LIVRO - A Busca Da Africa No Candomblé Do Brasil
Short Description
Religião e história...
Description
'.
A BUSCA DA ÁFRICA NO CANDOMBLÉ TRADiÇÃO
J
E PODER NO BRASIL
Stefania Capone
TRADUÇÃO
Procópio"Abreu.
u
---..•-
."\
<
,
I
Copyright
o Stefan!a Caponl!:,2004
SUMÁRIO
TITULO ORIGINAL
la qu~le de I'A/rique dom Je candombli.
Pouvoir ef tradiaon
0y ã~é~it(Parls: Karthala, 1999). Prefácio
7
Palias e Contra Capa
Convenções de escrita CAPA E PROIElO
GRÁfiCO
Introdução
Conlra Capa
9
G
FOTOGRAfIAS
PRIMEIRA PARTE - AS METAMORFOSES DE EXU
5lelan!a Capone
o mcnsageiro
dos deuscs: Exu nos cultos afro-brasileiros
53
FOTO DACON'T1l.ACAPA
Exu da porteira do l1êIfá Mongé Gibanaué
"
SEGUNDA PARTE - A PRÁTICA RITUAL
A busca da África no Candomblé: tradição e poder no 8rasll. 5teri'lnlaCapone. Riode Janeiro: Contra Capa UvrariaI Pi'llJas,2004. 376p.;16x23cm ISBN: 85-86011-85-1 (Contra Capa) 85-347.0376-0 (Palias)
Os espíritos das trevas: EXlIe Pombagira na umbanda
11I
O cOfltimwm
religioso
121
,v
A reorganização do espaço sagrado
v
O poder contcstado
ISS
177
Indui bibliografia, glossário c rndiec reminivo.
TERCEIRA PARTE - A CONSTRUÇÃO
DA TRADiÇÃO
2004
Todos os direitos desta l!:diçãoreservados 11
v,
EXlIC os antropólogos
VII
Em busca das origens. perdidas
VIII
Qual África? Qual tradição?
217
Contra Capa livraria Uda. Rua de Santana, 198 - loja [ Centro 20230-261 I Rio de Janeiro _ RI Tel Fax (55 21) 2512.340212511.4764 www.contracapa.com.br Palias Editora e Distribuidora ltda. Rua Frederico de Albuquerque, 56 [ Higien6polis
Conclusão
29S
327
Referências bibliográficas Glossário
358
21050-840 I Riode Janeiro - RJ Tel Fax (55 21) 2270.0186 www.pallaseditora.com.br
2SS
fndice remissivo
365
337
89
"
PREFÁCIO
No imaginário encantadora,
ocidental,
o Çrasil é a encarnação
rnoniJ com a l1;;ltureza. Salvador, há muito, é atenuam,
do mito da terra selvagem e
povoada de gente simples e hospitaleira,
as cores se misturam,
que sabe viver em har-
cidade em que os contrastes
ti
as crenças se entrelaçam.
se
Mas Salvador tam-
bém é a Roma africana, em que as tradições religiosas trazidas pelos antigos eSCfJ\"OSsouberam se preservar Cl'nl ~ç~lCll1dL11l1tlk 5t".1 "bl1,1 tl'rf')',
no sonho
(' se tr':lI1slllilir d;} mancir.J tllilis "fiel". :\ Ra!lia,
11.1':;:11 que Çl111l.'t'IHr,1
t'1l1 qtlt'
ft'in,ltll
de pureza africana,
ctn ...• i l' idc.l! ,k ,1fn,",l:lid,hil'. h'llh'll
,I l\lt'.'li\',l~t'tl\
l' ,I h.1I11l"1l1,1.clld','I,1
na busca de raízes que anima as
1'1\"'l,>":.1
COIlVl.'fS J lma passiva a escraVidão Fs . OISaulores defendem o ponto de vista segundo o qual, mesmo na sociedade mais to ta .. ". - ses ()prJJm~l~s sempn' encontram margens de mano!Jra para desenvolver estraté 'ia_~de SObr~~;:~~c~s tanto flslca qUJnlo cultural. Silveira (19RR. 1R6) " g _ la nagô o sinal {It- uma prática polítICa de ad~ptaçãtamb~m;e na .pr~do.mlnâncIJ do c,lndomblé Jdaptar e de escamotear os elementos .. , o c nao e rCSlstenClil, Essa capaCidade de se maIs Incomodos do culto (o' I d' E . negra) não paa'cc ser muito diferente das estratégias de legitimaçã:~~~iuC:da: ~o~~:::~la
P;I~
21B
A BUSCA
DA ÂFRICA
NO
CANDOMBLÉ
dos negociantes
de terras brasileiros dificultaram
de es-
a aplica-
a Bahia, conhe-
ceu várias rebeliões de escravos que começaram a minar o sistema escravagista-1• Foi preciso esperar 1850 e a lei Eusébio de Queirós para que o tráfico de escra. vos com a África fosse definitivamente
abolido, e 1871 para que a primeira lei
a favor dos escravos fosse promulgada:
a lei do Ventre Livre, a qual concedia a
liberdade
a todo filho de cscrava nascido
após essa data. O debate
seria pouco a pouco alimentado
de terras do Sudeste - notadamente
sobre a
pelos interesses
res vindos da Europa. A aboliçao marcaria o declínio político e econômico grandes
proprietários
de terras do Nordeste,
irremediavelmente
modo de produção escravagista, e acarretaria a emergência deiros do Sudeste. A abolição da escravidão, no entanto, da República, em 15 de novembro
Essas grandes mudanças
do poder dos fazensó seria decretada
naturalistas literatura
e evolucionistas.
humanos:
o
Era a época da difusão de teorias sobre as desino Brasil ao lado das idéias positivistas,
A partir da segunda
metade
à interpretaçao
do século XIX, a
a sofrer a força da influência
modelos europeus, como a história natural e a antropologia, necessários
antes da
foram seguidas, no meio das elites intelectuais,
e a cultura brasileiras começaram
instrumentos
em
de 1889.
por um debate sobre a realidade brasileira e seus componentes branco, o negro e o indígena.
dos
ligados ao
maio de 1888, com a Lei Áurea, um dos últimos atos da Monarquia proclamação
dos
da regiao de Sao Paulo -, que
o governo a fim de facilitar o fluxo de imigração de trabalhado-
da natureza
entre raça e cultura no Brasil~, Em 1838, o imperador
que forneciam
tropical
de os
e das relações
D. Pedro II criou o Insti.
tuto Histórico e Geográfico, que tinha por missão repensar a história brasileira
1
Sobre as rebeliões
na Bahia, cf. Verger (1968: 329-53) e Reis (1986; 1988 e 1992).
• Em relação ao debate sobre a influencia trópicos,
cf. Ventura
EXU E OS ANTROPÓLOGOS
~
a
e inglês
e, pouco depois, assinaram um tratado
ção desse primeiro tratado. De 1807 a 1835, o Brasil, sobretudo
gualdades raciais, que se impuseram de Édison Carneiro
que exigia como precondição
a abolição do tráfico. Mas as resistências
cravos e dos grandes proprietários
pressionavam
Os estudos afro-brasileiros nasceram exatamente no m t _, , '. . omen o em que o negro cx-cscravo.- fOIadmitIdo no seio da comunidade nacional, após longo cami-
pela Inglaterra,
enfim, a Independência
:"
em 7 de setembro de 1822, não foi
total abolição do tráfico de cscravos. Em 1825, os governos português
proprietários
OBJETO DE CIÊNCIA
brasileira, que dependia
do trabalho escravo, tinha todo intcrcsse cm prosseguir o tráfico
negreiro com a África. A Independência do Brasil, proclamada
abolição da escravidão
o NEGRO
a economia
do meio e das raças no desenvolvimento
(1991). Para o debate
da cultura
sobre raça c nação no Brasil, cf. Schwarcz
nos
(1993) e
~
219
com o intuito de consolidar o Estado nacional. Em 1840, o naturalista bávaro
então o que Ventura (1991: 38) chama um auto-exotismo,
Carl Fricderich von Martius ganhou o concurso de melhor projeto historiográ.
"periférico"
percebe a realidade que o cerca como exótica. Como produto
fico dedicado ao Brasil. Segundo ele, a missão do Brasil era realizar a mistura de
idealização
da Europa e de sua civilização,
raças, sob a tutela atenta do Estado: acabava de nascer o mito da democracia
reafirmar
racial. O debate sobre a necessidade da mestiçagem acarretou a questão da degenerescência
inevitável
do povo brasileiro,
obrigado
a misturar
nau central na construção
de uma identidade
gem do modo de produção
escravagista
estudar tudo o que havia contribuído do-se de lado a valorização
nacional
ao liberalismo.
c na passa-
Tornou-se
necessário
para a especificidade
do indígena,
característica
tico, em proveito da análise da cultura necessidade foi Sílvio Romero:
da cultura popular,
negro"
foi promulgada
ligado à libertação
própria sobrevivência
dos escravos, o qual ameaçava
que não queria trabalhar, um alcoólatra, em suma, um elemento no Brasil. Raymundo
defendeu
trp da África somente para estudar uma língua c coligir uns mitos, nós que
da Bahia (1900), após afirmar "a incapacidade
temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a
para as elevadas abstrações do monoteísmo",
América em nossas selvas, c a Europa em nossos salões, nada havemos produ-
representa
zicto neste sentido! É uma desgraça. [...] O negro não é só uma máquina
tar no entanto
econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciê.nda (1888: 10-1).
negros mais boçais e ignorantes
Assim, a antropologia
algum, na sua opinião,
~O Essl/i SUf l'illéSl/litétles
faces JIlI/IlaiIiCS,
de Gobincau,
Brasil. Gobineau,
que passou, na qualidade
leira, profetizava
a decadéncia
das ra.ças nãO-brancas. podena ~erivando
desta. Ocorre
do povo brasileiro: "Não se vá acredi-
que estas práticas limitem e circunscrevam da nossa população.
antrop~loglcas
mas com O inconveniente
foram adotadas
0. debate
entre
no interior
de rebaixar
levado
" I'arece-me
discutido
no
deriva
na corte brasi-
à dissolução
de raças. A inaptidão
,
só li mestiçagem
as superiores.
que negavam da Sociedade
Etnológica
fundada
interessante
do grego
Célia
a existência
inferior não impedi.a de modo
de negros mais "evoluídos"
quantoâ
comum questões
de Paris e à
desse auto-exotismo.
que o negro, como bem evidencia
(1987)
no processo
de visão".
ao lado de entre as raças
dedica
seu estudo
de formação
CriaçãO da ideologia
à interpretação
do negro
a qual ocupa lugar central
a se interessar
pelo negro. também
imigrado.
lo à margem
A inferioridade
do processo
J-1aiti" (Homero
a sua substituição,
do negro e sua inaptidão
de constituição
citado por Azevedo
familiar
no imaginário
Analisa a importância
de nação. E lembra que i{omero, embora tenha sido o primeiro era favorável
a palavra exotismo
era mais
ao
Romero.
do Estado nacional.
do branqueamento,
Na verdade, Ora, nada
de um projeto branco
em Paris em lM59.
pensar no paradoxo
C'xotikrls, isto é, "fora do campo
brasileiro
Azevedo
brasileiras
O conceilo
uma origem
foi uma das principais
de Antropologia,
aos
por Romero, segundo a qual o negro era superior ao indígena, mas
intelectual
por Buffon, cujas idéias sobre a degenerescéncia e [Joligenistas
da Sociedade
da mistura
pela educação:
pelos poligenistas,
monogenistas
do secufo XIX, tendo
de dois grupos
da França, uma temporada
ser corrigida
a sua influência
[...] na Bahia todas aS"
outros que o eram menos. Nina Rodrigues retomou a hierarquia
do negro.
em 1854, foi muito
como conseqüênCia
não podia
foi levado a seus limites extremos
da mestiçagem
as raças h.u~anas. formaçao
da civilização
à Cj~ilizaÇão
elevar as raças mfenorcs,
de degenerescência
de ministro
o perigo que o negro
ligadas à. antropologia
a "barbarlzação"
publicado
psíquica das raças inferiores sublinha
classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tomarem negras" (: 185-6).
para se pensar o
das teorias européias
Médi-
na época: o negro
da nação. Assim, em o AIli11lismo fetichista dos negros
para os demais componentes
estabelecida
no que chama
dominantes
inferior e sua presença na sociedade brasileira representava
O fato de o negro ser indubitavelmente
a influência
perigos07•
Nina Rodrigues foi o pioneiro.
as teorias evolucionistas,
um perigo para o conjunto
Brasil: o outro não é mais exterior à nação, ele é parte integrante
um marginal
Foi nesse clima cultural e político que os primeiros estudos" africanistas" se desenvolveram
indispensável
e a
das elites bran-
român-
era culturalmente
(198R) analisa
no imaginário
do movimento
essa
ao "perigo
a civilização
do negro: era um vagabundo,
nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas. Quando
sobre as elites haitianas,
e civilizadora
do Estado nacional. As rebeliões da primeira metade do
vemos homens como Bleek refugiarem-se dezenas e dezenas de anos no cen-
(1974). Hurbon
de raças
cas. Tudo indicava a inferioridade
co -legista,
e ao evolucionismo
da mistura
a abolição da escravidão, em 1888, o imaginário
século XIX haviam deixado marcas profundas
É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de
Skidmorc
só pode
deixan~
a sublinhar
da
brasileiro
nacional,
negra. O primeiro
passa a ser elemento
resultado
ligado ao negro já passara da servidão necessária
tOf-
brasileira
o intelectual
•
Quando
raças que não
ocupavam o mesmo nível na escala evolutivas. Assim, a questão étnica se
,.
a inferioridade
inferioresfi
em que o intelectual
no dcsenvolvimento intelectual
no âmbito
brasileiro
econômico,
para se civilizar deviam,
do Estado nacional:
das elites
desse imaginário
pelo
pois, mant(>-
"O Brasil não é, não deve ser, o
1987: 70).
J 220
~ A BUSCA DA ÁFRICA NO CANDOMBLÉ
I
lXU l OS ANTROPÓLOGOS
':;I
221
,. inferior ao branco, ele próprio dividido entre a raça ariana, mais propensa ao progresso, e outras "raças", como a raça latina, que mostravam claros sinais de decadências. Assim, em seu estudo sobre os africanos no Brasil, que teve urna primeira edição incompleta em 1906, afirmou a supremacia dos negros iorubás (os nagõs da Bahia), verdadeira aristocracia dos negros trazidos para o Brasil. Isso o conduziu, como mostra Dantas (1984), a desenvolver no Brasil um dis. curso que conferia ao negro recentemente liberto uma nova inferioridade, desta vez em nome da ciência. Com efeito, apesar do evidente interesse demonstrado por Nina Rodrigues peja cultura dos negros africanos da Bahia, e a despeito de algumas análises de grande sensibilidade sociológica'J, seus estudos eram animados por um projeto normativo que' visava regrar as relações entre as raças. Na obra dedicada à relação entre as raças humanas e o Código Penal no Brasil, publicada em 1894 e, portanto, anterior a seus estudos sobre a religião afro.brasileira, ele propôs que a legislação penal brasileira fosse dividida em códigos diferentes, que seriam adaptados às "condições raciais e climáticas" de cada uma das regiões brasileiras, pois cada raça apresentava um grau de evolução diferente. Propôs igualmente que o negro e o índio, bem como o mestiço, tivessem responsabili. dade civil limitada, como ocorre para os loucos e as criançaslO. A concepção de um negro refratário à civilização foi atenuada, em 1906, pela afirmação de uma "escala hierárquica de cultura e aperfeiçoamento" en. tre os povos africanos que haviam sido trf.zidos para o Brasil. Não era a realidade ou não da inferioridade social dos negros que estava sendo questionada, já
~ A Inferioridadc relativa dos povosdc origcm lallna, como o português, cxplicava a Inferioridadc do povo brasileiro:"O scrvilismo do negro, a preguiça do índio co gênio autoritário c tacanho do português produziram uma naç.1oInformc. sem qualidadcs fecundas c originais" (Romcrocifado porVenlura1991:49). • E.Isum trecho do
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