. 325). Convido vocês, leitores e leitoras, para uma inquietação desse tipo na leitura deste livro Queer. Com os cuidados que a leitura de Colombrook (2009, p. 11) os faz ter com essa afirmação: “a teoria Queer é um reflexo do que define como Queer ou o conceito de Queer muda nos caminhos de sua teorização”? Apoiando-se em Butler, Swain (2002) afirma o caráter provisório da norma, o que faz com que estejamos em movimento. O binarismo que nos habita instala em nós sentidos fixos e unos das sexualidades, organizando identidades e aprisionando corpos e prazeres. Por que insistimos em ordenar o múltiplo, o diverso, as diferenças? Michel Foucault, Judith Butler, Gilles Deleuze atravessam muitos dos textos deste livro. Talvez para chacoalhar já que juntos, como diz Pelbart (2007, p. 61), “estamos todos à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas-de-vida de baixa intensidade, submetidos à mera hipnose, mesmo quando essa anestesia sensorial é travestida de hiperexcitação”. Imiscuído em fragmentos sobre a biopolítica em nós, este livro transborda resistências que podem ajudar no enfrentamento de vidas bestas. “Vida besta é esse rebaixamento global da existência, é essa depreciação da vida, é sua redução à vida nua, à sobrevida, é esse estágio último do niilismo contemporâneo” (Pelbart, 2007, p. 61) O livro, resultado das conferências e mesas redondas dos trabalhos apresentados durante o III Seminário Internacional “Pensando Gêneros: a psicologia para além do espelho”, bem como da parceria do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades (GEPS) com outros grupos de pesquisas e pesquisadores afinados às discussões contemporâneas sobre a necessidade de queerizar a Psicologia, é dividido em duas partes: Descontinuidades e Quering e as práticas psi. Ambas afirmam movimentos, desafiam os saberes psi, o-devir-pesquisador-em-nós, as sexualidades heteronormativas – todas aquelas que se pautam por esta referência e exploram sentidos da teoria queer.
SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias, de Rosa Borge Bravo e Raquel (Lucas) Platero, revela tensões entre a legislação sobre adoção no país e as práticas profissionais de psicólogos e assistentes sociais no âmbito da justiça quando precisam se posicionar frente ao desejo de constituição de laços legais de filiação por pais gays e mães lésbicas. A proposta Queer dos autores se expressa também no formato que elegem para envolver os leitores em seu diálogo. O fato de as leis não discriminarem direitos que casais possuem, sejam de mesmo sexo, ou de diferentes sexos, não significa que a sua aplicação garanta a igualdade de direitos. Inclusive porque as mediações são feitas muitas vezes por instituições privadas e por profissionais que pouco conhecem as discussões recentes sobre família LGBT. Para os autores, é preciso que se garanta transparência nos processos de adoção, entendendo que o sigilo profissional não é suficiente para um funcionamento ético, ao contrário, pode gerar arbitrariedades e reforçar a homofobia e a transfobia. Marina Castañeda, em La dignidad gay, mostra como no Ocidente a crescente aceitação da homossexualidade convive com a intolerância de parte da sociedade que ela denomina como “direita religiosa militante”. Apesar dos direitos conquistados nos últimos anos, são fortes esses movimentos que pretendem cercear não apenas o que já se conseguiu em relação à população LGBT, mas por a perder os avanços com relação ao aborto, divórcio, igualdade de gênero, entre outros. A autora destaca não apenas a normalização da homossexualidade e suas consequências, mas a importância da internet na construção de redes que prescindem de coincidência de espaço e que são fundamentais no fortalecimento de movimentos minoritários. E aposta em um momento de construção do que ela propõe como “dignidade gay”, o que demonstra uma passagem do pedido de compreensão para a exigência de respeito e que talvez tenha que passar, também, por mudanças no jeito cotidiano de se ser gay. Ambos os textos sublinham o caráter nefasto da homofobia e suas consequências tanto para a vida privada das pessoas envolvidas, quanto para a formação da sociedade. E demonstram que são muitos os passos entre a garantia legal de direitos, a variedade de olhares sobre as sexualidades e a micropolítica cotidiana. Talvez uma frase de Deleuze (2002) resuma bem algumas das tensões que habitam o que escapa do heteronormativo: “basta não compreender para
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Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
moralizar” (p. 29). Os três textos que se seguem nos colocam em movimento. O trânsito, o incessante incômodo com a diferença, as experimentações que propõem nos atiram e atiçam a lugares que se inventam ao chegar. Em Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas e transdisciplina, Ana María Fernández elenca e analisa brevemente diferentes movimentos políticos e acadêmicos de início na década de 1980, a partir de três dimensões: política, epistemológica e filosófica. Como pano de fundo, uma grande questão: o que fazer, como lidar com a diferença sem se remeter a idênticos ou origens? Trata-se, segundo a autora, de forçar os limites do possível para resistir e inventar dispositivos de forma cada vez mais coletiva. “Quem se importa com experimentos?” Ontologias variáveis, inquietações queer, de Dolores Galindo, nos convida a pensar sobre a noção de experimentos que movimenta sensações e devires. Acompanhada por Donna Haraway e outros autores, desliza do debate sobre sexo e heteronormatividade para relacionalidades entre humanos e não/humanos provocando o que chama de humanonormatividade, utilizando-se, para tal, de referências à arte. Wiliam Peres, em Psicologia e Políticas Queer, destaca as amarras do sistema que Butler intitula sexo/gênero/desejo/práticas sexuais e que cria viciados em identidades. Como estratégia de rupturas, toma Queer não como identidade, mas como verbo, possibilidades de movimentos que rompam com os imperativos da norma. O desafio, propõe o autor, seria borrar as fronteiras sem desmanchar pontes de conexão. Assim, aposta na transitoriedade dos sujeitos nômades e intima a Psicologia Social a se intrometer neste universo que explode binarismos. Gloria Careaga Pérez, em La sexualidad, aún un desafío para la Psicología, interpela a psicologia ao perguntar se há disposição para construções para além de categorias. O esquadrinhamento, propõe a autora, não pode se restringir ao que notamos como exótico, é preciso perturbar o hegemônico. Estão na cena os movimentos feministas e o que a autora denomina de LGBTI: se o primeiro não conseguiu, segundo a autora, dissociar sexualidade de reprodução, este último avança com propostas integracionistas. Historiciza, de forma resumida e precisa, percursos e apropriações da teoria Queer para discutir as relações entre sexo, gênero e sexualidade, considerando suas margens e normas e afirma a necessidade, em nossa região entendida como o Sul, de se cruzar o debate com
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
o racial, o étnico e a classe social. O texto de Patricia Porchat, Tópicos e desafios para uma psicanálise queer, assim como o que o precede, é mais um convite provocativo ao campo psi. A autora se inclina “na direção da construção de uma teoria que sustente uma prática psicológica adequada ao mundo contemporâneo”. Para tal, discute conceitos chaves para a Psicanálise como corpo e pulsão, linguagem, inconsciente, Édipo e parentesco utilizando autores como Judith Butler e Gayle Rubin que geram turbulências nas leituras da psicanálise. A aposta de Patricia é que a psicanálise não pactue com práticas de controle e normalização de identidades e práticas sexuais e que seja mais um ator na transformação da sociedade em relação às pessoas cujas expressões de gênero e sexualidade geram sofrimento. Em Biopolítica, Subjetivação e Saúde, Cristiane Gonçalves da Silva desenvolve uma interessante articulação entre biopolítica e sexualidade, a partir de uma discussão que inclui o sistema único de saúde brasileiro. Em seu artigo mostra a importância de se investir na saúde como campo político, articulada aos direitos humanos e à laicidade do Estado. O texto de Sandra Azerêdo intitulado Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia baseia-se nas ideias de Donna Haraway para enfatizar a importância do posicionamento do pesquisador, destacando aspectos éticos e políticos das investigações: é o posicionamento crítico que produz ciência. Para tal, a autora nos incita a um mergulho até mesmo na divisão naturalizada entre pesquisa quanti e qualitativa, visto que é a divisão o foco privilegiado das metodologias feministas. Um pesquisador deve procurar fazer conexões parciais. Fernando Silva Teixeira-Filho, Nayara Lima Longo e Juliane Campos de Souza em Gênero: breves problematizações a partir de discursos e práticas de um estabelecimento de atendimento à infância e à adolescência investigam de que forma representações de gênero se expressam no cotidiano das práticas de cuidados e educação. A partir de uma intervenção feita em uma instituição, os autores apontam que a lógica falocêntrica e a afirmação do binarismo são hegemônicas. Apostam, no entanto, que revisitar as noções de gênero, identidade, sexualidade, entre outras, pode ser um caminho possível no sentido de transformações que aportem outras práticas que não a exclusão e o aprisionamento. Na segunda parte alguns temas são revisitados, outros se inauguram, sempre com afetos que atravessam a teoria Queer. Embora a temática da violência contra crianças, em especial o abuso sexu10
Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
al, seja cada vez mais frequente em trabalhos acadêmicos, são poucos os que abordam a questão, como Juliana Helena Faria, em A problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes, incorporando as discussões de gênero. Ao fazer essa discussão, investe em autores que colocam em questão o binarismo, acompanhando a primeira parte do livro, o que subverte ainda mais este campo, o da violência, tão marcado por vítimas e algozes. A falta de dados sobre diversos aspectos das políticas públicas e as dificuldades de articulação de uma rede de proteção efetiva para crianças e adolescentes, presentes neste texto, são outros pontos que se somam às preocupações da autora cujo foco também aborda o trabalho psi. Márcio Alessandro Neman do Nascimento, em Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade, fazendo uso do método cartográfico, estuda corporalidades modificadas e visibilizadas para conhecer estilos de vida e práticas de cuidado de si e de prazer. O autor percebe, entrevistando pessoas e indo a locais de feitura de tatuagem e colocação de piercing, além de outras intervenções no corpo, que essas marcações corporais possuem um forte componente de gênero. Pontos como a possibilidade de a arte escapar do mercado e o controle social exercido ou não sobre esse desenho alternativo do corpo instigam os leitores. É desse corpo como caminho ético e político que o texto trata. Gloria Careaga Pérez, autora de Estudios de Género y LGBTI na Psicología Latinoamericana, nos presenteia com pistas sobre os estudos de gênero e sexualidade na América Latina - que vêm de longa data – até abordar a formação em psicologia cuja incorporação dessa temática é mais rara e incipiente. Assim, é possível ter contato com as origens, filiações teóricas e os cruzamentos do campo de estudos de gênero e sexualidade com outras temáticas. As latino-americanas reivindicam um sincretismo transformador e sua proposta está assentada em um projeto centrado em um “devir incessante, em um sujeito sem identidade, transgressor e emancipador”. Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo, para onde caminharia o Movimento LGBT?, de Tânia Pinafi, trata da complexidade do campo que reunimos sob a sigla LGBT, a partir de uma coletânea de eventos sociais que cruzam de maneira muito singular academia, governo e movimentos sociais. Estão em cena as tensões de um país que desenvolve políticas de governo direcionadas à população LGBT 11
SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
que convivem com estatísticas altas de violação de direitos básicos. Os três textos que se seguem colocam em análise o lugar daquele que conta sua experiência, seja ele psicólogo, seja pesquisador. A partir do termo aquendar, de origem identificada como provocativa, Fernando Pocahy quer fazer ranger a Psicologia em “Pesquisa-aquendação”. Derivas de uma epistemologia libertina, fazendo-a debater pelo avesso do que ele chama de hetero ou homonormas. As preocupações epistemológica e metodológica fazem transbordar o texto que se inspira em Foucault e autores da teoria Queer que nos acompanham pelos fragmentos instigantes das pistas de campo que o autor vai nos revelando. Em Educação sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira, Carina Alexandra Rondini, Fernando Silva Teixeira Filho e Lívia Gonsalves Toledo afirmam a importância de trabalhos sobre sexualidade nas escolas, em especial aqueles que priorizem uma participação-reflexiva de forma interdisciplinar e transversal. Embora tenha se tornado uma diretriz política há alguns anos no Brasil, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o envolvimento escolar cotidiano com o tema não é imediato, tampouco sem entraves. Foi desenvolvido um estudo transversal com adolescentes em escolas do Oeste Paulista abordando temas como violência, práticas sexuais, informação sobre sexo, entre outros que traz interessantes contribuições sobre vulnerabilidade e estigma o que, até o momento, apesar de todos os avanços, são recorrentes quando o assunto é sexualidade. Estudos Queer e práticas singularizadoras: potencialidades da Psicologia em execução penal, de Cíntia Helena dos Santos, desafia o encontro da Psicologia com a teoria Queer para pensar a prisão. Baseada em Foucault e Deleuze, toma a prisão como meio de confinamento por excelência e põe em análise o binarismo que se expressa, por exemplo, entre presos e os que por eles são responsáveis. Elcio Nogueira dos Santos, em Vapores etnografados. Dos desejos de clientes, michês e pesquisador, se propõe a discutir a “subjetividade do pesquisador e as relações de poder que se estabelecem entre este e seus pesquisados”. Imerso em uma pesquisa etnográfica, nos convida a conhecer saunas gays de São Paulo fazendo uso da teoria Queer para brincar com suas experimentações de antropólogo que transitavam entre o uso ou não de roupas adequadas ao local
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Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
que frequentava. Provocada pela compreensão de monstro da psicanálise, Paola Zordan, em Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura, convoca Deleuze e Guattari, entre outros, para uma digressão sobre o monstro, aquele que carrega em seu corpo o “pânico da indistinção e da perda de referência, as incertezas do verdadeiro, que, por natureza, é sempre diferente”. Trabalhando com histórias de vida de mulheres que não vivem em acordo com a sexualidade heterossexual, Lívia Gonsalves Toledo, em Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres, se debruça sobre uma homofobia “interiorizada”, conceito que ela problematiza, para tratar da construção política e existencial de seres sexuados e generificados. Swain (2002, p. 341) diz que “mudar um regime de verdade significa mudar de lugar, inverter os paradigmas para melhor dissolvê-los”. O tempo do nômade, diz Braidotti (2000), é o imperfeito. Sejamos nômades nas leituras desta obra. E aproveitem as piruetas1 que este livro certamente propiciará.
Referências bibliográficas BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires, Paidós, 2000. COLOBROOK, Claire. On the Very Possibility of Queer Theory, in: NIGIANNI, Chrysanthi e STORR, Merl. Deleuze and Queer Theory. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2009. DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia prática. São Paulo, Escuta, 2002. PELBART, Peter Pal. Biopolítica, Revista Sala Preta, v 7, n 7, 2007, p 57-66, disponível em http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF07/SP07_08.pdf, acesso em 28 de outubro de 2012. SWAIN, Tania Navarro. Identidade nômade: heterotopias de mim, in: RAGO, Margareth; ORLANDI. Luiz B. L. e VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.) Imagens de Foucault e Deleuze. Ressonâncias nietzchianas. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2002, pp.325-341. 1 A ideia de pirueta é inspirada em uma entrevista concedida por Félix Guattari à revista Teoria e Debate nº 12, em 2006, em que ele afirma ser sempre possível dar uma pirueta com a esperança.
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Seção I
(Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Diálogos sobre la adopción en españa por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias Rosa Borge Bravo, 1 Raquel (Lucas) Platero2
Abstract: Nuestra propuesta para el área “Queering y las prácticas psicológicas” se trata de un diálogo entre Rosa Borge Bravo, politóloga y profesora de la Universidad Oberta de Cataluña y Raquel (Lucas) Platero Méndez, psicólogo e investigador en la Universidad Complutense de Madrid, en el que discutimos el ámbito de la adopción por parte de las parejas lesbianas y gays en el contexto de Cataluña. Hacemos énfasis no sólo en el marco legal y de derechos del estado español, sino en las prácticas profesionales de la psicología a la hora de delimitar el tránsito entre la política pública y la implementación de la misma. La ley que permite el matrimonio entre personas del mismo sexo aprobada en 2005 establece las mismas condiciones para todo tipo de uniones, incluyendo entre otros derechos la adopción. Sin embargo la adopción sucede en el ámbito de las Comunidades Autónomas, donde las realidades son tremendamente heterogéneas. En el contexto de Cataluña, como ocurre en otras Comunidades Autónomas, estas adopciones públicas están mediadas por entidades privadas, en las que los profesionales de la intervención social son psicólogos y trabajadores sociales. Discutiremos algunos casos e informes de peritaje, así como las preguntas al Parlamento Catalán y los informes de la Fiscalía Antidiscriminación en los que se plantea las dificultades que surgen cuando las prácticas profesionales, en concreto desde la psicología, contiene valores heterosexistas, machistas y homófobos. Y cerraremos haciendo propuestas para una psicología crítica con una mirada Queer. Palabras clave: adopción por parejas del mismo sexo, Cataluña, lesbianas, gays, España, psicología crítica, Queer 1 Socióloga y politóloga, profesora de la Universitat Oberta de Catalunya. 2 Activista LGTBQ* , investigador en la Universidad Complutense de Madrid y docente en edu-
cación secundaria. * NOTA: Se trata de una conversación que tiene lugar el verano de 2011, en una serie de correos electrónicos que nos cruzamos entre julio y agosto, en el que sucede un intenso debate que aquí recogemos de forma resumida.
SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Introducción Cuando recibí (Lucas) la propuesta de Dr. WiliamSiqueiraPeres del Departamento de Psicología Clínica de la UNESP/Assis desde el mismo Brasil, en la que me proponía escribir en su libro “Psicologia y Estudios Queer”, me entusiasmé sin remedio. En seguida me vino a la cabeza mi formación, en la carrera de Psicología que hice en la Universidad Complutense de Madrid y cuánto eché de menos una mirada crítica y Queer sobre lo que estábamos aprendiendo. Pensaba en todas las personas que queriendo trabajar desde las diferentes disciplinas de la intervención social y las ciencias del cuidado aportar una mirada que supere los marcos patologizantes sobre la sexualidad, las diferentes familias, deseos e identidades. No pude sino reflexionar sobre cuán necesarias son estas iniciativas, no sólo para quienes nos hemos formado en cualquiera de las especialidades de la Psicología, sino también aquellas personas que están y estarán comenzando sus estudios. Y ahí es cuando imaginé que este artículo debía tener no sólo una propuesta queer sino un formato también un tanto queer. Una entrevista, un formato dialógico, podría mostrar de una forma dinámica los debates actuales y desafíos presentes sobre el papel de la Psicología y otras ciencias de la salud sobre una cuestión concreta y polémica, como es la adopción en el marco del derecho del Estado español. Y así comenzamos este proyecto que tiene dos interlocuciones: Rosa Borge Bravo, (socióloga y politóloga, profesora de la UniversitatOberta de Catalunya) y con Raquel (Lucas) Platero, activista LGTBQ3, investigador en la Universidad Complutense de Madrid y docente en educación secundaria. NOTA: Se trata de una conversación que tiene lugar el verano de 2011, en una serie de correos electrónicos que nos cruzamos entre julio y agosto, en el que sucede un intenso debate que aquí recogemos de forma resumida.
Diálogo Platero: En el Estado español se han aprobado toda una serie de leyes que conceden nuevos derechos a personas que anteriormente eran tratadas como 3 Acrónimo para designar a personas lesbianas, gays, transexuales, bisexuales y Queer.
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Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
delincuentes y peligrosos sociales, entre ellas las lesbianas, gays y transexuales. Es especialmente conocida la ley que permite el matrimonio entre personas del mismo sexo, ley aprobado en junio de 2005; sin embargo se conocen menos los detalles de esta ley, por ejemplo, con respecto a la adopción. Para explicarlo a un público que puede no estar familiarizado, te preguntaré, ¿las lesbianas y gays tienen derecho a adoptar y acoger a menores, tal y como tienen las personas heterosexuales, o las personas solas? Borge: Sí, tanto gracias a la Ley 13/2005 que modificaba el Código Civil español en materia de derecho a contraer matrimonio4, como gracias a otras leyes de las Comunidades Autónomas que permiten la adopción y acogida de menores a las parejas del mismo sexo, y que incluyen también a las parejas de hecho, del mismo y diferente sexo. Platero: Uno de los términos novedosos de la ley es que no se trata de una “ley especial”, sino que establece los mismos derechos para todos los ciudadanos, de una orientación sexual u otra. No se trata de “una ley de matrimonio gay”, sino de un cambio del Código Civil, que se aplica a todos los ciudadanos y ciudadanas. Así, si la ley trata de incluir la igualdad entre personas heterosexuales y homosexuales, ¿en qué términos lo hace? Borge: Resulta ser un añadido muy breve en Código Civil, en artículo 44, en el que a continuación de la afirmación de que: “El hombre y la mujer tienen derecho a contraer matrimonio conforme a las disposiciones de este Código”, se añade que: “El matrimonio tendrá los mismos requisitos y efectos cuando ambos contrayentes sean del mismo o de diferente sexo”.De esta manera, los derechos matrimoniales, que son muy diversos y numerosos (derechos sucesorios y de filiación, tributación fiscal, multitud de derechos económicos, derechos judiciales, etc..) se aplican también a las parejas del mismo sexo unidas en matrimonio. Platero: Uno de los derechos que regula esta ley es la adopción. Éste es un tema bastante controvertido, que ha generado bastante reacciones de los sectores más conservadores de nuestra sociedad, tanto en pasado como el presente. La adopción, además en diferentes países se ha regulado de una forma distinta. Por ejemplo, en el Reino Unido, la adopción está separada del matrimonio, era 4 Ley 13/2005, de 1 de Julio, por la que se modifica el Código Civil en materia de derecho a contraer matrimonio, BOE de 2 de Julio de 2005, no. 157.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
posible adoptar siendo una pareja del mismo sexo antes de que estuviera regulado el derecho de las parejas a formar una unión. Sin embargo, en el Estado español, el matrimonio incluye la adopción, pero cada Comunidad Autónoma regula cómo se produce el proceso de la adopción, siguiendo, eso sí, las leyes generales estatales. También nos preguntamos, siendo el nuestro un estado autonómico, cuando llega el momento de aplicar las leyes en el ámbito de la comunidades autonómicas, ¿cuál es el peso de los gobiernos autonómicos? ¿y de los gobiernos locales? Borge: En España son los gobiernos autonómicos los que tienen las competencias en materia de adopción, acogida y tutela de menores, pero todos los gobiernos autonómicos deben cumplir lo establecido en las leyes generales estatales, como el Código Civil o la Constitución. Por tanto, deben reconocer que las personas del mismo sexo pueden adoptar. Por su parte, las Comunidades Autónomas determinan las leyes que regulan estos procesos y son los que realizan y supervisan todo el proceso de adopción. Las leyes autonómicas no son discriminatorias, no pueden serlo porque estarían en contra de la Constitución y de los Estatutos de Autonomía, pero el problema está en la aplicación de los procedimientos y las normativas de funcionamiento, que en muchos casos fueron diseñados en décadas anteriores en las que no se aceptaba la adopción por parte de las personas homosexuales y se prestan a arbitrariedades y decisiones de los técnicos que no son evaluadas por ningún otro órgano técnico independiente. Platero: Vamos a ponernos en la situación de pensar en un caso en concreto, donde se pueda ver de qué estamos hablando. En el caso de Cataluña, hay instituciones responsables de estudiar si una persona o una pareja es apta para adoptar, ¿quiénes son? ¿porqué son instituciones privadas en lugar de publicas quienes se encargan de esta labor? ¿son instituciones religiosas católicas? ¿qué consecuencias tiene que sean asociaciones confesionales? Borge: En Cataluña, el InstitutCatalàd’Adopció i Acolliment (ICAA)5 se encarga del proceso de adopción y tutela de menores, pero delega en fundaciones y organismos privados la evaluación de las parejas para adoptar y la asignación de los menores a las familias. Esta delegación del proceso en fundaciones y
5 Ver: http://www.gencat.cat/benestar/icaa/
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Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
organismos privados se da en Cataluña, por ejemplo, pero no en otras Comunidades Autónomas, como el País Vasco en el que la evaluación y asignación la realiza el gobierno de cada provincia vasca. Platero: Pensemos ahora en el ciclo de las políticas públicas, es decir, la distancia entre el diseño de una ley y su aplicación. ¿Existe una distancia entre el derecho y la implementación del derecho adoptar? Borge: Creo que sí que existe esta distancia, porque aunque las leyes no discriminan, las normativas y reglamentos que rigen el procedimiento son de la década de los 80 y, en muchos casos, y los funcionarios y funcionarias o el personal técnico que actúan en los procesos cuentan con un margen de discrecionalidad muy considerables. El control de estos procesos por parte de la propia administración pública (cumplimiento del proceso administrativo) y el respeto a la dignidad de las parejas solicitantes no está en absoluto garantizados. No se aceptan los informes técnicos (por ejemplo, psicológicos) alternativos, se rechazan automáticamente todo tipo de alegaciones o quejas formales y no se permite el trámite de audiencia ni de réplica que está regulado por la ley de procedimiento administrativo español. Tampoco se ofrecen cifras comparadas y desglosadas por categorías de sexo ni informes sobre los procesos, que no se auditan ni supervisan de manera sistemática. Platero: Lo que estas diciendo es grave, porque supone que existen sesgos en la aplicación de la ley. Así me gustaría saber si conoces casos en los que se pongan trabas concretas a las lesbianas o gays a adoptar. ¿Qué tipo de trabas son? ¿Hasta que punto hay trabas “interseccionales” a la adopción (influye tener cierta edad, apariencia, clase social, etc. que no están reflejados formalmente en el proceso)? Borge: Por ejemplo, en Cataluña no ha habido voluntad política para establecer convenios con otros países para que las parejas del mismo sexo puedan adoptar en el extranjero. En consecuencia, sólo queda la posibilidad de la adopción nacional cuyo proceso está controlado por una sola fundación privada, cuya costumbre es situar en la lista de asignaciones en primer lugar a las parejas de distinto sexo y, en segundo lugar, a las madres solas y a las parejas del mismo sexo. Por otra parte, las técnicas y los técnicos encargados del proceso son personas poco preparadas para entender la realidad de las parejas homosexuales y no comprenden la complejidad de los procesos de “salir del
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
armario”, la importancia del asociacionismo LGTBQ para las familias homoparentales o el cuestionamiento de la dicotomía masculino-femenino. A todo ello, se une un mayor rechazo de la idoneidad en las parejas de lesbianas o gays si es que supera cierta edad. En el caso de las parejas homosexuales, la edad es un hándicap mayor que en el caso de las parejas heterosexuales. Las técnicas y los técnicos se fijan principalmente en la edad de la persona mayor de la pareja en el caso de la pareja homosexual y, en cambio, en las heterosexuales tienen en cuenta también la edad de la persona más joven. Todo ello, a pesar de que en España lesbianas y gays sólo pueden adoptar desde el año 2005 y, por tanto, es lógico que su media de edad sea mayor. Platero: Las afirmaciones que haces son serias, porque están denunciando algo ilegal, que no se debe permitir dentro del marco legal establecido. Sé que esta información es pública y que se ha hecho una protesta formal que se ha traducido en una serie de preguntas, tantoen el Parlamento Catalán como a la Fiscalía Antidiscriminación, alegando que se estaba produciendo tanto homofobia y sexismo en la aplicación de la ley. ¿Nos podrías hablar de estas preguntas? Borge: Sí, en alguna ocasión algún partido político como Iniciativa per Catalunya ha interpelado en el Parlamento Catalán a la anterior Consellera de Bienestar Social i Ciutadania sobre posibles casos de discriminación, en cuanto a la denegación de idoneidades a varias parejas homosexuales en Cataluña. La respuesta ha sido que las cifras de denegación son muy similares a las parejas heterosexuales y siempre por debajo del 8%. La Fiscalía Antidiscriminación y el Defensor del Pueblo en Cataluña (Síndic de Greuges) también han recibido quejas y denuncias a este respecto, pero les resulta muy difícil demostrar la existencia de discriminación, porque el proceso de valoración de las idoneidades no es transparente. No está supervisado por ningún ente o persona ajena a la única fundación que hace la valoración. Las entrevistas con los solicitantes no se graban y se realizan a puerta cerrada de forma que si hay denuncias o reclamaciones debido a preguntas o comentarios discriminatorios e irrespetuosos, las técnicas y técnicos simplemente niegan haberlas realizado. Además en el caso de denegaciones es común redactar en los informes que los solicitantes tienen problemas mentales y desequilibrios emocionales. Por tanto, todo queda reducido a una valoración técnica aparentemente neutra que concluye que los solicitantes tienen problemas psicológicos.
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Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
Platero: Llegamos a una cuestión importante para el ámbito profesional, que contiene implicaciones legales, pero también morales. ¿Qué papel juegan los profesionales en el derecho de adoptar? Me refiero a psicólogos y psicólogas que trabajan en el ámbito de la aplicación de la ley y el derecho a adopción. Y en este proceso, el informe psicológico tiene un peso muy importante, decisivo, para poder acceder al derecho de adopción. Pensemos que son muchos los procesos de derechos a las personas consideradas como “minorías sexuales” que se articulan mediante un informe psicológico favorable, no sólo la adopción, sino por ejemplo los derechos a personas transexuales a cambiarse de nombre, tal y como articula la Ley 3/2007 de cambio registral de nombre6. En el caso concreto de la adopción, ¿qué dificultades surgen cuando las prácticas profesionales, en concreto desde la psicología contienen valores heterosexistas, machistas y homófobos? Creo que con el ejemplo que nos ha dado queda claro que las prácticas, incluido el hecho de escribir informes que tienen valor legal vinculante son herramientas que demuestran que no existen intervenciones psicológicas “neutras”, sino como diría DonnaHaraway7, somos sujetos situados y como tales, nos acompañan nuestras experiencias pasadas, sentimientos e ideología. Y nuestro país tiene un pasado reciente con la dictadura, en el que ser homosexual, lesbiana o transexual era un pecado, un delito y una enfermedad. Borge: Sí, además el problema es que muchas veces estas técnicas y técnicos desconocen la realidad y psicología de las personas con orientaciones sexuales alternativas, y juzgan desde el estándar heterosexual a las parejas del mismo sexo, las cuales muchas veces suelen construir su mundo familiar y social de forma diferente al modelo dominante. Las parejas homosexuales pueden presentar problemáticas diferentes, pero también ventajas demostrables para la educación y cuidado de una criatura. Normalmente las técnicas y técnicos no conocen los estudios sobre familias de madres y padres homosexuales y sus hijos. Estudios que se vienen realizando desde hace décadas en muchos países. Por el contrario, aplican teorías psicológicas trasnochadas para denegar la idoneidad para adoptar. Por ejemplo, en el caso de las parejas de lesbianas, es común recurrir a su pretendido odio/envidia del padre y su rechazo a los hombres. 6 Ley 3/2007, de 15 de marzo, reguladora de la rectificación registral de la mención relativa al sexo de las personas. BOE 65, 16 de Marzo de 2007 p. 11251. 7 Haraway, Donna (1995). Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza. Madrid: Cátedra.
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Platero: Pensando en que hay muchas personas, cada vez más, que miran a las ciencias de la salud y la intervención social con inquietud y ganas de ser verdaderamente multidisciplinares y poder aplicar los avances de las ciencias sociales, me pregunto ¿qué propuestas se pueden hacer para una psicología crítica y del propio activismo con una mirada queer? Borge: Creo que aquí las organizaciones LGTB tiene que organizarse y buscar el apoyo de los profesionalesmejorpreparados. Una opciónsería que las famíliashomomarentales y homoparentales, las asociaciones LGTBQ o los profesionales con una mentalidadmásigualitaria, organizarannuevas ECAI (Entidades de Colaboradores de Adopción Internacional) y lucharan para que fueranapobadas por parte de los gobiernos. Sería difícil, peropodríanconseguirlo si se aliaran con otrosgrupossociales que tambiénestánteniendo dificultades para adoptar (padres solos, madressolas) o que inclusotienen vetada la posibilidad de adoptar (personas con el VIH, personas que han sidoadoptadasellasmismas). Platero: Respecto a esto estoy pensando en la controversia en el Reino Unido de las agencias de adopción cristianas que se negaban a que lesbianas y gays ejercieran sus derechos a adoptar, y cómo el gobierno británico no lo estaba permitiendo porque iba en contra de la ley. Si bien, los sesgos en la aplicación son más difíciles de demostrar como tu bien señalabas antes. También me parece que podríamos apuntar hacia la necesidad de transformar la práctica psicológica para entender que los procesos que afectan a las personas de forma individual tienen dimensiones estructurales. Es decir que la homofobia y transfobia tienen un impacto sobre las personas, haciéndoles sufrir y haciendo que tengan necesidades de apoyo específico. Por otra parte, la homo y transfobia están legitimadas socialmente y de hecho estamos viendo como la aplicación de la ley y de la psicología pueden estar siendo discriminatorias, y eso ha de cambiarse de forma colectiva. Con una presencia activa de profesionales que luchen específicamente por una transparencia en la práctica profesional y legal específicamente para las personas LGTBQ. Por otra parte, la idea de que las practicas sexuales e identitarias generan diferentes expresiones del deseo y de género ha de ser percibida como es la realidad, de una forma más fluida y con influencias culturalmente específicas. Creo que las maneras de hacer psicología están fuertemente influenciadas por los problemas y realidades anglosajonas, que no son necesariamente las realidades que vivimos aquí. 24
Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
Creo que se necesita transparencia en los procesos de adopción, con supervisión de diferentes profesionales y derecho a réplica durante el proceso. Esta idea del “peer review” podría ser interesante, en la medida que hubiera controles éticos y profesionales que aseguraran que la práctica no es discriminatoria. Y finalmente para cerrar querría pensar en retos pendientes para el futuro, como es la falta de amparo legal para aquellas personas que están acudiendo a los “vientres de alquiler” o maternidad subrogada en otros países donde está permitido hacerlo y al tratar de inscribir a sus hijos e hijas en el Registro Civil español se encuentran con barreras. Diferentes disciplinas, como es la Psicología, pero también el Derecho o la Ciencia Política, tienen un papel clave a la hora de determinar qué personas tienen derechos como ciudadanos y ciudadanas, y nos tenemos que tomar muy en serio la interlocución con la ciudadanía.
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La dignidad gay Marina Castañeda1
He intentado presentar en este libro un panorama muy general de la evolución reciente de la homosexualidad en Occidente, en dos vertientes principales: su creciente aceptación por parte de la sociedad, el sector privado y el Estado, así como su rechazo por parte de una derecha religiosa militante, que ha montado una campaña permanente en su contra. He planteado como razón principal de esta homofobia reactiva el que los homosexuales se hayan vuelto en los últimos años el chivo expiatorio, el blanco preferido, de una reacción conservadora que se opone no sólo a la libertad sexual, sino también al aborto, la anticoncepción, el divorcio, la igualdad de género, los derechos de las mujeres y de las minorías: en una palabra, a todos los avances sociales de los últimos 50 años. Esto ha colocado a los homosexuales en una posición no sólo vulnerable, sino contradictoria. Por una parte, pueden vivir abiertamente, casarse y hasta adoptar hijos en algunos países; por la otra, siguen siendo objeto de una homofobia a veces violenta. Por un lado, la “normalización”; por el otro el riesgo, sobre todo cuando no están en aquellos (pocos) lugares en los cuales ya no importa la orientación sexual de las personas. Sin embargo, el que existan dichos espacios de libertad es en sí revolucionario, porque nunca antes se había visto tal aceptación, y por la rapidez con la que ha desaparecido, en buena medida, la homofobia milenaria. Esta “normalización” de la homosexualidad, aunque sea en pocos lugares, nos demuestra muchas cosas: que sí es posible ser gay sin culpa ni vergüenza, que la sociedad sí es capaz de asimilar la diversidad y que ésta no representa peligro alguno para las instituciones tradicionales como la familia y el matrimonio; y finalmente que, cuando conquistan los derechos civiles plenos, los homosexuales suelen llevar vidas muy parecidas a las de la demás gente. Cuarenta años después, la liberación gay no llevó a un colapso de los valores, ni a la androginia, ni a la creación de ghettos marginados, como tanto se temió, sino a una integración social marcadamente conformista. 1 Este ensaio é o capítulo final do livro da mesma autora chamado La Nueva Homosexualidad (Mexico, D.F.: Editorial Paidós, 2006).
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Por ello, y por el círculo virtuoso del que hablamos en el Capítulo 1, los espacios de libertad se están ampliando, y no sólo en los países industrializados. Al igual que para las demás minorías, se trata de un cambio social y cultural de vastos alcances; la legalización del matrimonio gay o sus variantes no es meramente un asunto de leyes. Se respira un aire de tolerancia generalizado, cada vez mayor. Pero éste todavía no es el final. Los homosexuales han ganado algunas batallas, y perdido otras: todavía hay mucho trabajo por delante. La “normalización” de la homosexualidad ha tenido un costo, y lo seguirá teniendo: la condición de la aceptación siempre ha sido precisamente el conformismo, como si la sociedad les dijera a los homosexuales, “Los aceptaremos como seres normales si ustedes se portan como tales, es decir, como nosotros.” Y esto es, en términos generales, lo que ha sucedido. Contribuyó a ello el peso político y económico de los homosexuales, así como su cooptación por el consumismo y la publicidad. Por otra parte, desempeñaron un papel importante los avances logrados en paralelo por otros grupos minoritarios bajo el auge de la legislación antidiscriminatoria, y la aceptación paulatina de la diversidad (étnica, religiosa, sexual) en las democracias occidentales. La “normalización” de la homosexualidad no sucedió por sí sola: dependió, y seguirá dependiendo, de las conquistas sociales y legislativas de las demás minorías. También ha jugado un papel central la construcción de una comunidad gay. Y no estoy hablando sólo del distrito Castro en San Francisco, o de los demás barrios gay en Estados Unidos y Europa, sino de una comunidad gay globalizada que se ha consolidado en el ciberespacio. Es en buena medida gracias al internet que los homosexuales ya no están solos, vivan dónde vivan: ahí han encontrado un sentimiento de pertenencia y una identidad colectiva que van mucho más allá de cualquier espacio geográfico. Es a través del internet que han compartido experiencias e información, y que han forjado redes de apoyo tanto locales como nacionales, e incluso transnacionales. Cuando el gobierno iraní ejecuta a dos jóvenes homosexuales, grupos gay salen a la calle en Irlanda, Francia, el Reino Unido, Austria, los Países Bajos y Suecia. Las asociaciones gay del mundo entero estudian lo que sucede en España, en Massachusetts, en Sudáfrica, y repiensan sus estrategias en función de las lecciones aprendidas. Todo ello ha sido posible, en gran parte, gracias al internet. La “normalización” de la homosexualidad ha dependido de todos estos elementos, que convergieron en los años noventa del siglo pasado. El impacto 28
La dignidad gay
ha sido importante, tanto para los hetero como para los homosexuales. En el caso de los primeros, la presencia gay en la cultura y en los medios masivos ha contribuido, por ejemplo, a una mayor flexibilidad en los roles de género, cuya prueba más visible es el surgimiento del hombre metrosexual. Ha llevado a una mayor aceptación no sólo de la homosexualidad, sino de la bisexualidad: un número creciente de hombres y mujeres reconoce haber sentido atracción por personas de ambos sexos, en todas los países donde existan encuestas al respecto. Esto no significa necesariamente que actúen en función de ello, pero sí que puedan ya permitirse una sexualidad más libre y auténtica, sea cual sea su orientación. La “normalización” de la homosexualidad ha llevado asimismo a un amplio proceso de reflexión sobre la familia, la pareja, la relación entre hombres y mujeres, y a una mayor tolerancia en todos los ámbitos.
Los obstáculos a vencer Creo que la aceptación social que se está dando en tantos países es real, pero no debemos cometer el error de considerarla como una conquista definitiva. Es precaria aún. Hay demasiados ejemplos históricos de minorías que llegaron a sentirse seguras, por estar ya plenamente integradas y que sin embargo se volvieron de nuevo objeto de persecución e incluso exterminio. El ejemplo histórico más notorio es por supuesto el de los judíos; pero no olvidemos que los homosexuales también fueron enviados a los campos de concentración, y esto tras un periodo de relativa aceptación en Europa y en la misma Alemania. La opinión pública puede volcarse de nuevo contra las minorías: en tiempos de incertidumbre, guerra, crisis económicas, epidemias, descomposición social y vastos movimientos migratorios, tienden a resurgir el racismo, el fundamentalismo religioso, la xenofobia, y por supuesto la homofobia. En tales épocas también suele observarse, incluso en los países más liberales, un vuelco hacia la derecha, con sus concomitantes campañas a favor de los valores tradicionales. Con la eventual llegada al poder de gobiernos de derecha, es perfectamente posible la derogación del matrimonio gay, por ejemplo. Como lo dijimos en la Introducción, la aceptación social de la homosexualidad se ha dado muy rápidamente. Esto ha sido positivo, pero también implica cierta precariedad: se trata de un fenómeno aún muy reciente para ser completamente asimilado por la sociedad en su conjunto. 29
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Por otra parte, si bien es cierto que la generación joven, nacida después de 1980, parece aceptar sin mayor problema la homosexualidad, me preocupa que esta tolerancia pudiera resultar superficial. No se trata necesariamente de una aceptación real, sino a veces de meros eslóganes demasiado fáciles, como “cada quién”, “cada cabeza es un mundo”, es decir, una tolerancia de orden personal más que cívico. Bajo esta óptica relativista, cada quien tiene el derecho de hacer lo que quiera, porque yo también quiero ejercer ese derecho sin que nadie me estorbe. Esto no es respeto ni aceptación, sino una forma de indiferencia hacia los demás, “mientras no se metan conmigo”. La larga lucha de los negros en Estados Unidos, y el feminismo en todo el mundo, se han enfrentado a este dilema: los negros y las mujeres tienen derechos sólo hasta cierto punto, y tanto el racismo como el machismo siguen vigentes, aunque sea bajo formas más sutiles. Ya no se lincha a los negros, en el mundo occidental ya no se encierra a las mujeres, pero sigue habiendo barreras muy reales a su plena aceptación en el mundo laboral, económico y social. Sin embargo, según las encuestas, tales barreras ya no son tema de preocupación para los jóvenes, quienes dan por sentados los derechos de las minorías y de las mujeres. Así, muchísimas jóvenes no se consideran feministas, porque ya no ven la necesidad de serlo. Como si ya se hubiera ganado la guerra, cuando sólo se han ganado algunas escaramuzas. Creo que los homosexuales deben congratularse por los logros obtenidos, pero también mantener una buena dosis de desconfianza. No se trata sólo de seguir en la lucha legislativa y consolidar una mayor visibilidad en la cultura y los medios, sino de mantener una reflexión profunda y constante sobre las metas a largo plazo, y las mejores estrategias para lograrlas. En este momento, cuarenta años después del inicio de la liberación gay, habiendo logrado tantos avances ante la ley, la medicina, la psicología y la sociedad en su conjunto, es hora de preguntarnos: ¿Cuáles son ahora los objetivos? ¿Basta con haber logrado leyes contra la discriminación? ¿Será suficiente el poder casarse? ¿Adoptar hijos? ¿Salir en la tele? ¿Abrir más antros? ¿Obtener campañas públicas a favor de la diversidad? Y cuando hayamos vencido la homofobia, ¿qué sigue?
La dignidad gay Estoy convencida de que el siguiente paso es que los mismos homosexuales
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asuman plenamente la “normalización” de la homosexualidad. Esto significa rebasar la fase histórica de la lamentación, que consistió en provocar lástima para luego pedir comprensión y aceptación. En efecto, en los últimos treinta años y hasta la fecha en los países homofóbicos, hemos visto a muchos homosexuales dedicarse a describir en los foros públicos (sobre todo en los medios masivos) todo lo que han padecido a causa de la discriminación. Este sufrimiento ha sido indudablemente real, y ha tenido consecuencias muy lastimosas y duraderas para incontables homosexuales. Pero creo que el exponerlo públicamente ya no sirve a la causa. Al contrario, ratifica todos los estereotipos homofóbicos, sin hablar del morbo, que tan gustosamente cultivan los medios masivos respecto de la homosexualidad. Confirman, una vez más, que los homosexuales son personas “sensibles”, básicamente infelices, solitarias y fracasadas, que merecen la compasión de la sociedad. Habiendo asumido una identidad gay y logrado una comunidad gay, así como muchos avances reales, el siguiente paso es lograr la dignidad gay. Esto significa presentarse ante la sociedad, ya no como menores de edad que piden comprensión, sino como adultos que exigen respeto. La verdadera igualdad no vendrá de la compasión. Tampoco es necesaria la comprensión. Para tomar algunas analogías: no es necesario conocer a fondo la historia de la esclavitud para saber que los negros merecen el mismo trato que los blancos. No es necesario empaparse de la cultura judía para tomar una posición decidida contra el antisemitismo. No es necesario ser mujer ni entender lo que han sufrido las mujeres en las sociedades machistas para estar a favor de la equidad de género. Lo único que se requiere es aceptar la igualdad de derechos para todos, sencillamente porque todos formamos parte de la misma sociedad y estamos ligados por el mismo contrato social. Como tan bien lo dijo Rodríguez Zapatero al legalizar el matrimonio gay en España: “Una sociedad que ahorra sufrimiento inútil a sus miembros es una sociedad mejor.” La compasión no tiene nada que ver en el asunto. Por ello, para lograr la dignidad gay es urgente dejar atrás la victimización. La realidad ha rebasado esa fase histórica, que quizá fue necesaria en un principio para despertar en los heterosexuales cierta conciencia de la homofobia. Pero hoy día, y aun en un país como México, los homosexuales ya no requieren ni merecen la lástima de la sociedad, sino la plena aceptación. Existen ya demasiados homosexuales plenamente integrados, aceptados e incluso admirados,
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para seguir tocando la misma nota, habiendo tantas otras como el trabajo, el mérito y la integridad personales, y sencillamente vivir una vida sana y plena.
Costos de la integración social A propósito de este último tema, muchos heterosexuales ya no tienen problema con la homosexualidad como tal, pero sí con cierto estilo de vida gay, sobre todo entre los hombres. Me refiero al mundo de los antros, que suele incluir el consumo excesivo de drogas y alcohol, y una sexualidad anónima, a menudo desprotegida, es decir, una serie de conductas adolescentes, por no decir autodestructivas. Creo que este estilo de vida, muy común sobre todo entre los jóvenes gay, es una barrera a la aceptación. Ésta no es meramente una opinión personal: la he escuchado en boca de heterosexuales y homosexuales por igual. A este respecto me gustaría citar un artículo que apareció recientemente en el Guardian, un periódico inglés de centroizquierda, escrito por un comentarista gay muy conocido que trabaja tanto en la radio y televisión como en la prensa. Su título en español es, “La sociedad ya acepta a los hombres gay como iguales. Entonces, ¿por qué demonios siguen tantos de ellos comportándose como adolescentes?”2 El autor, Simon Fanshawe, acababa de realizar un documental transmitido en la BBC llamado “¿Qué les pasa a los hombres gay?”, y reconoce en el artículo que al hacerlo probablemente ha cortado amarras con “las facciones más radicales del mundo gay” y los “hedonistas” que siguen buscando “el clímax de su vida en el alcohol, las drogas y la “putería”.” Escribe: “Los dos grupos siguen creyendo que basta con ser gay para ser buenas personas. Yo ya no lo creo. Y en este programa me di a la tarea de exponer el hecho de que los hombres gay seguimos viviendo como adolescentes, obsesionados con la sexualidad, el cuerpo, las drogas, la juventud, y el ser “gay”.” “Pasamos—insiste—demasiado tiempo en el ligue, los saunas, el web gay.” Fanshawe confiesa que él ha hecho exactamente lo mismo, y se describe como un hombre gay en sus cuarenta que se pregunta cuándo “vamos a aprovechar la oportunidad de ser adultos en una sociedad que, al menos legalmente, ya nos considera como iguales.” 2 Simon Fanshawe, “Society Now Accepts Gay Men as Equals. So Why on Earth Do So Many Continue to Behave like Teenagers?” The Guardian, 21 de abril, 2006.
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Reconoce que durante mucho tiempo, en la primera época de la liberación gay, fue importante vivir la libertad sexual y exigir el derecho a hacerlo. Pero ahora, dice, ciertas cosas ya no promueven la causa gay sino, al contrario, no hacen más que chocarle a la gente. Por ejemplo, el pasearse por las calles en tanga simplemente porque es la marcha del orgullo gay ya no transmite más que inmadurez; lo mismo sucede con el hecho de tener relaciones sexuales en lugares públicos, cosa que no hacen ni toleran los heterosexuales. Fanshawe critica asimismo las publicaciones gay, con sus páginas y páginas de anuncios sexuales: “Hemos normalizado la prostitución.” Prosigue: cuando se trata de sexo, ya no hacemos distinciones, “ya no pensamos en los efectos que [nuestra conducta] pudiera tener sobre nuestra salud emocional o mental, ni sobre nuestra capacidad para hacer juicios morales en el mundo.” Claro, reconoce, existen juicios en el mundo gay; pero están basados casi enteramente en las apariencias, en el cuerpo. Y declara: “El mundo ha cambiado para los hombres gay. He de añadir la objeción ritual de que sigue habiendo homofobia, por supuesto; pero el hecho es que, según la ley, hemos logrado una igualdad casi total. Sin embargo, seguimos comportándonos como si fuéramos todavía una minoría marginada, excluida del mundo de la responsabilidad. Los hombres gay tenemos mucho trabajo por delante. Seguimos siendo adictos a las drogas, la sexualidad y las apariencias, y a todo ello le damos el nombre de cultura gay.” Menciona los costos: el uso alarmante de cristal meth, las tasas crecientes de infecciones por VIH y sífilis, la cual se ha sextuplicado, en los últimos cinco años, entre los hombres gay británicos. Concluye con un llamado a la madurez, “porque los hombres gay hemos luchado por la libertad y ahora tenemos a nuestro alcance un nuevo mundo. Algunos de nosotros estamos listos para asumirlo: uniones civiles, la posibilidad de adoptar hijos, nuestra visibilidad real en nuestras comunidades, a las cuales contribuimos de tantas maneras, desde liderear la lucha contra el sida hasta promover campañas que mejoren la salud pública para todos: eso es vivir como ciudadanos. Pero para asumirlo tenemos que dejar atrás nuestros años adolescentes de sexo, de drogas y de burla hacia la gente mayor, y comprometernos con un futuro de fidelidad y responsabilidad. Ya no se trata de construir castillos en el aire. Hemos llegado, por fin, al mundo real.” Palabras de una singular resonancia, viniendo de un hombre gay que se
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dedica a pensar y a describir la vida gay, desde una óptica gay. Pero igualmente impactantes resultan las reacciones de sus lectores, publicadas a continuación de la versión online del artículo. Se pueden leer un centenar de comentarios3, que ilustran muy bien el debate acerca de hacia dónde va la homosexualidad en un país en el que ha habido avances importantes en los derechos gay, incluyendo la legalización de la unión civil, cuando la generación que hizo y vivió plenamente la liberación gay se está acercando ya a los cincuenta años. Veinte lectores felicitan a Fanshawe por su artículo y expresan su total acuerdo con él; una mayoría comparte sus críticas al estilo de vida que describe, pero objeta que no todos los gays participan en él. Finalmente, una minoría defiende el “hedonismo gay”: algunos preguntan cuál es el problema, otros argumentan que los heterosexuales hacen exactamente lo mismo, otros más sostienen que los homosexuales no tienen por qué adoptar los valores heterosexuales como la fidelidad; y finalmente algunos se erigen contra cualquier tipo de “moralismo”, equiparándolo con la homofobia. He escogido presentar aquí la perspectiva de un grupo de hombres gay lo suficientemente informados y politizados como para leer el Guardian y escribir sus reflexiones, para que mi cuestionamiento no parezca meramente el de una dama bien pensante y moralizadora. Creo que este debate es importante y urgente para todos los homosexuales, porque plantea una pregunta esencial: ¿cuál debe ser el siguiente paso, después de la liberación gay, después de la creación de comunidades gay, después de las conquistas legislativas, después de cierta aceptación social? Estas interrogantes pueden parecer prematuras en un país como México, donde todavía hay tanto por hacer; pero yo he escuchado a muchos hombres gay mexicanos quejarse del “medio” y expresar su repudio hacia una vida social centrada en los antros. Y si estas preguntas son en efecto prematuras, ya no lo serán en unos cuantos años. Porque, a fin de cuentas, la “normalización” de la homosexualidad tiene que ver no sólo con su aceptación por parte de la sociedad, sino también con una integración social por parte de los homosexuales, en términos de responsabilidad personal y cívica. Éstas parecen ser, por ahora en todo caso, las condiciones para ganar no sólo la aceptación, sino el respeto.
3 Véase http://www.guardian.co.uk/commentisfree/story/0,,1758083,00.html.
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Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina Ana María Fernández1 La pregunta por “la diferencia” abre una serie de cuestiones conceptuales. Se distinguen tres dimensiones problemáticas: una dimensión política en tanto hoy está puesto en crisis el modo moderno de construcción de la igualdad. Una dimensión epistemológica, al ponerse en discusión las formas unidisciplinarias de construcción de los conocimientos. Y por último, una dimensión filosófica, en relación con el ser de la diferencia, que a su vez, interroga el desfondamiento de la configuración de las identidades modernas. Se proponen abordajes desde multiplicidades filosóficas, invenciones colectivas y epistemologías transdisciplinarias. Palabras clave: identidad, diferencia, multiplicidad, invención política, estudios transdisciplinarios, subjetividad.
1 Doctora en Psicología. Profesora e investigadora de la Universidad de Buenos Aires (Argentina). E-mail:
[email protected]
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La vida se extingue allí donde existe el empeño de borrar las diferencias… Vasili Grossman
Multiculturalismo y diferencia ¿Cómo podemos pensar hoy la cuestión del multiculturalismo? Hacia finales de los años ochenta aparecen una serie de espacios políticoacadémicos que interesa poner aquí en consideración. Si bien el artículo no se detendrá en cada uno de ellos, en diversas manifestaciones abundan hoy términos que hacen referencia a lo “multi”, lo “post” que, desde mi criterio, abren una serie de cuestiones conceptuales que, sin duda, es interesante pensar. Sólo se los mencionará rápidamente para poder focalizarse en algunas de las tensiones que despliegan. Podría decirse que el propio concepto de multiculturalismo aparece a finales del siglo XX. Pone el eje en la cuestión de la diversidad cultural. Se despliega en la tensión entre la búsqueda de una sociedad pluralista y la necesidad de pertenencias identitarias, en el mundo globalizado actual. Apunta a la necesidad de una nueva cultura cívica mundial. Ha dado lugar, en el mundo académico anglosajón –más específicamente en los EE.UU.– a los estudios multiculturales. A su vez, estos se encuentran emparentados con los llamados estudios poscoloniales, desarrollados en lo que fueron las colonias del Imperio Británico. Son estudios que analizan las nuevas relaciones metrópolis-colonias, una vez obtenidas sus independencias políticas. Aquí es importante diferenciar los estudios poscoloniales de los estudios decoloniales, desarrollados en algunos centros académicos de América Latina y, fundamentalmente, por profesores latinoamericanos establecidos en universidades de EE.UU. y Europa. Trabajan básicamente sobre la colonialidad del poder. Desde allí, se propone la importancia de visibilizar los rasgos eurocéntricos de la producción de conocimientos y de las categorías políticas que habitualmente usamos (Castro-Gómez y Grosfoguel, 2007). También pueden incluirse en esta sucinta enumeración, los estudios Queer o teoría Queer. Surgen a posteriori de los estudios de la mujer y los estudios de género, por lo que suelen denominarse también estudios posfeministas, y han considerado que tanto los unos como los otros se circunscribían a relaciones de
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Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina
género heterosexuales de personas blancas de clase media “europea”. Intentan, en consecuencia, desnaturalizar los posicionamientos de género, clase, etnia y opción sexual de las corrientes que los antecedieron. Comprenden estudios y políticas de transexuales, transgeneristas, travestis, etc., hoy también llamadas neo sexualidades. Uno de sus postulados más revulsivos es que consideran que es necesario desnaturalizar la heterosexualidad. Esta sería una norma, la norma heterosexual, con lo cual intentan poner en cuestión la categoría misma de diferencia sexual.
Max Ernst (Alemania 1891-1976), de la novela surrealista en collage. Una semana de bondad o Los siete elementos capitales, de la edición de Dover, 1976.
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Otros grupos que interesa mencionar, son los movimientos políticos llamados post-socialistas. Rechazan las formas de construcción política –como también la idea de vanguardia– que iluminaron los movimientos revolucionarios de los siglos XIX y XX. Plantean construcciones políticas horizontales, anti jerárquicas y en redes mundiales. Ya no se trataría de cambiar este mundo por otro más justo –esto implicaría instalar una nueva hegemonía– sino un mundo donde quepan muchos mundos (Zuleta, Cubides y Escobar, 2007). Desde ya, tienden a desdibujar los ejes clasistas y/o nacionales en la composición de sus acciones y en sus modalidades de construcción política. Si bien todos estos grupos parecerían una Babel, podemos preguntarnos qué pueden presentar en común. No sólo comparten una época, ya que aparecen en los últimos veinte o treinta años, sino que presentan otra característica que me interesa subrayar: suelen ser movimientos políticos y académicos a la vez. En lo político, intentan reformular los ejes clásicos de las ideas de democracia, ciudadanía, nación, pueblo. En lo académico, desbordan la forma de construcción de conocimientos centrada en los binarismos sujeto-objeto de las territorializaciones unidisciplinarias; prefieren la idea de campo más que la de objeto de estudio. Han comenzado a trabajar desde abordajes multi e interdisciplinarios, y empieza a perfilarse en ellos la necesidad de establecer criterios transdisciplinarios (Fernández, 2007b); desde esta perspectiva, consideran que en la producción de conocimientos que emprenden debe darse criterios epistemológicos propios. Si bien pueden establecer linajes con los movimientos feministas, de derechos civiles, el black power, el orgullo gay, etc. (políticas de la diferencia de los años setenta) o con los movimientos revolucionarios de los siglos XIX y XX (políticas de la igualdad), establecen fuertes discontinuidades tanto con unos como con otros. Así mismo, podría agregarse que estos grupos mencionados muy rápidamente, si bien pueden elaborar linajes con formas de construcción política previas, y aún cuando pueden nutrirse de movimientos emancipatorios que los han antecedido, presentan importantes discontinuidades y rupturas con los mismos. Con independencia de las diferencias de capacidades o voluntades de pensamiento crítico que pueden presentar en sus propuestas y/o producciones conceptuales, estrategias políticas, etc., o las mayores o menores simpatías que 38
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despierten los movimientos enunciados, nos confrontan con nuevas realidades por pensar. Podríamos decir que estamos frente a un multiproblema. Se distinguen aquí, en principio, tres dimensiones problemáticas que hoy es necesario indagar. Por un lado, una dimensión política en tanto hoy está puesto en crisis el modo moderno de construcción de la igualdad, base de las democracias representativas. En segundo lugar, está presente una dimensión epistmológica, es decir, se ponen en discusión las formas de construcción de los conocimientos interpelando las formas más clásicas en la investigación académica, apuntando a la construcción de saberes más allá de los dominios de objetos unidisciplinarios. Esta dimensión subtiende un problema aun mayor, que es –nada menos que– cómo se construye la verdad. Por último, como tercera dimensión de la cuestión, plantearía una dimensión filosófica, en relación con el ser de la diferencia, que a su vez, pone en cuestión la configuración de las identidades modernas.
La diferencia como problema Una vez más, lo que está en discusión –aun hoy– es cómo pensar la diferencia. Qué hacer con los diferentes, o qué hacer como diferentes, según estemos, en una situación dada, del lado dominante o subalterno de la diferencia. Con respecto a qué hacer con los diferentes, puede observarse cómo en los últimos decenios las democracias occidentales se proponen las llamadas “políticas de la tolerancia”, el respeto a las diversidades culturales, lo políticamente correcto, etc. Con todos los impasses y complejidades imaginables, ya que los estilos políticamente correctos más de una vez no logran más que maquillar políticas y sentimientos racistas de todo tipo. Al mismo tiempo, a medida que se instalan en el plano discursivo las virtudes de las políticas de la tolerancia, se despliegan diversos dispositivos biopolíticos que sostienen y acrecientan, una y otra vez, las ferocidades del hambre, las pandemias y exclusiones de todo tipo en extensas regiones del planeta. En relación con qué hacer como diferentes, allí también pueden encontrarse una serie de problemas por pensar. A partir del genocidio nazi se produce un punto de inflexión, o más bien de agotamiento, de lo que habían sido las políticas de la asimilación. Quedan brutalmente manifiestas incompletudes,
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fracasos e inviabilidades de estas políticas de la asimilación. A finales de los cincuenta, las luchas de otros grupos discriminados, particularmente en EE.UU., mujeres y negros en un principio, evidencian nuevas posiciones de estos grupos “minoritarios”1. Al mismo tiempo que comienzan a desplegarse las políticas multiculturales, van poniendo de manifiesto un rasgo de antiasimilación que abre nuevas dificultades. Ahora no serán encerrados en guetos, como los judíos de la Segunda Guerra, sino que formarán autoguetos. Posiblemente, quien mejor ha mostrado los impasses de estas políticas de la diferencia, es Spike Lee y su filmografía. En esa línea es interesante el aporte del premio Nobel Amartya Sen, cuando habla de “las políticas del sapo de pozo” (Sen, 2004), es decir, cada sapo en su pozo. Es muy interesante su planteamiento. Podemos observar que en el movimiento hacia la metrópolis (la inmigración llamada ilegal siempre es unidireccional), los inmigrantes encuentran barreras de todo tipo. Una vez instalados en ella, en el camino legítimo de mantener sus culturas, las propias colectividades levantan, ellas mismas, los muros del pozo. De su pozo, donde logran conservar sus hábitos culturales, pero generalmente también sostienen sólo reivindicaciones de “su” diferencia sin articularlas con las de otros diferentes. El problema es que las políticas de la tolerancia con las que el liberalismo cultural intenta resolver estos problemas, hasta ahora no resuelven la desigualdad de los diferentes. Sin desmerecer la importancia de avanzar en los márgenes de tolerancia que una sociedad puede construir, se abren dilemas éticos no sólo difíciles de resolver, sino aun de pensar. Por ejemplo, la clitoridectomía de las niñas musulmanas que viven en Francia o que ya son francesas, ¿es una costumbre cultural por respetar o un delito sobre el que el Estado debe actuar? En síntesis, pareciera ser que el nuevo orden mundial, eufemísticamente llamado “globalizado”, pareciera desplegarse en este tema con una particular tensión entre un multiculturalismo liberal y un fundamentalismo étnico -religioso. Creo, en realidad, que no sería muy aventurado pensar que ambos se van constituyendo uno como síntoma del otro. De ser así, habrá que pensar en estas posiciones extremas, qué impensados de cada una de estas posiciones, qué impasses o encerronas de sus supuestos se “ resuelven” como síntomas especulares, uno del otro.
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Si estas son las sin salidas del mundo liberal, no menores son las dificultades de los universos emancipatorios. La caída del muro de Berlín fue mucho más que la implosión de un régimen. Ha implicado en el mundo occidental el agotamiento de la utopía socialista. El desfondamiento de este imaginario libertario ha dejado, por el momento, sin fundamento anhelos y prácticas emancipatorios que en los dos últimos siglos caracterizaron las resistencias a las implacables lógicas capitalistas. No sólo eso, también se han deslegitimado sus modos de construcción política. En un mundo donde el neoliberalismo ha sido triunfante, desde mediados de los noventa, empiezan a registrarse movimientos contestatarios y/o insurgentes que presentan en muchos casos modalidades muy diferentes de pensar y accionar sus prácticas sociopolíticas y sus modos de construcción política, donde comienza a perfilarse otro universo de significaciones y prácticas en relación con la interrogación de qué hacer como diferentes, que reformulan las complejidades por pensar dentro de esta temática. Se trata entonces de avanzar una y otra vez en la elucidación de los a priori de la diferencia moderna que han naturalizado e invisibilizado sus desigualdades concomitantes. Para dicho efecto, en este escrito se trata de establecer la diferencia como problema. Esta categorización tiene varias consecuencias. En primer lugar, es necesario abrir múltiples preguntas, no para ser respondidas una a una sino para permitir desplegar las diversas dimensiones implicadas. En segundo lugar, es importante tratar de establecer distinciones y relaciones entre esas dimensiones abiertas de modo que vayan cobrando visibilidad los entramados de discursos y prácticas involucrados. En tercer lugar, distinguir las insistencias para que –en su despliegue recursivo– puedan implementarse los conceptos como herramientas de desnaturalización de lo capturado, y así abrir a nuevas modalidades de enunciación (Deleuze, 1990). Estos procedimientos de visibilización permitirán, como decía Foucault, pensar de otro modo. Ante la interrogación ¿cómo pensar la diferencia?, se distinguen en este escrito tres dimensiones problemáticas: filosófica, política y epistemológica.
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La dimensión filosófica: de la diferencia a la multiplicidad En la tradición platónico-aristotélica, la exclusión de lo divergente tiene un basamento epistémico –y no ontológicoen el que las representaciones que el sujeto construye para conocer los objetos tienen como referentes no el objeto, sino el modelo. Una vez más, la caverna platónica de las esencias, punto de partida del pensamiento esencialista donde el ser es determinado y sólo puede ser pensado en lógicas identitarias, constituye el universo de significaciones al que se ha llamado pensamiento de lo Uno. Se trata de abrir la interrogación, desnaturalizar –una vez más– el pensamiento de lo Uno. Desde allí, podemos decir que el modo en el que se construye “la diferencia” es inseparable de cómo se construye “la identidad”. Es necesario remarcar en este punto tres cuestiones que se entrelazan en el modo moderno de sostener la tensión identidad-diferencia: • La diferencia como lo no idéntico: así, B es no A. La diferencia sólo puede ser pensada como negativo de lo idéntico. Opera aquí el basamento epistémico para pensar y producir las diferencias desigualadas. • La diferencia como el otro: la diferencia sólo puede ser pensada como alteridad, el otro, lo otro, siempre extranjería; se construye así el diferente amenazante por inferiorizar o por descalificar. • La diferencia en el orden del ser: ser diferente. A partir del rasgo “diferente”, se construye la identidad. La identidad con el rasgo, hace del rasgo totalidad. Define el ser por el rasgo diferente. A partir de allí, soy anoréxica, soy judío, soy negra, soy homosexual, indígena, sudaca, latino, etc. Se distingue un rasgo de toda una multiplicidad de características o atributos y se totaliza desigualando. Ahora bien, la fusión histórica del subjectum –lo que permanece con el Hombre, no sólo inauguró los humanismos y las ciencias humanas, sino que dio lugar, en la construcción de la verdad moderna, a una idea de sujeto universal, idéntico a sí mismo, desde donde se ha instituido todo lo que no es “yo”, como “otro”, es decir, alteridad, extranjería, diferencia. En tanto el hombre se constituyó como sujeto y el mundo como imagen, dirá Heidegger,
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en su producción representadora, él será medida de todo ente y pondrá todas las normas (Heidegger, 2002). La dimensión política de esta problemática filosófica es inmensa. El “otro”, siempre extranjería, diferencia, complemento, suplemento, es decir, mujeres, homosexuales, clases, etnias, religiones, culturas y países no hegemónicos han sido considerados, a lo largo de los siglos, como anomalía. Desde esta perspectiva, donde la diferencia es pensada como negativo de la identidad, en el mismo movimiento en que se distingue la diferencia, se instituye la desigualdad. No se trata de la mera diferencia, sino de diferencias desigualadas. Se sostienen así muchos siglos de dispositivos de discriminación, exclusión, estigmatización o exterminio. Hablar de diferencias desigualadas supone pensar que la construcción de una diferencia se produce dentro de dispositivos de poder: de género, de clase, de etnia, geopolíticos, etc. Esto implica dos cuestiones: • No se constituye primero una diferencia y luego una sociedad injusta la desiguala. • No se trata de describir diferencias o desigualdades, sino de realizar el trabajo de elucidación; se trata de la construcción de categorías hermenéuticas que puedan visibilizar y enunciar la producción-reproducción de los dispositivos biopolíticos que configuran en un mismo movimiento esa diferencia y esa desigualdad. Ya no es cuestión de contar a los pobres y hablar de la pobreza, describir las características culturales de una comunidad subalterna o relevar especificidades de las mujeres, sino de elucidar los dispositivos biopolíticos (Foucault, 2007) que construyen esas identidades de esa manera y no de otra. Hacer visibles las múltiples redes de dominios y sujeciones, y de resistencias e invenciones de los subalternos y de los dominantes en las construcciones de sus identidades como diferencias desigualadas. ¿Cómo pensar categorías conceptuales que no operen como fundamento de desigualdades políticas? ¿Cómo operar con una lógica de la diferencia que no se sostenga en el a priori epistémico de la diferencia como anomalía de la identidad? En síntesis, ¿cómo pensar lo que no es idéntico ni diferente? (Fernández, 2007a).
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Una interesante herramienta para pensar alguna de estas cuestiones puede ser la idea deleuziana de diferencia de diferencias (Deleuze, 1988). Se trata de diferencias que no remiten a ningún idéntico, a ningún centro, y de repeticiones que no remiten a ningún origen. Se trata de hacer diferencias, más que de ser diferente. Es un poder ser abierto. Estas diferencias de diferencias, en su accionar, más que fijar alteridades, generan intensidades diferenciales. Diferencias de intensidades. En este poder ser, activo, abierto, se trata de pensar y actuar devenires más que reproducciones o copias imposibles, siempre necesariamente faltantes, del modelo o esencia. Desde esta noción de multiplicidad, en tanto don de lo diverso, no se trata de negar identidades ni totalizaciones, sino de pensar totalizaciones que no subsuman las partes. El todo al lado de partes (Deleuze y Guattari, 1994). En realidad, se trata de dos operatorias en una. Cuando pueden ponerse en acción, en el plano del pensamiento, categorías de multiplicidad y no de diferencia, simultáneamente se crean condiciones de posibilidad – se habilitan herramientas – para hacer visibles infinidad de micropolíticas de resistencia de colectivos desigualados; y lo que es más importante, pueden evidenciarse las lógicas de multiplicidad (Fernández, 2007a) desde donde se crean las intensidades necesarias que potencian la invención de nuevos existenciarios de estos colectivos cuando entran en acción. En estos casos el accionar – generalmente colectivo– puede establecer líneas de fuga (Deleuze y Guattari, 1994) de la captura de la imaginación-acción que las lógicas de la representación delegación cercan o impiden2.
La dimensión política: de la represenación a las invenciones colectivas ¿A qué se refiere el prefijo multi de multiculturalismo? Si tomamos la metáfora de los socialistas utópicos, ¿es la nueva utopía de la ciudad futura, ahora de la armonía de la diversidad de culturas? ¿Desplaza en una nueva formulación de la ciudad feliz aquella armonía de los ciudadanos en igualdad de derechos y oportunidades de los Estados-nación por la del respeto, el gusto por la diversidad cultural del mundo globalizado?
2 Fernández, A. M.: Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina.
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Max Ernst (Alemania 1891-1976), de la novela-collage. Das Karmelienmädchen Ein Fraum, DuMont, edición de 1971.
¿Supone acaso que ya conquistada la igualdad de derechos y oportunidades para todos, la multiculturalidad significaría la ampliación de la construcción democrática? Aquí, multi implicaría el muchos de lo Uno, ¿en esta apertura radicaría la ampliación democrática? Así pensado el multiculturalismo, ¿reemplazaría o intentaría completar la incompletud de la eurocéntrica modernidad? ¿Es producto de la visibilidad que lograron las políticas de la diferencia de diferentes movimientos sociales – black power, feminismos, orgullo gay, etc.– en virtud de los cuales pareciera hoy ya no discutirse que la Declaración de los Derechos del Hombre, base fundacional de las democracias occidentales, en rigor, sólo comprendía a varones blancos europeos, heterosexuales, cristianos y propietarios-consumidores?
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Tanto los imaginarios de “la ciudad de ciudadanos en igualdad”, como “la ciudad de la armonía de las diferencias culturales”, parecieran no interrogarse por las razones de la inviabilidad de un espacio público-foro de los pares políticos, sea que estas “paridades de derecho” se piensen en clave de ciudadanía clásica nacional o en claves multiculturales mundiales. Si volvemos al prefijo “multi”, pienso que mientras estemos en presencia de diferencias desigualadas podríamos pensar la cuestión desde otro lugar. Se trata de pensar lo multi como el análisis de la multiplicidad de relaciones jerárquicas de las diversas diferencias: de clase, de etnia, de género, de opción sexual, etáreas, religiosas, geopolíticas, etc. Implica entonces, pensar cómo se producen y reproducen la diversidad de diferencias desigualadas. Para ello, habrá que trabajar las múltiples relaciones de poder que anudan en una situación singular, aquello que se ha llamado el “paquete enredado de relaciones de poder” (Grosfoguel, 2005). En cada situación, distinguir la predominancia de unos dispositivos de dominio u otros. O su simultaneidad. Igualmente, elucidar las, a veces invisibles, estrategias de resistencias de colectivos desigualados. Hacer visibles sus lógicas, y desde allí, poder pensar en este nuevo concierto mundial nuevas formas y líneas de acción colectiva. Aquí cobra especial significación política el anhelo foucaultiano de pensar de otro modo, ya que en la crisis actual del capital financiero producida desde los centros mundiales de la hegemonía neoliberal pero que parece arrastrar a vastas regiones del planeta, se vuelve estratégica la producción de nuevos pensamientos emancipatorios. Entonces, desde esta perspectiva, multi ya no se desliza hacia la homogeneidad en cada diversidad, o hacia nuevos esencialismos de la diferencia; multi podrá referir a diferencias de diferencias de jerarquías de relaciones de poder. Un pensamiento de estas características implica un pensar situado, pensar en situación. Pensar en situación las múltiples relaciones de dominio y resistencias en una singularidad colectiva o personal, histórica y no esencial. Desde allí, se trata de distinguir singularidades, para configurar composibles en red3. Si múltiples son los dispositivos de dominio-resistencia, habrá que pensar y hacer en la construcción permanente de también múltiples estrategias de emancipación. Pensar en situación supone, asimismo, pensar para actuar, actuar para pensar.
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Frente al desfondamiento de la representación y los partidos políticos de las democracias liberales (la política), las incipientes modalidades de “movimientos” sociales y experiencias comunitarias, por ejemplo, en América Latina, resitúan la posibilidad de lo político, más allá de la política. Germinales políticos que laten-allí todo el-tiempo (Fernández, 2008) con independencia de que las grillas conceptuales clásicas capturadas en los universos de la representación los mantengan en invisibilidad. Experiencias y prácticas colectivas que no sólo resisten la barbarización de los lazos sociales que las lógicas capitalistas instalan, sino que inventan, despliegan, multiplican diversidad de modalidades que configuran otros modos de lo común (Blanchot, 1999).
Max Ernst (Alemania 1891-1976), de la novela-collage Das Karmelienmädchen Ein Fraum, DuMont, edición de 1971.
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La dimensión epistemológica: hacia los estudios transdisciplinarios de la subjetividad Para quienes hace muchos años trabajamos en el difícil intento de abrir visibilidad a aquellas subjetivaciones, producciones de subjetividad y prácticas de vida, existenciarios (Fernández, 2008) que el sujeto universal excluye, se vuelve imperoso avanzar en las construcciones conceptuales de una modalidad de pensar-actuar en diferencias y desde ellas, que no queden apresadas en el a priori moderno que establece que “la” diferencia sólo puede ser pensada como negativo de lo idéntico. Al mismo tiempo, dada la multiplicidad de componentes que forman parte de la construcción de subjetividades, existenciarios y devenires de los/ as diferentes desigualados concretos, se vuelven reduccionistas los análisis e investigaciones que mantienen la ilusión unidisciplinaria que supone que el “nivel de análisis” del que sus saberes y prácticas pueden dar cuenta, podrá “explicar” la totalidad esencial de una desigualación específica. Así, variados economicismos, so ciologismos, psicologismos o psicoanalismos no sólo han ido creando serios impasses de pensamiento, sino que han contribuido de diversas maneras a legitimaciones de un modo de construcción de la verdad moderna que ha naturalizado exclusiones y discriminaciones y sólo ha podido pensar al “otro” como extranjería, amenaza u “objeto” sin derechos. Para ello, es imprescindible avanzar tanto en la construcción conceptual-metodológica de criterios transdisciplinarios como en la conformación de sus redes globales de epistemología crítica. Como se decía líneas arriba, las problemáticas que este planteamiento encierra no son sólo de interés académico, sino que se sostienen en voluntades políticas. Estas búsquedas conceptuales pueden aportar a aquellos movimientos sociales animados de anhelos emancipatorios que no cesan en la búsqueda de la universalización de la dignidad humana; se trata también de configurar hábitos académicos que puedan nutrirse de los saberes plebeyos amasados en largas historias de resistencias y luchas frente a las diversas estrategias biopolíticas de dominación y exclusión. Las propuestas transdisciplinarias dan cuenta del surgimiento –aunque incipiente– de formas de abordaje de la cuestión que implican la necesidad de utilizar criterios epistemológicos pluralistas. Habla, asimismo, de la resistencia
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de ciertos procesos a su simplificación unidisciplinaria y sugiere la oportunidad de los desdibujamientos de “individuos” y “sociedades”, en intentos de comprensión que aborden estos problemas en función de modalidades no binarias. A partir de los criterios de atravesamientos disciplinarios, esta tendencia se inscribe en un nuevo intento de superación de los re duccionismos economicistas, psicologistas, sociologistas, etc. Sin embargo, pareciera abarcar un espectro más amplio de cuestiones; por un lado, pone en jaque las configuraciones hegemónicas de ciertas disciplinas “ reinas”, o saberes arquetípicos a los cuales se han subordinado otras territorialidades disciplinarias; tiene como una de sus premisas más fuertes la imple mentación de contactos locales y no globales entre los saberes. De esta manera, los saberes que las disciplinas “reinas” habían sintetizado recobran su libertad de diálogos multivalentes con otros saberes afines (Benoist, 1982). Estos atravesamientos que el indisciplinamiento de saberes implica y la interrogación crítica de las fuertes certezas de una territorialidad disciplinar permiten distinguir los abordajes transdisciplinarios de los criterios interdisciplinarios y de los multidisciplinarios. A su vez, la invención de los atravesamientos disciplinarios como transgresión a las especialidades, crea las condiciones para hacer salir ciertos “objetos” científicos de su referencialismo dogmático e invita a construir una red epistemológica a partir de intercambios locales y no globales, donde las transferencias de saberes establezcan un estado de vigilancia epistémica y metodológica y se organicen en una epistemología crítica (Benoist, 1982). Esta epistemología crítica intenta localizar los lugares de singularidad problemática, el grafo de las circulaciones locales y particulares que hace que una cuestión, un problema, un thema estremezca los diversos saberes sin pretender conjurarlos bajo una forma globalizante. No ya universales empírica o especulativamente determinados, vestigios de una edad positivista, sino matrices generativas, problemas en relación con los cuales un atravesamiento disciplinario dará cuenta tanto de las distancias y diferencias como de las aproximaciones y divergencias disciplinarias. Obviamente, este movimiento que desdibuja los objetos teóricos discretos (Kaës, 1977), unívocos, implica no sólo el intercambio entre diferentes áreas de saber, sino la crítica interna de variadas regiones de una disciplina que, al transversalizarse con otros saberes, pone en interrogación muchas de sus cer-
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tezas. La interpelación de las certezas que la territorialización unidisciplinaria posibilita, es uno de los puntos centrales de diferenciación entre los criterios multi o interdisciplinarios y los abordajes transdisciplinarios. Por otra parte, tal articulación no podrá evitar los reduccionismos señalados en tanto no se abandone la epistemología de las ciencias positivas, en la cual aún hoy se fundamentan extensos territorios de las humanidades. Dicha epistemología supone un objeto discreto, autónomo, reproducible, no contradictorio y unívoco; implica una lógica de lo Uno, donde la singularidad del objeto teórico no debe verse afectada, dado su aislamiento territorial metodológico por las condiciones de posibles aproximaciones con otros campos disciplinarios. Ya Foucault había señalado la encerrona metodológica que suponía aplicar estas metodologías “positivas” para investigar una esencia: el hombre (Foucault, 1969). Sin duda, la lógica del objeto discreto (Fernández, 1989) ha demostrado ocasionar problemas para comprender las transferencias mutuas entre los distintos niveles, ya que desde ella no puede pensarse la articulación de las formaciones de lo singular y lo colectivo que supera el pensamiento binario antinómico (individuo/sociedad, alma/cuerpo, naturaleza/cultura, etc.). Un criterio transdisciplinario supone replantear varias cuestiones. En primer lugar, un trabajo de elucidación crítica sobre los cuerpos teóricos involucrados, que desdibuje una intención legitimante de lo que ya se sabe para poder desplegar la interrogación de hasta dónde sería posible pensar de otro modo. Implica, como se señalaba líneas arriba, el abandono de cuerpos nocionales hegemónicos de disciplinas reinas, a cuyos postulados, códigos y orden de determinaciones se subordinan disciplinas satelizadas; sobre estos presupuestos se crean las condiciones para la articulación de contactos locales y no globales entre diferentes territorios disciplinarios, así como también que aquellos saberes que las disciplinas hegemónicas habían satelizado, recobren su potencialidad de articulaciones multivalentes con otros saberes afines. De esta forma, los cuerpos conceptuales funcionan como cajas de herramientas (Foucault, 1980), es decir, aportan instrumentos y no sistemas conceptuales; instrumentos que incluyen en su reflexión una dimensión histórica de las situaciones que analizan; herramientas que junto con otras se producen para ser probadas en el criterio de su universo, en conexiones múltiples, locales y plurales con otros quehaceres teóricos.
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Se hace clara entonces, la diferencia con teorías que en realidad operan como concepciones del mundo, que se auto-legitiman en el interior de su universo teórico-institucional, y que por lo mismo exigen que toda conexión con ellas implique instancias de subordinación a la globalidad de su cuerpo teórico. Por lo antedicho, junto con esta forma de utilización de las producciones conceptuales como cajas de herramientas, un enfoque transdisciplinario presupone un desdisciplinar las disciplinas de objeto discreto, y en el plano del actuar, cierto desdibujamiento de los perfiles de profesionalización, por lo menos aquellos más rigidizados (Fernández, 2007a). Los criterios transdisciplinarios se sustentan, justamente, a partir de una elucidación crítica de este tipo de totalizaciones, buscando nuevas formas de articular lo uno y lo múltiple. En su propuesta de contactos locales y no globales, focalizan un thema en su singularidad problemática, y éste es atravesado por diferentes saberes disciplinarios. Sin embargo, no pretenden unificarlos en una unidad globalizante. Por lo tanto, más que una búsqueda de universales, indaga matrices generativas, problemas en relación con los cuales los entrecruces disciplinarios puedan dar cuenta de las múltiples implicaciones del tema en cuestión. Esto hace posible elucidar tanto las convergencias como las divergencias disciplinarias en relación con el mismo. Este movimiento que propone el atravesamiento de diferentes áreas de saberes, a partir de themas por elucidar, sostiene varias y complejas implicaciones. En primer lugar, cuando cierta región de una disciplina se transversaliza con otros saberes, pone en crisis muchas de sus zonas de máxima evidencia. En segundo lugar, exige la construcción de redes de epistemología crítica abocadas a la elaboración de aquellos criterios epistémicos que en su rigurosidad hagan posible evitar cualquier tipo de patch-work teórico. En tercer lugar, y ya en el plano de las prácticas, vuelve necesaria otra forma de constitución de los equipos de trabajo: si no hay disciplinas “reinas”, tampoco habrá profesiones hegemónicas. Este pluralismo no es sencillo de lograr. Estas tres cuestiones son elementos centrales a la hora de crear los espacios de trabajo, ya que es imprescindible que amalgamen dos cuestiones: la constitución de equipos de trabajo en organizaciones horizontales (condición de las posibilidades de invención colectiva) y la disposición para establecer conexiones con saberes y experiencias no académicas. Experiencias y saberes
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plebeyos interpelan una y otra vez, generando rizomas a partir de conexiones muchas veces impensadas o impensables. Se trata de pensar –entendiendo el pensamiento como un modo de experiencia– sabiendo que en el camino de quiebre de sentidos comunes disciplinarios, necesariamente se transitarán zonas borrosas tal vez imposibles de evitar si se intenta eludir las comodidades de lo ya sabido. Dado que no se trata de tomar la experiencia como espacio de comprobación o aplicación de sus saberes instituidos, se intentará experimentar con las nociones, atravesando las fronteras de los sentidos comunes de las territorializaciones disciplinarias, intentando no recaer en los binarismos que han sido base de sustancializaciones y escencialismos diversos. Es necesario subrayar entonces que el pensamiento como modo de experiencia (Morey, 2004) supone pensar en el límite de lo que se sabe. Es en tal sentido, un pensar necesariamente incómodo, desdisciplinario, que se construye y reconstruy permanentemente, que se despliega en los límites mismos de lo que ignora y se sostiene en las voluntades colectivas de producción de libertades.
A modo de inconclusiones Desde esta caja de herramientas, lo multi no referirá meramente a lo diverso, lo post sólo a lo que viene después de la gubernamentalidad colonial, o de los Estados-nación, o de los socialismos reales, menos a justificaciones de individualismos consumistas, sino a las necesarias reorganizaciones estratégicas (político-conceptuales) que el nuevo orden mundial impone a quienes siguen resistiendo e inventando nuevos y más libres modos de vivir. Elucidar las múltiples institucionalizaciones de diferencias desigualadas –geopolíticas, culturales, étnicas, de clase, de género, de opción sexual– y sus modos de resistir, para situarse en la invención de emancipaciones, en la producción de múltiples, diversas, libertades. Porque de eso se trata, de la multi plicidad de estrategias de invención colectiva y anónima de libertades.
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En esto hemos tenido el privilegio de ver cómo las fábricas sin patrón (Fernández, 2008) en Argentina, han forzado los límites de lo posible en condiciones de borde, absolutamente en el margen. Allí ha podido comprobarse con toda contundencia que este forzar los límites de lo posible es no sólo resistir, sino también inventar colectivamente, en actualizaciones de deseo, en invenciones deseantes, unas formas cada vez más libres de trabajar, de pensar, de estar… El don de la gratuidad de estar, entre algunos, entre muchos, a contramano de esa feroz insistencia de las lógicas capitalistas en la producción de soledades. Ya el joven Marx había explicado en los primeros tiempos del modo de producción capitalista, que la alienación que separa al productor de su producto constituía una estrategia central de las lógicas capitalistas para su reproducción. Así como el Imperio hoy “globaliza” la producción y concentra capitales, los dispositivos biopolíticos actuales de aislamiento y vulnerabilización también son esenciales para su reproducción. La fábrica de soledades separa, aísla a cada quien de sus potencias. Cada vez estoy más separado de otros. Cada vez pienso que puedo menos, cada vez hago menos, cada vez anhelo menos. De allí la
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importancia de indagar no sólo los modos de producción y los diversos modos históricos de subjetivación imprescindibles para la reproducción de las lógicas del capital, sino también las lógicas colectivas de la multiplicidad (Fernández, 2007a) desde donde los/as desigualados configuran sus formas colectivas de inventar otros devenires. A la hora de dar relevancia a la configuración de modos de subje tivación no hegemónicos, habíamos dicho que nada de lo social es homogéneo (Fernández, 1993). Ahora podemos agregar que siempre existe la posibilidad de líneas de fuga frente a los poderes de dominio. Spinoza planteaba que ante las pasiones tristes, esas que el tirano impone para someter a sus súbditos, hay que configurar pasiones alegres. Y allí es central el registro de las propias potencias. Este registro no se realiza nunca en soledad, se compone con otros, entre otros, entre -muchos, entre-algunos. Las fábricas sin patrón son un ejemplo de ello. Si las relaciones de dominio constituyen un paquete enredado de relaciones de poder (Grosfoguel, 2005) donde operan en multiplicidad diversas diferencias desigualadas –geopolíticas, culturales, de clase, étnicas, religiosas, de opción sexual, de género–, se tratará de articular multiplicidad de estrategias de invención colectiva y anónima de emancipaciones y libertades. Muchas veces pueden pensarse como estrategias sin tiempo: por fuera de calendarios. No es que no haya apuro, sino que son estrategias permanentes (Fernández, 2007c). No se trata del futuro, sino siguiendo a Derrida, de lo por venir, de las libertades por venir. Lo por venir, ya no como un futuro utópico, sino como existenciarios com-posibles hoy. Lo com-posible lejos está de significar acomodarse a lo posible. Se trata, más bien, de forzar los límites de lo posible. No sólo resistir sino también inventar, en actualizaciones de deseo, desde potencias deseantes, formas cada vez más libres de amar, de trabajar, de estar, de pensar… entre-algunos, entre-muchos. Se busca entonces enfocar nuestras preocupaciones académicas hacia la construcción de un campo de problemas de la subjetividad, que desde los criterios que he expuesto, necesita hacerse a partir de abordajes transdisciplinarios. Habilitar en nuestros espacios académico -políticos áreas de estudios transdisciplinarios de la subjetividad donde seguramente ocuparán un lugar estratégico las frecuentemente impensadas relaciones entre las formas político-sociales y las producciones de subjetividades: aquellas que potencian las invenciones
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colectivas, aquellas que reproducen una y otra vez posicionamientos subalternos, aun en los movimientos sociales “alternativos”, etc. Áreas que trabajen en red con modalidades organizativas lo más dúctiles y horizontales posibles, guiadas por –otra vez Derrida– políticas de la amistad (Derrida, 1998) Áreas que puedan construir sus propios criterios epistemológicos, imprescindibles para hacer posibles los atravesamientos disciplinarios necesarios, articulados pero siempre con el mayor rigor epistémico.
Max Ernst (Alemania 1891-1976), de la novela-collage Das Karmelienmädchen Ein Fraum, DuMont, edición de 1971.
Desde esta perspectiva es que interesa pensar lo multicultural, como la multiplicidad tanto de dispositivos de dominio como de invención de libertades en el nuevo orden mundial. Si es así, me parece que se presenta un fuerte desafío político, filosófico, académico y fundamentalmente existencial, que es bueno no rehusar.
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Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina
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“Quem se importa com experimentos?” ontologias variáveis, inquietações queer Dolores Galindo1
“Quem se importa com experimentos”? A indagação que dá título a esse trabalho veio da recusa recebida por Ian Hacking (2009a) quando submeteu um artigo, no qual explorava as relações entre experimentação e teoria, a periódicos científicos de diversas origens disciplinares. A junção do termo “experimento” que nos remete ao domínio do empírico (ou ainda, à Psicologia Social Experimental que, desde a crise da década de 1970, tornou-se uma bifurcação pouco percorrida pelos psicólogos sociais que embarcaram na deriva crítica) ao termo “ontologias”, cujo registro está ligado à metafísica, pode soar estranha. Valhamo-nos desta estranheza. Em trabalho anterior (Galindo; Méllo, 2010), empregamos o termo experimento para nos referirmos às práticas de coletivos queer-copyleft, que visavam não apenas personalizar o corpo por meio de novos aditivos, mas desterritorializá-lo, não o subordinando às prescrições. Nomeamos tais práticas como piratarias de gênero, por indicarem agenciamentos que atuam na desorganização de fronteiras e no estabelecimento de outras combinações entre fluxos semióticos, informacionais e biológicos. As fronteiras são sempre virtuais: as criamos e recriamos para vivermos. Piratarias desvirtuam (tiram a virtude, adulteram) as cartas de navegação, os mapas, as prescrições. Promovem a plasticidade ampliando ou restringindo os espaços corporais: materialização da vida. No texto presente, interrogamos a noção de experimentos, deslocando nossa atenção do debate sobre sexo e heteronormatividade para relacionalidades entre humanos e não/humanos. Inserimo-nos na imaginação fabulativa queer voltada às ontologias variáveis do contemporâneo que não podem ser homogeneizadas por um decretado fim das dicotomias. Como recurso para fabulação, recorremos às figurações que deslizam entre o literal e o fictício, sem que encontrem fixidez. Figurar é um dos principais recursos de experimentação desenvolvidos por Donna Haraway (2000; 2004; 2008), que reconhece o caráter difuso e 1 Universidade Federal de Mato Grosso.
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transversal do termo, delimitando-o como uma possibilidade de abarcar o que seria, numa lógica excludente, tido como contraditório ou numa perspectiva realista simples como não existente. Dentre as figurações do universo fantástico de Donna Haraway podemos citar os ciborgues (Haraway, 2000), o rato do câncer (Haraway, 2004) e cachorros (Haraway, 2008) entrelaçados por ela numa narrativa de parentesco. Braidotti (2006) vê na criação deste sistema de parentesco uma maneira nova de pensar conexões com tecno-outros que instaura uma dimensão ética a cada movimento ontológico: mundos relacionais sendo feitos e refeitos, transformando o chamado “nó górdio” que distingue humanos de não/humanos em movimentos, sem que se diga superada a linha divisória entre eles (Latour, 1994). A arte é, sem dúvida, uma das instâncias nas quais mundos não atualizáveis podem ser tomados como tropos para a experimentação pelo estranhamento porque a ficção como experimento de figuração, assim como a tecnociência, é, em si, um exercício reflexivo (Haraway, 1994; 1999). Figurar é mergulhar nos modos de viver – um mergulho atento às relacionalidades e às maneiras como “nos tornamos com” (Haraway, 2007). Nas figurações, os referentes são passagens, trânsitos que se constituem em dispositivo para criação. Sendo do âmbito da proposição, as figurações não ilustram mundos, inventam-nos. Pensamos como Giffney e Hird (2008) que é importante Queerizar os não/ humanos e que esta é uma agenda para a Psicologia Social em diálogo com os estudos queer, de modo a inserir o debate sobre sexo e heteronormatividade na reflexão sobre as políticas ontológicas que se fazem presentes no que/quem se torna humano, não/humano, in/humano. Seguindo o argumento de Butler (2004; 2005) ao discutir o conceito de abjeção, o debate queer sempre tangenciou questões ontológicas nas quais a heteronormatividade é um dos eixos, mas não o único. O queer se opõe, ironiza, flerta e subverte os códigos que produzem regiões ontológicas sombrias da abjeção, bem como se pergunta sobre aquilo/quem adquire existência. Veja-se o que pontua Butler, em entrevista cedida a Prins e Meijer (2002, p. 159), sobre o entrelaçamento do seu trabalho sobre abjeção e proposições/ficções ontológicas: Em parte, vejo-me trabalhar no contexto de discursos que operam através de argumentos ontológicos não há um ator por trás do ato recirculando o há para produzir um contra-imaginário à metafí-
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sica dominante. Com efeito, parece-me crucial recircular e ressignificar os operadores ontológicos, mesmo que seja apenas para apresentar a própria ontologia como um campo questionado.
Dessa maneira, trata-se de queerizar a compreensão do humano enquanto gênero ou princípio normativo em torno do qual se organizam a distribuição dos entes do mundo, episteme que emerge quando da partição entre ciências humanas e naturais, aliás, esta separação faz parte do próprio movimento de fundação de ambas (Foucault, 1999). Empregamos o termo experimento na esteira Foucault-deleuziana da experimentação filosófica de multiplicidades como dispositivo de construção conceitual (Cardoso JR, 2010), dizendo dos modos de vida e suas resistências à estagnação (Galindo e Méllo, 2010). Para entender o efeito Foucault-Deleuze sobre a noção de experimento, é importante remeter à conotação que este possui no cotidiano tecnocientífico. Nele, em geral, experimentos são vistos como separados das teorizações, sendo adjetivados técnicos. Tomando como ilustrativo o experimento para comprovação do vácuo conduzido por Boyle no século XVIII, Hacking (2009b) comenta que Hoook, responsável pela criação da bomba que possibilitou a visualização do fenômeno, considerado como um “mero experimentador”, recebeu menos louros que Boyle a quem foi aferido o estatuto de cientista. A dicotomia entre experimento e teorização, com infravalorização do primeiro, ainda permanece, apesar das várias críticas a ela dirigidas (Haraway, 2002; 2004; Hacking, 2009a; 2009b), o mesmo se observa nas relações entre arte e pensamento (Badiou, 2002). Na Psicologia Social contemporânea, o experimento empregado para redução de escala da complexidade da confusa vida cotidiana e principal balizador de critérios de verdade e fiabilidade tem sido objeto de intensos debates e este uso se tornou, acertadamente, controverso (Gergen, 2007). Os experimentos se encontram ainda, inevitavelmente, ligados à discussão sobre o aparato Psi como tecnologia de governo que participa da produção “de verdades que encarnam aquilo que deve ser governado, que o tornam pensável, calculável e praticável (Rose, 1988).”. Evocar o cotidiano tecnocientífico e o emprego dos experimentos em psicologia é importante para realçar a inflexão provocada por Foucault/Deleuze. Nestes autores, a mudança de escala e os deslocamentos que o laboratório 61
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pressupõe (Latour, 1994) são revertidos, pois os experimentos filosóficos de multiplicidades se dão na vida, movimentando sensações e devires. Talvez por isso Haraway (2004), leitora e crítica de Foucault, fale de estilos de vida experimental e não de estilos de pensamento experimental, o que a vincularia ao trabalho de Fleck. Com o efeito Foucault/Deleuze sobre o termo experimento não há redução de escalas, nem utilização de critérios de verificação característicos do laboratório – são experimentos sem verdade que têm como matéria a vida (Agamben, 2008). Depois de falarmos sobre o nosso primeiro termo - experimento -, passemos à discussão do termo ontologia. Classicamente, ontologia diz respeito ao estudo do ser, às condições de existência de um determinado ente; às condições de fazer-se real (Abramo, 1998). Todavia, este termo passou por uma grande reviravolta depois da leitura foucaultiana que o ancora na problematização do presente. Na acepção foucauldiana, ontologias referem-se aos modos de viver que adquirem condições de existência; diz respeito àquilo que fazemos de nós mesmos. O uso do termo ontologia adjetivada como histórica ou ontologia do presente trata do trabalho sobre nós mesmos como seres livres (Foucault, 1984). De acordo com Cardoso (1995), apesar desta dimensão se localizar na obra como um todo do autor, adquire maior visibilidade nos seus últimos trabalhos, onde ele “explicitamente se inscreve no que considera a tradição crítica herdeira de Kant, a de uma ontologia da atualidade” (Cardoso, 1995; p. 55). Vale matizar que o agora/presente foucauldiano é diferente do hoje que requer ser problematizado à luz do primeiro. Conforme elucida Cardoso (1995), a problematização “desatualiza o presente, desatualiza o hoje, no movimento de uma interpelação. Nesse sentido o presente não é dado, nem enquadrado numa linearidade entre o passado e o futuro” (Cardoso, 1995; p. 52). Seguindo esta pista, podemos localizar as figurações como um recurso de desatualização do presente que interpela sobre o modo como nos constituímos, modo este cada vez mais transgendrado. As criaturas fabulosas são formas de interpelar o que chamamos de “nós mesmos” (Haraway, 2011). Quando dizemos “nós mesmos”, o que/quem incluímos? O que/quem excluímos? A que/quem delegamos a posição de não/humanos ou mesmo de in/humanos? Tendo a ruptura foucauldiana como ponto de inflexão para pensar sobre ontologias, Mol (2007) destaca que esta tem uma caracterização política, pois supõe um processo ativo e contingente por meio do qual alguns seres (actantes,
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categorias etc.) adquirem existência e outros não, devendo ser abordada sempre no plural como ontologias. Na mesma perspectiva, Hacking (2002), que vê a si mesmo como um nominalista, sublinha que ontologias quando adjetivadas como históricas dizem dos modos como vivemos, valendo a pena insistir no uso deste termo. A definição do que/quem é ou não considerado um ser com o qual nos relacionamos é variável (Latour, 1994). Na esteira das reflexões de Mol (2008), usamos ontologias no plural para destacar a sua vinculação com a proposição de multiplicidades. Para ela, “a palavra tem agora que vir no plural, porque se trata de um passo fundamental; se a realidade é feita, se é localizada histórica, cultural e materialmente, também é múltipla. As realidades tornaram-se múltiplas”. Experimentar mundos fictícios e ontologias, esta é uma contribuição da arte que merece ser ressaltada. Donna Haraway (2002; 2004) argumenta ferozmente pela defesa desta potência da arte na criação de mundos e pela responsabilidade inerente em fazê-los. Esta autora escolhe para si as zonas fictícias e potentes da fabulação, trabalhando, sobretudo, com os domínios da literatura, cinema (ambos relativos à ficção científica) e visualidades (artes plásticas). Um exemplo da consideração da arte como experimento ontológico pode ser encontrado nos comentários de Haraway (2007) sobre o trabalho da artista plástica Piccinini. Para ela, as esculturas e telas da artista não são apenas ilustrações de argumentos, são maneiras de experimentar ontologias que dizem de relacionalidades com os seres transgenéricos do nosso século. Nas obras de Piccinini, somos interpelados por relações de afeto: crianças e criaturas monstruosas, como em The Long Awaited, descansam uma sobre a outra (figura 1):
Figura 1 – Patricia Piccinni, The Long Awaited, 2008. 63
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Uma das vertentes de investigação que desenvolvemos no grupo “Tecnologias, Ciências e Contemporâneo” (TECC) problematiza o que chamamos de corpo próprio do pesquisador ou pesquisadora. Argumentamos pela expropriação do corpo e sua multiplicação, projeto que insere em um interesse mais amplo, concernente à experimentação de ontologias variáveis, onde as posições de sujeito e objeto; natureza e cultura; humanos e não/humanos constituem linhas nas quais nos movemos. Colocar nossa humanidade, nosso corpo à prova, é uma boa forma de romper o que podemos nomear como humanormatividade, isto é, a primazia do gênero humano como baliza para qualquer imaginação ontológica. Optamos pela expressão “não/humanos” ao invés da nomeação “não-humanos” para enfatizar o caráter contingente dos actantes singulares, sem que para isso sejam definidas fronteiras fixas entre ambos (Haraway, 1999; Giffney & Hird, 2008). O uso do sinal de barra “/” (não/humanos) traça uma continuidade entre os termos não e humana, ao invés de uma separação que poderia advir do emprego do sinal “-“ (não - humanos) ou da simples sequência dos termos não e humano (“não humanos”). Desde a década de 1960 a arte contemporânea é pródiga de experimentos que colocam o corpo e o self unificados em questionamento, uma arte contra os corpos, contra os selves referidos a pessoalidades (Galindo, 2009). Nem todo corpo deriva em pessoa como já o advertiram Deleuze e Guattari (1997) com as noções de devires animais. Na esteira das experimentações com o corpo da arte contemporânea, ao invés de “ter um corpo” ou “ser um corpo”, experimentamos produzir corporalidades na relacionalidades com actantes que foram, ao longo do tempo, individuados em relação aos humanos: papéis e grãos. Ao contrário de movimentos que estão no “próprio” corpo, preferimos falar em múltiplas corporalidades que são produzidas, dissolvendo a unidade “corpo próprio” em multiplicidades. As multiplicidades corporais são paragens no plano da imanência que tem no plano das formas um dos seus platôs, mas não o único (Escossia; Tedesco, 2010). Linha de fuga do pensamento interpretativo “que torna visíveis as forças enceradas nas formas, que apresenta as forças que se encontram em ação nos corpos e são as causas mais profundas de suas deformações” (Machado, 2009, p. 238). No exercício fabulativo que nos interessa, ao invés de “ter um corpo” ou “ser um corpo”, o pesquisador ou pesquisadora produz (e é produzido por)
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multiplicidades que não se esgotam numa pessoalidade que as precede. É um exercício fabulativo, pois na vida cotidiana temos a sensação de unidade corporal vinculada a um self também visto como unificado (Gergen, 1992), ainda que este seja produzido por constantes arranjos (Mol, 2002), por meio dos quais adquire potência de afetação àquilo de que é feito o mundo (Latour, 1999). A quais multiplicidades aludimos? Deleuze (1999) nos diz de “uma multiplicidade não numérica na qual a cada estágio da divisão, pode-se falar de ‘indivisíveis’” (Deleuze, 2004, p. 31). Ou seja, as multiplicidades corporais são outras sem necessariamente serem várias. É a produção da diferença, ou melhor, dos acontecimentos, e não da quantidade do que está em foco. Nesta acepção, as sensações possuem componentes materiais e virtuais de modo que se inscrevem em um plano que não se reduz a estas, pois as multiplicidades se fazem nos devires que se dão entre elas (Cardoso JR, 2010). Na perspectiva das multiplicidades não preexiste um corpo sobre o qual construímos diferentes movimentos ontológicos. O próprio corpo adquire existência nas performances que o articulam, sendo apenas uma delas, pois, em vários momentos, os arranjos não necessariamente resultam em qualquer unidade, nem advêm do humano como figura-origem ou a ele se dirigem enquanto figura-destino. Como sintetiza Cardoso JR (2010, p. 53): (...) não é o caso de se referir a sensação à “carne”, como gostaria a estética de base fenomenológica, de modo a supor que, mesmo nas composições onde não aparece a figura humana, a arte estaria tomada por um ato que doa sentido.
Na mesma direção, Orlandi (2004) lembra que a fenomenologia pressupõe consciência e intencionalidade quando “o que os estados vividos pressupõem que eles mascaram, mas que a eles não se reduz, são fluxos intensivos, são transrelações entre intensidades (Orlandi, 2004, p. 44).”. Encontramos diversos, mas ainda insuficientemente cartografados, trabalhos artísticos latino-americanos e brasileiros mobilizados pelo e no movimento queer que questionam diretamente o sexo e a heteronormatividade (Galindo e Méllo, 2010). Ao nos propormos experimentar ontologias variáveis, sem necessariamente passar pela discussão dos binarismos gênero/sexo, instalou-se um incômodo: seria o nosso trabalho queer? A inquietação nos levou, então, a
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indagar sobre a propriedade de uma classificação como esta. O que incluímos nas visualidades ou artes queer? Do nosso ponto de vista, inúmeros trabalhos podem ser chamados de queer se utilizamos como critério os efeitos e não o conteúdo ou temática abordada. Nesta acepção, o trabalho de Piccinini, já comentado por Haraway, o trabalho de Rodrigo Braga e outros artistas nos ajudam a pensar e experimentar ontologias não humanormativas, podendo ser interpelados como inquietações queer. Falemos um pouco sobre o trabalho de Rodrigo Braga. Há algum tempo este artista recifense desenvolve uma exploração consistente de naturezasculturas iniciada com o trabalho Fantasia de Compensação (2004), no qual experimentou uma sobreposição de imagens entre humano e cachorro para compensar o que chamou de sua fraqueza diante de um animal feroz (figura 2). Apesar de ser resultante de manipulação fotográfica, o trabalho provocou intensas reações de abjeção.
Figura 2 – Rodrigo Braga, Fantasia de Compensação, 2003.
Na série Comunhão (2007), Rodrigo Braga trabalhou a relacionalidade com um bode. Unindo sua cabeça a do animal, ambos, enterrados num mesmo solo, intercambiam o gesto de comunicar-se pela fronte, que é característico dos caprinos.
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Figura 3 – Rodrigo Braga, Comunhão, 2007
O pensamento de Donna Haraway é ímpar por colocar-se radicalmente carregado de afetos e afetações que, comumentemente, delegamos apenas aos humanos. Ela nos fala do seu amor pelo rato experimental, pelos ciborgues, pelos elementos químicos. Experimenta um envolvimento que a dista da posição de observadora; ela está entre os seres que compõem as paisagens tecnocientíficas contemporâneas; ela é um deles. Conta-nos de histórias de amor experimentais entre homens e animais de laboratório (Haraway, 2004), discute o sofrimento das porcas brasileiras amontoadas no abate (Haraway; Azeredo, 2011). Estamos na mesma deriva. Considerando o questionamento da humanormatividade, abordaremos alguns experimentos ontológicos que realizamos na interface entre Arte Contemporânea e Psicologia Social. No nosso caso, a linguagem foi a dança. Propusemo-nos a dançar com não humanos (Galindo; Millioli, 2011). Em De Conceitos, criado para o Circuito Cultural Setembro Freire 2010, tomando papéis com poemas como matéria para criação, a artista-pesquisadora Daniela Millioli produziu arranjos que tornam visíveis multiplicidades corporais (tato, olfato etc.), e atributos concernentes às materialidades com as quais se dançam (viscosidade, aspereza etc.), emergentes do contato com papéis, seus parceiros de dança (figura 4).
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Figura 4 – Daniele Milioli, Embrulhada, De Conceitos, 2010.
O primeiro projeto foi um ensaio para que lográssemos trabalhar relacionalidades com não/humanos aos quais se atribui a propriedade de viventes. No segundo trabalho, (De) Dentro Leguminosas, criado para o projeto Leituras do Movimento do SESC Arsenal 2010, a mesma artista-pesquisadora tomou grãos de soja como companheiros para cocriar danças. A noção espécies companheiras de Haraway (2008) contribuiu para a criação de uma figuração – leguminosas dançarinas – que, incorporando diferentes práticas, convida a habitar um mundo que vai dos cultivares transgênicos às prateleiras dos supermercados (Galindo; Miliolli, 2011b). Transportada para a criação em dança, a soja transforma-se em figuração de uma natureza dançante, que traduz a relacionalidade na construção de mundos, onde a humanormatividade é posta em questão. Os grãos interpelaram a dançarina, ora com o peso de 30 quilos atados ao corpo expropriado pelo cansaço (figura 5), ora pelos odores de ração animal durante sua compra, ou pela sua inclusão como parte da ambiência familiar, ao repousar em casa depois dos exercícios na sala de dança. Este experimento ontológico estava carregado de afeto, de relações de amor, ódio, agonia (Braidotti, 1996; Haraway, 2002; 2004) e de dilemas como o de chamar a soja transgênica de espécie companheira.
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Figura 5 – Danielle Milioli, De Conceitos, Mochila com grãos, 2010
A escolha da soja não foi aleatória: ela é pregnante em Mato Grosso onde se deu o processo de criação, movimentando o agronegócio, mobilizando memórias familiares, provocando o tráfego de imensas carretas que cortam as estradas durante as safras. Nos campos, a soja transgênica demarca o solo com a exibição dos tipos de sementes plantadas, uma forma de controle do produto comprado pelos agricultores. Dessa forma, dançar com a soja é fazê-lo com as práticas nela incorporadas. É um experimento ontológico radicalmente localizado.
Figura 6: Danielle Milioli, Queda e soja, De Conceitos, 2011.
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Na dança com os grãos de soja, a artista-pesquisadora buscou experimentar ontologias variáveis, movendo-se no contínuo que, pelo hábito (Spink, 2003), costumamos ver de maneira dicotômica: natureza e cultura, humanos e não/humanos e assim por diante. Os grãos de soja objetam, contrapõem, respondem, resistem e, a isso, Latour (1999) chama de recalcitrância, que é uma questão de não domínio dos humanos sobre os demais actantes que o rodeiam (Arendt, 2007). Na perspectiva das multiplicidades, dançar com a soja passou por dessubstancializar o corpo, abrindo-o às relacionalidades que, reais e fabulativas, aproximam-se do não vivível. Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2004) argumentam que a arte é um ser de sensação que se mantém de pé por si mesmo. Essa proposição é provocativa quando deslocada para a dança, pois os grãos de soja sozinhos repousam como ração, alimento, mas não como uma leguminosa bailarina. Talvez a dança seja demasiadamente efêmera para ser vista sob o ângulo desta definição. A efemeridade da dança encontra uma bela síntese em Badiou (2002): A dançarina é esquecimento milagroso de todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a dançarina suprime toda dança que sabe por que dispõe de seu corpo como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão (Badiou, 2002, p. 90).
Na conexão entre corpo dançante e pesquisa, a partir das acontecimentalizações, torna-se impossível uma posição voyeur baseada na distância. Inviável colocar as mãos atrás das costas como se pudéssemos não nos envolver fisicamente com aquilo que estamos teorizando (Galindo; Milioli, 2011). Vale matizar a importância de não substituir o cogito cartesiano pelo eu corporal, ou seja, substituir o “eu penso” pelo “eu sinto”. Deleuze (1997), em Imanência, uma vida, lembra que o elemento sensação remete a um empirismo simples, pois esta seria um corte, uma pausa no fluxo de consciência. Daí a preferir o uso do termo devir que seria, justamente, aquilo que se instala entre uma sensação e outra, correspondendo ao plano das intensidades. Linha de fuga do
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pensamento interpretativo e “que torna visíveis as forças enceradas nas formas, que apresenta as forças que se encontram em ação nos corpos e são as causas mais profundas de suas deformações” (Machado, 2009, p. 238). Não seremos mais humanos porque apenas organismos, naturezas; nem menos humanos porque radicalmente artificiais. Sem substituir a humanormatividade por outro ideal, igualmente normativo, correspondente ao pós-humano (Prins e Meijer, 2002) ou ao pós-gênero (Haraway; Gane, 2007), restam-nos experimentos ontológicos mundanos, localizados, parciais. Retornando à pergunta que dá título ao ensaio, afirmemos que experimentos importam à ontologia do presente orientada pelas inquietações queer.
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Psicologia e Políticas Queer1 Wiliam Siqueira Peres2
Os discursos e figurações atuais que se mostram como importantes componentes de subjetivação, assim como, as ultras velocidades pelas quais novas tecnologias são processadas na atualidade, tem levado autores como Rosi Braidotti (2006) a problematizar o contemporâneo e propor a emergência da trans-contemporaneidade, ou seja, demarcado pela crise dos paradigmas e a emergência de novas atrizes e atores que reivindicam direitos civis, sociais, econômicos, sexuais, culturais, políticos e de gênero, as referencias e significados conceituais disponíveis para análise das relações humanas tem se mostrado caducos e arbitrários, e com isso, as palavras que mais se mostram pertinentes nos remetem às perspectivas transitivas, descontinuas e instáveis da vida. Essa trans-contemporaneidade, diria Braidotti (2006, p. 20, tradução nossa): Indica uma transferência intertextual que atravessa fronteiras, transversal, no sentido de um salto desde um código, um campo ou um eixo a outro, não como um modo quantitativo de multiplicidades plurais, mas, no sentido qualitativo de multiplicidades complexas. Não se trata apenas de entretecer linhas, como variações de um tema, mas de interpretar a positividade da diferença como um tema específico em si mesmo.
Nesta perspectiva, palavras como transformação, trânsitos, transgêneros, transexualidades, transgressão, ganham outros contornos, valores e significação afinados pela emergência de sua positivação. Muitos saberes, poderes e prazeres participa da produção dos modos de percepção, sensação, pensamentos e práticas que se efetuam nas relações que as pessoas estabelecem umas com as outras, com o mundo e consigo mes1 Este texto esta sendo publicado concomitantemente em lingua espanhola com o título La Psicologia, lo queer y la vida em Fernández, Ana Maria e Peres, Wiliam Siqueira (Orgs) - La diferencia desquiciada: géneros y diversidades sexuais, Buenos Aires, Biblos Editorial, 2013. 2 Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação da UNESP, Câmpus de Assis, SP.
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mas, compondo processos de subjetivação que na maioria das vezes atuam em consonância com as ordens dadas pelo bio-poder e as diversas regulações bio-políticas, ou seja, atuam como dispositivos disciplinares e totalizantes que criam crenças, produz e mantém regimes de verdades que impõe como referencia absoluta, a ideia reducionista do ser humano a uma estrutura, a um único sistema de funcionamento, a um aparelho psíquico, a uma estrutura universal de pensamento. De modo complementar a essas determinações disciplinares e regulatórias do biopoder surge um sistema específico para atuar sobre os corpos, suas sensibilidades e prazeres, para atuar no coração da subjetividade, no agenciamento de forças que engendram os processos desejantes. A esse sistema regulatório e normatizador Judith Butler (2003) chamou sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, instituídos, mantidos e relacionados a partir de relações de coerência e continuidade, dando inteligibilidade e reconhecimento para que uma pessoa ao nascer com sexo de macho, tenha necessariamente gênero masculino, seu desejo seja heterossexual e sua prática sexual ativa, enquanto que, se nascer sexo fêmea, seu gênero necessariamente será feminino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual passiva. Esse sistema se orienta basicamente pelas premissas regulatórias do biopoder em consonância com dispositivos da heteronormatividade e do falocentrismo, determinando a heterossexualidade e padrões rígidos de identidades sexuais e de gênero como obrigatória. Esses referentes estão presentes nos processos de subjetivação normatizadores, de modo a produzir indivíduos dóceis, contidos e disciplinados, reprodutores dos modelos e ordens previamente dadas, fixando-se em identidades cristalizadas, conceituações binárias e crenças universais. Trata-se da emergência de indivíduos viciados em identidades e dependentes dos modos de normatização. Na via paralela encontramos outros modos de subjetivação que se efetuam através do direito fundamental à singularidade, do livre arbítrio necessário para poder fazer de sua vida uma obra de arte (DELEUZE; PARNET, 1998), uma autopoiese (MATURANA; VARELA, 2001), uma estilística da existência (FOUCAULT, 2004). Diante dessa pequena cartografia do trans-contemporaneo queremos problematizar a respeito das conexões possíveis entre Psicologia e a insurgência
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Queer, da efetivação prática e política que toma como disparador os processos emancipatórios psicossociais em oposição às praticas de manutenção aos pensamentos binários, universais e a – históricos, que se expressam através dos excessos diagnósticos, classificatórios e reducionistas. Trata-se de posicionamentos de práticas psis que ainda estão aprisionadas no século XIX, usando e reificando valores e metodologias que foram construídas naquele tempo sócio-histórico, quando da emergência da noção de individuo – aquele que não se divide, que está totalizado – e da atribuição de significação social e de valor moral aos corpos e seus prazeres. Se passarmos uma olhadela sobre as teorias e metodologias utilizadas pelas práticas em Psicologia na atualidade do século XXI, podemos como ponto de evidencia, perceber que a maioria dessas teorias se encontra comprometidas com a manutenção, reificação e defesa do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, e diante desse compromisso, observar, classificar, esquadrinhar, enquadrar, diagnosticar, trancafiar, tratar, curar, e até produzir morte civil das pessoas que de alguma maneira tornaram-se dissidentes das ordens e modelos impostos como únicos, corretos e normais. Em concomitância com as categorias de sexo, gênero, desejo e práticas sexuais nos deparamos com outros marcadores psicossociais, tais como, classe social, raça/cor, etnias, orientação sexual, estética corporal, geração, habitação de periferia, que são mantidos em frequentes interações, denunciando a presença de machismos, racismos, misoginias, lesbofobias, transfobias e homofobias, em muitas das práticas e atuações dos operadores da Psicologia. As escutas e observações realizadas por esses operadores - policiais do psiquismo, que militam em defesa da crença de um único corpo, um único sexo, um único gênero, um único desejo, um único psiquismo, uma raça e etnia tomada como superiores às outras contribui para a emergência de uma Psicologia do terror e do aniquilamento de todas aquelas pessoas que não se adéquam aos manuais, aos modelos metodológicos de intervenção reificados, aos princípios binários e universais em decorrência de suas dissidências aos padrões normativos. Como modo de resistência a essa posição normativa e comprometida desses modos de fazer Psicologia, consolidada pelos regimes de verdades binários, universais e a – históricos alguns estudiosos e pesquisadores da Psicologia, e
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em especial muitos aqui presentes, vem manifestando seu descontentamento através de pesquisas e publicações que criticam a insistência de certa Psicologia que perversamente expressa prazer em classificar, diagnosticar, tratar, curar, excluir as pessoas através de um modo de reducionismo que se limita aos manuais produzidos no século XIX. Contra essa prática da psicologia apresentamos a insurgência de uma Psicologia Queer cujo viés político, emancipatório e crítico se mostram como urgente e necessário.
Mas de onde vem e para onde vai uma Psicologia que se orienta pelo Queering? A tentativa de aproximação da Psicologia com um viés político e emancipatório em uma perspectiva Queer solicita primeiramente um resgate histórico a respeito do termo Queer e dos usos que foram sendo construídos em torno de uma dimensão humana que a principio tem a sua existência negada pelas instituições médicas – psicológicas – jurídicas – religiosas – e seus saberes/ poderes disciplinares e regulatórios, ou recebe tratamento de abjeção, como não humano, como monstruosidade, totalmente desprovido de direitos a ter direitos, logo excluído do acesso à cidadania. Primeiramente há que se esclarecer que o termo Queer não é um adjetivo e sim um verbo, sendo indicado a ideia de “Queering”, logo, não é possível falarmos em uma identidade Queer, assim como, que a palavra Queer não se limita ao conjunto de letras identitárias, tais como, LGBTTTI – gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexos, mas remete a todas as expressões existenciais que rompem com os imperativos da norma. Em segundo lugar, o Queer não se insere dentro do registro binário e universal, mas se apresenta como expressão humana em construção permanente, como processualidades, como devires em ação, sempre múltiplo, heterogêneo e polifônico. Aproxima-se de uma perspectiva nômade de composição com a vida, e, neste sentido, como aponta Anne Marie Jagose (1993), o Queer não se apresenta como uma identidade, mas como uma crítica à identidade. É nesta perspectiva de critica a identidade que se dá a insurgência dos estudos Queer, advindo nos anos 80/século XX, fruto das lutas políticas e so-
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ciais do ativismo de gays e lésbicas nos Estados Unidos e Reino Unido, sendo posteriormente emergido em outros países. Trata-se de um período sócio-histórico, político e cultural marcado por diversas crises, entre elas, a emergência do HIV/Aids, criticas ao feminismo heterocentrado, branco e colonial, crise política e cultural assimilada pelo capitalismo e que dará visibilidade para a cultura gay, diante da evidencia do Pink Money. Inspirado pelo ativismo da pandemia da AIDS destacamos as atividades de grupos como ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power) composto por pessoas soropositivas, usuárias e usuários de drogas, gays, lésbicas, travestis e transexuais, trabalhadoras e trabalhadores do sexo, homens e mulheres negras e outros coletivos minoritários, descontentes com o tratamento estatal. De acordo com Javier Sáez (2005, p. 68), (tradução nossa) há duas razões principais que apontam para a importância do ACT UP: (1) a sua capacidade de aglutinação de diversos coletivos que trabalhavam separados (mulheres negras, mulheres em situação de pobreza, drogados, putas e putos, gays, lésbicas, transexuais, travestis, hemofílicos) denunciando o descaso e responsabilidade do estado pela exclusão vivida por diversos grupos de pessoas; (2) coloca em questão a prática de muitos grupos de direitos civis tradicionais que defendem a integração dos dissidentes sexuais e de gênero junto aos padrões normativos estabelecidos, negociando alguma quota e/ou acesso ao poder. Contra esses grupos adaptacionistas o ACT UP introduz a ‘raiva’, a denúncia direta e explícita, boicotes e atos públicos, intervenções em igrejas e órgãos de governo, desafiando a ordem social e os bons costumes como práticas e discursos universais.
Muitas pessoas que participavam das manifestações do ACT UP eram militantes LGBT e começaram a problematizar a possibilidade de ampliação das referencias identitárias demarcadas pela heterossexualidade e homossexualidade, expressando mal estar diante dos padrões normativos restritos às oposições binárias e modelos universalizantes; estas inquietações favoreceram para que no verão de 1990 surgisse o primeiro grupo a fazer uso da expressão Queer: Queer Nation. A partir da criação de grupos como Queer Nation muitos outros foram sur-
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gindo e com eles as problematizações sobre identidades acabadas que reduzem o ser humano a um referencia única e totalizada. Em seus discursos passam a problematizar a respeito de múltiplas categorias que subjetivam os sujeitos, acrescentado às identidades sexuais outros marcadores identitários, tais como, classe social, raça/côr, gênero, geração, de modo a tomar o ser humano como sendo habitado por multiplicidades, o que por sua vez, abandona definitivamente a ideia de eu, unidade, padrão, estrutura, identidade, papel, repetição. Em suas práticas se apropriam de estratégias de rua e de confrontação direta com o poder, se orientando pelas referencias da cultura popular e das lutas do movimento negro, do movimento hype, do movimento feminista, do movimento pacifista, para então, criar seu próprio estilo de confrontação, como as manifestações criativas em espaços públicos de “beijaço” entre gays e lésbicas. No modo como vinha funcionando o movimento de gays e lésbicas americanos de igualdades entre hetero e homossexuais, de adequações reduzidas ao modelo de sociedade falocêntrica e heteronormatizada, ativistas do Queer Nation e do Out Rage reagem radicalmente; em suas analises o enfrentamento da homofobia até então realizada pelo movimento gay e lésbico se mantinha preso à perspectiva assimilacionista, e suas pretensões extrapolavam esses limites buscando a transformação do discurso publico sobre as sexualidades através da desestabilização dos limites entre espaço público e privado, denunciando a naturalização da heterossexualidade e a insurgência de novos discursos e conexões sexuais e de gênero. Das barricadas políticas do desejo presentes no ativismo Queer e seu diálogo com a academia, alguns ativistas que também ocupavam o lugar de pesquisadores acadêmicos organizam um novo campo de estudos e pesquisas: os estudos Queer. Em paralelo ao ativismo Queer Susana López Penedo (2008) aponta como sendo em 1990 o ano que pela primeira vez a palavra Queer foi usada em contexto acadêmico, quando da publicação da obra Epistemología del Armario de Eve Kosofsky Sedgwick (1998). De modo complementar Judith Butler (2003) publicava seu famoso Gender Trouble (Problemas de Gênero) que viria a se tornar o livro referencia para acadêmicos interessados pelos Estudos Queer no mundo todo. Seguindo as orientações históricas de Penedo (2008), em 1981, Teresa de Lauretis faz uso do termo Queer na introdução de numero especial da revista Differences.
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A palavra Queer, destaca David Córdoba (2005), tem sua origem na cultura inglesa e era usada como um modo de ofensa a gays e lésbicas, porém, como modo de sua reversão passa a ser apropriada inicialmente pelos ativistas homossexuais para falar em nome próprio, de modo que a única pessoa que pode se apropriar e assumir-se como Queer é quem se situa neste lugar, subvertendo a ideia de estigma que inferiorizava e excluía as pessoas da comunidade LGBT e resignificando suas existências de modo a expressá-las em sua positividade e orgulho. Em suas clarificações Penedo (2008, p. 18), (tradução nossa) aponta como campo de estudos Queer a emergência de três diferentes pontos de problematização: (1) mapeamento das desigualdades existentes entre diversos setores da sociedade e que afetam categorizações advindas da classe social, raça/cor, etnias, sexualidades, gênero, entre outros marcadores sociais da diferença; (2) analises dos discursos produzidos pela cultura que não se aproximam da emancipação psicossocial e política de gays e lésbicas; (3) estratégias de legitimação das dissidências sexuais e de gênero, de modo a teorizar a insurgência de desejos e subjetividade Queer.
De modo geral, a teoria Queer propõe a hibridização como a única forma de romper com os processos homogeneizantes. Esta ideia de hibridização tem sido apropriado dos estudos realizados por Donna Haraway, e, seguindo essa perspectiva, Penedo (2008, p. 19, tradução nossa) dirá que: “a hibridização é um processo manipulável desde o ponto de vista Queer porque pode ser abordado desde um ponto de vista individual” ou seja, a nomeação do Queer só pode ser feita em nome próprio. Seguindo os passos de Penedo (2008) podemos constatar que o carro chefe de problematizações feitas pelos teóricos Queer dizem respeito aos usos e abusos da categoria identidade, pois entendem a mesma como excludente ao situar-se como marca individual em oposição a outros marcadores sociais da identidade, tornando-a restrita a um lugar no mundo que por si mesmo se mostra como opositor e fascista. Nesta direção, David Córdoba (2005) aponta para a urgência de uma critica a noção de identidade, de modo a definir uma posição anti - essencialista que nega qualquer tentativa de naturalização, fixidez e totalização. 81
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Ao lado da critica a identidade somamos problematizações que colocam em suspeita a própria noção de interioridade, apropriando-se do rechaço feito por Judith Butler (2003) quando de seus estudos a respeito da identidade de gênero, ao questionar o sistema sexo/gênero/desejo em suas determinações de complementaridade que se orientam somente pelo viés do essencialismo, o que por sua vez colocaria em dúvida a heterossexualidade até então tratada como universal e obrigatória. Em suas analises Butler (2003) propõe uma mudança na direção causal e cartesiana estabelecida entre sexo e gênero, distanciando-se da naturalização que recai sobre o gênero, confundindo-o muitas vezes com a noção de sexo que se funda no biológico e na fisiologia reprodutiva, o que por sua vez se mostra carregado de influência moral. Para essa autora, a naturalização do sexo e do gênero se mostra como efeito político de reprodução do modelo heteronormativo, demarcando o poder exercido por tecnologias políticas-morais-cristãs de prescrição da heterossexualidade. A identidade sexual e de gênero neste sentido não pode ser tomada como expressão de um interior natural e/ou essencial, pois a ideia dessa existência de uma essência interior nada mais é que o efeito regulatório provindo da própria identidade, que por sua vez é uma manifestação da exterioridade. Aqui fica patente que o sujeito é construído através de processualidades complexas que não antecede a ele mesmo, o que por sua vez nos remete ao espaço político em que as negociações de ocupação de certos lugares no mundo se fundam, promovendo assim a subversão de valores, sentidos e discursos normativos que se pretendem universais e imutáveis. De acordo com Córdoba (2005) e Penedo (2008) a identidade apresenta em seu bojo uma dimensão de exclusão e de extermínio de toda e qualquer outra marcação identitária, reificando o sistema sexo/gênero/desejo e suas determinações binárias e universalizantes. Demarcando essa dimensão de exclusão que habita a identidade, Córdoba (2005) parte da ideia de que o espaço discursivo que emerge a identidade não a determina de antemão, logo, sua afirmação se constrói diante da possibilidade de sua re-significação em espaço aberto e de sua interabilidade, o que por sua vez denota que suas determinações de significados e de conteúdos se dão através da exclusão e repressão de outras formas identitárias possíveis.
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Nesta perspectiva toda identidade é construída através dos efeitos de uma relação de saber-poder-prazer pelas quais determinadas possibilidades de fixação identitária reprimem, excluem, negam, interditam outras possibilidades de posição de sujeito. Para David Córdoba (2005) há que se ater aos processos identitários em sua produção, de modo a clarificar que para uma identidade se fixar ela precisa excluir diversas outras formas identitárias, porém, ao fazê-lo ela encobre esse processo de modo a dar a ideia de que a identidade seria uma essência, algo que as pessoas já nasceriam com ela, e, portanto, não permite sua problematização, pois aquilo que se mostra natural não pode se transformada ou conectada com outros campos de possíveis. Seguindo os passos de Córdoba (2005, p. 53, tradução nossa) pensar sobre a identidade somente será possível se considerá-la “[...] como espaço político em que se possa intervir (e de fato se intervém) para modificar seus termos, para redesenhar seus limites, para incluir posições antes excluídas, para re-significar as posições existentes.”. Esses determinantes identitários abrem precedentes para que se possa problematizar a respeito dos processos de subjetivação que individualiza e aprisiona o sujeito em uma única dimensão identitária, e neste sentido, Beatriz Preciado (2008) propõe que todo esse engendramento dos discursos normativos determinantes das identidades sexuais e de gênero que se materializa nos corpos se daria através de tecnologias e programações de sexo e de gênero, sendo entendida como: [...] tecnologia psicopolítica de modelização da subjetividade que permite produzir sujeitos que pensam e atuam como corpos individuais, que se auto compreendem como espaços e propriedades privadas, com uma identidade de gênero e uma sexualidade fixa. A programação de gênero parte da seguinte premissa: um indivíduo = um corpo = um sexo = um gênero = uma sexualidade. Desmontar essas programações de gênero [...] implica um conjunto de operações de desnaturalização e desidentificação. (PRECIADO, 2008, p. 90, tradução nossa)
Na trans-contemporaneidade podemos perceber a existência de diversos modelos de programação de sexo e de gênero, marcados pelo momento sócio-histórico, político e cultural que se atualizam de acordo com as negociações 83
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de saber poder prazer que aproximam e/ou distanciam suas atrizes e atores envolvidos nos processos sociais e políticos de emancipação. Ao mesmo tempo podemos perceber a existência de programadores diversos que atuam sobre os corpos e suas modulações de sexo, gênero, raça, orientação sexual, geração, etc., e, em especial os programadores “psi” que não só resistem a atualizar suas referencias teóricas e metodológicas, como insistem muitas das vezes em reificar práticas ultrapassadas e leituras totalmente descontextualizadas de seu tempo, o que em linhas gerais pode parecer suspeito de perversidade. Será na possibilidade de alargamento de teorias e metodologias da psicologia que acreditamos na possibilidade de promoção de uma Psicologia que ora estamos denominando Queer, e para tanto, a mesma deverá romper com postulados binários que se propõem universais e totalizados, dando passagem para a emergência de sujeitos nômades, e suas subjetividades também nômades em consonância com políticas Queer. O sujeito nômade, diria Rosi Braidotti (2000) é um mito, uma ficção política que permite analisar detalhadamente as categorias estabelecidas e os níveis de experiências e deslocamentos estabelecidos por ele: borrar as fronteiras sem desmanchar as pontes de conexão. Implica acreditar na potência e na relevância da imaginação, na construção de mitos, como um modo de êxtase política e intelectual destes tempos trans-contemporâneos. O sujeito nômade se associa às construções instáveis, transitórias, arbitrárias e excludentes. Sua configuração se dá através do exterior constitutivo que se processa através de relações de poderes, saberes e prazeres que negociam o tempo todo os lugares possíveis de trânsitos e permanências dos sujeitos, sempre em processo, logo, em construção permanente. Em uma perspectiva nômade de produção de sujeitos somos remetidos a problematizar os modos de subjetivação que participam da feitura desses sujeitos, e, neste sentido, a produção da subjetividade nômade. Rosi Braidotti (2000) dirá que a configuração desse modo sujeito toma o nômade como figura da subjetividade trans-contemporânea, como artefato tecnológico do humano e pós-humano, dotado de capacidades múltiplas em trans-conectividade impessoal. Para Braidotti (2000) o nômade somente está de passagem e se estabelece conexões situadas, elas apenas servem como modos de sobrevivência, nunca
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aceitando plenamente os limites de uma identidade nacional fixa; o nômade não tem passaporte, ou se o tem, sempre é demasiado. Essa trans-conectividade nômade apresentada por Rosi Braidotti e a emergência do sujeito nômade vem de encontro às problematizações a respeito das expressões Queer e suas possibilidades de analise fora dos manuais. A perspectiva de uma leitura “psi” que escape dos binarismos e universais em direção a uma posição nômade de análise remete a um distanciamento das referencias que tomam o ser humano como uno, como estrutura fechada, como totalidade e reconhecer no humano a sua diversidade múltipla de expressão e de conexão com a diferença da diferença (DELEUZE; PARNET, 1998); toma a variação e descontinuidade do humano em sua positividade e potência, dando voz para que a insurgência de novas expressões sexuais e de gênero sejam ouvidas e contempladas em suas reivindicações sociais, políticas e emancipatórias de cidadania, direito de ir, vir, ser, transitar e viver. Nestas configurações nômades novas políticas emancipatórias se mostram urgentes, e nesta rota, a política Queer se apresenta marcada por um viés emancipatório psicossocial supondo questionamentos das tendências integracionistas e totalizantes de todas as agremiações de reivindicação de direitos, assinalando os limites dessa integração e propondo estratégias de enfrentamento aos regimes normativos, heteronormativos e falocêntricos. Coloca sob suspeita as referências dadas de identidades acabadas, denunciando o caráter excludente desses marcadores identitarios que se mostram absolutos e imutáveis. Se pensarmos em um modo simples para definir essa política Queer podemos apontar como suas características a visão de identidade aberta e flexível, assim como, a utilização de estratégias e instrumentos de lutas advindas das estruturas culturais da heteronormatividade. A política Queer, nos fala David Córdoba (2005) será sempre assimilacionista e renunciante da integração a uma sociedade heterossexual, se colocando decididamente em lugares marginais. Nesta perspectiva, o Queer se caracteriza pela figura de um guarda chuvas que comporta as mais variadas formas de dissidências às normas sexuais e de gênero, mas também a todas as formas de existências que se distanciam do normativo e do hegemônico, tais como classe social, raça/cor, etnias, geração, entre outros, anunciando que nem todo gay/lésbica é queer, e nem todo queer é gay/lésbica, evidenciando a presença do heteroqueer.
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Em uma analise complementar, Susana López Penedo (2008, p. 134, tradução nossa) afirma: No mundo Queer, onde são as práticas sexuais e não quem as praticam que importam, ser homo ou heterossexual não é tão importante como ter e praticar atitudes Queer diante da vida [...] com certa imprecisão se poderia assinalar como Queers aqueles heterossexuais que fazem criticas voluntárias à heterossexualidade, já que elegem determinadas práticas sexuais (bissexualidade, sado-masoquismo) ou simpatizam com outras expressões Queer.
A partir dessas problematizações propomos a emergência de uma psicologia que não seja classificatória, diagnóstica e reducionista para valorizar o direito político fundamental à singularidade e as variações dos lugares ocupados no mundo pelas pessoas que não coadunam com as determinações regulatórias e disciplinares de uma sociedade demarcada pela crise dos paradigmas. Sendo assim, uma Psicologia Queer se orienta por alguns pressupostos básicos: 1. Desconstruir os sistemas de pensamentos binários e sedentários, imagens e discursos capturados pela lógica normativa; 2. Mapear conflitos existentes entre as estratégias de resistências e a dominação psicossocial, política e cultural; 3. Facilitar a emergência de novos sujeitos emancipados, destacando sua posição política de direitos a ter direitos. Essas demarcações teóricas ajudam a pensar uma Psicologia Queer e a traçar como objetivos mais importantes: - desfazer o sexual e o gênero, heteronormatizado e falocêntrico; - desterritorializar os territórios sexualizados e gendrados através da decodificação dos códigos que dão inteligibilidade para os estereótipos de classe, raça, sexualidade, sexo, gênero, orientação sexual, etc.; e, - facilitar a passagem para que devires outros possam expressar novos modos de existencialização, fora dos binarismos e dos universais que até então se orientavam pelos processos de normatização impostos pelo
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Psicologia e Políticas Queer
bio-poder e suas regulações bio-políticas. Fica aqui o desafio para que a Psicologia resgate seu compromisso com a transformação social, política e emancipatória de todo ser humano falante na trans-contemporaneidade, de respeito à liberdade de expressão e de pontes para que devires outros se potencializem e facilitem a defesa da vida como valor maior.
Referências BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000. ______. Transposiciones: sobre la ética nómada. Barcelona: Gedisa, 2006. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CÓRDOBA, David. Teoría Queer: reflexiones sobre sexo, sexualidad e identidad. Hacia una politización de la sexualidad. In: ______; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco (Org.). Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona: Egales, 2005. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. JAGOSE, Anne Marie. Queer Theory: an introduction. Nova York: New York University Press, 1993. MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas de compreensão humana. São Paulo: Palas Athenas, 2001. PENEDO, Susana López. el labirinto queer: la identidad en tiempos de neoliberalismo. Barcelona: Egales, 2008. PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Espanha: Espasa, 2008. SÁEZ, Javier. El contexto sociopolítico del surgimiento de la teoría Queer: de la crise del sida a Foucault. In: ______; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco (Org.). Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona: Egales, 2005. SEDGWICK, Eve Kosofsky. epistemología del armario. Tradução Teresa Bladé Costa. Barcelona: Ediciones de la Tempestad, 1998.
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El interés por develar la diversidad sexual existente en una sociedad se ha manifestado claramente a través de la historia, ha sido el desarrollo de algunas teorías psicológicas, el interés de la Antropología y de algunas corrientes de la sexología quienes inicialmente pusieron el foco en sus distintas expresiones. A partir de la década de los 70s dos movimientos sociales: el feminista y el lésbico gay, la pusieron en debate. En la época contemporánea, su mayor reconocimiento se ha dado a través de la lucha social, pero no ha sido ajena al desarrollo del conocimiento y recientemente ha ocupado áreas de estudio importantes en las instituciones de investigación y de educación superior. Una de las principales aportaciones al reconocimiento de una sexualidad múltiple se le reconoce a Freud (05), quien, aunque ha levantado fuertes debates que han terminado en claras controversias entre quienes pretendemos adentrarnos en este campo, no podemos dejar de reconocer que sembró la semilla de una visión moderna de una variedad sexual infinita. Señaló que la sexualidad tiene claras manifestaciones a través de las diferentes etapas de la vida y que éstas son polimorfas. Freud denominó a algunos comportamientos sexuales como perversos, buscando transformar las opiniones convencionales respecto de lo que constituía el sexo, y lo que consideraban su fin: la reproducción. Evidentemente, su connotación no era la misma que actualmente le asignamos al concepto (Weeks, 98), -desde esa analogía que también hasta el siglo XVI se utilizó de la perversión como diversidad- y expresada claramente al denominar al infante como un perverso polimorfo. Por otra parte, la sexología, si bien se ha orientado de manera importante a investigar la respuesta sexual humana principalmente desde una óptica médico-biológica, -Master y Johnson, Ellis- algunos, como Kinsey, con su detallada encuesta han ampliado notablemente su perspectiva y hasta podríamos considerarles pioneros en el desarrollo de nuevas propuestas para el estudio de las múltiples expresiones de la sexualidad.
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Si bien estas aportaciones teóricas y las revisiones dentro de la corriente dominante de la sexología proporcionaron un marco para reconocer la diversidad, el impulso político proviene de un origen diferente: las minorías sexuales. La mayor parte de las sociedades han presenciado ya un esfuerzo sostenido de lesbianas y gays por articular y desarrollar identidades claras en el contexto de subculturas y comunidades sociales más amplias. Incluso a medida que los modos de vida homosexual se han hecho más públicos y tienen más confianza en sí mismos, han surgido otras afirmaciones de identidad de minorías sexuales; y han proporcionado un repertorio de estrategias políticas y organizativas para la movilización de otros grupos eróticos, como de una amplia visibilidad de las representaciones de género. Así ha surgido la voz de travestis, transexuales, sadomasoquistas, bisexuales, swingers, trabajadoras sexuales y otros, exigiendo su derecho a la libre expresión y a su legitimidad social. Es decir, cada día más estas polémicas manifestaciones del sexo-género han dejado de ser del interés clínico para entrar en el escenario de la historia y de la cotidianidad, como pruebas vivas de la diversidad sexual. Muchas de estas expresiones podríamos considerarlas luchas de la política de la identidad que han iniciado por analizar la opresión que enfrentan para reclamar, de forma diversa, el recuperar, redefinir, o transformar las formas estigmatizadas prevalecientes en los grupos de pertenencia (Heyes, 2007). Taylor argumenta que la identidad moderna es caracterizada por un énfasis en su voz interna y la capacidad de autenticidad — esto es, la capacidad de encontrar la manera de ser, que de alguna manera, es verdadera a uno mismo (Taylor en Gutmann, ed. 1994). La política de la diferencia se ha apropiado así de la autenticidad, para describir formas de vida que son verdaderas para las identidades de grupos sociales marginados. El discurso de la política de identidad ha sido útil y posibilitado el empoderamiento de algunos, pero al mismo tiempo han cuestionado aspectos éticos para comprender sus demandas y sus propias definiciones. Definitivamente, muchos de los debates pragmáticos acerca de los méritos de la política de identidad han necesitado develar las interrogantes filosóficas acerca de la naturaleza de la subjetividad y el ser (Taylor 1989). De esta manera, los primeros esbozos por sistematizar los fundamentos filosóficos de la política de identidad pronto enfrentaron su deconstrucción.
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Además, de todos es sabido, incluso por propia experiencia, que esta auto-denominación ha devenido también en generalizaciones acerca de grupos sociales particulares en el contexto de la política de identidad que en muchas ocasiones han constituido una importante función disciplinaria dentro del grupo, no sólo describiendo sino también dictando la auto-percepción y auto-definición que sus miembros deben tener. Es así, que la supuesta liberación de esta nueva identidad puede limitar la autonomía, como ha señalado Appiah, remplazando una “forma de tiranía por otra” (Appiah in Gutmann ed. 1994, 163). Si bien estos elementos constituyeron un elemento fundante para la construcción de un movimiento social, las ataduras impuestas han dado lugar hoy a la apropiación de nuevos términos para la auto-denominación, incluso del término queer como una nueva identidad que para muchos no tiene sentido, pero que para otros deja ver cómo se vivencia la tensión de los límites impuestos, como ataduras a romper. Aún así, la tendencia a formar y defender categorías está aún vigente. A pesar del señalamiento de Kinsey de que sólo la mente humana inventa categorías y se esfuerza para que los hechos quepan en casilleros separados, aunque los hechos se subvierten constantemente. En este afán, han surgido nuevas categorías y minorías eróticas y las más antiguas han vivido un proceso de subdivisión a medida que gustos especializados y necesidades y aptitudes específicas se convierten en la base de otras identidades sexuales que proliferan. En esa lógica, la lista es potencialmente interminable ya que cada deseo específico se convierte en un centro de afirmación política y posible identidad social, que resulta imposible enumerar y no pocas veces, incluso denominar. De ahí que, más allá de la propuesta original, los estudios sobre la minorías sexuales han pasado de los estudios lésbico gays, a los estudios queer –como una forma de reivindicar su uso peyorativo-, y a los de la diversidad sexual, en la búsqueda de abrir un espacio para la reflexión sobre las amplias manifestaciones de la sexualidad. Basta observar un poco y mirar cómo se presentan formas de expresión en movimiento constante, cada una con sus expresiones específicas, constituyendo un desafío constante para su análisis. Podríamos considerar que los debates sobre la constitución de la identidad se dan a través de la negociación entre posiciones esencialistas y construccionistas. Estas distintas posiciones se han utilizado indistintamente también como
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herramienta política para justificar o explicar distintas expresiones sexuales. No obstante, si bien podríamos decir que fácilmente podríamos categorizar a los sujetos a partir de sus definiciones sexuales, un sinnúmero de circunstancias ambiguas pondrían en duda los límites precisos de la descripción de esa categoría. Afortunadamente y no, la noción de que la sexualidad proporciona una identidad común estable y auténtica ha sido profundamente desafiada por la llegada de la denominada teoría queer. La teoría de la sexualidad trasgresora, que parte de la denominación de una identidad que se marcaba como negativa, por no acomodarse a la norma. Una perspectiva que sigue haciendo referencia a lo raro, a lo exquisito (Ceballos, 2005), que trasciende las clasificaciones y recupera también el sentido de la interseccionalidad para colocarse transversalmente en las categorías tradicionales, tergiversando el sentido común dominante y la idea misma de normalidad. El cambio de paradigma de las señales del término queer, son un cambio a un modelo en las que identidades son más autoconcientemente historizadas. Las identidades desde lo queer, son vistas como productos contingentes de genealogías particulares, más que del tipo duradero o esencialmente naturales (Phelan 1989, 1994; Blasius 2001). A poco más de veinte años de creación de la “teoría queer” (1990), como un proyecto crítico dirigido a resistir la homogeneización cultural y sexual de los “estudios lésbicos y gay” en el ámbito académico; De Lauretis pretendió también destacar las distintas vivencias que los hombres gay y las lesbianas tienen, derivando en historias diferentes. Diferentes maneras de relacionarse entre sí, y diferentes prácticas sexuales; donde las lesbianas no son, los principales objetivos de las estrategias de comercialización de un “ estilo de vida “ gay. Incluso, le interesó profundizar sobre la fuerte, aunque a veces conflictiva, relación que las lesbianas tienen con el movimiento feminista. En este sentido, consideró que las cuestiones de las diferencias raciales y étnicas, planteadas por los colectivos de lesbianas negras, chicanas y latinas en su crítica del feminismo blanco, en realidad moldearían el feminismo de la década de los ochenta, definiendo así una nueva ruta para el feminismo contemporáneo. El proyecto de “teoría queer” (De Lauretis, 2010) buscó realmente iniciar un diálogo crítico entre las lesbianas y los hombres gay sobre la sexualidad y sus respectivas historias sexuales; para juntos romper los silencios que se habían construido en los estudios lésbicos y gays en torno a la sexualidad y su interrelación con el
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sexo y la raza, y de alguna manera retomar lo planteado por Gloria Anzaldúa (1987), y resignificar el sentido de lo racial y lo étnico. Mirando la evolución actual de la teoría queer, pareciera haberse torcido. Surgieron nuevas prioridades y la importancia de la prevención del VIH en todos los sectores de la sociedad amplió la gama de identidades sexuales no normativas. Algunos sostienen que en la actualidad una identidad queer es más radical que las identidades gay y lesbiana, que se han convertido en respetables, e incluso conservadoras, al igual que los matrimonios legales, a los que muchos aspiran. Otros, por el contrario, sostienen que queer es una identidad vagamente anti-normativa o no convencional, que no implica nada. Pero tal vez lo más destacado es que la popularidad del término queer ha llevado a privilegiar la identidad social de género, sobre lo sexual. A pesar de la alerta levantada por Gayle Rubin desde 1989 de la necesidad de analizar la sexualidad y el género como dos categorías independientes y de la clara dirección de la propuesta queer, en lugar de problematizar el vínculo entre género, sexualidad y subjetividad, pareciera cada vez más simplificado a través de las representaciones del género. Para quienes nos identificamos con un interés central en el trabajo sobre la sexualidad, el término queer empieza a perder sentido. Si vamos a reclamar queer como palabra contestataria que sea realmente inclusiva de lo sexual, necesitamos una concepción de la sexualidad que va más allá tanto de los equívocos nebulosos del género, así como de las preocupaciones médicas respecto a la funcionalidad reproductiva. Si como deja ver Bourcier, en su libro Queer Zone, que la fuerza performativa es reversible y puede elaborar distintas formas de resistencia y apropiación derivadas de la construcción de identidades, necesitamos adentrarnos aún más en estos procesos de resistencia para resignificar y comprender mejor aquellas expresiones de la sexualidad a las que apenas unas cuantas indagaciones teóricas se han aproximado. Las manifestaciones de placer sexual, oral y anal, se mantienen plenamente activas en la sexualidad adulta y, además, éstas y otras pulsiones parciales en realidad pueden ser más poderosas que la actividad genital. Por lo tanto, entre los comportamientos sexuales conocidos, claramente hay varios que se remontan a los placeres infantiles, ya señalados por Freud, y producen satisfacción sexual, incluso independientemente de la actividad genital.
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El problema tal vez es que hoy las minorías sexuales, como referentes principales, tampoco tienen presencia. El movimiento feminista, en gran parte no ha logrado separar la sexualidad de la reproducción y desde ahí llaman a la lucha por los derechos sexuales, cuando internamente parecieran interesadas sólo en la despenalización del aborto. Mantienen sí una mirada en relación con la sexualidad y centrada en el cuerpo, pero con un íntimo vínculo con la reproducción. Los cuestionamientos a la heterosexualidad impuesta y la importancia de destacar la sexualidad femenina han perdido fuerza, si no es que desaparecido incluso del discurso. El movimiento LGBTI avanza peligrosamente en sus propuestas integracionistas, en lo que algunas hemos identificado como un proceso de “adecentamiento” que busca la aceptación, lejos muy lejos del cuestionamiento a la estructura y su disrrupción. Y ese segmento del movimiento LGBTI, que está dispuesto a distanciarse de las identidades, se haya centrado en mucho en las representaciones de género. Pero este desafío no está presente solo desde la actividad política, sino también desde la producción académica, donde de muchas maneras estas tendencias se expresan. Si como Freud planteó, la sexualidad es la dimensión más generalizada de la vida humana, que va desde la perversión a la neurosis y a la sublimación; la teoría queer podría ampliar su gama de preocupaciones a todas las formas de comportamiento sexual; no para clasificar o tipificar como delito o enfermedad, no para “proteger a la sociedad” o apuntalar la sociabilidad humana, sino para entender sus condiciones de posibilidad. Las sociedades contienen todo tipo de fuerzas, no podemos seguir con la concepción de fuerzas negativas y positivas. Mientras teorizamos sociabilidad y afectividad en las comunidades queer, no podemos ignorar los aspectos compulsivos, perversos e ingobernables de la sexualidad que nos confrontan en la esfera pública, con la familia y con nosotros mismos. El discurso de las identidades sexuales o de género ha sido político desde sus inicios, a veces conservador, sobre todo a partir de los estudios “científicos”, otras veces contestatario, principalmente en la crítica feminista y en la disrupción lésbica-gay de los años 60´s y 70´s que plantearon la sexualidad y el género como estructura social opresiva. El planteamiento crítico del género, elaborado por un movimiento de oposición constituyó la base fundamental de las prácticas de de-construcción del género y para los planteamientos transformadores que
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le siguieron. Todavía hoy nos enfrentamos con el planteamiento político de las identidades sexuales; si bien la lista sigue creciendo y hoy tenemos identidades LGBTIQ, no podemos negar que éstas se encallan en lo sexual en el sentido freudiano (De Lauretis, 2010) especialmente aquéllas estigmatizadas como parafílias o trastornos de la identidad. Pero su lugar en la transformación social, desde los significados hasta las reformas legales, para la consideración de sus derechos, es una realidad cotidiana palpable en los espacios y en el debate público. El malestar de la civilización de Freud, no está en el ejercicio y expresiones de la sexualidad, sino en la estructura social misma, donde las instituciones de la sociedad civil, la familia, la educación y la religión, tienen el propósito de frenar o contener lo sexual y canalizarlo hacia el vínculo social legitimado y el supuesto bien común (De Lauretis, 2010). Igualmente, Freud y Foucault ya nos señalaron cómo también ese yo vigilante lleva a cabo la represión psíquica de manera más eficiente que el Estado lleva a cabo la represión política. La negatividad inherente a esta limitada visión de la sociedad humana está en conflicto con la política de las identidades o, de hecho, con cualquier política, si entendemos por política una acción destinada a conseguir un objetivo social, ya sea que el objetivo sea el bien común o el bien de algunos. El conflicto entre sexualidad y política es el núcleo de lo que se ha denominado los equívocos del género, la confusión entre género y sexualidad y su priorización como el reto. Este mismo conflicto permea el debate actual sobre la política de la teoría queer, al desconocer su propuesta como teórica. En la medida en que es una visión conceptual, una visión crítica o especulativa del lugar de la sexualidad en lo social, la teoría queer no es un mapa o un programa de acción política. No quiero con esto decir que una política queer no pueda existir; sino que desde la abstracción de la teoría o la filosofía se necesita de un tipo de traducción que posibilite su mejor comprensión para llegar a la acción concreta de la política. Pero desde una perspectiva disciplinaria como la que pretendemos abordar acá, desde la Psicología, que en mucho se ha construido como la medicina a partir de las tipificaciones, de la construcción binomial de categorías de distinción entre lo normal y lo patológico ¿hasta dónde estamos dispuestos y somos capaces de romper con la tradición de las categorías? Igualmente, ¿podremos dejar atrás la tradición de mirar y escudriñar lo exótico para llevarlo a la comprensión de las mayorías? Desde la sexualidad, la construcción de estas nuevas
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posturas tiene grandes implicaciones, teóricas y políticas. Nos exigiría necesariamente llevar a la mirada a escudriñar la sexualidad como una dimensión que cruza no sólo los cuerpos abyectos o las minorías sexuales, sino a una mirada que recorre los distintos segmentos de la sociedad. Sobre todo de aquellos que desde la hegemonía, no han sido tocados, mucho menos escudriñados. Habremos de preguntarnos también, ¿hasta dónde la psicología individual y la de la interacción social nos proveen de herramientas teóricas para el análisis del contexto, más allá de lo interindividual para el análisis de lo colectivo? Es decir, cómo desde la Psicología nos acercamos a mirar la sexualidad en ese amplio espectro de las definiciones filosóficas y políticas donde la han colocado. Abordajes contemporáneos más recientes han buscado la incorporación de otra dimensión para su análisis, que es la social y que nos permite ver la influencia de la historia y de la cultura en la definición de las prácticas, así como de su impacto en la vida social toda. El análisis de la sexualidad para la psicología entonces no puede más estar restringido al campo de la clínica, sino que exige la mirada amplia de la psicología social que le dé cuerpo y sentido a sus expresiones. En ese sentido, aproximarnos a lo ilimitado de la diversidad sexual necesariamente nos hace revisar el concepto que sobre la sexualidad tenemos. Es decir, dejar claro que concebimos a la sexualidad como un producto social que se refiere a los aspectos erótico-amorosos de nuestras vivencias, mucho más allá de la genitalidad. Es más, la diversidad sexual abarca distintas dimensiones para su análisis y definición: la orientación sexual, de acuerdo a la dirección erótico-afectiva del objeto amoroso; y las expresiones sexuales, de acuerdo a las preferencias y comportamientos sexuales que adopta la persona. Estas dimensiones son amplias y como ha señalado Weeks (1992), no son lineales, se superponen e interactúan de manera cambiante a través del tiempo, en las diferentes etapas de la vida; y se definen a través del debate y la lucha por su reconocimiento. Por fortuna, la posición ante la diversidad sexual ha ido variando, por ejemplo, hoy en día, pocos sexólogos se sentirían cómodos al usar el término “perversión” para describir las variedades de expresiones sexuales. Es más, se ha señalado (Stoller,) que la perversión es “la forma erótica del odio”, definida no tanto por los actos, sino por el contenido: la hostilidad. Igualmente, la búsqueda de las causas de la conducta sexual humana ha ido perdiendo importancia, para dar lugar al interés por conocer las formas y la presencia frecuente de la
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diversidad sexual. El trabajo desarrollado en torno a la investigación en este campo inicialmente se dirigió hacia las identidades, las expresiones culturales, literarias, las formas de resistencia y de organización y a los estilos de vida, para dar paso a nuevas visiones que dejan ver su estela en la vida social y en la cotidianidad de los sujetos. Hoy el análisis de la sexualidad desde una mirada social no se constituye más en proyectos de investigación desarrollados por algunas personas interesadas. La sexualidad como una dimensión social empieza a salir del clóset y poco a poco se va constituyendo en un tema cotidiano de reflexión, por un número creciente de investigadores que van logrando su institucionalización académica. Algunos especialistas de las humanidades y las ciencias sociales empiezan a enriquecer sus perspectivas y a tomar también la sexualidad como una dimensión para el análisis de distintos fenómenos sociales. Estos nuevos aportes exigirían tal vez de recuperar el sentido original de la propuesta de la crítica queer, dicha crítica y el análisis de las prácticas posibilitan la historización de las categorías que definen los sujetos y evidencian su maleabilidad y creatividad política. Lo queer funcionaría entonces como una forma de ubicarse en los debates sobre sexualidades y género y observar sus márgenes, normas y hegemonías. Especialmente en nuestra región colonizada, al impulsar la intersección con lo racial, lo étnico y la clase. Lo queer aludiría así a las fronteras geopolíticas, raciales y sexuales, materiales y simbólicas que conforman la región. Esta propuesta simboliza también proyectos de resistencia geopolítica contra la imposición unilateral de estudios del Norte hacia el Sur que invalidan trabajos de campo, propuestas y creación de conocimiento surgido, debatido y en circulación en el Sur. La producción queer en la región, como lo señalan Viteri, Serrano y Vidal-Ortiz (2011) está más en función de desplazamientos contestatarios frente al Estado, a las instituciones religiosas o a las nociones de ciudadanía por parte de sujetos abyectos. Enmarcar una discusión alrededor del sexo, el género y la sexualidad entonces, implica al mismo tiempo un tipo de traducción cultural. Es decir, donde el género y la sexualidad están en tránsito y en constante diálogo con los contextos a partir de los cuales se producen y re-producen. Sin un duda un gran desafío, pero un aporte necesario para nuestra región.
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Tópicos e desafios para uma psicanálise queer Patricia Porchat
Posso afirmar que no meio psicanalítico, pouca gente sabe o que significa o termo “queer”. E no entanto, nos últimos vinte anos, “queer” se fez presente no movimento gay e lésbico, na literatura, nas ciências humanas e em movimentos sociais. Assim como “gênero”, “queer” fez sua entrada também no campo da psicologia e da psicanálise. Talvez por desconhecimento do termo por parte de muitos psicanalistas, ou talvez por uma recusa desses mesmos psicanalistas em querer ver o avanço de certos segmentos da sociedade, não se garantiu ainda um número suficiente de reflexões rigorosas e de debates teóricos sobre a real possibilidade desse encontro e sobre suas possíveis consequências. Poucos psicanalistas se propuseram a pensar sobre a teoria queer (embora haja uma tendência a aumentar esse número) e, por outro lado, os teóricos queer que discutiram a psicanálise o fizeram, inicialmente, de modo fragmentado, analisando apenas alguns conceitos psicanalíticos e revelaram não ter uma visão geral e mais aprofundada da obra dos autores em questão. Correram assim o risco de não serem levados tão a sério pelos estudiosos e praticantes da psicanálise, embora seguramente tenham contribuído para colocar em xeque alguns dos pressupostos psicanalíticos. Recentemente essa perspectiva vem se alterando, o interesse dos teóricos queer pela psicanálise vem aumentando e o debate se aprimora. Não há como negar que o trabalho de fazer dialogar a psicanálise com a teoria queer já foi iniciado. Da parte dos psicanalistas podemos citar Sáez (2004), Allouch (1999), Castel (2003), Barbero (2005), Costa (1995), Porchat (2007), Arán (2006) e, pela teoria queer, citarei apenas os nomes de Butler (1990, 1993, 1994, 2002, 2004), Sedgwick (1993) e De Lauretis (2008), embora outros autores possam ser identificados. Em seu artigo Queer and Now, Sedgwick (1993) discorre sobre os usos do termo queer e mostra seu vasto alcance. Se na acepção mais conhecida encontramos referências a um campo indefinido e sem fronteiras de gêneros e
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sexualidades, aí podendo ser incluídas práticas corporais não convencionais e não-normativas, Sedgwick aponta igualmente para o uso de “queer” para raça, etnia, nacionalidades pós-colonialistas e para vítimas de variadas formas de exclusão e de violência. O termo queer é usado para investigar, analisar, questionar e intervir sobre as normas e as margens que elas produzem. Dois outros usos do termo queer chamam a atenção pela sua aproximação com a psicanálise. Queer pode se referir a lacunas, lapsos, excessos e dissonâncias, funcionando como uma matriz aberta a possibilidades na constituição de gênero e sexualidade. Queer, em suas raízes etimológicas, significa atravessar. (Sedgwick, 1993). A psicanálise dirá que o inconsciente se manifesta através de escapes, lapsos e excessos, o que torna o indivíduo parcialmente desconhecido para si próprio e desmonta a possibilidade de se perceber como um ser uno e totalmente aderido a qualquer ideal social e normativo de gênero ou sexualidade. Butler ecoa essa discussão ao dizer que ocorre uma repetição subversiva de gênero. Ao tentar repetir os gestos e as palavras que performam gênero, algo não sai de acordo com o esperado. (Butler, 1993). Somos seres atravessados pela pulsão e pelo inconsciente. O segundo uso, ao qual me referia, aparece quando Sedgwick diz que há alguns sentidos em que queer só pode ser usado na primeira pessoa. E, acrescenta, que talvez o que identifica o uso de queer como um uso verdadeiro é o impulso para usá-lo na primeira pessoa. Afinal, se queer é dissonância, lapso ou excesso, pode-se dizer que não existe identidade comum a dois sujeitos. Algo sempre escapa a qualquer tentativa de indexação. Queer só poderia se referir a cada um, em sua particularidade. (Sedgwick, 1993). Podemos aí localizar a ideia de singularidade, tão cara à psicanálise. Quero agora enumerar alguns pontos que me parecem essenciais para que ocorra um debate e uma eventual aproximação entre a teoria queer e a psicanálise. Longe de pretender esgotar a discussão, vou apenas levantar algumas questões acerca dos seguintes temas: o estatuto do corpo e da pusão; o estatuto do inconsciente e da realidade; o estatuto do Édipo, do parentesco e da universalidade; a ética e os direitos humanos. Escolhi esses temas, mas acredito que outros autores, psicanalistas ou teóricos queer, poderiam enumerar mais alguns, ou até questionar as minhas escolhas. Minha intenção não é outra senão a de contribuir para um debate na direção da construção de uma teoria que
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sustente uma prática psicológica adequada ao mundo contemporâneo, tendo como objetivo, amenizar o sofrimento daqueles que interrrogam, de variadas maneiras, as normas e as margens que elas produzem.
o estatuto do corpo e da pulsão Em sua apresentação do corpo na psicanálise, a psicanalista francesa Monique David-Ménard, fala de uma primeira hipótese, freudiana, segundo a qual o corpo era concebido como “orgânico”, “biológico”, sujeito às forças de representação: natureza e cultura colidiam.1 Na formação do sintoma histérico conversivo, uma ideia ou imagem (um pensamento inconsciente) era convertida e produzia efeitos sobre o corpo de modo incomum. A partir dos Três Ensaios para uma Teoria Sexual (1905), o corpo passaria a ser compreendido de forma diferente: um processo de organização libidinal que é contrária à inclinação da natureza e se constitui de modo singular. Lacan mais tarde desenvolve essa organização libidinal do corpo através do imaginário, simbólico e real. A “lei simbólica” que governa a pulsão sexual e o corpo, não deve ser confundida com a “lei instituída” num acordo entre sujeitos de uma determinada cultura. Se pode haver uma história da sexualidade, é porque esta não se conforma aos mecanismos instintivos e ao objetivo da reprodução. No entanto, a relação da sexualidade com o campo da representação não significa que a sexualidade é um produto discursivo, construído de acordo com cada cultura. Sem o símbolo, não há sujeito humano, mas, na relação com o símbolo, o sujeito não é o senhor, não é autônomo em relação ao símbolo e, portanto, não pode ser agente de uma construção de gênero. A sexualidade não é anatomia, não é construção social, mas acontece no encontro com a linguagem. Podemos indicar aqui que a concepção de pulsão sem dúvida implica algum grau de essencialismo, na medida em que ela possui características universais. Na teoria freudiana, toda pulsão tem uma fonte – a zona erógena -, um alvo, uma força e um objetivo. Por outro lado, em sua relação com a linguagem, ela constrói uma história particular e singular. Se tomarmos o conceito de real em Lacan, há algo do corpo que não se coloca enquanto simbólico e nem anatômico.
1 David-Ménard, M., A histeria entre Freud e Lacan. São Paulo: Escuta, 2000.
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Nem todo corpo é uma construção simbólica. Nem tudo é construção, mas tampouco se trata de uma essência doadora de sentido. Considerando a teoria da construção social – um dos pilares da teoria queer, o método de historicizar categorias aceitas como naturais - vemos que o corpo é um dos objetos sobre o qual muitos autores se debruçaram. Em relação ao corpo e a sexualidade, podemos citar Foucault, Weeks e Laqueur. Este último, por exemplo, mostra que certamente podemos fazer leituras e classificações a partir dos corpos, mas quando reduzimos as suas diferenças a uma oposição binária, isso se deve a determinados contextos históricos. Como consequência, inviabilizamos a percepção das várias possibilidades corporais e de gênero. A ideia de que existem dois corpos, radicalmente distintos, o corpo-macho e o corpo-fêmea, e que estes são uma chave para a inteligibilidade cultural, isso tem como consequência a invisibilidade de outros tantos corpos. Judith Butler partilha dessa concepção, mas tenta se apropriar da noção de pulsão.2 No entanto, existe um ponto em que é importante manter a diferença entre Butler e a psicanálise francesa. Em relação à pulsão, a psicanálise é radical. Não se trata de construção. Mas, ainda que o estatuto da pulsão seja o de uma essência pela negatividade, ou seja, de algo que não se indexa, algo que não se faz totalmente representar, algo que, em certa medida, escapa ao campo do simbólico, ainda assim, é uma essência. Já em Butler parece haver uma tensão. Ela tem sempre um último argumento: o não-construído é nomeado como “não-construído”. Ele ganha um estatuto ontológico pela sua nomeação. Trata-se sempre de uma versão do sexo, uma “formação adicional”, ou seja, ainda que a psicanálise reivindique para o corpo, a sexualidade e a pulsão uma autonomia em relação à história, esses conceitos serão sempre parte de um discurso formulado numa determinada época e num determinado contexto. Em última instância, a psicanálise também é um discurso que constrói seus objetos, segundo Butler. Essa seria seguramente sua posição em Problemas de gênero e em Cuerpos que importan. No entanto, em Undoing Gender, apesar de ela comentar que sempre que fala de corpo escorrega e fala de linguagem, admite que as significações do corpo excedem as intenções do sujeito. O corpo não é redutível à linguagem, diz Butler, e acrescenta: “A linguagem emerge do corpo. O corpo é aquilo em
2 Butler, J., Undoing gender. New York qnd London: Routledge, 2004.
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cima do qual a linguagem gagueja, balbucia. O corpo tem seus próprios sinais, seus próprios significantes, de um modo que permanecem em boa parte inconsciente”. (Butler, 2004, p. 198). Haveria um reduto último, uma substância primeira, a partir da qual o conhecimento sobre o corpo se constrói? Sim e não. Existe um corpo, mas a linguagem não o traduz por inteiro, Nesse sentido, não pode haver uma verdade imutável, um campo de significações universais. É essa tensão que, em Butler, diferentemente da psicanálise, permite aceitar as mudanças do corpo e a transformação do simbólico.3
o estatuto do inconsciente e da realidade Para Butler, a psicanálise pode ajudar a compreender como o poder toma forma no psiquismo e isso seria de grande valia para os movimentos sociais. Butler considera não ser possível pensar numa representação ponto a ponto, uma simples cópia ou registro de eventos ou de discursos. É a noção de fantasia que permite compreender que espécie de filtro cada indivíduo utiliza – ainda que isso se dê de maneira inconsciente- para entrar em contato com o poder. A fantasia é uma cena imaginária da qual o sujeito participa e que comporta a realização de um desejo. A fantasia de um indivíduo seria responsável pelos sonhos, pelos sintomas, pelo agir, pelos comportamentos repetitivos, por todo o dinamismo do indivíduo. Ela modela e estrutura o conjunto da vida do indivíduo. Isso permite pensar que há diferentes modos de se relacionar com o poder. Mas se não se pode negligenciar a fantasia, que lugar cabe à realidade? Butler acredita que a psicanálise deve ser posta em contato coma a Teoria Cultural e a política cultural, de um modo mais geral. A psicanálise, segundo ela, deve dialogar com movimentos sociais mais amplos, políticas culturais, e questões relativas a gays, lésbicas, bi, trans, intersexo. Corre-se o risco de acreditar que existe uma esfera completamente autônoma da psique, que segue suas próprias regras, como se o que acontece no interior da transferência fosse algo isolado do que ocorre no mundo exterior. Talvez esse risco de distanciamento da realidade social seja uma consequência da ampliação da noção de realidade 3 Outra autora que vem recorrendo à noção de pulsão para fazer dialogar a teoria queer e a psicanálise é Teresa de Lauretis. Para ela, as teorias de Foucault e de Freud são necessárias para articular o fenômeno psicossocial da sexualidade em sua complexidade. Segundo a autora, somente juntas essas teorias podem esboçar uma teoria materiaista do sujeito sexual. (Lauretis, 2010).
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ocorrida muito cedo na obra de Freud, quando aparece um questionamento relativo às possíveis marcas, no inconsciente, dos fatos ocorridos no mundo externo.4 Freud oscilará ao longo de sua obra entre duas posições: a) conferir realidade à fantasia - que Freud chamará de “realidade psíquica”- e com isso não se importar em saber se o material psíquico corresponde ou não à realidade externa5; b) acreditar na existência de provas reais, no inconsciente, daquilo que se passou na realidade externa, perseguindo suas pistas em sonhos e fantasias6. Trata-se, nesses casos, de saber sobre a correspondência das lembranças a uma realidade vivida anteriormente. Acreditamos, no entanto, que mesmo com a ampliação da noção de realidade ao longo da obra de Freud, permitindo falar de uma realidade psíquica, Freud mantém igualmente a ideia de que existe um “mundo externo” o qual ele denomina também realidade, que existe um teste de realidade e que este permite discriminar entre os estímulos que vêm do mundo externo e os que se originam no mundo interno.7 Como podemos então avaliar a prevalência da fantasia ou da realidade na questão da responsabilidade e do compromisso dos indivíduos com a transformação social?
o estatuto do Édipo, do parentesco e da universalidade Segundo Freud, o complexo que serviu de base para a compreensão da construção dos indivíduos como homens ou mulheres através do processo de identificação, se inscreveria de maneira semelhante em todas as culturas, garantindo a exogamia através da proibição do incesto e do parricídio. Entre as várias críticas que recebeu por essa afirmação, destaca-se a crítica feminista. Sobre o modo como Freud “constrói” a mulher no complexo de Édipo, diz Gayle Rubin: “Se a fase edipiana evolui normalmente e a menina “aceita sua castração”, sua estrutura libidinal e a escolha de seu objeto agora estão de acordo com o papel do gênero feminino. Ela se tornou uma mulherzinha – feminina,
4 Por exemplo, no momento em que Freud abandona a teoria da sedução em 1897, por não ser possível distinguir entre verdade ou fantasia nas cenas sexuais “lembradas” pelas histéricas. 5 Cf. Freud, S., Capítulo VII de A nterpretação dos sonhos, ESB, v. V. 6 Cf. Freud, S., “O Homem dos Lobos” ou História de uma neurose infantil, ESB, v. XVII. 7 Porchat, P., Freud e o teste de realidade. São Paulo: Casa do Psicólogo/Fapesp, 2005.
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passiva, heterossexual.” (Rubin, 1993, p. 47)8. Mas, para além da ironia quanto ao papel atribuído à mulher, Gayle Rubin, em crítica a Levi-Strauss –sobre quem Lacan apóia sua teoria, colocou em questão a existência do parentesco tido exclusivamente como heterossexual, o que levaria a supor que, além do tabu do incesto, haveria um tabu relativo à homossexualidade sustentando a formação e a manutenção das relações sociais. Além de questionar a “presunção de universalidade” contida na obra de Lévi-Strauss, outra feminista, Butler, questiona as consequências de uma lógica totalizante para se pensarem as identidades “homem” e “mulher”. (Butler, 1993, p. 69) Os homens são portadores de identidade, mas às mulheres é negada uma identidade ou elas ficam em posição subalterna. A crítica ao estruturalismo aparece desde um ponto de vista feminista, que questiona o lugar delegado às mulheres nessa estrutura de explicação das relações sociais e acopla a ideia de que a proibição da homossexualidade é igualmente fruto da Lei que proíbe o incesto. O sistema de alianças proposto no estruturalismo condiciona uma reciprocidade entre os homens que, ao mesmo tempo, exclui uma possível reciprocidade entre homens e mulheres, assim como uma relação entre as mulheres. (Butler, 2003). O pós-estruturalismo de Butler recusa as tentativas de totalização e universalização das explicações do parentesco, assim como, a presença de oposições estruturais binárias operando de modo a organizar e, com isso, fazer desaparecer as ambiguidades e as nuances existentes nas relações humanas e na cultura, de modo geral. Duas críticas são dirigidas ao estruturalismo. Primeiramente, em Lévi-Strauss, as regras que governam a troca sexual e que produzem a partir daí posições subjetivas são distintas dos indivíduos que aderem a essas regras e que ocupam estas posições. As ações humanas são reguladas por essas regras, mas não teriam poder de transformá-las. Em segundo lugar, a proibição do incesto é colocada como um fenômeno cultural, mas não contingente, ou seja, como uma lei universal e inalterável. Entrevistando Gayle Rubin, Butler recupera as primeiras críticas feitas à noção de parentesco de Lévi-Strauss.9 Em Tráfico de mulheres, escrito em 1975, 8 1993 é a data da tradução do texto de Rubin para o português pela ONG SOS Corpo, de Recife. 9 Butler, 2003b.
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Rubin fez a crítica de Lévi-Strauss, por este definir uma organização social da atividade humana pautada pelo gênero e pela heterossexualidade compulsória. Os sistemas de parentesco criariam socialmente dois gêneros a partir do sexo anatômico, uma divisão social do trabalho que enlaça homens e mulheres numa relação de dependência recíproca e a regulação social da sexualidade, impulsionando para relações heterossexuais que garantam a reprodução biológica e social, além de reprimir arranjos diferentes destes. Não cabe o componente homossexual da sexualidade humana na teoria de Lévi-Strauss. A divisão de trabalho criaria homens e mulheres heterossexuais, devendo ter seu desejo sexual dirigido ao outro sexo. Segundo Rubin ainda, a noção de parentesco de Lévi-Strauss deveria ser empregada apenas numa análise histórica. A organização de sexo e de gênero, promovida pelos sistemas de parentesco, tinha como função organizar a sociedade. Mas, uma vez organizada a sociedade, essa forma de parentesco foi com o passar do tempo esvaziada de suas funções políticas, econômicas, educacionais e organizacionais. O parentesco ficou reduzido apenas ao núcleo sexo/gênero, aprisionando “gênero” numa dicotomia. Como o gênero operaria se fossem levadas em conta as relações entre parentesco e homossexualidade? Rubin e Butler10 se dedicam a essa discussão. Butler comenta a ideia de Rubin, em Tráfico, de que as identidades de gênero derivam das relações de parentesco. A forma tradicional de se conceber o parentesco está intimamente vinculada à heterossexualidade e, na medida em que o Édipo está igualmente vinculado aos dois anteriores, a homossexualidade parece “cair fora” da cultura.(Butler, 2003 b). Parece-me que tanto Rubin quanto Butler não estão se referindo a práticas homossexuais ou a atividades sexuais de modo geral. Tampouco se referem à existência de identidades homossexuais. Empiricamente se constata a existência de identidades e práticas sexuais diferentes das práticas heterossexuais, assim como se constatam novos arranjos de parentesco. Certamente Lévi-Strauss encontrou práticas sexuais diferentes das práticas heterossexuais. Quando, então, Butler e Rubin dizem que as identidades de gênero derivam das relações de parentesco, referem-se às identidades de gênero que podem ser consideradas
10 Rubin, 1993b e Butler 2003c.
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legítimas ou “pertencentes à cultura”. Da mesma forma, quando discutem a superação do parentesco tal como está concebido, referem-se à possibilidade de legitimar outras formas de parentesco e, inclusive, de poder nomeá-las como “parentesco”. 11 Não se trata de conceder licença para diferentes formas de sexualidade, mas, sim, de conceder licença para diferentes formas de parentesco, ou seja, de novos laços sociais. Trata-se de legitimar relações e indivíduos inseridos nessas relações que, por efeito de um sistema de alianças concebido a partir de uma Lei inalterável, não são considerados “humanos”. Se a Lei, como diz Lévi-Strauss, cria a cultura, essa concepção de cultura não incluiria alguns indivíduos como “humanos”. Assim, desde a primeira crítica ao estruturalismo lembrada acima, na visão de Butler, seguindo de perto a de Rubin, não há lugar, em Lévi-Strauss e em Lacan, para mudanças nas relações de parentesco. A própria Butler aponta a saída para a psicanálise. Trata-se justamente de recusar uma concepção rígida do modelo edípico. O complexo de Édipo pode assumir várias formas culturais e pode, ainda, não ser considerado condição normativa da cultura. Butler não acredita em sua universalidade. E, ainda que fosse universal, poderia não ser condição da cultura, mas apenas um nome para a triangularidade do desejo. Essa triangularidade pode ser investigada pela psicanálise nos modelos não-normativos de parentesco, desde que a psicanálise não fique “[...] associada exclusivamente ao momento reacionário no qual a cultura é compreendida como tendo por base uma heterossexualidade irrefutável.” A proposta de Butler à psicanálise é a de que esta repense sua noção de cultura a partir dos novos parentescos e dos novos arranjos sexuais.(2003c, p. 258). Butler tem uma posição muito paticular em relação à universalidade de algo que diga respeito aos seres humanos. (Porchat, 2010). Identifica nos seres humanos a busca por persistir em seu próprio ser. Segundo ela, essa é uma formulação de Spinoza, na “Ética”: o indivíduo persiste em seu próprio ser apenas em relação aos outros, e apenas na medida em que as relações com os outros permitem uma grande afetividade ou uma maior expressividade desse desejo 11 Christian Dunker, em comunicação pessoal, observou que o objetivo de Lévi-Strauss não era, no início, tematizar a sexulidade, mas a aliança. Rubin e Butler trariam ao primeiro plano, na discussão sobre o parentesco, a temática da sexualidade, quando isso para ele era totalmente secundário. A separação entre sexualidade e aliança já era admitida por Lévi-Strauss. Parentesco e sexualidade não teriam uma ligação biunívoca, assim como, tampouco, modo de gozo e laço social. O resultado da separação entre parentesco e sexualidade acaba por confirmar a separação entre prática particular de gozo e tipo de laço social.
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de viver. E é por isso que as condições sociais precisam ser propiciadoras. É o mundo social que torna isso possível e em relação com outros que, em certo sentido, precisam solicitar ou apoiar meu desejo de viver. No entanto, há que se preocupar com as normas que governam a questão de quem será considerado humano e quem não. Algo acontece quando as normas se rompem, ou quando se resiste às normas, ou quando as normas produzem um campo de assim chamados seres humanos fora das normas. Há um modo pelo qual a categoria do humano ao mesmo tempo permite o reconhecimento de certos humanos e produz uma impossibilidade para outros. Mas, se o desejo de viver é universal, e se para viver são necessárias condições sociais propiciadoras e apoio dos outros, há que se perguntar como se dá o reconhecimento dos outros do meu direito de viver. Da mesma forma, há que se perguntar pela relação com as normas, as intervenções sobre as normas e as transformações das normas, pois estas comandam o reconhecimento da categoria de humano. Diferentemente de Butler, creio ser possível atribuir uma universalidade ao ser humano a partir do reconhecimento de um corpo comum a todos. Se afirmo que ser “humano” é ter um corpo humano, sendo este corpo considerado como um corpo erógeno, ou um corpo pulsional, talvez possamos ampliar suficientemente a noção de humano e aí fazer caber todos os seres humanos. O que é ser chamado de humano? É ter um corpo reconhecido como corpo desejante e, desejante, na medida em que é atravessado pela linguagem, mas uma linguagem que falha em sua possibilidade de abarcar tudo o que o corpo desejaria significar. O universal parece estar no reconhecimento do particular de cada um. O reconhecimento social, no entanto, é fundamental para que o próprio sujeito possa se reconhecer. Fica então a pergunta: como reconhecer a nós mesmos como corpos desejantes e como reconhecer os outros como corpos igualmente desejantes?
A ética e os direitos humanos Para o psicanalista, o desejo inconsciente, que nos move no sentido de sua realização, coloca duas questões: o sofrimento e a singularidade. O primeiro é a porta de entrada numa análise. Demanda-se algum tipo de procedimento que
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leve a uma mudança na relação do sujeito com seu sofrimento e, portanto, com o seu desejo. Já a compreensão da singularidade de cada um é a porta de saída. Mas, como vimos acima, o valor de verdade que a teoria queer e a psicanálise conferem ao mundo interno enquanto fantasia inconsciente (encenação do desejo), difere para cada uma delas. Tampouco é fácil desembaralhar o que a teoria queer e a psicanálise entendem por sofrimento, por ética e por singularidade. Podemos pensar, inicialmente, no sofrimento pela rejeição, pelo preconceito e pela falta de reconhecimento social. Lembro de alguns pacientes transgêneros que deixaram de frequentar meu consultório por serem verbalmente agredidos no caminho. Sentimentos de culpa e de inferioridade em relação a sua não conformidade às normas eram frequentes na fala desses pacientes e de outros cuja sexualidade e gênero escapavam à matriz heteronormativa. Muitas vezes esses sentimentos eram responsáveis pela dificuldade de organização em relação à vida profissional e econômica. Tornava-se difícil conquistar a independência e a autonomia em relação à família que, por vezes, os rejeitavam. Ainda assim, permaneciam morando com os pais, não conseguiam ter seu próprio espaço para desenvolver sua vida pessoal, afetiva e social, criando um círculo vicioso de infelicidade. Sabemos que esse roteiro já levou muitos indivíduos ao suicídio. Temos acima a descrição de um sofrimento que pode ser atribuído às normas que governam a nossa sociedade. Esse sofrimento não pode ser desconsiderado na psicanálise. A psicopatologia psicanalítica ao descrever o neurótico, o psicótico e o perverso, de maneira nehuma pode desconsiderar a organização social que legisla autoritariamente de modo explícito ou inflitrado e dissimulado sobre o corpo, o gênero, as práticas sexuais e, ainda, sobre os desejos sexuais (nesse caso, conscientes). Assim como os teóricos da construção social, a psicanálise deveria se comprometer com a tarefa de de não permitir que os comportamentos sexuais, o que envolve corpos e identidades sexuais, sejam objetos de práticas de controle e normalização por parte da sociedade. Acredito que toda a prática “psi” e não apenas a psicanálise deveria ter como postura ética não pactuar com essas mesmas práticas de controle e, por outro lado, buscar a transformação da sociedade em relação à aceitação das pessoas que sofrem por questões de gênero ou de sexualidade. A clínica lacaniana, por exemplo, se posiciona contra uma perspectiva de recuperação de padrões de normalidade perdidos por alguma forma de patologia. Nesse sentido, não se trata de vencer
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uma doença. A psicanálise lacaniana questiona ideais normativos de identidade, sexualidade e de modos de socialização. Mas a doença, em outros sentidos, existe. E não depende apenas da ordem social. A psicanálise opera com a ideia de um determinismo do inconsciente. A patologia que aparece como compulsão no obsessivo, como angústia no psicótico, na intensidade do ciúmes, na voracidade exagerada, na anorexia, por exemplo, diz respeito a um arranjo pulsional, a uma fantasia inconsciente, a uma relação particular com o campo do simbólico, às identificações, enfim, dizem respeito a um sujeito em particular. E essa patologia pode intervir sobre o gênero e sobre a sexualidade. Como então escutar o sofrimento? A ética psicanalítica, trabalhada por Lacan, coloca em causa o agir de acordo com o desejo que nos habita. O desejo, por sua vez, não é da ordem do coletivo, não é da ordem do universal, não pode ser abarcado por ideais identitários ou pela subversão destes a partir, igualmente, de reivindicações identitárias sejam elas quais forem. A ética da psicanálise não visa levar o paciente à busca da realização de si, à busca pelo prazer e à busca pela eliminação do sofrimento. Ao menos não no sentido do que o senso comum considera como felicidade. A psicanálise o leva a se separar das demandas do discurso dominante e a descobrir aquilo que vale exclusivamente para si, que não pode ser coletivo, que não tem valor para mais niguém, que causa seu desejo e que o move. A singularidade na psicanálise não tem a ver com a identidade, ainda que esta identidade seja uma não-identidadade, um arranjo pessoal, um dizer “queer” na primeira pessoa. Para se alcançar uma singularidade na psicanálise, não basta ter condições para persistir em seu próprio ser, contando com o reconhecimento social. É preciso separar desejo e gozo, este último entendido como experiências de satisfação e de terror, quase indistintas, atos que levam o sujeito a se confrontar com uma espécie de dissolução de si. O gozo igualmente proporciona movimento, mas na direção de uma morte simbólica daquilo que estrutura o sujeito. Mas de que adianta operar essa separação se o sujeito não tem condições adequadas para persistir em seu desejo de viver? De que adianta salvá-lo de si mesmo se ele não pode aceder à categoria de humano, tal como as normas a definem?
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Conclusão Como disse no início desse artigo, não pretendia esgotar o debate entre a teoria queer e a psicanálise. Mas acredito ter apontado alguns temas que mostram a complexidade existente para se fazer uma ponte entre ambas as teorias. A psicanálise segue sendo uma referência para autores que desejam compreender as relações entre corpo e psique, entre indivíduo e sociedade, entre intenção e ação, e entre subordinação e dominação. A teoria queer, por sua vez, não abre mão da análise e do questionamento daquilo que as normas, tidas como quase naturais, produzem, ou seja, as margens. A psicanálise só tem a se beneficiar com essa injeção de realidade.
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Biopolítica, Subjetivação e Saúde
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Cristiane Gonçalves da Silva2
Aqui está uma discussão possível (dentre tantas) sobre “biopolítica, subjetivação e saúde” e algumas de suas interfaces. A reflexão sobre estas temáticas e as relações entre elas, parece calhar bem quando desencadeada por determinadas palavras, carregadas de suas respectivas histórias. As palavras - “corpo, sexualidade, reprodução, discurso biomédico, discurso jurídico, moralidades religiosas, escolhas pessoais, disciplina” - parecem assumir a função “problematizadora” e também por serem carregadas de muitos e diversos sentidos, foram escolhidas para constituírem o processo didático a ser compartilhado na Oficina. A utilização de imagens e discutir a partir das interpretações possíveis acerca de sua estética e de seu conteúdo constituem-se instrumentos didáticos importantes3 para o campo das Ciências Sociais, da Psicologia e da Saúde Coletiva. A problematização dos temas e das palavras disparadoras da reflexão é parte de discussão e está implicada no processo coletivo de construção do que se compreende por Oficina. Pretendemos, ao escolher este caminho, investir na valorização dos repertórios conceituais para a qualificação da prática cotidiana dos serviços de saúde. Interessa, sobretudo, qualificar o campo prático e político da saúde coletiva e dos sujeitos políticos que o constituem. Neste sentindo, “biopolítica”, “subjetivação” e “saúde” adquirem uma característica 1 O conteúdo deste texto foi trabalhado e finalizado em Oficina do III Seminário Internacional Pensando Gênero – a psicologia para além do espelho, realizada no dia 18/out/2011, UNESP/Assis/São Paulo. 2 Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista, Departamento “políticas públicas e saúde coletiva”. Co-cordenadora do Núcleo de Estudos Heleieth Saffioti: relações de gênero, movimentos sociais e sexualidades da UNIFESP Baixada Santista. Pesquisadora associada do Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS)/USP. 3 No caso dos temas aqui discutidos – biopolítica, subjetivação e saúde – o potencial didático da imagem ainda é maior. Os vídeos exibidos e debatidos durante a Oficina foram: a) “Uma História Severina”, curta-metragem de 2005, com direção de Débora Diniz e Eliane Brum. Foi escolhido para pensar a política dos corpos, a reprodução e a vida e os discursos que incidem sobre; b) Dois Episódios de uma Série produzida pela Rede Globo “O Sagrado”, sendo 49o. episódio “Liberdade Sexual e Catolicismo” (http://www.youtube.com/watch?v=O2SayQPCHpM) e o 51o episódio “Liberdade Sexual e Candomblé” (http://www.youtube.com/watch?v=dyuu0KINhb0). Foram utilizados para mostrar a moralidade religiosa enquanto disciplina e o sujeito religioso; c) Dois vídeos produzidos por instituições francesas com objetivo de veicular mensagem sobre prevenção da infecção pelo HIV: SIDACTION (http://www.youtube.com/watch?v=d8MBvO_Xk68) e Associação francesa AIDES (http:// www.youtube.com/watch?v=RAHywmhxBw4&feature=related). Foram utilizados para pensar nos discursos da saúde enquanto dispositivos disciplinares sobre os corpos e como campo político.
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instrumental para transformação do campo das práticas, do campo da produção do conhecimento e da formulação de políticas públicas de saúde. Esta reflexão exige que situemos nosso posicionamento no campo. A intenção é agregar esta iniciativa e o acúmulo de reflexão que a compõe à outras iniciativas que investem nas pessoas como sujeitos detentores de direitos. Portanto, esta reflexão parte da compreensão de que os sujeitos estão inseridos em diversos contextos que se orientam por distintos discursos, com seus específicos poderes e códigos morais. Valorizar o sujeito de direitos é distanciar-se da perspectiva que assume que o sujeito é aquele que se assujeita aos discursos disciplinares dos contextos onde se inserem. Entretanto, lembramos que o campo de ação da biopolítica inclui a delimitação e controle exercido sobre algumas dimensões íntimas da vida das pessoas e está presente em parte importante do modo de atuação em saúde. A biopolítica é, portanto, elemento fundamental na constituição da subjetivação, processo onde também se destaca o papel da sexualidade assim como os saberes que se constroem e torno e a partir dela. Para esta reflexão, é necessário resgatar alguns aspectos do conceito de biopolítica circunscrito pelas teorias foulcaultianas, assim como aspectos sobre a invenção histórica da sexualidade. Para Foucault, a noção de sexualidade foi uma das noções centrais para a biopolítica enquanto estratégia que procurou efetivar a qualificação biológica das populações. (FOUCAULT, 2007a). Conforme Ortega (2007) coloca, a biopolítica vinculou-se historicamente ao fortalecimento dos Estados nacionais, à afirmação da burguesia como classe dominante e à formação de um dispositivo médico-jurídico que vislumbrou a disciplinarização e medicalização da sociedade. É preciso também tratar de compreender o significado de “moral” e que este significado constitui-se em etapa importante dos discursos que objetivam disciplinar. Foucault define moral como um conjunto de valores e regras proposto aos indivíduos e grupos, por intermédio de aparelhos prescritivos diversos. A família, as instituições educativas, a igreja, as instituições de saúde e muitos outros estão a frente de regras e valores que podem estar explicitamente formuladas ou podem estar sendo transmitidas de maneira difusa. Código moral seria, portanto, um conjunto prescritivo, mas o comportamento real dos indivíduos e a maneira como se submetem ou não aos princípios de conduta é que seria a moral propriamente. (FOUCAULT, 2007b) 114
Biopolítica, Subjetivação e Saúde
A moralidade sobre a sexualidade apresenta-se por meio de distintos discursos e condutas. Faz-se presente em várias dimensões da vida social e atua sobre os contextos da vida dos sujeitos. Condutas morais religiosas acerca da sexualidade constituem fartamente as doutrinas cristãs e concorrem com outros discursos que, enquanto dispositivos, também normalizam os corpos sexuais e as relações estabelecidas entre as pessoas. A moral, portanto, está presente também no discurso da saúde acerca da sexualidade, especialmente quando se pensa nas condutas higienistas sobre prática sexual. Tal como colocado pro Foucault (2007a), trata-se de entender a sexualidade como discurso e que em torno dela ocorreu, a partir do século XIX, uma “verdadeira explosão discursiva”. A palavra sexualidade remete a um dispositivo histórico, a uma “rede discursiva”4: a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências. Estes discursos encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder. A noção de sujeito que trazemos para esta reflexão difere daquela que o entende como indivíduo sujeito à produção de um corpo dócil, submisso e disciplinado. Desta forma, não estamos falando de assujeitamento, mas do sujeito protagonista e, nesta condição, este sujeito pode apresentar-se como resistência ao dispositivo biopolítico. Para pensar a sexualidade hoje é importante retomar o papel do fenômeno social da epidemia de aids no mundo e no Brasil. Desde o surgimento da epidemia, há cerca de 30 anos, vem sendo produzida, nos termos de Foucault, “outra economia dos corpos e dos prazeres”. (FOUCAULT, 2007b) Com a epidemia, a sexualidade ganha outro lugar dentro do campo das políticas de saúde e de outros discursos políticos circulantes na sociedade. Há profundas mudanças no modo de ver a sexualidade5, especialmente na medida em que orientações 4 Compreendemos aqui que a constituição de redes discursivas se dá a partir do encadeamento de saberes oriundos de distintas posições, papéis e instituições que se relacionam a partir de um interesse comum – a sexualidade. Por vezes este saberes encontram-se e produzem os nós e as próprias tramas (da rede). 5 Relacionaremos aqui apenas alguns autores e autoras que descrevem a forma como a sexualidade é entendida a partir do fenômeno da aids: FACHINNI, R., Movimento homossexual e construção de identidades coletivas em tempos de AIDS, In: UZIEL, A.P., RIOS, L.F., PARKER, R.G. (org.), Construções de Sexualidade: gênero, identidade e comportamento em tempos de aids, Rio de Janeiro: Pallas, 2004; SIMÕES, J & FACHINNI, R., Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009; PARKER, R., Diversidade Sexual, análise cultural e a prevenção da Aids, In: PARKER, R. A construção da solidariedade – aids, sexualidade e política no Brasil, Rio de Janeiro: Relume-Dumará / ABIA, 1994.
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sexuais não hegemônicas, identidades e estilos de vida considerados “desviantes” tornam-se questões públicas e objetos de políticas de saúde. Em movimento oposto de força e poder, há atuações políticas baseadas em moralidades rigídas orientadas por crenças religiosas. Atuações, inclusive, em espaços onde deveria prevalecer a laicidade do Estado, das instituições e dos indivíduos que os representa. Pastores-deputados, pastoras-vereadoras esbravejam contra o avanço de políticas públicas para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) e chamam adeptos a resistirem ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos. Por outro lado, como parte da resistência ao retrocesso e demonstrando a capacidade do sujeito de lidar com as moralidades, algumas lideranças religiosas tentam dialogar com as experiências da contemporaneidade, com os direitos e com os movimentos sociais. A visibilidade para orientações sexuais não hegemônicas e a reprodução cotidiana da violação dos direitos implicam em desafios específicos para as políticas públicas. As instituições – marcadas pela linguagem do gênero, pela crença na hegemonia da sexualidade heterossexual – deparam-se com novos sujeitos e com suas identidades sociais construídas em torno do direito à diferença escapando ao entendimento clássico de gênero que possuem. Os avanços políticos e a visibilidade podem ser vistos como consequência de um percurso de lutas em torno da garantia dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, do direito a viver a sexualidade homossexual. Nossa compreensão tem que incluir o fato da saúde caracterizar-se como um campo político que se caracteriza pela inclusão. A representação do movimento LGBT no Conselho Nacional de Saúde e o Plano de Saúde Integral da População LGBT podem ser tomados como exemplo. Trata-se, portanto, de um campo político que se caracteriza por disputas de forças entre discursos disciplinadores, constitutivos da biopolítica. Mas, ao mesmo tempo, o campo político caracteriza pela presença e força de um discurso dos direitos. A vida constitui-se alvo de lutas biopolíticas mesmo quando se está lutando por direitos e, na visão de Ortega, a teoria foulcaultiana implica em compreender que “a biopolítica precisa da resistência ao dispositivo biopolítico para poder se desenvolver“ (ORTEGA, 2003, pg. 17). A saúde como campo político dos direitos tem, portanto, capacidade para sobrepor-se à sua própria tendência de constituir-se apenas como dispositivo de controle. Pode
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apresentar-se como uma forma de resistência aos processos normalizadores da sociedade (ORTEGA, 2003). Estamos considerando que nosso sistema de saúde pública – o Sistema Único de Saúde (SUS) – tem papel de destaque no fortalecimento do sujeito, entendido na sua pluralidade constitutiva. A construção do SUS contou e conta com a participação social e democrática dos diversos setores da sociedade e com a participação dos usuários do sistema de saúde. O SUS nasce como contraposição a um sistema de saúde ineficiente, caracterizado por uma prática excludente e de acesso desigual. Ao reconhecer a força política de sua trajetória histórica, ao mesmo tempo em que não se perde de vista as inúmeras deficiências que o sistema apresenta, é preciso compreender como o SUS vêm se constituindo, enquanto sistema, na busca pelo cumprimento de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Algumas políticas públicas de saúde desenvolvidas no âmbito do SUS, incluem uma abordagem baseada nos direitos humanos. O sistema de saúde implicado com os direitos humanos deve ser constituído por instâncias que garantam o direito a não discriminação e o direito à dignidade e reconheça que sua violação é determinante para a exclusão social (GRUNSKI e TARANTOLA, 2009). A perspectiva aqui apresentada tenta também sustentar que o processo de constituição da subjetividade pode ocorrer a partir do sujeito protagonista e em busca de reafirmar sua autonomia com a capacidade de agenciamento das moralidades. A subjetividade se constituí em contextos socioculturais específicos, a partir da herança histórica e dos vínculos sociais estabelecidos. Não se pode perder de vista que o contexto está no sujeito assim como o sujeito está vivendo o contexto, dando origem a um movimento que se materializa nas cenas concretas, nas intersubjetividades personificadas no cotidiano e, portanto, na vivência da sexualidade, na vivência dos afetos, no comportamento moral, nas decisões sobre reprodução. Quando o que está em jogo é a vivência das sexualidades, deve-se focar o sujeito sexual, deve-se pensar a pessoa como condutora de suas escolhas ao longo de sua trajetória sexual e não como objeto de instintos, impulsos ou assujeitado a discursos sobre sexualidade. O sujeito sexual está permanentemente interpelado por diferentes discursos sobre a sexualidade e por cada contexto
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intersubjetivo. Quando se é um agente com autonomia, o sujeito pode ser sujeito de muitos discursos sobre o sexo, por vezes até contraditórios. Ao longo da vida, o sujeito é confrontado com o pluralismo de discursos disponíveis na sociedade. O sujeito-sexual-cidadão é um agente da negociação consciente entre os vários discursos disponíveis sobre sexualidade e sobre reprodução. Ao mesmo tempo, ele é portador de direitos – à informação, à não discriminação, à saúde integral. De acordo com Paiva (1999), sujeitos-sexuais fazem colagens de tradições culturais, de realidades rituais e normativas, especialmente na esfera da sexualidade. Ser sujeito é lidar com a complexidade e os múltiplos fatores que competem pela sua atenção consciente em cada experimentação e é ser agente ativo da sua sexualidade. Nesta mesma sintonia, queremos distanciamento de um sujeito que, prioritariamente, vive para auto-controlar-se, auto-vigiar-se, auto-governar-se. (ORTEGA, 2003) Entendemos que o sujeito plural constrói sua trajetória inserido em diferentes contextos e que, ao mesmo tempo, só pode ser compreendido na sua totalidade complexa quando sua singularidade for focada. Nos termos de Costa (2001), o sujeito é como uma “pluralidade identificatória” que resulta do conjunto de vários sujeitos que se formam por sensações, percepções, representações, imagens e experimentações. Ainda na perspectiva deste autor (2001), o sujeito é uma realidade psíquica histórico-cultural e não “algo” invariável no tempo e no espaço (...) a realidade subjetiva não pode ser pensada como “efeito” logicamente independente de causas sociais. O sujeito exprime, sem dúvida, as formas de vida dominantes. Mas não a modo de “efeito” referido a “causas” que lhes são exteriores.
Compreender o sujeito como plural permite compreender o dinamismo do plano da intersubjetividade, porque dá conta da sinergia de combinações. No caso da conduta moral religiosa, por exemplo, o sujeito religioso é sempre protagonista da sua religiosidade, apesar do caráter mais dogmático do discurso religioso que, eventualmente, esteja presente nas suas concepções. O sujeito sexual também pode ser protagonista e regulador de sua trajetória afetivo-sexual nessa sinergia, seguindo orientações mais ou menos rígidas, adaptando-se ao contexto. (SILVA, 2010)
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É plenamente possível pensar proposições de políticas de saúde que garantam e promovam o direito sexual e direito reprodutivo. Para isto ocorrer, a interdisciplinaridade assume papel essencial na elaboração e efetivação de políticas, especialmente por sua capacidade de identificar e compreender os marcadores sociais da diferença e a constituição das relações que se estabelecem a partir deles colaborando para a compreensão do processo de constituição das subjetividades. Muitas das lutas levadas a cabo pelos movimentos feministas e pelos movimentos LGBT pautaram a sexualidade e a reprodução como dimensões importantes da vida social e política e demonstraram a pertinência de reivindicar a proteção contra a discriminação por parte do Estado. Nesta relação, a sexualidade passa a fazer parte do próprio processo de construção do SUS, por meio da interlocução entre as instâncias de governo com os referidos movimentos sociais e pelo reconhecimento de algumas demandas destes movimentos. Estamos enfocando o sujeito plural, o indivíduo protagonista das escolhas que é, portanto, sujeito de direito, sujeito sexual, sujeito religioso ou não religioso. Nesta perspectiva, é preciso investir na saúde como um campo político que se constrói a partir da perspectiva ético-política dos direitos humanos. “A perspectiva dos direitos humanos, permite propor uma bioética da saúde pública, diferente da bioética clínica, mais adequada para pensar as implicações coletivas do direito à saúde, não reduzido a um mero consumo de tecnologias.” (JUNGES, 2009, pg. 285)
No que se refere à sexualidade, entendemos que a noção de sujeito sexual implica em compreender a permanente interpelação dos discursos dos direitos humanos (CORRÊA, 2006, p.106) e que é preciso investir pesadamente na laicidade do Estado. É preciso também apostar na capacidade de agenciamento da moralidade religiosa, enquanto sujeito religioso. O Brasil é um país que tem dificuldade de avançar na legislação que trata de questões como o aborto, criminalização da homofobia e direitos LGBT (GOMES; NATIVIDADE; MENEZES, 2009b). Têm sido recorrentes os episódios que demonstram a densidade dos conflitos entre discursos de moralidade religiosa e discursos calcados na agenda do ativismo no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos.
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A coexistência de discursos distintos sobre a sexualidade apresenta-se, muitas vezes, de forma conflituosa. Entretanto, é possível também o estabelecimento (especialmente se houver algum investimento) de acordos e diálogos que se somem às movimentações de fortalecimento de uma sociedade democrática que inclua sexualidade e reprodução como direitos humanos fundamentais a serem protegidos e promovidos. Nesse sentido, mais uma vez destacamos a potencialidade do campo da saúde coletiva de investimento no sujeito plural e sujeito de direitos e, portanto, no fortalecimento da prática democrática.
Referências bibliográficas CORRÊA, S. Cruzando a linha vermelha: questões não resolvidas no debate sobre direitos sexuais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a.12, n.26, p. 101-121, jul.-dez.2006. COSTA, J.F. A subjetividade exterior. (Palestra apresentada em 2001 sob o título “A Externalização da Subjetividade”). Texto inédito disponível em: . FOULCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 18ª ed. São Paulo: Graal Editora, 2007, 227p. (a) FOULCAUT, M. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres, 18a. Ed. São Paulo: Graal Editora, 2007, 232 p. (b) GOMES, E.C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R.A. Parceria civil, aborto e eutanásia: controvérsias em torno da tramitação de projetos de lei. In: GOMES, E.C. (Org.). Dinâmicas contemporâneas do fenômeno religioso na sociedade brasileira. Aparecida/São Paulo: Ideias e Letras, 2009a, p. 188-210. GRUNSKIN,S. e TARANTOLA,D., Um panorama sobre saúde e direitos humanos. Tradução para uso didático. Referência original: GRUNSKIN, S. (2008). Health an Human Rigths: overview. In: K. Heggenhougen & S. Quah (Eds) International Encyclopedia of Public Health (PP. 137-146, vol. 3). Elsevier JUNGES,J,R. Direito à saúde, biopoder e bioética In: Interface – Comunicação, Saúde, educação, v.13, n.29, p. 285-95, abr./jun. 2009 ORTEGA, F. Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foulcault, Agnes Heller e Hannah Arendt, In: Interface – Comunicação, Saúde, educação, v.8, n.14, p. 9-20, set. 2003-fev.2004 120
Biopolítica, Subjetivação e Saúde
PAIVA, V. Cenas sexuais, roteiros de gênero e sujeito sexual. In: BARBOSA, R.M.; PARKER, R. (Orgs.). Sexualidades pelo avesso: direitos, identidade e poder. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; São Paulo: Editora 34, 1999, p. 250-271. SILVA, C.G. Sexualidade, conjugalidade e direitos entre jovens religiosos da região metropolitana de São Paulo, Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor, 2010
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em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia Sandra Azerêdo1
O trabalho discute o ensino de metodologia de pesquisa na Psicologia, tomando como base o texto “Saberes Localizados”, de Donna Haraway. O argumento central a ser desenvolvido diz respeito à necessidade de posicionamento do/a pesquisador/a e, portanto, de se considerar não apenas aspectos epistemológicos, mas, sobretudo, aspectos políticos e éticos nas práticas de pesquisa. A abordagem de Haraway será contrastada com abordagens metodológicas tradicionais na Psicologia, em que, mesmo quando se tenta levar em consideração o envolvimento do/a pesquisador/a na produção dos dados, já que se admite que nenhuma pesquisa (“especialmente em ciências sociais”) é neutra, não há na verdade um posicionamento, e sujeito e objeto desaparecem da cena. O trabalho tentará mostrar que uma série de divisões—entre ciência social/humana e ciência da natureza, entre pesquisa qualitativa e quantitativa, e entre sujeito e objeto—está na base dessa falta de posicionamento nas pesquisas em Psicologia.
1 Profª Drª da Universidade Federal de Minas Gerais. A autora aproveita para agredecer aos alunos e alunas da turma de 2011 do curso de mestrado em Psicologia da UFMG, que contribuíram para o desenvolvimento das ideias discutidas neste trabalho.
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Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Donna Haraway
No primeiro semestre deste ano dividi com duas colegas do Departamento de Psicologia uma disciplina obrigatória sobre Metodologia de Pesquisa.2 A disciplina foi dividida em três partes, que correspondiam às áreas de concentração da pós-graduação em Psicologia na UFMG: Psicologia Social, Avaliação Psicológica e Desenvolvimento, e Psicanálise. Fiquei responsável pela primeira parte da disciplina e a expectativa era que eu abordasse a pesquisa qualitativa, já que a psicologia social no Departamento é considerada como privilegiando esse tipo de abordagem, em contraste com a área de desenvolvimento e testes, vista como dando ênfase à quantificação. A psicanálise, por sua vez, é considerada como tendo um método próprio de pesquisa, e parece não se envolver nas discussões comuns na psicologia, que dividem o social/qualitativo e os testes/quantitativos.3 Minha preocupação, no entanto, não era simplesmente ensinar metodologia qualitativa, mas, sobretudo, pensar sobre os pressupostos que sustentam essa divisão entre metodologia quantitativa e qualitativa na Psicologia, buscando entender seu sentido na produção de conhecimento, de modo a colocar a questão do posicionamento, trazida por Donna Haraway, em seu texto “Saberes Localizados: o privilégio da perspectiva parcial”, publicado originalmente em 1988.4 Considero importante discutir a noção de posicionamento na prática de pesquisa em psicologia porque ela possibilita romper com uma série de dicotomias que, a meu ver, constituem obstáculos para uma transformação da realidade de dominação com a qual nós, profissionais psi, nos deparamos cotidianamente em nosso trabalho. Dois pressupostos parecem ser importantes na diferenciação entre as duas abordagens: o uso da interpretação do significado da informação coletada 2 A ementa da disciplina era ampla: “Natureza da pesquisa quantitativa e qualitativa. Amostragem e seleção de sujeitos. Principais estratégias e métodos de coleta de dados: survey, observação, testes psicológicos, análise de conteúdo, uso de dados secundários, etnografia e observação participante, entrevista, grupos focais, análise conversacional e análise de discurso, análise de documentos. Triangulação de pesquisa qualitativa e quantitativa”. 3 Nos primeiros anos do Currículo Novo do Curso de Psicologia da UFMG há duas disciplinas obrigatórias— “Métodos Quantitativos” e “Métodos Qualitativos”—reforçando essa divisão entre as duas abordagens. 4 Donna Haraway, “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Trad. Mariza Corrêa. cadernos pagu (5), 1995, 7-41.
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
na abordagem qualitativa em oposição à quantificação dessa informação, e a importância da interação entre pesquisador/a e pesquisado/a na produção dos dados da abordagem qualitativa em oposição à abordagem quantitativa, onde se tenta inclusive reduzir ao máximo os efeitos dessa interação. Tomando como base esses dois pressupostos, que definem a pesquisa qualitativa como privilegiando a interpretação e a interação, selecionei dois textos considerados básicos para o estudo da metodologia de pesquisa em ciências sociais: o livro de Marília da Mata Machado sobre a “interação pesquisador/pesquisado” em que ela analisa na “co-construção discursiva” as respostas dos/as entrevistados/as e a “contra-transferência (implicação) do pesquisador” (2002: 11), e o livro de Maria Cecília Minayo sobre “teoria, método e criatividade” na pesquisa.5 O livro de Mata Machado se baseia em sua tese de concurso de professora titular em Psicologia da UFMG e o de Minayo, publicado em 1993, que em 2010 estava em sua 29ª edição. Achei que o contexto de publicação desses dois textos justificava considerá-los como expressando uma tendência importante de metodologia de pesquisa na psicologia social. Além disso, ambas as autoras utilizam a noção de “interação”, “envolvimento” e “implicação”, que poderiam ser justapostas à noção de “posicionamento” de Haraway. A discussão desses três textos ocupou as primeiras três aulas. Nas últimas duas aulas lemos outros textos que, de certa forma, discutiam a tensão que se criou em sala de aula entre a perspectiva de Haraway e as duas outras perspectivas.6
Metodologia Tradicional Minayo considera a observação e a entrevista como sendo “os instrumentos principais” do trabalho de campo, a primeira se baseando no que pode ser visto (com atenção e persistência) e no que “não é dito”, e a segunda no que é dito (2010: 63). Para ela, “na pesquisa qualitativa a interação entre o pesquisador e os sujeitos 5 Marília Novais da Mata Machado, Entrevista de Pesquisa: A Interação Pesquisador / Entrevistado. Belo Horizonte: C/ Arte Editora, 2002, e Maria Cecília de Souza Minayo (organizadora), Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. 29ª. Ed., Petrópolis: Editora Vozes, 2010. 6 Sandra Azerêdo, “Encrenca de Gênero nas Teorizações em Psicologia”. Revista Estudos Feministas, Vol. 18, No. 1/2010, 175-188 e “Deslocamentos da identidade: teorizando a violência na Delegacia de Mulheres”. IN Rial, Carmen e Toneli, Maria Juracy (orgs.), Genealogias do Silêncio: feminismo e gênero. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2004, Clifford Geertz, “Uma descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura” IN A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 1989 (1973), e Max Horkheimer, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Trad. Edgard Afonso Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha. São Paulo: Abril S/A, Vitor Civita Editor, Coleção Pensadores, 1975 (1937).
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pesquisados é essencial” (grifos de Minayo). O “trabalho interacional” se torna um instrumento privilegiado de coleta de informações pela “magia” que tem a fala de revelar o pensamento do grupo. Como ela escreve, a fala tem a possibilidade: de ser reveladora de condições de vida, da expressão dos sistemas de valores e crenças e, ao mesmo tempo, ter a magia de transmitir, por meio de um porta-voz, o que pensa o grupo dentro das mesma condições históricas, socioeconômicas e culturais que o interlocutor (2010: 63-64).
Minayo argumenta que o “envolvimento [fundamental] do entrevistado com o entrevistador” não constitui um “risco comprometedor da objetividade”. Pelo contrário, ele é condição da objetividade (67-68). E Minayo acrescenta: Em geral, os melhores trabalhadores de campo são os mais simpáticos e que melhor se relacionam com os entrevistados. A inter-relação, que contempla o afetivo, o existencial, o contexto do dia a dia, as experiências e a linguagem do senso comum no ato da entrevista é condição sine qua non do êxito da pesquisa qualitativa (2010: 68).7
Ou seja, “envolvimento” para Minayo tem a ver com características da personalidade do pesquisador, anulando o efeito das “posições sociais assimétricas”. Minayo sugere que o “desafio da pesquisa social” está relacionado à especificidade do objeto dessa pesquisa vis-à-vis as “ciências da natureza”, consideradas como sendo “pioneiras e as estrelas da ideia de cientificidade”, mesmo com as novas descobertas da física quântica (2010: 11). Minayo lista os aspectos que constituem a especificidade das ciências sociais, cujo objeto é histórico, tem consciência histórica, e tem “um substrato comum de identidade com o investigador”. E Minayo continua:
7 Ao longo de seu texto, Minayo usa uma série de categorias psicológicas: “a construção da identidade do pesquisador pelo grupo vai se forjando nas várias instâncias de convivência, desde o início” (2010: 67); “A simplicidade por parte do pesquisador é fundamental para o êxito de sua observação, pois ele é menos olhado pela base lógica de seus estudos e mais pela sua personalidade e seu comportamento” (2010: 73); “mesmo partindo de posições sociais diferentes e assimétricas, ambos buscamos a compreensão mútua que nos permita transcender ao senso comum. No entanto, o pesquisador nunca deve buscar ser reconhecido como um igual. O próprio entrevistado espera dele uma diferenciação, uma delimitação do próprio espaço, embora sem pedantismos, segredos e mistérios” (2010: 75).
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Outro aspecto distintivo das Ciências Sociais é o fato de que ela é intrínseca e extrinsecamente ideológica. Na verdade, não existe uma ciência neutra. Toda ciência—embora mais intensamente as Ciências Sociais—passa por interesses e visões de mundo historicamente criadas, embora suas contribuições e seus efeitos teóricos e técnicos ultrapassem as intenções de seus próprios autores. No entanto, as ciências físicas e biológicas participam de forma diferente da ideologia social (...) pela natureza mesma do objeto que elas colocam ao investigador. Na investigação social, a relação entre pesquisador e seu campo de estudos se estabelece definitivamente. A visão de mundo de ambos está implicada em todo o processo de conhecimento, desde a concepção do objeto aos resultados do trabalho e à sua aplicação. Ou seja, a relação, neste caso, entre conhecimento e interesse deve ser compreendida como critério de realidade e busca de objetivação (2010: 13-14, grifos de Minayo).
O último aspecto da especificidade do objeto das Ciências Sociais trazido por Minayo é que ele é “essencialmente qualitativo”. Ou seja, de acordo com a autora, ele faz parte de “um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado” (21). Trata-se de uma “realidade que é mais rica que qualquer discurso construído sobre ela” (25). Para Minayo, existe “o objeto real”, que “diz respeito à totalidade das relações da existência social. Suas fronteiras e complexidade, porque dinâmicas e constantemente reinventadas, excedem a apreensão do conhecimento científico” (2010: 33). Ou ainda, “as ideias ou explicações que fazemos da realidade estudada são sempre mais imprecisas do que a própria realidade”, sendo, portanto, preciso que o investigador tenha uma atitude de humildade diante dessa realidade (2010: 37). Em suma, a pesquisa qualitativa seria definida por essa aproximação “incompleta, imperfeita e insatisfatória”, de uma realidade social “suntuosa” que sempre a excede (2010: 14). Minayo sugere que o que torna essa realidade inatingível pela ciência é o fato de ela se referir a “fenômenos humanos”—significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes, que, segundo ela, distinguem o ser humano das outras espécies. Minayo considera que: Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só
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por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. O universo da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos (2010: 21).
Essa concepção de pesquisa trazida por Minayo apresenta uma série de aspectos bastante problemáticos: em primeiro lugar, a ênfase na identidade do/a pesquisador/a, que, além de apresentar características “positivas” de personalidade (simpatia, simplicidade, etc.), supostamente contribuem para a objetividade da pesquisa, sendo que objetividade não é nunca definida, dando a entender que seja alguma coisa dada e reconhecida universalmente. Em segundo lugar, numa visão extremamente simplista da linguagem, o “dito” e o “não dito” são separados sem maiores problemas, e considera-se que a fala seja transparente, revelando magicamente as condições do grupo estudado. Outro problema é a listagem das especificidades do objeto das ciências sociais que as distinguem das demais ciências, colocando estas últimas como se não fossem também históricas e ideológicas. A questão da “consciência histórica” do objeto e do “substrato comum de identidade com o investigador”—dois itens que fazem parte dessa listagem—assenta-se em outra dicotomia, que é a que se estabelece entre sujeito e objeto, a qual vem sendo questionada pelos estudos da ciência, área em que Haraway tem publicado importantes trabalhos.8 Finalmente, no trabalho de Minayo aparece uma realidade totalizada feita de “fenômenos humanos”, que ultrapassa sujeitos e objetos. Diferentemente de Minayo, Mata Machado não estabelece separações rígidas entre abordagens quantitativas e qualitativas, tratando-as como alternativas possíveis nas pesquisas em ciências. Em relação à análise, Mata Machado distingue as análises qualitativas e de conteúdo da análise do discurso. Segundo ela, esta última “pertence à 8 Ver seu “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, IN Tomas Tadeu (org.), Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano (Belo Horizonte: Autêntica, Mimo, 2009 (1985), 2ª. Edição, trad. Tomaz Tadeu). Ver também Bruno Latour, A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos da ciência (Bauru, SP: EDUSC, 2001, trad. Gilson César Cardoso de Sousa). No subtítulo desse livro a expressão “science studies” foi traduzida como “estudos científicos”, o que é inadequado, pois os estudos da ciência problematizam justamente o processo de definição das fronteiras que definem o que é “científico”. Trata-se de estudar as ciências e não de estudos científicos.
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outra linhagem, tem objeto e alvos completamente distintos” (66). Citando Mainguenau, Mata Machado contrasta a análise de conteúdo que “se pretende constituir em um conjunto de técnicas auxiliares de ciências sociais” com a análise do discurso, “que se esforça por se constituir em verdadeira disciplina de análise de texto” (68) e adota esta última para análise das interações realizadas em sua pesquisa na Favela Acaba Mundo, em Belo Horizonte, permeando sua análise com conceitos da psicanálise, tais como inconsciente, transferência e contra-transferência. Mata Machado argumenta que “a produção discursiva dos interatuantes, manifestada empiricamente nos discursos provocados pelas entrevistas, articula-se à organização psíquica e ao lugar (na divisão social do trabalho e imaginário) dos protagonistas” (2002: 16). Segundo ela, é no discurso produzido pela entrevista e no seu tratamento analítico, que se pode detectar a presença da subjetividade do observador e das deformações da realidade que este introduz, graças a suas reações de contra-transferência; no discurso pode-se explorar também a influência da observação sobre o observado (2002: 16, meus grifos).9
Para Mata Machado, a entrevista aberta de pesquisa “está longe de ser uma simples conversa”, é “um modo de interação particularmente frustrante para o entrevistador, a quem é proibido agir como um interlocutor normal, exprimir seus próprios pontos de vista, ... sair da escuta benevolente” (45). Essa interação “é mediatizada pela intersubjetividade” (51). Em sua análise dessa interação, Mata Machado conclui que: Pode-se dizer ... que os interatuantes na situação da pesquisa, ao construírem o vínculo, viram-se mutuamente como um outro, sendo a alteridade reconhecida. Mas, frequentemente, esse reconhecimento levou a uma classificação, que se transformou em separação e em busca de dominação do outro. Esse desenrolar do vínculo social, que termina na dominação, é bem o reflexo da organização social, cujo corpo não é monolítico nem solidário,
9 Como veremos, ao considerar que a realidade seja “deformada” pela subjetividade do/a observador/a, Mata Machado se aproxima da problemática da concepção de Minayo de uma realidade totalizada e inatingível.
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mas dividido e violento; a formação discursiva que aí atua retrata essas divisões. Assim, os resultados que obtive não devem ser vistos como um defeito, um viés ou uma tendenciosidade dos meus dados de pesquisa (e muito menos das entrevistas), mas como um efeito das inscrições particulares, na sociedade, dos interlocutores que produziram, na interação, os seus discursos distintos (e os seus monólogos). Essas inscrições são indissociáveis dos lugares que os interatuantes ocupam, representam-se como seus e instituem na situação de produção de palavra (2002: 137, grifos no original).
E, ao analisar sua contra-transferência, Mata Machado escreve que encontra resistências (e mal-estares) para prossegui-la. Posso reconhecer (sem apreciar) que, na condução das entrevistas e, igualmente, na coordenação da equipe, falei de forma autoritária e elitista, o que era camuflado através do discurso participativo que norteava as ações da equipe: o apossar-me da palavra a fim de controlar a entrevista e as questões convencionais minhas e dos outros entrevistadores o comprovam. Os pressupostos evidenciados nas análises provocam-me igualmente certo mal-estar. Mas não desejo me expor mais do que o fiz até o momento. ... prefiro interromper aqui a exposição sobre minha implicação/contra-transferência (138).
Na seção sobre os “pressupostos do entrevistador”, Mata Machado discute o que o entrevistador “inconscientemente” revela através de sua fala, sobre como “imagina ser a vida da favela”. Sua análise aqui parece ser mais crítica, na medida em que considera as diferentes posições de sujeito produzindo o conhecimento na interação. Num trecho muito importante de entrevista, aparece o estereótipo da favelada que, se “estava na bica, está lavando roupa (favelado lava roupa)”, enquanto que é evidente ... que [ela] se preparara cuidadosamente para ser fotografada” (2002: 113, grifos no original). Assim, pode-se perceber que Mata Machado considera a questão da implicação do/a pesquisador/a de modo mais crítico que Minayo, na medida em que não se apoia em características da personalidade, nem apela para a identidade em sua análise da interação. No entanto, essa crítica fica limitada ao focalizar apenas os aspectos da contra-transferência da/o observador/a, que são vistos 130
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como deformando a realidade. Considero que o uso da teoria psicanalítica nessa análise constitui um obstáculo para um posicionamento que possibilite uma conversa não inocente com vistas a transformar as relações de dominação que ela aponta. Talvez a relação com a mulher favelada que se apronta para a fotografia e não é vista pelo pesquisador possa indicar caminhos para o posicionamento se forem utilizadas categorias tais como a de estereótipo de Enrique Pichón-Rivière10, ou mesmo se for estudado o preconceito do/a observador/a no processo de estabelecimento de fronteiras com o sujeito estudado. Considero também que a crítica poderia ser aprofundada se fosse feita a análise das formações discursivas, propostas por Michel Foucault11, que é apenas citada muito rapidamente no texto de Mata Machado (2002: 66, 84).
o posicionamento na pesquisa Considero que o que falta nas abordagens de Minayo e Mata Machado é a explicitação da categoria do político. Vejamos como ele aparece explicitamente no texto de Haraway: Como muitas outras feministas, quero argumentar a favor de uma doutrina e de uma prática da objetividade que privilegiem a contestação, a desconstrução, a construção apaixonada, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver. Mas não é qualquer perspectiva parcial que serve; devemos ser hostis aos relativismos e holismos fáceis feitos de adição e subsunção das partes. (...) Precisamos também buscar a perspectiva daqueles pontos de vista que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometam alguma coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação. De tal ponto de vista, a categoria não marcada realmente desapareceria” (1995: 24).
10 Enrique Pichón-Rivière, O Processo Grupal (São Paulo: Martins Fontes, 1994. Trad. Marco Aurélio Velloso). 11 Michel Foucault, A Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 4ª. Edição. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves).
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Tal categoria não marcada se refere às “posições de Homem e Branco ... na barriga do monstro, nos Estados Unidos, no final dos anos 80” (1995: 18). Em seu texto, Haraway propõe “uma doutrina de objetividade corporificada”, que pode ser aplicada “às ciências exatas, naturais, sociais e humanas”, ou seja, “quer estejamos falando a respeito de genes, classes sociais, partículas elementares, gêneros, raças, ou textos” (1995: 17). Para Haraway, a objetividade “diz respeito à corporificação” (1995: 21). Ela insiste “metaforicamente na particularidade e corporificação de toda visão (ainda que não necessariamente corporificação orgânica e incluindo a mediação tecnológica)” (1995: 20). Como ela se expressa, Quero uma escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão outra vez, porque precisamos recuperar esse sentido para encontrar nosso caminho através dos truques e poderes visualizadores das ciências e tecnologias modernas que transformaram os debates sobre a objetividade. Precisamos aprender em nossos corpos, dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos nomear. ... A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver (1995: 21).
Haraway considera que a palavra chave para a objetividade na ciência seja o posicionamento. Para ela, é o posicionamento crítico que produz a ciência. E o posicionamento depende da impossibilidade de políticas e epistemologias de “identidade” inocentes como estratégias para ver desde o ponto de vista dos subjugados, de modo a ver bem. Não se pode “ser” uma célula ou uma molécula—ou mulher, pessoa colonizada, trabalhadora e assim por diante—se se pretende ver e ver criticamente desde essas posições. “Ser” é muito mais problemático e contingente. Além disso, não é possível realocar-se em qualquer perspectiva dada sem ser responsável por esse movimento. A visão é sempre uma questão do poder de ver—e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o
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sangue de quem foram feitos os meus olhos? Essas observações se aplicam também ao testemunho a partir da posição de um “eu”. Não estamos imediatamente presentes a nós mesmos. O autoconhecimento exige uma tecnologia material-semiótica relacionando significados e corpos. A autoidentidade é um mau sistema visual (25).
Para Haraway, é a divisão, e não o ser que se constitui na “imagem privilegiada das epistemologias feministas do conhecimento científico”. A divisão se refere a “multiplicidades heterogêneas, simultaneamente necessárias e não passíveis de serem espremidas em fendas isomórficas ou listas cumulativas” (1995: 26). Trata-se de uma geometria que diz respeito ao interior dos sujeitos e entre eles. O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser o outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico não procura a posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial (1995: 26).
A corporificação feminista não se refere a uma posição fixa num corpo reificado, mas a “nódulos em campos, inflexões em orientações e responsabilidade pela diferença nos campos de significado material-semiótico. Corporificação é prótese significante” (1995: 29). A teoria magistral (master theory) é substituída pelas explicações em rede, que podem servir de base para uma “conversa” sensível ao poder, não pluralista. Para Haraway: O feminismo ama outra ciência: a ciência e a política da interpretação, da tradução, do gaguejar e do parcialmente compreendido. (...) O feminismo tem a ver com uma visão crítica, consequente com um posicionamento crítico num espaço social não homogêneo e marcado pelo gênero (1995: 31-32).
Haraway argumenta que “posição diz respeito à vulnerabilidade” e “resiste à política de fechamento” (1995: 32). Em suma, para ela, “a questão da ciência para o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada” 133
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e suas imagens são “a junção de visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de corporificação finita continuada, de viver dentro de limites e contradições, isto é, visões desde algum lugar” (1995: 33-34). Ao longo do texto, Haraway insiste na ambiguidade, antecipando um campo comum vinculando as ciências exatas, físicas, naturais, sociais, políticas, biológicas e humanas, ligando todo esse campo heterogêneo de produção de saber institucionalizado “a um sentido de ciência que insiste na sua potência nas lutas ideológicas” (1995: 34). Haraway, no entanto, se propõe a sugerir a solução de uma ambiguidade, que diz respeito ao “estatuto de qualquer objeto do conhecimento” (1995: 34). Tomando como exemplo “sexo” como objeto de conhecimento biológico, que “aparece sob a capa do determinismo biológico” que ameaça as possibilidades abertas pelo conceito de gênero, “como diferença localizada socialmente, historicamente e semioticamente” (1995:35), Haraway acredita que “perder as descrições biológicas autorizadas a respeito do sexo, que criaram tensões produtivas com seu par binário, gênero, parece implicar perder muito; parece implicar perder ... o próprio corpo como algo que não seja uma página em branco para inscrições sociais, inclusive aquelas do discurso biológico” (1995: 35). Porém, Haraway acredita que essa dificuldade e perda derivam da tradição analítica ocidental que transforma tudo num recurso para ser apropriado, onde o objeto é apenas coisa, matéria, e apenas reafirma o poder do conhecedor, sendo-lhe negado qualquer estatuto de agente na produção de conhecimento. A natureza é apenas a matéria-prima da cultura... na lógica do colonialismo capitalista. De modo análogo, o sexo é apenas a matéria do ato de gênero, a lógica da produção parece inevitável nas tradições dos binarismos ocidentais. Essa lógica narrativa analítica e histórica explica meu nervosismo a respeito da distinção sexo/gênero na história recente da teoria feminista. O sexo é “recuperado” para ser reapresentado como gênero, que nós podemos controlar. Parece impossível evitar a cilada da lógica apropriacionista de dominação, inscrita no par binário natureza/cultura e na linhagem que ela gerou, incluindo a distinção sexo/gênero (1995: 36).
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Haraway argumenta que “saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento ‘objetivo’” (36). E essa observação deve valer para todos “os projetos de conhecimento chamados de ciência”, e não apenas para as ciências humanas e sociais. Como foi visto acima, na disciplina da pós-graduação, lemos, depois de Haraway, textos de Horkheimer, Geertz e Azerêdo. Horkheimer propõe uma diferenciação entre teoria tradicional e teoria crítica, mostrando que a primeira pretende alcançar um conhecimento fora do contexto, preocupando-se apenas em estabelecer a veracidade dos fatos. De acordo com ele: A ideia tradicional de teoria é abstraída do funcionamento da ciência, tal como ocorre a um nível dado da divisão do trabalho. Ela corresponde à atividade do/a cientista tal como é executada ao lado de todas as atividades da sociedade, porém sem que a conexão entre elas se torne imediatamente clara. Nesta visão da teoria, a função social real da ciência não se torna manifesta, nem o que a teoria significa para a existência humana, mas apenas o que significa na esfera isolada em que é feita sob condições históricas. Na verdade, a vida da sociedade é um resultado da totalidade do trabalho nos diferentes setores de produção, e mesmo que a divisão do trabalho funcione mal sob o modo de produção capitalista, os seus ramos, inclusive a ciência, não podem ser vistos como autônomos e independentes (1975: 131).
A essa visão de teoria, Horkheimer propõe o que ele chama de “atividade crítica”, afirmando: Que tem a própria sociedade como seu objeto. Ela não tem apenas a intenção de remediar quaisquer inconvenientes; ao contrário, estes lhe parecem ligados necessariamente a toda organização estrutural da sociedade. Mesmo que esta atividade provenha da estrutura social, não é nem a sua intenção consciente, nem a sua importância objetiva que faz com que alguma coisa funcione melhor nessa estrutura. As categorias: melhor, útil, conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitas nesta ordem [social] são para ela suspeitas e não são de forma al-
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guma premissas extra-científicas que dispensem a sua atenção crítica. Em regra geral o indivíduo aceita naturalmente como preestabelecidas as determinações básicas de sua existência e se esforça para preenchê-la. (...) ao contrário, o pensamento crítico não confia de forma alguma nesta diretriz, tal como é posta à mão de cada um pela vida social. A separação entre indivíduo e sociedade, em virtude da qual os indivíduos aceitam como naturais as barreiras que são impostas à sua atividade, é eliminada na teoria crítica, na medida em que ela considera ser o contexto condicionado pela cega atuação conjunta das atividades isoladas, isto é, pela divisão dada do trabalho e pelas diferenças de classe, como uma ação que advém da ação humana e que poderia estar possivelmente subordinada à decisão planificada e a objetivos racionais (1975: 138).
Geertz, por sua vez, propõe a necessidade de uma antropologia baseada na interpretação dos significados das ações humanas, a qual se torna possível através do uso da descrição densa, uma prática de escrita que possibilita diferenciar uma contração da pálpebra como sendo uma piscadela de cumplicidade ou simplesmente uma irritação no olho, por exemplo. Talvez sua contribuição mais importante seja nos alertar contra a necessidade de totalização e de fechamento da realidade. Como ele diz, “a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa” (1989: 39). Geertz se refere a uma história indiana em que um inglês pergunta a um indiano onde se apoiava a tartaruga sobre cujas costas se apoiava o elefante que carregava o mundo e que recebeu a seguinte resposta: “Em outra tartaruga. E essa tartaruga? ‘Ah, Sahib, depois dessa são só tartarugas até o fim’” (1989: 39). Para ele, ao invés de buscarmos nos aproximar de uma realidade “complexa demais”, será melhor não perder de vista as duras realidades cotidianas em que nós vivemos. Como ele escreve: Na busca de tartarugas demasiado profundas, está sempre presente o perigo de que a análise cultural perca contato com as superfícies duras da vida—com realidades estratificadoras políticas e econômicas, dentro das quais os homens são reprimidos em todos os lugares—e com as necessidades biológicas e físicas sobre as quais repousam essas superfícies (1989: 39).
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Os dois textos de Azerêdo tratam especificamente da dificuldade de se teorizar dentro de uma perspectiva feminista na psicologia, propondo nessa teorização a análise do literário, que ajudaria a psicologia a entender melhor a experiência da diferença. Apoiando-me no trabalho de Joan Scott12 sobre a experiência, vejo no literário a possibilidade de entender a complexidade e contradição das produções discursivas sobre a experiência, que são processos com múltiplos significados, sendo impossível usar uma única narrativa para dar conta delas.
Uma história sobre a discussão em sala de aula Quero finalizar contando uma história sobre nossa discussão dessas questões em sala de aula. Comecei a discussão do texto de Haraway, abrindo para comentários das/ os estudantes. Já havíamos visto alguns problemas com o político no texto de Mata Machado, o que tinha incomodado a algumas pessoas, que tinham gostado muito do livro. Um aluno (da área de concentração em psicanálise) começou o debate perguntando com quem Haraway estava brigando. A quem ela estava se dirigindo com tanta raiva. Tentei mostrar que o texto deixava bem explícito que Haraway estava falando dos Estados Unidos dos anos 80 e mostrei algumas passagens onde isso aparecia. Não se tratava simplesmente de uma “briga”, mas de um texto que propunha uma metodologia séria de pesquisa que considerasse a objetividade como sendo possível apenas em termos de posicionamento. É certo que ela estava usando a ironia e estava falando claramente do feminismo, de uma metodologia feminista. O comentário de um segundo aluno (da área de Psicologia Social) mostrou que talvez o que estivesse incomodando fosse justamente isso. Como pensar uma metodologia de pesquisa objetiva quando se fala do lugar da militância política? Este aluno da Social começou sua crítica ao texto de Haraway dizendo que ele parecia “uma ode ao feminismo”. Em resposta, o aluno da Psicanálise disse que o problema para ele é que o texto tinha sido escrito antes de ele nascer, em 1989, e, portanto, ele não entedia nada daquilo. 12 Joan Scott, “Experiência”. IN IN Silva, Lago e Ramos, Falas de Gênero. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 1999, pp. 21-55.
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Sem dúvida, tratava-se de uma brincadeira, porém eu já estava irritada com todos aqueles comentários e respondi ao aluno da psicanálise que considerava o que ele havia dito como sendo uma provocação. Quer dizer, então, que eu podia dizer também que não entendia nada da segunda guerra mundial porque tinha nascido em 1946, logo depois que a guerra tinha acabado? Perdi realmente a paciência com esse aluno e só aos poucos fui me acalmando, com a ajuda de outro aluno, mais velho, que apontou para trechos do texto de Haraway onde ela parecia mesmo estar brigando com Reagan e a ciência tradicional, masculinista, dos Estados Unidos. Um desses trechos diz que ela se sentia paranoica em relação a essas produções. Um terceiro aluno, tentando acalmar a discussão, alegou que aquele era um texto publicado em 1988. Desde então, muita coisa tinha mudado e hoje o que está escrito ali talvez não tivesse a mesma importância. Em resposta a essa impertinência, li uma parte de nossa entrevista13 em que Haraway afirma: Tudo que tentei dizer neste ensaio-entrevista é uma resposta à sua indagação sobre onde os “saberes localizados” estão agora, depois de as relações de parentesco entre cyborgs e “espécies companheiras” se tornaram inevitáveis para as feministas, ou pelo menos para mim e o “nós” formado por essas questões. Aberta e vulnerável, capaz de espanto e invenção, faminta em aprender como herdar o fardo terrível dos genocídios, extermínios e extinções sem repeti-los numa necessidade de me tornar inocente e pura—essas são minhas preocupações agora, assim como eram na década de 1980. Mas agora tenho uma bela cachorra para me acompanhar em veredas que ela poderá achar mais promissoras... (2011: 408-409). Enfim, fui me acalmando, e, na aula que se seguiu àquela, desculpei-me por ter perdido a paciência, impedindo, assim, uma discussão mais amena, que possibilitasse mostrar a questão política envolvida com o feminismo e a importância do posicionamento. Confirmei que Haraway era, sim, apaixona-
13 “Companhias Multiespécies nas Naturezaculturas: uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo”, IN Maria Esther Maciel, pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (Florianópolis: Editora da UFSC, 2011, 389-417).
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da pelo feminismo e ela achava que aquele texto podia ser, sim, uma “ode ao feminismo”. Avaliando agora toda a situação, tendo já se passado alguns meses das aulas de Metodologia, acho que, embora minha reação intempestiva e apaixonada tenha, sim, criado uma atmosfera tensa em que perdemos a oportunidade de ter uma discussão mais promissora sobre a introdução do político nas práticas de pesquisa em psicologia, a experiência foi positiva, especialmente em relação aos trabalhos que recebi. Ainda que cerca de ¾ da turma da psicologia social tenha escolhido o texto de Minayo para tomar como base para o trabalho, produzindo trabalhos pouco interessantes, houve estudantes que escolheram os textos de Haraway, Geertz e Horkheimer, escrevendo trabalhos muito bons sobre a questão do posicionamento e da transformação da sociedade. Entre esses/as estudantes havia alguns homens, não apenas mulheres. Isso serviu de alento ao difícil embate que tive com os homens da turma, na discussão sobre o texto de Haraway. Logo no início de seu texto, Minayo escreve que “[p]ara problemas essenciais, como a pobreza, a miséria, a fome, a violência, a ciência continua sem resposta e sem propostas” (2010: 9-10). Essa não é a ciência que queremos construir na psicologia. Queremos uma ciência que através do posicionamento tenha propostas para enfrentar esses problemas. É preciso uma ciência visionária, como diz Haraway, e não uma ciência sem propostas.
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Fernando Silva Teixeira-Filho2 Nayara Lima Longo3 Juliane Campos de Souza4
Introdução Este trabalho, fruto de projeto de iniciação científica financiado pela FAPESP (05/03663-4 e 05/03662-8), buscou averiguar como representações de gênero se expressam no cotidiano das práticas de cuidados e educação desenvolvidos por monitoras, funcionárias e coordenação de uma instituição filantrópica junto a crianças e adolescentes em um município do interior do Estado de São Paulo. Para tal, fizemos uma relação entre os dados colhidos por meio de entrevistas e observações de campo. A intenção aqui é problematizar o sentido destas representações, demonstrando que estas são produzidas a partir de determinada configuração de poderes de um espaço e tempo. Desta maneira, como faremos ver, será possível denunciarmos os essencialismos que as compõem, o modo como funcionam na produção e manutenção das mais variadas formas de exclusão e violência. O disparador das reflexões desta pesquisa deu-se a partir de nossa participação em um projeto de estágio5, o qual tem como premissa que os sujeitos se 1 Este artigo é derivado do Projeto de Iniciação Científica, denominado “Gênero e suas expressões nas práticas institucionais”, financiado pela FAPESP em 2006, processos: 05/03663-4 e 05/03662-8 2 Prof. Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Assis 3 Psicóloga formada pela UNESP, Campus de Assis. Bolsista FAPESP – Processo: 05/03662-8 4 Psicóloga formada pela UNESP, Campus de Assis. Bolsista FAPESP – Processo: 05/03663-4 5 Trata-se do projeto de estágio/extensão denominado Corpo-afecto e sexualidade no trabalho com Educação Sexual, desenvolvido junto ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP, Campus de Assis, SP
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constituem no interior de práticas e discursos, sendo compostos e construídos em processos, em linhas de subjetivação e a partir de dispositivos estratégicos, tais como os da sexualidade tal qual problematizado pelo filósofo Michel Foucault ao longo de sua obra. Assim, tal estágio foi desenvolvido em um estabelecimento de cunho assistencial-filantrópico de atendimento à infância e adolescência, localizado em um bairro de baixa renda de um município do interior do Estado de São Paulo. Neste local, desenvolvíamos um trabalho institucional com crianças, adolescentes e funcionárias/o, tentando problematizar e articular questões referentes à sexualidade. Neste contexto, percebemos que as representações de gênero que por ali circulavam eram fator indispensável para refletir sobre as práticas daquele estabelecimento em relação ao dispositivo da sexualidade e ao gênero. Porém, não apenas com relação às práticas ligadas diretamente à sexualidade, como também aos modos de organização, ação e produção cotidianas que ali ocorriam. Tomados, então, por estas questões, decidimos investigar quais as linhas que estavam compondo as representações de gênero naquele estabelecimento, tentando articular estas concepções com as práticas que ali se desenvolviam. Para tal, passamos a problematizar os discursos e práticas de cuidados exercidos por funcionários/as, monitores/as e coordenadoras junto às crianças e adolescentes acolhidos por este estabelecimento.
“Gênero? Mas o que é isso?” Sempre quando colocávamos a noção de gênero como uma linha sobre a qual se desenrolaria nossa pesquisa, deparávamos-nos com as seguintes perguntas das participantes:”Gênero? Mas o que é isso? Vocês estudam, então, as diferenças entre homens e mulheres?” A questão já era imediatamente colocada em um”plano molar6”de constituição da subjetividade (GUATTARI, ROLNIK, 1996), isto é, onde as formas e sujeitos já estavam constituídos e devidamente identificados. 6
Para os autores, a subjetividade se compõe a partir de dois planos: o molar, que é da ordem do visível, ou seja, dos modelos, das identidades, das estruturas, das normas, dos gêneros; e o plano invisível, que é o plano dos fluxos de desejo que engendram diferentes formas. Deste modo, o plano molar é o plano formal, da consciência, das representações e do imaginário. Neste plano, as fronteiras são definidas e reificadas cronológica e espacialmente.
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Gênero e suas expressões em um contexto educacional e de atendimento à infância e à adolescência em uma cidade do interior paulista
Assim, temos que sistemas de representações, constituídos no bojo de relações de poder, operam na tentativa de ligar corpos a identidades estáveis, fixas e imutáveis. A partir disto, são produzidas ideias do que é ‘ser mulher’ e do que é ‘ser homem’. Caracterizam-se pela tentativa de ordenar multiplicidades, ligar corpos a uma suposta essência, transformando-os em”passageiros de identidades fictícias”(SWAIN, 2005, p. 327). Ao contrário, gênero relaciona-se com a perturbação destas formas e identidades que tentam circunscrever territórios e modos de habitar o mundo. Assim, gênero deve ser considerado a partir de uma lógica relacional, isto é, produzido nas relações sociais, pela exaltação de determinadas diferenças e ocultamento de certas semelhanças (BORDIEU, 1999, p. 8). Deste modo, a categoria gênero permite questionar a classificação de corpos em masculinos e femininos, evidenciando a arbitrariedade desta divisão binária. Operar com esta noção, portanto, exige que consideremos seu caráter marcadamente histórico, retirando do debate os enfoques biológicos de cunho determinista. Neste sentido, o sexo biológico “deixa de ser significante geral que abriga o binário sexual e passa a ser igualmente signo produzido no próprio seio do agenciamento social”(SWAIN, 2005, p. 333). Como afirma Louro (2004, p. 75-76),”características dos corpos significadas como marcas pela cultura distinguem sujeitos e se constituem em marcas de poder”. Neste sentido, estas representações, muitas vezes, servem naturalizam efeitos de exclusão e dominação presentes nas relações sociais. Entendendo aqui representação como: Práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (WOODWARD,2000:17).
Para nós, psicólogos/as, trabalhar com a categoria gênero permite, desta maneira, mapear processos de constituição de representações que regulam modos de classificação e hierarquização de corpos a partir de sua anatomia e traços.
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Algumas linhas do processo da pesquisa Construindo o lugar Trata-se de uma casa grande, com amplo espaço ao ar livre, fundada por senhoras católicas há 50 anos, que atualmente trabalham com cerca de 200 crianças com idade entre 2 e 12 anos em regime de contra-turno. Tem na coordenação freiras de uma Ordem católica. Contrariando as expectativas, temos que as freiras se mostraram bastantes disponíveis à nossa atuação junto às crianças. O principal ponto de resistência encontrado foi com o grupo das educadoras. A intervenção Para os objetivos deste trabalho realizamos, em um primeiro momento, observações etnográficas que nos permitiram maior intimidade com as rotinas, os trâmites e as práticas cotidianas daquele estabelecimento. A partir dos dados oriundos das observações, elaboramos entrevistas semi-estruturadas divididas em três blocos de perguntas. Os participantes foram divididos em grupos de três a quatro pessoas, mediados por duas pesquisadoras. Conversamos com todas as pessoas que trabalhavam no estabelecimento, sendo que, das dezoito pessoas entrevistadas, apenas uma era do sexo masculino. Os grupos foram organizados de acordo com a disponibilidade de horários e o cargo ocupado pelos participantes. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos depoentes.
Identidade: breves apontamentos Temos que a identidade só adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas (WOODWARD, 2000, p. 8). Como nos lembra Silva (2000, p. 96-97): “A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo.(...) é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. (...) está ligada a estruturas discursivas e narrativas.”
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Desta forma, contra a ideia de uma concepção unificada de identidade, devemos pensá-la como produto e produtora de relações de poder, sendo este último aqui compreendido na sua positividade, como produto/produtor de um determinado plano de realidade em um tempo e espaço (FOUCAULT,1979). Com isso, a partir dos apontamentos anteriormente colocados, tentaremos agora empreender uma discussão/interpretação dos dados a partir de excertos retirados das observações etnográficas e das entrevistas. Deste modo, buscamos contribuir para a reflexão sobre como tendem a se dispor as forças constitutivas dos processos de produção de gênero neste estabelecimento.
Representações acerca de homens e mulheres Destacamos alguns excertos das entrevistas, dividindo-os em tópicos que nos parecem significativos para ilustrar as demarcações do masculino e do feminino traçadas pelos entrevistados: “Cada um tem seu papel” [...] mulher não é mulher? Homem não é homem? Eu não posso ser mulher, eu posso ser mulher? Não posso ser mulher. A vida diferencia isto. [Hóracio7 - Auxiliar de serviços gerais] (sic) [...] Desde pequeno a gente nota na criança a diferença entre meninos e meninas. [Tamires - Diretora] (sic) [...] Ah! Porque os homens fazem isto, a mulher também vai. Nada disso! Mulher tem que fazer papel de mulher e o homem papel dele, de homem. Cada um tem o seu papel. [Tamires - Diretora] (sic)
Como se pode perceber pelos exertos acima, há uma clara demarcação (imaginária) das fronteiras de gênero, isto é, através dos discursos dos entrevistados percebemos identidades de gênero nitidamente demarcadas, funcionando como estruturantes de posições de sujeito no mundo. Há uma tendência por parte dos entrevistados a se pautar em uma visão essencialista, geralmente embasada
7 Todos os nomes dos participantes são fictícios
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pela Biologia dos corpos, que concebe o masculino e o feminino como opostos: São diferentes no biológico [referindo-se a homens e mulheres], eles são diferentes. Nas brincadeiras que eles têm...entre outras coisas. [Sabrina - Educadora]
É interessante salientar aqui como a identidade também é marcada pela diferença. Como coloca Silva (2001, p. 76): (...) identidade e diferença são mutuamente determinadas. (...) seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo pelo qual tanto a identidade como a diferença (compreendida aqui como resultado) são produzidas.
A identidade de gênero é construída por meio de oposições binárias: ser mulher é não ser homem. Essas oposições acabam por determinar hierarquizações, uma vez que “a relação entre dois termos de uma oposição binária envolve um desequilíbrio necessário de poder entre eles”. (DERRIDA apud WOODWARD, 2001, p. 50). Ou seja, aprendemos a pensar dentro de uma lógica dicotômica, concebendo masculino e feminino como polos opostos; diferença sempre marcada pela superioridade de um dos elementos em relação ao outro. “Pelo amor de Deus, isto é coisa de moleque!” Uma das mais clássicas demarcações entre estes polos é a que associa a mulher a um “ser”de sentimento e o homem a um “ser”de razão. Como afirma Birman (2001, p. 56): “a cartografia moral da diferença sexual reside entre os polos da natureza e da civilização”. E isso pareceu-nos tão mais verdadeiro quando escutamos de uma de nossas participantes da pesquisa a seguinte explicação acerca das diferenças entre homens e mulheres: [...] Pode ver que a maioria de coisa de matemática, computador, videogame... o homem... eu acho que ele é mais rápido que mulher em relação a isto. Mulher é mais delicada, né? [Renata - Educadora] (sic)
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Sendo a mulher situada no polo da natureza e do sentimento, há uma tendência a situá-la como sensível, frágil e doce, como podemos perceber, algumas vezes, nos discursos dos entrevistados: Ah, sei lá. Mulher é mais delicada né? Geralmente homem é mais grosseiro. Mas queira ou não, o mundo deixa esta imagem pra gente: que mulher é mais delicada e o homem mais grosseiro. A menina que gosta de falar, né? Menina que fala muito palavrão? Pelo amor de Deus! Isto é coisa de moleque!. [ Renata - Educadora ] (sic) Os meninos são um pouco mais agressivos, eu acho, nas brincadeiras.[Fábia -Educadora] (sic)
Paradoxalmente, por outro lado, paralelo à ideia de fragilidade e sensibilidade da mulher, percebemos, de maneira enfática, a tendência em situá-la como mais forte emocionalmente: O sexo [Eleva a voz], né? No sexo é diferente, na força é diferente. Na força que eu falo é na força física. Mas na força da dor, a mulher é muito mais forte, né? Ela aguenta muito mais. Eu acredito que são diferentes mesmo. Mais diferentes nisso... Mas nos direitos, pra mim são iguais”. [Vânia - Diretora] (sic) É a mulher quem segura a barra.[Fábia - Educadora] (sic) Tem que enfrentar todos os problemas, até os do marido. Então, haja cérebro! Haja mente! Haja tudo. [Joana - Educadora] (sic) Você compara uma mulher quando fica doente com um homem quando fica doente... a mesma coisa [a mesma doença]: o homem se entrega. A mulher não! [Fábia – Educadora]. (sic)
A ideia da mulher como sendo mais forte emocionalmente, talvez se vincule ao ideal de maternidade proposto para a mulher. É o que desenvolveremos no próximo item. Mãe do pai, mãe do marido, mãe do filho Tomar a mulher por suas características biológicas fornece elementos para associações que, em geral, remetem à ideia da maternidade e adjetivos a ela
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relacionados. Encarnada nesta ideia de maternidade, novamente encontramos como características do ser mulher a primazia dos afetos sobre a racionalidade (BIRMAN, 2001). Não é surpresa, portanto, nos depararmos com afirmações como estas: Já nasce, é uma obra de Deus, desde que foi a vez de Maria e tudo (referindo-se ao instinto materno). E é aqui... é mesmo ter instinto materno”. [Silvana - Educadora] (sic) Tanto que uma boneca elas cuidam como se fosse uma criança. Menina com a boneca já põe o peito. É umas brincadeiras bem assim mesmo. Eu concordo com essa afirmação. A mulher já nasce com o instinto materno. [Fábia - Educadora] (sic) Por que se a mulher não nasceu com este instinto materno, vai virar o quê? Não vou nem falar que é bicho, porque bicho tem mais instintos ainda que o ser humano. [Joana - Educadora] (sic) Ah, eu acho que tem [refere-se ao instinto materno]. A mulher... porque eu vejo as meninas ali, de quatro anos, às vezes elas pegam as bonecas delas e colocam no peito como se estivesse dando de mamar pra uma criança. Então, a gente vê que ali, ela é muito pequenininha sabe? O menino fica assim... às vezes até olham a criança, mas não é da mesma forma que a mulher, sabe? Eu acho que já tem ali, desde pequenininho, já tem assim aquela vocação pra ser mãe, sabe? É a impressão que eu tenho. [Amanda - Educadora] (sic)
No entanto, a maternidade, no relato da maioria das entrevistadas, vincula-se ao sofrimento e à sobrecarga de atividades. Vejamos: [...] Então, é isso daí mesmo, eles depende muito da gente pra tudo e a gente acaba né, sendo aquela mãezona né, mãe do pai, mãe do marido, mãe do filho até, às vezes, mãe da mãe da gente, né? Eles cobram muito da gente. [Sabrina - Faxineira] (sic)
Birman (2001, p. 60-63) argumenta que a inserção destas ideias no imaginário coletivo deu-se como uma estratégia do biopoder. Este conceito, cunhado por Michel Foucault, refere-se às estratégias de controle dos indivíduos e da
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população advindas com a modernidade (RABINOW, 2006). O poder agora é exercido sobre a vida, uma vez que a “qualidade de base do capital humano seria (...) a condição de possibilidade para a produção e reprodução do capital econômico”. (BIRMAN, 2001, p. 61). Uma das estratégias deste biopoder foi o surgimento da família nuclear, emergente no século XVIII e organizada em torno da criança. A partir daí, portanto, acontece uma redistribuição do papel da mulher, do homem e da criança. Com um novo ‘status’ adquirido a partir do século XV (ARIÈS, 1981), a infância agora é considerada etapa particular do desenvolvimento, exigindo, portanto, cuidados específicos. Alguém teria que se responsabilizar pelas novas demandas produzidas sobre a figura da criança. Desta forma, através dos discursos médico, religioso e econômico o corpo da mulher é tomado por seu potencial reprodutivo (BADINTER, 1985). Há um forte investimento discursivo em torno do corpo da mulher, delegando a esta o papel da maternidade, responsabilizando-a pela governabilidade do espaço privado e da família. Nesta perspectiva, o espaço doméstico foi diferenciado da esfera pública do trabalho e definido como um lugar majoritariamente feminino. Acho que assim; tipo, num casamento: a mulher, ela pode optar entre querer trabalhar ou não. [Renata - Educadora]. (sic) Não, mas lá em casa é eu que... eu que sou a forte. Lá em casa é eu que falo alto, o (marido) não. Lá em casa eu sou estourada. O que eu falar tá certo. Se eu falar que não, não, não. Se eu falar que sim, sim é sim. E não dianta não porque aí o pau quebra mesmo, né? Então, é... em casa sou eu que dou as ordens... [Laura - Auxiliar de cozinha]. (sic)
Ainda assim, de maneira crítica, as entrevistadas pontuaram a exclusão feminina do espaço público, destacando a hierarquização entre homens e mulheres no mercado de trabalho, na família, nas formas permitidas de manifestação da sexualidade e na distribuição das atividades cotidianas. E a mulher, né? Sai um boato de que ela fez alguma coisa... Casada, então? Uma mulher casada trai o marido? Cabou. Não arranja marido mais.Vixi. E ele, quanto mais melhor, né? Se ele
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tem duas, três, quatro, cinco, já é o bambambam e quer mais ainda. Não sei se é desvantagem ou vantagem, mas que ele leva a fama boa e pode fazer o que quer. Pra salário, geralmente homem ganha mais que mulher. Mulher entrando na política. Por quê? Igual, motorista. Deu maior bafafá na cidade porque tava só contratando mulheres pra trabalhar. [Renata - Educadora] (sic)
Apesar disso, percebemos que mesmo gerando conflitos, lugares específicos para homens e mulheres continuam sendo reproduzidos. O que a maioria dos relatos permite evidenciar é como determinados modos de subjetivação se colocam como verdades universais, gerando intensas ressonâncias e naturalizando modos de experienciar e estar no mundo.
Práticas e interferências: Condutas e formas de relacionamentos para meninas e meninos Podemos vislumbrar até aqui como e quais são as representações sobre homens e mulheres em geral. Agora discorreremos sobre como estas concepções articulam-se com o modo como os participantes conduzem as relações entre meninos e meninas no interior de seus discursos e práticas profissionais. Tem menina aqui que parece moleque! É frequente nas falas, principalmente das educadoras, uma inclinação a situar as meninas como criaturas frágeis e doces que devem ser protegidas dos meninos que, por sua vez, são tidos como agressivos e violentos. Desta forma, configura-se uma autorização para a manifestação da agressividade no menino, estimulada a todo o momento, enquanto que na menina esta expressão seria reprimida: Ah, eu falo porque quando os meninos têm uma tendência, pelo menos os meus né? Até hoje todos os que eu tive, tem umas sementes que são um pouco... Umas brincadeiras mais agressivas e aí eu falo: ‘Manera nas brincadeiras’. Pra que eles não machuquem a menina que, geralmente, são mais delicadas em relação a força né? E é a única coisa, recomendação que eu dou. [Renata – Educadora] (sic)
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Eu acho que os meninos, ainda mais lá na minha classe, eles são mais violentos que as meninas. Então eu tenho medo, de um acertar... de um acabar machucando o outro[...] Porque as meninas são assim mais delicadinhas, no jeito de brincar. [...]. Tem menina que parece moleque. Claro, tem menina que gosta de subir mais do que moleque, mas é raro, é mais difícil. [...] Outro dia veio uma menininha aí, ela ficou um dia só, mas ela se deu tão bem com um menininho, e o menino era triste, sabe? Ele não pára. E ela se deu tão bem com ele: parecia que os dois já se conheciam há muito tempo; fizeram a maior amizade e brincaram o tempo todo junto os dois. Eu achei bonitinho.Tá vendo? Não é uma regra. Você falar: “não, o menino não vai se dar bem com a menina de jeito nenhum”. Não é assim! Mas também a gente tem que tomar cuidado, de repente numa dessas eles brigam ali e machucam. A menina lá pequeninha. As menininhas vivem sendo machucadas pelos moleques porque eles são estúpidos. [...]. Dá medo! Então tem que separar um pouco. [Amanda - Educadora] (sic) Peço pra que não faça mais isso. Eu falo que o menino pode machucar a menina, que elas são menores ou que são mais quietinhas, pra que eles não façam isso, que brinquem entre eles e que deixem elas brincarem do jeito delas. Meio que dou um jeito de dar uma separada nos dois. [Amanda – Educadora] (sic) Às vezes, dependendo da brincadeira, se a gente vê que não é uma brincadeira agressiva a gente pode falar que as meninas também podem brincar. Mas eles mesmos direcionam, virou um clube, né? [Fábia - Educadora] (sic)
ela faz coisa de menino? Às vezes, transparecem, nas declarações, conflitos com as normas de gênero propostas no plano social, que ora provocam questionamentos, ora despertam complacência: Jogar futebol com os meninos. Então, isso parece uma coisa, sei lá. O mundo coloca isso pra gente, que isso é coisa de homem. Então... Ela faz coisa de menino? Não sei. [Renata - Educadora] (sic)
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Porque um dia a menininha trouxe uma maquiagem e tinha três moleques brincando com ela e querendo passar a maquiagem, querendo passar batom... e passaram, sabe? Então, a gente fica naquela pergunta: deixa ou não deixa? Porque desde muito pequeno a gente falou: “Ah, quem passa batom é mulher”, né? E, de repente você fala assim. Aí o menino passa. Dái você fala: ‘Não, mas isso é de mulher’. E ele questiona: ‘Mas porque eu não posso?’ [Amanda - Educadora] (sic) E ele é lindo (referindo-se a um menino) E a gente tava montando a coreografia country e daí, no final, as meninas fazem uma pose e ele me para do lado e faz [igual às meninas]. Um sarro. E ele ficou lindo. Todo assim. [levanta e faz gesto com corpo], sabe assim? [Daniela – Educadora] (sic)
No entanto, cabe salientar que, especialmente nas observações que realizamos, evidenciou-se que as práticas das educadoras delimitavam claramente lugares distintos para meninos e meninas, como poderemos notar nas observações destacadas a seguir: (Observação nº. 05): A educadora pergunta se o menino quer carrinho. Em seguida, dirige-se a uma menina que observava a brincadeira dos meninos e pede que ela se afaste dos meninos, dizendo: “Aí são os meninos, deixe os meninos brincarem aí. Fique aqui (na mesinha)”. A educadora propõe jogo de massa de modelar a uma das meninas. Chama uma menina que estava envolvida no carrinho com os meninos para brincar também. (Observação nº 07): A educadora permanece sentada observando. Fala “Q., Z., (ambos meninos) vem pra cá. As meninas estavam brincando bonitinho de casinha aí”. (As meninas estavam em um canto separado, há apenas um menino entre elas). Mais tarde, esta educadora organiza duas filas, uma de meninos e outra de meninas. (Observação nº 04): A educadora inicia uma brincadeira de roda, apenas com meninas. Um menino diz que quer tomar lanche e ela lhe diz: “Fique lá que nós já vamos”. Ele não é convidado a brincar de roda e permanece com o livro 152
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de historinhas. Algumas meninas ficam em volta da educadora. Uma delas reclama de um coleguinha. A educadora diz: “Brinca com elas, olha quanta menina para você brincar”. (Observação nº 14): A professora faz duas rodas de crianças na sala. A roda das crianças mais novas se divide entre meninos e meninas. Uma das meninas diz que não quer fazer a atividade com os meninos. Educadora olha para ela e se cala. A menina diz que não quer fazer com os meninos e sai da roda. A educadora diz que tudo bem. (Observação, nº 20): Educadora diz pra menina: “Olha só, na terra não pode brincar muito. Ainda mais vocês, que são menininhas. Na areia tem xixi de gato. Só pode brincar um pouquinho”. As crianças fazem uma fila mista. A educadora pega três meninas que estavam no começo da fila e as coloca do lado e diz: “Aqui que é de menina”, colocando-as numa fila de meninas, e todos vão para o parque. No parque, educadora fala para uma menina: “Chame outra menina para brincar com você de mamãe e filhinho”. “Que força, você está ficando forte, né J?”, a educadora fala para um menino que estava no balanço. A partir destas observações, demonstra-se o quanto as virtualidades do brincar acabam por serem envoltas em regras e sanções culturalmente demarcadas por gênero. Assim, explica-se, incentiva-se, ou não, uma brincadeira em função do sexo da criança, restringindo e empobrecendo suas possibilidades de criação e atuação. É o que acontece quando a educadora oferece carrinho para o menino e sugere que menina brinque de “mamãe e filhinho”. Nesse sentido, Moreno (1999, p. 32) diz que “em suas brincadeiras, as meninas têm a liberdade para serem cozinheiras, cabeleireiras, fadas madrinhas, mães que limpam seus filhos, enfermeiras, etc., e os meninos são livres para serem índios, ladrões de gado, bandidos, policiais, ‘super-homens’, tigres ferozes ou qualquer outro elemento da fauna agressiva”. 153
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Desta maneira, os sujeitos são incitados a identificarem-se com os modelos de conduta destinados a seu sexo biológico, ou como nos ensinará Butler (2003), as pessoas são incitadas a performarem os gêneros, adequando seu comportamento ao seu sexo biológico. Tal performance, todavia, não se dá conscientemente, por vontade própria. Pautada nas teorias de Austin sobre a perfomatividade dos atos de fala, o filósofo Jacques Derrida irá dizer que um ato de fala só adquire “valor de realidade” por conta de dois processos: iterabilidade e pela citacionalidade. Isto é, são constantemente repetidos e reificados historicamente pelo falante que os enuncia. Pautada nestes pressupostos, a filósofa Judith Butler afirmará que o gênero processa-se a partir das performances em equivalência ao que afirma Austin sobre os atos de fala. Desse modo, A forma como se usa a linguagem, criando um discurso coercitivo em relação ao gênero, é performática porque produz uma realidade, criando limites e regras para sua expressão. Simultaneamente, garante o caráter performático do próprio gênero, pois este se cria ao mesmo tempo em que é normatizado. Referindo-se ao conceito de interpelação de Louis Althusser, Butler afirma que o gênero começa a ser regulado desde que se anuncia que um bebê é “menino”ou “menina”. Afinal, esse anúncio determina uma cadeia de atos que visam a moldar o gênero e a forma como o indivíduo viverá sua sexualidade. Haverá controle sobre o tipo de roupas que a criança poderá usar, as cores, os brinquedos, etc. (BENTO, s/d, p. 2)
Como vimos, a performance é produzida na linguagem e por ela engendra-se nos corpos, construindo neles o gênero, o sexo. É importante salientar a omissão das educadoras frente às divisões de gênero muito evidentes. Passa-se, de maneira naturalizada e maciça, à “preferência”de meninas pelas bonecas, bolsinhas rosa, batons e afins, para a dos meninos com seus carrinhos, espadas e aviãozinho. As educadoras, assim como algumas funcionárias, esboçam em alguns momentos das entrevistas uma tentativa de problematização deste fenômeno, mas que não interfere em suas práticas. Auad (2006, p. 51), seguindo os passos de Bordieu, informa-nos que para ele: “a masculinização dos corpos masculinos e a feminização dos corpos femininos opera-se com a sistematização do livre- arbítrio cultural”. 154
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Produções e a relação com a dissidência à norma A partir das entrevistas e observações realizadas percebemos que discursos e práticas que circulam cotidianamente neste estabelecimento acabam por reiterar uma lógica falocêntrica hegemônica. São poucas, difusas e quase inexistentes as vozes que instituem movimentos que fujam deste sistema binário e falocêntrico de organização dos corpos a partir do binômio sexo/gênero. A classificação de pessoas e situações em termos binários (norma), baseados em expectativas sobre identidades de gênero, funciona como fator que ordena as fronteiras do normal, do desejável e a do excluído ou do incluído neste estabelecimento. Os envolvidos na instituição, em sua maioria, tomam o que não corresponde ao ideal binário (menino/masculino, menina/feminino) como fator de questionamento, de ‘tolerância’ pelo diferente, ou mesmo de gracejos. As opiniões variam, por vezes, entre uma visibilidade que vem para classificar os sujeitos e uma invisibilidade por omissão (negando a existência do que é considerado diferente ou, por exemplo, não problematizando as atitudes que fujam daquilo que seria esperado). Uma norma heterossexual, branca e masculina é tomada como a referência que não precisa ser nomeada. Conforme Louro (2001, p. 16): (...) serão os outros sujeitos sociais que se tornarão marcados, que se definirão e serão denominados a partir desta referência [...]. Ao classificar os sujeitos, toda sociedade estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar as identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas, também distingue e discrimina. [...] todas estas práticas e linguagens constituíam e constituem sujeitos femininos e masculinos; foram – e são – produtoras de marcas. Homens e mulheres adultos contam como determinados comportamentos ou modos de ser parecem ter sido ‘gravados’ em suas histórias pessoais.
Assim, temos que esta instituição, foco de nosso estudo, não apenas reproduz identidades de gênero instituídas no social, como também as produz através de suas omissões e incentivos. Como já colocado por Moreno (1999, p. 68), a escola [contextos educativos] representa uma importante instituição para o desenvolvimento de padrões de organização das condutas e das atividades de gênero. 155
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Sendo esta instituição um lócus espaço-temporal e sociocultural onde as crianças vivenciam situações de interação, podemos situá-la como produtora e (re)produtora das identidades de gênero que circulam no social. Desta maneira, discursos engendrados nas práticas institucionais constroem e reconstroem um recorte especifico da realidade. Discursos que estruturam práticas que, em sua maioria, reforçam a exclusão e patologizam as condutas de crianças e adolescentes que não correspondem aos parâmetros definidos pelos entrevistados como legítimos para serem transmitidos. Concordamos com Gomes (2005, p. 128) quando esta afirma que: Todos os contextos educativos, [...] constituem-se como espaços gendrados, pois buscam formar, definir e produzir sujeitos por meio de práticas discursivas e não discursivas que reproduzem e sustentam hierarquias de gênero, segundo a lógica binária homem/masculino versus mulher/feminino.
em busca de modos de inventar o mundo Como normas são invenções sociais (LOURO, 2004, p. 89), gostaríamos de pontuar aqui a necessidade de desmantelamento de todo esse aparato que, ao enrijecer as identidades, funciona como fator de hierarquização e de desigualdades entre os seres humanos. Para tanto, torna-se necessário reconceituar as identidades como efeito, como produção, abrindo assim espaço para o devir, para a multiplicidade. Louro (2003, p. 51) convoca educadores e educadoras para esta tarefa: Talvez seja mais produtivo para nós, educadoras e educadores, deixar de considerar toda esta diversidade de sujeitos e práticas como um problema e passar a pensá-la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, exige uma lógica mais complexa. Precisamos, enfim, nos voltar para práticas que desestabilizem e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade do centro e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as posições.
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Pensar a partir do gênero como categoria útil de análise (SCOTT, 1995) implica em questionar o falocêntrismo de nossa cultura, percebendo que os modelos identitários oferecidos para meninas e meninos são autoritários e castradores das potencialidades humanas. Rago (2003, p. 485) assim questiona: “Trata-se de problematizar as próprias práticas cotidianas de normatização, produzidas no contexto de uma pedagogia autoritária pautada pelo medo e pelo ressentimento”. Neste sentido, é tarefa da escola [contextos educativos] abrir “espaço para a manifestação livre da subjetividade e para criação de práticas de liberdade, liberando, pois, anarquicamente a ação e a expressão”[...]. (RAGO, 2003, p. 488). Assim, esperamos que este trabalho sirva, ainda que minimamente, para problematizar os binarismos normativos e fomentar práticas de transformação da realidade junto aos educadores, suscitando-lhes reflexões e problematizações sobre a necessidade de criação de novos e diferentes modos de habitar o mundo.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
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Queering e as Práticas “Psis”
Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes Juliana Helena Faria
O presente artigo traz como referência inicial para problematização os dados de atendimentos realizados no Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) do município de Ourinhos-SP, instituição pública implantada a partir da consolidação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), a qual deve ofertar serviço de proteção especial de média e alta complexidade, dentre eles o Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual Infanto Juvenil. Neste CREAS, dentre os 347 casos de violência sexual vivenciada por crianças e/ou adolescentes atendidos no período de cinco anos, entre 2006 e 2011, foi possível constatar que não houve nenhum caso em que a violência tenha sido perpetrada por uma mulher. Podemos considerar que houve algumas situações de cumplicidade da mulher, nas quais esta não revelou o abuso e, portanto, fez parte do pacto de silêncio estabelecido pelo agressor. Destes 347 casos atendidos, 171 crianças foram abusadas por alguém de sua própria família. A Violência Sexual Intrafamiliar Vivenciada por Crianças e Adolescentes (VSIVCA) sempre foi especialmente tratada como tema tabu, para além das questões biológicas, principalmente por ser esperado pela sociedade ocidental burguesa, desde o século XVIII, que pais e mães “cuidem bem” de seus filhos (BADINTER, 1985, FERRARI, 2002), e isso implica em dizer: que não tenham relações sexuais com eles, razão pela qual foi escolhida a especificidade da violência sexual intrafamiliar como foco de atenção neste estudo. Serão foco de problematização também as ações do Estado diante das denúncias dos casos identificados. Diante de tais dados evidencia-se uma correlação entre gênero e violência, gênero e violência sexual, gênero e diferença geracional, categorias de análise
SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
a serem consideradas neste artigo. De acordo com Louro (1996, p. 16-19), “gênero aponta para a noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres [...]” por meio de complexos jogos de forças que se inserem atualmente através dos meios de comunicação, dos brinquedos, da literatura, do cinema, da música, da escola que de forma sutil tem naturalizado a feminilidade e a masculinidade, produzido desigualdades e discriminação de sujeitos devido à relação entre gênero e diferenças de idade, classe social, etnia, orientação sexual, religião, aparência física entre outras categorias de análise. Ressalta-se portanto a necessidade dos/as profissionais da Psicologia estarem atentos/as para que as práticas e os afetos dirigidos às situações de VSIVCA não se tornem reducionistas e que não se perca de vista as violências estrutural e de gênero que permeiam essas relações. Ou seja, as “manifestações da violência, infligida por instituições clássicas da sociedade e que expressa, sobretudo, os esquemas de dominação de classe, grupos e do Estado” (NETO; MOREIRA, 1999, p. 34). É importante que se atente às violências que ocorrem no plano das relações familiares, que se dirigem contra outro sujeito, contra seu corpo ou contra o seu existir social, num processo constante de assujeitamento. Pretende-se, a partir destes dados de atendimento, refletir sobre quais as ações de proteção o Estado tem garantido ao se deparar com as denúncias de VSIVCA, além de problematizar se este tipo de violência perpetrada predominantemente por sujeitos do sexo masculino é resultado de uma patologia individual ou efeito de uma sociedade adoecida em sua difusão androcêntrica1 e adultocêntrica2. Para analisar os modos de produção da opressão que ocorre no interior das famílias será considerado o processo sócio-histórico de formação e modulação destas, e também as violências produzidas a partir da diferença de idade, assim como os dispositivos da sexualidade, de controle e regulação dos corpos, que permeiam os processos de normatização e autorização no que se refere à sexualidade infantil. 1 “O androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como o centro do universo, como a medida de todas as coisas, como o único observador válido de tudo que ocorre em nosso mundo, como o único capaz de ditar leis, de impor a justiça, de governar o mundo” (MORENO, Montserrat. Como se ensina a ser menina: o sexismo na escola. Trad. Ana Venite Fuzatto. São Paulo: Moderna, 1999, p. 23). 2 As relações adultocêntricas são assimétricas pela imaturidade biológica da criança e sua dependência em relação ao adulto, que a vê como objeto de sua propriedade (RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Jiruá, 2002). 162
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Produção do mito da família A partir do que é estabelecido pelo Biopoder3 e suas regulações bio-políticas, pretendo apresentar a produção e o estabelecimento da forma e modelo do que passou a ser chamado de família a partir do século XVII. É importante ressaltar também que a violência problematizada é uma violência que nasce no interior destas famílias, e que este tipo de violência foi durante muito tempo incitado e autorizado pela Igreja e pelo Estado. Procurarei problematizar esse modelo de família do qual não se abre mão, não se revê e se pressupõe universal, apesar das múltiplas e incansáveis situações de fracasso e violações de direitos notadas em seu interior. Teixeira-Filho (2010) alinha questionamentos que auxiliam na reflexão sobre a produção discursiva desse modelo de família problematizado: [...] elas são produzidas como respostas a um discurso que legitima e valoriza a filiação e produção da família a partir dos laços de sangue e menos a partir das necessidades afetivas das pessoas envolvidas [...]. Em uma cultura na qual os laços de sangue fossem irrelevantes será que existiriam as categorias “mãe/pai biológica/o” e “mãe/pai adotiva/o”? Afinal, o que define a parentalidade? A quem importa a diferença entre o afeto e a biologia, tomados em nossa sociedade como realidades concretas, distintas e desiguais? [...] A que serve o imperativo da consanguinidade a partir do qual se autoriza o Estado a legislar sobre as relações de parentesco, sobre o que é ou não uma família, uma filiação, uma parentalidade, uma conjugalidade? (TEIXEIRA-FILHO, 2010, p. 244).
Os discursos do direito romano, do absolutismo político e da teologia cristã no século XVII deliberavam em comum a autoridade do homem justificada pela desigualdade natural (que se refere à aparência física e origem da mulher pela costela de Adão) entre os seres humanos, na qual ao homem cabia mandar
3 O conceito de biopoder foi apresentado por Michel Foucault, no primeiro volume de História da Sexualidade (1988). A ideia de biopoder veio se juntar às suas reflexões sobre as práticas disciplinares, considerada pelo autor como técnicas de exercício de poder, nas quais as disciplinas se voltavam para o indivíduo, e para o seu corpo, para a sua normalização e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo atravessava durante a sua vida – a partir do século XVIII e XIX (a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, etc.). Para Foucault o biopoder cuidava de processos como nascimentos e mortalidades, da saúde da população (doenças e epidemias, por exemplo), da longevidade, e etc. O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o biológico, que se torna referência central nas discussões políticas.
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e ser chefe do casal, responsável perante Deus por sua família. A mulher era representada como o mal, o pecado e a imperfeição. O tratamento dirigido aos filhos e às filhas também foi diferenciado, pois o menino era tratado como um sujeito livre e aprendiz do adulto homem, já a menina como inferior, contida e desvalorizada. Porém, ambos deveriam ser dependentes e submissos aos pais (BADINTER, 1985, p. 32-37), ressaltando-se a superioridade geracional. Até meados do século XVIII, a ideia de infância como uma fase separada da vida adulta não existia e até o final da era vitoriana as crianças eram consideradas propriedades dos adultos e sujeitas ao abuso físico e sexual. Neste período, o amor teve conotação negativa, pois era associado à fraqueza e passividade; as relações familiares eram estabelecidas através do medo e qualquer desobediência filial era motivo para se recorrer às surras e agressões físicas (ARIÈS, 2006, p. 90; BADINTER, 1985, p. 51). Donzelot (1986, p. 11) localiza o surgimento do sentimento moderno de família, “caracterizado pela ternura e intimidade que ligam os pais aos filhos” (BADINTER, 1985, p. 53-54), no período do Antigo Regime. Inicialmente, se propagou entre as camadas burguesas e nobres e, segundo o autor, a configuração de família apresentada pela burguesia teria se estendido mais tarde para todas as classes sociais, reduzindo-se então à unicidade de um modelo, desprezando-se as variações econômicas da população e o que estas poderiam influenciar no sucesso ou fracasso na adesão deste modelo. Concomitantemente à instauração de um modelo de família criado pela burguesia ocorre a proibição do infanticídio pela Igreja Católica (BADINTER, 1985), observa-se uma reserva humana que se produz devido à impossibilidade de adequação totalitária a este regime. Para aqueles que não foram mantidos no interior de sua família, ocorre a instauração de modos alternativos de absorção e disciplina: os hospícios de menores abandonados, a criação dos filhos por nutrizes e a educação camuflada das crianças ricas (DONZELOT, 1986). A respeito dos hospícios de menores abandonados, o Estado lamentava o alto índice de mortalidade, pois estaria perdendo futuras forças de trabalho destes que, sem possuir vínculos ou obrigações familiares seriam muito úteis nos processos de colonização, para a milícia, a marinha ou qualquer tarefa nacional. Essa associação da mortalidade infantil com as nutrizes se dava devido ao habito de se buscar nutrizes nos campos para cuidar das crianças. Isto era co-
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mum em todas as classes da sociedade urbana, principalmente nas famílias mais ricas. Porém, ao se tornar um negócio com fins lucrativo, estas amas-de-leite ocupavam-se de várias crianças ao mesmo tempo, muitas vezes continuavam recebendo de famílias as quais não sabiam que seu/sua filho/a já havia falecido. Segundo Donzelot (1986, p. 15-17), havia uma porcentagem de morte de cerca de dois terços das crianças cuidadas por nutrizes mais distantes e um terço daquelas cuidadas pelas mais próximas. Badinter (1985, p. 13) nos faz refletir quanto a estas estatísticas ao chamar a atenção para o fato de que as mães que utilizavam os serviços das nutrizes mantinham esta prática mesmo diante de tantas mortes, não levando em consideração sua experiência pessoal de já haver perdido outros/as filhos/as, ou ainda de pessoas conhecidas que tivessem passado por isso. Cita um caso apresentado por um historiador dos costumes, Marcel Lachiver, no qual uma nutriz deixou morrer 31 crianças em 14 meses. Diante de tais dados, a autora considera a possibilidade de um real desinteresse dessas mulheres por suas crianças. Mesmos aqueles que possuíam maiores posses e podiam contar com uma nutriz exclusiva não tinham garantido o modo de cuidado e educação que as crianças receberiam. As escravas, por exemplo, tinham em mãos alguém que no futuro poderia oprimi-las. Por conseguinte, não se ocupavam em fazê-los fortes. Enfaixar bebês e crianças era uma forma de poderem passar despercebidos os momentos de abandono e negligência que ocorriam. Esta situação nos remete novamente a um abandono do bebê por parte da mãe, e à desconsideração de uma situação de risco (DONZELOT, 1986). Badinter (1985, p. 22) chama a atenção primeiramente para a desmistificação do amor materno enquanto instinto, e o localiza enquanto sentimento. Porém, neste, ainda se reserva ilusão do outro, mas é mais possível de ser adjetivado, pois todo sentimento pode ser incerto, frágil e imperfeito, podendo estar presente ou não, sem se recorrer a qualquer patologização e sim a uma problematização de que o sentimento dos adultos em relação às crianças ao longo da história não é constante e, como tudo na vida, está em construção permanente. Como ferramenta para análise elegemos algumas categorias conceituais que podem ser norteadores possíveis.
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o dispositivo da sexualidade e as políticas públicas na manutenção do androcentrismo e do adultocentrismo Para pensarmos o dispositivo da sexualidade como mecanismo determinante na produção dos modelos de relações estabelecidas entre os adultos e as crianças, homens e mulheres em nossa sociedade, assim como mecanismo que dá manutenção ao machismo, proponho explorar primeiramente algumas reflexões quanto ao que pode ser compreendido por dispositivo. Foucault (1979, p. 244) define o dispositivo da sexualidade como: [...] um conjunto heterogêneo que engloba discurso, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.
Deleuze (2001), a partir das análises dos três momentos de Michel Foucault4, visualizou o dispositivo como um conjunto de linhas que atravessam o sujeito5, linhas que formam “um emaranhado”, que são múltiplas, que podem ser paralelas ou se romperem entre si, linhas que se encontram, se fazem bifurcar ao se encontrarem, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras. De acordo com Deleuze (2001), quando o sujeito é atravessado por novas linhas, novos pensamentos de “outros”, muitas vezes estes se instalam e passam a fazer parte do sujeito, não sendo mais o mesmo sujeito; já se é outro e o que era atual já será parte do arquivo diante deste novo vir a ser. Este novo muitas vezes leva o sujeito a um estado de perplexidade, sensação de loucura, medo, mas também pode causar alívio e sensação de liberdade diante de novos olhares e possibilidades. Nos pontos de encontro dessas linhas são instalados nós de fixação, que irão “moldar” os comportamentos, trazendo ao indivíduo a necessidade de responder às cobranças externas, como se a realização do desejo estivesse no 4 Três são os momentos frequentemente identificados por estudiosos nos escritos de Foucault e por ele mesmo: Arqueologia do saber, Genealogia do Poder e uma Genealogia da Ética. 5 Neste estudo, o sujeito será considerado a partir do conceito proposto por Foucault, no qual ele não é dado, mas sim constituído (FONSECA, 2011, p. 14).
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social, “no fora”, a partir da sobreposição do poder (um obstáculo), no qual se dá uma dobra que constitui um novo “eu”. Dependendo da força que este poder impõe, a dobra se fecha e a interioridade passa a ser o que é o fora e o fora é o que tem dentro, até que ocorra um novo encontro, uma nova informação. Entre esses nós existem espaços onde se formam os territórios, os quais serão como vãos que poderão ainda ser atravessados por linhas de subjetivação; estas poderão ser linhas duras, linhas flexíveis ou de fuga. As linhas duras remetem ao lógico e controlável, são linhas circulares que levam à repetição do mesmo, ao binário, isto é, certo-errado, assim como impedem a percepção da diferença e o indivíduo deseja apenas aquilo que é esperado que ele deseje. As linhas flexíveis poderão produzir rupturas nestes nós, “movimentando e operando pequenas transformações” (BARROS, 1994 apud FONSECA & KIRST, 2003, p. 263). De acordo com Deleuze (2001, p. 03), as linhas de fuga proporcionam um processo de individuação que “age nos grupos ou nas pessoas e se subtrai tanto nas relações de força estabelecida quanto aos saberes constituídos [...] para se reinvestirem nos poderes e saberes de um novo dispositivo, sob outras formas ainda por nascer”, é o que possibilita subjetividades singulares. De acordo com Foucault (1988), o Dispositivo da Sexualidade surge na cultura ocidental a partir do século XVII. A censura e a interdição do sexo se tornam um imperativo que passa a produzir crenças, mitos e tabus em torno deste tema. Este mecanismo de censura refere-se a um conjunto de instâncias sociais, políticas, religiosas, médicas, jurídicas, entre outras, que inseriu o sexo num lugar de invisibilidade, discrição e contenção. Porém, o silenciamento que se produz em torno do sexo, o fim dos “risos estrepitosos que, durante tanto tempo, tinham acompanhado a sexualidade das crianças” (FOUCAULT, 1988, p. 33), não significa que se fala menos do sexo, mas que se fala de outra maneira e que é estabelecida progressivamente uma nova forma de tratá-lo, com objetivos de se obter outros efeitos, dentre eles a codificação e a qualificação daqueles que poderiam falar sobre o sexo. Este tema deveria ser mencionado somente quando solicitado pelas instituições produtoras de verdades, as quais demandavam dos cidadãos incansáveis e minuciosas descrições quanto às suas práticas sexuais, a partir das quais o sujeito ocidental acabou atado à tarefa de analisar, especificar, decodificar e dizer, em segredo, tudo sobre seu sexo (FOUCAULT, 1988).
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Um excelente representante dessas forças de controle de discursos é a instauração de procedimentos regulamentados de confissão do sexo, da sexualidade por intermédio dos prazeres sexuais instaurados pela Igreja. Porém, no campo da sexualidade, o efeito destes mecanismos de extorsão da verdade e de produção de realidade não somente oprimem a sexualidade, mas também a estimulam (FOUCAULT, 1979; 1988; PENEDO, 2008). Para Foucault (1979, p. 146-147), a sexualidade, ao se tornar “um objeto de preocupação e de análise, como alvo de vigilância e de controle”, produz concomitantemente a “intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo [...]”. Este posicionamento rompe com a ideia de um poder que se apresenta apenas como lei ou repressão, mas que coloca o sujeito como produto e produtor. Dentre os controles propostos pela regulamentação da sexualidade no século XIX, a medicina passa a intervir na disciplina do corpo para uma sexualidade que fosse pensada somente para procriação, na regulamentação do coletivo com vistas ao controle de natalidade, e também passa a relacionar as sexualidades que considerava indisciplinadas e irregulares (FOUCAULT, 2002, p. 290-301). Segundo Rubin (2003), todas estas instituições de influência social que disseminaram tantos aspectos negativos relativos ao sexo propagaram um verdadeiro pânico moral e a cultura popular passa a assimilar qualquer variação erótica como perigosa. Rubin (2003) apresenta o percurso sócio-histórico em que a sexualidade é engendrada, no qual controles formais e informais a atravessaram (e ainda a atravessam) na sociedade ocidental. Para a autora, a sexualidade se estruturou num contexto social de caráter punitivo, no qual a noção de uma libido natural deveria ser reprimida. Neste contexto é ressaltada uma negatividade do sexo, o qual é considerado como força perigosa, destrutiva e negativa. Primeiramente, a sexualidade é atravessada pelo caráter pecaminoso atribuído pela tradição cristã, na qual o sexo é admitido somente no casamento, sem que se admita chamar atenção para qualquer possibilidade de prazer. Neste caso, permitido somente para a procriação. Posteriormente, estes aspectos são ainda mais reforçados pela legislação que incorpora a crença religiosa e atribui ao sexo que não cumpre as normas impostas pela Igreja os castigos mais severos imputados pelo poder jurídico. Mais tarde, para multiplicar ainda mais as categorias de má conduta sexual, a medicina e a psiquiatria se apropriaram da sexualidade mapeando-a a
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partir de uma hierarquia moral, atribuindo disfunções psicológicas a qualquer diferença nas atividades sexuais. A categoria de pecado sexual é abandonada para se inserir a de doença mental ou de desajuste psicológico, ou ainda, pela sexologia, a ideia de “desvio”.. Dentre os dispositivos de controle acionados por instâncias do Estado há um grande investimento na disciplina da sexualidade das crianças. Desde o fim do século XVIII até o século XX, com o advento do modelo da família conjugal procriadora, as questões da sexualidade das crianças que anteriormente vagavam sem escândalos entre as transgressões visíveis dos adultos são também cuidadosamente encerradas, silenciadas. As crianças passam a ter um status de assexuadas, mobilizando atitudes de interdição e controlado silenciamento quanto aos assuntos que tratavam da sexualidade infantil (FOUCAULT, 1988, p. 18). A apresentação da visibilidade e atenção destinada às questões da sexualidade por diferentes instâncias pretende evidenciar “o caráter inventado, cultural e instável de todas as identidades” (LOURO, 2004, p. 23). Ressalta-se que do mesmo modo as práticas de dominação e de opressão existentes nas relações entre adultos e crianças, entre homens e mulheres, são produzidas social e historicamente e permanecem em constante processo de transformação. O percurso que tem sido trilhado pelas políticas públicas diante dos casos de VSIVCA, o mau uso que os adultos, em sua maioria homens, responsáveis pelos cuidados de uma criança ou adolescente têm feito do “poder familiar”6 tem sido tolerado a partir de dispositivos que exaltam e ratificam valores e modelos de comportamentos adultocêntricos e androcêntricos, modelos que incluem a pretensão de domínio de um sobre os demais, modelos nos quais os homens são incitados a buscar múltiplas conquistas sexuais sob uma autorização gerada pelo essencialismo, o qual propõe uma suposta necessidade do homem em exibir “traços supostamente viris, como a coragem e a indiferença à dor”, expressos em relações baseadas em desigualdades reais e na manipulação do poder (CASTAÑEDA, 2006, p. 16).
6 Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
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Questão de gênero Nessa breve introdução sobre o conceito do termo “gênero”, primeiro abandona-se a ideia da abordagem das diferenças entre homens e mulheres entrelaçada ao termo sexo, que remete o pensamento à condição biológica de macho/fêmea naturalizada ao longo dos tempos. O conceito de gênero aparece nos anos 60 e 70 nos escritos feministas. Neste período, o uso do termo gênero serviu para ressaltar as diferenças sexuais, ou seja, a diferença entre a mulher e o homem, entre o feminino e o masculino. A demarcação das diferenças a partir do sexo biológico produziu espaços sociais que se dividiram pelas especificidades referidas a cada gênero, o que acabou por formar guetos feministas. Assim, a produção de estudos sobre as mulheres, de espaços de circulação somente de mulheres, reifica uma dicotomia, uma prática binarizante na qual as mulheres, de acordo com Lauretis (1994, p. 209), “acabavam falando delas para elas mesmas”, o que produziu a limitação de se universalizar os homens e as mulheres, impossibilitando a articulação das diferenças entre as mulheres “ou, talvez mais exatamente, as diferenças nas mulheres” (GUEDES, 1995, p. 04; LAURETIS, 1994, p. 209). Estas práticas binarizantes tornam-se reducionistas e propõem uma leitura na qual ainda estaria relacionada a diferença em relação a, diferença entre, ou seja, diferença da mulher em relação ao homem e desta forma a mulher ainda presa à representação do masculino para afirmar sua existência (LAURETIS, 1994: 206-207), pois o homem é mantido como referência que modela e posiciona os olhares e discursos. Scott (1995) mostrou que esta questão deixou de ser exclusiva e privativa de mulheres tendo se ampliado política e socialmente quando incluiu os homens, também, como vítimas da normatividade machista, falocêntrica e heterossexual. O desafio de romper esse esquema binário não é, na verdade, nada banal, mas um desafio que vem sendo proposto por alguns/as estudiosos/as feministas. Butler (2003, p. 19), menciona que a capacidade de singularização do sujeito dependerá: [...] de uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político [...] e que [...] a categoria das 170
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‘mulheres’, o sujeito do feminino, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se emancipação.
Segundo estudiosas feministas, o dispositivo de gênero deve ser considerado como efeito e estratégia de produção de corpos e sujeitos. Tal dispositivo pode ser pensado como representação e auto-representação, um “produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). Portanto, a sexualidade, o gênero, não seria uma série de processos, mas uma ferramenta para a ação política (PENEDO, 2008). Em cada cultura há processos de subjetivação que relacionam o sexo a valores pré-determinados socialmente. Porém, qualquer sistema sexo-gênero está sempre intimamente interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade, através dos quais são produzidas, organizadas e mantidas as desigualdades sociais. Ser representado como masculino ou feminino é trazer consigo os atributos sociais pertencentes a cada termo (LAURETIS, 1994, p. 212-220). Na análise das causas da opressão das mulheres realizada por Rubin (1975), a autora esclarece que o posicionamento que cada sujeito ocupa se dá a partir das relações estabelecidas em determinado tempo e lugar. Sendo assim, a mulher só se torna uma doméstica, uma esposa, uma mercadoria, uma prostituta ou ditafone humano em certas relações. Peres (2005, p. 12) ressalta ainda que: As determinações culturais são importantes para qualquer tipo de análise que possamos vir a fazer, sempre em conjugação com outros olhares que possam contribuir para uma análise mais pertinente de qualquer estudo, mesmo porque, cada cultura tem o seu rol de valores e significados pelas quais orientam seus comportamentos e seus modos de existência. (PERES, 2005, p.12).
Nestas perspectivas verificamos que o conceito de gênero vai além de um significado que pode ser dado a “homem” e “mulher”, a “feminino” e “masculino”, uma vez que ser “homem” e “mulher” não tem nenhum significado acabado. O gênero é relacional e como tal, negociado em cada encontro, em cada relação.
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Violência tolerada O conceito de violência que nos apoiamos se apresenta de forma clara na definição do fenômeno proposta por Chauí (1985, p. 35): [...] conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.
Não podemos nos referir ao fenômeno da violência sem considerar as relações de poder que se baseiam nas desigualdades presentes, nos diferentes relacionamentos que são estabelecidos entre as pessoas a partir de referenciais de diferentes categorias de análise como idade, gênero, raça, etnia, tamanho, força física e do que se compreende de experiências já vividas. Considerando as especificidades da VSIVCA, nos orientamos pela definição de Azevedo e Guerra (1998, p. 177), na qual este fenômeno se estabelece em: [...] todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos que tenham para com ela uma relação de consanguinidade, afinidade e/ou mera responsabilidade, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa.
Cohen (1997, p. 212) afirma que é segundo o parentesco cultural que a proibição do incesto possui um efeito estruturante, e quando alguém da família por algum motivo não puder reprimir seus impulsos incestuosos, o Estado, como se fosse um pai, deve cumprir esta função. Tem a responsabilidade, em suas diversas estruturas, pelo desenvolvimento das condições de vida e garantia dos direitos destas crianças e adolescentes (NETO; MOREIRA, 1999). Quanto às determinações legais que visam proteger a criança, de acordo com o que é estabelecido no Estatuto da criança e adolescente (ECA) em leitura 172
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concomitante com seu código de ética, nos casos de VSIVCA os/as profissionais da Psicologia têm a obrigação de realizar a denúncia nos casos em que a família se negue a realizá-la, o que é muito comum na dinâmica da Violência sexual intrafamiliar. Em minha experiência de três anos no atendimento de casos de VSIVCA, e há trê anos na coordenação do projeto que acolhe estes casos, através do CREAS do município de Ourinhos/SP, foi possível constatar inúmeras “falhas” do Estado relativas à efetivação da assistência e/ou proteção dessas crianças e/ou adolescentes após a identificação das situações de VSIVCA e efetivação da denúncia. Entre essas “falhas” notamos que muitas vezes o agente agressor permanece em contato com a criança/adolescente por um longo período, até que seja instaurado inquérito. Esta morosidade possibilita que ocorram novas situações de abuso sexual com a mesma ou com novas vítimas, possibilitando ainda que se produza um novo ciclo de violência, através de retaliações e/ou ameaças à criança ou ao adolescente mediante o conhecimento do agressor sobre a revelação realizada pela vítima. Maior ainda a invisibilidade que se instaura nos casos de suspeita de VSIVC. Ao ser efetivada a denúncia, geralmente muito pouco é realizado quanto a uma investigação policial para se buscar provas. Deverá então o/a profissional sentir ter cumprido seu dever após realizar a notificação de um caso quando existe um “clima” incestuoso, sem uma verdadeira passagem ao ato, e que não ofereça prova legal/material para a constatação da denúncia? Será papel do/a profissional da Psicologia ir atrás das provas? Como alcançar a proteção da criança sem provas? Que proteção se oferece? Que alternativa têm as crianças e/ou adolescentes que vivenciam abuso sexual intrafamiliar e precisam aguardar junto ao agressor o seu julgamento que pode demorar anos? É curioso que a denúncia seja considerada como ferramenta polivalente para proteção das crianças/adolescentes e que a efetiva prevenção nos casos de maior risco não pareça constar das preocupações do Estado, visto que a atenção aos casos de VSIVCA é deslocada para os atendimentos às vitimas que já vivenciaram a violência, relegando à Psicologia a função de denúncia de algo que ele, o Estado, não soube como impedir que acontecesse e arrisca-se a dizer, favorece.
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Diante das considerações apresentadas, pode-se afirmar que os/as profissionais da Psicologia estão numa posição muito delicada diante do imperativo de denúncia compulsória perante a falta de políticas públicas que garantam efetivas ações de proteção às crianças e adolescentes. O imperativo da quebra de sigilo, a partir da denúncia, revela também o fato de que a violência poderia ter sido evitada caso as relações entre adultos e crianças fossem submetidas a leis que não privilegiassem, respectivamente, a autonomia de um em relação ao outro. Tal situação subverte a função do/a psicólogo/a, deslocando-o/a para a posição de denunciante de uma violência supostamente localizada na figura de um indivíduo, quando na verdade este indivíduo não é o agente isolado desta violência e sim o efeito de uma sociedade adultocêntrica e adoecida. Podemos considerar, portanto, que a criança vítima de violência sexual intrafamiliar é o resultado último de uma sociedade que estabelece como modelo relacional a primazia da vontade e diligência do adulto em relação àqueles que a ele são subordinados. Trata-se então de observarmos que no campo social o adulto tem autonomia sobre a criança e isso é corroborado pelo Estado. Estas ideias devem remeter nossa categoria profissional a questionar os procedimentos generalizados que ocorrem diante de situações de VSIVCA, pois aqueles que estão no atendimento direto destes casos conhecem as particularidades de cada situação e o apontamento genérico e reticente das instituições responsáveis por proteger estas crianças e adolescentes tem sido pouco assertivos. Portanto, ainda falta maior (re) ação social em todos os espaços públicos (escolas, postos de saúde, delegacias, ministério público, conselhos tutelares, entre outros) que têm conhecimento destes casos, além da sociedade civil, pois ao que nos parece há uma tolerância diante de tais situações, considerando-se que não há ações estratégicas de proteção para que se evitem reincidências de abusos ou mesmo a ocorrência de novas vítimas.
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Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
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Já no que se refere ao Estado, a aproximação entre a militância e os partidos políticos que passou a ocorrer, principalmente na segunda metade da década de 90, está sendo vista como motivo de preocupação por certa parcela do Movimento LGBT, que teme que isso resulte num ativismo condescendente e pouco crítico à esfera governamental. Esta não é uma preocupação descabida, visto que o interior do Movimento LGBT está tomado por uma forte apologia ao Partido dos Trabalhadores, onde prevalece um comportamento radical que classifica os militantes LGBTs em opositores quando eles questionam ou não compactuam com a política petista na promoção da cidadania LGBT. Na realidade, os militantes gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais “[...] são aliados em permanente disputa identitária e de poder, a despeito de se apresentarem e de serem socialmente vistos como um movimento social unificado.” (SER-TÃO, p. 6). Enquanto isso, o Estado brasileiro segue sendo “[...] o campeão mundial de homicídios contra as minorias sexuais: cinco homossexuais são mortos a cada duas semanas” (DHNET, 2011, s/p), o que demonstra uma elevada homofobia presente na sociedade e a consequente vulnerabilidade da população LGBT. Apesar dos esforços do Movimento LGBT para combater a homofobia, a pesquisa Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: um mapeamento crítico preliminar, desenvolvida pela equipe do Ser-Tão (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade), revela que: “[...] até o momento, não existe no país qualquer legislação federal específica de criminalização e combate à TGBLfobia e que, ademais, assegure proteção, direitos civis e sociais a estes segmentos.” (AVELAR; BRITO; MELLO, 2011, p. 320). É claro que a homofobia presente em nosso Congresso Nacional, sobretudo, a calcada no fundamentalismo religioso, tem dificultado a aprovação e implementação de medidas que afiancem os direitos civis e sociais da população LGBT no Brasil, além de comprometer a laicidade do Estado. Além disso, ainda que ao longo dos anos 2000 tenham sido formulados planos e programas, pelo Governo Federal, voltados à população LGBT, como: o Brasil Sem Homofobia (BSH) – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual (2004); o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – PNDCDH-LGBT (2009)5; ou o Programa Nacional de 5 Elaborado a partir das propostas aprovadas na I Conferência Nacional LGBT, em 2008. 205
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Direitos Humanos 3 – PNDH 3 (2009), que são importantes e positivos em muitos aspectos, seus efeitos, todavia, são limitados, dado que são políticas públicas que ainda não se transformaram em efetivas políticas de Estado, ou seja, não têm sua existência assegurada, estando “[...] à mercê da boa vontade de governantes e das incertezas decorrentes da inexistência de marco legal de combate à LGBTfobia e de promoção da cidadania TBGL.” (MELLO; MAROJA; AVELAR, 2011, p. 62). Na atual conjuntura, o acento posto pela militância LGBT nas reformas legislativas e na ação governamental tornou o Movimento altamente dependente das vissicitudes da política de governo. Assim, de modo estratégico, o Estado segue atendendo a algumas das reivindicações LGBTs, mas vai limitando o avanço das pautas mais reformistas desta militância, como, por exemplo, a alteração do registro civil após cirurgia de transgenitalização, a qual se encontra regulamentada pelo SUS6, ou a garantia do direito de adoção por casais homoafetivos. Por sua vez, a Academia, ou melhor, pesquisadores/as acadêmicos que produzem discursos e difundem conhecimentos sobre os sujeitos do Movimento LGBT podem contribuir, ou não, para gerar conhecimentos que representem avanços para a transformação da sociedade em relação à aceitação das pessoas que sofrem por não se enquadrarem à grade de inteligibilidade de gênero, a qual diz que a um corpo devém um sexo, um gênero, um desejo e uma prática sexual heterossexual (BUTLER, 2003). De fato, aqueles que não se enquadram às normativas de gênero e sexualidade da heterossexualidade, inevitavelmente, em algum momento de suas vidas, sofrerão retaliações (zombarias, insultos, perseguição, violência, etc.) e poderão ser relegados ao ostracismo. Desse modo, pessoas que não se conformam aos ideais da heteronormatividade convivem com a experiência social da abjeção, que tende a marcar profundamente suas subjetividades, principalmente no que se refere à percepção de si. Daí não ser surpreendente que algumas pessoas LGBTs possam ser homofóbicas.
6 BRASIL. Portaria nº 1.707/GM, de 18 de agosto de 2008. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 de agosto de 2008. Disponível em: . Acesso em 5 out. 2011.
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Ultimamente muito tem sido dito e escrito acerca das manifestações homofóbicas dirigidas aos LGBTs por parte daqueles(as) que não se enquadram neste grupo, enquanto raramente se discute os atos homofóbicos perpetrados por sujeitos LGBTs a seus pares. Muitas vezes, ainda que sem perceber, pessoas não-heterossexuais podem participar do processo de inferiorização de si e de outros que lhe são semelhantes, contribuindo para a perpetuação da homofobia. Para citar apenas alguns exemplos, temos o caso dos gays que não veem com bons olhos as travestis, as lésbicas masculinizadas e os gays efeminados ou o caso da segregação das transexuais que foram impedidas de participar do VI Seminário Nacional de Lésbicas – SENALE7. Mas, basicamente, o que existe é uma segregação em função das questões de sexo/gênero, apesar de pouco difundida no discurso corrente da militância LGBT. Muitos gays e lésbicas buscam estabelecer uma “representação positiva” de si mediante a adoção dos constructos dos gêneros instituídos pela lógica heterossexual. Desse modo, o gay masculinizado e a lésbica feminina são mais bem vistos e quistos do que os gays efeminados, as lésbicas masculinas, as travestis e as transexuais, que transgridem as normativas de sexo/gênero mais radicalmente. Na minha pesquisa do mestrado (PINAFI, 2011, p. 129), um dos entrevistados, comenta: Tem a divisão em função dessas questões de gênero mesmo, eu acho. O gay afeminado tem toda essa questão de que como você tem uma... Um doutrinamento de que macho é melhor que fêmea, masculino é melhor que feminino. Então, o gay afeminado é aquele que é pior, né? A travesti, né? É pior. [...] Com os travestis então é pior do que com lésbicas. O gay tem muito preconceito contra travesti ou contra gay afeminado, né? É uma coisa muito forte. E aquilo que eu tava falando de jogar o desprezo que você tem por si mesmo no outro acontece muito com o gay afeminado ou a travesti. É como dizer: “- Aquilo é o que eu não quero ser, né?”. “- Aquilo é a bicha escancarada”. (Alceste)
7 SENALE – Seminário Nacional de Lésbicas. Relatório final. Disponível em: . Acesso em: 5 out. 2011.
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Quando os gays agem com preconceito contra aqueles/as que adotam uma expressão de gênero oposta ao seu sexo biológico acabam por normatizar as relações afetivo-sexuais não-heterossexuais, ainda que inconscientemente. E, desta forma, salvaguardam as fronteiras binárias e hierárquicas dos gêneros do regime heterossexual. Comprendo que desenvolver um trabalho voltado à criação de um mundo menos homofóbico é uma responsabilidade que cabe às três instituições aqui mencionadas: o Estado, o ativismo LGBT e à Academia. Cada uma delas, a seu modo, pode contribuir para a construção de um mundo mais humano e menos excludente. Mas, para isso, é importante que questionemos o pensamento antitético (normal x abjeto), o qual é ordenador de uma tecnologia política de produção de indivíduos homofóbicos. Os critérios de atribuição de gênero, estruturados binariamente em nossas sociedades ocidentais, tomam o corpo como o filtro da percepção por meio do qual se estabelecem as condições de inteligibilidade, impondo sanções àqueles/ as que se extraviam do gênero que lhes foi designado. Judith Butler (2006, p. 87, tradução nossa) adverte que: Os castigos sociais que perseguem as transgressões de gênero incluem a correção cirúrgica das pessoas intersexuais, a patologização psiquiátrica e a criminalização em diversos países – Estados Unidos dentre eles – das pessoas com “disforia de gênero”, o acosso a pessoas que problematizam o gênero na rua ou no trabalho, a discriminação no emprego e a violência.8
As violências física e não-física geradas por anseios homofóbicos fundamentam-se na pressuposição de que suas vítimas devem ser castigadas por transgredirem as normativas sexuais e de gênero, por isso não podemos interpelar a homofobia sem interpelar a ancoragem epistemológica e ontológica das categorias de gênero. Esta indissociabilidade é problematizada por Butler (2006, p. 58-59, tradução nossa), a partir da seguinte pergunta:
8 No original: Los castigos sociales que siguen a las transgresiones de género incluyen la corrección quirúrgica de las personas intersexuales, la patologización psiquiátrica y la criminalización en diversos países – Estados Unidos entre ellos – de las personas con “disforia de género”, el acoso a personas que problematizan el género en la calle o en el trabajo, la discriminación en el empleo y la violencia.
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O que motiva a aqueles que se sentem impelidos a matar a alguém porque é gay, ou a ameaçar a matar a alguém por ser intersexual, ou a aqueles que seriam capazes de matar a alguém que reconheceu publicamente sua condição de transgênero? [...] A pessoa que ameaça com a violência parte de uma crença ansiosa e rígida que defende que um sentido do mundo e do eu será radicalmente socavado no caso de se permitir a tal pessoa não categorizável viver no mundo social. A negação de tal corpo, através da violência, é um vão e violento esforço de restaurar a ordem, de renovar o mundo social sobre a base de um gênero inteligível e de recusar o desafio de repensar o mundo como algo distinto do natural ou espontâneo. Isso não está desvencilhado da ameaça de morte ou mesmo do assassinato de transexuais em diversos países, e de homens gays que se identificam como “femeninos” ou de mulheres gays que se identificam como “masculinas”. [...] Esta violência emerge de um profundo desejo de manter a ordem do gênero binário como natural ou espontânea, de convertê-la em uma estrutura, seja ela natural, cultural ou ambas, contra a qual nenhum humano possa se opor e seguir sendo humano.9
A argumentação de Butler (2006, p. 58-59, tradução nossa) repousa sobre a ideia de que: “[...] a própria vida requer uma série de normas sob a qual se ampara e, assim, estar fora delas ou viver fora delas, equivale a cortejar a morte.”10 A matriz de gênero binária engendra a produção de um saber interior sobre quem somos, nos define através de sua grade de inteligibilidade cultural (BUTLER, 2003). Aqueles que se enquadram às normas da programação de gênero se tornam sujeitos inteligíveis e adquirem o status de humano, além de 9 No original: ¿Qué motiva a aquellos que se sienten impulsados a matar a alguien porque es gay, o a amenazar con matar a alguien por ser intersexuado, o a aquellos que serían capaces de matar a alguien que ha reconocido públicamente su condición transgénero? […] La persona que amenaza con la violencia procede desde una creencia ansiosa y rígida que mantiene que un sentido del mundo y del yo será radicalmente socavado si se permite a tal persona no categorizable vivir en el mundo social. La negación a través de la violencia de tal cuerpo es un vano y violento esfuerzo de restaurar el orden, de renovar el mundo social sobre la base de un género inteligible y de rehusar el reto de repensar el mundo como algo distinto de lo natural o lo necesario. Esto no está alejado de la amenaza de muerte o del asesinato mismo de transexuales en diversos países, y de hombres gay que se identifican como “femeninos” o de mujeres gay que se identifican como “masculinas”. […] Esta violencia emerge de un profundo deseo de mantener el orden del género binario natural o necesario, de convertirlo en una estructura, ya sea natural, cultural o ambas, contra la cual ningún humano pueda oponerse y seguir siendo humano. 10 No original: “[...] la vida misma requiere una serie de normas bajo las que ampararse, y que estar fuera de ellas, o vivir fuera de ellas, equivale a cortejar a la muerte.”.
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uma identidade estável, evocada em determinadas formulações como: “sou um homem”, “sou uma mulher”, “sou heterossexual”, etc. No entanto, diria que este aparato de gênero que categoriza as existências em identidades estanques apresenta um caráter restritivo, limitado e, até mesmo, frágil quando penso na consideração de Butler (2003, p. 38) de que: “[...] a própria noção de ‘pessoa’ se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é ‘incoerente’ ou ‘descontínuo’, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.”. Todavia, esta é a norma que dirige a construção da identidade, positivando certas identidades em detrimento de outras, as quais se tornam passíveis de sofrer discriminação em face da percepção de que alguns indivíduos e/ou grupos são inferiores. Portanto, toda vez que invocamos o estatuto ontológico desse sistema para apreender os sujeitos, reinstituímos o pensamento da diferença para pensar as identidades, contribuímos para perpetuar a existência do modelo binário de sexo, de gênero e de sexualidade, eclipsamos a heterogeneidade presente no grupo dos homens e das mulheres, enfim, boicotamos a emergência do pensamento da diversidade para apreender a nós mesmos e ao mundo. Por isso, penso que se um dia o pensamento da diversidade vier a quebrar a supremacia do binarismo naturalizante como modelo que organiza e produz as representações sociais de sexo, gênero e sexualidade, talvez nossa sociedade se torne um lugar menos hostil àqueles/as que hoje são vistos como seres abjetos. Mas, como dizem Deleuze e Guattari (1992, p. 44): “[...] um conceito tem sempre componentes que podem impedir a aparição de um outro conceito, ou, ao contrário, que só podem aparecer ao preço do esvanecimento de outros conceitos.”. Por isso, especialmente enquanto profissionais responsáveis pela construção de saberes sobre os sujeitos devemos nos engajar na busca por formulações teóricas que coloquem em tela a naturalidade com que marcamos certas existências como abjetas para, assim, incitar um pensamento de combate à homofobia prevalecente em nossa sociedade. Combater a homofobia implica confrontar a lógica hegemônica das categorias de gênero e de sexualidade do sistema heteronormativo, pois os discursos conjuram efeitos materiais e não apenas simbólicos. E como já disse Monique Wittig (1992, p. 50, tradução nossa), três décadas atrás: “Este poder que tem
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a ciência ou a teoria de atuar materialmente e efetivamente sobre nossos corpos e mentes não tem nada de abstrato, ainda que o discurso que produzem, certamente, seja.”11.
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11 No original: “Este poder que tiene la ciencia o la teoría de actuar material y realmente sobre nuestros cuerpos y mentes no tiene nada de abstracto, aunque el discurso que produzcan sí lo sea.”.
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‘Pesquisa-aquendação’ Derivas de uma epistemologia libertina Fernando Pocahy1
Aquenda! Aquendar é expressão usual que se pode oferecer às significações de pegar, fazer e dar atenção, no sentido mais erótico em que se possa conjugar o verbo e/ou oferecer-se à fruição dos prazeres sexuais. É, ainda, significado para falar, ver, tomar uma atitude, conhecer e experimentar – performando alguma curiosidade, não necessariamente erótica. Essa ‘invenção’ (ou reapropriação) linguística pode indicar uma dentre as formas de resistência presentes no que podemos denominar como sendo o campo das minorias sexuais, especialmente ao usar e abusar da linguagem, torcendo a língua com hibridizações etno-sexo-gênero combativas das formas de hierarquização, violência e injúria. Aquendar2 como expressão de uma linguagem plástica para um embate duro. Ato performativo como confronto, disputa e reinvenção linguístico-discursiva para reagir diante das interpelações injuriosas da heterossexualidade compulsória, sexismo e racismo. Sabemos que as palavras portam muito mais do que significados fixos, pois elas produzem sentidos e (re)inventam o mundo/ mundos, agitando e
1 Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Corpo, Gênero e Sexualidade nos Processos de Subjetivação/ Multiversos. Doutor em Educação e Mestre em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Pós-Doutor pelo PPG em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC,
[email protected] 2 Não estou preocupado aqui com a “verdadeira” origem da palavra, mas com a força política que ela opera nas sociabilidades ditas periféricas ou marginais. Sobretudo na sua potência de tráfico de significados e como forma de “despistar”, reconhecendo aqui especialmente a porosidade das culturas afrodescendentes brasileiras para as questões de sexualidade e gênero. A expressão aquendar, por exemplo, consta em distintas formas de grafia e é citada como originada em diferentes matrizes linguísticas. E, na definição do “Aurélia – A dicionária da língua afiada”, outro tráfico-provocação linguística, significa, para os autores do verbete: “quendar (do bajubá) 1- Chamar para prestar atenção, prestar atenção; 2- Fazer alguma função; 3- Pegar, roubar. Forma imperativa e sincopada do verbo: kuein!” (LIB & VIP, 2006).
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sendo agitadas pelas experiências (micro)políticas e culturais. No entanto, é preciso perceber também a linguagem como arena da agonística que produz, define e torna inteligível a vida e o que se denomina como humano, tanto em suas objetivações quanto em suas possibilidades de (re)construir um referente para condutas éticas – no sentido de uma margem de liberdade possível, de uma posição que o sujeito toma diante de determinados jogos de verdade (FOUCAULT, 2001 [1984e]), diante de moralidades. A linguagem é forma de conhecer o mundo em suas interpelações etno-sexo-generificantes e ela corporifica discursos, na mesma potência em que se oferece como materialidade a contestações. Minha proposta com este texto é aquela de uma ‘aquendação’ no sentido de uma experimentação linguística que aceita ser lambida por duas forças de significado: invenção e re/posicionamento político-epistemólogica (desculpem a redundância, uma vez que toda epistemologia é política). Proponho, neste sentindo, um pequeno escândalo acadêmico: a ‘pesquisa-aquendação’ como posição investigativa e modo de problematização sobre as representações de corpo, gênero e sexualidade, no plano das experiências de sociabilidade – meu interesse sobre os arquivos vivos nas/das Cidades. Este é um ensaio discursivo-desconstrucionista. Não deseja muito. Apenas provoca e desafia a implicação de pesquisadoras e pesquisadores no trabalho que envolve práticas eróticas e sexuais. Isto é, a pesquisa em sexualidade também como processo de subjetivação. Cabe sublinhar, antes de prosseguir, que esta perspectiva não seria um desdobramento tácito da pesquisa-ação, da pesquisa-participativa ou da pesquisa-intervenção, mas, talvez, e por consequência e graças a esta, posição que considera o pesquisar como instante em que algo se modifica e no qual o/a pesquisador/a produz interferências, (re)conhecendo-se enquanto sujeito que investiga (em já sendo um agente performativo) na posição de quem compreende a sexualidade como uma forma de conhecer o mundo, em seus riscos discursivos e vertigens da ‘perdição de si’ – fissurando seu corpo (também teórico) como abertura epistemológica. Dessas derivações, ouso fazer aqui um convite: cruzar a cidade, revirá-la, escavá-la, abraçá-la, deitar-se com ela em um jogo de homo/erotiCidade. O próprio corpo em cena (o corpo pesquisador) é superfície de intensidades e de
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encontros ‘problematizadores’ – o (a) pesquisador(a) posiciona-se como um corpo-problematizador na experiência sexo-étnico-classe-generificadas. Com isto, rascunho meus objetivos para este texto: encontrar possibilidades de pensar, perguntar e problematizar desde o avesso das hetero e homonormas (LOURO, 2009) e da heterossexualidade compulsória (RICH, 2001 [1980]), rastreando-resistindo no campo minado-normatizado de algumas disciplinas que se ocupam da sexualidade, especialmente, em nosso caso, certas Psicologias, ainda em muito obstinadas a patologizar condutas, práticas e experiências socioculturais. Este texto evidentemente tem um (leve) tom confrontativo. Afinal, é preciso combater os fascismos cotidianos das objetificações discursivas que estabelecem as vidas que valem a pena ser vividas e as vidas que não valem (BUTLER, 2005). Logo, trata-se de pesquisar-combater-resistir, agenciando uma profusão de estranhamentos sobre as formas de conhecer e, ainda, daquilo que é possível que se possa saber ou descobrir: conhecimento entre os lençóis discursivos dos prazeres envolvendo a sexualidade e performances de gênero, sem jamais desconsiderar interseccionalidades com outros marcadores de identidade e diferença que operam na produção de modos de experimentação e também de desigualdades sociais.
Fronteiras epistemológicas borradas A libertinagem que proponho desde o título tem a intenção de produzir movimentos dissidentes diante dos modos canonizados de perceber os (ditos) territórios (existenciais) marginais. Esta deriva moral é quase sinônimo de liberdade (permitam-me essa ‘deformação’ semântica pelo momento): bricolagem pop-acadêmica de significações e estratégia neopolítica (e não neoliberal) para a dessacralização do corpo e dos prazeres, é posição ficcionada de pesquisar. Como princípio de método, debruçado sobre si mesmo e à revelia dos bons costumes acadêmicos, essa libertinagem tem apenas a intenção de sacudir e dissuadir os instituídos em torno das formas canônicas de conhecimento. Não busco a polêmica ou o escândalo (bem que este sempre parece ter um efeito cínico e divertido). Mas, reafirmo contundentemente, o olhar da pesquisa é
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desde sempre generificado e não pode ser pensado sem considerar a própria experiência corporal da pessoa-pesquisador/a, como sujeito/a de uma produção discursiva que porta as marcas de certa inteligibilidade social. A postura que arrisco sugerir é aquela de um sujeito engajado politicamente aos movimentos de crítica/análise sobre os processos de objetificação assentados em regimes de verdade que produzem epistemologias normativas. Busco, dessa forma, relativizar o princípio de autoridade que “a Teoria” (me/ nos) confere. Considero que a experiência discursiva da sexualidade e do gênero podem ser experimentadas em algumas cenas de exceção, entre sussurros e gemidos, de forma a fazer arder algum ponto normativo sobre o prazer e erotiCidade (neste instante sublinho a dimensão que a Cidade ocupa nos processos de experimentação da sexualidade e nas relações de gênero, produzindo zonas morais, ora apartadas, ora hibridizando-se – fazendo coabitar o limpo e o sujo, o puro e o desprezível, entre outras marcações oposicionistas e binárias Modernas no rastro do corpo e cidade). As palavras abusadas, a música que embala os corpos no vai-e-vem da deriva da orgia e do corpo encenado e os restos de conversas e narrativas dubladas (recitações) são o que nos servem nesse desvio investigativo. São estes elementos que trago a partir das análises e estudos que venho realizando enquanto pesquisador em Psicologia, na perspectiva de alguma aproximação com os estudos culturais e estudos queer. Um gesto ‘fechativo’, a paródia, a cena ‘escandalosa’, tudo isso e muitas outras performances têm indicado para mim rasgos discursivos diante das marcas da violência que objetificam o corpo. Trago em análise souvenirs de prazeres de corpos dissidentes que nos ajudam a pensar a historicidade dos problemas de nosso presente. Através de um tipo de escrita-borrada, busco pistas, mesmo que escorregadias, no rastro úmido dos vapores de saunas ou desde os escuros labirintos de videolocadoras pornôs. Nos últimos tempos tive a oportunidade e alguma margem de liberdade para desenvolver algumas
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pesquisas3 e intervenções4, que têm me servido para alguns ensaios epistemológicos. São movimentos (e procuro momentos críticos) por onde se ensaia des/dizer como alguém, marcado como abjeto, desde o ponto de vista da sexualidade, da idade e da aparência física, se move diante das tramas (de poder) que ficcionam certa inteligibilidade generificada. Não é, portanto, nada mais que produção investigativa em um campo de/generado. 3 Em estudo de doutorado desenvolvi, sob a orientação da Profa. Dra. Guacira Lopes Louro, a tese “Entre vapores e pornô-tapes: dissidências homo/eróticas nas tramas do envelhecimento” (UFRGS/2007-2011). Esta pesquisa de doutorado em Educação analisou formas de regulação do gênero e da sexualidade em interseccionalidade com a ‘idade’, onde busquei problematizar os discursos de objetificação dirigidos a homens idosos que exercem práticas homo/eróticas. Tratei de compreender de que maneira se produzem estratégias de contestação às significações desqualificantes sobre a (homo)sexualidade e o envelhecimento. A análise possibilitou compreender algumas das relações de poder em torno das formas de regulação da vida que se interseccionam às ‘marcas’ e ‘habilidades’ do corpo, aos discursos de racialização humana, às relações sociais abertamente tarifadas, à classe social, às representações de masculinidade e à ‘orientação sexual’. Este trabalho cartográfico sinaliza que mesmo que os sujeitos implicados nestes jogos de poder não tenham a intenção de produzir uma crítica à norma em questão, as cenas performativizadas nesses espaços de sociabilidade nos pareceram produtivas para compreender a hetero e a homonormatividade como regimes discursivos que trabalham na produção de uma cultura hetero/sexista e antienvelhecimento. O estudo se produziu a partir de duas entradas de campo: a) uma sauna e videolocadora pornô frequentada por homens idosos e b) um bar onde as relações se organizam em torno do protagonismo de homens idosos e de garotos de programa. Estes dois contrapontos nos permitiram uma ampliação das formas de compreender as distintas e variadas formas de viver a (homo)sexualidade nas tramas discursivas da homonormatividade, considerada neste estudo como importante dispositivo na reificação da velhice como uma forma de abjeção. Outra possibilidade de experimentação em pesquisa: o trabalho de dissertação de mestrado que realizei junto ao PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. Henrique Caetano Nardi. “A pesquisa fora do armário: ensaio de uma heterotopia queer” problematiza as experimentações da sexualidade de jovens que se autoidentificam como lésbicas, gays, travestis, heterossexuais, bissexuais e transexuais e que aderiram a uma ação de saúde, no campo das doenças sexualmente transmissíveis/hiv e aids. Além de seu caráter de enfrentamento à epidemia, a intervenção permitiu-nos analisar os modos como os jovens produzem experimentações na sexualidade face à homofobia presente na sociedade brasileira. O estudo foi orientado metodologicamente pela perspectiva da pesquisa-intervenção e os seus resultados apontam para alguns dos limites e das possibilidades das ações de saúde junto ao público juvenil. No que se refere ao acesso e à produção da cultura da diversidade sexual e consolidação dos direitos humanos, este estudo indicou que as atividades do grupo de jovens possibilitaram a construção de um lócus de reflexividade ética e de ocupação agonística da Cidade, uma vez que estes jovens vivem no avesso de dois dispositivos de normalização, ou seja, da hetero e da homonormatividade, evidenciadas na íntima relação da normalização sexual com a desigualdade econômica. Assim, a ação buscou transformar as condições de vulnerabilidade explorando as possibilidades de deslocamento de uma posição abjeta para a de cidadão de direitos pela via da reflexão e da ampliação das redes de sociabilidade. Este efeito foi buscado principalmente na formulação de estratégias coletivas de enfrentamento das capturas identitárias ligadas à estigmatização da pobreza na sua associação com as sexualidades ditas marginais. O Projeto Gurizada, Saindo do Armário e Entrando em Cena foi realizado pela ONG nuances – grupo pela livre expressão sexual, atuante em Porto Alegre; em cooperação com a UNESCO, o Programa Nacional de DST/ AIDS e a Coordenação Estadual de DST/AIDS da Secretaria da Saúde do RS. 4 Junto ao nuances – grupo pela livre expressão sexual, tive a oportunidade de experimentar ainda outros bons desafios e práticas de ‘rebelião’ militante-epistemológica ou de movimentos de heterotopia: Projeto Prazer também tem preço; Educando para a Diversidade; Centro de Referência em Direitos Humanos no combate à Homofobia; Projeto Gurizada; Jornal do nuances, entre outras inúmeras ações políticas e em produção de saberes-transtornados (usando a ideia de Berenice Bento sobre as práticas transtornadas). Por fim, a pesquisa de serviço, realizada com a colaboração de Manoela Carpenedo Rodrigues (à época estagiária de pesquisa em psicologia no Centro de Referência, atualmente Mestre em Psicologia Social) desenvolvemos a pesquisa Práticas Sexuais, Sociabilidades e Violência, entre 2008-2009, com financiamento da Seção de DST/AIDS da Secretaria Estadual da Saúde (relatório de pesquisa depositado junto à SES/RS e publicação no prelo, revista DeSignis).
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Nada evidente, mas contundente anúncio: os princípios que definem esse modo de operar em pesquisa seguem no rastro da perspectiva genealógica de Michel Foucault (1995; 2004) como ferramenta conceitual importante para o trabalho de problematização das condições de possibilidade e de emergência dos discursos – que se opõem e/ou se associam nos jogos de verdade que dão contornos à relação dos sujeitos consigo mesmos, no processo de sua (auto)constituição. Sigo a proposta (foucaultiana) de uma recusa a métodos descritivos que priorizam a constância histórica ou o traço antropológico imediato. Alio-me ainda aos argumentos de Tomaz Tadeu da Silva (2003) quando afirma que “o mundo estático e morto das coisas e dos significados fixos é um mundo sem disputa, sem contestação. Ele está simplesmente ali: é um dado” (p.65). Ou seja, faz sentido para mim a perspectiva genealógica no campo dos estudos sobre gênero e sexualidade na sua potência analítica como possibilidade de traçar as linhas que constituem o regime de materialidade que torna possível um enunciado, redefinindo as suas possibilidades de (re)inscrição e legitimidade nos jogos de poder e verdade (FOUCAULT, 2004 [1969]) – jogos estes que oferecem/produzem ‘inteligibilidades’ e formas de ‘reconhecimento social’. O que está em jogo na pesquisa, acredito, é a disputa por uma posição que leva em conta o efeito de raridade dos enunciados – “valor que não é definido por sua verdade, que não é avaliado pela presença de um conteúdo secreto, mas a posição enviesada que caracteriza o lugar deles, sua capacidade de circulação e troca, sua possibilidade de transformação” (FOUCAULT, 2004 [1969]). Tudo isso nos exige uma dobra: o trabalho de pesquisa no campo das relações de gênero e sexualidade não pode definir-se como um trabalho disciplinar e, tampouco, interdisciplinar ou transdisciplinar. Quiçá pós-disciplinar. Afinal, a sexualidade não estaria saturada de disciplina? : (...) mais do que interdisciplinaridade, deveríamos falar em uma des-disciplinarização. Trata-se de parasitar as disciplinas existentes, de colocar em risco sua estabilidade e a concepção do sujeito humanista ou universalista que elas continuam a pressupor. Trata-se de recusar o poder da disciplina, fonte de apagamentos e de congelamentos. (BOURCIER, 2005, p. 28-29)
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Logo, se considerarmos que em uma posição pós-moderna e desde alguma aproximação com o campo dos estudos pós-estruturalistas não há como separar o modo de analisar do modo de olhar – observar e participar do campo –, não fica difícil abusar de negociações conceituais e de ousadias, aliás, é quase uma condição. E isso significa resistência, apoiada na ideia de experiência – em certo tipo de relação onde temos a sorte de sairmos transformados, diria Foucault. O pesquisador e a pesquisadora precisam de alguma forma sair tranformados/ transtornados desde uma experiência de pesquisa. Podemos e devemos recusar métodos canônicos. Precisamos inventar, radicalizar o sentido da inventora/inventor de problemas sobre nosso tempo. E para isso precisamos de um modo de pesquisar que tenha a ver com um tipo de curiosidade ‘vadia’ e não como aquela curiosidade perversa “la que busca asimilar lo que conviene conocer, sino la que permite alejarse de uno mismo”(FOUCAULT, 2006 [1984], p. 12). A ideia de uma pesquisa-aquendação é nada mais que uma participação-observante (MENDES-LEITE, 1992), onde a pesquisadora/o pesquisador encontra-se radicalmente despida/o de algumas moralidades, não todas – afinal, é preciso que sejamos coerentes, honestas/ honestos e humildes, acima de tudo, para saber que nunca estamos livres de uma nova relação de poder. Mas é nesta disposição de uma nudez que não quer ser castigada, por onde ela ou ele (pesquisador/a) tem a chance de pensar com o/a outro/a os problemas de seu tempo, a partir da experiência ‘desmoralizada’ de seu próprio corpo e da sua própria subjetividade em devir. Cabe recuperar, antes de prosseguir, que essa perspectiva em pesquisar sobre o que se faz/vive ou sobre o seu ethos, especialmente no campo dos estudos sobre sexualidade (em uma perspectiva cultual), insere-se em um plano rizomático de tensões e disputas epistemológicas que foram produzidas e se tornaram legitimamente possíveis na academia somente a partir da experiência da epidemia da AIDS. Algo que surgiu por entre as nossas múltiplas possibilidades nos termos de fazermos uma história contemporânea da sexualidade, definida através dos desafios político-culturais que colocaram em questionamento certas bases paradigmáticas sobre corpo, saúde e direitos humanos. Estas circunstâncias de pesquisar algo que toca diretamente a sexualidade, exigiram, segundo Rommel Mendes-Leite (1994) “grau de intimidade e implicação” como condições decisivas para a análise e a intervenção. 219
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De mesma forma, deriva das reflexões de Néstor Perlongher (1987) sobre o grau de intimidade e intensidade do envolvimento em relação ao trabalho no terreno das sociabilidades envolvendo a sexualidade, a ideia de que o trabalho de campo não pode deixar de ser concebido sem a sua dimensão política. O que, de meu ponto de vista, inclui o corpo-subjetividade do pesquisador como experiência viva-interferente-impertinente – pois é com seu corpo que se aproxima de alguém (de outrem), com suas marcas corporais distancia-se, mas também aloja em uma relação, estranhando-se – ‘queerinzando-se’. Isto possibilita uma aproximação e relação ética com outras cenas da sexualidade e desde as relações de gênero e suas performances, que nos conduzem a problematizações seguramente mais “realísticas” sobre as materialidades discursivas em torno do corpo e do fazer ciência com o corpo. Associo-me, da mesma forma, também ao pensamento de Marie-Hélène Bourcieur, quando considera que “as disciplinas repousam na maior parte do tempo sobre concepções ontológicas de homem e de mulher e elas se articulam sobre a diferença sexual e são o produto de um regime epistêmico heterossexual” (BOURCIER, 2005, p. 29). Assim, considerando-se as brechas epistemológicas produzidas pelos estudos e ativismos queer, pouco a pouco se modificam as paisagens ‘científicas’ e pode-se ousar um pouco mais na pesquisa. E desde este ‘entrevero’ político da pós-modernidade novos modos de viver a pesquisa acadêmica vão se ‘firmando’, onde noções de ética e implicações na pesquisa passam a ser compreendidas para além dos procedimentos protocolares e assépticos. Paul Rabinow (1999) expressa de forma contundente a ideia foucaultiana da ética reflexiva da liberdade através de sua aposta em uma posição que denomina “cosmopolitismo crítico”: O princípio condutor é ético. Esta é uma posição oposicionista, desconfiada de poderes soberanos, verdades universais, precisão relativizada em demasia, autenticidade local, moralismo de cima e de baixo. Entendimento é o seu outro valor, mas um entendimento desconfiado de suas tendências imperialistas. Esta posição presta atenção às – e respeita – diferenças, mas também está alerta à tendência de essencializá-las. (1999, p. 100)
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Como consequência deste re/posicionamento tático na pesquisa, podemos considerar, então, que a produção do material de análise – a construção das entradas de análise para uma pesquisa qualquer envolvendo pessoas e feminismos, pessoas e sexualidade, pessoas e etnicidade, ou na transversalidade destes e outros marcadores sociais – podem ser mais bem compreendidas se levarmos em consideração em nossas práticas a própria forma de nos relacionar com o campo (plano de experiência, alteridade), nossas metodologias, uma vez que elas são produto e efeito de discursos de saber. Talvez possamos pensar a ideia de campo de pesquisa como território de experimentação, onde se produzem movimentos de (re)composição de cenas do cotidiano, reunindo as contradições, contestações, as continuidades e as descontinuidades que marcam as representações em torno do corpo e de suas performances de gênero, no exercício da sexualidade, como a possibilidade de uma atitude de análise ético-reflexiva, considerando-se que somos mais um na cena, pensando com e não sobre. O princípio aqui pode ser aquele derivado de Foucault e retrabalhado em Joan Scott, quando ela afirma que não são os sujeitos que produzem as experiências, mas que são produtos dessas experiências (SCOTT, 2009 [1989]). Como já sugeri, o olhar da pesquisa é sempre generificado e pensado desde a própria experiência da figura/subjetividade da pesquisadora/do pesquisador como sujeito de uma produção discursiva que porta as marcas de certa inteligibilidade. A diferença se faz na margem de liberdade e de crítica desse sujeito/ dessa sujeita, caso ela/ele tenha a coragem de uma análise sobre os processos de objetificação que considere os riscos de sua própria presença, quando experiência de assujeitamento aos regimes de verdade que produzem epistemologias normativas. Este modo recusa o olhar excitado e objetificante – que muitas vezes é encontrado em pesquisas sobre as ditas práticas e vidas ‘abjetas’. No sentido de uma subversão das políticas de conhecimento hegemônicas, aponta Guacira Louro (2004): Os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer vêm promovendo uma nova articulação entre sujeitos e objetos do conhecimento. Não são apenas novos temas ou novas questões que têm sido levantadas. É muito mais do que isso. Há algumas décadas os movimentos e grupos ligados a esses cam-
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pos vêm provocando importantes transformações que dizem respeito a quem está autorizado a conhecer, ao que pode ser conhecido e às formas de se chegar ao conhecimento. Desafiando o monopólio masculino, heterossexual e branco da Ciência, das Artes, ou da Lei, as chamadas minorias se afirmam e se autorizam a falar sobre sexualidade, gênero, cultura. Novas questões são colocadas a partir de suas experiências e de suas histórias; noções consagradas de ética e estética são perturbadas. (p.24)
As perturbações que se expressam na escrita autobiográfica (de certo modo) oferecem possibilidades para se relativizar o princípio de autoridade que “a Teoria” confere (BOURCIER, 2005). Negocia-se, desse modo, a possibilidade da análise sem desconsiderar os efeitos, as possibilidades e os limites da superfície corporal da pesquisadora/do pesquisador. Um excerto de Suely Rolnik parece contundente nesse sentido, para que não se reifique ou se tome de forma ingênua a experiência autobiográfica como consignação de individualidade: “que entendamos por ‘auto’, aqui, não a individualidade de uma existência, a do autor, mas a singularidade do modo como atravessam seu corpo as forças de um determinado contexto histórico” (s/d, p. 22). Entendendo ainda a pesquisa de campo como “um tipo de viagem – pela inquietação com outras experiências, pelo desejo de encontrar desconhecidos, pela disponibilidade para se expor a esse tipo de dificuldade, à novidade, à diferença” (CAIAFA, 2007, p. 149). A Cidade se constitui, assim, como um plano privilegiado de investigação. Seguindo o rastro de Néstor Perlongher (1987) em sua análise sobre a prostituição viril na cidade de São Paulo, pode-se compreender que “o dispositivo da sexualidade não se detém em conferir à homossexualidade uma demografia – uma base populacional. Instaura também uma territorialidade geográfica” (p.48). Os caminhos destas experimentações de alguma forma se cruzam na cidade, produzindo, às vezes, descolamentos no imaginário da sexualidade para uma Pólis. Segundo Nicolas Boivin: O espaço não se limita ao simples suporte desta sensualização do prazer. O espaço engloba o corpo e o corpo torna-se um elemento inteiro nesta configuração espacial. (...) Este conhe-
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cimento do mundo passa inevitavelmente pela sexualidade. O único obstáculo a este esquema idealizador das percepções espaciais das práticas sexuais reside no sistema de controle dos prazeres, nascidas da história de cada sociedade, de cada lugar e de cada espaço. (2007, p. 12)
A cidade e seus re/cantos e esconderijos produzem alianças táticas para a reversibilidade das posições de assujeitamento e abjeção, como aquelas que cercam a experiência das ditas identidades sexuais e das formas de produção de prazer. Dessa ideia concebo que esses lugares se constituem como espaços de educação, como lugares onde algo é ensinado e algo é apre(e) ndido através de pedagogias de gênero e de sexualidade (LOURO, 2000) desde movimentos de significação estética que entram/rasgam as cenas dos ditos “espaços limpos” para se aprender-ensinar e, consequentemente, como espaço de subjetivação. A pergunta que deriva desta aposta e que continua reverberando em meus estudos é: algo nesses espaços pode agenciar forças subversivas ou que digam respeito a um tipo de ascese direcionada a uma vida criativa? (FOUCAULT, 2001 [1984b]). Esses espaços representados como zonas de abjeção – as zonas inóspitas e inabitáveis da vida (BUTLER, 2005d [1993]) – podem apontar para algumas possibilidades de re/significação do corpo, do gênero e da sexualidade e/ou mesmo de estourar as significações normativas do ‘corpo’?
Intimidade e conhecimento nas margens(centro) da Cidade Proponho que tomemos os arquivos analisados na pesquisa de campo como arquivos vivos da Cidade construídos por interlocutores e interlocutoras que nos permitem a produção de problemas para nosso tempo e nossas instituições, nossos aparatos teóricos e, sobretudo, nossa sociedade (nas suas múltiplas combinações e arranjos político-culturais). É a partir das performances das interlocutoras/ interlocutores em uma pesquisa que podemos tratar de analisar, no rastro das formas de gestão da vida, os rasgos e as marcas discursivas que nelas se materializam e que a elas interpelam em posições abjetas. Penso aqui justamente na perspectiva genealógica que nos permitiria compreender algo dos jogos de produção da identidade e diferença (SILVA, 2007),
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em oposição à simples constatação e às classificações que alucinam muitas pesquisas imbuídas de generalizações ou totalizações. No entanto, não arriscaria afirmar que aqui se trata neste modo de trabalhar em fixar a experiência do texto sobre gênero e sexualidade em um referencial, seja pós-estruturalista, feminista de segunda ou terceira onda, queer, pós-feminista ou anarco-feminista. Uma das poucas certezas, no entanto, sugeriria que talvez possamos encontrar possibilidades para compreender os modos pelos quais em nossas sociedades (a partir de um contexto particular) nos tornamos (performamos) o que dizemos que somos. Evidentemente, algumas alianças teóricas devem ser articuladas de forma a compreender os modos de contestação das regulações e prescrições em torno da produção do corpo como superfície de abjeção, sobretudo alianças táticas com bases epistemológicas que nos permitiram tensionar as formas discursivas e os discursos que se articulam na produção de inteligibilidades (político, culturais, sociais... e das subjetividades). Entre estas táticas de aliança, um caminho possível é aquele de (re)compor os acontecimentos do trabalho de campo em termos de uma narrativa que diga respeito a uma ruptura com o murmúrio anônimo de vidas e experimentações objetificadas e desqualificadas no discurso da normalidade e das totalizações acadêmicas. Seguindo as ideias propostas por Tomaz Tadeu da Silva (2003), não se trata de “negar a realidade”, mas de “ampliar a própria noção de realidade.” (p.42) a partir da experiência viva e dos movimentos que as pessoas fazem à revelia das prescrições normativas sobre as condutas e práticas em torno do desejo e do prazer. Neste momento de conceber a forma de escrever podemos recorrer à ideia de “récit de soi” no sentido proposto por Judith Butler (2005c), onde ela sugere outra forma de ‘apreender’ algo da experiência, marcando oposição às ideias de narrativas ajustadas aos discursos normativos de saber que intentam apreender a experiência humana a partir de referentes epistemológicos hetero/sexistas. Teríamos talvez a chance de pensar que “o corpo singular sobre ao qual se refere uma narrativa não pode ser ele mesmo capturado plenamente pela narração” (BUTLER, 2005c, p. 7). Para Butler, esta história não é senão a história de uma relação – ou de um conjunto de relações – com base em um conjunto de normas. O ‘eu’ é
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despossuído sempre em certa medida pelas suas próprias condições de emergência. Dessa ideia, ela afirma que não se pode pensar uma subjetividade sem considerar a substância ética: Em primeiro lugar, as normas estão lá, à distância, e o trabalho consiste em encontrar uma maneira de se apropriar delas, de tomá-las para si, de estabelecer com elas uma relação viva. O quadro epistemológico deste encontro é pressuposto neste encontro – aquele onde o sujeito diz encontrar as normas morais e deve achar seu caminho com elas. (BUTLER, 2005c, p. 9)
Considerando-se esta perspectiva, é preciso estabelecer uma relação com o campo no sentido de adentrar de corpo nas experimentações e “construir uma vida” nos lugares que pesquisamos e com os/as interlocutores/ras que lá são nossas/nossos companheiras/ros de uma viagem e de uma ficção. Talvez fosse produtivo se nos detivéssemos a essa experiência como quem se detém a um lugar quando viaja: agarrando-me às possibilidades de estranhamento e vivendo como um estrangeiro em minha própria morada. Como afirma Caiafa: “(...) o trabalho de campo oferece uma oportunidade singular de agenciamento com o desconhecido, por realizar de diferentes formas uma viagem, por envolver estrangeirismos” (2007, p. 155). Nesse campo da deriva erótica, a única prescrição é ética e materializa-se em nossas condutas e práticas quando, deixando-nos tocar e levar por mãos anônimas, desejosas, refratárias ou simplesmente curiosas, seja em um quarto escuro, uma sauna, um bar, em um canto qualquer no jardim das delícias, temos a oportunidade de vivermos a experiência de nossos corpos-pesquisadores como quem sente seu corpo sendo ‘sequestrado’ das grades disciplinares. Eu, estrangeiro em mim e na relação com o outro, com a outra, com quem não deseja ou reivindica tampouco esses binarismos reforçados na grade discursiva da Modernidade. Um passo ou outro, mais firmes no terreno escorregadio de uma sauna ou no subir de uma sinuosa e estreita escadaria de um bar, em meu caso, me permitiam perseguir os movimentos de corpos nas/das sombras nos densos espaços do prazer em uma cidade miscigenada de erotismo e “corpos estranhos” (LOURO, 2004). Instâncias e formas sociais que, como aponta Tomaz Tadeu da Silva, “são construídas discursiva e linguisticamente” (2003, p. 42). 225
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De minha modesta experiência como pesquisador sempre busquei por nada além de uma aproximação àquilo que Michel Foucault denominou a liberdade refletida (2001 [1984d]). Um tipo de ascese que partia, sobretudo, de uma reflexão sobre o meu agir na relação com o outro, na postura de uma certa fruição e cumplicidade ética. Nesses termos, aponta Butler: O sujeito não é necessariamente produzido pela norma que inaugura sua reflexividade; nós nos confrontamos invariavelmente com as condições da própria vida que não fomos capazes de escolher. Se existir uma operação da capacidade de agir, isto é, da liberdade – esta luta – ela não tem lugar senão dentro de um campo de tensões o permitindo isto e coagindo. Esta capacidade de agir ética não é nunca totalmente determinada nem radicalmente livre, mas a sua luta ou seu dilema primeiro é de ser produzida por um mundo no mesmo instante em que cada um/a deve construir a si mesmo de certa maneira. Esta luta contra as condições impostas à vida de cada um/a – uma capacidade de agir é igualmente tomada possível paradoxalmente pela persistência desta condição originária de não-liberdade. (2005c, p. 19)
Nesse momento se apresenta a ardida dimensão da ética como uma prática, como a maneira como cada um deve (talvez nosso único dever) refletir sobre a forma como se constitui a si mesmo como sujeito moral inserido em um determinado código (FOUCAULT, 2001 [1984b]). O que posso dizer dessa experiência é que meus passos nesse caminho se quiseram acertados, mas meu andar, muitas vezes, balançou na vertigem da experiência que não pude deixar de viver com meu próprio corpo. E na tentativa de deixar o rastro indicativo de uma margem mínima de liberdade, creio que posso dizer que desse trabalho saí, em algum sentido, transformado. Procurei não deslizar na arrogância de imaginar que poderia ter modificado ou moldado a vontade política de meus companheiros – simplesmente porque um encontro entre um ‘universitário’ e um ‘marginal’ se produziu. Adentrei a escuridão de labirintos de perdição e prazeres. E neles reencontrei-me outro e com outros. Apenas a umidade do rastro líquido/vaporoso do pensamento foucaultiano dava-me alguma certeza de onde eu estava e o que estava fazendo (de mim e da pesquisa). Tentei, do modo mais respeitoso 226
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possível, seguir fazendo o que nos propôs Foucault: a história dos problemas de nosso tempo, pesando sempre nos riscos do presente. E veio desse rastro molhado a coragem para enfrentar de frente, e não poucas vezes nu, as armadilhas do dispositivo da sexualidade na pesquisa. Aqui está um movimento que imagino tenha me possibilitado compreender minimamente como um conjunto de práticas discursivas faz algo entrar no jogo do verdadeiro e do falso e, ao mesmo tempo, como se constitui este algo como objeto para o pensamento moral ou para a reflexão ética (FOUCAULT, 2001 [1984d]). Creio que essa perspectiva ofereceu-me condições de pensar/viver uma pesquisa marcada pela intencionalidade de compreender como os sujeitos situados em determinados jogos de verdades, tais quais aqueles que instituem a trama normativa entre envelhecimento e (homo)sexualidades, se movem e contestam os significados e as identidades a si atribuídos e/ou corporificados; movimento de pensar e viver junto – sem operar na distinção “eles”/ “nós”. Busquei o que poderia indicar alguma tensão nas representações alinhadas à ficção das hetero e homonormas, especialmente na sua interseccionalidade (inter)geracional (no caso de minha pesquisa sobre homo/erotiCidade e envelhecimento) e diante das performatividades que definem um conjunto de inteligibilidade através de normas físicas e morais (condutas). Assim, os movimentos que se articulam no confronto entre as práticas de reiteração das representações de masculinidade e as práticas do prazer permitiram-me pensar que não há uma hegemonia, seja ela durável ou efêmera, que apreenda o gênero de forma inexaurível. Neste sentido, retomo a importância do corpo do pesquisador como experiência não ‘turística’ nesta cena – é que estas formas generificadas de ‘fazer’ o humano encontram possibilidades para sua desestabilização nos jogos do prazer (mesmo que seja quase que somente momentaneamente, na maioria das vezes). O que insinuo é que talvez seja possível pensar em movimentos de desgenerificação do corpo – desfazer o gênero, considerando-se a ideia de que “o gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e de feminino são produzidas, mas ele poderia muito bem ser o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p. 59). A aposta do olhar sobre o campo e desde o campo sempre foi pensar que as escapadas no exercício da sexualidade me permitiriam imaginar certa de-
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sestabilização das representações de gênero. E a partir dos estudos de gênero e dos estudos queer (BUTLER, 2004, 2005a [1990],b,c, 2010; LAURETIS, 2006; LOURO, 2000, 2004; RUBIN, 1998 [1975]; SEGDWECK, 2008 [1990]; SCOTT, 2009 [1989]; BOURCIER, 2005; PRECIADO, 2004, 2009) segui procurando possibilidades para uma implosão dos binarismos com base nas práticas de sociabilidade e culturas eróticas. No entanto, na busca de encontro com aquilo que poderia insinuar modos de desestabilização das formas institucionalizadas do gênero e com as possibilidades de experimentação da sexualidade (uso dos prazeres) não encontrei mais do que pequenas alianças dispersas em um contexto ‘estigmatizado’. Mas, ali e acolá, pude ouvir evocações e experimentar, também desde meu corpo, alguma forma de desestabilização. O encontro de corpos ‘ininteligíveis’, mas insistentes, vestidos com as marcas do tempo, ou produzidos na ‘deformidade’, estiveram sempre prontos a desnudar-se, sem muitas objeções às negociações que teriam de fazer para viver um instante de prazer.
Pistas para desaquendar Os desafios éticos desta perspectiva de pesquisa não são poucos, mas não são mais difíceis do que qualquer outro estudo que se sustenta no compromisso político com as discussões sobre as moralidades e normalidades acionadas e reiteradas para a manutenção do dispositivo da sexualidade ou de forma mais ampla da biopolítica contemporânea. O ‘problema’ maior – o escândalo ou a polêmica – residem, talvez, no fato de que esta proposta de pesquisa a partir da experiência do corpo da pesquisadora/do pesquisador consiste no ato de experimentar um campo imerso na deriva dos prazeres e em espaços de sociabilidade que ainda são veiculadas sob pânicos morais de todas as ordens (acadêmico-prescritivas-reacionárias, bio-patologizantes, pedagógico-morais, etc.). Não sugiro aqui a ‘promiscuidade intelectual’, mas um trabalho de compromisso com a ética reflexiva da liberdade (FOUCAULT, 2001 [1984e]. Fazer este que inclui pensar o dispositivo da sexualidade na sua experiência mais ‘atormentada’ e desestabilizadora – o prazer que escapa e contesta. O prazer como dimensão cultural. Claro que estou atento aos perigos desta via(da)gem.
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E sei bem que o trabalho com “seres humanos” esbarra no que Edward MacRae (2006) denomina de imperativos epistemológicos. MacRae, ao comentar a resolução 196/96, do Comitê de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde, que orienta a pesquisa “envolvendo seres humanos”, refere que a perspectiva imposta nesse modelo de regulamentação não atende às demandas de trabalho de campo envolvendo temas e grupos “sensíveis” ou ocultos, sobretudo, porque impõe um modelo que “despolitiza os problemas humanos”, tomando-os pelo viés técnico-cientificista e muitas vezes referendando-se em bases biológico-naturais . Entendo que uma pesquisa com pessoas – com gente – não pode colocar as coisas em termos de exame, objetificando as subjetividades. Os sujeitos no campo são partícipes fundamentais do processo de produção do conhecimento, são interlocutoras e interlocutores diante de um problema de pesquisa, eles e elas não são o problema. Isto é, com eles/elas que produzimos/fazemos os problemas de nosso tempo, problemas que apontam, revelam desde o avesso das normas, o que nossas sociedades são: hierarquizantes e totalitárias, fascistas, moralizantes. Nossos problemas não devem ser o que as pessoas são, mas o que as impede de devir. A destreza, a delicadeza e o cuidado são preocupações constantes no percurso desse tipo de trabalho. Neste árduo terreno do prazer, que é ainda “deliciosamente perigoso”, o contexto e as suas possíveis contestações do campo oferecem-se como pontos de análise na perspectiva de pensar quais seriam/ foram as condições de possibilidade nestes espaços e que tipo de perguntas puderam ser feitas desde os encontros, marcados pela aproximação e vivência de abjeção. O que é possível ser problematizado (e perguntado) e em que medida se dá esta autorização, dizem em muito sobre o lugar que ocupamos nestas cenas. É necessário que pesquisemos com “simpatia”, com o sentimento de ter estado lá e de ter escrito em companhia das vozes polifônicas. Como indica Janice Caiafa (2007, p. 152-153): (...)o afeto que nos permite entrar em ligação com os heterogêneos que nos cercam, agir com eles, escrever com eles. O co-funcionamento ou simpatia difere tanto da identificação quanto da distância, que Deleuze (1977:67) menciona como ´duas armadilhas´. Porque a distância nos indica ´o olhar do entendimento´, ´um olhar científico asseptizado´, enquanto a identi-
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ficação nos leva ao contágio, à confusão com o outro. Nos dois casos perdemos a força da alteridade, a oportunidade de entrar em composição com os heterogêneo. Perdemos o que a simpatia nos proporciona: esse ‘corpo-a-corpo’. Deleuze observa que não há nenhum julgamento na simpatia. Aqui não é questão de distanciar-se para compreender o outro, nem tampouco de tomar-se por esse outro, mas de ter algo a ver com ele, ‘alguma coisa a agenciar com ele’.
Minha provocação final é de que façamos da pesquisa (em nosso caso nas Psicologias) um modo problematização que escarnifique os regimes discursivos que se organizam através da gestão da vida, controle, deciframento, incitação para o corpo dócil e útil, da ordem e organização espacial e institucional das subjetividades - considerando que gênero e sexualidade se articulam aqui como dispositivos nos jogos de prescrição e de controle evidenciando pedagogias para ‘ser/parecer humano’. Aquendando as/nas rachaduras, diante e com o que e quem escapa, ousemos pensar outramente a sexualidade, perturbando-a e colocando-a fora do lugar central de deciframento. Não há nada a ser revelado – uma vez que a materialidade é efeito dissimulado de poder, como diria Judith Butler. No rastro das provocações de Teresa de Lauretis (2007), em relação aos arranjos teóricos queer, a questão se dirige então à elaboração de “outro horizonte discursivo”, acompanhando movimentos que nos permitem viver/ pensar a sexualidade do ponto de vista de uma erótica, não de uma ciência sexual ou sobre as profundezas do ser. Seria o caso de provocarmos em nossos estudos e pesquisas a indução política diante de efeitos de verdades – onde se fabrica qualquer coisa que ainda não existe, como diria Foucault (2001 [1977], p. 236): “(...) ‘ficciona(r)mos’ uma política que ainda não existe a partir de uma verdade histórica”. A sexualidade como política de subjetivação e a ´liberação´ e profusão dos prazeres, do devir. Isto significa reafirmar o caráter fabricado/ficcional e político de uma pesquisa, questionando o lugar de quem pode ou não dizer algo, conhecer algo, analisar. Afinal: “Não se tem o direito de perguntar quem, portanto, é esse que interpreta? É a própria interpretação, forma da vontade de poder, que existe (não como um ‘ser’, mas como um processo, um devir), enquanto paixão” (NIETZSCHE apud BARTHES, 2006, p. 72). 230
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Foucault (2006 [1984]) acomoda um pouco os desafios sobre este jeito enviesado de produzir problemas: ¿Qué valdría el encarnizamiento del saber si sólo hubiera de asegurar la adquisición de conocimientos y no, en cierto modo y hasta donde se pude, el extravío del que conoce? Hay momentos en la vida en los que la cuestión de saber si se puede pensar distinto de cómo se piensa y percibir distinto de cómo se ve es indispensable para seguir contemplando o reflexionando. (p. 12)
O campo e nossas/nossos companheiras/companheiros nos indicam os caminhos por onde devemos nos perder para deitarmos com alguma problematização ética e, efetivamente, transformadora em nossas sociedades normativas, demonstrando não apenas a necessidade de outros modos de conhecer (descobrir algo ali naqueles lugares e sobre aqueles sujeitos), mas interpelando a pesquisa em outra disposição para dar corpo teórico às suas experimentações e fazendo uma dobra sobre o que pensamos que é conhecer, desaquendando5 os fascismos epistemológicos e as tirarias normativas. Precisamos realizar criações culturais enquanto movimentos éticos, estéticos e políticos na pesquisa e em nossas práticas psi, compreendendo o corpo como uma força possível para multitudes de prazeres e de sentidos. Não mais a corporificação-superfície dissecada por disciplinas e moralidades. Prazer/Fruição: terminologicamente isso ainda vacila, tropeço, confundo-me. De toda maneira, haverá sempre uma margem de indecisão: a distinção não será origem de classificações seguras, o paradigma rangerá, o sentido será precário, revogável, o discurso será incompleto. (BARTHES, 2006, p. 8)
5 Para usar o reverso da expressão aquendar: banir, sair, ir embora, eliminar, deixar, esquecer.
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educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira Carina Alexandra Rondini1 Fernando Silva Teixeira Filho2 Lívia Gonsalves Toledo3
Breve Histórico da educação Sexual no Brasil A Educação Sexual é hoje um processo e não deveria se limitar a uma disciplina específica dentro do currículo escolar. Tal processo se instaura a partir de uma série de políticas, éticas, procedimentos, atitudes, comportamentos, conteúdos e reflexões que visam dar espaço, voz, letra, expressão e materialidade ao corpo, ao desejo, aos afetos, às emoções, às sensações e à cognição dos envolvidos neste trabalho. Percorrendo o histórico da Educação Sexual no Brasil, notaremos que os primeiros investimentos em políticas públicas que trataram das questões de atenção às crianças e adolescentes iniciaram na década de 30, com a criação do Departamento Nacional da Criança, visando proteger a maternidade, a infância e a adolescência e, na década seguinte, a criação do Serviço de Assistência a Menores. Essas políticas tinham cunho de legitimação do controle, da disciplina e da normalização, especialmente sobre as classes ditas “perigosas”, isto é, com maiores índices de pobreza, prostituição e a família proletária (ABIA, 2001, p. 17). Nos anos 60, as demandas e reformas sociais surgiram e prepararam o terreno para as reivindicações dos anos 70 que, por força dos movimentos feministas, conseguiram introduzir nos currículos escolares a abordagem 1 Doutora em Engenharia Elétrica. Professora Assistente Doutora junto ao Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP. E-mail:
[email protected] e/ou
[email protected] 2
Doutor em Psicologia Clínica, Psicólogo. Professor Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP. E-mail: fteixeira@assis. unesp.br
3 Psicóloga e Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP. E-mail:
[email protected]
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da Educação Sexual. Porém, como as políticas públicas para este setor eram apoiadas pelos blocos de empresários da área hospitalar, pelas cooperativas e seguros de saúde, indústria farmacêutica, de equipamentos médico-hospitalares, burocracia estatal representada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e pelo Ministério da Saúde, vemos que há uma concentração na assistência em detrimento das ações preventivas (ABIA, 2001, p. 17). Foi dentro desse contexto que, em 1974, o Conselho Federal de Educação implementou a Educação Sexual nas escolas de segundo grau, com uma abordagem centrada em questões biológicas e médicas, sem abarcar a discussão sobre comportamentos e valores sexuais. Dois anos depois, a Educação Sexual voltou a ser uma responsabilidade exclusiva da família, isto é, em 1976, o governo não mais se responsabilizou pela Educação Sexual dando maior atenção a temas sociais e econômicos. Na década de 80, entretanto, alguns fatores forçaram a mudança de uma política de saúde pública baseada em um modelo de atenção centralizado e seletivo para um modelo descentralizado e universal (sem que isto implicasse em uma modificação imediata no ethos conservador das políticas). Dentre estes fatores, quatro merecem destaque: 1) o envelhecimento da população; 2) a “onda jovem”, isto é, aumento do volume das faixas etárias de 10 a 24 anos em decorrência da queda da mortalidade infantil e das taxas de fecundidade; 3) aumento das taxas de gravidez na adolescência; e 4) o avanço da AIDS no país. Somando-se ao fim da ditadura militar, tais fatores elencados levam novamente ao espaço escolar a temática da Educação Sexual, porém não mais de cunho assistencialista, mas agora partindo de uma abordagem que Arilha, Unbehaum, Medrado (1998, p. 23) denominaram de “preventivista”. A ideia de a sexualidade ser uma questão de saúde começou a tomar consistência jurídica e de Direitos Humanos, primeiro, em 1988, com a promulgação de uma nova constituição no Brasil que, em seu Artigo 227, determina que cabe ao Estado, à família e à sociedade o dever de proteger integralmente a criança e o adolescente. E, segundo, na década de 90, com a criação e promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.) por força da Lei 8.069/90, que legisla com fins de assegurar à criança e ao adolescente os direitos à sobrevivência, ao desenvolvimento, à proteção e à participação social.
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Até 1996 a formalização da Educação Sexual nas escolas era “garantida” por meio do tópico de Educação para a Saúde exclusivamente nas áreas de Ciências e Biologia. Neste mesmo ano, entretanto, foram elaborados e homologados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) voltados para os ciclos básico, fundamental e médio, contendo um tópico denominado orientação sexual4. A partir dos PCNs, muitos projetos foram criados em níveis regionais e estaduais para atender à exigência da inclusão de discussões sobre Educação Sexual nas escolas. A grande inovação deste período foi a inserção do conceito e discussões sobre gênero5 como fator de vulnerabilidade à saúde sexual e física dos jovens, bem como a inserção do tema do uso indevido de drogas (ECOS, 1999). Todos estes temas passaram a ser abordados transversalmente, isto é, recortando e abrangendo todas as disciplinas ensinadas na Escola. Tendo como eixo norteador a ética, a cidadania e os Direitos Humanos, os PCNs situam a Educação Sexual em um novo significado: ela passa a ser um processo voltado a educar os envolvidos para a democracia, a partir da discussão da necessidade de transformação das relações sociais nas suas dimensões culturais, políticas e econômicas visando a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos para todos os gêneros sexuais, a participação e a (co) responsabilidade pela vida social. Neste sentido, a Educação Sexual visa agora não apenas informar os envolvidos sobre os processos de Reprodução Humana ou simples diferenças sexuais entre homens e mulheres, mas também propor reflexões que transformem as hierarquias sociais, de gênero e de sexualidades, formadoras de estigmas e, consequentemente, desigualdades, violências e desrespeito aos Direitos Universais dos Seres Humanos.
4 Nos PCNs, a palavra orientação sexual é utilizada como correlata de Educação Sexual para explicitar as ações desenvolvidas pela escola, família e/ou serviços de saúde visando a preparação de crianças e jovens para uma vida sexual prazerosa, sadia, segura e responsável. Porém, o termo é também utilizado para designar o direcionamento (a orientação) do desejo sexual: se voltado para o sexo oposto é chamado heterossexual; se voltado para o mesmo sexo é chamado homossexual; e, se voltado para ambos os sexos, chamado bissexual (BRASIL, 1998). 5 O conceito de gênero está sendo empregado aqui como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças que distinguem os sexos, e como uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1986 [2003], p. 289). Assim, falará dos chamados papéis ou expressões sexuais (o que se espera socialmente daqueles nascidos biologicamente machos e fêmeas), das identidades de gênero (a atribuição de categorias relativas à masculinidade e à feminilidade dos corpos, naturalizados, respectivamente, aos conceitos homem e mulher) e das identidades sexuais (a assunção política de uma identidade social para nomear a orientação do desejo dentro do repertório disponível no contexto no qual o indivíduo está inserido).
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educação Sexual: revendo elementos higienistas, de heresia e de militância A primeira razão para se trabalhar a Educação Sexual nas escolas é por uma questão informativa. Os alunos serão informados sobre as formas de contaminação por Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) ou pelo vírus HIV, sobre o funcionamento e fisiologia dos aparelhos sexuais humanos, sabendo como ocorre uma gravidez ou evitando uma violência doméstica, etc. A escola, que já desenvolve programas de Educação Sexual com características meramente informativas, estará colaborando para diminuir a vulnerabilidade e o risco de que algum destes riscos venha a atravessar a vida de seus alunos. Porém, sabemos que informar não é condição necessária para que as pessoas não incorram em risco. Para exemplificarmos esse fato, recorreremos aos dados de um survey6 realizado em 2009, junto a 2282 adolescentes, de ambos os sexos, com 17 anos em média (erro padrão = 0.03), estudantes do ensino médio público, em três cidades do Oeste Paulista, a saber: 714 (31,3%) de Presidente Prudente, 779 (34.1%) de Assis e 789 (34.6%) de Ourinhos. Desse contingente de alunos7, 2159 (95.2%) se autodeclararam heterossexuais, sendo 1245 (57.7%) do sexo feminino, e 109 (4.8%) como não-heterossexuais, assim distribuídos: 38 bissexuais; 12 gays, 11 lésbicas e 48 outros (transexual, recusaram-se a definir ou não sabiam). Embora a maioria dos heterossexuais 1480 (68.9%), em 2148 respondentes, e dos não-heterossexuais 75 (70.1%), em 107 respondentes, tenham declarado se sentirem bem informados sobre a prevenção às DST/HIV-AIDS, encontramos em relação à variável sexo desprotegido (com penetração e sem o uso do preservativo) uma razão de 100 heterossexuais praticando sexo desprotegido, para cada 14 não-heterossexuais. Verificamos ainda que, independentemente do sexo e orientação sexual, cerca de 17.0% dos/as adolescentes conversam com os/as professores/as como 9ª ou 10ª fonte de informação, e 17% buscam 6 Trata-se de projeto de pesquisa aprovado em Edital lançado em 2007 dentro do Acordo de Cooperação PN-DST/AIDS – SVS/Ministério da Saúde/Bird/Unodc (projeto ad/bra/03/h34 - acordo de empréstimo Bird 4713-BR), o qual o financiou. O mesmo foi desenvolvido em parceria com as seguintes instituições: ONG NEPS (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades), na qualidade de mantenedora, e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades (GEPS) vinculado ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP de Assis, na qualidade de executor. 7 Quatorze alunos não declararam sua sexualidade e/ou seu sexo biológico.
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informações em livros, artigos e revistas específicas. A partir do recorte de sexo, podemos inferir que parece haver um percurso diferenciado para ambos quanto à busca de fontes de informação, isto é: 1) para os rapazes: amigos – Internet – pai – mãe – TV – propagandas – não conversam; e, 2) para as moças: amigos – mãe – namorado – médicos – Internet –leituras específicas. Já, a partir do recorte de orientação sexual, encontramos outro percurso: 1) para os heterossexuais: amigos – mãe – namorado – Internet – TV – propagandas – leitura; 2) para os não-heterossexuais: amigos – Internet – mãe – namorado – TV – não conversam – médicos. Houve ainda variação quanto à prioridade das fontes informacionais a partir do recorte de sexo e orientação sexual. Por exemplo, para os rapazes, a Internet é a 2ª fonte de informação, ao passo que para as moças ela é a 5ª. No recorte de orientação sexual, a Internet está em 4º lugar para os/as jovens heteros e em segundo para os/as não-heterossexuais. Além disso, inquiridos/as a respeito de temas que gostariam de conversar na escola verificou-se que as jovens preferem conversar sobre violência sexual contra crianças e adolescentes e os jovens sobre drogas e álcool. Ainda, comparativamente aos rapazes, vemos que as moças preferem também conversar sobre diversidades sexuais e métodos contraceptivos. Entretanto, independentemente do sexo, parece haver mútuo interesse nos modos de infecção, prevenção e testagem do HIV, com especial atenção para as suas manifestações sintomáticas. Assim, para que um programa de Educação Sexual na escola seja efetivo e garanta aos alunos o direito à saúde e cumpra o seu dever de proteger as crianças e os adolescentes de situações de risco, é preciso pensar o paradigma, os propósitos, os conceitos, os lugares, os conteúdos e os modos de se trabalhar a Educação Sexual, levando-se em consideração os anseios e as necessidades dos alunos. Muitas reações negativas surgiram por conta do estigma em relação ao HIV e à AIDS. Evidentemente que sozinha esta epidemia não poderia ter provocado isto. Tal processo é histórico e corresponde ao modo como frequentemente as sociedades respondem às epidemias (Jeolás, 1999) e às doenças sexualmente transmissíveis (Carrara, 1994). Autores como Susan Sontag (1989) mostraram justamente esta face oculta da AIDS, que até hoje carrega inúmeras metáforas de significação, de exclusão e de desigualdade. Estas metáforas se apoiam, jus-
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tamente em relações estigmatizadas anteriores ao surgimento do HIV/AIDS, a saber: a sexualidade, o gênero, a raça, a etnia, a pobreza ou a marginalização econômica (Parker & Agleton, 2001). Grmek (1995), em artigo que discorre sobre a AIDS enquanto epidemia emergente e em decorrência de progressos tecnológicos, também concorda com a ideia de que a face sociológica que permitiu o avanço da AIDS reside justamente nas relações estigmatizadas apontadas, já que as mesmas produzem desigualdades férteis para a expansão biológica do vírus HIV. Assim é que o estigma, enquanto marca/sinal de diferença, historicamente passou a ter significado de uma marca de deterioração de identidades, tal qual estudado por Goffman (1975). Neste estudo, o autor nos fala de uma relação de (des)valorização social variante e variável conforme o contexto em que esta marca/diferença está inserida8. Mas, avançando nestes estudos, observa-se que os fatores que levam um estigma a ter um valor social positivo ou negativo não residem apenas em elementos culturais. Em pesquisa realizada por Teixeira Filho (2000), onde se trabalhou com pessoas nascidas com extrofia vesical9 – que em Medicina é concebida como “malformação congênita” –, evidenciou-se que a relação que determina o valor deste estigma neste corpo com esta condição física é justamente uma relação de poder, de dominação, de controle e saber sobre os corpos humanos, não dependendo apenas do contexto de uma cultura particular, de eventos históricos ou econômicos, políticos ou de situações sociais. Outrossim, estes fatores são determinados por processos de naturalização destas marcas que consistem em atribuir a estas valores inatos, retirando das mesmas toda a sua potência de singularização, de individuação (TEIXEIRA-FILHO, 2000, p. 75). Neste sentido, o estigma é uma estratégia de fabricação da desigualdade social (PARKER & AGGLETON, 2001, p. 16) que só pode ser compreendida plenamente na intersecção entre poder, cultura e diferença, que são elementos tipicamente encontrados em sociedades normatizadas e hierarquizadas como a nossa. 8 O conceito de contexto está sendo empregado aqui tanto como o local onde esta marca está inserida, quanto o sistema e instituições. Assim, o contexto pode ser a cultura, a família, a comunidade de bairro, a cidade, os sistemas de saúde, as escolas, a educação, etc. 9 O termo extrofia é derivado do grego ekstriphein, que significa “sair de dentro para fora”, ou seja, revirar-se de dentro para fora; com o sufixo – ia, diz-se ekstriphein. A medicina classifica esta condição física como tal por conta de que, nestes casos, a bexiga está exposta na barriga. Tal condição física tem graus, variando de malformações penianas (epispadias) até as mais severas, que é a extrofia cloacal.
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A partir desta compreensão de que o estigma tem a sua força de (re)produção de desigualdades sociais no poder e na cultura que determinam os modos como se irá lidar com as diferenças (físicas, biológicas, genéticas, sexuais etc.) é que a Educação Sexual irá se basear em paradigmas, isto é, em um conjunto de ideias que pautam as propostas de trabalho, (Kuhn, 1990), que chamamos de sócio-históricas e desconstrucionistas. Tais propostas terão como princípio a desnaturalização das relações sociais, dos conceitos e dos mitos visando esclarecer que tudo o que existe tem uma história produzida a partir das relações humanas. A vantagem de se basear a Educação Sexual nesta proposta é a possibilidade de diminuir a exclusão de minorias sociais na medida em que se tem uma compreensão dos fatores que produziram as desigualdades a elas impostas. Assim é que se pode dizer que a Educação Sexual hoje trabalha a partir da ética da inclusão, da cidadania e de respeito e cumprimento aos Direitos Humanos. A Educação Sexual na era da AIDS tornou-se um híbrido, já que mistura elementos higienistas, pois visa informar “corretamente” as pessoas sobre sexo, sexualidade e prevenção às DST/HIV-AIDS; elementos de heresia, pois, para atingir seus objetivos preventivistas necessita desmistificar mitos e preconceitos tradicionalmente veiculados pelas religiões, dogmas e políticas institucionais, bem como elementos de militância, pois se espera, por intermédio dela, resgatar direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão, especialmente o direito ao prazer e ao desejo de desejar, de singularizar-se sem que isto se torne um “caso de polícia”.
As práticas higienistas: o modelo de risco e vulnerabilidade O que podemos afirmar é que os comportamentos de risco são gerados por uma complexa trama de acontecimentos que estão intimamente ligados à vulnerabilidade dos indivíduos. Por exemplo, em relação à AIDS, como sugere Jeolás (1999, p. 219) em pesquisa de doutoramento realizada com jovens adolescentes em Londrina/PR: [...] tentar entender o risco de contaminação pelo HIV entre jovens nos remete a um composto sincretismo complexo, ou seja, nos força a entender a sinergia e contradições inerentes ao processo de se lidar com as representações dos riscos e perigos vividos pelos jovens, bem como aqueles aos quais mais se sujeitam, isto é, àqueles aos quais estão mais vulneráveis. 241
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Usaremos o conceito de vulnerabilidade, emprestado da epidemiologia e introduzido nesta por Thomas Mann, e trazido ao Brasil por Ayres et al (1998 apud ABIA) como contraponto à ideia de risco. Segundo ele, o conceito de risco, embora bastante operacional na epidemiologia, tem “frequentemente, apresentado ‘custos’ técnicos, sociais e políticos superiores a seus benefícios” (Ayres et al., 1998 apud ABIA, p. 17) dado o grau de preconceito relativo aos então chamados “grupos” de risco ou a despreocupação em relação à epidemia de quem “não tinha comportamento de risco” unicamente, por exemplo, por se estar casado(a). O conceito de vulnerabilidade foi então construído e aplicado no campo da saúde relacionado ao esforço de superação dessas práticas estigmatizantes. A partir do entendimento da fragilidade desse método para a prevenção, criou-se o conceito de vulnerabilidade, que depende de um conjunto integrado de aspectos individuais, sociais e institucionais. Deste modo é que a ideia de risco dá lugar à ideia de vulnerabilidade, devendo ser compreendida como um grau de exposição a quaisquer fenômenos que atravessam os indivíduos (AIDS, gravidez na adolescência, drogas, violência, acidentes, etc.), sem contudo serem unicamente gerados pelos próprios indivíduos. Por isso, por vulnerabilidade compreendemos, a partir das conceituações de Ayres (2002), como sendo um conjunto de aspectos individuais e coletivos a partir dos quais podemos avaliar objetivamente as diferentes chances que todo e qualquer indivíduo tem de se expor a diferentes graus e modos de contaminações e violências/sofrimentos (psicológicos, morais, físicos e sexuais) e, de modo indissociável, ao maior ou menor acesso a recursos adequados para se superá-los/evitá-los. De acordo com o autor, vamos entender que uma pessoa está mais ou menos vulnerável a depender não de seus comportamentos imediatos da ação voluntária, mas em decorrência das “condições objetivas do meio natural e social em que se dão esses comportamentos, ao grau de consciência que estes indivíduos têm sobre tais comportamentos e condições objetivas e ao efetivo poder de transformação de comportamentos a partir dessas consciências” (AYRES et al., 1998 apud ABIA, p. 18) – também conhecida como resiliência. Assim é que no contexto em que o conceito de vulnerabilidade surgiu, ou seja, o da prevenção da AIDS há três planos a serem considerados, a saber: 1)
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o individual; 2) o social; e 3) o institucional ou programático (AYRES et al., 1998 apud ABIA, p. 23-24). O plano individual diz respeito aos determinantes sociais que, ao longo das experiências pessoais, fazem mudar o comportamento de uma pessoa. O plano social remete ao contexto de existência dos indivíduos, isto é, suas condições socioeconômicas, cotidiano, aspectos culturais que influenciam na construção de sua sexualidade (tabus, mitos, representações sobre sexo e sexo seguro, relações de gênero). O plano institucional ou programático, por fim, diz respeito aos investimentos políticos e públicos para garantir os direitos dos cidadãos ao acesso às informações, à educação, aos programas de prevenção, materiais informativos, insumos, criação de programas de assistência e prevenção (AYRES et al., 2003). Deste modo, informar os alunos sobre as formas de risco à infecção pelo HIV, o funcionamento das doenças e do corpo é apenas um primeiro processo. Mas o segundo processo de problematizar o estigma, a discriminação e as relações de poder que envolvem o HIV lançando as pessoas em graus diferenciados de vulnerabilidade é um processo ainda complicado e difícil para a maioria dos profissionais.
elementos de heresia: revendo as questões de gênero Para se trabalhar gênero na Educação Sexual, os principais conteúdos a serem compreendidos são: sexo, sexualidade, gênero e orientação sexual (HALSTEAD, 2001; HILTON, 2001). Por sexo se entende apenas as condições físicas masculinas e femininas. Isto é, biologicamente determinadas: o cariótipo XX (Feminino) ou XY (Masculino) e os órgãos internos e os genitais correspondentes. Além disto, existe o hermafroditismo, que é uma condição física onde uma pessoa pode nascer com cariótipo de um sexo e os órgãos internos e genitais de outro ou de ambos. A sexualidade desde Freud (1905 [1976]) é entendida como algo que transcende o sexo biológico, ao qual corresponde a reprodução. Freud deu a esta palavra uma acepção muito ampla, de modo que a mesma fala dê certo modo social, institucional e individual de se buscar o prazer. E prazer aqui não se resume tampouco ao ato sexual. Prazer é visto como uma descarga de tensão.
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Do ponto de vista individual, isto é, a sexualidade de um sujeito, traduz-se no prazer advindo da descarga de um excesso de energia que o próprio corpo desta pessoa teria produzido. Por exemplo, no ato de sugar o seio, a mamadeira ou o dedo, o corpo do bebê produz energia que deverá ser aplicada a um destes fins. Só que esta energia produzida não chega a ser toda ela gasta neste ato. A este excesso de energia, Freud denominou de pulsão. Essa pulsão, portanto, precisará ser descarregada em outra coisa (ato ou objeto), além daquela já utilizada na sucção do leite ou do dedo. A princípio, qualquer coisa pode servir para descarregar esta pulsão, já que a mesma não tem um objeto específico por não se tratar de instinto e tampouco reflexo. Deste modo, o bebê descarrega esta pulsão investindo primeiramente no corpo próprio e, posteriormente, em outros objetos externos a ele (um brinquedo, os próprios pais, etc.). Este seria, portanto, o fluxo primário da pulsão. Ocorre que a sociedade, por intermédio da instituição familiar, da escola, etc., dita normas e condutas gerais de satisfação dos prazeres. É, propriamente, de uma política e cultura do corpo e do prazer que estamos falando. Assim, esta criança terá que aprender, desde pequenina, a lidar com suas formas individuais de obter prazer e com as regras sociais instituídas para tal. E é nesse jogo conflituoso que a sexualidade estabelecerá sua dimensão social, institucional e cultural. Digamos, por exemplo, que uma criança do sexo masculino queira, numa brincadeira junto a meninas onde estas estejam brincando com tintas, ao interagir com elas, pintar suas próprias unhas. Sabemos que esse modo de satisfação, em sociedades como a nossa, geralmente não lhe é permitido por conta das regras de gênero. O gênero é a expressão sócio-histórico-cultural de regras de comportamento que se projetam sobre o sexo biológico. Deste modo, mesmo antes de uma criança nascer, os pais, a sociedade, enfim, já constroem expectativas a respeito do sexo do bebê e do que é ou não apropriado para ele: a cor das roupas, os brinquedos e a sua história de identificação, que começa, por exemplo, com o nome a ser escolhido para esta criança. Assim, a nossa criança do exemplo acima teria, a depender da história que lhe foi atribuída pela sua família, pela escola, etc., um pouco de dificuldade em obter prazer pintando suas unhas junto com aquele grupo de meninas, pois dele a sociedade espera um comportamento masculino, ou seja, um papel sexual específico na sociedade e dentro do seio daquela família. Ser masculino ou feminino, portanto, é um atributo cultural, variando de sociedade para sociedade, de geração a geração. 244
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A orientação sexual nos diz do desejo e atração sexual de uma pessoa em relação a pessoas de sexo distinto ou semelhante ao seu, consideradas todas as suas variações corporais, etárias, étnicas, etc. Portanto, se o desejo sexual se orienta para o sexo oposto fala-se de heterossexualidade; se para o mesmo sexo fala-se de homossexualidade; e se para ambos os sexos fala-se de bissexualidade. A orientação sexual, portanto, atravessa a identidade de uma pessoa, sem, contudo, se resumir a esta. Assim é que, por exemplo, se explica o fato de uma pessoa ter experiências de práticas sexuais heterossexuais, mas em um determinado período de sua vida decidir-se por compartilhar sua história com alguém de mesmo sexo biológico que o seu e vice-versa. O desejo se dirige, portanto, a um objeto e não apenas a uma prática, onde esta passa a ser apenas a via pela qual se chega ao objeto. Por exemplo, imaginemos uma mulher que busque confiança, carinho, amorosidade e compreensão numa relação amorosa. Pode ocorrer que ela encontre isto em um homem ou em uma mulher. São justamente estes objetos que a atraem e não necessariamente os órgãos e atributos sexuais de uma pessoa. Neste caso, imaginemos que esta mulher encontre estes objetos de satisfação de seus desejos em um homem. Assim, ela será classificada socialmente de heterossexual, já que seu encontro carnal se efetua com alguém de sexo genital diferente do seu. Mas isto não nos dará garantia de que seu desejo por estes objetos de satisfação só possam ser encontrados nas relações com homens ou ainda com aquele homem em específico. Resumindo, nossos desejos se dirigem mais às sensações, emoções, imaterialidades e sutilezas das relações humanas e menos aos genitais das pessoas. É fundamentalmente por isto que o ato sexual não dá garantia de gozo e prazer sexual. Há que se encontrar no ato sexual aquilo que motiva o erotismo: os objetos invisíveis da paixão, dos sentimentos, dos afetos. Cada um de nós tem os seus guardados em fantasias sexuais e projetos de vida e felicidade.
Atuação militante: por que a escola e o que esperar dela? A escola, enquanto um espaço de socialização secundária para crianças e adolescentes, é um terreno fértil para a promoção da cidadania. É na escola que a criança terá o contato com a diversidade da cultura humana, por exemplo, percebendo que cada criança é diferente uma da outra, que a “mãe de fulano é
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diferente da do ciclano”, que o “pai do José é diferente do pai do Mário”, que o corpo dele é diferente do corpo do amigo e/ou da amiga, enfim, na escola é que se aprende desde pequeno a ser gente, a ser humano, a ser “civilizado”, a entender que o mundo é vasto, muito vasto, como diria Drummond. Trabalhar com Educação Sexual nas escolas faz com que os alunos aumentem o seu rendimento escolar, justamente porque muitas dúvidas são sanadas e porque os alunos passam a ter mais confiança em si mesmos, pois compreendem melhor o seu corpo, as suas histórias de opressões e desigualdades. Vão entendendo que muitas vezes são estigmatizados não porque “nascerem maus ou bons”, mas porque há uma história social, há processos de estigmatização que os precedem e marcam suas condutas, suas emoções e suas atitudes de forma desigual. Assim, espera-se que a escola deixe de ser um espaço de confinamento e disciplinarização autoritária para se abrir ao conhecimento que o próprio aluno traz, visando a construção de um conhecimento coletivo e consensual que seja mais rico em experiências para todos. Deste modo, o aluno passa a ver a escola como mais lúdica e interessante. E tão importante quanto isto é ensinar ao aluno que a saúde não é um assunto exclusivo da Medicina, uma “coisa” que eu tenho e delego a alguém para outrem cuidar quando algo vai mal. A saúde não é uma mercadoria, um produto, um objeto que eu entrego nas mãos de alguém. Ela é um aprendizado, uma construção social, cultural e histórica e que, portanto, cada sociedade constrói suas políticas de saúde, de corpo, de regimes desejantes e, inclusive, de adoecimentos. A esperança, a partir deste novo paradigma, é que as escolas consigam ensinar às crianças e adolescentes que os(as) médicos(as) devem ser nossos aliados(as), pessoas que sabem um pouco mais do que nós sobre o corpo humano não porque a Medicina é um “saber divino” onde os médicos seriam, por dedução lógica, “semi-deuses”, mas porque a Medicina é o saber que se interessa por se aprofundar pela saúde um pouco mais além daquilo que nos é necessário saber para viver de bem conosco mesmo. Por exemplo, sabemos que existe certa resistência por parte da maioria dos homens para irem ao médico. E não são apenas dos homens que ultrapassam a idade de 40 anos aos quais se é recomendado o exame de próstata. Primeiro,
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isto ocorre porque homem não é bicho, é animal (biologicamente falando). Segundo, porque, parafraseando Simone De Beauvoir, nós nos tornamos homens e/ou mulheres e nascemos masculinos ou femininos. Isto é, a nossa condição biológica (M/F) é apropriada pela cultura, pelo social de modo a nos moldar dentro das concepções e crenças (geralmente baseadas em mitos e fantasias) sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Logo, os homens vão menos ao médico do que as mulheres, pois sobre eles pesa a violenta expectativa de seu gênero que faz com que esperemos deles que sejam sempre fortes, “guerreiros” e instransponíveis. Assim, não podem compreender, por exemplo, como um “bichinho minúsculo e invisível” como é o vírus da AIDS, possa matá-lo, ou literalmente, “derrubar o seu corpo que, por força do imaginário social, ele sente como sendo um corpão”. E mais, na relação com as mulheres, o homem é educado a ser aquele que garante a força e a segurança da mulher. Deste modo, não passa pela cabeça de muitos homens que uma mulher, mesmo que esta possa estar contaminada com o vírus da AIDS, venha a lhe “derrubar”. Assim, estes homens, aos quais pesa o “dever” de serem mais fortes que as mulheres, não usam o preservativo na hora do prazer sexual. Vejamos alguns dados de nossa pesquisa relativos a este tema. Quando indagamos os/as adolescentes sobre a negociação do uso do preservativo, temos que para aqueles/as que disseram já terem desejado usar camisinha com uma pessoa que não queria usar (n = 316), 146 (46.2%) disseram ter usado o preservativo após entrar em entendimento com o/a parceiro/a, sendo a maior proporção entre os heterossexuais, 135 (47.2%); 64 (20.3%) decidiram não fazer sexo – maior proporção entre os não-heterossexuais, 10 (33.3%); e 63 (19.9%) fizeram sexo com penetração e sem camisinha – maior proporção também entre os não-heterossexuais, 7 (23.3%). O mesmo padrão foi verificado para o recorte de sexo, sendo a primeira alternativa proporcionalmente maior entre os rapazes, 65 (48.5%), e as demais proporcionalmente maior entre as moças, 40 (22.0%) para ambas. Na situação oposta, ou seja, entre aqueles que disseram já terem recusado usar camisinha com alguém que o quisesse, 49 (49.5%) alegaram terem feito sexo com penetração e sem camisinha (em 99 respondentes tendo uma proporção semelhante de respondentes hetero e não-heterossexuais, 50.0%). Do restante,
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28 (28.3%) foram convencido/as a usá-la. Contexto semelhante apurou-se para o recorte de sexo, sendo as moças as que, proporcionalmente, mais fizeram sexo com penetração e sem camisinha. Como se pode perceber, a mulher tende a estar em desvantagem na utilização do uso do preservativo, já que são as que mais fazem sexo com penetração sem preservativo. Isto ocorre porque vivemos numa sociedade hierarquizada que subjuga a mulher ao desejo dos homens, no caso, a não usar o preservativo. Assim, em resumo, podemos dizer que os objetivos mínimos da Educação Sexual nas escolas são: contribuir para a construção de uma autoestima positiva dos envolvidos; informar as crianças e adolescentes de aspectos do funcionamento do corpo que possam auxiliá-los para o desempenho de uma vida sexual cidadã; fornecer noções de autocuidado; desmistificar preconceitos sobre os prazeres sexuais; discutir semelhanças e diferenças sexuais, isto é relações de gênero, visando a diminuição das desigualdades entre homens e mulheres; marcar a originalidade e diversidade dos sexos e das orientações sexuais; e desenvolver capacidades físicas visando o prazer que se pode ter com o próprio corpo.
Considerações Finais No trabalho da Educação Sexual na escola, primeiro, é fundamental que a escola como um todo (funcionários, professores, alunos e pais) discuta e reflita sobre a importância deste assunto para a vida de todos, sobre a partir de qual paradigma irá se trabalhar e quais temas deverão ser abordados (MILTON, 2001). Porém, trata-se, antes de tudo, de decidir-se por quais temas, bem como sugerir novos, a partir da realidade de cada escola. A escola realizará melhor sua função de formar cidadãos para a cultura e para a humanidade se puder entender quais são as resistências que as pessoas envolvidas no projeto têm para lidar com este tema e puderem discutir isto abertamente. Nenhum trabalho em Educação Sexual pode ser considerado potencialmente eficaz se ocorrer enquanto um evento pontual, isolado ou de responsabilidade de uma única pessoa. É importante lembrar que saúde sexual é um direito do aluno e dever da escola, portanto, necessita da participação coletiva na construção destes princípios, pontos de vista e paradigmas.
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Os melhores métodos para se trabalhar com Educação Sexual são aqueles que priorizam a participação-reflexiva de forma interdisciplinar e transversal, que pode ser alcançada por intermédio de estratégias como oficinas contextualizadas, isto é, que levem em conta as demandas dos participantes. Também sugerimos que a escola desenvolva parcerias com Organizações Governamentais (Ogs) e Não Governamentais (Ongs) e Institutos Especializados na área de reconhecimento social, para terem consultoria nos trabalhos e estratégias de ação. Assim, como saúde é uma conquista construída em todos os dias de nossas vidas, este trabalho apenas poderá ser bem otimizado se ocorrer enquanto um processo de Educação Continuada. E, finalizando, qualquer um pode, a princípio, trabalhar com Educação Sexual, mas é preciso estar aberto para o conhecimento do outro e de si próprio. É preciso ser tolerante consigo mesmo, gostar de estudar e aprender coisas novas, não ter uma relação “autoritária com o saber”, pois sexualidade é um aprendizado mutante; é preciso estar disposto(a) a rever preconceitos, atitudes e crenças infundadas e, porque não, uma certa dose de militância dirigida à Educação. Os trabalhos com Educação Sexual têm produzido em nós, educadores, o resgate de uma militância na potência da finalidade da Educação enquanto um poderoso dispositivo de transformação social. Um elemento que fragiliza as desigualdades sociais. Uma militância que não tem como paradigma a lógica do mercado ou de qualquer outro regime econômico. Trata-se de uma militância que crê que não se educa e não se aprende apenas para se ter um emprego ou por conta de uma vocação profissional, mas que se educa para a vida, para a cultura, para a cidadania, para a autonomia. Não se trata, tampouco, de uma militância que segura em armas. Outrossim, trata-se de uma militância que passeia nas sutilezas das palavras, nas delicadezas intempestivas dos gestos, nas malícias e indiscernibilidades dos olhares, enfim, nos sentidos, nas sensações, nas emoções e no “jogo de corpo”. Assim, a ação do educador se faz com o cuidado com as palavras, com a precisão cirúrgica dos gestos, da entonação da voz, das intenções dos olhares, enfim, com o corpo, matrix da sexualidade, expressão da cultura, história de práticas e costumes, pulsação de desejo.
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estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal Cíntia Helena dos Santos1
Este trabalho resulta de um recorte de pesquisa de doutorado que investiga os processos de subjetivação dos funcionários que atuam no Sistema Penitenciário do Paraná, e tem como categoria de análise as tecnologias de gênero, em especial as masculinidades. O referido projeto justifica-se pelos encontros, desencontros e confrontos ocorridos durante a atuação por 15 anos desta pesquisadora no Sistema Penitenciário como psicóloga, e também na sua articulação com os impasses contemporâneos do Sistema Penitenciário e em que estes se relacionam com a Segurança Pública no país. Embora qualquer levantamento histórico demonstre a inoperância da pena privativa de liberdade, no Brasil e em diversos países, ela é a forma dominante de punição, fato que se agrava se considerarmos que os próprios idealizadores de tal medida e seus contemporâneos já conheciam sua disfuncionalidade para o indivíduo e para a sociedade. No entanto, mesmo que juristas e criminólogos possam construir teorias bastante convincentes em relação à necessidade de acabar com as prisões, e que venham a convencer aqueles que efetivamente tem poder para tanto, atualmente, existem milhares de pessoas encarceradas, e outras tantas que delas se ocupam, que necessitam de alternativas para alcançar um tratamento penal que ultrapasse a repetição do binômio médico-punitivo. Este binômio tratar-punir opera em extremos opostos, e nada faz além de perpetuar a pena de prisão como um aprisionamento recorrente daquele que delinquiu, imprimindo angústia constante naqueles que deles se ocupam pela frustração de não ter objetivos claros e possíveis no trabalho que executam. A Prisão, produto da sociedade disciplinar/normatizadora, produz efeitos nos encarcerados e funcionários. Neste sentido, o presente recorte da pesquisa propõe, 1 Unesp - Assis
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considerando os impactos da lógica prisional, de vigilância e controle, nas histórias de vida das pessoas presas e dos profissionais que delas se ocupam, refletir sobre as particularidades, limites e potencialidades da Psicologia no Sistema Prisional. A metodologia utilizada foi analisar os discursos de funcionários, presos, estagiários e psicólogos das unidades penais, obtidos mediante realização de entrevistas e diários de campo. Desde um inclinar-se sobre a prisão e como esta se inscreveu como instituição e campo subjetivo, delineamos o surgimento da prisão e qual o seu lugar na produção de subjetividades contemporânea. Para além da escuta das pessoas, a análise dos encontros onde construímos estes espaços de escuta nos permitiu pensar na potência de uma Psicologia que possibilite às pessoas, presos, funcionários ou pesquisadores questionar cristalizações produzidas pelas construções sóciohistóricas que nos engendram, escapando em direção a uma forma de existência mais criativa e produtiva em detrimento daquela produzida pelas lógicas normatizadoras em operação.
Da Prisão Durante a Idade Média temos a sociedade organizada e caracterizada em torno de uma lógica de produção feudal, pautada também sob uma visão de mundo teológica. A Idade Moderna, séc. XVIII e XIX, inicia-se a partir do ideário da Revolução Francesa de 1779, empreendendo o discurso de luta por igualdade, fraternidade e liberdade, o que culminou no surgimento da revolução industrial. Neste contexto, almeja-se o aumento da produção para maior obtenção de lucro, visando, em torno da lógica da propriedade privada, a acumulação de capital. Temos na Modernidade a ênfase sobre a “razão” e no conhecimento científico, configurando uma nova visão de mundo, conhecido como Iluminismo, período das luzes, se opondo à Idade Média, agora chamada, idade das trevas. Com a nova organização social em torno do trabalho industrial, um panorama social diferente começa a se configurar, com nova organização política, social e subjetiva (OUTEIRAL, 2003). A urgência do estado moderno, na lógica capitalista, faz com que se invistam forças para que haja o desaparecimento das diferenças individuais no intuito de produzir indivíduos iguais e normatizados. É a época marcada pela construção da ideia de indivíduo, onde o mesmo torna-se alvo e efeito privilegiado das
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intervenções e investimentos da sociedade burguesa. Benevides (1994, apud Barros e Josephson, 2007, p. 441) vem nos conceituar este momento dizendo que: O modo de produção capitalista investe, como outros modos de produção expressos em outros momentos, na produção de determinadas formas de subjetividade de tal forma a garantir sua continuidade e expansão. Assim é que certos modos de existência passam a ser hegemônicos porque são, ao mesmo tempo, produto e produtores do próprio modo de produção e reprodução do capital. A esses modos de existência, próprios do modo de produção capitalista, chamamos MODO-INDIVÍDUO.
Assim, para que o motor da nova engrenagem de produção pudesse funcionar, organiza-se toda uma tecnologia que toma o corpo do indivíduo como peça principal do sistema industrial capitalista, assegurando, assim, seu funcionamento (BARROS E JOSEPHSON, 2007). Para tanto, a sociedade passa a ser entendida como um todo, composta pela soma dos indivíduos que devem trabalhar para viabilizar interesses individuais. Nesta conjuntura, na construção de um novo modo de produção e de um novo modo-indivíduo de existir, a ciência foi fundamental, através da articulação com o estado e da criação de discursos e práticas adestradoras, que tomam principalmente as questões biológicas (natalidade, mortalidade e etc) do indivíduo como uma problemática do estado, para controle da população. É a medicina social ou estratégia biopolítica que, conforme denominou Foucault (1979), foi criada para regular e organizar as massas, contendo as agitações sociais advindas do aumento populacional nas grandes cidades, que passa por um contexto novo de mercado e produção, e assim, consequente desemprego, escassez de alimento e moradia, decorrentes também da superpopulação, assim como analisam os autores: O Estado desempenhará o papel de orquestrador-produtor dessa operação biopolítica, com auxílio da tecnologia disciplinar operada pela medicina, que agregava médicos, cientistas e outros profissionais e funcionava como uma polícia, pois não só difundia as normas para os cuidados com a saúde e a higiene, como também controlava sua correta aplicação (BARROS E JOSEPHSON, 2007, p. 443).
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Ou seja, através de estratégias biopolíticas ocorre a captura da subjetividade na nova maneira de gerir os homens, administrando e disciplinando os corpos e a população. “Aumentando sua utilidade e enquadramento em um sistema invisível de ordenação da subjetividade”. (BARROS E JOSEPHSON, 2007, p. 443). Assim constitui-se, como denominou Foucault, a “sociedade disciplinar”, baseada em estruturas de vigilância contínua e anônima, que vão fixar e regular os movimentos e ações de cada um através também de técnicas de fixação dos indivíduos em lugares específicos (hospitais, escolas, presídios, asilos, fábricas, conventos, etc.). Foucault (1999, p. 119) pontua que: O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil.
Para obter controle maior da população é preciso produzir indivíduos iguais, com desejos, aspirações e temores similares, se tornando um corpo disciplinado, “útil” e “dócil”. (FOUCAULT, 1999). Para tanto, faz-se necessária a regulamentação de práticas disciplinares, que a todo o momento vão constituir um modo de vigilância permanente da sociedade, visando examinar, classificar, regular e distribuir os indivíduos no espaço social. Como diz Foucault (1999, p. 118): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Foucault (1999, p. 195) analisa que esta lógica: (...) elabora por todo corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza.
A partir deste momento instauram-se Instituições, entidades abstratas, que servem para vigorar e cumprir a função de regular a vida humana. Baremblitt (1992, p. 27) define o conceito de instituição dizendo que: 256
Estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal
As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas, regularidades de comportamento.
Toda instituição toma parte do tempo e do interesse do indivíduo, funcionando através de mecanismos de poder e dominação, distribuindo e regulando os indivíduos em um mesmo movimento dos corpos. “Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes coparticipantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral” (GOFFMAN, 1961, p. 17). O autor ainda pontua que “toda instituição tem tendência ao “fechamento”, com a finalidade de vigiar as pessoas, visando, principalmente, prepará-las e discipliná-las para a produção e para atender as demandas do novo sistema econômico emergente”. Assim como analisa o autor: Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no mesmo esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, floresta ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais (GOFFMAN, 1961, p. 16)
Deleuze (1990) pontua que estas instituições fechadas ou instituições totais são meios de confinamento nos quais os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, numa rede de vigilância e correção. A partir desta lógica, temos a Instituição Prisão, no qual Deleuze (1990, p. 219) nos diz, retomando Foucault, “ser o meio de confinamento por excelência” que surge na Europa no final do século XVIII, e princípio do século XIX, instituída no lugar da condenação por suplícios, como um novo mecanismo para corrigir os homens. Foucault (1999, p. 31) descreve como era este tipo de condenação regida até ser instituída a prisão: O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de sofrimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo
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dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com as regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua furados). Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e se combinam de acordo com os tribunais e os crimes.
Até esta época, a história foi marcada por punições dirigidas ao corpo do condenado. O corpo supliciado, amputado, esquartejado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, era dado como um espetáculo através de punições físicas que serviam de exemplo e como objeto repressor. (FOUCAULT, 1999). Como ressalta o autor: Nas cerimônias do suplício, o personagem principal é o povo, cuja representação real e imediata é requerida para sua realização. Um suplício que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado (FOUCAULT, 1999, p. 49).
Aos poucos, o espetáculo da punição física vai saindo de cena, partindo da nova conjuntura do estado e do novo contexto social. O suplício passou a ser visto e colocado no mesmo nível do crime cometido, no qual comparavam o carrasco ao criminoso: (...) ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos (FOUCAULT, 1999, p. 13). 258
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O estado não queria mais carregar o peso e a responsabilidade desta comparação. A proposta era colocar a prisão como um processo de humanização das punições. Desta forma, a justiça deixa de assumir publicamente parte da violência ligada ao seu exercício. Para tanto, a privação de liberdade teria a ideia de ser um castigo igualitário, com o objetivo de transformar e recuperar os indivíduos. Não tocar mais no corpo, dirigindo a punição ou o castigo agora à alma. Alma esta que habita e que leva o indivíduo à existência. “Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade?” (FOUCAULT, 1999, p. 12). Este tipo particular de poder que se engendra na lógica da prisão é configurado como peça fundamental no conjunto das punições, no qual a configuração histórica que se contextualiza com a nova noção de indivíduo retira a pena ou o castigo dirigido ao corpo do condenado, para uma racionalidade diferente de punição, através da disciplina dos corpos. Mesmo antes que a lei definisse a prisão como a pena por excelência, ela foi criada pela aparelhagem para tornar os indivíduos úteis e dóceis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo: A punição vai tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens (FOUCAULT, 1999, p. 13).
Este sistema de aprisionamento supõe e se fundamenta como um aparelho de corrigir, reformar e transformar indivíduos. Mas assim como Dostoievski (apud Mameluque, 2006, p. 626), relatando suas memórias do cárcere, em que afirma: (...) “O famoso sistema celular só atinge um fim enganador, aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enfraquece-lhe a alma, amesquinha-o, aterroriza-o, e, no fim, apresenta-no-lo como modelo de correção, de arrependimento, uma múmia moralmente dissecada e semilouca”.
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Foucault (1999, p. 132-133) descreveu o clima de obviedade e disfunção da lógica da prisão dizendo que: O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar o criminoso em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto no domínio econômico como no político.
A equipe dirigente A partir deste contexto, temos as pessoas que irão custodiar esta população carcerária. A equipe dirigente, um pessoal especializado, indispensável e constantemente presente para garantir o funcionamento e a execução da pena. As instituições totais possuem características que interferem tanto no aspecto físico da própria instituição, quanto nos aspectos subjetivos, relacionados aos indivíduos, institucionalizados, encarcerados ou não. Segundo Goffman (1961, p. 11): (...) uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.
Este espaço institucional é muito bem dividido, ocupado por dois estratos sociais grosseiramente limitados e imobilizados, um grande grupo controlado e uma pequena equipe de supervisores. Estes dois grupos assumem estereótipos distintos, pois enquanto os internos tendem a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados, a equipe dirigente tende a sentir-se superior e correta. As instituições totais tendem a suprimir os indivíduos que lá vivem, seja na condição de encarcerados ou na condição de funcionários, ainda que de formas diferentes. Os funcionários que trabalham nessas instituições, no caso da pri260
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são, em razão de um ambiente tenso e hostil vivenciam constantes fatos que implicam na intervenção direta e imediata, o que lhes trazem as mais diversas experiências, produzindo impacto à subjetividade dos mesmos. Referindo-se ao grupo de internados e ao que os dirige, GOFFMAN (1961, p. 18) diz que “(...) o fato é que um é feito para o outro (...)”. O grupo recluso sempre tenderá a ver no agente penitenciário o impeditivo de suas intenções e ações, a barreira que estabelece todos os seus limites. Não obstante, agentes penitenciários e pessoas presas convivem diariamente e conhecem um pouco mais do outro todos os dias. Esta interação, ainda que incipiente, hierarquizada e carregada de cautela, não necessariamente impede que funcionários e presos se vinculem, mesmo que de forma sutil, velada. Pela busca de sentido em seu trabalho, os funcionários criam estratégias, teorias, algo que os organize, que justifique sua prática. Ferramentas que sejam eficazes no encontro de coerência em sua atividade. Para Goffman (1961, p. 80): A equipe dirigente tende a criar o que se poderia considerar uma teoria da natureza humana. Como uma parte implícita da perspectiva institucional, essa teoria racionaliza a atividade, dá meios sutis para manter a distância social com relação aos internados e uma interpretação estereotipada deles, bem como para justificar o tratamento que lhes é imposto.
Entre o fazer e o dever fazer, afirma Goffman (1961, p. 69) que “esta contradição entre o que a instituição realmente faz e aquilo que oficialmente deve dizer que faz, constitui o contexto básico da atividade diária da equipe dirigente”. Encarregados de manter a segurança e a disciplina nas prisões, o contexto destes funcionários é demarcado por um distanciamento importante entre a organização do trabalho prescrito e a organização do trabalho real, feito.
estudos Queer e Psicologia na Prisão Eu, uma psicóloga, mesmo entrando diariamente por 16 anos em uma penitenciária composta na grande maioria por homens, quer presos ou funcionários, durante o percurso desta pesquisa conheci certo modo de composição de território que aqui denomino A Casa dos Homens. Esta experimentação me fez sentir os violentos impactos dos encontros. Venho de uma trajetória de estudos 261
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e trabalho ligados à questão penitenciária. Neste caminho, iniciado por estudos em filosofia e psicanálise, destacam-se dois encontros transformadores: com Foucault na ocasião do mestrado, e agora, no doutorado, com os estudos de gênero. Rolnik (1993, p. 241) bem diz destes encontros que nos desassossegam: Pois bem, no visível há uma relação entre um eu e um ou vários outros (como disse, não só humanos), unidades separáveis e independentes; mas no invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos, somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual figura, tremem seus contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo - em nossa existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir, etc. - que venha encarnar este estado inédito que se fez em nós. E a cada vez que respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos outros...o que estou chamando de marca são exatamente estes estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das composições que vamos vivendo. Cada um destes estados constitui uma diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que as marcas são sempre gênese de um devir.
O primeiro encontro foi com o trabalho de Foucault, que foi matriz epistemológica para que eu trabalhasse uma genealogia da prática psicológica da prisão como pesquisa de mestrado. Considero-o uma marca, porque minha prática e minha vida se tornaram outras depois dele. Para dimensionar essas modificações é preciso historiar o processo subjetivo de construir uma “identidade” de psicóloga na prisão para se apreender a forma como ela foi desconstruída no encontro. Tendo iniciado as atividades como psicóloga da Penitenciária com uma formação eminentemente clínica de orientação psicanalítica, logo no início já me encontrei com um real para além do que os estudos e trabalhos psicanalí262
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ticos puderam me alicerçar. Com dois meses de trabalho uma pessoa presa me disse, durante um atendimento psicológico, que estavam cavando um buraco na cela onde ele estava. Perguntado sobre o porquê estava me dizendo aquilo, respondeu que era para que alguém, além dele mesmo, soubesse que ele não estava envolvido. Se o buraco fosse descoberto, ele teria que assumir junto com os outros e se não, teria que assumir sozinho porque não fugiria e então responderia pelo que os outros tinham feito. Ele não me pediu nada. O que eu poderia fazer? Melhor, minha questão era: o que pode a Psicologia neste contexto? Quanto de real, desconexo, violento e irracional a Psicologia aguenta? Mesmo no desassossego momentâneo destas questões, busquei supervisão e ferramentas na Psicanálise. Caminhava em uma zona de relativo conforto quando, ao ser aceita no mestrado, o orientador me indica a obra de Michel Foucault como matriz epistemológica e me pede para retirar todos os conceitos e ferramentas psicanalíticos que constavam do projeto. Após o misto de raiva e susto, pude, dolorida, mas produtivamente, encontrar-me com o modo como as práticas psicológicas operam na prisão; como as práticas/dispositivos de segurança, de disciplina e de controle engendram a produção de corpos dóceis e úteis, de subjetividades submissas, moldadas para ratificar a hegemonia de uns em detrimento de outros. Além disso, colaboram na produção de saberes que sutilizam o poder para dificultar as resistências. Confesso que me senti uma “tonfa” (espécie de cassetete usado nas penitenciárias) de algodão. Quanto ao segundo encontro, ao apresentar o Projeto durante a seleção para o doutorado, uma pergunta iniciaria o desassossego: Poderíamos incluir as sexualidades e gênero neste projeto? Ainda sem a menor dimensão do que seria, mas dada a desafios, disse que sim. Os desdobramentos do percurso me mostraram o tamanho desta pergunta. O caminho advindo de minha resposta à violenta desestabilização exigiu de mim um outro corpo, e desde aí um outro olhar, escuta, afetos, relações, pensamentos, questões. Daí então não mais olhar para uma prisão, e nem para “A Casa dos Homens” como trabalha Welzer-Lang (2004), mas para os processos de subjetivação que constroem e, ouso dizer, destroem estes homens, me fez modificar os caminhos e escolhas de pesquisa e trabalho. Além das Masculinidades, o encontro com os estudos queer fez contornos novos quanto à reflexão sobre a Psicologia na prisão, considerando que o queer
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questiona mesmo os binarismos dos quais as teorias sobre as masculinidades se originam, desafiando o próprio regime da sexualidade, as teorias que as pessoas produzem sobre si marcadas como sexuadas e atravessadas pelos gêneros. Destaco que pessoas presas e funcionários compartilham com os homossexuais uma autocompreensão fundada na experiência da vergonha, subjetividades fundadas, como diz Miskolci (2011), “no temor de serem socialmente marcados como perigosos ou sob suspeita”. Nesta perspectiva da experiência de abjeção, a Teoria Queer propõe uma outra forma de crítica política. Ainda conforme Miskolci (2011), para além de criticar ou ter como foco as mentiras e incorreções das manifestações homofóbicas, os queer preferem iluminar as estratégias que o sistema saber-poder constrói para legitimar as heterossexualidades como hegemônicas. Pensando a Teoria Queer aplicada ao trabalho da Psicologia dentro da prisão, seria algo como desfocar dos discursos protetivos que vitimizam e dos fatalistas que demonizam ora as pessoas presas ora os funcionários, na direção de refletir acerca das relações de poder-saber que legitimam uns e tornam abjetos outros discursos e corpos que habitam a prisão. Fazer e provocar esta reflexão potencializa a Psicologia como prática singularizadora, escapando assim do lugar classificatório, estigmatizante, disciplinar, enfim, normatizador que ainda hoje ela ocupa nas prisões. Finalizando, destaco os desdobramentos possíveis da Teoria Queer: além das estilísticas de existências ligadas às sexualidades às quais ela amplia ao desconstruir as hegemonias postas, ela potencializa problematizar cristalizações que engessam, e por que não dizer, aprisionam, o trabalho com pessoas nas mais diversas situações. Que a Psicologia se torne cada vez mais queer, podendo assim ser mais potente ao trabalhar com pessoas nesta contemporaneidade com subjetividades e contextos que cada vez mais desafiam os binarismos cristalizados que baseiam os corpos dóceis e úteis utilizados na construção da sociedade disciplinar.
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“na base de cada corpo vivo há um buraco abissal e um anjo que pouco a pouco o preenche a partir das cavidades de eternidade e que tenta, por submersão, tomar seu lugar.”1 1 ARTAUD, 1986, p. 121.
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A psicanálise não cansa de sobrecodificar2 a Figura dos monstros nas matérias do inconsciente. Inexprimível desejo negado, o inconsciente psicanalítico é uma tumba ocupada por um fantasma eternamente culpado cuja penitência é não poder realizar a queixa da própria degradação. Drama perverso, essa ideia de inconsciente é fundada nos interditos da Lei, que funciona como lâmina da castração, palavra de ordem, código de marcação, qualquer tipo de barreira imposta pela linguagem que funcione como impedimento ao livre curso do desejo. O desejo psicanalítico é concebido como falta, espécie de vazio que nunca se preenche, de modo que o inconsciente, que aí já é uma espécie de ser do desejo, acaba reduzido ao horror do buraco. Falo às avessas, o buraco representa um tipo de medo perpétuo, cheio de ressentimentos, opressões: o problema psíquico típico é aquele que gira em torno dessa falta abissal, produtora de uma angústia que só consegue ser apaziguada quando consegue dar ao buraco uma cara. A solução do problema parece estar sempre na descoberta daquilo que se mete no buraco, “conteúdos” recalcados da matéria psíquica, sublimações do próprio problema. Entretanto, mesmo reconhecendo no buraco uma feição, sua “cara”, o rosto do buraco nos apavora. O furo é interminável e o fantasma não cansa de se lastimar. Tudo é túmulo significante e cova subjetivada, papai e mamãe, Édipo. Para a esquizoanálise, o Édipo e seus buracos são agenciamentos de estratificação do desejo. O sistema da rostidade, cara de buraco, aparece em Mil platôs para cartografar a zonas estratificadas onde habitam as subjetividades e suas tramas de significações. “Conto de terror” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 32), redundância que aloja as paixões, a consciência e todo tipo de signos, o sujeito é uma composição de buracos negros no enorme muro branco da linguagem. A subjetividade é um diagrama incerto sobre a tela vazia, folha em branco que Deleuze mostra ser povoada de clichês. Tela, muro, papel vazio, o buraco é sempre uma questão de superfície, de sombras e projeções. É certo que a superfície pressupõe no mínimo uma triangulação, pois são necessários três pontos para estabelecer a altura e a largura de um plano bidimensional. Olho de Deus, trindade, triângulo: os estratos dos estratos. Atrás do Édipo se esconde o Saturno engolidor: tempo cronológico que inexoravelmente marca 2 Aspecto determinado que reterritorializa os códigos, num processo transcodificador que é uma espécie relativa de desterritorialização, sobre as desterritorializações absolutas.
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e que mata. Perpétuo drama do sujeito engolfado por “ordem de razões” (Deleuze; Guattari, 2004 p. 35). É a razão que cria as figurações monstruosas que assombram as atividades vigilantes (mesmo as da vigília, que está implícita no sonho, essa atividade de uma razão que nunca dorme)3: neurose obsessiva que mascara a dureza do exílio titânico, triste abandono de Saturno nas profundezas do Tártaro. Ingenuamente, o monstro ganha a cara de conteúdos psíquicos, o fundo escuro e abissal onde se escondem potências malévolas que a razão teme ad infinitum não estarem adormecidas. Mas, sobre esse problema (ainda não se saiu do buraco), a psicanálise sempre esbarra no mesmo beco-sem-saída: nada se consegue extrair do abismo, dentro dele nada sai, do inconsciente nada se tira, mesmo que tudo caiba dentro do buraco. A esquizoanálise surge nesse furo, ânus solar que brilha sobre o Anti-Édipo, para mostrar que a aporia em que a psicanálise se mete é o próprio modelo de inconsciente que esta estruturou. Deleuze e Guattari juntam suas forças para mostrar que não há um modelo de inconsciente, assim como não existem “conteúdos” inconscientes, muito menos suas identificações (olho de górgona que petrifica o sujeito no “eu”). O desejo, fluxo que move a máquina abstrata inconsciente, não tem nada a ver com a falta e com os códigos estabelecidos pela linguagem e por isso não cabe dentro de subjetivação nenhuma, a ponto de jamais ser representando. O desejo, potência ativa que não possui nenhuma determinação, apenas passa e impele as forças em jogo, de acordo com as voluptuosidades que lhe são próprias. Pode-se dizer que a única lei do inconsciente é a volutiva, axioma ontológico da desterritorialização (regra da alegria, devir-imperceptível). O desejo tem sua razão de ser no movimento, é sempre uma linha de fuga (regra nômade, devir-impessoal) que ultrapassa a razão para brincar com a loucura, desemaranhar os fios das ontogenias animais, vegetais, a organização molecular das pedras e dos cristais, dos sistemas orgânicos, para seguir linhas de crianças e palhaços e criar seres de sensação (regra da leveza, devir-indiscernível). A perspectiva esquizoanalítica pensa o inconsciente como 3 Ao desconstruírem as figurações que revestem o inconsciente psicanalítico (escuro, recalcado, etc), Deleuze e Guattari, em O Anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia, obra propulsora do que hoje se configura como a esquizoanálise, fazem alusão a Rousseau para mostrar o não antropomorfismo da natureza e dos horrores engendrados por um inconsciente imanente à infraestrutura dos corpos. Revertem o dito da gravura de Goya, aqui ilustrada, explicando que os monstros não são engendrados pelo sono da razão e sim pela “racionalidade vigilante e cheia de insônias” (1996, p. 117). Cf. Francisco de Goya, gravura em metal n.º 43 da série Los Caprichos, 1799.
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produção de agenciamentos desejantes que são modos de funcionamento e não fantasmas, uma máquina criadora de dispositivos de vontade e não depósito de projeções. Ao invés de ser a efígie impossível do “insondável”, o monstro é efeito de uma língua “cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 32). Sob o rosto não visto de Deus, o monstro revoluto é o movimento que gera conflito no espalhar das forças. Funciona como máquina produtora de tensões, de afectos que passam a compor arranjos de força específicos, diferenciados entre si. O monstro é sempre uma multiplicidade cheia de paradoxos. No cristianismo, a Figura dos monstros faz gritar o apelo panteísta, enquanto a teleologia mítica atesta que, por maior que seja a dimensão fabulosa do monstro, sua figuração é sempre a menor. É a Figura que tem menos potência, não brilha, não goza, não tem poder. Na iconografia e nos mitos, o monstro é sempre o elemento coadjuvante, apesar de seu enfrentamento ser sempre o motivo principal. Animal insurrecto, a besta ou fera que dá corpo para o monstro não ama e não é amada. Tudo isso carimbado com a crença no castigo, pagamento de uma dívida devida por falta de amor. Não é ídolo e só aparece na iconografia tradicional na posição de subjugado (cobra sob os pés da Virgem, dragão na ponta da lança de São Jorge, demônio fustigado por São Miguel). Criação heteróclita, o monstro constitui-se a partir de elementos da natureza, os quais inverte, paralisa, exaure ou destrói. Ao cortar o suposto curso natural de uma matéria que se presume ordenada, o monstro tanto aprisiona quanto libera as forças da vida e da morte. É sobre esta relação, entre diferentes naturezas ou da própria natureza com algo diferente, artificial e antinatural, que a monstruosidade se define. Não pela ideia de algo que está além, “sobre” a natureza, mas sim daquilo que, junto à natureza, cria alguma coisa outra, diferente. Uma diferença sentida no estado das coisas, de modo que o monstro sempre ocupa um corpo, mesmo que etéreo, invisível, microscópico, fluídico, paradoxalmente incorporal. O que é incorpóreo no monstro é a discrepância das grandezas e o potencial de aparição para as mais absurdas distorções que não saem do corpo: deformação, mutilação, degenerescência. Vulnerabilidade das carnes, o monstro é “uma forma- suspensa entre formas- que ameaça explodir toda e qualquer distinção” (Cohen, 2000, p. 30). Como aberração da
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Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura
natureza ou espetáculo de violência, o monstruoso se presta a produzir imagens da corrupção da carne e de todos os perigos e delícias que rondam os corpos. O perigo do monstro não é a queda abissal da morte, mas os equívocos e as incoerências do corpo e suas constantes dissoluções. Algo acontece com os corpos divididos, multiplicados, que somam uma parte à outra e subtraem seus pedaços. Várias cabeças, dezenas de olhos, órgãos que se repetem, exageros de números e de partes. Corpos que se dividem e se esfacelam, degradam-se, se decompõem. Prolífero, o corpo-monstro aparece nas coletividades incontroláveis e no agigantamento: é sempre marcado pelo excesso. Não apenas em termos de abundância como também de ausência, pela supressão de partes ou pela inexistência de membros: “quem não tem braços nem pernas, como uma cobra, é um monstro”, explica Foucault em uma de suas aulas do seminário Os anormais (2001, p. 79). A definição do monstro híbrido, mistura de reinos e categorias evocada por Foucault vem de Michaux, considerado “grande mestre do monstruoso”, na extensa pesquisa de Gilbert Lascault sobre os monstros na arte ocidental (1973). Para os enciclopedistas do século XVIII, o monstro é o “animal com conformação contrária à ordem da natureza ou com alguma parte diferente daquelas que caracterizam a espécie da qual faz parte” (Lascault, 1973, p. 56). Produção maquínica dos corpos, positividade esquizo dos fluxos desejantes, o monstro surge na troca e no excesso de elementos, nos contágios e nas misturas, no indiscernível do devir. Cultuado nas encruzilhadas, o monstro exprime um lugar de encontros, de linhas que se cortam, se unem ou se bifurcam. Personagem que desenrola um plano meio inconsistente, o monstro trata do encontro com o inesperado, com o ato desestabilizador, violência do fora, essa experiência de um morrer que não é o fim. Embora apareça com certa discrição nos monumentos da arte, difuso no meio dos elementos da decoração, o monstro figura uma regra ontológica do seu funcionamento artista: enfrentar a ameaça, o outro, o esquisito, neutralizar seu potencial destrutivo, dominar a matéria. Não é feita a arte, tal qual o monstro, de loucas combinações entre corpos cujos aspectos e ações desorganizam as organizações? Como a arte, o monstro é matéria, substância infinita desterritorializante e desterritorializada, afirmação de uma força que ignora as leis da razão, mesmo quando cria regras para modular suas sensações. Independente
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da finalidade para a qual um monstro é criado, sua Figura funciona sempre como dispositivo doutrinário. A função pedagógica do monstro não é apenas ensinar a moral dicotômica pregada pela Igreja, mas principalmente fornecer amostragens da arte mesma que delira sobre os aportes que a lenda lhe dá. Exercícios das virtudes divinas bem ao gosto do povo, os monstros animam as criações grotescas da arte “sem educação”, dos bárbaros construtores de catedrais. Isto não apenas no gótico, mas em todos os estilos de monumentos, sob os quais o paganismo geme e se faz exumar. Qualquer arte que crie seres de sensação com devires-animalescos, Figuras infernais e fabulosas que arrancam suas faces superficiais para fazer gritar a mistura de concavidades e calombos em jogo nos volumes dos corpos. Mesmo gigante um monstro é molecular. Corpo menor, mesmo molécula o monstro nunca deixa de devir-animal, força última do guerreiro abandonado à podridão. Marcada pela diferença, toda monstruosidade é extrema, mesmo em termos medianos, familiares, corriqueiros e banais. Mas também aparece no igual, no mesmo que se diferencia sem deixar de ser igual, no semelhante cuja igualdade é sempre enganadora. Nenhum monstro é feito para ser neutro, mesmo que apavore por sua aparente indiferença, pois carrega em seu corpo o pânico da indistinção e da perda de referência, as incertezas do verdadeiro que, por natureza, é sempre diferente. Por outro lado, é a monstruosidade do mesmo e a perda de identidade, a estratificação do desejo, o petrificar das vibrações do corpo sepultado. Imagens escatológicas que subvertem certos teores iconoclásticos, as figurações monstruosas implicam composições entre afectos que se estranham numa luta inevitável. O monstro é a Figura do afeto repulsivo exercido por um corpo menos nobre do que aquele que o cânone clássico estabelece: Figura de proporções áureas, propícia a mágicas circunscrições, modelos santificados, gestos alegóricos. A repugnância do monstro não vai longe da degradação da carne, pedaço de carne morta, corpo sobrepujado. Pode-se dizer que a figuração do monstro é aquela que não encontra o modelo, mas sempre a sua deterioração. O mostro se cria de pedaços espalhados na poeira e na borrasca, sob corpos degradados, cujos modelos sem gênese no máximo podem ser explicados como motivos temáticos que modulam tipos dificultosos de devir. O devir-monstro é o imprescindível elemento escarnecido, cheio de escamas frias e viscosas, arestas e ondulações, Figura que seduz, escapa e ameaça. Mas
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não deixa nunca de valer suas potências ctônicas sob a sola desnuda do pé, ameaçado pela ponta da lança ou sendo decepado quando tenta infiltrar-se na boca. O monstro pode mesmo derivar do buraco e exercer em torno dele jogos de atração. Contudo, as forças que o compõem envolvem toda a complexidade filogenética da devoração. O monstro surge como típico mensageiro da morte (Lascault, 1973, p. 75) e da destruição, marcador de potências vitais de desterritorialização que sempre estão em jogo na arte. A arte é afirmação da vida, mas somente daquela vida que nasce com n potenciais de morrer: corpo aberto ao acontecimento, corpo de desejo. Com seus dentes, serrilhas, pinças, cavidades, protuberâncias, engrenagens e vórtices numa máquina, o corpo é a matéria de expressão tanto para o monstro como para a arte. O corpo do desejo não é o organismo que nasce da matéria destinada à morte, mas vida que não cessa nunca de proliferar e de desorganizar os organismos e as organizações. Vida que não se separa da morte. Impelida por forças paradoxais que lançam a vida num plano onde dançam milhões de pequenas mortes, a máquina do inconsciente compõe fluxos cuja força libidinal funciona em constante cisão esquizofrênica. O que revolve a máquina são tantos impulsos desterritorializadores como reterritorializações das pulsões colocadas em jogo num só desejo. O monstro marca essas linhas psicóticas, borderline, que experimentam as intensidades vertiginosas do devir. Os problemas não são apenas as variações da linha, mas principalmente o risco da sua fuga virar uma morte. A morte não é só o buraco dentro do qual um corpo se aniquila, mas a passagem derradeira de uma sensação que é o acontecimento de uma vida. O problema da morte não é a decomposição ou a putrefação que seu devir implica aos corpos, mas a máscara cadavérica ou tumba fechada que sobrecodifica a vida mesmo nos organismos em que ela pressupõe estar. Há algo horrível nesse tipo de morte. Uma alma que subvive sobre o pretexto de glórias e feitos que também envolvem lástimas e culpas por uma falta pecaminosa original. O problema volta para o buraco, no encerramento do desejo num “eu” idiota, que “pensa” que pensa, conservando suas feições num pretenso monumento. A piada é que o processo sublimatório, capaz de erguer os verdadeiros monumentos de uma arte e de uma vida, só se dá no descarte desse “eu”. Perder o nome, provar o caos, sair do ser e entrar em devir, processo desterritorializador
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de própria vida que se faz arte, que ergue monumentos para conservar as potências incorporais da matéria e nunca para perpetuar as afecções e percepções de um indivíduo. O perigo não é se deixar engolfar pelo dragão, acordar dentro da cova, ser esquecido, afinal o desejo só consegue mesmo se atualizar quando corre para a boca do inferno. O risco é ser paralisado pela rostidade, “anjo da morte, santo sudário” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 33), que prende as sensações nas sombras e espectros da limitada percepção ótica do real. Não há figura ou paisagem que não corra o risco de sepultar a perspectiva em um efeito que impede o pensamento de fugir dos termos bidimensionais com a qual costuma operar: figura/fundo, eu/isso, sujeito/objeto, negativo/positivo, falso/verdadeiro. Sempre em fuga, a sensação é o afecto do espaço háptico, tridimensional, onde a complexidade do corpo não se reduz à visão de um rosto e as paisagens jamais podem ser encerradas numa feição. Acabar no buraco não é o perigo, mas antes uma maneira de se proteger e se conservar, que é um dos modos de funcionamento do inconsciente. Cavar um buraco é a maneira mais simples de experimentar os afectos da realidade tridimensional. O buraco é a toca, o lugar privilegiado para a semente, o germe ou o ovo, zeroidade cuja potência se abre ao infinito. O problema não é o buraco, mas a estratificação do sistema de superfície onde ele aparece. “As organizações de formas, as formações de sujeito” que seguram o desejo dentro do buraco, “tornam o desejo ‘impotente’(...) o submetem à lei, (...) introduzem nele a falta” (Deleuze;Parnet, 1998, p. 112), drama que já cansamos de conhecer. A única espécie de falta possível com a qual o desejo se depara é a ausência de pontos de fugas que funcionem para alargar seus horizontes. De qualquer modo, mesmo dentro do oco da tumba escura o desejo foge e desterritorializa. O desejo não precisa contrapor-se a nenhuma ordem para se afirmar, bastam os devires do corpo para que dê seguimento a seu curso. Esquecer a cara apavorante do desejo, enregelado na palavra de ordem ou clichê representacional, implica desmontar o rosto, estrato de significação e subjetividade, para experimentar o devir. Os devires são os afectos do corpo. O corpo existe como ponto de vista que define a paisagem, imagem que o corpo faz sobre si mesmo, paisagem das forças junto às quais o corpo se dobra. Os olhares recaem no corpo “ imagem-invólucro que encerra a rude presença da carne”, mantos que o cobrem com uma outra pele (Tuchermann, 1999, p. 151). Superfície das sensações, pele
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virtual com a qual todo o corpo se reveste. Pele da paisagem. Pele da arte, essa operação “horrível e esplêndida” de abrir o corpo na paisagem e fazer do corpo a paisagem. A paisagem é a figura de um devir, ser de sensação que envolve multiplicidades, séries, repetições filogenéticas, variedades expressas na matéria, profusão de tipos, relações de vizinhança e multidões. Superfície contraída, a figura nem bem se forma para ir se desenvolver e estirar. Cobertos com o sentido que rola na superfície, os corpos atravessam “envelopes de Pele” (Doel; Rose, 2001, p. 84-185), a “envoltura de pele” (Domènech; Tirado; Gómez, 2001, p. 122) as superfícies da linguagem e as sedimentações do organismo para experimentar os devires mais loucos e inumanos da matéria. O problema começa quando um corpo começa a se estratificar, obsedado numa paisagem clichê ou endurecido na estátua de uma persona. O corpo perde suas múltiplas dimensões para se sobrecodificar nas máquinas binárias das identidades: homem/mulher, docente/discente, heterossexual/homossexual. O corpo perde-se no rosto. É a cara no muro, a codificação do corpo em números e dados, datas combinadas num continuum espaço-temporal: vida de indivíduo expressa em coordenadas, relações entre termos variáveis, medidas extensas, conquista de graus. Mas há alguma coisa em uma vida que as expressões do indivíduo formado jamais conseguem precisar. São os devires que faz passar, os povos que a animam, as composições entre os corpos, a criação de afectos desterritorializadores. Todas essas forças que, quando se exprimem num só corpo, compõem também uma vida individual. Uma vida, sempre imensurável. Sob as feições de um povo urgem agenciamentos tribais que funcionam polifonicamente num corpo coletivo de múltiplos devires, que são sua vida. São fluxos animalescos e inumanos que deixam passar os devires menores e processam desterritorilizações no possível rosto molar pelo qual um povo se permite representar. Para desmanchar o rosto, é preciso fazer passar o corpo, suas cavidades e volumes, pelos buracos da superfície. Como as Figuras das telas de Bacon, o corpo funciona como ponta de escape, linha de fuga expressa por um buraco, por gritos, seringas, um órgão que funciona como prótese, sombra, cortinas, traços animais. O corpo se compõe como figura, massa de cor indeterminada, volumosa, incorporada ao fundo com o qual também contrasta. Corpo em ato. Não um corpo causado, ordenador, formal, formado, órgão ou organismo, mas peça móbil no jogo de forças das artes e de outros devires da matéria não-natural,
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pedaços de carne, destroços. A natureza do corpo é desterritorializar o organismo, estranhar a matéria, infringir possibilidades, alterar movimentos e atirar o caos na carne. Deleuze explica que o “corpo não é questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 37), forças moleculares, não imagens molares fantasmagóricas. Mesmo que os corpos definam na matéria uma multiplicidade de Figuras, produções de espaços interiores e exterioridades, o interior do corpo é indeterminado no espaço (Bergson, 1999, p. 63). O corpo é o estado atual do devir, o ponto de encontro onde se experimenta as sensações e a máquina sensório-motora executa os movimentos (idem, p. 162). Exposto à ação “das causas exteriores que ameaçam desagregá-lo”(Bergson, 1999, p. 57), o corpo desterritorializa sua própria natureza sobrecodificado nos territórios. Não pertence mais à natureza de uma terra, mas à emblemática de uma pátria. O emblema é sempre o rosto, a efígie posta como cara de um sistema de representação. Um território representado se fecha numa cara, careta apavorante do bicho-papão estatal. Mesmo os territórios mais sobrecodificados, aparelhos de Estado e complexos imperiais, têm suas feições desmanchadas e distorcidas, mudam de cara, perdem seus rostos. Para Deleuze, a sociedade se caracteriza exatamente por esse escape, essa facilidade de cair no buraco. A lei é sempre a do corpo e até mesmo os estratos binários da rostidade acabam se desestratificando, as faces se avolumam em cabeças, as cabeças de desenvolvem nos troncos; toda a estrutura dos corpos se subsume a partes menores que se desterritorializam nos mais estranhos elementos: alimento, paus, pedras, armas, instrumentos, enfeites, jóias, dinheiro. O corpo localizável, codificado em coordenadas, representado por números, nomes, emblemas e bandeiras não tem devires, apenas extensão (apesar de algumas marcas que o localizam pertencerem ao virtual). Esse tipo de corpo maquínico extensivo surge com a ocupação territorial e as projeturas daquilo que da Terra emana e dela pode se aproveitar. O corpo estatal se desenvolve para guardar os tesouros, controlar as minas, tampar os buracos, fechar os túmulos, formar a carne e acondicionar os corpos no cumprimento de suas funções. Toda política funciona como agenciamento de corpos nos espaços. A política dos aparelhos de Estado é sobrecodificar o corpo no rosto e reduzir o rosto no buraco, boca faminta ou grito de cobrança, desterritorializar o desejo em Lei, instituir deveres, tributos para o Tesouro engolidor, do qual todos os corpos são depositários. Corpo/buraco são dois termos de desterritorialização,
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artifícios maquínicos “pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova a outro que também perdeu a sua” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 41). Alheios ao buraco, os corpos se embatem nas conquistas da superfície, povos se chocam, bandos e exércitos destroem-se uns aos outros e definem seus territórios com máquinas potencialmente destrutivas. O monstro é a razão irracional da luta, uma medição de forças violenta, potencialmente fatal, do domínio de terra extensa computada por riquezas. Do exército romano, estrategicamente armado para formar um só corpo de destruição, até as ogivas nucleares, a ameaça bélica se atualiza na Figura de um monstro: corpo explosivo, corpo de morte, corpo de misérias. O monstro é, ao mesmo tempo, o olho de Deus, o rosto dos tiranos, a cara dos invasores e o corpo do Juízo Final. Fedendo a enxofre, feito de ferro e chumbo, os devires do monstro são marciais e saturninos. Marte, deus sanguinário e violento da guerra, e o exilado Saturno, titã devorador culpado da castração, planetas cujas influências se acreditavam maléficas. Para os gnósticos, cuja doutrina propagou o pensamento platônico que fundamenta as linhas do cristianismo, Saturno era “o deus ‘maldito’que criou o tempo e o espaço”, e que em nada se difere da “serpente que guarda o paraíso”(Roob, 1997, p. 38). Antideus sinistro que nos aprisiona na carne desprezível e martiriza os corpos na encruzilhada do tempo no espaço do mundo terreno. O corpo vira, então, uma superfície penitente, sem virtudes, sem potências, inferior, degradante e perigosa. Matéria destinada ao abismo, atirada no buraco, exílio de Titãs. Uma perspectiva agnóstica pega a lenda e todo seu potencial didático para mostrar outros tipos de lição. Saturno é o marcador da Terra, o criador do horizonte feito na separação de Urano e Géia, cujos corpos em ebulição existiam num único abraço. O corte não pode ser só a barreira da castração, mas a linha abstrata, crivo no caos que é a condição para toda a arte e para todo pensamento. A força de Saturno é o manejo da foice e a marcação do cultivo. O jogo titânico que instaura são as experiências primitivas da metalurgia e da agricultura, técnicas que desenvolveram a civilização. Enroscada numa árvore, a serpente ensina o segredo do vinho a Dioniso, que realiza sua mágica junto com Réia, a consorte de Saturno. Assim como a foice corta a árvore para fazer com ela utensílios e ferramentas, a Serpente é a figura que dá a possibilidade
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dos frutos desembocarem noutros devires. Videira, uvas, sumo, vinho, transe: infinitas potências em aberto. Devir-cultivo, devir-colheita, devir-folguedo, devir-embriaguez. A serpente, enroscada na Árvore do Conhecimento do bem e do mal, incita a mulher a burlar a lei, a mudar as regras, a manipular a árvore, provar a sensação dos frutos, inventar artes para transmutar os corpos. O problema não se coloca no abismo da linguagem, mas nos manejos dos cortes, nas linhas, molduras e fórmulas junto às quais a matéria maquina. O corte não é a castração, mas uma maneira de funcionamento. O túmulo, a morte, as profundezas da terra, a serpente, o falo, o buraco, não se reduzem a um único significante e suas representações imaginárias dos terrores da castração. Esses elementos são figuras que dão passagens a uma série de devires, jogo de forças entre potências telúricas e celestes, forças que se expandem e se contraem, fluxos que diferem em velocidade e lentidão. Contra a dívida interminável exigida pelo buraco a estratégia é lançar um coro de vozes para abafar o grunhido engolidor; fazer do verbo de Deus palavra de ordem, uma pululante boca de Inferno, uma multidão polifônica nos umbrais do caos. O problema não é tampar o buraco com aquilo mesmo do que ele é feito, soterrar a serpente, lapidar o cadáver, mas os modos de extrair a matéria, dominar técnicas e abrir os potenciais para a arte. Processo de virtualização nas virtualidades da matéria, a arte só é possível nos desmanches, na degradação dos modelos, nas decomposições dos organismos, nas alquimias operadas sobre a matéria. O sentido da arte é a criação de novos corpos, novos cortes, novas linhas e blocos de sensações. A serpente que desterritorializa a árvore, seja em fruto do pecado original ou em vinho, afirma outro tipo de conhecimento, uma relação com a matéria que não é a da lei organizada, que não se enquadra no molde da cruz e nos diagramas das coordenadas espaço-corporais. Não se trata do conhecimento de uma verdade, de uma essência decalcada numa lógica binária, mas de um desejo de sensações cultivado no corpo e na terra, e cuja experiência deu em plantio, em vinhos, em vidas, em artes e lendas, nos elementos de uma cultura cuja natureza é a mesma do devir. No plano de composição em que se estende um problema, uma sucessão de séries é colocada. Na mostra dos elementos com os quais essas séries se compõem, a estranheza do devir é o acontecimento na matéria, o sentido das desterritorializações. Monstro, serpente, Terra, cada um desses termos comporta uma multiplicidade de elementos, uma sucessão de figuras, explicações, moldu-
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ras, corpos para desterritorialização. Decompor os termos: tarefa essencial do problema. A desterritorialização funciona como impacto do problema, sua razão mesmo de ser. Não se trata de decodificar regras, mas de criá-las. As figuras não são o cerne de uma questão apresentada sobre linhas arborescentes, genealógicas, mas figuras dos devires marginais, rechaçados para as linhas frágeis, ainda não codificadas. Linhas de fuga onde monstros se vislumbram em sombrias e esparsas aparições. Os devires de uma figura determinam as variedades das sensações e as variações que seus afectos criam nos conceitos. Pensar com blocos de sensação é colocar os termos dos problemas em fuga e decompor os seus clichês. Colocar um problema é estranhar as paisagens, surpreender-se com seus povos, todas as figuras do plano de composição. Trata-se de mostrar as variações nos perceptos da paisagem e os tipos de devires que são os seus afectos. A carne, os ossos, os animais, o corpo, as artes, as festas, as flores, a vegetação e suas frutas, as bebidas, toda uma série de afectos intensificadores, cuja função é animar os seres de sensação e a matéria corpórea onde se deixam vibrar. O problema, distante da árvore, longe da cruz e fora do buraco, se coloca fugitivo, seguindo linhas sinuosas, deslizamentos sáurios e ofídios, tocas, corpos em devir. As revoluções territoriais acontecem nos agenciamentos coletivos entre os corpos, mas as revoluções moleculares operam nos agenciamentos coletivos de enunciação. Corpos, figurações e figuras são os agenciamentos da linguagem pictórica com a qual se expressa toda a arte. As figuras de um povo são a matéria de expressão de seus devires, a natureza de sua alma. O caráter malévolo do monstro, imagem clichê para a ideia transcendente do Mal, figuração dos processos desterrritorializadores, não apresenta a força de sua figura. As razões do corpo e do monstro acabarem como Face do Mal é a própria Fúria da Razão frente a forças despropositadas, para as quais a lógica não encontra codificações. Criada pelas esquizofrenias do desejo, a força de um monstro só pode ser expressa num ser de sensação. A questão é, portanto, decompor as forças que estão em jogo na produção de uma sensação e os tipos de devires que acompanham suas criações. Implica uma análise dos modos de marcação do desejo, das escalas de valor, das hierarquias, dos vetores sociais, das lutas de poder, dos esquemas cosmográficos, das figurações e de todos sistemas de organização da matéria que, embora emoldurem e recortem seus termos, não constituem uma disciplina fechada.
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Tomar uma matéria, esquadrinhar um campo problemático de estudo, não é simplesmente aplicar um sistema organizado sobre ele, independente do tipo de ordem e dos termos entre os elementos que apresenta. Ao se tomar uma matéria de um estudo, conteúdo-forma-expresso para se aprender, é necessário partir da complexificação topológica dos corpos, suas ligações magnéticas, linhas desconectas, direções cardinais, pontos de encontro e de dispersão, movimentos intrínsecos e extrínsecos, velocidades diferenciais. Multiplicidade de termos que colocam corpo e matéria num continuum de desterritorializações. Sem um arsenal de matérias, o pensamento não pode funcionar. Sem matéria não se pensa, mas ser obrigado a pensar uma matéria não é dispor de máquinas mnemotécnicas decoradas para sua organização. A matéria obriga a pensar porque é nela que os problemas se colocam e as máquinas são inventadas. Os problemas são desterritorializações aleatórias, encontrados ao acaso, matérias in-formadas que forçam o pensamento. Como é impossível prever a exatidão desses encontros e a natureza daquilo que neles se expressa, a inteligência precisa dispor de algumas balizas, instrumentos de crivo que são as imagens. As imagens formadas não servem para ajudar, pois tendem a transformar os problemas em dogmas. Aprender a pensar problemas possíveis é descartar as formas dogmáticas e intuir as diferenças moleculares. Essa aprendizagem implica exercícios de composição, estudos de diagramas problemáticos que são mapas, imagens em aberto, para o pensamento devir no caos. Pensar é orientar-se no lado de fora das imagens de pensamento e traçar a grafia dos problemas que a matéria-caos coloca. Colocar o problema, grafar suas linhas, é a sua solução. Tal processo gráfico retira partes dos corpos da questão, insere elementos estranhos, distorce os esquemas da matéria, encontra afectos, modula experiências cujos registros criam perceptos. Nessa modulação especial da matéria, essencialmente artística, é que se aprende. Sem captar a sensação da matéria não se aprende. Aprender é se envolver na matéria de uma arte. Fazer arte é desenvolver diagramas que realizam as orientações do pensamento na matéria. Para se realizar, o pensamento tem que retirar determinações do caos. Atravessar o caos só é possível com força de vontade e coragem, virtudes que precisam ser exercitadas, o atletismo a que tantas vezes Deleuze se refere. Sem exercícios de decomposição, os problemas acabam mesmo virando um único buraco que sorve toda a vida do pensar. Se “pensar é experimentar” (Deleuze; Guattari,
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1992, p. 143), não há como conceber o pensamento sem o corpo que se põe na experiência. O corpo experimentador envolve uma esquizoide montagem de partes, membros e tecidos conseguidos, achados e roubados, retalhos suturados, cortes radicais, provas de iniciação que exigem dele vários contorcionismos. Todas essas movimentações são o devir-atlético do pensar. O pensamento é sempre uma questão da vontade, nunca de alcance de verdades. A vontade não está dada na matéria, mesmo que seja a própria expressão dos devires que a matéria compõe. Exercitar a vontade é trabalhar nas matérias do desejo, não sob a ótica da neurose capitalista e sim na volição esquizofrênica da máquina e de todos seus monstruosos devires. Toda a matéria é inerente ao devir psicótico de partículas, campos de forças que se movimentam em corpos atômicos e seus compostos moleculares. A matéria é uma questão de energia. Suas extensões extrapolam a tridimensionalidade com a qual fomos acostumados a nos acercar. Os problemas ensinam a não se confiar nas imagens percebidas e sim intuir as sensações, que são tipos de corpos paradoxalmente incorpóreos, junto aos quais o desejo se orienta. Aprender uma matéria exige uma entrega ao ser de sensação que ela compõe. Entregar-se à matéria é padecer das imagens de seu corpo e da vicissitude de seus órgãos, tecidos, da carnalidade da sensação. A carne da sensação não são os organismos, mas o corpo intenso da experiência, o corpo sem órgãos de Artaud (CsO). Se todo corpo é potencialmente uma máquina de guerra, o CsO é uma opção e uma estratégia política. “Cada órgão é um protesto possível” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 218), cada movimento é uma revolução. Fazer um CsO é deixar passar as sensações, criar o ponto fugidio que dá volume para alojar seus seres. O que vibra numa sensação depende das aberturas potenciais que envolvem as carnes por onde ela passa. Potencializar a carne é seguir a decomposição e a desintegração dos organismos, revolver seus órgãos, tecidos, fios. Mostrar matéria. Nem a matéria e nem a sensação têm algo para contar, para narrar. Não há história, começo, meio ou fim. O que se mostra são imagens, Númens, Figuras que expressam a matéria, contração de forças numa Paisagem. Figura que não é a imagem do território, mas inflexão de forças sob um corpo icônico, máquinafetiche cuja matéria faz passar os espíritos, seres que manifestam as sensações dos corpos. Cultuar ícones é uma maneira de adorar forças da natureza e me-
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ditar os mistérios da sua matéria. A arte dos ícones faz passar as sensações da terra, mostrando na matéria a força expressiva do Numen. Deus torturado, Mães Negras, Crianças, Animais, Flores e Estrelas. O paganismo grita tão forte nos ícones que não fica difícil fazer o santo virar o ídolo da bruxa. O ícone, sublime adoração de uma matéria, morre com o dogma. Seus elementos mais primitivos, marcações de deidades que são a alma incorpórea da terra, passam a constituir a iconografia maldita do demônio, figura de traços animalescos e cornos de meia-lua. A extrema depreciação da matéria cria esse ente palpável, um corpo maneirista sem órgãos e barroco cujas ações “perversas” se mostram no corpo dos falsos cristãos, os adoradores de abominações. O problema é a multiplicidade do corpo, suas multidões em transe, matéria n dimensional possuída de devires. Colocá-lo, solucioná-lo, é desenvolver uma arte. Criar seres de sensação junto a seus termos, transformar matérias, mostrá-las. A sensação se mostra nas telas, no interior das redomas, no escuro dos templos, nos palcos, nos terreiros, nos bosques, nas danças, na duração pulsando na matéria viva. Não a Criação de um único Deus, mas caos de corpos compondo a Terra, múltipla Mãe Caósmica que “amamenta as serpentes no seio”(Henderson, 1988, p. 41). Não só a Molécula Gigante, corpo de linha de fuga absoluto, fulgor da matéria em todos os tipos de universo. Corpo sacrificial do qual se alimenta a vida, força anímica monstruosa provocadora de fascínio e terror, matéria que bebe da morte. Morte que não é um fim, mas uma prática de potencializar a vida. Aprender a morrer, ascese dos xamãs e feiticeiros, é conjugar-se com as forças do abismo, entrar nas profundezas da matéria e aprender a manipular suas possibilidades. A morte é a prova das sensações caósmicas em devir. Morrer é experimentar a imensidão, ver na vida algo muito maior que aquilo que um corpo pode suportar, alguma coisa que as imagens da matéria não aguentam e sem a qual a arte não pode existir. Expressar a matéria da sensação imensa, sem rosto, é mesmo lhe dar um rosto. Não marcar buracos negros no muro branco, mas deixar aparecer um sorriso de lua fina, uma linha hiperbólica. Pensar também é pintar telas, decorar afrescos, esculpir. Gestos que, como na arte de Bacon, fazem funcionar o “dilaceramento, mas também estiramento da tela por eixo de fuga, ponto de fuga, diagonal, golpes de faca, fenda ou buraco: a máquina já está aí, funciona sempre, produzindo rostos e paisagens, mesmo as mais abstratas” (Deleuze;
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Guattari, 2004, p. 39). Trata-se de um traço que jamais consegue reduzir a imensidão num olho, muito menos num buraco, tampouco num significante, pois é “desterritorialização absoluta” (idem, p. 38) em rostos expressivos, que facilmente se desestratificam marcando as cadências vibráteis onde se quedam as sensações.
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Vapores etnografados: dos desejos de clientes, michês e pesquisador Elcio Nogueira dos Santos1
RESUMO: Kulick e Willson (1995) apontam uma questão importante para os pesquisadores dos estudos LGBTT e Queer. Os autores trazem à tona a subjetividade dos que pesquisam práticas e sexualidades resistentes, das margens. Em seu questionamento, os autores fazem algumas perguntas: como adotar ou não práticas homoeróticas em suas vidas pessoais teria interferência direta no resultado obtido? Braz (2009; 2010), em sua pesquisa com clubes de sexo e Diaz-Benítez (2009), com sua pesquisa sobre a produção pornográfica no Brasil, fazem esta discussão. Ambos nos dizem que é ainda bastante incipiente dentro do campo de pesquisas LGBTT e Queer trabalhos que tragam discussões mais amplas sobre este ponto. Pocahy (2011), como Braz e Diaz-Benítez, aponta para o corpo do pesquisador como local de resistência e produção de subjetividades quando estamos frente a frente com práticas sexuais tidas como transgressoras. Em outras palavras, é o próprio pesquisador que surge como mais um ponto a ser discutido e pesquisado e não, como sugerem cânones de pesquisas positivistas, um “objeto neutro” e “isento” que detém algum poder sobre o pesquisado. Presenciar a gravação de cenas de sexo explícito para a produção pornográfica (Diaz- Benítez, 2009), ou ter que comparecer apenas de meias e, algumas vezes, apenas de cuecas em clubes de sexo (Braz, 2010), expõe e denuncia o corpo, a presença e a subjetividade do pesquisador, mas não como uma pessoa detentora de uma suposta verdade que irá surgir a partir de uma análise supostamente “fria” e “distante” colhida por este, mas como alguém que, efetivamente, participa da cena. Em minha pesquisa para o doutorado, apesar de inicialmente estar distante do objetivo da pesquisa presenciar cenas de sexo entre os frequentadores das saunas de michês, deparei-me com espaços em que ocorre a prática sexual e que não poderiam, simplesmente, serem deixados de lado. Espaços como as saunas propriamente ditas, a seca e a vapor, as salas que passam filmes pornográficos gays e heteros, e os banheiros eram locais fortemente frequentados por clientes e michês e também onde muitas relações afetivas e/ou sexuais se desenvolviam e que foram 1 Doutor em Ciências Sociais- PUC-SP
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importantes para esta pesquisa. Com exceção dos banheiros, mesmo ao pesquisador foi vedada a entrada de roupas, pois se eu quisesse ir a estes locais teria de ir de cuecas ou de toalha. Bem distante de uma “epistemologia do ver”, como pode parecer a alguns, este texto trata de uma etnografia, a mais completa possível, ou uma “descrição densa”, nos termos de Geertz (1989), das saunas de michês em São Paulo. Seu ponto central é a discussão da subjetividade do pesquisador e as relações de poder que se estabelecem entre este e seus pesquisados durante o andamento da pesquisa. Palavras-Chave: Homoerotismo, Subjetividade, Desejo, Michê, Poder
os espaços externos dos desejos Como se começa um texto? Especialmente um texto que tenta, ao menos, discutir questões etnográficas? A meu ver, não existe melhor maneira de começar tal tarefa descrevendo os lugares por onde se fez a pesquisa etnográfica. Em assim sendo, vamos a uma brevíssima descrição do que, neste artigo, será denominado de “espaços do desejo”. O que denomino de “espaços do desejo” são as saunas que oferecem os serviços dos garotos de programa ou michês como são mais comumente conhecidos2. Em outras palavras, as pessoas vão a estas saunas para a prática sexual com algum michê, para exercerem seus desejos e fantasias sexuais com homens, geralmente mais jovens. Foram três as saunas pesquisadas para o meu doutorado. Em termos geográficos, as três saunas se distanciam bastante uma da outra. Duas delas ficam em bairros de classe média da cidade de São Paulo, e próximas uma da outra em termos geográficos. Se distanciam uma da outra em média 6 Km. São bairros com uma boa infraestrutura, contam com farmácias que funcionam vinte e quatro horas, colégios frequentados por jovens da classe média, supermercados, acesso fácil ao metrô e outros tipos de transporte coletivo. A terceira e mais antiga situa-se distante na cidade de São Paulo. Fica na periferia da cidade de São Paulo. É bom que se diga que estas três saunas são as mais antigas da cidade. A Lovely foi inaugurada em 1976, a Apolo, sauna tradicional 2 Michês, boys, garotos de programa se equivalem e serão utilizados neste artigo como equivalentes. No Brasil, estes rapazes trocam sexo por dinheiro com homens, sendo raros os que também se prostituem com mulheres. Durante toda a minha estada no campo, nenhum deles declarou se prostituir com mulheres. Para uma definição ampla do termo michê: ver Perlongher (2008).
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de São Paulo, foi aberta em 1980 e a Rainbow, a caçula das três, em 1992. Este artigo concentra-se nos dados e impressões colhidos na Apolo e na Rainbow. Concentro-me em duas neste texto: a Apolo e a Rainbow. A Lovely, como destaquei em minha pesquisa, Santos (2012) sofreu várias intervenções policiais durante a pesquisa. A maioria destas denúncias remetia ao possível uso de psicoativos ilícitos por seus frequentadores. Em 2010, a Lovely encerrou suas atividades permanentemente. Assim, optei por concentrar-me na Apolo e Rainbow. É importante citar que nas poucas vezes em que estive na Lovely, antes de seu fechamento, não foi possível colher informações, além das observações de campo. Seus frequentadores, alegando razões diversas, preferiram não dar entrevistas. Lembro ainda que contar aqui a estória e os detalhes de seus espaços internos seria fugir ao escopo deste artigo. Mas quando falamos em etnografia, alguns dados são importantes.
Breve discussão teórica Assim, detalho em breves palavras seus espaços internos, mas este detalhamento se dará apenas nos espaços que dizem respeito ao tema deste artigo, qual seja, os desejos dos pesquisados e do pesquisador. A teoria para a pesquisa partiu do inspirador trabalho de Rabinow (2007) e a antropologia reflexiva. Trata-se de uma antropologia que vê na inter e intrasubjetividade, inclusive do pesquisador, material suficiente para um aprofundamento teórico. Se para Geertz (1989) quando escolhemos nosso objeto de pesquisa “já o estamos interpretando”, utilizando sua famosa frase sobre ser a cultura um tecido repleto de significados a ser interpretado e isto exige uma “etnografia densa”, ou seja, apontar o que significa o que para grupos culturais distantes; é Rabinow (2009) quem traz para a cena a subjetividade do pesquisador. Para este autor, o próprio pesquisador também merece ser interpretado. Em outras palavras, temos de nos questionar constantemente sobre os significados do campo e de sua influência sobre nós e nossas pesquisas. Com Rabinow (2007, p. 5), digo que: toda atividade cultural é experimental, que o trabalho de campo é um tipo distintivo de atividade cultural, e que a existência desta atividade é que define a disciplina. Mas o que deveria, portanto, ser a própria força da antropologia- sua atividade experimen-
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tal, reflexiva e crítica- tem sido eliminada como área válida de pesquisa pela sua ligação com uma visão positivista de ciência, que eu penso ser radicalmente inapropriada em um campo que tem por objetivo o estudo da humanidade. (tradução minha)
Sobre a reflexividade proposta por Rabinow (2007), Kulick (1995,2), seguindo Strathern3 (1991,8), nos diz que: O termo ‘reflexividade’ em antropologia pode significar muitas coisas, mas basicamente ‘traz para fora um problema que outrora não era problemático: a figura do pesquisador de campo’ (Strathern 1991:8). Problematização desta vez autoconfidente que ficou se sujeitando ao escrutínio e à crítica: ‘Quais são as bases para o “conhecimento”?’.As pessoas agora respondem. ‘Como fazer para coletar estas informações? Como o autor faz os seus relatos? Para quem? Para quais efeitos?’ Questões como essa têm enriquecido a antropologia, negociando o golpe mortal da objetividade antropológica, finalmente propondo o que é este mistério, e estimulando os antropólogos para dentro do exame político, histórico e cultural para as condições que devem ter lugar para a antropologia fazer sentido como um campo de pesquisa e como uma prática metodológica e textual. (tradução minha)
O método para a coleta de dados consistia de entrevistas semiestruturadas, depoimentos colhidos nas mesas junto aos clientes e boys, observação participante, método definido por Eunice Durham (2004). Ou seja, um método que possibilita, segundo interpretação de Fry (2004,11) da autora: “compreender a cultura em seus níveis macros”. E com este pesquisador trajando jeans, camiseta e tênis. Muito rapidamente percebi que se me mantivesse usando trajes do dia a dia perderia muito do que pretendia pesquisar. Talvez o leitor pergunte: Por quê? Qual a influência da roupa do pesquisador nos dados coletados da pesquisa? Simples. Bem, não tão simples assim.
3 Savage, Md.: Rowman and Littlefield.
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o interior como espaço do desejo e da sociabilidade Como já disse Santos (2007) anteriormente, as saunas são espaços amplos, bem iluminados, com american- bar, mesas para os clientes e boys se sentarem e conversarem, mesas que servem para alguns jogos de cartas. Ambas as saunas oferecem vários privês para a prática sexual entre clientes e michês, um sauna seca e uma a vapor, banheiros, sendo que a Rainbow possui um dark- room4. Tanto as saunas, como os banheiros e o dark- room são espaços utilizados para a prática sexual entre boys e entre boys e clientes. O preço de um programa nestes espaços pode ser mais baixo do que o realizado nos privês. Já a Rainbow se diferencia da Apolo em função de seu espaço interno e dos rapazes que trocam sexo por dinheiro. seu O espaço interno da Rainbow, possui 1.000 m² de área construída, salas de ginástica, duas piscinas que fazem parte do parque aquático da sauna, enfim, são espaços que não apenas permitem, mas favorecem a sociabilização entre seus frequentadores. Durante as semanas em que estava nas saunas, em média três horas por noite, eu me sentava no balcão do bar ou nas mesas que ficam nestes espaços. Diversas vezes fui alvo de “cantadas” por parte dos boys, as quais consistiam em passar as mãos em minhas coxas, até atingir meu pênis com a tentativa de deixá-lo ereto, dizer em meu ouvido frases como: “que tal? Vamos fazer uma brincadeirinha hoje?5”, e por diversas vezes recusei estes toques. Dizia que era doutorando de Ciências Sociais pela PUC-SP e que gostaria muito que ele me desse uma entrevista. Neste ponto, o boy dava um sorriso e dizia algo assim: “com prazer, em um outro dia”, e se afastava da mesa. Claro, estes boys nunca mais pararam em minha mesa ou onde eu estivesse.
4 A Apolo também possuía um dark- room, quarto escuro utilizado para a prática sexual com parceiros desconhecidos, quando iniciei a pesquisa, mas resolveu fechar porque, segundo seu gerente: “os garotos iam lá pra puxar fumo e isso não pode”. 5 “Brincadeirinha” ou “brincadeira” são termos utilizados pelo michê para indicar práticas sexuais que vão desde a masturbação mútua, passando pelo sexo oral. Dificilmente se refere à prática sexual com penetração por um dos parceiros, mas ocasionalmente pode remeter a este tipo de prática.
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o desejo do pesquisador Voltando às roupas que usava durante a pesquisa, passados três meses em campo, descobri através de Marcelo, um de meus colaboradores principais, que os garotos dificilmente falariam, e por diversas razões. Alguns me viam como “uma penosa6”, outros eram casados e tinham filhos, tinham medo de que fossem identificados por suas esposas, enfim, as razões eram várias. Ao longo da pesquisa de campo, amigos de outros tempos também se afastavam de mim pelas mesmas razões dos rapazes, ou seja, pensavam que minha posição como pesquisador evitaria o pagamento pelo programa. Em uma frase: as roupas me afastavam de meus colaboradores. No entanto, surgiu outro ponto importante durante a pesquisa: nas saunas o acesso aos banheiros, salas de vídeo e dark-room é terminantemente proibido de roupas. Muitas relações entre clientes e boys, boys e boys, clientes e clientes se passavam nestes espaços. Os espaços de uso comum serviam para a sociabilidade e para acertos de programas entre garotos e clientes, tendo pouco a dizer em termos destas relações. Assim, me perguntei: De roupas ou de toalha? Uma etnografia difícil. Acabei optando por fazer a pesquisa etnográfica alternando algumas vezes de toalhas, usando uma sunga e uma toalha que cobria esta sunga e outras tantas com jeans, camiseta e tênis. É importante destacar que tal mudança junto com uma espera minha para me situar como pesquisador acabou por favorecer a pesquisa. Os boys, vendo-me de toalha, passaram a me encarar como um cliente qualquer da sauna. Sentavam-se à mesa onde eu estava e começavam a entabular uma conversa. Eu deixava a conversa fluir, até que vinha a tradicional cantada do garoto. Neste ponto eu interrompia a fala e me posicionava como pesquisador e perguntava ao boy se ele não gostaria de participar da pesquisa. Assim obtive 24 entrevistas gravadas, vários depoimentos dados na mesa, isto porque alguns garotos optaram por não gravarem entrevistas. Os clientes passaram a me ver de outro modo e também colaboraram prontamente com a pesquisa. 6 “Penosa” é um termo utilizado pelos michês para designar clientes com pouco poder aquisitivo e que tentam ter um programa de graça. Assim, minha posição de pesquisador era encarada por eles como falsa, como uma artimanha para conseguir um programa gratuito. É bom lembrar aqui que a posição de pesquisador, posta em dúvida por eles, servia mais como uma barreira do que como uma aproximação.
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Nas palavras de Braz (2010) eu “estava vestido de antropólogo”. E mais, era o meu corpo exposto e posto à prova. Sim, posto à prova como algo que pudesse ou deveria resistir ao desejo. Enfrentei talvez o pior inimigo do etnógrafo: ele próprio. Quem sou eu: pesquisador ou cliente? Muitas vezes estas perguntas trespassaram minha mente. Meu corpo estava inteiro na pesquisa e, parafraseando Pocahy (2009), à deriva, corpo e mente à deriva. A este respeito, falo junto com Pocahy (2009,1): Escrevo como se eu estivesse na escuridão de um dark room (ou, escrevo já desde a devassidão escura deste), sendo tocado e levado por mãos anônimas, desejosas, refratárias ou simplesmente curiosas. Sinto-me literalmente à deriva, perdido nas buscas das personagens de um passado que de certa forma me fizeram ser o que sou: produto de uma ‘política de identidade’ (destaques do autor)
Políticas de identidade que nos tornam lésbicas, gays, homossexuais, travestis, transexuais, e, ainda acrescento, antropólogos. O corpo, o meu corpo, estava literalmente à deriva. Um corpo Queer7 que questiona políticas de identidade, que tenta sair do padrão socialmente aceitável. Ou seja, para um pesquisador em seu campo de pesquisa o socialmente aceitável é que ele ou ela esteja vestido. No meu caso, estar de toalhas tornava-se, de certa forma, um comportamento disruptivo para com os padrões de pesquisa. Mas vamos nos deter um instante para uma reflexão sobre a Teoria Queer. Segundo Miskolci (2009,150), a Teoria Queer surgiu nos EUA no fim da década de 1980 “em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorais sexuais e de gênero”. Ainda segundo o autor, “seu objeto de análise: a dinâmica da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais”. Pode-se acrescentar que a Teoria Queer tem como objetivo desestabilizar as políticas de identidade que foram, aos poucos, excluindo pessoas com práticas homoeróticas, que não eram socialmente aceitáveis. Seguindo o autor, a Teoria Queer, fortemente influenciada por Derrida, mostra que o que está aparentemente “fora”, “nas margens” de um sistema, é também o que constitui este sistema 7 A palavra Queer, segundo Miskolci (2009), é antiga nos Estados Unidos e é utilizada para denominar de maneira pejorativa e ofensiva. É um xingamento que significa “anormal”, “perverso”, “viado”, “bicha”, etc.
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como tal. Em outras palavras, e seguindo Butler (2003,2005), são, por exemplo, os corpos considerados abjetos, estranhos que acabam por confirmar os corpos do centro, que, por assim dizer, os legitimam. Para Miskolci (2009,152) Central foi o rompimento com a concepção cartesiana (ou iluminista) do sujeito como base de uma ontologia e de uma epistemologia. Ainda que haja variações entre os diversos autores, é possível afirmar que o sujeito no pós- estruturalismo é sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido.
Mas, para mim, a roupa tampouco, pois era apenas um invólucro de algodão e lycra que cobria o meu corpo, sendo um padrão em termos de se fazer pesquisa, mas também o que me distanciava de meu colaborador. De maneira simbólica a roupa me “confirmava” como pesquisador. Mas ela se tornava um impedimento para uma pesquisa mais complexa. Estabelecia-se um paradoxo. Perlongher (2008[1993],2), em um texto que discute a “autoridade” do antropólogo e o “outro” “exótico”, aponta para um dos pontos centrais da etnografia: o conhecimento do outro. Sempre diferente de nós, este outro muitas vezes surge como algo “exótico”, algo a ser descoberto. E, claro, a autoridade do etnógrafo é quem vai “desvendar” este outro. Partimos de nossas concepções, conceitos e preconceitos para descobrir o exótico, o que é diferente de nós. Mas, afinal, quem é este outro? O que pode ser chamado de “autoridade do etnógrafo”? Quem confere tal “autoridade” ao pesquisador? No meu caso, o “outro”, “estranho”, ao ambiente era eu. O autor nos fala: Nessa situação, estritamente imaginária, fica claro de que lado está o antropólogo- do lado da autoridade- e está claro quem são os outros: os nativos polinésios. Os outros são outros mesmo. Aqui, deveria ser relativamente simples aplicar a noção de “identidade contrastiva”, já que a primeira condição- que é diferenciar-se do outro - está dada por antonomásia. Tão clara é a diferenciação que, com frequência, esse antropólogo colonial, ligeiramente démodé, vai dirigir sua observação exclusivamente sobre os outros, os nativos, deixando um tanto de lado- por desnecessária- sua auto-observação. Esse descuido traz consequências infelizes. Assim, conhecemos descrições exaustivas da ornamentação dos nativos polinésios: em troca, pouco sabemos
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acerca de como estava vestida Margaret Mead em cada uma de suas expedições (destaques do autor).
O meu “outro” não era um nativo polinésio, mas amigos e garotos de programa, todos ansiosos para colocar em prática seus desejos, fosse pelo dinheiro ou pelo corpo do cliente, ou pelo corpo do garoto. Neste momento em que escrevo, não penso em outros mesmo para parafrasear Perlongher, mas penso no papel do etnógrafo, do pesquisador de campo, diante de seus colaboradores em pesquisas que envolvem práticas sexuais e sua observação direta. Mais especialmente ainda, quando a pesquisa é feita em ambientes supostamente conhecidos, que de alguma maneira nos rodeiam e, por que não dizê-lo, fazem parte de nossas fantasias? No que penso? Penso nas relações intersubjetivas entre pesquisador e pesquisados. Crapanzano (2005) discute um importante elemento quando estamos em campo: a “sombra”, algo que “quebra” a “objetividade” que tentamos ter quando estamos em nossa pesquisa. Algo que “sombreia nossa visão”, “algo que procuramos afastar” de nós como algo que estaria fora do contexto da pesquisa, tida como “objetiva”. Neste ponto, Crapanzano nos fala sobre a subjetividade e a intersubjetividade quando estamos em campo. O subjetivo, algo que não devia estar ali, mas está. Sobre a subjetividade e seu elemento essencial para o campo e pesquisa Crapanzano (2005,359) afirma: Devo acrescentar, apesar de não poder aqui prosseguir com minha argumentação, que a subjetividade, de quanto possa parecer minha, é essencialmente intersubjetiva, tanto em um modo mediado pela linguagem, por exemplo, quanto imediatamente, por meio de encontros reais e imaginados com figuras significativas cercadas de sombras. Para mim, ao menos, a cena é aquela aparência, a forma ou refração da situação “objetiva” em que nos encontramos, colorindo-a ou nuançando-a e, com isso, tornando-a diferente daquilo que sabemos que ela é quando nos damos ao trabalho de sobre ela pensar objetivamente.
Seguindo Crapanzano (2005) posso sugerir que a “sombra” de minha pesquisa, que teimava em nublar minha busca pela objetividade era e, partindo da reflexividade proposta por Rabinow (2009), e adotada por Kulick (1995),
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cheguei à conclusão de que o meu desejo foi posto em xeque pela pesquisa. Presenciar cenas de sexo entre boys e entre boys e clientes nas saunas seca e a vapor, nos banheiros, salas de exibição de vídeo pornográfico e nos dark rooms, não era uma tarefa fácil e questionava de forma subjetiva, mas diretamente meus desejos. Sem dúvida, era uma etnografia difícil.
Relações de poder- as relações entre michês e clientes A discussão empreendida neste artigo não é exatamente nova dentro dos estudos LGBTT e Queer. É bem verdade, como Kulick (1995) chama a nossa atenção, que o debate sobre a posição e o desejo do pesquisador é em números bem maiores quando se trata de pesquisadoras (es) heterossexuais. Por exemplo, Dubisch (1995, p. 32) comenta o diário de Malinowski. A autora nos fala que “o diário de Malinowski está repleto de fantasias e sonhos eróticos (com as mulheres Trobriandesas), indicações de frustrações sexuais e anseios que o afligiam em seu trabalho de campo”. (tradução minha). Mas como nos diz a autora, o importante para o argumento dela em seu artigo é examinar sua própria posição e experiência no campo. Esta é também a posição de Kulick (1995) e Kulick e Willson (1995). Também de Rabinow (2007) e a minha. Mas, Kulick e Willson (1995), Lewin e Leap (1996), entre outros, já empreenderam este debate dentro dos estudos LGBTT e Queer. Lewin e Leap (1996) concentram-se mais na importância ou não de se revelar como pesquisador homossexual nos campos de pesquisa de antropólogos. Seus textos dão pouca atenção à reflexividade e mais à revelação ou não da identidade. E nos perguntam: O pesquisador gay tem ou não práticas homoeróticas com seus pesquisadores? E, tendo ou não, isto interfere em sua pesquisa? É importante ter práticas homoeróticas? E o desejo do pesquisador pelo objeto pesquisado: existe ou não? Em outras palavras, estamos falando da produção de conhecimento dentro dos estudos LGBTT e Queer no Brasil. Como já alertaram Diaz- Benitez (2009) e Braz (2007, 2010), a bibliografia sobre este tema em nosso país ainda é bastante escassa. Eu diria quase inexistente. De qualquer modo, seguindo o pós-estruturalismo e as posições da Teoria Queer de que o desejo e a sexualidade são organizadores da vida social, quando estamos em um campo em que as práticas sexuais heterossexuais ou homosse-
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xuais são o objeto de pesquisa, devemos nos questionar sobre nossos próprios desejos e sexualidade. Segundo Kulick (1995, p. 3), por um longo tempo os antropólogos estiveram preocupados com o sexo dos outros. Agora, apesar das resistências internas, se veem às voltas com seu próprio sexo e sexualidade. E tal resistência se deve, em muito, pela forma como a antropologia foi construída, isto é, como uma ciência objetiva, tanto na coleta de dados como nos textos etnográficos. Assim, seguindo a proposta de Rabinow (2007) e Kulick (1995), temos de nos perguntar: por que deveria pôr meu desejo em prática, ou seja, praticar sexo com o boy ou com o cliente? Onde isto me levaria? Quais os propósitos disto? Melhoraria a pesquisa? Tal prática seria enriquecedora para a minha tese? Respondo mais abaixo estas perguntas. Antes, gostaria de me deter em um ponto crucial nas relações entre michês e clientes nas saunas: as relações de poder nos termos foucaultianos destas relações, já sinalizadas anteriormente por Perlongher (2008). As relações nas saunas são bastante hierarquizadas, tanto entre os boys como entre os clientes. Por exemplo, michês que são tidos como apenas “ativos” durante o ato sexual têm ascensão sobre michês tidos como “passivos8”. Como nos disseram Miskolci e Pelucio (2008), o que se busca na prostituição viril é uma masculinidade hegemônica, que nas palavras de Perlongher (2008) é mais falada do que posta em prática. No entanto, eu diria que aqueles que performatizam tal masculinidade são clientes ou michês e têm ascensão sobre outros. Outro ponto é a hierarquia e o poder dados pelo dinheiro, pelo corpo, por ser novo na sauna, e estas diferenças valem para os clientes e para os boys. Explico: por exemplo, sobre o dinheiro: clientes com mais poder aquisitivo são mais cobiçados pelos boys do que os clientes com menor poder aquisitivo, etc. Estas hierarquias além de reproduzirem modelos heteronormativos, modelos de uma masculinidade hegemônica, tencionam as relações de maneira constante, como um contínuo entre os frequentadores das saunas de michês em São Paulo. Deste modo, para o michê o que importa é a sedução do cliente, 8 É bastante difícil, segundo meus colaboradores, encontrarmos michês que sejam apenas “ativos” ou “passivos”. Como disse Marcelo, boy, 20 anos: “A gente começa só fazendo ‘ativo’, mas vai se tornando conhecido, a grana acaba e então tem que se fazer ‘passivo’ também”. Eu diria que não é apenas o mercado que os leva para diferentes posições no ato sexual, mas também a preferência do michê em ser “ativo” ou “passivo”, como é o caso Lucas, que opta por ser “passivo” porque gosta.
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“ganhar”- e esta palavra é usada repetidamente pelos frequentadores de maneira geral- um cliente novo e, quem sabe, com isto torná-lo um cliente fixo, ou seja, um cliente que só “saia” com o michê que o “ganhou”, o qual passa a ser seu “proprietário”. A palavra sair nestes espaços assume vários significados, que vão desde efetivamente sair para um programa como teatro ou cinema até ir apenas ao privê da sauna com o cliente. Conforme declarou Lucas, boy, 20 anos, quando um cliente “seu” sai com outro michê sem lhe avisar ou “perguntar se pode”, ele fica bastante bravo e é capaz de “terminar com o cliente, pois isso é traição”. Esta situação traz a figura do namorado do michê. Muitos garotos me apresentaram para clientes dizendo se tratar de seus “namorados”. Deste modo, a circulação nas saunas de algumas palavras como “ter”, “ser”, “fixo” e “namorar” tornam-se atos performativos da linguagem, ou seja, eles fazem o ato. Nos termos de Austin (1975): Sentença performativa ou proferimento performativo, ou de forma abreviada, ‘um performativo’. O termo ‘performativo’ será usado em uma variedade de formas cognatas, assim como se dá com o termo ‘imperativo’. Evidentemente que este nome é derivado do verbo inglês to perform, verbo correlato do substantivo ‘ação’, e indica que ao se emitir o proferimento está se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, um mero equivalente a dizer algo.
Deste modo, “namorar” com um cliente é “possuir e controlar” a vida deste cliente, ou “namorar” com um michê é também, para o cliente, “possuir e controlar” este michê.cliente. Em se tratando dos clientes, a situação pode se tornar explosiva, pois o combustível que alimenta estas relações, que as media de maneira forte, é o dinheiro. O cliente fixo deste michê irá, ou tentará lhe dar,roupas, celulares, pagará seu aluguel e, em algumas vezes, um carro é o presente. Deste modo, o cliente “compra” o boy com os presentes e não deixa faltar nada para este garoto. O sentimento de traição pode incendiar esta situação. Regras de espaços altamente hierarquizados e regulados pelo poder.
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Concluindo... Respondendo as perguntas feitas acima, manter relações sexuais com os boys ou com clientes em nada melhoraria meu texto, minha pesquisa. Ao contrário, os dados seriam bem provavelmente enviesados. Outro ponto são as relações de poder mencionadas acima. Estaria usando uma posição de destaque e de claro poder para obter os dados necessários. A posição do pesquisador que, teoricamente, sabe mais que os “nativos”, pois é ele que, com sua “autoridade” etnográfica, está lá para descrevê-los. Outro ponto é o poder do boy. Para o garoto, o que importa é seduzir o cliente, torná-lo fixo. Quais garantias eu teria de que eles estavam falando o que sentiam e o que era importante para eles? Nenhuma. Todas as falas poderiam ter o sentido de me seduzir como cliente. Neste momento, lembro-me de uma frase de Marcos em suas várias falas: “Elcio, o que o garoto quer é o dinheiro, se tiver que mentir, que minta”. Não concordo com Bolton (1995) de que o fato de ser homossexual me aproxima mais de meus informantes, de que tal aproximação leva a uma maior confidencialidade e intimidade. Este raciocínio é, sugiro, essencialista. Ou seja, “ser” homossexual ou heterossexual contém algum substrato comum que nos liga em uma espécie de irmandade. Assim, para Bolton (1995), a identificação seria a base da pesquisa. Não devemos nos esquecer de que nos primeiros momentos da segunda onda do feminismo as mulheres fizeram várias e, digam-se, justas críticas sobre o campo antropológico ser androcêntrico. Naquele momento, apenas mulheres saberiam falar de mulheres. Logo descobriram que a categoria mulher não é algo fechado e acabado. Nesse movimento do feminismo, logo ficou claro que as mulheres que falavam por todas as mulheres eram brancas, de classe média e heterossexuais. Descobriu-se que mulheres lésbicas e negras com condição socioeconômica inferior não tinham voz. (Lewin e Leap, 1996). Para este autor, o sujeito está sempre em composição, nunca é completo, sempre falta algo, é fluido, contingente, nos termos de Butler (1998). Sua identidade não se completa. Supor que identificações podem facilitar o campo de pesquisa é, de antemão, partirmos com um a priori, inclusive político. A toalha serviu para me incluir no grupo, tornar-me parte dos que frequentam as saunas. Porém, não para me aproximar e praticar sexo com qualquer
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uma das partes. Serviu para poder entender as relações que se estabelecem entre michês, por exemplo. Explico: muitos rapazes namoram entre si, mas quando seus clientes “namorados” estão na sauna, os rapazes se mantêm afastados uns dos outros. Seu encontro se dará nas saunas, algumas vezes porque o clientenamorado irá levar um dos rapazes para um programa mais longo, como uma viagem, ou ainda porque este cliente é ciumento e não gostaria de saber que divide um boy com outro boy. Aliás, ouvi inúmeras vezes que os michês ficavam mais entre eles do que com clientes, o que é uma constante preocupação das gerências das casas. Quando subimos às salas de vídeo, notamos que, de fato, os michês têm prolongados beijos e, às vezes, relações sexuais completas. Enfim, para concluir, diria que usar ou não uma toalha pode ser uma estratégia de pesquisa, mas é também um ato reflexivo e que nos remete à ética dentro do campo. Em outras palavras, o que queremos com nossas pesquisas? Buscarmos novos parceiros ou aprofundarmos o nosso conhecimento sobre as sexualidades divergentes? A resposta é de cada um.
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Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres Lívia Gonsalves Toledo1 Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho2
Entendemos a homofobia como formas específicas de violência (além do medo, o descrédito, a aversão e o ódio) contra as pessoas que adotam ou pareçam adotar performances de gênero e/ou sexuais ditas não-naturais ou anormais da sexualidade humana. As principais vítimas são gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, mas também as pessoas heterossexuais. A homofobia é direcionada a todas aquelas pessoas que não regulam suas relações e subjetividades às normas do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (Butler, 2003) hegemônicas e referendadas naquilo que se convencionou chamar de heterossexualidade em acordo com as normas/valores sócio-histórico-culturalmente construídos. Em nossa cultura, a qual privilegia a heterossexualidade e aqueles que seguem suas normas, todas as pessoas, independentemente de suas orientações sexuais e identidades de gênero são, desde a infância, ensinadas a rejeitar um contato mais íntimo com o mesmo sexo, a nunca inverterem normas de gênero e a serem homofóbicos. Quando uma pessoa é exposta, desde sempre, a certa ideia, acaba por adotá-la, tornando-se um valor implícito e automatizado. Neste sentido, a homofobia é chamada interiorizada quando é a própria pessoa vítima de homofobia que pensa, verbaliza e age de modo homofóbico. A partir de Narrativas de Histórias de Vida de mulheres que não vivem em acordo com a sexualidade heterossexual, buscamos analisar como se processa a hostilidade desencadeada diante de tudo o que se refere à heteronormatividade, adentrando à problemática da homofobia na construção política e existencial de seres sexuados e generificados. Este trabalho faz parte de uma tese de doutorado realizada junto ao programa de Pós-Graduação da UNESP de Assis-SP, e financiada pela FAPESP. Palavras chave: Homofobia interiorizada; Processos de subjetivação; Homoerotismo. 1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/ Assis-SP. Membro do GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades (Unesp, Assis-SP), cadastrado junto ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq 2 Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica, Unesp de Assis e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp, Assis.
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Homofobia Em sua conceituação inicial, o termo homofobia podia ser entendido como um medo (fobia), uma repulsa irracional, inclusive o ódio, por gays e lésbicas (BORRILLO, 2001). Porém, a homofobia, mais que um traço individual, mais que uma emoção, possui uma dimensão cultural (a recusa da homossexualidade enquanto fenômeno psicológico e social) (BORRILLO, 2001). Por isso, Borrillo (2001, p. 22) propôs que, na conceituação deste termo, fosse levado em conta, sobretudo, todo o “conjunto de atos, sentimentos e pensamentos negativos sobre a homossexualidade a nível social, moral, jurídico e/ou antropológico.”. Assim, a homofobia é um princípio ideológico, um sistema de crenças e valores, formado por discursos e práticas discursivas inteligíveis para o sistema heteronormativo que legitimam, inferiorizam, discriminam, violentam e criam vulnerabilidades no plano individual, social e institucional às pessoas que configuram suas existências de modos não compatíveis com o referencial da “sexualidade regular” (FOUCAULT, 1988), ou seja, heteronormativo. Aí, incluem-se lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos, e qualquer pessoa dissidente das normativas de gênero determinadas para cada um dos sexos macho e fêmea, hegemônicas centradas na heterossexualidade. Segundo Borrillo (2001) e Junqueira (2007), a homofobia tem sua construção não apenas na compulsoriedade heterossexual do desejo, mas também na desigualdade entre os sexos e gêneros. Ou seja, não se restringe às pessoas ditas homossexuais, mas a todas as pessoas que não se encaixam rigidamente nas normas socialmente estabelecidas para o sistema de organização heterossexual da sociedade. Assim, a homofobia pode significar formas específicas de exclusão e violência contra as pessoas que assumem ou são suspeitas de assumir uma orientação sexual diferente da heterossexual, assim como identidades e performances de gênero e sexuais diferentes da norma “macho, então masculino, então homem” e “fêmea, então feminina, então mulher”. Borrillo (2001, p. 16) complementa que: A homofobia se converte assim na guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo) e de gênero (masculino/feminino). Por isso os homossexuais não são as únicas vítimas da violência homofóbica, que também atinge todos aqueles que não se aderem à
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ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais com forte personalidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade.
Ademais, a homofobia exige também que as pessoas heterossexuais mantenham relações íntimas de amizade, coleguismo ou mesmo familiar apenas com heterossexuais (segregando e excluindo de seu convívio amigos e parentes homossexuais), de modo que a homofobia acaba por atingir e prejudicar a todos, por também influenciar negativamente nas relações interpessoais. Por isso não podemos pressupor que o combate à homofobia seja assunto de preocupação apenas das pessoas não-heterossexuais. Sua manifestação se dá desde a ridicularização e a injúria até assassinatos, englobando práticas de interdição, segregação, exclusão, controle, adequação, invisibilidade, inferiorização, violação e destruição. É importante lembrar que a homofobia é sentida e manifestada independentemente da orientação sexual do sujeito, de modo que pessoas que sentem desejo, atração e se relacionam com outras do mesmo sexo também são capturadas por processos de subjetivação homofóbicos. Assim, a partir de uma pesquisa de doutorado que estudou Narrativas de Histórias de Vida (coletadas por entrevistas semi-estruturadas no ano de 2010) de 10 mulheres que vivenciam o homoerotismo, em uma região do interior do Oeste Paulista, buscarei analisar como se processa a homofobia nos modos de subjetivação de mulheres não-heterossexuais, adentrando à problemática na construção política e existencial de seres sexuados e generificados.
Homofobia “interiorizada” A partir da instituição da heterossexualidade compulsória, todas as pessoas, salvo raríssimas exceções, nascem, crescem, são educadas e aprendem a ser heterossexuais e rejeitar a homossexualidade e a dissidência de gênero heteronormativo. De acordo com Rich (1980/1986), heterossexualidade compulsória é uma organização social-sexual, mantida pela dominação masculina, que pressiona, força e obriga, de forma violenta ou subliminar, todas as pessoas a tornarem-se heterossexuais. Esta instituição se concentra nos muitos tipos de intensa pressão que a sociedade exerce sobre as pessoas para garantir que a 303
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heterossexualidade se torne destino. E uma das formas de controlar e impor a heterossexualidade é rebater com todas as forças a homossexualidade, estigmatizando, invisibilizando, excluindo, agredindo e produzindo modos de subjetivação homofóbicos pautados em sentimentos como aversão, nojo, medo e ódio sobre tudo o que foge à normativa heterossexual. No processo de produção da identidade sexual e de gênero, a obrigatoriedade de ser heterossexual e de corresponder aos padrões de gênero determinados para seu sexo começa a gestar fortes implicações subjetivas no sujeito. Segundo o psicólogo López [2000?], para um bem-estar psicológico e emocional é preciso que a pessoa possa estar consciente de sua orientação sexual (seja esta homo, bi ou heterossexual), aceitá-la e integrá-la à identidade pessoal integral e poder manifestá-la ao seu entorno. Assim, aquelas pessoas que começam a perceber-se com desejos, atrações e sentimentos diferentes daqueles programados, e que são delas esperados, passam por um difícil processo normatizador de captura pelos processos homogeneizantes homofóbicos, pois já cristalizam em seus modos de subjetivação qualidades (em sua grande maioria negativas) que escutam e veem sobre aquilo que estão começando a sentir e perceber em si mesmas. López [2000?] descreve esse processo: Diríamos que o indivíduo que cresce e se desenvolve em uma sociedade heterossexista irá adquirir ideias e conceitos negativos sobre as orientações sexuais não-heterossexuais de maneira natural e por vários meios, alguns deles significativos para ela (a família, o contexto escolar, a televisão, a Igreja etc.) [...] É fácil adivinhar que se torna muito mais complexo para uma pessoa, que tem interiorizado mensagens negativas e catastróficas sobre as orientações sexuais minoritárias, a elaboração satisfatória das distintas fases de desenvolvimento sem sentir emoções como o temor e a repulsa por sua orientação sexual quando descobre que é lésbica, gay, bissexual ou transexual. […] Uma sociedade heterossexista pode influenciar negativamente no desenvolvimento da identidade sexual, e este fato afetará negativamente com maior probabilidade outras variáveis como: a autoestima, o controle do entorno, a segurança e confiança pessoal, a percepção de apoio social, as expectativas quanto ao futuro, etc. A influência negativa do heterossexismo no desenvolvimento da
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identidade sexual e sobre o restante das variáveis biológicas e psicológicas do crescimento como pessoa se manifesta, muitas vezes, como um sentimento negativo pela própria orientação sexual. (LÓPEZ [2000?], p. 3) [minha tradução do espanhol]
Isso é o que chamaremos de homofobia “interiorizada”. Tratarei “interiorizada” entre aspas – que alguns autores também chamam de “internalizada” – justamente pelo entendimento de subjetividade em processo, ou seja, não considerando um “interior” de um indivíduo, mas vendo cada uma das pessoas como possuindo uma individualidade aberta, em contato constante com o social, com processos subjetivos nos atravessando a todo o momento. Concordo com Guattari e Rolnik (1996, p. 33) quando dizem que a subjetividade é “essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares.”. Tais atravessamentos estão sempre tendendo a processos normatizadores, mas também com possibilidades de se tornar processos singulares de expressão da vida. É por isso que podemos pensar que todos (homossexuais, bissexuais e heterossexuais) são atravessados pela homofobia. Enquanto um processo normatizador, a tendência é que todos nos tornemos pessoas homofóbicas, o que configuraria entre os homossexuais o que se chama de “homofobia interiorizada”. Contudo, também sabemos que não somos meros receptáculos dos valores hegemônicos, e que a força do desejo de vida também se opera sobre nós, fazendo-nos fugir dos processos homogeneizantes. Usarei o termo homofobia “interiorizada” (com aspas) por se tratar de um termo mais conhecido no meio acadêmico, mas com ciência de que este é tão inadequado quanto o termo homofobia, como muitos autores já descreveram (BORRILLO, 2001). Como aponta Castañeda (2007), quando uma pessoa é exposta, desde sempre, a certa ideia, acaba por “interiorizá-la”, adotando-a, tornando-a sua. Diversos fatores heterogêneos negativos e complexas práticas de poder difusas no campo social sobre a homossexualidade e dissidência de gênero (como determinantes históricos, políticos, religiosos, culturais etc.) atravessam os sujeitos dissidentes da heteronormatividade e se cristalizam em seus modos de subjetivação, sendo tomados como naturais e próprios. Assim, a “homofobia torna-se ‘natural’: torna-se um valor implícito e inconsciente, gerando reações imediatas, automáticas e aparentemente instintivas.” (CASTAÑEDA, 2007, p. 143). Isso significa que a homofobia pode se manifestar a partir das próprias 305
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pessoas homossexuais: em relação a si mesmas; sobre outros homossexuais ou dissidentes das normativas de gênero heterossexuais; ou em relação a qualquer coisa que faça referência à homossexualidade em geral. Nas narrativas de histórias de vida das participantes da pesquisa, dentre as manifestações da “interiorização” da homofobia, observamos: diminuição da autoestima, rejeição, temor, desprezo e desconfiança de seus próprios desejos e sentimentos, vendo-os como ilusórios, irreais, sujos, perversos ou até perigosos; apresentar comportamentos e pensamentos autodestrutivos conscientes e inconscientes; dificuldade e incapacidade de expressar sua atração, desejo por outra mulher; obrigar-se a ficar, se relacionar e ter relações sexuais heterossexuais sem o querer; afastar-se de amigos homossexuais e da própria parceira para não ser identificada como lésbica; ter dificuldade em assumir um relacionamento sério com uma mulher; relegar sua relação de casal para um plano secundário ao fazer projetos sem levar a parceira em conta; ter a sensação de estar em desvantagem; duvidar de si mesmas, suas capacidades e ambições, “interiorizando” estereótipos associados à homossexualidade como o fracasso, a limitação, o defeito etc.; envergonhar-se de expressar-se publicamente; e ter dificuldade ou incapacidade de reconhecer seu direito de igualdade de direitos e de expressão diante dos heterossexuais. De acordo com Wiliamson (2000), a homofobia “interiorizada” tem atraído poucas pesquisas no ramo da psicologia, apesar de seu impacto destrutivo na saúde mental da comunidade LGBT. Forst e Meyer (2009) a caracterizam como um conflito intrapsíquico e como a necessidade da pessoa homossexual de ser e/ou parecer heterossexual – como ocorreu com todas as participantes da pesquisa, com algumas mais pontualmente, com outras por poucos anos, e com uma delas, durante mais de 20 anos depois de sua conscientização de sua atração por mulheres. A partir disso, Wiliamson (2000, p. 97) lembra que é preciso cuidado no uso deste conceito para que este não seja usado acriticamente, como muitos teóricos o fazem, re-patologizando gays e lésbicas como ‘doentes’ (como os dizendo possuidores de uma orientação sexual “egodistônica”3) 3 De acordo com o CID 10 - F66.1 , a chamada “Orientação sexual egodistônica” diz respeito aos aspectos do pensamento, dos impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos que contrariam e perturbam a própria pessoa. Assim, caracteriza-se quando a pessoa tem uma orientação sexual ou atração que está em desacordo com a própria imagem idealizada de si mesmo, causando ansiedade e um desejo de mudar de orientação ou tornar-se mais confortável em relação a sua orientação sexual. A crítica que não se faz disso é que a ansiedade e desejo de mudança não é relacionada ao sujeito homossexual, mas ao social homofóbico que o envolve.
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e retirando a atenção do foco dos mais importantes componentes culturais da homofobia e do heterossexismo. Para Forst e Meyer (2009), a homofobia “interiorizada” é um dos maiores causadores de prejuízo por homofobia sobre homossexuais, pois, apesar de ter sua origem na sociedade heterossexista, tem sua manifestação a partir da própria pessoa homossexual, mesmo quando não está sofrendo atitudes ou em situações de discriminação, e age nos modos de subjetivação do sujeito antes mesmo de se conscientizar de sua homossexualidade. Ou seja, a homofobia “interiorizada” interfere na descoberta do próprio desejo homossexual, de modo que não fosse a homofobia, possivelmente muitas pessoas perceberiam seu desejo e atração por pessoas do mesmo sexo mais cedo (ou do mesmo modo como percebem os heterossexuais quando se apaixonam pela primeira vez) do que comumente percebem. Castañeda (2007) detalha outras diversas consequências da “interiorização” da violência homofóbica, muitas das quais aparecem de modo menos claro na vida das participantes: ter uma imagem desvalorizada de si mesmos; prejudicar suas relações na sua vida sexual e até mesmo em sua saúde física; fazer com que pareça normal que seus familiares e amigos critiquem sua/seu parceira/o e ela/ele mesmo critique e ignore sua/seu parceira/o; levar a pessoa homossexual a reprimir ou negar a raiva derivada das agressões sofridas que, voltada para ela mesma, pode ter como consequência depressão, quadros de ansiedade diversos ou se manifestar em trágicas condutas como assassinatos e suicídio; e fazer com que as pessoas homossexuais se sintam observadas, julgadas, excluídas, debochadas, ofendidas ou desprezadas, mesmo que não o sejam. Assim, a homofobia “interiorizada” pode gerar sobre aqueles que se percebem dissidentes da heteronormatividade sentimentos como: angústia, ansiedade e produção de reações defensivas, uma preocupação exagerada e obsessiva com a estigmatização, autodesqualificações e desvalorizações pessoais, níveis elevados de estresse, expectativas negativas quanto ao futuro, estado de alerta, baixa autoestima relacionada com a percepção de não disponibilidade de apoio social, participação em circuitos variados e diferentes de mentiras e segredos, ocultação da própria orientação sexual, e até identificação com o agressor homofóbico (LÓPEZ [2000?]) pelo engendramento do ódio contra si mesmo. Não é à toa que muitas procuram terapia psicológica, ou outros modelos terapêuticos, sentindo-se inadequadas em relação à sua orientação
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sexual. Importante sobre isto é lembrar que tais sentimentos não provém da homossexualidade, mas da homofobia expressa a seu redor. Além destes sentimentos, e sem querer colocá-los como de menor importância, é em especial o sentimento de vergonha que levaremos aqui em conta, pois é um dos elementos principais que faz com que gays e lésbicas se sujeitem às violências perpetradas pela homofobia, não reivindiquem seus direitos e se sobrepujem às regras sociais devido à ação da homofobia “interiorizada”.
Quando a violência se torna vergonha O sentimento de vergonha já acompanha a descoberta do desejo ou sentimento homossexual, independente da idade em que este ocorra. Lembrando que a homofobia é uma violência manifestada a níveis individual, social, institucional e estrutural (seja de natureza física, verbal, psicológica), Mason (2002) diz que o sentimento de vergonha é um dos efeitos da violência, que está relacionada com sentimentos de humilhação e indignidade, já que objetifica a vítima (CHAUÍ, 1999). Em suas pesquisas sobre segredo nas relações familiares, a autora confirma que quem relata o evento de vergonha, em geral, é a vítima das agressões no seio familiar. Ou seja, o atravessamento de diversos modos de violência nos modos de subjetivação da vítima produz nesta o sentimento de vergonha como consequência de sua constante objetificação. A vergonha vai além da desmoralização ou embaraço diante de algo pelo qual sente culpa por ter realizado uma ação errada ou inadequada e do que tem consciência e pode desculpar-se. Mason (2002) explica que: A vergonha é frequentemente confundida com culpa. Entretanto, a vergonha e a culpa estão em extremos opostos do continuum. A culpa emana de uma consciência e valores integrados. O sentimento de culpa é um ativador que nos diz que enfrentamos a possibilidade de violar um valor. A culpa diz respeito ao comportamento; a vergonha diz respeito ao self. Em outras palavras, a culpa relaciona-se ao que fazemos; a vergonha diz respeito ao que somos. Com culpa, eu cometo um engano; com a vergonha, eu sou um engano. Com a vergonha, não podemos dizer ‘Estou enganado, desculpe, cometi um erro’. Dentro da culpa há um caminho de volta, um modo de fazer reparações. (MASON, 2002, p. 51).
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Deste modo, os sentimentos produzidos pelo atravessamento e cristalização da violência homofóbica nos modos de subjetivação da pessoa homossexual podem engendrar o sentimento de vergonha, fazendo com que gays e lésbicas “se escondam e mantenham-se invisíveis, a fim de não serem identificados como pertencentes àquela categoria estigmatizada.” (NASCIMENTO, 2010, p. 235), evitando a expressão de afeto e erotismo em espaços públicos, não se sentindo no direito de expor publicamente coisas que as pessoas heterossexuais não pensariam sequer em esconder, e nem ao menos pensariam estar ofendendo, desrespeitando ou causando desconforto a alguém. Uma frase dita por uma das participantes em relação aos seus motivos de não exposição ou verbalização pública da homossexualidade evidencia tal sentimento: “temos que respeitar as pessoas, em ambiente familiar ou com criança [...]”. Para ela, expor publicamente a homossexualidade é algo errado e desrespeitoso, sugerindo a crença de que apresentar o afeto e o erotismo entre pessoas do mesmo sexo é “impuro”, que ultrapassa os limites morais diante de entidades sociais consideradas “puras” como a família e a infância. Em realidade, o que é desrespeitado é a regra social de manter a heterossexualidade no topo de pirâmide do privilégio e consideração social. Ao expor o homoerotismo em público, desrespeita-se a discriminação, e isto está longe de ser algo ruim. Segundo Foucault (1981/2004), as relações homossexuais não apenas subvertem a regra sexual, pois a homossexualidade não é apenas composta de práticas sexuais, mas os homossexuais subvertem também a lei dos relacionamentos, a lei do amor, da composição da conjugalidade e, conseguintemente, da família. Segundo Forst e Meyer (2009), a homofobia “interiorizada” é comumente experienciada no processo de desenvolvimento da identidade sexual e de gênero e desconstruir essa homofobia é essencial para o desenvolvimento de um saudável autoconceito. Porém, a homofobia “interiorizada” pode nunca ser completamente desconstruída, podendo afetar os sujeitos LGBT por muito tempo depois da descoberta de sua diferença sexual. A pessoa movida pela homofobia “interiorizada” também se afasta da convivência com outras pessoas LGBT, afetando negativamente a qualidade de suas amizades, com seus familiares e outros relacionamentos íntimos (FORST & MEYER, 2009). Em muitos casos, homossexuais desprezam seus iguais nas vivências cotidianas quando estes se assemelham aos perfis mais estigmatizados
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das homossexualidades, que geralmente são os homossexuais assumidos ou aqueles que, além de homossexuais, são também dissidentes das normativas de gênero, como lésbicas masculinas, gays femininos, travestis, transexuais e transgêneros. Do mesmo modo, sob a ação da homofobia “interiorizada”, homossexuais ridicularizam, desprezam e humilham outros homossexuais que não correspondem a padrões de beleza, de status social e cultural, de raça/etnia usando essas qualidades como bode expiatório de sua homofobia. Percebemos que se trata de homofobia “interiorizada” quando tal hostilidade por raça/etnia, estética, nível social e cultural e a ausência de outras características socialmente valorizadas são direcionadas apenas a outros homossexuais, não ocorrendo o mesmo diante de pessoas heterossexuais com os mesmos atributos. Além disso, Castañeda (2007) diz que a homofobia “interiorizada” pode fazer com que os homossexuais se portem demasiadamente atentos aos desejos e necessidades dos outros para serem aceitos e por dificuldade de afirmar ou defender seus próprios desejos e necessidades. Paradoxalmente, essa sensação difusa de inferioridade ou de insuficiência pode provocar um esforço contínuo para compensar o ‘defeito’ da homossexualidade em outras áreas da vida. O homossexual pode (inconscientemente) tentar provar que é ‘aceitável’ apesar de tudo, segundo o critério da sociedade heterossexual. Essa supercompensação pode levá-lo a se tornar demasiadamente perfeccionista e exigente com ele mesmo: ele pode sentir que não está ‘à altura’ em inúmeros campos. Como qualquer minoria discriminada, tentará constantemente provar que pode satisfazer as demandas da maioria (CASTAÑEDA, 2007, p. 152).
Vemos isso ocorrer com as participantes da pesquisa especialmente em relação aos seus familiares. Na tentativa de corresponder às expectativas de boa filha para os pais, algumas mulheres limitam suas vivências homoeróticas, findam relacionamentos e perdem muito de suas experiências eróticas e sexuais em prol do desejo dos pais. Agem como se devessem compensar os pais por serem homossexuais: “faço até antes, faço até mais para realmente não ter motivo nenhum para ficar falando de mim.”. Forst e Meyer (2009) também falam que a busca por relacionamentos mais estáveis sugere a superação da homofobia “interiorizada” – o que também não
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significa que a busca por relações fortuitas seja movida apenas pela homofobia “interiorizada”. O que os autores dizem é que aquelas pessoas homossexuais que apresentam altos níveis de homofobia “interiorizada”, para encobrir sua própria orientação sexual, acabam evitando relações com outros membros LGBT, e até mesmo deixando de assumir relacionamentos afetivo-sexuais estáveis e duradouros. Segundo os autores, a homofobia “interiorizada” se manifesta em problemas na qualidade das relações íntimas entre pessoas LGBT4, muitas vezes em consequência de sintomas depressivos. Eles explicam que para aliviar qualquer um dos sentimentos causados pelo processo normatizador da homofobia: […] indivíduos podem evitar relacionamentos duradouros e profundos com outras pessoas LGB e/ou buscar caminhos por expressão sexual desprovidas de intimidade e aproximação interpessoal. Dentro de um relacionamento de casal romântico, o parceiro e as experiências compartilhadas servem como uma constante lembrança da própria orientação sexual. A homofobia interiorizada pode, assim, levar a problemas relacionados à ambivalência, conflito relacional, mal-entendidos e objetivos discrepantes (Mohr & Fassinger, 20065).6(FORST & MEYER, 2009, p. 98)
Tal como pontuam os autores, comprometer-se em um relacionamento profundo e estável com alguém do mesmo sexo é estar constantemente afirmando sua orientação sexual homossexual, e, para alguém que sofre de homofobia “interiorizada”, isso se torna tarefa torturante cotidiana. Destarte, movida pela homofobia “interiorizada”, é comum que a pessoa evite relacionamentos íntimos prolongados e profundos e, quando os têm, é mais frequente que tenha problemas com suas/seus parceiros/as (inclusive dificuldades sexuais) e se esforce menos para resolvê-los. Em geral, a relação acaba tendo menor durabilidade, menos qualidade e sendo mais empobrecida comparativamente àquelas de pessoas que apresentam baixos níveis de homofobia “interiorizada” 4 Os autores deixam claro que, embora seu estudo sugira que a internalização da homofobia seja um fonte significante de problemas de relação entre indivíduos não-heterossexuais, eles levam em conta que existe ainda um espectro cheio de fatores que pode afetar a qualidade de suas relações (como níveis de compromisso discrepantes, desaprovação da família e amigos, e outros estressores), os quais eles não puderam avaliar naquele estudo. 5 Mohr, J. J., & Fassinger, R. E. (2006). Sexual orientation identity and romantic relationship quality in same-sex couples. Personality and Social Psychology Bulletin, 32(8), 1085-1099. 6 Minha tradução do inglês.
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(FORST & MEYER, 2009). Deste modo, se muitas pessoas homossexuais não têm relacionamentos sérios, estáveis e duradouros, não é porque os homossexuais são mais promíscuos ou sentem maior liberdade em vivenciar relações sem compromisso, não-monogâmicas e praticar sexo com vários/as parceiros/as. É preciso ser um tanto cínico para achar que heterossexuais não têm as mesmas ações e desejos, não se tratando de uma característica da homossexualidade. Contudo, nestes modos de vivência das relações entre homossexuais, parcela disto pode estar na ação da homofobia “interiorizada”. Finalmente, há também outros processos especialmente inconscientes de prejuízo que homossexuais causam a si mesmos, movidos pela “interiorização” da homofobia. Alguns autores (FORST & MEYER, 2009; LOPEZ [2000?] e WILLIAMSON, 2000) chamam de “estresse de minoria” um sentimento que afeta os que sofrem de homofobia “interiorizada” de modo a comprometer algumas dimensões de sua saúde física e mental, o que aumenta a probabilidade de desenvolvimento de alguns transtornos psicológicos e emocionais. Forst e Meyer (2009) dizem que o estresse de minoria exige das pessoas que compõem a minoria mudanças na forma de se comportar e requer adaptação em um ambiente social inóspito – onde é preciso constantemente avaliar se o ambiente é ameaçador, trabalhar expectativas de rejeição, encobrimento da orientação sexual e esforços para se contrapor ao estigma. Segundo os autores, o estresse de minoria, portanto, produz diferenças essenciais na vida de pessoas homossexuais comparativamente com as pessoas heterossexuais. E os autores reafirmam que: É importante notar que apesar de internalizado e insidioso, o quadro do estresse de minoria localiza a homofobia interiorizada em sua origem social, provenientes do heterossexismo e do preconceito social, e não de uma patologia interna ou de uma personalidade a ser tratada. (Russell & Bohan, 20067)8 (FORST & MEYER, 2009, p. 97-98)
7 Russell, G. M., & Bohan, J. S. (2006). The case of internalized homophobia: Theory and/as practice. Theory & Psychology, 16, 343–366. 8 Minha tradução do inglês.
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López ([2000?], p. 4) diz que “parece ser que os transtornos de ansiedade, de estado de ânimo e o abuso de drogas se relacionam em muitos casos com fatores sociais [...]” e que “pesquisas têm demonstrado o aumento da vulnerabilidade para desenvolver transtornos de estado de ânimo e de ansiedade e talvez maiores proporções de transtornos psicológicos [...]” entre homossexuais. Não é que os homossexuais tenham, por sua orientação sexual, a predisposição a transtornos mentais, mas que os estressores sociais causados pela homofobia produzem mais chances de traços de distúrbios surgirem nos sujeitos homossexuais que vivem sob pressão social, familiar, institucional, etc. da homofobia, pois os homossexuais sofrem altos níveis de imprevisibilidade e níveis elevados de estresse na vida cotidiana. López ([2000?], p. 5) diz que, “também por isso, as lésbicas têm maiores riscos de desenvolver dependência a álcool que outras mulheres, enquanto os homens gays têm mais prevalência de transtornos de ansiedade que os heterossexuais.”. Castañeda (2007) fala que uma emoção disparada pela violência que é frequentemente reprimida pelas pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo é a cólera, pois elas são objeto de agressões contínuas muitas vezes já em idades bem prematuras. As gozações, piadas, etiquetas e humilhações relativamente constantes e conscientes às quais são expostas no cotidiano por conta da homofobia obviamente que as afeta, sem levar em conta as violências verbais, psicológicas ou mesmo físicas de que são vítimas. “A pergunta a ser feita não é a de saber se tudo isso as afeta ou não – pois é evidente que sim –, mas a de saber o que fazem com a cólera que normalmente deveriam sentir” (CASTAÑEDA, 2007, p. 149), e com todos os outros sentimentos despertados pela ação da homofobia, como a tristeza, a revolta, a indignação, a ansiedade, a insegurança e o desamparo. Segundo pesquisas, a implementação desses sentimentos pode produzir atitudes autodestrutivas. Temos com exemplo mais crítico a tentativa de suicídio, que é extremamente alta entre adolescentes e jovens homossexuais. Hersch, (19919 apud SANDERS, 1994) diz que jovens gays e lésbicas estão três vezes mais propensos a tentar o suicídio que os jovens heterossexuais, e até 30% de todos os suicídios que ocorrem na adolescência
9 HERSCH, P. Secret Lives. Family Therapy Networker, p. 36-39, Jan/Fev, 1991.
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podem estar relacionados com questões de identidade sexual – ou seja, a homofobia sobre as identidades dissidentes da heteronormatividade. Entre as participantes, uma delas achava que “devia morrer” quando tomou ciência de sua homossexualidade, achando-se uma aberração; outras duas tiveram o claro pensamento de suicídio devido às dificuldades encontradas nas relações com a família quando reveladas suas dissidências da heterossexualidade. No Brasil, em estudo empreendido com mais de 2 mil adolescentes de escolas públicas da região do Oeste Paulista em 2009 pelo Dr. Fernando Teixeira Filho e a Dra. Carina Marretto, do Departamento de Psicologia da Unesp de Assis-SP, “encontrou-se que os não-heteros têm ‘aproximadamente’ 2 vezes mais chances de pensarem em suicídio e 3 vezes mais chances de tentarem se matar comparativamente aos heteros.”10. Para Cooklin e Barnes (1994), os comportamentos autodestrutivos desempenhados por homossexuais poderiam advir de uma tentativa de implementação de vida. Também vemos exemplos desses comportamentos autodestrutivos entre duas participantes pela forte opressão que sentiram especialmente dos pais assim que eles souberam de sua homossexualidade. Baixa autoestima afetada, isolamento dos amigos e da família, fuga de casa passando necessidades, consumo de muita bebida alcoólica e tabaco, desejo de morte e pensamentos suicidas foram alguns dos modos como elas enfrentaram a rejeição, discriminação e violências de suas famílias. Todas essas formas de lidar com a homofobia acarretavam em prejuízos à sua saúde física, emocional e mental. Segundo os autores, esses comportamentos irresponsáveis com a vida podem demonstrar “uma tentativa, embora incompetente e distorcida, de criar maior flexibilidade ou causalidade em um sistema rígido, sem um desafio direto à ordem social.” (COOKLIN & BARNES, 1994, p. 293). Esses sistemas rígidos, nos quais os sujeitos estão inseridos, podem estar na família, nas relações no trabalho, na igreja, em um contexto baseado em fundamentalismos morais e religiosos homofóbicos; ou mesmo na vivência da homossexualidade pautada em rígidas normativas heterossexuais.
10 Retirado de: http://vireilobisomem.blogspot.com/2010/10/tres-adolescentes-homossexuais-se-matam.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2011.
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Conclusão Como sabemos, López [2000?] fala que não é a homossexualidade em si mesma que causa sofrimento à pessoa homossexual nem aos demais, mas os pensamentos, os estigmas e a violência interiorizados sobre a homossexualidade. “Seguindo este argumento, é fácil compreender que se o significado que tem para uma pessoa o fato de ser lésbica, gay, bissexual ou transexual é negativo, aumentará seu sofrimento.” (López [2000?], p. 1). López ([2000?], p. 8) sugere que a luta contra a homofobia e as mudanças sociais comecem pelos próprios homossexuais, “para que se ouça a voz do oprimido, evitando a vitimização como única ferramenta de pressão, e sim utilizando os direitos humanos como objetivo desejável por todas as sociedades democráticas.”. Nascimento (2007) propõe a ressignificação da experiência da homossexualidade, sugerindo que ao invés de vergonha gay, significar o orgulho gay, que visa “antes de mais nada uma (re)apropriação da identidade homossexual que reverteria o estigma em orgulho, tanto privado quanto público, reivindicando sua identidade de maneira a desbancar o discurso heterossexista.” (NASCIMENTO, 2007, p. 68-69). Assim, “a construção do processo identificatório de gays e lésbicas, tanto no plano pessoal quanto coletivo (política), atua de maneira a resistir ao abuso dos mecanismos de controle mencionados e pensar em novos estilos de vida.” (NASCIMENTO, 2007, p. 68). Além de toda a ação da homofobia que vivenciam em diversos âmbitos da vida (família, escola, grupos religiosos, no trabalho, etc.), a homofobia “interiorizada” aparece como outro elemento que potencializa as vulnerabilidades da população LGBT a partir de todos os sentimentos que proporciona aos dissidentes da heteronormatividade e as ações negativas movidas por eles com base nesses sentimentos. Uma análise propriamente política da homofobia converge, deste modo, para a crítica dessa ordem social heteronormativa de modo a produzir saúde psicológica, mental e física a todos os atingidos por ela. Sabemos que ninguém escapa à “interiorização” da homofobia. Do mesmo modo como a orientação sexual não se escolhe, ser homofóbico também não é uma escolha, mas um efeito discursivo. E, seja em pessoas homossexuais, bissexuais ou em heterossexuais, é com a informação e com a experiência em relação à homossexualidade (por exemplo, conhecendo homossexuais ou vivenciando
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a homossexualidade, com as experiências de vida, com novos encontros, com o atravessamento e despertar de novos desejos) sob diversos aspectos é que é possível retirar a homossexualidade da invisibilidade e desconstruir estigmas e processos de exclusão, visualizando-a como uma possibilidade plural da sexualidade humana, tal como é a heterossexualidade. Contudo, se mesmo com informação não há mudança, há uma escolha. Schulman [2009 ou 2010] levanta uma problematização muito interessante em uma entrevista sobre seu livro sobre homofobia familiar “Ties That Bind: Familial homophobia and its consequences”11, no qual ela discute o conceito de homofobia. Ela diz que, longe de ser uma fobia, a homofobia é um sistema de prazer. Segundo ela, as pessoas profundamente homofóbicas não transparecem o medo em suas faces quando estão exercendo a homofobia, mas estão desfrutando de seu poder. A palavra fobia constrói a ideia que o homofóbico está ameaçado, porém é o oposto que ocorre. Ele está em pleno gozo de sua suposta superioridade. A “fobia” que podemos considerar aqui não é a “fobia” da pessoa homossexual, mas a “fobia” de ser homossexual, a fobia do homossexual em nós, de pertencer a um modo de existência que sofre discriminação e violências constantes e a perda do status de manter privilégios e se pretender superior.
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11 Schulman, Sara.Ties That Bind: Familial homophobia and its consequences, New Press, New York, 2009.
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