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Reconstruindo Imagens – o método documentário de análise Vinícius Liebel1
O objetivo deste paper é apresentar, ao menos em linhas gerais, o método documentário de análise de imagens desenvolvido por Ralf Bohnsack. Trata-se do aspecto mais recente do trabalho do sociólogo alemão, e sua importância é ímpar por se apresentar como alternativa séria neste que é ainda a inda um campo bastante negligenciado nas ciências sociais e históricas, com exceção, claro, da História da Arte. Não é por acaso que justamente nesse ramo da História Bohnsack tenha buscado as bases de sua metodologia. O método documentário se apresenta assim como alternativa al ternativa para a condução empírica de pesquisas com fontes imagéticas ao propor a reconstrução das mesmas, ou seja, ele busca verificar a imagem como sistema único (uma análise da imagem em sua dinâmica própria) bem como integrada em seu contexto de produção. A imagem aqui não é entendida como mera ilustração ou simplesmente como produto de um milieu: parte constante e cada vez mais presente nas sociedades modernas, as imagens – sejam veiculadas em jornais, tv ou na internet – trazem consigo muitas vezes referências a serem seguidas, exemplos de ação e de pensamento para a coletividade por elas delimitada, quer dizer, para dado contexto local (Standortgebundenheit ) por elas permeado. A práxis cotidiana pode encontrar portanto nestas imagens seu reflexo e seu modelo. As imagens devem ser entendidas não apenas como espelhos de uma dada mentalidade, mas como constituintes de dado imaginário e produtoras dessa realidade social (BOHNSACK, 2009, p. 27 et seq. e MITCHELL, 1994, p. 41). Essa posição dual das imagens não apenas justifica o estudo desse tipo de fonte como também apresenta dois focos possíveis. Ralf Bohnsack caracteriza esses focos como a busca
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Historiador, doutor em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin).
de uma compreensão sobre a imagem (ou seja, analisando a imagem por ela mesma e suas capacidades gerais e primordiais de comunicação) e outra através da imagem (tomando a imagem como reflexo e produtora ou possível agente transformador de dada sociedade). Em suas palavras:
Nesta diferença (entre o desenvolvimento de uma compreensão através da imagem em oposição a uma compreensão sobre a imagem) estão implícitas hipóteses sobre a ação e a compreensão cotidiana que estendem-se às teorias da ação, do conhecimento, da percepção e dos signos. Que nós compreendemos o cotidiano através de Imagens significa que nosso mundo, nossa realidade social (gesellschaftliche Wirklichkeit) não é apenas representada de forma imagética, mas também constituída ou produzida dessa forma. (BOHNSACK, 2005. p. 3)
Ao se caracterizar a imagem como reflexo e como produtora da realidade social, mas também entendendo-a como um sistema particular que encerra signos e significados em si mesmo, abre-se caminho para a decomposição da imagem, isto é, a reconstrução de seus variados sentidos. Aqui é possível verificar a característica primordial do método documentário de Karl Mannheim, qual seja, analisar o objeto de estudo (seja ele fruto de observação empírica de ações cotidianas, de entrevistas ou, como no caso que será aqui demonstrado, uma charge) em suas diferentes acepções de acordo com suas características imanentes ou socialmente construídas (MANNHEIM, 1980). Tal procedimento deve atentar, finalmente, para a existência de três níveis de sentido:
- um nível objetivo ou imanente, dado naturalmente (por exemplo, num gesto, num símbolo ou ainda na forma de uma obra de arte); - um nível expressivo, que é transmitido através das palavras ou das ações (por exemplo, como expressão de ou como reação a algo);
- um nível documentário, ou seja, como documento de uma ação prática. (WELLER, 2005)
Ralf Bohnsack (2007) caracteriza a passagem da interpretação do sentido imanente para a interpretação do sentido documentário através da mudança de questionamento do observador quando da análise de uma dada fonte. Essa mudança se dá com a inversão da questão o que é a fonte ou o fenômeno social analisado para a questão como ele é constituído. Essa passagem, entretanto, não prescinde da questão anterior. Em termos metodológicos, a primeira pode ser considerada a base da segunda interrogação. No tratamento das fontes, o reconhecimento e o estudo de cada um desses níveis de sentido são realizados em dois passos metodológicos caracterizados por Bohnsack ( Ibid . p. 134-139). O primeiro refere-se à Interpretação Formulada, na qual as apreensões de sentido imanentes à imagem são expostas, e o segundo à Interpretação Refletida, onde o tema da imagem, anteriormente identificado e analisado em sua condição imanente, será contextualizado e analisado conforme sua historicidade. Essas duas fases metodológicas da interpretação, a saber, a Interpretação Formulada e a Interpretação Refletida, encerram em si, no caso do estudo de imagens, dois passos distintos. Essa divisão é largamente baseada no Método Iconológico de Erwin Panofsky (2006) e conta ainda com o Método Icônico do historiador da arte Max Imdahl (1988 e 1996) em sua composição. De forma abreviada, a Interpretação Formulada divide-se assim em duas fases: a fase pré-iconográfica e a fase iconográfica. Na fase pré-iconográfica a busca por “o que” é a imagem, ou seja, pelo que está nela representado, é respondida de forma simples e direta, com descrição dos objetos, dos fenômenos e do ambiente. O segundo passo, a análise iconográfica, é constituído de uma interpretação das ações e gestos que se passam na imagem de modo a encontrar um sentido geral para eles, a apreensão de sua natureza de acordo com o senso
comum. Nesse sentido, Panofsky diferencia o reconhecimento prático dos níveis préiconográfico e iconográfico através do exemplo de um cumprimento com chapéu. O gesto seria descrito em uma análise pré-iconográfica como a “retirada do chapéu da cabeça”, enquanto no nível iconográfico tal ação é tomada como uma “saudação”, um cumprimento (PANOFSKY, 2006, p. 25-7 e BOHNSACK, 2009, p. 56-7). A análise iconográfica abrange ainda outras interpretações estilísticas e de senso comum, como por exemplo, o reconhecimento de símbolos e de arquétipos presentes no imaginário. Uma mulher nua com uma maçã nas mãos é aqui reconhecida como Eva, assim como uma bandeira vermelha com uma foice e um martelo é descrita como a bandeira da União Soviética, bem como o próprio símbolo da foice e martelo como um símbolo do movimento comunista. Já na Interpretação Refletida encontramos a alteração do foco da análise, ou seja, a pergunta “o que” constitui a imagem é substituída pela busca do “como” ela é construída. O último passo na análise clássica de Panofsky – a Iconologia, ou seja, a interpretação da imagem através do estudo de sua singularidade como fonte histórica e social – é a parte central da interpretação. Esse passo compreenderá a caracterização de elementos determinantes no reconhecimento de elementos coletivos, como um país, uma época ou uma classe, bem como de religiões, ideologias e filosofias (Panofsky, 2006, p. 39). Isso aponta para a análise da visão de mundo e do habitus (no sentido de Bourdieu, 1980) da sociedade ou grupo em questão, ou seja, do modus operandi tanto do pensar quanto do agir de seus diferentes produtores. Como complemento da metodologia clássica de Panofsky, o método documentário abrange também o método icônico de Imdahl. Em seu método, Max Imdahl segue as linhas da Iconologia de Panofsky, mas apresenta alguns elementos para análise que são relacionados principalmente com as teorias técnicas da arte. Para Imdahl é importante, por exemplo, o papel das cores, das linhas, das luzes e das formas na interpretação.
A Interpretação Refletida atenta assim à submissão da imagem a uma contextualização, ou seja, a pergunta pelo “como” a imagem é produzida relaciona-se intimamente com o(s) habitus e a(s) visão(ões) de mundo que a produzem, o que rende à análise documentária uma forte ligação não apenas com a Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim como também com a Sociologia Praxiológica de Pierre Bourdieu. A reconstrução dos diferentes sentidos da imagem permite a observação de estruturas de pensamento e de ação que a transpassam. Tais estruturas podem, entretanto, referir-se a diferentes grupos e tempos. O problema da objetividade interpretativa impõe aqui a discussão sobre os produtores das imagens. Quando a análise documentária de imagens é feita com base em fotografias ou em vídeos produzidos em um determinado mileu abrem-se duas possibilidades bastante debatidas por Bohnsack em seus textos. Ele se baseia para tanto na existência de dois produtores da imagem, que são por ele denominados de produtores de imagem que representam, como fotógrafos e pintores, e os produtores de imagem que são representados, ou seja, os sujeitos da imagem, aqueles que emprestam sua imagem para a composição. Para Bohnsack, duas situações distintas podem ocorrer: na primeira os dois produtores pertencem ao mesmo milieu, como no caso de fotografias de famílias. Neste caso, a interpretação “deve preocuparse tão somente em acessar o campo de experiência dos produtores destas imagens, sendo o elemento central para isso a compreensão do próprio habitus individual ou coletivo” (Bohnsack, 2007). No caso dos produtores pertencerem a diferentes espaços ou tempos, a reconstrução deve abranger ambos, a fim de que a interpretação possa evitar avançar naquilo que Panofsky chamou de “fronteiras possíveis da violência” da análise 2, ou seja, que anacronismos ou falhas de entendimento sejam evitados na interpretação de uma imagem.
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Isso porque toda análise deslocada temporalmente já é uma forma de violência contra a significação primordial da imagem, visto que todo analista a enxerga com olhos de seu tempo. Esta violência entretanto estaria dentro da fronteira possível. Análises anacrônicas seriam assim evitadas através do estudo das tradições envolvidas nas
Tomemos, entretanto, um exemplo mais subjetivo. Uma charge produzida na Alemanha na década de 30 pode nos orientar nas considerações seguintes sobre as relações entre produtores:
IMAGEM A: FIPS. Der anständige Jude. Der Stürmer . Nürnberg, Juli 1936.
Como podemos deduzir, no caso das charges essa relação entre os produtores é alterada. O que se vê não é o retrato de dois habitus, mas de um suposto habitus (o do judeu retratado) e o do produtor. O caso se assemelha aos dos pintores que retratam tempos e sociedades passadas, baseados em suas concepções acerca de tais períodos e de como a sociedade do pintor percebe tal realidade deslocada espaço-temporalmente. Mas ainda assim não se trata de uma comparação direta, uma vez que o objeto das charges (no caso aqui apresentado, os judeus) são contemporâneos aos desenhistas e vivem no mesmo milieu. Tratase de um retrato de uma visão de mundo que abarca tais elementos retratados, uma visão de representações, do simbolismo possivelmente envolvido e da história de seus elementos constitutivos. Panofsky fala de uma Geistgeschichte, de uma história do tempo e do espírito do tempo.
mundo guiada por uma ideologia política – e aqui reside a especificidade da charge enquanto objeto de análise histórico-social, pois é ao mesmo tempo reflexo e promotor de tal visão de mundo. Trata-se do retrato de um reflexo, ou seja, um auto-retrato do grupo produtor que permite um vislumbre abrangente deste grupo, mas pouco fala sobre o grupo reproduzido, para além de como é percebido pelo primeiro. Uma análise rápida da imagem3 pode nos mostrar de forma mais clara essa relação, além de demonstrar na prática o método documentário. Seguindo as premissas de Bohnsack, iniciamos pela análise formulada, composta pelas descrição dos elementos pré-iconográficos e pela iconografia. Aqui a regra é clara e simples: na primeira etapa procede-se com a mera descrição do que é exposto. Em linhas gerais, o que se observa aqui em destaque são dois quadros de uma cena com dois personagens: um senhor magro, de chapéu e óculos, trajando um terno claro e apoiado em uma bengala e um homem obeso, de terno escuro e que, no primeiro quadro, também segura um chapéu. No segundo quadro ambos aparecem sentados no banco, com o segundo fumando um charuto. A análise iconográfica, segunda etapa da análise formulada, identifica os personagens como membros de grupos “raciais” distintos: o senhor em paletó claro seria um alemão/ariano4 e o de terno escuro, um judeu. Tais distinções representativas são historicamente construídas, e sua análise torna necessário um estudo em história tipológica do elemento em questão. O judeu de nossa imagem, por exemplo, se faz reconhecer através do formato de sua cabeça, das orelhas de abano e principalmente do nariz. Na composição total da imagem podemos identificar uma cena em dois momentos: no primeiro, o elemento reconhecido anteriormente como o judeu é gentil e pede para o “ariano” um espaço no banco. O gesto por ele promovido (de retirar o chapéu e fazer uma mesura, com 3
Uma análise mais completa da imagem acima pode ser encontrada em LIEBEL (2010) e LIEBE L (2011). É necessário fazer a ressalva de que a representação do alemão não segue o padrão de caracterização dos arianos. Estes costumam ser desenhados de forma anatomicamente mais explícita, com músculos a mostra e bem desenvolvidos. No caso aqui analisado, entretanto, outros elementos apontam para o pertencimento do retratado a esse grupo, como o formato da cabeça, a cor da pele e o nariz. 4
a cabeça baixa) é normalmente aceito como um ato de deferência para com o interlocutor, frequentemente utilizado no cumprimento e/ou no pedido por algo. É inclusive o exemplo utilizado por Panofsky em suas explicações sobre a diferença entre iconologia e iconografia, que foi aqui anteriormente citado: a análise do contexto pode mostrar que a interpretação guiada pelo senso comum pode estar equivocada. Na nossa imagem, a gentileza e a educação do judeu, se revelam já no segundo quadro uma mentira: no momento seguinte ao que o ariano concede o lugar ao judeu, este se apropria de todo o espaço no banco. Já na análise refletida, a primeira etapa se caracteriza pela análise formal da imagem, sua planimetria e dinâmica interna. Por se tratar de uma imagem em duas cenas distintas, uma análise comparada entre os dois quadros nos permite vislumbrar essa dinâmica, dando o tom da mensagem contida na charge.
A partir da sobreposição de um triângulo às imagens, podemos observar uma divisão igualitária da cena entre os dois personagens no primeiro quadro e uma dominação completa do personagem judeu no segundo quadro. Assim, a própria composição da cena mostra uma alteração no equilíbrio anteriormente existente, o que pode ser então analisado, na análise iconológica-icônica, em conjunto e sob as luzes do contexto de produção.
A análise acima referente à posição dos personagens em relação ao triângulo possibilita a interpretação relativa à mentalidade do autor (e do jornal) sobre o lugar do judeu na sociedade alemã e sobre a relação entre judeus e alemães. Se tomarmos o banco como metáfora da sociedade do período, podemos observar que o judeu tenta excluir o alemão, tomando para si o espaço que antes era por este ocupado e aproveitando-se da boa-vontade do mesmo. No segundo quadro não existe mais espaço suficiente para os dois: ao alemão foi relegado apenas o canto do banco e, graças ao foco fechado da imagem, tem-se a impressão de que não existe possibilidades a ele senão sair de cena. O significado é claro: o judeu se utilizaria da falsidade para atingir seus objetivos egoístas, prejudicando quem quer que se colocasse em seu caminho, e isso é apresentado como um habitus, isso é, um habitus que presumivelmente seria característico do retratado e que acarretaria um problema real para a população alemã. Trata-se de um reflexo da visão de mundo do autor da imagem, que é ainda reforçado pelas vestimentas de cada um dos personagens que caracterizam os mocinhos oprimidos (em vestimentas claras) e os vilões opressores (em vestimentas escuras). A interpretação da imagen trata primordialmente da análise do grupo produtor da imagem e da percepção que este tem do grupo retratado, da produção e reforço de sua identidade. Ainda assim, é o habitus do grupo em foco, ou seja, dos judeus, que orienta as ações. Outros indicadores da orientação das imagens são o humor e a violência, elementos constituintes das charges, que indicam o habitus e a visão de mundo do grupo produtor. Uma análise destes elementos em uma perspectiva cultural e política é ainda outra das possibilidades que o método abre a partir de seu caráter reconstrutivista. É a partir dessa gama de possibilidades apresentada pelo método documentário que intencionamos, com esta pesquisa, não apenas discutir as imagens e suas funções, mas também lançar luzes sobre as possibilidades de utilização de outras mídias para o estudo de grupos e sociedades.
Referências:
BOHNSACK, Ralf. Métodos qualitativos de interpretação de imagens e o método documentário de interpretação. In: IV Fórum de Investigação Qualitativa – IQ 2005. Juiz de Fora, 2005.
_____. A interpretação de imagens e o Método Documentário. Sociologias. Porto Alegre,ano 9, nº 18, jun./dez., 2007, p. 286-311 _____. Rekonstruktive Sozialforschung. Einführung in qualitative Methoden. 7ª edição. Opladen, 2008. _____. Qualitative Bild- und Videointerpretation . Opladen: Barbara Budrich, 2009. BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Les editions de Minuit, 1980. IMDAHL, Max. Giotto – Arenafresken. Ikonographie – Ikonologie – Ikonik . München, 1988. _____. Reflexion - Theorie - Methode. Gesammelte Schriften, Vol.3. Frankfurt a.M., 1996b. LIEBEL, Vinícius. A Análise de Charges segundo o Método Documentário. In: WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle (org.). Metodologias da Pesquisa Qualitativa em Educação - Teoria e Prática. Vozes: Petrópolis, 2010. p. 182-196. _____. Politische Karikaturen und die Grenzen des Humors und der Gewalt. Opladen: Budrich UniPress, 2011. MANNHEIM, Karl. Wissenssozilogie – Auswahl aus dem Werk. Berlin/Neuwied, 1964. _____. Strukturen des Denkens. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980. PANOFSKY, Erwin. Ikonographie & Ikonologie. Köln, 2006. WELLER, Wivian. A contribuição de Karl Mannheim para a pesquisa qualitativa: aspectos teóricos e metodológicos. Revista Sociologias, n°. 13, Jan.-Jun. 2005.
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