LIVRO - As Lagrimas de Eros - Georges Bataille

March 11, 2017 | Author: Bruno Bontempo | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Download LIVRO - As Lagrimas de Eros - Georges Bataille...

Description

GEORGES BATAILLE

AS LAGRIMAS DE EROS

PRÓLOGO ACABAMOS de reconhecer que absurdo há nas relações entre o erotismo e a moral. Sabemos que a sua origem é dada pelas relações do erotismo com as superstições religiosas mais longínquas. Porem, acima da precisão histórica não chegamos a perder de vista este princípio: de duas coisas uma, ou aquilo que obceca surge antes daquilo que o desejo, que a paixão ardente, nos sugerem, ou lemos a preocupação razoável de um futuro melhorado. Ao que parece, existe um meio termo. Posso viver no cuidado de um melhor futuro, mas expulsar também esse futuro para outro mundo. Mundo onde a morte, e só ela tem poder para me deixar entrar... Meio termo inevitável, sem dúvida. É tempo do homem contar mais fortemente com as recompensas ou os castigos que podem sobrevir depois da morte, e menos com o nada... Mas deixando de poderem funcionar esses temores (ou essas esperanças), acabamos sempre por entrever o tempo em que o interesse imediato virá, sem meio termo, opor-se àquele interesse futuro onde o desejo ardente há-de opor-se pura e simplesmente ao calculo refletido da razão. Ninguém pode imaginar um mundo onde a paixão ardente deixe, na verdade, de nos perturbar... Por outro lado ninguém encara uma possibilidade de vida desligada para todo o sempre de calculo. A civilização inteira, a possibilidade da vida humana, depende da meditada previsão dos meios capazes de assegurar a vida, mas esta vida — vida civilizada — que nos compete assegurar, não podemos reduzi-la a esses meios que a fazem possível. Para lá dos calculados meios, procuramos o fim ou os fins desses mesmos meios. É banal, considerar fim o que não passa, claramente, de meio. A busca da riqueza, digo a riqueza de indivíduos egoístas, às vezes da riqueza comum — não passa, como é evidente, de meio. O trabalho nada mais é do que um

meio... A resposta ao desejo erótico — como ao desejo mais humano, talvez (menos físico), da poesia e do êxtase (mas do erotismo à poesia, ou do erotismo ao êxtase, haverá diferença realmente sensível?) — a resposta ao desejo erótico, pelo contrário, é um fim. Em última análise, a busca dos meios é sempre razoável. A busca de um fim implica, ela, própria, desejo que muitas vezes desafia a razão. Em mim é vulgar que satisfazer um desejo se oponha ao interesse. E apesar disso cedo-lhe porque a satisfação se transforma brutalmente em meu fim último! Poderia assim mesmo afirmar-se que o erotismo não é apenas esse fim que me ofusca... E não é porque a sua consequência pode ser o nascimento de filhos. No entanto, valor de humana utilidade só os cuidados que esses filhos exigem. Ninguém confunde a atividade erótica — da qual pode resultar o nascimento de filhos — com o trabalho útil sem o qual acabariam tais filhos por sofrer e morrer... A atividade sexual utilitária opõe-se ao erotismo na medida em que este é o fim da nossa vida... Mas a calculada busca da procriação, semelhante ao trabalho da serra, arrisca-se humanamente a ficar reduzida a uma lamentável mecânica. A essência do homem, seja ela embora denunciada na sexualidade — que é sua origem e começo — põe-lhe um problema que só tem por saída enlouquecer. Enlouquecimento que existe na «pequena morte». E poderei viver em pleno a «pequena morte»? A não ser como antegosto da morte final? A violência da alegria espasmódica entra-me fundo no coração. E ao mesmo tempo esta violência, só de dizê-lo tremo, é o âmago da morte: abrese em mim! A ambiguidade desta vida humana é bem a do riso louco e dos soluços. Está ligada à dificuldade de fazer concordar o cálculo razoável, que a fundamenta, com as lágrimas... com esse riso horrível... Num primeiro passo, o sentido deste livro é abrir a consciência à identidade da «pequena morte» e de uma morte definitiva. Da volúpia, do delírio ao horror sem limites.

É o primeiro passo. Que nos leva ao esquecimento das infantilidades da razão! Da razão que nunca soube avaliar os seus próprios limites. Estes limites são dados pelo fato do fim da razão, que excede a razão, não ter de ser inevitavelmente contrária à ultra-passagem da razão! Pela violência da ultrapassagem, e na desordem dos meus risos e dos meus soluços, no excesso dos transportes que me quebram, apreendo a semelhança entre o horror e uma volúpia que me excede, a dor final e uma alegria insuportável!

PRIMEIRA PARTE

O COMEÇO (O NASCIMENTO DE EROS)

I. A CONSCIÊNCIA DA MORTE 1. O erotismo, a morte e o *diabo* A SIMPLES ATIVIDADE SEXUAL difere do erotismo por só existir na vida animal enquanto a vida humana revela uma atividade definidora, talvez, de um aspecto «diabólico» que aceita bem o nome de erotismo. «Diabólico» respeita realmente ao cristianismo. No entanto, a julgar pela aparência, a mais antiga humanidade conheceu o erotismo e a religião cristã ainda andava longe. Os documentos da pré-história impressionam: pintadas nas paredes das cavernas, as primeiras imagens do homem são de sexo alçado. Nada possuem de exatamente «diabólico», são pré-históricas, e nesses tempos o diabo... apesar de tudo... Se é verdade que «diabólico» quer essencialmente dizer a coincidência da morte com o erotismo, pode faltar-nos descobrir se ao cabo e ao resto o diabo não passa da nossa loucura quando choramos ou grandes soluços nos rasgam ou se nos dá para morrer de riso pode faltar-nos descobrir associada ao erotismo nascente a preocupação, a sombra da morte (da morte num sentido trágico ainda que risível). Esses, que as mais das vezes se pintaram em estado de ereção nas paredes das cavernas, não diferiam dos animais só pelo desejo associado desta forma — em princípio — à essência do seu ser. O que deles sabemos permite dizer que sabiam — ao contrário dos animais — que iam morrer... Desde muito cedo os homens tiveram da morte um conhecimento alarmado. As imagens de homens com o sexo alçado datam do Paleolítico Superior. Fazem parte das figurações mais antigas (que nos precedem de vinte a trinta mil anos). Mas as sepulturas mais antigas, que respondem a este conhecimento angustiado da morte, são muitíssimo mais velhas. Para o homem do Paleolítico Inferior a morte teve um sentido tão pesado — e tão claro que ao cadáver dos seus, como nós, deu sepultura. Deste modo a esfera «diabólica» que o cristianismo acabou em dotar, como sabemos, com o sentido da angústia, é —, na sua essência — contemporânea de homens muito antigos. Ao olhar de quem crê no diabo, o além-túmulo é diabólico... Mas numa forma embrionária a esfera «diabólica»

existia já desde o momento em que. os homens — pelo menos os antepassados da sua espécie — sabendo que morriam, viveram na expectativa, na angústia da morte.

2. Os homens pré-históricos e as cavernas pintadas Uma singular dificuldade nasce do fato do ser humano não ter ficado pronto de uma só vez. Os ossos destes homens, os primeiros a enterrarem mortos iguais a eles, encontramo-los em verdadeiros túmulos e são de longe posteriores aos mais antigos dos vestígios humanos. No entanto esses homens, primeiros a cuidarem do cadáver dos seus, eles próprios ainda não eram exatamente humanos. Os crânios que nos deixaram ainda têm traços simiescos: maxilar proeminente e, mais vezes ainda, arcada supra-ciliar bestialmente encimada por um chumaço ósseo. De resto, estes seres primitivos não tiveram o porte direito que nos designa — e afirma — sob o aspecto moral e físico. Por certo andavam de pé; mas com as pernas não totalmente esticadas, como as nossas. Lícito é pensar que a cobri-los e a defendê-los do frio tiveram, como os macacos, um sistema piloso... Não só pelos esqueletos e sepulturas que deixaram conhecemos aquilo a que os historiadores da Pré-história chamam Homem de Neanderthal: temos os seus utensílios de pedra talhada, já em progresso relativamente aos dos seus pais; que foram, no seu conjunto, menos humanos. Além disso, o Homem de Neanderthal também foi ultrapassado a grande velocidade pelo Homo Sapiens, em tudo semelhante a nós. (Apesar do nome não sabia realmente mais do que o ser que o precedeu, ainda vizinho do macaco, mas no físico era semelhante a nós.) Os historiadores dão o nome de Homo Faber (homem obreiro) tanto ao Homem de Neanderthal como aos seus antecessores. Trata-se do homem, com efeito, uma vez que aparece um utensílio adaptado a determinado uso e trabalhado em função desse uso. O utensílio é a prova do conhecimento, se admitirmos que saber é essencialmente «saber fazer». Os vestígios mais antigos do homem arcaico, ossadas ao lado de utensílios, foram encontrados no norte de África (em Ternifine Palikao) e datam de um milhão de anos, mais ou menos. Mas o tempo assinalado pelas primeiras sepulturas, em que a morte se faz consciente, já é de, imenso interesse (em particular no plano do erotismo) e

de uma data bem mais tardia: em princípio, cem mil anos antes de nós. A aparição do nosso semelhante, aquele cujo esqueleto o faz incluir, sem equivoco, na nossa espécie, acaba por nos arrastar a trinta mil anos pelo menos (se não levarmos em conta restos de ossos isolados nos numerosos túmulos ligados a toda uma civilização). Trinta mil anos... Embora desta vez já se não trate de restos humanos que as escavações propõem à ciência e à pré-história que interpretam e, necessariamente, dessecam... Trata-se de sinais berrantes... sinais que atingem a nossa sensibilidade profunda... sinais que acabam por ter a força de provocar uma emoção e, sem dúvida, não mais param de nos perturbar. Estes sinais são as pinturas que os homens muito antigos deixaram nas paredes das cavernas onde celebraram, por certo, as suas cerimônias encantatórias... Até à chegada do Homem do Paleolítico Superior, desse que a préhistória designou com um nome pouco justificável (o de Homo Sapiens1), o homem ainda não ultrapassa, na aparência, o aspecto de um intermediário entre o animal e nós. Na sua obscuridade é um ser que necessariamente nos fascina, mas os vestígios que deixou nada acrescentam, no conjunto, a esta fascinação informe. Não se dirige desde logo à sensibilidade o que sabemos dele, o que nos toca por dentro. Se tirarmos tal conclusão dos seus hábitos funerários, que tinha a consciência da morte, só a reflexão é imediatamente tocada. Porém, o Homem do Paleolítico Superior, o Homo Sapiens, conhecemo-lo agora por sinais que sabem tocar-nos pela beleza excepcional (tantas vezes as suas pinturas são maravilhosas) e também pelo fato de trazerem consigo o multiplicado testemunho da sua vida erótica. O nascimento desta emoção extrema que designamos com o nome de erotismo e opõe ao animal o homem, por certo será aspecto essencial daquilo que as investigações pré-históricas trazem ao conhecimento...

1

O adjetivo sapiens quer exatamente dizer «dotado de conhecimento». Mas é evidente que o utensílio, da parte de quem o faz, supõe o conhecimento do seu emprego. Ora o conhecimento do emprego do utensílio é, de fato, a base de todo o conhecimento. Por outro lado o conhecimento da morte, cujo fundamento põe em jogo a sensibilidade e, por essa razão, é distinta de todo do puro conhecimento discursivo marca por outro lado uma fase no desenvolvimento humano do conhecimento. Ora o conhecimento da morte, de longe posterior ao conhecimento do utensílio, não é menos anterior à vinda daquele que a pré-história designa por Homo Sapiens.

3. O erotismo ligado ao conhecimento da morte Sem dúvida foi decisiva a passagem, ainda um pouco simiesca, do Homem de Neanderthal ao nosso semelhante; homem acabado cujo esqueleto não difere em nada do nosso e cujas pinturas ou gravuras dão-nos a saber que perdera o abundante sistema piloso do animal. O homem provavelmente peludo de Neanderthal tinha, como vimos, conhecimento da morte. E a partir de um tal conhecimento é que o erotismo surgiu, opondo a vida sexual do homem à do animal. Não se pôs o problema: em princípio o regime sexual do homem, que não é de estação como o da maior parte dos animais, parece derivar do regime que existe no macaco. Mas o macaco difere essencialmente do homem por não saber da morte. A conduta do macaco junto do congênere morto exprime a indiferença, enquanto o Homem ainda imperfeito, de Neanderthal, ao enterrar o cadáver dos seus fálo com supersticioso cuidado que trai ao mesmo tempo respeito e medo. Como a do macaco, a conduta sexual do homem resulta em principio de uma excitação intensa que o ritmo das estações de forma alguma interrompe, mas tem a marca de uma reserva ignorada dos animais e que os macacos, em particular, não revelam... Com efeito, e pelo menos num sentido, a sensação de incômodo ligada à atividade sexual faz lembrar a sensação de incômodo ligada à morte e aos mortos. A «violência» ultrapassa-nos de uma forma estranha: em todas as circunstâncias, o que se passa é sempre estranho à ordem das coisas estabelecidas, à qual se opõe sempre esta violência. Há na morte uma indecência realmente diversa daquilo que a atividade sexual tem de incongruência. A morte permanece associada às lágrimas, enquanto o desejo sexual muitas vezes conduz ao riso. O riso, porém, não chega a ser suficiente para parecer o contrário das lágrimas: o objeto do riso e o objeto das lágrimas estão, sempre relacionados com qualquer espécie de violência que interrompe o curso regular, habitual, das coisas. É vulgar que as lágrimas se liguem a imprevisíveis fatos que desolam mas, por outro lado, um fim feliz e inesperado chega por vezes a emocionar-nos até às lágrimas. É evidente que a desordem sexual não nos arranca lágrimas mas perturba sempre, transtorna, e às vezes de duas coisas uma: faz rir ou faz a nossa entrega, não direi já à violência do amplexo, mas... É-nos com certeza difícil aperceber clara e distintamente a unidade da morte com o erotismo ou a consciência da morte e do erotismo. Por princípio, o desejo exasperado não pode opor-se à vida que resulta dele. E o

momento erótico chega a ser o auge dessa vida cuja maior força, cuja intensidade maior, se levantam no minuto em que dois seres se atraem, copulam e se perpetuam. Trata-se da vida, trata-se de fazer a sua reprodução mas, reproduzindo, transborda a vida: e ao transbordar atinge o delírio extremo. Os corpos misturados que todos se torcem no êxtase, se abismam em excessos de volúpia, são o oposto da morte que mais tarde há-de votá-los ao silêncio da corrupção. Segundo parece, ao olhar de todos o erotismo está realmente ligado com o nascimento, a reprodução que repara, sem fim, as devastações da morte. E não é menos verdade que o animal, o macaco cuja sensualidade se exaspera às vezes, ignora o erotismo. Ignora-o, justamente, por lhe faltar o conhecimento da morte. Pelo contrário, de sermos humanos e vivermos na sombria perspectiva da morte, conhecemos a violência exasperada, a violência desesperada do erotismo. É verdade: ao falar dos limites utilitários da razão apreendemos o sentido prático e a necessidade da desordem sexual. Mas de igual forma não terá razão quem lhe encontra o sentido fúnebre e chama «pequena morte» à sua fase terminal?

4. A morte no fundo do «poço» da caverna de Lascaux Não haverá um valor decisivo, um valor fundamental nas obscuras imediatas — reações perante a morte e o erotismo, tal como julgo possível apreende-las? Para começar, falei de um aspecto «diabólico» que as mais velhas imagens do homem, chegadas até nós, teriam. Mas em tais imagens surgirá realmente esse elemento «diabólico», a saber: a maldição ligada à atividade sexual? Penso que chego à questão de maior peso quando encontro nos mais antigos documentos pré-históricos o tema que a Bíblia ilustra. Quando encontro, ou pelo menos digo que encontro, no mais fundo da caverna de Lascaux o tema do pecado original, o tema da lenda bíblica! A morte ligada ao pecado, ligada à exaltação sexual, ao erotismo!

De qualquer forma, numa espécie de poço que não passa de anfractuosidade natural — muito difícil de atingir — esta caverna levanta um desconcertante enigma. Sob a forma de uma pintura excepcional, o Homem de Lascaux soube enterrar o mais possível o enigma que nos vem propor. A bem dizer, aos seus olhos não houve enigma. O homem e o bisonte que representou, para ele tiveram um sentido claro. Mas agora temos de cair em desespero à frente da imagem obscura que as paredes da caverna propõem: um homem com cabeça de pássaro que exibe o sexo hirto mas sossobra. Homem deitado à frente de um bisonte ferido que vai morrer mas, enfrentando o homem, perde horrorosamente as entranhas. Um obscuro e estranho caráter isola esta cena patética e sem par no tempo que vivemos. Por baixo do homem caído um pássaro desenhado com o mesmo traço, na ponta de um pau, acaba por nos desconcertar o pensamento. Mais longe, à esquerda, afasta-se um rinoceronte mas por certo não tem nada a ver com a cena em que o bisonte e o homem-pássaro surgem unidos na aproximação da morte. Tal como sugeriu o padre Breuil, depois de ter esventrado o bisonte pode o rinoceronte ir-se afastando lentamente dos moribundos. Porém, a composição atribui claramente a origem da ferida ao homem, ao dardo que a mão do agonizante lança, e o rinoceronte, pelo contrário, parece alheio à cena principal que aliás pode ser pata todo o sempre inexplicável... O que dizer aqui desta evocação impressionante, enterrada há milênios numa profundidade perdida — por assim dizer inacessível? Inacessível? Nos nossos dias, para ser exato há vinte anos, quatro pessoas podem entrar ali ao mesmo tempo para ver a imagem que oponho e simultaneamente associo à lenda do Gênesis. A caverna de Lascaux foi descoberta em 1940 (precisamente a 12 de Setembro). E se um pequeno número de pessoas pôde, desde então, descer ao fundo do poço, a fotografia fez difundir muito uma pintura excepcional: pintura, devo lembrá-lo, que representa um homem com cabeça de pássaro talvez morto, de qualquer forma caído à frente de um bisonte na agonia que se abandona à raiva.

Quando há seis anos escrevi uma obra sobre a caverna de Lascaux2, proibi-me avançar qualquer explicação pessoal para esta cena surpreendente. Limitei-me a dizer como a interpreta um antropólogo alemão3, aproximando-a de um sacrifício yakuta e vendo, na atitude do homem, o êxtase de um xamã que uma máscara, ao que parece, disfarça em pássaro. O xamã — o feiticeiro — da Idade Paleolítica não teria sido muito diferente de um xamã, de um feiticeiro siberiano dos tempos modernos. A bem dizer, essa interpretação só possui um mérito aos meus olhos: sublinhar «a estranheza da cena»4. Depois de uma hesitação de dois anos, e à falta de hipótese precisa, pareceu-me todavia possível avançar com um princípio. Baseando-me no fato da «expiação consecutiva à morte do animal ser regra nos povos onde a vida faz, de qualquer modo, lembrar a dos pintores das cavernas», numa nova obra5 afirmei: «O tema desta pintura célebre6 (que suscitou explicações contraditórias, numerosas e frágeis) seria o crime e a expiação.» Morrendo, o xamã expiaria, talvez, a morte do bisonte. A expiação do assassínio dos animais mortos na caça é regra em numerosas tribos de caçadores. Passados quatro anos, a prudência do enunciado parece-me excessiva. A falta de comentários, aquela afirmação tinha pouco sentido. Em 1957, limitei-me a afirmar: «Esta maneira de ver tem, pelo menos, o mérito de substituir à interpretação mágica (utilitária) das imagens das cavernas, evidentemente pobre, uma interpretação religiosa mais de acordo com um caráter de jogo supremo...» Hoje parece-me essencial ir mais longe. Neste novo livro o enigma de Lascaux não terá todo o lugar mas é aos meus olhos, pelo menos, o ponto de partida. A esse respeito hei-de fazer o esforço de evidenciar o sentido de um aspecto humano que a palavra erotismo designa e seria vão negligenciar ou omitir. 2

G. BATAILLE, Lascaux ou la Naissance de l'Art, Genebra, Skira 1955, p. 139. H. KIRCHNER, Ein Beitrag zur Urgeschichte der Scharnanismus, em «Anthropos », t 47, 1952. 4 Sublinha assim o fato dos homens do Paleolítico Superior não serem, afinal, tão diferentes de certos siberianos dos tempos modernos. Porém, o rigor desta associação é de uma fragilidade pouco defensável. 5 G. BATAILLE, L'Erotisme, Ed. de Minuit 1957, p. 83 (ou em português na Moraes Editora.) 6 Célebre neste sentido; pelo menos fez correr bastante tinta. 3

II. O TRABALHO E O JOGO 1. O erotismo, o trabalho e a «pequena morte» Primeiro, devo retomar as coisas de longe. Em princípio eu poderia falar com todo o pormenor do erotismo, sem ter de falar extensamente do mundo onde ele se joga. Contudo, falar do erotismo desligado do seu nascimento, independente das condições primeiras em que surge, haveria de parecer-me inútil. Só o nascimento do erotismo a partir da sexualidade animal pôs o essencial em jogo. Seria vão tentar compreender o erotismo se não pudéssemos falar daquilo que ele foi na sua origem. Neste livro não posso deixar de evocar o universo que produziu o homem, o universo do qual é desviado, precisamente, pelo erotismo. Se olharmos para a história, para começar a história das origens, o mau conhecimento do erotismo levará a evidentes erros. Se acaso quero entender o homem, em geral, e em especial compreender o erotismo, então vou ser confrontado com uma primeira obrigação: dar logo ao trabalho o primeiro lugar. Com efeito, o trabalho ocupa na história, e de uma ponta à outra, o primeiro lugar. É certamente o alicerce do ser humano. Partindo das origens (quer dizer da pré-história), de uma ponta à outra da história... A pré-história, aliás, só difere da história na pobreza dos documentos que a estruturam. Mas neste ponto essencial há a dizer que os mais antigos documentos, e os mais abundantes, se referem ao trabalho. Em rigor encontramos ossos, de homens ou animais que eles caçavam — e dos quais, em princípio, se alimentavam, mas os utensílios de pedra são, de longe, os que em maior número permitem lançar alguma luz no mais remoto tempo do nosso passado. A investigação dos estudiosos da pré-história descobriu muitas pedras talhadas cuja localização fornece, não raro, a sua idade relativa. Pedras talhadas para darem resposta a vários usos. Umas serviram de armas, outras de utensílios. E os utensílios, que serviam para fazer novos utensílios, também eram necessários ao fabrico das armas: «boxes», machadinhas, azagaias, pontas de flecha... que podiam ser de pedra mas que encontraram muitas vezes a matéria-prima nos ossos dos animais mortos.

Foi realmente o trabalho que libertou o homem da animalidade inicial. Pelo trabalho é que o animal se fez humano. Antes de mais, o trabalho foi alicerce do conhecimento e da razão. O fabrico de utensílios ou armas foi ponto de partida dos primeiros raciocínios humanizadores do animal que somos. Moldando a matéria, o homem soube adaptá-la ao fim que lhe destinava. Operação que não modificou só a pedra, tirando-lhe lascas e dando-lhe a forma requerida. O próprio homem se modificou: foi o trabalho que fez dele, evidentemente, um ser humano, o animal de raciocínio que somos. Mas se é verdade que na origem achamos o trabalho, se é verdade que o trabalho constitui a chave da humanidade, a partir do trabalho os homens afastaram-se por completo, com o tempo, da animalidade. Principalmente no plano da vida sexual. Ao principio, no trabalho, adaptaram a sua atividade ao lado útil que lhe atribuíam. Mas não foi apenas no plano de trabalho que eles se desenvolveram: na vida, em geral, fizeram os seus gestos e a sua conduta darem resposta a um fim que pretendiam atingir. A atividade sexual dos animais é de instinto, o macho que procura a fêmea e vai cobri-la só responde a uma instintiva excitação. Chegando pelo trabalho à consciência de um fim a atingir, de um modo geral os homens afastaram-se da pura e instintiva resposta, captando o sentido que uma tal resposta para eles teria. Para os primeiros homens conscientes disto, o objetivo da atividade sexual não deve ter sido o nascimento de filhos mas o prazer imediato que ela proporciona. O movimento instintivo ia no sentido de unir homem e mulher para alimentar os filhos; porém, nos limites da animalidade uma associação destas só ganhava sentido depois de uma procriação. Ao princípio, a procriação não foi um fim consciente. Na origem, quando o movimento da união sexual respondeu humanamente à vontade consciente, o objetivo que arranjou foi o prazer, foi a intensidade, a violência do prazer. Nos limites da consciência, a atividade sexual começou por responder à procura calculada de voluptuosos transportes. Já no nosso tempo primitivas tribos ignoravam a relação necessária entre as conjunções voluptuosas e o nascimento de filhos. Ao princípio a conjunção, a dos amantes ou dos esposos, não teve humanamente mais do que um sentido, o sentido do desejo erótico: o erotismo difere do impulso sexual dos animais por ser, em princípio e tal como o trabalho, a procura consciente de um objetivo que é a volúpia. Que não é, como o do trabalho, um desejo de aquisição e crescimento. Só o filho representa aquisição, mas o primitivo não vê a aquisição do filho, realmente benéfica, como resultado da união sexual. É vulgar, no civilizado, que o

nascimento do filho perca o sentido benéfico — materialmente benéfico — que teve para o selvagem. É bem verdade que nos nossos dias muitas vezes se não compreende a procura do prazer encarado como um fim em si. Não está de acordo com os princípios sobre os quais se fundamenta, hoje, a atividade. Com efeito, se a procura voluptuosa não é proibida, por outro lado não deixa de ser encarada de uma forma sobre a qual mais vale, dentro de certos limites, não falar. Ainda por cima, e em profundidade, não deixa de ser menos lógica uma reação que à primeira vista se não justifica. De acordo com uma reação primitiva, que aliás não deixa de atuar, a volúpia é o resultado previsto do jogo erótico. Com o trabalho, porém, será o ganho: o trabalho enriquece. Se o resultado do erotismo for visto pela perspectiva do desejo, independentemente de nascer ou não um filho, é uma perda cuja resposta será dada com a expressão «pequena morte», de paradoxal validez. A «pequena morte» pouco tem a ver com a morte, com o horror frio da morte... Mas estando em jogo o erotismo, o paradoxo não terá sentido? Efetivamente o homem, que a consciência da morte opõe, ao animal, também se afasta dele por o erotismo lhe substituir uma atuação voluntária, um cálculo — o cálculo do prazer pelo cego instinto dos órgãos.

2. Cavernas duplamente mágicas Para nós, as sepulturas do Homem de Neanderthal têm este significado basilar: testemunham a consciência da morte, dão a conhecer um fato trágico que é poder o homem, que é dever o homem sucumbir à morte. Mas certeza da passagem da atividade sexual instintiva ao erotismo, só no período em que apareceu o nosso semelhante, esse Homem do Paleolítico Superior, primeiro a não estar fisicamente abaixo de nós e que talvez tenha podido dispor — e precisamos admiti-lo — de recursos mentais semelhantes aos nossos7. E nada prova — antes pelo contrário — que este homem muito antigo tenha tido perante nós a inferioridade, aliás superficial, dos que às vezes chamamos «selvagens» ou «primitivos». (Acaso as pinturas desse

7

Em princípio, uma criança do Paleolítico Superior educada nas nossas escolas deveria atingir o mesmo nível que nós.

tempo, as mais antigas que conhecemos, às vezes não são comparáveis às obras-primas dos nossos museus?) Opondo-se aquilo que somos, o Homem de Neanderthal ainda tinha outra inferioridade manifesta. Como nós (e os seus antepassados) por certo seria de porte ereto mas flectia um pouco as pernas, e aliás não andava «à homem»: assentava no chão o bordo exterior do pé e não a sua planta. Tinha a testa baixa, o maxilar proeminente, e o seu pescoço não era, como o nosso, longo e flexível. Também será lógico imaginá-lo coberto de pêlos como os macacos e, de forma geral, os mamíferos. Em princípio, sobre o desaparecimento deste homem arcaico nada sabemos além de que era semelhante a nós, sem transições, e povoou as zonas anteriormente ocupadas pelo Homem de Neanderthal; se multiplicou, por exemplo, no Vale da Vézère e noutras regiões (do sudoeste da França e do norte da Espanha) onde se encontraram muitos vestígios dos seus dons admiráveis: com efeito, o nascimento da arte seguiu de perto a conclusão física do gênero humano. O trabalho é que decidiu: o trabalho cuja virtude determinou a inteligência. Mas também o homem concluído, no seu auge, a natureza humana consumada que principiou em esclarecer-nos e acabou em dar ao que somos uma embriaguez, uma satisfação que não resulta apenas de um trabalho útil. Há centenas de milhares de anos que o trabalho era a «realidade» da espécie humana quando a obra de arte surgiu, cheia de hesitações. Por fim, quando a obra de arte se consumou e o trabalho, em verdadeiras obras-primas, se fez mais do que resposta à preocupação do útil, deixou de ser o trabalho, mas o recreio, a decidir. O homem, não haja dúvidas, na essência é o animal que trabalha, mas também sabe transformar o trabalho em recreio. Deixo isto bem marcado a propósito da arte (do nascimento da arte): o recreio humano, verdadeiramente humano, primeiro foi um trabalho, um trabalho que se fez recreio8. Afinal que sentido têm aquelas pinturas maravilhosas que enfeitam desordenadamente cavernas de acesso difícil? Eram santuários sombrios que os archotes mal iluminavam; é bem verdade que essas pinturas deviam executar magicamente a morte da caça-grossa que representavam. Apesar disso, esquecidas milhares de anos, a sua beleza animal e fascinante conserva um sentido primeiro: o da sedução e

8

Dentro dos limites deste livro não posso tornar mais claro caráter inicial, decisivo, do trabalho.

da paixão, do maravilhoso recreio, do recreio que corta a respiração e subentende o desejo do sucesso. Essencialmente, este domínio de cavernas-santuários também será o do recreio. Dado o valor mágico das pinturas, talvez mesmo da beleza da figuração, nas cavernas é para a caça o principal lugar: eram de eficácia tanto maior quanto mais belas fossem. Na atmosfera carregada das cavernas a sedução, a profunda sedução do recreio levava porém a melhor, e neste sentido é que temos de interpretar a associação das figuras animais da caça com as eróticas figuras humanas. Por certo não há idéia preconcebida numa tal associação. Maior senso terá invocar o acaso. Mas antes de mais é verdade que essas cavernas sombrias foram realmente consagradas aquilo que é, na sua profundidade, o recreio — recreio que se opõe ao trabalho e cujo sentido é antes de mais obedecer à sedução, responder à paixão. Ora em princípio, introduzida onde figuras humanas surgem pintadas ou desenhadas nas paredes das cavernas pré-históricas, é erotismo. Sem falar do homem morto do poço de Lascaux, muitas destas figuras masculinas têm o sexo levantado. E mesmo uma figura feminina exprime o desejo com evidência. Num canto abrigado da rocha de Laussel, uma imagem dupla chega a representar explicitamente a união sexual. A liberdade destes primeiros tempos revela um caráter paradisíaco, provável que as suas civilizações rudimentares mas vigorosas, na sua simplicidade, ignorassem a guerra. Hoje a dos Esquimós, que antes de chegarem os Brancos também não sabia nada a tal respeito, não possui essas mesmas e essenciais virtudes. Não possui a suprema virtude da aurora. No entanto, o clima da Dordogne préhistórica era parecido com o das regiões árticas onde vivem os atuais Esquimós. E o caráter festivo dos Esquimós talvez não seja estranho aos nossos antepassados longínquos. A pastores cristãos que pretendiam opor-se à liberdade sexual dos Esquimós, responderam estes que tinham até ali vivido com liberdade e alegria iguais às dos passarinhos que cantam. Por certo o frio é menos contrário aos jogos do erotismo do que imaginamos nos limites do conforto atual. A prova é os Esquimós. De igual modo, nos planaltos do Tibete cujo clima polar é bem conhecido, os habitantes mostram-se dados a esta espécie de jogos. No primeiro erotismo talvez haja um caráter paradisíaco cujo rasto naif encontramos nas cavernas. Caráter não tão claro como isso. À sua ingenuidade infantil contrapõe-se já um certo peso. Trágico... E não haja a menor dúvida.

Ao mesmo tempo, e desde o princípio, cômico. É que o erotismo e morte andam ligados. Que riso e morte, o riso e o erotismo, andam ao mesmo tempo ligados... No mais fundo da caverna de Lascaux já vimos o erotismo ligado à morte. Ali se faz uma revelação estranha, uma revelação fundamental. E de tal forma que não pode surpreender-nos o silêncio — o incompreensivo silêncio — que ao princípio acolheu, e só ele, um mistério tão denso. Tanto mais estranha, a imagem, por este morto de sexo levantado ter cabeça de pássaro, cabeça animal e tão pueril que obscuramente, talvez, e na dúvida, faz ressaltar um lado risível. A proximidade de um bisonte, monstro que agoniza a perder as entranhas, espécie de minotauro que o homem morto e itifálico aparentemente matou, antes de morrer. Não há, por certo, no mundo outra imagem tão carregada de horror cômico como esta; ainda por cima, e em princípio, ininteligível. Trata-se de um enigma desesperante e dotado de risível crueldade, posto à aurora dos tempos. Mas não se trata, realmente, de o resolver. Se é verdade que nos faltam meios para isso, também não podemos furtar-nos a ele; ininteligível como é, ao menos propõe-nos viver na sua profundidade. Sendo o primeiro humanamente posto, pede-nos para descer ao fundo do abismo que o erotismo e a morte abriram em nós. Ninguém desconfiava que origem tinham essas imagens animais, ao acaso, encontradas numa qualquer galeria subterrânea. Desde há milênios que as cavernas pré-históricas e as suas pinturas tinham, a bem dizer, desaparecido: eternizava-se um silêncio absoluto. Já nos finais do século passado, ninguém teria imaginado a antiguidade delirante destas, que o acaso revelara. Só no começo deste século a autoridade do padre Breuil, um grande sábio, impôs o caráter autêntico destas obras dos primeiros homens os primeiros que foram mesmo mesmo iguais a nós mas separados de nós pela imensidade dos tempos. Sem sombra de dúvida, hoje fez-se luz. Hoje, uma imparável onda de visitantes anima estas cavernas que aos poucos, uma atrás de outra,

emergem de uma noite infinita... E principalmente anima a de Lascaux, a mais bela, a mais rica... Esta, no entanto, é a que mais preserva a sua parte de mistério. Com efeito, na reentrância mais funda desta caverna, mais funda e mais inacessível também (hoje, uma escada vertical de ferro permite lá chegar, pelo menos a um pequeno número de pessoas, de cada vez, ainda que a generalidade dos visitantes a ignore ou conheça, quando muito, de reproduções fotográficas...); no fundo dessa reentrância, de acesso tão incômodo que hoje lhe chamamos «poço», é que deparamos com a mais impressionante, a mais estranha das evocações. Um homem, ao que parece morto, está estendido, caído à frente de um potente animal imóvel, ameaçador. Este animal é um bisonte — e a ameaça que irradia ainda é mais forte porque agoniza: está ferido e expele as entranhas por baixo do ventre aberto. Na aparência, o homem estendido foi quem feriu com azagaia o animal moribundo... Mas o homem não é realmente um homem; a sua cabeça, de pássaro, termina em bico. Nada no conjunto justifica o fato paradoxal: que o homem tenha o sexo levantado. Por isto a cena é de caráter erótico; evidente e claramente sublinhado, esse caráter, mas inexplicável. Assim, numa reentrância pouco acessível se revela — mas obscuramente este drama há tantos milênios esquecido: ressurge mas não sai da escuridão. Desvenda-se e no entanto encobre-se. No próprio instante em que se desvenda, encobre-se... Porém, nessa profundidade fechada afirma-se um acordo paradoxal; tanto mais forte, esse acordo, por se confessar na escuridão inacessível. Este acordo essencial e paradoxal é o da morte com o erotismo. Verdade que não deixa realmente de afirmar-se. E, no entanto ao afirmar-se não deixa, afinal, de se ocultar. Assim sucede com as coisas da morte e do erotismo, ao mesmo tempo. Uma e outro nos escapam, e escapam no próprio instante em que se manifestam... Não podíamos imaginar contradição mais obscura, que assegure melhor a desordem dos pensamentos. Aliás, como imaginar local mais propício a uma tal desordem? A profundidade perdida desta caverna que talvez ninguém tenha habitado,

mesmo nos primeiros tempos de vida verdadeiramente humana foi, com certeza, abandonada9. (Também sabemos que os nossos pais, no tempo em que andavam perdidos no fundo daquele poço, ao darem tudo por tudo para lá chegarem tinham de descer com a ajuda de cordas... 10) «O enigma do poço» talvez seja um dos mais densos, e ao mesmo tempo o mais trágico, que a nossa espécie levanta a si própria. E o passado muito longínquo de onde chega faz reparar no fato de ele se propor em termos cuja obscuridade excessiva é desde logo surpreendente. Escuridão impenetrável que acaba em elementar virtude de um enigma. Admitindo este princípio paradoxal, este enigma do poço (resposta tão estranha, tão perfeita, ao enigma fundamental) por ser o mais longínquo, o que a humanidade longínqua propõe à humanidade presente, por ser o mais obscuro em si mesmo, também poderia ser o mais carregado de sentido. Pois não há-de sê-lo pelo mistério inicial que aos seus próprios olhos é a chegada ao mundo, a aparição inicial do homem? Ao mesmo tempo não liga este mistério com o erotismo e a morte? A verdade é que é inútil introduzir um enigma ao mesmo tempo essencial e formulado da forma mais violenta, independentemente de um contexto bem conhecido, de forma a que ele surja, em princípio, velado por causa da estrutura humana. E mantém-se velado na medida em que o espírito humano se oculta. Velado perante as oposições que se revelam vertiginosamente no fundo, por assim dizer inacessível, que é, na minha opinião, «o extremo do possível»... Em particular serão: A indignidade do macaco, que não ri... A dignidade do homem, que ainda assim sabe ceder a um riso «a bandeiras despregadas»... A cumplicidade do trágico — que fundamenta a morte — com a volúpia e o riso... A oposição íntima do porte ereto com a abertura anal, ligada à posição agachada... 9

Cerca de 15000 anos antes da nossa era. Mesmo em Lascaux, um fragmento de corda foi encontrado na caverna.

10

SEGUNDA PARTE

O FIM (DA ANTIGUIDADE AOS NOSSOS DIAS)

I. DIONISOS OU A ANTIGUIDADE 1. O nascimento da guerra É VULGAR que os transportes ligados ao nome de Eros tenham um sentido trágico; aspecto que sobressai na cena do poço de uma forma especial. No entanto, os primeiros tempos da humanidade consumada não surgem ligados à guerra nem à escravatura. Parece que ninguém conhecia a guerra antes de acabado o Paleolítico Superior. Só a partir daí — ou dos tempos intermédios a que chamamos mesolíticos1 — datam os primeiros testemunhos de combates onde homens se mataram uns aos outros. Uma pintura rupestre do Levante espanhol reproduz um combate de arqueiros dotado de tensão extrema2. Ao que parece é uma pintura com mais ou menos 10.000 anos de idade. Acrescentemos apenas que as sociedades humanas não deixaram, desde então, de se entregar à prática da guerra. Podemos ainda assim pensar que o assassinato nos tempos paleolíticos — quero dizer o assassinato individual — era conhecido. Ainda não estava em questão a batalha entre grupos armados que procurassem aniquilar-se. (Estranhos nos dias de hoje à guerra, como os homens do Paleolítico, o assassinato individual, embora raro, era o único que os Esquimós conheciam. Ora Os Esquimós vivem num clima frio, nas suas linhas gerais comparável ao das regiões onde viveram, em França, os homens das nossas cavernas pintadas.) Apesar da guerra primitiva pôr dois grupos em confronto, podemos pensar que não existiu de forma sistemática nos primeiros tempos. E a julgar pelas formas primitivas que ainda hoje se encontram, nas suas origens não deve ter estado em causa a conquista de vantagem material. Os vencedores aniquilavam o grupo vencido. Depois dos combates massacravam os inimigos sobreviventes, os prisioneiros e as mulheres, mas provavelmente os vencedores adotavam as crianças dos dois sexos e, terminada a guerra, tratavam-nas em pé de igualdade com os seus próprios 1

Mesolítico vem de «pedra média», intermediária entre a «pedra antiga» (paleolítico) e a «pedra nova» (neolítico) ou «pedra polida». 2 Reproduzi esta pintura em L´Erotisme, Ed. de Minuit. [Ausente nas edições portuguesas da Moraes Editores.]

filhos. Tanto quanto podemos concluir da prática dos primitivos modernos, o único benefício material da guerra era o posterior acréscimo do grupo que vencia.

2. A escravatura e a prostituição Bem mais tarde — mas não sabemos nada sobre a data de uma tal mudança — é que os vencedores viram a possibilidade de utilizar os prisioneiros, reduzindo-os à escravatura. A possibilidade de aumentar as forças de trabalho e diminuir o esforço necessário à sobrevivência do grupo foi rapidamente apreciada. A criação de gado e a agricultura, que nos tempos neolíticos se desenvolveram, tiveram pois o benefício de um acréscimo de mão-de-obra que permitiu o ócio relativo dos guerreiros. O ócio total dos seus chefes... Até surgirem guerra e escravatura, a civilização embrionária assentara na atividade de homens livres essencialmente iguais. A escravatura, porém, nasceu da guerra. A escravatura levou à divisão da sociedade em classes antagônicas. Através de guerra e escravatura, sem ter mais do que expor a sua própria vida, ao princípio, e depois a vida dos seus semelhantes, os guerreiros dispuseram de grandes riquezas. O nascimento do erotismo precedeu a divisão da humanidade em homens livres e escravos. Mas o prazer erótico, esse dependeu em parte do estatuto social e da posse das riquezas. Em condições primitivas resultara do encanto do vigor físico e da inteligência dos homens, nas mulheres de beleza e juventude. Aliás, para as mulheres, beleza e juventude haveriam de fazer-se decisivas. A sociedade resultante da guerra e da escravatura aumentou, porém, a importância dos privilégios. Os privilégios fizeram da prostituição a via natural do erotismo, pondoo na dependência da força ou da riqueza individual e votando-o, para acabar, à mentira. Que não haja enganos: da Pré-história à Antiguidade Clássica, a vida sexual transviou-se, anquilosou-se por culpa da guerra e da escravatura. O casamento restringiu-se ao capítulo da necessária procriação. E este capítulo tanto mais pesado foi quanto a liberdade dos machos tendeu, desde

o princípio, a afastá-los de casa. Ainda nos dias de hoje, a humanidade mal consegue libertar-se da rotina...

3. A primazia do trabalho Com o tempo descortina-se um fato essencial: saindo da miséria paleolítica, a humanidade reencontrou males que as primeiras épocas, com certeza, ignoravam. Aparentemente, a prática da guerra data do início dos novos tempos3. A tal respeito nada sabemos de muito claro. Em princípio, a entrada em cena da guerra deve ter determinado o retrocesso da civilização material. A arte animalista do Paleolítico Superior — que durou cerca de vinte mil anos — desapareceu. Pelo menos na região franco-cantábrica desapareceu4, e em nenhum lado lhe sucede qualquer coisa tão bela e tão grande. Pelo menos, do nosso conhecimento... Ao sair da simplicidade primária, a vida humana escolheu a maldita via da guerra. Da ruinosa guerra, da guerra de consequências degradantes, da guerra que conduz à escravatura; e à prostituição, ainda por cima5. Logo nos primeiros anos do Séc. XIX, Hegel tentou mostrar que as repercussões da guerra derivadas da escravatura também tiveram o seu lado benéfico6. Segundo Hegel, o homem atual pouco teria a ver com a aristocracia guerreira dos primeiros tempos. Em princípio, o homem atual é o trabalhador. Até os ricos e, de um modo geral, as classes dominantes, trabalham. Moderadamente, que seja, lá vão trabalhando... No entanto foi o escravo, e não o guerreiro, quem modificou o mundo com o seu trabalho; para rematar, a ele é que o trabalho modificou na sua essência. O trabalho modificou-o quando fez dele único criador autêntico das riquezas da civilização; em particular, a inteligência e a ciência são frutos do esforço a que o escravo se viu obrigado, acima de tudo trabalhar como resposta às ordens do senhor. Assim foi, devemos dizê-lo, que o trabalho 3

Nos finais do Paleolítico, e com certeza na transição do Paleolítico para o Neolítico, chamada Mesolítico. 4 Sem grande precisão, o sudoeste da França e o Norte da Espanha. 5 Se a prostituição não é necessariamente, e desde o começo, uma forma degradante (o caso da prostituição religiosa, da prostituição sagrada), bem depressa descambou, para mais começando a miséria servil, na baixa prostituição. 6 Na Fenomenologia do Espírito (1806).

engendrou o homem. O que não trabalha, o que é dominado pela vergonha de trabalhar, o rico aristocrata do antigo regime ou o que vive agora dos rendimentos, não passam de sobrevivências. A riqueza industrial que o mundo de hoje desfruta é o resultado milenário das massas subjugadas, da multidão infeliz que os escravos e os trabalhadores formaram desde os tempos neolíticos. De então para diante, o trabalho determina o mundo. Antes de mais, a própria guerra põe problemas industriais, problemas que só a indústria decide. Porém, antes da classe ociosa e dominante, que à guerra tirava a sua força, chegar à decadência em que hoje está, a ociosidade resolvia negar-lhe parte da sua importância. (Uma verdadeira maldição acaba por cair sobre os que deixam a outros o esforço incômodo, o esforço exigente, do trabalho.) Em todo o lado e por suas próprias mãos o aristocrata se entrega, bem depressa, à decadência. É a lei que Ibn Khaldoun vem a formular no Séc. XIV, um escritor árabe da Tunísia. Para ele, vencedores que se entreguem à vida urbana tarde ou cedo são vencidos pelos nômades cuja vida, mais rude, soube manter ao nível das exigências da guerra. Um tal princípio terá, porém, de ser aplicado a um domínio mais vasto. Regra geral, dispor de riquezas confere aos mais pobres, a longo prazo, uma energia maior. Ao princípio, os mais ricos têm a superioridade dos recursos materiais. Os Romanos conservaram o poder pela vantagem que a técnica militar durante muito tempo lhes conferiu, mas em dada altura essa vantagem foi atenuada com a grande aptidão para a guerra que surgiu do lado bárbaro e uma limitação, entre os Romanos, do número de soldados. Mas ao intervir nas guerras, a superioridade militar só nos primitivos tempos teve sentido. Nos limites de uma determinada civilização material estabilizada por uma vantagem perdurável, as classes deserdadas beneficiam de um vigor moral que falta às classes privilegiadas, apesar da sua força material. E agora somos obrigados a abordar o problema do erotismo, de importância secundária, por certo... mas com um lugar considerável na Antiguidade, lugar que já perdeu, nos nossos dias.

4. Do papel das classes inferiores no desenvolvimento do erotismo religioso Por muito que o erotismo tenha um sentido na Antiguidade, por muito que desempenhe o seu papel na atividade humana, nem sempre foram os aristocratas o que é referir quem pôde, nesse tempo, dar-se ao privilégio da riqueza7 — a chamá-lo para si. Acima de tudo, foi a agitação religiosa dos que nada a decidi-lo na sombra. Como é evidente, a riqueza praticava-o. O casamento, a prostituição, formas estabilizadas que eram, tendiam a fazer depender do dinheiro a posse de mulheres. Nesta olhadela que lanço ao erotismo antigo, devo porém ficarme, antes de mais, pelo erotismo religioso, sobretudo pela religião orgíaca de Dionisos. Em princípio, o dinheiro não entrava nos limites do culto dionisíaco, ou só entrava em segundo lugar (como a doença no corpo). Em geral os que nada tinham, muitas vezes os próprios escravos, é que tomavam parte nas orgias de Dionisos. Conforme o tempo e o lugar, a classe social e a riqueza variaram... (Mal temos informação sobre o assunto, em linhas gerais. E nunca sabemos nada com precisão.) Nunca podemos afirmar nada de preciso sobre a importância que geralmente teve uma atuação desordenada onde a unidade parece não ter existido. Não houve igreja dionisíaca unida e os seus ritos, por consequência, variaram com tempos e lugares. Aliás é sempre incerta a notícia que temos a tal respeito. Não houve quem se preocupasse em esclarecer a posteridade. De resto, nem teria havido quem pudesse fazê-lo com a precisão requerida. Mal podemos afirmar que os aristocratas «gozadores», antes dos primeiros séculos do império, pelo menos, não desempenharam papel importante nas seitas. Pelo contrário na origem, na Grécia, a prática das bacanais parece ter tido o sentido de excesso que ultrapassa o erotismo «gozador». A prática dionisíaca foi ao princípio violentamente religiosa, foi ao princípio um movimento exaltado, um movimento perdido. No conjunto o movimento é tão mal conhecido, porém, que as ligações do teatro grego com o culto de Dionisos são difíceis de estabelecer. Não pode espantar-nos que a origem da 7

Pelo menos, na Grécia, o nascimento não sustentado pela riqueza não tinha existência legal.

tragédia pareça ligada, de qualquer forma, a este culto violento. O culto de Dionisos foi essencialmente trágico. E ao mesmo tempo erótico, erótico numa desordem delirante, mas sabemos que ao ser erótico o culto de Dionisos foi trágico... Na verdade, acima de tudo trágico; e num horror trágico é que o erotismo acabou por fazê-lo entrar.

5. Do riso erótico ao proibido Ao encarar o erotismo, o espírito humano enfrenta a sua dificuldade fundamental. Em certo sentido, o erotismo é risível... A alusão erótica sempre teve o poder de despertar a ironia. Bem sei que posso prestar-me ao riso só por falar nas lágrimas de Eros... Mas Eros não deixa de ser por isso menos trágico. Que estou a dizer? Acima de tudo, Eros é o deus trágico. Sabemos que o Eros dos Antigos conseguiu ter um lado pueril: parecia uma criancinha. riso?

Mas afinal o amor não acaba em ser mais angustiante por se prestar ao

O fundamento do erotismo é a atividade sexual. Ora acontece que esta atividade cai sob a égide de uma proibição. Que inconcebível! Proibido fazer amor! A não ser em segredo. No entanto, se o fazemos em segredo o proibido transfigura, ilumina aquilo que proíbe com um clarão ao mesmo tempo sinistro8 e divino: numa palavra, ilumina-o com um clarão religioso. O proibido confere o seu próprio valor àquilo em que toca. Em geral, no próprio instante em que reconheço a intenção de afastar, a mim mesmo pergunto se não fui, bem pelo contrário e manhosamente, provocado! O proibido confere àquilo em que toca um sentido que a ação proibida, em si própria, não continha. O proibido arrasta à transgressão, sem a qual

8

A iluminação da obscenidade, como a do crime, é lúgubre.

não teria havido no ato a má luz que nos fascina... O que enfeitiça é a transgressão do proibido... Mas um clarão destes nem só o erotismo liberta. Existe na vida religiosa sempre que entra em ação a violência plena, essa que intervém no próprio instante em que a morte corta a garganta — e acaba com a vala — da vítima. Sagrado!... As sílabas desta palavra estão antecipadamente carregadas de angústia, o peso que as sobrecarrega é o da morte em sacrifício... Toda a nossa vida está carregada de morte... Mas em mim, a morte definitiva ganha um sentido de estranha vitória. Envolve-me no seu clarão, abre em mim o riso infinitamente alegre: daquilo que desaparece!... Nestas poucas frases, se me não tivesse confinado ao instante em que a morte destrói o ser, acaso poderia falar da «pequena morte» onde me desfaço numa sensação de triunfo sem chegar, verdadeiramente, a morrer?

6. O erotismo trágico É-o mais vezes do que somos, em geral, levados a reconhecer. Não há hoje quem note que o erotismo é um mundo demente cuja profundidade, muito para além das suas formas etéreas, é infernal. A este olhar rápido que proponho, dei uma forma lírica que afirma a ligação entre a morte e o erotismo. Mas insisto: se o sentido do erotismo nos for dado com uma radical profundidade, consegue escapar-nos. Acima de tudo o erotismo é a mais perturbante realidade, não deixando de ser, ao mesmo tempo, a mais ignóbil. Mesmo depois da psicanálise continuam a mostrar-se incontáveis os aspectos contraditórios do erotismo: a sua profundidade é religiosa, é horrível, é trágica, além do mais inconfessável. E não haja dúvidas: quanto mais divina... Olhando de perto esta realidade simplificada, que limita no seu conjunto os homens, é um dédalo pavoroso onde aquele que lá se perde

deve tremer. Única forma o tremor — de chegar perto da verdade do erotismo... Sabiam-no os homens da Pré-história, os que ligavam a sua excitação à imagem escondida no poço da gruta de Lascaux. Souberam-no os sectários de Dionisos, os que puderam ligar à sua a idéia das bacantes que, à falta de filhos próprios, despedaçaram à dentada, devoraram, cabritos vivos...9

7. O deus da transgressão e da festa: Dionisos Chegado a este ponto quero explicar-me sobre o sentido religioso do erotismo. O sentido do erotismo escapa a quem lhe não vir o sentido religioso! Reciprocamente, o sentido das religiões no seu conjunto escapa a quem negligenciar o elo que ele mostra estabelecer com o erotismo. Primeiro, o meu esforço é transmitir da religião aquela imagem que responde, no meu conceito, ao seu princípio, à sua origem10. Está na essência da religião a certos atos opor outros carregados de culpa, precisamente atos proibidos. Em princípio, a proibição religiosa afasta-se de um ato preciso mas ao mesmo tempo pode conferir um valor àquilo que afasta. Às vezes chega a ser possível ou mesmo prescrito violar, transgredir a proibição. Mas acima de tudo a proibição determina o valor em princípio um valor perigoso — daquilo

9 Talvez eu seja, de momento, mal compreendido... Sem mais tardar remeto os leitores para futuro capítulo deste livro. 10 Só depois desta afirmação de principio sobre o sentido da religião é que a exposição geral sobre a religião dionisíaca ganha sentido. É banal atribuir à religião o sentido da moral que, a maior parte das vezes, faz depender das suas consequências o valor dos atos. Na religião, porém, os atos assumem essencialmente o seu valor imediato, um valor sagrado. Por certo será possível (e em larga medida isto funciona) dispor de um valor sagrado com sentido útil (num tal momento assimila-se o valor a uma força). Porém, no seu princípio, um valor sagrado não é menos um 'valor imediato: só tem sentido no instante dessa transfiguração, onde justamente se passa do valor útil ao valor último o valor independente de todo o efeito posterior ao próprio momento, no fundo o valor estético. Kant viu como este problema se apresenta, mas não deixa de lhe fugir naquela afirmação (se não viu que a posição tomada implica, no seu julgamento, o prévio acordo sobre a utilidade contra a utilidade).

que recusa: grosseiramente, este valor é o valor do «fruto proibido» do primeiro capítulo do Gênesis. Valor que se reencontra nas festas onde é permitido — ou mesmo exigido — o que habitualmente se proíbe. Durante a festa a transgressão é na verdade aquilo que lhe dá um ar maravilhoso, o divino. Entre os deuses, Dionisos é essencialmente ligado à festa. Dionisos é o deus da festa, o deus da transgressão religiosa. Mais vulgar é ter Dionisos como deus da vinha e da embriaguez. Dionisos é um deus bêbado, é o deus cuja divina essência é a loucura. No entanto, para começar, a própria loucura é de essência divina. Divina, quero dizer aqui que recusa a regra da razão. Por hábito associamos a religião à lei, associamo-la à razão, mas é princípio que devemos rejeitar se nos reportamos àquilo que fundamenta as religiões no seu conjunto. Não haja dúvidas: a religião, ela própria, é de base subversiva; desvia do cumprimento das leis. Pelo menos o que ela comanda é excesso, é sacrifício, é festa que tem como pináculo o êxtase11.

8. O mundo dionisíaco Fui arrastado a considerações de complexidade extrema para dar do erotismo religioso uma impressionante imagem. Mais pesado é o problema da relação entre o erotismo e as religiões, por as vivas religiões de hoje se contentarem, de um modo geral, em negá-la ou rejeitá-la. E banal afirmar que a religião condena o erotismo, quando ele andava, nas suas origens, essencialmente ligado à vida religiosa. O erotismo individualizado das nossas civilizações modernas, por causa desse mesmo caráter individual já não tem nada capaz de ligá-lo à religião — a não ser o castigo final que se opõe ao sentido religioso da desordem do erotismo12. Castigo que apesar disto se inscreve na história das religiões, aparecendo de forma negativa, mas aparecendo. Abro aqui um parêntesis, 11

Numa exposição rápida, tenho de apresentar os fatos no seu conjunto. Em rigor, existem vagas sobrevivências que emprestam ao cristianismo (pelo menos a esse contrário do cristianismo que é o satanismo) um interesse erótico. No entanto, depois de Huysmans, o satanismo perdeu a atualidade que ele descreve no Là-bas, nos finais do Séc. XIX. Tanto quanto me é dado saber, tais sobrevivências não passam de comédias organizadas comercialmente. 12

obrigado a deixar para outro livro o desenvolvimento ao qual se liga a minha afirmação (por ter inevitável caráter filosófico). Com efeito, chego ao momento decisivo da vida humana. Rejeitando o erotismo da religião, os homens reduziram-na à moral utilitária... Perdendo o caráter sagrado, o erotismo fez-se imundo... Por agora vou limitar-me a passar destas considerações gerais sobre o culto de Dionisos a uma exposição rápida sobre o que sabemos de práticas bastante duradoiras13 que deram ao erotismo religioso a sua forma mais digna de atenção. É bem verdade que no cerne, e a partir de uma vida puramente mitológica ou ritual, se trata da persistência de uma obsessão. Dionisos foi o deus da transgressão e da festa. E ao mesmo tempo (aqui foi dito) deus do êxtase e da loucura. A embriaguez, a orgia, o erotismo são os aspectos apreensíveis de um deus cuja vertigem em profundidade lhe dissolve os traços. É bem certo que discernimos uma divindade agrícola, arcaica, mais alta do que esta figura bêbada. No aspecto mais antigo, esta figura leva--nos a preocupações materiais e agrárias ligadas à vida do campo. Porém, a preocupação do trabalho no campo bem depressa deixa de sobrepor-se à desordem da embriaguez e da loucura. Na origem, Dionisos não foi um deus do vinho... No Séc. VI, na Grécia, a cultura da vinha não teve aquela importância que em pouco tempo alcançou... É bem verdade que a loucura dionisíaca foi, ela própria, uma loucura limitada, atenta ao interesse das suas vítimas que raramente chegavam à morte... O delírio das Ménades foi a um ponto em que despedaçar crianças vivas, os seus próprios filhos, parecia responder apenas à sua desordem. Não chegamos a poder afirmar que um tal excesso entrasse verdadeiramente nos ritos. À falta de filhos, as Ménades delirantes despedaçavam e devoravam cabritos — os cabritos cujos berros de agonia pouco diferem de um choro de criança14. Porém, se sabemos a desregra dessas bacanais, de concreto não sabemos nada sobre a forma que ela teve. Haverá que juntar-lhes outros elementos. As imagens das moedas trácias ajudam-nos a imaginar a 13 Trata-se ao menos de um milênio. Aliás é verossimil que o dionisismo do Séc. VI prolongue hábitos muito antigos. Também é possível que o satanismo, ao qual já aludi, no seu conjunto ande ligado a uma persistência do culto de Dionisos. 14 Eu próprio, em criança, ouvia angustiado as lágrimas dos cabritos quando eram mortos, à frente de minha casa, pela faca da açougueira.

desordem que reinou com tendência a descambar na orgia. Mas estas moedas só representam um aspecto arcaico das bacanais. As imagens deixadas em vasos de séculos posteriores ajudam-nos a ver como foram estes ritos cujo fulcro era a licença. Por outro lado, estas figurações tardias ajudam-nos a captar uma evolução onde a violência desumana das origens tinha desaparecido: em Pompeia, as belas pinturas da Villa dos Mistérios permitem-nos imaginar o brilho que o Séc. I da nossa era deu a cerimônias requintadas. O que sabemos da repressão sangrenta de 186 A.C., que Tito Lívio relatou, fundamenta acusações duvidosas que serviram de base à ação política destinada a fazer frente a uma influência exótica debilitante. (Apesar do deus Líber — um Dionisos latino — o culto de Dionisos teve na Itália um caráter de importação oriental.) As alegações de Tácito ou as narrativas de Petrónio fazem-nos acreditar que a prática dionisíaca degenerou, pelo menos em parte, num vulgar deboche. Por um lado julgamos saber que o favor do dionisismo foi tal, nos primeiros séculos do Império, que era possível ver nele o perigoso concorrente do cristianismo. Por outro, a existência tardia de um dionisismo mais sensato, de um dionisismo decente, parece mostrar que o medo de confusões levou os fiéis de Dionisos a oporem-se à virulência dos primeiros tempos.

II. A ÉPOCA CRISTÃ 1. Da condenação cristã à exaltação doentia (ou do cristianismo ao satanismo) A religião cristã teve este papel na história do erotismo: condená-lo. E na medida em que dominou o mundo tentou, o cristianismo, libertá-lo do erotismo. Mas se quisermos destacar o resultado final, é evidente que nos embaraçamos. Em certo sentido, o cristianismo foi favorável ao mundo do trabalho. Valorizou o trabalho em detrimento do prazer. Não haja dúvidas que fez do paraíso o reino da satisfação imediata — e ao mesmo tempo eterna... Mas fêlo para iniciar o último resultado de um esforço. Em certo sentido, o cristianismo é traço de união que faz do futuro resultado do esforço — do esforço do mundo antigo, em primeiro lugar o prelúdio de um mundo do trabalho. Vimos atrás como o objetivo da religião foi, no interior do mundo antigo e cada dia um pouco mais, a vida do além-túmulo, conferindo o valor supremo ao resultado último, retirando ao momento esse valor. E o cristianismo insistiu. Ao prazer do momento não deixou mais do que uma consciência de culpa em relação ao resultado último. Na perspectiva cristã o erotismo comprometia ou retardava, pelo menos, o resultado final. Tendência que teve a sua contrapartida: através do castigo é que o próprio cristianismo chegou ao seu valor ardente. E desta forma desembocou no satanismo. Negação, que é, do cristianismo, o satanismo teve um sentido na medida em que o cristianismo pareceu verdadeiro. (No entanto, a negação do cristianismo acabou por coincidir com a busca do esquecimento.) Teve um papel, o satanismo — especialmente no fim da Idade Média, e mais tarde, mas a sua origem é que o privava de viabilidade. Ora o erotismo surgiu forçosamente ligado a este drama. A partir da maldição de que

Satanás foi vítima, era fatal que o satanismo votasse por sua vez os fiéis ao azar que lhe tocava. Por certo, a possibilidade de erro interveio: ao que parece, o demônio tinha o poder de dar sorte. Mas uma tal aparência acabou em ser decepcionante. A Inquisição teve força para desenganar... A sorte, sem a qual era inevitável o erotismo dar um resultado contrário, o azar, só pôde ser transversalmente procurada. Fazendo-se transverso, porém, o erotismo perdeu a grandeza, ficou reduzido à trapaça. Com os tempos, a trapaça do erotismo acabou por confundir-se com a sua própria essência. O erotismo dionisíaco era uma afirmação — em parte sádica, como todo o erotismo — mas a afirmação colou-se de través naquela trapaça relativa15.

2. A reaparição do erotismo na pintura Ao erotismo na pintura reservou a Idade Média o seu lugar: relegou-o para o inferno16! Os pintores desse tempo trabalhavam para a Igreja. E para a Igreja, o erotismo era o pecado. Só através do castigo a pintura poderia utilizá-lo. Só as representações do inferno — em rigor imagens repugnantes do pecado — consentiram que fizesse o seu lugar. Porém, a partir do Renascimento as coisas modificaram-se. E modificaram-se — na Alemanha, sobretudo mesmo antes de abandonadas as formas medievais — quando os amadores de pintura começaram a comprar obras eróticas. Nesse tempo só os mais ricos tiveram meios para encomendar pinturas laicas. A gravura não exigia grandes despesas, mas assim mesmo ficava fora do alcance da maior parte das bolsas. Temos de levar em conta estes limites. Esta falsificado o reflexo das paixões que essas pinturas — ou essas gravuras — nos dá. Essas pinturas, essas gravuras, não respondem à reação geral, do povo, como respondiam as imagens da Idade Média. O próprio povo, porém, estava sujeito à violência da paixão: a violência podia intervir no mundo rarefeito de onde saiu esta arte nascida da noite.

15

Houve, porém, uma exceção capital chamada Sade. Lá voltaremos. O próprio Dante meteu o erotismo no inferno. No entanto, no seu poema, Pado e Francesca alcançam no fundo dos infernos o amor sublime. 16

Temos, por certo, de levar em conta estes limites. Em parte, o reflexo das paixões que nos é dado na pintura ou nas gravuras — está falsificado. Essas pinturas, essas gravuras, não traduzem como as imagens da Idade Média um sentimento comum. Mas a violência da paixão não tinha papel menor nessa arte erótica que nascia da noite do mundo religioso, desse mundo sobrevivente que amaldiçoava, muito piedoso, a obra da carne... As obras de Albert Dürer, de Lucas Cranach ou Baldung Grien ainda respondem à incerteza desses dias. Por isto o seu valor erótico consegue, de qualquer modo, ter força. Não se afirmava num mundo aberto à facilidade. Trata-se de vacilantes clarões e, a sermos rigorosos, febris. É bem verdade que os grandes chapéus das mulheres nuas de Cranach respondem à obsessão de provocar. E hoje, que a nossa leviandade é grande, talvez nos dêem vontade de rir... No entanto, devemos conceder mais do que uma vontade de rir ao homem que nos deu aquela serra tão comprida e cortante que separa pelo entre-pernas um supliciado nu, suspenso pelos pés... Logo à entrada do mundo deste erotismo longínquo e tantas vezes brutal, somos confrontados pelo acordo horrível entre erotismo e sadismo. De forma alguma o erotismo e o sadismo surgem menos ligados nas obras de Albert Dürer do que nas obras de Cranach ou Baldung Grien. É todavia à morte — à imagem de uma morte toda-poderosa que aterroriza mas nos arrasta ao encantamento carregado de pavor da feitiçaria — é à morte, à podridão da morte e não à dor, que Baldung Grien ligou a sedução do erotismo. Um pouco mais tarde, associações destas desaparecem: são corridas da pintura pelo Maneirismo! Mas só no Séc. XVIII veio à luz do dia o erotismo seguro de si, o erotismo libertino.

3. O Maneirismo Na minha opinião, a mais cativante de toda a pintura erótica é a chamada Maneirismo. De resto, ainda hoje mal conhecida. Na Itália, o Maneirismo teve origem em Miguel Angelo. Na França, a escola de Fontainebleau representou-o à maravilha. Exceptuando Miguel Angelo17, não 17 Com exceção de Miguel Angelo e Greco. Porém, só falo aqui do maneirismo erótico e, tanto quanto me parece, o erotismo coincide no essencial com o Maneirismo. Tenho, pois, de dizer em que medida e forma Greco está ligado ao Maneirismo. Liga-se a ele como o misticismo de uma Santa Angela de

haja dúvida de que são pouco estimados os pintores maneiristas. No seu conjunto pouco conhecidos. A escola de Fontainebleau podia ocupar outro lugar na pintura. E os nomes de Caron18, Sprangler ou Van Haarlem não merecem o esquecimento em que vieram, mais ou menos, a cair. Todos amaram «o anjo do bizarro», todos se entregaram às sensações fortes. O classicismo desprezou-as... Mas sobriedade o que significa além de medo de tudo o que não perdura, do que parece, pelo menos, que não vai durar. Por razões idênticas, Greco deixou de chamar a atenção. É bem verdade que a maior parte dos maneiristas não teve a violência de Greco — mas o erotismo incomodou-os... Aliás, devo observar que pintores houve, não diria menos obcecados, porém menos atrevidos, que trilharam quase ao mesmo tempo as mesmas vias. Tintoretto foi mestre de Greco como Ticiano, praticamente, foi mestre de Tintoretto. No entanto, porque na Itália (em especial Veneza) o classicismo e a depressão foram menos profundos, o maneirismo e o erotismo de Ticiano — ou de Tintoretto — não incomodaram, enquanto o maneirismo de Greco, um dos mais estranhos pintores da Europa, chocou tanto a Espanha do Séc. XVII que logrou eclipsá-lo três séculos, ou quase. Em França, onde os excessos de um Greco nunca teriam despertado interesse, a obsessão erótica de Poussin contrária, em princípio, ao seu classicismo, aparentemente foi dar ao vazio... Se ele alguma vez se traiu foi, sobretudo, num esboço inutilizado.

4. A libertinagem do Sec. XVIII e o Marquês de Sade Com a França libertina do Séc. XVIII deu-se uma mudança radical. O erotismo seiscentista era pesado. Em Antoine Caron conseguia andar de mãos dadas com um sadismo delirante.

Foligno ou de uma Santa Teresa de Ávila se liga ao cristianismo exasperado, no qual a preocupação do porvir — que fundamenta essencial-mente o cristianismo — deu lugar à preocupação do instante atual: (que eu já disse ser resposta à violência, à intensidade do erotismo). 18 Antoine Caron (Beauvais 1520— Paris 1598) formou-se pela Escola de Fontainebleau, sob a direcção do Primat ice. A pintura que fez está ligada à maneira de Niccolo dell'Abate mas em «loucura» ultrapassa muito o quadro dos seus mestres e inspiradores.

O erotismo de Boucher tendeu para a frivolidade. E a frivolidade pôde só ali estar para abrir caminho à falta de graça... O riso chega às vezes a levantar o pano sobre uma hecatombe. O erotismo desses tempos nada veio a saber, porém, dos horrores que preludiou. Boucher nunca deve ter encontrado Sade. E na verdade, sejam quais forem os excessos do horror que não deixaram nunca, vida fora, de o obcecar — dos quais os seus livros são feroz relato — Sade podia rir19. Entretanto sabemos que uma vez, na altura em que passou da prisão das Madelonnettes à de Picpus e, não fosse a reação thermidoriana teria acabado no cadafalso, ficou bem amachucado só de ver aqueles a quem a Revolução mandava cortar as cabeças20. A vida do próprio Sade, porém — que passou trinta anos na prisão mas sobretudo povoou de sonhos multiplicados a sua solidão, sonhos de gritos terríveis e corpos sangrentos — sim, o próprio Sade ao suportar uma vida destas só pôde suportá-la imaginando o intolerável. No seu frenesi houve o equivalente a uma explosão que o despedaçava mas conseguia, no entanto, aplacá-lo.

5. Goya O problema aberto pela tristeza solitária de Sade só podia resolveu-se num esforço cansativo que apenas pusesse palavras em jogo. Sempre que é levantado o problema último da vida humana, só o humor lhe responde. Só o movimento do sangue responde à possibilidade de superar o horror. Resposta sempre dada numa guinada de humor, que mais não é do que guinada de humor. Em rigor, da linguagem de Sade posso extrair um movimento de violência (ainda que os seus últimos anos de vida nos levem a pensá-lo tornado por uma lassidão sinistra, às portas da morte21). O problema não opõe uma certa maneira de ser, justificável, a outra injustificável. Opõe estados nervosos contraditórias, aos quais respondem apenas, e em última análise, calmantes ou tônicos...

19

A Filosofia na Alcova é um livro divertido: que liga o horror à graça. Tinham instalado a guilhotina no jardim da prisão. 21 Ver G. BATAILLE, L'Erotisme, Ed de Minuit [ou em português na Moraes Editores]. 20

Em nos o problema permanece lancinante. Só resta uma possibilidade: ao exemplo da fúria opor outro, de horror aviltado. Sade e Goya viveram quase ao mesmo tempo22. Sade fechado em prisões, muitas vezes no limite da raiva; Goya, o surdo, fechado trinta e seis anos na prisão de uma surdez total. Um e outro renovaram a sua esperança na Revolução Francesa, um e outro sentiram horror doentio pelo regime baseado na religião. O peso de excessivas dores foi sobretudo aquilo que os ligou. Ao contrário de Sade, Goya não associou dor e volúpia. Apesar disso, a obsessão da morte e da dor tiveram nele a violência convulsiva que as aparenta ao erotismo. Em certo sentido, porém, o erotismo é a saída, a saída infame do horror. Tanto o pesadelo como a surdez encarceraram Goya, sem ser humanamente possível dizer qual deles, Goya ou Sade, foi encarcerado com maior dureza. Que Sade conservou na sua aberração sentimentos de humanidade, não restam dúvidas. Pelo seu lado Goya, em gravuras, desenhos, pinturas (é verdade que sem violar leis) atingiu a aberração mais completa (aliás é bem possível que Sade tenha ficado, de uma forma geral, dentro dos limites das leis23).

6. Gilles de Reis e Erzsébet Bathory Sade conheceu Gilles de Rais e apreciou-lhe a dureza de pedra. O mais notável é essa dureza: «Quando as crianças repousavam finalmente mortas, beijava-as... e às de rosto mais belo, de membros mais belos, mostrava-as e mandava abrir com grande crueldade o seu corpo, e deleitava-se com a visão dos seus órgãos internos...» Palavras que me tiram a oportunidade última de não estremecer: — «E muitas vezes.., quando as crianças morriam, sentavase no ventre delas e sentia prazer em vê-las morrer daquela forma, e ria disso com os referidos Corrillaut e Henriet...» (seus criados). Por fim, este sire de Rais que se tinha embriagado para atingir o limite da excitação, caía como um peso-morto. Os criados limpavam o quarto, lavavam o sangue..., e enquanto o senhor dormia tinham o cuidado de queimar as roupas uma a uma para evitar, diziam, «maus cheiros»24. 22 Nascido 6 anos antes de Sade, na Espanha, Goya morreu em França 14 anos depois dele. Uma surdez total atingira-o em Bordéus, no ano de 1792. 23 Na entanto só no cárcere e tardiamente decidiu satisfazer-se em imaginação com as suas histórias. Nos nossos dias o caso de Marselha, sem dúvida aquele que o levou à prisão perpétua, não teria tido consequências ao graves... 24 Ch. Le ,Proces de Gilles de Rais, documentos precedidos por uma introdução de G. BATAILLE.

Se Sade tivesse conhecido a existência de Erzsébet Bathory chegaria, por certo, à pior exaltação. Se aquilo que soube de Isabel da Baviera o exaltou, Erzsébet Bathory ter-lhe-ia arrancado um uivo de fera25. Falo disto neste livro, e não posso deixar de fazê-lo sob o signo das lágrimas. Com uma consciência oposta ao sangue-frio delirante que o nome de Erzsébet Bathory evoca, é que se ordenam em mim estas frases desoladas. Não se trata de remorso e também se não trata, como no espírito de Sade, da tempestade do desejo. Trata-se de abrir a consciência à representação daquilo que o homem verdadeiramente é. Perante uma representação destas, o cristianismo esquiva-se. Por certo os homens, no seu conjunto, devem esquivar-se de vez, mas a consciência humana — no orgulho e na humildade, com paixão mas a tremer — deve abrir-se ao pináculo do horror. A leitura hoje fácil das obras de Sade não modificou o número dos crimes — nem sequer dos crimes sádicos — mas abriu por inteiro a natureza humana à consciência de si própria!

7. A evolução do mundo moderno Não temos mais saída que não seja a consciência, é bem sabido. Para o autor, este livro só tem um sentido: abrir-se à consciência de si próprio! O período que segue Sade e Goya perdeu estes aspectos abruptos. Teve um pináculo que ninguém chegou, depois dele, a atingir. No entanto seria prematuro dizer que a natureza humana acabou por amainar. As guerras não deixam que o provemos... Mas não é menos verdade, desde Gilles de Rais que não afirmou os seus princípios, ao Marquês de Sade que os afirmou mas não pôs realmente em prática, que vemos a violência declinar. Nas suas fortalezas, Gilles de Rais torturou e matou dezenas de crianças, talvez centenas... Um século depois, uma grande dama Erzsébet Bathory matou jovens criadas na Hungria, ao abrigo dos muros dos seus castelos, e depois donzelas nobres. Fê-lo com uma crueldade infinita... Em princípio, o Séc. XIX foi menos violento. É verdade que as guerras do Séc. XX deram a impressão de um desvario acrescido. No entanto, imenso que tenha sido o seu horror foi um desvario controlado, foi a ignomínia perfeita na disciplina!

25

Apareceu na Mercure de France uma obra de Valentine Penrose sobre Erzsébet Bathory. [La Comtesse Sanglante (Nota do trad.)]

A crueldade acrescida da guerra e o seu abafamento na disciplina reduziram a parte de acalmia infame e de alívio que a guerra antigamente dava ao vencedor. Num sentido inverso, às hecatombes acrescentou-se o horror podre, o horror camuflado dos campos de concentração. O horror assumiu deliberadamente o sentido da depressão: as guerras do nosso século mecanizaram a guerra, a guerra ficou senil. O mundo acaba por ceder à razão. E até na guerra o trabalho se elege como seu princípio, como sua lei fundamental. Todavia, à medida que ele se esquiva à violência, através da consciência ganha o que perde em brutalidade cega. Desta orientação nova se foi fazendo aos poucos, em especial na pintura, um fiel reflexo. A pintura foge à estagnação idealista. Mesmo nestas liberdades que toma perante •a exatidão, perante o mundo real, o idealismo é que ela quer, acima de tudo, arruinar. Em certo sentido talvez suceda que o erotismo vá ao encontro do trabalho. Mas esta oposição em nada será vital. Em nada do que hoje ameaça os homens aparece a fruição material. Em princípio, a fruição material é contrária ao crescimento das riquezas. Mas o crescimento das riquezas é — pelo menos em parte — contrário à fruição que temos o direito de esperar delas. O crescimento das riquezas leva à superprodução que tem na guerra a saída única. Não afirma que o erotismo seja o único remédio para as ameaças da miséria ligada ao crescimento desrazoável das riquezas. Longe disso. Todavia, sem o cálculo das diversas possibilidades de consumo opostas à guerra, entre as quais é típica a fruição erótica — consumo no instante da energia — não sabemos nunca achar saída que a razão fundamente.

8. Delacroix, Manet, Degas, Gustavo Moreau e os Surrealistas A partir daqui, a pintura teve o sentido de uma possibilidade aberta que vai, em certo sentido, mais longe do que a literatura. Não é que a de Sade — mas Sade, em primeiro lugar, não passou de um mal conhecido... só os privilegiados podiam ler raros exemplares em circulação. Mesmo que fiel, no seu conjunto, à pintura idealista, Delacroix pendeu para uma pintura nova e, no plano do erotismo, ligou-a à representação da morte.

Mas primeiro foi Manet quem se afastou resolutamente dos princípios da pintura convencional ao representar o que via e não o que deveria ver. Ainda por cima a sua escolha metia-o no caminho de uma visão crua, urna visão brutal, que o hábito adquirido não tinha deformado. Os nus de Manet mostram uma brusquidão que a roupagem do hábito (deprimente), da convenção (supressora), não vela. O mesmo se passa com as raparigas das casas de má-nota cuja incongruência Degas, nos seus monotipos, quis afirmar...26 É evidente que as pinturas de Gustave Moreau são o contrário disto. Nelas, tudo é convencional. E sucede que a violência é contrária à convenção; a violência de Delacroix é tão forte que a convenção, nos seus quadros, velava mal as formas que respondiam ao princípio do idealismo. Não foi a violência mas a perversão, a obsessão sexual, que ligou as figuras de Gustave Moreau à nudez angustiante do erotismo... Para concluir tenho agora de falar na pintura surrealista que, em suma, representa o maneirismo atual. Maneirismo? No espírito dos que empregam esta palavra já não tem o sentido de um descrédito. Só me sirvo dele por traduzir a violência tensa imprescindível para nos libertarmos da convenção. Gostaria de empregá-la para exprimir a violência de Delacroix, ou de Manet, a febre de Gustave Moreau. Sirvo-me dela para insistir na oposição de um classicismo que persegue verdades imutáveis: o Maneirismo é uma procura de febre! É verdade que esta procura pode servir de pretexto à necessidade, ela própria doentia, de chamar a atenção; é o caso de um homem que pretendeu fazer uma trapaça com o erotismo, esquecendo-se da sua perigosa verdade...27 Hoje ninguém reserva a palavra surrealismo à escola que André Breton quis reivindicar com esse nome. Preferi falar de maneirismo; pretendo assim vincar a unidade fundamental de pinturas cuja obsessão é traduzir a febre: a febre, o desejo, a paixão ardente. Não quero levar em conta o artifício que a palavra sugere. Se a palavra está ligada ao desejo, é apenas na cabeça de 26 Cézanne jovem teve a mesma tendência: o seu Olympia quis opor-se ao de Manet por uma denunciada incongruência que não era, ao fim e ao cabo, mais convincente do que a de Manet (mais verdadeiro, mais estranho, para responder à intensidade da atração sexual). 27 Refiro-me a Salvador Dali cuja pintura, em tempos, me pareceu ardente, e na qual só vejo agora artifício. Julgo, porém, que o próprio pintor se deixou enredar pela estranheza, tão risível como ardente, dos seus artifícios.

quem quer o ênfase. A principal característica das pinturas a que me refiro é odiar a convenção. Só isto lhes fez amar o calor do erotismo — falo do irrespirável calor que o erotismo liberta... A pintura a que me refiro está, essencialmente, em ebulição, vive... arde... não posso falar dela com a frieza que os juízos, as classificações, pedem...

III. A MANEIRA DE CONCLUSÃO 1. Personagens fascinantes Nos dois capítulos anteriores eu quis tornar sensível a passagem deslizante do erotismo sem medida ao erotismo consciente. Terá sentido de um declínio, a passagem das desvairadas violências da guerra à tragédia representada? O combate — humanamente — terá o interesse da tragédia? O problema acaba por ser dilacerante. O primeiro movimento é afastar o interesse da comédia... Ficamos deprimidos por um sentimento de impotência se opusermos ao desvario sem medida, à ausência de medo, o cálculo. Sabemos, no entanto, que se não chega depressa à riqueza da possibilidade. Tal como a vingança — esse prato que comemos frio — o conhecimento maravilhado, mas claro, das nossas riquezas quer o aplacar da violência, a frieza relativa das paixões. Só em dois tempos chegam homens ao máximo daquilo que podem. O primeiro é o do desvario, mas o segundo da consciência. Devemos avaliar aquilo que perdemos na consciência, mas desde o início devemos reparar que a claridade da consciência, tal como esta humanidade que nos encarcera, quer dizer resfriamento. Ligada à consciência, medimos a impotência inevitável... Não é menos verdadeiro este princípio: não podemos fazer diferença entre o humano e a consciência... O que não é consciente, humano também não é. Temos de dar um lugar a esta necessidade primeira. Só através dos meandros do tempo podemos estar, podemos humanamente viver: só o conjunto do tempo compõe e completa a vida humana. Na origem a consciência é frágil — por causa da violência das paixões; um pouco mais tarde acha uma saída devido à acalmia. Não podemos desprezar a violência, não podemos rir da acalmia. O sentido de um determinado momento pode surgir num só tempo? Inútil será insistir: só a sucessão dos momentos se ilumina. Um momento só

tem sentido relativamente ao conjunto dos momentos. De cada vez somos apenas fragmentos desprovidos de sentido, se acaso os não relacionarmos com outros fragmentos. Se não, como chegar ao conjunto acabado? De momento, tudo quanto posso fazer é acrescentar uma visão, nova se possível, visão final, àquelas que propus. E mergulharia num conjunto cuja coesão pode no fim aparecer... O princípio deste movimento é a impossibilidade da consciência clara a quem só foi dada a consciência imediata. Proponho à minha reflexão deter-me em dois rostos mais ou menos contemporâneos que a fotografia e só ela me deu a conhecer. Dos mementos que viveram tiveram, essas duas personagens, pouca consciência. A primeira é um sacrificante vaudou. A segunda um supliciado chinês cujo suplício, como é evidente, não podia ter outro fim além da morte... O jogo que proponho a mim próprio é representar com todo o cuidado, e só para mim, o que eles viviam no momento em que a objetiva lhes fixou a imagem no vidro ou na película.

2. O sacrifício vaudou Aquilo que o sacrificante viveu foi uma espécie de êxtase. Em certo sentido êxtase comparável à embriaguez. Êxtase que a matança de aves provocou. Nada acrescento a fotografias tão belas que devemos a um dos fotógrafos mais notáveis — e reputados — de hoje, senão afirmar que podemos, olhando-as com paixão, penetrar num mundo afastado o mais possível deste em que vivemos. Mundo que é do sacrifício sangrento. Através dos tempos o sacrifício sangrento abriu os olhos do homem à contemplação desta realidade excedente e sem denominador comum com a realidade quotidiana que recebe um estranho nome no mundo religioso: o sagrado. Desta palavra não podemos dar definição justificável, embora haja pessoas, entre nós, que ainda podem imaginar (tentar imaginar) o que significa sagrado. E em face das referidas fotografias, leitores deste livro hãode esforçar-se por dar sentido à imagem que aos seus olhos representa a realidade sangrenta do sacrifício, a realidade sangrenta da morte animal no

sacrifício. À imagem..., talvez ao confuso sentimento onde o horror vertiginoso e a embriaguez se misturam..., onde a própria realidade da morte, da brusca chegada da morte, possui um sentido mais carregado do que a vida, mais carregado... capaz de gelar mais.

3. Suplício chinês Que eu saiba, o mundo da imagem aberta ao suplício várias vezes fotografado em Pequim, é o mais angustiante entre os acessíveis por imagens que a luz fixou. O suplício em questão é o dos Cem Pedaços, reservado aos mais graves crimes. Em 1923, um desses instantâneos foi reproduzido no Tratado de Psicologia de Georges Dumas. Sem razão nenhuma, o autor liga-o a data anterior e como exemplo fala da horripilação: ficar com os cabelos em pé! Insisto em dizer que o condenado tomava uma dose de ópio para prolongar o suplício. Dumas detém-se no ar extático das feições da vítima. É bem certo, acrescento eu, que um inegável ar de êxtase soma alguma angústia à imagem fotográfica, e está em parte, pelo menos, ligado ao ópio. Desde 1925 tenho uma dessas fotografias, oferecida pelo Dr. Borel, um dos primeiros psicanalistas franceses, fotografia que desempenhou um papel decisivo na minha vida. Nunca deixei de sentir-me obcecado por essa imagem da dor ao mesmo tempo extática(?) e intolerável. Embora não assistindo ao suplicio real, que soube sonhar mas lhe não foi acessível, imagino o partido que teria tirado um Marquês de Sade desta imagem: imagem que o dito marquês nunca deixou de ter à frente dos olhos, de uma forma ou de outra. Sade teria desejado, porém, que o deixassem contemplá-la em solidão, pelo menos na solidão relativa sem a qual uma saída extática e voluptuosa é inconcebível. Muito mais tarde, em 1938, fui iniciado na prática do ioga por um amigo. Nessa altura é que discerni o valor infinito da posição invertida na violência de uma tal imagem. A partir dessa violência ainda hoje não saberei referir outra mais louca, mais horrível — tão arrasado Fiquei que atingi o êxtase. O meu propósito é ilustrar aqui um elo fundamental entre o êxtase religioso e o erotismo— em especial o sadismo. Do mais inconfessável ao mais elevado. Este livro não diz respeito a uma experiência limitada como é a de todos os homens. Não poderia pô-lo em dúvida...

O que eu via de repente e me encerrava na angústia — mas libertava, ao mesmo tempo era a identidade destes contrários perfeitos que opunham ao êxtase divino um horror extremo. No meu parecer é esta a conclusão inevitável de uma história do erotismo. Mas devo acrescentar: limitado ao seu, domínio próprio o erotismo não teria podido chegar a esta verdade fundamental, expressa pelo erotismo religioso, identidade entre horror e religioso, No seu conjunto, a religião fundamentou-se no sacrifício. Só um desvio interminável lhe permitiu chegar àquele instante em que os contrários parecem visivelmente ligados, em que o horror religioso expresso, como sabemos, no sacrifício, se une ao precipício do erotismo, aos derradeiros soluços que só o erotismo ilumina.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF