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August 12, 2017 | Author: Rafaela Leal | Category: The United States, Colonization, Thirteen Colonies, Puritans, State (Polity)
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LITERATURA

NORTE-AMERICANA Anderson Soares Gomes

2009

©2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G612L Gomes, Anderson Soares Literatura norte-americana / Anderson Soares Gomes. – Curitiba, PR: IESDE Brasil, 2009. 216 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-0383-9 1. Literatura americana - História e crítica. 2. Literatura americana - Aspectos sociais. 3. Literatura e história - Estados Unidos. 4. Estados Unidos - História. 5. Cultura - Estados Unidos. I. Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. II. Título. 09-2430

CDD: 810.9 CDU: 821.111(73).09

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Anderson Soares Gomes

Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio), Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Bacharel em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Sumário Literatura colonial e a América puritana........................... 11 A chegada do Mayflower......................................................................................................... 12 O estabelecimento das treze colônias................................................................................ 14 A literatura colonial: o puritanismo e o Great Awakening............................................ 18

O período revolucionário....................................................... 29 Os conflitos com a Inglaterra e a luta pela independência......................................... 29 Os “Pais Fundadores”................................................................................................................. 33 Os textos revolucionários........................................................................................................ 37

A prosa romântica..................................................................... 47 O ideal romântico e a construção da identidade norte-americana......................... 47 O transcendentalismo.............................................................................................................. 52 A inspiração gótica.................................................................................................................... 59

A poesia romântica................................................................... 69 A poesia de Edgar Allan Poe................................................................................................... 69 Walt Whitman: a busca por uma voz norte-americana................................................ 73 Emily Dickinson: a poesia de cunho metafísico.............................................................. 76

A Guerra Civil e a literatura correspondente................... 87 Diferenças entre o norte e o sul dos EUA.......................................................................... 87 A escravidão e os textos abolicionistas.............................................................................. 90 Consequências do conflito: textos literários de temática da Guerra Civil............. 95

O Realismo norte-americano..............................................103 As mudanças socioeconômicas..........................................................................................104 Uma voz nacional: Mark Twain............................................................................................107 O Naturalismo............................................................................................................................112 Henry James: a literatura entre os Estados Unidos e a Europa................................116

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX.................................................125 F. Scott Fitzgerald e a Jazz Age.............................................................................................126 Ernest Hemingway e a precisão da escrita......................................................................130 William Faulkner e a tradição sulista.................................................................................133 John Steinbeck e a Grande Depressão.............................................................................136

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX.................................................147 Robert Frost: a natureza como poesia..............................................................................147 T.S. Eliot & Ezra Pound: trilhando caminhos modernos..............................................151 Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil...................................................................158

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX.........................167 O teatro de Arthur Miller e Tennessee Williams............................................................168 A ascensão da literatura afro-americana.........................................................................174 Inovações na prosa: J.D. Salinger e New Journalism....................................................178

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio...................................189 A obra literária como produto de um momento histórico........................................190 Abordagens para o ensino da literatura norte-americana........................................194

Gabarito......................................................................................205

Referências.................................................................................213

Apresentação No mundo contemporâneo, onde a cultura norte-americana se encontra praticamente onipresente nas formas de expressão ocidentais, é cada vez mais importante investigar as maneiras através das quais os Estados Unidos se desenvolveram (historicamente, socialmente e artisticamente) de colônia inglesa à maior potência mundial. Tal desenvolvimento pode ser visto especialmente através de sua literatura. É na literatura norte-americana que podemos aquilatar a quase totalidade do processo histórico cultural dos Estados Unidos. A partir de seus principais textos (ficcionais ou não) e do pensamento de seus autores mais significativos, é possível compreender como a identidade norte-americana foi sendo construída através dos séculos. Este material, portanto, se propõe como um estudo das mais relevantes obras literárias produzidas nos Estados Unidos numa perspectiva histórico-social, para assim se traçar um panorama do “homem norte-americano” – seus valores, suas formas de expressão e sua visão de mundo. Veremos neste trabalho a criação de um ideal para a América através da literatura, começando com a saída dos peregrinos da Inglaterra e seu estabelecimento nas treze colônias. Analisaremos então o processo de independência norte-americano, suas ideologias, seus principais nomes e textos. Assim, vamos estudar como se deu a consolidação dos Estados Unidos através da literatura, passando pelo período da Guerra Civil, o Romantismo e o Realismo. Por fim, no século XX, trataremos da ascensão de novos estilos literários que se tornaram essenciais para o reconhecimento da escrita norte-americana como uma das mais representativas da contemporaneidade. O presente trabalho também abordará como a literatura dos Estados Unidos se relaciona com outras formas de representação artísticas, como o cinema, a música e o teatro. Dessa forma, será possível estabelecer uma ampla perspectiva das mudanças e do desenvolvimento da cultura norte-americana. Que este trabalho sirva de inspiração e estímulo para que futuros profissionais da área de Letras possam, de forma crítica e complexa, percorrer os sinuosos – porém enriquecedores – caminhos traçados pelos principais nomes da literatura produzida nos Estados Unidos. Anderson Soares Gomes

Literatura colonial e a América puritana Refletir sobre as expressões literárias da cultura norte-americana é, mesmo que de forma subconsciente e intrínseca, refletir sobre a própria natureza do nome do país que lhe deu origem. Os Estados Unidos da América são um país que já em seu nome, no plural, prenunciam uma natureza múltipla e variada, indicador que a formação de seu território, seu povo e sua identidade foi construída através da união de objetivos comuns e superação de diferenças. Uma das poucas nações do mundo reconhecida por uma sigla (EUA, ou “USA” em inglês), os Estados Unidos também têm por hábito referirem-se a si próprios como “América”, e seus cidadãos como americanos. Se o fato de se intitular “América” acaba gerando uma insatisfação por parte de seus vizinhos da América Central e da América do Sul, não há como negar que os Estados Unidos acabaram criando um novo significado para o termo “América”, que ultrapassa os limites geográficos: a América é a terra da democracia, da liberdade individual e da oportunidade. É claro, contudo, que nem sempre foi assim. Apesar de existirem evidências de que o território da América do Norte já havia sido visitado pelos vikings no século IX, é apenas com Cristóvão Colombo, em 1492, que a Europa finalmente descobre o novo continente. A Inglaterra a princípio ocupa um papel secundário na ocupação da América, já que Portugal e Espanha tomam para si a maior parte do território. Inicialmente, os ingleses se dedicam à pirataria, roubando ouro e prata de navios espanhóis e portugueses. Posteriormente, no entanto, a Inglaterra concentra-se na exploração e investigação do território do Novo Mundo. Primeiramente com John Cabot e depois com Walter Raleigh (que nomeia a região a que chega de Virgínia, em homenagem à rainha Elizabeth I, a “rainha virgem”), há uma tentativa real de colonização da América do Norte por parte dos ingleses. Porém, as situações extremas a que esses primeiros colonos foram submetidos (doenças, ataques de nativos, fome) puseram fim a esse primeiro esboço de uma colônia de domínio inglês na América.

Literatura Norte-Americana

Com outro monarca no poder (James I), a Inglaterra tenta novamente implantar uma colônia na América. A estratégia e a natureza desta nova empreitada, no entanto, são diferentes daquelas usadas durante o reinado de Elizabeth I. Ao invés de nobres desbravadores, esses novos colonizadores eram representantes de empresas inglesas que, num esquema pré-capitalista, tinham autorização da Coroa para explorar as terras do Novo Mundo. Assim, os ingleses finalmente alcançam o sucesso em seu processo de colonização e uma nova fase começa para a América do Norte.

A chegada do Mayflower

Domínio público.

O primeiro povoado inglês de caráter permanente na América do Norte foi Jamestown (assim chamado em homenagem ao rei James I), na Virgínia em 1607. Patrocinado pela Virginia Company of London, Jamestown tem outro significado muito especial: um dos colonos do povoado foi John Smith (1580-1631), um dos mais importantes personagens da história colonial norte-americana.

John Smith.

John Smith foi um capitão inglês que, através de seus textos e sua fabulosa biografia, definiu o perfil dos primeiros colonos americanos: aventureiro, des12

Literatura colonial e a América puritana

temido e promotor das belezas e das promessas do Novo Mundo. Em sua produção textual sobre a América (de cunho notadamente propagandista, já que havia enorme interesse em atrair mais e mais colonos ingleses para o novo continente), Smith cria cenários, eventos e personagens de natureza quase mítica, que servem de fundação não só para a literatura, mas também para a identidade norte-americana. A América de John Smith é a “terra de oportunidades”, expressão que até hoje ecoa na mente daqueles que buscam nos Estados Unidos um horizonte para um futuro de prosperidade. O trabalho mais significativo de Smith é The General History of Virginia. Esta obra, escrita quando Smith já havia retornado à Europa, serve não só como registro de sua permanência na colônia, mas também como artifício para tornar o novo continente um lugar atraente para prováveis novos exploradores. É com esse trabalho que Smith consolida a visão da América como o lugar da riqueza abundante, da vida selvagem, dos prazeres e da liberdade individual. Também é em The General History of Virginia que John Smith conta uma das mais famosas narrativas da história norte-americana: sua aventura romântica com a índia Pocahontas. O livro relata como Smith foi capturado por índios liderados pelo chefe índio Powhatan e feito prisioneiro. Pouco antes de ser morto pelos indígenas, a filha de Powhatan, Pocahontas, se coloca entre Smith e os índios e salva o capitão inglês da morte. A partir daí é construída uma narrativa que indica uma história de amor entre os dois, já que a princesa indígena se torna responsável por um maior contato entre sua tribo e os ingleses. Essa história de amor, no entanto, não tem um final feliz: Pocahontas se casa com outro homem – um agricultor inglês – e vai para a Inglaterra, aceitando a fé cristã. Diz-se que lá viveu infeliz, alimentando um desejo de retornar à América até o momento de sua morte. Atualmente, por mais que a história de John Smith e Pocahontas seja questionada por historiadores, e que muito da narrativa de The General History of Virginia seja vista como ficção, não há como negar que o possível amor entre o capitão inglês e a princesa indígena representou, de forma mitológica, a possibilidade de união e prosperidade entre povos tão diferentes nesse Novo Mundo. Os textos de John Smith sobre essa nova terra repleta de riquezas e oportunidades em muito serviam para criar expectativas em futuros colonos. Contudo, essa produção de literatura propagandista não foi a única razão para a ida de ingleses para a América. Na Inglaterra, o crescimento das cidades com o êxodo rural estava criando um excedente de mão de obra que não interessava à Coroa. Órfãos e pessoas muito pobres (indo trabalhar em condições de semiescravidão) 13

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também partiam em direção ao Novo Mundo. A ida de ingleses para a América não era apenas uma busca por melhor qualidade de vida, mas também uma fuga da situação econômico-social predatória em que se encontravam as classes menos favorecidas. Outro fator importantíssimo para a ida de ingleses para o novo continente foi a perseguição religiosa. A Inglaterra, desde o reinado de Henrique VIII, tem o anglicanismo como sua religião oficial. A criação da igreja anglicana coloca diferentes grupos religiosos em conflito com a Coroa inglesa, em especial os puritanos, assim chamados porque acreditavam numa igreja mais simples e pura, e que tinham como base os textos de Calvino escritos durante a Reforma Protestante. Exercer sua fé na Inglaterra se tornava cada vez mais difícil, já que aqueles que não praticavam a religião anglicana passaram a ser perseguidos, sendo puníveis até mesmo com a pena de morte. Depois de uma tentativa fracassada de estabelecimento na Holanda, os seguidores do puritanismo partem então para o Novo Mundo. Em 1620 chega ao porto de Plymouth, em Massachusetts, o Mayflower – navio inglês que traz o primeiro grupo de “peregrinos” para o novo continente. Esses colonos, conhecidos historicamente como Pilgrim Fathers (Pais Peregrinos) serão responsáveis por formar a primeira fase da identidade norte-americana e seus ensinamentos permanecem no imaginário dos Estados Unidos até hoje. Esses peregrinos chegam à America determinados a fazer da América a “Terra Prometida”, um novo começo para a história e para sua religião. Ao mesmo tempo buscando a concretização de sua fé e um despertar de um novo ideal de sociedade, esses peregrinos – assim chamados porque acentua sua natureza religiosa – são os pastores, professores e empreendedores responsáveis pelo sucesso da colonização na América do Norte.

O estabelecimento das treze colônias É preciso fazer uma importante distinção aqui no que concerne à colonização ibérica (Portugal e Espanha) e à colonização inglesa. Portugueses e espanhóis tinham um modelo de conquista do novo território claramente mais exploratório, o que fazia com que as regiões sob o seu controle (a América Central, a América do Sul e até mesmo algumas partes da América do Norte, como a Flórida) fossem vistas como grandes áreas de extração de riquezas para serem enviadas para a Europa. A colonização inglesa na América do Norte, por outro lado, tinha 14

Literatura colonial e a América puritana

como objetivo central o povoamento daquela região, especialmente porque a partir da chegada do Mayflower, as pessoas que chegavam àquela terra pouco conhecida estavam em busca de um novo recomeço, longe das problemáticas religiosas que tanto sofriam no velho continente. A terra é conquistada para se morar nela. No entanto, pode-se dizer que esses diferentes modelos de colonização não eram em sua totalidade apenas de exploração ou apenas de povoamento. Nas regiões controladas por portugueses e espanhóis, mesmo para extrair o ouro, a prata ou pau-brasil, existia a necessidade de criação de cidades (como o Rio de Janeiro ou a Cidade do México) e a miscigenação dos povos em muito contribuiu para a criação de uma nova identidade nacional. Já nas colônias inglesas, o povoamento da região foi especialmente difícil, já que não havia um suporte do Estado como na colonização ibérica (a viagem era feita por companhias particulares) e não haviam riquezas abundantes facilmente encontráveis. Apenas anos depois, com a expansão para o oeste americano e com a descoberta de ouro e petróleo, o caráter exploratório da ocupação da terra se intensifica. O início da colonização por parte dos peregrinos foi bastante difícil. Os invernos eram bem rigorosos na região e vários colonos morriam de frio e de fome. Além do mais, os variados conflitos com os nativos indígenas ainda era um fator extra de perigo que os colonos tinham de lidar. Mesmo assim, o embrião dos Estados Unidos se expande: mais e mais colonos chegam à América, fugindo da perseguição religiosa, buscando melhor condição econômica ou simplesmente em busca de um novo começo numa terra inexplorada. Na Baía de Massachusetts, em 1630, ocorre uma imensa imigração puritana que consolida de vez o protestantismo de Calvino por quase todo o território. Outras regiões, porém, eram adeptas de outras religiões: em 1633, é fundado na colônia de Maryland um povoado seguidor do catolicismo; em 1681, William Penn funda na Pennsylvania uma colônia onde a população segue os preceitos da doutrina Quaker. Mesmo entre os protestantes calvinistas existiam diferenças que levaram à expansão do território. Roger Williams, por exemplo, era um puritano em desacordo com a íntima ligação entre a esfera política (o Estado) e a esfera religiosa (o puritanismo) existente na região de Massachusetts. Ele parte em exílio e funda uma nova colônia – Rhode Island. Essa diversidade religiosa, ao contrário do que poderia imaginar, em muito contribuiu para a necessidade de tolerância entre os territórios e a aceitação das 15

Literatura Norte-Americana

diferenças religiosas. Assim, cada cidadão tinha o direito de exercer sua liberdade religiosa sem correr o risco de sofrer perseguição e discriminação – exatamente a razão primordial da saída desses peregrinos da Europa, daí a necessidade de evitar o mesmo erro que os ingleses.

Temática Cartografia.

Com a chegada de mais e mais colonos e a criação de novos territórios, os Estados Unidos se expandem e então seu território se estabelece no que é chamado de “treze colônias”. É interessante notar que, diferentemente do que aconteceu com outras regiões (como o Brasil, por exemplo), não há apenas uma grande colônia sob domínio de uma nação europeia. O que existe é uma extensa região que consiste em treze colônias distintas, cada uma com suas peculiaridades e características – fator que em muito vai influenciar a história e a literatura dos Estados Unidos até hoje.

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Literatura colonial e a América puritana

Mas nem só de colonos europeus e puritanos consistiam os Estados Unidos. Essa parte da população é o que se costumou chamar de WASP, sigla que significa White-anglo-saxon-protestant (branco-anglo-saxão-protestante). Membros desse grupo acabaram constituindo a parte mais rica e representativa do país, deixando outras partes da sociedade à margem do progresso norte-americano. Embora a chegada dos “Pais Peregrinos” tenha dado um impulso desenvolvimentista à América do Norte, existiam outros grupos também responsáveis pela criação dos Estados Unidos – através de uma cultura, um estilo de vida e uma visão de mundo bem distinta daquela apresentada pelos puritanos vindos da Inglaterra. Talvez o mais importante desses grupos seja o dos índios norte-americanos, atualmente chamados de Native-Americans (Nativos-Americanos). Como o próprio nome já indica, eles eram nativos da terra e já se encontravam no território da América do Norte bem antes da chegada dos primeiros colonizadores europeus. O conhecimento que temos hoje da sociedade e da cultura do índio nativo norte-americano passa inevitavelmente pelo olhar que o homem branco lançou sobre ele assim que chegou à América. Portanto, é importante que a leitura de textos que tratem do encontro entre colonizadores e indígenas sempre seja feita com um olhar crítico, levando em consideração não só o período histórico, mas também os interesses envolvidos. Em The General History of Virginia, John Smith fala dos índios utilizando termos como “bárbaros” e “selvagens”, enfatizando a natureza pagã e violenta dos nativos, enquanto descreve a si mesmo sempre envolto em termos cristãos. Esse estilo narrativo é ainda mais notório no episódio em que é salvo da morte por Pocahontas, como se Smith fosse uma espécie de “novo salvador” posto em calvário. Essa visão do indígena como selvagem por muito perdurou no imaginário norte-americano. Dentre as várias razões para isso, está o fato de os colonos ingleses não terem interesse em catequizar os nativos, como ocorreu no Brasil por exemplo. Os índios eram sempre mantidos à distância, e o contato com eles era feito apenas no que se relacionava à troca ou compra de mercadorias. Quando se deu a expansão para o oeste norte-americano, a relação entre nativos e colonizadores alcançou seu ponto mais conflituoso, com o extermínio de milhares de indígenas. Felizmente, boa parte da cultura indígena foi preservada, especialmente através da ficção mantida inicialmente através da tradição oral (histórias passadas de geração em geração), que posteriormente serviriam como base para o surgimento da native-american literature (literatura nativa-americana). Várias das 17

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obras da literatura indígena norte-americana têm origem anônima, e misturam mitos de criação de heróis com a própria história da sociedade nativa. Diferentes tribos também possuem diferentes histórias de criação do mundo e do universo, como a Gênese da tribo Blackfeet. Outro grupo cuja importância é crescente nesse período inicial da colonização dos Estados Unidos é o dos negros, cuja presença na América se fazia através da escravidão. Eles vinham trazidos por navios ingleses que partiam para a África, capturavam os escravos e os deixavam nas colônias americanas, para lá buscar algodão, tabaco e outros produtos. A escravidão na América durou até 1861, mas até lá os negros viviam em condições degradantes de servidão, já que não eram considerados capazes das mesmas atividades sociais e intelectuais que os brancos e, portanto, não merecedores do termo cidadão. Esses grupos, todavia, permanecem sempre à margem da sociedade branca e protestante, que espalha por todas as treze colônias seu estilo de vida e seus ideais de sociedade. Sociedade esta cuja mais importante característica é a presença da crença religiosa puritana em todas as esferas, da política ao lazer. É o puritanismo que molda a vivência dos cidadãos dos Estados Unidos e serve de impulso para os primeiros textos escritos em solo norte-americano.

A literatura colonial: o puritanismo e o Great Awakening O puritanismo é a força motriz da sociedade norte-americana. É através dos ideais norte-americanos que os primeiros peregrinos constroem não só escolas, igrejas e universidades: eles constroem também uma ideia da América. Os Estados Unidos são mais do que um novo lar para esses colonos – são uma região onde eles finalmente poderão construir a “nova Canaã” bíblica, já que eles acreditam ser as pessoas escolhidas por Deus para concretizar um reino de prosperidade na terra seguindo fielmente às leis cristãs. Na Europa, os puritanos muito sofreram com a perseguição religiosa, já que como adeptos do protestantismo calvinista, renegavam a doutrina do catolicismo e do anglicanismo, as duas religiões predominantes da Inglaterra. Vários puritanos chegaram a ser torturados e até mesmo enforcados por exercer a sua fé. Mesmo dentro de sua própria religião, existiam diferenças nas formas com que as pessoas deveriam seguir os ensinamentos da Bíblia. Isso se dava porque, diferen18

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temente do catolicismo (em que predomina uma interpretação dos textos bíblicos e se deve respeitar a palavra do Papa), o puritanismo admite leituras pessoais e individuais da Bíblia, fazendo com que formas de entendimento distintas surjam de mesmos textos religiosos. Assim, dentro do movimento puritano surgem diferentes segmentos como os amish e os quakers, que possuem uma outra visão de como as lições das parábolas da Bíblia devem ser incorporadas no seu cotidiano. Alguns preceitos religiosos estabelecidos por Calvino, entretanto, estavam presentes na maior parte da sociedade puritana, dentre eles, a ideia de que o pecado original manchou toda a existência humana, e por isso o homem era naturalmente corrupto e sujeito à maldade. Os puritanos também acreditavam que o sacrifício de Jesus acabou por garantir o perdão de Deus, mas esse perdão não é estendido a todos os homens – só alguns eleitos o ganhariam. Além disso, é clara no puritanismo a ideia de que Deus escolhe, desde o princípio dos tempos, aqueles que vão para o céu e aqueles que vão para o inferno. É interessante comparar e contrastar os dogmas puritanos e católicos, especialmente ao considerarmos como a influência religiosa se fez tão presente no período colonial das Américas. De forma geral, o catolicismo se volta mais para o mundo após a morte, em que Deus julga-nos pelos atos que tivemos em vida. Já a vida puritana se concentra nas provas terrenas da benção de Deus, através do trabalho e da prosperidade. O puritanismo também acredita que o bom cristão é aquele que vive bem com os frutos do trabalho, produzindo, através de seu esforço e seus méritos, seus meios de subsistência e conforto. Para o catolicismo, existe uma visão subjacente de que o trabalho é punição, e de que a riqueza carrega em si um estigma negativo, uma culpa. Essas crenças calvinistas estiveram presentes em diversos estágios da colonização dos Estados Unidos. Os puritanos construíram seus vilarejos e depois suas cidades acreditando que assim estariam realizando, através de seu trabalho, o desejo de Deus de criar um novo paraíso, onde os homens viveriam seguindo as leis bíblicas. Assim sendo, o próprio governo tinha o dever de fazer as pessoas obedecerem à vontade divina. Existiam leis, por exemplo, que obrigavam as pessoas a irem à igreja, ou que puniam adúlteros. Tal comunhão entre religião e governo foi crucial para que um episódio como o dos julgamentos das bruxas no vilarejo de Salem fosse permitido. Um dos mais vergonhosos momentos da história dos Estados Unidos, a série de julgamentos e execuções de dezenas de colonos por bruxaria ocorridos em 19

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Salem, Massachusetts, hoje é visto como consequência dos excessos da presença puritana na administração das colônias. Por outro lado, esse sentido de autodeterminação e trabalho recompensado ajudou a estabelecer ideais de independência e liberdade que os norte-americanos consideram seus principais legados para o mundo ocidental. É através da experiência puritana, com sua promessa de felicidade e recomeço, que os Estados Unidos se formam sob a égide (amparo) do american dream (sonho americano) – em linhas gerais, a ideia de que qualquer pessoa, não importa o seu passado ou condição social, pode ser bem-sucedida. É através da literatura que os homens e mulheres recém-chegados a essa nova terra de oportunidades, mas também de perigos, iriam definir a América. As colônias seriam o local onde não só a fé puritana seria testada, mas também a língua inglesa e suas narrativas. Com seus textos, os primeiros escritores dos Estados Unidos procuravam compreender e descobrir a natureza e os propósitos desse novo mundo que se apresentava a eles. Uma das figuras mais proeminentes deste período inicial foi William Bradford (1590-1657). Eleito governador da colônia de Massachusetts por várias vezes, Bradford também tem uma enorme importância histórica por ser um dos idealizadores do chamado Mayflower Compact, o primeiro documento oficial composto pelos peregrinos da colônia de Plymouth. A mais importante obra de William Bradford, contudo, foi Of Plymouth Plantation, um diário pessoal escrito entre 1620 e 1647, narrando a permanência dos colonos na região de Massachusetts. O diário de Bradford conta a história da partida do Mayflower, a difícil viagem, sua chegada na América e o posterior povoamento e desenvolvimento da colônia. Of Plymouth Plantation é uma obra extremamente rica por dois motivos fundamentais. Primeiramente, porque é o mais vívido e detalhado documento descrevendo o cotidiano, os problemas e o progresso em uma das mais importantes das treze colônias no século XVII; a outra razão para a natureza complexa dos escritos de Bradford é a mescla desse aspecto factual com os comentários e as interpretações do autor, o que leva a um entendimento mais completo do período. Dessa forma, enquanto do ponto vista histórico, Of Plymouth Plantation pode ser considerada como anais do período colonial; do ponto de vista literário os diários de William Bradford são um material que atestam o estilo e a linguagem de formação da literatura norte-americana.

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O subtexto dos escritos dos diários indica uma forte influência dos ideais do protestantismo calvinista, especialmente no que concernem aos objetivos puritanos para a América. A narrativa de Bradford em muito lembra as grandes narrativas bíblicas, com a busca da Terra Prometida pelo povo eleito, sendo guiado pela mão divina em sua longa jornada. O estilo e a linguagem dos escritos de Of Plymouth Plantation é aquele característico de todas as expressões artísticas realizadas por puritanos: simples e livre de adornos. Bradford afirma que seus relatos vão atestar apenas a “simples verdade”. Essa crença na unicidade dos fatos e no que é naturalmente verdadeiro é um reflexo da presença dos ensinamentos da Bíblia no raciocínio do puritanismo, em que é bem clara a distinção do que é certo e errado. Como o próprio William Bradford pôde ver posteriormente, contudo, a verdade não se mostrou de forma tão simples assim. À medida que os colonos se estabelecem de forma mais bem sucedida na América e novas gerações sucedem os “Pais Peregrinos”, a criação de uma estrutura comercial e lucrativa, o acúmulo de terras e a busca pelo sucesso econômico são para o autor um distanciamento do sonho de uma comunidade perfeita sob as leis de Deus. Assim, ao final de Of Plymouth Plantation, a escrita de Bradford adquire um tom de lamento e decepção, já que mais e mais as ações das novas gerações se afastam dos ideais dos primeiros puritanos que desembarcaram do Mayflower. Sobre essa nova perspectiva da vivência puritana nas treze colônias, o escritor Malcolm Bradbury afirma: The puritans persist in writing for themselves a central role in the sacred drama God had designed for man to enact on the American stage, the stage of true history. In that recurrent conflict between the ideal and the real, the utopian and the actual, the intentional and the accidental, the mythic and the diurnal, can be read […] an essential legacy of the puritan imagination to the American mind. (BRADBURY; ROLAND, 1992, p. 13-14)

A Nova Inglaterra (região nordeste da América do Norte) vinha então crescendo e, neste processo, procurava conciliar os preceitos bíblicos com o surgimento de novas formas de relacionamento em sociedade. Se William Bradford tratou dessa tensão através de entradas em seu diário, outros autores viram a situação como uma grande oportunidade para expressar sua subjetividade e imaginação poética. A mais bem sucedida nesta tarefa foi Anne Bradstreet (1612-1672), reconhecida até hoje como um dos maiores nomes da poesia, não só norte-americana, mas de toda a língua inglesa. Nascida na Inglaterra, Bradstreet chega acompanhada

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de seu marido ao novo continente em 1630. Embora seu pai e seu marido tivessem fortes ligações políticas na América (ambos foram governadores da Baía de Massachusetts), esse não é um aspecto particularmente importante nos textos de Anne Bradstreet. Grande parte da riqueza de seus trabalhos poéticos encontra-se na forma que ela escreveu sobre a atmosfera doméstica da vida puritana. Com extrema sensibilidade ao tratar das adversidades presentes no cotidiano do novo continente e com um tom metafísico que a permite ultrapassar a mera descrição de eventos, Bradstreet desperta interesse não só pela importância histórica, mas também pela qualidade de sua escrita. Os poemas de Anne Bradstreet atestam de forma clara a complexidade da realidade puritana. Sua escrita revela um pensamento livre, dotado de considerável conhecimento poético (era admiradora de grandes poetas ingleses como Philip Sidney e Edmund Spenser), mas que contrasta com a rigidez das regras puritanas, especialmente quando se considera o papel de submissão a que as mulheres eram relegadas. As regras rigorosas do puritanismo, pelo contrário, não ofuscam o talento de Bradstreet. Seus poemas sobre o cotidiano e acontecimentos marcantes do período são sempre tocantes porque, através deles, a autora reforça sua fé nos ideais divinos em busca de consolo, proteção ou coragem. Os trabalhos mais reconhecidos de Bradstreet, no entanto, são aqueles em que a autora celebra o matrimônio como instituição, reafirmando o profundo amor que tinha por seu marido, Simon. Como o marido costumava ficar longe em viagens de trabalho, a autora dedicava-lhe grande parte de seus poemas para aplacar a dor da distância. Um dos mais famosos, To My Dear and Loving Husband, aborda o relacionamento do casal ligado a elementos da natureza, como se o próprio amor de marido e mulher fosse necessário a um equilíbrio natural das coisas: If ever two were one, then surely we. If ever man were loved by wife, then thee; If ever wife was happy in a man, Compare with me, ye women, if you can. I prize thy love more than whole mines of gold Or all the riches that East doth hold. My love is such that rivers cannot quench, Nor ought but love from thee, give recompense. Thy love is such I can no way repay, The heavens reward thee manifold, I pray. Then while we live, in love let’s so persevere That when we live no more, we may live ever. Anne Bradstreet. 22

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Curiosamente, não foi por vontade própria que Anne Bradstreet se tornou a primeira poetisa do novo continente a ter seus trabalhos publicados. Na verdade, foi seu cunhado que levou os manuscritos de seus poemas para a Inglaterra e lá os teve publicados sob o título de The Tenth Muse Lately Sprung Up in America, em 1650. Seus trabalhos desde então permaneceram cruciais para um maior entendimento do período colonial e para o despertar de uma sensibilidade metafísica que tanto influenciaria outros poetas americanos nos séculos seguintes. A mais popular produção literária do período puritano, no entanto, não foi nem o relato em forma de diário e nem a poesia – foi o sermão. Considerando a presença das crenças e do estilo de vida puritano em todas as esferas da sociedade, nada mais natural que a forma de expressão máxima da América colonial fosse a produção de textos religiosos para serem lidos nas pregações. O centro da vida puritana era a igreja, e era lá que um dos atos mais essenciais para o homem cristão acontecia: ouvir os sermões. Dada a natureza do puritanismo, toda a atenção da cerimônia religiosa se voltava não para um altar, mas para o púlpito; a força da fé se revelava não por imagens, mas pela palavra. O sermão atinge o ápice de sua popularidade durante o movimento chamado de Great Awakening (Grande Despertar). Fenômeno sociorreligioso ocorrido no século XVIII, o Great Awakening foi uma reação por parte de pastores e homens religiosos contra o formalismo a que o puritanismo estava sendo submetido, com seus principais ideais sendo esquecidos ou adquirindo pouca importância. Assim, pastores itinerantes iam de cidade em cidade pregando, de forma carismática, sermões que em muito exaltavam os fiéis e renovavam sua fé. Apesar de vários historiadores afirmarem que o Great Awakening não foi um movimento organizado, não há como negar que a necessidade por parte de uma nova geração de pregadores foi essencial para revitalizar o puritanismo. Uma das mais importantes figuras não só do Great Awakening mas de toda a América Colonial foi Jonathan Edwards (1703-1758). Pastor, intelectual e teólogo, ele é considerado um dos símbolos do puritanismo na América. Uma análise artificial pode classificar Edwards como um estereótipo do rígido pregador puritano que, do alto de seu púlpito, incutia o medo e a culpa nos fiéis através de exagerados sermões. Um olhar mais atencioso, todavia, indica que os textos de Edwards (apesar de ratificarem a doutrina puritana do homem pecador e de um Deus punitivo) também partilham muito da herança de John Locke e Isaac Newton, dois nomes cruciais do racionalismo inglês que, entre outros pressupostos, acreditavam que o homem poderia trilhar o caminho da bondade. 23

Literatura Norte-Americana

É importante lembrar que os sermões são, essencialmente, textos para serem lidos em público. Jonathan Edwards talvez tenha sido o pastor que melhor entendeu esse propósito da pregação, já que seus textos imediatamente estabelecem com quem os ouve uma ligação emocional pouco comum em outros sermões do período. Esses escritos de Edwards seguem, em sua maior parte, o formato clássico do sermão puritano: primeiramente há o texto, (i.e.)isto é, a passagem da Bíblia que vai servir de tópico central do trabalho escrito; a seguir, aparece a doutrina, i.e. a lição que deve ser apreendida do texto; a terceira parte é a das razões, i.e. provas ou fatos que confirmam a doutrina; finalmente, aparecem os usos, i.e. a aplicação da doutrina por parte dos fiéis. Utilizando essa estrutura clássica, o autor enfatiza o caráter irado de Deus e o pecado inerente a todos os homens, que já nascem culpados. Essa atitude calvinista conservadora, no entanto, é aliada ao pensamento mais racionalista de Locke. Assim, Edwards também acredita, em seus sermões, que o homem pode se aperfeiçoar e melhorar seus traços de caráter. O sermão mais marcante de Jonathan Edwards é Sinners in the Hands of an Angry God. Nesse texto, dirigido a uma congregação em Massachusetts, Edwards se utiliza de todo um arsenal imagístico para traduzir para os fiéis o poder e a ira de Deus que, por um mero capricho, pode lançar todos os pecadores às fornalhas do inferno. A presença dos homens no plano terreno, afirma Edwards, se dá apenas pelo prazer de Deus, porque nada o impede de fazer com que os homens impuros tenham o chão aberto sobre eles para que caiam nas chamas eternas infernais. Sinners in the Hands of an Angry God ilustra um dos pontos centrais do puritanismo (levado ao extremo pelos pastores do Great Awakening): o poder de Deus está sempre em eterno contraste com a devassidão e a maldade humana. Essa tensão é consequência do pecado original, mas também é a grande causadora da culpa que atormenta o homem. Por outro lado, é essa mesma culpa que leva o homem a buscar a redenção, o trabalho e o recomeço. Assim os Estados Unidos, em seu começo, constroem toda uma organização social em que a religião é ao mesmo tempo uma força motriz, mas também um agente regulador de seu desenvolvimento. As lições da era puritana permanecem até hoje no imaginário norte-americano, promovendo um material vastíssimo para que a literatura do país se tornasse uma das mais ricas e complexas do mundo.

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Literatura colonial e a América puritana

Texto complementar Sinners in the hands of an angry God (EDWARDS, 1989)

The wrath of God is like great waters that are dammed for the present; they increase more and more, and rise higher and higher, till an outlet is given; and the longer the stream is stopped, the more rapid and mighty is its course, when once it is let loose. It is true, that judgment against your evil works has not been executed hitherto; the floods of God’s vengeance have been withheld; but your guilt in the mean time is constantly increasing, and you are every day treasuring up more wrath; the waters are constantly rising, and waxing more and more mighty; and there is nothing but the mere pleasure of God, that holds the waters back, that are unwilling to be stopped, and press hard to go forward. If God should only withdraw his hand from the flood-gate, it would immediately fly open, and the fiery floods of the fierceness and wrath of God, would rush forth with inconceivable fury, and would come upon you with omnipotent power; and if your strength were ten thousand times greater than it is, yea, ten thousand times greater than the strength of the stoutest, sturdiest devil in hell, it would be nothing to withstand or endure it. The bow of God’s wrath is bent, and the arrow made ready on the string, and justice bends the arrow at your heart, and strains the bow, and it is nothing but the mere pleasure of God, and that of an angry God, without any promise or obligation at all, that keeps the arrow one moment from being made drunk with your blood. Thus all you that never passed under a great change of heart, by the mighty power of the Spirit of God upon your souls; all you that were never born again, and made new creatures, and raised from being dead in sin, to a state of new, and before altogether unexperienced light and life, are in the hands of an angry God. However you may have reformed your life in many things, and may have had religious affections, and may keep up a form of religion in your families and closets, and in the house of God, it is nothing but his mere pleasure that keeps you from being this

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moment swallowed up in everlasting destruction. However unconvinced you may now be of the truth of what you hear, by and by you will be fully convinced of it. Those that are gone from being in the like circumstances with you, see that it was so with them; for destruction came suddenly upon most of them; when they expected nothing of it, and while they were saying, Peace and safety: now they see, that those things on which they depended for peace and safety, were nothing but thin air and empty shadows.

Dicas de estudo O site da Biblioteca do Congresso Norte-Americano tem análises bem completas e interessantes sobre o período colonial dos Estados Unidos, incluindo textos de fundação do país e biografias dos Founding Fathers. Disponível em: HYTNER, Nicholas. As Bruxas de Salem. 1992. Baseado na peça do dramaturgo Arthur Miller, este filme concentra-se no julgamento e execução de vários colonos na colônia de Salem no fim do século XVII, acusados de bruxaria. Exemplo mais famoso dos excessos do puritanismo, esse triste episódio da história dos Estados Unidos é sempre lembrado quando o país encontra-se envolto em uma atmosfera de perseguição e intolerância.

Atividades 1. Como os escritos de John Smith serviram para construir uma visão particular da América no imaginário europeu?

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Literatura colonial e a América puritana

2. Qual a importância do puritanismo para o desenvolvimento da literatura dos EUA?

3. Como a passagem do sermão Sinners in the Hands of an Angry God (texto complementar) ilustra a relação de Deus com os pecadores de acordo com o puritanismo?

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O período revolucionário Se no século XVII a América começa de forma gradual a desenvolver uma literatura baseada, entre outros aspectos, no choque civilizatório entre o Velho e o Novo Mundo, no século XVIII essa literatura vai ter como matéria-prima uma nova forma de pensamento que levará a grandes mudanças políticas – especialmente à independência dos Estados Unidos. Este foi um período de muita turbulência na Europa, com diversas guerras e atritos políticos que levaram a diversas mudanças no governo inglês, o que acabou afetando diretamente a relação que a Inglaterra tinha com as colônias. Eventualmente, foi o conflito de interesses entre o governo inglês e os políticos e pensadores da América (altamente influenciados por uma perspectiva iluminista) que levou ao desejo das colônias declararem independência. Foi um processo muito difícil e trabalhoso – não só pelo inimigo externo (a Inglaterra), mas também pela desconfiança dentro do próprio território com relação à criação de um país único formado por treze colônias diferentes. A literatura dos Estados Unidos foi mais que influenciada por essa agitação política – ela exerceu um papel fundamental na divulgação e consolidação das ideias revolucionárias que davam legitimidade à independência. Foi com essa literatura, altamente baseada em conceitos racionais, mas também tendo a rebelião contra a injustiça como uma questão central, que uma nação finalmente se constituiu.

Os conflitos com a Inglaterra e a luta pela independência Em meados do século XVIII, as colônias da América se encontravam numa situação bem diferente daquela que os primeiros peregrinos viram quando desembarcaram do Mayflower em 1620. Os primeiros povoados já tinham se tornado grandes cidades, não só em termos de extensão, mas

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também em número de pessoas: na década de 1760, por exemplo, haviam 1,5 milhões de pessoas nas treze colônias – número seis vezes maior que em 1700. Politicamente, as colônias já se encontravam em um confortável nível de organização. Depois de décadas de experiência de governo, os americanos já haviam se acostumado a uma estrutura colonial na qual eles possuíam uma certa autonomia política. Em termos econômicos, a América também se encontrava em um estágio bem desenvolvido. As colônias do norte estabeleceram, por um lado, um forte mercado interno (com a presença de manufaturas) e por outro lado, exportavam peles e construíam navios para serem vendidos na Europa. As colônias do sul também tinham um importante papel econômico, pois delas é que saíam o principal produto de exportação das colônias: o tabaco. Dessa forma, as treze colônias desfrutavam de um grau de liberdade e autonomia pouco visto em outras regiões das Américas. Essa prosperidade e capacidade de se autogovernar serviu para criar entre os colonos a sensação de que todos faziam parte de um grande projeto – o projeto americano. Eles estavam concretizando, de certa forma, o ideal puritano de construir uma nova sociedade, onde um “povo eleito” viveria em paz e igualdade. Por mais que as treze colônias tivessem diferenças entre si (e em especial se compararmos as da região norte com as da região sul), começa a se formar um senso de nacionalidade até então inédito entre os colonos. As razões internas para esse crescente nacionalismo vão se encontrar então com um motivo externo para unir ainda mais a população: um inimigo em comum, a Inglaterra. A Inglaterra, na metade do século XVIII, vinha de um grande conflito em terras norte-americanas: foi a chamada Guerra dos Sete Anos (1756 – 1763). Neste confronto, a França perde seu domínio sobre extensas faixas de terra que possuía na América do Norte – entre elas, toda a região em torno do rio Mississipi e o atual território do Canadá. O fim da Guerra dos Sete Anos também serviu, de certa forma, para marcar o fim do velho sistema de colonização inglês. A ideia de dotar as colônias de uma considerável autonomia e de haver pouca influência da Coroa britânica em assuntos que tivessem relação exclusivamente à população da América é abandonada. Passa a haver, por parte da Inglaterra, um maior controle, em diversos aspectos, da vida colonial norte-americana. Diversos fatores levaram a essa perda de liberdade política e econômica das colônias inglesas. Primeiramente, o domínio territorial britânico na América au30

O período revolucionário

mentou consideravelmente. O que antes era uma pequena faixa de terra beirando o Atlântico (as treze colônias), tinha se tornado toda a atual região do Canadá e a região em torno do rio Mississipi. Para manter o controle sobre essa extensa área, a estratégia de colonização antiga, utilizando empresas privadas para levar colonos, não seria bem sucedida. Além disso, os ingleses teriam de lidar dessa vez não com separatistas religiosos, mas com toda uma nova cultura indígena presente nas novas regiões, assim como a população católica que havia sido colonizada pelos franceses mais ao norte. As consequências da Guerra dos Sete Anos, em especial, também afetaram de forma direta a tranquilidade entre a Inglaterra e as colônias. Com o fim da guerra, várias tropas britânicas permaneceram em território norte-americano, o que aumentava a presença inglesa e servia para intimidar os colonos. Tributos maiores também foram impostos para manter os soldados na América. A interferência britânica em assuntos internos das colônias, até então pouco vista, passa a ser a regra. Um dos principais conflitos nesse aspecto foi o desejo de expansão por parte dos colonos para as novas regiões conquistadas, em especial aquelas que se estendiam até o rio Mississipi. Inicialmente, vários confrontos surgiram entre indígenas e colonos, até que em 1763 o rei George III da Inglaterra, por decreto, afirma que os povos nativos têm soberania sobre as novas áreas anexadas a oeste. Essa decisão do rei procura não só evitar novas guerras entre índios e colonos (o que dificultaria a consolidação do império britânico), mas também garantir o controle administrativo dessa imensa região ainda pouco explorada. Assim, os colonos norte-americanos são proibidos de migrar para o oeste e têm sua autonomia altamente ameaçada. Mudanças no governo e na economia britânica também acabaram por afetar a forma com que as colônias eram administradas. Com a ascensão da burguesia a posições de poder, o comércio e a indústria inglesas começam um período de grande desenvolvimento, com a construção de fábricas e uma crescente necessidade de produção. Apesar de possuírem capital e mão de obra, faltava aos ingleses a matéria-prima, que vai ser buscada exatamente na América. Acentua-se então o caráter exploratório por parte da Inglaterra. Duas leis marcam de forma definitiva essa nova abordagem da colonização inglesa. A primeira é a Lei da Moeda, de 1764, que impede que títulos de crédito sejam emitidos nas colônias. Esses títulos eram usados como moeda corrente e já estavam em falta. Com a promulgação da lei, a economia colonial é altamente prejudicada. A segunda lei criada pelos ingleses é a Lei do Selo, de 1765. De 31

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acordo com essa lei, todos os jornais, panfletos, contratos, licenças e outros documentos públicos passariam a receber um selo de cobrança e, portanto, seriam taxados. É a partir dessa lei que ocorre a primeira organização das colônias para resistir e protestar contra os abusos da Inglaterra. Protestos e passeatas tomaram as ruas e a elite colonial (que viu seus negócios serem taxados) ficou contra os interesses do império britânico. Um massivo boicote aos produtos ingleses foi realizado, dando imenso prejuízo à Coroa. A Lei do Selo é então revogada e as colônias mostram a sua força. No entanto, nenhum evento foi mais fundamental para provar que as colônias estavam firmes em continuar garantindo seus direitos de escolha e liberdade que o chamado Boston Tea Party (Festa do Chá de Boston). O chá era um produto muito consumido nas colônias, não só devido à tradição inglesa, mas também pelo preço acessível. Todavia, quando a Inglaterra decide dar o monopólio da venda do chá exportado para a Companhia das Índias Orientais (que se encontrava à beira da falência), os preços inevitavelmente sobem. Como reação a mais esse abuso praticado pela Inglaterra, um grupo de homens disfarçados de indígenas sobe a bordo de navios ingleses ancorados no porto de Boston e despeja todo o carregamento de chá no mar. Esse episódio, conhecido como Boston Tea Party, fez com que a Coroa britânica tomasse uma série de medidas para punir essa rebeldia por parte dos colonos. Essas medidas, que ficaram conhecidas como Coercive Acts (Leis Coercitivas), incluíam o fechamento temporário do porto de Boston e a proibição de reuniões de assembleias. A situação entre a Inglaterra e as colônias norte-americanas chega então a um ponto crítico, e a ideia da independência dos Estados Unidos passa a ser articulada. Representantes das colônias se reúnem no Congresso Continental da Filadélfia para redigir um documento contra as medidas restritivas inglesas. Em resposta, a Inglaterra aumentou o número de tropas na América. Assim, em maio de 1775, é realizado o Segundo Congresso Continental da Filadélfia, em que é feita uma declaração de guerra. Três meses depois, o rei declara que as colônias norte-americanas encontram-se em estado de rebelião. É importante lembrar, porém, que ainda havia certa resistência por parte de vários setores norte-americanos quando se tratava da questão da independência. As elites sulistas não estavam totalmente seguras de que a separação com a Inglaterra seria benéfica, já que o grande mercado consumidor de seus produtos poderia ser perdido. Além disso, havia o receio de que o espírito de justiça 32

O período revolucionário

crescente poderia fazer com que os menos favorecidos (especialmente escravos) começassem a lutar também por direitos iguais. Em 4 de julho de 1776, é aprovada a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Os conflitos com a Inglaterra se intensificavam, e os Estados Unidos tinham formado o seu próprio exército – o chamado Exército Continental, sob liderança de George Washington, que seria posteriormente o primeiro presidente da nação. A vitória norte-americana nas batalhas não foi fácil. Contudo, três fatores foram cruciais para a vitória dos agora ex-colonos: maior conhecimento do território, o apoio das tropas sulistas (que os ingleses acreditavam que se manteriam leais) e a ajuda militar da França, Espanha e Holanda. Dessa forma, os Estados Unidos da América se tornam finalmente uma nação independente. As pequenas treze ex-colônias inglesas têm agora o direito de exercer a sua liberdade política, assim como a população adquire o direito de se expandir pelo território da América do Norte. Mais do que a criação de um país, a independência dos Estados Unidos garantiu o surgimento da primeira revolução moderna, que serviria de base para várias outras nações do ocidente.

Os “Pais Fundadores” O processo de independência dos Estados Unidos garantiu aos norte-americanos mais do que a libertação do controle inglês – ele serviu para unir todos os estados sob um objetivo comum e criar entre eles um vínculo crucial para que uma verdadeira nação, com uma identidade única, fosse estabelecida. Mais do que ter um grande inimigo em comum (a Inglaterra) e ideais que os associassem (liberdade, direitos iguais), era necessário que os Estados Unidos tivessem figuras públicas representativas que o público não só reconhecesse como indiscutivelmente icônicas, mas também as usassem como base para a criação de um novo homem norte-americano. Esses homens públicos foram fundamentais para a consolidação dos diferentes estados sob apenas uma nação. Símbolos do espírito republicano norte-americano, historicamente eles são conhecidos como Founding Fathers (Pais Fundadores). Essa ideia de “pais da nação” não é inédita na história norte-americana. Os primeiros habitantes das colônias receberam o nome de “Pais Peregrinos”. É interessante notar a necessidade de marcar o nascimento de uma nova fase da nação através dessas pessoas que, seja por sua coragem, determinação, ou senso de justiça, se destacam de todas as outras para iniciar um período de rompimento histórico com um passado de tirania. 33

Literatura Norte-Americana

No entanto, diferentemente dos peregrinos de Massachusetts que chegaram a bordo do Mayflower, esses Pais Fundadores vão servir como emblemas de um país recém-criado em busca de uma identidade própria. Eles serão consagrados pelo povo norte-americano como os grandes heróis da nação e servirão como exemplo de retidão e perseverança não só para políticos, mas para qualquer cidadão dos Estados Unidos. Os Pais Fundadores são reconhecidos como os homens que assinaram a Declaração de Independência em 1776, participaram como líderes da guerra revolucionária contra a Inglaterra, ou foram responsáveis pela criação da Constituição dos Estados Unidos, em 1787. Eles foram militares, proprietários de terra, mercadores, cientistas – e não coincidentemente, alguns deles se tornaram os primeiros presidentes daquele jovem país. Dentre os Pais Fundadores (cujo número quase chega a uma centena), três merecem destaque especial por sua contribuição militar, política e filosófica para a realização de um ideal norte-americano: George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.

Domínio público.

George Washington (1732-1799) foi uma das mais importantes figuras do período revolucionário norte-americano. Militar exemplar, participou na Guerra dos Sete Anos lutando contra os franceses e tornou-se símbolo máximo da vitória norte-americana sobre os ingleses durante a guerra pela independência. Foi o presidente da convenção que criou a constituição norte-americana e também tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos.

George Washington. 34

O período revolucionário

Washington é considerado um modelo para todos os presidentes norte-americanos pois, num período crucial do país, conseguiu um acordo de paz com a Inglaterra, reuniu todos os estados sob um único governo republicano e criou um banco nacional. Mesmo que representante da elite colonial (era latifundiário e proprietário de escravos), até hoje George Washington continua sendo um ícone da formação dos Estados Unidos. Contudo, se Washington foi responsável por organizar o governo norte-americano, Benjamin Franklin (1706-1790) criou grande parte do arcabouço filosófico e intelectual por trás dele. Talvez o nome mais significativo do século XVIII nos Estados Unidos, Franklin permanece até hoje como um ícone da política, da literatura e do pensamento norte-americano, não só pelo papel que desempenhou no processo de independência, mas também por possuir ideias novas que vão romper com a influência puritana e conceber ideais que permanecem no imaginário ocidental até hoje.

Domínio público.

Jornalista, cientista, diplomata e escritor, Benjamin Franklin nasceu numa família pobre de Boston para tornar-se uma das grandes mentes da história dos Estados Unidos. Começou a trabalhar escrevendo ensaios e gradualmente se tornou o mais bem-sucedido editor do século XVIII na América do Norte. Ele possuía seu próprio jornal (o Pennsylvania Gazette), e eventualmente publicava nele seus artigos e sátiras.

No entanto, uma das obras mais famosas de Franklin é o Poor Richard’s Almanac (Almanaque do Pobre Ricardo). O almanaque era provavelmente o tipo de publicação mais popular nos Estados Unidos no século XVIII. Espécie de revista que incluía diferentes tipos de informação (desde a previsão do tempo até piadas e receitas culinárias), o almanaque foi a forma de expressão que Franklin utilizou para articular seu ponto de vista de maneira bem-humorada, porém certeira. 35

Literatura Norte-Americana

O autor começou a publicar o Poor Richard’s Almanac em 1732 sob o pseudônimo de Richard Saunders e até o fim de sua publicação em 1758, ele foi o almanaque mais lido do período colonial. Para cada edição do almanaque, Franklin criava provérbios e frases de efeito para preencher os espaços da publicação. Em 1758 o autor coleta todos os ditados publicados nos 25 anos do Poor Richard’s Almanac e os reúne no ensaio intitulado The Way to Wealth (O Caminho para a Fortuna). Nesse ensaio, o personagem Father Abraham (Pai Abraão) se aproxima de um grupo de fregueses à porta de uma venda, esperando o momento de abertura do local. A partir daí, Father Abraham começa a disparar suas máximas sobre dinheiro, sucesso, prosperidade, trabalho e lazer. Pode-se dizer que Father Abraham é um alter ego de Benjamin Franklin, pois os conselhos proferidos pelo personagem são um reflexo direto do pensamento do autor. Franklin é uma “personificação do ideal prático americano” (NABUCO, 2000, p. 32) e sua visão de mundo serviu para criar uma das mais importantes contribuições do pensamento dos Estados Unidos para o ocidente: a ideia do self-made man, isto é, o homem que triunfa através do seu próprio esforço. Por isso os provérbios presentes em The Way to Wealth se estabelecem sobre dois pilares fundamentais: a frugalidade (ou seja, ser prudente e econômico) e o trabalho duro. Várias das máximas criadas por Franklin permanecem famosas até hoje no mundo todo, o que indica como essa tradição do pensamento norte-americano se tornou universal. Frases como “time is money” (tempo é dinheiro) ou “have you somewhat to do tomorrow, do it today” (o que tiver para fazer amanhã, faça hoje), entre outras, servem como exemplos da visão de mundo de Franklin, propagando uma perspectiva de sucesso tipicamente fabricada nos Estados Unidos. Ainda que essas ideias de Benjamin Franklin também sejam muitas vezes alvo de críticas (especialmente no que concerne à obsessão dos americanos pelo dinheiro e bens materiais), é inegável que os provérbios de seu almanaque servem como símbolos da estrutura capitalista e foram muito significativos no desenvolvimento de uma nova ideia de nação que estava surgindo. Franklin também se destacou como cientista e inventor, pois sua visão humanista ultrapassava a mera discussão de ideias – sua preocupação com o mundo e com as pessoas que nele habitavam o impeliam a tomar soluções práticas na resolução de problemas. Assim, Franklin inventa o para-raios e as lentes bifocais; idealiza uma nova teoria de eletricidade, provando que os raios são de natureza elétrica; funda a primeira biblioteca pública e o primeiro corpo de bombeiros da 36

O período revolucionário

Pennsylvania; concebeu inovadores mapas meteorológicos capazes de prever tornados e tormentas. Além disso, Benjamin Franklin foi um dos artífices da independência e pode-se dizer que sem sua presença ativa e sua perspicácia o processo revolucionário teria sido ainda mais difícil. Até 1775 Franklin representou os interesses das colônias na Inglaterra, chegando a ser visto como um dos principais propagadores da rebelião na América. Posteriormente, foi enviado à França com o objetivo de conseguir apoio para a iminente revolução. Mais do que ter auxiliado na realização da Declaração de Independência, Franklin também é o único dos Pais Fundadores a assinar os quatro documentos que propiciaram a criação dos Estados Unidos: além da Declaração de Independência (1776), o Tratado de Aliança com a França (1778), o Tratado de Paris (1782) que dava fim à guerra com a Inglaterra, e a Constituição Norte-Americana (1787). Com uma vida tão rica, o autor ainda deu aos Estados Unidos o que alguns críticos consideram o primeiro grande livro norte-americano: a Autobiografia de Benjamin Franklin. Esta obra, publicada postumamente, é o trabalho mais conhecido de Franklin e uma das mais lidas autobiografias do mundo. Na verdade, o livro praticamente estabelece a autobiografia como gênero literário, dando-lhe um estilo e formato próprios. Na Autobiografia, a escrita de Franklin é simples e direta, narrando desde os antecedentes puritanos de sua família até o papel que desempenhou na independência norte-americana. O livro tornou-se um exemplo da realização do American Dream (Sonho Americano), tendo Franklin como seu maior exemplo – de filho de pais pobres passando pelo sucesso no mercado editorial até ser um dos responsáveis pela criação da nação. A Autobiografia de Benjamin Franklin pode ser lida como uma obra que serve de exemplo de superação para os jovens norte-americanos, mas seu significado é ainda mais amplo: ela constitui o próprio processo de desenvolvimento dos Estados Unidos.

Os textos revolucionários Thomas Jefferson (1743-1826), juntamente com George Washington e Benjamin Franklin, forma o trio de notáveis entre os “Pais Fundadores” responsáveis pela criação e consolidação dos Estados Unidos assim que o país se torna independente. Jefferson, porém, destaca-se por pensar toda a estratégia social e intelectual que serão os pilares dessa nova nação. A visão nacionalista de Jefferson 37

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Domínio público.

– humanista, republicana, iluminista – vai estar presente em suas cartas, artigos, e especialmente no seu principal texto, o mais importante documento do século XVIII: a Declaração de Independência dos Estados Unidos.

Thomas Jefferson.

Diferentemente de Benjamin Franklin, Jefferson vinha de uma família proeminente da Virgínia. Depois de entrar na universidade, começa a ler avidamente e a colecionar livros com os quais monta uma imensa biblioteca (que posteriormente dariam origem à Biblioteca do Congresso Norte-Americano). Suas leituras são variadas, mas o jovem Thomas Jefferson desenvolveu um interesse particular por autores associados ao movimento iluminista europeu, o que de certa forma moldaria futuramente a forma através da qual os Estados Unidos seriam formados. O Iluminismo foi um período do pensamento ocidental em que, de forma geral, toda a experiência humana foi dominada pela presença da razão. Foi a época em que os grandes pensadores voltaram-se contra os preceitos religiosos e das formas de governo tradicionais para tentar explicar o mundo de uma forma científica. Os mistérios e milagres da Igreja dão lugar às explicações racionais de Newton e Descartes; as organizações sociais e políticas estabelecidas há séculos são substituídas por uma nova estrutura governamental, em que os princípios básicos são a liberdade e os direitos individuais. Também conhecido como Idade da Razão, o Iluminismo prima pela busca da ordem e da estabilidade através do empirismo – a ideia de que o conhecimento surge da experiência. Assim, o que antes era tido como inexplicável ou obscuro passa a ser investigado, pois acredita-se que o mundo pode ser explicado através de 38

O período revolucionário

evidências e experiências, especialmente através da observação e método científico. É sob esse paradigma que o pensamento revolucionário americano se forma. O mais influente de todos os filósofos iluministas foi John Locke (16321704). Parece uma grande ironia que foi exatamente um pensador inglês o responsável por dar às colônias a base intelectual para começarem o movimento de rebelião contra a Inglaterra. Mas fato é que suas principais teorias sobre o governo, a sociedade e a noção de propriedade terão um impacto profundo nos revolucionários norte-americanos e, especialmente, nos ideais de Thomas Jefferson presentes na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Vários dos pensamentos de Locke responderam diretamente aos anseios e necessidades da revolução norte-americana. Uma de suas mais importantes obras, Treatises of Civil Government (Tratados sobre o Governo Civil), de 1690, vai fornecer uma nova forma de organização político-social para aqueles que desejam se ver livres das amarras dos colonizadores. O principal conceito desenvolvido por Locke é o do contrato social. De acordo com este princípio, haveria um acordo implícito entre os governos e o povo com o objetivo de manter a ordem social e garantir a estabilidade de uma nação. Dessa forma, a população deveria abrir mão de alguns direitos e seguir certas leis, assim como o Estado deveria usar a estrutura governamental sem cometer abusos de poder. Pode-se dizer portanto que, de acordo com o contrato social, a legitimidade da autoridade do Estado é garantida apenas com o consentimento da população governada. Quando o contrato social é estabelecido e respeitado, o homem pode usufruir de seus direitos naturais, como a felicidade e a liberdade. Nota-se aqui uma diferença fundamental em relação ao pensamento calvinista presente durante o período puritano. Se para os protestantes calvinistas o homem já nasce mau, manchado pela culpa do pecado original, para o pensamento iluminista de Locke o homem nasce como uma tábula rasa (uma folha de papel em branco) – o que vai definir se ele se tornará bom ou mau é a sua experiência de vida. Esse conceito da tábula rasa, presente em Essay Concerning Human Understanding (Ensaio sobre o Entendimento Humano), também de 1690, faz possível a articulação de que os “homens bons” só seriam formados se inseridos em sociedades também “boas” – ordenadas, bem-estruturadas, com direitos e deveres definidos, ou seja, sociedades nas quais está presente o contrato social. Nessas sociedades, portanto, o homem tem o direito de ser livre, buscando a prosperidade e o bem-estar. 39

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As ideias de Locke sobre a humanidade e a sociedade são sintomáticas do período iluminista, em que a razão toma o lugar do místico e do inexplicável, especialmente no aspecto religioso. A noção de “direito divino dos reis”, através dos quais acreditava-se que os monarcas eram escolhidos por Deus para governar um povo, é refutada por Locke. No lugar da presença de Deus, o filósofo inglês coloca uma estrutura racional bem definida – o contrato social. Como todo acordo, todavia, o contrato social pode vir a ser quebrado. Se o Estado abusa de seu poder de governo, é incapaz de garantir à população a ordem social, ou seja, não garante aos cidadãos seus direitos naturais, é dever dos membros dessa sociedade organizar uma revolução e substituir o governo. Não é uma rebelião, mas uma luta em respeito à permanência do contrato social, à liberdade e à felicidade. Tais preceitos estabelecidos por John Locke vão fornecer um arcabouço filosófico para as colônias se libertarem do jugo (controle) inglês. A partir do pensamento iluminista, os revolucionários norte-americanos vão transformar o processo de independência dos Estados Unidos em algo muito maior: a luta do homem pela preservação de seus direitos mais básicos. Thomas Jefferson, como grande leitor que era, percebeu isso melhor do que qualquer outro dos Pais Fundadores da nação – e não é coincidência que foi ele o escolhido para redigir o texto básico da Declaração de Independência dos Estados Unidos. Nesse documento, o mais importante de toda a história norteamericana, Jefferson faz mais que anunciar ao seu povo e ao mundo o surgimento de uma nova nação – ele faz da independência norte-americana o símbolo máximo dos direitos naturais da humanidade. Em suas emblemáticas primeiras frases, a Declaração de Independência ecoa os pensamentos de Locke – remetendo diretamente ao princípio de contrato social – e transforma a luta contra a Inglaterra na luta universal do homem pelo seu próprio direito à vida: When in the Course of human events it becomes necessary for one people to dissolve the political bands which have connected them with another and to assume among the powers of the earth, the separate and equal station to which the Laws of Nature and of Nature’s God entitle them, a decent respect to the opinions of mankind requires that they should declare the causes which impel them to the separation. We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. – That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed, – That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it, and to institute new Government, laying its foundation on such principles and organizing its powers in such form, as to them shall seem most likely to effect their Safety and Happiness. (JEFFERSON, 1989, p. 689-691) 40

O período revolucionário

Jefferson estabelece, em seu texto, que é um direito do povo norte-americano tornar-se independente da Inglaterra, já que sua estrutura de governo não torna mais possível aos cidadãos garantirem seus princípios básicos de segurança e felicidade. Ao mesmo tempo documento oficial e texto revolucionário, a Declaração de Independência dos Estados Unidos é o ápice do pensamento filosófico norte-americano aliado a um senso prático de humanidade. A Declaração de Independência, no entanto, foi um produto não só da influência iluminista nos ideais revolucionários norte-americanos, mas também de uma sequência de outros textos escritos no século XVIII com o objetivo de inflamar a sociedade contra o domínio inglês. Esses textos revolucionários, de cunho propagandista, foram fundamentais no período que antecede a guerra com a Inglaterra e também durante o conflito em si. De toda a produção do período, o autor mais significativo em se tratando de convergir a população para o interesse comum da independência foi Thomas Paine (1737-1809). Nascido na Inglaterra, Paine foi um dos principais defensores da causa norte-americana. Após passar por uma série de crises financeiras e pessoais, o autor chega à América em 1774 com uma carta de recomendação de Benjamin Franklin e passa a trabalhar na Pennsylvania Magazine. O processo revolucionário começava a se desenvolver, com a Inglaterra endurecendo mais sua política controladora, prejudicando a autonomia e os interesses econômicos das colônias. Tomado pelo espírito rebelde da época, Paine publica em janeiro de 1776 um folheto de 50 páginas intitulado Common Sense (Senso Comum). Lançado quando os colonos ainda discutiam sobre como responder aos abusos de poder da Inglaterra, Common Sense propôs abertamente a separação com a Coroa britânica. O texto de Paine foi crucial para exaltar os revolucionários e apresentar argumentos que validassem a independência. O título do folheto remete à ideia central apresentada por Paine: as revoltas e os conflitos na América não seriam resolvidos com a submissão dos colonos às leis inglesas, quer eram notoriamente insultantes. A solução para o problema era a busca instintiva por um “senso comum”, o que ele afirma na primeira frase: “In the following pages I offer nothing more than simple facts, plain arguments and common sense.” (PAINE, 1989, p. 694) Essa atitude simples foi em parte a grande responsável pela popularização de Common Sense e sua rápida aceitação nas colônias. Com seu estilo direto e pontual, o autor ataca diretamente a monarquia inglesa, não só em relação aos 41

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tributos e leis impostas aos colonos, mas também tendo em vista a própria razão para a ida dos primeiros peregrinos para a América. This New World hath been the asylum for the persecuted lovers of civil and religious liberty from every part of Europe. Hither have they fled, not from the tender embraces of the mother, but from the cruelty of the monster; and it is so far true of England, that the same tyranny which drove the first emigrants from home, pursues their descendants still. (PAINE, 1989, p. 695)

Tal argumento, que relacionava a Inglaterra a um verdadeiro histórico de tirania, em muito serviu para despertar os ânimos revolucionários. De forma sistemática, Paine articula em seu texto as diferentes razões pelas quais a relação com a Inglaterra é extremamente prejudicial às colônias. Sobre a economia colonial, afirma: “Whenever a war breaks between England and any foreign power, the trade of America goes to ruin, because of her connection with Britain.” (PAINE, 1989, p. 696). Um dos pontos mais enfáticos levantados pelo autor, contudo, é o próprio desejo de Deus que essa união entre a Inglaterra e a América seja desfeita: The blood of the slain, the weeping voice of nature cries, ‘TIS TIME TO PART. Even the distance at which the Almighty hath placed England and America is a strong and natural proof that the authority of the one over the other, was never the design of Heaven [...] The Reformation was preceded by the discovery of America: as if the Almighty graciously meant to open a sanctuary to the persecuted in future years, when home should afford neither friendship nor safety. (PAINE, 1989, p. 696-697)

Assim, Paine associa o fato de a Inglaterra e o continente americano estarem separados por um oceano e o acontecimento da Reforma Protestante antes da descoberta do Novo Mundo a sinais divinos, indicando que a América deveria deixar de ser uma colônia. O ponto principal levantado por Thomas Paine em Common Sense é que apenas a independência será capaz de manter um estado de paz na América, já que se um acordo fosse feito com a Inglaterra ele seria inevitavelmente seguido por outros tipos de revoltas: But the most powerful of all arguments is, that nothing but independence, i.e. a continental form of government, can keep the peace of the continent and preserve it inviolate from civil wars. I dread the event of a reconciliation with Britain now, as it is more than probable that it will be followed by a revolt somewhere or other, the consequences of which may be far more fatal than all the malice of Britain. (PAINE, 1989, p. 700)

Assim, o autor estabelece a independência não só como o único caminho para a autonomia, mas também para a paz continental. Seis meses depois, a Declaração de Independência é assinada. A função desempenhada por Paine foi transformar o ideal de liberdade americana numa luta real pelo direito à soberania. 42

O período revolucionário

Os Estados Unidos constituem-se então como uma nação livre e autônoma, livres das amarras inglesas e procurando estabelecer suas próprias tradições através de uma identidade própria. Mas o que definiria esse novo homem norte-americano? Mais especialmente, de que natureza seria a cultura dos Estados Unidos? Qual o papel de uma literatura escrita na América? Essas seriam as questões que ecoariam por toda a nova república durante o século XVIII.

Texto complementar The way to wealth (FRANKLIN, 1989)

“Friends,” said he, “the taxes are indeed very heavy, and, if those laid on by the government were the only ones we had to pay, we might more easily discharge them; but we have many others, and much more grievous to some of us. We are taxed twice as much by our idleness, three times as much by our pride, and four times as much by our folly; and from these taxes the commissioners cannot ease or deliver us, by allowing an abatement. However, let us hearken to good advice, and something may be done for us; God helps them that help themselves, as Poor Richard says. “I. It would be thought a hard government, that should tax its people onetenth part of their time, to be employed in its service; but idleness taxes many of us much more; sloth, by bringing on diseases, absolutely shortens life. Sloth, like rust, consumes faster than labor wears; while the used key is always bright, as Poor Richard says. But dost thou love life, then do not squander time, for that is the stuff life is made of, as Poor Richard says. How much more than is necessary do we spend in sleep, forgetting, that The sleeping fox catches no poultry, and that There will be sleeping enough in the grave, as Poor Richard says. “If time be of all things the most precious, wasting time must be, as Poor Richard says, the greatest prodigality; since, as he elsewhere tells us, Lost time is never found again; and what we call time enough, always proves little enough. Let us then up and be doing, and doing to the purpose; so by diligence shall we do more with less perplexity. Sloth makes all things difficult, but industry all easy; and He that riseth late must trot all day, and shall scarce overtake his

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business at night; while Laziness travels so slowly, that Poverty soon overtakes him. Drive thy business, let not that drive thee; and Early to bed, and early to rise, makes a man healthy, wealthy, and wise, as Poor Richard says. “So what signifies wishing and hoping for better times? We may make these times better, if we bestir ourselves. Industry need not wish, and he that lives upon hopes will die fasting. There are no gains without pains; then help, hands, for I have no lands; or, if I have, they are smartly taxed. He that hath a trade hath an estate; and he that hath a calling, hath an office of profit and honor, as Poor Richard says; but then the trade must be worked at, and the calling followed, or neither the estate nor the office will enable us to pay our taxes. If we are industrious, we shall never starve; for, At the working man’s house hunger looks in, but dares not enter. Nor will the bailiff or the constable enter, for Industry pays debts, while despair increaseth them. What though you have found no treasure, nor has any rich relation left you a legacy, Diligence is the mother of good luck, and God gives all things to industry. Then plough deep while sluggards sleep, and you shall have corn to sell and to keep. Work while it is called to-day, for you know not how much you may be hindered to-morrow. One, to-day is worth two to-morrows, as Poor Richard says; and further, Never leave that till to-morrow, which you can do to-day. If you were a servant, would you not be, ashamed that a good master should catch you idle? Are you then your own master? Be ashamed to catch yourself idle, when there is so much to be done for yourself, your family, your country, and your king. Handle your tools without mittens; remember, that The cat in gloves catches no mice, as Poor Richard says. It is true there is much to be done, and perhaps you are weak-handed; but stick to it steadily, and you will see great effects; for Constant dropping wears away stones; and By diligence and patience the mouse ate in two the cable; and Little strokes fell great oaks.

Dicas de estudo O filme Jefferson em Paris (James Ivory, 1995) aborda uma das mais obscuras fases da vida do autor da Declaração da Independência dos Estados Unidos: antes de se tornar presidente, Thomas Jefferson teria tido um relacionamento com uma escrava que teria engravidado dele. O filme também traça um panorama histórico bem interessante do final do século XVIII, com foco na relação entre a França e os Estados Unidos. 44

O período revolucionário

O episódio do Boston Tea Party é tão marcante no ideal de formação dos Estados Unidos que possui até mesmo um próprio museu. Com documentação da época e até mesmo com as caixas de chá originais lançadas no porto de Boston pelos colonos, visitar o site do museu é ter um panorama bem completo dos primórdios do período revolucionário dos Estados Unidos. Disponível em http://www.bostonteapartyship.com/index.asp

Atividades 1. Quais foram as principais causas do início da guerra revolucionária contra a Inglaterra?

2. Como o pensamento iluminista influenciou as principais mentes por trás do processo de independência dos Estados Unidos?

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A prosa romântica Os Estados Unidos da América adquirem sua independência em 1776, no final do século XVIII. A guerra revolucionária com a Inglaterra garante aos ex-colonos a tão sonhada autonomia política e econômica capaz de garantir a esses agora cidadãos norte-americanos o direito à “vida, liberdade e à busca da felicidade”, como tão explicitamente está exposta em sua Declaração de Independência. Após essa ruptura no âmbito governamental, o próximo passo para essa jovem nação seria se autoafirmar e definir a sua identidade. Ao invés de se reconhecer pelo que não era (colônia ligada às tradições do Velho Mundo), havia chegado a hora de os Estados Unidos se reconhecerem pelo que eram. Essa compreensão da totalidade de seu potencial é adquirida através de uma nova literatura que começa a ser produzida na América. Essa produção literária vai desempenhar um imenso papel no posicionamento único que a cultura norte-americana terá no decorrer de todo o século XIX. Mas qual será a forma e, especialmente, o conteúdo dessa nova literatura que surge nos Estados Unidos? No âmbito da prosa, como os romances, os ensaios, os contos e as críticas servirão para representar de forma literária uma existência essencialmente norte-americana? Essas são perguntas que vão ecoar por todo o chamado “Romantismo” nos Estados Unidos – e os grandes escritores do período vão buscar as respostas através das brilhantes obras que produzem.

O ideal romântico e a construção da identidade norte-americana É no século XIX que surge a primeira grande geração de escritores nos Estados Unidos. Nomes como Washington Irving, James Fenimore Cooper, Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe, Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Herman Melville formarão o primeiro grupo de autores que vão

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dar legitimidade à prosa norte-americana e iniciarão uma tradição literária que vai influenciar autores não só na América, mas no mundo inteiro. O surgimento dessas grandes mentes que vão, pela primeira vez, consagrar elementos culturais notadamente norte-americanos num âmbito global, é consequência de dois aspectos distintos que ultrapassam os limites da literatura. Um é de caráter interno e sociopolítico: o desenvolvimento e a expansão territorial dos Estados Unidos. Outro é de caráter externo e artístico: a presença de uma estética romântica na mentalidade europeia. No século XIX, a população norte-americana aumenta em quase cinco vezes, chegando a mais de 30 milhões de habitantes. Grande parte dessa população parte para as novas terras conquistadas a oeste e o poder se descentraliza, com a costa do Atlântico perdendo sua posição privilegiada de centro do poder e da cultura dos Estados Unidos. Essa expansão territorial era justificada pela ideia do Destino Manifesto. De acordo com esse conceito, os Estados Unidos tinham o direito divino (ou seja, era o desejo de Deus) de se expandir por praticamente toda a América do Norte. Surge um novo nacionalismo, em que os Estados Unidos passam a representar toda a “América”. Seus ideais de liberdade e felicidade são protegidos pela Providência. Industrialmente, o país crescia de forma impressionante. As primeiras linhas de produção em fábricas eram estabelecidas, assim como novas invenções (o telégrafo, a máquina de costura) surgidas nos Estados Unidos alavancaram seu desenvolvimento. As cidades prosperavam, e a população do campo cada vez mais migrava para os centros urbanos. O nível educacional do país também passava por uma onda de crescimento, em que cada vez mais revistas, jornais e livros eram publicados para serem consumidos por um ávido público leitor. No entanto, com a popularização do romance, mais escritores passam a ter seus trabalhos publicados, inicialmente em capítulos inseridos em revistas semanais. É assim que os grandes nomes da literatura norte-americana começam a ter seu trabalho reconhecido. Uma das maiores influências para a literatura norte-americana do século XIX, no entanto, teve origem na Europa – o Velho Continente – cujas tradições os ex-colonos tanto ansiavam por romper. Foi especialmente (e ironicamente) na Inglaterra que o mais importante movimento literário daquele período se desenvolveu: o Romantismo. Na verdade, o Romantismo inglês surge ao final do século XVIII e permanece relevante durante o século seguinte. As ideias básicas do pensamento romântico, ao chegarem à América, alteram profundamente a relação que o homem desse Novo Continente tinha consigo mesmo e com a natureza. 48

A prosa romântica

De modo geral, as características básicas do Romantismo podem ser descritas como “entusiasmo moral, fé no valor do individualismo e na percepção intuitiva, e a ideia de que o mundo natural é uma fonte de bondade e a sociedade é uma fonte de corrupção.” (McMICHAEL et al., 2001, p. 441). A crença no valor do individual em muito combinava o histórico revolucionário do país, especialmente a sua luta pelos direitos naturais de todo o homem. Da mesma forma, uma ênfase nos aspectos da natureza era essencial ao período de expansão que a nação vivia. Ao cruzar o Vale do Rio Mississipi e se desbravar por entre montanhas, planícies e rios desconhecidos, o explorador norte-americano pôde se deparar com uma variedade natural totalmente nova que merecia ser interpretada e discutida, servindo de pano de fundo para a criação de uma literatura. A mais profunda contribuição do movimento romântico para a literatura norte-americana do século XIX, contudo, foi a já mencionada fé “na percepção intuitiva”. O Romantismo é a escrita da emoção e da subjetividade. Assim, os grandes autores do período rejeitavam fontes de conhecimento fundadas exclusivamente na razão ou na experiência científica; pelo contrário, o aspecto misterioso da natureza, os eventos inexplicáveis e a abundância de emoções era o que mais interessava à literatura da época. Isso vai ser importante até mesmo no aspecto religioso, em que o intelectualismo calvinista vai dar lugar a ideais de sociedade em busca de um encontro com Deus através do que há de natural no mundo. Os preceitos e as características do Romantismo, surgidos na Europa para servirem de resposta a um neoclassicismo decadente, ganham uma outra conotação ao chegarem aos Estados Unidos: Coming to the United States at the moment of an awakening national consciousness, (the Romantic movement) assumed an even more ardent nationalism than it had in the older countries abroad. This attitude was expressed in the denial of tradition and of the European inheritance, a delight in the grand scale and the infinite mysteries of nature on the unexplored western continent and a pride in the “American ideas” which had so successfully created the Republic [...] The creation of an American myth out of the new materials was its first and greatest task. (SPILLER, 1967, p. 23)

A partir da citação acima, podemos entender que a inspiração no individualismo e em elementos da natureza tinha um propósito bem específico quando pensamos no Romantismo inglês. Autores como William Wordsworth e Percy Shelley buscavam, entre outros aspectos, um contraponto ao racionalismo exacerbado e aos problemas sociais causados pela revolução industrial na Inglaterra. Nos Estados Unidos a situação é bem diferente. O século XIX foi o período em que os Estados Unidos, após o processo de independência, tentam achar uma forma de representação artística que seja capaz de exprimir uma identidade 49

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nova, norte-americana, condizente com seus ideais revolucionários. É o momento em que a cultura torna-se a expressão máxima do nacionalismo, e a arte torna-se o elemento crucial para definir o contexto dessa jovem nação. As músicas têm um forte apelo patriótico; a pintura tem como tema as paisagens da América do Norte; a arquitetura é monumentalmente inspirada em ideais gregos republicanos, em contraste com o estilo gótico inglês. A literatura deixa de ter temas políticos e religiosos como suas bases principais – “no lugar de sermões e manifestos, surgem romances, contos e poemas” (McMICHAEL et al., 2001, p. 441). Essa onda nacionalista, ao unir-se com as principais ideias românticas, vai ser a força motriz na formação de uma literatura essencialmente norte-americana que vai dar voz aos anseios e pensamentos de toda uma geração. O amadurecimento literário dos Estados Unidos, todavia, se dará de forma gradativa. O romance foi a forma literária adotada pela maioria dos autores da época, e as primeiras obras norte-americanas ao final do século XVIII ainda procuravam um estilo de narrativa único, que pudesse ao mesmo tempo interessar e representar aos leitores da época. O primeiro autor que atinge esse propósito é Washington Irving (1783-1859). Pode-se dizer que Irving é o escritor que desperta o interesse do mundo para a produção literária que estava se desenvolvendo nos Estados Unidos. Ainda assim, as obras do autor funcionam como um meio termo entre a sensibilidade romântica importada da Inglaterra e da Alemanha e a necessidade de construir uma mitologia na qual uma narrativa norte-americana pudesse se sustentar. Muitos autores consideram Irving um verdadeiro embaixador das letras, buscando “estabelecer conexões entre a escrita norte-americana e a tradição europeia.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 92) O primeiro triunfo de Washington Irving é exatamente uma obra, em tom irônico, que procura arquitetar uma tradição para a mais nova metrópole dos Estados Unidos: Nova York. Como nativo da cidade, Irving conhecia muito bem a origem holandesa da região e suas excentricidades. Assim, sob o pseudônimo de Diedrich Knickerbocker, o autor publica em 1809 History of New York. Trabalho de narrativa histórica, mas ao mesmo tempo satírico, esse livro dá origem a uma geração de escritores inspirados pela paródia de Irving que viria a ser conhecida como a “Escola Knickerbocker” de literatura, muito conhecida em Nova York nas primeiras décadas do século XIX. Em 1815 o autor faz uma viagem à Europa, onde entra em contato direto com a tradição romântica do Velho Continente. O Romantismo inglês, com seu elogio

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ao passado e à experiência medieval, assim como os contos populares alemães, serviram de grande inspiração para o trabalho mais reconhecido de Washington Irving: The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent., publicado de forma seriada entre 1819 e 1820. Usando dessa vez o pseudônimo de Geoffrey Crayon, o autor escreveu 34 ensaios e contos na tentativa de transpor o espírito folclórico do conto europeu para os Estados Unidos. O Sketch Book foi o primeiro livro norte-americano a ter sucesso não só na América, mas também na Europa. Os escritos de Irving conseguiram criar uma mitologia popular para uma literatura em fase de consolidação através de uma herança europeia. Dos textos presentes no Sketch Book, dois vão se destacar e praticamente fundar o imaginário popular da América. O primeiro é Rip Van Winkle, a história de um camponês que, depois de beber um vinho mágico oferecido por fantasmas, dorme por 20 anos. Ao acordar, ele fica surpreso ao ver todas as mudanças ocorridas em sua família e no seu vilarejo, mas o principal acontecimento de todos foi a guerra revolucionária que culminou na independência dos Estados Unidos. O próprio personagem Rip Van Winkle se torna uma lenda então, ao ter vivenciado os acontecimentos anteriores à guerra e por não ter presenciado o momento mais importante da história da nação. Outro conto muito famoso de Washington Irving presente no Sketch Book é The Legend of Sleepy Hollow. Assim como Rip Van Winkle, é baseado num conto folclórico alemão sobre um cavaleiro sem cabeça que assombra um vilarejo. Como geralmente faz, Irving transporta essa história popularesca europeia para os Estados Unidos, situando a narrativa em Nova York e fazendo o cavaleiro perder a cabeça com uma bala de canhão disparada numa batalha durante a guerra pela independência. Se Washington Irving concentrou sua produção nos contos e histórias populares inspirados pela tradição folclórica europeia, James Fenimore Cooper (1789-1851) vai dedicar-se ao desenvolvimento de um formato para o romance norte-americano instituindo seus próprios mitos de criação. Usando a recente história e política dos Estados Unidos, Cooper vai fundar um estilo romântico norte-americano que servirá de molde para que o público leitor passe a reconhecer o seu passado através de moldes literários. O primeiro romance aclamado de Cooper é The Spy, de 1821, e é a partir dessa obra que o autor vai receber o título que de certa forma vai persegui-lo até hoje: o “Walter Scott da América”. Scott foi um dos grandes escritores ingleses do século XIX, fundador do gênero romance histórico – de forma geral, uma narrativa fic51

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cional que se desenrola tendo como pano de fundo um evento real do passado. O que Cooper faz é modelar a forma do romance histórico como definido pelo autor inglês para a realidade norte-americana e assim “Cooper, trilhando o caminho de Scott, soube revestir a história das mais brilhantes roupagens e cercá-la dos mais pitorescos cenários.” (NABUCO, 2000, p. 41) The Spy (O Espião) é uma história que se passa durante o período revolucionário e, mesmo que em termos históricos tenha sido um momento bem recente quando o livro foi lançado, Cooper soube tirar proveito do crescente interesse do público em ler narrativas que dissessem respeito à sua própria experiência e aos eventos que levaram à formação da identidade da nação. A forma satírica de ver o passado, como ilustrada por Irving, é substituída por uma perspectiva séria e com um viés político na escrita de James Fenimore Cooper. Da mesma forma que Walter Scott tem como ícone de seus romances históricos o personagem Waverley, Cooper também vai compor uma figura histórica que vai se tornar a sua principal criação: Natty Bumppo, também chamado de Leatherstocking. O autor escreve cinco romances sobre a vida de Bumppo – conhecidos como Leatherstocking Tales – sendo o principal dele The Last of the Mohicans (O Último dos Moicanos). Leatherstocking é o arquétipo do herói romântico e norte-americano do século XIX: ele se aproxima das tradições indígenas, tem um forte espírito de justiça e localiza-se na mítica “fronteira” dos Estados Unidos, a região onde termina a civilização e começa o desconhecido, geralmente associado à área oeste do país. Cooper foi o primeiro a dar o devido valor a cenas e eventos realmente norte-americanos, com seus romances que ao mesmo tempo exaltavam o passado revolucionário da nação e também reconheciam a importância da contribuição indígena para a formação de uma cultura em crescimento, porém já tão rica. Sua preocupação com uma narrativa que fosse genuinamente norte-americana, seja em tons políticos ou em ritmo de aventura, foi primordial para a confirmação do potencial da literatura dos Estados Unidos.

O transcendentalismo Com a formação de uma identidade nacional norte-americana, os principais pensadores dos Estados Unidos tentaram encontrar uma filosofia que fosse capaz de representar os anseios da nação de forma nova e genuína. A mais significativa foi certamente o transcendentalismo, que não só rompe com as tra52

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dições puritanas e “lockeanas” do pensamento norte-americano, mas também inaugura uma visão de mundo condizente com a perspectiva de uma nação no processo de consolidação de seus valores. O transcendentalismo abrange esferas políticas, filosóficas, religiosas e, especialmente, literárias numa nova abordagem da vivência norte-americana. Influenciada pela filosofia alemã e pelo Romantismo inglês, o transcendentalismo foi talvez a primeira escola de pensamento surgida nos Estados Unidos. O primeiro traço distintivo do movimento é a negação de uma perspectiva lockeana da religião delineada pelo unitarianismo. O unitarianismo acreditava numa aproximação entre o empirismo de John Locke e os mistérios da Bíblia, para que assim a religião pudesse ter sua verdade comprovada. Os transcendentalistas se afastam dessa visão de mundo, pois para eles a fé não pode ser explicada pela razão – a natureza empírica dos ensinamentos de Locke e Newton não condizem com a experiência religiosa; pelo contrário: o sentimento é que merecia a exaltação, e era muito mais importante na vivência de um indivíduo que a sua racionalidade. O pensamento transcendental interessa-se muito mais pelo inexplicável, pelo misterioso, e é por isso que a natureza torna-se tema fundamental dos textos inspirados pelo movimento. O universo seria um grande símbolo, em que a natureza seria o elemento mais simbólico de todos, repleto de signos. Assim, através do contato com os mistérios da natureza, e não com explicações racionais sobre ela, é que se pode ter acesso às verdades da vida. Numa jovem nação, iniciando a exploração de seu território com uma vasta riqueza natural, essa forma de pensamento encontra eco em vários escritores da mesma geração. O conceito que de certa forma vai definir a mentalidade transcendentalista é o self. Os principais pensadores do movimento realizam em seus escritos uma grande celebração do individualismo, em que a essência de cada pessoa (o “self”, ou seja, o próprio “eu”) é o valor mais importante que existe. É através da expressão individual, em oposição às restrições impostas pelas convenções e leis, que o homem pode se conhecer e também conhecer o universo. Há uma busca constante pelo autoconhecimento pois, quanto mais o homem descobre sobre si, mais claramente entende os mistérios do universo: “An individual is the spiritual center of the universe - and in an individual can be found the clue to nature, history and, ultimately, the cosmos itself. It is not a rejection of the existence of God, but a preference to explain an individual and the world in terms of an individual.” ((McMICHAEL et al., 2001, p. 442) 53

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Para o transcendentalismo, o indivíduo funciona como uma reprodução em escala menor (micro) da imensa estrutura do universo (macro). Ao conhecer um, se conhece o outro. Assim, o pensamento transcendentalista compreende que o verdadeiro self só se constitui de forma completa – espiritualmente e filosoficamente – quando consegue transcender o mundo material através da emoção e da intuição. Os preceitos religiosos (especialmente aqueles herdados do protestantismo calvinista) são deixados para trás em favor de uma maior crença na realização de uma individualidade capaz de elevar o homem além da experiência empírica. A figura central do movimento transcendentalista e de certa forma de toda uma nova estrutura filosófica norte-americana do século XIX foi Ralph Waldo Emerson (1803-1882). É através de seus ensinamentos que se fundam as bases do pensamento transcendental e os Estados Unidos declaram definitivamente sua independência intelectual da estética europeia. Mesmo tendo sido leitor de pensadores alemães e se encontrado pessoalmente com grandes nomes do Romantismo inglês, Emerson utiliza de seu conhecimento para construir a literatura norte-americana através de uma visão única de sua natureza, de sua individualidade e de sua qualidade poética. Antes de revolucionar a escrita norte-americana, Emerson era um pastor bem-sucedido em Boston, até o momento em que passou a duvidar de alguns dogmas cristãos que tinha que pregar. Ele então se desliga da igreja e parte para uma temporada na Europa. No Velho Continente, absorve os fervilhantes ideais românticos em voga no século XIX, além de ter o privilégio de conhecer pessoalmente os principais nomes do Romantismo inglês como William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge. Ao retornar para os Estados Unidos, o autor se estabelece em Concord, no estado de Massachusetts. Aquela pequena cidade tornaria-se, em pouco tempo, a capital da produção intelectual norte-americana, com a presença não só de Emerson mas também de outros grandes nomes do período, como Henry David Thoreau e Nathaniel Hawthorne. A transferência do centro literário dos Estados Unidos da knickerbocker Nova York para o estado de Massachusetts foi mais que geográfico. A partir dela, a literatura dos Estados Unidos dá um grande salto no estabelecimento de uma literatura genuína. A região da Nova Inglaterra, tão importante na formação do período puritano do país, vai novamente ter um papel fundamental nessa nova fase da construção da mentalidade norte-americana. Esse período ficou conhecido como o Renascimento da Nova Inglaterra. 54

A prosa romântica

Em Concord, Emerson funda o Clube Transcendentalista, onde reúne-se informalmente com outros escritores e pensadores do local para discutir as inovadoras ideias relacionadas à filosofia, teologia e literatura. Em 1836, o autor publica Nature (Natureza), ensaio fundamental que serviu como manifesto do transcendentalismo. Nessa obra, todo o imaginário romântico que serviu como pano de fundo para a literatura do período encontra pela primeira vez com uma realidade essencialmente norte-americana. Nature é a expressão máxima do pensamento transcendental de Emerson de que a natureza não pode ser explicada em termos materiais, pois é através das sensações que o seu principal valor é mostrado. A natureza é um reflexo do mundo espiritual, uma escritura divina, que pode ser lida pelo homem quando ele é capaz de acessar sua individualidade. A razão e o empirismo não podem representar a natureza em sua totalidade. É a experiência individual, através da expressão do “self”, que aproxima o homem da essência da natureza e da mensagem divina inserida na sua criação. Por isso, Emerson afirma: Every natural fact is a symbol of some spiritual fact. Every appearance in nature corresponds to some state of the mind, and that state of the mind can only be described by presenting that natural appearance as its picture [...]. Who looks upon a river in a meditative hour, and is not reminded of the flux of all things? Throw a stone into the stream, and the circles that propagate themselves are the beautiful type of all influence. Man is conscious of a universal soul within or behind his individual life, wherein, as in a firmament, the natures of Justice, Truth, Love, Freedom, arise and shine. This universal soul, he calls Reason: it is not mine, or thine, or his, but we are its; we are its property and men [...]. That which, intellectually considered, we call Reason, considered in relation to nature, we call Spirit. Spirit is the Creator. (EMERSON, In: McMICHAEL et al., 2001, p. 622)

Esta aproximação do homem com a natureza estava no centro do pensamento romântico inglês, mas nunca foi expressa com a complexidade espiritual dos escritos de Emerson, tornando-o o escritor mais representativo na expressão de uma sensibilidade norte-americana que vai influenciar grande parte da literatura produzida não só no século XIX, mas também posteriormente. Outro texto de Emerson que vai deixar uma marca na produção literária norte-americana é o ensaio Self-Reliance, de 1841. Como o próprio título indica, nessa obra o autor intensifica o discurso a favor da valorização do self, de si próprio e das crenças individuais. Em linhas gerais, o argumento básico de Self-Reliance (Autoconfiança) deve combater o conformismo e as falsas convenções e confiar nos próprios instintos. Emerson, mesmo que de forma subconsciente, faz um comentário sobre a tradição do pensamento de Benjamin Franklin ao mesmo tempo que a renega, afirmando que: “Self trust is the first secret of success, the belief that, if you are here, the authorities of the world put you here, and for cause, 55

Literatura Norte-Americana

or with some task strictly appointed you in your constitution, and so long as you work at that, you are well and successful.” (EMERSON, In: NABUCO, 2000, p. 36) Ao contrário de Franklin, portanto, Emerson crê que o sucesso surge, antes de mais nada, na capacidade individual que cada um tem de acreditar em suas ideias e em seu próprio potencial. Acreditar e confiar em si mesmo de forma inabalável está intimamente ligado ao não-conformismo, o que para o autor é uma grande qualidade. Essa ideia está presente em uma das mais famosas citações de Self-Reliance, que afirma que “a foolish consistency is the hobgoblin of little minds.” (EMERSON, In: McMICHAEL et al., 2001, p. 660). Isso significa que a busca por uma consistência, ou pela compreensão por parte da sociedade, geralmente está atrelada a mentes pouco férteis que não tem fé na própria habilidade. A confiança no próprio eu sempre é mais importante, mesmo que isso leve à intolerância e incompreensão daqueles em volta. Como Emerson mesmo afirma: “To be great is to be misunderstood.” Essa crença no sucesso baseado no individualismo será crucial para um momento dos Estados Unidos em que a nação está formando sua consciência cultural. O que Emerson ensina é que não é necessário um modelo pré-formado para realizar grandes obras, literárias ou não. O imprescindível se encontra na autoconfiança, no autoconhecimento e na comunhão do homem com a natureza e o universo. A filosofia de Ralph Waldo Emerson vai servir de influência para vários escritores do período, mas nenhum deles vai representar melhor o espírito do transcendentalismo do que Henry David Thoreau (1817-1862). O que Emerson expressava através de um idealismo filosófico fundado na esfera teórica, Thoreau realizava através da experiência com o mundo natural e prático. Se Emerson foi o principal pensador do movimento transcendentalista, Thoreau foi aquele que melhor pôs seus ideais em prática. Tome-se, por exemplo, a primeira passagem de Nature, de Emerson: To go into solitude, a man needs to retire as much from his chamber as from society. I am not solitary whilst I read and write, though nobody is with me. But if a man would be alone, let him look at the stars. The rays that come from those heavenly worlds, will separate between him and what he touches. One might think the atmosphere was made transparent with this design, to give man, in the heavenly bodies, the perpetual presence of the sublime. (EMERSON, In: McMICHAEL, 2001, p. 615)

No trecho acima, Emerson constrói um elogio à necessidade do homem entrar em contato com seu próprio eu longe da sociedade e buscar uma comunhão maior com a natureza. Tal pensamento pode ter servido de inspiração direta 56

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para a experiência de Thoreau, que viveu recluso durante mais de dois anos numa cabana distante da cidade, à beira do lago Walden. Amigo e discípulo de Emerson, Thoreau nasceu em Concord e lá viveu a maior parte de sua vida. Sua notória paixão pela natureza, vista na época como excentricidade e hoje tida como um dos primeiros símbolos da consciência ambiental, é a concretização dos escritos do autor de Nature. Assim sendo, é possível afirmar que: “Thoreau was the symbolist; Emerson could only describe, seeing simultaneously the thing before him and the spiritual analogue he held equally real. He was the adventurous pioneer who turned woods and pond into a frontier of the spirit.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 129) Em 1845, Thoreau começa a construir uma cabana às margens do lago Walden, próximo a Concord. A terra pertencia a Emerson, que autorizou que seu amigo ali permanecesse. Na simbólica data de 4 de julho, Thoreau se muda para a cabana e lá permanece por dois anos, dois meses e dois dias. Durante esse período, o autor vive solitário de forma simples e modesta, em contato direto com a natureza do local. É nesse local que Thoreau começa a escrever sobre sua fascinante experiência no livro que viria a se tornar sua obra-prima: Walden, or Life in the Woods. Publicado apenas em 1854, Walden não teve grande sucesso quando lançado. O próprio Thoreau durante muito tempo foi visto como um mero aluno de Emerson, passando a ter seu valor reconhecido já na virada do século. Uma das razões para a importância literária de Walden é a forma que Thoreau alia a realidade material que o rodeia à sua própria expressão individual. Combinando o contato direto com a natureza a uma sensibilidade própria, sua escrita se desenvolve através de uma simples narrativa, focando especialmente na passagem das estações do ano como um reflexo do crescimento do homem. Numa célebre passagem, Thoreau explica o que o compeliu a passar pela experiência de mais de dois anos à beira do lago Walden: I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life, and see if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I had not lived. I did not wish to live what was not life, living is so dear; nor did I wish to practice resignation, unless it was quite necessary. I wanted to live deep and suck out all the marrow of life (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 877).

Esse desejo de viver a vida em toda a sua profundidade é, para Thoreau, o oposto do materialismo e da ganância, atitudes que além de empobrecerem o homem, ainda são responsáveis pela destruição da natureza. Como ele afirmou em uma de suas mais famosas citações, “A man is rich in proportion to the number of things he can afford to let alone.” Ou seja: a verdadeira riqueza não 57

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está em possuir uma determinada quantidade de bens materiais, mas sim em conseguir viver sem eles. Quando fala várias vezes em Walden sobre “simplificar” a sociedade e a forma em que era constituída, Thoreau não está apenas fazendo uma crítica, mas também propondo uma saída pelas vias transcendentalistas, nas quais o encontro com o divino é também o encontro consigo mesmo, e este se dá através do contato com a natureza. No meio do período em que esteve na cabana de Walden, Thoreau é cobrado sobre o pagamento de impostos atrasados. Recusando-se a pagar, o autor passa uma noite na cadeia de Concord. A partir dessa experiência, o autor vai escrever o seu ensaio mais conhecido: Civil Disobedience. De forma geral, Thoreau afirma que não se deve permitir que o governo, através de leis e convenções, force os cidadãos a traírem sua própria consciência. Caso contrário, a população apenas propagará a injustiça instituída pelas estruturas de poder. Para o autor, a autoridade do governo é garantida pelo poder individual dos integrantes de uma nação e só assim ela se justifica: “There will never be a really free and enlightened State until the State comes to recognize the individual as a higher and independent Power, from which all of its own power and authority are derived.” (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 826) Em muitos casos, o governo não reconhece a consciência individual de seus cidadãos e os obriga a praticar atos dos quais eles discordam profundamente. A prisão de Thoreau foi um desses atos. O autor recusou-se a pagar as taxas que devia pois acreditava que não devia dinheiro a um país que usaria aqueles recursos para financiar a escravidão, ou a guerra contra o México que estava se desenrolando. Numa passagem marcante de Civil Disobedience, Thoreau escreve (não sem ironia) como a cadeia é de certa forma o melhor lugar para pessoas como ele ficarem: Under a government which imprisons any unjustly, the true place for a just man is also a prison. The proper place today, the only place which Massachusetts has provided for her freer and less desponding spirits, is in her prisons, to be put out and locked out of the State by her own act, as they have already out themselves out by their principles. (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 818)

É interessante notar que a prisão, na visão de Thoreau, é o local para onde vão os homens verdadeiramente livres, pois lá podem exercer sua individualidade. Para o autor, não é que os cidadãos discordantes tenham sido trancados dentro das cadeias, mas na verdade eles foram trancados do lado de fora da estrutura do Estado, daí sua liberdade. Emerson e Thoreau terão por toda a história da literatura dos Estados Unidos o papel de profetas de uma nova perspectiva narrativa e temática, por mais que essa não fosse a intenção original dos autores. Seus principais ideais, fundamen58

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tais para a construção de um pensamento norte-americano, ecoarão por vários locais (até mesmo fora de seu país de origem) em diferentes momentos. Praticamente 50 anos depois do 4 de julho de 1776, a América encontra, nesses dois pensadores, sua independência intelectual.

A inspiração gótica Na tentativa de buscar uma voz genuína para uma literatura em formação, outros autores decidiram experimentar estilos de escrita que nem sempre se relacionavam diretamente com a natureza ou temas essencialmente norte-americanos. Ao contrário de Emerson, Thoreau e Cooper, por exemplo, alguns escritores voltaram-se para o estudo de aspectos mais sombrios da natureza humana, em que a valorização do self não aproxima o homem do divino, mas de seus temores e aspectos mais sombrios. A realização dessa forma de literatura em muito deve à ficção gótica, um gênero surgido no final do século XVIII, mas que vai achar sua expressão máxima no século XIX. O gótico caracteriza-se pela presença do terror em sua narrativa, através de elementos de mistério (labirintos, ruínas) ou sobrenaturais (fantasmas, vampiros). Uma das principais contribuições da ficção gótica é a ênfase nos processos psíquicos dos personagens, geralmente figuras que se encontram à beira da loucura mas que mesmo assim têm todo o seu esquema mental estruturado pelo escritor. A inspiração gótica vai ser um dos elementos criadores de um dos mais proeminentes escritores norte-americanos do século XIX: Edgar Allan Poe (1809-1849). Muito criticado em sua época, rechaçado por não pertencer a uma tradição de escrita verdadeiramente norte-americana, tido como vilão e homem sem virtudes, a obra de Poe supera todos os estereótipos construídos em torno de sua figura para fazer dele um dos autores mais populares do mundo. A imagem do gênio atormentado, do autor maldito, do viciado em álcool e ópio que vagava pelas ruas vestido de preto e que morre literalmente na sarjeta aos 40 anos é tão forte que é quase impossível vislumbrar a qualidade de sua obra sem considerar o pano de fundo pessoal da mente que criou tão belos poemas, ensaios, críticas e contos. Órfão aos três anos de idade, Poe é criado por uma família adotiva com a qual teria uma série de desavenças durante toda a vida, especialmente em relação às dívidas com o jogo que o autor adquire no futuro. Alista-se no exército, mas 59

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ao perceber que não se sujeita àquela vida cheia de regulamentações e ordem, força sua dispensa e se lança no mundo da literatura. Começa a escrever para jornais e assim adquire algum reconhecimento, mesmo sendo muito criticado por ignorar temas que fossem ao encontro da literatura de cunho transcendental e naturalista em voga no período. Em 1838, Poe lança seu único romance: The Narrative of Arthur Gordon Pym, a história das aventuras marítimas de um jovem, repleta de elementos misteriosos. A maior contribuição do autor para a prosa norte-americana, no entanto, foi o seu talento como contista. Os contos de Edgar Allan Poe permanecem até hoje como um marco na estruturação da narrativa, no uso preciso da linguagem, na descrição do estado mental dos personagens e nos aspectos macabros dos enredos. Bradbury e Roland assim definem os contos de Poe: Discarding the properties of American space and time, the tales [...] seek an imaginary world in which to function. Thus they, too, refuse that employment of familiar American life that Emerson demanded. Here then was an essential difference: for Poe, the imagination held rich symbolizing potential, but it led toward obscurity and solitude. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 137)

O mundo das criações de Poe, portanto, é também um mundo de emoções e da imaginação, mas a natureza de sua subjetividade é bem diferente: ele se concentra no que é decadente, sombrio, se concentrando e enfatizando no que amedronta o homem. A qualidade de suas criações é tão impressionante que em muitas vezes os narradores enlouquecidos de seus contos foram confundidos com o próprio autor. Um dos mais fascinantes exemplos da capacidade de Poe em descrever a atormentada mentalidade de seus personagens/narradores é o parágrafo inicial do conto The Black Cat: For the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their own evidence. Yet, mad am I not – and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-day I would unburthen my soul. My immediate purpose is to place before the world, plainly, succinctly, and without comment, a series of mere household events. In their consequences, these events have terrified – have tortured – have destroyed me. Yet I will not attempt to expound them. To me, they have presented little but Horror. (POE, 2007, p. 19)

O narrador, que está às vésperas da execução da sentença de pena de morte por ter assassinado a esposa, afirma que sua narrativa não é produto de sonho nem de devaneios de um louco. Ele afirma que o que contará será apenas uma série de eventos domésticos, mas do tipo que destruíram a sua vida. A ruptura do inconsciente também é presente em The Tell-Tale Heart: TRUE! – nervous – very, very dreadfully nervous I had been and am; but why will you say that I am mad? The disease had sharpened my senses – not destroyed – not dulled them. Above all was the sense of hearing acute. I heard all things in the heaven and in the earth. I heard many things in hell. How, then, am I mad? Hearken! and observe how healthily – how calmly I can tell you the whole story. (POE, 2007, p. 3) 60

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Novamente, o personagem/narrador aqui nega sua loucura, embora o tom da narrativa ilustre uma mente desesperada, capaz de ouvir “muitas coisas no inferno”. Essa habilidade que Poe tem de aguçar o interesse do leitor ao colocálo em contato direto com a esfera psíquica de seus protagonistas é o que torna seus contos únicos. A importância de Edgar Allan Poe também em muito se deve ao seu papel na criação e afirmação de um dos mais populares gêneros literários do mundo contemporâneo: o romance policial. The Murders in Rue Morgue, um conto de 1841, é considerada a primeira história de detetive moderna ao estabelecer as regras que ditariam o gênero: um crime misterioso, um investigador perspicaz em busca do assassino (Auguste Dupin, um dos grandes personagens de Poe), o uso do raciocínio lógico para se chegar à solução do caso, e a revelação final do responsável seguida da explicação metodológica do detetive. Arthur Conan Doyle, que anos depois criaria o célebre investigador Sherlock Holmes, deve em muito a Poe sua popularidade. Em suas brilhantes críticas literárias para jornais da época, Poe reconhece em Nathaniel Hawthorne (1804-1864) outro mestre da prosa do século XIX. Hawthorne, mais um membro do renascimento literário da Nova Inglaterra, foi inicialmente um seguidor do pensamento transcendentalista (chegando até mesmo a viver em uma vila utópica criada para aqueles que acreditavam na filosofia estabelecida por Emerson), mas que depois soube como nenhum outro escritor estabelecer uma conexão entre a mentalidade do protestantismo calvinista que formou o país com aspectos mais sombrios da imaginação romântica. A obra-prima de Nathaniel Hawthorne é também o primeiro grande romance escrito nos Estados Unidos: The Scarlet Letter (A Letra Escarlate). Tratando do amor adúltero entre um pastor e a personagem Hester Prynne, uma mulher casada de sua congregação, The Scarlet Letter é um romance histórico que serve ao mesmo tempo como uma análise e um acerto de contas de Hawthorne com sua herança puritana. Seu mais famoso ancestral foi o magistrado John Hathorne, um implacável juiz que teve papel fundamental no episódio dos julgamentos das bruxas de Salem. Essa mancha no passado é, de certa forma, análoga à imensa letra “A” da cor vermelha que Hester Prynne tem de carregar no peito para indicar o seu adultério. O romance é o ápice do talento criativo de Hawthorne e onde o autor aperfeiçoa seu estilo. Uma característica central de sua obra é uma escrita alegórica, repleta de símbolos, que geralmente remonta a um estudo da moral e da habilida61

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de que o homem possui de compreendê-los. É geralmente na tradição puritana que o autor vai encontrar o arsenal de símbolos tão presente em sua literatura: The puritan imagination interested Hawthorne not just as a historical subject but because it raised the essential moral issues of his writing, indeed of his existence as a writer. He returned to it again and again in his stories and essays [...] The result was symbolic creation, where the moral and religious principles behind the initial allegory do not die in reductive translation but become imbued with the strange contradictions of human life. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 147)

Dessa forma, é possível dizer que essa criação simbólica, que é característica de seu estilo, não é apenas uma sucessão de metáforas e alegorias remetendo a lições de moral. O autor transforma e dá vida a esses símbolos ilustrando profundamente o aspecto psicológico de seus personagens. A escolha pelo período puritano em algumas de suas histórias se deve, em grande parte, ao seu interesse pela ambiguidade presente na época, e que vai servir de reflexo para representar a duplicidade da consciência e do comportamento humano. Essa ambiguidade se revela na obra de Hawthorne de diferentes maneiras: as dúvidas e as certezas protestantes, a redenção e a queda do homem, o imaginativo e o material, o comunitário e o individual, o aspecto soturno do gótico e a bondade divina e, especialmente, o pecado e a culpa opondo-se à retidão e à salvação. É no meio dessa atmosfera dual que o autor constrói seus personagens, encontrados geralmente num momento de dúvida que vai abalar suas ideias sobre a moral cristã. Especialmente em seus contos, os personagens de Hawthorne não conseguem ler os símbolos apresentados em sua totalidade, e daí sua dificuldade em conviver em um mundo moralmente complexo. A solução, desse modo, acaba sendo a punição ou o isolamento. O melhor exemplo disto está no conto Young Goodman Brown, no qual Hawthorne alia um tema polêmico do período puritano dos Estados Unidos (a comunhão maligna na floresta) com uma escrita tensa, misteriosa, repleta de elementos góticos (o pôr do sol, um ser estranho da floresta que pode ser o próprio demônio, etc). A simbologia moral cristã está presente de forma clara nos nomes dos personagens principais: o jovem Goodman Brown (o “bom homem”) e sua esposa, Faith (“fé” em inglês). Ao se dirigir no meio da noite para a floresta e lá encontrar as pessoas de sua vila, tidas como cristãos exemplares, envolvidas num ritual satânico, Goodman Brown vê sua certezas desabarem. No entanto, ao perceber que a própria Faith (símbolo máximo de sua fé) também está envolvida no episódio, o personagem entra em transe, acorda só no meio da mata e, até o momento de sua morte, é atormentado pelas visões que teve – reais ou não. Com uma riqueza de descrição psicológica e uma escrita alegórica fundada nas bases do puritanismo, Hawthorne permanece até hoje como o responsável pelo 62

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amadurecimento da prosa norte-americana através de seus romances e contos. Assim como Poe, sua contribuição para a variedade narrativa de uma literatura em fase de consolidação deixou um legado para os autores que os seguiram. Hawthorne serviu de inspiração para outro grande autor das letras norte-americanas no século XIX – Herman Melville (1819-1891), de quem foi conselheiro e amigo. Pouco reconhecido em sua época, o verdadeiro valor da literatura de Melville só veio a ser compreendida no início do século XX, quando o gosto moderno finalmente revestiu de glórias e penetrou fundo nas esferas de obsessão na qual o autor arquitetou boa parte de suas narrativas. Durante muito tempo a obra de Melville foi vista como mera literatura de aventura, uma perspectiva reducionista que em muito reduzia a complexidade de seus romances e contos. Isso se deu porque inicialmente seus trabalhos mais populares tinham como tema peripécias no mar que retratavam experiências vividas pelo próprio autor. Nascido em Nova York, Melville vê a família perder tudo quando o pai vai à falência. Depois de uma curta carreira no magistério, o autor embarca em um navio e parte durante boa parte de sua vida em trabalhos relacionados à vida marítima. Seus trabalhos iniciais, de tom autobiográfico, fazem relativo sucesso pelo exotismo dos eventos narrados e pela curiosidade do público em saber dos incidentes vividos pelo autor. É quando Melville decide se entregar à investigação da presença do mal na natureza (inclusive a humana) com uma simbologia adquirida através da herança gótica de Hawthorne que ele cria sua obra-prima: Moby-Dick, um do clássicos da literatura norte-americana e mundial lançado em 1851. Moby-Dick começou a ser escrito como mais um romance em que Melville daria um relato pessoal de suas aventuras no mar. Mas as leituras de Hawthorne e Shakespeare, juntamente com a necessidade de confrontar um espírito de inocência que supostamente predominava na época, levou o autor a investigar as regiões mais obscuras da mentalidade humana. O romance se concentra basicamente em três personagens: Ishmael, um jovem marinheiro e narrador; Ahab, o capitão do navio Pequod, e a enorme baleia branca que dá título ao romance. Ahab é obcecado por Moby-Dick, que já destruiu seu antigo navio e arrancou uma de suas pernas – por isso parte numa procura atormentada para se vingar e matar a baleia. Essa grande saga em busca de Moby-Dick adquire ares mitológicos na escrita de Melville, que usa a própria realidade como tela para pintar um arcabouço de símbolos em que é central o embate entre o homem e a natureza: “The nature of 63

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good and evil, the power of will to defy fate, the validity of those insights which contradict the apparent laws of experience, the eternal conflict of God and Nature in which man in caught – these are the issues that are raised by Ahab’s defiance.” (SPILLER, 1967, p. 73) Todos esses temas de certa forma evidenciam a dualidade presente no pensamento transcendentalista do século XIX. A ênfase na individualidade pode aproximar o homem de Deus e da natureza, mas nem sempre essa aproximação é benéfica. O autoconhecimento pode levar à descoberta de traços assustadores da personalidade que desafiam a própria compreensão. E esse é um dos fatores que fazem da jornada de Ahab em busca da vingança uma viagem à procura de seu próximo self – e aí se encontra a dimensão trágica de Moby-Dick.

Texto complementar Young Goodman Brown (trecho) (HAWTHORNE, 2001)

Young Goodman Brown came forth at sunset into the street at Salem village; but put his head back, after crossing the threshold, to exchange a parting kiss with his young wife. And Faith, as the wife was aptly named, thrust her own pretty head into the street, letting the wind play with the pink ribbons of her cap while she called to Goodman Brown. “Dearest heart,” whispered she, softly and rather sadly, when her lips were close to his ear, “prithee put off your journey until sunrise and sleep in your own bed to-night. A lone woman is troubled with such dreams and such thoughts that she’s afeard of herself sometimes. Pray tarry with me this night, dear husband, of all nights in the year.” “My love and my Faith,” replied young Goodman Brown, “of all nights in the year, this one night must I tarry away from thee. My journey, as thou callest it, forth and back again, must needs be done ‘twixt now and sunrise. What, my sweet, pretty wife, dost thou doubt me already, and we but three months married?” “Then God bless you!” said Faith, with the pink ribbons; “and may you find all well when you come back.” 64

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“Amen!” cried Goodman Brown. “Say thy prayers, dear Faith, and go to bed at dusk, and no harm will come to thee.” So they parted; and the young man pursued his way until, being about to turn the corner by the meeting-house, he looked back and saw the head of Faith still peeping after him with a melancholy air, in spite of her pink ribbons. “Poor little Faith!” thought he, for his heart smote him. “What a wretch am I to leave her on such an errand! She talks of dreams, too. Methought as she spoke there was trouble in her face, as if a dream had warned her what work is to be done tonight. But no, no; ‘t would kill her to think it. Well, she’s a blessed angel on earth; and after this one night I’ll cling to her skirts and follow her to heaven.” With this excellent resolve for the future, Goodman Brown felt himself justified in making more haste on his present evil purpose. He had taken a dreary road, darkened by all the gloomiest trees of the forest, which barely stood aside to let the narrow path creep through, and closed immediately behind. It was all as lonely as could be; and there is this peculiarity in such a solitude, that the traveller knows not who may be concealed by the innumerable trunks and the thick boughs overhead; so that with lonely footsteps he may yet be passing through an unseen multitude. “There may be a devilish Indian behind every tree,” said Goodman Brown to himself; and he glanced fearfully behind him as he added, “What if the devil himself should be at my very elbow!” His head being turned back, he passed a crook of the road, and, looking forward again, beheld the figure of a man, in grave and decent attire, seated at the foot of an old tree. He arose at Goodman Brown’s approach and walked onward side by side with him. “You are late, Goodman Brown,” said he. “The clock of the Old South was striking as I came through Boston, and that is full fifteen minutes agone.” “Faith kept me back a while,” replied the young man, with a tremor in his voice, caused by the sudden appearance of his companion, though not wholly unexpected. […]

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Dicas de estudo O filme A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Tim Burton, 1999), apesar de algumas mudanças na história originalmente concebida por Washington Irving, é uma interessante releitura da virada do século dos Estados Unidos. Repleta de uma simbologia gótica que surgiria na literatura norte-americana posteriormente com Edgar Allan Poe, a produção retrata de forma criativa as tradições folclóricas alemãs incorporadas por Irving na narrativa norte-americana. A obra de J. HAYES, Kevin. The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe. (Ed.), New York: Cambridge University Press, 2002 é um estudo vasto sobre a complexidade da produção desse gênio atormentado. Abordando desde aspectos biográficos à contribuição de Poe para a cultura popular contemporânea, é um trabalho que lança luz sobre uma das figuras mais misteriosas da literatura mundial.

Atividades 1. De que forma o movimento romântico europeu contribuiu para o desenvolvimento da literatura dos Estados Unidos no século XIX?

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2. Como a filosofia transcendentalista ajudou a definir uma literatura essencialmente norte-americana?

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A poesia romântica A literatura norte-americana produzida no século XIX foi profundamente marcada pela influência do movimento romântico europeu. A expressão de emoções, a aproximação com a natureza e a linguagem simples foram características herdadas especialmente do Romantismo inglês. Nos Estados Unidos, essas marcas românticas foram aliadas a um forte sentimento nacional, à releitura de contos folclóricos e à filosofia transcendentalista. Mesmo assim, é importante mencionar que o Romantismo europeu teve como expressão máxima do seu desenvolvimento a poesia. Os grandes nomes do movimento romântico inglês (Wordsworth, Coleridge, Blake) eram poetas e é através de suas obras que se pode ter acesso às principais ideias desse estilo literário. Nos Estados Unidos, portanto, a influência romântica auxilia no surgimento de uma safra de poetas nunca antes vista no país. São vozes únicas que, com um estilo próprio, oferecem diferentes perspectivas para se observar a literatura norte-americana e também a nação. Juntas, porém, servem como estímulo para enriquecer uma visão nacional usando a linguagem e a forma poética de uma maneira nova e bem particular. Nomes como Edgar Allan Poe, Walt Whitman e Emily Dickinson construíram, no século XIX, uma estrutura poética cujo lirismo ecoa até hoje na produção literária do país. A contribuição de seus trabalhos foi fundamental para que os Estados Unidos encontrassem uma expressão subjetiva que representasse seus anseios nacionalistas e seu desejo de produzir uma literatura representativa de toda a nação.

A poesia de Edgar Allan Poe Um dos pontos altos da poesia norte-americana foi com as obras de Edgar Allan Poe (1809-1849). Mestre do conto e da ficção no século XIX, o trabalho poético de Poe também deixou uma marca definitiva na literatura do período. Além de seu impressionante talento lírico (que infelizmente só viria a ser totalmente reconhecido após sua morte), Poe também

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contribuiu com uma teoria poética para os Estados Unidos que durante muito tempo ecoou nos trabalhos de autores não só norte-americanos, mas também europeus. Um dos conceitos centrais de Poe sobre a natureza poética é o que procura definir o próprio conceito de poesia. Para o autor, a essência do trabalho poético encontra-se na poesia em si – na sua estrutura, composição e leitura. Não haveria a necessidade de constituir o significado da poesia com relação a um conceito de verdade exterior a ela: The simple fact is, that, would we but permit ourselves to look into our own souls, we should immediately there discover that under the sun there neither exists nor can exist any work more thoroughly dignified – more supremely noble than this very poem – this poem per se – this poem which is a poem and nothing more – this poem written solely for the poem’s sake. (POE In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 131)

Essa noção de que um poema é um poema e “nada mais” afasta as obras de Poe de uma verdade exterior que precisaria necessariamente estar atrelada a seu trabalho. Isso afetaria profundamente a composição poética, pois marcaria a ascensão de um certo moralismo que certamente prejudicaria a qualidade imaginativa de sua produção. O verdadeiro valor da poesia encontra-se nela própria. A poesia de Poe tem como síntese o tormento e a melancolia causada pela aproximação de uma esfera sobrenatural ao tema da beleza e da paixão. É nesse espaço limítrofe que o poeta vai traçar toda uma rede simbólica que em muito vai influenciar especialmente poetas franceses do fim de século e vai servir de base para um forte movimento simbolista após a morte de Poe. A atmosfera altamente imaginativa e um tanto surreal de suas obras em muito se distingue do transcendentalismo, que aproxima o homem da atmosfera natural que o cerca. Por isso, a obra de Poe é considerada visionária – além de escrever os poemas, o poeta ainda descrevia seu método de composição. O melhor exemplo disso é The Raven (O Corvo). Um dos poucos poemas de Poe reconhecidos durante sua vida, este trabalho se tornou o símbolo máximo da obra do autor. O eu lírico de The Raven em muito se assemelha aos narradores dos contos de Edgar Allan Poe: ele encontra-se no limite entre a sanidade e a loucura, é assombrado por um evento do passado e está inserido num contexto de profunda melancolia. The Raven é um poema narrativo cuja ação principal se desenrola em apenas uma noite, quando o narrador encontra-se lendo para tentar esquecer a morte de sua amada, Lenore. Primeiramente, ele escuta um barulho como se alguém estivesse a bater à sua porta, mas ao abri-la, não encontra ninguém. A seguir, ele 70

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escuta outras batidas, dessa vez mais fortes, na janela. Ao investigar o som, um corvo entra no seu quarto e vai pousar diretamente no busto de mármore da deusa Pallas em cima de sua porta: Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore. Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he; But with mien of lord or lady, perched above my chamber door. Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door, Perched, and sat, and nothing more.

Inicialmente, o narrador acha divertido o inusitado da cena e, quase como piada, pergunta ao pássaro o seu nome, ao que o corvo responde: “nevermore”, ou seja, “nunca mais”: Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore, “Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no craven, Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore. Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore.” Quoth the raven, “Nevermore.”

Surpreso pela capacidade de fala do animal, o narrador presume que aquela deva ser a única expressão que o corvo consegue emitir, provavelmente aprendida por causa de um antigo dono que assim o ensinou. Ele acredita então que, assim como amigos que já partiram de sua vida, o corvo também partirá, ao que ao pássaro responde: “Nevermore”. Essa palavra servirá como refrão do poema, e a partir de então para toda a pergunta e comentário feita pelo narrador o corvo responderá “Nevermore”. A atmosfera sobrenatural do poema se torna mais clara, com o ar do quarto se tornando pesado e o personagem sentindo a presença de anjos, cada vez mais atormentado pela ausência de sua amada. Ao perguntar ao corvo se ele um dia se reencontraria com Lenore, ele responde “Nevermore”. O narrador então se enraivece e pede ao corvo para retornar para o lugar de onde veio: “Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, upstarting – “Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul spoken! Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”

O pássaro então responde mais uma vez: “Nevermore”. E assim o poema termina, provavelmente com o pássaro ainda em cima do busto de mármore no momento em que o narrador conta sua história, afirmando que a sua alma nunca mais se tornaria livre da sombra daquele corvo presente em seu quarto e na sua vida. A leitura de The Raven, no entanto, é praticamente indissociável da leitura de um dos mais significativos ensaios de Edgar Allan Poe, The Philosophy of Compo71

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sition, de 1846. Esse texto tem ao menos duas funções fundamentais que ajudam a mapear o método e o pensamento do autor: organizar uma teoria crítica em relação à escrita da poesia e servir de análise para The Raven. Com esse ensaio, o autor procurou mostrar o processo de criação de sua obra mais famosa não como um produto da inspiração ou meramente associado a sentimentos intuitivos (teoria em voga durante o Romantismo), mas sim como fruto de intenso trabalho e raciocínio lógico, chegando a comparar o poema a uma equação matemática: “It is my desire to render it manifest that no one point in its composition is referrible either to accident or intuition – that the work proceded, step by step, to its completion with the precision and rigid consequence of a mathematical problem.” (POE In: McMICHAEL et al., 2001, p. 605) Usando então o método de criação de The Raven como melhor exemplo, Poe estabelece em The Philosophy of Composition uma série de regras através das quais a poesia de qualidade seria produzida. Primeiramente, o autor afirma que todo trabalho literário deve ter um limite sobre sua extensão, portanto ele não deve ultrapassar the limit of a single sitting, ou seja, o leitor deve ser capaz de ler uma obra entre o momento em que decide sentar para lê-la e antes de levantar-se. Portanto, um número de linhas ideal para um poema seria 108 linhas. Sobre o tema final de um trabalho poético, não havia dúvidas para Poe de que este era a beleza. E a forma mais completa de manifestação da beleza é através de um tom triste e melancólico. No poema, o efeito artístico que melhor representa essa atmosfera seria o refrão, mas esse refrão consistiria na repetição de uma palavra, aplicada de formas variadas – daí o constante uso da palavra nevermore. No entanto, teria que haver uma razão plausível para que a palavra fosse continuamente repetida, e Poe afirma que imediatamente lhe veio a ideia de uma criatura irracional responsável pela repetição de nevermore. O poeta pensou primeiro em um papagaio, a escolha mais natural, mas em seguida escolheu definitivamente pelo corvo por ser um animal cuja conotação sinistra condizia mais com o tom do poema. Como uma grande estrutura arquitetônica, Poe já possui então os pilares de sua poesia construída de forma completamente racional e metódica: “I had now gone so far as the conception of a Raven – the bird of ill omen – monotonously repeating the one Word, ‘Nevermore’, at the conclusion of each stanza, in a poem of melancholy tone, and in length about one hundred lines.” (POE In: McMICHAEL et al., 2001, p. 608)

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Poe passa então a discutir o tópico do poema. Considerando que o tom escolhido para o poema é o da melancolia, não havia dúvida de que o assunto central de The Raven seria a morte. Para o autor, a forma mais poética de se abordar a

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morte é relacionando-a a bela mulher. A partir daí, ele vai passo a passo analisando as estratégias temáticas estruturais através das quais resolveu construir o poema, desde a organização das estrofes à presença do busto da deusa Pallas. É interessante notar que Edgar Allan Poe, em The Philosophy of Composition, constrói uma narrativa baseada em princípios lógicos assim como vários dos personagens que se encontram à beira da loucura em seus contos. É através do raciocínio totalmente estruturado que o narrador de The Philosophy of Composition planeja sua poesia, assim como de certa forma os narradores da ficção de Poe planejam seus crimes (The Tell-Tale Heart) ou a investigação sobre eles (The Murders of Rue Morgue). Porém, fato é que o grande protagonista desse famoso ensaio de Poe é o próprio escritor: “The importance of the piece is its penetration of the poetic process and its protagonist: the writer himself, in his imaginative quest for meaning and signification.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 136)

Walt Whitman: a busca por uma voz norte-americana Essa visão racional e trágica da poesia encontrou representação na literatura norte-americana nos trabalhos de Edgar Allan Poe, mas não foi a única. Os ideais transcendetalistas ainda eram muito fortes e muito se questionava se haveria uma forma poética ideal que servisse para representar os Estados Unidos em sua totalidade. A resposta viria quase 10 anos depois da publicação do ensaio de Poe, com um livro de poesias que não só vai marcar a maturidade artística da produção literária norte-americana, mas também vai revolucionar a poesia do país: Leaves of Grass (Folhas na Relva), de Walt Whitman. Walt Whitman (1819-1892) é um dos nomes mais influentes da literatura norte-americana. Seu trabalho foi definitivo para a criação de uma poesia ao mesmo tempo inovadora e clássica, onde a nação poderia se identificar e avaliar a riqueza de uma linguagem repleta de frescor e vitalidade, assim como o jovem país que lhe deu origem. Leaves of Grass, sua obra-prima, permanece o mais importante trabalho poético produzido por norte-americano e um dos mais estudados da língua inglesa. Diferentemente de Edgar Allan Poe, que em muito se opunha às ideias presentes na filosofia transcendentalista, Whitman procurou em sua poesia se aproximar do imaginário poético apresentado por Ralph Waldo Emerson, o principal nome do transcendentalismo. Ficou famosa a história em que Emerson recebeu pelo correio um livro de poesia de um Whitman ainda desconhecido. Em resposta, ele escreveu: 73

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I am not blind to the worth of the wonderful gift of Leaves of Grass [...] I find incomparable things said incomparably well [...] I find the courage of treatment that so delights us and which large perception only can inspire [...] I greet you at the beginning of a great career, which yet must have had a long foreground somewhere, for such a start. (EMERSON, In: SPILLER, 1967, p. 74)

Emerson, o profeta das letras, reconhecia então em Walt Whitman uma nova voz digna de levar adiante o legado do transcendentalismo. No entanto, Whitman iria muito além – de muitas formas, o trabalho do poeta serviria de ponte para unir diferentes esferas da experiência norte-americana com uma forma (como disse Emerson) “incomparável”. É com Whitman que a tradição romântica vai se aliar a temas do estilo realista em ascensão no fim do século XIX; seu trabalho vai aproximar uma sensibilidade rural à agitada vivência urbana dos Estados Unidos; suas poesias marcaram um encontro entre aspectos abertamente sexuais com os tons fúnebres da Guerra Civil. Em resumo: a obra de Walt Whitman vai ser a comunhão de um espírito individualista único com a amplitude dos diferentes homens e mulheres que habitam os Estados Unidos. Esse “início de uma grande carreira”, como afirmou Emerson, não parecia ter nenhuma base sólida aparente que indicasse que ali estava a nascer um dos mais significativos trabalhos da história da literatura norte-americana. Primeiramente porque em 1855, quando a primeira edição de Leaves of Grass foi publicada, Whitman já tinha 36 anos. Nascido em Nova York, o então futuro poeta não pertencia claramente a nenhuma tradição literária. Trabalhou como editor, jornalista e professor por um certo período antes que, com seu próprio dinheiro, imprimisse e publicasse Leaves of Grass, originalmente com 12 poemas. O trabalho vendeu pouco, mas Whitman insistiu numa segunda edição, que foi lançada no ano seguinte com 20 poemas adicionais. O livro chamou muita atenção na época pelos já mencionados elogios de Emerson e pela natureza “obscena” de sua poesia, como nesse trecho de Song of Myself: Tenderly will I use you curling grass, It may be you transpire from the breasts of young men, It may be if I had known them I would have loved them, It may be you are from old people, or from offspring taken soon out of their mothers’ laps. And here you are the mothers’ laps.

Ao falar tão abertamente sobre “peitos transpirantes de rapazes” ou “crianças retiradas do colo de mulheres”, a poesia de Whitman não estava de acordo com o gosto da época, o que fez com que seu trabalho fosse muito criticado inicialmente. Leaves of Grass, contudo, foi escrito e reescrito por Whitman durante toda a sua vida. Outras edições do livro foram lançadas, com diversos poemas adicionados ou alterados. A recepção foi altamente positiva primeiramente na França 74

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(assim como também ocorreu com a obra de Edgar Allan Poe), para depois ter seu valor amplamente reconhecido nos Estados Unidos. Mesmo depois de um derrame que o deixou seriamente incapacitado em 1873, Whitman continuou a aperfeiçoar Leaves of Grass e a versão final do livro foi publicada praticamente ao mesmo tempo em que o autor faleceu. O pequeno livro que tinha inicialmente 12 poemas terminou com quase 400. E aquele autor que Emerson disse que teria uma grande carreira a sua frente havia se tornado crucial no desenvolvimento da poesia norte-americana. A principal inovação de Whitman na poesia foi a abolição de convenções poéticas no que diz respeito à forma. Suas obras eram em verso livre, ou seja, não existe um padrão predefinido para rimas ou organização das estrofes. Isso garantiu aos poemas presentes em Leaves of Grass uma liberdade para a exposição do “eu lírico” como nunca antes na literatura norte-americana. A novidade estética de Whitman também está presente no seu uso da linguagem, que em alguns poemas pode tender ao exótico ou até mesmo ao vulgar. Assim, os poemas de Whitman são característicos de um vigor próprio que tanto fascinou ou ultrajou leitores e críticos do século XIX. A tradição dos ideais transcendentalistas na poesia de Walt Whitman está enraizada especialmente na ênfase da questão do self em sua literatura. Em nenhum poema isso se faz mais claro do que nos primeiros versos de Song of Myself: I celebrate myself, and sing myself, And what I assume you shall assume, For every atom belonging to me as good belongs to you.

Esse “eu” do poema não deve ser confundido com o próprio Walt Whitman – ele seria na verdade uma representação de um “eu”, de uma individualidade presente em cada ser humano. É como se fosse um “eu” múltiplo, que serve como símbolo para a própria essência da humanidade. Esse “eu” poético representado em Song of Myself também ultrapassa os limites de apenas uma figura central, ou um ego individualista completo em si. O poema também é um épico que estabelece uma relação em que a própria América funciona como reflexo do self, e o individual e o universal estão perenemente ligados: “My tongue, every atom of my blood, form’d from this soil, this air, Born here of parents born here from parents the same, and their parents the same, I, now thirty-seven years old in perfect health begin, Hoping to cease not till death.” Portanto, ao dizer que o solo e o ar foram responsáveis por formar cada átomo de seu corpo, alia a voz do “eu” à voz da terra. No decorrer de seus versos, 75

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Song of Myself continua a ilustrar cada elemento individual como símbolo das massas que garantem o futuro democrático dos Estados Unidos, assim como são os direitos democráticos das massas que dão legitimidade a cada cidadão para exercer sua individualidade. A obra de Whitman estabelece uma poesia norte-americana que é capaz de aproximar os anseios de cada ser (inclusive os sexuais) com o potencial democrático de uma jovem nação. Os poemas de Leaves of Grass são essenciais no estabelecimento de uma voz lírica autenticamente norte-americana, e encontrarão ecos em vários outros momentos da literatura do país. Um exemplo é a chamada Geração Beat que, no final dos anos 50, busca uma maior liberdade na exploração de temas que reflitam o estado de espírito da nação, especialmente nos aspectos sociais e sexuais. Autores do movimento como Jack Kerouac e Allen Ginsberg rompiam com as convenções literárias do período e, assim como Whitman no século XIX, criavam trabalhos que tentavam conectar esse novo self norte-americano (nesse caso, pós-Segunda Guerra Mundial) a um país com uma efervescente produção cultural.

Emily Dickinson: a poesia de cunho metafísico Se Walt Whitman deu origem a um discurso poético que representou a realidade dos Estados Unidos de forma completa, podemos dizer que Emily Dickinson (1830-1856) foi a mãe da poesia moderna norte-americana. No entanto, é curioso pensar nesses dois grandes poetas como um par, já que há muito pouco em comum entre eles além de terem produzido sua obra no século XIX. Onde Whitman é épico e grandioso Dickinson é íntima e minimalista; enquanto Whitman se volta para o mundo externo e suas constantes mudanças, Dickinson se concentra no mundo interno e nos conflitos de sua própria personalidade. Emily Dickinson é a autora que os leitores acreditam conhecer através de seus poemas sobre a morte, a natureza, a solidão, o amor, a derrota, mas cuja vida enigmática continua a intrigar até os mais dedicados biógrafos. Nascida em Amherst, no estado de Massachusetts, ela fez de sua cidade o seu mundo, reduzindo no decorrer da vida a sua presença social, se limitando somente à sua casa, ao seu quarto. A imagem de Dickinson, a reclusa, capaz de criar um universo através de uma meditação interiorizada, está eternamente atrelada à sua produção poética. A opção por uma vida solitária (teve poucos amores, nenhum que tenha efetivamente se tornado um relacionamento) faz com que Dickinson não tenha 76

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lugar no mundo exterior, uma pária (excluída) por opção. Sua obra é um reflexo artístico do comportamento da autora, já que é difícil lançar sobre ela o rótulo de “romântica”, “transcendentalista” ou “calvinista”. As influências de diferentes filosofias e estilo de escrita se fazem presentes em seus poemas, mas nunca o definem em totalidade. Ao ler a poesia de Emily Dickinson, sempre se tem acesso primeiramente ao universo íntimo do “eu lírico”, o que torna o trabalho da autora único em todo o século XIX. Há sem dúvida algo do transcendentalismo na poesia de Dickinson, especialmente porque ela teve acesso à obra de Emerson, chegando até mesmo a assistir a uma de suas palestras. Especialmente importante parece ter sido o conceito do self-reliance para autora, já que muitos de seus poemas são o reflexo de uma dependência profunda do “eu” interior, pouco interessado em opiniões externas. Isso afetou até mesmo a publicação de sua obra, já que apenas oito poemas seus foram lançados em vida. Apenas em 1890, seus trabalhos (encontrados arquivados depois de sua morte) foram finalmente publicados. Nem o transcendentalismo de Emerson e nem a tradição puritana de sua cidade, contudo, encerram a complexidade da obra de Emily Dickinson. Talvez a convenção artística mais notória em seus poemas tenha sido o tom metafísico presente em autores ingleses como John Donne, de quem ela era grande leitora. Assim, noções como a beleza e a morte tornam-se os grandes temas de sua poesia, que aliados a uma sensibilidade incomum, são capazes de descrever emoções complexas com poucas palavras. Robert E. Spiller resume bem essa marca da escrita de Dickinson: Like John Donne and the English metaphysical poets whom she so resembled, Dickinson’s understanding of the meaning of words was subtle and complex, her ear for music could assimilate discord as well as concord, and her images were drawn from life and from books with a sure but infinitely authority. Only the most complex art could be made to include the depths and variety of those things for which she demanded expression. (SPILLER, 1967, p. 127)

Esta “arte complexa” mencionada por Spiller, no entanto, não foi amplamente reconhecida quando o trabalho de Dickinson veio a público. Como outros autores norte-americanos do século XIX, Dickinson mostrou que estava além de seu tempo e que somente um gosto mais apurado seria capaz de avaliar a totalidade de sua riqueza literária. Sua poesia se aproximava mais de um gosto moderno, e é por isso que seus temas e seu estilo vão ser consagrados a partir das primeiras décadas do século XX. A poesia de Dickinson era notadamente distinta do individualismo grandioso de Whitman e da complexidade mística de Poe. A primeira característica que 77

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chama a atenção em seus poemas é que eles são na maioria das vezes bem curtos, e há neles um senso de urgência peculiar, auxiliado por uma escrita pontual, como se reprimida e reclusa como a própria autora. Muitas vezes, esses poemas se assemelham a charadas ou hinos protestantes e tem um ritmo um tanto irregular, com rimas nem sempre perfeitas e uma gramática truncada, o que fez com que muito críticos da época vissem Dickinson como uma autora inculta. O uso da pontuação nos poemas de Emily Dickinson é característico. Suas frases são às vezes incompletas, e o uso do travessão para ditar o ritmo subverte convenções da norma culta que em muito enriquecem o significado dos versos. Sem títulos, seus poemas são reconhecidos ou por uma numeração ou simplesmente pelo primeiro verso. Um caso exemplar é Wild Nights: Wild nights – Wild nights! Were I with thee Wild nights should be Our luxury! Futile – the winds – To a heart in port – Done with the Compass – Done with the Chart! Rowing in Eden – Ah, the sea! Might I but moor – Tonight – In Thee!

O poema pode ser interpretado como o desejo de concretização de um amor reprimido. Ao ser realizado, esse amor teria características selvagens (“wild”) e sem controle (“done with the Compass!”). Assim, o eu lírico se encontraria no paraíso (“rowing in Eden”), e o amor fluiria como uma explosão tão violenta como o mar (“Ah, the sea!”). É interessante o uso dos travessões, como se os versos se encontrassem incompletos assim como o “eu lírico” encontra-se incompleto sem o seu amor. O ritmo também é peculiar, com rimas alternadas e nem sempre com o som vogal se repetindo (“winds”/”compass”). A complexidade da poesia de Dickinson se faz presente num estilo altamente concentrado, em que cada verso é altamente significativo. Sua linguagem muitas vezes é paradoxal, chegando a aliar o concreto e o abstrato para construir imagens incomuns, porém marcantes. Um bom exemplo é encontrado no poema I’m nobody: I’m nobody! Who are you? Are you nobody, too? Then there’s a pair of us – don’t tell! They’d banish us, you know. 78

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How dreary – to be – somebody! How public, like a frog To tell your name the livelong day To an admiring bog!

Esse poema parece refletir claramente o desejo de reclusão por parte da autora, decidindo ser uma “ninguém” (“nobody”). A primeira surpresa do poema é a pergunta direta ao leitor, “Você é ninguém, também?” (“Are you nobody too?”). Já presumindo que a resposta será positiva, o eu lírico pede para que o leitor não se revele como “ninguém” já que ambos poderiam então ser banidos (“They”d banish us, you know”). A segunda surpresa do poema é a aversão sugerida a ser “alguém” (“somebody”), pois assim a pessoa teria de ser pública “como um sapo” (“How public, like a frog”). A comparação aqui entre “público” e “sapo” combina elementos bem diferentes, numa relação intrigante. Isso só se explicará nos dois versos seguintes, quando ficará clara a criatividade de Dickinson, pois assim como um sapo, as pessoas que são “alguém” têm sempre que ficar repetindo seu nome para se fazerem conhecidas – assim como os sapos coaxam – para um pântano de admiradores (“to an admiring bog!”). Um dos temas mais presentes da poesia de Emily Dickinson é a morte – e a variedade da abordagem utilizada pela autora impressiona: Her greatest lyrics concentrated on the theme of death, which she typically personified as a monarch, a lord, or a kindly but irresistible lover, yet her moods varied wildly, from melancholy, to exuberance, grief to joy, leaden despair to spiritual intoxication. (McMICHAEL et al., 2001, p. 605)

Ao ilustrar a morte como uma figura sedutora, Dickinson aproxima a ideia do amor à da finitude, o que torna a aceitação do fim da vida mais tolerável e às vezes até mesmo desejável. Muitas vezes, a morte é vista em seus poemas com uma certa naturalidade mórbida: I died for beauty – but was scarce Adjusted in the tomb, When one who died for truth was lain In an adjoining room. – He questioned softly “Why I failed?” “For Beauty,” I replied – “And I – for truth – Themself are One – We bretheren are,” he said. And so, as kinsmen met a night, We talked between the rooms – Until the moss had reached our lips – And covered up – our names –

Esse poema em muito se aproxima do estilo do Romantismo inglês – especialmente a segunda geração de poetas românticos como John Keats, para quem a 79

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relação entre beleza e verdade é inalterável – e dos poemas metafísicos de John Donne. Nessa mórbida alegoria sobre morte e companheirismo, o eu lírico narra o momento em que é enterrado, para logo depois perceber que outra figura é logo em seguida colocada na tumba ao seu lado (chamado de “quarto”). O eu lírico afirma que morreu pela beleza, enquanto aquele a seu lado diz que morreu pela verdade e, por isso, é como se fizessem parte de uma mesma irmandade (“bretheren”), já que a beleza e a verdade são uma coisa só. As duas vozes do poema então estabelecem um diálogo por algumas noites até que o limo do além-túmulo cobrisse suas bocas e seus nomes. Nota-se aqui que uma interessante dualidade: aqueles que acreditam na beleza e na verdade até mesmo ao morrerem encontram uma companhia fraterna. A morte, todavia, acaba saindo vencedora, pois lhes impede que exerçam sua identidade através de seus dois maiores símbolos: a voz (“until the moss had reached our lips”) e seus nomes (“and covered up – our names”). A poesia norte-americana encontra-se no final do século XIX num estágio de amadurecimento até então inédito. O talento dessa geração, contudo, só viria a ser reconhecido completamente décadas depois, com a consagração de Poe, Whitman e Dickinson como as grandes vozes líricas capazes de ao mesmo tempo compreender o potencial literário da nação e representá-lo de maneira individual e única.

Texto complementar The raven (POE, 2001)

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, Over many a quaint and curious volume of forgotten lore, While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of someone gently rapping, rapping at my chamber door. “ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door; Only this, and nothing more.” Ah, distinctly I remember, it was in the bleak December, And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor. 80

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Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow From my books surcease of sorrow, sorrow for the lost Lenore, For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore, Nameless here forevermore. And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain Thrilled me – filled me with fantastic terrors never felt before; So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating, “ ‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber door, Some late visitor entreating entrance at my chamber door. This it is, and nothing more.” Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer, “Sir,” said I, “or madam, truly your forgiveness I implore; But the fact is, I was napping, and so gently you came rapping, And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door, That I scarce was sure I heard you.” Here I opened wide the door – Darkness there, and nothing more. Deep into the darkness peering, long I stood there, wondering, fearing Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before; But the silence was unbroken, and the stillness gave no token, And the only word there spoken was the whispered word, “Lenore?”, This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” Merely this, and nothing more. Back into the chamber turning, all my soul within me burning, Soon again I heard a tapping, something louder than before, “Surely,” said I, “surely, that is something at my window lattice. Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore. Let my heart be still a moment, and this mystery explore. “ ‘Tis the wind, and nothing more.” Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore. Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he; But with mien of lord or lady, perched above my chamber door. 81

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Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door, Perched, and sat, and nothing more. Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore, “Though thy crest be shorn and shaven thou,” I said, “art sure no craven, Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore. Tell me what the lordly name is on the Night’s Plutonian shore.” Quoth the raven, “Nevermore.” Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, Though its answer little meaning, little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door, Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door, With such name as “Nevermore.” But the raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only That one word, as if his soul in that one word he did outpour. Nothing further then he uttered; not a feather then he fluttered; Till I scarcely more than muttered,”Other friends have flown before; On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.” Then the bird said, ”Nevermore.” Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken, “Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store, Caught from some unhappy master, whom unmerciful disaster Followed fast and followed faster, till his songs one burden bore – Till the dirges of his hope that melancholy burden bore Of “Never – nevermore.” But the raven still beguiling all my fancy into smiling, Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door; Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore, What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore

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Meant in croaking, “Nevermore.” Thus I sat engaged in guessing, but no syllable expressing To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom’s core; This and more I sat divining, with my head at ease reclining On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er, But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o’er She shall press, ah, nevermore! Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer Swung by seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor. “Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee – by these angels he hath Sent thee respite – respite and nepenthe from thy memories of Lenore! Quaff, O quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!” Quoth the raven, “Nevermore!” “Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil! Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore, Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted – On this home by horror haunted – tell me truly, I implore: Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me I implore!” Quoth the raven, “Nevermore.” “Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil! By that heaven that bends above us – by that God we both adore – Tell this soul with sorrow laden, if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden, whom the angels name Lenore – Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?” Quoth the raven, “Nevermore.” “Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, upstarting – “Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul spoken! Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!” Quoth the raven, “Nevermore.”

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And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming. And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted – nevermore!

Dicas de estudo Uma forma interessante de se estudar o poema The Raven, de Edgar Allan Poe, é através das traduções que ganhou para o português. O livro O Corvo e Suas Traduções, organizado por Ivo Barroso, traz versões da obra-prima poética de Poe traduzidas por nomes como Machado de Assis e Fernando Pessoa. Este trabalho é uma oportunidade valiosa para se compreender a riqueza da forma e da escolha de palavras utilizadas pelo poeta norte-americano, assim como as diferentes maneiras que a linguagem do poema ganhou na língua portuguesa. O filme Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir, aborda como um professor de literatura com ideias inovadoras desafia a estrutura conservadora de uma escola ao mesmo tempo em que inspira os alunos a viverem a vida em sua completude. As aulas deste professor, interpretado por Robin Williams, são em sua maioria voltadas para os poetas e pensadores do Romantismo norte-americano, como Walt Whitman e Henry David Thoreau. Os comentários feitos com relação aos textos românticos são iluminadores, lançando uma nova perspectiva aos clássicos do século XIX.

Atividades 1. De acordo com as ideias de Edgar Allan Poe em The Philosophy of Composition, quais as características de um bom poema?

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2. Como Walt Whitman e Emily Dickinson inovaram na escrita da poesia norte-americana?

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A Guerra Civil e a literatura correspondente O século XIX foi um período de transição para os Estados Unidos. Ao passar de treze colônias beirando o Oceano Atlântico para uma grande nação estabelecida economica e politicamente, o país necessitaria passar por uma série de ajustes, negociações e conflitos para que tivesse a grandeza que hoje tem garantida. Das transformações e fatos históricos ocorridos no período, nenhum foi mais importante do que a Guerra Civil, também conhecida como Guerra de Secessão. Este conflito armado, que opôs os estados do Norte aos estados do Sul, foi crucial para que todo o território norte-americano se organizasse em prol dos mesmos objetivos, com o intuito de promover o crescimento e desenvolvimento do país. Outra razão para a importância da Guerra Civil foi a discussão sobre o papel dos escravos na sociedade norte-americana, e é durante este embate entre o Norte e o Sul que a escravidão é abolida. É também durante a guerra, o maior conflito armado da história dos Estados Unidos, com quase 600 mil mortos, que surge um dos mais populares presidentes do país: Abraham Lincoln. A Guerra Civil também marcou profundamente grande parte da literatura norte-americana em meados do século XIX e nas décadas seguintes. Há praticamente toda uma tradição literária que se relaciona ao conflito – seja ela relacionada às terríveis consequências diretas da guerra para a população, ou até mesmo servindo de causa para que o confronto se iniciasse. De qualquer forma, é inegável o reconhecimento da Guerra Civil norte-americana como o evento histórico que melhor serviu para definir os rumos da nação. É através dessa guerra que os ideais da população se fortalecem e os Estados Unidos finalmente ganham uma uniformidade social, política e econômica digna do nome do país.

Diferenças entre o norte e o sul dos EUA A América do século XIX está entre uma das mais ricas e complexas regiões do mundo. Desde a Declaração de Independência em 1776, os Estados Unidos

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são um país em constante crescimento em diferentes aspectos. Territorialmente, a ideia do Destino Manifesto continua sendo o argumento principal para a expansão territorial do país por toda a parte continental da América do Norte. Assim, regiões consideradas pouco civilizadas ou atrasadas teriam acesso aos princípios básicos da democracia norte-americana, como a liberdade e o direito à felicidade. Sendo assim, até aproximadamente 1860 o país adquire novos territórios através de compras, negociações e até mesmo guerras – é assim que a Louisiana, a Flórida e o Texas, por exemplo, passam a fazer parte dos Estados Unidos. Economicamente, a chegada de estrangeiros para trabalhar na região norte do país alavancou o crescimento da indústria e do comércio. Na região sul, quase que completamente baseada na produção agrária, a colheita de tabaco vinha gradualmente sendo substituída pelo plantio do algodão, que em pouco tempo tornou-se o produto-base do sistema econômico local. Essa prosperidade na economia, no entanto, dependia do escoamento da produção e da movimentação do dinheiro por uma nação que começava a adquirir proporções continentais. Assim, foi criado um extenso esquema de rodovias capaz de ligar o centro industrial do leste à região do meio-oeste e, posteriormente, à costa do Pacífico, o que proporcionou uma revolução no transporte e um crescimento fenomenal das riquezas do país. Diante dessa imensa expansão, tornava-se cada vez mais difícil manter uma unidade por uma vasta região que, com a adesão da Califórnia aos Estados Unidos, se estendia de um oceano a outro. Especialmente quando os estados do Norte e do Sul, já mais historicamente consolidados, eram tão diferentes levando em consideração os aspectos políticos, econômicos e sociais. Qual modelo as novas regiões conquistadas deveriam seguir? Encontra-se aqui então a principal razão para a Guerra Civil norte-americana: a profunda distinção e o conflito de interesses entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. O antagonismo entre o Norte e o Sul não surge, contudo, às vésperas da Guerra Civil. Na verdade ele já vinha sendo delineado desde a independência da nação, quando os grandes proprietários de terra sulistas acreditavam que os Estados Unidos seriam um país de pequenos fazendeiros, focado na agricultura, enquanto a elite nortista propunha um país centrado na produção manufatureira e no comércio. No século XIX, essas diferenças, a princípio de cunho aparentemente econômico, ganham tintas ideológicas e políticas. O norte dos Estados Unidos (basicamente a região da Nova Inglaterra, o nordeste e alguns estados do meio-oeste) possuía aproximadamente 22 milhões de habitantes, a maior parte da população do país. Essa área possuía um clima mais 88

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frio, por isso a agricultura era limitada a pequenas fazendas cuja produção era de subsistência. A força da economia nortista se encontrava nas suas fábricas e manufaturas, com a produção de tecidos, ferramentas, armas, entre outros produtos. O comércio também era bem desenvolvido, o que garantia que grande parte dos produtos manufaturados se voltasse para o mercado interno. A mão de obra utilizada nas pequenas fazendas e especialmente na indústria consistia de muitos imigrantes europeus (irlandeses em particular) que partiram para a América em busca de melhores oportunidades e condições. A classe dominante do Norte, por outro lado, era formada de empresários e comerciantes, que de certa forma investiram em um maior grau de desenvolvimentos urbano e social da região. A crescente classe média também garantia um maior avanço ao dinamismo comercial e cosmopolita do Norte. O sul dos Estados Unidos (compreendido entre a Carolina do Norte até o Texas) possuía em torno de nove milhões de habitantes, com aproximadamente quatro milhões desse total constituído de negros escravos. Os estados do sul tinham a mão de obra escrava e negra como sua principal força de trabalho, e não pretendia abandonar essa estrutura de produção. O trabalho escravo era largamente usado na agricultura da região, que formava a base da economia sulista. O esquema de plantio era chamado de plantations – grandes propriedades rurais controladas pela elite latifundiária responsável pelo plantio de um único produto agrícola que depois seria voltado à exportação. Inicialmente usado para a plantação de tabaco, os latifúndios rapidamente se voltaram durante o século XIX para a produção de algodão, especialmente devido à crescente procura do mercado inglês por essa matéria-prima e pela invenção da máquina descaroçadora de algodão, que em muito facilitou o processo de seu manuseio. Apesar de possuir uma população menor em relação ao Norte, o Sul tinha mais peso político no governo federal. Historicamente, os membros da elite sulista é que foram, de forma geral, os responsáveis pelo processo de independência dos Estados Unidos, se tornando os Pais da Nação, como George Washington e Thomas Jefferson (que eram proprietários de latifúndios que se utilizavam de trabalho escravo). Assim, os congressistas do Sul tinham muita influência nas decisões que afetariam todo o país. Na questão tributária, por exemplo, os representantes sulistas muito lutaram pela redução nas taxas de importação, já que o Sul precisava adquirir produtos manufaturados de outros países devido à ausência de uma forte indústria na região. Isso foi motivo de muitos conflitos políticos com o Norte, que propunha um aumento nas taxas de importação para que pudesse competir com as manufaturas estrangeiras. 89

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No entanto, nenhuma questão foi mais importante para definir o antagonismo entre as duas regiões dos Estados Unidos do que a escravidão. Enquanto o Norte tinha um interesse claramente abolicionista, o Sul pretendia preservar sua instituição escravocrata e senhorial, além de estendê-la aos novos territórios conquistados. Esse conflito de interesses que se relacionava aos escravos, mas que tinha inúmeros desdobramentos políticos, econômicos e sociais é que levou ao desencadeamento da Guerra Civil.

A escravidão e os textos abolicionistas A escravidão nos Estados Unidos existia desde os primórdios do período colonial do país. Navios vinham da África e em 1650, contavam-se cerca de 300 escravos nas colônias. Em 1860, às vésperas da Guerra Civil, a população negra e escrava, responsável pela maior parte da produção agrícola norte-americana, chegava à praticamente quatro milhões. Os negros inicialmente chegavam à América no chamado tráfico de escravos triangular. De acordo com esse esquema, navios partiam da Inglaterra em direção à Àfrica com o objetivo de comprar escravos. Em seguida, eles eram transportados para a América. Nas colônias norte-americanas, então, os negros eram desembarcados e substituídos por produtos agrícolas que eram levados pelos mesmos navios de volta à Inglaterra. Essa estrutura de transporte de escravos só foi finalmente proibida em 1808 pelo governo norte-americano, e três anos depois a Inglaterra passou a declarar como criminoso o tráfico de escravos realizado por navios britânicos. Essas decisões, todavia, pouco serviram para enfraquecer a escravidão nos Estados Unidos, que agora só precisava contar com a reprodução do imenso número de quatro milhões de negros já em seu território. A escravidão por si só já é uma situação indigna e brutal, mas é ainda mais curioso pensar nessa questão quando inserida no contexto de um país cuja Declaração de Independência afirma que todos os homens são criados iguais. No entanto, há de se considerar que a independência americana foi um episódio arquitetado prioritariamente pelas elites do país. O direito à vida, liberdade, e à busca da felicidade não se estendia à população mais pobre, muito menos aos negros. Primeiramente porque os negros não eram considerados pessoas, eles eram considerados propriedade, e como tal garantiam o status daqueles que os possuíam. A superioridade da raça branca era indiscutível, e só ela era digna de tornar real o sonho americano. 90

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Para o sul dos Estados Unidos, a escravidão já era parte inerente à sociedade e uma das forças motrizes de sua economia. Em algumas regiões como a Virgínia, a estrutura escravocrata já existia por um período de dois séculos no ano de 1850. À medida que o século XIX prosseguia, ficava claro que o Sul e Norte tinham ideias diferentes na forma que o país seria conduzido. Além disso, os latifundiários sulistas não ficavam nada contentes com os altos lucros (considerados excessivos) que a elite do Norte conseguia com o comércio de algodão. Por outro lado, o Norte tinha certeza de que o Sul – sempre visto como a região mais atrasada dos Estados Unidos – jamais se tornaria completamente desenvolvido enquanto continuasse a se apoiar numa sociedade escravocrata. Com a expansão territorial do país e o ingresso de novos estados à União, a escravidão torna-se o tema central da discussão política norte-americana. O Sul insistia que essas novas regiões deveriam basear-se na sua estrutura de escravidão e de plantations, já que os latifundiários precisavam de novas terras para expandir o cultivo do algodão, sua principal fonte de renda. O Norte, por outro lado, acreditava que a instituição peculiar – como era ironicamente conhecida a escravidão – era um símbolo do atraso, e por isso tinha uma proposta de indústrias e trabalho assalariado para as novas regiões, que funcionariam como “solo livre”. No Norte havia um crescente movimento abolicionista que muito ajudou a mostrar a dura realidade do trabalho escravo para grande parte da população norte-americana. Os grandes pensadores do transcendentalismo como Ralph Waldo Emerson, por exemplo, se opunham veementemente contra a escravidão. Alguns membros da sociedade acreditavam que, de forma gradativa, o trabalho escravo seria extinto, especialmente a partir do fim do tráfico ultramarino no início do século XIX e com uma negociação com os latifundiários sulistas. No entanto, havia defensores mais radicais do abolicionismo, que pregavam o fim imediato da escravidão. Dentre os membros deste grupo mais ativo, um dos principais nomes é o de William Garrison. Em 1831, Garrison funda o jornal abolicionista The Liberator, que se ocupava exclusivamente da afirmação do antiescravismo e dos males aos quais os negros eram submetidos. Dotado de um estilo de escrita extremado e até mesmo sensacionalista, Garrison disse sobre a escravidão: Assenting to the “self-evident truth” maintained in the American Declaration of Independence, “that all men are created equal, and endowed by their Creator with certain inalienable rights – among which are life, liberty and the pursuit of happiness,” I shall strenuously contend for the immediate enfranchisement of our slave population. [...] I am aware, that many object to the severity of my language; but is there not cause for severity? I will be as harsh as truth, and as uncompromising as justice. On this subject, I do not wish to think, or speak, or write, with moderation. No! no! [...] I will not equivocate – I will not excuse – I will not retreat a single inch 91

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– AND I WILL BE HEARD. The apathy of the people is enough to make every statue leap from its pedestal, and to hasten the resurrection of the dead. (O’CALLAGHAN, 2002, p. 47)

As frases bombásticas de William Garrison iriam exatamente diminuir a apatia com relação ao tema da escravidão mencionada no artigo. Apesar de inicialmente possuir apenas leitores negros livres (ou seja, um pequeno grupo), o jornal The Liberator posteriormente passou a atrair um consistente grupo de leitores brancos do norte do país. Na literatura, nenhuma obra foi mais fundamental para a discussão sobre o fim da escravidão do que Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás), de Harriet Beecher Stowe. Publicado em 1852, foi o romance mais lido de todo o século XIX, com mais de 300 mil cópias vendidas. Foi com o imenso apelo popular desse livro que grande parte da população norte-americana teve acesso à crueldade submetida aos escravos e à necessidade do estabelecimento de uma sociedade totalmente livre. Uncle Tom’s Cabin conta, de forma geral, a história da fuga da escrava Eliza e seu filho depois de descobrir que ele seria vendido e separado dela. Escrito num tom sentimental e melodramático muito popular na época, o livro serviu como combustível para o movimento abolicionista por retratar os males que a servidão humana causava aos escravos e por finalmente mostrar negros não como propriedade, mas como pessoas dotadas de sentimento e identidade. Inicialmente, o romance seria escrito como uma reação da autora contra a Lei do Escravo Fugitivo de 1850. De acordo com essa lei, não só os escravos fugitivos mas também aqueles que também os auxiliassem na fuga ou lhes oferecessem asilo seriam severamente punidos. No entanto, à medida que foi desenvolvendo a sua narrativa, o escopo de Uncle Tom’s Cabin foi aumentando, abordando a situação extremada dos escravos fugidos e até mesmo o suicídio das mães negras ao serem separadas de seus filhos. O romance foi usado como base para diferentes produções teatrais que apoiavam a causa abolicionista, e sua repercussão foi tão grande que chegou a ser proibido no sul dos Estados Unidos. Atualmente, o romance é muito criticado por ter dado origem a uma série de estereótipos que em muito prejudicaram a imagem dos negros norte-americanos no decorrer dos anos. A figura do Uncle Tom (o velho escravo sofredor e fiel ao seu proprietário branco) e da mammy (a empregada negra, gorda, e de vocabulário chulo) empregados no romance permanecem até hoje como exemplos da forma preconceituosa que o negro pode ser retratado. Mesmo assim, não se pode negar a importância do romance Uncle Tom’s Cabin para a humanização da causa abolicionista para além da questão política. 92

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A eleição de Abraham Lincoln, um jovem advogado do Kentucky (o que fazia dele o primeiro presidente norte-americano nascido fora das treze colônias originais) acirrou os ânimos entre o Norte e o Sul. Um dos mais populares presidentes da história do país, Lincoln defendia o trabalho livre e o modelo nortista de economia – industrial e baseado no comércio. Foi durante seu governo que os Estados Unidos viveram o período mais sangrento de sua existência. Em 1861, a Carolina do Sul decide se desligar dos Estados Unidos, seguida por outros estados (Alabama, Flórida, Texas, Mississipi e Georgia), formando assim os Estados Confederados da América, ou simplesmente Confederação. Sob a presidência de Jefferson Davis, o Sul resolve criar seu próprio governo, em que a escravidão não corre o risco de ser abolida e os interesses dos grandes latifundiários não são ameaçados. O Norte então representa o lado da União, e assim vai ser conhecido durante a guerra. É interessante notar que o termo guerra civil, geralmente aplicado a um embate entre dois lados diferentes do mesmo do país para obter o seu controle, parece não compreender o aspecto separatista do conflito. Daí a preferência de alguns historiadores pelo termo Guerra de Secessão, ou seja, uma guerra de separação. O Sul queria se tornar independente, enquanto o Norte não tinha nenhum interesse nisso. Os estados do Sul, além de terem dívidas com os bancos do Norte, também eram os principais fornecedores de matéria-prima para as indústrias e manufaturas nortistas. O conflito se inicia propriamente porque os estados da Confederação se acharam no direito de apossar de fortes, bases navais e arsenais dos Estados Unidos dentro de seus territórios. O estopim da guerra foi a exigência feita pelos confederados de que as tropas da União saíssem do forte Sumter, na Carolina do Sul. O presidente Lincoln então enviou um reforço de quase 80 mil soldados para manter o forte seguro. Assim, a Guerra Civil norte-americana é declarada. É interessante notar que tanto a União quanto a Confederação acreditavam em uma guerra curta, em que o resultado seria rapidamente decidido a seu favor. O conflito, contudo duraria ainda mais quatro anos. O Norte tinha claramente uma maior vantagem: em número de soldados era bastante superior ao Sul, além de possuir uma maior quantidade de suprimentos e a maioria das fábricas de armas. O exército sulista, contudo, tinha dois aspectos centrais a seu favor: além de possuir os mais competentes estrategistas militares do seu lado, tinha um conhecimento maior do território, já que não era preciso invadir o Norte para conquistar a independência, diferentemente do exército inimigo. Mais do que tudo, a população do Sul acreditava que ao lutar na guerra estava defendendo 93

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mais do que seus lares, mas suas próprias tradições. Portanto, mesmo em desvantagem, os soldados sulistas lutaram com muita determinação. Mesmo que, de forma mais objetiva, a Guerra Civil tenha ocorrido por razões políticas e econômicas, de certa maneira a causa moral do conflito foi a escravidão. E durante todo o período das batalhas, a estrutura escravocrata ia perdendo a força. Cada vez que uma tropa nortista invadia uma região confederada, um enorme contingente de negros fugia das fazendas. Em 1862, Lincoln lança uma versão preliminar da Proclamação de Emancipação e, em 1.º de Janeiro de 1863, os escravos negros da América se tornam livres. Mesmo tendo um impacto imediato reduzido, a libertação dos escravos foi uma questão vitoriosa para a União. Em 1863, ocorre a maior batalha de toda a Guerra Civil: a Batalha de Gettysburg. Soldados da Confederação tentaram romper as linhas do exército da União em Gettysburg, Pennsylvania, e o resultado foi o mais sangrento confronto de toda a guerra, com aproximadamente 42 mil mortos. A Batalha de Gettysburg também é considerada um momento decisivo da guerra, pois foi a partir dela que a União passa a acumular um histórico de vitória e os exércitos Confederados passam a recuar. Alguns meses após o fim da Batalha de Gettysburg, o presidente Lincoln realizou no mesmo local onde havia ocorrido o confronto, aquele que é talvez o mais famoso discurso da história norte-americana: o Discurso de Gettysburg. Inaugurando um cemitério nacional onde estavam enterrados aqueles que deram sua vida pela consolidação dos Estados Unidos, Lincoln proferiu um curto discurso, mas cujo significado marcou profundamente o imaginário sobre a Guerra Civil. Em seu trecho mais famoso, ele afirma: The brave men, living and dead, who struggled here, have consecrated it, far above our poor power to add or detract. The world will little note, nor long remember what we say here, but it can never forget what they did here. It is for us the living, rather, to be dedicated here to the unfinished work which they who fought here have thus far so nobly advanced. It is rather for us to be here dedicated to the great task remaining before us – that from these honored dead we take increased devotion to that cause for which they gave the last full measure of devotion – that we here highly resolve that these dead shall not have died in vain – that this nation, under God, shall have a new birth of freedom – and that government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth. (McMICHAEL et al., 2001, p. 1.014)

Em suas palavras, Abraham Lincoln invoca a memória daqueles que tão bravamente lutaram pela preservação do país ao dizer que aqueles que ali morreram não morreram em vão. Além disso, cita a herança cristã da América (“this nation, under God”) e os principais valores que ditam as regras de sua sociedade (“a new birth of freedom”). Porém, a passagem mais conhecida do Discurso de Gettysburg é quando Lincoln afirma que o governo norte-americano é “of the 94

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people, by the people, for the people” – ou seja, é do povo dos Estados Unidos que surge a força da nação, é pelo povo que se luta na guerra e é para o povo que se quer manter a união. Em 1865, depois de uma série de derrotas, a Confederação declara sua rendição e a União garante que os Estados Unidos são apenas uma nação, em que o trabalho livre e assalariado é presente em todos os estados. Mas o fim da guerra foi o início de um longo e doloroso processo de reconstrução para o país, que teria reflexos na literatura produzida a partir de então.

Consequências do conflito: textos literários de temática da Guerra Civil Com o fim da Guerra Civil, os Estados Unidos precisavam se reerguer como uma nação forte. Para isso era necessária não só uma reconstrução em termos estruturais mais práticos (especialmente cidades inteiras devastadas pelo conflito), mas também em termos políticos: a nação deveria se reerguer mais forte e mais unida. Em 1864, Abraham Lincoln foi reeleito presidente, e seu principal objetivo era a reestruturação do país. Em seu último discurso público, em abril de 1865, o presidente afirmou: [A reconstrução] será repleta de dificuldades. Ao contrário do que ocorre na guerra entre nações independentes, não há um órgão autorizado com o qual possamos tratar. Nenhum homem tem autoridade para renunciar à rebelião por outro homem. Devemos simplesmente começar e prosseguir a partir de elementos desorganizados e discordantes. Nem é pouco, como embaraço adicional, que nós, o povo leal, difiramos entre nós mesmos quanto ao método, à maneira e aos meios da reconstrução. (WRIGHT, 2008, p. 207)

Lincoln, em sua fala, está mais do que alertando sobre o longo e complicado processo à frente do país. Na verdade, ele também está se referindo a alguns políticos que acreditavam que o Sul deveria sofrer uma série de medidas punitivas por ter se separado da União e causado a guerra. O presidente era contra a punição aos estados sulistas, pois assim a própria reconstrução dos ideais da nação estaria comprometida. No entanto, uma crise maior viria a surgir. Dias depois de proferir o discurso acima, o presidente Lincoln leva um tiro enquanto assistia a uma peça em Washington. O assassino era um extremista sulista chamado John Wilkes Booth, que se ressentia da derrota da Confederação e considerava Lincoln um tirano. O assassinato de Lincoln foi um duro golpe não só para a política e para toda uma mentalidade norte-americana, como bem escreveu o poeta James Russel Lowell: 95

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Nunca, antes daquela sobressaltada manhã de abril, uma multidão tão numerosa de homens e mulheres derramara tantas lágrimas pela morte de alguém que nunca tinham visto, como se com sua partida tivesse desaparecido também uma presença amiga, deixando suas vidas mais frias e mais sombrias. Nunca um panegírico fúnebre foi mais eloquente do que aqueles olhares de comiseração trocados por estranhos ao se encontrarem naquele dia. A humanidade havia perdido alguém muito próximo. (LOWELL, In: CINCOTTA, 1994, p. 169-170)

Com a morte do presidente-símbolo da justiça e dos ideais norte-americanos, a reconstrução do país se encontrou numa situação delicada. O vice-presidente Andrew Johnson assumiu o cargo e, com ele, uma série de problemas decorridos da Guerra Civil: os termos da reunificação sulista, a reconstrução das cidades praticamente devastadas, a reestruturação da economia dos estados do Sul e a definição do papel dos ex-escravos na sociedade pós-guerra. De todos esses casos, a situação dos negros era a mais complexa. Embora a escravidão tivesse terminado e alguns políticos republicanos apoiassem a causa dos ex-escravos, os negros não eram vistos como iguais aos brancos, e a segregação racial se tornou uma característica da sociedade norte-americana, só sendo questionada na segunda metade do século XX (ou seja, 100 anos depois) com os movimentos de luta pelos direitos civis. Apesar da promulgação da 14.ª emenda da Constituição em 1866, que tornava os negros cidadãos norte-americanos (inclusive dando a eles direito ao voto), o preconceito permaneceu muito forte no país, dando origem até mesmo a organizações secretas que espalhavam violência contra os negros, sendo a mais famosa a Ku Klux Klan. As tropas federais permaneceram no sul por um período de aproximadamente 11 anos, e os estados sulistas foram governados por grupos pouco competentes e corruptos nesse período. Ao término da reconstrução das cidades (o sul foi a região mais afetada já que a Guerra Civil se deu no seu território), no entanto, a situação não seria amplamente satisfatória: Os republicanos, firmemente estabelecidos no Norte, abandonaram os eleitores do Sul, inclusive seus adeptos negros. Isso permitiu que o Sul desarticulasse o programa de reconstrução muito rapidamente. Os brancos tornaram-se uma vez mais dominantes e a estrita segregação das raças continuaria até a segunda metade do século XX. (WRIGHT, 2008, p. 215)

Não foi só apenas a questão racial que teve de esperar até o século XX para ser amplamente discutida. A maior parte da literatura produzida sobre a Guerra Civil só veio a ser publicada anos depois do fim do conflito. As grandes vozes literárias do período (Hawthorne, Whitman, Dickinson) estiveram à margem da guerra, incluindo pouca ou nenhuma referência a ela em seus trabalhos. Não é à toa que o mais importante texto produzido durante a Guerra Civil foi o Discurso de Gettysburg feito por Abraham Lincoln, pois esse é o tipo de produção textual que floresce no campo de batalha: discursos, canções de guerra, relatos de 96

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soldados, sermões. Whitman teria afirmado: “The real war will never get into the books.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 185) Uma das primeiras obras a ser considerada uma reflexão profunda sobre a Guerra Civil através da experiência direta de um soldado no campo de batalha foi The Red Badge of Courage (O Emblema Rubro da Coragem), de Stephen Crane, publicado em 1896. Crane nasceu seis anos depois do fim do conflito, mas seu romance permanece até hoje um estudo da guerra em seu estado bruto, especialmente porque o autor (mesmo não tendo presenciado a Guerra Civil) viu guerras muito de perto trabalhando como correspondente jornalístico em Cuba e na Grécia. The Red Badge of Courage é um dos primeiros trabalhos da fase realista da literatura norte-americana, e por isso tem uma abordagem verossímil e até mesmo chocante que vai marcar época. Nunca um romance havia sido tão direto em seu retrato da brutalidade da guerra. Mesmo que muitas vezes a narrativa evite aspectos mais sangrentos e mórbidos, a vitalidade da descrição das batalhas garante que a obra permaneça até hoje como o principal romance de guerra norte-americano. Os personagens do romance são em sua maioria anônimos, lutando por uma causa coletiva que não compreendem totalmente e que, tentando se tornar heróis românticos, acabam se deparando com o mais cruel realismo. Um deles é o protagonista Henry Fleming, um jovem soldado que em dois dias de guerra passa por momentos de extrema covardia até chegar a representar o mais alto heroísmo. No entanto, a coragem de Fleming é mostrada não com tintas honradas, mas tratada como algo necessário à sobrevivência num mundo que perdeu a noção do racional: At the conclusion [...] the world Henry has at last come to terms with is hellish and irrational, inhabited by smudged jabbering creatures “with their swaying bodies, black faces, and glowing eyes, like strange and ugly fiends jigging heavily in the smoke.” The words Crane repeatedly falls back upon to describe the man-made clamor of war are “wild”, “mad”, “insane”, “crazy”, “delirium”, “enthusiasm”, “frenzy”, “frantic”. (AARON, 1987, p. 217)

É esta visão insana que torna The Red Badge of Courage o trabalho mais contundente sobre a Guerra Civil norte-americana. A narrativa de Crane despe o conflito das palavras pomposas e causas nobres que sempre foram associadas a esse evento histórico. A atmosfera de combate constante, mas também altamente generalizada (poderia ser qualquer guerra, poderiam ser quaisquer jovens soldados) são um retrato (que quer se fazer) fiel do período mais sangrento da história dos Estados Unidos. Mas foi a partir da Guerra Civil que uma nação realmente unida se lançou obstinadamente no caminho do sucesso e da prosperidade. 97

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Texto complementar Uncle Tom’s Cabin (STOWE, 2003)

It is impossible to conceive of a human creature more wholly desolate and forlorn than Eliza, when she turned her footsteps from Uncle Tom’s cabin. Her husband’s suffering and dangers, and the danger of her child, all blended in her mind, with a confused and stunning sense of the risk she was running, in leaving the only home she had ever known, and cutting loose from the protection of a friend whom she loved and revered. Then there was the parting from every familiar object – the place where she had grown up, the trees under which she had played, the groves where she had walked many an evening in happier days, by the side of her young husband – everything, as it lay in the clear, frosty starlight, seemed to speak reproachfully to her, and ask her whither could she go from a home like that? But stronger than all was maternal love, wrought into a paroxysm of frenzy by the near approach of a fearful danger. Her boy was old enough to have walked by her side, and, in an indifferent case, she would only have led him by the hand; but now the bare thought of putting him out of her arms made her shudder, and she strained him to her bosom with a convulsive grasp, as she went rapidly forward. The frosty ground creaked beneath her feet, and she trembled at the sound; every quaking leaf and fluttering shadow sent the blood backward to her heart, and quickened her footsteps. She wondered within herself at the strength that seemed to be come upon her; for she felt the weight of her boy as if it had been a feather, and every flutter of fear seemed to increase the supernatural power that bore her on, while from her pale lips burst forth, in frequent ejaculations, the prayer to a Friend above – ”Lord, help! Lord, save me!” If it were your Harry, mother, or your Willie, that were going to be torn from you by a brutal trader, tomorrow morning, – if you had seen the man, and heard that the papers were signed and delivered, and you had only from twelve o’clock till morning to make good your escape – how fast could you walk? How many miles could you make in those few brief hours, with the 98

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darling at your bosom – the little sleepy head on your shoulder – the small, soft arms trustingly holding on to your neck? For the child slept. At first, the novelty and alarm kept him waking; but his mother so hurriedly repressed every breath or sound, and so assured him that if he were only still she would certainly save him, that he clung quietly round her neck, only asking, as he found himself sinking to sleep: “Mother, I don’t need to keep awake, do I?” “No, my darling; sleep, if you want to.” “But, mother, if I do get asleep, you won’t let him get me?” “No! so may God help me!” said his mother, with a paler cheek, and a brighter light in her large dark eyes. “You’re sure, an’t you, mother?” “Yes, sure!” said the mother, in a voice that startled herself; for it seemed to her to come from a spirit within, that was no part of her; and the boy dropped his little weary head on her shoulder, and was soon asleep. How the touch of those warm arms, the gentle breathings that came in her neck, seemed to add fire and spirit to her movements! It seemed to her as if strength poured into her in electric streams, from every gentle touch and movement of the sleeping, confiding child. Sublime is the dominion of the mind over the body, that, for a time, can make flesh and nerve impregnable, and string the sinews like steel, so that the weak become so mighty. The boundaries of the farm, the grove, the wood-lot, passed by her dizzily, as she walked on; and still she went, leaving one familiar object after another, slacking not, pausing not, till reddening daylight found her many a long mile from all traces of any familiar objects upon the open highway. She had often been, with her mistress, to visit some connections, in the little village of T —, not far from the Ohio river, and knew the road well. To go thither, to escape across the Ohio river, were the first hurried outlines of her plan of escape; beyond that, she could only hope in God. When horses and vehicles began to move along the highway, with that alert perception peculiar to a state of excitement, and which seems to be a sort of inspiration, she became aware that her headlong pace and distracted 99

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air might bring on her remark and suspicion. She therefore put the boy on the ground, and, adjusting her dress and bonnet, she walked on at as rapid a pace as she thought consistent with the preservation of appearances. In her little bundle she had provided a store of cakes and apples, which she used as expedients for quickening the speed of the child, rolling the apple some yards before them, when the boy would run with all his might after it; and this ruse, often repeated, carried them over many a half-mile. After a while, they came to a thick patch of woodland, through which murmured a clear brook. As the child complained of hunger and thirst, she climbed over the fence with him; and, sitting down behind a large rock which concealed them from the road, she gave him a breakfast out of her little package. The boy wondered and grieved that she could not eat; and when, putting his arms round her neck, he tried to wedge some of his cake into her mouth, it seemed to her that the rising in her throat would choke her. “No, no, Harry darling! mother can’t eat till you are safe! We must go onon-till we come to the river!” And she hurried again into the road, and again constrained herself to walk regularly and composedly forward.

Dicas de estudo O clássico E o Vento Levou é um dos filmes mais famosos a retratar as consequências devastadoras da Guerra Civil para o sul dos Estados Unidos. Através da saga de Scarlett O’Hara, o filme (baseado no romance de Margaret Mitchell) traça um retrato do estilo de vida sulista antes e após o conflito, incluindo a relação com os escravos e a estrutura latifundiária. O filme Deuses e Generais aborda o aspecto militar e político da guerra, desde a agitação política sulista com o intuito separatista até as primeiras batalhas significativas da Guerra Civil. Tratando de aspectos biográficos dos principais líderes militares do Norte e do Sul, o filme é rico na descrição do pano de fundo histórico e também nas grandiosas cenas de guerra.

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A Guerra Civil e a literatura correspondente

Atividades 1. Qual a importância do romance Uncle Tom’s Cabin para a Guerra Civil norte-americana?

2. Quais as principais consequências da Guerra Civil norte-americana?

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O Realismo norte-americano Após a fase de reconstrução que sucedeu a Guerra Civil, os Estados Unidos tiveram o principal período de crescimento de sua história. Considerando-se a economia, o desenvolvimento científico, a reorganização do espaço social e os avanços na agricultura, o país vai ser marcado por uma expansão em termos grandiosos que vai persistir de maneira praticamente ininterrupta até a 1.ª Guerra Mundial. Em termos territoriais, os Estados Unidos finalmente chegam à última fronteira, se estabelecendo definitivamente no oeste. Para isso, dois elementos que mudaram toda a estrutura comercial da virada do século são fundamentais: a máquina a vapor e as ferrovias. As planícies centrais da América do Norte são ocupadas, e uma nova era de oportunidades se configura para essa nação que vai do Atlântico ao Pacífico. Esse desenvolvimento aparentemente sem limites, contudo, tem consequências graves. O avanço industrial norte-americano e o crescimento dos centros urbanos inauguram problemas sociais até então nunca vistos no país. Enquanto surgem os primeiros magnatas em suas mansões nova-iorquinas, também aparece uma população extremamente pobre, trabalhando em condições indignas nas fábricas que garantem o progresso. Os negros, mesmo sendo considerados cidadãos, são figuras à margem da sociedade, segregados e sofrendo todo o tipo de discriminação. E mesmo a expansão territorial dos Estados Unidos só vai existir devido ao extermínio de grande parte das tribos indígenas que ocupavam há muito tempo a região centro-oeste do país. É nesse contexto de profundos contrastes que vai emergir uma nova tradição literária norte-americana: o Realismo. Procurando representar a realidade cotidiana da população, muitas vezes intrincada e complexa, a literatura realista vai segurar um espelho para a América, revelando os seus preconceitos e suas problemáticas. Os pontos de vista lançados sobre essa fase dos Estados Unidos são variados: alguns autores, como Mark Twain, vão se concentrar na escrita que concerne a aspectos regionais; certos escritores como Theodore Dreiser verão o país através de uma perspectiva

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naturalista; enquanto Henry James usará o requinte narrativo para traçar um rico panorama social do país.

As mudanças socioeconômicas O fim da Guerra Civil em 1865 proporcionou não apenas uma mudança na estrutura política norte-americana, mas também em sua proposta de modelo econômico. Isso porque, com a vitória dos estados do Norte, a visão dos Estados Unidos como um país fundamentalmente agrário e baseado em latifúndios (como sonhou Thomas Jefferson) tornou-se impraticável. O Norte, ao vencer a guerra, impôs uma nova perspectiva para o país: uma economia baseada na indústria e no comércio, nos avanços científicos e no desenvolvimento de uma sociedade urbana, em que os resultados da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra algumas décadas antes fossem adaptados à realidade norte-americana. A indústria tornou-se a principal força da economia norte-americana. De certa forma, a Guerra Civil serviu para o progresso tecnológico das fábricas. Enquanto o conflito se desenrolava, vários operários do Norte partiram para o campo de batalha e a força de trabalho da região se viu diminuída. Por outro lado, era necessário que armas e roupas (entre outros produtos) fossem fabricadas. Assim, a mecanização da produção mostrou-se a melhor solução, e como resultado desse processo a organização do trabalho nos Estados Unidos jamais seria a mesma. O trabalho manual, anteriormente indispensável à produção manufatureira, foi substituído por máquinas. Trabalhadores passaram a ser vistos como menos importantes que o maquinário industrial, de alto custo mas também extremamente eficiente. Ainda assim, a população migrava para as grandes cidades em busca de emprego. Surgem as grandes corporações, onde a relação entre empregado e empregador é cada vez mais impessoal. Certamente que esse salto industrial necessitava de muita matéria-prima. Em especial as fábricas do ramo da siderurgia, já que para alavancar todo esse desenvolvimento, aço e ferro eram essenciais. A expansão para o oeste em muito ajudou nesse sentido, pois novas descobertas geológicas revelaram à indústria novas jazidas (em especial de minério de ferro) que serviriam de base para a indústria siderúrgica do país. A produção de carvão também era imensa, o que proporcionou a consolidação da máquina a vapor como a tecnologia-símbolo do século XIX. Com ferro e carvão, os Estados Unidos tinham a sua industrialização garantida. 104

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Além da mão de obra e da matéria-prima, as indústrias do país também necessitavam de um volumoso investimento. Dados afirmam que “entre 1869 e 1898, estima-se que cerca de 13% da renda nacional foi aplicada na expansão da indústria” (KARNAL et al., 2008, p. 154). Grande parte desse capital veio de alguns empresários que em pouco tempo se tornariam os primeiros magnatas em solo norte-americano – verdadeiros milionários, cujas fortunas acompanharam o crescimento dos Estados Unidos em uma potência industrial. A origem dessas riquezas, novamente, começa a ser delineada no período da Guerra Civil: Alguns poucos – já ricos – ficaram riquíssimos após a guerra. O conflito favoreceu a concentração de capital. Por exemplo: os banqueiros e empresários que haviam concedido empréstimos ou firmado contratos vantajosos com o governo da União para o abastecimento dos soldados, a construção de pontes ou estradas de ferro obtiveram grandes lucros e puderam ampliar seus negócios. Também durante a guerra ocorreram várias fusões de empresas; o que a princípio visava agilizar os transportes e as comunicações acabou engolindo as pequenas firmas, favorecendo os monopólios e fortalecendo grandes capitalistas. (JUNQUEIRA, 2001, p. 96)

Embora boa parte desses empresários tenha lucrado bastante com o período de reconstrução pós Guerra Civil e outros tenham feito fortuna como banqueiros, vários dos homens que fizeram milhões investindo na alavancada industrial dos Estados Unidos tiveram origem humilde, até mesmo na pobreza. No entanto, com uma visão empreendedora, trabalho duro, muita ambição e em muitas vezes, exploração da força de trabalho, eles serviram como personificação do “sonho americano”. Cada grande indústria norte-americana parecia estar concentrada nas mãos de um só homem: o ferro e o aço tinham como barão Andrew Carnegie; as ferrovias eram controladas por William H. Vanderbilt; e mais especialmente, John D. Rockefeller tornou-se um dos homens mais ricos do mundo controlando a indústria petrolífera do país. Essa riquíssima produção industrial sob controle de poucos se fez possível através de um engenhoso esquema de monopólios e cartéis. Surgem as corporações – grandes empresas com uma imensa reserva de capital, continuidade de controle e segurança de investimento. Essas corporações geralmente se associavam em trustes – organizações que controlavam tanto a produção quanto os mercados. Concentradas em trustes, as corporações tinham mais força para combater a concorrência, além de ter vantagens em negociações trabalhistas. Dessa forma, esses “capitães da indústria”, como eram chamados, controlaram não só a produção das fábricas norte-americanas mas toda a economia dos Estados Unidos. No final do século XIX, o lucro vindo das indústrias já era superior ao da agricultura, o que consolidava de vez o país como potência desenvolvida. Nas primeiras décadas do século XX, mais de um terço da produção industrial do pla105

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neta vinha dos Estados Unidos. Contudo, a indústria por si só não seria capaz de proporcionar o salto rumo ao desenvolvimento dado pelo país naquele período. O investimento nas fábricas caminhou lado a lado a importantes invenções e uma próspera indústria de patentes possibilitou aos norte-americanos estarem sempre na vanguarda da tecnologia. Um dos nomes mais significativos do período é o de Thomas Edison. Inventor e empresário, Edison vai ser a personificação do norte-americano trabalhador e visionário que, isolado em seu laboratório, vai criar tecnologias que vão revolucionar o mundo. A mais importante dela, a lâmpada elétrica, vai mudar a forma com que a sociedade se organizava. Suas descobertas com relação à eletricidade vão se fazer presentes no cotidiano dos Estados Unidos e garantir o sucesso de sua indústria. Entre outras inúmeras invenções norte-americanas do período (a máquina de escrever, a máquina registradora etc), chama atenção o especial desenvolvimento de tecnologias que facilitassem a comunicação, como a invenção do telégrafo e o aperfeiçoamento do telefone. Para um país que adquirira dimensões continentais, era essencial que todas as regiões fossem interligadas através de uma rede de comunicação mais rápida que os meios de postagem tradicionais. Mas se o problema de envio de informações estava de certa forma resolvido, como se solucionaria a questão do envio da imensa produção industrial para diferentes áreas de tão vasto país? Surgem então as ferrovias. Juntamente com o aço e o carvão, as ferrovias são o símbolo do período de crescimento industrial dos Estados Unidos. Foi através delas que comerciantes, compradores e empresários foram conectados por todo o país. Além disso, as ferrovias proporcionaram o crescimento de centros comerciais como Pittsburgh e Chicago. Em 1869, é criada a primeira ferrovia transcontinental, ligando o Atlântico ao Pacífico. Em 1889, os Estados Unidos têm o mais extenso sistema ferroviário do mundo. As cidades cresciam como nunca antes, e Nova York se torna a capital desse novo mundo urbano e industrializado. Essa expansão das metrópoles se deu em grande parte devido à grande onda de imigração ocorrida no final do século XIX. Irlandeses, eslavos, poloneses e outros povos europeus partiram para a América em busca de prosperidade e oportunidades de emprego – desde então, o país foi visto como a “terra das oportunidades”. Em 1910, mais de um terço da população das grandes cidades norte-americanas era estrangeira. Diante desse progresso urbano e tecnológico, não havia espaço para um estilo de vida tido como inferior e atrasado – o indígena. Os índios norte-americanos 106

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(ou “Native-Americans”) habitavam em sua maioria a região centro-oeste do país, nas chamadas “Grandes Planícies”. A princípio, essa área era usada apenas como passagem para aqueles que dirigiam para a costa do Pacífico. No entanto, quando se descobriu o potencial da região para a criação de gado e, posteriormente, ouro foi encontrado, o centro-oeste foi ocupado pelo homem branco. Isso criou constantes conflitos com os nativos que, embora tivessem algumas vitórias, foram finalmente massacrados ou confinados a reserva indígenas em áreas rochosas que não interessavam aos rancheiros ou mineradores. Nas cidades, os negros estavam longe de ser considerados “cidadãos” em toda a dimensão da palavra. Eles permaneciam em subempregos, viviam em condições deploráveis e segregados pela sociedade. Vários operários também trabalhavam em condições insatisfatórias nas fábricas, e a diferença entre os mais ricos e os mais pobres nunca havia sido tão grande. É nesse choque entre a prosperidade e a miséria que vai se localizar grande parte da literatura realista. Procurando retratar não só o século XIX, mas toda a realidade de forma fiel e objetiva, esse estilo literário vai quebrar com a tradição romântica, tão forte no imaginário norte-americano, para fundar uma nova forma de escrita.

Uma voz nacional: Mark Twain O termo realismo tem sua origem na palavra latina res, que significa “coisa”. Uma literatura realista, portanto, seria aquela ligada diretamente às coisas do mundo. Desde que surgiu, o termo Realismo (especialmente na literatura) é visto como o oposto ou até mesmo uma reação ao Romantismo. O que a escrita romântica teria de transcendental e emotiva, a escrita realista teria de racional e material. Enquanto os românticos concentravam sua narrativa em aventuras dramáticas ou no culto ao passado, os realistas se ocupavam dos problemas reais de pessoas comuns, usando o contexto histórico do presente. A primeira vez que um estilo literário foi considerado “realista” foi na França, em meados do século XIX. De acordo com uma revista literária exatamente intitulada Réalisme, esse estilo literário pode ser definido da seguinte forma: “Art should give a truthful representation of the real world, [...] it should study contemporary life meticulously in order to provide a exact, complete, and sincere reproduction of the social milieu, and [...] it should do so dispassionately, impersonally and objectively.” (DAVIDSON; WAGNER-MARTIN, 1995, p. 749) Esse desejo em reproduzir meticulosamente a realidade social pode parecer para leitores do século XXI um tanto ingênua, já que um dos pontos centrais dos 107

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estudos da literatura atualmente é de que forma a subjetividade se faz presente na ficção. No entanto, é importante lembrar que a escrita realista, por mais que tente se fazer objetiva e impessoal, também é a criação de um autor – com seus pontos de vista, preconceitos e opiniões. Portanto, as obras pertencentes ao gênero realista não são meramente relatórios do que ocorre no mundo factual, mas reflexões lançadas sobre ele. Podemos resumir essa ideia da seguinte forma: “Realists do more than passively record the world outside; they actively create and criticize the meanings, representations, and ideologies of their own changing culture.” (BELL, 1993, p. 7) Essa changing culture (mudança cultural) citada por Bell cabe perfeitamente no contexto dos Estados Unidos ao final do século XIX. Com a passagem do modelo econômico do país para um esquema industrial, a consolidação de um estilo de vida urbano e uma reorganização das classes sociais (agora incluindo negros e imigrantes), a paisagem da sociedade norte-americana mudou profundamente – e a literatura acompanhou essa transição de perto. A Guerra Civil foi o evento nos Estados Unidos que marcou uma transição de um ideal romântico para uma perspectiva realista. Ao fim do período mais sangrento da história norte-americana, ficou evidente que os princípios transcendentais de Ralph Waldo Emerson, os devaneios macabros de Edgar Allan Poe ou as temáticas puritanas de Nathaniel Hawthorne não mais representavam a maior parte do interesse artístico. A guerra deu ao país um choque de realidade, e a produção literária do período percebeu que narrar fielmente os novos aspectos decorrentes do conflito era uma das melhores formas de lidar com essa realidade. A mudança no estilo literário causou diretamente uma mudança também na forma com que a literatura era produzida. À medida que os escritores buscavam descrever objetivamente a realidade, perceberam que o romance era uma forma mais adequada para seus novos propósitos do que a poesia. A escrita poética consistia na descrição da vida apenas em seus momentos mais intensos, não em seus aspectos cotidianos, ou como ela era de verdade. Assim, a poesia no período realista perde muito de sua importância. O Realismo também traz uma mudança na ênfase geográfica dada pela literatura norte-americana até então. Praticamente toda a produção literária do país havia se dado na região leste – portanto a maioria dos autores, do público-leitor e das temáticas abordadas pertencia à região da costa do Atlântico dos Estados Unidos. Isso se deu especialmente durante o Romantismo, quando a Nova Inglaterra praticamente monopolizou a literatura. Com a expansão territorial pelo 108

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meio-oeste até chegar à costa do Pacífico, percebeu-se que, para se desenvolver, a escrita norte-americana deveria ampliar seus horizontes além da visão de mundo da costa leste. Dessa forma, a literatura ganha forma, um novo estilo de escrita baseado em narrativas de viagem, contos de fronteira e histórias interessadas em representar a realidade norte-americana através de uma “cor local”: o regionalismo. Entre os principais fatores para o surgimento da escrita regionalista podemos citar: [...] the domination in book-length publication of European authors (not until 1891 did American writers acquire the protection of an international copyright law), the emergence of mass periodicals as a market for short fiction, postwar curiosity about disparate sections of the country and a growing nostalgia for simpler times and tales of an ever-more-strange past. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 191)

Dessa forma, o regionalismo foi uma das mais importantes vertentes da escrita realista. Seu principal propósito era resgatar as peculiaridades e aspectos particulares de certas regiões dos Estados Unidos que estavam começando a ser desbravadas – seus costumes, hábitos, dialetos, e estilo de vida. De certa forma, o regionalismo coloca o chamado Realismo norte-americano em uma nova perspectiva ao nos indagar: qual realidade? e quais Estados Unidos? Nesse contexto de novas vozes e por vezes conflitantes realidades, nenhum escritor se mostrou mais capaz do que Mark Twain (1835-1910). Sua literatura traz uma diferente vitalidade às letras norte-americanas ao desenvolver narrativas que, mesmo que em boa parte fundada em um estilo humorístico, consegue trazer à tona uma forte crítica social e moral. Seja através de contos folclóricos, lembranças da infância ou um irônico pessimismo, Twain foi um dos grandes inovadores da literatura dos Estados Unidos ao final do século XIX. Mark Twain (pseudônimo de Samuel L. Clemens) começou a ter contato com textos literários ao trabalhar com seu irmão mais velho em uma editora na cidade em que passou grande parte de sua juventude, Hannibal, no estado do Missouri. Depois de algum tempo, Twain parte para uma experiência que vai definir boa parte de sua vida e suas principais obras: depois de um período de aprendizado e treinamento, ele torna-se piloto de um barco a vapor no Rio Mississippi. Nesse período, teve uma breve porém bem-sucedida carreira, de onde tirou seu pseudônimo, referente a duas marcas – twain – que indicam quando uma embarcação pode navegar com segurança). Sua fase no Mississippi terminou com a chegada da Guerra Civil, e Twain lutou por um curto período no conflito do lado da Confederação Sulista. Depois de uma tentativa frustrada de enriquecimento ao explorar as minas de prata do 109

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oeste, ele é empregado pelo jornal Territorial Enterprise e começa sua carreira como notório humorista e principal nome da fronteira norte-americana. Mark Twain ganha reputação nacional com o livro The Celebrated Jumping Frog of Calaveras County (O Celebrado Sapo Saltador de Calaveras County), uma coletânea de contos. Nessa obra, o autor remete a tradições folclóricas do oeste norte-americano, já que praticamente todas as histórias contadas ali já eram conhecidas como anedotas regionalistas. Depois desse sucesso inicial, Twain parte para o leste para, como o próprio afirmou, “atender a um chamado da literatura de ordem inferior – i.e. humorística”. Nesse período, tornou-se ainda mais conhecido com suas notícias de jornal em tom burlesco e sua veia cômica. O espírito regionalista (fundado no meio-oeste dos Estados Unidos) ao reunir-se com uma experiência urbana e industrial do leste, dá origem a uma literatura que funciona como síntese de uma cultura em rápida mudança. A partir de então, as obras de Mark Twain podem ser descritas da seguinte maneira: His [Twain’s] materials were always to lie in the world of the West and the rural Mississippi Valley of the period before the war; but the essential conditions and primary spirit of his writing were to come directly from the rapidly changing world that was to follow it. The prewar world was agrarian, the postwar world industrial; the prewar world he knew was based on black slavery, the postwar world he would come to explore depended increasingly on wage slavery. The world of the river frontier was the world of innocent, individual morality; the world of the new industrial and urban frontier was the world of the Genteel Tradition. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 196)

Em 1884 é publicado o trabalho mais aclamado de Mark Twain: The Adventures of Huckleberry Finn (As Aventuras de Huckleberry Finn). É com essa obra que Twain se torna o primeiro autor efetivamente popular dos Estados Unidos. Na verdade, esse romance é o ápice criativo do talento genuíno do autor em transpor para a literatura a chamada “cor local” regionalista. Esse processo já havia começado antes com dois outros importantes trabalhos: The Adventures of Tom Sawyer (As Aventuras de Tom Sawyer), de 1876, e Life on the Mississippi, (A Vida no Mississippi), de 1883. No primeiro, Twain realiza uma evocação do período de sua infância ao morar na região do Vale do Mississippi. O protagonista, o jovem Tom Sawyer, é a representação do menino travesso que, no meio de diversas aventuras e amores infantis, serve como símbolo da liberdade inerente àqueles de coração bom. Já em Life on the Mississippi, o autor narra o período em que trabalhou como piloto de um barco a vapor naquele rio. Apesar de ser um passado altamente idealizado, Twain trata sua experiência com um cunho realista, criando uma vívida transcrição de como era navegar pelo caminho fluvial mais famoso dos Estados Unidos antes da Guerra Civil. 110

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Com a experiência desses dois romances anteriores sobre recordações da juventude no Vale do Mississippi é que se torna possível para Twain a realização de The Adventures of Huckleberry Finn, sua obra-prima. O protagonista-narrador do romance é o jovem garoto Huckleberry (também chamado de “Huck”) Finn, que já havia tido uma participação em The Adventures of Tom Sawyer. A história começa com a fuga de Huck da cabana de seu pai, uma figura abusiva e controladora, através de uma jangada. Posteriormente, ele é acompanhado por Jim, um escravo fugido. Ambos então partem juntos na jangada descendo o rio Mississippi, sem saber as diferentes aventuras que os esperam. Diferentemente de Tom Sawyer, Huckleberry Finn é um personagem construído sob um forte dilema moral. O tema central do romance é a tensão existente entre uma noção preestabelecida de civilização e a liberdade que emana da inocência juvenil em contato com o natural. As decisões tomadas por Huck podem até ser vistas como simples e ingênuas, mas na verdade elas são representativas de uma pureza além da civilização, livres das amarras morais da consciência em que o certo nem sempre é o melhor. A jangada que percorre o Mississippi onde navegam um menino de espírito livre e um escravo fugido serve como microcosmo de uma jornada maior em busca de uma realidade mais humana. Uma interessante passagem que ilustra esse conflito moral orquestrado pela narrativa de Twain é quando Huck, em uma situação difícil, não consegue rezar. Ele pensa então que a razão desse fato é porque está tomando as decisões erradas, tentando escapar de uma vida civilizada e ainda por cima ajudando um escravo fugitivo. O personagem decide então escrever um bilhete para a proprietária de Jim, informando seu paradeiro. Após ler o que tinha escrito, o alívio moral de Huck contrasta com o que lhe diz o coração livre: I felt good and all washed clean of sin for the first time I had ever felt so in my life, and I knowed I could pray now. But I didn’t do it straight off, but laid the paper down and set there thinkingthinking how good it was all this happened so, and how near I come to being lost and going to hell. And went on thinking. And got to thinking over our trip down the river; and I see Jim before me, all the time; in the day, and in the night-time, sometimes moonlight, sometimes storms, and we a floating along, talking, and singing, and laughing. But somehow I couldn’t seem to strike no places to harden me against him, but only the other kind. I’d see him standing my watch on top of his’n, stead of calling me, so I could go on sleeping; and see him how glad he was when I come back out of the fog; and when I come to him agin in the swamp, up there where the feud was; and such-like times; and would always call me honey, and pet me, and do everything he could think of for me, and how good he always was [...] It was a close place. I took it up, and held it in my hand. I was a trembling, because I’d got to decide, forever, betwixt two things, and I knowed it. I studied a minute, sort of holding my breath, and then says to myself: “All right, then, I’ll go to hell” – and tore it up. (TWAIN, 2008, p. 319) 111

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Embora sinta-se “limpo do pecado” (washed clean of sin), Huckleberry Finn sabe que está fazendo algo de errado ao decidir entregar uma figura tão bondosa que o acompanha há tanto tempo. A lembrança dos momentos de alegria ao lado de Jim e a percepção do que é verdadeiramente “certo”, de acordo com seu espírito livre, o fazem rasgar o bilhete e dizer que vai para o inferno (I’ll go to hell). Nem a moral social (escravos têm de saber o seu lugar) nem a religiosa (ao fazer o que é errado ele será punido) impedem Huck de ver o mundo sob o prisma da inocência e também da humanidade. Em The Adventures of Huckleberry Finn, Mark Twain explora o regionalismo literário não apenas na temática, mas também na forma de escrita. Ao colocar Huck como o narrador, o leitor é inevitavelmente lançado na história pelo ponto de vista do personagem e, especialmente, pela maneira em que ele se expressa. A gramática e o vocabulário do romance, portanto, ilustram o vernáculo do meio-oeste, com seu dialeto peculiar e despretensioso coloquialismo. Embora o restante de sua carreira seja escrito em tom mais crítico e pessimista, a literatura de Mark Twain será para sempre lembrada como um misto de diário de viagens, autobiografia, romance de aventura e relato regional. Suas obras estão entre as mais populares da história dos Estados Unidos e seu legado vai influenciar vários dos escritores do início do século XX, em busca do talento de Twain para narrar a realidade de diferentes partes do país.

O Naturalismo Apesar de uma forte ênfase na representação das histórias locais e no estilo de vida de novas regiões dos Estados Unidos, a literatura realista norte-americana sofreu uma notável influência do Realismo europeu. O romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, é a obra máxima da literatura realista francesa, no qual a narrativa explora um tema polêmico para a época (adultério) através da descrição da vida provinciana e burguesa dos personagens. O fato do narrador não julgar moralmente os personagens e retratar fielmente tanto a hipocrisia quanto a dura realidade da vida em sociedade acabou por ter um impacto em grande parte da literatura escrita no século XIX. A produção literária francesa, no entanto, iria ter uma influência ainda maior nos romances norte-americanos com o desenvolvimento de uma nova forma de escrita: o Naturalismo. Em linhas gerais, o Naturalismo é o movimento literário que pretende explicar a realidade cotidiana através de um entendimento biológico e leis naturais disponíveis em termos científicos. O Naturalismo pode 112

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ser visto como uma continuação do Realismo, mas enquanto a escrita realista pretende descrever a realidade como ela é de verdade, o Naturalismo pretende demonstrar de forma científica como diferentes forças (a atmosfera social, a hereditariedade etc) atuam na realidade e nos indivíduos. O Naturalismo como gênero literário é um produto das ideias de Charles Darwin: o evolucionismo e o conceito de seleção natural. De certa forma, o darwinismo enfatizava o aspecto animalesco dos seres humanos, colocando-os como sujeitos ao movimento implacável da evolução. Com o impacto das ideias de Darwin, os escritores passaram a se interessar não apenas pelos fatos que compunham a realidade, mas especialmente das leis por trás dela – “a constituição biológica do homem, as operações mecânicas e impessoais da sociedade, as funções do processo evolutivo.” (BRADBURY; RULAND, 1991, p. 224) O principal nome do Naturalismo europeu foi o escritor francês Emile Zola, e seu estilo em muito influenciou a literatura norte-americana do fim do século XIX. Para Zola, a experiência humana tinha de ser analisada despindo-a de conceitos absolutos como moralidade e livre-arbítrio; pelo contrário, a experiência do homem é ditada por leis naturais e pelo contexto social, tornando-o um ser sempre controlado pelo determinismo. As características presentes nos romances de Emile Zola podem, de forma geral, servir como elementos presentes na literatura naturalista em geral: Controlled by heredity and environment, man was the product of his temperament in a social context [...]. Temperament was more important than character; setting could not be separated from a naturalistic theory of environment, nor plot from theories of evolution. Man was in a halfway house between the realm of the animals and some more perfect realm of being which future development would reveal. (LEHAN, Richard In: PIZER (Ed.), 1995, p. 47)

A partir desse ponto de vista, a própria natureza da escrita do romance é alterada. O conceito tradicional de sequências de ações realizadas por personagens que desenvolvem um enredo ficcional é substituído. No Naturalismo, o que há é a ideia do homem como uma pequena figura em meio a um vasto sistema determinista que o envolve num processo evolucionário, onde forças como livre-arbítrio e individualidade estão em grande parte ausentes. Isso torna o Naturalismo um gênero literário imbuído de um alto grau de pessimismo. Nos Estados Unidos, o Naturalismo foi profundamente influenciado historicamente pela Guerra Civil e pelas profundas mudanças sociais pelas quais o país passava. A era da fé em si mesmo e de grandes ideais – propagados por Emerson e Thoreau, entre outros – deu lugar a um período em que ações brutais e a força esmagadora da natureza eram constantes na vida cotidiana dos indivíduos. 113

Literatura Norte-Americana

A literatura norte-americana teve em Theodore Dreiser (1871-1945) o seu principal escritor naturalista. A infância de Dreiser é um retrato de grande parte da população do país no final do século XIX: seu pai era um imigrante alemão e sua família vivia em condição de extrema pobreza; seus irmãos (de um total de 13 filhos) estavam constantemente envolvidos com problemas relacionados ao álcool ou com a justiça. Na adolescência, teve diversos empregos com baixo salário (lavou pratos, foi vendedor, pintor de paredes) mas sonhava em um dia sair da condição de miséria a que estava predestinado. De certa forma, essa origem pobre e o desejo de ascender socialmente vai ser um dos elementos mais característicos de suas principais obras. Quando consegue um emprego como jornalista é que a vida de Dreiser começa a mudar. É promovido a editor de uma revista e passa a se dedicar ao estudo de Filosofia e Literatura. Dois teóricos lidos por ele nesse período terão muita importância no desenvolvimento dos principais temas de seus romances: Thomas Huxley (biólogo inglês e um dos mais importantes defensores do evolucionismo) e Herbert Spencer (filósofo inglês e o responsável por cunhar a expressão sobrevivência do mais forte após ler as teorias de seleção natural de Darwin). O primeiro romance de Theodore Dreiser é Sister Carrie, publicado no ano 1900. Parece pontual a obra ser publicada exatamente na virada do século, pois a partir dela a literatura norte-americana vai ter acesso a temas e um estilo de construir personagens até então inéditos. Dreiser lutou muito com seu editor para publicar o romance, já que seu texto era considerado ofensivo e o autor teve de fazer algumas mudanças. Mesmo assim, a mescla de inocência e experiência social que permeia a narrativa trouxe um frescor ao romance norte-americano, mesmo que o livro quando lançado tenha sido um fracasso de vendas. A protagonista de Sister Carrie é Carrie Meeber, uma simples moça do meio-oeste que, cansada de sua vida provinciana, parte para Chicago (uma das cidades símbolo da expansão urbana do final do século XIX) atraída por uma vida mais cosmopolita e de menor repressão moral. A personagem então passa por uma mudança de personalidade, colocando o senso prático à frente de um idealismo moral; assim, ela perde sua virgindade e usa de seu corpo e sua força de vontade para atingir o sucesso. A escrita de Dreiser, nesse romance, é legitimamente herdeira da tradição do Naturalismo francês, no qual as forças sociais e as motivações humanas são a energia dupla que leva à degeneração: The corruption of the individual finds a natural correspondence in the corruption of the family and society itself. Everything is corrupt and capable of degeneration and debasement, from the highest order of the government and the salon to the workers in the mines and the people in the street. (LEHAN, In: PIZER (Ed.), 1995, p. 47) 114

O Realismo norte-americano

Essa “corrupção do indivíduo”, que vai servir como elemento correspondente à corrupção da família e da sociedade, vai se fazer presente em outros romances. Em Jennie Gerhardt, de 1911, Dreiser novamente fala de uma mulher que desafia as convenções morais. Seguindo a tradição naturalista, o narrador do romance não julga as decisões da protagonista, por mais que suas atitudes sejam repreensíveis para a época, especialmente o fato de decidir ser mãe solteira. O melhor romance de Theodore Dreiser, todavia, seria publicado apenas em 1925: An American Tragedy (Uma Tragédia Americana). Aliando a tradição da escrita naturalista a uma afiada análise crítica do sonho americano, o autor traça um panorama social e psicológico dos Estados Unidos até então nunca visto. O romance conta a história de Clyde Griffiths, um jovem de origem humilde que sonha em se tornar membro da alta sociedade. O personagem se envolve sexualmente com Roberta, uma inocente moça do interior, mas sem a menor intenção de ter algum relacionamento com ela. Na verdade, Clyde tem maior interesse em Sondra, uma jovem elegante e de família rica. Ao mesmo tempo em que suas investidas são bem recebidas por Sondra e o casamento com uma moça de elevada classe social se torna possível, Clyde descobre que Roberta está grávida. Desesperado, o protagonista leva Roberta para um passeio de canoa em um lago, com o objetivo de matá-la. Ao chegar lá, Clyde perde a coragem, mas acaba por empurrar a moça (o romance não deixa claro se propositalmente ou não), fazendo o barco virar. Roberta morre afogada, e Clyde é acusado de homicídio e condenado à cadeira elétrica. O enredo de An American Tragedy é baseado em um caso real, e Dreiser parece ter visto nesta história a possibilidade de mostrar o outro lado do sonho americano, em que o desejo de sucesso muitas vezes vai de encontro a um implacável determinismo social. Por outro lado, o romance amplia a visão naturalista em que a ausência de livre-arbítrio impera. Clyde é uma vítima de forças sociais, mas também de suas próprias decisões morais. Mesmo assim, o romance questiona até que ponto é justo culpar um homem por um crime se as suas ações são mero produto das circunstâncias e da condição social em que ele está inserido. Assim, o Naturalismo funciona como um reflexo para as principais questões presentes na estruturação de uma nova sociedade norte-americana da virada do século. Apresentando um estilo narrativo e temas inovadores, esse gênero literário apresentou uma visão complexa sobre uma nova percepção da realidade e sua própria representação.

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Literatura Norte-Americana

Henry James: a literatura entre os Estados Unidos e a Europa À medida que termina o século XIX e começa o século XX, a literatura norte-americana começa gradualmente a passar por um período de transição. Embora ainda marcada pela necessidade de descrever a realidade como ela é, os romances escritos nos Estados Unidos deixam de enfatizar exclusivamente a ideia da “cor local” ou o caráter determinista. Em seu lugar, nota-se a ascensão de uma escrita mais sofisticada, aliada a um desenvolvimento mais complexo da narrativa e uma profunda exploração dos limites da consciência. O maior representante desta fase das letras norte-americanas é Henry James (1843-1916). Um dos mais produtivos escritores do Ocidente, James tem uma carreira que compreende contos, romances, peças de teatro, autobiografias, diários de viagem e críticas literárias. Embora tenha conseguido razoável fama durante a vida, a verdadeira apreciação do estilo do autor se deu após a 1.ª Guerra Mundial, quando suas obras vão inspirar novas gerações de escritores do país. Henry James nasceu em uma família rica, pertencente à alta sociedade nova-iorquina. Seu pai era um intelectual, com ensaios publicados sobre filosofia e teologia; a educação era um assunto prioritário, e seus filhos foram criados com tutores e levados desde a infância para passar longas temporadas na Europa, onde foram expostos aos hábitos e estilos de vida de uma sociedade internacional. O irmão mais velho de Henry James, Wiliam, posteriormente tornou-se um dos mais influentes filósofos dos Estados Unidos e um notável estudioso de Psicologia. O jovem Henry, por outro lado, vai usar sua experiência visitando os principais museus, teatros e bibliotecas da França, Inglaterra e Suíça como base para definir uma nova perspectiva literária. Em 1864 Henry James publica o seu primeiro conto e desde então sua produção ficcional e crítica passa a circular em grandes jornais. O autor continuava viajando constantemente para a Europa até que, em 1876, ele decide fixar residência na Inglaterra, onde vai viver pelo resto de sua vida. O fato de ser um autor norte-americano escrevendo em solo inglês vai ser primordial para a escrita de sua obra, já que um dos temas centrais da maioria de seus trabalhos é o encontro entre ingenuidade norte-americana e a vivência europeia. Durante muito tempo, essa escolha de James pela Europa foi vista como uma recusa do autor à herança cultural de seu próprio país. Contudo, James acreditava que a combinação da tradição europeia à norte-americana dava-lhe uma 116

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condição mais cosmopolita do que se fizesse parte apenas de uma esfera cultural. Em uma carta a seu irmão, o autor afirma: I aspire to write in such a way that it would be impossible to the outsider to say whether I am at a given moment an American writing about England or an Englishman writing about America (dealing as I do with both countries), and so far from being ashamed of such an ambiguity I should be exceedingly proud of it, for it would be highly civilized. (JAMES, In: RULAND; BRADBURY, 1992, p. 213)

Essa aspiração de ter sua nacionalidade dificilmente reconhecível foi alcançada por James em sua vasta obra, ao mesmo tempo coesa e ricamente variada. O conjunto de seu trabalho geralmente pode ser estudado levando-se em conta três distintas fases de produção: a primeira é a que mais diretamente explora a sua temática internacional, tratando dos aspectos trágicos e cômicos de americanos na Europa (e às vezes europeus na América); a segunda fase trabalha com a relação entre a arte e a sociedade, além de apresentar personagens oprimidos e com um rico arcabouço psicológico; a terceira e última fase é a chamada “fase principal”, em que o autor retoma a temática internacional, mas usando técnicas narrativas que o aproxima de uma escrita mais modernista. A primeira fase da obra de Henry James apresenta o escritor como observador e espectador dos acontecimentos que formam o seu enredo. Narrando as situações decorrentes do choque entre a vivência norte-americana e a europeia, ele apresentava aspectos da cultura herdada presente nos Estados Unidos e da cultura nascida na Europa. O lado norte-americano era simples e ingênuo; o europeu era experiente e por vezes corrupto. Assim como o leitor, os personagens americanos na Europa de Henry James começam como meros observadores para depois se tornarem desbravadores, mesmo que paguem um preço alto por isso. A intenção por trás da aproximação entre América e Europa nas obras do autor pode ser explicada da seguinte forma: In most of early James’s novels, the large mythology persists, drawing on the old literary polarities: innocence and experience, ordinary American life and the rich art of Europe, plain present and dusky deep past. James suggests that the romantic and innocent American will always risk defeat in Europe’s ambiguous, social and often tainted air while enlarging his or her knowledge and vision. At the same time the innocent and unencumbered American “balloon of romance”, as a kind of fiction, would need to be made more profound and grainier by incorporating some of the experiential, moral and social subtlety, the denser registration of life, to be found in the greater European novels. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 191)

O mais aclamado romance dessa primeira fase é The Portrait of a Lady (Retrato de uma Senhora), de 1881. A protagonista, Isabel Archer, é uma norte-americana que parte para a Europa e lá fica fascinada com uma nova realidade. A personagem recebe uma herança generosa, mas o dinheiro ao invés de libertá-la acaba por torná-la vítima de uma trama perversa executada por dois expatriados norte-americanos vivendo no Velho Continente. 117

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The Portrait of Lady é o trabalho de James que melhor exemplifica a temática do espírito livre norte-americano versus a corrupção europeia. Isabel Archer, ao cair num esquema maquiavélico, alcança a maturidade que os Estados Unidos parecem desconhecer, mas que é conseguida após se pagar um alto preço. A prosa elegante e refinada do autor combina curiosamente com o tema da decadência e confinamento que a protagonista encontra na Europa. Na segunda fase da literatura de Henry James, o autor aventurou-se na escrita de peças de teatro. Embora algumas fossem produzidas, nenhuma apresentou verdadeiro sucesso. De certa forma, James nunca mais alcançou a popularidade que obteve com os seus trabalhos anteriores, especialmente nesse período intermediário de sua produção literária. No entanto, a ficção desta fase seria muito mais apreciada e estudada posteriormente. As obras do autor nesse período são caracterizadas por serem mais curtas (ele se especializou na escrita de novellas, ou seja, romances de menor extensão). Esses trabalhos se concentram, de maneira geral, em três temas específicos: artistas problemáticos ou incompreendidos, fantasmas ou aparições, e crianças em situações de risco correndo grande perigo. São romances que abordam as profundezas da consciência, a culpa e uma sexualidade reprimida como nunca antes visto em sua literatura. Dessa fase, uma de suas mais ricas obras é o pequeno romance The Turn of the Screw (A Volta do Parafuso), de 1898. A história envolve uma governanta contratada para tomar conta de duas crianças numa casa de campo que passa a ser assombrada por fantasmas dos antigos funcionários do local. Há toda uma natureza obscura em The Turn of the Screw que remete ao gótico, mas vai além. Desde sua narrativa em primeira pessoa altamente manipulativa (acompanhamos os acontecimentos pelos olhos da governanta) até as atitudes suspeitas das crianças, há no romance uma atmosfera de mistério em que os fantasmas são o que há de menos intrigante. As sugestões apresentadas na prosa de James de que a governanta é reprimida sexualmente, talvez enlouquecendo, e que as aparições podem ser frutos de sua imaginação, são símbolos de uma escrita labiríntica que envolve o leitor até o momento da derrocada da personagem. O período mais significativo da produção literária de Henry James, contudo, é o último, que ocorre na virada do século. É nesse momento que o escritor vai desenvolver sua técnica narrativa em sua totalidade e, embora pouco reconhecidas em seu tempo, suas obras vão servir como grande influência para a o desenvolvimento de uma nova prosa norte-americana. Em termos de enredo, James 118

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retorna à temática internacional e ao choque entre Estados Unidos e Europa, mas com uma nova abordagem: mostrando como as pessoas, através de suas impressões e visões de mundo, são capazes de criar sua própria realidade. Um dos mais complexos romances desta terceira fase é The Wings of the Dove (As Asas da Pomba). A entrada de uma milionária norte-americana na vida de um pobre e muito apaixonado casal inglês é o ponto de partida para James exercitar todo o seu requinte estético e contrastá-lo com uma ausência de moral. Assim como em outras obras desse período, o narrador se distancia cada vez mais do enredo, forçando o leitor a fazer parte do processo criativo e tentar resolver as ambiguidades de cada personagem. É uma leitura quase minimalista, mas intensa. Como bem descreveu Carolina Nabuco: O método serpentino de escrever e o pequeno uso que fazia de imagens tornam Henry James um dos escritores menos aptos para citação de trechos. Seu estilo é onduloso como os desenhos nos papéis que, em sua época, forravam as paredes. Começa o olho por perceber as linhas gerais do traçado e depois, lentamente, descobre as pequenas variantes e enfeites que lhe enriquecem os padrões. (NABUCO, 2000, p. 183)

Essa abordagem distanciada do narrador e a construção da prosa repleta de símbolos e variantes foram algumas das principais contribuições da escrita de Henry James para autores da primeira metade do século XX. O espetacular conjunto de sua obra é minuciosamente estudado até hoje, especialmente considerando-se que ele irá fornecer os pilares para uma nova literatura que estava prestes a surgir nos Estados Unidos.

Texto complementar The portrait of a lady (JAMES, 2003)

On the morrow she said to Isabel that her definition of success had been very pretty, but frightfully sad. Measured in that way, who had succeeded? The dreams of one’s youth, why they were enchanting, they were divine! Who had ever seen such things come to pass? “I myself – a few of them,” Isabel ventured to answer. “Already? They must have been dreams of yesterday.” 119

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“I began to dream very young,” said Isabel, smiling. “Ah, if you mean the aspirations of your childhood – that of having a pink sash and a doll that could close her eyes.” “No, I don’t mean that.” “Or a young man with a moustache going down on his knees to you.” “No, nor that either,” Isabel declared, blushing. Madame Merle gave a glance at her blush which caused it to deepen. “I suspect that is what you do mean. We have all had the young man with the moustache. He is the inevitable young man; he doesn’t count.” Isabel was silent for a moment, and then, with extreme and characteristic inconsequence – “Why shouldn’t he count? There are young men and young men.” “And yours was a paragon – is that what you mean?” cried her friend with a laugh. “If you have had the identical young man you dreamed of, then that was success, and I congratulate you. Only, in that case, why didn’t you fly with him to his castle in the Apennines?” “He has no castle in the Apennines.” “What has he? An ugly brick house in Fortieth Street? Don’t tell me that; I refuse to recognise that as an ideal.” “I don’t care anything about his house,” said Isabel. “That is very crude of you. When you have lived as long as I, you will see that every human being has his shell, and that you must take the shell into account. By the shell I mean the whole envelope of circumstances. There is no such thing as an isolated man or woman; we are each of us made up of a cluster of appurtenances . What do you call one’s self? Where does it begin? where does it end? It overflows into everything that belongs to us – and then it flows back again. I know that a large part of myself is in the dresses I choose to wear. I have a great respect for things! One’s self – for other people – is

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one’s expression of one’s self; and one’s house, one’s clothes, the book one reads, the company one keeps – these things are all expressive.” This was very metaphysical; not more so, however, than several observations Madame Merle had already made. Isabel was found of metaphysics, but she was unable to accompany her friend into this bold analysis of the human personality. “I don’t agree with you,” she said. “I think just the other way. I don’t know whether I succeed in expressing myself, but I know that nothing else expresses me. Nothing that belongs to me is any measure of me; on the contrary, it’s a limit, a barrier, and a perfectly arbitrary one. Certainly, the clothes which, as you say, I choose to wear, don’t express me; and heaven forbid they should!” “You dress very well,” interposed Madame Merle, skillfully. “Possibly; but I don’t care to be judged by that. My clothes may express the dressmaker, but they don’t express me. To begin with, it’s not my own choice that I wear them; they are imposed upon me by society.” “Should you prefer to go without them?” Madame Merle inquired, in a tone which virtually terminated the discussion.

Dicas de estudo Um grande clássico do cinema norte-americano, o filme Um Lugar ao Sol, é uma brilhante adaptação para o romance An American Tragedy, de Theodore Dreiser. Estrelando Montgomery Clift e Elizabeth Taylor, o filme consegue representar visualmente as principais ideias presentes no Naturalismo (especialmente a questão do determinismo social), além de incluir uma forte crítica ao sonho americano. Várias obras de Henry James já foram levadas ao cinema, mas uma das mais bem-sucedidas é Asas do Amor, adaptação de The Wings of the Dove. Apresentando um requinte visual que consegue ser uma fiel transposição da sofisticação da obra de James, o filme é uma intrincada história de amores e interesses, através de uma complexa construção de personagens.

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Atividades 1. Explique como a literatura realista serviu como representação das grandes mudanças socioeconômicas ocorridas nos Estados Unidos do final do século XIX.

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2. Como a literatura de Theodore Dreiser apresentou as principais ideias presentes no gênero naturalista?

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A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX Com o alvorecer do século XX, os Estados Unidos viam surgir a possibilidade de assumir um papel central no cenário mundial. O nível de desenvolvimento do país era altíssimo, as cidades prosperavam, a economia mantinha-se forte e a definição do caráter nacional tinha alcançado a maturidade. Estava começando o “século americano” e, com ele, uma nova visão de mundo, em que os Estados Unidos ditaram tendências e modificaram o panorama da arte e da cultura. Os ventos da mudança nos primeiros anos do século passado, contudo, continuavam a vir da Europa. Foi no velho continente que novas e fervilhantes ideias romperam paradigmas caducos para trazer um frescor intelectual para pintores, escultores e escritores. Mas a influência europeia na literatura norte-americana se daria a partir de um diferente contexto: ao invés de os escritores simplesmente receberem passivamente esse novo estilo residindo na América, eles decidiram partir para a Europa, e lá presenciar a revolução cultural que ocorria. Essa necessidade de vários escritores norte-americanos fixarem residência na Europa no início do século XX – a chamada Lost Generation (Geração Perdida) – não pode ser entendida literalmente como uma expatriação. Por outro lado, foi uma busca da afirmação de uma identidade norte-americana, que curiosamente se fortaleceu quando esses artistas se estabeleceram no estrangeiro. A capital da intelectualidade dos Estados Unidos (que já havia sido Boston e Nova York) havia curiosamente se deslocado para Paris. No período entre a 1.ª Guerra Mundial e a Crise de 1929, a cidade francesa foi o local onde poderia se encontrar os grandes nomes da literatura norte-americana do século XX. As primeiras décadas deste novo século que começava foram um período de acontecimentos superlativos, com grandes invenções, a primeira grande guerra e a primeira grande crise econômica mundial. Portanto, não havia mais espaço para tradições artísticas que já vinham ditando há séculos a forma com que a subjetividade humana poderia ser representada. O próprio conceito de “arte” tinha de ser reformulado radicalmente,

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seja na sua forma ou em seu conteúdo. Esta era a empreitada do Modernismo, e os principais ideais desse movimento foram primordiais para o desenvolvimento de uma nova literatura norte-americana. Dentre os vários nomes do Modernismo literário norte-americano, quatro merecem especial destaque: F. Scott Fitzgerald, com sua profunda análise social e representação precisa da década de 1920; Ernest Hemingway e sua escrita minimalista e altamente simbólica; William Faulkner, aliando temáticas do sul dos Estados Unidos a uma imensa riqueza psicológica; e John Steinbeck, um dos grandes críticos dos abusos cometidos contra as classes menos favorecidas após a Crise de 1929. Juntamente com outros escritores, eles levaram as letras norte-americanas a uma fase de amadurecimento e ruptura como nunca vista, tornando a literatura norte-americana a mais influente do século XX.

F. Scott Fitzgerald e a Jazz Age Um dos períodos mais ricos para a produção artística nos Estados Unidos foi a década de 1920. Foi uma era de prazer, diversão e hedonismo como raramente vista no país. Na verdade, o espírito da década de 20 começa após o fim da 1.ª Guerra Mundial e vai até a Crise de 1929. É no espaço de tempo comprimido entre esses dois negros eventos ocorridos logo no início do século que os Estados Unidos se tornariam o local para onde iriam convergir diferentes esferas representativas do dinamismo social e artístico abundante no período. A década de 1920 ficou conhecida como The Jazz Age (A Era do Jazz), embora alguns críticos prefiram o termo Roaring Twenties (Fervilhantes Anos 20). Esses títulos ilustram de forma bem direta o espírito da época. A década de 1920 foi quando o jazz se popularizou, deixando de ser uma música de gueto para se popularizar e ter entrada nas festas da alta sociedade. O jazz foi o símbolo máximo de uma era em que o entretenimento parecia ser o propósito da existência. Os night clubs se popularizaram e, tendo o jazz como atração principal, se tornaram o centro da vida social das classes mais abastadas em seus salões fechados e exclusivos. Essa explosão de diversão e prazer foi uma forma de se expressar social e culturalmente depois dos sinistros anos da 1.ª Guerra Mundial. A população norte-americana também alcançou um imenso nível de autoconfiança, pois o país atravessava uma época de prosperidade e novas invenções que garantiam que uma fase genuinamente moderna havia se estabelecido. A classe-média, adquirindo um poder de compra inédito, se tornou um dos principais motores 126

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

da economia, que a partir de então passou ter um maior foco no consumo. O automóvel, saindo do inovador modelo de linha de produção criado por Henry Ford, se torna o bem mais cobiçado pela população. A rede de comunicação e informação passa a alcançar todos os cidadãos, com linhas telefônicas sendo instaladas em diversos estabelecimentos. O rádio se torna o principal meio de ter acesso a notícias, além de se provar a forma mais efetiva de anunciar novos produtos. O cinema dá os primeiros passos para se tornar a maior indústria de entretenimento do mundo, empregando vários dos principais artistas da época. É possível sintetizar a atmosfera dos anos de 1920 da seguinte maneira: America modernized and in so doing swept away many of the values ordinary Americans thought central to the meanings of their national life. As the economy shifted its center from production to consumption, as the focus moved from country to city, as credit ran free and personal spending boomed, as new technologies brought autos, telephones, radios and refrigerators to the growing members of middle-class homes, change moved at an ever-faster pace. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 297)

Nenhum nome da literatura norte-americana soube captar melhor a Jazz Age e seus habitantes do que F. Scott Fitzgerald (1896-1940) – afinal, foi ele que criou tal expressão. Sua literatura está para sempre ligada às altas rodas da sociedade da costa leste, às festas intermináveis dos ricos e famosos, à sofisticação e ao glamour característicos de toda uma geração. No entanto, Fitzgerald usa o pano de fundo de intensa animação da década de 1920 não apenas para ilustrar seu aspecto de fervilhante entretenimento e vida social. Suas obras também eram o retrato de uma era sedenta de prazer, mas que possuía de forma inerente um elemento trágico, especialmente quando o autor mostrava que o sonho americano de sucesso, felicidade e prosperidade geralmente vinha acompanhado de um preço altíssimo. Fitzgerald é ao mesmo tempo o cronista e a personificação dos Roaring Twenties, e é difícil pensar em um sem o outro. Profundamente inserido nos bares, cafés, salões e festas da alta sociedade, seu charme e beleza, além de uma eterna atitude de bon vivant, colocavam o autor sempre no centro das atenções. Ele soube como poucos retratar em suas obras o artificialismo de uma época ao mesmo tempo em que desfrutava de seus prazeres. Fitzgerald era o profeta desse mundo de entretenimento e maneirismo e, de certa forma, acabou sendo uma vítima dele. De uma família relativamente pobre, Fitzgerald cursou a Universidade de Princeton até partir para o exército, onde pretendia servir lutando na 1.ª Guerra Mundial. A guerra, contudo, terminou pouco tempo depois que ele ingressou na carreira militar. Foi durante o período de treinamento no exército que Fitzgerald 127

Literatura Norte-Americana

conheceu o grande amor de sua vida, Zelda, com quem o autor viveu um dos mais famosos e conturbados relacionamento da história da literatura. Depois de sair do exército, Fitzgerald passou a trabalhar numa agência de publicidade, e foi nesse período que passou a escrever contos e um romance, This Side of Paradise (Este Lado do Paraíso), de 1920. Esses trabalhos iniciais adquiriram um sucesso estrondoso. Nesse mesmo ano, Fitzgerald e Zelda se casaram. O casal se tornou um dos mais festejados de seu tempo, presença garantida em festas embaladas pelo som do jazz. Homem belo e carismático, Fitzgerald tinha sua fama literária para fazê-lo frequentar as rodas mais exclusivas da costa leste norte-americana. Fitzgerald também passou um tempo na França, onde vai se tornar um nome importante da Lost Generation. O autor lança outros romances e escreve contos regularmente para jornais e revistas, já que o autor tinha de estar constantemente produzindo para pagar seu extravagante estilo de vida. É durante essa fase na Europa que Fitzgerald vai concluir ideias que depois dariam origem a sua principal obra: The Great Gatsby (O Grande Gatsby), de 1925. Considerado por muitos críticos o melhor romance da literatura norte-americana, The Great Gatsby captou como nenhuma outra obra o sentido da Jazz Age. A sofisticação e o entretenimento constante da década de 1920 são retratados lado a lado com o acentuado materialismo, a imoralidade e um latente artificialismo do período. No entanto, mais do que o retrato de uma época, o que salta das páginas de The Great Gatsby é uma descrição feroz, porém melancólica, dos limites (ou da ausência deles) para a realização do sonho americano. O romance começa com o personagem-narrador Nick Carraway, um jovem do meio-oeste que vai passar uma temporada no distrito de Long Island. Nick então passa a habitar o sofisticado porém frívolo círculo social de sua prima Daisy, e o marido desta, Tom Buchanan. Todos os personagens, contudo, são intrigados pela figura misteriosa do vizinho de Nick, um milionário excêntrico chamado Jay Gatsby, que todos os sábados dá as mais grandiosas festas em sua mansão gótica. À medida que a narrativa se desenvolve, o leitor descobre que Daisy é um antigo amor de Gatsby, quando ele era pobre. As festas e o seu estilo de vida extravagante são estratégias para atrair e impressionar Daisy, ganhando finalmente o seu amor. Quando Gatsby finalmente reecontra seu amor do passado e eles começam um relacionamento, a realização do sonho do personagem origina uma sequência de acontecimentos trágicos que revelam a podridão escondida atrás do glamour e do dinheiro da alta sociedade na Jazz Age. 128

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

A prosa de Fitzgerald é sedutora como seu tema, com descrições sofisticadas e riqueza de símbolos. No entanto, ela se torna cada vez mais áspera à medida que a derrocada do protagonista vai se tornando inevitável. Jay Gatsby, o milionário misterioso e cobiçado, mostra-se na verdade um homem que quer apenas impressionar seu grande amor do passado. O “grande” Gatsby do título pressupõe uma figura icônica, simbolizando poder e força. Mas a grandiosidade do personagem como delineado por Fitzgerald está em sua complexidade psicológica e na atitude um tanto romântica de Gatbsy, que o leva a um fim trágico e ao mesmo tempo trivial. Gatsby é um dos mais ricos personagens da literatura mundial pois a ele escapam definições simples. Ao revelar que a origem da fortuna de Gatsby se deu através de meios ilícitos, o personagem pode ser visto como mais um elemento característico da corrupção e da imoralidade desse mundo altamente materialista. À medida que a história se desenvolve, porém, vemos como ele na verdade está alheio àquela realidade, tanto que ao final se torna vítima dela, especialmente por ter uma natureza essencialmente inocente rodeada por um meio sem escrúpulos. The Great Gatsby é uma profunda reflexão sobre como na década de 1920 o sonho americano é corrompido. Originalmente um conceito fundado na nobreza e na busca por um ideal de felicidade, o sonho americano se torna uma busca frívola por dinheiro e status, em que não há limites para se alcançar a ascensão social e o prazer irresponsável. Ao final do romance, o personagem-narrador Nick Carraway faz um nostálgico e pontual comentário sobre essa nova perspectiva usando como exemplo o ocaso do universo de sofisticação da Nova York da década de 1920: I spent my Saturday nights in New York because those gleaming, dazzling parties of his were with me so vividly that I could still hear the music and the laughter, faint and incessant, from his garden, and the cars going up and down his drive. One night I did hear a material car there, and saw its lights stop at his front steps. But I didn’t investigate. Probably it was some final guest who had been away at the ends of the earth and didn’t know that the party was over. [...] As the moon rose higher the inessential houses began to melt away until gradually I became aware of the old island here that flowered once for Dutch sailors’ eyes – a fresh, green breast of the new world. Its vanished trees, the trees that had made way for Gatsby’s house, had once pandered in whispers to the last and greatest of all human dreams; for a transitory enchanted moment man must have held his breath in the presence of this continent, compelled into an aesthetic contemplation he neither understood nor desired, face to face for the last time in history with something commensurate to his capacity for wonder. (FITZGERALD, 2004, p. 179)

É interessante notar como essa belamente descrita passagem compara o fim da época das festas da mansão de Gatsby com a chegada dos primeiros holandeses a Nova York, como se a atmosfera de fascínio e surpresa dos dois períodos estivesse intimamente ligada. No entanto, enquanto os sonhos dos primeiros exploradores da região eram fundados na possibilidade genuína de se estabele129

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cer ali, os sonhos dos cidadãos abastados da Jazz Age era consumir o prazer que tinham à mão da forma mais rápida e irresponsável. Dessa forma, The Great Gatsby serve como representação máxima de um período em que os Estados Unidos pareciam estar vivendo um incessante espetáculo, cujas luzes e cores acabavam por esconder a futilidade que o permeava. Essa foi a matéria-prima de F. Scott Fitzgerald na composição de suas principais obras, e através dela realizou uma das mais ricas narrativas da literatura mundial.

Ernest Hemingway e a precisão da escrita Nenhum escritor norte-americano foi mais representativo da chamada Lost Generation do que Ernest Hemingway (1899-1961). O estilo de escrita único de seus romances e contos pareciam ser o reflexo de uma rica biografia na qual a presença da guerra, da esterilidade e da morte eram frequentes. Ainda assim, Hemingway conseguia (mesmo que com uma escrita notadamente pessimista) construir suas histórias com um vigor narrativo que não encontra comparação na literatura norte-americana. Hemingway começou sua carreira como repórter para um jornal, mas lá ficou por pouco tempo. Com o início da 1.ª Guerra Mundial, ele tentou fazer parte das forças do exército combatendo na Europa, mas acabou não passando no exame médico devido a uma fraca visão. Decidido a estar presente no conflito, Hemingway se alista na Cruz Vermelha e parte para o front como piloto de ambulância. Já no campo de batalha, ele se torna o primeiro americano ferido em solo italiano durante a guerra e ganha uma medalha de honra ao mérito por bravura. De volta aos Estados Unidos, Hemingway retoma seu trabalho como jornalista, mas seu desejo de estar inserido nos principais conflitos da época não diminui, mesmo que seja narrando seus acontecimentos. Ele parte então novamente para a Europa, onde trabalha como correspondente internacional cobrindo a guerra entre a Grécia e a Turquia. Sua residência oficial passa a ser Paris, e é lá que Hemingway começa a definir o estilo de sua futura produção literária. Paris era a capital mundial da criatividade, da vida intelectual e da expressão de uma nova visão artística. Em contato direto com os expatriados norte-americanos na Europa, como Gertrude Stein, F. Scott Fitzgerald e John dos Passos, Hemingway passa a escrever seus contos e depois um romance, The Sun Also Rises (O Sol Também se Levanta), que retrata a rica experiência que teve ao viver na capital francesa. 130

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

A prosa de Ernest Hemingway é uma das mais bem estruturadas de toda a literatura; a forma com que seus textos são construídos é facilmente reconhecida e desde então vem sendo muito imitada, mas nunca igualada. A escrita de suas narrativas é orquestrada de forma minimalista, tendo em vista o que o autor chamava de one true sentence, ou seja, uma frase verdadeira. Isso significava que seus textos tinham como característica uma economia de palavras (especialmente adjetivos). Seu método acompanha a estética literária do Modernismo, que preconizava uma prosa “áspera”, impessoal e vista com um distanciamento objetivo. Seu modo de expressão era comprimido, com uma estrutura de orações simples, geralmente com um vocabulário restrito, porém preciso. Esta forma estilística tinha como objetivo captar a realidade no que ela tinha de mais puro e único, mas também era a representação de uma ambição do autor de produzir uma literatura que conseguisse ser atemporal. Como ele próprio descreveu em Death in the Afternoon (Morte na Tarde), de 1932, a escrita deve expressar: “[...] the real thing, the sequence of motion and fact which made the emotion and which would be as valid in a year or in ten years or, with luck and if you stated it purely enough, always.” (HEMINGWAY, In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 306) Essa abordagem concisa da literatura que produziu, contudo, não quer dizer que a literatura de Ernest Hemingway acabou sendo empobrecida. Pelo contrário, isso tornou a sua prosa ainda mais densa e complexa, já que através de frases curtas e um vocabulário preciso, o autor trabalhava ricamente no terreno do simbólico. Os textos do autor já foram comparados a icebergs – assim como aqueles imensos blocos de gelo que habitam as regiões mais frias do oceano, só é possível ver claramente uma pequena parte deles; no entanto, existe uma outra imensa parte escondida que não está facilmente visível, que temos que nos esforçar para ver. A simplicidade e a concentração de suas narrativas são o primeiro nível de uma literatura repleta de símbolos, metáforas e representações que apenas os leitores mais atentos conseguem captar. Isso, contudo, não se trata apenas de maneirismo estético: é a forma perfeita orquestrada por Hemingway para desenvolver alguns dos principais temas de sua literatura. Há nas obras de Hemingway uma preocupação existencialista até então inédita na literatura norte-americana. Os personagens presentes nas obras do autor parecem estar ausentes de orientação num mundo cada vez mais sem sentido, onde estar perdido parece ser a única condição possível quando a vivência cotidiana torna-se cada vez mais absurda. Em Hemingway, esse questionamento existencial aproxima-se de um extremo niilismo, ou seja, a percepção de que a vida não tem nenhum sentido intrínseco, portanto não há propósito na existência. 131

Literatura Norte-Americana

Em termos narrativos, esses conceitos filosóficos são desenvolvidos pelo autor através de duas ideias presentes em várias de suas obras. A primeira é o moment of truth (hora da verdade), que seria o momento decisivo na vida de um indivíduo em que ele tem de tomar uma decisão definitiva. Essa noção foi apropriada por Hemingway das touradas, espetáculos sangrentos e grandiosos, muito admirados pelo autor – também ali, o toureiro se via frente a frente com a sua hora da verdade, em que ele poderia alcançar a morte ou a glória. Outra ideia característica em sua literatura é a de grace under pressure (graciosidade sob pressão). Para Hemingway, essa era a maior realização de um indivíduo, e muitos de seus personagens mesmo quando se deparam com extremas dificuldades, conseguem permanecer seguros de si. Isso mostra que, mesmo que imbuído de pessimismo e uma obsessão pela morte, também é possível encontrar nas obras de Hemingway uma afirmação de coragem e firmeza de caráter. Seus romances raramente se passam nos Estados Unidos, tendo na maioria das vezes um pano de fundo repleto de grandes eventos ou acontecimentos tendo a morte como constante: a Guerra Civil Espanhola, safáris na África, histórias de grandes caçadas ou pescaria, a 1.ª Guerra Mundial. Mesmo assim, o que se destaca deles é sua natureza meditativa, uma análise sucinta mas bem direta sobre a existência. No entanto, foi em seus contos que o estilo econômico e altamente simbólico de Hemingway alcançou a sua glória. Suas frases curtas e vocabulário concentrado em muito combinavam com a própria estrutura do conto, dando origem a brilhantes reflexões sobre o sentido da vida e a iminência da morte. Um de seus melhores trabalhos é o conto A Clean, Well-Lighted Place (Um Lugar Limpo, Bem-Iluminado). Nessa narrativa, temos a história de dois garçons (um jovem e outro mais velho) que travam numa madrugada uma discussão sobre expulsar ou não um velho cliente que permanece no bar mesmo depois da hora do fechamento. Esse enredo aparentemente simples, todavia, é o artifício utilizado por Hemingway para discutir o vazio da existência e a necessidade que os homens (especialmente os mais velhos) têm de encontrar um “lugar limpo e bem-iluminado” ao se verem perdidos na escuridão e podridão que permeia o mundo que habitam. O niilismo presente na narrativa se mostra contundente, especialmente nessa enigmática passagem onde o leitor tem acesso aos pensamentos do garçom mais velho: What did he fear? It was not a fear or dread, It was a nothing that he knew too well. It was all a nothing and a man was a nothing too. It was only that and light was all it needed and a certain cleanness and order. Some lived in it and never felt it but he knew it all was nada y pues nada y nada y pues nada. Our nada who art in nada, nada be thy name thy kingdom nada thy will be nada in nada as it is in nada. Give us this nada our daily nada and nada us our nada as we nada our nadas and nada us not into nada but deliver us from nada; pues nada. Hail nothing full of nothing, nothing is with thee. (HEMINGWAY, 1998, p. 291) 132

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A repetição do termo “nada” ilustra a própria ausência de propósito na vida. Assim, se a existência é um grande “nada”, o homem também é um nada. A necessidade de buscar a limpeza e a luz dos bares e cafés nas madrugadas é uma tentativa de suportar o peso da falta de sentido que na verdade é o que constrói a realidade. Nem mesmo a religião dota a vivência de algum significado, como Hemingway parece ilustrar quando na passagem cita o “Pai Nosso”, substituindo as referências a Deus e à esfera divina por “nada”. Eventualmente, Ernest Hemingway foi tomado por esse espírito niilista quando cometeu o suicídio em 1961. Mesmo assim, sua obra permanece mais viva do que nunca, mostrando um novo caminho (na forma e no conteúdo) para uma literatura norte-americana em busca de temáticas mais complexas e intensas.

William Faulkner e a tradição sulista Embora tenha sido um movimento de certa forma bem definido e facilmente identificável, o Modernismo literário norte-americano caracteriza-se por uma variedade temática e uma multiplicidade de estilos pouca vezes vista na prosa produzida nos Estados Unidos. Chama atenção que num espaço de poucos anos, escritores tão brilhantes, mas ao mesmo tempo criando enredos tão diferentes, tenham surgido num único país. Ainda assim, alguns nomes da literatura norte-americana apresentam certa homogeneidade, como os escritores da Lost Generation escrevendo em Paris. Fitzgerald e Hemingway, mesmo que com narrativas bem distintas, se conheceram e se respeitavam mutuamente, um reconhecendo no outro a evolução da produção literária dos Estados Unidos. Alguns outros nomes, contudo, não pertenceram à Lost Generation. Não fixaram residência em Paris nem viviam em meio às celebrações da boemia modernista do início do século. Mesmo assim, foram fundamentais para a concretização de uma estética literária inovadora que competiria em qualidade com o Modernismo francês e inglês. Desses, nenhum foi mais significativo do que William Faulkner (1897-1962), considerado por muitos o maior ficcionista em prosa da literatura dos Estados Unidos. Com seus trabalhos, o romance e o conto norte-americano se desenvolvem apontando o caminho para uma vanguarda literária, mesmo que usando de base uma temática bastante tradicional. William Faulkner nasceu no estado do Mississippi, no sul dos Estados Unidos, e lá viveu durante toda a vida. Sua família vinha de uma longa tradição de anti133

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gos senhores de escravos e militares que lutaram pelo lado da Confederação na Guerra Civil. Como vários autores consagrados do período modernista, ele não se graduou em uma universidade, contudo seu vasto conhecimento surgiu de uma leitura ávida de Shakespeare, dos clássicos da Grécia e de Roma, e da Bíblia. Essa literatura canônica se juntou ao interesse que Faulkner tinha na leitura de autores que produziam em sua época, como James Joyce, T.S. Eliot e Joseph Conrad. Boa parte da riqueza literária das obras do autor vai ser resultado exatamente dessa união entre o consagrado e o inovador. No entanto, o que torna os trabalhos de William Faulkner notáveis e únicos no meio da estética modernista é a presença (e praticamente ressurreição) de visão de mundo sulista. Quando o autor começa a escrever, a Guerra Civil já se encontrava a mais de 60 anos no passado. Contudo, a derrota do Sul permanecia muito viva na consciência e no dia a dia da população da região, pois o desmantelamento da Confederação significou o fim do estilo de vida legitimamente sulista, a imposição de um modelo econômico industrial vindo do Norte, e um período de reconstrução que foi marcado por corrupção e ilegalidade. O sul dos Estados Unidos é o local onde se desenrolam suas narrativas, mas seus temas, mesmo que fortemente enraizados em temas regionais, alcançam patamares mais elevados ao lidar com os aspectos mais profundos da natureza humana. A obra de Faulkner é tão densa porque, partindo de um microcosmo bem específico, atinge questões universais, aliando o tradicional ao moderno: “It was by linking the classic Southern romance [...] with the modern sense of experimental form, by merging a deep-seated sense of regional history with an awareness of the fracture of historical time, that he (Faulkner) became a major novelist.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 309) Essa presença do sul em sua literatura se dá em diferentes formas, mas a mais clara é a presença em seus romances da cidade de Jefferson, localizada no mítico condado de Yoknapatawpha, no estado do Mississippi. Esse lugar totalmente fictício foi criado por Faulkner usando como modelo a cidade de Oxford, no mesmo estado sulista, onde o autor residia. É em Jefferson que vão habitar os personagens de Faulkner: aristocratas arruinados, ex-escravos negros, brancos pobres (white trash), entre outros tipos. É criando nessa atmosfera fictícia que o autor pretende desenvolver o seu tema central: como ele próprio definiu, “the problems of the human heart in conflict with itself.” As obras de Faulkner nunca adquiriram status de best-seller, e até mesmo o valor do seu trabalho só foi devidamente reconhecido depois que o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1949. Seus dois primeiros romances foram muito pouco lidos, e neles o autor ainda não tinha estabelecido seu estilo mar134

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cante. Isso começa a mudar com seu terceiro trabalho, Sartoris, de 1929. Nele, o autor utiliza o condado de Yoknapatawpha como a tela onde se desenrola todo o drama da sociedade sulista servindo de símbolo para questões universais. É com The Sound and the Fury (O Som e a Fúria), também de 1929, que Faulkner finalmente encontra sua voz literária. O romance é construído de quatro partes distintas, cada uma ocorrendo no período de um dia, sendo que uma delas se passa em 1910 e as outras três em 1928. Cada um desses segmentos tem um personagem central e uma voz narrativa diferente: a primeira tem como protagonista Benjy Compson, um homem de 33 anos com retardamento mental; a segunda é um monólogo de Quentin Compson no dia de seu suicídio em 1910; posteriormente, é a vez de Jason Compson, através de seu ponto de vista cínico e oportunista; e finalmente o quarto segmento é focado na empregada negra da família Compson, Dilsey. Essa escrita labiríntica e fragmentada de The Sound and the Fury é representativa não só da produção literária de William Faulkner, mas também serve como emblema das principais estratégias narrativas utilizadas pelo Modernismo. A mais evidente é uma prosa fundada no uso do fluxo da consciência, um dos recursos mais famosos da literatura modernista. De acordo com o Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, o fluxo da consciência (em inglês, stream of consciousness) pode ser definido da seguinte forma: [Stream of consciousness] refers to that technique which seeks to depict the multitudinous thoughts and feelings which pass through the mind [...] Virginia Woolf and William Faulkner are two of the most distinguished developers of the stream of consciousness method. (CUDDON ed., 1999, p. 866)

Em linhas gerais, portanto, o fluxo da consciência é uma técnica narrativa que consiste em expressar de forma literária o processo mental dos personagens. Obras que fazem uso do fluxo da consciência se caracterizam por uma maior ênfase no aspecto psicológico dos personagens e uma peculiar construção de frases, na maioria das vezes curtas e indiretamente relacionadas. Outro elemento usado por Faulkner em The Sound and the Fury que o coloca na vanguarda modernista é a construção intrincada de seus romances, que por vezes lembram um labirinto. Manipulando a noção temporal da narrativa, o autor a torna fragmentada e, por vezes, extremamente complexa. A própria ideia de conhecimento histórico em seus romances e contos é sujeita a uma espécie de reconstrução imaginativa, em que o tempo não é linear, mas lacunar. Os textos de William Faulkner também se caracterizam pela forte presença de algum elemento gótico ou grotesco, o que torna sua literatura mais densa e en135

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volve o leitor numa atmosfera fundada no inexplicável. O sul dos Estados Unidos estava constantemente assombrado pelo passado, e raramente o presente em evolução dava conta dele. Um notável exemplo disso é o conto A Rose for Emily (Uma Rosa para Emily), uma história de assassinato com um final surpreendente, no qual se presume que a assassina possa ter tido relações íntimas com o corpo da vítima. Assim como a Europa terá em James Joyce e Virginia Woolf seus nomes mais icônicos do movimento modernista, William Faulkner vai representar, nos Estados Unidos, uma nova forma de escrita que vai quebrar vários paradigmas literários e inaugurar estratégias narrativas vanguardistas. Contudo, o que torna as obras de Faulkner tão relevantes é a união desse espírito moderno com a tradicional atmosfera da região sul norte-americana.

John Steinbeck e a Grande Depressão Todo o excesso, sofisticação, festas e frivolidade da década de 1920 teriam um dia de chegar ao fim. A conclusão da Jazz Age, todavia, não poderia ter sido mais chocante do que com a Crise de 1929. Um dos momentos definitivos do século XX e até hoje a mais devastadora crise econômica da era moderna, a Grande Depressão causada pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York iniciou um processo de penúria em grande parte da sociedade e reestruturação da mentalidade norte-americana. Em 24 de outubro de 1929, uma queda brusca no valor das ações na Bolsa de Valores de Nova York iniciou uma crise de âmbito mundial, que duraria quase uma década. Esse período, chamado de Grande Depressão, teve efeitos devastadores na organização socioeconômica dos Estados Unidos. Várias razões são apontadas para que as ações despencassem e causassem o crash da Bolsa: a exagerada especulação financeira, a disparidade entre a capacidade produtiva do país e a capacidade de consumo da população, a distribuição desigual da renda e a pouca variedade industrial norte-americana (dependente basicamente da indústria automobilística e da construção civil). A era da prosperidade da década de 1920 havia terminado. Em 1932 a situação atinge seu pior nível. Milhares de bancos faliram. Dezenas de milhares de pessoas perderam tudo e algumas se suicidaram. Mais de 100 mil negócios fecharam as portas e o nível de desenvolvimento industrial tinha caído mais de 90% se comparado ao período antes da crise. Nas fábricas, os produtos eram empilhados, já que não haviam consumidores suficientes com poder de compra. 136

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Nas cidades se concentravam os mais de 15 milhões de norte-americanos desempregados. Ao contrário de países como Alemanha, não havia seguro-desemprego, e logo essas pessoas se viram sem comida e sem moradia. Tornou-se uma imagem comum da época a chamada “fila do pão”, onde milhões de pessoas passavam horas na fila para receber como caridade um pedaço de pão ou um prato de sopa. Se nos centros urbanos a situação era difícil, no campo a população vivia em condições ainda mais difíceis. Com a queda do poder aquisitivo, os fazendeiros não tinham para quem vender seus produtos. E mesmo que vendessem, era apenas pelo menor preço possível. Uma enorme massa saída do interior partia para as cidades em busca de oportunidades ou tentava a sorte trabalhando em plantações onde os salários eram baixíssimos. Nenhum autor retratou melhor a natureza da Grande Depressão do que John Steinbeck (1902-1968). Seus romances são de certa forma uma análise dos problemas de grande parte da população norte-americana. Até hoje, os principais trabalhos de Steinbeck são vistos como obras de protesto contra a exploração capitalista e a favor dos marginalizados e destituídos. Steinbeck nasceu na Califórnia, e é em seu estado natal que grande parte de sua ficção é situada. Desde muito jovem, trabalhou muito em diferentes áreas: foi marinheiro, repórter, pedreiro, farmacêutico, entre outros. Em termos de estudos, durante algum tempo foi aluno da Universidade de Stanford, onde começou a escrever. Sua experiência de trabalho árduo na juventude teve um reflexo direto em sua produção literária, com protagonistas geralmente tendo uma relação conflituosa com seu manejo diário. A obra-prima indiscutível de Steinbeck é The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira), de 1939. Mesmo sendo lançado ao final dá década de 1930, nenhum livro representou melhor a situação dos Estados Unidos após a Crise de 1929. O romance é um épico sobre a Grande Depressão e desde a sua publicação teve enorme popularidade e foi amplamente discutido. Narrando as atribulações de uma família de camponeses e sua longa jornada em direção à Califórnia, o autor representa a angústia de toda uma nação. The Grapes of Wrath se concentra na família dos Joads, trabalhadores agrícolas do estado de Oaklahoma. Juntamente com vários outros homens do campo, eles veem grande parte de suas safras destruídas por tempestades e uma grande seca que se estende pela região central dos Estados Unidos nos primeiros anos da década de 1930 – esse período ficou conhecido como Dust Bowl, ou “Bacia 137

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de Poeira”. Esses trabalhadores – conhecidos como Okies, de Oaklahoma – além do mais, sofrem com a crise já que não conseguem vender seus produtos e os bancos ameaçam tomar suas terras. Em busca de melhores oportunidades, eles partem então para a Califórnia. No caminho, contudo, encontram várias outras famílias em busca do mesmo sonho. É interessante notar que The Grapes of Wrath trabalha sua contundente narrativa em dois níveis distintos. Primeiramente, é um romance de forte crítica social, mostrando como os excessos do capitalismo podem ser responsáveis pela miséria de um povo que quer apenas cultivar a terra e trabalhar honestamente. Por outro lado, a obra tem um evidente sentimento de esperança, dotando as pessoas simples do campo de uma inesgotável perseverança e habilidade de resistir aos piores problemas. A importância desta obra em sua época (e também nos dias de hoje) pode ser explicada da seguinte forma: A tract against social injustice, which aroused vigorous protest and defense from those who thought of it only as fictionalized propaganda, it remained, after the controversy had died down, an American epic, a culminating expression of the spiritual and material forces that had discovered and settled a continent (SPILLER, 1967, p. 216).

John Steinbeck, assim como outros gigantes da ficção em prosa norte-americana da primeira metade do século XX, mostrou que a literatura do país entrava numa fase de crescente vigor criativo e maturidade narrativa. A partir de então, os Estados Unidos passaram a se encontrar no centro da produção literária mundial e sua influência se tornou indiscutível.

Texto complementar A rose for Emily (FAULKNER In McMICHAEL et al., 2001)

[...] She was sick for a long time. When we saw her again, her hair was cut short, making her look like a girl, with a vague resemblance to those angels in colored church windows – sort of tragic and serene. The town had just let the contracts for paving the sidewalks, and in the summer after her father’s death they began the work. The construction company came with niggers and mules and machinery, and a foreman 138

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named Homer Barron, a Yankee – a big, dark, ready man, with a big voice and eyes lighter than his face. The little boys would follow in groups to hear him cuss the niggers, and the niggers singing in time to the rise and fall of picks. Pretty soon he knew everybody in town. Whenever you heard a lot of laughing anywhere about the square, Homer Barron would be in the center of the group. Presently we began to see him and Miss Emily on Sunday afternoons driving in the yellow-wheeled buggy and the matched team of bays from the livery stable. At first we were glad that Miss Emily would have an interest, because the ladies all said, “Of course a Grierson would not think seriously of a Northerner, a day laborer.” But there were still others, older people, who said that even grief could not cause a real lady to forget noblesse oblige – without calling it noblesse oblige. They just said, “Poor Emily. Her kinsfolk should come to her.” She had some kin in Alabama; but years ago her father had fallen out with them over the estate of old lady Wyatt, the crazy woman, and there was no communication between the two families. They had not even been represented at the funeral. And as soon as the old people said, “Poor Emily,” the whispering began. “Do you suppose it’s really so?” they said to one another. “Of course it is. What else could . . .” This behind their hands; rustling of craned silk and satin behind jalousies closed upon the sun of Sunday afternoon as the thin, swift clopclop-clop of the matched team passed: “Poor Emily.” She carried her head high enough – even when we believed that she was fallen. It was as if she demanded more than ever the recognition of her dignity as the last Grierson; as if it had wanted that touch of earthiness to reaffirm her imperviousness. Like when she bought the rat poison, the arsenic. That was over a year after they had begun to say “Poor Emily,” and while the two female cousins were visiting her. “I want some poison,” she said to the druggist. She was over thirty then, still a slight woman, though thinner than usual, with cold, haughty black eyes in a face the flesh of which was strained across the temples and about the eyesockets as you imagine a lighthouse-keeper’s face ought to look. “I want some poison,” she said. “Yes, Miss Emily. What kind? For rats and such? I’d recom –”

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“I want the best you have. I don’t care what kind.” The druggist named several. “They’ll kill anything up to an elephant. But what you want is –” “Arsenic,” Miss Emily said. “Is that a good one?” “Is . . . arsenic? Yes, ma’am. But what you want –” “I want arsenic.” The druggist looked down at her. She looked back at him, erect, her face like a strained flag. “Why, of course,” the druggist said. “If that’s what you want. But the law requires you to tell what you are going to use it for.” Miss Emily just stared at him, her head tilted back in order to look him eye for eye, until he looked away and went and got the arsenic and wrapped it up. The Negro delivery boy brought her the package; the druggist didn’t come back. When she opened the package at home there was written on the box, under the skull and bones: “For rats.” So the next day we all said, “She will kill herself”; and we said it would be the best thing. When she had first begun to be seen with Homer Barron, we had said, “She will marry him.” Then we said, “She will persuade him yet,” because Homer himself had remarked – he liked men, and it was known that he drank with the younger men in the Elks’ Club – that he was not a marrying man. Later we said, “Poor Emily” behind the jalousies as they passed on Sunday afternoon in the glittering buggy, Miss Emily with her head high and Homer Barron with his hat cocked and a cigar in his teeth, reins and whip in a yellow glove. Then some of the ladies began to say that it was a disgrace to the town and a bad example to the young people. The men did not want to interfere, but at last the ladies forced the Baptist minister – Miss Emily’s people were Episcopal – to call upon her. He would never divulge what happened during that interview, but he refused to go back again. The next Sunday they again drove about the streets, and the following day the minister’s wife wrote to Miss Emily’s relations in Alabama. So she had blood-kin under her roof again and we sat back to watch developments. At first nothing happened. Then we were sure that they

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were to be married. We learned that Miss Emily had been to the jeweler’s and ordered a man’s toilet set in silver, with the letters H. B. on each piece. Two days later we learned that she had bought a complete outfit of men’s clothing, including a nightshirt, and we said, “They are married. “ We were really glad. We were glad because the two female cousins were even more Grierson than Miss Emily had ever been. So we were not surprised when Homer Barron – the streets had been finished some time since – was gone. We were a little disappointed that there was not a public blowing-off, but we believed that he had gone on to prepare for Miss Emily’s coming, or to give her a chance to get rid of the cousins. (By that time it was a cabal, and we were all Miss Emily’s allies to help circumvent the cousins.) Sure enough, after another week they departed. And, as we had expected all along, within three days Homer Barron was back in town. A neighbor saw the Negro man admit him at the kitchen door at dusk one evening. And that was the last we saw of Homer Barron. And of Miss Emily for some time. The Negro man went in and out with the market basket, but the front door remained closed. Now and then we would see her at a window for a moment, as the men did that night when they sprinkled the lime, but for almost six months she did not appear on the streets. Then we knew that this was to be expected too; as if that quality of her father which had thwarted her woman’s life so many times had been too virulent and too furious to die. When we next saw Miss Emily, she had grown fat and her hair was turning gray. During the next few years it grew grayer and grayer until it attained an even pepper-and-salt iron-gray, when it ceased turning. Up to the day of her death at seventy-four it was still that vigorous iron-gray, like the hair of an active man. From that time on her front door remained closed, save for a period of six or seven years, when she was about forty, during which she gave lessons in china-painting. She fitted up a studio in one of the downstairs rooms, where the daughters and grand-daughters of Colonel Sartoris’ contemporaries were sent to her with the same regularity and in the same spirit that they were sent to church on Sundays with a twenty-five-cent piece for the collection plate. Meanwhile her taxes had been remitted. Then the newer generation became the backbone and the spirit of the town, and the painting pupils grew up and fell away and did not send their 141

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children to her with boxes of color and tedious brushes and pictures cut from the ladies’ magazines. The front door closed upon the last one and remained closed for good. When the town got free postal delivery, Miss Emily alone refused to let them fasten the metal numbers above her door and attach a mailbox to it. She would not listen to them. Daily, monthly, yearly we watched the Negro grow grayer and more stooped, going in and out with the market basket. Each December we sent her a tax notice, which would be returned by the post office a week later, unclaimed. Now and then we would see her in one of the downstairs windows – she had evidently shut up the top floor of the house – like the carven torso of an idol in a niche, looking or not looking at us, we could never tell which. Thus she passed from generation to generation – dear, inescapable, impervious, tranquil, and perverse. And so she died. Fell ill in the house filled with dust and shadows, with only a doddering Negro man to wait on her. We did not even know she was sick; we had long since given up trying to get any information from the Negro. He talked to no one, probably not even to her, for his voice had grown harsh and rusty, as if from disuse. She died in one of the downstairs rooms, in a heavy walnut bed with a curtain, her gray head propped on a pillow yellow and moldy with age and lack of sunlight. The negro met the first of the ladies at the front door and let them in, with their hushed, sibilant voices and their quick, curious glances, and then he disappeared. He walked right through the house and out the back and was not seen again. The two female cousins came at once. They held the funeral on the second day, with the town coming to look at Miss Emily beneath a mass of bought flowers, with the crayon face of her father musing profoundly above the bier and the ladies sibilant and macabre; and the very old men – some in their brushed Confederate uniforms – on the porch and the lawn, talking of Miss Emily as if she had been a contemporary of theirs, believing that they had danced with her and courted her perhaps, confusing time with its mathematical progression, as the old do, to whom all the past is not a diminishing road, but, instead, a huge meadow which no winter ever quite touches, divided from them now by the narrow bottleneck of the most recent decade of years. 142

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Already we knew that there was one room in that region above stairs which no one had seen in forty years, and which would have to be forced. They waited until Miss Emily was decently in the ground before they opened it. The violence of breaking down the door seemed to fill this room with pervading dust. A thin, acrid pall as of the tomb seemed to lie everywhere upon this room decked and furnished as for a bridal: upon the valance curtains of faded rose color, upon the rose-shaded lights, upon the dressing table, upon the delicate array of crystal and the man’s toilet things backed with tarnished silver, silver so tarnished that the monogram was obscured. Among them lay a collar and tie, as if they had just been removed, which, lifted, left upon the surface a pale crescent in the dust. Upon a chair hung the suit, carefully folded; beneath it the two mute shoes and the discarded socks. The man himself lay in the bed. For a long while we just stood there, looking down at the profound and fleshless grin. The body had apparently once lain in the attitude of an embrace, but now the long sleep that outlasts love, that conquers even the grimace of love, had cuckolded him. What was left of him, rotted beneath what was left of the nightshirt, had become inextricable from the bed in which he lay; and upon him and upon the pillow beside him lay that even coating of the patient and biding dust. Then we noticed that in the second pillow was the indentation of a head. One of us lifted something from it, and leaning forward, that faint and invisible dust dry and acrid in the nostrils, we saw a long strand of iron-gray hair.

Dicas de estudo O romance The Great Gatsby recebeu uma famosa adaptação para o cinema com roteiro de Francis Ford Coppola, estrelando Robert Redford como Jay Gatsby e Mia Farrow como Daisy. O filme capta muito bem o espírito da Jazz Age, ao mesmo tempo em que analisa a derrocada do protagonista em decorrência da subversão do conceito do sonho americano. DONALDSON, Scott. The Cambridge Companion to Hemingway. CambridgeUSA, 1996. A relação entre a vasta e riquíssima vida de Ernest Hemingway (que 143

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viveu na França, na Espanha, nos Estados Unidos e em Cuba) e suas obras pode ser melhor compreendida com o livro. Esta obra de estudo analisa diferentes aspectos da literatura do grande profeta da Lost Generation e também apresenta os pontos de vista políticos e sociais do escritor.

Atividades 1. Por que a literatura de F. Scott Fitzgerald é extremamente representativa do período conhecido como The Jazz Age?

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2. Quais elementos narrativos utilizados por William Faulkner caracterizam suas obras como exemplos literários do Modernismo?

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A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX Com uma nova perspectiva econômica, social e cultural, o século XX abalou fortemente conceitos preestabelecidos sobre a literatura e a forma com que era produzida. O Modernismo, como amplo movimento artístico que foi, procurava romper com os paradigmas da criação literária para inaugurar um período de vanguarda, em que inovações no desenvolvimento do processo artístico se realizaram. Na prosa, os diferentes ventos da mudança aproximaram os autores das transformações sociais pelas quais passavam os Estados Unidos. Além disso, grande parte da escrita foi fortemente marcada por uma influência da psicologia e do existencialismo do período. Pode-se dizer, de certa forma, que a poesia produzida nos Estados Unidos do início do século XX foi ainda mais representativa das inovações estéticas do Modernismo. A subjetividade poética moderna sofreu uma série de alterações na forma e no conteúdo com o qual era transformada em verso. Novas ideias mereciam uma nova maneira de escrita, e assim todo um inédito questionamento sobre a natureza da experiência da poesia foi sendo delineada. Autores como Robert Frost, Elizabeth Bishop e, especialmente, T.S. Eliot e Ezra Pound, transformaram a forma com que a poesia era escrita e lida. Seus poemas estão entre os mais importantes não só do século XX, mas também de toda a história da literatura. Esta marcante vanguarda poética foi um dos mais importantes símbolos artísticos de uma nova visão de mundo que (tirando notáveis exceções) tinha como característica ser notadamente norte-americana.

Robert Frost: a natureza como poesia A formação de uma nova poesia norte-americana passou, no início do século XX, pelas páginas da Poetry, uma revista literária de Chicago na qual os principais poetas do país procuravam definir, através da publicação de seus trabalhos e da discussão das escolhas editoriais, uma estética

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modernista para a poesia dos Estados Unidos. Traduzir a experiência modernista, contudo, não foi tarefa fácil. Dentro da própria Poetry, duas diferentes versões do moderno coexistiam: One drew on the cosmopolitan inheritance, with its decadence, symbolism, critical questioning of modern culture and quest for a new supreme fiction; the other stood on native ground, Emerson and Whitman, local color and progressive romantic confidence. Both lines were to prove crucial to American poetry and indeed became most forceful when they began to interact with each other. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 280)

O mais proeminente poeta do grupo ligado a uma escrita romântica e a uma maior aproximação da natureza foi Robert Frost (1874-1963). A inclusão da produção poética de Frost no movimento modernista norte-americano até hoje é motivo de debate entre críticos, já que suas obras diferem bastante em estilo do que foi produzido por outros poetas da primeira metade do século XX. No entanto, mesmo que o radicalismo moderno (na forma e no conteúdo) não seja encontrado em suas poesias, a vitalidade de sua expressão poética está em sintonia com um novo tempo que começava nos Estados Unidos. Apesar de ter nascido em São Francisco, Robert Frost e sua poesia são para sempre associados à região rural da Nova Inglaterra, onde passou a viver a partir de sua juventude. Cursou a Universidade de Harvard por apenas dois anos, para depois abandonar o curso e trabalhar como professor e pequeno fazendeiro; mas Frost já escrevia poesia, e tinha grande interesse em seguir uma carreira literária. Em 1912, decidido a dar uma guinada em sua vida, o autor se muda com sua família para a Inglaterra. Na Europa, apesar de expatriado, Frost não se junta diretamente à geração de escritores norte-americanos em busca de uma vanguarda moderna. Seu trabalho se aproxima mais dos poetas da natureza ingleses. Mesmo assim, figuras icônicas do Modernismo, como Ezra Pound, se tornam grandes admiradores da poesia de Frost, e ajudam o escritor a publicar seus primeiros trabalhos em Londres: A Boy’s Will, de 1913, e North of Boston, de 1914. Esses primeiros trabalhos, que deram origem a uma prolífica carreira, proporcionaram grande reputação a Robert Frost. O autor decide então retornar aos Estados Unidos e em seu país finalmente passa a receber o reconhecimento merecido. Em Frost, é latente a permanência do legado do Romantismo. Assim como Whitman e Emerson, ele encontra na natureza a matéria-prima de sua escrita, tirando dela a essência de sua subjetividade poética. A paixão pela natureza expressa em sua poesia pode ser considerada um reflexo de sua vivência tão próxima dos elementos da terra. Essa relação é explicada por Carolina Nabuco da seguinte forma: 148

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

Frost foi na poesia o que era na vida, um farmer, um lavrador. Viveu com as mãos cheias de terra e os olhos cheios de deslumbramento para cada momento da natureza. Cantou-a em todos os aspectos, cantou a neve, as árvores, os bichos, a água e as quatro estações. Seu talento imbuía-se do que a natureza tem de mais inspirador. (NABUCO, 2000, p. 208)

Assim, aspectos simples e cotidianos da natureza e de sua relação com o homem – a colheita de maçãs, a neve, os caminhos cobertos de folhas, as estações do ano – são descritos por Frost em toda a sua singeleza. A voz de seus poemas, geralmente com uma linguagem direta e nem um pouco rebuscada, pode fazer pensar num poeta com pouca técnica. Essa aparente ingenuidade, contudo, é uma face do rico simbolismo presente nos poemas de Robert Frost. Os acontecimentos triviais da natureza envolvendo o homem são representações de grandes verdades que só podem surgir da simplicidade poética. A comunhão do homem com a natureza, apesar de ser um tema-chave da poesia romântica, se dá nos poemas de Frost em outra ordem. Nos trabalhos do autor, não há a completude, a certeza e a autoconfiança herdados do transcendentalismo de Emerson; pelo contrário, encontramos a incerteza e o mistério com o qual se depara o homem ao se relacionar com o que vem da natureza. Portanto, se é possível falar de uma influência temática do Romantismo na literatura de Frost, uma postura romântica do autor diante da natureza já é algo mais distante. A realidade conturbada do século XX, com sua crescente urbanização, aceleração da vivência cotidiana e diminuição da ênfase religiosa se faz presente nos poemas do autor não de forma objetiva, mas através da mudança de perspectiva que o indivíduo tem com a natureza: One of the key questions for the poets of Frost’s generation was whether a Whitmanian or Emersonian Romantic posture was recoverable in the modern urban and secular world. Frost gives us little of that world as a place, but he responds to its poetic condition. [...] He is concerned both with the difficulty of finding meaning in the thing perceived and the danger of unacknowledged sellf-shaped perception. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 283)

É interessante que essa “dificuldade de achar um significado” ocorra em poemas tão curtos e aparentemente tão simples como os de Robert Frost – mas daí flui sua riqueza literária. O poema mais famoso de Frost – The Road Not Taken (A Estrada Não Trilhada) – ilustra isso muito bem: Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; 149

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Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I – I took the one less traveled by, And that has made all the difference.

No poema, o eu lírico encontra-se na mata quando se depara com uma divisão do caminho que seguia. Existem, portanto, duas estradas a seguir. Ele fica um tempo a olhar para uma delas, mas decide seguir a outra, embora ambas sejam praticamente iguais. Ao final, ele afirma que no futuro, ao narrar esse acontecimento, dirá que tomou a estrada menos usada, e isso fez toda a diferença. Até hoje, The Road Not Taken é usado como uma espécie de manifesto poético sobre a independência, a autoafirmação e o não-conformismo. Baseando-se estritamente nos dois últimos versos, muitos acreditam que ao escolher o caminho menos usado, o poeta estabelece um ideal em favor do livre-arbítrio e que a “diferença” que isso fez é extremamente positiva, levando a um crescimento individual e à reafirmação de suas crenças. Apesar de aparentemente simples, The Road Not Taken (assim como a natureza que ele representa) escapa a explicações cristalizadas. O próprio Robert Frost afirmou que era um tricky poem (poema complicado). Primeiramente, o poema ilustra uma situação-chave: a tomada de uma decisão que pode definir o seu futuro. Nesse caso, existe sim a presença do livre-arbítrio na escolha do caminho, mas não há em seus versos atitude moralizante sobre o melhor caminho. Isso porque na verdade as estradas apresentadas no poema são praticamente iguais, o que torna o elemento natural do poema ainda mais obscuro, e a decisão ainda mais difícil. Ao fazer sua escolha final, o eu lírico chega a afirmar que um dia vai trilhar o outro caminho, embora duvide que um dia ainda retornará a ele. Essa sensação de arrependimento é clara no poema, muito mais forte que qualquer sinal de elogio ao não-conformismo. Até mesmo o título do poema, The Road Not Taken, ilustra isso – o mistério do caminho não-trilhado é maior do que a certeza de saber que estrada percorrer. Mesmo a tão citada última estrofe pode ser lida ironicamente. O eu lírico afirma que irá suspirar quando recontar esse acontecimento na mata, e esse 150

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suspiro – que muitos veem como alívio – também pode ser a expressão de um profundo arrependimento. Daí sua preferência em dizer que tomou a estrada menos viajada, mesmo que antes tenha afirmado que ambas eram iguais. Assim, a “diferença” que isso fez no futuro ganha um caráter moralmente ambíguo.

T.S. Eliot & Ezra Pound: trilhando caminhos modernos Embora tenha sido um dos poetas mais respeitados de sua geração, Robert Frost era uma voz dissonante na literatura norte-americana do início do século XX. Sua sensibilidade romântica já era considerada datada, e vários poetas procuravam uma nova forma de representação da condição humana no período que sucedeu a 1.ª Guerra Mundial. Foi o momento em que as ilusões românticas deram lugar a uma percepção mais fria e cética da realidade, em que o mundo transcendental de Emerson e Whitman foi substituído pelo local da angústia e desesperança. Essa nova perspectiva moderna necessitava de uma forma poética de vanguarda, rompendo com os paradigmas românticos considerados já ultrapassados. Toda a geração poética moderna encontrou em T.S. Eliot (1888-1965) a sua voz, e em suas obras, um modelo. Eliot foi a figura dominante da poesia norte-americana (e de certa forma, de toda a poesia em língua inglesa) na primeira metade do século XX. Seus poemas contemplavam de maneira insuperável os principais temas da arte da época que procurava compreender, analisar e discutir uma experiência de vida moderna, urbana e pós-guerra. Eliot vinha de uma família proeminente da Nova Inglaterra, cujos antepassados remetiam aos primeiros colonos dos Estados Unidos. Na juventude, cursou a Universidade de Harvard, onde estudou Filosofia e Literatura. Posteriormente, fez o seu doutorado, quando consolidou seu gosto pelos poetas simbolistas franceses, como Rimbaud e Verlaine. Quando eclode a 1.ª Guerra Mundial, ele se estabelece em Londres onde trabalha em um banco, mas já se dedicava à escrita de poemas. Em 1917, Eliot publica seu primeiro livro de poesia: Prufrock and Other Observations (Prufrock e Outras Observações). É nesta obra que se encontra o primeiro grande poema do autor: The Love Song of J. Alfred Prufrock (A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock). Com esse trabalho o autor inova na sua descrição simbólica da realidade e com originais técnicas literárias que se tornariam características do Modernismo. O eu lírico (representado na figura de J. Alfred Prufrock) do poema 151

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aparenta ser um homem de meia-idade tomado por um forte sentimento de frustração. A “canção de amor” que dá título à obra é na verdade uma ironia, já que o Prufrock raramente age e não consegue dizer o que pretende. Os primeiros versos do poema são um bom exemplo: Let us go then, you and I, When the evening is spread out against the sky Like a patient etherized upon a table; Let us go, through certain half-deserted streets, The muttering retreats Of restless nights in one-night cheap hotels And sawdust restaurants with oyster-shells: Streets that follow like a tedious argument Of insidious intent To lead you to an overwhelming question . . . Oh, do not ask, “What is it?” Let us go and make our visit. In the room the women come and go Talking of Michelangelo.

Nessa passagem, chama atenção o tom melancólico da descrição de Prufrock, utilizando metáforas que exprimem um mundo desolado e estéril. A comparação da noite estendida sobre o céu com um paciente coberto de éter sobre uma mesa é morbidamente chocante (“the evening is spread out against the sky / Like a patient etherized upon a table”), mas representativa da visão que Prufrock tem do mundo e que os próprios leitores podem vir a ter de Prufrock, já que ele não age, como se estivesse dopado. A atmosfera lúgubre (escura, negra) é reforçada por uma série de imagens (ruas semidesertas, restaurantes empoeirados, noites inquietas) que leva o protagonista a tentar fazer uma pergunta reveladora (“overwhelming question”), mas que não consegue ser enunciada. Assim com as ruas da cidade vazia que existem numa sucessão labiríntica “como uma tediosa discussão”, o poema também recusa uma progressão linear e claramente definida, e esse efeito é construído por T.S. Eliot usando importantes recursos literários da poesia moderna. O primeiro é o fluxo da consciência – a descrição dos acontecimentos feita por J. Alfred Prufrock não tem uma sequência lógica, como se as frases fossem sendo organizadas de acordo com a sua confusão mental. Além do mais não fica claro se as imagens apresentadas por Prufrock são reais – ele realmente está caminhando pelas ruas observado o céu – ou se elas são representações de seu inconsciente. Outro recurso usado por Eliot em The Love Song of J. Alfred Prufrock é a fragmentação poética, que enfatiza o sentido de deslocamento do indivíduo com relação ao mundo. Isso pode ser demonstrado nas sucessivas descrições da at152

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mosfera urbana feitas pelo eu lírico, mas também nas diversas referências feitas pelo poema (Shakespeare, Dante, poetas metafísicos) que ilustram a abundância de antigas tradições literárias numa época que não consegue definir sua própria identidade. Essa fragmentação chega ao nível da forma, como quando Eliot usa a técnica conhecida como enjambement (a quebra da estrutura sintática entre dois versos) ou na irregular estrutura de rimas. Em 1922, T.S. Eliot chega à maturidade artística com a publicação de The Waste Land. Considerado por vários críticos o principal poema da primeira metade do século XX, The Waste Land vai ilustrar como nenhuma outra obra do período o pensamento e a estética modernista. É com esse poema que toda uma geração literária vai se consolidar como realmente moderna, além de confirmar Eliot como o principal poeta dos Estados Unidos. Como afirma Carolina Nabuco sobre o autor: “Esse longo poema, em que procura o destino e o traçado do homem do século XX à luz de todo o passado humano na história e no mito, colocou-o definitivamente entre os maiores poetas do século.” (NABUCO, 2000, p. 240) The Waste Land é um poema extenso, dividido em cinco partes. Extremamente denso e arquitetado de maneira complexa, ele tem como tema principal a situação de decadência e ausência de sentido em que se encontra a cultura ocidental (e o próprio homem) após a 1.ª Guerra Mundial. Assim como em The Love Song of J. Alfred Prufrock, Eliot vai usar diversos artifícios poéticos que se tornariam típicos do Modernismo, como o monólogo dramático, o fluxo da consciência e alusões literárias. No entanto, em The Waste Land o escopo de sua empreitada é mais grandiosa, envolvendo aspectos religiosos, psicológicos e artísticos que serão o retrato poético da humanidade que se encontra num estado de torpor. De forma geral, o poema pode ser interpretado da seguinte forma: This five-part work distills what we now know was a personal psychic crisis into a vision of a wasted world of lost religious faith and total cultural decline, of clinics and breakdowns, sterile sexual liaisons and futile entertainments, of Babylonish cities of degeneration where all faces are blank and where commerce dominates. It was [...] a quest for feeling, faith and prophecy in an age that felt itself cut off from history and meaning [...] It deals at once with historical, spiritual, religious and psychic crisis. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 264-265)

Os primeiros versos da primeira parte do poema, intitulada The Burial of the Dead, servem de exemplo para representar a visão de Eliot de um mundo em declínio em diferentes esferas: April is the cruellest month, breeding Lilacs out of the dead land, mixing Memory and desire, stirring Dull roots with spring rain. Winter kept us warm, covering 153

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Earth in forgetful snow, feeding A little life with dried tubers. Summer surprised us, coming over the Starnbergersee With a shower of rain; we stopped in the colonnade, And went on in sunlight, into the Hofgarten, And drank coffee, and talked for an hour. Bin gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch. And when we were children, staying at the archduke’s, My cousin’s, he took me out on a sled, And I was frightened. He said, Marie, Marie, hold on tight. And down we went. In the mountains, there you feel free. I read, much of the night, and go south in the winter. What are the roots that clutch, what branches grow Out of this stony rubbish? Son of man, You cannot say, or guess, for you know only A heap of broken images, where the sun beats, And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief, And the dry stone no sound of water. Only There is shadow under this red rock, (Come in under the shadow of this red rock), And I will show you something different from either Your shadow at morning striding behind you Or your shadow at evening rising to meet you; I will show you fear in a handful of dust.

O primeiro verso do poema pode ser interpretado como uma referência ao livro The Canterbury Tales (Os Contos da Cantuária) de Geoffrey Chaucer. Na obra de Chaucer, abril é o mês do recomeço, da felicidade que surge com o fim do inverno (no hemisfério norte) e do início das peregrinações religiosas. No poema de Eliot, com o verso “April is the cruellest month” (abril é o mês mais cruel), temos uma inversão de sentido. Em um mundo caracterizado pela melancolia e pela ideia de finitude, a esterilidade do inverno é mais desejada do que uma ideia falsa de fertilidade. O inverno, como mencionado no poema, é que deixou as pessoas aquecidas (“winter kept us warm”), especialmente porque cobria as memórias com a neve, que não deixava os indivíduos se lembrarem dos períodos de felicidade que um dia tiveram – e assim os faria ver a situação de desespero que se encontravam no presente. As imagens usadas para representar a situação atual da sociedade são representativas da perspectiva que Eliot tinha da modernidade: lixo rochoso (“stony rubbish”), imagens fragmentadas (“broken images”), árvores mortas que não oferecem abrigo (“dead tree gives no shelter”). Nessa atmosfera árida, o homem que procura a redenção só encontra a agonia e o medo (“I will show you fear in a handful of dust”). Essa atmosfera de desalento ecoou em praticamente toda a poesia moderna nos Estados Unidos e também na Europa, marcando um profundo pessimismo no pensamento da literatura ocidental. 154

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Se T.S. Eliot foi a figura central do Modernismo, Ezra Pound (1885-1972) foi aquele que deu a base teórica e formal ao movimento. Mais do que isso – sem o apoio e a influência de Pound, os primeiros livros de Eliot e Robert Frost teriam encontrado muito mais dificuldade para serem publicados. Considerado por muitos o “pai” do movimento moderno, foi Pound o principal responsável por unificar as poesias europeia e norte-americana sob uma nova revolucionária estética literária. Pound nasceu no estado de Idaho, mas foi criado na Pennsylvania. Na universidade, era proficiente em latim e estudou boa parte dos clássicos europeus. Foi durante esse período que o poeta começou a articular um plano para revitalizar a poesia norte-americana. No entanto, ele concluiu que a solução era iniciar uma revolução das letras através da expatriação, renegando os modelos nativos preexistentes. Assim, Pound vai para Londres e lá promove, junto com outros escritores europeus e norte-americanos, o surgimento da experiência moderna em literatura. Nesse período, a escrita de Ezra Pound é associada ao movimento conhecido como Imagismo, que ele ajudou a criar. O Imagismo teve extrema importância para a poesia moderna porque, através dele, foi possível definir uma direção e os principais elementos de uma nova forma de escrita em verso que surgia. Foi na revista Poetry de Chicago, em que Pound era co-editor, que ele anunciou o surgimento do Imagismo e seus principais preceitos: Use no superfluous word, no adjective which does not reveal something… Go in fear of abstractions. Don’t tell in mediocre verse what has already been done in good prose… Don’t imagine that the art of poetry is any simpler than the art of music… (POUND In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 260)

Assim sendo, a poesia imagista (e, por conseguinte, a modernista) deveria ter uma linguagem direta, precisa, despida do sentimentalismo romântico. Nenhuma palavra deveria ser usada em vão, e seu sentido deveria se relacionar diretamente à apresentação da ideia central do poema. O Imagismo foi um movimento essencialmente concretista. Nele, o simbolismo, a alegoria e a abstração do Romantismo são substituídos por um significado direto, concreto e até mesmo impessoal. O estilo imagista dos trabalhos de Pound também foi influenciado pela poesia chinesa e japonesa que tanto interessavam ao poeta. As técnicas de escrita orientais posteriormente se tornariam moda entre os modernistas, já que a

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Literatura Norte-Americana

escrita direta dos haikus1 muito tinha a ver com a proposta concretista de Pound e seus contemporâneos. Isso pode ser notado no curtíssimo poema de duas linhas In a Station of the Metro: “The apparition of these faces in the crowd; Petals on a wet, black bough.” Num estilo reminiscente do ideograma japonês, o poeta lida aqui com um conceito abstrato através de elementos concretos. Existe a justaposição dos dois objetos centrais – os rostos (“faces”) e as pétalas (“petals”) – e aí cria-se uma imagem que prescinde de metáforas ou comparações. A visão simbólica é construída precisamente através da forma da poesia. A 1.ª Guerra Mundial abala fortemente a crença de Ezra Pound na civilização ocidental moderna. Em 1920, o poeta parte de Londres para morar em Paris, mas não sem antes escrever o claramente satírico poema Hugh Selwyn Mauberley. Neste longo poema dividido em 18 partes, Pound analisa e critica parte de seu trabalho anterior. A primeira parte é ironicamente intitulada E.P. Ode Pour L’Election De Son Sepulchre, ou seja, “Ezra Pound, Ode à Escolha de Seu Túmulo”. Não é à toa que esse poema marca um novo começo para a carreira do poeta. Em seus versos iniciais, o poema diz: For three years, out of key with his time, He strove to resuscitate the dead art Of poetry; to maintain “the sublime” In the old sense. Wrong from the start – No, hardly, but seeing he had been born In a half savage country, out of date; Bent resolutely on wringing lilies from the acorn; Capaneus; trout for factitious bait

O tom do poema é crítico não só pela suposta luta vã do autor em tentar renovar a poesia, que se encontrava praticamente morta (“He strove to resuscitate the dead art / Of poetry”). No entanto, ele havia nascido num país praticamente selvagem (“he had been born / In a half savage country”), ou seja, os Estados Unidos, o que prejudicava sua intenção de articular uma poesia realmente nova. Esse afastamento de Pound de seu país de origem vai ser um tema recorrente na obra e na biografia do autor. Ainda em sua fase londrina, o poeta tentou reconhecer suas origens norte-americanas através de um pacto poético com a 1

Haiku é um tipo de poema japonês bastante curto, com apenas dezessete sílabas. Através dele é apresentada uma única ideia, imagem ou sentimento.

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principal figura com a qual o movimento modernista procurava romper: Walt Whitman. No poema exatamente intitulado A Pact, Pound deixa claro sua relação conflituosa com o autor de Leaves of Grass: I make a pact with you, Walt Whitman – I have detested you long enough. I come to you as a grown child Who has had a pig-headed father; I am old enough now to make friends. It was you that broke the new wood, Now is a time for carving. We have one sap and one root – Let there be commerce between us.

Embora deixe clara a desavença estética que existe entre os dois (“I have detested you long enough”), Pound reconhece que foi Whitman o criador de uma primeira vanguarda norte-americana (“It was you that broke the new wood”) e que, já que são fruto da criação literária norte-americana (“We have one sap and one root”), a relação entre ambos deve ser ricamente inspiradora (“Let there be commerce between us”). Depois de sua temporada em Paris, Pound parte para a Itália onde, sob a influência das ideias de Mussolini, passa a se dedicar ao estudo de teoria econômica. A partir daí, se torna bastante crítico em relação ao capitalismo norte-americano e se revela antissemita. Durante a 2.ª Guerra Mundial, faz campanha a favor do fascismo. Com o fim do conflito, é condenado por traição e preso num campo de prisioneiros na Itália. Posteriormente, é declarado louco e internado em uma instituição psiquiátrica nos Estados Unidos. Durante sua prisão na Itália, Pound consegue escrever os mais famosos poemas de sua monumental obra The Cantos. Embora o mérito dessa obra tenha sido muito discutido – já que tinha sido composta por um traidor – a qualidade artística dos The Pisan Cantos (assim chamados porque foram compostos em um campo de prisioneiros perto da cidade de Pisa) supera a polêmica. The Cantos é uma obra inspirada na Odisseia de Homero e nas poesias orientais que tanto fascinavam Pound. No entanto, o poeta usa essas referências para traçar um panorama de suas memórias, dos amigos que já se foram e dos bons momentos e arrependimentos de sua vida. Misturando um tom mítico, lírico e profundamente pessoal, os Cantos de Pound são a confirmação final do talento e da importância do poeta para a poesia do século XX.

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Literatura Norte-Americana

Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil A partir da década de 50 do século XX, o Modernismo se desenvolveu. A necessidade de demolir paradigmas e criar uma vanguarda literária já não era prioridade – até porque a estética modernista já tinha deixado de ser revolucionária para se tornar o estilo poético dominante. O pessimismo de Eliot e o concretismo de Pound, apesar de presentes, tinham deixado de ser as características dominantes da poesia. Dentro do movimento modernista, vários poetas procuram um estilo próprio, capaz de expor a sua subjetividade estendendo os limites dentro da forma poética moderna. Dentre esses autores, uma das vozes mais significativas foi a de Elizabeth Bishop (1911-1979). Bishop nasceu no estado de Massachusetts, mas foi uma mulher do mundo. Viajou durante muito tempo pelo Canadá, Europa e América do Sul. Teve residência fixa no Brasil, onde viveu por 17 anos. Grande parte de sua poesia é em resposta a essas viagens e às experiências no estrangeiro. Atuante no meio universitário e em revistas literárias, a autora gradualmente construiu sua carreira até tornar-se um dos nomes mais importantes da fase tardia do movimento modernista. Após a morte de seu pai, Elizabeth Bishop recebe uma herança considerável que lhe permite levar uma vida confortável viajando ao redor do globo. Ela era grande leitora de T.S. Eliot e conhecia as teorias e o estilo do mais notório dos poetas modernistas. No entanto, a condição peculiar de Bishop lhe permitiu criar uma poesia mais pessoal. Há em seus poemas um forte sentimento de desapego, mas ao mesmo tempo de busca por um terreno seguro. Mulher, órfã, lésbica, estrangeira e – mais tarde em sua vida – sujeita a crises de depressão e alcoolismo, Bishop tinha a sua própria maneira de encarar os diferentes mundos a que tinha acesso em suas viagens. Um bom exemplo da poesia de Elizabeth Bishop é em The Map, que provavelmente foi escrito em 1933, mas só publicado anos depois. Os primeiros versos são: Land lies in water; it is shadowed green. Shadows, or are they shallows, at its edges showing the line of long sea-weeded ledges where weeds hang to the simple blue from green. Or does the land lean down to lift the sea from under, drawing it unperturbed around itself? Along the fine tan sandy shelf is the land tugging at the sea from under?

Embora se utilizando de uma voz claramente descritiva, há uma rica subjetividade nessa passagem que ilustra o processo mental da autora. Embora essa per158

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cepção da consciência autoral seja característica do Modernismo, Bishop faz isso não através de construções concretistas, mas utilizando metáforas e até mesmo se questionando (“Shadows, or are they shadows”). Essa construção metafórica vai sendo delineada aos poucos em The Map para que, em sua última estrofe, Bishop trace uma belíssima analogia entre o mapa de um viajante e um poema: Mapped waters are more quiet than the land is, lending the land their waves’ own conformation: and Norway’s hare runs south in agitation, profiles investigate the sea, where land is. Are they assigned, or can the countries pick their colors? – What suits the character or the native waters best. Topography displays no favorites; North’s as near as West. More delicate than the historians’ are the map-makers’ colors.

Nessa passagem, a menção às cores (um dos aspectos mais recorrentes da poesia de Elizabeth Bishop) chama a atenção, porque são elas que vão diferenciar o trabalho de um historiador ao de um cartógrafo. De acordo com o poema, as cores usadas por um cartógrafo são mais delicadas que as do historiador (“More delicate than the historians’ are the map-makers’ colors”). Assim, o mapa deixa de ser apenas uma forma de representar o mundo para se tornar um mundo em si só – da mesma forma que a poesia arquiteta subjetivamente o seu próprio mundo. Um dos períodos mais produtivos para a poesia de Elizabeth Bishop foi quando residiu no Brasil, entre 1952 e 1969. Seu contato com uma cultura tão diferente da sua, assim como uma literatura em ebulição (Bishop tinha entre seu círculo de conhecidos Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector) contribuiu para um amadurecimento literário. A sociedade e a história do Brasil foram temas constantes da produção poética de Bishop. Um dos de seus poemas mais conhecidos dessa fase é Brazil, January 1, 1502, cujo título é a data em que os portugueses avistaram e exploraram pela primeira vez a cidade do Rio de Janeiro, onde morava a autora. A primeira estrofe é característica do estilo de Bishop: Januaries, Nature greets our eyes exactly as she must have greeted theirs: every square inch filling in with foliage – big leaves, little leaves, and giant leaves, blue, blue-green, and olive, with occasional lighter veins and edges, or a satin underleaf turned over; monster ferns in silver-gray relief, and flowers, too, like giant water lilies up in the air – up, rather, in the leaves – purple, yellow, two yellows, pink, rust red and greenish white; solid but airy; fresh as if just finished and taken off the frame. 159

Literatura Norte-Americana

Primeiramente, o estilo descritivo e a presença das cores vívidas também se fazem presentes nas primeiras estrofes do poema. Os versos são em forma livre, praticamente despidos de uma métrica formal. Um estrangeiro que chegasse em meados do século XX ao Rio de Janeiro veria a cidade da mesma forma que os primeiros exploradores portugueses a devem ter visto no século XVI: um grande espetáculo da natureza, com uma flora tão vasta e impressionante (“big leaves, little leaves, and giant leaves”) que parece ser uma pintura que acabara de ser concluída (“fresh as if just finished and taken off the frame”). No entanto, esse belíssimo aspecto da natureza é contrastado com a chegada dos conquistadores europeus. Primeiramente, o eu lírico afirma que nessa “pintura” natural há a presença do pecado: “Still in the foreground there is Sin / five sooty dragons near some massy rocks.” (“Ainda assim, à frente existe o Pecado/ cinco lagartos negros perto de algumas rochas”). Essa presença do simbolismo cristão transforma o poema de narrativa de viagens em uma complexa análise do papel do ambiente na identidade do viajante e vice-versa. A última estrofe do poema reforça essa ideia: Just so the Christians, hard as nails, tiny as nails, and glinting, in creaking armor, came and found it all, not unfamiliar: [...] Directly after Mass, humming perhaps L’ Homme arme or some such tune, they ripped away into the hanging fabric, each out to catch an Indian for himself – those maddening little women who kept calling, calling to each other (or had the birds waked up?) and retreating, always retreating, behind it.

Já no primeiro verso, há uma comparação entre os lagartos e o exploradores cristãos (“Just so the Christians”) – ou seja, os portugueses também chegam como figuras responsáveis pela propagação da ruína e do pecado. Primeiro eles realizam uma missa (“Mass”), mas logo depois rompem a mata – novamente comparada a uma pintura, através da palavra fabric, significando tecido ou tela – em busca de mulheres nativas, que tentam se esconder por trás da vegetação. A presença do colonizador como uma figura de dominação e escravização ganha tintas sexuais, já que a mulher se torna a vítima central dessa nova estrutura homem-natureza. Elizabeth Bishop foi das mais representativas vozes poéticas de um período em que o Modernismo como movimento já começava a perder sua força, mas mesmo assim deixava uma marca profunda na subjetividade norte-americana. 160

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

Ao compor poemas de uma posição na maioria das vezes exterior ao que descreve, Bishop conseguiu realizar uma obra totalmente individual – uma das razões de sua permanência no cânone da literatura dos Estados Unidos.

Texto complementar The hollow men (ELIOT In: ABRAMS, 2000)

I We are the hollow men We are the stuffed men Leaning together Headpiece filled with straw. Alas! Our dried voices, when We whisper together Are quiet and meaningless As wind in dry grass Or rats’ feet over broken glass In our dry cellar Shape without form, shade without colour, Paralysed force, gesture without motion; Those who have crossed With direct eyes, to death’s other Kingdom Remember us – if at all – not as lost Violent souls, but only As the hollow men The stuffed men. II Eyes I dare not meet in dreams In death’s dream kingdom These do not appear: There, the eyes are Sunlight on a broken column There, is a tree swinging 161

Literatura Norte-Americana

And voices are In the wind’s singing More distant and more solemn Than a fading star. Let me be no nearer In death’s dream kingdom Let me also wear Such deliberate disguises Rat’s coat, crowskin, crossed staves In a field Behaving as the wind behaves No nearer – Not that final meeting In the twilight kingdom III This is the dead land This is cactus land Here the stone images Are raised, here they receive The supplication of a dead man’s hand Under the twinkle of a fading star. Is it like this In death’s other kingdom Waking alone At the hour when we are Trembling with tenderness Lips that would kiss Form prayers to broken stone. IV The eyes are not here There are no eyes here In this valley of dying stars In this hollow valley This broken jaw of our lost kingdoms

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A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

In this last of meeting places We grope together And avoid speech Gathered on this beach of the tumid river Sightless, unless The eyes reappear As the perpetual star Multifoliate rose Of death’s twilight kingdom The hope only Of empty men. V Here we go round the prickly pear Prickly pear prickly pear Here we go round the prickly pear At five o’clock in the morning. Between the idea And the reality Between the motion And the act Falls the Shadow For Thine is the Kingdom Between the conception And the creation Between the emotion And the response Falls the Shadow Life is very long Between the desire And the spasm Between the potency And the existence Between the essence

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Literatura Norte-Americana

And the descent Falls the Shadow For Thine is the Kingdom For Thine is Life is For Thine is the This is the way the world ends This is the way the world ends This is the way the world ends Not with a bang but a whimper.

Dicas de estudo Uma interessante visão sobre a vida, os amores e as opiniões de Elizabeth Bishop é a peça Um Porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes. Baseada nas cartas que a poetisa escreveu durante o período em que viveu no Brasil, a peça mostra um outro lado de Bishop, especialmente no que trata de sua relação com o país que tanto serviu de inspiração para seus mais ricos poemas. T.S. Eliot, além de muito conhecido como a principal figura da poesia modernista, também foi considerado o principal crítico literário do movimento. Em Selected Essays, é possível ter acesso às principais ideias de Eliot sobre Filosofia, Teatro e Literatura. No seu ensaio mais famoso, Tradition and the Individual Talent (Tradição e Talento Individual), Eliot discute o papel da tradição numa era que enfatiza a ruptura intelectual.

Atividades 1. Como a poesia de Robert Frost se relaciona com o Romantismo norte-americano?

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A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

2. Quais as principais características da poesia de T.S. Eliot?

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O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX Com o século XX, a literatura norte-americana se firmou como uma das mais influentes do mundo. As criações literárias de artistas nascidos nos Estados Unidos serviram como base para uma nova forma de escrita. Nos romances e contos, os principais nomes da Lost Generation haviam definido inovadoras maneiras de construir textos em prosa. Na poesia, a ruptura apresentada pelo movimento modernista apresentou ao mundo diferentes formas de expressão em verso. Por outro lado, faltava à produção literária dos Estados Unidos uma cena teatral relevante capaz de acompanhar o desenvolvimento das artes no país. Apesar de algumas peças produzidas no século XIX, o teatro norte-americano não tinha peso considerável na cena cultural. Essa situação começa a mudar no século XX, quando dramaturgos surgidos na década de 1920, pertencentes à mesma geração de T.S. Eliot e Ezra Pound, começam a ganhar destaque. Especialmente a partir do final da 2.ª Guerra Mundial, a qualidade da dramaturgia norte-americana alcança seu nível mais alto. Mesmo com a crescente competição da televisão e o alto custo das produções teatrais, as peças apresentadas apresentavam uma riqueza simbólica e uma complexa construção de personagens até então inédita. Desse período, dois dramaturgos se destacaram: Arthur Miller e Tennessee Williams. A partir das décadas de 1960 e 1970, a prosa norte-americana acompanha a crescente agitação social que começava a ocorrer na sociedade dos Estados Unidos. O movimento por direitos civis, reivindicando, entre outras coisas, maior igualdade racial entre os cidadãos foi o pano de fundo para o surgimento da literatura afro-americana, concentrando-se especialmente na situação atual e na história dos negros dos Estados Unidos. Chama atenção que dois dos grandes nomes da literatura afro-americana são mulheres: Alice Walker e Toni Morrison. Nesse mesmo período, surge nos Estados Unidos uma nova forma de literatura que realiza uma espécie de fusão entre a narrativa literária com técnicas jornalísticas – surge assim o jornalismo literário ou New Jornalism.

Literatura Norte-Americana

Ao mesmo tempo não-ficção e escrita imaginativa, o jornalismo literário teve grande influência na forma de desenvolver narrativas na 2.ª metade do século XX, especialmente através de nomes como Tom Wolfe e Truman Capote.

O teatro de Arthur Miller e Tennessee Williams Durante o período colonial, os Estados Unidos já possuíam pequenos grupos teatrais itinerantes que faziam apresentações viajando de cidade em cidade. É no século XIX, contudo, que surgem os primeiros teatros realmente importantes e a dramaturgia passa a ser considerada uma forma de alto entretenimento. As peças produzidas naquele período eram fortemente marcadas pelo romantismo vindo da Europa, várias vezes traduções ou adaptações de obras alemãs ou francesas. Mesmo assim, vários dos temas abordados eram próximos da realidade norte-americana, como os conflitos com os nativos indígenas e a intolerância puritana. Os personagens da maioria dessas peças seguiam à risca o estilo do melodrama, o mais popular estilo teatral do século XIX: construídos de forma estereotipada, eram sempre heróis indomáveis, vilões terríveis ou donzelas indefesas. Com o fim do século XIX e início do século XX, o teatro dos Estados Unidos passa a ter uma preocupação mais realista. O sentimentalismo e o melodrama deram lugar a uma preocupação com as tensões sociais e com os problemas da família norte-americana. Especialmente a partir da década de 1920, nomes como Eugene O’Neill e Thornton Wilder levam a dramaturgia do país à maturidade, com peças que constroem ricamente a natureza psicológica de seus personagens. É no período após a 2.ª Guerra Mundial, no entanto, que o drama norteamericano dá o seu maior salto qualitativo. Novos dramaturgos apresentam um diferente olhar sobre as questões sociais da nação e a importância do sonho americano no período pós-guerra. O realismo psicológico é uma das marcas registradas do teatro dessa fase, com a presença de personagens extremamente complexos e um tom melancólico que poucas vezes dá lugar à esperança. Uma figura central do teatro dos Estados Unidos do pós-guerra é Arthur Miller (1915-2005). Miller, como outros dramaturgos do período, usava de vários aspectos biográficos na construção do enredo e dos personagens da maioria de suas peças. Assim sendo, aspectos profissionais (sua relação problemática trabalhando como comerciante no início de carreira), políticos (a acusação e perseguição por parte do governo devido ao liberalismo de suas ideias) e pessoais (seu confli168

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

tuoso casamento com Marilyn Monroe) acabaram por servir de base para alguns de seus trabalhos mais famosos. Arthur Miller era filho de um próspero comerciante norte-americano e viveu a infância e a adolescência numa condição financeira extremamente confortável. No entanto, no fim da década de 1920 – especialmente após a crise de 1929 – os negócios da família entraram em decadência e a vida do jovem Arthur mudou completamente. Ele passou a trabalhar numa série de empregos pouco compensados, geralmente relacionados ao comércio. Seu pai tentou recomeçar um novo negócio no ramo das manufaturas, mas para novamente decretar falência. Como consequência, “Miller grew to hate the demeaning life of a salesman: the ceaseless demands for sales, the constant abuse and humiliations one had to accept from customers.” (McMICHAEL et al., 2001, p. 1.928) Lavando pratos para se sustentar, Miller consegue entrar na Universidade de Michigan, onde começa a ganhar prêmios com suas primeiras peças. Depois de se graduar, o autor se dedica inteiramente à literatura, escrevendo romances, roteiros e, especialmente, peças de teatro. É após a 2.ª Guerra Mundial que o autor atingirá o seu ápice criativo, e os trabalhos que depois viriam a ser seus maiores sucessos são encenados pela primeira vez. Em 1949, estreia Death of a Salesman (A Morte do Caixeiro-Viajante), a obra-prima de Miller e considerada por muitos críticos o melhor texto teatral norte-americano. A peça conta a história de Willy Loman, um comerciante idoso que viaja longas distâncias para fazer negócios, ganha apenas por comissão e tem de fazer constantes empréstimos pra sobreviver. O personagem apresenta sinais de senilidade e seu comportamento afeta toda sua família: sua esposa Linda e seus filhos Biff e Happy. Willy Loman acredita cegamente no sonho americano, na riqueza fácil e no sucesso que virá para aqueles que nascem vencedores. Contudo, suas ilusões de grandeza nunca se concretizam, e a dureza da realidade fracassada em que vive acaba por afetar seriamente seu estado mental. Miller utiliza a família Loman como microcosmo para discutir os valores nacionais norte-americanos, especialmente a busca incessante por sucesso (especialmente o material) que leva inevitavelmente a uma derrocada moral. Com Death of a Salesman, Arthur Miller recontextualiza os elementos clássicos da tragédia para uma perspectiva moderna, familiar e tipicamente norte-americana. A queda do herói devido a uma falha de caráter, apresentada em diferentes peças do teatro grego, ganha em Willy Loman uma nova representação. Miller é abrasivo em sua análise do sonho americano. A crença nesse conceito fundamen169

Literatura Norte-Americana

tal de formação dos Estados Unidos leva os personagens à morte, à loucura e a uma percepção ilusória do mundo a seu redor. Para Willy Loman, ser admirado e carismático é suficiente para alcançar o sucesso, mas isso o impede de compreender claramente que sua própria vida está em irrevocável declínio. Daí as inúmeras tentativas de suicídio do personagem (cujo nome Loman, ou seja, o low man, o “homem inferior”, já indica o tipo de personalidade que ele possui) e a sua necessidade de justificar seus atos tendo como molde anseios do passado. Em uma tocante passagem, Willy Loman tem uma alucinação em que vê seu irmão Ben Howard, já falecido. Howard, que aos 21 anos fez fortuna com diamantes na África, é a personificação do sucesso que Loman sempre tentou alcançar. Conversando com essa imagem de seu irmão já morto, o protagonista explica porque escolheu a sua profissão – a influência de um mítico vendedor, cuja vida e morte influenciaram Loman: [...] I met a salesman in the Parker House. His name was Dave Singleman. And he was eightyfour years old, and he’d drummed merchandise in thirty-one states. And old Dave, he’d go up to his room, y’understand, put on his green velvet slippers – I’ll never forget - and pick up his phone and call the buyers, and without ever leaving his room, at the age of eighty-four, he made his living. And when I saw that, I realized that selling was the greatest career a man could want . `Cause what could be more satisfying than to be able to go, at the age of eightyfour, into twenty or thirty different cities, and pick up a phone, and be remembered and loved and helped by so many different people? Do you know? When he died – and by the way, he died the death of a salesman, in his green velvet slippers in the smoker of the New York, New Haven and Hartford, going into Boston - when he dies, hundreds of salesmen and buyers were at his funeral. Things were sad on a lotta trains for months after that. In those days there was personality in it, Howard. There was respect, and comradeship, and gratitude in it. Today, it’s all cut and dried, and there’s no chance for bringing friendship to bear – or personality. You see what I mean? They don’t know me anymore. (MILLER, In: McMICHAEL et al., 2001, p. 1.989)

A admiração que Willy Loman tinha por Dave Singleman é a mesma admiração que ele associa a uma ideia de sucesso e prosperidade. A felicidade suprema seria ser apreciado como um excelente vendedor, o que por conseguinte significaria que era apreciado também como um grande homem. Até mesmo a morte de Singleman ilustra um fim honrado, “he died the death of a salesman”, que posteriormente no caso de Loman vai ter implicações menos respeitosas. O interesse de Arthur Miller em expor as feridas do pensamento norte-americano é ainda mais latente em The Crucible (O Caldeirão), também conhecido como As Bruxas de Salem, de 1953. Nesse trabalho, que posteriormente viria a ser o mais encenado de Miller e alcançaria ainda mais popularidade com uma bem-sucedida adaptação para o cinema em 1996 (roteirizada pelo próprio dramaturgo), existe um enredo cuja construção funciona historicamente em dois níveis. O primeiro é a história de um dos eventos mais vergonhosos da história dos Estados Unidos: os chamados “Julgamentos das Bruxas de Salem”, em 170

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

que mais de 150 pessoas foram acusadas e presas no vilarejo de Salem, em Massachusetts, por participarem de supostos atos de bruxaria. Vários foram condenados à morte por enforcamento devido à histeria coletiva iniciada por uma jovem chamada Abigail Williams. O segundo nível com que The Crucible pode ser interpretado é como uma resposta de Arthur Miller ao Mcarthyismo da década de 1950 nos Estados Unidos. O Mcarthyismo foi um movimento liderado pelo senador Joseph McCarthy e seu Comitê de Atividades Antiamericanas contra qualquer pessoa que tivesse ideias liberais que a aproximassem do comunismo. A perseguição e o clima de acusação eram constantes, especialmente no meio artístico. Vários atores e diretores foram presos e forçados a acusar outros supostos comunistas. O próprio Arthur Miller foi acusado e teve de prestar depoimento ao Comitê de Atividades Antiamericanas. Assim sendo, The Crucible é representativo de dois tipos de “caça às bruxas” da história norte-americana: o literal e o metafórico. Se a parábola e a estrutura simbólica são características da obra de Arthur Miller, elas são centrais nas peças de Tennessee Williams (1911-1983), um dos mais importantes dramaturgos norte-americanos do século XX que também alcança o sucesso no período após a 2.ª Guerra Mundial. Assim como Miller, Williams usou abertamente elementos de sua vida pessoal para construir de forma extremamente realista a atmosfera e os personagens de suas peças. Temas como a repressão do desejo, alcoolismo, e loucura estiveram presentes na vida do autor assim como em seus mais importantes trabalhos. Mesmo muito densos e por vezes brutais, seus diálogos são construídos simbolicamente, com ricas metáforas que deixam transparecer a complexidade psicológica de suas criações. Em praticamente todas as suas peças, Tennessee Williams iria retratar o sul dos Estados Unidos que conhecia tão bem. Nascido no estado do Mississippi, tendo vivido em St. Louis e Nova Orleans, ele soube transpor para os palcos a variedade social daquela região do país. Em 1938, Williams é aceito na universidade, ao mesmo tempo em que trabalha como comerciante e se dedica a escrever suas peças à noite. Sua vida pessoal foi muito conturbada, especialmente com sua tendência à depressão e ao alcoolismo, sua homossexualidade velada e, especialmente, a triste relação com sua irmã Rose, diagnosticada com esquizofrenia e de quem Williams cuidou até o fim da vida. O ápice criativo do autor foi nas décadas de 1940 e 1950. Em 1947, estreia nos teatros sua obra-prima: A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo). Até hoje, permanece um dos textos mais ousados da dramaturgia norte-americana, com sua mistura de atmosfera gótica, falsas ilusões e latente sensualidade. 171

Literatura Norte-Americana

É um trabalho sobre a perda da razão num mundo onde a dureza da realidade molda as personalidades dos indivíduos ao mesmo tempo em que as destrói. A peça conta a história da chegada de Blanche DuBois, uma mulher sonhadora e com um passado problemático, à casa de sua irmã Stella e seu rude cunhado Stanley Kowalski, em Nova Orleans. Nesse mesmo ambiente, os devaneios românticos de Blanche vão se chocar duramente com a realidade dura e ríspida da cidade sulista, com seu calor constante, onde pulsa a sensualidade. Esse contraste vai sendo construído num crescendo trágico, até que as falhas de caráter de Blanche sejam reveladas e sua derrocada rumo à loucura seja irreparável. Assim como praticamente todas as peças de Tennessee Williams, A Streetcar Named Desire apresenta uma natureza realista na ambientação e na construção dos personagens. A descrição do relacionamento entre Stanley Kowalski e Stella é feita com tintas animalescas, com os personagens se agredindo (às vezes fisicamente) de forma recorrente para depois resolverem suas diferenças através do ato sexual. Isso é retratado de forma clara em um dos momentos mais famosos da peça, quando Stanley, depois de agredir Stella violentamente, pede que a mulher retorne para a casa gritando seu nome. Stella, que está na casa de uma vizinha no andar de cima, não resiste aos apelos de seu marido. A descrição que Williams faz do reencontro do casal retrata um desejo sexual pouco visto no teatro norte-americano: The low-tone clarinet moans. The door upstairs opens again. Stella slips down the rickety stairs in her robe. Her eyes are glistening with tears and her hair loose about her throat and shoulders. They stare at each other. Then they come together with low, animal moans. He falls on his knees on the steps and presses his face to her belly, curving a little with maternity. Her eyes go blind with tenderness as she catches his head and raises him level with her. He snatches the screen door open and lifts her off her feet and bears her into the dark flat. (WILLIAMS, 2000, p. 154)

Essa forte conexão sexual entre Stella e Stanley vai de encontro às ilusões de superioridade de Blanche, que não consegue entender como a relação entre o casal é baseada em um forte desejo. Este desejo desmedido, que está no título da peça, é apenas um dos símbolos usados por Williams. Para chegar à casa de Stella no início da peça, Blanche tem de pegar um bonde chamado “Desejo”, depois outro chamado “Cemitérios”, para descer na rua chamada “Campos Elísios” (na mitologia grega, o lugar onde as almas dos mortos descansavam). Pode-se interpretar que o desejo era o caminho para a ruína e a morte, como diferentes passagens da peça mostram. Um deles é o trágico casamento que Blanche teve quando era muito jovem. Pela forma em que é feita a descrição, a personagem tinha um grande desejo por 172

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

seu marido, que acaba se revelando homossexual. Quando Blanche o confronta, humilhando-o, ele se suicida. Outro exemplo máximo da marca destruidora do desejo ocorre no final da peça, quando Stanley confronta Blanche e a estupra, levando a personagem à insanidade completa. Novamente, é o desejo que toma conta do indivíduo e funciona como marca fundamental da tragédia. O desejo também se faz presente em outra brilhante obra de Tennessee Williams, Cat on a Hot Tin Roof (Gata em Teto de Zinco Quente), de 1955. No entanto, o desejo sexual nessa peça está intimamente ligado a um desejo pela verdade, já que os personagens parecem se proteger e até mesmo se definir pela atmosfera de mentira e falsidade que possa garantir uma privilegiada situação financeira. Novamente trabalhando com o tema da decadência sulista, Williams desta vez aborda uma rica família do Mississippi em crise. O patriarca, Big Daddy, está com uma doença terminal, mas todos o iludem, fazendo com que ele acredite que está bem de saúde; o filho dele, Brick, tem uma relação conflituosa com a esposa Maggie, “A Gata”, especialmente por causa de um segredo do passado envolvendo o melhor amigo de Brick. Com a morte iminente de Big Daddy, inicia-se um confronto sobre quem vai ficar com a fortuna da família. No entanto, Brick, o filho favorito de Big Daddy, não tem o menor interesse pelas propriedades do pai. Um fracassado jogador de futebol americano, Brick apenas passa os dias e noites bebendo e se recusando a ter relações com sua esposa, o que a deixa enfurecida, porém aumentando a tensão sexual entre os dois. Brick (cujo significado do nome, “tijolo”) já atesta a dureza e a rigidez do nome, e o personagem funciona como um símbolo da masculinidade. No entanto, à medida que a peça se desenvolve, começam a aparecer as primeiras rachaduras no muro aparentemente sólido da personalidade de Brick, especialmente devido à fuga e repressão de um grande sentimento de culpa pela morte de Skipper, seu melhor amigo do passado com o qual ele pode ter desenvolvido um relacionamento homossexual. As verdades indesejáveis que pouco a pouco vêm à tona (a doença de Big Daddy, o suposto relacionamento de Brick e Skipper, o passado pobre de Maggie) são camufladas pela grande mentira orquestrada pelo ideal de uma família feliz do sul dos Estados Unidos. Na peça, o termo usado para ilustrar essa situação é mendacity (que pode ser traduzido como “hipocrisia” ou “falsidade”). Brick afirma que toda a sua existência é regrada por essa falsidade e que ele não consegue mais suportá-la. Big Daddy então deixa claro como não é possível viver sem essa falsidade: 173

Literatura Norte-Americana

What do you know about mendacity? I could write a book on it...Mendacity. Look at all the lies that I got to put up with. Pretenses. Hypocrisy. Pretendin’ like I care for Big Mama, I haven’t been able to stand that woman in forty years. Church! It bores me. But I go. And all those swindlin’ lodges and social clubs and money-grabbin’ auxiliaries. It’s-it’s got me on the number one sucker list. Boy, I’ve lived with mendacity. Now why can’t you live with it? You’ve got to live with it. There’s nothin’ to live with but mendacity. Is there? (WILLIAMS, 1955, p. 170)

Mesmo assim, o mesmo Big Daddy que na passagem acima afirma que “não há nada para viver a não ser a falsidade” passa a buscar posteriormente a verdade – e é através dela que descobre tragicamente que tem pouco tempo de vida. A mentira, de certa forma, o corroeu até a morte, assim como oprimiu Brick e o levou ao alcoolismo. Em Cat on a Hot Tin Roof, Tennessee Williams investiga como a hipocrisia corrompe o indivíduo e como a verdade, por mais cruel e ríspida que seja, sempre acaba se revelando como o aspecto mais genuíno de humanidade.

A ascensão da literatura afro-americana A partir do final da década de 1950 nos Estados Unidos, diferentes setores da sociedade começaram a se mobilizar com o intuito de alcançar uma maior igualdade de direitos. A maior conscientização de grupos sociais minoritários fez com que se iniciasse no país um movimento organizado que combatesse a segregação e o preconceito, visando aumentar a participação das minorias nas decisões políticas norte-americanas. É importante enfatizar o caráter plural da agitação social e cultural ocorrida na década de 1960. Apesar de um objetivo básico comum (a igualdade de direitos), cada grupo tinha interesses bem específicos em seus protestos. Stuart Hall afirma: Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento. (HALL, 1999, p. 45)

Assim sendo, é importante notar que além de uma forte consciência social, cada movimento tinha a sua própria identidade, que viria a ser definida por formas culturais específicas – especialmente na literatura. O Movimento dos Direitos Civis, como ficou conhecido, teve nos negros norte-americanos sua força inicial e mais significativa. Lutando por reformas na sociedade e na política contra a discriminação, o braço afro-americano do movimento (que teve em Martin Luther King sua figura mais proeminente) conseguiu diminuir a opressão e os abusos exercidos por brancos, especialmente no sul dos Estados Unidos, quase 100 anos depois do fim da escravidão. 174

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

A década de 1960 também foi o período em que o papel da mulher em sociedade passou e ser discutido devido ao impacto de teorias feministas. Mais do que qualquer outro grupo lutando por maiores direitos civis, as mulheres colocaram a esfera doméstica e pessoal no centro da discussão política. Tópicos como a divisão do trabalho no lar, o balanço de poder na família, a criação dos filhos, entre outros, passaram a ser questionados como nunca antes. As mulheres, que durante muito tempo propunham igualdade de direitos por serem iguais aos homens, passaram a reconhecer que eram diferentes – e aí residia o seu verdadeiro valor. Nos Estados Unidos, a identidade cultural dos afro-americanos e das mulheres vai se mesclar de forma especial na literatura. As produções literárias que tinham como foco a experiência de vida dos negros norte-americanos têm um notável crescimento nas décadas de 1960 e 1970, assim como aumenta o número de mulheres escritoras nesse período. Surge então um terceiro grupo que vai ter uma influência fundamental na nova perspectiva social e literária dos Estados Unidos: o das mulheres negras escritoras. Apesar de temas específicos mais voltados para questões da identidade negra e feminina, figuras como Alice Walker e Toni Morrison já saíram do nicho de “literatura afro-americana” ou “literatura feminista” para serem reconhecidas como grandes autoras da literatura norte-americana em geral. Alice Walker (1944-) nasceu no estado da Georgia, a mais jovem de oito irmãos. Seu pai trabalhava na agricultura e sua mãe como empregada doméstica. Depois de um acidente com uma arma de fogo, a jovem Alice ficou cega de um olho. Não podendo ajudar nas atividades domésticas, ela ganhou uma máquina de escrever, o que a despertou para o mundo da ficção. Conseguiu uma bolsa de estudos que a permitiu cursar a universidade e, assim que terminou a graduação, tornou-se engajada no movimento pelos direitos civis e passou a publicar seus trabalhos em prosa e poesia. O trabalho mais aclamado de Alice Walker é The Color Purple (A Cor Púrpura), de 1982. É um romance epistolar – ou seja, a narrativa é construída através de cartas – que tem como foco a situação da mulher negra no sul dos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Os principais personagens do romance (em especial a protagonista Celie) passam por uma longa trajetória de sofrimento (incluindo abusos físicos, mentais e sexuais), mas ainda assim conseguem afirmar sua identidade e encontrar motivos para ter esperança. The Color Purple é uma obra que trabalha com as questões de raça e gênero de forma inovadora. Racismo e sexismo são questões que falam diretamente à mulher negra, colocando-a numa posição duplamente inferior – ao sexo mas175

Literatura Norte-Americana

culino e aos brancos. As personagens de Alice Walker, contudo, são figuras libertárias que procuram se livrar das amarras dos estereótipos da figura sofrida e vitimizada. Sofia, por exemplo, é uma mulher de personalidade forte que é extremamente assertiva em sua atitude, chegando a bater no marido; Shrug Avery é uma cantora de blues autoconfiante que não esconde sua vibrante sexualidade; e Celie, que começa como vítima de uma sociedade opressora, encontra sua própria personalidade à medida que o romance se desenvolve, se tornando um símbolo de perseverança e determinação. De certa forma, cada personagem é a representação de um dos temas centrais do romance: a necessidade da autoexpressão e de uma voz única como instrumentos para construir a identidade de um grupo social. O próprio fato de The Color Purple ser narrado por Celie – que inicialmente não consegue se afirmar a não ser escrevendo cartas a Deus – caracteriza essa busca. O próprio “Deus” a quem Celie escreve vai tendo sua concepção alterada no desenrolar do romance. Inicialmente, o Deus pensado por Celie é a figura estereotipada do homem branco que observa as ações do homem por entre as nuvens. Posteriormente, ela percebe que a presença de Deus independe de cor ou gênero, e que sua obra está em seu redor: “Well, us talk and talk about God, but I’m still adrift. Trying to chase that old white man out of my head. I been so busy thinking bout him I never truly notice nothing God make. Not a blade of corn (how it do that?) not the color purple (where it come from?)” (WALKER, 2003, p. 24). Esta diferente e madura percepção sobre Deus é prova de como os personagens se tornam cada vez mais densos psicologicamente à medida que realizam a jornada entre o silêncio (causado por forças raciais e de gênero) e a habilidade de construir, literalmente, sua própria história. Mesmo com o crescente reconhecimento de suas obras e do trabalho de outras mulheres negras, Alice Walker acredita que a crítica ainda tem muito que evoluir para compreender a complexidade da representação feminina e afro-americana na literatura: There are two reasons why the black woman writer is not taken as seriously as the black male writer. One is that she’s a woman. Critics seem unusually ill-equipped to intelligently discuss and analyze the works of black women. Generally, they do not even make the attempt; they prefer, rather, to talk about the lives of black women writers, not about what they write. And, since black women writers are not – it would seem – very likeable – until recently they were the least willing worshippers of male supremacy – comments about them tend to be cruel. (EAGLETON, 1992, p. 80)

É interessante notar que essa falta de habilidade da crítica em lidar com os valores de uma literatura produzida por mulheres negras é ainda mais clara 176

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

quando se reconhece o talento de determinada autora. Durante muito tempo houve um entendimento da crítica de que algumas autoras eram muito boas para se dedicar apenas ao tópico da vida de mulheres afro-americanas, mesmo se essas próprias escritoras fossem mulheres afro-americanas – ou seja, esse é um tema menor, e elas deveriam tratar de temas mais universais que envolvessem o universo branco e/ou masculino. Uma autora muito criticada sob essa perspectiva foi Toni Morrison (1931-). Considerada uma das grandes vozes da literatura norte-americana contemporânea, Morrison conseguiu romper as barreiras preconceituosas da crítica e do cânone literário para se tornar uma ardente defensora da identidade feminina e afro-americana nos Estados Unidos atuais. Formada na Universidade de Harvard, Morrison prosseguiu na carreira acadêmica, se tornando uma grande estudiosa da literatura norte-americana moderna e contemporânea, especialmente William Faulkner, de quem é grande admiradora. De forma geral, o principal tema dos romances da autora é a opressão, especialmente aquela voltada para, segundo a autora, “a mais vulnerável unidade da sociedade – uma mulher negra e seu filho.” Racismo, pobreza e degradação são fortemente marcados na vida de suas protagonistas, o que gera neles um sentimento de autocomiseração e até mesmo raiva, por serem mulheres e negras. Essa temática já se faz presente em seu primeiro e inesquecível romance, The Bluest Eye (O Olho Mais Azul), de 1970. Nesta obra, Morrison nos apresenta à protagonista Pecola Breedlove, uma jovem menina negra que vive num lar problemático nos difíceis anos após a Grande Depressão. Além das constantes brigas de seus pais e das imensas dificuldades financeiras, Pecola tem de lidar com uma grande carga de rejeição em relação à sua aparência. Assim como Celie, a protagonista de The Color Purple, Pecola é considerada feia e estranha, seja na escola ou na sua própria casa. Isso leva a um imenso desejo da protagonista de ser branca e ter olhos azuis, o que para ela seria a solução ideal para seus problemas. Com The Bluest Eye, Morrison analisa uma das questões fundamentais abordadas pelo Movimento dos Direitos Civis das décadas de 1960 e 1970 – o surgimento de um ideal de beleza negra. A partir do slogan “Black is Beautiful”, os negros norte-americanos procuraram abolir os paradigmas do cinema, da televisão e da cultura de massa em geral de que a beleza só pode ser associada a pessoas brancas. Em seu romance, a autora mostra como a autorrejeição e o sentimento de inferioridade surgem quando os modelos aceitos e admirados pela sociedade (nesse caso, ser branco e olhos azuis) não se estendem a todos. O que 177

Literatura Norte-Americana

Morrison analisa em sua obra, e o movimento negro propôs, é que em vez de se criar o desejo de mudar a identidade, é necessário que se mudem os modelos. Nas entrelinhas, contudo, The Bluest Eye usa a questão da beleza como metáfora para questões mais complexas, especialmente uma espécie de racismo subjetivo que os próprios negros carregam consigo e não conseguem perceber. Quando Pecola passa a acreditar que só tendo olhos azuis vai ser amada, essa não é uma visão sua, mas sim da sociedade em que vive. Portanto, a personagem é incapaz de distinguir o que é representativo de sua própria identidade e o que é ditado pelas regras sociais, construindo nela um racismo internalizado: It had occurred to Pecola some time ago that if her eyes, those eyes that held the pictures, and knew the sights – if those eyes of hers were different, that is to say, beautiful, she herself would be different. Her teeth were good, and at least her nose was not big and flat like some of those who were thought so cute. If she looked different, beautiful, maybe Cholly would be different, and Mrs. Breedlove too. Maybe they’d say, “Why, look at pretty-eyed Pecola. We mustn’t do bad things in front of those pretty eyes.” (MORRISON, 2000, p. 46)

Além do mais, com seus olhos azuis Pecola não só seria vista como mais bela pelo mundo, como também ela própria veria o mundo com “outros olhos” – menos opressor, mais receptivo e repleto de oportunidades. Na passagem acima isso fica claro, quando os pais de Pecola se recusam a brigar já que nada de mal deveria ser visto por aqueles belos olhos azuis. Mas com seus olhos e pele negras, o mundo para ela é sempre visto como o lugar da discriminação e dos problemas. Esta intrincada dissociação que Pecola não se permite realizar é uma das razões que leva a personagem à completa loucura ao final do romance.

Inovações na prosa: J.D. Salinger e New Journalism O surgimento da literatura afro-americana e feminista foi apenas uma das várias facetas do desenvolvimento do romance norte-americano na segunda metade do século XX. Com a consolidação da estética modernista como forma preponderante de escrita, outros autores procuravam novas formas de expressão em prosa que servisse como reflexo dos Estados Unidos pós 2.ª Guerra, assim como o Modernismo representou o pensamento cultural do país após a 1.ª Guerra. Um dos melhores exemplos de uma nova perspectiva literária na prosa norte-americana a partir da década de 1950 é The Catcher in the Rye (O Apanhador no Campo de Centeio), de J.D. Salinger (1919-). Este romance, o único publicado pelo autor, reflete muito da experiência de Salinger em sua infância e adoles178

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

cência: pertencia a uma família de classe alta, e vivia sendo transferido de uma escola para outra. Essa é, de certa forma, a realidade do protagonista e narrador de The Catcher in the Rye, Holden Caufield. Ele é um adolescente de 16 anos que começa o romance no seu último dia na escola preparatória de Pencey, mais uma instituição de ensino de onde é expulso. O personagem parte então no meio da noite para Nova York onde fica por dois dias até ir finalmente para o apartamento de seus pais. The Catcher in the Rye, lançado em 1951, permanence um dos livros mais populares do século XX. Quando do seu lançamento, despertou imensa polêmica devido a sua narrativa adolescente repleta de gírias e palavras de baixo calão, referências abertamente sexuais e subversão de valores tidos como corretos. Em certos meios, chegou a ser censurado e até mesmo proibido. Mesmo assim, é um romance que seduz menos pelos acontecimentos narrados do que por quem os conta: Holden Caufield tornou-se um personagem maior que a obra, servindo de símbolo para o inconformismo e a alienação de uma crescente cultura adolescente. Na passagem abaixo, por exemplo, Holden assiste a uma palestra de um dos principais patrocinadores de sua escola. É chocante notar a postura irônica do personagem com relação à moral religiosa do palestrante e a forma insolente com que narra os eventos. He started off with about fifty corny jokes, just to show us what a regular guy he was. Very big deal. Then he started telling us how he was never ashamed, when he was in some kind of trouble or something, to get right down his knees and pray to God. He told us we should always pray to God – talk to Him and all – wherever we were. He told us we ought to think of Jesus as our buddy and all. He said he talked to Jesus all the time. Even when he was driving his car. That killed me. I just see the big phony bastard shifting into first gear and asking Jesus to send him a few more stiffs. The only good part of his speech was right in the middle of it. He was telling us all about what a swell guy he was, what a hotshot and all, then all of a sudden this guy sitting in the row in front of me, Edgar Marsalla, laid this terrific fart. It was a very crude thing to do, in chapel and all, but it was also quite amusing. (SALINGER, 1991, p. 16-17)

Holden Caufield é um anti-herói cuja individualidade contrasta fortemente com uma sociedade opressora. No entanto, ele é um narrador pouco confiável, já que seu ponto de vista muitas vezes exprime seus próprios preconceitos e experiências traumáticas. Uma das palavras mais usadas pelo personagem para descrever as pessoas com as quais ele se relaciona é phony, que pode significar “falso” ou “insincero”. Sua atitude cínica, mas ao mesmo tempo extremamente crítica da sociedade foi ao encontro de uma geração artística nos Estados Unidos voltada para a contracultura e a abolição de valores preestabelecidos. Se The Catcher in the Rye foi um dos poucos trabalhos realmente inovadores na prosa da década de 1950, as décadas de 1960 e 1970 veriam o surgimento de uma verdadeira escola literária, ameaçando até mesmo a posição do Romance 179

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como o maior dos gêneros da literatura. Esse novo movimento das letras ficou conhecido como New Journalism ou Jornalismo Literário. Como o próprio nome indica, o jornalismo literário consistia em uma escrita jornalística na qual se empregavam recursos e técnicas características da literatura ficcional. Os principais textos do New Journalism foram publicados em conceituadas revistas e jornais norte-americanos, e neles os jornalistas exercitavam uma forma até então inédita de narrar os fatos. Diferente de outras matérias, as reportagens do jornalismo literário possuem um alto grau de subjetividade, com o ponto de vista do jornalista/escritor ficando claro e acentuando o lirismo da escrita. Mesmo que partindo de eventos reais, essas reportagens alçavam os dramas humanos aos limites da tragédia ou da comédia, dependendo do enfoque dado pelo narrador. O que o jornalismo literário propôs, em última instância, foi uma aproximação entre os terrenos do fato e da ficção, até então estritamente separados. A transformação do “fato” em “evento” passa obrigatoriamente por recursos imaginativos que só a literatura consegue dotar. No entanto, as grandes reportagens do New Journalism das décadas de 1960 e 1970 não eram ficção – elas eram abalizadas por intensas pesquisas e investigações. Contudo, a forma com que eram escritas evidenciava uma ambição literária de seu autor que, conscientemente ou não, ajudou a criar um imenso vínculo entre a realidade e a ficção. Nesse artigo do jornal The New York Times de 1973 sobre o New Journalism, fica clara a importância desse estilo na aproximação entre o factual e o literário: The most general feature of the New Journalism is its insistence on the resemblances between fact and fiction – whereas the older journalism worked hard at playing those resemblances down. With its heavy reliance on the technical resources of novels and short stories, the New Journalism is not suggesting that its stories are not true – on the contrary, we are always told that an immense amount of research has gone into getting the facts straight. Consequently, it is not suggesting, either, that we cannot distinguish any more between fact and fiction. What it is suggesting is that fiction is the only shape we can give to facts, that all shapes are fictions. (WOOD, 1973)

Um dos principais escritores e teóricos do jornalismo literário é Tom Wolfe (1931-). Vindo de uma família de classe média alta, desde muito jovem apresentava interesse para o mundo das artes e da escrita. Quando jovem, recebeu várias ofertas para trabalhar no meio acadêmico, mas escolheu a carreira de repórter. Escrevendo para revistas que depois se tornariam a base do New Journalism (Esquire, The New Yorker, The New York Magazine), o autor começa a utilizar características literárias em seus artigos e reportagens, tornando-os mais vívidos e urgentes, fazendo até de acontecimentos pouco importantes grandes leituras, como se estivesse produzindo um conto ou um pequeno romance. 180

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

Wolfe, como nenhum outro escritor do período, soube aliar aspectos ficcionais a uma escrita baseada em fatos. Diferentemente de textos jornalísticos tradicionais, os leitores praticamente se inserem em sua narrativa, como se fizessem parte dela. O ponto de vista do autor é claro, e sua manipulação do tempo dos acontecimentos (passado e presente se misturam) é um dos aspectos fundamentais para dar um caráter literário à escrita. Por outro lado, o uso de diálogos reais e a natureza descritiva (dos lugares, das roupas, dos hábitos) firma a reportagem como sendo feita a partir de dados factuais. Mas a presença de elementos pouco comuns em artigos jornalísticos, como reticências, pontos de exclamações abundantes e onomatopeias causavam estranhamento ao público leitor. Um exemplo disso é o ensaio Las Vegas (What?) Las Vegas (Can’t hear you! Too noisy) Las Vegas!!!!, considerado um dos primeiros exemplos do jornalismo literário. Nesse texto, que fala das crescentes transformações na cidade de Las Vegas até se tornar a Meca do jogo e do materialismo, o autor abusa de seu estilo peculiar, começando com uma repetição de palavras aparentemente sem sentido para depois apresentar as principais figuras de seu artigo: Hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, HERNia; hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, hernia, HERNia, HERNia, HERNia; hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, eight is the point, the point is eight; hernia, hernia, HERNia; hernia, hernia, hernia, hernia, all right, hernia, hernia, hernia, hernia, hard eight, hernia, hernia, hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, hernia “What is all this hernia hernia stuff?” This was Raymond talking to the wavy-haired fellow with the stick, the dealer, at the craps table about 3:45 Sunday morning. The stickman had no idea what this big wiseacre was talking about, but he resented the tone. He gave Raymond that patient arch of the eyebrows known as a Red Hook brush-off, which is supposed to convey some such thought as, I am a very tough but cool guy, as you can tell by the way I carry my eyeballs low in the pouches, and if this wasn’t such a high-class joint we would take wiseacres like you out back and beat you into jellied madrilene. (WOLFE, 1999, p. 3)

Posteriormente, Tom Wolfe escreveu romances em que continuou a utilizar técnicas literárias numa escrita de ênfase jornalística. Seu livro de não-ficção lançado em 1979 The Right Stuff (A Coisa Certa), sobre o início do programa espacial norte-americano é um marco na estruturação de uma extensa pesquisa histórica e entrevistas na formação de uma obra coesa. Seu primeiro romance de ficção foi o aclamado best-seller de 1987 The Bonfire of Vanities (A Fogueira das Vaidades), onde à maneira de autores britânicos como Charles Dickens, Tom Wolfe pretendeu delinear um panorama das questões sociais, econômicas e raciais da sociedade – no seu caso, a explosiva Nova York da década de 1980. Outro expoente importante do jornalismo literário norte-americano ao lado de Tom Wolfe e outros foi Truman Capote (1924-1984). Capote ficou conhecido 181

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pela sua atribulada biografia (homossexual assumido, vida boêmia ao lado de figuras-chave do século XX como Andy Warhol e Jaqueline Kennedy Onassis, vício em drogas), mas também por ter escrito a obra máxima do New Journalism: In Cold Blood (A Sangue Frio), de 1966. Desenvolvendo um interesse pela escrita, aos 17 anos Capote já tinha um emprego na revista The New Yorker. Como escritor, Capote começou a fazer relativo sucesso com seus contos e romances, especialmente Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de Luxo), de 1958, que posteriormente ganharia uma bem-sucedida versão para o cinema. No entanto, foi com In Cold Blood que o escritor colocou seu nome definitivamente na história da literatura dos Estados Unidos. Até a publicação dessa obra, a forma de escrita do jornalismo literário sofria diversas críticas de setores mais conservadores do jornalismo norte-americano (que acreditava que os artigos e reportagens de Tom Wolfe e companhia não retratavam os fatos de forma correta) e também da crítica literária (que se recusava a considerar artigos de cunho jornalístico como literatura). O que chamou a atenção e marcou o diferencial de outros autores do New Journalism foi que Truman Capote era um nome da literatura que decidiu escrever de acordo com as características do jornalismo literário, e não ao contrário, como era o usual. Em 1959, uma notícia nas páginas policiais do The New York Times desperta a atenção de Capote: no estado do Kansas, um fazendeiro, sua esposa e seus filhos são encontrados brutalmente assassinados. O autor então partiu para o local do crime e começou a investigar, reconstituir e pesquisar a história daquele brutal acontecimento – o que durou mais de cinco anos. Capote entrevistou e teve acesso direto aos dois homens responsáveis pelo assassinato, o que renderam inúmeras entrevistas e uma profunda análise psicológica dos motivos que os levaram a realizar o crime. O livro só foi publicado depois que os assassinos já tinham sido mortos (foram condenados à pena capital) e inaugurou um novo gênero literário: o Romance de Não-Ficção. Transitando entre a literatura e o jornalismo, o romance trata de acontecimentos reais narrados de forma literária, ou seja, utilizando elementos como foco narrativo, fluxo da consciência, clímax etc. Na passagem abaixo, Perry Smith e Dick Hancock, os dois criminosos, estão fugindo da cena do crime dias depois do ocorrido. É interessante notar como a estrutura narrativa é construída de fatos (datas e locais são mencionados), mas também aspectos subjetivos (a consciência dos assassinos, a forma de usar a linguagem) ilustram uma influência nitidamente literária:

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Hawks wheeling in a white sky. A dusty road winding into and out of a white and dusty village. Today was his second day in Mexico, and so far he liked it fine – even the food. (At this very moment he was eating a cold, oily tortilla.) They had crossed the border at Laredo, Texas, the morning of November 23, and spent the first night in a San Luis Potosti brothel. They were now two hundred miles north of their next destination, Mexico City. “Know what I think?” said Perry. “I think there must be something wrong with us. To do what we did.” “Did what?” “Out there.” Dick dropped the binoculars into a leather case, a luxurious receptacle initialed H.W.C. He was annoyed. Annoyed as hell. Why the hell couldn’t Perry shut up? Christ Jesus, what damn good did it do, always dragging the goddam thing up? It really was annoying. Especially since they’d agreed, sort of, not to talk about the goddam thing. Just forget it. “There’s got to be something wrong with somebody who’d do a thing like that,” Perry said. “Deal me out, baby,” Dick said. “I’m a normal.” (CAPOTE, 2003, p. 108)

In Cold Blood é prova não só da evolução da literatura, mas também da própria forma de se apreender a realidade que vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos no período posterior à 2.ª Guerra Mundial. De certa forma, o New Journalism foi uma das últimas tradições literárias uniformes surgidas no país, antes da fragmentação e pluralidade artística de uma escrita considerada pós-moderna que começa a se estabelecer especialmente a partir da década de 1980. Mesmo assim, sua influência no âmbito da escrita ficcional e jornalística é sentida até hoje.

Texto complementar A streetcar named desire (WILLIAMS, 2000)

BLANCHE (drawing back): What are you doing in here? STANLEY: Here’s something I always break out on special occasions like this! The silk pyjamas I wore on my wedding night! BLANCHE: Oh. STANLEY: When the telephone rings and they say “You’ve got a son!” I’ll tear this off and wave it like a flag! (He shakes out a brilliant pyjama coat.) I guess we are both entitled to put on the dog. (He goes back too the kitchen with the coat over his arm.)

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BLANCHE: When I think of how divine it is going to be to have such a thing as privacy once more – I could weep with joy! STANLEY: This millionaire from Dallas is not going to interfere with your privacy any? BLANCHE: It won’t be the sort of thing you have in mind. This man is a gentleman and he respects me. (Improvising feverishly.) What he wants is my companionship Having great wealth sometimes makes people lonely! STANLEY: I wouldn’t know about that. BLANCHE: A cultivated woman, a woman of intelligence and breeding, can enrich a man’s life – immeasurably! I have those things to offer, and this doesn’t take them away. Physical beauty is passing. A transitory possession. But beauty of the mind and richness of the spirit and tenderness of the heart – and I have all of those things – aren’t taken away, but grow! Increase with the years! How strange that I should be called a destitute woman! When I have all of these treasures locked in my heart. (A choked sob comes from her.) I think of myself as a very, very rich woman! But I have been foolish – casting my pearls before swine! STANLEY: Swine, huh? BLANCHE: Yes, swine! Swine! And I’m thinking not only of you but of your friend, Mr Mitchell. He came to see me tonight. He dared to come here in his work-clothes! And to repeat slander to me, vicious stories that he had gotten from you! I gave him his walking papers ... STANLEY: You did, huh? BLANCHE: But then he came back. He returned with a box of roses to beg my forgiveness! He implored my forgiveness. But some things are not forgivable. Deliberate cruelty is not forgivable. It is the one unforgivable thing in my opinion and it is the one thing of which I have never, never been guilty. And so I told him, I said to him, Thank you, but it was foolish of me to think that we could ever adapt ourselves to each other. Our ways of life are too different. Our attitudes and our backgrounds are incompatible. We have to be realistic about such things. So farewell, my friend! And let there be no hard feelings ...

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STANLEY: Was this before or after the telegram came from the Texas oil millionaire? BLANCHE: What telegram? No! No, after! As a matter of fact, the wire came just as STANLEY: As a matter of fact there wasn’t no wire at all! BLANCHE: Oh, oh! STANLEY: There isn’t a goddam thing but imagination! BLANCHE: Oh! STANLEY: And lies and conceit and tricks! BLANCHE: Oh! STANLEY: And look at yourself! Take a look at yourself in that worn-out Mardi Gras outfit, rented for fifty cents from some rag-picker! And with the crazy crown on! What queen do you think you are! BLANCHE: Oh - God ... STANLEY: I’ve been on to you from the start! Not once did you pull any wool over this boy’s eyes! You come in here and sprinkle the place with powder and spray perfume and cover the light-bulb with a paper lantern, and lo and behold the place has turned into Egypt and you are the Queen of the Nile! Sitting on your throne and swilling down my liquor! I say – Ha - Ha! Do you hear me? Ha - Ha! (He walks into the bedroom) BLANCHE: Don’t come in here!

Dicas de estudo Alice Walker ganhou muita visibilidade com seu romance The Color Purple especialmente depois que ele ganhou uma versão cinematográfica (“A Cor Púrpura”, em português) dirigida por Steven Spielberg em 1985. O filme é relativamente fiel ao romance de Walker, apesar de algumas mudanças narrativas utilizadas para transpor uma história de cunho epistolar (em forma de cartas e diários) para a linguagem do cinema. Whoopi Goldberg, como a protagonista Celie, tem uma atuação estelar em seu primeiro papel no cinema. 185

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Uma das mais famosas adaptações cinematográficas de uma peça norte-americana é o filme Gata em Teto de Zinco Quente dirigida por Richard Brooks em 1958. O filme teve alguns diálogos da peça omitidos por seu caráter subversivo, como os que sugeriam mais claramente a relação homossexual de Brick (vivido por Paul Newman) ou a sensualidade explosiva de Maggie (interpretada por Elizabeth Taylor). Ainda assim, a versão para cinema da obra de Tennessee Williams representa com extrema vitalidade a atmosfera ficcional do dramaturgo.

Atividades 1. Como as obras de Alice Walker e Toni Morrison podem servir como reflexo da agitação social nos Estados Unidos das décadas de 1960 e 1970?

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2. Quais as principais inovações narrativas criadas pelos autores do “New Journalism”?

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Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio A literatura, desde a alvorada da construção do pensamento individual, é a mais rica e completa forma de transpor conceitos (pessoais e/ou universais) subjetivamente através da palavra. Seja ela transmitida de maneira oral ou escrita, a palavra é ao mesmo tempo um repositório cultural de uma identidade, um tempo e um lugar, assim como também funciona como elemento difusor da qual está imbuída. Símbolo máximo de uma escrita criativa capaz de construir, reconstruir, e até mesmo demolir mundos, a literatura tem em seu cerne a pluralidade e a multiplicidade de vozes que uma arte tão antiga como essa pode abarcar. Isso garante que uma obra literária, por mais trivial que possa parecer, sempre seja representativa de uma forma única de ler e interpretar a realidade em que foi produzida. Por outro lado, essa diversidade artística que caracteriza a literatura acaba por impedir que se chegue a uma definição precisa sobre sua verdadeira natureza. A essência da obra literária, ainda que seja sentida e captada de forma subjetiva, ultrapassa tentativas de uma conceituação mais objetiva. Toda sociedade é tão forte e consolidada quanto mais importante for sua literatura – mas o propósito da literatura (se é que há algum realmente específico) escapa a leitores, críticos e estudiosos. Por isso, a literatura permanece através dos séculos como forma de arte preponderante na preservação e transmissão do pensamento humano através da palavra. As formas em que o texto literário se mantém e se propaga se multiplicam com a passagem do tempo – ainda que o livro permaneça o instrumento mais popularmente relacionado à literatura, outros meios de difusão da escrita criativa (especialmente associados à tecnologia da informação) surgem a todo o momento. Pode-se falar na morte do livro, mas jamais na morte da literatura. Essa complexidade, que é inerente à literatura, é um dos aspectos que a torna tão vasta e insubstituível. Contudo, essa ausência de uma demarcação bem definida sobre a sua conceituação acaba por dificultar uma estratégia generalizada para seu ensino. O aprendizado da literatura é inegavelmente uma das melhores maneiras de transmitir um conhecimento

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social, histórico e cultural, seja do presente ou do passado, da realidade local ou estrangeira, usando estratégias ficcionais ou não. Mas se sua importância é indiscutível, a apresentação formal da literatura em instituições de ensino, como matéria curricular, oferece diferentes desafios. Especialmente considerando o ensino de uma literatura estrangeira (nesse caso, a literatura produzida nos Estados Unidos) para alunos do ensino médio, há que se considerar uma variada rede de estratégias para:  abordar o assunto proposto;  manter os alunos interessados e motivados;  despertar a curiosidade para que eles busquem outras fontes de informação. A partir dessas estratégias, os alunos terão acesso a essa natureza múltipla da literatura, compreendendo sua importância no desenvolvimento cultural e artístico da sociedade norte-americana.

A obra literária como produto de um momento histórico A qualidade múltipla da literatura é o principal fator complicador para sua aprendizagem no ensino médio. Para ultrapassar a barreira é importante que o professor utilize diferentes estratégias para que a transmissão do conhecimento se dê de forma sistematizada, clara, mas sem reduzir totalmente a complexidade e a riqueza de análise presente em qualquer boa discussão sobre um autor, uma obra ou um período literário. Gilda Neves da Silva Bittencourt afirma que: O impasse que se estabelece [...] é que, para transformar qualquer área do conhecimento em disciplina do ensino formal, é necessário, antes de mais nada, estabelecer uma metodologia de estudo, capaz de traçar os rumos do seu desenvolvimento e fixar os princípios basilares que a definirão como objeto de investigação. A literatura, em sua essencialidade heterogênea [...] dificulta esse tipo de procedimento, já estabelecendo, a priori, uma diferenciação sobre as demais matérias que compõem o currículo escolar. (BITTENCOURT, 1997, p. 261)

Essa dificuldade apresentada com relação ao ensino da literatura na passagem acima é transposta, como a própria autora afirma, através do estabelecimento de uma metodologia de estudo, e é a partir dela que o professor vai guiar suas aulas. Antes de traçar sua metodologia, porém, o professor deve atentar para algumas questões fundamentais de cunho prático que o auxiliarão no desenvolvimento de uma estratégia de ensino bem-sucedida. 190

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Primeiramente, é importante tomar conhecimento do programa/ementa/ plano que apresenta o conteúdo a ser ensinado no ano ou semestre letivo. É essencial que o professor tenha ou adquira familiaridade com os assuntos propostos, estudando-os em profundidade com o intuito de apresentá-los da melhor forma possível aos alunos. Assim, ele não só apresentará maior desenvoltura na discussão do conteúdo, como também será capaz de prever possíveis dúvidas dos alunos. Também é necessário ressaltar que a matéria apresentada não deve ser vista em termos de aulas isoladas, mas como uma construção gradual do conhecimento dos alunos durante todo o semestre ou ano letivo. Outro ponto relevante na estruturação de uma estratégia de ensino competente é levar em consideração o público para o qual está se falando – ou seja, os alunos. O professor deve estar ciente e analisar para que tipo de aluno ele está ensinando, levando em conta aspectos como faixa etária, classe social e conhecimento prévio. Assim, maiores problemas serão evitados especialmente no que concerne à didática do professor e à linguagem utilizada. Em terceiro lugar, o professor deve considerar o papel da língua estrangeira no aprendizado. Como se trata do estudo da literatura norte-americana, o entendimento dos textos estudados passa por um conhecimento prévio da língua inglesa, e o professor deve estar atento à fluência dos alunos nesse sentido. Caso não haja a possibilidade de se trabalhar com um texto literário na sua forma original em inglês (o que é sempre altamente aconselhável), o professor deve buscar traduções conceituadas, publicadas por editoras renomadas que possam garantir que o aluno, mesmo que não possa ler o texto original, tenha acesso a uma versão de qualidade. Dessa forma, o ensino não será prejudicado e não há risco de empobrecimento na análise literária realizada pelo professor. Depois de pensar criticamente sobre esses aspectos acima mencionados, chega a hora de apresentar o conteúdo programático do período letivo. O caráter fluido da literatura já se mostra na variedade através da qual ela pode ser abordada: através de estilos literários (Romantismo, Realismo etc), através de um determinado autor e características de sua biografia ou através de uma obra literária específica que, em si só, pode se caracterizar como poesia, conto, romance, ensaio, peça teatral etc. O ponto fundamental do ensino da literatura norte-americana no Brasil é a sua contextualização. A literatura não funciona como um evento artístico isolado, mas é sempre um produto ou representação de um tempo histórico e um local específico. Portanto, no ensino de literatura, é crucial que antes mesmo 191

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da análise da escrita literária em si, algumas perguntas sejam feitas – “onde?” “quando?” “como?” “por quê?” É a partir do entendimento de que a literatura faz parte de uma rede social, histórica e cultural complexa que é possível ultrapassar as barreiras de seu ensino e aproximar os alunos de uma realidade nacional diferente da sua – a dos Estados Unidos. Levando em conta esse critério, o professor passa a ter então dois caminhos através dos quais pode decidir ensinar a literatura norte-americana. O primeiro deles é apresentar um determinado momento histórico dos Estados Unidos a partir da obra literária escolhida. Assim sendo, o professor tem a possibilidade de discutir a obra como representação artística de um período específico da história do país. O texto literário funcionará como um mapa onde, através do pensamento subjetivo do escritor e da análise crítica do leitor, pode-se ler nas entrelinhas as características e os eventos históricos retratados, seja na prosa ou na poesia. Portanto, parte-se do específico para o geral. O outro caminho possível é exatamente o inverso, ou seja, propor o estudo da literatura a partir do momento histórico em que ela foi produzida. Dessa forma, o professor primeiramente vai traçar um apanhado histórico-social de um determinado período dos Estados Unidos, retratando de maneira crítica o espírito da época. Após estruturado, o conhecimento específico sobre aquele momento singular da história, o texto literário é estudado como seu produto artístico. A obra literária funciona então como um espelho subjetivo da época, refletindo uma realidade histórica de acordo com a visão pessoal do autor. Portanto, parte-se do geral para o específico. A escolha feita pelo professor entre essas duas estratégias depende muito do que ele acredita que vai ser mais bem-sucedido tendo em vista o seu conhecimento sobre o material abordado e sobre os seus alunos. Somente depois de considerar qual obra será estudada e o caráter de seu momento histórico (lembrando que é sempre aconselhável ponderar sobre o papel de determinado assunto em todo o período letivo), o professor pode ter certeza de qual método vai ser mais facilmente compreendido e vai despertar maior interesse em seu público. No entanto, se julgarmos de maneira generalizada o ensino da literatura norte-americana, a segunda opção acaba sendo privilegiada, tendo efeitos mais satisfatórios no entendimento por parte dos alunos. Ou seja, quando têm primeiramente o acesso a uma explicação sobre determinado momento histórico dos Estados Unidos (e seu correspondente arcabouço artístico e social) os alunos conseguem articular um entendimento mais claro da obra literária e o porquê de sua importância. 192

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Essa preferência pela análise do momento histórico antes de apresentar a obra literária, todavia, não significa que o estudo da literatura fica em segundo plano. Pelo contrário – o texto literário (assim como seu autor e seu estilo) acaba sendo realçado. Isso se dá basicamente porque, fazendo uso dessa estratégia de ensino, o professor consegue expressar de maneira simples a complexidade da literatura, o que poderia ser visto como uma barreira para aprendizagem. A obra literária passa a ser vista de maneira dupla: ela é importante por ser produto de uma determinada época; mas por outro lado permanece relevante exatamente porque conseguiu ultrapassar o gosto e a apreciação daquele momento histórico específico, tornando-se atemporal. É importante realçar também que, ao se fazer um apanhado da realidade histórica dos Estados Unidos em primeiro lugar, o aluno brasileiro vai ter mais familiaridade com o universo retratado na obra literária analisada em seguida. Assim, seu entendimento do assunto será mais completo, além de proporcionar uma visão do texto estudado que vai além das questões narrativas e subjetivas. A abordagem histórica em muito auxilia o professor na construção de um raciocínio lógico ao apresentar um texto literário e propicia ao aluno uma compreensão mais ampla da literatura norte-americana; e o mais importante: o pano de fundo histórico é capaz de enriquecer a análise de uma obra independentemente de seu gênero literário. Seja na prosa ou na poesia, no conto ou no romance, no ensaio ou no sermão, no discurso ou na peça teatral, o contexto em que o trabalho foi escrito acaba sendo de extrema relevância. Se tomarmos como exemplo o sermão Sinners in the Hands of an Angry God, de Jonathan Edwards, se torna evidente a necessidade de uma conceituação histórica para uma melhor apreciação do referido trabalho. Um estudo do texto de Edwards por si só fica empobrecido se não for associado ao contexto da realidade puritana norte-americana em que foi produzido. É a partir da compreensão do funcionamento, da organização e da moral religiosa presente na sociedade puritana que se pode apreender a força dos argumentos levantados por Edwards em seu sermão. Da mesma forma, é difícil falar de The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, sem explicar como esse trabalho encontra-se inserido no contexto da Jazz Age. É através do espírito festivo e próspero dos chamados roaring twenties que se pode chegar à razão pela qual os personagens no romance parecem viver num mundo de ilusão, onde a celebração nunca termina – e o preço que pagam por isso. The Great Gastby foi escrito durante a Jazz Age e tem esta época como assun193

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to, portanto o contexto histórico é indissociável tanto de sua produção quanto de sua narrativa. Na poesia, o mesmo ocorre, só que de maneira ainda mais significativa. É possível ler os poemas de T.S. Eliot e compreender que há uma certa atmosfera melancólica em sua escrita. No entanto, a razão da desesperança presente nos versos de Eliot só é revelada quando vista sob a perspectiva do período posterior à 1.ª Guerra Mundial, quando grande parte da intelectualidade norte-americana encontra-se imersa em um estado de grande angústia. Assim sendo, a poesia, como escrita essencialmente subjetiva, traduz em termos literários o contexto histórico em que está inserida. A partir da abordagem histórica, é possível construir um estudo muito mais denso da literatura, tornando o ensino e o aprendizado não só mais preciso (já que envolve elementos da história e da sociedade) como também mais interessante. Essa, no entanto, é só uma primeira estratégia. A partir dela, é possível articular diferentes maneiras em que a literatura norte-americana pode ser apresentada.

Abordagens para o ensino da literatura norte-americana Tendo em perspectiva a importância da análise da obra literária como produto de um momento histórico, é possível organizar aulas bastante interessantes utilizando a literatura norte-americana. Vale ressaltar que, além de apresentar o conteúdo de forma coerente e crítica, o professor deve manter os alunos motivados no processo de aprendizagem, além de incentivá-los a buscar outras fontes de informação sobre os assuntos apresentados na aula. Assim sendo, trataremos agora de estratégias e recursos específicos que podem ser usados em sala de aula para que o ensino de literatura norte-americana se dê de forma relevante, mas também atraente para os alunos. Algumas obras literárias servirão de exemplo para ilustrar as vantagens da utilização das diferentes atividades.

Obras cinematográficas O cinema é um grande aliado do professor de literatura. Como representações visuais relacionadas a trabalhos literários, os filmes possibilitam o desenvol194

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

vimento de uma visão crítica não só sobre a obra escrita, mas também sobre si mesmos. Além do mais, os filmes podem iluminar aspectos do texto não observados pelo leitor e trazer uma nova abordagem para a discussão literária. No caso da literatura norte-americana, existe uma grande variedade de adaptações cinematográficas de suas obras, assim como filmes retratando especificamente momentos da história do país que serviram como pano de fundo para importantes trabalhos literários. Uma das vantagens de se trabalhar com produções cinematográficas relacionadas à literatura norte-americana é que o cinema dos Estados Unidos é o mais popular do mundo, e assim seus filmes não só são de fácil acesso como também se utilizam obras literárias do país para construir seus roteiros. Bom exemplo disso é a quantidade de filmes sobre o período colonial norte-americano, da chegada dos primeiros aventureiros ingleses ao puritanismo. Para ilustrar o uso do cinema em aulas de literatura norte-americana, vamos utilizar o texto de John Smith, The General History of Virginia, e dois filmes: Pocahontas (produção da Disney de 1995), de Mike Gabriel e Eric Goldberg, e O Novo Mundo, dirigido por Terence Malick em 2005. O primeiro passo para se fazer uso do cinema em sala de aula é ter claro o objetivo a ser alcançado. No caso aqui exemplificado, os principais propósitos são: demonstrar de que forma John Smith vê a América, como o cinema representa a mitologia em torno de sua relação com a princesa indígena Pocahontas, e como as duas versões cinematográficas diferem na abordagem do encontro dos europeus e da população nativa do Novo Mundo. Depois de definida a função da obra cinematográfica, o professor deve elaborar questões para que os alunos, ao assistirem a cenas do filme (ou ao filme inteiro, dependendo do interesse ou disponibilidade de tempo de que se propõe), o façam tendo objetivos claros em mente, para que assim prestem atenção aos pontos que realmente importam e sirvam para enriquecer a aprendizagem do aluno sobre a literatura e o momento histórico em que ela está inserida. Assim sendo, os alunos de literatura norte-americana, antes de assistirem trechos pré-selecionados dos filmes Pocahontas e O Novo Mundo receberão as seguintes questões:  Compare e contraste a maneira com que cada filme aborda a chegada do colonizador europeu.  Compare e contraste a maneira com que cada filme retrata visualmente a América. 195

Literatura Norte-Americana

 Compare e contraste a maneira com que cada filme trata a relação entre John Smith e Pocahontas. Os alunos são informados de que eles devem assistir às cenas tendo as questões em mente e que, em seguida, eles deverão apresentar oralmente o que conseguiram apreender dos filmes. Após a exibição, os alunos primeiramente discutem entre si em pequenos grupos as possíveis respostas para as questões. Posteriormente eles as apresentam para toda a classe. Após a realização da atividade, os alunos já estão familiarizados com os personagens, o pano de fundo histórico e o enredo do texto literário que irão ler: The General History of Virginia, de John Smith. Dessa forma, eles já leem a obra com um conhecimento prévio e motivados pela exibição dos filmes. Ao lerem o texto de Smith, que é ao mesmo tempo narrador e personagem, o professor pode traçar um estudo comparativo entre a produção literária e a produção fílmica, especialmente na forma com que o aspecto selvagem da América colonial é mostrado, assim como a visão romântica lançada sobre a figura de Pocahontas. Uma outra atividade utilizando o cinema tem como obra de análise a peça The Crucible, de Arthur Miller. Um dos grandes manifestos contra a opressão e a favor da livre expressão, a peça se relaciona a dois períodos históricos diferentes. Seu enredo se passa no período colonial norte-americano, quando no vilarejo de Salem um surto histérico leva indivíduos a acusarem uns aos outros de bruxaria, fazendo com que vários sejam acusados e mortos. No entanto, a peça foi escrita na década de 1950, quando o Comitê de Atividade Antiamericanas perseguia especialmente membros da classe artística por uma possível aproximação de ideais comunistas, o que leva várias pessoas a acusarem colegas de trabalho para não perderem a carreira ou serem presos. Uma das grandes vantagens de se trabalhar com The Crucible é a sua excelente adaptação para o cinema de 1996, chamada no Brasil de As Bruxas de Salem, dirigida por Nicholas Hytner e roteirizada pelo próprio Arthur Miller. Enquanto este filme serve como representação da perseguição religiosa na sociedade puritana, outra produção cinematográfica poderia ser usada para retratar a perseguição política no período histórico em que The Crucible foi escrito. Trata-se de Culpado por Suspeita, filme de 1991, dirigido por Irwin Winkler, que conta a história de um diretor de cinema que é perseguido ao ser acusado de atividades liberais e antiamericanas. Nessa atividade, a exibição dos trechos dos filmes tem mais efeito depois que os alunos já leram, já ouviram a explicação do professor e estão familiarizados 196

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com o enredo da peça. Assim, ao assistirem aos filmes eles serão capazes de identificar os principais temas discutidos metaforicamente na peça de Miller: a intolerância, a moralidade, e a permanência do caráter. O professor, então, pode propor as seguintes questões para serem debatidas:  Em que a “caça às bruxas” comunista da década de 1950 se assemelha à de Salem?  Como o clima de paranoia é retratado em As Bruxas de Salem e Culpado por Suspeita?  Qual é a importância da confissão de seus “pecados” nos dois contextos? Dessa maneira, os alunos usam a literatura e o cinema não só como produtos de um pensamento artístico, mas também como instrumentos para a análise de temas abrangentes de formação da identidade e da sociedade.

Documentários Ao contrário de filmes de longa-metragem, os documentários geralmente têm uma duração menor e uma abordagem mais realista. Esse tipo de obra favorece a apresentação do contexto histórico em relação ao trabalho literário, já que tende a revelar dados factuais sobre a escrita da obra, do momento em que ela foi produzida ou sobre a biografia do autor. Uma espécie de atividade que enriquece o uso de documentários em sala de aula é o preenchimento de um questionário sobre as informações essenciais contidas no vídeo. Esse recurso pode ser usado como atividade de introdução à obra literária, para que assim os alunos tenham conhecimento dos dados e do pano de fundo de onde surgiu o trabalho que eles posteriormente estudarão mais profundamente. Inicialmente, o professor distribui o questionário para os alunos, informando que ali estão perguntas cujas respostas estarão presentes no documentário que eles irão assistir em seguida. O professor lê o questionário juntamente com os alunos, explicando e esclarecendo dúvidas. Posteriormente, os alunos assistem ao vídeo, localizando as respostas e escrevendo-as na folha do questionário. Ao fim da exibição, o professor pode checar as respostas juntamente com os alunos, exibindo novamente o documentário e parando nas passagens em que as respostas foram apresentadas (essa possibilidade depende do tempo disponível da aula). Outra possibilidade é a correção da atividade oralmente e, à medida 197

Literatura Norte-Americana

que ele confere as respostas, o professor desenvolve o tema apresentado, dando informações extras que depois servirão de base para um melhor entendimento do trabalho literário a ser estudado. Um bom exemplo deste tipo de atividade é a série de documentários presente na edição especial do DVD do filme Uma Rua Chamada Pecado, dirigido em 1951 por Elia Kazan. Baseado na peça A Streetcar Named Desire de Tennessee Williams, o filme permanece a mais vibrante adaptação cinematográfica deste grande trabalho do teatro norte-americano. A edição especial (DVD duplo) do filme traz um excelente documentário sobre a peça, intitulado “Uma Rua na Broadway”, em que aspectos importantes da primeira encenação de A Streetcar Named Desire são detalhados. Com relação a esta produção, os alunos respondem então ao seguinte questionário:  Quem é o autor da peça?

 Quais foram as inspirações do autor para escrever a peça?

 Quem é o diretor da peça?

 Quais os nomes dos atores principais da peça?

 Em que ano a peça foi encenada pela primeira vez?

 Quais as qualidades da peça mencionadas pelos entrevistados?

 Qual atuação da peça é mencionada como a mais marcante? Por quê?

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Essa atividade atinge o objetivo de contextualizar A Streetcar Named Desire para os alunos, além de criar um interessante diálogo entre um recurso visual (de tom documental) a uma obra literária (claramente ficcional).

Outros recursos Com o intuito de envolver os alunos no assunto abordado e enriquecer seu aprendizado, outros recursos podem ser utilizados. É importante ressaltar que quanto maior a variedade de material oferecida ao professor pela instituição de ensino (retroprojetor, datashow, televisão, aparelho de DVD), mais dinâmica e envolvente será a aula. Todavia, se o professor não tiver desses materiais à sua disposição, as atividades abaixo podem auxiliá-lo no ensino da literatura norte-americana. Algo simples que em muito aumenta a efetividade da apresentação do professor é a exposição de imagens, fotos ou figuras que ilustrem a obra literária ou o período histórico sendo abordado. A representação visual não só valida como também extrapola a explicação dada, abrindo uma nova perspectiva para os alunos interpretarem o tópico em questão. Essas imagens são de grande valia em aulas em que o tema tratado é muito distante da realidade cotidiana do aluno (como o puritanismo, por exemplo, em que imagens de trajes e construções do período podem servir de exemplo), quando o assunto envolve pessoas importantes da história norte-americana (como Benjamin Franklin ou Abraham Lincoln) ou quando um evento marcante é crucial para o entendimento de uma obra literária (fotos da Guerra Civil norte-americana ou do movimento pelos direitos civis, por exemplo). Também é importante estimular os alunos a buscar eles próprios o conhecimento, por isso é sempre interessante solicitar pesquisas em livros ou na internet sobre determinado assunto. A partir das informações coletadas pelos alunos, o professor então os guia na construção de uma análise crítica sobre aqueles dados e a obra estudada. É de vital importância que o professor seja específico na solicitação do tipo de informação que os alunos devem pesquisar e também sugira as fontes que considere mais confiáveis. Sobre o tipo de pesquisa, é altamente aconselhável que seja sobre a biografia do autor (especialmente quando fatos de sua vida têm ligação direta com a obra estudada) ou algum comentário específico sobre o texto literário. Uma pesquisa sobre o estilo de vida de Henry David Thoreau no campo e sua influência na criação de Walden, ou analisando os comentários de Abraham Lincoln sobre Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher Stowe, seria de grande valia para o processo de aprendizagem. 199

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Com relação a peças de teatro, atividades específicas para esse gênero podem ser desenvolvidas. Uma delas seria recortar os diálogos de uma cena específica em pequenas tiras, para que os alunos (em pares ou pequenos grupos) os colocassem na ordem correta. Posteriormente, os alunos receberiam uma folha com a versão correta e comparariam suas respostas. A partir daí, o professor lê o diálogo juntamente com os alunos e tenta elicitar seu entendimento, antes de apresentar o tópico central da aula. Essa atividade também pode ser usada em uma parte de romance ou conto em que haja um longo diálogo ou pequenos parágrafos. Um bom exemplo de exercício com uma peça de teatro seria algum diálogo entre Willy Loman e seus filhos em Death of a Salesman, de Arthur Miller, em que fica clara uma das ideias centrais da peça – a ilusão proporcionada pelo sonho americano – através da conversa dos personagens. Dependendo do interesse dos alunos e da disponibilidade do professor, também é possível encenar trechos de peças de teatro estudadas. Assim, os alunos não só estudariam os diálogos da peça com o seu propósito final (serem encenados), mas também vivenciariam o universo dos personagens. Uma peça em que não há muita dificuldade de encenação – pela variedade de personagens, ausência de cenários muito elaborados e diálogos de fácil memorização – é Cat on a Hot Tin Roof, de Tennessee Williams. Os alunos, em grupo, escolheriam uma cena da obra (entre algumas predeterminadas pelo professor) e fariam uma breve encenação. Ao final das apresentações, eles poderiam falar da experiência de atuar em uma peça clássica, as dificuldades que sentiram e até mesmo escolher o melhor grupo. Isso não só motivaria os alunos, mas os faria experimentar a literatura de uma forma diferente da simples leitura. Levando em consideração o contexto histórico e usando como exemplo algumas das atividades e obra mencionadas, o professor será capaz de fazer com que seus alunos sejam despertados para o mundo da realidade cultural e artística norte-americana. A literatura, antes de ser uma matéria da grade curricular, é um meio prazeroso de aquisição de conhecimento, e esse é um dos pensamentos centrais que o professor deve ter ao ensinar qualquer texto literário.

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Texto complementar Full circle: O’Neill , Hemingway (SPILLER, 1967)

The younger generation of writers, most of whom in the final decade of the old century and nurtured in the years when the nation was reaching its maturity as a world power, were quite ready to consider themselves “lost” when they were plunged, at the moment of manhood, into what looked like the collapse of Western civilization. The world they had known, a world in which peace, prosperity and progress had been taken for granted as the evidences of an achieved humanity, was suddenly challenged by barbarities that had supposedly been laid aside for all time. Shocked and dismayed, they first were seized with the spirit of the Crusades and rushed out to set things right, to make the world once more “safe for democracy”, to fight “the war to end wars”, to care for the wounded, and to arouse the people of Europe against their misguided leaders. […] [President] Woodrow Wilson led the campaign and provided most of the slogans, but Theodore Dreiser […] and the iconoclasts and critics of France, Russia, and England provided their reading. On the surface they appeared to be a company of idealists and reformers, but at heart they knew that the evil they were fighting lay closer to home than they cared to admit. When the war ceased as suddenly as it had started, these young men looked back to their country only to find that it had suffered the shock but few of the actualities of war, and that its people had profited by war industries and the sense of power and self-righteousness that comes with victory. A second disillusionment then turned them against this insensitive country of theirs, and they took up, with all the enthusiasm they had put into the military crusade, a battle for literary and moral integrity both in America and

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Literatura Norte-Americana

in themselves. The vigor they had thrown into the driving of the wounded back from the front in Red Cross ambulances, or fighting in the air or in soggy trenches, they now put into writing. Many – almost a majority – of them rejected the vigorous materialism of post-war prosperity in the United States and returned, after discharge from military service, to Europe, there to haunt the ateliers of Paris, to discuss art rather than politics, and, if one may judge from their own accounts, to waste their disillusioned minds and bodies in drink and dissipation. Even though the pose and decadence did not suit them as well as it had the sad young men of the nineties, the outlook was not promising for a new American literature that could offer solutions to the problems of humanity. But the literature of power asks rather than answers question. In the American writers who reached maturity between wars, what at first had seemed an irresponsible flight from reality turned out to be the means toward a realization of their true calling. These young men needed the perspective of distance as well as of time in order to discover new forms of art for the expression of man’s dilemma in the twentieth century. The older writers had posed the problems with which literary art must deal; the younger must learn to write. Whether they stayed abroad or came home and retreated from their society they slowly taught themselves their art.

Dicas de estudo Em História-Ficção-Literatura, Luiz Costa Lima investiga os pontos de ligação entre a ficção e a história. Discutindo os limites do discurso ficcional e do discurso historiográfico, o livro é uma rica fonte de estudo para professores pensarem criticamente sobre o papel da história na escrita da literatura e, especialmente, nos recursos literários que podem ser utilizados para se ter acesso ao passado. O processo de investigação e pesquisa realizado por Truman Capote para escrever In Cold Blood é um história rica por si só – esse é o pensamento por trás do filme Capote, dirigido por Bennett Miller em 2005. O trabalho aborda de que forma Capote se interessou pela história brutal de assassinato ocorrida no Kansas e como funcionou o processo criativo por trás da escrita de In Cold Blood. Um dos aspectos mais interessantes do filme é a abordagem dada à estranha fascinação de Truman Capote (vivido excepcionalmente por Phillip Seymour Hoffman) por 202

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

um dos assassinos, Perry Smith. Capote é uma obra que retrata não só uma obra literária, mas todo o contexto histórico-social envolvido na sua criação.

Atividades 1. Qual a importância de ensinar a literatura norte-americana através de seu contexto histórico?

2. No texto complementar, como o autor articula o momento histórico pós 1.ª Guerra Mundial com a literatura produzida no período?

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Gabarito Literatura colonial e a América puritana 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  os textos de John Smith tiveram um caráter propagandista, com o objetivo de atrair os colonos para a América;  Smith constrói a América como um lugar selvagem e exótico, mas também repleto de oportunidades e onde as pessoas podem exercer sua liberdade individual;  a história do relacionamento de Smith e Pocahontas serviu como símbolo da possibilidade de prosperidade entre colonos e nativos. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  os puritanos são os responsáveis pela publicação dos primeiros textos escritos na América;  os puritanos são responsáveis pela produção de uma variedade de formas de escrita: diários, poesia, sermões;  os ideais puritanos de prosperidade seguindo as leis divinas, autodeterminação e o “sonho americano” se tornaram grandes temas da literatura norte-americana e serviram de símbolos da América no imaginário ocidental. 3. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  o Deus apresentado no sermão é um Deus irado e punitivo, que pode lançar os pecadores ao inferno quando quiser;  o homem é naturalmente culpado, e assim nunca se encontra totalmente a salvo das chamas infernais e da punição de Deus.

Literatura Norte-Americana

O período revolucionário 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  um novo modelo de colonização por parte da Inglaterra, procurando um maior controle das colônias;  as colônias começam a perder autonomia de governo;  a Lei da Moeda;  a Lei do Selo;  a questão da taxação do chá. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  a questão do “contrato social”;  a ideia de que o homem nasce mau perde a força;  os homens têm o direito natural à liberdade e à felicidade.

A prosa romântica 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  maior aproximação com a natureza;  ênfase no sentimento e na subjetividade;  estímulo ao nacionalismo. 2. A resposta deve incluir os seguinte pontos:  uma literatura voltada à exploração dos mistérios da natureza;  desenvolvimento do aspecto psicológico dos personagens devido à maior ênfase na individualidade;  construção de uma literatura alegórica, reflexo de um mundo natural repleto de símbolos.

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Gabarito

A poesia romântica 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  o poema deve conter em torno de 100 versos;  o poema deve ser lido de uma só vez;  o poema deve ter a beleza como um de seus temas;  o poema deve ser construído racionalmente e não apenas ser fruto de inspiração. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  Whitman construiu uma poesia épica para os EUA;  Whitman inovou na forma da poesia, com versos livres;  Whitman expressou aspectos sexuais em seus trabalhos;  Dickinson apresentou uma estrutura poética nova e criativa, com diferentes usos da pontuação e da gramática;  Dickinson construiu imagens incomuns em seus poemas aliando ideais abstratos a figuras concretas.

A Guerra Civil e a literatura correspondente 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  o romance mostrou a crueldade a que os negros eram submetidos a um maior número de pessoas;  o romance sensibilizou a maior parte do público, fazendo com que o negro passasse a ser visto como ser humano e não como propriedade;  deu ânimo ao movimento abolicionista para lutar pelo fim da escravidão e aumentar o antagonismo entre o norte e o sul dos EUA. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  destruição das cidades e da economia sulista;

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Literatura Norte-Americana

 adoção da estratégia de desenvolvimento nortista (indústria e comércio) por todos os Estados Unidos;  expansão dos direitos de cidadania aos negros, mas gerando uma forte segregação racial.

O Realismo norte-americano 1. A resposta deve incluir os seguintes tópicos:  fim da crença em ideais românticos;  crescimento do romance como principal forma literária em detrimento da poesia;  movimento cultural em direção ao oeste dos Estados Unidos;  contato com novas regiões do país até então pouco exploradas. 2. A resposta deve incluir os seguintes tópicos:  seus romances apresentam personagens marcados por um forte determinismo social;  sua obra mostra aspectos mais negativos do sonho americano;  o narrador de suas obras não apresenta julgamento de moral.

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  o autor viveu intensamente o período;  o autor em suas obras (especialmente The Great Gatsby) vai ilustrar o aspecto entusiástico mas também frívolo do período;  o autor vai usar o período como símbolo de como o ideal do sonho americano foi corrompido. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  o fluxo da consciência; 208

Gabarito

 construção fragmentada da narrativa;  a manipulação imaginativa do tempo em seus romances.

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  a natureza é um dos principais temas de sua poesia;  seus poemas abordam a relação do homem com a natureza;  ao contrário da filosofia de Emerson, Frost faz da natureza uma força enigmática, em que é difícil achar um significado. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  pessimismo e melancolia;  temas voltados à esfera urbana;  fragmentação na estrutura dos versos e nas ideias apresentadas;  fluxo da consciência;  alusões a outras obras da literatura.

O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela luta de diferentes setores considerados minoritários da sociedade por direitos civis. Entre esses grupos estavam os afro-americanos e as mulheres;  a literatura produzida por Walker e Morrison tem como forte característica a expressão da realidade da mulher negra, em especial sua dificuldade em achar o seu lugar numa sociedade dominada por indivíduos brancos e masculinos;

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Literatura Norte-Americana

 ambas autoras estiveram envolvidas direta ou indiretamente no movimento por direitos civis;  alguns dos temas das obras de Walker e Morrison são questões centrais levantadas pelos movimentos dos anos 60 e 70: a discriminação racial, a opressão das mulheres, a procura da valorização da beleza negra e, especialmente a busca de uma identidade feminina e afro-americana. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  aproximação entre a linguagem literária e a linguagem jornalística;  mescla entre fato e ficção;  uso excêntrico de pontuação e onomatopeias;  surgimento do Romance de Não-Ficção: In Cold Blood.

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio 1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  fazer com que os alunos entendam que a literatura está sempre inserida em um momento específico da história;  familiarizar os alunos com algumas características da obra literária;  aproximar o aluno de elementos da cultura e da história norte-americana;  propiciar uma apreciação mais ampla da obra literária. 2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:  primeiramente, o autor compara o espírito da época antes da 1.ª Guerra Mundial com o espírito da época após a 1.ª Guerra Mundial;  a seguir, o autor fala da desilusão dos jovens soldados (e futuros escritores) com a realidade norte-americana ao fim da guerra;  posteriormente, o autor fala que a mesma energia usada por esses indivíduos durante a guerra foi empregada na criação de uma nova perspectiva literária, quando eles partem para a Europa. 210

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