Le Goff - O Riso Na Idade Media

April 22, 2017 | Author: aulogelio321 | Category: N/A
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3 O riso na Idade Média J acques Le G off

Quando começo a apresentar minha pesquisa sobre o riso na Idade Média, sinto uma certa apreensão. Afinal de contas, Voltaire n ã o escreveu que “as pessoas que buscam causas metafísicas para o riso não são alegres”?1Porém, não estou buscando causas metafísicas p a ra o riso. Na verdade, tento resgatar, sobretudo em relação à Idade M é ­ dia, o que a sociedade achava do riso, as posições teóricas que a d o ­ tou e como o riso, em suas várias formas, funcionou na sociedade medieval. Eu gostaria de convencer o leitor de que o riso é um assunto s o ­ bre o qual vale a pena refletir e, em particular, estudar em te rm o s históricos. Espero confirmar uma observação inicial e muito g en éri­ ca, mas que não deve ser negligenciada: o riso é um fenômeno c u ltu ­ ral. De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação a o riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não s ã o constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige p e l o menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que ri e outra de quem se ri, e também, muitas vezes, d a pessoa ou das pessoas com quem se ri. É uma prática social com s e u s próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco. Eu diria a z é mesmo que este é o único ponto interessante abordado por Bergso n em seu estudo sobre o riso, sendo o restante uma grande d ece p ção .2 Ele salienta essa dimensão social, por vezes de modo especialm entrc feliz, e foi nessa área que Freud percebeu uma convergência de s u a s

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próprias teorias com as idéias de Bergson.3 Como fenómeno cultural e social, o riso deve ter uma história. Por isso me sinto compelido a levar o leitor para o lado sério do riso — algo que conheço bem. Em 1983, o americano John Morreall publicou seu interessante livro Taking Laughter Seriously4 (Levando o riso a sério), e cinco anos mais tarde o italiano F. Ceccarelli publicou o seu estudo Sorriso e riso} Depois de nos lembrar que toda explicação do ridículo simplesmente mata o riso e que a morte do riso deveria nos alarmar, porque ele é uma fonte de prazer, o autor embarca em uma longa investigação e no final conclui: “É muito difícil não admitir a importância de sorrir e rir, de qualquer ponto de vista.” Ele acrescenta, de maneira muito hábil, que a facilidade com que muita gente considera fiítil o estudo do riso e do sorriso é apenas parte de seu problema e de sua função. Concluirei citando o autor russo Alexander Herzen, que há mais de um século observou: “Seria muito interessante escrever a história do riso.”6 O que eu gostaria de fazer aqui é esboçar os problemas que surgem quando se constrói a história do riso no Ocidente medieval. Por julgar que isso possa esclarecer minhas premissas e, ao mes­ mo tempo, responder pelas deficiências e lacunas de minha aborda­ gem, começarei delineando como esse tema surgiu em minha pesqui­ sa e descrevendo minhas motivações e objetivos originais. Depois, enumerarei os problemas encontrados no curso de minha investiga­ ção, problemas esses que definem as premissas. Devo acrescentar que meu trabalho ainda está em fase exploratória. O que nãc deve ser tomado como um captatio benevolentiae. H á alguns anos, meus ami­ gos e eu dedicamos um seminário a esse assunto e muitos dos partici­ pantes já fizeram contribuições muito interessantes, tanto no nível teórico quanto no nível documental. Finalmente, como um exem­ plo, tratarei de um ponto particular que eu pude, até agora, estudar com certa profundidade, o riso dos monges, risus monasticus, na Alta Idade Média.7Também sugerirei algumas diretrizes para uma histó­ ria da evolução das atitudes em relação ao riso e às formas do riso,

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assim como para o lugar do riso na sociedade medieval, do fim da Antigiiidade ao Renascimento.

FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DE MINHA PESQUISA Na minha opinião, um estudo da história do riso tem dois aspectos. As etapas, o método, a formulação do problema e, mais importante, a documentação são diferentes para cada um — de um lado, as atitu­ des em relação ao riso; de outro, as manifestações do riso por outras pessoas. Poderia ser feita aqui uma distinção tradicional e falar-se da “teoria e da prática do riso ’. Em relação ao primeiro aspecto, é relativamente fácil reunir os textos mais ou menos teóricos e normativos que nos fornecem tanto atitudes em relação ao riso como recomen­ dações de como se rir. Observa-se que, assim como a etiqueta à mesa, há uma série inteira de textos sobre os modos de rir. Talvez estejamos mais bem munidos em relação a esses textos. O problema da prática do riso é mais complexo. Aqui, novamente, penso que nos deparamos com dois subconjuntos. De um lado, há os textos que mencionam, de forma muito limitada e ingénua, a presença e as formas do riso — por exemplo, em uma crónica em que se vê al­ guém começando a rir. Experimentar e assimilar todos esses exemplos do riso é importante para uma investigação desta natureza, mas perce­ be-se logo o trabalho que isso requer. Por outro lado, há o enorme campo do que geralmente é descrito como cómico. Aqui há uma dificuldade bem diferente, pcrque é necessário transformar uma análise de proble­ mas do cómico em uma análise equivalente do riso, sem, naturalmen­ te, perder de vista o que é peculiar ao cómico ou aos textos nos quais é expresso. Em outras palavras, deve-se distinguir os textos nos quais o riso é julgado daqueles cujo objetivo é nos fazer rir. Eles são muito di­ ferentes. E aqui encontramos um dos grandes problemas de nossa pes­ quisa — a heterogeneidade dos documentos, questões e conceitos. Te-

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mos que descobrir se há uma noção unificadora por trás de todos Devo acrescentar que aqui nos deparamos com uma história dos valores e das atitudes mentais por um lado e, por outro, com uma história das repre­ sentações literárias e artísticas: uma história do riso e do fazer rir. Portanto, temos inicialmente um grande problema: o dos comple­ xos encadeamentos entre estes quatro domínios — valores, pensamen­ tos, práticas e estéticas do riso. Para acrescentar mais uma observação preliminar: embora haja numerosas categorias de riso e o jogo de pala­ vras não seja a categoria mais importante para provocá-lo, é preciso acentuar a importância das palavras e da linguagem. Felizmente, aqui o his.oriador está mais bem abastecido. Há algum tempo já sabemos usar as perspectivas da linguagem, do vocabulário e da semântica, em­ bora o número de estudos sérios e inteligentes nessa área ainda seja muito pequeno. Finalmente, há o problema do meio lingiiístico, familiar aos medievalistas: temos que conduzir nossa pesquisa no domínio do la­ tim e no das línguas vernáculas. Penso que essa segunda investigação é ainda mais importante, pois, por diversas razões interessantes, as pes­ soas riem melhor no vernáculo que em larim. Se são a sua difusão, hetero­ geneidade e fragmentação que constituem um dos maiores impedimen­ tos ao estudo do assunto, isso, não obstante, permite-nos tocar em muitos temas fundamentais do período em questão. Um dos temas que identificamos aqui são as expressivas possibi­ lidades dos vários idiomas usados na Idade Média, sobretudo do la­ tim em comparação às línguas vernáculas. Investigações completas de especialistas em lingiiística ressaltaram que, a partir do século XIII, o latim tende a se tornar, se não uma língua morta, pelo menos um idioma de especialistas, usado basicamente em certos exercícios reli­ giosos, litúrgicos ou intelectuais, dominados por um novo latim, o latim escolástico. Esse latim é impróprio para expressar o que defini­ mos como sensibilidade, a individualidade de sentimentos e idéias e, por conseguinte, incapaz de observar tudo o que é subjetivo. Para isso, temos que nos remeter às línguas vernáculas. Infelizmente, parece que

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poucos medievalistas têm uma boa compreensão de como relacionar os documentos latinos e vernáculos. Por fim, temos que perceber que, se quisermos dar conta do cómico e do riso, precisamos ir além do instrumento da linguagem, das palavras, e estudar a voz, a expressão facial e os gestos, que possuem a sua própria história.8 Passo agora a tratar de como me interessei pelo riso. Acho que meu interesse foi ativado ao 1er Literatura européia e a Idade Média latina, de Curtius, um livro atualmente ultrapassado, embora seja uma mina de ouro de textos, temas e idéias. Sua breve digressão sobre a Igreja e o riso chamou minha atenção para o fato de que, sobretudo em círculos eclesiásticos, do começo do cristianismo ao fim da Idade Média, as pessoas perguntavam se Jesus alguma vez rira em sua vida terrena.9 O tema pode parecer anedótico, mas é muito interessante, especialmente quando estudado em seu contexto medieval próprio.10 Deixo de lado o seu surgimento, embora seja igualmente interessan­ te. Mais significativo é o fato de que esse topos, encontrado nos ser­ mões, na literatura hoinilética, não se restringiu à sociedade monásti­ ca ou estritamente eclesiástica, mas era também muito vivo no meio universitário. No século XIII, a Universidade de Paris, como tradici­ onalmente fazia, organizou um de seus quod libet anuais (um debate sobre um tema escolhido, um tipo de conferência aberta ao público em geral) justamente sobre esse assunto. Ao mesmo tempo, outro topos circulava por toda a Idade Média, o tema de Aristóteles, que desenvolveu a tese de que o riso é um traço distintivo do homem. Disso surgiu na tradição latina, e na tradição latina cristã medieval, uma expressão que me parece muito interes­ sante, embora facilmente mal interpretada — o tema do homo risibilis. Esse não é, obviamente, “o homem ridículo” ou “o homem de quem se ri”, mas “o homem dotado do riso”, o homem cuja característica mais marcante é o riso. Em torno do riso desenvolveu-se, então, o que se poderia charr ar de um caloroso debate, com profundas conseqiiências. Pois se Jesus, o grande modelo para a humanidade, que será

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cada vez mais apontado como o que deve ser imitado, não rira sequer uma vez cm sua vida humana, então o riso como se torna estranho ao homem, pelo menos a um homem cristão. Por outro lado, se consi­ derarmos o riso um traço distintivo do homem, o homem que ri cerlamente se sentirá mais capaz de expressar a sua própria natureza. Ambas as visões são encontradas tm autores eclesiásticos e não en­ contrei qualquer heresia do riso. As várias atitudes em relação ao riso encontram seu lugar dentro de uma certa ortodoxia. Talvez isso não seja totalmente verdadeiro, iras essa é uma fronteira do assunte que ainda r.ão foi corretamente explorada.

O RISO DE REIS E MONGES O que exatamente uniu esses dois temas? A situação é a mesma ob­ servada no caso da etiqueta à mesa ou dos gestos.·1Durante a primei­ ra fase, a Igreja, diante de um fenômeno que considera perigoso e rcalmente não sabe controlar, rejeita-o totalmcnte. Mais tarde, por volta do século XII, ela consegue submeter o fenômeno ao seu con­ trole, distinguindo o riso bom do ruim, os modos admissíveis de rir dos inadmissíveis. Ela alcança um tipo de codificação da prática do riso, da qual o escolasticismo se apropria. Um dos primeiros textos escolásticos foi escrito por Alexandre de Halès, o primeiro grande doutor franciscano e maître na Universidade de Paris de 1220 a 1240. Depois há os brilhantes textos de Tomás de Aquino e Alberto Mag­ no, que também tiveram impacto sobre as práticas. Um dos exem­ plos mais notáveis é fornecido por São Luís. Evidentemente aconse­ lhado por sua comitiva mendicante — dominicana e franciscana — , o rei resolveu a questão do seguinte modo: ele não ria às sextas-feiras! O maravilhoso Joinville* felizmente nos mostra um São Luís bas*Jean Joinville, historiador francês que acompanhou São Luís em sua sexta cruzada. (jV. da T.)

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tante inusitado: este não era apenas um homem propenso ao riso, mas também alguém claramente enquadrado em outro topos, o rexfacetus, o “rei cómico”, que se tornou uma imagem do rei.12 Parece que o rex facetus se tornou em particular um topos dentro de um contexto social e cronológico bem definido, o contexto da corte. É nele que encontra­ mos uma função praticamente obrigatória do rei — fazer piadas. O rex facetus figura em numerosos textos, principalmente em crónicas ingle­ sas do século XII. O primeiro modelo do rex facetus foi Henrique II, cujas graças e as ocasiões em que rira de uma coisa ou outra estão todas registradas. Percebe-se até que o riso estava quase se tornando um ins­ trumento de governo ou, de qualquer modo, uma imagem de poder. Algumas funções do riso foram pesquisadas por antropólogos. Os “re­ lacionamentos jocosos” em duas sociedades africanas examinadas prin­ cipalmente por Radcliffe-Brown são um exemplo.13 H á sociedades em que certos laços de afinidade, inter alia aqueles entre genro e sogra, devem ser expressos por meio de brincadeiras. Será possível que estru­ turas e práticas semelhantes existissem na Idade Média cristã? Exami­ nando melhor certos textos, tem-se a impressão de que, nas mãos do rei, o riso era um meio de estruturar a sociedade ao seu redor. Ele não troçava de todos indiscriminadamente ou da mesma maneira. A obsce­ nidade também era um dos “deslizes” do riso. O nome da rosa teve seu papel na orientação de minha pesquisa, con­ forme eu notava que meu amigo Umberto Eco não estava menos con­ vencido da importância do riso na sociedade e na cultura medievais. O leitor deve se lembrar de que ele foi detestado pelo rigorosíssimo monge Jorge de Burgos. Eco sugeriu com muita perspicácia uma ligação entre a atitude de seu monge e a de São Bernardo, que se opôs à representação de monstros nos romances. Ainda se percebe aqui uma das alianças his­ tóricas entre as várias formas de desconfiança dirigida a fenômenos que fossem mais ou menos anárquicos, anormais ou provocativos. Mas talvez o que me tenha levado especificamente até o riso foi que, na École des Hautes Études e no Centro de Pesquisas Históricas, muitos de nós estão

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Mando ampliar o domínio da história — da oralidade e do gesto — ( incipalmente através de novos documentos. Sempre me preocupei em wiegrar o corpo humano no estudo do desenvolvimento histórico, não ípcnas observando a história das atitudes corporais, que é relativamente llcil e talvez o método mais superficial, mas também por meio de uma liMÓria projetada para integrar as práticas corporais às grandes mudanI,sidas sociedades históricas. Penso ainda estarmos sob o feitiço do artigo IrMarcel Mauss, “Les techniques du corps”, que continua sendo útil.14 i)riso é um fenômeno expresso no corpo e pelo corpo. De forma espanmu, muitos dos que escreveram sobre o riso — historiadores, historiailotes literários ou filósofos (Bergson e até mesmo Freud) — pouco se interessaram por este aspecto essencial. A codificação do riso e a sua contlrnação nos círculos monásticos resultam, ao menos em parte, de sua perigosa relação com o corpo. Em um sentido amplo, o riso, assim como o ócio, é o segundo gran­ deiaimigo do monge. Nas várias regras monásticas da Alta Idade Média, a inserção de uma passagem que condena o riso em um capítulo quetrata dessa ou daquela virtude, dessa ou daquela regra de compor­ tamento, mostra, simultaneamente, uma certa mobilidade e evolução. Nasprimeiras regras monásticas, aquelas do século V, o riso geralmentc surge no capítulo sobre o silêncio, taciturnitas. O riso é o jeito mais horrível e mais obsceno de quebrar o silêncio. Em relação a esse silên­ cio monástico, que é uma virtude existencial fundamental, o riso é uma violação gravíssima. Adiante vê-se, sobretudo em São Bento, no século VI, que o riso evolui do domínio do silêncio para o domínio da humil­ dade: o riso é o oposto da humildade; chegou-se claramente a um con­ junto diferente de sensibilidade e devoção. A Regula Magistri do século VI, uma das muitas regras monás­ ticas no Ocidente medieval entre os séculos V e IX, especialmente entre ο V e ο VII, está visivelmente ligada à regra de São Bento que, a partir do século IX, era a regra quase universal de todo o monasticismo ocidental.15 Estudos criteriosos e convincentes demonstra-

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ram que a Regula Magistri antecede a regra de São Bento e que ser­ viu como seu modelo, apesar de diferenças consideráveis. Uma des­ sas diferenças é que, enquanto a regra de São Bento é m uito sucinta (uma das razões de seu sucesso: simplicidade e brevidade!), a Regula Magistri é um texto muito longo, mas também muito interessante c ultrapassa a psicologia individual. Ela mostra uma verdadeira fisio­ logia cristã, que explica as exigências de comportamento ao mesmo tempo físicas e espirituais. É um texto firmemente apoiado em um dos fenômenos mais importantes da Idade Média, embora pouco considerado. A atenção foi voltada sobretudo para textos hostis ao corpo, textos do tipo ascético, exemplificados pela famosa frase de Gregório, o Grande, que definiu o corpo como “a abominável vestimenta da alma”. Acredito que foi dada muito pouca atenção ao fato de que o homem é fundamentalmente concebido como uma união inseparável do corpo e da alma. Não nos esqueçamos de que o cristianismo oferece a ressurreição do corpo, o que o distingue de muitas outras religiões, e que nela se é salvo de corpo e alma: o bem e o mal são praticados através do corpo. Havia uma tendência para focalizar o corpo como um instrumen­ to do demónio, embora fosse ele também um instrumento da salvação. É justamente a Regula Magistri que explica com clareza como o corpo humano está posicionado em relação ao bem e ao mal. De fato, o bem e o mal possuem duas fontes. De um lado, há uma fonte exterior, que é a graça divina nc caso do bem, e o diabo e a sua tentação, no do mal. De outro, há duas fontes interiores, ambas provenientes do coração, que são os pensamentos ora ruins, ora bons. Nas duas direções, de fora para dentro ou de dentro para fora, o corpo humano emprega filtros: os orifícios do rosto. Olhos, orelhas e boca são os filtros do bem e do mal e devem ser usados para permitir que o bem entre ou se expresse, e bloquear o caminho do mal. A Regula Magistri fala da “passagem da boca”, a “barreira dos dentes” etc. Quando o riso está começando, ele deve, a todo custo, ser impedido de se expressar. Assim vemos como o

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r i s o é a pior de todas as formas de expressão d o mal q u e vêm de dentro: a p i o r poluição da boca. Todas essas ideias são am arradas a um a fisiolo­ g ia cristã bastante extraordinária, por trás da qual podem os detectar tra ta d o s médicos e, por assim dizer, crenças fisiológicas.

T IP O S DE RISO A q u i encontramos um problema fundamental. É importante e neces­ sário em uma pesquisa começar por arriscar hipóteses que ainda não possam ser fundamentadas por suficientes estudos, análises e reflexões, m as sem as quais, eu acredito, não faríamos progresso algum. Depois devem os conjugar essas hipóteses com nossos dados, adaptá-las e, se necessário, abandoná-las ou substituí-las. Nosso primeiro problema, então, é saber se podemos reduzir o riso a um fenômeno único. Neste m om ento não posso afirmar. É impressionante que, ao se dedicar ao estudo das várias áreas do riso, passa-se a lidar com palavras, conceitos, e não apenas com as práticas compreendidas no termo “riso” ou em seu cam po semântico. Estas são quase sempre tão diversas que se chega a duvidar de estar-se falando d o mesmo assunto. Este problema não foi suficientemente tratado por estudiosos, nem m esm o pelos maiores deles. N o livro de Freud sobre humor,* um dos grandes trabalhos sobre o assunto, fiquei surpreso por descobrir que ele raramente considera o corpo, mas também por definir três tipos de riso: o espirituoso, o cóm ico e o bem-humorado, qualificados com o as “formas eternas do riso”. É surpreendente que ele não tenha exposto o problema da unidade do riso. Embora tenha empregado o mesm o m étodo para definir e analisar essas três formas de riso, a unidade deri­ va de seu m étodo de análise, náo de uma unidade objetiva real dos fe­ nôm enos estudados. Entre as teorias do riso propostas, John Morreall * 0 humor t :ua relação com o incomcientt, de 1905, em que Freud analisa o humor e a piada. (N.daT)

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destaca três principais: a teoria da superioridade, segundo a qual a pes­ soa que ri essencialmente tenta dominar um interlocutor ou alguém que o encara por causa do seu riso. A segunda é a teoria da incongruên­ cia: o riso se origina, basicamente, na percepção de algo fora dos pa­ drões normais da natureza ou da sociedade; essa é a teoria proposta por Bergson, elaborada a partir de sua idéia da percepção de uma ação mecânica na qual devia ter havido algo espontâneo. E, finalmente, há a teoria do alívio, segundo a qual as pessoas que riem liberam um com­ portamento que, de outro modo, teria expressão e consequências mui­ to mais difíceis. Tendo exposto essas três teorias, Morreall propõe uma nova, resultante de sua tentativa de elaborar uma explicação única e sucinta: “o riso resulta de uma troca psicológica agradável”. É impossí­ vel levá-la a sério; é quase uma tautologia. E como definiríamos “troca”? Voltemos aos legados culturais que influenciaram os conceitos de riso no Ocidente medieval. O legado bíblico é muito forte, talvez ain­ da mais neste caso. Pelo menos até o século XIV a Bíblia permanece sendo “o Livro”; todas as reflexões teóricas e regras práticas partem dela. Quando as pessoas da Idade Média, os clérigos em particular, tentam entender um fenômeno e formar uma opinião, referem-se primeiro à Bíblia, ponto de partida de suas reflexões. Os clérigos e os intelectuais sempre procederam deste jeito e, nos primeiros séculos da Idade Mé­ dia, compilaram dossiês sobre a maioria dos principais problemas en­ frentados em sua sociedade. Estudei este método em relação ao traba­ lho: na Alta Idade Média, os intelectuais cristãos compilaram um dossiê que começa com todas as citações bíblicas referentes ao trabalho ou que pudessem ser citadas a propósito do trabalho.'6 Esse é um jogo muito importante, e é revelador notar que, dependendo da época, certos tex­ tos são citados e outros são ignorados. É nesse jogo de citações, em dossiês compilados, que a evolução das atitudes culturais relativas a vários fe­ nômenos pode ser percebida. Esse é também o caso do riso. Estamos bem munidos para nossa investigação, já que há vários ar­ tigos bons sobre o riso no Antigo e no Novo Testamento, tanto nos

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dicionários da Bíblia e do Novo Testamento, quanto em monografias. Parece-m e que a distinção básica do Velho Testamento continuou a ter p e s o por um longo período, mas em formas novas e renovadas, a saber, a separação entre dois tipos de riso bem diferentes, para os quais o hebraico possui duas palavras bem distintas. A primeira é sâkhaq, “riso feliz, desenfreado”, e a outra é lâag, “riso zombateiro, maligno”. A pri­ m e ira palavra é interessante para os medievalistas porque, naturalmen­ te , é um legado que se mantém vivo na Idade Média. Foi esse termo q u e deu nome a um dos principais personagens do Velho Testamento, Isaac, que significa “riso”. H á toda uma literatura sobre o nome Isaac n o pensamento judaico, no Talmud e nos comentários rabínicos. O b­ servemos os capítulos do Génesis (17 e 18) nos quais o nascimento de Isaac é anunciado. É uma preciosidade cómica. Um dia Jeová aparece a Abraão, como fazia com freqüência, e lhe diz: “Serás pai.” Abraão: “Será que um centenário vai ter um filho e que, aos 90 anos, Sara vai d ar à luz?” Abraão mantém-se em silêncio, mas tem suas considerações. Algum tempo depois Jeová aparece a Sara e lhe diz: “Serás m ãe.” Sara abertam ente põe-se a rir. No ano seguinte o evento acontece. Uma criança nasce para Sara e Abraão, que é en­ tão chamada “riso”, Isaac. A confusa Sara diz a Jeová que ela, na ver­ dade, não rira durante a predição. Jeová finge acreditar mas finalmente diz: “Sim, tu riste.” Este é um texto surpreendente e, certamente, muito sensato. Na minha opinião, parece haver mais do que apenas uma persistência conceituai dessas duas formas de riso e que as sociedades cristãs do passado tiveram grande dificuldade em considerá-las com o sendo o mesmo tipo. Mas assim tiveram que fazer devido ao latim. O grego possui duas palavras derivadas da mesma xúr.gélân e katagélan. Gélân é o riso natural e katagélân, o riso malicioso. Acho que os esforços do pensamento medieval para distinguir o riso bom do mau apenas dão continuidade a essa separação. O latim só possuía risus\ o grego pos­ suía uma palavra para sorriso. O latim teve muita dificuldade em for-

mar tal palavra, subrisus, e ela foi assimilada com esforço; por muito tempo subrisus não significou “sorriso” e sim “riso à socapa”, “riso furtivo”. Só se tornou “sorriso” após uma clara mudança de valores e comportamentos — talvez no século XII? Me pergunto se sorrir não é uma das criações da Idade Média. Observando-se as representações artísticas do nascimento e da his­ tória de Isaac, não se encontra tentativa alguma de representar o riso. Trata-se de uma questão que considero interessante e fundamental, isto é, a relação entre textos e imagens, entre iconografia e tema. Compara­ da a um texto, uma imagem pode exibir silêncios, demoras, desloca­ mentos e, certamente, discrepâncias. O outro lado do problema é como fazer com que as pessoas riam através de obras de arte, através do cómi­ co e da caricatura.17 Esse é um problema que surge bem tarde. Tem-se a impressão de que, por muito tempo, o cristianismo bloqueou esse aspecto zombeteiro do riso, definido como sendo especificamente mau. Por outro lado, vê-se o sorriso brotar em pinturas e esculturas: os famo­ sos anjos sorridentes, o tema das virgens sábias e tolas, no qual as vir­ gens sábias sorriem e as tolas riem às escondidas.

O RISO EA SOCIEDADE Entre os problemas encontrados há também o da relação entre o riso e a sociedade. De quem e do que se ria? De grupos ou de classes? Nossos monges deviam respeitar os seus “sins” e “nãos” específicos. Havia um riius monasticus, que era um riso ilegítimo e proibido, mas, ao mesmo tempo, nossos bons monges certamente tiveram momentos de diver­ são nos mosteiros. Eles até mesmo criaram um tipo de piada escrita, joca monacorum, da qual há coleções do século VIII em diante. Há anedotas sobre monges, assim como sobre os curas, judeus e arménios. Vamos falar sobre o riso em grupos. Havia um riso feudal maravi-

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L h t coso, ogab (tagarelar), um tipo de divertimento feudal semelhante aos stories (contos fantásticos). Quando os homens não estavam nos osentos das mulheres, mas entre si, longe da batalha, eles contavam l i is tó r ia s sobre senhores feudais e sobre guerreiros. O objetivo era con­ t a r a história mais extraordinária sobre feitos heróicos. Cortar ao meio u. m cavaleiro e seu cavalo com um só golpe de espada era o menor de t a i s exageros. Era um turbilhão de imaginação, invenção e inspiração. E r a assim que os personagens passavam uma boa parte de seu lazer, nas m a i s antigas chansons de geste. Uma chai.son de geste bem antiga, a r*è"lerinage de Charlemagne, nos mostra como, contando gabs, Carlos N /Iagno e seus doze companheiros, como anfitriões do imperador de C o n s ta n tin o p la , aterrorizaram o espião enviado pelo imperador para s o n d a r seus planos, e que misturou ficção com realidade. Tanto para o riso como para a comunicação, Georges Bataille escre­ v e u que “o riso é a forma específica da interação humana”. Ao observar­ m o s como ele atua, seja em termos teóricos ou práticos, ele pode nos re­ velar as estruturas de uma sociedade e seus modos de funcionamento. H á pouco falei sobre o que eu chamo de “deslizes”, os componentes eró­ ticos, escatológicos e obscenos, que são muito importantes. Eles podem ser encontrados nos mais antigos textos cómicos que nos restaram. Falei sobre o riso antropológico e a ligação entre o riso e o folclore. Também falei sobre o “relacionamento jocoso”. Há outros temas sur­ preendentes, sobretudo na literatura — por exemplo, a criança que ri no momento em que vai ser morta ou, no Percivalde Chrétien de Troyes, a jovem que não rira por seis anos. Outro tipo é o riso ritual, do qual o I

riso durante a Páscoa (risuspaschalis) é o exemplo mais importante.18

CONCLUSÃO

Elaboremos agora uma síntese provisória e um esboço cronológico. Há um primeiro período, do século IV ao X, durante o qual o mode-

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lo monástico, creio eu, prevalece, um período de riso reprimido e su­ focado. Fui surpreendido por um paralelismo de atitudes e evolução entre o riso e outro fenômeno que cheguei a estudar — o sonho.” Também há a repressão e a sufocação do sonho, assim como há a re­ pressão do riso, já que o riso diabólico hipnotiza as pessoas. Mas não nos esqueçamos de que, se este é um período no qual as lágrimas parecem submergir o riso, encontramos no próprio ambiente monás­ tico o contraponto da joca monacorum. Isso mostra que, mesmo nos períodos em que teorias hostis ao riso parecem predominar, uma prá­ tica que dificilmente reprime o riso consegue ainda sobreviver. Em todo caso, neste meio há um gênero literário que tende à direção oposta e parece escapar à repressão. Um segundo período, no qual vejo também um certo paralelo com a história do sonho e do gesto, é a época da liberação e do controle do riso, ligada inter alia à ascensão da laicidade e à literatura vernácula. A sociedade começa a se olhar no espelho e os Estados seculares perce­ bem como sac ridículos. Em decorrência disso, a sátira e a paródia se desenvolvem e dentro da Igreja surge um controle do riso, assim como dos sonhos e dos gestos. No nível das práticas, são novamente as cortes reais que funcionam como o centro da domesticação do riso. Não creio que Norbert Elias esteja falando sobre esses aspectos do riso e do cómi­ co, mas eles se ajustariam bem às suas categorias e teorias.20 A seguir, encontramos o riso escolástico e o estabelecimento de uma casuística do riso. Quem é qualificado para rir? Q ue tipo de riso é permitido? Quando? Como? Tempo de rir e tempo de chorar — é com isso que São Luís se preocupa. Há uma série de textos fascinantes (que darão origem a muitos outros) relativos ao termo bilaris. Em geral, hilaris se aplica ao ros­ to: vultushilaris significa um rosto feliz, agradável; a expressão corres­ ponde quase exatamente ao que hoje chamaríamos um rosto sorri­ dente, mas certamente não um rosto hilário. Um bom estudo de Fernand Vercauteren mostra como, nas escrituras do final do sécu-

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UMA HISTÓRIA CULTURAL D O H U M O R

■X-X, a expressão “o doador sorridente” (hilaris dator) começa a apa­ ce * r.21 N ão b a sta a um doador fazer a doação, ele deve fazê-lo mos­ aic ^ jo que o faz com satisfação. Suponho q u e isso signifique que as j>a4, M. Mauss, “Les techniques du corps'. Journaldepsychologie normale etpathologique, 39 (1935), pp. 271-93, reeditado em sua Sociologie et anthropologie (Paris, 1950), pp. 36586; trad, inglesa como Sociology apd Psychology (Londres, 1979), pp. 97-123. • Cf. A. de Vogüé, La Règle de saint Benoit (2 vois, Paris, 1972), trad, inglesa T. Fry (org.) como The Rule of St Benedict in Latin and English with Notes (Collegeville, MN, 1981). '· J. Le Goff, Time, Work and Culture in the Middle Ages, trad. A. Goldhammer (Chi­ cago e Londres, 1980), pp. 71-86. 7· Um texto importante a esse respeito é Baudciairc, Oeuvres complètes, ed. Pléiade (2 vols, Paris, 1958), vol. 2, pp. 525-43 (“De l'essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques”). 8. V. Wcndland, Ostermârchen und Ostergelackter (Frankfurt e Berna, 1980). 9. J. Le Goff, The Medieval Imagination (Chicago e Londres, 1988), pp. 193-242. ÍO. Cf. N. Elias, The Court Society, trad. E. Jephcott (Oxford, 1983). ll. F. Vercauteren, “Avec le sourire...", em Mélanges offerts à Rita Lejeune (2 vols, Gembloux, 1969), vol. 1, pp. 45-56. Q. Thomas de Eccleston, De adventu fratrum mnorum in Angliam, rrad. inglesa L. Sherlcy-Price como The Coming of the Franciscans (Oxford, 1964). T M. Bakhtin, TvorcestvoFransua Rable i narodnaja kulturasrednevekovjai Renessansa (Moscou, 1965), trad, inglesa H. Iswolsky como Rabelais and his World (Bloo­ mington, 1968). ■ D. S. Lichaceve A. M. Pancenko, “Smechovoj tnir"drevnej Rust (Leningrado, 1976; 2* ed. 1984), trad, alemã como Die Lachwelt des Alien Rutland, org. R. Lachmann (Munique, 1991); V. Propp, Theory and History of Folklore (Manchester, 1984),pp. 124-46 (publicado pela primeira vez em 1939); Gurevich, Capítulo 4 deste livro.

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