Download Linguagem Diálogo As Ideias Linguisticas Do Círculo de Bakhtin by Carlos Alberto Faraco...
E d i t o r : Marcos Marcionito
C a p a e p r o j e t o g r á f i c o s An d ré ia C us tó di o C o n s e l h o e d i t o r ia ia l : A n a M a ria ri a St ah l Zill Zilles es [Unisinos]
Carlos Alberto Faraco [UFPR] Ego n de Oliv Oliveir eira a Rangel [PUCSP] Gilvan M üller de Oliveir Oliveira a [UFSC, Ipol] Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela] Kdnavil Kdna villil lil Rajago palan [Unicamp] M a r c o s B a g n o [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB] Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP] Salma Tannus Tannus Muchail [PUC-SP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
CIP-BRA SIL. CATALOGAÇ CATALOGAÇÃO ÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F2251 Faraco, Farac o, C arlos A lbe rt o L i n g u a g e m & d i á l o g o : a s i d e iaia s l inin g u i s t icic a s d o c í rrcc u l o d e Bak h t i n / C arlos Albe rt o Faraco. - S ão P au lo: Parábo la Edi t ori al, al, 2009 . 168p.(Lingua[gem];33)
I n clu i bi bli ograf i a ISBN 978-85-88456-96-9
1.Bakhtin, Bakhtin,M.M.(Mikhail Mikhailovitch), Mikhailovitch), 1895-19 1895-1975.2. 75.2. Linguística.3. Linguísti ca.3. Linguagem Linguagem e línguas- Filosofia. 4. Literatura - Estética. Estética. I.TÍtulo. I.TÍtulo. II. Série. Série. 09-2257
C D D 4 01 01 CDU 81'42
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ISBN: 978-85-88456-96-9 do texto: Carlos Alberto Faraco © da edição brasileira: Parábola Editorial, São Paulo, junho de 2009 0
Aos confrades Tovico e Giba, celebrando nossas incontáveis seratas bakhtinianas
E a Rosse-Marye Bernardi, nossa musa bakhtiniana.
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SUMÁRIO
I ntrod ntr oduç ução ão
9 CAPÍTULO UM O
Círculo
de B akhti n
11 CAPÍTULO DOIS C r i ação ação i deológi deológi ca e di alogism logi smo o
45 CAPÍTULO TRÊS A fi losofi losofi a da li nguage nguagem m
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R efe ferên rênci cias as bi bi bli ográ gr áfi cas
159 í ndi ce de autores autores e obras citad ci tados os
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INTRODUÇÃO*
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akhtin enaseu Círculo já um lugar lugar consoconso lidado história dotêm pensamento linguístico. Apesar de todos os conhecidos percalços de sua trajetória, deixaram uma densa e rica contribuição de natureza filosófica que veio se somar às muitas outras que têm tentado, ao longo dos milênios, apreender o Ser da linguagem.
O objetivo principal deste livroSintetizar é oferecerobra ao leitor uma visãonão de conjunto da reflexão bakhtiniana. tão complexa é, evidentemente, tarefa fácil. Resolvemos enfrentála em resposta a uma constante demanda de nossos alunos por uma espécie de roteiro geral que lhes auxiliasse a mergulhar na filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. Embora haja várias e algumas muito boas apresentações do pensamento bakhtiniano, nenhuma, até agora, centrou sua atenção especificamente nas ideias linguísticas do Círculo, o que nos serviu de justificativa para escrever este texto. Procuramos delinear as * Este llivr ivroo result resultou ou do projeto ““Funda Funda men tos de um a teor teoria ia dialóg dialógica ica do discur discur so” que desenvolvi como bolsista-pesquisador do CNPq (processos n.3000954/97-2 e 303638/02-8).
grandes coordenadas dessas ideias e situálas no eixo da história. No melhor espírito bakhtiniano do diálogo infindo, do simpósio universal, não deixamos também de polemizar com algumas outras leituras das mesmas obras. O livro está dividido três capítulos. Círculo de Bakhtin e seusem grandes projetos;No no primeiro, segundo, situamos apresenta-o mos o quadro amplo em que a questão da linguagem se coloca para o Círculo; no terceiro, dirigimos nosso foco mais especificamente para a filosofia da linguagem do Círculo. Por várias razões de ordem prática, usamos como fontes de nossas citações as traduções americanas dos textos do Círculo. Assim, as traduções das citações são de nossa responsabilidade. Nas Referências bibliográficas, incluímos a lista das edições brasileiras das obras do Círculo. Esperamos que o livro seja útil tanto para quem se inicia no pensamento bakhtiniano, quanto para quem já trabalha com ele.
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CAPÍTULO 1
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O CÍRCULO DE BAKHTIN
O MIST MISTÉRIO ÉRIO D DA A AUT AUTORIA ORIA uem se aproxima pela primeira vez do pensamento de Mikhail M. Bakhtin e de seus pares se depara com um persistente quiproquó em tomo da autoria de certos textos, em especial de três livros: Freudi Freudismo, smo, M Marxi arxismo smo e filo filoso sofia fia da linguagem e O método formal nos estudos literários. Isso porque os dois primeiros foram originalmente publicados sob s ob o iK ■is< e Valen Valentin tin N N.. Voloshinov e o último sob o de Pavel N. Medvede A questão toda se pôs a partir de 1970. Depois de trinta anos de silêncio, trabalhos de Bakhtin tinham sido novamente publicados na Rússia em 1963 e 1965, fazendo seu nome voltar a circular nos meios acadêmicos de sua terra natal. Nessa conjuntura, o linguista Viatcheslav V. Ivanov, sem apresentar argumentos efetivos, afirmou que o livro Ma Marxism rxismoo e ffililoo s o fia fi a da linguagem tinha sido escrito por Bakhtin e não por Voloshinov,
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atribuição de autoria que se estendeu, em seguida, aos outros textos mencionados e a alguns artigos também publicados sob a assinatura de Voloshinov e Medvedev. Esse fato trouxe para os estudos bakhtinianos uma generalizada
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confusão quanto à autoria desses textos. Até hoje, nenhum argumento convincente conseguiu resolver essa dúvida criada, ao que tudo indica, artificialmente por Ivanov. O contínuo e infrutífero debate acabou por dividir a recepção daqueles textos em três direções: a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edições originais e, por consequência, só reconhecem como da autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu nome ou encontrados em seus arquivos; b) a segunda direção é a daqueles que atribuem atrib uem a Bakhtin Bakh tin todos os textos ditos disputados; c) há, por fim fim,, uma solução de compromisso que inclui os os dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Mar Marxism xismoo e f i l o sofia da d a linguage linguagem m são atribuídos a Bakhtin/Voloshinov; e O método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev. Neste livro, adotamos a primeira direção. E há várias razões para isso. Em primeiro lugar, entendemos que atribuir a cada um dos autores os textos publicados sob seus respectivos nomes é uma formaa adequada de respeitar sua form sua memória — o que não é irrelevante, irrelevante, considerando o lado trágico de suas existências. Mais importante, porém, é não perder a diversidade de pensamento do grupo, suas múltiplas e inegáveis interrelações e sua apreciável riqueza. Isso tudo sem esquecer que Bakhtin, a partir da década déca da de 1 960 96 0 e até a §ua §ua morte,, morte,, tev tevee várias várias oportunidades o portunidades concre concre ■tas de reivindicar a autoria dos .textos mencionados e nunca o fez. Considerando que os três intelectuais intelectuais envolvidos tiveram fortes la-
ços de amizade amizade,, encontraramse regularmente regularmente durante durante dez anos (19 ( 19119
19 29)) num 1929 n um grupo de estudos estudos e partilharam partilharam um conjunto conjunt o expressivo expressivo de ideias, adotamos aqui também a denominação que se tomou corrente para identificar o conjunto da obra: o Círculo de Bakhtin. É importante lembrar que essa denominação foilhes atribuíposteriori pelos estudiosos de seus trabalhos, já que o próprio da a posteriori grupo não a usava. A escolha do nome de Bakhtin, neste caso, é plenamente justificável, tendose em conta que de todos foi ele quem produziu, sem dúvida, a obra de maior envergadura. n i t h k a
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Antes de prosseguir, parece útil apresentar alguns dados sobre o Círculo. Tratase de um grupo de intelectuais (boa parte nascida por volta da metade da década de 1890) que se reuniu regularmente de 1919 a 1929, primeiro em Nevel e Vitebsk e, depois, em São Peters burgo (à época rebatizada de Leningrado). Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses intelectuais e atuações profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto), incluindo, entre vários outros, o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan I. Kanaev, a pianista Maria V Yudina, o professor e estudioso de literatura Lev V Pumpianski e os três que vão nos interessar mais de perto neste livro: Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. Sobre Voloshinov, sabese que trabalhava como professor e, de início, tinha seus interesses voltados para a história da música, vindo, porém, a se formar em estudos linguísticos em 1927, dedicando se, em seguida, a estudos pósgraduados na mesma área. Medvedev, formado em direito, teve uma carreira de educador e de gestor na área da cultura. Desenvolveu intensa atividade no jornalismo cultural eo.ensinou literatura Instituto Pedagógico Herzen, em Leningrado. grad Voloshinov veio ano falecer em 19 1936 36,, vitimado pela tuberculose;
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e Medvedev, provavelmente em 1940, vítima dos expurgos políticos que varreram a URSS no fim da década de 1930.
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Bakhtin, por sua vez, teve formação em estudos literários. Atuou Atuou como professor, embora sem vínculos institucionais (principalmente por problemas de saúde) até ser preso em 1929. Condenado a um exílio no Cazaquistão, só pôde encontrar um emprego permanente depois da Segunda Guerra Mundial, tornandose professor de literatura do Instituto Pedagógico (depois, Universidade) de Saransk (Mordóvia), donde se aposentou em 1969, passando seus últimos anos de vida na região de Moscou, onde faleceu em 1975. Apreciando sua obra retrospectivamente e considerando a amplidão de seus temas e a densidade de suas reflexões, o melhor que se pode dizer dele (seguindo hoje uma tendência internacional) é que foi um filósofo, talvez um dos mais importantes do século XX, embora seu ostracismo por mais de trinta anos tenha impedido a circulação e o debate de suas ideias até praticamente a década de 1970. Os membros do Círculo que recebeu seu nome, tinham em comum, conforme se pode ler em Clark & Holquist (p. 65), uma paixão pela filosofia e pelo debate de ideias, o que é facilmente perceptível nos textos que nos legaram. Mergulhavam fundo nas discussões de filósofos do passado, sem deixar de se envolver criticamente com autores de seu tempo. Podemos acrescentar a essa paixão outra que, progressivamente, invade os interesses do Círculo, em especial em seus tempos de Leningrado: a paixão pela linguagem.
Pr o b l e m a s d e r e c e p ç ã o Além da confusão em torno da autoria de certos textos publicados nos anos 1920, a recepção da obra do Círculo de Bakhtin, quando de sua reentrada em cena de meados da década de 1960 em
diante, foi, para dizer o menos, bastante tumultuada. Basta lembrar, nesse sentido, que o material veio vindo à luz na Rússia sem nenhuma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos
para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoievski em 1963 até a edição, em 1986, de Para uma filosofia do ato. Ironicamente, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o último a ser publicado! De certa forma, o mesmo aconteceu com a chegada das obras no Ocidente: não houve nenhuma ordem cronológica na sua divulgação, que, por sua vez, levou perto de vinte e cinco anos para se completar, desde as primeiras traduções em 1968 (ano em que apareceram a edição em italiano da obra sobre Dostoievski e a edição em inglês da obra sobre Rabelais) até a tradução para o inglês de Para uma filosofia filoso fia do ato em 1993. Além disso, é preciso registrar que nem sempre as traduções foram feitas com o devido cuidado. Bastaria lembrar o caso da primeira tradução do livro sobre Dostoievski para o inglês. Alguns outros exemplos mais pontuais podem ser lidos em Souzà (1999, p. 4253) e Castro (1997). Acrescentese a isso tudo o fato de que boa parte dos textos do próprio Bakhtin é constituída de manúscritos inacabados, alguns apenas rascunhados, o que nos deixa, sem dúvida, numa situação de não poucas dificuldades quanto à apreensão de seu pensamento. No Brasil, Além a recepção daspoucos ideiasproblemas do Círculodeteve tambémo suas peculiaridades. de não tradução, pensamento do Círculo, com bastante frequência e durante muitos anos, foi identificado quase exclusivamente ao livro Mar Marxis xismo mo e filo fil o s o fifiaa da linguagem, o primeiro a ser publicado em português (em 1979). Por outro lado, em especial pelo viés do discurso pedagógico (mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo, interação e gên gênero eross do discur dis curso, so, retirados do vocabulário do Círculo, mas claramente despojados de sua complexidade conceituai (con-
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forme argumentaremos mais à frente). E, por fim, cabe lembrar a confusão que se criou com o termo polilifo po fonn ia ia,, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo
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plurili riling nguis uismo mo); ); seja pelo sentido que ele tem de heteroglossia (ou plu no quadro de referência do linguista francês O. Ducrot, nem sempre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin1. Comentaremos esta questão peculiar no capítulo dois. Desde já, porém, recomendamos aos leitores interessados a discussão do conceito bakhtiniano de polifonia em Tezza (2002 e 2003).
Dois g r a n d e s
projetos
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Quando se observa em conjunto a obra do Círculo de Bakhtin, é perceptível a existência de dois grandes projetos intelectuais. Da
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parte de Bakhtin, parece Seus haver,primeiros de início,textos a intenção de nessa construir uma “prima philosophia”. apontam direção ao se dedicarem extensamente à crítica do que ele chama de teoreticismo, isto é, as objetificações da historicidade vivida, obtidas pelos processos de abstração típicos da razão teórica. A interlocução maior, nesse caso, parece se dar, segundo tem apontado a exegese daqueles textos, com problemas filosóficos formulados principalmente pela fenomenologia e por pensadores neokantia nos. A estes, o Círculo tinha amplo acesso por meio do filósofo Matvei I. Kagan, que se doutorara na Universidade de Marburgo (Alemanha) — um dos centros do neokantismo neokantismo — , onde onde foi aluno de Herman Hermannn Cohen, uma das figuras emblemáticas daquele pensamento. É preciso, porém, resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como um filósofo neokantiano. Considerando o todo de sua obra, um pouco de cautela não fará mal. Como veremos em mais detalhes adiante, Bakhtin, de fato, parece ter encarado como relevantes os problemas for-
mulados por filósofos neokantianos (em especial a questão axiológica) e aproveitouos como fio condutor de suas próprias reflexões. Contudo, 1 Cf. A m orim orim (200 1, p . 123, n . 162), p ar ara u m com com entá entári rioo ccrí ríti tico co ao ao con con cei ceito to de polifonia de Ducrot face ao de Bakhtin.
manteve sempre uma postura crítica frente àqueles filósofos e, mais importante, avançou respostas bastante originais àqueles problemas, respostas que dificilmente poderiam ser classificadas como neokantianas. O segundo projeto do Círculo, claramente visívelgrande nos textos de intelectual Voloshinovdee membros de Medvedev, publicados entre 1925 e 1930, era contribuir para a construção de uma teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção e dos produtos do “espírito” humano; ou, para usar um termo mais corrente num certo vocabulário marxista, uma teoria das manifestações da superestrutura. Tratavase de uma área em que havia um grande vazio teórico no pensamento marxista e que acabou atraindo vários pensadores, nas décadas de 1920 e 1930, tanto na Rússia, quanto no Ocidente. As contribuições de Voloshinov e de Medvedev nessa direção têm duas marcas bem distintas. Primeiro, a crítica sistemática que ambos fizeram ao chamado marxismo vulgar, aquele que tenta dar conta dos processos e produtos da criação ideológica por meio de uma lógica determinista e mecanicista, segundo a qual uma relação de causalidade simples, direta, unilinear e unidirecional entre a base econômica e as manifestações superestruturais resolveria tudo, simplória e dogmaticamente. Segundo, e certamente mais importante, o papel central que eles deram à linguagem em suas formulações e as próprias peculiaridades da filosofia da linguagem que elaboraram. Nesse sentido específico, podese dizer que o Círculo de Bakhtin trouxe uma contribuição original para aqueles debates, cujas implicações heurísticas não foram ainda de todo exploradas.
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Os primeiros textos de Bakhtin apontam para para o objetivo do autor de se envolver com a construção de uma reflexão filosófica ampla. Es
tamos nos referindo principalmente aos dois textos que foram escritos provavelmente no inicio da década de 1920 e que ficaram inacabados — Para uma filosofia do ato e O autor e o herói na atividade estética. encontrar primeiros textos umoutra, conjunto muito densoVamos e rico de reflexões,nestes que, de uma forma ou de atravessará todos os escritos de Bakhtin até o fim de sua vida. No entanto, não é objetivo deste livro apresentar e discutir essa temática específica (ética e estética), por mais interessante e instigante que ela seja e por mais provocadores que sejam os vários debates que ela tem motivado internacionalmente. Por si só, ela exigiria outro livro. Apesar disso, no contexto desta apresentação da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, é importante dar atenção aqui a pelo menos alguns aspectos daquelas reflexões iniciais em razão de sua pertinência para a concepção de linguagem que o Círculo formulou. Referimonos particularmente: — à questão da unicidade e eventicidade do Ser; — ao tema da contraposição eu/outro; — e ao componente axiológico intrínseco ao existir humano. ato, parte da asserção de que Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo teórico, chamado, neste texto, de “mundo da cultura”, o mundo em que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elaboração teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de seress históricos sere históricos únicos únicos que realizam atos únicos e irrep irrepetíveis, etíveis, o mundo da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada).
Esse dois mundos, diz Bakhtin (p. 2), não se comunicam porque o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo
mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida. Mais ainda: para Bakhtin, não é possível superar este dualismo partindo do interior da cognição teórica. Essa superação só será alcan-
çável quando se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida esta como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unicidade de seus atos efetivamente realizados; ou, em outras palavras, que se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida, Esse posicionamento crítico frente à razão teórica, que abstrai o ser humano de sua realidade concreta (deixando apenas um esqueleto de significado significado — p. 664) 4),, que constrói juíz juízos os em que eeu u nã nãoo me encontro, em que eu não existo, será uma das principais constantes do pensamento do autor e do Círculo. O evento único e irrepetível será sempre uma referência central nas suas elaborações filosóficas. Deve ficar claro que essa crítica à razão teórica, ao teoreticismo, não é uma teórica. Ao total contrário: Bakhtin do reconhece suanegação validade;dao cognição que ele recusa é sua desvinculação mundo da vida. Embora seu projeto seja uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da experienciação do mundo regida por valores — não com uma fundamentação analítica na cabeça, mas com aquele centro real, concreto (tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam avaliações, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos reais, interconectados por relaçõeseventos concretas no evento singular do Ser (p. 61), ele não esconde o desejo de reconciliar o mundo da cognição teórica e o mundo da vida, conforme podemos ler à p. 49: Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível — a ciência — deve se tornar alguma coisa responsivamente conhecida [uznaníe] para m mim im como um úni único co part partic icipant ipante, e, e isso em nada
diminui ou distorce a verdade [istina] autônoma do conhecimento teórico, mas, pelo contrário, complementaa até o ponto em que ela [pravda ] necessariamente válida. se torna torna uma verdad verdadee pravda
Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contumaz do racionalismo (p. 2930), isto é, de um pensamento em que interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento;
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o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da compreensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido como o espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica). Incomodalhe a idéia de sistema em que não há espaço para o individual, o singular, o irrepetível, o evêntico. No fim da vida, no texto inacabado Para uma epistemologia das ciências humanas (p. 169) 16 9),, ele voltará a este mesmo ponto e dirá dirá,, comentando o estruturalismo, que é contra uma formalização e uma despersonalização desperson alização sistemáticas.
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Bakhtin reconhece, naquele primeiro texto (p. 19), que a filosofia moderna, dentro de seus propósitos e perspectivas, alcançou grande sofisticação em suas elaborações. Entretanto, para ele, essa filosofia não pode pretender ser uma filosofia primeira porque nada consegue dizer sobre o sercomoevento único. Uma filosofia primeira que trabalhe de dentro da unicidade do ser e do evento evento não existe — diz ele (p. 19) — e mesmo os caminhos que levam à sua criação parecem estar esquecidos. Contudo, ele quer recuperar a possibilidade de tal filosofia primeira, uma filosofia cujo procedimento não será construir conceitos, proposições e leis universais sobre o mundo do ato efetivamente realizado (em outras palavras, não se orientará pela “pureza” abstrata, teórica do ato), mas só poderá se viabilizar como uma fenomenologia daquele mundo (p. 32), como uma forma do pensamento que Bakhtin chama de partic participativo, ipativo, nãoindiferente, isto é, o pensamento daqueles
que sabem como não separar seu ato realizado do produto dele, mas sim como relacionar ambos ao contexto único e unitário da vida e buscam determinálos naquele contexto como uma unidade indivisível (p. 19, nota de rodapé). rodapé). Essa insistência de Bakhtin no trato do singular, do único, do irrepetível tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do ser humano concreto. O argumento (p. 40) se assenta na estrutura
do m moral que intui sua unicidade, que se percebe único, que reconhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro. Ao se perceber único (de dentro de sua própria existência e não como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar indiferente a esta sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela: não temos álibi para a existência (p. 40). Assume, desse modo, a responsabilidade por sua unicidade (“Eu sou concreto e insubstituível e, por consequência, devo realizar minha unicidad unicidade” e” — p. 41 4 1 ) e compreende que dev devee realizála porque “aquilo que pode ser feito por mim não pode ser jamais feito por outro alguém” (p. 40). E esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual e responsável (nãoindiferente). Nesse sentido, viver é agir (p. 43) e agir em relação a tudo o que não é eu, em relação ao outro (p. 42). No fim desse manuscrito (p. 7475), Bakhtin volta a insistir na relação eu/outro. Anteriormente (p. 60), ele já tinha destacado que reconhecer minha unicidade e realizála no ato individual e responsável não significa que o eu vive só para si. Agora, ele vai afirmar que o princípio constitutivo maior do mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concreta eu/outro: A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o
outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74). O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valo rações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é
no plano dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade, portanto) que cada um orienta seus atos. Nesse sentido, Bakhtin dirá no manuscrito O autor e herói na atividade estética (p. (p. 1 871 87 188 8 ) que viver viver significa tomar uma posição axiológica em cada momento, significa posicionarse em relação a valores. Vivemos e agimos, portanto, num mundo saturado de valores, no interior do qual cada um dos nossos atos é um gesto axio logicamente responsivo num processo incessante e contínuo. filoso fia do ato com o Bakhtin encerra seu manuscrito Para uma filosofia comentário de que essa contraposição axiológica eu/outro, embora já presente em algumas algumas formulações morais, é ainda desconhecida da filosofia moral como um todo, não encontrou uma expressão científica adequada, nem foi pensada em sua essencialidade e integralidade.
Apreciando o conjunto da sua obra, podemos afirmar que seu grande projeto intelectual foi precisamente este: repor essa questão e investigar sua essencialidade. Essas grandes coordenadas— a unicidade do ser e do evento (e a consequente necessidade de não separar o mundo da teoria do mundo da vida), a relação eu/o eu/out utro ro e a dimensão axiológica — serão, portanto, os eixos constantes e nucleares do pensamento bakhtiniano e de seus pares. Citemos alguns exemplos. Bakhtin discutirá extensamente, em O autor e herói na ativida-
de estética, estética, que o processo estético pressupõe um olhar de fora, isto é, um eu posicionado do lado de fora em relação ao outro para poder
enformálo esteticamente. problemaa do conte conteúdo údo,, do material m aterial e da d a fo rNesse texto e em O problem ma na arte verba verball (de 1924), Bakhtin elabora toda uma reflexão estética assentada na responsividade axiológica, tema que Voloshinov rediscurso so na vida e o discurso na poesi po esiaa (de 1926), dando toma em O discur especial destaque ao fato de que a entonação (a tomada de posição axiológica) é o chão comum do enunciado na vida e na arte.
O mesmo Voloshinov, em seu livro Ma Marxism rxismoo e fifilo loss o fifiaa d a lin guage gu agem m (de 1929), funda sua teoria do signo e do significado, bem como sua crítica ao objetivismo abstrato mesmos pressupostos: a consciência do falante nãoem se linguística orienta pelonos sistema da língua, mas pelo novo, pelo irrepetível do enunciado, pelo concreto de sua singularidade, pelo seu horizonte social avaliativo. Medvedev, em seu livro O método fo form rm al nos nos estudos estudos literários (publicado em 1928), elabora sua crítica à teoria da linguagem poética dos formalistas tomando como ponto de referência o mundo da vida, isto é, mostrando (p. 75ss.) que o conceito de linguagem cotidiana de que se valiam os formalistas para sustentar sua doutrina da linguagem poética era excessivamente esquemático (e, portanto, inadequado) por perder de vista as forças gerativas em operação contínua na interação diária. Um último exemplo é a tese de Bakhtin sobre Rabelais. Ao analisar a obra do autor francês e destacar sua relevância para a história literária, Bakhtin salienta precisamente que é com este escritor que se opera a passagem da lógica (carnavalesca) da cultura popular, da cultura da praça pública (do mundo da vida), para a cultura erudita, para a cultura escrita.
A LINGUAGEM NOS PRIMEIROS TEXTOS
Como fica claro, toda a reflexão que acabamos de resgatar se realiza, nos primeiros textos, ainda sem a presença constitutiva da linguagem, marca que será característica de todos os textos posteriores a 1926. Não obstante isso, a linguagem já está presente nos primeiros textos, e os poucos comentários que aí encontramos prenunciam muitas das elaborações posteriores. Assim é que no texto Para uma filosofia do ato, a linguagem aparece já apresentada (p. 31 e 37) como atividade (e não como sistema)
e o enunciado (p. 37) como um ato singular, irrepetível, concretamen te situado e emergindo de uma atitude ativamente responsiva, isto é, uma atitude valorativa em relação a determinado estado de coisas. Em outras palavras, estabelecese já aqui a correlação estreita entre o enunciado e a situação concreta de sua enunciação, bem como entre o significado do enunciado e uma atitude avaliativa. Essa atitude avaliativa se materializa no tom, na entonação do enunciado (“a palavra realmente pronunciada não pode deixar de ser entonada” ento nada” — p. 32 3 2 , nota no ta de rodapé), que, por sua vez, emerge d doo universo de valores em que me situo, lembrando que, em seguida O autor e oposição herói naavaliativa atividadeaestética (no texto ), Bakhtinédirá que viver é assumir uma cada momento; posicionarse com respeito a valores.
A palavra viva não conhece, portanto, um objeto (um “herói”, no vocabulário posterior do Círculo) como algo totalmente dado. O mero fato de eu falar sobre ele significa que assumo certa atitude frente a ele, uma atitude não indiferente: eis por que a palavra não apenas designa um objeto como uma entidade pronta, também expressa por suaàquilo entonação atitude valorativa emmas relação ao objeto, em relação que éminha desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimentao em direção do que ainda está por ser determinado nele, transformao num momento cons-
tituinte do evento vivo, em processo (p. 32 33). Está aqui a base da teoria da refração do signo que Voloshinov apresentará em seu livro de 1929, bem como da imagem da aura heteroglóssica que Bakhtin construirá em suas discussões sobre a linguagem no texto O discurso no romance, na década de 1930. A dimensão axiológica é, portanto, parte inalienável da significação da palavra viva. Esse mesmo tema aparece já mais elaborado no texto O problem a do cont conteúdo eúdo,, do material m aterial e ddaf afor orm m a na arte ververb al (de 1924). Nele, discutindo a criação estética como um complexo processo de posicionamentos axiológicos em diferentes planos,
Bakhtin dirá que não há, nem pode haver enunciados neutros. Todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada deposição neste contexto. Essa insistência na dimensão axiológica de todo e qualquer enunciado e na necessidade de abordar os enunciados desde o interior do mundo da vida leva Bakhtin, neste texto de 1924, a separar, pela primeira vez, sua perspectiva de estudo da linguagem daquela desenvolvida pela linguística (p. 292ss.). A abordagem da linguística é, na concepção bakhtiniana, insuficiente pelo fato de enfocar o enunciado exclusivamente como um fenômeno da língua, como algo puramente verbal, desvinculado do ato de sua materialização, indiferente às suas dimensões axiológicas. Bakhtin posiciona seu modo de estudar a linguagem fora da linguística propriamente dita, mas não a descarta nem recusa sua relevância relevâ ncia — como discutiremos em mais mais detalhe detalhess no capítulo 3. A linguística, neste texto, é claramente apresentada como necessária (como um conhecimento a que se deve recorrer), embora não suficiente (a língua no mundo da vida tem dimensões constitutivas que escapam da razão teórica da linguística). Sobre isso, podemos ainda acrescentar outro dado. Consideran-
do o projeto inicial inicia l de Bakhtin — isto é, a construção de uma uma “prima philosop phil osophia” hia” formatada como uma fenomenologia dos atos únicos do mundo da vida vida — , podemos podemos afirmar afirmar que, em princípio, este pen pensasador não entende sua reflexão sobre a linguagem como propriamente de natureza científica, mas primordialmente como de natureza filosófica. Voltaremos a este tema no fim deste capítulo. Para encerrar este tópico, vamos fazer referência a um último comentário de Bakhtin sobre a linguagem em Para uma filosofia do ato. Neste, ele se pergunta (p. 30) se a inteireza do evento da vida (o evento em processo) é, como tal, compreendida pelos participantes por meio da abstração lógica, por meio do raciocínio teórico.
Sua resposta aqui é, evidentemente, negativa. Se transcrito em termos teóricos — diz ele (p. 3031) — o evento perde precisamente seu sentido de evento. No entanto, a compreensão do evento desde dentro não é algo inefável, algo que só poderia ser vivenciado, mas não verbalizado. Ao contrário: Bakhtin afirma que essa compreensão pode ser enunciada verbalmente com clareza e nitidez. E_issojporque, segundo ele, a língua se desenvolveu historicamente a serviço do pensamento participativo e dos atos efetivamente realizados (isto é, no mundo da vida) e só posteriormente passou também a servir ao pensamento teórico. Nesse processo de expressão do ato realizado e do evento singular em que tal ato é concretizado, a palavra deve ocorrer em sua inteireza, o que compreende seu aspecto concreto palpável (mor fossintático e fonológico), seu aspecto semânticoconceitual e seu aspecto axiológico (seu tom avaliativo) Contudo, diz Bakhtin, não devemos exagerar o poder da linguagem. Embora a unicidade do sercomoevento e do ato realizado sejam passíveis de receber expressão verbal, essa tarefa é bastante difícil, em grande parte porque permanecerá sempre como algo aa verbalização ser atingido. total é inalcançável e
Em outros termos, Bakhtin materializa aqui sua crença nas pos sibilidades de verbalizarmos nossas experiências vividas a partir de seu interior, mas alerta para o fato de que nunca conseguiremos expressálas em sua totalidade. Ou seja: dar sentido ao vivido verbalmente é um processo possível, mas sempre aberto, sua çompletude é sempre postergada (“está sempre presente como aquilo que está por ser alcançado” — p. 31) 3 1)..
Marxistas? . Aprofundar a intrincada questão das relações do Círculo de Bakhtin com o pensamento marxista extrapola em muito os obje-
tivos deste livro. Contudo, consideramos pertinente fazer algumas ponderações sobre a questão neste ponto para, pelo menos, situar o leitor numa temática ainda recorrente nos estudos bakhtinianos. Lembramos, de início, que vários eslavistas estadunidenses, particularmente na década de 1980 (talvez ainda como efeito da Guerra Fria), e vários intelectuais russos, em especial depois do fim da URSS (talvez como efeito da ressaca póscomunista), fizeram ingentes esforços para desvincular o Círculo de Bakhtin do marxismo. Subjacente a esses esforços parece estar, de um lado, um entendimento de que o marxismo é um pensamento homogêneo e monolítico; e, de outro, uma identificação do marxismo com o discurso oficial do Partido Comunista da URSS. Não é preciso ir longe para mostrar que esses dois pressupostos empobrecem demais a discussão e impedem uma apreciação mais consistente da questão como um todo. Ao que tudo indica — isto é, pelo que se pode inferir do doss textos assinados por ele e pelas informações biográficas de que dispomos (embora ainda ainda bastante precárias) — , Bakhtin não vin vinculava culava seu pensamento a uma arquitetônica que se pudesse classificar de marxista. Voloshinov e Medvedev, no entanto, assinaram textos com os quais buscavam, de modo explícito, intervir num debate de sua épo-
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ca voltado justamente para uma temática marxista. Como sabemos, os anos imediatamente posteriores à Revolução de Outubro foram marcados não só por grandes mudanças políticas, sociais e econômicas na Rússia, mas também por intensa atividade cultural, seja na esfera da criação artística, seja na esfera do debate das ideias. A conjuntura política levava os intelectuais a se envolverem na construção de formulações teóricas de inspiração marxista que pudessem se contrapor aos quadros teóricos tradicionais, especialmente os vigentes nas humanidades e nas ciências sociais. Ora, Voloshinov e Me Medvede dvedevv — pelo que se depreende de seus textos da segunda segunda metade da década de 192 19 2 0 — estavam diretamente envolvidos nesses debates. E, nesse sentido, avançavam críticas
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tanto às formulações do chamado marxismo vulgar, quanto àquelas que buscavam resolver os problemas por meio de tentativas de conciliar de maneira simplista o marxismo com, por exemplo, o freudis mo e o formalismo, ambos em grande voga na Rússia da época. Seus textos — quer ao formularem críticas, quer ao darem corpo a suas próprias propostas — estão sempre atravessa atravessados dos por duas linhas argumentativas complementares: um compromisso com a cientificidade do discurso (o que estava claramente em questão era a construção de teorias de natureza científica para os problemas sob enfrentamento enfrenta mento — atitud atitudee plenamente coinci coincidente dente com as pretens pretensões ões científicas do próprio marxismo) e uma cobrança de rigor metodológico de qualquer proposta que se apresentasse como de inspiração marxista. Segundo eles, eram incompatíveis com o pensamento marxista quaisquer propostas que não respeitassem suas premissas de base: o materialismo, o monismo metodológico, o caráter social e histórico de todas as questões humanas. Como dissemos antes, saber quão marxistas eram essas suas críticas e propostas ultrapassa nossos objetivos neste livro. Mas é certo que os dois claramente investiram esforços no sentido de contribuir para uma problemática de interesse marxista. Por outro lado,
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é inegável que os dois (no rico contexto heurístico do Círculo de Bakhtin) assinaram textos que contêm uma dimensão inovadora, especificamente no trato da linguagem, da estética, da literatura e da criação ideológica em geral. Essa dimensão inovadora é de especial interesse para todos aqueles — marxistas ou não — que dese jam ja m pensa pensarr os processos e produtos cultur culturais ais a partir de uma base materialista e históricosocial. Sugerimos ao leitor interessado em aprofundar o assunto a leitura de dois autores consagrados (de formação marxista) que, segundo entendemos, conseguiram situar bem esse aspecto do pensamento do Círculo de Bakhtin e aquilatar adequadamente a relevância das contribuições de Voloshinov e Medvedev. Tratase de Raymond Williams (1977) e Augusto Ponzio (1980, 1981 e 1994).
Por fim, vale a pena destacar uma questão peculiar da relação desses autores com sua conjuntura. Assim como há uma inegável contribuição de Voloshinov e Medvedev à discussão de questões do interesse do marxismo; e assim como é relevante dar destaque aos belos textos que nos foram legados (ainda tão prenhes de significados para nossos debates contemporâneos), é preciso deixar claro também que, em alguns momentos de seus textos, Voloshinov particularmente faz claras concessões a linhas oficiais que, nos últimos anos da década de 1920, começavam a tomar corpo no establishment acadêmico soviético e a adquirir um estatuto de dogma (o que trazia pesadas consequências políticas para qualquer dissidência). Isso deixa alguns pontos de seus textos profundamente datados e, como tal, abertos ao mesmo tipo de crítica de fundamentos que ele aplicou a outros autores. Talvez a mais marcada dessas concessões sejam as apologias ao pensamento do linguista N. Y. Marr que aparecem, sem maiores da Marxis rxismo mo e fil f iloo s o fia fi a da linguage ling uagem m (que, de resto, é uma nos, em Ma obra monumental), mas dominam praticamente toda a argumentação do mais pobre de seus textos, o artigo O que é a linguagem?,
publicado em 1930.
V i r a d a l in g u ís t ic a Destacamos anteriormente que a questão da linguagem marca de modo bastante peculiar a contribuição do Círculo de Bakhtin para o pensamento contemporâneo. A entrada dessa questão nas preocupações do Círculo, por sua vez, foi responsável por dar novas direções ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. Podese dizer, nesse sentido, que ocorre, nos debates destes intelectuais, uma espécie de virada linguística por volta de 1925/1926. Se, como observamos acima, a questão da linguagem aparece apenas esporadicamente e de modo apenas incipiente nos primeiros textos de Bakhtin, seus textos posteriores (do livro sobre Dostoievski
para a frente, isto é, a partir de 1929) se articularão tendo sempre N . U H K a
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como eixo um determinado conceituai sobre a linguagem, que, em termos gerais, está delineado principalmente nos textos assinados por Voloshinov na segunda metade da década de 1920; e que conhecerá alguns importantes desdobramentos em textos de Bakhtin da década de 1930 em diante. Há, portanto, por volta de 1925/1926, uma confluência do Círculo para a temática da linguagem. Nela se casarão as preocupações nucleares de Bakhtin (a temática axiológica, a questão do evento único do Ser e a relação eu/outro), o interesse acadêmico de Voloshinov (que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos) e o projeto deste e de Medvedev de elaborar um método sociológico para os estudos da linguagem, da literatura e das manifestações da chamada cultura imaterial como um todo. Esse casamento de perspectivas na formulação de uma teoria da linguagem mostra, de um lado, a força heurística da pluralidade de pontos de vista que se encontravam no Círculo; e, de outro, vai redirecionar os trabalhos de cada um de seus membros.
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Enquanto Voloshinov vai, até 1930, se concentrar principalmente no detalhamento da teoria da linguagem (com algumas incursões no terreno das questões estéticas), Medvedev, no mesmo período, vai ocuparse com os fundamentos do que ele chama de estudo das ideologiass ((num logia num certo sentido deste term termoo — ver discu discussão ssão adiant adiante, e, no capítulo dois), no interior da qual estará uma poética dita sociológica. O pensamento de Bakhtin, por sua vez, se tornou fortemente sociologizado a partir do livro sobre Dostoievski. Podese dizer que seus grandes temas iniciais permanecem, mas são retrabalhados a partir de um ponto de vista mais sociologicamente articulado, que se alicerça na teoria da linguagem e da cultura que o Círculo vinha formulando nos anos anteriores. O tema da linguagem se tornou tão forte para os membros do Círculo que o próprio Bakhtin, em uma carta dirigida a V Kozhinov
em 1961 (transcrita em Bocharov, p. 1016), afirmou ser a concepção de linguagem o elemento que unia o acima pensamento grupo. A diversidade de interesses que apontamos acaboudopor encontrar na concepção de linguagem seu elemento de convergência. Esse tema da linguagem aparece, pela primeira vez de forma discurso na vida e o discu discurso rso na poesia, mais sistemática, no texto O discurso assinado por Voloshinov e publicado em 1926 na revista Zvezda, 6. É interessante observar que, no ano anterior, este mesmo autor publicara na mesma revista outro artigo e nele não havia nenhuma menção à temática da linguagem. Tratavase de uma apresentação crítica dos fundamentos da psicanálise, tendo como objetivo contraporse a marxistas que faziam a apologia do pensamento freudiano e que tentavam uma acomodação da psicanálise e do marxismo. Esse tema voltará em 1927 na forma de livro (Freudismo), incluindo, agora sim, uma extensa discussão sobre a linguagem, que passa a ter, aliás, um papel nuclear na argumentação do autor. Também no texto de 1926 é claro o objetivo de criticar aqueles marxistas que estariam subscrevendo uma proposta analítica corren-
te (formulada por Sakulin) que dividia o estudo da arte entre uma abordagem imanente (que não poderia ser sociológica) e uma abordagem históricocausal (que deveria ser sociológica). O argumento do texto vai no sentido de que a arte é imanentemente sociológica e, portanto, tal divisão seria contrária aos fundamentos do método marxista — o monismo e a historicidade. Para demonstrar essa sua tese, Voloshinov assume a existência de um chão comum aos enunciados artísticos (poéticos) e aos enunciados cotidianos (isto é L ambos se materializam na grande corrente da interação sociocultural e envolvem tomadas de posições axioló gicas). É importante destacar que esse pressuposto (que será aprofundado por Medvedev em seu livro de 1928 e estará presente em toda a obra posterior de Bakhtin) se contrapõe de modo frontal ao pensamento formalista, que se articulava precisamente sobre uma oposição radical entre linguagem poética e linguagem cotidiana.
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Depois de enunciar aquele pressuposto, Voloshinov desenvolve uma discussão sobre características da linguagem na vida cotidiana, estendendoa, na sequência, à análise do enunciado artístico. É a primeira vez que, em textos do Círculo, se funda uma análise estética sobre uma análise da linguagem, o que será comum nos textos futuros do Círculo e do próprio Bakhtin. Destaquese que a discussão de Voloshinov nesse texto não tem a questão da linguagem propriamente como objeto, mas a questão da literatura. É para elucidar o problema do enunciado artístico que ele inicia uma reflexão sobre o enunciado em geral, partindo, para isso, do enunciado do dia a dia. O que estava lhe interessando, nesse momento, era mostrar que as forças que funcionam num tipo de enunciado são da mesma natureza daquelas que funcionam no outro. Adiante, sem perder de vista a questão do enunciado literário, ele ampliará ampliará suas suas reflexões, envolvendose, inclusive, com uma longa discussão sobre a própria linguística. Por ora, concentrase em fazer frente à teorização dos formalistas, contrapondose a seu conceito de
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“linguagem poética” e à oposição radical que eles estabeleciam entre
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a linguagem dita ordinária e a linguagem dita poética. Nestes mesmos anos de 1925/1926, Medvedev publica dois artigos sobre estudos literários. Num primeiro, discute o pensamento das principais figuras do chamado método formal, que estava em evidência na Rússia na primeira metade da década de 1920. Resenha criticamente artigoss e livros artigo livros de de autores autores como R. Ja Jakob kobson son,, V Chklovski, B. M. Eikhen Eikhen baum, V M. Zhirmunsky e Y. N. Tynyanov (que, digase de passagem, viriam a ser grandes referências dos estudos literários no Ocidente, na década de 1970), apontando as limitações de suas proposições estéticas. Medvedev voltará a essa crítica, aprofundandoa, no seu livro de 1928 — cf. Tezza Tezza (2 (20003) para uma pormenorizada análise análise d doo pensamento pensamento formalista e das críticas do Círculo de Bakhtin àquela estética. Num segundo artigo, Medvedev faz uma crítica às ideias de P. N. Sakulin, que, conforme se podia observar no texto de 1926 de Voloshinov, atraíam alguns estudiosos marxistas. Sakulin propuse-
ra, no início dos anos 1920, numa tentativa de conciliar os estudos literários tradicionais com a poética formalista e com o marxismo, que as obras literárias deveriam ser analisadas por dois métodos distintos: o método formal para o estudo imanente da obra e o método sociológico para o estudo históricocausal (entendido como o estudo das influências do extraliterário). A argumentação de Medvedev, contrária a essa proposta, tem dois eixos: primeiro, primeiro , a tese cara ao Círculo de Bakhtin de que as obr obras as literárias — na medida em que condensam valores sociais em múltiplas dimensões — são sociológicas de ponta a ponta; e, segundo, que a proposta de Sakulin, com seu dualismo, era intrinsecamente incompatível com o marxismo, que é um pensamento monista. Esses quatro artigos são característicos daquilo que se poderia chamar de crítica ideológica, num certo sentido da expressão. Os dois autores, em tom polêmico e cheio de ironias, realizam uma leitura crítica do pensamento de Freud, dos formalistas e de Sakulin,
pondo sob rigoroso escrutínio seus pressupostos e fundamentos. Com base nessa leitura, aproveitam para criticar tanto o marxismo vulgar, quanto pensadores marxistas que buscavam conciliar simploriamente marxismo e psicanálise; ou aceitavam acriticamente uma divisão de tarefas, nos estudos literários, entre o método formal e o método sociológico. Lendo esses artigos sem perder de vista o conjunto da obra como referência, fica claro que tanto Voloshinov quanto Medvedev estavam buscando, pelas críticas aos teóricos de seu tempo, limpar o terreno para, nos anos seguintes, lançar suas próprias teorias, o que acontecerá na forma de livro. Voloshinov voltará, com mais fôlego, ao pensamento freudiano na obra Freudismo: um ensaio crítico, publicada em 1927, e à teoria Marxism rxismoo e filo fi loss o fia fi a d a linguagem lingua gem:: pr prob oblem lemas as da linguagem na obra Ma fund fu ndam amen enta tais is do m ét étod odoo so soci ciol ológ ógic icoo na ciên ci ênci ciaa da lingua linguagem gem,, publicado em 1929 (com segunda edição já no ano seguinte).
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Medvedev, por seu turno, voltará ao pensamento formalista no seu livro O método formal nos estudos literários: uma introdução critica à poética sociológica, publicado em 1928. Nele, o autor busca situar os estudos literários, sob uma perspectiva marxista, no quadro amplo do que ele designa de estudo das ideologias (num certo sentido deste termo, conforme vamos discutir em detalhes no capítulo dois). Tanto este texto quanto Mar Marxism xismoo eefifilo loss o fifiaa ddaa lilingua nguagem gem foram precedidos por artigos que, publicados ambos em 1928 na revista Li Li-teratura i Marxi Marxiszm, szm, resumiam parte da argumentação dos livros: de Medvedev o artigo As tar tarefa efass im imed edia iatas tas d a ciê ciênc ncia ia hi hist stór órico icoli liter terár ária ia (que apareceu no n. 3); e de Voloshinov o artigo As corren correntes tes ma mais is recentes rece ntes do pensa pensamento mento linguí linguístic sticoo no Ocidente (publicado no n. 5). Por fim, Voloshinov, em 1930, publica quatro artigos dentro ainda da temática da linguagem: três em que retoma a teoria do enunciado e um último sobre as fronteiras entre a poética e a linguística, que é, basicamente, uma extensa crítica às concepções do
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linguista russo V V Vinogradov e uma reiteração do quadro conceituai anteriormente elaborado. Mas, nessas alturas, com Bakhtin preso e exilado na Ásia, o Círculo como tal não mais existia. Sobre o pensamento construído em conjunto nos anos 1920, cairá um pesado silêncio de mais de trinta anos. Haverá, sim, retomadas e desdobramentos, mas, agora, na pena solitária de um grande pensador esquecido na província e quase só na forma de manuscritos que nunca se completarão e de notas esparsas em gastos cadernos escolares. Voloshinov morre de tuberculose em 1936 e Medvedev, que fora desde 1919 um homem do aparelho soviético de Estado, desaparece nos expurgos políticos da segunda metade da década de 1930, provavelmente fuzilado em 1940.
F ilósofos o u cientistas? Estabelecer com precisão uma rigorosa distinção entre filosofia e ciência não é, evidentemente, tarefa fácil. Para destacar essa difi-
culdade bastaria, de um lado, mencionar que foi (e é) projeto de alguns filósofos dar à filosofia um caráter científico, apagando, assim, especificidades e fronteiras. Por outro lado, no âmbito das ciências sociais e humanas, há toda uma tradição hermenêutica (com a qual, aliás, Bakhtin se identificava) que opera antes no plano do conceito e da interpretação do que no da prova empírica, aproximandose, portanto, de certo modo de fazer filosofia. Apesar dessa dificuldade, parecenos relevante, para melhor apreciar o pensamento do Círculo de Bakhtin, fazer, neste ponto, uma incursão por esta complexa área. Nosso objetivo é argumentar que esse pensamento é de caráter eminentemente filosófico e não propriamente propriam ente científico. Reconhecer isso traz uma série de consequências fortes para os modos como nos apropriamos dele em nossas reflexões e estudos. Entendemos que muitas das atribulações das tentativas de utilização
desse pensamento decorrem, em boa parte, de ele ser tomado pelo que não é. Quando as primeiras obras de Bakhtin chegaram ao Ocidente (justamente os livros sobre Dostoievski e sobre Rabelais), a recepção inicial o classificou logo como um teórico da literatura. A chegada, poucos anos depois, do texto de Voloshinov sobre a linguagem (incluindo uma extensa discussão crítica das teorias linguísticas correntes em seu tempo) e a confusão sobre a autoria levaram, então, muitos leitores a visualizar um Bakhtin linguista. Contudo, a progressiva divulgação de outros textos, em especial aqueles escritos no início da década de 1920, foi revelando que Bakhtin era, antes de mais nada, um filósofo, face à abrangência de sua temática e os objetivos de sua reflexão. Ele mesmo, aliás, se entendia como tal, conforme revela em entrevista a Viktor Duvakin em 1974 (citada por Caryl Emerson na introdução ao livro organizado por Amy Mandelker). Perguntado se ele era mais um filósofo do que um filólogo, Bakhtin respondeu:
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“Mais um filósofo. E assim permaneço até os dias de hoje. Eu sou um filósofo. Um pensador [myslitel’]” (p. 192, n. 11). Bakhtin não se via, portanto, como um homem de ciência, preso à esteira estreita da positividade e da modelização formal. Pelo seu próprio pressuposto de base (i. e., nunca perder de vista, na reflexão, a eventicidade da existência, do mundo da vida), Bakhtin se colocava fora de uma racionalidade propriamente científica e desenvolvia um modo de pensar m mais ais globalizante — o que, no dizer d dee Emerson (p. 910), seria uma predisposição da própria tradição filosófica russa. Segundo ela, o vocábulo myslitel’ (pensador) tem especiais ressonâncias na cultura acadêmica russa. Um myslitel’ (um pensador) pode ser eclético e excêntrico; ele é mais livre que o cientista para transcender as fronteiras de disciplinas e metodologias estabelecidas. Em suas próprias palavras palavras (p. 10):
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No caso de Bakhtin, o termo sugere uma pessoa que está menos preocupada em aplicar suas ideias à literatura do que em utilizar a literatura, seletivamente e num alto nível de inspiração, para ilustrar suas ideias. É de alguma forma interessante que a autodesignação altiva de Bakhtin e sua trajetória intelectual tenhamse tornado agora marcas identificadoras dele e não suas imperfeições. Para construirmos uma melhor compreensão desse ponto, poderíamos talvez dizer que Bakhtin era um filósofo no sentido heide ggeriano do termo. Heidegger, em suas discussões sobre a ciência moderna, elaborou uma distinção entre um pensamento de natureza filosófica (besinnliches Denken) e um pensamento de natureza científica ( re chnendes Denken). Grossoo m Gross modo, odo, podemos resumila da seguinte forma: no primei-
ro caso, temos um pensamento que busca apreender o mundo em seus sentidos mais amplos. O adjetivo alemão besinnlích pertence à família da palavra sinn (sentido), à qual se alia também o verbo besinnen (refletir sobre, meditar) e poderia ser traduzido por (pensamento) reflexivo, meditativo, cogitativo.
No segundo caso, temos pensamentoasque calcula,Oque com partimentaliza o mundo paraum “examinarlhe contas”. adjetivo rechnend.es está relacionado com o verbo rechnen (calcular) e poderia ser traduzido por (pensamento) calculador, contabilizador. contabilizador. Não há nessa partição nenhuma negação da ciência; apenas uma reflexão que destaca destaca o fato de que o pensamento científic cient íficoo não é a única forma rigorosa de exercício da razão. O besinnliches Denken não só tem lugar, como é indispensável, no sentido de que permite uma reflexão mais livre das amarras dos modelos científicos, admitindo um espectro mais amplo de interpretações, de correlações, de problematizações. Subjacente a essa distinção, há um interesse em não diluir a filosofia na ciência; em preservar as diferenças e especificidades de cada uma dessas formas de conhecimento; e, principalmente, em
estabelecer, num mundo dominado pelo pensamento científico, um espaço para outra racionalidade. Vale repetir aqui que Heidegger expressamente diz, nos Seminários de Zollikon, não haver, naquela distinção, uma hostilidade contra a ciência (p. 122) ciência 12 2),, mas uma crítica crítica à “sua [da ciência] pretensão ao ao absoluto, a ser o parâmetro de todas as verdades”(p. verdades” (p. 136) 13 6).. E ess essaa crítica tem especial significado no conjunto da filosofia heideggeriana, cujo eixo foi precisamente superar o esquecimento do Ser praticado pela metafísica, (re)colocar na agenda filosófica a questão do Ser, do sentido do Ser.
Ora, a ciência como tal não se coloca essa questão mais ampla. Para funcionar, ela precisa, de fato, abandonar o sentido do Ser. Por (Ensaios e conferências, isso, Heidegger, acientífica ciência não pensa no p. 115). diz A racionalidade se funda gesto primeiro de calcu labilizar o mundo, isto é, ela precisa ver o mundo como objetidade calculável para que possa predeterminálo o tempo todo (Seminários, p. 177). Só assim é que a ciência pode instalarse num domínio de objetos e alcançar seus resultados. Não pensar é, portanto, sua vantagem: bastalhe submeterse ao primado do método — “a própria ciência nada mais é do que método” (Seminários, p. 136).
Sobre isso, Heidegger, nos mesmos Seminários de Zollíkon (p. 154), retoma a frase de Nietzsche — “Não é a vitória da ciência que destaca o nosso século XIX, mas sim a vitória do método sobre a ciência” ciênci a” — e oferecelhe oferecelhe uma interpretação dizendo dizendo que o métod métodoo não somente está a serviço da ciência, mas acima dela: a ciência é dominada pelo método. É ele que “determina o que deve ser objeto da ciência e de que maneira ele seja acessível, isto é determinado em sua objetidade”. Assim, o principal não é a natureza, como ela interpela o homem a partir de si, mas o que é determinante é como o homem deve representar a natureza a partir da intenção de dominála. Nessa perspectiva, a questão do Ser, pela sua amplitude, está
fora do alcance da ciência (do rechnendes Denken) e exige outra ra cionalidade (a do besinnliches Denken). Exige não um pensamento operador de calculabilidade, mas um pensamento que pensa o sentido do Ser, um pensamento que “se entrega ao inesgotável do que é digno de ser questionado” (Ensaios, p. 59). Ora, quando observamos o modo de Bakhtin elaborar suas reflexões, nunca vamos encontrálo ocupado em ver o mundo como objetidade calculável e, em consequência, em construir um modelo instrumentalizante de uma análise científica. Em outras palavras, nunca vamos encontrálo ocupado com o rechnendes Denken. Seu interesse está antes posto numa reflexão ampla que se entrega ao inesgotável da existência, ao sentido da criação estética e do Ser da linguagem. Ou, para usar um vocabulário heideggeriano, podemos dizer que Bakhtin não vai ao mundo tomarlhe as contas, mas se deixa interpelar pelo pelo fazer estético, pela literatura e pela linguagem. Sua preocupação, desde o início, com o evêntico, com o único, com o singular, e sua crítica ao teoreticismo são já evidências da direção filosófica e não científica do seu pensamento. Sua explícita recusa, no fim da vida, do estruturalismo e do formalismo (correntes de pensamento que cultivaram precisamente uma espécie de fé cega
na ciência) e sua discussão das ciências humanas como fundamentalmente hermenêuticas reiteram essa direção. Por fim, é curioso observar certo eco heideggeriano avant la lettre na forma como Bakhtin, no texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal (1924), apresenta a construção pela linguística de seu objeto precisamente como um ato de subme têlo (dominálo) metodologicamente. Em suas palavras: Somente desse modo, isolando e liberando o constituinte puramente verbal da palavra e criando uma nova unidade verbal com suas subdivisões concretas, é que a linguística submete metodologicamente seu objeto (p. 292293). E logo adiante:
Somente ao se libertar consistentemente de uma propensão metafísica (da substancialização e objetivização da palavra), de uma sobrepre sença da lógica, do psicologismo e do esteticismo, é que a linguística construiu seu caminho em direção a seu objeto, postulouo metodologicamente e, desse modo, tornouse pela primeira vez uma disciplina científica (p. 293). Num tempo colonizado pela ciência, é compreensível que muitos vão aos textos de Bakhtin (e do Círculo) em busca precisamente de método; aproximemse deles na expectativa de encontrar um modus faci fa cien endi di,, um conjunto de procedimentos para a análise literária e para a análise linguística. O resultado mais visível desse equívoco (isto é, de se tomar os textos do Círculo pelo que não são) é transformar categorias filosóficas em categorias científicas, em categorias de método (polifonia, diálogo, camavalização são, talvez, os casos mais clássicos desse processo).
Mesmo os trabalhos de Voloshinov e Medvedev, comprometidos com o pressuposto de cientificidade do pensamento marxista, dificilmente podem ser lidos como contendo recortes de “objetos calculáveis” e formalizações de proposições de método (sem o que a ciência não pode funcionar). Eles são antes discussões dos fundamentos de uma ciência da linguagem, de uma
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poética sociológica ou de um estudo das ideologias (no sentido que este termo tem nos textos do Círculo). Constituem, portanto, reflexões sobre as condições de possibilidade dessas disciplinas e, desse modo, são textos tipicamente filosóficos, mais próprios do besinnliches Denken. Em suma: ao percorrermos os textos do Círculo de Bakhtin não nos deparamos, em nenhum momento, com a formalização de método científico propriamente dito, mas com grandes diretrizes para construirmos um entendimento mais amplo das realidades sob estudo. Talvez o indicador mais óbvio de ausência de pro jeto je to metodológico sejam se jam as vária váriass classificações c lassificações que, vez por outra, outra,
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encontramos naqueles textos (ver, por exemplo, a terceira parte de M Marx arxism ismoo e fil f iloo s o fia fi a d a lingu lin guag agem em ou o capítulo 5 de Problemas da poética de Dostoievski). Em nenhuma delas, as categorias são definidas com suficiente “objetidade calculável” e aquilo que poderia ser visto como o gérmen de uma proposição de método não passa de um exercício classificatório apenas sugestivo, sempre mal acabado e apresentado como apenas preliminar, esquemático, provisório (e nunca retomado). A construção de um método científico stricto sensu a partir de um besinnliches Denken, embora — em tese — seja possível, não é certamente tarefa fácil, a começar pela própria constituição do ob jetoo teórico: jet teórico: ele precisa ser “calculável calculável””, o que pressup pressupõe, õe, pa para ra su suaa viabilização, a necessária imposição de um recorte algo violento e traumático na realidade do Ser. Em outros termos, a inescapável cal culabilidade científica exige o esquecimento da questão do Ser. Se, porém, acompanharmos Bakhtin em sua concepção hermenêutica das das ciências humanas — que pressupõe um umaa aproximação destas des tas de certo faze fazerr filosófico mais conceitu co nceituai ai e interp interpretativo retativo — talvez o aproveitamento de suas ideias nas nossas reflexões possa se fazer de modo mais produtivo e menos reducionista, conforme, aliás, demonstram os trabalhos de Amorim (2001), Brait (1996) e Jobim e Souza (1994 e 2000).
~_ÊNOAS DO ESPÍRITO E CIÊNCIAS DA NATUREZA Dissemos acima que Bakhtin se identificava com uma tradição hermenêutica nos estudos humanos, uma tradição que entende que o fazer científico nas ciências humanas se materializa por gestos in terpretativos, por contínua atribuição de sentidos (uma espécie de besinliches Denken) e não por gestos matematizadores. Em termos de filosofia da ciência, podemos dizer, então, que Bakhtin se vinculava a um pensamento que costuma operar sobre o pressuposto de uma distinção de fundo entre as ciências naturais e as ciências humanas.
Esse vínculo parece terse constituído a partir de uma leitura crítica dos trabalhos de Wilhelm Dilthey (18331911), pensador alemão que esteve no centro dos debates ocorridos no fim do século XIX e início do XX sobre o estatuto das ciências humanas e sociais, e que será referência constante em todos os desdobramentos posteriores da hermenêutica. Dilthey se posicionou entre aqueles que recusavam a concepção positivista que pretendia reduzir essas ciências às ciências da natureza. Entendia ele que as “Ciências do Espírito” (Geisteswissenschaf ten) se opunham às “Ciências da Natureza” (Naturwíssenschaften) por terem objetos ontologicamente diferentes e, por consequência, métodos diferentes. Segundo Dilthey, o objeto das ciências da natureza (os fenômenos naturais) é estranho ao sujeito cognoscente no sentido de que o ser humano não pode conhecêlo por dentro, a partir do interior; já o objeto das ciências ciências do espírito espírito (o mundo da cult cultura ura)) não é es es-tranho ao sujeito. É por ser o mundo da cultura a expressão de uma vivência humana que o sujeito cognoscente pode aqui conhecer de dentro o objeto, i.e., o sujeito, por pertencer ao mundo da cultura, pode sentilo por dentro, pode ter dele uma percepção íntima, pode reviver e reproduzir a experiência dos outros seres humanos, pode penetrar em seus significados.
Por isso, enquanto metodologicamente o ideal das ciências da natureza é a explicação (encontrar do exterior relações necessárias entre os fenômenos), o das ciências do espírito é a compreensão (captar do interior, por uma experienciação psíquica, por um sentir em conjunto com os outros, os significados das ações humanas). Bakhtin assume boa parte dessas formulações de Dilthey (conforme podemos ler em seu material de arquivo, particularmente suas proonotas de caderno de 19701971 e os esboços sob os títulos O pr blema do texto e Para uma metodologia das ciências humanas), cri-
ticando, porém, o psicologismo inerente ao raciocínio de Dilthey ao
mostrar como ele constituíra um sistema em que o psiquismo tem primazia sobre o universo da cultura. Este é visto como expressão e materialização de consciências individuais, sem dimensão social. Por isso, a compreensão das ações dos outros não passa de um processo de empatia psicológica. Para Bakhtin, ao contrário, a consciência individual se constrói na interação, e o universo da cultura tem primazia sobre a consciência individual. Esta é entendida como tendo uma realidade semiótica, constituída dialogicamente (porque o signo é, antes de tudo, produ duzin zindo do texto e social), e se manifestando semioticamente, i.e., pro o fazendo no contexto da dinâmica histórica da comunicação, num duplo movimento: como réplica ao já dito e também sob o condicionamento da réplica ainda não dita, mas já solicitada e prevista, já que Bakhtin entende o universo da cultura como um grande e infinito diálogo (como veremos no capítulo dois). Em consequência disso, a compreensão não é mera experienciação psicológica da ação dos outros, mas uma atividade dialógica que, diante de um texto, gera outro(s) texto(s). Compreender não é um ato passivo (um mero reconhecimento), mas uma réplica ativa, uma resposta, uma tomada de posição diante do texto. Bakhtin, então, entende as ciências humanas (as ciências que tratam da criação ideológica, nos termos postos por Medvedev em seu livro sobre o formalismo) como ciências do texto. Diz ele que as
ciências naturais constituem uma forma de saber monológico em que o intelecto contempla uma coisa muda e se pronuncia sobre ela, enquanto as ciências humanas constituem uma forma de saber dialógico em que o intelecto está diante de textos que não são coisas mudas, mas a expressão de um sujeito. Deve ficar claro que a atividade científica em qualquer área, como dimensão do universo da criação ideológica, produz texto e, portanto, é sempre uma atividade dialógica. O que Bakhtin procura destacar é um aspecto diferenciador que ele vê entre as ciências na
relação com o objeto: uma relação monológica nas ciências naturais (porque o objeto é mudo) e uma relação dialógica nas ciências humanas (porque o objeto é o texto, a expressão de alguém). Em outras palavras, nas ciências naturais um sujeito contempla e fala sobre uma coisa muda; nas ciências humanas, ao contrário, há sempre, pelo menos dois sujeitos: o que analisa e o analisado. Ou seja: nestas ciências, o intelecto contempla textos, isto é, conjuntos de signos (verbais ou não), produtos de um sujeito social e historicamente localizado. No primeiro caso (ciências naturais), há uma relação sujeito/ob jeto;; no segu jeto segund ndoo caso (ciência (ciênciass hu human manas), as), há um umaa rela relaçã çãoo suje sujeito ito/ /su su- jeito, jeit o, na m medi edida da eem m qque ue o objeto é o tex texto to de alg algué uém m e Bakhtin Bakhtin recus recusaa sempre a reificação do texto: atrás do texto há sempre um sujeito, uma visão de mundo, um universo de valores com que se interage. Diz mais Bakhtin: as ciências humanas se debruçam sobre a significação, por isso trabalham com a compreensão e não com a explicação. Esta, segundo ele, implica uma só consciência, um só sujeito; aquela, duas consciências, dois sujeitos. Enquanto a explicação aponta para o necessário (i.e., o intelecto contempla as coisas mudas em busca de relações necessárias), a compreensão aponta para o possível, porque é uma operação sobre o significado que, sendo em grande parte efeito da interação, do encontro de cosmo visões e orientações axiológicas, envolve sempre uma dimensão de pluralidade. Desvelamse, nessa operação, aspectos semânticos não
reiteráveis do signo, decorrentes justamente do fato de sua produção e recepção serem sempre contextualizadas (singulares, evênticas). O limite da exatidão nas ciências naturais é a identidade (a garantia de controle da natureza, fundada no pressuposto da necessidade das relações, é justamente a reprodutibilidade do experimento); nas ciências humanas, a exatidão consiste na capacidade de não fundir em um só os dois sujeitos; ou, nas palavras de Bakhtin, de sobrepujar
outro a alteridade quea ém sem transformar em qualquer coisa que é p paa r a sidaquilo (P (Par araa um uma met etod odol olog ogia iaoda das s ciê ciênc ncias ias human humanas, as, p. 169)2.
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Marilia Am orim , em seu livro 0 pesqu pesquii sad sador or ee seu outro: B akht akhtii n nas ci ciê ências nci as h huma uma nas, explora, de maneira rica e interessante, essa concepção bakhtiniana das ciências humanas como espaço de tensão dialógica.
CAPÍTULO DOIS
CRIAÇÃO IDEOLÓGICA E D1ALOG1SMO
U m a t e o r i a m a t e r i a l i s t a d a CHAMADA CRIAÇÃO IDEOLÓGICA
C
omo vimos no capítulo anterior, Voloshinov e Medvedev tinham como projeto intelectual explícito, em seus trabalhos da segunda metade da década de 1920, contribuir criticamente para a construção de uma teoria ? ideoló ide ológica gica. . de base marxista da criação
Voloshinov se concentrou na questão da linguagem, desenvolvendo basicamente dois pontos: uma discussão crítica dos estudos linguísticos de sua época (em especial em seu livro Marxis Marxismo mo e filo fi loss o fifiaa da d a linguagem) e a apresentação da tese de que os enunciados do cotidiano e os enunciados artísticos têm tê m um chão comum c omum — estão ambos ambos no interior da gran grande de corrente da comunicação sociocultural e têm ambos uma dimensão
axiológicosocial em sua significação (ver seus artigos O discurso na vida e o discurso discurso na poe poesia sia e As fr fron onte teira irass entre poét po étic icaa e linguística). Voloshinov envolveuse também com a temática da subjetividade, desenvolvendo uma discussão crítica da psicanálise (em especial em seu livro Freudismo) e da psicologia de seu tempo (ver particularmente o cap. 13 de Ma Marxi rxism smoo e fifilo loss o fifiaa d a linguag ling uagem em e o cap. 12 de Freudismo) e formulando um conceituai sociológico sobre a
natureza da consciência. Medvedev, por sua vez, direcionou sua reflexão para o estudo da literatura, tendo como ponto de partida uma pormenorizada crítica das ideias dos formalistas. Nos capítulos 1 e 2 de seu livro O método form for m al nos estudos estudos literários, Medvedev, depois de apresentar o estudo da literatura como um ramo dos estudos da criação ideológica, traça o que poderia ser lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e sóciohistórica do universo da criação ideológica. Como ideologia é uma palavra “maldita” (pelas incontáveis significações sociais que pode veicular), veicular), é importan importante te — par paraa evit evitar ar costumeiros malentendidos — deixar deixar claro o senti sentido do que ela tem nnaa obra de Medvedev (e, de fato, de todo o Círculo de Bakhtin). Nos textos do Círculo, a palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do “espírito” humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual herança desocial um pensamento idealista); e, igualmente, de (talvez formascomo da consciência (num vocabulário de sabor mais materialista). Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o
universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar certa terminologia da tradição marxista). A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade de esferas da produção imaterial (assim, a arte, a ciência, a filosofia, o
direito, a religião, a ética, a política são as ideologias). É com esse uso no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo que o estudo da literatura é um ramo do estudo das ideologias, com este abarcando todas as áreas da criatividade intelectual humana citadas acima. Esses termos (ideologia, ideologias, ideológico) não têm, portanto, nos textos do Círculo de Bakhtin, nenhum sentido restrito e nega-
tivo. Será, portanto, inadequado lêlos nestes textos com o sentido de “mascaramento do real”, comum em algumas vertentes marxistas. Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo, a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico — para eles, eles, não existe enunciado nãoideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). Voloshinov, ao iniciar seu livro Ma Marxis rxismo mo e fifilo loss o fifiaa d a lin guage gu agem, m, também identifica ideologia com o universo da produção imaterial humana. Diz ele que “as bases de uma teoria marxista das ideologias — as bases para os estudos do conhecimento científico, da literatura, da religião, da moral etc. — estão estreitamente ligadas aos problemas da filosofia da linguagem” (p. 9). E, logo adiante, dirá que tudo o que é ideológico (isto é — entendasee bem — , todos os produtos da tendas da cultura dita dita imaterial) possui possui significado; é, portanto, um signo. E conclui com a afirmação de que “sem signos não existe ideologia” (p. 9), querendo com isso dizer que o universo da criação ideológica é fundamentalmente de natureza semiótica, afirmação reiterada na página seguinte: O domínio da ideologia coincide com o domínio dos signos. Eles são mutuamente correspondentes. Ali onde um signo se encontra,
encontrase também ideologia. Tudo o que é ideológico possui valor semiótico (p. 10). É essa identificação do ideológico com o semiótico que vai dar ao Círculo o fundamento para construir sua teoria materialista para o estudo dos processos e produtos da cultura imaterial; o fundamen-
to de sua filosofia da cultura. Voltando texto deinadequadas Medvedev, todas observamos que, como ponto de partida, ele ao considera as abordagens positivistas e idealistas da criação ideológica. As primeiras, porque se perdem num empiricismo atomista (concentramse no estudo dos objetos ideológicos — obras de arte, por exemplo — tomandoos isoladamente, desaguando num detalhismo sem sentido ou numa fetichi zação do artefato). As segundas, porque entendem toda a criação ideológica ou como produto de uma consciência individual isolada; ou como localizada no reino de “puras ideias”, “puros valores”e “formass transce ma transcendentes” ndentes” (p.4). Para Medvedev, ambas as abordagens perdem de vista o fato de que a criação ideológica é sempre social e histórica, não podendo, por isso, ser reduzida nem à sua superfície empírica (como se fosse um rol de meros fenômenos isolados), nem fechada e autocontida no mundo de uma consciência individual ou no reino das “puras ideias”. Pelo seu caráter intrinsecamente sóciohistórico, a criação ideológica exige, para ser estudada, um conceituai e um método de natureza sociológica, para cujo delineamento ele se propõe contribuir. Nesse processo, lembra, de saída, que todos os produtos da criação ideológica são objetos dotados de materialidade, isto é, são parte concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres humanos (não se podendo estudálos, portanto, desconectados dessa realidade). E existem como co mo tal corporificados em algum material material semiótico definido (i. e., numa determinada linguagem — tomado o termo aqui em sentido amplo), ou seja, um produto da criação ideológica é sempre um signo.
E, para Medvedev (como para todo o Círculo de Bakhtin), os! signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados j no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o ' intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de relações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem,
assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológi cos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas por um sistema formal abstrato. Para estudálos, é indispensável situálos nos processos sociais globais que lhes dã dãoo significação significação.. Por outro lado, Med Medvedev vedev expõe outra premissa fundamental f ! para seu raci raciocín ocínio io (e p para ara o pensamento do Círculo como um todo): I nós, os seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas, j com a rea realid lidad ade. e. To Toda dass as noss nossas as rela relaçõe çõess com nos nossas sas condições de ! existên existência cia — com noss nossoo ambie ambiente nte nnatu atural ral e cconte ontextos xtos so socia ciais is — só j ocorrem semiotic semioticamente amente me media diadas das.. Viv Vivem emos, os, de fat fato, o, num mun mundo do j de ling linguag uagens ens,, sig signo noss e sign significa ificaçõe ções. s. Em outros termos, o real nunca nos é dado de forma direta, crua, em si. Sobre isso, Bakhtin já dizia, em Para uma fi filoso losofic fic^do ^do ato, que “O dado puro não pode ser realmente experienciado”^(p. 32).). Nó 32 Nóss nos relacionamos com c om um real inform informado ado em matéria matéria signi \ficante, isto é, o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos, \quando semioticizado. E mais: como a significação dos signos envolve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é Isempre atravessada por valores. Bakhtin, em O discurso no romance (p. 276), apresenta este pressuposto do Círculo, dizendo que qualquer palavra (qualquer enunciado concreto) encontra o objeto a que ele se refere já recoberto de qualificações, envolto por uma atmosfera social de discursos, por uma espécie de aura heteroglóssica (i.e., por uma densa e tensa camada de discursos). A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas palavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos
e d
sociais que recobrem as coisas. Essa relação palavra/coisas, diz este autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilidades socioverbais que conceitualizam as coisas ( p. 277).
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Essa concepção é, então, apresentada na sequência do texto
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O C A R A F O T R E B L A S O L R A C
pela bela figura do raio de luz: Se nós imaginarmos a intenção de uma tal palavra, isto é, sua dire cionalidade para o objeto1, na forma de um raio de luz, então o jogo vivo e irrepetível de cores e luz nas faces da imagem que ele constrói pode ser explicado como a dispersão espectral da palavraraio, não no interior do objeto em si (...), mas antes como sua dispersão espectral numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor e acentos através da qual o raio passa em seu caminho em direção ao objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca o objeto, faz as faces da imagem cintilar (p. 277). É nesse sentido que os textos do Círculo vão dizer recorrentemente, que os signos não apenas refletem o mundo (não são apenas um decalque do mundo); os signos também (e principalmente) refratam o mundo. Em outras palavras, o Círculo assume que o processo de transmutação do mundo em matéria significante se dá sempre atravessado pela refração dos quadros axiológicos.
A DOUTRINA DA REFRAÇÃO No processo de referenciação, realizamse, portanto, duas operações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. Quer dizer: com os signos podemos apontar para uma realidade que lhes é externa (para a materialidade do mundo), mas o fazemos sempre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos 1 Note-se Note-se que que Bakh Bakhti tin, n, nest nestee texto, texto, usa div diver ersas sas vezes vezes a pala palavra vra intenção intenção no sent sentid idoo filosófico de intencionalidade (termo corrente na fenomenologia), isto é, de direciona- lidade para um objeto e não no sentido mais comum de desejo, vontade, propósito.
— na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos — diversas interpretações (refrações) desse mundo. Nessa mesma direção, Medvedev dirá que “no horizonte ideológico de uma época
ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente contraditórias” (p. 19). várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos quaisEssas o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias) aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar sentido ao mundo (de rejratálo), que vão se materializando e se entrecruzando no mesmo material semiótico.
A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na concepção do Círculo de Bakhtin. Em outros termos, para o Círculo, não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a un^ mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de valorações e interesses sociais. Em outras palavras, a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos. Sendo essas experiências múltiplas e heterogê neas, os signos não podem ser unívocos (monossêmicos); só podem ser plurívocos (multissêmicos). A plurivocidade (o caráter multis sêmico) é a condição de funcionamento dos signos nas sociedades humanas. E isso não porque eles sejam intrinsecamente ambíguos, jmas jm as fun fundam damental entalmen mente te porq porque ue sign significam ificam de desliza slizando ndo ent entre re múlü múlü plos quadros semânticoaxiológicos (e não com base numa semântica única e universal).
Como vimos acima, cada uma dessas várias semânticas se articula, organiza sua arquitetônica (aproveitando um termo e conceito do Bakhtin dos primeiros textos), nos processos de atribuição de
diferentes valorações aos entes e aos eventos, às ações e às relações do vasto espectro das experiências históricas de qualquer grupo humano e decorrem da heterogeneidade dessas experiências. A dinâmica da história, em sua diversidade e complexidade, faz cada grupo humano, em cada época, recobrir o mundo com diferentes axiologias, porque são diferentes e múltiplas as experiências que nela se dão. E essas axiologias participam, como elementos constitutivos, dos processos de significação, daí resultando as inúmeras semânticas, as várias verdades, os inúmeros discursos, as inúmeras línguas ou vozes sociais (na terminologia de Bakhtin em seu texto O discurso no romance) com que atribuímos sentido ao mundo. Essa plurivalência social dos signos é o que, segundo Medvedev, os toma vivos e móveis. É ela que dá dinamicidade ao universo das significações, na medida em que as muitas verdades sociais se encontram e se confrontam no mesmo material semiótico semiótico e no mesmo signo. O mate material rial semiótico pode ser o mesmo, mas sua significação no ato social concreto de enunciação, dependendo da voz social em que está ancorado, será diferente. Isso faz da semiose humana uma realidade aberta e infinita. Anteriormente, em O problema do conteúdo, do material e da fo r m a na ar arte te verb ve rbal al (1924), Bakhtin, embora ainda não falando em termos dedas signos e semiose,quando já fazia referência a essa dinamicidade do universo significações, apresentava qualquer ato da criação ideológica como vivendo essencialmente nas fronteiras (p. 274). Para ele, um domínio cultural (uma esfera da criação ideológica) não deve nunca ser pensado como tendo uma espécie de todo espacial (um território interno), mas deve ser visto como vivendo sempre na intersecção de múltiplas fronteiras. E isso porque cada ponto de vista criativo (que implica impli ca sempre uma tomada de posição axiológica) tomase necessário e indispensável somente em correlação com outros pontos de vista criativos (com outras posições axiológicas).
Essa dinamicidade intrínseca ao universo da criação ideológica (ao universo das significações) será recoberta, em textos futuros,
pela metáfora do diálogo (que tantas confusões tem gerado e à qual voltaremos adiante). Neste ponto, é importante deixar registrado que a reação ao caráter infinito (centrífugo) da semiose humana será parte inerente ao jogo estancar, dos poderes As vontades sociais de poder tentarão sempre por sociais. gestos centrípetos, aquele movimento: tentarão impor uma das verdades sociais (a sua) como a verdade; tentarão submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidão de discursos); monologizar (dar a última palavra); tornar o signo monova lente (deter a dispersão semântica); finalizar o diálogo.
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Contudo, Bakhtin, ao fim de sua vida, talvez lembrando suas discussões sobre a carnavalização e seu conceito de plurilinguismo dialogizado (ver adiante), terminará seu último manuscrito com a seguinte observação: Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é, aqueles que nasceram no diálogo dos séculos passados, não podem nunca ser estabilizados estabilizados (finalizados, (finalizados, encerrados encerrados de uma vez por to das) — eles sempre se modificarão (serão renovados) no desenrolar subsequente e futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de
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sentidos contextuais em determinados desenrolar posterior esquecidos, do diálogo mas eles são relembrados emomentos receberão do vigor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retomo. O problema da grande grande temporalidade temporalidade (p. 17 170) 0)..
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Numa síntese da discussão anterior, podemos dizer que para Medvedev o universo da criação ideológica tem um caráter material
(é parte concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres
humanos), histórico (não pode ser reduzido a processos fisiológicos e psicológicos de indivíduos isolados) e sociossemiótico (se corpori fica em signos, emergindo e significando nos complexos processos do intercâmbio social). Além disso, os como os processos semióticos só refletem o mundo refratandoo, signos são espaços de encontro e confronto de diferentes índices sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e movimento, caracterizando o universo da criação ideológica como uma realidade infinitamente móvel. Voloshinov, em seu livro Ma Marxism rxismoo e filo fi loss o fia fi a d a ling linguag uagem em (em especial nos cap. 12 e II4), ao discutir a significação, voltará a enfatizar o pressuposto forte do Círculo de que a enunciação de um signo é sempre também a enunciação de índices sociais de valor, isto é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorrem da possibilidade de sua ancoragem em diferentes quadros semântico axiológicos, em diferentes horizontes sociais de valores. Esses efeitos de sentido do signo não podem ser entendidos como constituídos por uma espécie de plu pluss conotativo que se sobreporia a uma base denota denotativa. tiva. Voloshinov (cap. II II4 4)) — coerente com co m a doutrina da refração semiótica, elaborada pelo Círculo — rejeita essa dicotomia tradicional, por dois motivos: primeiro, ela separa e hierarquiza o que não está separado nem hierarquizado na significação do signo, isto é, ela opera com uma separação entre um centro denotativo e margens conotativas, quando, pelo fato de a semiose sempre refratar, o signo é necessariamente pluriacentuado e plurívo co; ele pode ser sempre outro. E, segundo, ela pressupõe, no fundo, uma semântica universal, um ponto de unicidade semântica, uma garantia preestabelecida no código, o que, face à refração semiótica, é uma impossibilidade. Também naquele livro (cap. 12 e II4), Voloshinov faz referência à dinamicidade da semiose (e, portanto, de todo o universo da
criação ideológica), dando destaque à “luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência” (p. 122). Lembra que qualquer elemento da realidade que, por decorrência de condições socioeco nômicas de determinado grupo humano, entra no horizonte social daquele grupo, é recoberto de índices sociais de valor e, nessas condições, tornase objeto do dizer daquele grupo. Esses novos aspectos da existência, integrados no círculo dos interesses sociais, não coexistem pacificamente com outros elementos da existência a ela previamente integrados, mas entram em luta com eles, submetemnos à reavaliação, e deslocam sua posição no interior da unidade do horizonte avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na geração de propriedades semânticas na língua. Uma nova significação emana de uma velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo que a nova significação pode entrar em contradição com a velha e reestruturála (p. 106). Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, já antecipa essa discussão, embora ainda num vocabulário pouco sociologizado, quando diz (p.3233) que uma palavra viva não conhece um objeto como algo totalmente dado: o simples fato de que eu ter começado a falar sobre ele já significa que assumi certa atitude em relação a ele — não uma atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E é por isso que a palavra não apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também expressa, por sua entonação, minha atitude valorativa em relação ao objeto, em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimentao em direção do que ainda está por ser determinado nele, transformao num momento constituinte do evento vivo, em processo. O mesmo Bakhtin, em O discurso no romance, nos reapresenta o tema da refração, caracterizandoa como a atmosfera multidiscur siva que recobre qualquer objeto (tomado este termo aqui em sentido amplo) da realidade, dando a ele múltiplos nomes, definições e julgamentos de valor. E, para elucidar essa complexa questão, usa algumas figuras interessantes.
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Apresenta a refração, por exemplo, como o emaranhado de milhares de fios dialógicos tecidos pela consciência socioideolõgica (isto é, pelo todo da criação ideológica) em torno de cada objeto. Ou, como a multidão de rotas, estradas e caminhos traçados pela consciência socioideológica em cada objeto. Ou, ainda, como a torre de Babel que cerca todo e qualquer objeto. Para designar essas múltiplas refrações do objeto (esses múltiplos discursos sociais), Bakhtin introduz, nesse texto, a expressão vozes sociais ou línguas sociais, entendendoas como complexos semiótico axiológicos com os quais determinado grupo humano diz o mundo.
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Nesse sentido, Bakhtin explicitamente apresenta, nesse mesmo texto (p.271), o modo como olha para a linguagem: não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma realidade axiologicamente saturada; não como um ente gramatical homogêneo, mas como um fenômeno sempre estratificado. E estratificado não apenas no sentido mais comum do termo nos estudos linguísticos (isto é, as estratificações visíveis nas marcas dialetais stricto sensu, aquelas decorrentes do tempo, da distribuição geográfica e social dos falantes), mas fundamentalmente pela saturação da linguagem pelas axiologias sociais, pelos índices sociais de valor. Lembremos que, até o fim da década de 1920 (período em que está se elaborando esse conceituai do Círculo de Bakhtin), a ciência da linguagem linguagem verbal — embora estivess estivessee const construindo, ruindo, numa certa esfera, uma teorização que pressupunha um objeto unitário e homogêneo — já vinha trabalhando com a perspectiva da heterogeneidade em pelo menos duas direções: a da estratificação temporal (quer dizer, o tempo diversifica; as línguas se diferenciam no eixo temporal); e a da estratificação espacial (quer dizer, a distribuição geográfica dos falantes gera diversidade; é possível, portanto, correlacionar formas diferentes e geografias diferentes). mesmo te mesmo tempo, mpo, a ciência da linguagem verbal jádiferentes, estabelecer estabelecera que aAo estratificação geográfica poderia refletir tempos noa
sentido de que alguns dialetos são mais conservadores e outros mais inovadores e têm percursos históricos diferentes. Articulavamse aí as duas estratificações. Já se perceber perceberaa também que o contato eentr ntree as lín língu guas as em ce certa rtass circunstâncias era também fator de diversificação, resultando, muitas vezes, no desenvolvimento dos pidgins e dos crioulos. Contudo, a ciência da linguagem verbal se ocupava (e se ocupa) fundamentalmente da estratificação das formas gramaticais. Seu interesse era (e continua sendo) correlacionar formas gramaticais com o tempo e o espaço geográfico. Na década de 1960, a criação da sociolinguística veio acrescentar a essas duas estratificações uma terceira: aquela que estabelece uma correlação sistemática entre as formas gramaticais e a estrutura social. E disso resultou maior percepção da complexo complexidade das línguas, isto é, um elas grau passam a serdevistas como um emaranhado das diferentes estratificações, emaranhado em que se correlacionam as variações geográficas, sociais e temporais. Ora, o Círculo de Bakhtin, na década de 1920, vai apontar para uma estratificação não propriamente e apenas de formas gramaticais (o signo pode ser materialmente o mesmo), mas para uma estratificação dada por diferentes axiologias, dada pelo processo sóciohistó rico de saturar a linguagem de índices sociais de valor. Nesse_sentido, aquilo que chamamos de língua não é só um conjunto difuso de variedades geográficas, temporais e sociais (como nos ensinam a dialetologia, a linguística histórica e a sociolinguística). Todoesse universo de variedades formais está também atravessado por outra estratificação, que é dada pelos índices sociais de valor oriundos da diversificada experiência sóciohistórica dos grupos sociais. Aquilo que chamamos de língua é também e principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais. A multidão de vozes sociais caracteriza o que tecnicamente se tem designado de heteroglossia (ou plur plurilin ilingui guism smo) o) — term termoo que que,,
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como veremos adiante, é muitas vezes tomado equivocadamente, em autores que fazem referência ao pensamento de Bakhtin, como polif lifon onia ia.. equivalente a po
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H e t e r o g l o s s i a d i a l o g i z a d a Naquele mesmo texto da década de 1930 (O discurso no romance), Bakhtin, além de apresentar a questão da heteroglossia, dá especial destaque àquilo que é também um elemento forte do pensamento do Círculo: a dinamicidade semiótica (que ele chama aqui de heteroglossia heteroglo ssia dialogizad dialogizadaa ou plu pluril riling inguis uismo mo di dial alog ogiz izad adoo *— p. 272). Para Bakhtin, importa menos a heteroglossia como tal e mais a dialogização das vozes sociais, isto é, o encontro sociocultural dessas vozes e a dinâmica que aí se estabelece: elas vão se apoiar mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicitamente e assim por diante. Em outras palavras, “o verdadeiro ambiente de um enunciado” (p. 272) é o plurilinguismo dialogizado (são as fronteiras) em que as vozes sociais se entrecruzam continuamente de maneira multiforme, processo em que se vão também formando novas vozes sociais. Para caracterizar, então,isto aquilo é uma das pedras das teorizações do Círculo, é, aque dinâmica inerente aoangulares universo da criação ideológica, o jogo de forças que torna esse universo vivo e móvel, o Círculo de Bakhtin adotou a metáfora do diálogo. Tal metáfora parece bem adequada para representar a dinamicidade do universo da cultura (para fundar uma filosofia da cultura), se considerarmos que o Círculo vê as vozes sociais como estando numa intrincada cadeia de responsividade: os enunciados, ao mesmo tempo que respondem ao já dito (“não há uma palavra que seja a primeira ou a última”), provocam continuamente as mais diversas respostas (adesões, recusas, aplausos incondicionais, críticas, ironias,
concordâncias e dissonâncias, revalorizações etc. — “não há limites para o contexto dialógico”). O universo da cultura é intrinsecamente responsivo, ele se move como se fosse um grande diálogo. Voloshinov, anteriormente, já aponta nessa mesma direção, quando diz, no capítulo II2 de seu livro, que cada enunciado é uma resposta, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo; é um elo da corrente ininterrupta da comunicação sociocultural. E, ao mesmo tempo que responde (no sentido de tomar uma posição socioaxiológica), espera uma resposta (espera que outros assumam uma posição socioaxiológica frente ao dito). Todo dizer é, assim, parte integrante de uma discussão cultural (axiológica) em grande escala: ele responde ao já dito, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio etc. Bakhtin detalha, agora, essedamodo de percepção daodinâmica da criação ideológica e passa a falar dialogicidade de todo dizer. E essa dialogicidade é apresentada em três dimensões diferentes (p. 276ss.): a) tod todoo dizer não po pode de deixar de se orientar pa para ra o “j á dito” dito”.. Nesse sentido, todo enunciado é uma réplica, ou seja, não se constitui do nada, não se constitui fora daquilo que chamamos hoje de memória discursiva; b) todo dize dizerr é orientado pa ra a res respost posta. a. Nesse sentido, todo enunciado espera uma réplica e — mais — não pode esquivarse à influência profunda da resposta antecipada. Neste sentido, possíveis réplicas de outrem, no contexto da consciência socioaxiológica, têm papel constitutivo, condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, é intrínseco ao enunciado o receptor presumido, qualquer que seja ele: o receptor empírico entendido em sua heterogeneidade verboaxiológica, o “auditório social” (cf., de Voloshinov, Marx Ma rxism ismoo e f i lo s o fia fi a d a linguag ling uagem em,, p. 8586; ou A const co nstrurução do enunciado, p. 122123), ou o “superdestinatário” (o “terceir terceiro” o” — nos termos discutidos po porr Bakhtin em O p pro robl blem em a do text texto, o, p.126);
c) todo dize dizerr é internament internamentee díalogíz díalogízado: ado: é heterogêneo, é uma n i t h k a
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articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas múltiplas vozes. Essa dialogização interna será ou não claramente
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mostrada, isto é, o dizer alheio será ou não destacado como tal no enunciado— ou, par paraa usa usarr um umaa figu figura ra reco recorrente rrente em Bakhtin, será aspeado ou não, em escalas infinitas de graus de alteridade ou assimilação da palavra alheia (conforme problem lemaa do text texto, o, p. 120121). diz ele no manuscrito O prob
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Há, portanto, uma grande identificação do pensamento do Círculo de Bakhtin com a metáfora do diálogo. E isso a tal ponto que já se tornou habitual e gene general raliza izado do de desig signa narr es esse se pensa pensamen mento to pel peloo termo díalogismo. A palavra diálogo, contudo, tem várias significações sociais, o que
pode afetar a recepção do pensamento do Círculo. O próprio Bakhtin, como veremos abaixo, criticou, em vários momentos, a idéia de um dialogismo estreito. É preciso, por isso, neste ponto, fazer até mesmo um esforço de compreensão do sentido de diálogo nos trabalhos do Círculo para termos condições de explorar seu poder heurístico. A palavra diálogo designa, comumente, determinada forma composicional em narrativas escritas, representando a conversa dos personagens. Pode designar também a sequência de fala dos personagens no texto dramático, assim como o desenrolar da conversação na interação face a face. Os membros do Círculo de Bakhtin não são teóricos do diálogo nesses sentidos. Não lhes interessa o estudo da formadiálogo como tal, seja na composição escrita ou no texto dramático, seja na interação face a face. Desse modo, não constitui objeto de suas preocupações
observar a maneira como se dá a troca de turnos entre participantes de uma conversa, como faz hoje, por exemplo, a chamada análise da conversação. Nem desenvolver um estudo de práticas conversa cionais de um grupo humano qualquer, como se faz, por exemplo, desde a década de 1960, na chamada etnografia da fala ou da comunicação — por mais interessantes que possam ser essas análises. Em seu manuscrito O problema do texto (provavelmente escrito em 1959/1960), Bakhtin diz (p. 124) sobre isso: O diálogo concreto (a conversação cotidiana, a discussão científica, o debate político, e assim por diante). As relações entre réplicas de tais diálogos são um tipo mais simples e mais externamente visíveis de relações dialógicas. As relações dialógicas, no entanto, não coinci dem de modo algum, é claro, com relações entre réplicas do diá logo concreto — elas são muito mais amplas, mais variadas e mais
complexas (destaque acrescido). Portanto, o evento do diálogo Portanto, diálogo face a face (aquilo que eles chamam, em vários momentos, de diálogo em sentido estrito do termo) estará no foco de atenção do Círculo, mas não como forma composicional e sim como “ um documento sociológico altamente interessante’\(conforme se pode ler em Probl Problemas emas da poética poétic a de Dosto Dostoievs ievski ki — apêndice I, p. 280), isto é, como um espaço em que mais diretamente se pode observar a dinâmica do processo de interação das vozes sociais. Em outras palavras, podemos dizer que, no caso específico da interação face a face, o Círculo de Bakhtin se ocupa não corri o diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali. Interessamlhe, de fato, as forças que se mantêm constantes em todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e fugazes do cotidiano, até as obras mais elaboradas do vasto espectro da criação ideológica. O que lhes interessa é aquilo a que Voloshinov se refere como o “colóquio ideológico em grande escala” (Marxismo efilosofia efilos ofia da ling linguag uagem em,, p. 95 95)) ou que Bakhtin chama de “o simpósio universal” (Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 293).
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Assim, o evento do diálogo face a face só interessa como um dos muitos eventos em que se manifestam as relações dialógicas — que são mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efetivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas nesse sentido lato (“mais amplas, mais variadas e mais complexas”). Sob essa perspectiva, o diálogo face a face vai também interessar ao Círculo como um dos espaços em que se dá, por exemplo, o en trecruzamento das múltiplas verdades sociais, ou seja, como um dos muitos espaços em que ocorre diálogo no sentido amplo do termo, isto é, a confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relação.
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O Círculo, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo S
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modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultural de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência socioideológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes forças dialógicas (as forças da heteroglossia dialogizada). Isso não significa que o Círculo não distinga as especificidades de cada um desses espaços de vida da consciência socioideológica. Boa parte de seus textos vai precisamente no sentido de estudar essas especificidades, em especial no que diz respeito à criação literária. No entanto, é característica do pensamento do Círculo o contínuo reportarse às práticas do cotidiano, valorizandoas como espaços em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais elaborada e as fontes da sua contínua renovação. As raízes dessa valorização do cotidiano estão certamente no envolvimento filosófico inicial de Bakhtin com o mundo da vida (cf., em especial, Para uma filosofia filos ofia do ato), mas também no embate do Círculo com a poética dos formalistas — que se sustentava precisamente numa radical distinção entre a linguagem poética e a linguagem do cotidiano.
Para Bakhtin e o Círculo, ao contrário, tratase de aproximálas porque nelas, no fundo, estão em funcionamento as mesmas forças: estão ambas situadas na grande corrente da comunicação sociocultural e nas duas se materializam tomadas de posição axiológicas e relações dialógicas (cf., em especial, a discussão de Medvedev sobre for m al nos estudos estudos literários ). essa questão no cap. 5 de O método form Voloshinov, nesse sentido, explicita uma distinção — que aparecerá mais à frente também no texto de Bakhtin O problema dos gêner gê neros os do discur disc urso so (do início da década década de de 1950 19 50)) — entre dua duass esferas da criação ideológica: a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos constituídos (cf. em especial Mar Marxism xismoo e fifilo loss o fifiaa d a lin guage gu agem, m, p. 1921 e p. 91 92). A primeira esfera compreende a totalidade das atividades so cioideológicas centradas na vida cotidiana, desde os mais fortuitos eventos (um acidental pedido de informação na rua) até aqueles que se associam diretamente com os sistemas ideológicos constituídos (a leitura de um romance, por exemplo). A segunda esfera compreende a totalidade das práticas socioi deológicas culturalmente mais elaboradas, como as artes, as ciências, o direito, a filosofia, a religião etc. Obviamente, Voloshinov não entende estas duas esferas como realidades independentes, mas em estreita interdependência. Ele vê a esfera dos sistemas ideológicos constituídos como se consolidando a partir das práticas da ideologia do cotidiano e, ao mesmo tempo, se renovando continuamente por meio de um vínculo orgânico com estas mesmas práticas que abrigam, segundo ele, os indicadores primeiros e mais sensíveis das mudanças socioculturais e ainda mais, [indicadores] de mudanças ainda em processo processo de incremento, ainda sem um formato definido e não ainda amoldados em sistemas tem as ideológicos já regularizado regularizadoss e integralmente integralmente definidos definidos (p. (p. 19). Essas mudanças socioculturais vão encontrar, mais tarde, sua expressão nas produções ideológicas mais elaboradas que, por sua
vez, acabam por exercer uma forte influência sobre as práticas do cotidiano. Em cada uma dessas esferas, desenvolvese, em cada época e em cada grupo social, um conjunto de gêneros de formas da comunicação socioideológica (p. 20) — que Bakhtin chamará adiante de gêne gê nero ross do di disc scur urso so,, distinguindo os gêneros primários (aqueles da ideologia do cotidiano) e os gêneros secundários (aqueles dos sistemas ideológicos constituídos). Voltaremos a este tema específico no capítulo três. Por ora, destacamos apenas que a valorização das práticas so cioideológicas do cotidiano, o pressuposto da uniformidade das forças que dinamizam ambas as esferas e a proposta de tratálas em constante interrelação as bases para umanem teoria das práticas socioculturais que assentam não despreza o cotidiano, super valoriza as esferas mais elaboradas. Não se perde numa fragmentação empiricista, nem se condena ao determinismo inexorável de grandes estruturas.
Re l a ç õ e s dialógic as Voloshinov, particularmente, é quem mais se ocupa com o evento do diálogo face a face. Isso, porque, segundo ele (conforme c onstr struç ução ão do en enun uncia ciado, do, p. 124), é aí que se se pode ler no artigo A con pode encontrar a chave para o entendimento daquilo que ocorre nos enunciados das esferas mais elaboradas da criação ideológica, como, por exemplo, nos enunciados literários. Em todas as suas discussões, ele alerta sempre o leitor para o fato de que tudo o que ocorre no diálogo face a face é de caráter intrinsecamente social, isto é, a interação face a face não pode, em nenhum sentido, ser reduzida ao encontro fortuito de dois seres empíricos isolados e autossuficientes, soltos no espaço e no tempo, que
trocam enunciados a esmo.
A interação face a face só pode ser adequadamente analisada — mesmo quando a consideramos em sua absoluta singularidade, como evento único e irrepetível — , projet projetandoa andoa na grande grande torrente da interação social: ela precisa ser vista como um evento do “simpósio universal”, do “colóquio ideológico em grande escala”. É necessário, portanto, dimensionála como estrutura socioideológica, na qual os interactantes são seres socialmente organizados, situados e agindo num complexo quadro de relações socioculturais, no interior do qual se manifestam relações dialógicas (no sentido bakhtiniano da expressão). Bakhtin, no capítulo 5 de seu livro Problemas da poética poétic a de Dos Dos toievski, ao distinguir as tarefas da linguística e da disciplina que ele chama de metalinguística (nome traduzido mais frequentemente por translinguística, para evitar confusões com o uso mais corrente do termo metalinguística), diz: A linguística reconhece, é claro, a forma composicional da “fala dialogada” gad a”ee estuda ssua uass características características sintáticas e léxicosemânticas. léxicosemânticas. No entanto, ela as estuda como fenômenos puramente linguísticos, isto é, no plano da língua; é incapaz de abordar a natureza específica das relações relaçõ es dialógicas entre as répli réplicas cas num diálogo (p (p.. 18 182 23) 3).. Vamos encontrálo no futuro, em seu manuscrito inacabado O prob pr oble lem m a ddoo texto, criticando explicitamente a “concepção estreita de dialogismo” que o (p. compreende apenas apena s como uma form a composicion cional al do discurso 117) 11 7).. Nesse mesmo texto texto, , eleforma vai caracterizar as relações dialógicas como relações de sentido que se estabelecem entre enunciados, tendo como referência o todo da interação verbal e não apenas o evento da interação face a face. Assim, quaisquer qu aisquer eenunci nunciados, ados, se postos lado a lado lado no. plano do sentido, sent ido, “acabam por estabele estabelecer cer uma relação. dialóg dialógica” ica” (p. (p. 117). Mesmo enunciados separados um do outro no tempo e no espaço e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano do sentido, revelarão relações dialógicas (p. 124). E isso em qualquer ponto do vasto universo da criação ideológica, do intercâm-
bio sociocultural.
As relações dialógicas — diz Bakhtin no mesmo manuscrito (p.. 124) (p 12 4) — não podem ser reduzid reduzidas as a relações de de ordem lógica, linguística (no sentido estrito do termo), psicológica, mecânica ou natural. São relações de sentido de um tipo especial que se estabelecem entre enunciados oupela mesmo no interior de enunciados (quando bivocalidade). marcados, por exemplo, chamada Essa mesma temática foi apresentada por Bakhtin no cap. 5 do Problemas emas da poética po ética de Dostoievski Dostoievski.. Aqui, ele primeiramenseu livro Probl te afirma que não há relações dialógicas na língua enquanto objeto da linguística, isto é, não há relações dialógicas entre elementos de um sistema linguístico (por exemplo, entre palavras em um dicionário, entre morfemas, entre palavras de uma sentença etc.). Também não há tais relações dialógicas entre elementos de um texto ou entre textos quando abordados por um viés estritamente linguístico; nem entre unidades sintáticas ou entre proposições quando igualmente abordadas por um viés estritamente linguístico. Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunfixado do a posição posiç ão de um sujei sujeito to social. Só assim é possíciado, tenha fixa vel responder (em sentido amplo e não apenas empírico do termo), isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmála ou rejeitála, buscarlhe um sentido profundo, ampliála. Em suma, estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de determinada espécie, isto é, relações que geram significação responsivamente a partir do encontro de posições avaliativas. As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor — que, como vimos, constituem, no conceituai do Círculo de Bakhtin, parte inerente de todo enunciado, entendido não mais como unidade da língua, mas como unidade da interação
social; não como um complexo comple xo de relações entre palavra palavras, s, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas.
Nesse mesmo capítulo, Bakhtin lembra que relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciados integrais: Relações dialógicas são possíveis não só entre enunciados completos (relativamente completos); uma abordagem dialógica é possível em relação a qualquer parte significante de um enunciado, mesmo em relação a uma só palavra, caso aquela palavra seja percebida não como uma palavra impessoal da língua, mas como um signo da posição semântica de outro alguém, como o representante do enunciado de outra pessoa; isto é, se ouvirmos nela a voz de outro alguém. Assim, relações dialógicas podem permear o interior do enunciado, mesmo o interior de uma só palavra, desde que nela duas vozes colidam dialo gicamente (microdiálogo, a que nos referimos anteriormente). Por outro lado, relações dialógicas são também possíveis entre estilos de língua, dialetos sociais, e assim por diante, desde que eles sejam percebidos como posições semânticas, como cosmovisões de linguagem de certo tipo, isto é, como algo não mais estritamente posto no interior da investigação linguística. Finalmente, relações dialógicas são também possíveis em relação a seu próprio enunciado como um todo, em relação a suas partes separadas e em relação a uma só palavra em seu interior, se nós de algum modo nos afastamos deles, falamos com uma ressalva interior, se nós os observamos a certa distância, como se estabelecêssemos limites à nossa própria autoria, ou a dividíssemos dividíssemos em duas (p (p.. 184). 18 4). Bakhtin vai dedicar todo esse capítulo 5 à análise de um tipo especial de relações dialógicas manifestas nos diferentes processos daquilo que ele chama de bivocalidade. Voloshinov, por sua vez, vai fazer o mesmo, na parte III de seu livro Ma Marxis rxismo mo e fifilo loss o fifiaa d a lin guagem gua gem,, com as diferentes formas do discurso citado, tema a que também se dedicará Bakhtin em O discurso no romance. Voltaremos a essas análises no próximo capítulo.
Para encerrar este tópico, é interessante ainda observar que Bakhtin, no manuscrito O problema do texto (talvez lembrandose de eventuais percalços pedagógicos), ao mesmo tempo que critica
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a visão estreita de dialogismo que confunde relações dialógicas com réplicas do diálogo face a face, alerta para outro viés estreito de entender as relações dialógicas: tomálas apenas como equivalentes a discussão, polêmica ou paródia. Para tentar mostrar a amplitude das relações dialógicas, Bakhtin arrola, então, várias outras situações em que se pode reconhecêlas, dizendo (p. 121): A compreensão estreita de dialogismo como debate, polêmica ou paródia. Estas são as formas externamente mais óbvias, embora rudimentares, de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a recepção reverenciai (a palavra de autoridade), o aprendizado, a busca pelo sentido profundo e sua natureza obrigatória, a concordância, suas infinitas gradações e nuanças (mas não suas limitações lógicas e restrições puramente referenciais), a estratificação de um significado que se sobrepõe a outro, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, fortalecimento por meio da fusão (mas não identificação), a combinação de muitas vozes (um corredor de vozes) que amplia a compreensão, o afastamento para além dos limites do compreendido, e assim por diante.
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Isso posto, é necessário lembrar ainda que a palavra diálogo, no uso corrente, tem também uma significação social marcadamente positiva, que remete a ‘solução de conflitos’, a ‘entendimento’, a ‘geração de consenso’. Ora, essa significação também não ocorre como tal no pensamento do Círculo de Bakhtin. Seus membros não são, portanto, teóricos do consenso ou apologistas do entendimento. Ao contrário, tentam dar conta da dinâmica das relações dialógicas num contexto
social dado e observam que essas relações não apontam apenas na direção das consonâncias, mas também das multissonâncias e dissonâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a adesão, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desacordo, o embate, o questionamento, a recusa.
E, para enfatizar esse entendimento multidirecional do funcionamento das relações dialógicas — e não apenas na direção do consenso, do entendimento, do acordo — , lembramos aqui a expressão tenso ten so com combate bate dialógico ocorre na nass front fronteiras” eiras” que Bakhtin usa, “umseu em caderno de notas de 1970/1971 (p. 143), para caracterizar a dinâmica das relações dialógicas.
Voloshinov, por seu turno, ao tratar da pluralidade de acentos avaliativos das expressões verbais, dá também destaque a essa idéia do “tenso combate dialógico”. Diz ele em seu livro de filosofia da linguagem (p. 80): De fato, qualquer enunciado concreto, de um modo ou outro ou em um grau ou outro, faz uma declaração de acordo ou de desacordo com alguma alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapost justapostos, os, com comoo se alheios uns aos outros, mas encontramse num estado de tensão constante, ou de interação e conflitos ininterruptos. Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não apenas coexistem, mas se tensionam nas relações dialógicas. Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que podem se opor dialogicamente a ela. É nesse sentido que Bakhtin vai dizer, em O discurso no romance (p. 272), que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas e as forças centrífugas.
Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo (“o simpósio universal”), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam fo f o r ç a s cen centrí trípet petas as (aquelas que buscam impor certa centralização centrífug rífugas as verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e fo r ç a s cent
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(aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hi bridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.). Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratificada da linguagem (a heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglos sia dialogizad dialogizada), a), aponta também, portanto portanto,, para a existência de jog jogos os de poder entre as vozes que circulam socialmente, manifestados nas tendências centrípetas e correlacionados a condições sóciohistóri cas específicas. Ao qualificar as forças centrípetas como monologizantes, é preciso observarumque elas responsivo não deixamnodeoceano ser dialógicas: elas também constituem gesto da heteroglossia. Em outras palavras, a atitude discursiva monológica é intrinsecamente dialógica — como, aliás, na concepção do Círculo, todas as manifestações verbais.
H e t e r o g l o s s i a d i a l o g i z a d a e l u t a d e c l a s s e s Mesmo reconhecendo os jogos de poder, Bakhtin — diferentemente de Voloshino Voloshinovv — não estabelece em nenhum nenhu m momento uma vinculação estreita entre vozes sociais e classes sociais. Há sim, no conceituai do plurilinguismo dialogizado, luta social entre as diferentes “verdades sociais”, mas não uma correlação estreita entre essas lutas e a chamada luta de classes. Também não há em seus textos nenhuma perspectiva de supe-
ração definitiva dos jogos de poder. O processo dialógico é concebido como c omo infindo, inesgotável. A Ass forças centrífugas — das quais talvez o riso e a carnavalização sejam se jam as mais fortes — corroem corr oem conco ntinuamente todos os esforços de centralização discursiva. Assim, na lógica de Bakhtin, não há (nem nunca haverá) um ponto de “síntese dialética”, de “superação definitiva das contradições”.
Voloshinov, contudo, estabelece explicitamente uma vinculação estreita entre classes sociais e a estratificação socioaxiológica da linguagem, descrevendo esta como decorrente daquela. Nessa linha, afirma que classe social e comunidade semiótica não se confundem na medida medida em que as diferentes classes sociais se servem da mesma língua, atravessandoa, no entanto, com diferentes (e contraditórios) índices de valor. Por isso, em suas palavras, o signo se toma a arena onde se desenvolve a luta de classes (Marxismo efilosofia da linguagem, p. 23). Neste mesmo texto, ele diz também que a classe dominante tenta tornar monovalente o signo signo — que é, no entanto, sempre polivapolivalente — , imprimindolhe, com este gesto, gesto, um caráter de deform deformação ação do ser a que remete o signo. Voloshinov, no entanto, não fecha adequadamente a questão que propõe. Fica irresolvida, em seus textos, a conjunção da teoria da refração (todo e qualquer signo refrata necessariamente o mundo) — que implica a existência simultânea de “várias verdades sociais” — e uma teoria da divisão divisão da da sociedade em classes — que expliciexplic itamente atribui a verdade a uma das classes (o proletariado), aquela que revolucionariamente construirá uma sociedade sem classes. Em nenhum momento, Voloshinov teoriza sobre como seria dis cursivamente uma sociedade sem classes. Desapareceria a refração dos signos? Desapareceria a estratificação axiológica da linguagem? Estariam, na sociedade sem classes, esgotados os processos dialógicos? No texto em que ele mais extensa e abertamente discute essa questão (A p paa lav la v ra e sua su a fun fu n çã çãoo so soci cial al — publicad publicadoo em 193 1 930) 0),, fic ficaa bastante clara sua dificuldade em juntar as duas teorias, em harmonizar a (eterna) refração com a redenção da sociedade sem classes.
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De um lado, ele reitera a teoria da refração, isto é, nenhuma palavra reflete seu objeto de forma totalmente acurada (‘objetiva’), nenhuma palavra é a fotografia fotografia daquilo que ela significa (p. 144) 14 4).. O signo, portanto, sempre refrata o mundo. E repisa sua velha tese de que as refrações “em última análise são inevitavelmente condicionadas por relações de classe” (p. 144). 14 4).
Destaca, porém, que na linguagem de cada classe há sempre um grau particular de correspondência entre o verbal e a realidade objetiva, cabendo ao proletariado o ponto de vista que mais intimamente se aproxim aproximaa da “lógica “lógica objetiva da realidade” realidade”(p. (p. 14 146) 6).. Quer diz dizer: er: VoVoloshinov assume que a linguagem do proletariado também refrata o mundo (não é, portanto, integralmente não refratada), mas a refração é menor do que aquela que ocorre em outras classes sociais. Em nenhum momento, porém, este autor esclarece como estabelecer estes graus de refração e de correspondência com a “lógica objetiva da realidade”. Ao admitir que a linguagem do proletariado também refrata o mundo, Voloshinov acaba por se comprometer com o infindo, com o inesgotável (tão característico dodas pensamento do Círculo de parece Bakhtin), com a não superação definitiva contradições, o que — — introduz um conflito com o conceituai marxista dominante à época em seu país. país. Assim é que ele diz diz (p. 145) 14 5) que a pessoa real vive na história, “no eternamente turbulento mar da luta de classes que não conhece nenhum descanso, nenhuma pacificação”(ênfase acrescida). No fundo, o problema que perseguia os membros marxistas do Círculo de Bakhtin era como costurar com as ortodoxias de seu tempo um conceituai que cultiva, como pressuposto básico, a idéia do não fechamento, do inesgotável, do inacabamento, do movimento infindo. Ou, dito de outra forma, como aderir a uma verdade (que se propagava como a verdade e tinha o aparelho do Estado a seu lado) e, ao mesmo tempo, aceitála como também refratada. E, se refratada (sempre refratada), passível de ser dessacralizada na atmosfera do plurilinguismo dialogizado.
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Numa síntese, podemos dizer que o Círculo de Bakhtin Bakhtin — desd desdee sua virad viradaa linguística por volta de 1925/1 1925/1926 926 — va vaii prog progressiva ressivame mente nte pavimentan pavim entando do o caminho em direção direção à adoção, por volta de 1928/ 1928/1929 1929,,
do diálogo como a grande metáfora que dará um arremate às reflexões do Círculo sobre a linguagem e sobre a criação ideológica em sua totalidade, bem como sustentará as discussões futuras do próprio Bakhtin. Os primeiros textos em que a grande metáfora do diálogo aparece como tal são os dois livros de 1929: aquele assinado por Voloshinov sobre filosofia da linguagem e o de Bakhtin sobre Dostoievsky Vamos encontrar, pela primeira vez, uma extensa discussão das chamadas relações dialógicas (Proble Problemas mas da poética de Dostoie Dostoievski vski,, p. 182185), bem como a expressão diálogo em senti sentido do amplo (M (Mar ar-xismo e filo filoso sofia fia da lingu linguage agem, m, p. 95) para designar o complexo das relações dialógicas, a dinâmica dos signos e das significações entendida como se realizando responsivamente de modo similar às réplicas de um diálogo face a face. As raízes dessa metáfora estão, contudo, já nos primeiros textos de Bakhtin, naqueles em que as relações um/outrem (a interação, portanto) são extensamente discutidas, embora ainda sem a intervenção substancial e constitutiva da linguagem, como ocorrerá à frente. O que temos nesses primeiros textos dos inícios da década de 1920 é uma espécie de metafísica da interação, em que as relações um/outrem são ainda fundadas num jogo que passa pela visão (o olhar de fora e o excesso de visão são categorias centrais aqui) e não propriamente pela linguagem. A partir do texto O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado por Voloshinov em 1926, a linguagem entra em cena, seja em suas manifestações no cotidiano (na ‘vida’), seja na criação ideo-
lógica em sentido amplo; e a interação passa a ser assumida de modo claro como uma realidade fundamentalmente social e semiótica. Mesmo as referências aos enunciados da conversa cotidiana buscam mostrar como o “pequeno fato social imediato” (Freudismo, p. 17 175) 5) se inte integra gra no qua quadro dro maior da interação prática do respectivo grupo social, no intercâmbio social contínuo desse determinado grupo. Nesse sentido, os enunciadores não são vistos como seres empíricos, mas como um complexo de posições sociais avaliativas.
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No texto de 1926, encontramos Voloshinov asseverando que enunciar enunci ar é tomar uma posição social avalia avaliativa tiva ((p. p. 16 16);); é posicio posicionar nar se frente a outras posições sociais avaliativas, já que falamos sempre numa atmosfera social saturada de valorações. Esta formulação de Voloshinov reproduz, de certa forma, afirmação de Bakhtin em seu texto O autor e o herói na atividade estética. Nele, lemos (p. 4) que, na vida cotidiana, nós reagimos (respondemos) valorativamente às manifestações dos que nos cercam. Esta visada axiológica é, como já destacamos, um dos pilares do edifício teórico bakhtiniano. O que Voloshinov faz é reelaborála projetandoa na linguagem. Assim, em seus termos, enunciar é responder, como aparece em seu artigo de 1928 (As correntes mais recentes do pensamento lin guísticoo no Ocidente, p. 43), no qual vai destacar também que o enun guístic ciado não só responde como se põe para uma resposta (p. 43). Essa segunda afirmação anuncia o tema caro ao Círculo (e que vai ser formulado pelo próprio Voloshinov no livro sobre filosofia da linguagem): o da compreensão responsiva. Para ele, o processo de compreensão não podia ser entendido como passivo, como mera decodifi cação de uma mensagem. A compreensão é um processo ativo (já que tem de lidar com o novo e não com o recorrente do enunciado) em que se opõe “à “à palavra d doo locu locutor tor uma contrapalav contrapalavra” ra” (p. 102) 2);; “a comp comprereensão é uma resposta resposta a um signo por meio de outros signos” (p. 11). Finalmente, chegamos aos textos de 1929 em que explicitamente a dinâmica da criação ideológica, a interação social em todas as suas
esferas, a enunciação e o enunciado, a compreensão responsiva, a organização interna do próprio enunciado e a construção e funcionamento da consciência são abrangidos pela grande metáfora do diálogo.
A UTOPIA BAKHT BAKHTINI INIAN ANA A A propósito do tema do diálogo no Círculo de Bakhtin, há ainda outro aspecto que precisa ser considerado. O diálogo é aí mais
que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de determinada semiótica social, de uma filosofia da linguagem, Bakhtin não é apenas o filósofo relações dialógicas em daquilo sentido amplo; o diálogo é também, no seudas pensamento, a metáfora que poderíamos considerar como sua grande utopia. É costume lembrar que Bakhtin viveu boa parte de sua vida adulta sob um regime totalitário, tendo sido, inclusive, vítima de perseguição política, o que resultou em prisão, num exílio de seis anos no Cazaquis tão e num ostracismo de trinta anos em cidades provincianas, já que, como antigo prisioneiro político, era alcançado pela proibição do regime stalinista de fixar residência e trabalhar em grandes centros urbanos. Apesar disso, parece que nunca lhe faltou o impulso utópico, a crença de que outro mundo era possível; ou, para usar suas próprias palavras, parece que nunca lhe faltou o sens sensoo de fé , isto é (conforme se lê em Pa Para ra uma um a refeitura do livro livro sobre Dostoievski), não fé (no sentido de uma fé específica na ortodoxia [na religião ortodoxa], no progresso, no homem, na revolução etc.), mas um senso de fé, isto é, uma atitude integral (por meio da pessoa como um todo) em relação a um valor superior e supremo (p. 294). Parece bem claro, pelo conjunto de seus textos, que o “valor superior e supremo” para Bakhtin era a heteroglossia e sua dialogi zação infinda; ou, em outros termos, a pluralidade dialogizada das
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vozes e, neste meio heterogêneo, a resistência a qualquer processo centrípeto, monologizador. O texto em que mais explicitamente se vê esse seu impulso utópico, é precisamente o manuscrito que acabamos de citar. Escrito em consiste em livro uma de série1929. de apontamentos e reflexões com vistas à1961, revisão de seu Essa revisão lhe fora solicitada por professores da Universidade de Moscou, que haviam recentemente redescoberto seu trabalho (naqueles anos do degelo político propiciado pelo governo de N. Kruschev) e lhe haviam proposto uma nova edição, que viria a ser publicada em 1963.
É nesse manuscrito preparatório dessa nova edição que Bakhtin deixa emergir sua utopia. Expõe aí sua idéia de que a vida humana é por sua própria natureza dialógica. Nesse sentido, Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diálogo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda sua vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no discurso e esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio universal (p. 293). Neste “simpósio universal”, a morte absoluta (o nãoser) é o estado de não ser ouvido, de não ser reconhecid reconhecido, o, de não ser lem lembrado. brado. Isto porque ser significa se comunicar, significa ser para um outro e, pelo outro, ser para si mesmo (p. 287). A subjetividade se constitui e se move no denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis: Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para encontrar um outro em mim (p. 287) Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência de monologização da existência humana, isto é, de negar a existência de um outro eu com iguais direitos e iguais responsabilidades. Uma atitude monológica ou um modelo monológico do mundo é
autocentrado e insensível às respostas do outro; não as espera e não reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a última palavra (p. 292293). Como forma de sobrepujar o monologismo, só há, para Bakhtin, a via do diálogo sem fim, que ele considera a única forma de preservar a liberdade do ser humano e de seu inacabamento (p. 291); uma relação, portanto, em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos não se fundem, mas cada um preserva sua própria posição de extraes pacialidade e excesso de visão e a compreensão daí advinda (p. 299).
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De certa forma, o que Bakhtin parece estar defendendo aqui é sua utopia de um mundo po polif lifôn ônic ico, o, no qual a multiplicidade de vozes plenivalentes e de consciências independentes e não fundíveis tem direito de cidadania — vozes e consciências que circulam e interagem num diálogo infinito. Lembremos, por oportuno, que o termo po polilifo fonn ia ia,, adotado por Bakhtin do vocabulário da música, foi por ele usado para qualificar o projeto estético realizado por Dostoievski em seus romances da maturidade. Bakhtin considerava que Dostoievski havia criado um gênero romanesco novo, caracterizado pelo fato de que nele aparece um herói cuja voz é construída exatamente como a voz do próprio autor num romance de tipo comum. Uma palavra do herói sobre si mesmo e sobre seu mundo é tão plena quanto a palavra do autor costuma ser; não está subordinada à imagem objetificada do herói como apenas uma de suas características, nem serve ela de portavoz da palavra do autor. autor. Ela possui extraordinári extraordináriaa independênci independênciaa na estrutura da obra; é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunandose de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes dos outros heróis (p. 7).
O termo, portanto, tem, em princípio, um sentido bastante específico: ele é introduzido no vocabulário bakhtiniano para designar o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia sido criado por Dostoievski. Polifonia Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com he teroglossia ou pl teroglossia plun unvo vocid cidad ade, e, que são termos utilizados por Bakhtin para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas sociais sociais (“o plurilinguismo real”).
É inadequado não distinguir os termos aqui principalmente porque a estratificação socioaxiológica da linguagem não gera necessariamente uma realidade polifônica. Polifonia Polifonia não é^para Bakhtin,
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, /i' um universo de muit muitas as vozes, mas um universo eem m que todas aass T vozes vozes são equipolentes. equipolentes. Assim confundir esses termos limita, por exemplo, a percepção de que os discursos que circulam socialmente têm peso político diferenciado; e de que, no jogo dos poderes sociais, há (como vimos acima) um contínuo esforço centrípeto (monologizante) dos discursos que ambicionam se impor como um centro, buscando reduzir e submeter a heteroglossia.
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Por outro lado, como argumenta Tezza (2002), embora po polifo lifoni niaa possa ser tomado à primeira vista como um termo técnico adequado
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à análise literária (com ele em mãos poderíamos sair por aí à cata de outros autores polifônicos), ele, de fato, é pouco produtivo como tal.
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E isso porque, pelos critérios de Bakhtin, só mesmo Dostoievski foi um romancista polifônico. Tezza, em seu texto, aponta dois fatos bastante curiosos a esse respeito. Primeiro, Bakhtin, embora tenha escrito, nos anos seguintes seguintes ao livro sobre Dostoievski, extensas teorizações sobre o romance, nunca voltou a utilizar ou discutir o termo. Segundo, ao fim da vida, quase cinquenta anos depois de ter usado o termo,
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Bakhtin, numa entrevista a Zbigniew Podgórzec, deixa bastante claro que polifonia é fenômeno praticamente exclusivo de Dostoievski.
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Essa pouca produtividade analítica do termo no interior do próprio discurso de Bakhtin leva Tezza a argumentar que po polif lifon onia ia é, de fato, no pensamento bakhtiniano, uma categoria filosófica e não propriamente literária. Para isso, observa que, ao fim de seu livro, Bakhtin diz que é preciso renunciar a hábitos monológicos para orientarse no novo modelo artístico do mundo criado por Dostoievski. E conclui Tezza (p. 29798): Estamos aqui não simplesmente diante de uma conclusão teórica, mas antes diante de uma proposta filosófica. Bakhtin está nos dando uma pista sobre onde realmente estão as raízes de seu conceito de polifonia. Elas não estão tanto na literatura quanto na filosofia, e numa filosofia que não é contemplativa, mas participativa: “Este modo de pensar toma
visíveis aqueles aspectos do ser humano e acima de tudo a consciência humana pensante e a esfera dialógica de sua existência, que não estão sujeitas ã assimilação sujeitas assimilação artístic artísticaa a partir partir de posições posições monológi monológicas”. cas”. “M “Modos de pensar”e não um simples momento formal: esta, em síntese, é a idéia central do conceito de polifonia. Em outras palavras, polifonia é mais uma visão de mundo do que uma categoria técnica. Nossa hipótese é que o conceito de polifonia emerge antes como uma categoria ética do que como uma categoria literária — e Dostoievski será a grande “ilustração”do projeto filosófico de Bakhtin. Na sequência de seu texto, Tezza estabelece, então, uma estreita ligação entre a filosofia do ato de Bakhtin e o conceito de polifonia. Assim, a polifonia Assim, polif onia (no sentido bakhtiniano bakhtini ano do termo) — categoria tão maltratada pelo mundo afora — é muito mais que apenas “uma simples metáfora” (Pr (Problemas oblemas da d a poética poétic a de Dostoievski, Dostoievski, p. 22) que permite a Bakhtin dar visibilidade ao modo como Dostoievski cria um “novo modelo artístico do mundo” (p. 3). No fundo, a polifonia, além de ilustrativa da filosofia do ato de Bakhtin (como defende Tezza), pode ser vista também como a metáfora que recobre a sua utopia e que ele viu materializada no projeto artístico de Dostoievski — um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas. Talvez, por tudo isso, fosse mais prudente mesmo retirar o
termo po polilifo fonn ia do vocabulário crítico de Bakhtin e transferilo para seu vocabulário utópico. Pelo menos, poderíamos destrivializar seu uso e apreender com mais nitidez as coordenadas que o sustentam. Vivendo num mundo pesadamente monológico, Bakhtin foi, portanto, muito além da filosofia das relações dialógicas criada por ele e por seu Círculo e se pôs a sonhar também com a possibilidade de um mundo polifônico, de um mundo radicalmente democrático, pluralista, de vozes equipolentes, em que, dizendo de modo simples, nenhum ser humano é reificado; nenhuma consciência é convertida em objeto de outra; nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da paródia, da ironia.
É esse Bakhtin utópico que nos convida a renunciar aos hábitos monológicos (p. 272); e a aprender com o próprio Dostoievski enquanto criador do romance polifônico (p. 36). E, na utopia de superar toda e qualquer monologização da existência humana, Bakhtin Bakhti n viu viu no carnaval — entendido não como uma festa específica, mas como todo um modo de apreender o mundo (“um (“um senso carnavalesco do mundo”, mu ndo”, p. 10 107) 7) — uma poderosa poderosa força vivificante e transformadora da vida cultural, dotada de uma vitalidade indestrutível, porque “nada absolutiza, apenas proclama a alegre relatividade de de tudo” tud o” (p. 125), justa ju stame mente nte ao permitir uma vida às avessas, em que as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem da vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval: o que se suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as formas correlatas de terror, reverência, piedade e etiqueta — isto é, tudo aquilo que resulta da desigualdade sóciohierárquica ou de qualquer outra forma de desiguald desigualdade ade entre entre as pessoas pessoas (inclusive (inclusive a etária) (p. 122 122).). Nesse sentido, a festa em si é importante apenas na medida em que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro mundo, de negar o atual e afirmar o possível (mesmo que isso ocorra apenas no limite dos dias festivos). Contudo, mais importante que a
festa é o senso carnavalesco do mundo (o carnaval, neste sentido, é, no dizer de de Bakhtin, funcional funciona l e não substantivo, p. p. 125). 12 5). É este senso um poderoso instrumento contra qualquer monologização da existência humana; é ele que materializa a força cultural do riso: dessacraliza os discursos oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do sério e do imutável. Bakhtin não é, nessa perspectiva, o teórico do carnaval, mas o filósofo da carnavalização.
A FILOSOFIA DO RISO Bakhtin — além de localizar Dostoievski na longa longa história dos dos gêneros do cômicosério (cap. 4), aqueles que justamente estão im-
pregnados de de um senso carnavalesco do mundo (p. 10 107) 7) — vai de de-senvolver extensamente a questão desse senso carnavalesco em sua análise da obra de Rabelais (Rabelais e seu mundo), texto que teve uma história bastante peculiar: foi escrito na década de 1940 e apresentado como tese de doutoramento ao Instituto Gorki de Literatura Universal em 1946. A defesa, porém, cobriu um período de quase oito anos! Só em 1952 foilhe concedido finalmente um título acadêmico, mas não o de doutor. Para entender o episódio, é necessário lembrar que, ao tempo de sua defesa, logo após a Segunda Guerra Mundial, o governo stali nista voltava a apertar o cerco às atividades culturais. A relativa liberalização que ocorrera durante a Guerra desaparecia e retomavamse os controles policialescos das atividades intelectuais, que eram obrigadas a se submeter às linhas estreitas do dirigismo oficial. Ora, a tese de Bakhtin nada tinha a ver, de fato, com os dogmas do oficialismo. Desse modo, colocava a banca em situação muito delicada: era impossível negar as muitas qualidades do trabalho, mas, ao mesmo tempo, aproválo poderia trazer para os membros da banca pesadas consequências. A saída foi postergar a decisão por anos a
fio e, ao cabo do processo, concederlhe apenas o título de candidato e não propriamente o de doutor (para detalhes deste processo, cf. Pan’kov 1998 e 1999). Nesse texto, Bakhtin retoma seu percurso de filósofo do riso, que se iniciara nos trabalhos em que elaborou sua teoria do romance (nas décadas de 1930 e 40), em especial em Da préhistória do discurso romanesco.
Nesta teoria, o romance é apresentado como o gênero literário plu riestilístico, plurilíngue e plurivocal plurivocal por excelência. Bakhtin o reconhece como uma forma relativamente nova, mas põe em evidência sua longa história. Argumenta (p. 50) que suas raízes estão no riso e no plurilin guismo — que, segundo ele, são os fatores historica historicamente mente resp responsá onsáveis veis pela descentração e relativização da consciência humana, processo que, em termos artísticos, encontrará no romance sua expressão.
Seu argumento é que a humanidade vai construindo historicamente, por meio do riso e da percepção do plurilinguismo, uma consciência descentrada (que se percebe uma entre muitas), chamada por ele figurativamente de consciência galileana. O riso participa organicamente desse processo porque tudo dessacraliza e relativiza. Rir dos discursos deixa clara sua unilaterali dade e seus limites, descentrandoos, portanto. A consciência socio ideológica passa a percebêlos como apenas uns entre muitos e em suas su as relaç relaçõe õess tens tensas as e con contra tradi ditó tóri rias. as. O ris risoo dest destró rói,i, a s s i r f m ^ ssas ssas paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurso, na sua própria linguagem (p. 60). Por outro lado, a percepção do plurilinguismo (da multidão das línguas alheias e, principalmente, de seu esclarecimento recíproco, p. 51) faz ver que a “minha língua” e a “minha cultura” não são únicas, são apenas uma entre muitas. Essa percepção liberta a consciência dos limites de um unilinguismo fechado e impermeável (p. 61): dálhe a dimensão da diversidade linguística e do emaranhado
de conflitos interlinguísticos (isto é, entre as línguas ditas nacionais) e intralinguísticos (isto é, no interior da realidade estratificada da própria língua). Nas palavras do próprio Bakhtin (p. 65): Lá onde as línguas e as culturas se vivificaram mutuamente, a língua se tornou algo inteiramente diferente, sua própria natureza mudou: no lugar de um mundo linguístico ptolomaico, único e fechado, aparece o mundo galileano, aberto e com muitas línguas mutuamente se vivificando. É dessa consciência galileana queà nascerá o romance gênero literário que dá forma estética plurivocidade social.como É issoo que nos diz Bakhtin no seu texto O discurso no romance (p. 366): O romance é a expressão de uma percepção galileana da língua, uma percepção que nega o absolutismo de uma língua única e unitária — isto é, que se recusa a reconhecer sua própria língua como o único centro semânticoverbal do mundo ideológico. É uma per-
cepção que se tornou consciente da vasta plenitude das línguas nacionais e, mais precisamente, das“línguas línguasda sociais — das quais todas são igualmente capazes de ser verdade”, mas, em assim sendo, são igualmente relativas, reificadas, limitadas, já que são apenas línguas de grupos sociais, de profissões e de outras dimensões da vida cotidiana (p. 367). O filósofo italiano Augusto Ponzio, em seu livro sobre filosofia da linguagem (Ponzio, 1994), aproveita esse raciocínio de Bakhtin e estendeo para justificar a própria construção histórica de uma consciência filosófica. Segundo ele (cap. (cap. 10) 10),, a consciê consciência ncia filosófica só ssee tornou de fato possível como produto da consciência do plurilinguismo. Só quando a língua foi percebida como não unitária, mas pluridiscur siva — isto é, só quando se percebeu que se fa fala la significativamen significativamente te do mesmo mundo por meio de registros conceituais e axiológicos diferentes (por diferentes línguas ou vozes sociais) — é que emergiu uma consciência filosófica, uma consciência que vive precisamente
do confronto desses diferentes dizeres significativos. Filosofar, segundo Ponzio (p. 260), é pôrse em relação com o dizer do outro; é, para usar os termos de Bakhtin, estabelecer relações dialógicas com os enunciados e as vozes alheias. Claro, diz Ponzio, este embate pluridiscursivo gerou duas direções: uma monologizante e outra dialogizada; uma que expulsa o sofista da ágora (para usar a imagem de Foucault em A ordem do discurso ) e a outra que o acolhe com todos os direitos. É porque teve de enfrentar a pluridiscursividade que a filosofia gerou tendências universalizantes, unificadoras, marcadas pela quimera de silenciar a heterogeneidade e estancar a dialogia. Por isso, Ponzio vai propor (cap. 12) 12 ) que a filosofia d daa linguagem seja o espaço do desenredamento crítico dos processos sociais geradores de significação (298) e dos processos de reificação e abso lutização dos discursos (301).
O SUJEITO SUJEITO DI DIALÓG ALÓGIC ICO O É no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dia logização que nasce e se constitui o sujeito. A realidade linguística se apresenta para ele primordialmente como um mundo de vozes sociais em múltiplas relações dialógicas — relações de aceitação e recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de interseções e hibridizações. É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhadovaise nas múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas interrelações dialógicas. É nesse sentido que Bakhtin várias vezes diz, figurativamente, que não tomamos nossas palavras do dicionário, mas dos lábios dos outros. Como a realidade linguísticosocial é heterogênea, nenhum su-
jeito ab absor sorve ve um umaa só voz voz socia social,l, mas sem sempre pre mu muitas itas vo voze zes. s. As Assi sim m, ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como um agitado balaio de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entrechoques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento, já que a int interaçã eraçãoo socioid socioideológ eológica ica é um contínuo dev evir ir.. Nesse processo de construção socioideológica do sujeito, as vozes funcionarão de diferentes modos. Algumas entrarão como vozes de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas (nos termos de Bakhtin em O discurso no romance, p. 342ss.). A palavra de autoridade, em seus variados tipos, é aquela que nos interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Tratase de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encap
sulada, centrípeta, impermeável, resistente a bivocalizaçoes. E, por isso tudo, é uma palavra que “não se pode pronunciar em vão” (p. 34¾. Já a pala palavr vraa qu quee se apr aprese esenta nta como inte internam rnamente ente pe pers rsua uasiv sivaa é aquela que aparece como uma entre outras muitas. Transita, portanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizaçoes e hibridizações, abrese continuamente para a mudança. O embate e as interrelações dialógicas dessas duas categorias do discurso (em seus diferentes tipos e graus) são determinantes da história da consciência ideológica individual. Quanto mais as vozes forem funcionalmente de autoridade para o sujeito, mais monoló gica (ptolomaica) será sua consciência; quanto mais internamente persuasivas as vozes, mais galileana será sua consciência. Nosso mundo interior, portanto, é, em sua essência, sociossemióti co (sem signos não há consciência) e, por isso mesmo, heterogêneo, na
medida em que a realidade realidade linguísti linguísticosocial cosocial é heterogên heterogênea ea (plurilíng (plurilíngue). ue). E sua dinâmica interior decorre da dialogização desta heterogeneidade. Marxis xismo mo e fifilo lo s o fifiaa d a lingualing uaSobre isso, diz Voloshinov (em Mar gem,, p. 13) que a consciência toma forma e existência nos signos gem
criados por um grupo social no processo de sua interação social. A consciência individual se alimenta de signos; deriva deles seu crescimento; reflete sua lógica e leis. Esta lógica é precisamente a da interação socioideológica, isto é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogizado. É esta dinâmica social que, internalizada, desencadeia o moto contínuo da atividade psíquica. Nossos enunciados enunci ados emergem — como respostas ativas que sã sãoo no diálogo social soci al — da multidão das vozes interio interiorizadas. rizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são sempre semp re discurso citado, embora nem semp sempre re percebidos como tal, tal, já que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são palavras que perderam as aspas).
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Outras, contudo, memória em discursiva como palabivocalizadas vras de outrem e comoestão tais na sãonossa nossos enunciados (isto é, nossos enunciados expressam a um só tempo a palavra do outro e a perspectiva com que a tomamos): elas são citadas direta ou indiretamente, são aceitas incondicionalmente ou são ironizadas, parodiadas, polemizadas aberta ou veladamente, estilizadas, hibridizadas. O enunciado assim concebido se apresenta como uma realidade consideravelmente mais complexa e dinâmica do que quando ele é entendido simplesmente como um objeto que articula as intenções de quem o produz, isto é, quando se entende o enunciado apenas como um veículo direto e univocal da expressão de uma consciência individual. Para o Círculo de Bakhtin, a consciência é social de ponta a consciência ncia individua individuall tomada em ponta. Nesse sentido, a expressão consciê sentido absoluto contém uma contradictio in adjecto (expressão que
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se repete em vários textos do Círculo. Ver, entre outros, Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 288) . No entanto, o Círculo não nega a singularidade e, desde os primeiros textos de Bakhtin, insiste em afirmar que cada ser humano ocupa um lugar único e insubstituível, na medida em que cada um responde às suas condições objetivas de modo diferente de qualquer outro. Quando dizemos que, de certo ponto de vista, todo enunciado é discurso citado, podemos sugerir que o sujeito apenas repete os discursos e que não há espaço para a singularidade: somos todos sempre e apenas falados. No entanto, não é assim que pensam os membros do Círculo de Bakhtin. Se eles buscaram um entendimento da pessoa humana na perspectiva de suas relações sociais e como um ente interiormente múltiplo e heterogêneo, procuraram também manter um espaço teórico significativo para a singularidade, recusando qualquer determinismo absoluto. Podese dizer que para o Círculo, o sujeito é social de ponta a ponta (a origem do alimento e da lógica da consciência é externa à consciência) e singular de ponta a ponta (os modos como
cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um evento único do Ser). O que sustenta esta alternativa teórica é a percepção de que o universo socioideológico socioideológico e o mundo interior não remetem a estru estruturas turas pesadamente monolíticas e centrípetas (como se houvesse um único centro verboaxiológico). mas a realidades infinitamente múltiplas e centrífugas, e confrontandose em uma intrincada rede de incontáveis entrechoques que vão ocorrendo numa dinâmica inesgotável. É dessa imensa diversidade de vozes e de suas relações dialógicas que emerge como possível a singularidade que se constituirá explorando o espaço infindo da tensão dialógica das vozes sociais. O sujeito tem, desse modo, a possibilidade de singularizarse e de singularizar singularizar seu discurso discur so não p por or meio da atualiz atualização ação das vvirtuali irtuali
dades de um sistema gramatical (como quer a estilística tradicional), ou da expressão de uma subjetividade présocial (como querem os idealistas), mas na interação viva com as vozes sociais. Au Autora torar, r, nesta perspectiva, é orientarse na atmosfera heteroglóssica: é assumir uma posição contextodadatensão circulação e da guerra das vozes sociais; estratégica é explorar onopotencial criativa da heteroglos sia dialógica; é trabalhar nas fronteiras. Nessa concepção fundamentalmente sociossemiótica do sujeito e de sua atividade, não houve, em princípio, lugar teórico para a questão do inconsciente psicanalítico. Os membros do Círculo conheciam evidentemente as formulações freudianas. Contudo, não as incorporaram em suas reflexões. Ao contrário, reagiram criticamente a elas — Voloshinov em especial. Em seu livro Freuãismo (de 1927), ele desenvolve uma exposição e crítica de vários aspectos da teoria freudiana. Reconhece sua magnitude e seu caráter inovador. Reconhece também a complexidade do mundo psíquico e os conflitos que o atravessam (e, nesse sentido, é herdeiro de Freud). Recusa, porém, com base em argumentos sociológicos de certa inspiração marxista, o modo como Freud teoriza sobre esse mundo, em especial o viés fisiológico e subjetivista que,
segundo Voloshinov, sustenta a psicanálise freudiana. Para ele, o psiquismo é fundamentalmente linguagem e, por *sso, socioideológico. Mesmo recusando, Voloshinov sentese atraído (e desafiado) pela “descober descoberta ta freudiana” e tenta esboç esboçar ar (cap. 99)) uma formulação que interpreta o inconsciente e os conflitos psíquicos como resultantes da luta, no interior, de diferentes motivos socioideológicos. Nem Voloshinov, nem os outros membros do Círculo voltaram a essa temática. Por outro lado, o pesado discurso marxista (marcado, sem pressões da conjuntura o livro foi escrito) podedúvida, velar aspelas qualidades polêmicas do textoem deque Voloshinov e impedir que se avance, oitenta anos depois de sua publicação e considerando a história posterior da psicanálise, um diálogo produtivo entre a concepção de linguagem do Círculo e as teorias do inconsciente.
Tal diálogo adquire particular interesse na atual conjuntura dos estudos linguísticos, em que as teorias que propuseram uma incorporação teórica do inconsciente psicanalítico na análise da linguagem, embora tenham contribuído para uma relevante problematiza ção do dizer e de suas significações, não foram ainda muito além de genéricas declarações de princípio — talvez porque o inconsciente mais se esconda do que se revele. Saber se há, de fato, incompatibilidade epistemológica entre um olhar bakhtiniano e um olhar psicanalítico é tema complexo e que transcende os objetivos e limites deste livro. No entanto, entendemos ser uma questão questão perti pertinente nente um eventual diálogo entre esses dois mundos, em especial considerando que ambos os olhares pressupõem a alteridade, a heterogeneidade, o conflito, a singularidade e, em. especial, a linguagem — mesmo que eem m planos teóricos difer diferentes entes.
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O tema do autor e da autoria está presente, em maior ou menor grau, em quase todos os escritos conhecidos de Bakhtin. Tratase de um
tema que envolve uma extensa elaboração de natureza filosófica (jã que, desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma estética geral) e que conheceu diferentes desdobramentos a cada novo retomo a ele. Já no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin distingue o autor pessoa (isto é, o escritor, o artista) do autor criador (isto é, a função estéticoformal engendradora da obra, o pivô que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado). O autor criador é entendido fundamentalmente como uma posição estéticoformal cuja característica básica está em materializar certa relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com simpatia ou antipatia, distância ou p proximidade, roximidade, reverência ou crítica, gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, ge-
nerosidade ou crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante. Obviamente, embora os exemplos estejam aqui apresentados em construções alternativas, é preciso não perder de vista que uma efetiva posição axiológica nunca é um todo uniforme e homogêneo, mas agrega múltiplas e heterogêneas coordenadas. A simpatia pelo herói e seu mundo mundo poderá, por exemplo, ser nuan nuançada çada por uma crítica melancólica; a reverência, por uma suave e sutil ironia, e assim por diante. É esse posicionamento valorativo que dá ao autor criador a força de constituir o todo: é a partir dela que se criará o herói e o seu mundo e se lhes dará o acabamento estético. No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal (escrito em 1924), Bakhtin amplia o escopo da posição axiológica do autor criador, incluindo nela tanto o herói e seu mundo, quanto a forma composicional e o material, isto é, o todo estético materializa escolhas composicionais e de linguagem que resultam também de um posicionamento axiológico. Se podemos dizer que a distinção autor pessoa/autor criador é hoje um lugarcomum nas teorizações estéticas, ainda assim as considerações bakhtinianas trazem ao conceito de autor criador uma substância peculiar ao caracterizálo fundamentalmente como uma posição axiológica.
Para se apreender as bases dessa conceituação, é importante reiterar que, para Bakhtin, a grande força que move o universo das Práti^ H Í ^ H sã sã00 pr precisamen entte as jH^^^^ jH^^^^^ioavali ^ioavaliati ativas vas Ipos tas numa dinâmica de múltiplas interrelações responsivas. Em outras palavras, todo ato cultural se move numa atmosfera axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em todo ato cultural assumese uma posição valorativa frente a outras posições valorativas (conforme se pode ler em seu ensaio O problem problemaa áo conteúdo, do material e da forma na arte verbal). Desse modo, qualquer texto tem, como seu ponto de partida e como seu elemento estruturante, um posicionamento axiológico,
uma pos p osiç içãã o au autor toral. al. No ato artístico, especificamente, a realidade vivida (já em si atravessada por diferentes valorações sociais porque a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta para um outro plano axiológico (o plano da obra): o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos sistemas de valores. r No ato artístico, aspectos do plano da vid vidaa são destacado destacadoss (iso j lados lados)) de su suaa even eventicid ticidade, ade, são organiz organizad ados os de um modo novo novo,, subordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem auto i contida e acabada acabada.. E é o autor criador — materializado como c omo certa ■posição axiológica frente a certa rrealidade ealidade vivid vividaa e valorada — que 1realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentan J 3 ess essaa nov novaa un unida idade. de. O autor criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não „penas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um este nógrafo desses eventos), mas, a partir de certa posição axiológica, j recortaos recortaos e reor reorgan ganiza izaos os estetica esteticamen mente. te. O ato criativo envolve, desse modo, um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um autor criador criador e não o autor pessoa que compõe o todo estético esté tico — há aqui, portanto, já um deslocamento refratado à medida que o autor criador é uma uma posição axiológica conforme recortada pelo autor pes-
soa. Ou, para usar um comentário tardio de Bakhtin (em seus apontamentos de 197071, p. 152), a posição autoral é, no fundo, uma máscara autoral — autorar é assumir uma máscara (determinada posição axiológica, determinada voz social). Nesse sentido, Bakhtin entende que não há enunciado em que se possa encontrar uma fa face ce]] encontramos sempre ali um autor criador (uma máscafl, portanto). Por outro lado, a transposição de planos da vida para a arte se dá não por meio de uma isenta estenografia (o que seria impossível na concepção bakhtiniana), mas a partir de um certo viés valorativo (aquele consubstanciado no autor criador).
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O autor criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Re fratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida. Lembremos, a propósito disso, que, para o Círculo de Bakhtin, os processos semióticos — quaisquer que sejam eeles les — ao mesm mesmoo tempo em que refletem, sempre refratam o mundo. Em outras palavras, a semiose não é um processo de mera reprodução de um mundo “objetivo”, mas de remissão a um mundo múltipla e heterogeneamente interpretado inter pretado — isto é, aos diferentes modos pelos quai quaiss o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos em cada momento de sua experiência histórica. A distinção autor pessoa/autor criador — tratada de maneira geral em O autor e o herói na atividade estética estética — va vaii ser retom retomada ada por Bakhtin em seu manuscrito inacabado O problema do texto em linguística, filologia e nas ciências humanas humanas (provavelmente escrito por volta de 1960). Neste texto, aquela distinção recebe uma nova formulação sustentada agora na filosofia da linguagem que Bakhtin havia desenvolvido no seu ensaio O discurso no roma romance nce (redigido em 19341935). Ela passa a ser caracterizãda como envolvendo um necessário deslocamento no plano da linguage linguagem m — entendida lin linguagem guagem aqui não não
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no sentido gramatical do termo, nem no sentido politicocultural da língua unitária, mas no sentido construído em O discurso no romance, qual seja, a linguagem concebida como heteroglossia — como um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto é, um conjunto de formações verboaxiológicas. No ato ato artístico, há, então, um complexo jog jogoo de deslocam deslocamentos entos envolvendo as línguas sociais, pelo qual o escritor (que é aquele que tem o dom da fala refratada) direciona todas as palavras para vozes alheias e entrega a construção do todo artístico a uma certa voz.
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Essa voz criativa (isto é, o autor criador enquanto elemento estéticoformal) tem de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz segunda, ou seja, o discurso do autor criador não é a voz direta do escritor (do autor pessoa), mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo estético. A linguagem não deslocada (isto é, se a voz do escritor enquanto pessoa permanece tal)Oé,escritor para Bakhtin, ingênua e inadequada para a autêntica criaçãocomo estética. é, então, a pessoa capaz de trabalhar numa linguagem enquanto permanece fora dessa linguagem. Mesmo que a voz do autor criador seja a voz do escritor como pessoa, ela só será esteticamente criativa se houver deslocamento, isto é, se o escritor for capaz de trabalhar em sua linguagem permanecendo fora dela. No livro sobre Dostoievski, Bakhtin apresenta esse necessário deslocamento com um vocabulário anterior à sua filosofia da linguagem, dizendo que as ideias do escritor, quando entram na obra, mudam sua forma de existência: transformamse em imagens artísticas das ideias, isto é, não são as ideias do escritor como tais que entram no todo estético, mas sua refração. Essa mesma compreensão já aparecia no texto O autor e o herói na atividade estética quando Bakhtin dizia que mesmo que o escritor coloque suas ideias na boca do herói, não são mais suas ideias porque estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo.
No ensaio O discurso no romance, esse deslocamento fundador do ato estético está sintetizado (agora sob os pressupostos da filosofia da linguagem) da seguinte maneira: ttratase ratase de dizer “Eu sou eu” na linguagem de outrem; e de dizer, na minha linguagem, “Eu sou outro”. Essa concepção do necessário deslocamento presente no ato de trabalhar uma linguagem estando fora dela remete àquilo que Bakhtin chama, em seu ensaio sobre o autor e o herói, de o princípio esteticamente criativo na relação autor/herói, qual seja, o princípio
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da exterioridade: é preciso estar fora; é preciso olhar de fora; é preciso um excedente de visão e conhecimetito para poder consumar o herói e seu mundo esteticamente. Posto em termos de linguagem, o princípio da exterioridade (a lógica imanente da criação estética) demanda do escritor que ele desista de sua linguagem, saia dela, libertese dela, olhea pelo olho de outra linguagem, desloquea para outrem ao mesmo tempo em que se desloca para outra linguagem. Em outros termos, é necessário que a consciência artística se libere da prisão da linguagem que se impõe como única e absoluta (conforme está discutido no ensaio Da préhistória do disc discurso urso romanesco); que se libere da hegemonia aprisionadora do imaginário de uma língua unitária e da língua como mito (isto é, como uma forma absoluta de significar) e se deixe vagar livremente pela heteroglossia. No fundo, a formulação da distinção autor pessoa/autor criador em termos de deslocamentos no plano da linguagem é apenas um outro modo de apresentar a conceituação primeira de Bakhtin. Primordialmente, ele nos apresenta o autor criador (enquanto elemento estéticoformal) como uma posição axiológica que dá unidade ao todo artístico. Neste outro momento, Bakhtin caracteriza o autor criador como a voz social que dá unidade ao todo artístico. Este segundo modo de enunciar apenas transpõe a primeira conceituação para o quadro de referências da filosofia da linguagem delineada na décad décadaa de 193 1930. 0. Nel Nelaa — ao concebe conceberr a lilingua nguagem gem como heteroglossia — Bakht Bakhtin in vvai ai dar materialidade verbal às posições so
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cioaxiológicas que passam a ser entendidas como vozes ou línguas sociais, isto é, como formações em que confluem formas léxicogramati cais e uma semântica cujo dominante são os índices sociais de valor. Em suma, a função estéticoformal de autor criador é, nos dois casos, uma posição axiológica. A única diferença é que, no segundo momento, essa posição se reveste de materialidade verbal e o autor criador passa a ser identificado à voz social que cria e sustenta a uni-
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dade do todo artístico. Por ser uma função imanente ao todo estético e por definirse como uma posição axiológica, o autor criador (a voz segunda) é, para Bakhtin, pu p u ra rela re laçã ção: o: não se trata de um ente físico (não é possível encontrar nas ruas Dom Casmurro como tal), mas de uma função narrativa imanente que condensa, num todo estético, determinado feixe de relações valorativas. Ou, como aparece formulado no fim de O autor e o herói h erói na n a atividade estética, a posição axiológica do autor criador é um modododetodo verestético o mundo, um princípio ativo ver que guia a construção e direciona o olhar do de leitor. Dentre incontáveis exemplos possíveis, possíveis, escolhemos Angústia para ilustrar essa discussão. Obviamente, Luís da Silva, o autor criador da narrativa, não é Graciliano Ramos, o escritor do romance. É um ente interno ao romance, puramente relacional; é uma voz social refratada esteticamente (i. e, transposta para o plano estético); é uma posição socioaxiológica que poderíamos caracterizar como a do funcionário pobre, “um Luís da Silva qualquer” (p. 19), 19) , solitário solitário e amar amargo, go, vivendo uma vida monótona e estúpida, cheio de “tristeza e raiva” (p.6). Só enxerga uma paisagem em que “tudo [é] feio, pobre, sujo” (p. 36), em que nada tem qualquer sentido. Despreza profundamente os outros e se vê por eles desprezado (“sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre diabo”, p. 6; “Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam”, p.9). Vive fechado em si, ruminando, com amargor, sua insignificância de ser abjeto a seus próprios olhos. Mesmo seu interesse por
Marina não pode ser classificado por um caso de amor (sentimento que, de fato, não existe em Luís da Silva); é antes uma atração carnal por uma mulher que ele sequer estima. O que lhe dói é perdêla para Julião Ta Tava vare res, s, a quem vota votava va um desprez desprezoo tot total al (“ (“oo home homem m odios odiosoo que tinha tudo, mulheres, cigarros”, c igarros”, p. 18 182) 2).. Essa situação vai vai aacirrar cirrar seus ressentimentos e seus ódios. É dessa posição axiológica integralmente negativa que Luís da
Silva constrói sua angustiante narrativa, narrativa que se afunda em penosas recordações e em doentios redemoinhos psíquicos em que delírio e realidade se mesclam quase sem distinção.
A AUTOBIOGRAFIA E A AUTOCONTEMPLAÇÀO A necessidade do princípio da exterioridade no ato criador poderia ser questionada no caso da autobiografia. Nesta, escritor e herói aparentemente coincidem. Bakhtin, porém, toma a autobiografia precisamente para reiterar seu postulado geral de que sem deslocamento não há ato criador (conforme se pode ler em O autor e herói nnaa atividade estética). Para ele, a autobiografia não é (e não pode ser) um mero discurso direto do escritor sobre si mesmo, pronunciado do interior do evento da vida vivida. Ao escrever uma autobiografia, o escritor precisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, submetendoa a uma valoração que transcenda os limites do apenas vivido. isso (para axiologicamente vida),Para o escritor precisaposicionarse dar a ela certo acabamento, o frente que eleàsóprópria alcançará se distanciarse dela, se olhála de fora, se tomarse um outro em relação a si mesmo. Em outros termos, ele precisa se autoobjetificar, isto é, precisa olharse com certo excedente de visão e conhecimento. O ato de autocontemplação no espelho motiva reflexão semelhante em Bakhtin. Pode parecer, numa abordagem superficial desse fenômeno, que estamos, de fato, nos vendo diretamente como os outros nos veem. No entanto, diz Bakhtin, vemos no espelho uma
face que nunca temos efetivamente na vida vivida: vemos apenas um reflexo do nosso exterior e não a nós mesmos em termos de nosso exterior, porque estamos em frente ao espelho e não no seu interior. O que fazemos, então, quando em frente ao espelho, à falta dessa efetiva possibilidade (de nos vermos a nós mesmos inteiramente abarcados pelo nosso exterior) é nos projetarmos num possível outro
peculiarmente indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos. Nesse sentido, nunca estamos sozinhos frente ao espelho: um segundo participante está sempre implicado no evento da autocontemplação. Em seu caderno de notas de 1943 (conforme traduzidas e publifilosof sofia ia dei acto ét étic ico. o. De los cadas por Tatiana Bubnova em Hacia una filo borradores. Y otros escritos, p. 147) 14 7),, Bakhtin Bakht in volta a esse tema, destacando a complexidade que se esconde atrás da aparente simplicidade da autocontemplação. É ingênuo pensar, diz ele, que no ato de olhar se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho, não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos olhos do mundo — estou possuído pelo pelo outro. Essas reflexões todas têm, como pano de fundo, o pressuposto bakhtiniano forte do primado da alteridade, no sentido de que tenho de passar pela consciência do outro para me constituir (ou, num vocabulário mais hegeliano, o euparamimmesmo se constrói a partir do euparaosoutros; cf. Apontamentos de 19701971).
O TEM TEMA A DO AUTOR AUTOR NO CÍRC CÍ RCUL ULO O DE BAKHTIN Dos outros membros do Gírculo de Bakhtin, apenas Voloshinov vai se ocupar do tema do autor, dedicando a ele boa parte do seu ardiscurso na vida e o discurso na poesia, publicado em 1926. tigo O discurso
O núcleo de sua discussão é muito similar ao de Bakhtin: ela é também formulada em termos de posições axiológicas. Para Voloshinov, o todo estético condensa uma complexa rede de relações axiológicas envolvendo três grandes constituintes imanentes: o autor, o receptor e o herói. Ele deixa claro também que o autor não se confunde com o es-
critor, nem o receptor com o público real. Tratase, nos dois casos, de funções imanentes, constitutivas da obra. Cada uma delas consubstancia (de forma refratada) posições valorativas sociais e, em relações recíprocas, determinam, do interior, a forma do todo estético. Se no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin pensa a forma artística como expressão da relação axiológica do autor criador com o herói (e só muito tangencialmente faz referência ao receptor imanente), Voloshinov como que complementa aquela discussão, detalhando as referências ao terceiro elemento (o receptor imanente) nessa relação. O autor criador tem uma relação axiológica com o herói, mas nunca perde de vista os posicionamentos axiológicos do receptor imanente, seja frente ao mesmo herói, seja frente à própria relação do autor criador com o herói. Em outras palavras, o autor criador fala do herói, mas sempre atento ao que os outros pensam do herói e da própria relação dele com o herói. A relação autor/herói fica assim mais claramente atravessada pelos pelas interdeterminações O receptordiálogos imanentesociais, é a função estéticoformal queresponsivas. permite transpor para o plano da obra manifestações do coro social de vozes.
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CAPÍTULO TRÊS
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM
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s dois pensadores do Círculo que escreveram mais explicitamente sobre questões de linguagem foram Bakhtin e Voloshinov. A filosofia da linguagem que construíram, não está, porém, apresentada integralmente num único texto, até mesmo porque sua elaboração se estendeu no tempo. Ela vai se constituindo ao longo da segunda metade da década de 1920, o período mais produtivo do Círculo como tal, até sua dissolução — por força d das as circu circunstâ nstância nciass a que já nos refer referim imos os — em 192 1929. 9. Bakhtin voltará, posteriormente, a essa temática, ampliandoa e complementandoa. Tratase, portanto, de um pensamento construído coletivamente num primeiro momento e que continua evoluindo depois da dispersão do grupo.
O próprio Bakhtin, em carta de 1961 a V Kozhinov (que pode ser lida em Boch Bocharov arov,, p. 1 01 0166 ), afirm afirmaa que os três livro livross do fim dos anos 1920 (O método formal nos estudos literários, Marxismo e fi-
losofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoievski ) estão
baseados numa concepção comum de linguagem — construída ao tempo em que os três autores “estavam trabalhando em contato criativo muito próximo” (p. 1016). E adiante acrescenta: Até hoje me mantenho fiel à concepção de linguagem e fala que foi pela primeira vez apresentada, de modo incompleto e nem sempre inteligível, naqueles livros, embora, é claro, a concepção tenha evoluído nos últimos trinta anos. Desse modo, para apreender essa filosofia da linguagem numa visão de conjunto, é preciso percorrer e aproximar vários dos textos do Círculo e do próprio Bakhtin. No correr deste capítulo, apresentaremos os passos do processo de construção dessa filosofia, ao mes-
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3 CO O
mo tempo em que tentaremos fazer uma apresentação de seus eixos principais. Por ora, deixamos arrolados, em ordem cronológica, os textos de cada um desses autores em que questões de linguagem foram discutidas. De Voloshinov: — O discurso na vida e o discurso na poesia (1926); freudismo: mo: um esbo esboço ço crítico (1927); — O freudis — As correntes mais recentes do pensamento linguístico no Ocidente (1928); Marxis rxismo mo e f i los lo s o fifiaa d a ling linguag uagem em (1929); — Ma — Estilística do discurso literário (1930) — que compreende os três artigos: “O que é a linguagem?’’, “A estrutura do enunciado” e “A pal palav avra ra e sua fun ção çã o so soci cial al””', fronteir teiras as entr entree poét poética ica e linguística” (1930). — “As fron
De Bakhtin: poétic a de Dostoievski (1929/1963); — Problemas da poética
— “O discurso no romance” (193435); — Rabelais e seu mundo (1945/1965);
— “O problema dos gêneros do discurso” (195253); — “O problema do texto” (195961);
— “Para uma metodologia das ciências humanas” (1974). Cabem aqui duas observações: a) os três último últimoss textos text os d dee Bakh Bakhtin tin são, são, de fato, m manuscritos anuscritos inacabados, com muitas de suas partes apenas esboçadas; b) tópicos de linguagem linguagem ocorrem esp esparsam arsamente ente nas vári várias as notas de caderno, em especial nas de 19701971. Por fim, lembramos que também no livro de Medvedev há considerações sobre a linguagem, boa parte delas muito semelhantes às formulações dos outros dois autores. Em todo caso, a elas faremos referência sempre que pertinente.
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AS RELAÇÕES COM A LINGUÍSTICA Como destacamos anteriormente, o Círculo de Bakhtin conheceu, por p or volta volta de 1925/19 1925 /1926, 26, uma vir virada ada linguística, isto é, a questão questão da linguagem passou a ser central em suas reflexões e reorientou todos os trabalhos daí para a frente. O marco inicial dessa virada é o artigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado por Voloshinov em 1926. No entanto, antes dessa virada já encontramos, nos textos de Bakhtin, reflexões esparsas sobre a linguagem. Ela, contudo, não é ainda colocada como o núcleo articulador do seu pensamento, nem ele se concentra em dizer como a está concebendo. Apesar disso, podemos afirmar que as grandes coordenadas da concepção de linguagem que o Círculo construiu depois, já estavam presentes em Para uma filosofia do ato, particularmente as seguintes: a) a perspectiva da refração avaliativa de noss nossas as relações com o mundo — fundamento da futura concepção concepção da linguagem
como estratificada axiologicamente e do conceituai da heteroglossia, isto é, da multiplicidade das vozes ou línguas sociais;
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b) a relaçã relaçãoo eu/o eu/outro utro — fundamento da grande metáfora dialó-
gica do Círculo, que vai orientar sua compreensão da dinâmica da cultura imaterial e donde emerge a filosofia do riso de Bakhtin e seu conceituai da heteroglossia dialogizada, da do discurso citado; c) bivocalização, o destaque à unicidade dos eve eventos ntos do mundo mundo da vida — qu quee sustentará, no futuro, a insistência do Círculo em aproximar sistematicamente as práticas de linguagem do cotidiano e aquelas das diferentes esferas da criação ideológica. Foi preciso, porém, submeter essas grandes coordenadas conceituais a uma semioticização sociologizada para redesenharlhes o perfil heurístico: foi preciso pe perceber rceber sua materialização materialização em linguagem linguagem e, ao mesmo tempo, perceber a linguagem para além de uma concepção apenas formal, dimensionandoa nas relações sociointeracionais. No texto O problema do conteú conteúdo, do, do material e ddafo aform rm a na arte verbal (de 1924), já está claro que a questão da linguagem estava começando a tomar corpo nas reflexões de Bakhtin. Neste texto, nós o encontramos afirmando que os enunciados concretos emergem sempre num contexto cultural semânticoaxiológico e asseverando que, desse modo, não há e nem pode haver enunciados neutros (p. 292) — o dizer assevera assevera valores, isto é, sempre que enunciamos assumimos também uma posição posiç ão axiológica. axiológica. E, pela prim primeira eira vez, vez, o encontramos fazendo fazendo referência à linguística e dizendo que a dimensão semânticoaxiológica dos enunciados concretos é inapreensível por ela como tal, na medida em que a linguística vê neles somente um fenômeno de linguagem e os relaciona apenas à unidade da língua e de maneira alguma à unidade de um conceito, da vida prática, da história, do perfil de uma pessoa etc. (p. 292). Esse comentário aparece no contexto da discussão específica de como se deve estudar o enunciado artístico. Bakhtin está distinguin-
do o estudo dos fenômenos verbais em si e o estudo dos enunciados
artísticos concretos (da língua na poesia). Ele abre aqui uma distinção que reiterará em vários textos posteriores: de um lado, a linguagem verbal em si (qu estudada pe pela la quaa gramática, qu quaa sistema — como estudada linguística) e, de outro, a linguagem verbal situada, a língua viva. Tratase, neste segundo caso, do enunciado concreto, do ato efetivamente performado no mundo da vida, ou seja, o enunciado sempre situado num contexto cultural axiológicoesemântico, lembrando que a aglutinação visível nesta forma hifenizada busca representar a perspectiva de Bakhtin e de seu Círculo de que a se manticidade do enunciado concreto envolve sempre e de modo in terconectado valor e significado. Ao abordar especificament especificamentee os enunciados da arte verbal, Bakhtin afirma que eles devem ser estudados como fenômenos puramente verbais (p. 293), mas tal estudo é insuficiente para a análise estética, na medida em que o que entra no todo estético não é a língua na sua condição gramatical (a língua em si), mas fundamentalmente a língua como realidade semânticoaxiológica; “não é a forma linguística que entra no todo estético, mas sua significação axiológica” (p. 299). Embora ocupado neste momento basicamente com os enunciados artísticos e com as bases de uma estética filosófica, Bakhtin já está visualizando que o modo de conceber a linguagem como estratificada axiologicamente exigiria uma disciplina diferenciada da linguística para seu estudo. Ele não fala ainda das duas disciplinas (linguística e translinguística) a que fará referência no capítulo 5 de Problemas da p poé oéti tica ca de Dosto Do stoiev ievski ski,, mas já antecipa, de certa forma, a questão.
L in g u í s t ic a e t r a n s l i n g u ís t ic a No capítulo 5 do livro sobre Dostoievski (justamente aquele em que discute a bivocalização na linguagem do autor), Bakhtin fala explicitamente explici tamente (p. 181) 18 1) da necessidade de du duas as disciplinas distintas distintas
para o estudo da linguagem verbal: a linguística — para o estudo gramatical propriamente dito; e a translinguística (que Bakhtin chamou de metalinguística) — para o estudo das práticas socioverbais concretas, concentrandose particularmente em sua dinâmica e significação, tratando, entre outros aspectos, das relações dialógicas (no sentido discutido no capítulo anterior). Embora propostas como duas disciplinas distintas, Bakhtin as entende em permanente correlação, o que o leva a dizer também que seus limites, na prática, são violados com muita frequência: Obviamente, a pesquisa translinguística não pode ignorar a linguística e deve fazer uso de seus resultados. A linguística e a translinguísti ca estudam um e o mesmo fenômeno concreto, altamente complexo e multifac multifacetado, etado, a saber, o discurso discurso [síov [síovo] o] — mas o estudam a partir partir de vários lados e diferentes pontos de vista. Elas devem se complementar mutuamente, mas não devem ser confundidas. Na prática, as fronteiras entre elas elas são frequentemente violadas violadas (p. 181) 181).. Bakhtin tinha, portanto, clareza de que o objeto de seu interesse, gros grosso so modo mo do apresentado como discurso, isto é, a língua em sua totalidade concreta e viva, e não a língua como o objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração totalmente legítima e necessária de vários aspectos da vida concreta da palavra [síovo] (p. 181)
não poderia ser satisfatoriamente estudado por uma perspectiva estritamente linguística. Daí ele propor outra disciplina distinta da linguística, mas em constante correlação com ela, acrescentando a observação de que os limites entre ambas seriam, na prática, violados frequentemente. Essa última observação mostra Bakhtin bem consciente da impossibilidade de ignorar a linguística (isto é, o estritamente verbal do enunciado) e, por outro lado, de estabelecer limites rígidos entre os dois tipos de enfoques no estudo da linguagem. Em seu texto O problema dos gêneros do discurso, ele volta a trabalhar com esses dois planos de análise, enfatizando a necessida-
de_de separar a análise do objeto sentença (em que se estabelecem relações entre os elementos linguísticos) do objeto enunciado (em que se estabelecem relações entre pessoas). Esse modo de encarar a questão do linguístico e do discursivo nos leva a duas considerações. Primeiro, parecenos importante destacar para que Bakhtin defendendo necessidade de uma segunda ciência estudar aestá linguagem linguagem, , masanão a está propriamente criando: ele não recorta um “objeto calculável”, nem formula proposições formais de método. O objeto “língua em sua totalidade concreta e viva” não está suficientemente recortado para permitir a delimitação efetiva de uma ciência e menos ainda de um método para abordálo. O máximo que podemos dizer, seguindo o raciocínio heideggeriano discutido no capítulo um, é que o Ser da linguagem “em sua totalidade concreta e viva” está interpelando Bakhtin — que lhe responde com uma filosofia da linguagem e não propriamente com uma nova ciência. Por outro lado, podemos observar que há no discurso bakhti niano uma relação bastante positiva com a linguística. Ou, em outros termos, Bakhtin nunca põe a linguística em questão: aceita sua especificidade especifici dade (isto é, o estudo do verbal em si — ver O problema prob lema do texto, p. 120) 12 0),, considera legítimas legítimas e justificá justi ficáveis veis as abstrações operadas pela linguística (Problemas da poética de Dostoievski, p. 181) e toma o sistema gramatical como um dado, caracterizandoo por sua virtualidade (O prob problema lema do text texto, o, p. 118). Ele apenas quecomunicação a linguística,verbal embora é insuficiente para oconsidera estudo da emnecessária, si, nos termos em que ele a entende, isto é, para o estudo das formas desta comunicação, da natureza dos enunciados concretos, das relações dialógicas, dos gêneros do discurso (O problema do texto, p. 118). Nesse sentido, há uma clara diferença entre ele e Voloshinov. Este é um crítico contumaz da linguística, em especial de sua perspectiva formal (que ele designa de objetivismo abstrato). Seu argumento básico aqui é que a noção de sistema sincrônico não tem qualquer objetividade (cf. cap. II2 de Marxismo e filosofia da lin guage gu agem) m) e, portanto, é um erro perseguilo cientificamente.
Em nenhum momento, ele propõe criar uma segunda ciência: para ele basta redirecionar criticamente a linguística, incorporando lhe a enunciação como objeto (p. 96). Mesmo o estudo das formas linguísticas como tais só é possível, segundo ele, no interior de uma teoria da enunciação: Enquanto a enunciação, em sua inteireza, continuar sendo terra incognita para o linguista, será impossível falar de uma compreensão genuína, concreta, não escolástica das formas sintáticas (p. 110). E afirma, como princípio geral, que o estudo das formas gramaticais deve estar metodologicamente situado no ponto de chegada dos estudos linguísticos e não no ponto de partida (p. 9596): Daquilo que acabamos de estabelecer, segue que a ordem metodologicamente fundada do estudo da linguagem deve ser: (1) ascondições formas econcretas; os tipos de interação verbal em conexão com suas (2) as formas de enunciações particulares, de atos particulares de dizer, em ligação estreita com a interação de que são constituintes i.i.e. e.,, os gê gênero neross do discurso discurso na ideologia ideologia d doo cotidiano e na criação ideológica como determinadas pela interação verbal; (3) um reexame, a partir dessa nova base, das formas da língua em sua apresentação linguística usual. Assim, enquanto Bakhtin considera que o linguista está correto em da abordar fechado do sistema línguaos(Oelementos prob pr oble lem m a linguísticos do texto, p. no 120),contexto Voloshinov critica precisamente o fato de o pensamento linguístico ter perdido, sem esperança, qualquer sentido do todo verbal (p. 110). Essa negação algo radical de uma perspectiva formal para o estudo da linguagem tem, porém, seu preço. Segundo nossa avaliação, ela traz para Voloshinov algumas problemas de coerência interna. E isso é particularmente visível quando ele, ao discutir a relação falante/signo, argumenta que os falantes, na interação concreta, não se orientam por um sistema abstrato de formas, mas pela significação que a forma adquire no contexto singular da enunciação:
Podemos expressar isso da seguinte maneira: o que importa para o falante sobre uma forma linguística não é ser ela um sinal estável e sempre autoequivalente, mas ser um signo sempre mutável e adaptável (p.68). Introduz, então, uma distinção entre sinal e signo, apresentando o primeiro como o nível da recorrência e do estável e o segundo como o nível do sempre mutável e adaptável. Embora essa distinção faça sentido no conjunto de sua reflexão (na medida em que ele quer precisamente enfatizar a plurissignificação do signo nos diferentes contextos de enunciação), ele não deixa esta relação sinal/signo suficientemente bem resolvida no plano teórico. Isso, segundo nosso ponto de vista, porque Voloshinov não consegue lidar com clareza com a especificidade gramatical, negandolhe pertinência num ponto de seu texto e pressupondoa em outro. Embora alguns estudiosos da linguagem cheguem mesmo a negar essa especificidade, parecenos, de fato, impossível tratar a linguagem verbal sem considerála. Podemos, é claro, criticar as insuficiências dos modelos gramaticais existentes e até mesmo tentar criar outros levando em conta o pressuposto de Voloshinov (i. e., de que o estudo não escolástico das formas linguísticas como tais só se faz produtivamente no interior de uma teoria da enunciação). Contudo, parecenos que não podemos ignorar sua materialidade ou dela escapar: ela, sem dúvida, constitui um dos incontornáveis do objeto linguagem, no sentido heideggeriano do duplo incontornável da ciência (ver Ensaios e conferências, p. 5057 em particular). O próprio Voloshinov não a ignora em seu quadro de referência. Assim, ao discutir a significação do enunciado (cap. II4 de Marxis Ma rxismo mo e filo fi loss o fia fi a d a linguag ling uagem), em), ele inclui as formas linguísticas como parte inalienável do enunciado e a significação calculável nestas formas (que ele identifica como os aspectos semânticos que são reiteráveis e sempre iguais em qualquer situação em que o enunciado ocorre) como parte inseparável da significação deste. Em outras palavras, o plano da sinalidade é parte constitutiva do plano da significação do enunciado. Assim, sua semântica com-
portaria necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a significação dada pela estrutura (reiterável e sempre igual) e a significação dada pela enunciação (o sempre mutável e adaptável) — ou seja, o mesmo (sinal) que é sempre outro (signo). Como formulação semântica geral, parecenos uma diretriz adequada: ela constitui, de fato, o núcleo de qualquer discussão pertinente sobre a significação da linguagem. Ela antecipa, por várias décadas, o desafio que continua a nos perseguir nas disciplinas da significação, isto é, engendrar modelos semânticos capazes de subsumir esta correlação. Apesar de, na discussão das bases de sua semântica, Voloshinov não recusar pertinência à materialidade do linguístico como tal, ele parece perderse um pouco no tratamento dessa questão no capítulo em que introduz a distinção sinal/signo (cap. II2). A discussão que se desenvolve neste ponto do livro deixanos a forte impressão de que Voloshinov parece ter confundido o sistema sincrônico conforme definido pelo objetivismo abstrato com o (irrecusável) aspecto estrutural da língua e, ao recusar um, acabou por recusar o outro, criando para si mesmo um vácuo teórico: ele não consegue falar do enunciado sem admitir que há nele uma face reiterável (que ele chama de sinalidade)] no entanto, não encontra elementos para caracterizar sua natureza e termina por fazer a afirmação claramente esdrúxula de que o componente de sinalidade existe na língua, mas não como constituinte da língua como tal (p. 69). O que poderia ser isso que existe na língua, mas não é constituinte dela? Obviamente, o fato de o elemento de sinalidade ser “dialeti camente eclipsado pela nova qualidade de signo” (p. 69) não lhe tira a especificidade estrutural. Voloshinov parece ter confundido os planos da sentença e do enunciado; e, ao recusar uma linguística de sistema, não encontra uma alternativa para lidar com aquela especificidade que fica mal situada em seu conceituai: o sinal — a forma linguística com tal — é sem sser er!!
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As origens das dificuldades de Voloshinov parecem estar em sua clara filiação (embora crítica) à filosofia da linguagem de Humboldt. Ao apresentar e criticar as duas principais correntes do pen Marxis rxismo mo e filo fi loss o fia fi a samento linguístico de seu tempo (Parte II de Ma da lingu linguagem), agem), Voloshinov descarta radicalmente o objetivismo abstrato, argumentando que o sistema sincrônico, pedra angular dessa corrente, não tem objetividade — em direta oposição ao que sobre isso afirmava Saussure no Curso de linguística geral (p. 23) — e é, portanto, um erro perseguilo. Sua crítica ao subjetivismo individualista, contudo, é menos radical. Ele não aceita seu compromisso de base com uma concepção individualista do falante e de sua atividade atividade linguística linguística isto é, o fato de seus atos de dizer serem entendidos como expressões de uma consciência puramente individual; ou, em outros termos, sua incapacidade de compreender a natureza social do enunciado e da enunciação. No entanto, Voloshinov considera corretos os outros pressupostos de base da tradição humboldtiana (p. 93 e 94): tomar a enunciação como a realidade concreta da linguagem e não separar a forma linguística de sua substância ideológica. Em outras palavras, ele se filia a essa tradição (em oposição à tradição racionalista — em que nada enxerga de correto), dandolhe, porém, uma perspectiva sociológica. Suas cinco teses, apresentadas ao fim do capítulo II3, sintetizam esses dois posicionamentos: a linguagem é apresentada como atividade (como energeia), mas seus princípios são caracterizados como de natureza sociológica. Ao filiarse à tradição humboldtiana, Voloshinov, ao mesmo tempo em que lhe dá um caráter novo (ao sociologizála), herda as dificuldades daquele pensamento para tratar do gramatical propriamente dito, na medida que ponto este é visto, naquela como ponto de chegada e nãoemcomo de partida da tradição, linguagem, ou seja, como um a posteriori e não como um a priori da atividade
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linguística. Esta não é um mero produto de um sistema que lhe preexiste (como a entende o racionalismo linguístico), mas o sistema resulta da atividade elaboradora do espírito.
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A obra de Wilhelm von Humboldt (17671835) sobre a lingua-
o d ; í a c i t s í t i c n i l s a i e d i s a : o g o l á i d & m e c a u c n i L
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gem costuma ser apresentada extensa e dificilmente suscetível de sistematização. Ele era donocomo de uma erudição enciclopédica e de uma paixão pelas línguas. Sua vida abastada lhe deu condições de estudos, viagens e contatos contínuos com grande parte da intelectualidade européia de seu tempo. Era, portanto, um intelectual de interesses múltiplos, o que, com certeza, contribuiu para uma produção não facilmente sistematizável. A esse respeito, é interessante reproduzir as palavras de E. Cassirer (18741945) que, em seu livro A filo fi loso sofifiaa das fo form rmas as simbólicas (1923), muito se inspirou nas reflexões de Humboldt (e foi leitura de cabeceira de Vo Voloshin loshinov ov que que — segundo segundo repo reporta rta Mika Mika L Lâhteen âhteenmãki mãki (20 (2 002, 02 , p. 193) 193) — havia havia inclusive iniciado iniciado uma tradução dess dessee texto para o russo): Essencialmente, Humboldt é um pensador sistemático, mas ele se mostra hostil a toda e qualquer técnica de sistematização apenas exterior. Ocorre, assim, que seu empenho em sempre apresentar em cada um dos pontos de sua análise simultaneamente a totalidade de sua concepção da linguagem resulta na ausência de uma distinção clara e inequívoca desta totalidade. Os seus conceitos nunca são os produtos puros e livres da análise lógica; neles, ao invés, vibra sempre uma tonalidade estética do sentimento, uma atmosfera artística, que anima a exposição, mas, ao mesmo tempo, encobre a articulação e a estrutura das das idéias, (p. 140 14014 141) 1) Em outras palavras, Humboldt é antes de tudo um filósofo da linguagem e não propriamente um linguista no sentido estrito do termo: o que parece lhe interessar, antes de qualquer coisa, é o Ser da linguagem e não a formulação de um método de análise de um “objeto calculável”. Daí, talvez, a suposta falta de senso de sistematização que alguns lhe atribuíram. Ao que se sabe, Humboldt estudou línguas extensamente: conheceu muitas das gramáticas de línguas ameríndias feitas pelos
missionários; manteve contato epistolar permanente com pesquisadores de línguas indígenas da América do Norte; esteve no País Basco para conhecerlhe a língua; e, frequentando em Paris a École des Langues Orientales Vivantes, entrou em contato com línguas da Ásia (em especial, as semíticas, o chinês e a língua kawi, da ilha de Java). A esta última última,, Hum Humbold boldtt destinou destinou sua sua invest investiga igação ção de maior porte, publicada postumamente em 1836, contendo uma introdução de caráter mais geral, em que encontramos suas concepções sobre a natureza da linguagem. Para ele, linguagem e pensamento constituem uma unidade. Nesse sentido, a língua não é entendida apenas como a manifestação externa do pensamento (algo que vem depois do pensamento), mas aquilo que o torna possível. Ela tem, nesse sentido, um caráter constitutivo, viabilizando a elaboração conceituai e os atos criativos da mente. É por isso que Humboldt afirma ser a língua um processo, uma atividade (energeia) e não um produto (ergon). Ela é, ao mesmo tempo, algo que perma permanece nece (o ergon acumulado que cada geração recebe e que constitui, no seu conjunto, a visão de mundo mundo da nação, o espírito do povo — bem de aacordo cordo com o ideário do pensamento romântico, do qual Humboldt foi um dos formuladores) e algo transitório (porque é inerentemente energeia, isto é, trabalho mental criativo contínuo, um verdadeiro ato artístico que opera permanentemente sobre o ergon, reconfigurandoo). É interessante destacar o grande fundamento semântico (e não propriamente gramatical) da concepção de Humboldt: um elaborar contínuo do intelecto (energeia) e o resultado desse processo, o acúmulo histórico desse trabalho (ergon) — que constitui a cosmovisão da nação, o espírito do povo. Ora, Voloshinov incorpora essas duas facetas, sociologizandoas: o elaborar contínuo é precisamente o jogo de significações sempre novas que se dão no processo de interação social — a linguagem como uma energeia social. Já o ergon perde o caráter unitário de referência
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a ‘povo’ ou ‘nação’ e se mostra socialmente estratificado em diferentes índices sociais de valor, em diferentes horizontes sociais apreciativos; não se trata mais de uma, mas de múltiplas cosmovisões.
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Voltando ao pensamento de Humboldt, vale lembrar que, se,
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de um lado, a diversidade das línguas o fascinava, ele acreditava que por detrás dela havia uma única forma geral, um modo único de ser — energeia: Pois na linguagem a individualização de uma conformidade geral é tão maravilhosa que podemos dizer com igual correção que a humanidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem a sua própria (p. 53). Em outras palavras, a capacidade de individualizar a forma ge-
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ral da linguagem constitutiva) a mesma na humanidade como(enquanto um todo e atividade em cada indivíduo em éparticular.
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Desse modo, sua concepção universalizante não diz respeito a uma gramática gramática universal entendida como u um m sistema, mas como uma dinâmica mental de elaboração da expressão. Num certo sentido, então, Humboldt se aproxima da tradição universalizante que atravessa os séculos e tem suas formulações bem conhecidas no século XX, mas afastase de todas elas por conceber a língua não como um sistema gramatical, mas como uma atividade mental sistemática de elaboração. Para ele, a gramática como tal (como um a priori p riori)) e a comunicação são absolutamente acessórias, vêm depois e nunca antes daquilo que é o essencial, isto é, o trabalho elaborador do espírito.
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Vale a pena, neste ponto, voltar ao texto de Cassirer e reproduzir a súmula que ele faz do pensamento de Humboldt sobre esse tema específico, trecho em que fica clara a indisposição geral da tradição humboldtiana com a questão especificamente gramatical: A fragmentação daelinguagem em palavras e regras seráa sempre trabalho grosseiro inútil da análise científica — pois essênciaum da linguagem não reside jamais nestes elementos ressaltados pela abstra-
ção e pela análise, mas tão somente no trabalho eternamente repetido
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que realiza o espírito para tomar o som articulado capaz de expressar o pensamento. Em cada língua, este trabalho tem início em determinados pontos centrais, expandindose, a partir deles, para diversas direções — e apesar disso, esta multiplicidade de processos criadores se funde afinal, não na unidade objetiva de uma criação, mas na unidade ideal de uma atividade que, em si, está subordinada a regras específicas. A existência do espírito só pode ser concebida em atividade e como atividade, e o mesmo é válido para cada existência particular que somente é apreensível e possível através do espírito. Consequentemente, o que denominamos de essência e forma da linguagem nada mais é do que o elemento permanente e uniforme que podemos detectar, não em uma coisa, mas no trabalho realizado pelo espírito para fazer o som articulado expressão de um pensamento pensamento (p. 14614 6 1477). Este trabalho mental elaborador, com as mesmas propriedades criativas, em Voloshinov — a contrapelo de toda a tradição hum boldtiana boldt iana — é social, isto é, resulta da internalização internalização da lógica dos signos, que é a lógica da interação socioaxiológica (como vimos em detalhe no capítulo dois). Assim, em sua perspectiva, o falante é social de ponta a ponta (“a única definição objetiva possível da consciência é sociológica”, p. 13). Mas, ao mesmo tempo, ele é individual de ponta a ponta. Quer dizer: o fato de seu psiquismo ser integralmente social não lhe tira a individualidade, porque seu mundo mental não é uma realidade estática, mas dinâmica (e, portanto, porta nto, criativa criativa — pressuposto pressuposto fundamental de Humboldt). Essa dinamicidade mental decorre do fato de o psiquismo refletir a lógica da comunicação sociocultural, soci ocultural, isto é, a lógica das relações dialógicas, do encontro tenso (e até contraditório) das múltiplas línguas sociais. Também para Voloshinov, “a existência do espírito só pode ser concebida em atividade e como atividade”, mas seu móvel :
é social e não puramente individual. Diz ele: A consciênc consciência ia toma forma e vida no material semiótico semiótico criado, por
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um grupo organizado, no processo de sua interação social. A consciência individual se alimenta de signos; ela retira deles seu desenvolvi
mento; ela reflete sua lógica e leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação socioideológica, da interação semiótica de um grupo social (p. 13). Em suma: Voloshinov adota a concepção de Humboldt de linguagem como atividade, mas muda radicalmente o eixo de sua articulação ao atribuirlhe um caráter inerentemente social, em que a interação, longe de ser acessória (como era para Humboldt), é essencial. Desse modo, o trabalho elaborador mental contínuo não precede a comunicação, embora seja a comunicação, ao alimentar de signos a consciência e darlhe a lógica das relações dialógicas, que o torna possível. Voloshinov, ao sociologizar a concepção de Humboldt, recupera o poder heurístico daquela filosofia e abre nova direção para os estudos linguísticos que desejam enfocar a linguagem primordial mente como atividade e não como sistema. No entanto, Voloshinov, como os humboldtianos em geral, tem dificuldades para situar em seu quadro teórico a questão do especificamente gramatical. Faz avançar a discussão da linguagem como atividade, mas deixa mal resolvida a questão da face formal da linguagem. É relevante lembrar, neste ponto, que o linguista brasileiro Carlos Franchi (cf. Franchi 1977) também filiava seu pensamento ao de Humboldt e também defendia uma concepção de linguagem como atividade constitutiva. Mais do que isso, acreditava ter encontrado, na lógica combinatória e na teoria da funcionalidade formulada por Curry e Feys, um caminho promissor para um modelo formal capaz de “dar conta da ‘forma’ de uma atividade” (p. 36). Se de fato adequado, tal tratamento formal colocaria no n o horizonte horizonte uma perspec perspectiva tiva de superação da clássica limitação gramatical do pensamento humboldtiano. Bakhtin toma caminho diverso de Voloshinov no trato dessa
complexa questão. Sua estratégia é propor uma divisão de trabalho entre duas disciplinas, argumentando que sentença e enunciado são fenômenos de naturezas diferentes a exigir análises diferentes.
Seu foco de interesse (como também o de Voloshinov) é o enunciar como atividade social intrinsecamente dialógica (no sentido amplo do termo) e não como um fato puramente léxicogramatical. No entanto, se ele nada avança no sentido de uma análise estrutural, nem por isso nega sua relevância ou reduz o estrutural a um elemento que é sem ser. Essa divisão de trabalho certamente não agradaria Voloshinov. Dizemos isso considerando suas reiteradas argumentações, quando discutia os fundamentos de uma poética sociológica, de que, no interior de um quadro de referência marxista, o estudo das questões humanas devia respeitar necessariamente o monismo metodológico e o caráter social e histórico dessas questões. Poderíamos contraargumentar lembrando simplesmente que, como Bakhtin não tinha o marxismo como quadro de referência de seu pensamento, não precisava se submeter ao monismo metodológico defendido por Voloshinov. No entanto, o cerne dessa questão é bem mais complexo. A divisão de trabalho que Bakhtin aceita, continua permeando, quase aporeticamente, as discussões contemporâneas na área dos estudos linguísticos. Se temos relativa clareza de que as práticas de linguagem e suas significações são de caráter históricosocial, essa mesma clareza existe se trata face estrutural daso línguas. Não é precisonão dizer quequando a respeito destadaé hegemônico hoje pensamento que a toma como uma realidade biológica. Essa caracterização, é claro, incomoda vários estudiosos, muito embora ninguém tenha conseguido até agora formular uma efetiva alternativa teórica para a questão. Se chegássemos um dia a demonstrar que, de fato, o estrutural é, no fundo, de natureza históricosocial, então o monismo metodológico defendido por Voloshinov se imporia naturalmente e Bakhtin estaria errado em têlo considerado de nature-
za diferente dos fenômenos discursivos e a exigir análise diferente. No entanto, se viesse a prevalecer o argumento de que o estrutural, no fundo, é de caráter biológico, teríamos, então, de aceitar
n í i t i w a B e d u l t c r é C o d s a c i t s í u g n i l s a i e d i s a : o g o l á i d
& m e g a u g n i L
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O C A R A F O T R E B L A S O L R A C
a impossibilidade do monismo metodológico e, por consequência, a necessidade da divisão de trabalho nos estudos linguísticos. Isso nos lançaria num outro patamar, que exigiria uma articulação entre o biológico e o históricosocial, assim formulado, em termos gerais, por Raymond Williams (1977, p.4344): Desse modo, podemos acrescentar à necessária definição da faculdade biológica da linguagem como constitutiva uma igualmente necessária definição do desenvolvimento da linguagem — tanto no indivíduo quanto na sociedade — como social e historicamente constituído. O que podemos, então, definir é um processo dialético: a consciência prática cambiante dos seres humanos — nela ambos os processos evolutivo e histórico podem tanto receber o mesmo peso, quanto podem ser distinguidos na complexa variabilidade do uso concreto da língua. É a partir deste fundamento teórico que podemos avançar para distinguir “literatura”, no interior de um desenvolvimento histórico específico da escrita, do conceito retrospectivo abstrato, tão comum no marxismo ortodoxo, que a reduz, como o faz com a própria linguagem, a uma função e, na sequência, a um subproduto (super estrutural) do trabalho coletivo.
A TRANSLINGUÍSTICA E AS DISCIPLINAS CONTEMPORÂNEAS Como se vê, Bakhtin, ao propor que era preciso criar uma segunda disciplina para o estudo da linguagem enquanto prática social, estava, de certa forma, apenas antecipando uma discussão que tomaria vulto décadas depois e que permanece viva entre nós. Embora não se possa dizer que esta seja uma questão resolvida entre os estudiosos da linguagem, acreditamos não ser incorreto afirmar que há certa crença, entre boa parte deles, de que tal divisão
de trabalho é pertinente (mesmo que não assumam, como axioma, o caráter biológico do estrutural). Por outro lado, não se pode esquecer que entre os que admitem (e defendem) uma divisão de trabalho entre o estudo da
estrutura e o estudo das práticas de linguagem, há aqueles que consideram ser o uso da linguagem incognoscível cientificamente. É o caso de Chomsky (2000), que sugere ter a linguagem natural apenas sintaxe (no sentido que o termo tem em sua teoria) e p prr a g m á tic ti c a (p. 132). Este último termo é usado aí num sentido amplo, recobrindo as questões da língua em uso. Para ele, estas questões estão fora do alcance do conhecimento científico, pelo menos de uma ciência que ele classifica de naturalística (cap. 4) e parecem antes constituir mistérios — que nunca serão resolvidos pela mente humana (p. 133). Bakhtin talvez concordasse em parte com Chomsky, se lembrarmos que, para ele, o estudo das práticas de linguagem não é da alçada das Naturwissenschaften, mas das Geisteswissenschaften. Ou, em outros termos, o estudo das práticas de linguagem é tarefa de “uma disciplina de interpretação e não de uma física de tipo novo”. Contudo, Bakhtin certamente recusaria o pressuposto de que as práticas de linguagem são incognoscíveis, já que ele chegou a propor uma disciplina para estudálas — a translinguística. De todas as disciplinas linguísticas contemporâneas, é a análise do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o projeto de uma translinguística. Não é fácil sintetizar em poucas linhas os projetos e pressupostos da análise do discurso, particularmente se considerarmos a diversidade teórica que aí encontramos. No entanto, parece correto afirmar que uma teoria do discurso é fundamentalmente uma teoria da significação do dizer, privilegiando aquilo que está aquém e além da estrutura, isto é, o já dito (a memória discursiva) e os efeitos de sentido do dizer em dada circunstância.
Ora, Bakhtin concebeu a translinguística precisamente para se ocupar da enunciação e dos seus sentidos. Não lhe interessava, em princípio, uma semântica da estrutura linguística em si (embora não a descartasse), mas o estudo da significação do enunciar, em especial dos efeitos de sentido das relações dialógicas.
Por outro lado, a teoria do discurso assume hoje como pressuposto de base (e explicitamente inspirado em Bakhtin) a heterogeneidade constitutiva dos discursos e dos enunciados, o que implica qualquer concepçãoconstituem homogênea formação discursiva eabandonar de enunciado. Os discursos umdeemaranhado de inter seções enunciativas e estão dispersos por diferentes formações. Os enunciados emergem desse oceano heterogêneo e estão mais ou menos explicitamente marcados pela heterogeneidade que os constitui. Nessa perspectiva, é interessante lembrar que Bakhtin elaborou um conceituai em que as vozes sociais não têm propriamente um espaço interior: elas vivem nas fronteiras (são, portanto, heterogêneas), vivem em pontos de continua tensão socioaxiológica, de continuas interanimações, contraditoriedades, entrecruzamentos e reconfigurações. Por outro lado, ao identificar enunciação e posicionamento axio lógico, Bakhtin e o Círculo deram à teoria do discurso um interessante viés para a apreensão dos fundamentos fundamentos da heterogeneidade discursiv discursiva, a, do processo de inscrição da história na língua e de sua dinâmica. A proximidade da concepção bakhtiniana e da teoria contemporânea do discurso fica bastante evidente quando observamos um dos aproveitamentos heuristicamente mais produtivos do conceituai de Bakhtin na área dos dos estudos linguíst linguísticos icos — as formulações de J . AuthierRevuz sobre a questão da heterogeneidade discursiva. Essas formulações tiveram, conforme destaca G. Williams (p. 164), um profundo impacto e influência nos desdobramentos e redesenhos da teoria contemporânea do discurso.
Por fim, é interessante comentar que alguns analistas viram a filosofia do Círculo de Bakhtin como precursora da chamada pragmática — entend entendida ida como o component componentee da aná análise lise linguística que que,, som somado ado à sintaxe e à semântica, foi proposto como necessário para se dar conta de aspectos da significação que decorrem do uso da língua ou daquilo que os falantes fazem contextualmente com seus enunciados.
G. Williams (p. 203204) aproveita a argumentaçao de Boutet (1994) para rejeitar essa relação. Segundo ele, Boutet: rejeita tal interpretação, afirmando que a ênfase de Bakhtin em analisar as formas gramaticais e discursivas em relação a situações sociais concretas de enunciação e o modo como sua teoria semântica repousa na tensão dinâmica entre o tema e o significado de uma enunciação conduzem, em última análise, a uma crítica radical do empreendimento pragmático. Boutet afirma que nem consenso social, nem negociação participam como princípios organizativos da interação verbal nos trabalhos de Bakhtin. Ao contrário, a organização se assenta num princípio opositivo envolvendo a natureza contraditória da atividade linguística e da interação. Em outras palavras, palavras, embora Bakhtin se ocupe, ocupe, como a pragmática, pragmática, com os fenômenos da língua situada, ele ultrapassa em muito os limites desta disciplina porque não interessa a ele calcular as significações que decorrem da relação de um enunciado com o contexto imediato de sua enunciação ou com a intenção do falante (em outros termos, não lhe interessa o significado do falante, no sentido que a pragmática deu a esta expressão), mas as relações dialógicas entre enunciados — relações de significação que não se reduzem aos contextos imediatos, mas se constituem no encontro de diferentes vozes/ línguas sociais.
A FILOSOFIA D DA A LING LINGUAG UAGEM EM DO Cí CíRC RCU U LO NUMA VISÃO DE CONJUNTO Como dissemos anteriormente, Voloshinov e Bakhtin são os dois membros do Círculo que mais extensamente discutiram o tema
da linguagem. Construíram em conjunto, na segunda metade da década de 1920, uma concepção de linguagem que — ampliada nos textos e manuscritos de Bakhtin posteriores a 1930 — singulariza o Círculo no contexto da história das idéias linguísticas. Nosso objetivo agora é, depois de ter destacado vários de seus aspectos, apresentar essa concepção numa visão de conjunto, reite-
rando que estamos diante de uma reflexão geral de natureza filosófica (uma formulação sobre o Ser da linguagem) e não de proposições de natureza científica (formulação de método para análise de um “objeto calculável”). Podemos dizer que o Círculo parte da asserção de que a realidade fundamental da linguagem é o fenômeno social da interação (Marxi xismo smo e filo filoso sofia fia da lin lingua guagem, gem, p. 94). Nesse sentido, a verbal (Mar linguagem verbal não é vista primordialmente como sistema formal, mas como atividade, como um conjunto de práticas socioculturais — que têm format formatos os relativamente relativamente estáv estáveis eis (concretizamse em diferentes gêneros do discurso) e estão atravessadas por diferentes posições avaliativas sociais (concretizam diferentes vozes sociais). A interação socioverbal não deve ser entendida como englobando apenas a comunicação face a face (i.e., como diálogo no sentido restrito do termo), nem sequer como eventos fortuitos e aleatórios entre mônadas falantes que trocam enunciados a esmo. A interação é entendida, conforme diz Voloshinov (p. 95), como “toda a comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”, sendo o diálogo face a face apenas um destes muitos tipos. Por outro lado, os eventos interacionais — sejam aqueles das esferas do cotidiano, sejam aqueles das esferas mais especializadas da criação socioideológica — são sempre sempre compreendidos como situad situados os num complexo quadro de relações socioculturais. Os eventos estão, portanto, sempre correlacionados com a situação social mais imediata e com
o meio social mais amplo, ambos se entrecruzando em cada evento e tendo aí papel condicionador dos atos de dizer e de sua significação. Mais importante, porém, é lembrar que não são os eventos em si que interessam, mas aquilo que neles acontece, isto é, as relações dialógicas em sentido amplo, conforme discutimos no capítulo dois. Assim, o Círculo não se propõe reduzir a questão do dizer à esfera das relações interindividuais (como pressupõe, por exemplo, uma abordagem etnometodológica) ou à esfera das relações sociais
pensadas sobre o modo de interação entre grupos humanos (como pressupõe a etnografia da comunicação). Seu foco efetivo de atenção são as relações dialógicas, entendidas como relações de sentido que decorrem da responsividade (da tomada de posição axiológica) inerente a todo e qualquer enunciado. Os sujeitos que se envolvem nessas relações dialógicas não são entes autônomos e présociais, mas indivíduos socialmente organizados. Isso significa dizer que os sujeitos se definem como feixes de relações sociais: constituemse e vivem nestes feixes que são múltiplos, não fixos e nunca totalmente coincidentes de pessoa a pessoa (ainda que membros de um mesmo grupo social). Os sujeitos são, portanto, seres marcados por profunda e tensa heterogeneidade. Essas inúmeras relações sociais se materializam semioticamente (isto é, os sujeitos se constituem e vivem numa emaranhada rede de signos) e ocorrem sempre no interior das inúmeras esferas da atividade humana, desde as mais efêmeras do cotidiano até as culturalmente mais elaboradas. Dentro dessas esferas da atividade, geramse formas relativamente estáveis de dizer — os gêneros d doo discurso. Como os sujeit sujeitos os são pluriativos (envolvemse em múltiplas dessas esferas da atividade humana), são também seres que transitam por múltiplos gêneros do discurso, isto é, realizam seu dizer por meio de diferentes gêneros correlacionados às diferentes esferas da atividade. Todo o dizer, por estar imbricado com a práxis humana (social e histórica), está também saturado dos valores que emergem des-
sa práxis. Essas diferentes “verdades sociais” (essas diferentes refra ções do mundo) estão materializadas semioticamente e redundam em diferentes vozes ou línguas sociais que caracterizam a realidade da linguagem como profundamente estratificada (heteroglóssica) e atravessada pelos contínuos embates entre essas vozes — a infinda heteroglossia dialogizada. Esta pode ser caracterizada como uma espécie de guerra de discursos, em que estão em permanente tensão forças centrípetas
(centralizadoras, monologizadoras, que tentam apagar ou submeter a heteroglossia) e forças centrífugas (que resistem à monologização e multiplicam a heteroglossia). Os enunciados emergem nesse caldo heteroglóssico e nos pontos de tensão entre essas forças. Têm uma face verbal (o dito) e uma face não verbal (o presumido — que amarra a significação do enunciado ao horizonte social amplo, ao aquém da estrutura). Os enunciados manifestamse fundamentalmente como uma tomada de posição axiológica, como uma resposta ao já dito. Sua significação comporta sempre esse estrato valorativo. Ela, portanto, não é dada apenas pelo verbal (pela estrutura), mas também pela correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor. Por outro lado, ao ser dito, o enunciado espera uma resposta. E, ao mesmo tempo, por ser heterogeneamente constituído (o enunciado de um contém enunciados ou fragmentos de enunciados de outrem), está atravessado por uma dialogização interna (a bivoca lização — nome que recobre os processos pelos quais mais de uma voz e mais de um acento avaliativo ressoam no mesmo enunciado).
OS GÊNEROS DO DISCURSO O atual uso inflacionado no Brasil — em especial no discurso pedagógico poste posterior rior à reforma d doo ensino de 19 1999 6 — da expressão
gêneros do discurso, tendo o texto de Bakhtin como referência, é o que nos motiva a discutir em mais detalhes essa questão. Interessa nos, particularmente, expor à crítica certa cristalização do conceito em sua transposição pedagógica. Não será demais começar por uma breve referência etimológica. A palavra gênero remonta à base indoeuropéia *gen que significa ‘gerar’, ‘produzir’. Em latim, relacionase com esta base o substantivo genu genus, s, generis gener is (significando ‘linhagem’, ‘estirpe’, ‘raça’, ‘povo’, ‘nação’) e o verbo gigno, genui, genui, geni genitum, tum, gignere (significando ‘gerar’, ‘criar’, ‘produzir’,
‘provir’), com o qual se relacionam palavras como ge genit nitor, or, primogênito, genital, genitura. Por curiosidade, vale registrar que a palavra germânica Kind (criança) remonta àquela mesma base etimológica. Como se vê, esse segmento vocabular se desenvolve a partir da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da geração (da procriação). A utilização do termo gênero para designar tipos de textos é uma extensão da noção de estirpe (linhagem) para o mundo dos objetos literários e retóricos. Assim como as pessoas podem ser reunidas em linhagens por consanguinidade, o mesmo se pode fazer com os textos que têm certas características ou propriedades comuns. A noção de gênero serve, portanto, como uma unidade de classificação: reunir entes diferentes com base em traços comuns. Parece que Platão foi o primeiro a falar de gêneros quando, no livro III da República, divide a mimese (isto é, a representação literária da vida) em três modalidades: a lírica, a épica e a dramática. Aristóteles elaborou, na sequência, dois trabalhos importantes de sistematização dos gêneros: na Ar Arte te retó re tóric rica, a, propôs e estudou três gêneros retóricos (o deliberativo, o judiciário e o epidítico); e, na Arte Ar te po poét étic ica, a, buscou tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, explorando extensamente as propriedades da tragédia e da epopéia (e, segundo se acredita, da comédia no livro II, totalmente perdido). Esses dois trabalhos de Aristóteles foram referências durante séculos na discussão dos gêneros.
É interessante observar que, na longa história da teoria dos gêneros literários e retóricos, estes foram interpretados muito mais na perspectiva dos produtos do que na dos processos (muito embora — destaquese — Aristóteles nã nãoo separasse separasse as form formas as de suas funções e das respectivas atividades sociais em que ocorriam). O foco de atenção eram as propriedades formais. Houve, inclusive, em vários momentos, uma forte propensão reificadora e, por consequência, normativa: as características formais dos gêneros foram tomadas como propriedades fixas, como padrões inflexíveis.
Talvez aqui esteja uma das razões para certo abandono da teoria dos gêneros, principalmente a partir da crítica do romantismo à estética clássica. Fizeram parte do processo de construção da estética romântica o questionamento do modelo do teatro clássico (o chamado modelo das três unidades: espaço, tempo e personagem) e a percepção do anacronismo da epopéia clássica. Nesse sentido, a estética romântica pôs em xeque dois dos mais cultuados gêneros da teoria clássica. Ao mesmo tempo, viviase o desenvolvimento do romance, gênero para o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio analítico e que é ainda hojeprofundamente motivo de muita polêmica. Podese dizer quee o romantismo abalou a teoria clássica dos gêneros pôs o tema gêneros numa permanente crise. Em contraste com essa crítica, não deixa de ser surpreendente o uso inflacionado do termo termo nos últimos anos. A principal referência dessa explosão tem sido o texto O pro proble blema ma dos gêneros do discurso, escrito por Bakhtin possivelmente em 1952/1953. Tratase de um texto inacabado, encontrado entre os papéis do autor e publicado na Rússia pela primeira vez numa coletânea de material de seus arquivos em 1979. É claramente um fragmento de texto, o que leva os estudiosos a afirmar tratarse provavelmente da parte inicial de um livro a que o autor pretendia se dedicar, retomando com mais detalhes questões
levantadas brevemente naqueles textos do Círculo da segunda metade da década de 1920. Bakhtin está discutindo, discutindo, neste manuscrito, caminhos para um estudo da ling linguagem uagem como atividade socio sociointerac interacional ional e aponta algum algumas as características da unidade deste estudo (o enunciado) em contraste com a unidade tradicional dos estudos linguísticos (a sentença). Este fragmento de texto está dividido em duas partes. Na primeira, fazse uma introdução geral do tema, conceituandose gênero do discurso, distinguindose gêneros primários de secundários e correlacionandose estilo e gênero.
Na segunda, há uma extensa discussão sobre o conceito de enunciado, como unidade da comunicação socioverbal, em contraste com o de sentença, como unidade da língua entendida como sistema gramatical abstrato. Bakhtin está, nesta segunda parte, dialogando criticamente (sem negarlhe relevância) com a tradição dos estudos linguísticos que se caracteriza por privilegiar o estudo sistêmico (imanente) da linguagem verbal e ignorar ou simplificar a realidade linguística enquanto interação social, enquanto práticas sociais de linguagem. E defende novamente a necessidade de constituir duas disciplinas discipli nas — metodolo metodologicament gicamentee sep separadas aradas,, mas org organicamente anicamente combinadas — para o estudo da da lingu linguagem: agem: Mas estes dois pontos de vista sobre o mesmo fenômeno linguístico específico não deveriam ser inacessíveis um ao outro e não deveriam simplesmente ser substituídos um pelo outro mecanicamente. Eles deveriam se combinar organicamente (mantendo, contudo, uma distinção metodológica muito bem definida entre eles) com base na unidade real do fenômeno lingulstico.(...) Parecenos que um estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso é de fundamental importância para superar aquelas noções simplistas sobre a vida do dizer, sobre o assim chamado fluxo da fala, fala, sobre a comunicação, comunicação, e assim por d diante iante — idéias que são ainda correntes nos nossos estudos linguísticos. Além disso, um estudo do
enunciado como a unidade real real da comunicação verbal tomará também possível compreender mais adequadamente a natureza das unidades da língua (como um sistema): as palavras e as sentenças, (p. 6667) Poderíamos nos perguntar, neste ponto, sobre o que diferencia a teoria dos gêneros do Círculo de Bakhtin das teorias tradicionais, inclusive para entendermos criticamente a apropriação pedagógica epidêmica de seu conceituai nos últimos anos. Uma característica daquela teoria é que, diferentemente de outras, ela não pensa os gêneros em si (muito embora seja esta a perspectiva dominante na apropriação pedagógica do conceito), isto é, como con juntos de ar arte tefa fato toss qu quee pa partil rtilha ham md dete eterm rmin inad adas as pr prop oprie rieda dade dess for form mais ais..
Os gêneros não são enfocados e nfocados apenas pelo viés viés estático do produto (das formas), mas principalmente pelo viés dinâmico da produção. Isso significa dizer que a teoria do Círculo assevera axiomaticamente uma estreita correlação entre os tipos de enunciados (gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o que fazemos com eles no interior de uma determinada atividade social. O ponto de partida de Bakhtin é a estipulação de um vínculo orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para ele, todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da linguagem. E essa utilização efetuase em forma de enunciados que emanam de integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. Assim, se queremos estudar o dizer, temos sempre de nos remeter a uma ou outra esfera da atividade humana, porque não falamos no vazio, não produzimos enunciados fora das múltiplas e variadas esferas do agir humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) têm, ao contrário, conteúdo temático, organização composicional e estilo próprios correlacionados às condições específicas e às finalidades de cada esfera de atividade. Em outros termos, o que é dito (o todo do enunciado) está sempre relacionado ao tipo de atividade em que os participantes
estão envolvidos. Do mesmo modo, se queremos estudar qualquer das inúmeras atividades humanas, temos de nos ocupar dos tipos de dizer (dos gêneros do discurso) que emergem, se estabilizam e evoluem no interior i nterior daquela daquela atividade, atividade, porque eles constituem constitue m parte intrínseca da mesma. Fica, assim, claro que, para Bakhtin, gêneros do discurso e atividades são mutuamente constitutivos. Em outras palavras, o pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não se dá independentemente da interação; nem o dizer fora do agir. Numa síntese, podemos afirmar que, nesta teoria, estipulase que falamos por meio de gêneros no interior de determinada esfera da atividade
humana. Falar não é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas moldar o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade. É com esse postulado da correlação intrínseca entre esferas de atividade e formas de dizer que Bakhtin abre certa perspectiva para estudos do dizer e do agir, do discurso e da atividade, que permite o refinamento de nossa percepção da heterogeneidade e complexidade das práticas de linguagem e das atividades humanas. Bakhtin conceitua gêner gêneros os do disc discurso urso como os tipos relativamente estáveis de enunciados que se elaboram no interior de cada esfera da atividade humana. Face aos enfoques tradicionais da questão dos gêneros que privilegiavam as formas em si e chegavam a operar normativamente sobre sua reificação, algumas observações são aqui indispensáveis. Ao dizer que os tipos são relativamente estáveis, Bakhtin está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e, de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras. Dar relevo à historicidade significa chamar a atenção para o fato de os tipos não serem definidos de uma vez para sempre. Eles não são apenas agr agregad egados os de propriedades propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contí contí-nuas transformações, são maleáveis e plásticos, precisamente porque as
atividades humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação. Nesse sentido, as formas relativamente estáveis do dizer no interior de uma atividade qualquer têm de ser abertas à contínua remodelagem; têm de ser capazes de responder ao novo e à mudança. O repertório de gêneros de cada esfera da atividade humana vai diferenciandose e ampliandose à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Vale a pena, neste ponto, citar o próprio Bakhtin quando discute a questão dos gêneros literários, em Problemas da poética de Dostoievski (p. 106): Um gênero literário, por sua própria natureza, reflete as tendências mais estáveis, “eternas”, do desenvolvimento da literatura. Estão sem
pre preservados num gênero os elementos imperecíveis da arcaica. É bem verdade que esses elementos arcaicos só são preservados nele graças a seu constante rejuvenescimento, isto é, sua atualização. Um gênero é e não é sempre o mesmo, é sempre novo e velho simultaneamente. O gên gênero ero renas renasce ce e se renova em cad cadaa etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de certo gênero. É isso que constitui a vida do gênero. Assim, mesmo os elementos arcaicos preservados num gênero não estão mortos, mas sempre vivos; isto é, os elementos arcaicos são capazes de se renovar continuamente. Um gênero vive no presente, mas sempre tem a memória do seu passado, das suas origens. O gên gênero ero é um repre represent sentante ante da m memóri emóriaa criat criativa iva no processo do desenvolvimento literário. Precisamente por isso, o gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade de seu desenvolvimento. Desse modo, Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros que combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que aspectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à medida que aspectos da atividade mudam). Ele lembra que há gêneros bastante estandardizados como certos tipos de documentos oficiais, ordens militares, cumprimentos e felicitações sociais. Contudo, mesmo estes admitem mudanças,
ou seja, estão abertos à adequação às condições concretas de uso. Bakhtin salienta que esses gêneros altamente estandardizados aceitam variações, mesmo que ligeiras, de matizes na entonação expressiva; siv a; ou sobre eles podem in intervir, tervir, por exemplo, o jogo jo go da dass inflexões, isto é, sua reacentuação pela mudança de esfera de atividade ou sua hibridização (a mistura de gêneros pertencentes a esferas diferentes ou à mesma esfera). Caracterizando gênero pela estabilidade relativa (admitindo, portanto, sua contínua mobilidade e mutabilidade), Bakhtin lança as bases de uma teoria que abandona (por reconhecer sua impossibilidade) a tarefa tradicional de recortar tipos bem demarcados; de estabelecer uma taxonomia rígida baseada em critérios formais puramente sincrônicos.
É claro que essa nova perspectiva traz uma série de dificuldades para a análise que precisarão ser adequadamente enfrentadas. O próprio Bakhtin diz (p. 61), reconhecendo essas dificuldades: “A extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade em determinar o caráter genérico do enunciado não devem ser minimizadas”. Contudo, ele não se propõe fixar o que se move, estancar o que flui, nem estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente impreciso, já que intrinsecamente vinculado à contingência das atividades humanas. A imprecisão dos limites e fronteiras se reforça ainda mais, no texto de Bakhtin, pelo destaque que ele dá, por exemplo, ao fato de que os diferentes gêneros se hibridizam continuamente. Isso tudo, no entanto, face a certas recorrências de elementos, eventos e ações no interior de cada esfera da atividade, não impede que se reconheçam similaridades e que se gerem tipos relativamente estáveis de enunciados. De certo modo, a dinâmica da tipificação é um processo socialmente construído de gerar significado, baseado no reconhecimento de similaridades e analogias.
Notoda fundo, a idéia da relativa leva Bakhtin a an tecipar uma discussão que seestabilidade fará posteriormente na teoria social de que as atividades humanas não são nem totalmente previsíveis por modelos prédados, nem totalmente casuais. As atividades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas em cada contingência. Para compreendêlas (e para envolverse nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas interrelações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a memória e o momento. Daí decorre outro aspecto importante dos gêneros do discurso: como tipos relativamente estáveis do dizer no interior de uma esfera da atividade humana, eles cumprem indispensáveis funções socio cognitivas. Pela sua estabilidade, eles são elementos organizadores das atividades e, por isso, orientam nossa participação em determi-
nada esfera de atividade (eles balizam nosso entendimento das ações dos outros, assim como são referência para nossas próprias ações). Ao gerarem expectativas de como serão as ações, eles nos orientam diante do novo no interior dessas mesmas ações: auxiliamnos a tornar o novo familiar pelo reconhecimento de similaridades e, ao mesmo tempo, por não terem fronteiras rígidas e precisas, permitem que adaptemos sua forma às novas circunstâncias. Nesse aspecto particular, é interessante lembrar que Medvedev, em seu livro O método formal nos estudos literários (de 1928), delineia (cf. o capítulo 7) vários aspectos da discussão do Círculo sobre gênero. Embora tratando especificamente dos gêneros literários, Medvedev levanta questões quest ões quanto quanto à relação gêne gêneros ros/v /vida ida social/co social/coggnição que podem e devem ser estendidas ao estudo dos gêneros em outras esferas da atividade humana. Medvedev inicia seu argumento, criticando o pressuposto de que os gêneros são apenas formas. formas. Diz ele (p. 129) 12 9):: Os formalistas geralmente definem gênero como determinado con junto jun to es esp pecífi cífico co e con const stan ante te de dis isp positiv itivoos co com m uma domin inaante
definida. Como os dispositivos básicos já tinham sido previamente definidos, o gênero foi mecanicamente compreendido como sendo composto desses dispositivos. Dessa forma, os formalistas não apreenderam o significado real de gênero. E qual seria o “significado real do gênero”? Precisamente a correlação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da esfera que o cria e usa; isto é, abstraído da atividade, de suas coordenadas de tempoespaço, das relações entre os interlocutores. É nesse sentido que Medvedev assevera que o enunciado que se materializa no interior de um gênero é, antes de tudo, um ato sóciohistórico (“Ele ocupa uma posição entre pessoas socialmente organizadas de alguma forma”, p. 131). Desse modo, os gêneros constituem agregados de meios de orientação coletiva à frente da realidade; constituem, em outros ter
mos, meios de conhecimento situado. São modos e meios sóciohis tóricos de visualização e conceitualização da realidade (“O processo de ver e conceitualizar a realidade não deve ser separado do processo de corporificálo em formas de um gênero particular”, p. 134) que, incorporados pelas pessoas, funcionam como modos e meios de conhecer a realidade e nela orientarse (“Podese dizer que a consciência humana dispõe de uma série de gêneros internalizados para ver e conceitualizar a realidade”, p. 134). Por outro lado, novos modos de ver e conceitualizar a realidade gerarão novos gêneros ou modificações nos gêneros existentes que, por seu turno, nos permitirão ver a realidade de outro modo: Novos modos de representação nos forçam a ver novos aspectos da realidade visível, mas esses novos aspectos não conseguem clarear nosso horizonte e entrar nele significativamente se estiverem faltando os novos meios necessários para consolidálos. Um é inseparável do outro (p. 134). Tanto para Medvedev quanto para Bakhtin, envolverse em determinada esfera da atividade implica desenvolver também um
domínio dos gêneros que lhe são peculiares. Em outras palavras, aprender os modos sociais de fazer é também aprender os modos sociais de dizer. Nesse sentido, Bakhtin chama a atenção para o fato de que são muitas as pessoas que, mesmo dominando muito bem a língua, sentemse logo desamparadas em certas esferas da comunicação verbal, precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do gênero de dada esfera. Uma pessoa que domina os modos de dizer numa esfera da comunicação cultural (sabe, por exemplo, dar uma aula, travar uma discussão científica, elaborar um tratado filosófico, escrever um poema), pode se sentir pouco à vontade em outra: cala se ou então intervém de maneira muito desajeitada numa conversa social ou numa assembléia de sindicato. Segundo Bakhtin, isto ocorre não por causa de uma pobreza de domínio gramatical ou de vocabulário, mas de uma inexperiência no
domínio do repertório dos gêneros da conversa social ou da prática sindical; de uma falta de conhecimento vivido do que é o todo do enunciado nessas circunstâncias. Ele afirma, então, que adequamos sempre nosso dizer às formas típicas dos enunciados numa determinada atividade (falamos e escrevemos em gêneros; eles orientam nosso dizer) e aprendemos a dizer assimilando essas formas típicas no interior da mesma atividade. Por fim, é necessário lembrar que Bakhtin, para iniciar o balizamento do estudo dos gêneros, propõe uma primeira grande classificação deles em primários e secundários. Os primeiros são os gêneros da vida cotidiana (em geral, embora não exclusivamente, orais). Constituemse e se desenvolvem em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea e estão em relação direta com seu contexto mais imediato. Tratase dos gêneros da conversa familiar, das narrativas espontâneas, das atividades efêmeras do cotidiano. Os segundos aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais elaborada (em geral, mas não necessariamente, escri-
ta). São os gêneros que se geram e se usam nas atividades científicas, artísticas, políticas, filosóficas, jurídicas, religiosas, de educação formal e assim por diante. É importante destacar, destacar, porém, que Bakhtin Bakhtin não entende entende esses dois dois tipos de gêneros como duas realidades independentes, mas como interdependentes. Nesse sentido, vale reproduzir suas palavras (p. 62): Durante o processo de sua formação, eles absorvem e digerem vários gêneros primários (simples) que tomaram forma na comunicação verbal imediata. Esses gêneros primários se alteram e assumem um caráter especial quando entram nos mais complexos. Perdem sua relação imediata com a situação concreta e com os enunciados concretos dos outros. Apenas no plano do conteúdo do romance é que, por exemplo, réplicas de um diálogo cotidiano ou cartas encontradas nele retêm sua forma e sua significação cotidiana. Elas participam da realidade concreta somente por meio do romance como um todo, isto é, como um evento artísticoliterário e não como um evento da vida diária. O romance como um todo é um enunciado do m mesmo esmo modo
que o são as réplicas no diálogo cotidiano ou cartas íntimas (todos têm realmente uma natureza comum), mas diferentemente destas, o romance é um gênero secundário (complexo). Além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter relação entre os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar a atenção para o fato de que, em muitas de nossas atividades, há uma passagem constante do plano secundário para o primário e deste para aquele. Lembremos, por exemplo, de uma conferência no contexto da educação acadêmica. Tratase de um gênero secundário bastante elaborado no relativamente correr da história das de atividades tem certas formas estáveis acontecer,acadêmicas, mas que seque mescla, durante sua ocorrência, com gêneros primários de vários tipos, como, por exemplo, exe mplo, quando o expositor exposi tor conta cont a uma piada piada ou faz faz uma uma réplica a uma observação espontânea de um ouvinte, e assim por diante. Da mesma forma, é interessante observar que a atividade de um camelô anunciando seu produto, que poderíamos classificar como
gênero primário por estar diretamente relacionada com a comunicação prática e espontânea do cotidiano, tem muitas vezes um ar de conferência, o que pode servir de exemplo para o fato de que os gêneros secundários também influenciam os primários. Em síntese, cabe dizer que talvez a apropriação pedagógica da noção de gênero do discurso de Bakhtin tivesse sido mais enriquece dora do que cristalizadora, se suas reflexões tivessem sido entendidas pelo seu caráter inerentemente dinâmico e não tivesse se resumido a submetêlas a uma leitura apenas formal dos gêneros.
Est
il o
Como mencionamos acima, Bakhtin, ao discutir o conceito de gênero do discurso, estabeleceu uma vinculação entre gênero e estilo. É interessante, então, fazermos um breve comentário sobre algumas das discussões sobre estilo que encontramos nos textos do Circulo,
em especial considerando o quase total esquecimento dos estudos estilísticos no contexto dos estudos linguísticos mais recentes. Não é difícil entender os porquês da marginalização desses estudos na segunda metade do século XX, se lembrarmos o domínio hegemônico na linguística da perspectiva estrutural sincrônica. Nela não há muito muito espaço espaç o — pelas próprias opções opçõe s de saída (isto é, o p a ro role le e suas diferentes configurarecorte saussuriano entre langue e pa ções posteriores) posteri ores) — para a ação do falante. falante. O pensamento sistêmico, em seus vários modelos, de certa forma, exclui o sujeito falante como elemento teórico pertinente; ou, para aproveitar por extensão a metáfora do gene egoísta da biologia (Dawkins), transformao no servo da estrutura egoísta (a langue). A estilística — ao se definir como o estudo do estilo e ao en-
tender, em boa parte de suas formulações, o estilo como o espaço do uso individual da língua (na esteira do pensamento saussuriano);
ou como o espaço da expressão subjetiva criativa (na perspectiva do idealismo linguístico) — só poderia ficar mesmo à marg margem em d daa trilha hegemônica da linguística oficial e, por consequência, receber até a pecha de estudo sem efetiva dimensão científica. Restoulhe, de certo modo, contentarse em ser colocada como a herdeira da velha retórica e em se ocupar com aspectos linguísticos de textos literários em que, por suposição, está mais visível a individualização da língua. Delimitando como objeto o estilo, entendido, gro grosso sso mo modo do,, como o arranjo do dizer pelo falante, a estilística oscilou, desde seus primeiros formuladores, entre dois pólos: ou o estilo é entendido — na esteira do trabalho de Charles Bally — como a atualização individual do sistema (e, nesse sentido, ele já está contido na langue); ou o estilo é — na esteira do idealismo linguístico (Croce, (Croc e, Vo Vossle ssler, r, Spitzer) — a expressão expressão criativa do psiquismo individual. individual. Se no primeiro polo, o falante é devedor das propriedades gerais do sistema; no segundo, o indivíduo, ao manipular os elementos linguísticos, é devedor de sua sensibilidade e criatividade psicoló-
gicas. De um lado, temos, então, uma metodologia que busca se beneficiar do rigor formal das análises estruturais (achegandose aos fenômenos de estilo, tendo como pano de fundo as potencialidades do sistema); e, de outro, uma metodologia mais interpretativa que, combinando intuição e erudição, faz um rastreamento quase filológico do assumido como absolutamente individual. Se, no primeiro caso, o quadro de referência é o apriorismo do sistema; no segundo, é a ação criativa puramente individual do falante (estando subjacente aqui a recusa dos apriorismos racionalistas). Qualquer que seja o polo, a estilística está sempre atravessada, por força de seu recorte, pelo eixo da individualidade: a discussão dos fenômenos estilísticos se faz pelo viés do falante que usa ou cria a língua. Por outra parte e por consequência, é difícil os estudos estilísticos fugirem de um pressuposto geral de que a atividade estilística do falante envolve gestos de escolha, de seleção, seja entre as alternativas fornecidas pelo sistema como tal, seja entre diferentes
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possibilidades de criação expressiva. E interessante observar que nuanças/e refinamentos serão progressivamente introduzidos no escopo da escolha. Assim, a elaboração do conceito de norma (que é, gro grosso sso m od odo, o, um processo teórico de estratificação da noção de langue) permitiu construirse uma estilística que vai entender estilo como desvio, isto é, o falante escolhe escapar do “normal”. Ainda mais: os estudos da variação linguística — ao recobrirem outras dimensões da estratificação da linguagem: aquelas condicionadas por critérios geográficos, sociais e/ou contextuais — apontam para outro espaço em que se pode operar escolhas e para as muitas variáveis que interferem nesses gestos estilísticos. Se, de um lado, pela sempre crescente percepção da complexa estratificação da linguagem, a escolha estilística vai deixando de ser redutível a um único espaço (o do sistema); de outro, o imbrica mento, percebido por caminhos teóricos cada vez mais densos, de variáveis geográficas, sociais, contextuais, históricas com variáveis
linguísticas vai esgarçando o desiderato (a quimera?) de reduzir a expressão à atividade puramenteidealista individual. Podemos afirmar que Bakhtin e seu Círculo estão entre os autores que melhor perceberam essa questão de fundo. Já na década de 1920, eles criticavam o idealismo linguístico por querer constituir o psiquismo individual como a fonte de toda a língua, mostrando que sem uma orientação social de caráter apreciativo (axiológico) não há atividade mental. Ao mesmo tempo, mostravam que o conceito de sistema abstrato de formas normativas (a langue saussuriana), se fecundo para certos fins, era insuficiente para dar conta da enunciação e da significação linguística, realidades eminentemente sociais. Em decorrência dessas críticas e da construção de outro modo de conceber a linguagem (nem só sistema abstrato, nem só expressão
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individual), Bakhtin e seu Círculo discutem extensamente, em diferentes trabalhos, temas ligados à estilística. Isso, à primeira vista, poderia parecer paradoxal em estudiosos que enfatizam as dimensões sociointeracionais da linguagem. Contudo, embora pensadores de persuasão sociológica, escapam, como vimos no capítulo anterior, de um determinismo absoluto do social. A riqueza de seu conceituai está em nos obrigar a pensar não por dicotomias (o individual X o social) ou pelo hiperdimensionamento de um dos pólos, mas por uma intrincada dinâmica em que todo falante, sendo uma realidade sociossemiótica, é ao mesmo tempo único, singular, e social de ponta a ponta. Não há contradição nisso. E a chave que lhes permite unir, no falante, a dimensão de ser único com a dimensão de ser inteiramente social é, como destacamos anteriormente, a forma como encaram a linguagem. Ao assumirem a linguagem como uma realidade social infinitamente. estratificada, abrem espaço para o individual (e, portanto, para estudos estilísticos). A singularidade vai poder se materializar nos incontáveis e mesmo imprevisíveis contatos e in
tersecções dasdoinúmeras vozes sociais que participam da constituição contínua psiquismo e nele ressoam e se entrecruzam numa espécie de moto perpétuo dialógico (cf. Evans). É por esse caminho que poderemos entender a argumentação daqueles autores segundo a qual a elaboração estilística da enunciação é uma atividade de seleção, de escolha individual, mas de natureza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de uma orientação social de caráter apreciativo: as seleções e escolhas são, primordialmente, tomadas de posição axiológicas frente à realidade linguística, incluindo o vasto universo de vozes sociais. Assim, se em Ma Marxis rxismo mo e ffililoo s o fia fi a d a lingu linguagem agem,, Voloshinov argumenta que a elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica, é em textos como O discurso no romance e O problem a
dos gêneros do discurso (de Bakhtin) e As fron fr onte teir iras as entre a p oé oéti tica ca e a linguística e A est estrut rutura ura do enu enunc nciad iadoo (de Voloshinov) que essa questão adquire contornos mais precisos.
Ao articular sua teoria do romance, por exemplo, Bakhtin mostra como, diante desse gênero liter literário, ário, a estilíst estilística ica tradicio tradicional nal — ao compreender o estilo, “no espírito de Saussure: como uma individualização da língua geral (no sentido de um sistema de normas linguísticas gerais)” — (O discurso no romance, p. 264); ou como “expressão direta e espontânea da individualidade do autor” (p. 267) — vive insuperáveis dilemas exatamente porque ignora a estratificação infinita de cada uma das línguas humanas (a chamada heteroglossia); e a respectiva (e também infinita) dialogização que atravessa aquela estratificação. É essa realidade realidade multiforme e complexa que const constitui itui a prem premissa issa do gênero romanesco; e “qualquer estudo substancial sobre a vida estilística da palavra deve começar deste fato fundamental” (p. 296). Nesse sentido, A consciência linguística socioideológica concreta, quando se torna criativa — isto é, quando ela se torna ativa como literatura — se des
cobre já cercada pela heteroglossia e, de modo algum, por uma língua única e unitária, inviolável e incontestável. A consciência linguística literariamente ativa em qualquer tempo e lugar (isto é, em todas as épocas literárias historicamente acessíveis a nós) encontra uma pluralidade de “línguas” e não uma língua. A consciência se acha inevitavelmente face à necessidade de ter de escolher uma dentre elas (p. 295). Essa noção de escolha no espectro da infinita estratificação social da linguagem — que, em O discurso no romance, serve para sustentar a tese do autor de que a singularidade fundamental da estilística romanesca está no tipo de combinação de linguagens sociais e de sua sua dialogização dialogização — volta nos outros textos citados, adquirindo, adquirindo, em cada um, novas nuanças. pro blem a dos gêneros do discurso, por exemplo, a estratiEm O problem
ficação social infinita da linguagem é cruzada pela noção de gênero do discurso e assim se estabelece um vínculo indissolúvel entre esta est rutur turaa do enunc enu nciad iado, o, nova categoria estratificante e estilo. Em A estru Voloshinov faz um breve exercício de análise estilística do romance As alm a lmas as mort mo rtas as de Gogól a partir do efeito do contexto sobre as esfron onte teir iraa s entre entr e a p oé oéti tica ca e a colhas de linguagem; ou, ainda, em As fr linguística em que o mesmo Voloshinov discute extensamente o con-
ceito de ‘estilo individual’, contrapondo sua concepção sociológica ao psicologismo de CroceVosslerSpitzer (parte II) e ao formalismo de V V Vinogradov (parte III).
D is c u r s o r e po r t a d o E compreensível que o fenômeno linguístico concreto mais discutido nos textos de Bakhtin e Voloshinov seja precisamente o discurso reportado, isto é, a presença explícita da palavra de outrem nos enunciados. Este interesse decorre da própria concepção de linguagem do Círculo, que enfoca a realidade linguística social e a de cada falan
te como fundamentalmente heterogênea. Desse modo, o tema do discurso reportado (e da bivocalização) emerge naturalmente dos destaques do Círculo à estratificação socioaxiológica da linguagem, à heterogeneidade das vozes sociais (à heteroglossia) e a sua dialogiza ção (à heteroglossia dialogizada), também aos efeitos disso “no processo de de formação formação ideológica do do indivíduo” (p. (p. 3 42 42)) — entendido entendido basicamente como um processo de absorção valorada da palavra de outrem e “na representação artística da palavra de outrem” (p. 350), em especial no discurso romanesco. Bakhtin, em O discurso no romance, se mostra particularmente fascinado pela onipresença, em forma aberta ou velada, da palavra de outrem “nos enunciados de um indivíduo social” (p. 354), desde
a réplica do diálogo familiar até as grandes obras verboaxiológicas. No interior de cada enunciado nesta vasta realidade linguística, Está se dando uma interação intensa e um embate entre a palavra de um e de outrem, um processo no qual elas se opõem mutuamente ou se interanimam dialogicamente. O enunciado assim concebido é um elemento consideravelmente mais complexo e dinâmico do que quando entendido como simplesmente uma coisa que articula a intenção da pessoa que o pronuncia, caso em que se assume o enunciado como um veículo direto, univocal, da expressão (p. 354). Ao mesmo tempo, Bakhtin notava que este fenômeno não tinha sido ainda suficientemente estudado e apreciado em sua significação: “Não houve ainda nenhuma apreensão filosófica abrangente de todas as ramificações deste fato” (p. 355), isto é, do fato de que um dos principais temas do dizer humano é o próprio dizer. Anteriormente, Voloshinov dedicara toda a terceira parte de seu livro à discussão do discurso reportado, deixando bem visíveis as bases de compreensão deste fenômeno pelos membros do Círculo. Uma das observações principais desse texto é aquela que diz (p. 144) ser o discurso reportado tanto uma enunciação na enunciação como uma enunciação sobre outra enunciação. Em outras palavras, para Voloshinov, o discurso reportado não se esgota na citação, mas
deve ser considerado como um ato que revela também uma apreensão valorada valorada da palavr palavraa de outrem o utrem — o que nos remete novamente a uma das proposições básicas do Círculo sobre a linguagem, qual seja, sua estratificação socioaxiológica. Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir; é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas duas dimensões. É essa essa relação que constitui, constit ui, segundo Voloshinov (p. 148) 14 8),, o “objeto verdadeiro da pesquisa”, porque o discurso reportante e o
reportado só têm uma existência real, só se formam e vivem através dessa interrelação, e não de maneira isolada”. Ou, em outras palavras, entre os dois discursos estabelecemse relações dialógicas e eles se formam e vivem nessas relações. Assim, para Voloshinov, o erro dos pesquisadores que se ocuparam com as formas de transmissão do discurso de outrem é ter sistematicamente divorciado o discurso reportado de seu contexto de transmissão. Este contexto envolve não só as sequências verbais que incluem o enunciado de outrem, mas também os fins específicos com os quais se dá a transmissão (narrativa, processos legais, polêmicas científicas etc.); e, além disso, envolvem também a(s) terceira(s) pessoa(s), isto é, a(s) pessoa(s) a quem se destinam as sequências bivo calizadas, que condicionam, efetiva ou virtualmente, ajustes no dizer. Voloshinov deixa claro que, na análise, não interessa apenas observar esses elementos em si e reduzidos ao evento empírico de sua ocorrência, mas principalmente tomar esse evento como indicador de tendências básicas da recepção ativa do discurso de outrem em determinada formação social. Caberia, por exemplo, analisar nessa perspectiva as diferentes atitudes sociais frente aos mais diversos discursos e como elas se expressam nos modos de reportar esses discursos. Voloshinov lembra, nesse sentido, que ha verdadeiras hierarquias sociais de valor e que é importante levar sempre em conta a
posição que um discurso a ser reportado ocupa nessas hierarquias, porque elas afetam as formas de transmissão admissíveis. Aceitase, por exemplo, atravessa atravessarr um determinad determinadoo discurs discursoo co com m réplicas, comentários, polêmicas, isto é, admitemse, na citação, os diversos tipos do estilo que ele chama (p. 150) de pi pictó ctóric ricoo — aquele cuja característica principal é atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem? Ou, para usar a terminologia de Bakhtin, o discurso reportante toma o discurso reportado como palavra internamente persuasiva? Ou só se aceita citálo mantendo a relativa in-
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tegridade da voz alheia, isto é, só se admitem as diferentes variantes do estilo que Voloshinov chama de linear — — aquele cuja tendência principal é criar contornos nítidos à volta do discurso citado; aquele que toma o discurso reportado como palavra de autoridade? Há indícios de mudança nas hierarquias sociais, visíveis, por exemplo, a partir da variação das formas de transmissão? Que efeitos de sentido decorrem da inversão das hierarquias (quando admitida)? Um bom exemplo para fechar estas considerações são as diferentes relações que nossa cultura mantém atualmente com o texto bíblico. Enquanto no período medieval, este texto foi tomado como palavra de autoridade, hoje há uma total ambivalência em relação a ele. No contexto de organizações religiosas cristãs fundamentalistas, o texto bíblico, assumido como a palavra de Deus revelada, ocupa o ponto máximo de uma hierarquia positiva de valor. Nesse caso, não se admite senão reportálo monoliticamente (em estilo linear, portanto), preservando sua integridade. Em outros contextos sociais, porém, o texto bíblico é recebido como um dentre muitos textos literários. Como tal, ele também está, normalmente, numa hierarquia positiva de valor (como parte do patrimônio literário da cultura), mas não mais tomado como palavra de autoridade. Por isso, admite as mais diversas bivocalizaçoes e ocorre em citações diretas ou em paródias; em citações ironizadas ou estilizadas; e assim por diante.
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A FILOSOFIA BAKHTINIANA NUM EIXO DE GRANDE TEMPORALIDADE Para concluir nosso percurso pela filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, é importante relembrar que essa filosofia está centrada no pressuposto básico de que a realidade da linguagem é o fenômeno social da interação verbal, ou seja, a realidade da linguagem é a dinâmica da responsividade, das relações dialógicas em sentido amplo.
a b a i f o s o l i f V
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O eixo da responsividade assim posto abre um rico horizonte heurístico para discutir inúmeros temas do interesse da filosofia e das ciências humanas e sociais, tais como as questões da identidade, da subjetividade, da autoria, da intersubjetividade, da alteridade, das práticas discursivas em geral e da criação literária em especial. São questões que estão profundamente imbricadas e que foram centrais durante todo o século XX. Num certo sentido, podese dizer que foi o século XX que pôs essa temática definitivamente no centro do palco, envolvendo o interesse e o trabalho dos mais diferentes pensadores. Ela está em formulações religiosas e éticas como em Martin Buber e Emmanuel Lévinas; na psicologia social de George Mead; na teoria da cognição de Lev Vygotsky; na psicanálise de Jacques Lacan; e em várias correntes filosóficas, bastando lembrar o existencialismo, ou Jürgen Habermas, ou Paul Ricoeur. Podese dizer também que o Círculo de Bakhtin ofereceu, com sua concepção de linguagem, uma contribuição bastante específica e significativa àquele amplo movimento intelectual que problematiza a questão da intersubjetividade e seus temas correlatos. Essa grande questão não é, contudo, uma elaboração do século XX. É preciso voltar ao final do século XVIII para encontrar as primeiras menções à relevância da relação eutu para fazer face a questões filosóficas para além da tradicional relação euele (isto é, da relação sujeitoobjeto).
Nesse sentido, e se quisermos apreender numa perspectiva de grande temporalidade a contribuição do pensamento do Círculo de Bakhtin para essa temática, é preciso entendêla tanto como parte dos interesses intelectuais do século XX, quanto como parte de uma tradição intelectual que começou nos fins do XVIII. Estamos aproveitando, neste ponto, a distinção bakhtiniana entre uma perspectiva de pe pequ quen enaa tem te m pora po ralid lidad adee e outra de gr gran ande de tem pora po ralilida dade de paraa auma história do pensamento a questão Resposta um a pergunta do Conselho(cf. Editorial E ditorial da discutida ‘Novy Mir’ Mir’no ).
um a pergunta do Conselho Editorial E ditorial da Novy Mir Mir ) . texto Resposta a uma Aoo propor um estudo de grande temporalidade, o que se quer A
é transcender um pouco a pequena temporalidade, a temporalidade imediata e próxima das teorizações, e olhálas como parte de uma reflexão maior que, embora dispersa, difusa, heterogênea e não necessariamente contínua, se estende no tempo, isto é, não começa com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota. A interação e a linguagem na interação são fenômenos de alta complexidade por envolverem múltiplos fatores em múltiplas relações. Se alguns desses fatores e relações estão razoavelmente descritos (como, por exemplo, certas pressões da cena enunciativa sobre o que e como se pode dizer nela), boa parte escapa ainda de uma apreensão mais consistente (e aqui podemos citar, entre outros exemplos, o processo de aquisição da linguagem e os modos de interveniência das formações do inconsciente no dizer e no agir dos interactantes). É preciso, portanto, reconhecer, de início, que estamos ainda muito distantes de uma apreensão integrada desses fenômenos que envolvem múltiplos teoricamente fatores em múltiplas relações. Nesse sentido, a interaç Nesse interação ão e a linguagem na interação co continu ntinuam am recobertas por aquilo que o filósofo Heidegger (Ensaios e conferências, p. 5455) chamava de duplo incontomável: não podemos, pela sua relevância para a compreensão das questões humanas, escapar de estudálas (não podemos contornálas no sentido de nos desviar delas); e não dispomos de qualquer teoria capaz de contornálas (no sentido de traçar uma linha teórica que as contenha).
n h t j k a B
m o l u c r í C o d s a c i t s í u c n u s a i e d i
A INTERAÇÃO
COMO TEMA CIENTIFICO
Podese dizer que a interação passou a ser objeto de estudo científico a partir do começo do século XX. Talvez se possa estabelecer a obra do pensador pragmatista norteamericano George Herbert Mead (18631931) como uma espécie de marco fundacional desse empreendimento que começa na psicologia social e cria uma tradição que
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se estendeserá paratema a sociologia e para a antropologia norteamericanas. A interação básico da chamada etnometodologia (donde vão emergir as diferentes vertentes da análise da conversa); e será tema básico da etnografia da comunicação e da sociolinguística interacional. Toda essa tradição nos tem mostrado, de um lado, como respondemos constitutivamente às condições contextuais imediatas; e, de outro, como práticas culturais recorrentes moldam nossas interações. Se, pelas vicissitudes da vida acadêmica, essas duas grandes vertentes pouco se encontraram no passado, é cada vez mais clara a necessidade de ir além do evento em si, mas sem perder sua dinâmica. Há, por exemplo, o persistente problema da relação das dimensões do individual e das dimensões dimensões do social. Era já uma questão central para George Mead, que almejava construir uma abordagem psicológica que fosse uma alternativa quer aos defensores da introspecção como único meio de acesso ao mundo interior, quer ao behaviorismo radical de Watson, que recusava qualquer relevância ao mundo interior. A saída de Mead foi definir o self como como uma realidade intrinsecamente social que se constrói no processo de interação sociossimbólica. Ele recusava abordagens psicológicas que tivessem como fundamento o primado do indivíduo, na medida em que este, por ser já efeito da interação, não pode ser o ponto de partida das teorizações e análises psicológicas. Seu foco era, portanto, a construção do sujeito como efeito da interação. Não há, propriamente, nele um estudo específico da linguagem na interação para além do reconhecimento do seu papel
constitutivo dos processos sociointeracionais e da construção do su jeito.. O qu jeito quee merec merecee espec especial ial des destaq taque ue em Me Mead ad é a su suaa concepção d daa linguagem não co como mo estrutura estrutura,, mas como ação — ação intersubjeti va que, como tal, se internaliza e se toma ação intrassubjetiva. Processo semelhante defenderá Vygotsky para fundamentar sua teoria da cognição humana, isto é, a cognição vista como uma atividade que se dá primeiro na interação e é internalizada, trazendo para o
interior o movimento do exterior. Essas intrigantes semelhanças axiomáticas que emergem em diferentes pontos do tempo e do espaço, muitas vezes sem que seus autores cheguem a se conhecer, devem servir para nós de indicadores de caminhos heuristicamente produtivos, se entendermos que as semelhanças não são meras coincidências, mas desvelam pontos cruciais para o desdobramento do trabalho teórico. Nesse sentido, parece que na área dos estudos da interação não podemos fugir do axioma de que o intersubjetivo se toma intras subjetivo, isto é, de que o movimento externo se toma movimento interno. A questão cmcial é saber como se dá esse processo. Soluções integralmente deterministas não são satisfatórias. Parece que boa parte dos teóricos interacionistas quer compreender a subjetividade como emergindo do social, quer compreender a interação como condicionada por vários fatores, mas, ao mesmo tempo, não quer perder nem as singularidades da subjetividade, nem o novo, o inusitado, o imprevisível, o inesperado dos eventos de interação. Ou seja, nem o primado do indivíduo, nem o determinismo absoluto da estrutura. George Mead, por exemplo, tentou fundamentar esse nãode terminismo por meio de duas grandes coordenadas. Primeiro, assumindo que o social nunca é um dado homogêneo, mas sempre heterogêneo. O social contém uma multiplicidade daquilo que ele chama de “outros “outros gene generalizados” ralizados” (que poderíam poderíamos os entender como conjuntos de ações, representações, valores e atitudes que circulam numa determinada sociedade; ou, em outra terminologia, o conjunto dos préconstruídos sóciohistóricos).
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Desse modo, nenhum sujeito fica confinado nos limites de um único “outro generalizado”, mas emerge de relações simultâneas ou consecutivas com vários “outros generalizados”, muitos deles opostos entre si, contraditórios, conflitivos. Essa realidade sempre heterogênea e cheia de contradições gera desequilíbrios e tensões que inviabilizam qualquer fechamento determinista mecânico dos pro-
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cessos interacionais e de seus efeitos. Por outro lado, o caráter dinâmico (ativo e nãomecânico) do mundo interior também restringe o determinismo, na medida em que, a partir da contínua polarização entre o “me” e o “eu” (nos termos de Mead), geramse respostas singulares e não totalmente previsíveis. Em suma, a heterogeneidade e a contradição são os motores da relação externo/interno e da dinâmica do interno. O “me” é o “eu social”, isto é, o resultado da intemalização do conjunto de atitudes e dizeres dos outros em relação ao self (o (o que sou para os outros); o “eu” é a resposta ativa ao “me”, isto é, o “eu” resulta do processo intrapsíquico ativo pelo qual cada um se subjetiviza (se singulariza) respondendo às estruturas semioticizadas do “me”. Em outras palavras, podemos dizer que na complexa viagem de nossa individualização, somos instados a responder ao “eu social”internalizado, mas, tendo de lidar com a heterogeneidade e seus conflitoss — cada resposta flito resposta vai ter necessariamente um caráter específico, portanto, imprevisível. Formulação muito parecida encontramos em Bakhtin. Ao que se saiba, Bakhtin não chegou a conhecer a obra de Mead. Novamente, as semelhanças não podem, porém, ser vistas como meras coincidências, na medida em que, no fundo, revelam problemas cruciais da área dos estudos da interação. Diz ele em O discurso romanesco: “O vir a ser axiológico de um ser humano é o processo de assimilar seletivament seletiv amentee as as palavra palavrass alheias” alheias” (p. 341 3 41).). Ou, em ooutra utra formulaformulação, “devese ter em conta também a importância psicológica em nossas vidas do que os outros dizem sobre nós e a importância, para
nós, da compreensão e interpretação dessas palavras alheias (a ‘hermenêutica viva’)” (p. 338), ou seja, o produto do meu processamento do dizer, do interagir dos “outros generalizados”. Também aqui há o reconhecimento do papel constitutivo do que os outros dizem de nós e o papel ativo do psiquismo no pro-
cessamento desse dizer. Embora não haja um detalhamento desse processo psíquico — o que transcendia os interesses imediatos daquele autor — , é importante import ante deixar em destaque, para não perder perder de de vista a complexidade do psíquico, o pressuposto de que o psiquismo tem — mesmo imerso na dinâmica dinâmica da interação inter ação e dela emergindo emergindo — uma autonomia e uma ação própria. E acrescentemos: essa autonomia e ação própria se realizam atravessadas também pela condição de seres desejantes, dimensão trazida para o debate pelas vertentes psicanalíticas e não considerada, no plano teórico, nem por Mead, nem por Bakhtin; e, aliás, tradicionalmente desconsiderada pelos estudos interacionais em geral, quando não banalizada ou barbarizada. Se detalhamos um pouco a perspectiva de George Mead, é porque ela parece conter alguns dos problemas fundamentais dos estudos científicos que se realizarão adiante no século XX e que ainda constituem, muitos deles, problemas não suficientemente equacionados. Vamos dar atenção aqui a dois pontos em particular. Um primeiro diz respeito ao fato de que a linguagem, na interação, tem de ser tratada necessária e primordialmente como ati vidade e não como estrutura. No entanto, permanece entre nós o problema de como construir uma teoria que equacione estrutura e atividade; que case adequadamente, por exemplo, sentença e enunciado ou sentença/enunciado/enunciação. Nesse caso, cabe perguntar: é suficiente pensar a atividade verbal na interação como apenas um processo de atualização do sistema (como pressupõem tradicionalmente as linguísticas formais)? Ou as especificidades da atividade (as chamadas pressões da interação, o
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caráter aparentemente teleológico da atividade verbal) se inscrevem na estrutura (como pressupõem as linguísticas funcionalistas desde, pelo menos, as teses da Escola de Praga)?
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Se a resposta aqui for positiva, como se dá essa inscrição? A ati-
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vidade é mero epifenômeno da ordem da língua ou a ordem da língua é epifenômeno das funções interacionais que ela cumpre? Ou há ainda outras dimensões a serem aqui consideradas? Os interactantes são meros usuários de uma língua prédada ou eles, quando em ação conjunta (interação), também agem com e sobre a língua? A língua é apenas um conjunto de signos (um produto) ou é um processo de contínua diferenciação? (Nesse sentido, que leitura de Saussure devemos privilegiar: a língua como um tesouro ou a língua como o jogoo contínuo das diferen jog diferenças ças?) ?) Ou, para além da problemática sentença/enunciado, a linguagem como atividade melhor tratada a partir(os degêneros macroestruturas? Quais são elas? E comoé essas macroestruturas do discurso, por exemplo) condicionam a nãoaleatoriedade das sequências verbais aí construídas ou coconstruídas (assumindo, como se tem feito e como parece inevitável, o caráter não aleatório dessas sequências)? Parece óbvia a importância de todas essas questões. No entanto, não parece existir ainda uma sintaxe, micro ou macro, que responda com adequação e abrangência às demandas de uma perspectiva que pense a linguagem primordialmente como atividade, como interação. É comum se ler, em textos interacionistas, a declaração de princípio de que, sem se descuidar da questão estrutural, a ênfase estará nos processos verbointeracionais. No entanto, o silêncio sobre a questão estrutural é claro sinal de um problema que nos acompanha, como dissemos antes, pelo menos desde que Humboldt formulou, no início do século XIX, sua idéia da língua como atividade (embora não primordialmente como interação). Por ora, parece não haver nenhuma saída para a tradicional divisão do trabalho: estrutura lá, atividade cá. A primeira como objeto
próprio de uma linguística stricto sensu e a segunda, pelo enorme conjunto de fatores envolvidos, visualizada como objeto de um consórcio de disciplinas (para nos mantermos nas coordenadas heurísticas de de Saussure Saussure sobre esta que questão stão cf. introd introdução, ução, cap. IV IV,, p. 2277 do
Curso de linguís linguística tica geral).
Se não há no horizonte uma teorização que nos fomeça as bases para pensar o estrutural a partir da atividade (o estrutural como ponto de chegada e não como ponto de partida, como pleiteava programati camente Voloshinov, p. 96), lemos, com certo espanto, num Chomsky mais recente (2 (20000, p. 13 132) 2),, a asserção asserção d dee que que a estrutura (a sintaxe) é cientificamente cognoscível, mas a atividade, face à sua heterogeneidade, complexidade e imprevisibilidade, não o é: constitui antes um conjunto de mistérios mistérios que nunca serão resolvidos resolvidos pela m mente ente humana (p. 133). 133). Essa posição rompe com o que tem sido uma espécie de senso comum entre os linguistas estruturais, que tradicionalmente defendem o primado da estrutura, mas não excluem da ciência a atividade, mesmo que a atribuam como objetodoa escopo um consórcio de disciplinas científicas. Pela última formulação chomskiana, desaparece a divisão do trabalho. Não na direção de uma teoria integrada, mas pela exclusão do pragm gmáti ática. ca. Se antes, disescopo da ciência daquilo que ele chama de pra putávamos a direção da flecha (se da estrutura para a atividade ou se da atividade para a estrutura), hoje temos de lidar com este tertius que coloca sob suspeita nossas crenças de que, ao lidarmos com a interação e com a linguagem na interação, estamos fazendo ciência. Um desafio que nos perseguirá, no futuro imediato, será, portanto, debater e deslindar essa questão: fazemos ciência ou estamos lidando com um con junto de mistér istério ioss que nunca nunca serã serãoo re reso solv lvid idos os p pel elaa m men ente te hu humana? ana? Um segundo ponto que gostaríamos de voltar a pautar aqui é o fato de que as teorizações sobre linguagem e interação enfrentam (como Mead e tantos outros pesquisadores enfrentaram) o problema de como relacionar o social e o individual. Passado um século de investigações e teorizações,' o desafio heurístico continua sendo,
em grande parte, o de relacionar dinamicamente estes dois pólos tradicionais nas ciências sociais, evitando a todo custo reduzir esse problema a uma dicotomia.
A crítica de quase dois séculos às filosofias individualistas, idealistas do sujeito já deveria ser suficiente para assentarmos, em qualquer estudo da interação e da linguagem na interação, um princípio geral de que não se pode dar ao indivíduo a primazia sobre os “outros generalizados” e sobre as relações sociais, o que não significa (e aqui mora o grande desafio) deixar a singularidade desaparecer num caldo integralmente determinista. Em outras palavras, não reduzir a interação a encontros fortuitos de mônadas autossuficientes; nem assujeitar os interactantes às estruturas, de modo a tornar incompreensível o inusitado, o imprevisível e a resposta criativa. Não ignorar o que se passa localmente nos eventos interacionais (cuja relevância ficou visível pelas análises de fundo etnometodológico), mas não reduzir a interação ao exclusivamente local. Para isso, não perder, por exemplo, as lições das investigações antropológicas que nos apontam a relevância dos repertórios, sempre heterogêneos, de práticas culturais como condicionantes dos eventos interacionais. E, ainda mais, não perder igualmente as lições de certa tradição européia de estudos discursivos de que a interpelação dos interactantes não se faz só pelo local ou pelas práticas culturais, mas também pelas estruturas do inconsciente e pelos préconstruídos históricoaxiológicos que condicionam o que pode ou não ser dito, o que deve ou não ser dito e fazem nosso dizer significar pela memória discursiva que nele ressoa. O desafio é como não perder toda essa complexidade e como não se perder nela: não dar primazia ao local, mas não ignorálo; não recusar o prédado cultural e historicamente construído, mas não in vocálo deterministicamente; não ignorar o poder interveniente das formações do inconsciente, mas não entregarse a uma psicanálise selvagem; não desconsiderar as teias do interdiscurso, mas não se satisfazer com paráfrases ingênuas ou condenações inquisitoriais.
Nesse ponto específico, parece que estamos em melhor situação teórica para o estabelecimento de um princípio geral do que no caso
da face estrutural. É muito difícil hoje, considerando a crítica de mais de um século às filosofias idealistas, individualistas do sujeito, sustentar uma concepção teórica que assuma o indivíduo como axioma. O caminho para incorporar uma concepção relacional de base está traçado, e as melhores soluções, reforçadas por variadas reflexões filosóficas, colo colocam cam a linguagem como pedra angu angular lar do edifício, des desde de que, obviamente, não a tomemos como uma realidade homogênea. Nesse sentido, é bastante engenhosa (e heuristicamente poderosa) a formulação que Bakhtin e seu Círculo deram a essa questão. Eles propuseram — com base em sua concepção da lingu linguagem agem com comoo interação social e em sua concepção sociossemiótica da consciência — uma articulação entre o individual e o social de natureza não nãodi di cotômica e, ao mesmo tempo, nãodeterminista e nãoidealista. Segundo eles, como vimos no capítulo dois, são os signos que constituem o alimento da consciência, isto é, a consciência individual toma forma e existência à medida que interioriza os signos sociais. Nesse processo, ela não só os absorve como tais, mas absorve principalmente sua lógica. Esta lógica é precisamente aquela da interação socioaxiológica, isto é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogiza do. É essa dinâmica social, que, internalizada, desencadeia o moto contínuo (a autonomia) da atividade psíquica. Por isso tudo, podese dizer que, para o Círculo de Bakhtin, a consciência é social de ponta a ponta (a origem do seu alimento e da sua sua lógica é ext externa erna — a heteroglossia dialog dialogizada izada)) e singular d dee ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um evento único do Ser). Em outras palavras, é a linguagem que funda, para Bakhtin e seu Círculo, a articulação social/individual. Sua materialidade per
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mite uma abordagem nãoidealista da consciência; sua heterogeneidade, uma abordagem nãodeterminista; e sua dinâmica responsiva
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é o ponto de convergência do individual e do social.
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A INTERAÇÃO COMO TEMA FILOSÓFICO Antes de ser um objeto de análise científica, a interação foi tema da reflexão filosófica já desde o século XVIII. Essa reflexão emerge como parte de um movimento que, entre outras motivações, buscava saídas para os percalços e embaraços trazidos por concepções solipsis tas do sujeito — do sujeito que se autodefine, que reconhece sua existência por si e a partir de si, que é senhor do próprio conhecimento. Para entender melhor a pertinência e a conjuntura da entrada em cena da relação eutu, é preciso lembrar, primeiramente, que o indivíduo (empírico ou, primordialmente na filosofia, transcendental), já desde o século XVI, é o grande elemento axiomático do pensamento moderno. Dele se deduz todo o resto. Um dos grandes emblemas dessa perspectiva é, certamente, o sujeito do cogito, o sujeito transparente a si mesmo no ato imediato de refletir sobre si e de dar fundamento à sua atividade cognitiva. Para além do sujeito, a relação que importa é a do sujeito com o ob jeto je to (a re relaçã laçãoo euele), a relação cognitiva em si do indivíduo. A se confiar na leitura que Robert G. Solomon (1983) faz desse período, podese dizer que, da história da filo filosofia sofia m moderna oderna de Descartes e Locke a Kant — os outros (i.e. (i.e.,, os tus) estão silenciosamente ausentes. E, excluindo as inúmeras diferenças existentes entre as várias formulações desse modo de pensar, poderíamos ir adiante e dizer que essa linhagem de pensamento continua forte ainda hoje — apesar de todas as sucessivas críticas — como o substrato organizador de importantes reflexões, seja na filosofia, seja na ciência, sobre a subjetividade, a cognição e a linguagem, para ficar apenas em algumas áreas.
A outra linhagem — aquela que vai, aos poucos, assumir a in
tersubjetividade como axiomática e, por isso, vai fazer crescer a idéia de que é impossível pensar o ser humano fora das relações com o outro e vai pôr em xeque o primado do eu — emerge no contexto da filosofia alemã do século XVIII, o que é um tanto quanto paradoxal, considerando que para os filósofos desse período o eu é ainda o núcleo estruturador do seu entendimento das questões humanas. Tratase, contudo, de um momento particularmente interessante da história moderna que tem seus impactos sobre os modos de pensar. É o período em que as principais sociedades européias começam a sentir agudamente os efeitos de um grande ciclo de mudanças: os efeitos socioeconômicos da Revolução Industrial e os efeitos políticos da Revolução Inglesa e da Revolução Francesa (R. Williams, 1958). No primeiro caso, o novo modo de organizar a produção e o trabalho, com suas consequências, como a urbanização intensa e o redesenho das sociedades até então fundamentalmente agrárias, vai tornar o trabalho (o agir transformador humano), por exemplo, tema de reflexão filosófica sistemática. No segundo caso, a percepção de que havia possibilidades concretas de o agir humano coletivo redundar em significativas mudanças na organização política da sociedade começa a corroer uma perspectiva solipsista de compreensão do pensamento e da ação humana. Desse modo, a dinâmica da história vai forçando um redire cionamento das elaborações intelectuais. Nesse longo processo, foi preciso compreender, primeiro, que o si não existe sem o outro, isto é, foi preciso compreender o primado constitutivo das relações e da alteridade. E, depois, foi preciso colocar a linguagem como constitutiva dessas relações. Para o primeiro momento, é fundante a elaboração de Hegel Fenomenologia enologia do espírit espíritoo (1807), texto em que se delineiam as em Fenom coordenadas da dialética do reconhecimento, em que o eu só aparece como presença de si para si mesmo pela mediação do outro: “A
consciência de si é em si e para si quando e porque é em si e para si
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para uma Outra; quer que r dizer, dizer, só é como algo reconhec recon hecido ido (p. 12 126) 6) Essa formulação específica é apenas um degrau do grande edifício que Hegel constrói na Fenomenologia, mas tem sido intertexto, marcado ou não, de várias formulações posteriores, inclusive as de Bakhtin. Antes de Antes de Heg Hegel, el, o filósofo filósofo Friedrich Jacobi Jac obi (17 (1 7 431 43 188 19) 19 ) parece parece te terr sido o primeiro a reclamar, explicitamente, a paternidade do tema da intersubjetividade. No prefácio à edição de 1815 da obra David Hume über den Glauben, em nota de rodapé, Jacobi (1994:554) declara ter sido o primeiro a proclamar inequivocamente, em sua obra sobre Spinoza (publicada 1785, com uma nova e ampliada edição em 1789), a proposição “O eu é impossível sem o tu” tu” (“Kein du du,, kein ich”). Contudo, a proposição de Jacobi estava ligada a uma temática teísta e emergiu no contexto de sua crítica à concepção de Spinoza de um Deus transcendental que, contrária a todas as representações antropomórficas de Deus, terminava por identificálo com a Natureza (o seu famoso dito Deus sive Natura). Ora, para Jacobi, essa argumentação era inteiramente inaceitável. Para ele (fiel a sua formação pietista, atitude religiosa que defende que nada se interpõe entre Deus e o crente; que entre eles há uma relação direta de sentimento e não de pensamento conceituai), Deus tem de ser um outro; ele não pode ser uma substância indistinta na Natureza, nem apenas um conceito ou um valor abstrato, mas é um ser transcendente, uma personalidade real (“ ( “Eu acredito numa causa inteligente inteli gente e pessoal pessoal do mundo.” — Jacob Jac obii 1946 19 46,, p. 11 111) 1) que, que, ao se dar a conhecer a nós pela experienciação de um sentimento anterior e acima da razão, também determina a individuação do eu eu.. Em outros termos, é só na relação com o tu que o eu pode se perceber como distinto. Vale aqui também o dito anterior de Jacobi de que o eu é impossível sem o tu. tu. Em outras palavra palavras, s, par paraa Jaco Ja cobi bi não pode haver um eu exceto em referência a um tu que o transcenda. Essa questão será retomada pelorazão filósofo Ludwig Feuerbach (18041872). Suas referências a uma intersubjetiva são bas-
tante dispersas, No entanto, há um trecho, em Über Spiritualismus und Materialismus, de 1866, que é suficiente para mostrar a direção de seu pensamento. Dizia ele: Certamente que o idealismo sabe (...) que sem tu não há eu, mas este ponto de vista no qual há um eu e um tu, é para ele apenas o empírico, não o transcendental, quer dizer, verdadeiro, não é o primeiro e originário, mas um ponto de vista subordinado, que é válido para a vida, mas não para a especulação (Gesammelte Werke, vol. 11, p. 176). Fica claro, por este trecho, que para Feuerbach o intersubjetivo tem um papel constitutivo (“transcendental, primeiro, originário”) e não apenas subordinado. Ele elevou a interação ao estatuto de dimensão a prio pr iori ri , condição transcendental da existência. Desse modo, ele substituiu a razão autossuficiente por uma razão relacional e a subjetividade isolada pela subjetividade relacional, efeito da relação intersubjetiva. Na sequência, vamos encontrar, nesta linhagem filosófica, Martin Buber (18781965), que, explicitamente inspirado em Feuerbach, escreveu seu influente livro de 1923 Ich und Du (Eu e tu, na tradução brasileira). Buber identifica (em Buber 1948) Feuerbach, a par de Jacobi, como pai do princípio da intersubjetividade. Foi ele, segundo Buber, que retirou o fundamento teísta da formulação de Jacobi e deulhe um fundamento interhumano. Com isso, pôde estatuir também a intersubjetividade como um a priori para uma nova filosofia, isto é, uma filosofia capaz de superar o solipsismo tradicional. Nesse sentido, Buber considerava a obra de Feuerbach como um segundo recomeço do pensamento moderno depois da descoberta do eu pelo idealismo. Nesse sentido, havia nas formulações de Feuerbach, segundo Buber, um evento copernicano. Buber aprofunda essa perspectiva, construindo em seu livro uma espécie de ontologia da relação (resumida em seu slogan de sabor bíblico: “No princípio, é a relação”), uma ontologia da inter relação como o modo humano de existência e, por consequência, uma ética do interhumano.
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A alteridade precede e é constitutiva da identidade, da ipseida de (“Ic (“Ichh werde am Du” — “Me tom tomoo na re relação lação com o Tu Tu””). Devo à presença do Tu minhas possibilidades existenciais. Toda e qualquer função psíquica só se desenvolve, bem ou mal, na presença do outro. Ser reconhecido é a pedra angular da construção do Eu: ser visto, reconhecido, respeitado. Do caráter constitutivo, estruturante da interrelação decorrem os fundamentos de uma ética do interhumano. O Tu tem o dever de reconhecer o Eu (como dirá Bakhtin, mais ttard ardee — no seu texto Para uma u ma refeitura do li livro vro sobre Dostoievski, Dostoievski, de 196 1 9611 — , “A morte absoluta absolu ta — o nãose nãoserr — é o estad estadoo de não ser ouvid ouvido, o, de não ser reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para um outro, e por meio do do outro, ser para si mesmo.” — p. 2287 87).). Por outro lado, o Eu tem o dever de reconhecer o Tu, o que significa, fundamentalmente, responder ao Tu. O Eu é instado a responder. Desse conjunto de reflexões filosóficas, emerge uma primeira questão cmcial para os estudos da interação e da linguagem na interação: cabenos apenas descrever e explicar os fenômenos ou, ao identificar o papel nuclear, estruturante da dialética do reconhecimento, cabenos também cuidar da grande dimensão ética que perpassa a interação? O filósofo Emmanuel Lévinas (19061995) criticava qualquer abordagem meramente intelectualista da interação. Para ele, há uma interrelação originária irredutível à mera compreensão intelectual. Ou, em outras palavras, não é possível reduzir a interação ao preposicional, porque antes de ser mero objeto de conceitualização, a interação é desde sempre uma relação que nos obriga a responder à face (à exterioridade do outro): antes e para além de ser objetificada, a interrelação é, portanto, vivida. Dentre todos os filósofos que puseram o foco de suas reflexões na interação, foi Bakhtin o que mais avançou em termos de uma análise da linguagem.
Bakhtin estava familiarizado com essa rede de pensadores. De sua leitura da obra fundante de Hegel, nos dá uma pequena pista nas notas de caderno de 19701971 (p. 137), quando alinha algumas considerações sobre a consciência que o ser humano adquire de si mesmo e diz: “A reflexão do si no outro empírico por quem o si tem de passar para alcançar o eu param par amim im mesmo" mesmo",, uma quaseparáfrase de Hegel. Por outro lado, foi f oi leitor leito r e admirador de de Bub Buber, er, mas — é importante destacar — suas reflexões sobre a relação eu/outro, em Para uma filosofia ão ato, ato, foram escritas alguns anos antes de Buber publicar seu livro em 1923. Conhecia a obra de Jacobi e fez dela um aproveitamento bastante curioso: utilizou a noção de Deus como o grande outro (ou a alteridade absoluta) não para sustentar uma reflexão teísta, mas no processo de caracterização do herói confessional na literatura, conforme se pode ler em O autor e herói na atividade estética (p. 144). Podese dizer, portanto, que as diferentes abordagens da temática filosófica da intersubjetividade estavam bem presentes no horizonte do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo. Há, claro, um longo caminho entre as primeiras formulações da temática da intersubjetividade, no século XVIII, até se chegar, cento e tantos anos depois, ao Círculo de Bakhtin com sua teoria das relações dialógicas que colocou, com maestria, a linguagem no cerne desta problemática. Mas, pelo rápido percurso que fizemos, fica já bem claro que sua filosofia pode ser vista como parte de uma linhagem intelectual que tomou forma a partir da percepção básica de que o si não é sem o outro.
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O C A R A F O T R E B L A S O L R A C
il l ia m s
,
INDICE DE AUTORES E DE OBRAS CITADOS A
construção constr ução do e enunci nunciado ado 59, 64 A estrutura do enunc nuncii ad ado o 100, 137, 138 A fi loso losofifi a d das asfor mas sim si mbólica ólicass 11 0 A mori m 16, 40, 44 A ngústi a 9 4 A orde ordem m do discurso dis curso 83 A pa palavr lavra a e suaJunção soc soci al 7 1 , 1 0 0 As almas mortas 1 38 As corr corre entes mai maiss r ecentes centes do p pe ensamento llii n guísticco no Ocide guísti Oci dente nte 34, 74, 100
133, 136, 137, 138, 139, 141, 142, 146, 147, 151, 154, 156, 157 Bally 134 Bocharov 31, 100 Boutet 119 Brait 40 Buber 142, 155, 157 Bubnova 96
A s fr fronte onteii ras entr ntre e a po poé éti ca e a linguísti ca 4 6 ,
akhtin 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 49, 50, 52, 53, 55, 56, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 73, 74, 75, 76, 77,
assirer 110, 112 Castro 15 Chklovski 32 Chomsky 117, 149 Círculo de Bakhtin 9, 10, 11, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 39, 40, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 54, 56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 66, 68, 69, 72, 73, 74, 79, 86, 87, 91, 96, 99, 100, 101, 102, 103, 118, 119, 120, 124, 125, 126, 130, 133, 136, 138, 139, 140, 142, 143, 151, 157
78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 86 , 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 122, 124,
Clark 14 Cohen 16 Croce 134, 138 Curry 114
137, 138
A s tarefas tarefas i mediatas da da ccii ênci nci a históri co- literária 3 4
Authier-Revuz 118
B
C