Livro Ciencias Da Linguagem - o Fazer Cientifico - Olga Coelho e Maria Hackerott
January 24, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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CIÊNCIAS DA LINGUAGEM: O FAZER CIENTÍFICO?
CIÊNCIAS DA LINGUAGEM: O FAZER CIENTÍFICO?
catalogação CBL Mercado de Letras ISBN 978-85-7591-186-0
Olga Ferreira Coelho Maria Mercedes Saraiva Saraiva Hackerott
Dada a recente institucionalização da disciplina Historiografia Linguística, doravante HoL, são necessárias algumas considerações sobre sua relevância e utilidade para o linguista e para a Linguística. Parece-nos que, em momentos como este, em que os estudos linguísticos se desenvolvem aceleradamente, é oportuno reservar um lugar para reflexões e para técnicas que permitam recuperar e preservar memórias sobre os percursos da Linguística e, principalmente, empregá-las como um conjunto de experiências capazes de fundamentar projetos futuros. Conhecer a dimensão histórica da Linguística leva o pesquisador a uma maior consciência sobre o lugar que ele ocupa na área de investigação, assim como a
uma melhor compreensão do lugar dessa área no universo da ciência e da sociedade. Koerner (1989, p. 47) lembra essa consciência propicia ao linguista maior familiaridade com que os conceitos, os métodos e as conformações gerais da sua área de estudo, bem como o ajuda a ter uma flexibilidade maior frente a problemas não previstos nos diferentes quadros teóricos ou metodológicos (porque reconhece, de antemão, que o conhecimento científico é um conjunto de tentativas historicamente demarcadas de aproximação da “verdade”). Essa consciência também aguça a capacidade do linguista de distinguir dentre as variações temáticas os verdadeiros avanços no campo de estudo. Leva-o, além disso, a reconhecer, numa época de crescente especialização, as linhas gerais dos esforços científicos no passado e sua relevância para a pesquisa atual ou futura. Pensamos que, se a HoL se aproximar do cumprimento dessas metas no Brasil, a Linguística Brasileira talvez possa dispor de um grau maior de unidade, tanto em relação a suas várias especialidades contemporâneas, quanto em relação a sua herança e a seu legado. Talvez possa, também, dispor de mais elementos para subsidiar a percepção de certas lacunas, certos traços recorrentes, certos motes mais ou menos identitários que convenha reforçar ou superar. Procurando colaborar para uma maior familiarização do linguista brasileiro, especialmente o que se inicia em pesquisas de maior fôlego, com os pressupostos e métodos da HoL, revisamos autores e textos clássicos na área e, a partir deles, procuramos destacar o que nos parece mais essencial conhecer. As considerações que apresentamos têm como pano de fundo a convicção, também expressa em Auroux (1992, p. 13), de que cabe aos interessados pela HoL elaborar respostas razoáveis para as seguintes perguntas: a) sob que formas formas se constitu constitui,i, no tempo, tempo, o conhecimento conhecimento linguístico? b) como essas essas formas formas se criam, criam, evoluem, evoluem, se transform transformam am ou desaparecem?
c) que tipos de de vantagens vantagens para a Linguísti Linguística ca derivam derivam do conhecimento dos aspectos mencionados em (a) e (b)? É certo que os modos de responder a essas questões costumam variar. Essa variação decorre de diversos fatores, entre eles podemos citar: a quantidade e a natureza dos documentos disponíveis para investigação, os tipos de historiografia pelos quais se opta (mais descritivo-narrativa ou mais interpretativa), a tendência de privilegiar mais as informações contextuais ou mais as informações advindas das fontes linguísticas, a natureza da abordagem (mais panorâmica ou mais verticalizada, por exemplo). As notas a seguir têm por meta mapear alguns dos aspectos essenciais para a formulação dessas respostas.
Refletir sobre os próprios fazeres e recuperar esforços anteriores é uma prática bastante antiga na área de estudos sobre a linguagem. Não conhecemos trabalhos que apontem precursores da HoL, mas, numa perspectiva muito ampla, poderíamos compreender como ações encaminhadas nessa direção as mais antigas compilações de trabalhos linguísticos com indicações, menções e citações. No entanto, o que reconhecemos neste texto como HoL corresponde a um campo bastante específico, regulado por princípios mais ou menos compartilhados de captação, tratamento e divulgação de dados acerca da história da disciplina. Desde a década de 1970, pesquisadores como Konrad Koerner, Sylvain Auroux e Pierre Swiggers têm apresentado propostas consistentes paraasque atribuamos à HoL algo mais que no a tarefa situar as ideias, obras e os autores “mais destacados” tempodee espaço. Apesar de vários pontos consensuais, ainda há discordâncias entre estes autores quanto, por exemplo, à denominação do campo de investigação, que oscila entre “história” e “historiografia”, ou
entre “das ideias linguísticas”, “da linguística” ou simplesmente “linguística”. Assim, Koerner prefere chamar a disciplina de “Historiografia Linguística”, nome que destaca, um lado, a diferença entre a história da disciplina, tal como teriapor se dado, do processo de reconstrução dessa história e, por outro lado, o fato de haver “ideias” e também “práticas” de descrição desenvolvida em contextos demarcados, e ambas precisam ser investigadas pela HoL. Auroux, por sua vez, opta, preferencialmente, por “História das Ideias Linguísticas”, ressaltando, com isso, a legitimidade de noções que se apresentam em diferentes níveis de formalização do conhecimento (epilinguístico, linguístico, metalinguístico) e também a historicidade do enunciar um conceito, uma proposta de análise, um comentário sobre uma realidade linguística qualquer. As teorias de discurso neste caso são ferramentas essenciais para o trabalho do historiador/historiógrafo, ao passo que, na proposta de Koerner, o tratamento minucioso de dados cronológicos, documentais, biográficos, institucionais ganha maior relevância naobjeto tentativa de aproximação verossímil entre a Historiografia e seu de estudo, que é a história da disciplina. Esses dois autores, juntamente com Swiggers, que já se valeu tanto de “Historiografia Linguística” quanto de “História do pensamento linguístico”, são concordes no que se refere ao empenho de fixar certos pressupostos e procedimentos em HoL. A HoL, tal como a tomamos aqui, não é nem o único nem o mais difundido quadro de referência quando se pensa nas possibilidades de reconstrução da história dos saberes e das práticas com as línguas e a linguagem. Entretanto, sem adotar um tom normativo, gostaríamos de compartilhar, em grandes linhas, alguns dos pressupostos e métodos que têm se mostrado frutíferos em nossos trabalhos e em trabalhos que tivemos a oportunidade de conhecer desde os anos 1990. Nesse período, vimos que são várias as maneiras de um pesquisador ingressar no campo; contudo, para se ater à HoL, é necessário que ele esteja atento a suas motivações e a seus procedimentos de pesquisa.
Analisemos três revisões históricas da Linguística, para exemplificarmos certos aspectos que nelas reputamos por positivos, ou negativos, quando nos colocamos na perspectiva da HoL. Os textos selecionados são os clássicos: Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure (1857-1913), Linguística Cartesiana de Noam Chomsky (n.1927) e História da Linguística de Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970). Como se sabe, o Curso de Linguística Geral foi publicado originariamente em 1916 sob a organização de Charles Bally e Albert Sechehaye, a partir de conferências proferidas entre 1906 e 1909 por Saussure. Esse livro inicia com um relato histórico, intitulado “Visão geral da história da Linguística”, texto em que se observa uma cronologia de temas, escolas e autores que contribuíram para os estudos da linguagem no Ocidente. A retrospectiva apresenta três fases pelas quais teriam passado tais estudos. A primeira fase, “Gramática”, iniciou com os gregos e teve continuidade com os franceses. f ranceses. Os estudos estavam baseados na Lógica e estabeleciam regras para distinguir usos corretos de incorretos. A segunda fase, “Filologia”, apesar de ter sido praticada desde a Antiguidade em Alexandria, tem seu marco inicial, segundo o Curso, no século XVIII com os trabalhos de Friedrich August Wolf (1759-1824) que estabeleceu um método para fixar, interpretar e comentar textos antigos. Nessas duas fases, os estudos linguísticos não seriam autônomos, serviriam de instrumento para o conhecimento da cultura de um povo. A terceira fase, “Gramática Comparada”, é inaugurada por Franz Bopp (1791-1867) com a publicação, em 1816, de um estudo comparativo das conjugações verbais do sânscrito com as línguas grega, latina, persa e germânica. De acordo com o Curso, Bopp concebe a comparação de línguas afins como matéria de uma ciência autônoma. Contudo, estes estudos ainda não poderiam ser considerados como “ciência” linguística, pois, segundo Saussure, não estabelecem nem a natureza do objeto de estudo nem um método de pesquisa. No mesmo período, a
escola dos neogramáticos coloca em perspectiva histórica os resultados da gramática comparada, percebendo a língua como um produto do espíritoe coletivo dos grupos A contribuição dos comparatistas neogramáticos para linguísticos. a formação da Linguística Histórica, de acordo com o Curso, é importante, na medida em que, apesar dos “erros”, propiciou a emergência da Linguística como disciplina científica. Hoje não se podem mais ler oito ou dez páginas dessa época sem se ficar surpreendido pelas excentricidades do pensamento e dos termos empregados para justificá-las. Do ponto de vista metodológico, porém, há certo interesse em conhecer esses erros: os erros duma ciência que principia principi a constituem a imagem ampliada daqueles que cometem os indivíduos empenhados nas primeiras pesquisas científicas; teremos ocasião de assinalar vários deles no decorrer de nossa exposição. (Saussure 1972, p. 11)
Uma Linguística verdadeiramente científica seria iniciada a partir das contribuições de romanistas e germanistas, na segunda metade do século XIX. Histórica, essa linguística ainda deixaria para a Linguística Geral, tal como proposta no Curso, uma série de tarefas essenciais a cumprir, entre elas a de definir claramente o seu objeto. Ao lado da curiosa analogia entre os primórdios de uma ciência e os primeiros passos de um pesquisador, exposta na citação, o tipo de reconstrução histórica presente no Curso de Linguística Geral assenta-se em pressupostos hoje discutíveis para a HoL. Um deles diz respeito ao uso da história com o propósito de rever questões teóricas em torno das quais se organiza a própria obra e, nesse sentido, justificar as próprias proposições ou conferir-lhes um caráter inovador. É assim que reconhecemos como uma justificativa explícita para a retrospectiva histórica realizada no Curso a ideia de que ainda não se elaborara uma teoria geral para dar conta dos fatos da língua, objeto cujas fronteiras ainda careceriam de demarcação. “A
ciência que se constituiu em torno dos fatos da língua passou por três fases sucessivas antes de reconhecer qual é o seu verdadeiro e único objeto” (Saussure 1997, p. 7). A revisão histórica apresentada no Curso pode ser tomada como exemplo de certo modo de lidar com a história da disciplina, que opõe certas figuras, ideias e práticas pr áticas mais ou menos consagradas no passado a outras, consideradas superiores por serem mais recentes. Assim, esse relato histórico parece indicar que os “gramáticos” conheciam menos sobre língua e linguagem que os “filólogos”, que sabiam menos que os “comparatistas”, que, por sua vez, erraram mais do que os “linguistas históricos”, cujos conhecimentos seriam, por fim, iluminados por uma linguística geral de orientação sincrônica. Essa visão cumulativa da história, em última instância, desautoriza as conclusões a que chegaram os estudiosos e as escolas anteriores e concebe as propostas mais recentes como mais verdadeiras. O Curso ilustra também prática bastante recorrente de iniciar trabalhos científicos (livros, artigos e também dissertações, teses e monografias) com uma breve “revisão histórica do tema”, que, no mais das vezes, cumpre a função de apresentar a proposta a ser discutida, antes de tudo, como uma inovação. Outra forma de apresentar a história da Linguística pode ser observada no polêmico livro Linguística Cartesiana de Chomsky, publicado originalmente em 1966. Em um período em que o Estruturalismo Americano impunha uma análise mecanicista da linguagem fundamentada em princípios do Behaviorismo, Chomsky estabelece uma relação, até então inusitada, entre a linguística por ele desenvolvida e a que ele denomina de linguística cartesiana. Chomsky busca em René Descartes (1596-1650) e em cartesianos como Géraud de Cordemoy (1626-1684), o fundamento para o “aspecto criador” e “racional” do uso ordinário da linguagem. Descartes sustenta que a linguagem é utilizável para a livre expressão do pensamento e para a resposta adequada em qualquer novo contexto, não sendo determinada por qual-
quer associação fixa de enunciados com estímulos externos ou estados fisiológicos (identificáveis de qualquer maneira não circular). (Chomsky 1972, p. 14)
Dessa forma, a linguagem é uma propriedade natural do espírito humano que, pela razão, liberta o homem do instinto e do controle de estímulos. Para Chomsky, os linguistas da primeira metade do século XX pouco avançaram na teoria da linguagem ao atribuir o aspecto criador de seu uso à “analogia” ou a “padrões gramaticais”. Outro autor a quem Chomsky recorre é Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt (1767-1835), a quem atribui, com certas ressalvas, uma perspectiva cartesiana. Embora as línguas tenham propriedades universais, atribuíveis à mentalidade humana enquanto tal, cada língua oferece ofer ece um “mundo de pensamento” e um ponto de vista de tipo único. Ao atribuir este papel na determinação dos processos mentais às línguas individuais, Humboldt separa-se radicalmente do quadro da linguística cartesiana, evidentemente, e adota um ponto de vista que é mais tipicamente romântico. Humboldt permanece dentro da moldura cartesiana, contudo, na medida em que considera a linguagem primordialmente como meio de pensamento e autoexpressão mais do que um sistema funcional de comunicação de tipo animal. (Chomsky 1972, p. 32)
De Humboldt, Chomsky resgata a dinamicidade da linguagem, entendida como atividade e produção. A linguagem é o trabalho do espírito que se repete constantemente para tornar possível que o som articulado expresse o pensamento. Por ser a essência do que é pensado, o domínio da linguagem é infinito e a principal propriedade da linguagem deve ser a capacidade geradora de usar em infinitos contextos mecanismos finitamente especificáveis. Desta forma, a
linguagem humana é um sistema governado por regras gerativas, ao invés de ser uma coleção de palavras e frases acompanhadas de significados. Para explicar a distinção entre estrutura profunda e estrutura superficial, Chomsky referenda os trabalhos da Escola de Port-Royal que, segundo ele, identificavam na linguagem um aspecto interno (maneira como exprime um pensamento) e outro externo (forma física que expressa um pensamento). A Gramática Geral de PortRoyal postula que a principal forma do pensamento é o juízo, onde se afirma algo de alguma coisa. A proposição é a expressão linguística constituída de dois termos: o sujeito que é aquilo de que se afirma e o atributo que é o que se afirma. O sujeito e o atributo podem ser simples como “a terra é redonda” r edonda” ou complexo como “Deus invisível criou o mundo visível”, onde se observam três juízos: julgo que Deus é invisível; que Deus criou o mundo; que o mundo é visível. A estrutura profunda que exprime o significado é comum a todas as línguas, tal é o que se pretende, sendo simples reflexo das formas de pensamento. As regras de transformação que convertem a estrutura profunda em estrutura de superfície diferem de língua para língua. A estrutura de superfície resultante dessas transformações não exprime diretamente as relações de significado entre as palavras, exceto, evidentemente, nos casos mais simples. É a estrutura profunda subjacente à expressão vocal, efetiva estrutura puramente mental, que transporta o conteúdo semântico da frase. Esta estrutura profunda entretanto relaciona-se com as sentenças reais pelo fato de que uma de suas proposições abstratas componentes (nos casos há pouco discutidos) poderia ser diretamente realizada como um juízo proposicional simples. (Chomsky 1972, pp. 47-48)
Saltar a tradição precedente e, em certa medida, vincular o seu modo de fazer ciência a uma tradição longínqua lon gínqua e de estatuto “científico” de valor, naquele período, discutível, por meio de uma opera-
ção de “apagamento” dos períodos de predomínio de uma linguística mais rigorosamente “científica”, contribuiu para que se percebesse que nem historiográfica sempre o que está evidência o mais relevante e que a pesquisa não em precisa seguir éuma linearidade temporal, principalmente quando constrói uma história de “problemas” (a ser) enfrentados pela disciplina. Passemos agora a examinar a História da Linguística de Joaquim Mattoso Câmara Júnior. Esta obra, escrita originariamente em inglês, reproduz o curso ministrado pelo autor no Linguistic Institute organizado pela Linguistic Society of America na University of Washington, em 1962. Para Câmara Jr, a linguagem é uma criação social baseada nas capacitações biológicas e o falar é um ato tão mecânico na vida social que é considerado autoevidente. Entretanto, ao longo da história observa-se que certas condições favorecem o estudo da linguagem dando-lhe características específicas. O autor considerou “Pré-Linguísticos” três tipos de estudo da linguagem estimulados por fatores externos: o estudo de certo e errado dirigido à preservação de traços linguísticos de uma elite social; o estudo de língua estrangeira decorrente do contato linguístico; e o estudo filológico da linguagem impulsionado pela necessidade de conhecer e preservar os textos antigos. Denominou “Paralinguísticos” os estudos da linguagem decorrentes do desenvolvimento científico de outras áreas do saber, tais como o estudo lógico da linguagem promovido pelo racionalismo, ou ainda a abordagem biológica da linguagem proveniente dos avanços das ciências naturais que se dedicaram ao estudo da voz humana e dos órgãos da fala. Os estudos “Linguísticos” propriamente ditos seriam os estudos históricos e descritivos da linguagem, isto é, os que a concebem como um traço cultural da sociedade e que perseguem a sua natureza, quer explicando sua origem e desenvolvimento, quer captando seu papel e meio de funcionamento real na sociedade.
A linguística é uma ciência muito nova. Começou a existir na Europa em princípios do século XIX sob o aspecto de um estudo histórico, como veremos mais tarde. Antes dessa época encontramos apenas a pré-linguís pré-linguística tica e a paralinguís paralinguís-tica na cultura ocidental. Não há qualquer tipo de linguística na cultura oriental, mesmo nos países mais adiantados adianta dos então, ou seja, a China e a Índia antigas. O estudo filológico e o estudo filosófico da linguagem foram lá oferecidos, algumas vezes, com eficiência brilhante. Deve ter havido, naturalmente, o Estudo do Certo e Errado. A linguística, porém, não evoluiu desses esforços. Uma história da linguística deveria concentrar sua atenção na Europa do século XIX até nossos dias incluindo, naturalmente, a América como uma extensão da cultura europeia e, entrementes, outros países não-europeus que assumiram os principais traços e tendências do pensamento científico dominante. (Câmara Jr 1975, p. 20)
Em mais de vinte capítulos, Câmara Jr referenda os principais estudos linguísticos reunindo obras e autores ora pela temática desenvolvida, ora pela escola, ora pela sequenciação cronológica. Entre o vasto elenco de propostas linguísticas examinadas estão as de: Humboldt, Ramus Rask, Friederich e August Schlegel, Franz Bopp, Jacob Grimm, August Pott, Georg Curtius, Eduard Sievers, Augusto Schleicher, Max Müler, William Whitney, Augusto Fick, Joanes Schmidt, Karl Verne, Graziadio Ascoli, Vilhelm Thomsen, Hermann Osthoff, Karl Brugmann, Berthold Delbrück, Jakob Wackernagel, Hermann Paul, Wilhelm Wundt, Hugo Schuchardt, Anton Marty, Friedrich Diez, Wilhelm Meyer-Lübke, Gaston Paris, Jules Gillieron, Ferdinand Saussure, Albert Sechehaye, Charles Bally, Antoine Meillet, Michel Bréal Alan Gardiner, Joseph Vendryes, Karl Bühler, Hermann Hirt, Otto Jespersen, Benedetto Croce, Karl Vossler, Leo Spitzer, Menéndez Pidal, N. J. Marr, C.C. Uhlenbeck, Nikolai Trubetzkoy, Roman Jakobson, Serge Karcevsky, Paul Passy, Rousselot, Maurice Grammont, Sweet, Daniel Jones, Jan Baudouin de Courte-
nay, Franz Boas, Edward Sapir, Benjamin Lee Whorf, Leonard Bloomfield, Charles Morris, Zellig Harris, Louis Hjelmslev, André Martinet, Wladimir Skalitsnka e Noam Chomsky. A abordagem histórica adotada por Câmara Jr é, pois, antológica e panorâmica. Tem por objetivo delinear o desenvolvimento da linguística ocidental, indicando não apenas que a disciplina percorreu um longo caminho para chegar a insights e métodos de que dispomos agora, mas também que nós construímos, conscientemente ou não, sobre descobertas de gerações prévias de linguistas. li nguistas. Como costuma acontecer com as abordagens mais panorâmicas, essa história é mais descritivo-narrativa que interpretativa. Tanto esse subgênero, que poderíamos chamar “historiografia panorâmica”, quanto trabalhos mais específicos têm o desafio de evitar a abordagem heroica da história. A isso corresponde uma tendência oposta à que verificamos em Saussure. Trata-se, grosso modo, de enaltecer o passado principalmente porque é passado. Embora frequentemente nos surpreendamos com o que e como foi feito em termos de trabalho com a linguagem em períodos muito longínquos, não nos cabe um enaltecimento apriorístico de qualquer autor, texto ou período. A HoL, idealmente, analisará, descreverá e interpretará com o mesmo rigor tudo o que houver obtido algum desdobramento, pois a sua função é resgatar o sentido histórico das várias formas de percepção e representação do conhecimento linguístico. Portanto, é preciso estar consciente do perigo da canonização dos objetos, que pode tornar tendencioso o trabalho. As revisões históricas elaboradas por Saussure, Chomsky e Câmara Jr exemplificam modos diferentes e válidos de atuação no campo. Divergem parcialmente da HoL na medida em que esta se propõe a apresentar os percursos históricos como uma parte integral da própria disciplina e, ao mesmo tempo, como uma atividade fundada sobre princípios teóricos e metodológicos bem definidos e claramente explicitados.
Para a HoL, tão importante quanto a dimensão do conhecimento produzido é a dimensão que envolve os agentes e seus contextos de atuação. Acata-se a ideia de que a produção do conhecimento científico não é neutra, nem individual, tampouco autônoma em relação ao seu contexto de emergência e de difusão. Essa ideia é hoje aparentemente consensual, mas requereu esforços de diversos estudiosos como Thomas Kuhn e Stephen Murray para ser aceita. Segundo a visão cumulativa, cada uma das diferentes áreas do saber corresponde a um corpo de conhecimentos que, em suas rotas principais (aquelas reconhecidas e prestigiadas pela comunidade científica), somente se amplia — e mais se aproxima da verdade — com o passar do tempo. Nessa perspectiva, uma mudança corresponde, necessariamente, a um aperfeiçoamento das propostas anteriores. Contrapondo-se a essa concepção cumulativa do conhecimento científico, foi publicada em 1962 A estrutura das revoluções científicas de Kuhn. Nela, o autor pôs em relevo aspectos importantes para a escrita da história de uma disciplina, levando os historiadores da ciência e os próprios cientistas a questionar se, necessariamente, o conhecimento científico mais recentemente produzido é mais preciso ou mais completo do que o produzido no passado. Para Kuhn, uma teoria científica corresponde a um ponto de vista específico acerca de determinados fenômenos. Assim, uma teoria antiga, mesmo se descartada, não se torna, em princípio, menos científica do que a que lhe sucedeu. O que se pode dizer, em tais casos, é que a teoria nova responde melhor às exigências do contexto dado. Isso não significa esteja maisdo próxima verdade, mas como interpretação que de fenômenos mundo,datornou-se maisque, convincente do que a anterior na resolução de problemas considerados relevantes para a comunidade científica. Em suma, o que divide os cientistas e propicia controvérsias entre os diferentes grupos é o que Kuhn
entende como “a incomensurabilidade de suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a ciência” (Kuhn 2001, p. 23). Kuhn propõe uma estrutura recorrente para as mudanças em história das ciências. Esta estrutura é composta por estágios. O estágio intitulado “ciência normal” é marcado pela hegemonia e estabilidade de um paradigma, isto é, uma teoria científica largamente reconhecida que, durante algum tempo, fornece problemas e soluções modelares para a comunidade de praticantes p raticantes de uma ciência (Kuhn 2001, p. 13). Os cientistas, nesse estágio, não buscam novidades: interessam-se unicamente pelo quadro de problemas postulados pelo paradigma e pelas soluções por ele propostas para tais problemas. Os parâmetros para a atuação da comunidade científica são soluções elegantes, chamadas de exemplares, encontradas no interior do próprio paradigma. Quando algo é percebido por esses cientistas como uma anomalia, isto é, como um problema relevante para o qual, reiteradamente, a teoria não consegue apresentar solução adequada, inicia-se um novo estágio, o de “crise”. Nesse estágio, os cientistas sentem-se impelidos a rever as bases em que era conduzida a “ciência normal”, abrindo caminho para que possa ser instaurada uma “revolução científica”, aqui entendida como um episódio desintegrador da tradição à qual a atividade científica normal nor mal está ligada (Kuhn 2001, p. 25). Uma “revolução científica” implica uma ruptura com a tradição e leva ao coroamento de uma nova forma de pensar e de conduzir a ciência diferente da forma anterior e, naturalmente, guiada por outros indivíduos. “A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria e na adoção de outra” (Kuhn 2001, p. 27). Nessa competição, portanto, os agentes são os cientistas e o recurso à persuasão é fundamental, uma vez que a aceitação de uma teoria como paradigmática deriva de seu poder de convencimento: ela deve parecer melhor melhor do que as concorrentes, mostrando-se melhor equipada para a resolução dos problemas que a comunidade de cientistas reconhece como graves (conferir Kuhn 2001, pp. 38-44).
Uma “revolução científica”, assim, mais do que opor boas teorias a outras, expõe a relatividade do conhecimento, ou, antes, a sua relação de dependência com os contextos em que se inserem. Esquivando-nos estrategicamente dos problemas advindos da polêmica que envolve essa visão kuhniana de contínua ruptura na história de uma ciência e da aplicabilidade do conceito de paradigma às ciências humanas, ressaltamos que essa obra contribuiu decisivamente para a explicitação dos seguintes aspectos do conhecimento científico: 1) ele não brota no vácuo, há cientistas que o produzem; 2) o fato de certas hipóteses serem mais privilegiadas, num dado período, depende não só de suas qualidades intrínsecas, mas também das relações dessas hipóteses com ambientes intelectual, interpessoal, social, político específicos. Kuhn propôs essa estrutura a partir de observações acerca do conhecimento em ciências naturais, especificamente a Física. No âmbito das ciências sociais e, em especial, da produção de conhecimento entre antropólogos e linguistas na America do Norte, um estudo bastante significativo foi publicado em 1993 por Stephen Murray. Partindo do pressuposto de que mais do que a genialidade de indivíduos isolados, ou a força “interna” de um conjunto de ideias, o que conduz a ciência e suas transformações por meio de escolhas e negociações são os grupos de cientistas. Para demonstrar tal hipótese, Murray testou um modelo de formação for mação e manutenção de grupos científicos. O autor examinou as condições em que, no âmbito da linguística antropológica norte-americana, houve a formação de grupos em torno de um ou mais estudiosos e em que outras condições esforços para a formação e a manutenção de grupos falharam. Murray tomou por premissa o fato de sempre poder existir formas diferentes para conceber e praticar uma ciência, uma vez que as “verdades” propostas por uma dada teoria têm caráter relativo. Para que uma teoria alcance sucesso, é necessário que exista, para defendê-la, um grupo bem articulado de indivíduos capaz de convencer a comunidade da adequação e da superioridade dessa teoria. Para Murray, um cientista
com ideias promissoras, porém incapaz de articular um grupo em torno de si, dificilmente conseguirá convencer a comunidade científica a superioridade sua visão sua de mundo. O estudo, assim assim, visousobre ao delineamento do de conjunto de fatores necessários para que, um grupo se articule em torno de determinados cientistas e de suas ideias. Em outros termos, Murray procurou estabelecer o que é necessário para um grupo científico se consolidar e, enquanto tal, obter respaldo da comunidade de cientistas e, consequentemente, sucesso. Os estudos de casos realizados levaram-no a confirmar que, para formar um grupo científico bem sucedido, são necessárias: boas ideias, liderança intelectual e liderança organizacional. Apenas com a presença desses três fatores, fator es, os grupos científicos, que são os verdadeiros condutores da ciência, têm condições de se constituir e de obter sucesso. O primeiro desses três fatores foi definido como um conjunto de ideias aceitas como adequadas pelos cientistas para resolver problemas existentes ou para abrir novas áreas de investigação. Tais ideias devem ser percebidas como, pelo menos, formas prováveis de solucionar novas questões de pesquisa. Sua qualidade é, desse modo, historicamente relativa e atribuída pelos próprios pesquisadores, não por filósofos da ciência ou epistemólogos. O que prevalece é o poder de persuasão, não apenas das ideias, mas também de quem as defende. Como sempre há ideias boas, possuí-las não é, por si só, garantia de reconhecimento por parte da comunidade científica. Sucesso, para Murray, depende mais da formação de um grupo do que da qualidade intrínseca das ideias. A formação de um grupo depende essencialmente da liderança, tanto para produzir ideias e convencer a comunidade de sua pertinência (liderança intelectual), quanto para assegurar àqueles que as propõem, possibilidades de divulgá-las e defendê-las no meio científico (liderança organizacional). A função da liderança intelectual é desempenhada por cientistas da área que assentam os fundamentos conceptuais; explicam as implicações de pesquisa das boas ideias; aprovam as pesquisas
efetuadas por outros como bem feitas e relevantes para o quadro de trabalho definido. Faz também parte de suas atribuições produzir um programa, queoupesquisas devem trabalhos ser feitas eque como elas se ajustam especificando na teoria básica, ainda, produzir possam ser tomados como “exemplares”, isto é, que mostrem, na prática, como se deve trabalhar. As funções da liderança organizacional, por sua vez, consistem em recrutar novos quadros, viabilizar tempo, fundos e outros incentivos para a pesquisa; disponibilizar veículos para divulgá-las; criar espaços de atuação acadêmica para aqueles que têm a pesquisa validada pelos líderes intelectuais. Um líder organizacional não precisa ser um cientista atuante na área, condição essencial para ser um líder intelectual. Além disso, um indivíduo pode desempenhar, sozinho, as funções de liderança intelectual e organizacional, mas pode haver, também, um cientista diferente difer ente para cada um dos papéis, ou mesmo vários sujeitos compartilhando uma mesma função. Con juntos de cientistas sem um desses três elementos (principalmente sem a liderança organizacional, já que os outros dois estão implícitos à atividade acadêmica) acabaram por não constituir grupos e, em função disso, não desempenharam, em seu contexto, papel relevante na condução da ciência. Para Murray, há quatro estágios diferentes na formação efetiva de um grupo científico. Entre esses estágios, dois podem ser tomados como preliminares e os outros dois como de fato correspondentes à dinâmica do funcionamento de um grupo. O primeiro estágio é caracterizado pela existência de poucas relações entre os pesquisadores, pela elaboração rara de trabalhos em coautoria e pela ausência de ataque sistemático a um problema de pesquisa bem definido. Nesse momento, não há nem treinamento específico, nem coordenação de esforços individuais para um objetivo comum. O surgimento de lideranças que elaborem um programa de atuação ou um exemplar, associado a algum sucesso intelectual possibilita a formação rudimentar de uma “rede” de pesquisadores,
na qual costuma haver ligação estreita entre professores e alunos. Nesse novo estágio, aumenta o recrutamento de cientistas estabelecidos ou de estudantes e, por consequência, o embrião de grupo se avoluma. Quando os integrantes de uma “rede” se conscientizam de que formam um grupo, ocorre a transição para o estágio denominado “cluster”. Esse terceiro estágio apresenta alto nível de coesão entre os membros e grande quantidade de pesquisas é produzida. Já existe, de fato, um grupo e é comum haver alguns pesquisadores conceituados e vários iniciantes. A reação da comunidade científica frente ao novo grupo, especialmente manifestada na aceitação ou rejeição de seus trabalhos por editores e referees de periódicos especializados, determina se o grupo se tornará uma elite da especialidade, aceita e assimilada pelas instituições existentes, ou se será um grupo revolucionário, que, rejeitado, torna-se ferrenho crítico das instituições existentes, forma suas próprias contrainstituições ou desagrega-se. Nesse estágio, denominado “acadêmico”, os pesquisadores iniciantes conquistam sucesso próprio. Murray pondera que esses estágios configuram um modelo ideal. Na verdade, eles podem não ser muito nitidamente delimitados. Portanto, é preciso que o historiógrafo evite o perigo de procurar, cegamente, registrar estágios, ignorando outros elementos relevantes de uma história concreta que não se ajuste ao modelo. Por fim, Murray propõe a substituição do que Kuhn chamou de ciência normal e ciência revolucionária, por retórica de continuidade e retórica de ruptura. Assim, ao invés de considerar certas propostas como revolucionárias e outras como conservadoras, o autor desloca o foco da questão para a percepção percepção de que os cientistas têm de si mesmos e de suas ideias. O que passa a valer não são os feitos científicos revolucionários ou continuístas, mas a noção de valor (revolucionário ou continuísta) que os cientistas têm de suas atividades e o modo como se posicionam diante da tradição dominante. O deslocamento para o conceito de retórica, nessa medida, torna pouco relevante a discussão sobre se determinadas ideias são
ou não inovadoras em relação às antecedentes: o que caracteriza um grupo é a autopercepção, externada por meio da “retórica” empregada pelos seus cientistas. Correspondendo, em ambos os casos, a modelos com categorias potencialmente identificáveis na história, as propostas de Kuhn e Murray têm sido amplamente empregadas em estudos historiográficos. Além de divisarem certas categorias de análise metodologicamente produtivas, esses estudos trazem à tona a concepção de que as teorias científicas não têm apenas um valor inerente, mas também um valor sociocultural historicamente construído. Outra proposta que gostaríamos de destacar foi apresentada em 2004, no IV Congreso Internacional de la SEHL por Swiggers e publicada nas Actas em 2005. Para esse autor, modelos como o de Kuhn podem criar a impressão de que a dinâmica de mudança em ciência é consequência de um conflito necessariamente global, que envolve divergências essenciais. Quando acatamos, por exemplo, a proposta de incomensurabilidade entre paradigmas de Kuhn, passamos a lidar com a ideia de que um paradigma corresponde a uma visão de mundo, que, em princípio, não é redutível aos mesmos termos de nenhuma outra. Mas, se as teorias são incomensuráveis, como o historiógrafo poderia comparar as mais recentes com as mais antigas? Seria possível conduzir estudos de caráter histórico sem essa operação comparativa? Diante desses questionamentos, e levando em conta o fato de que o pensamento linguístico é muito complexo, Swiggers propõe que a sucessão de modelos teóricos em linguística seja resultante de discrepâncias entre os diversos domínios que constituem a atividade do linguista. 1
teórico: global de lingua1) Dom Domínio ín status gem, à io concepção corresponde das tarefas e àdovisão da linguística,
1.
O autor emprega o termo ‘capa’; em benefício da clareza desta introdução, optamos por tradução menos literal.
bem como às técnicas de análise e aos métodos de apresentação de dados. documental: 2) Domínio à documentação linguística e filológica correspondente explorada nos trabalhos linguís-
ticos tais como línguas, tipos de fontes e de dados. 3) Domínio contextual e institucional: corresponde aos contextos biográfico, sociocultural e institucional em que se desenvolvem as reflexões e práticas linguísticas. Inclui aspectos mais concretos da vivência sociopolítica dos agentes e outros mais abstratos, como a escolha da retórica. A dinâmica observada na história das ciências pode ser explicada pelas mudanças de organização or ganização desses domínios. Desse modo, pode-se localizar uma transformação em apenas um deles, como, por exemplo, o teórico, enquanto os outros (documental e contextual) permanecem estáveis. Também é possível haver mudanças que atin jam os três domínios — nesse caso, corresponde ao que Kuhn denominou revoluções científicas. Isso quer dizer que as mudanças menos radicais também mantêm o dinamismo histórico das ciências. Assim, quando o historiógrafo realiza um estudo detalhado desses domínios, ele pode tratar de maneira mais acurada as continuidades e descontinuidades constitutivas da história da Linguística. O que está em jogo é uma percepção de que tanto as rupturas quanto as continuidades integram os movimentos históricos que a HoL deseja flagrar. Em relação ao domínio contextual, Swiggers ressalta que o historiógrafo não pode perder de vista o aspecto discursivo da produção e da circulação do conhecimento. Em geral, as mudanças conflituosas são acompanhadas de uma retórica de ruptura, tal t al como explorada por Murray. Contudo, para se verificar se a retórica de ruptura, de fato, correspondeu a uma revolução científica, é necessário analisar os três domínios.
Cabe ao pesquisador da HoL explicitar o conjunto de critérios que fundamentam a constituição de seu domínio particular de estudo, o que inclui especificar as fontes f ontes documentais e os objetos de análise. Como o campo de investigação da HoL é constituído de práticas e reflexões sobre a língua e a linguagem, engloba tanto saberes teóricos e institucionalizados quanto formas menos elaboradas de conhecimento linguístico. Swiggers (1990, pp. 23-24) identifica três níveis de formulação dos saberes linguísticos e lista exemplos de documentos em que podemos encontrá-los. Esses documentos, mais canônicos ou marginais, são fontes legítimas para o levantamento de dados historiográficos. 1. Conhecimento linguístico: é o saber linguístico expresso sem pretensões de corresponder à conceptualização formal. Pode, por exemplo, estar expresso em hinos, práticas linguístico-sociais tradicionais, chistes, jogos intelectuais etc. conhecimento imento linguís linguístico tico: é uma elabo2. Reflexão sobre o conhec ração do conhecimento sobre língua ou linguagem que, mesmo sem corresponder a descrições ou teorias mais bem desenvolvidas, expressam conceitos de uma forma menos incidental que a do conhecimento linguístico. Assim, comentários sobre aspectos linguísticos podem ser encontrados tanto em tratados sobre lógica, retórica, poética, filosofia, quanto em literatura de viagem vi agem ou em correspondências e outros tipos de registro acerca de variados temas. 3. Metarreflexão sobre o conhecimento linguístico: são teorias, propostas de descrição, gramáticas, dicionários, teses, artigos, manuais que apresentam especificidades temáticas e de constituição textual que nos levam a reconhecer esses materiais como especializados e canônicos no tratamento das questões de língua e linguagem.
Esse tipo de classificação visa evitar que os conhecimentos menos formalizados sejam considerados menos relevantes. Como se trata de construtos históricos, documental historiográfica é determinado em função de variáveis como oseu tipovalor de investigação a ser desenvolvida, o período estudado, a natureza das questões (linguísticas ou contextuais) que se deseja iluminar. Enfim, faz parte da metodologia de pesquisa explicitar a pertinência dos materiais e dos tipos de conhecimento privilegiados, sempre em sua correlação direta com os objetivos de cada estudo historiográfico. Portanto, em uma pesquisa que pretenda mostrar a reflexão sobre a diversidade entre o falar brasileiro e o português no século XVII, é justificável recorrer, por exemplo, a materiais como os Sermões de Padre Vieira ao invés ir a fontes f ontes pretensamente mais canônicas, como gramáticas e dicionários do período. É objeto de estudo da HoL qualquer conhecimento produzido sobre as línguas e a linguagem, seja ele mais ou menos sistematizado. Nessa discussão metodológica, o estatuto das diversificadas fontes é também um ponto que merece atenção. Nesse caso, voltamos a tratar de fontes para a HoL, incluindo, pois, materiais que permitam ter acesso a aspectos contextuais e às diferentes formas do conhecimento linguístico. Por exemplo, sabemos que depoimentos de personalidades que viveram em certa época — na qual havia determinadas tendências entre os estudiosos da linguagem —, ou relatos de situações específicas (institucionais, pessoais, políticas e econômicas) são, em geral, fontes não desprezíveis para os estudos historiográficos. Muitas vezes, em relação a temas específicos, os depoimentos e relatos correspondem às fontes mais fidedignas. No entanto, o registro e a divulgação desse material não é historiografia, porque, em si mesmos esses testemunhos (ainda que variados, numerosos, densos) correspondem apenas a percepções subjetivas dos fatos. Há subjetividade em qualquer fonte documental, inclusive nesta que se produz a partir da memória de quem viu, ouviu, e viveu determinado fato. Assim, tal como outras fontes, esses materiais podem e devem ter aprovei-
tamento descritivo-interpretativo sempre que se mostrarem, de fato, consistentes. Em outros termos, a vivência dos sujeitos não pode ser tomada como garantia de fidedignidade de seus depoimentos. Idealmente, o historiógrafo deve buscar fontes diversificadas quanto a sua natureza e procurar ser o mais exaustivo possível na sustentação documental de suas análises. Pensar na variedade das fontes inclui, repetimos, uma preocupação não só com os documentos que registrem o conhecimento linguístico sob análise, mas também com aqueles que permitam reconstruir os contextos relevantes. O conhecimento linguístico é visto aqui como representação de realidades linguísticas, e, para o desvendamento dos sentidos dessa representação, a dimensão sóciohistórico-ideológica é extremamente relevante. A HoL leva em conta o fato de que todo saber é provisório, porque é um produto histórico, resultante da interação obrigatória das tradições com os contextos em que ele se insere. Portanto, devem ser analisados tanto materiais que atestam formulações teóricas, propostas metodológicas, análises, tratamentos específicos de dados linguísticos ou saberes linguísticos menos estruturados quanto fontes que deem conta de aspectos relevantes para a compreensão dos contextos tais como: dados biográficos, institucionais, políticos, sociais e econômicos. Mais uma vez, a determinação dos aspectos pertinentes faz-se em função da natureza da pesquisa. Uma vantagem em relação ao tratamento desse tipo de dado é que uma parte considerável do trabalho de contextualização mais ampla em geral já foi feita por pesquisadores atuantes em outras áreas. O trabalho do historiógrafo, quando ele conta com bons estudos desenvolvidos em outras áreas, é essencialmente o de, a partir dessas fontes secundárias, compreender as correlações mais relevantes para fazer seleções, relações, interpretações, conjecturas que de fato procedam. Desse modo, é comumente valioso e necessário para o historiógrafo apoiar-se em dados criteriosamente construídos por antropólogos, estatísticos, historiadores, geógrafos, filósofos, sociólogos, economistas, gramáticos, estudiosos da literatura, entre outros.
Isso quer dizer que, a pesquisa historiográfica abrange uma zona interdisciplinar, e que os conhecimentos solicitados aos historiógrafos bastante amplos.fundamentalmente, Primeiramente, elesobre precisa ser um linguista, são já que se debruça, propostas históricas de tratamento de realidades linguísticas. É desejável também que o pesquisador tenha certo interesse “enciclopédico” pelas diferentes áreas do conhecimento correlacionáveis às configurações do saber linguístico. A pesquisa em HoL resulta de uma série de escolhas, de hierarquizações, de projeções efetuadas na história dos estudos da linguagem. A conclusão óbvia é que, tal como as diferentes práticas e reflexões sobre a linguagem, a HoL não é neutra nem a completa e perfeita recriação da história que estuda. Contudo, há certos procedimentos que auxiliam a minimizar a sensação de que tudo seria, então, válido. Um desses procedimentos é o historiógrafo não se furtar do trabalho de explicitar os pressupostos, as perspectivas e os critérios que adota em cada investigação. A HoL, dessa forma, é uma disciplina que se apoia em um exame sistemático e crítico de seus próprios pressupostos, procedimentos e resultados. O reconhecimento da provisoriedade das verdades que propõe é o princípio metodológico mais valioso para o historiógrafo.
Para poder analisar o complexo objeto que é o conhecimento sobre a linguagem e as línguas desenvolvido por agentes específicos, em períodos e espaços determinados, Swiggers (2009, p. 68) propõe, como primeira tarefa da HoL, identificar, descrever e interpretar os modos transcorreusempre a história da Linguística. Nesseparcial sentido, pesquisacomo historiográfica corresponde a uma versão (dea um segmento) da história, cuja consistência descritivo-intepretativa depende, por um lado, de apoio documental – para tratar das realidades linguísticas, dos modos como elas foram descritas, dos contextos
que ensejaram tais descrições – e, por outro lado, de um referencial teórico e metodológico que permita, por exemplo, selecionar dados linguísticos, descritivos, e até políticosemdeperspectiva relevância para o caso em estudo e institucionais, tratá-los apropriadamente historiográfica. Dois tipos de trabalhos complementares precisam ser realizados. São eles: os trabalhos epi-historiográficos e os trabalhos metahistoriográficos. Os primeiros correspondem, grosso modo, às tarefas filológicas e de documentação pressupostas à reconstrução da história da Linguística. Em países como o Brasil, essa é uma das tarefas essenciais, posto que dispomos de poucas e esparsas fontes a respeito da constituição e do desenvolvimento dos estudos da linguagem no país. Reuni-las, tratá-las, disponibilizá-las é uma prestação de serviço para a própria Linguística, se consideramos que o acesso ao que se produziu no passado pode realimentar de forma significativa os projetos atuais. O historiógrafo pode, portanto, situando-se nesse epi-historiográfico, de identificar, tratar edomínio disponibilizar fontes para a ocupar-se HoL. Ele pode também, localizar, por outro lado, dedicar-se a refletir sobre os princípios e métodos da disciplina, propor encaminhamentos para os diferentes tipos de investigação, cunhar, avaliar, refinar a terminologia de descrição, isto é, desenvolver atividades que se situem num nível meta-historiográfico. Além disso, necessariamente, o historiógrafo precisa saber lidar com as realidades linguísticas descritas em seus materiais de análise, ou seja, precisa estar apto a transitar com relativa desenvoltura pelos diferentes modos, historicamente demarcados, de conceber e tratar a linguagem e as línguas. Os conhecimentos linguístico, epi-historiográfico e meta-historiográfico aliados ao conhecimento “enciclopédico” são necessários no momento em que o historiógrafo descreve e interpreta a história da disciplina. Essecolaboradores, trabalho mais complexo pode contar com a participação de diversos sendo possível, por exemplo, analisar fontes produzidas por outros pesquisadores, valer-se de parâmetros de análise fixados tradicionalmente na HoL, apropriar-se de conhecimentos de língua disponíveis. No entanto, é de fundamen-
tal importância que aquilo que entendemos como fazer historiográfico propriamente dito (a descrição e interpretação da história dos estudos dadomínios linguagem) seja produto de uma boa articulação desses diferentes do saber. Evidentemente, o nível de aprofundamento em cada um desses domínios pode variar, mas, na perspectiva em que nos colocamos, um bom trabalho historiográfico requer: clareza em relação ao problema linguístico em questão; fidedignidade das fontes relativas aos tratamentos conferidos ao problema em contextos determinados; e explicitação dos pressupostos e métodos de análise. Em vista das delimitações estabelecidas até este ponto, apoiamo-nos em (Swiggers 1990, p. 21), para definir HoL como a disci plina que descreve e interpreta como o conhecimento linguístico [de qualquer natureza] foi obtido, formulado e comunicado e como se desenvolveu ao longo do tempo. Tal disciplina leva em conta diferentes dimensões dos processos de produção de conhecimento. Ao consideramos a diversidade de perspectivas que se criam a partir do entrelaçamento dessas dimensões, entendemos prontamente que a história da produção do conhecimento linguístico pode ser reconstruída de diferentes modos, que lancem maior ou menor luz sobre as variáveis aqui mencionadas. Mais do que isso, entendemos que há mais de uma versão possível para a história e que o valor daquela que se advoga para um autor, período, problema, tradição ou escola depende da boa costura dos elementos acionados para compô-la.
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