Larry Shiner tradução aula 2
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1 Larry Shiner, The invention of art – A cultural history
Hoje em dia, podemos chamar a quase tudo “arte” sem problemas de maior. Uma das razões para isto é que o mundo artístico voltou à carga com o tema de misturar de novo “arte” e “vida”. Gestos deste género vão do inocente ao escandaloso, como levar quilts para dentro de museus de artes decorativas, ou literatura do tipo “pulp fiction” (novelas policiais baratas), para cursos de literatura, até tocar ruídos de rua em salas de concerto, ou submeter-se a cirurgia plástica directamente em video-satélite. A entrada intempestiva de todas estas coisas excêntricas, artefactos, ruídos, escritos, performances, no campo das belas-artes, levou alguns a falarem com desespero da “morte” da arte. Outros autores, envoltos no estandarte do pós-modernismo, concordam que o sistema das belas-artes nascido na época moderna está morto, mas convidam-nos a dançar sobre o seu túmulo, celebrando mais uma libertação. O mais importante não é saber se devemos dançar ou chorar, mas perceber como é que viemos ter a esta situação. Se queremos compreender a explosão daquilo a que chamamos arte, e a vontade de unir arte e vida, temos primeiro de compreender de onde vieram as ideias e instituições modernas das belas-artes.
O sistema das artes moderno∗ não é uma essência ou uma
fatalidade, mas algo que nós criámos. A arte tal como a entendemos genericamente é uma invenção europeia, não tem mais de duzentos anos. Foi precedida de um sistema das artes mais alargado e mais utilitário, que durou perto de dois mil anos, e possivelmente dará origem no futuro a um novo sistema das artes. A assimilação de todas as actividades e artefactos de outros povos e civilizações às nossas noções (europocentrismo) já dura há tanto tempo que a universalidade da ideia europeia de arte é aceite de forma indiscutível. Ver Por “sistema das artes” (system of art) entende-se os conceitos e ideais subjacentes partilhados por vários universos artísticos e pela cultura em sentido lato, incluindo mesmo os que só marginalmente participam num dos universos artísticos. Um “universo artístico” (art world), uma rede de artistas, críticos, públicos e outros que partilham o mesmo campo de interesses, bem como uma partilha de certos valores, práticas e instituições. O “sistema das artes moderno” (modern system of art), ou actual sistema das belas-artes, surgido no século XVIII, é aqui usado em contraposição ao que o autor designa de sistema das artes mais antigo. “Moderno” é aqui usado apenas em contraposição a “antigo”, e não tem conotações com a ideia de moderno/pós-moderno. Por “arte” entende-se neste caso não só as artes visuais, mas também as belas-artes como um todo: todos os géneros artísticos, incluindo a pintura, a literatura, a música, a arquitectura, o teatro, a fotografia, etc. ∗
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2 uma pintura do Renascimento isolada numa parede de um museu, ler uma peça de Shakespeare através de uma antologia de textos literários, ou ouvir a Paixão segundo S. Mateus de Bach numa sala de concertos reforça a falsa impressão de que as pessoas do passado partilhavam a nossa noção de arte como um domínio composto de obras autónomas destinadas à contemplação estética. Esta ideia de que os ideais e as práticas da arte moderna são universais e eternos, ou que pelo menos datam da Antiguidade Clássica ou do Renascimento, foi facilmente aceite devido à ambiguidade da própria palavra “arte”. Deriva do latim ars e do grego techne, que significavam qualquer aptidão ou actividade humana, desde domar cavalos até escrever poesia, fazer sapatos, vasos cerâmicos, ou governar. Nesta concepção antiga, o oposto da arte humana não era artesanato, mas natureza. Ainda hoje dizemos que a medicina ou a culinária são uma arte, i.e., uma actividade humana. É no século XVIII que se dá uma divisão fatídica neste conceito tradicional de arte. Depois de quase dois mil anos a significar qualquer actividade humana desenvolvida com habilidade e graça, o conceito de arte divide-se, gerando a nova categoria das belas-artes (poesia, escultura, arquitectura, pintura, música), oposto a artesanato1 e artes populares (bordados, canções populares, etc.). Hoje, quando nos interrogamos “Isto é mesmo arte?”, não queremos já dizer “Isto é produto de uma actividade humana, em vez de um produto natural?”, mas sim “Isto pertence à prestigiada categoria da arte (ou das belas-artes)?”. Nos tempos mais recuados, não havia artistas nem artesãos, mas simplesmente artesãos/artistas que elaboravam os seus poemas e pinturas, relógios e botas, de acordo com uma techne ou ars, uma arte/artesanato. Mas no final do séc. XVIII, artista e artesão tinham-se tornado opostos: artista significava agora o criador de obras de belas-artes, enquanto o artesão significava o mero fazedor de qualquer coisa útil ou interessante. Esta mudança do conceito de arte foi uma espécie de revolução como a de Copérnico: no decurso de um século, o modelo de construção fora 1
Um artesão é alguém que possui apenas uma capacidade técnica, que trabalha por encomenda, e que se dedica sobretudo a uma actividade lucrativa. Artesanato é um termo usado por oposição a belas-artes, incluindo categorias que por vezes se sobrepõem, como artes aplicadas, artes menores, arte popular, folk art, arte comercial, artes do espectáculo (entertainment arts)
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3 substituído pelo de modelo de contemplação, que tratava os produtos das belas-artes como objectos de atenção enlevada. No início do séc. XIX, a velha ideia da função nas artes também se dividiu, com as belas-artes a adquirirem um papel espiritual transcendente de revelarem a verdade, ou confortarem a alma. A ideia de contemplação desinteressada tinha sido até aí aplicada apenas a deus; agora, a arte, para muitas das elites cultas, estava à beira de se tornar
uma nova arena de investimento espiritual.
Não se tratou
meramente da substituição de uma definição de arte por outra, mas da substituição de todo um complexo sistema de conceitos, práticas e instituições por outro sistema.. No sistema antigo, a ideia da arte como qualquer espécie de objecto ou actividade para uso ou diversão era acompanhada
de
instituições que agregavam aquilo que hoje separamos como arte, artesanato e ciências. Em vez do museu de arte, por exemplo, no séc. XVI-XVII havia os gabinetes de curiosidades, que misturavam conchas, relógios, esculturas, pedras preciosas, como uma súmula visual do conhecimento. Muitos artesãos/artistas trabalhavam em encomendas de patronos cujos contratos especificavam frequentemente o tema, a forma e os materiais e destinava um lugar e um propósito específicos para a peça depois de terminada.
Até
Leonardo da Vinci assinou um contrato para a Virgem dos Rochedos que especificava o tema, a cor das vestes da Virgem, a data de entrega, e uma garantia de reparações futuras. Os escritores profissionais passavam muito tempo copiando, tirando notas, escrevendo cartas para os seus patronos, ou escrevendo poemas de aniversário, encómios, ou ataques satíricos, conforme lhes era requerido. Para além do mais, a produção artística era normalmente um assunto que exigia a cooperação entre vários artistas, com várias mãos e mentes envolvidas, fosse a pintar frescos (Rafael), na múltipla autoria de produções teatrais (Shakespeare), ou no empréstimo livre de melodias ou harmonias entre compositores (Bach). Esta situação é muito diferente das normas do moderno sistema dominante das belas-artes, no qual o ideal não é a
cooperação
inventiva,
mas
a
criação
individual,
as
obras
são
frequentemente destinadas a uma finalidade ou local específicos mas existem por si mesmas, a separação entre obras de arte e um contexto funcional leva ao ideal da atenção silenciosa e reverencial em salas de concerto, museus, teatros e salas de leitura. 3
4 O factor de mudança que permitiu partir ao meio o antigo sistema das artes foi a substituição do patronato (mecenato) por um mercado da arte e por um público de classe média. Relações de poder entram em cena: os géneros e actividades escolhidos para a elevação das mentes e os escolhidos para despromoção reforçam as questões de raça, classe, género: por exemplo, se o bordado feminino foi salvo do campo das “artes domésticas” para entrar no andar principal dos nossos museus de arte, é em parte devido à pressão exercida pelos movimentos feministas nas últimas décadas. Ultrapassou-se assim uma antiga divisória baseada no género, que existia no sistema das belas-artes. De forma semelhante, o movimento multiculturalista tem razão ao querer que os géneros e obras das minorias excluídas entrem nos curricula literários, musicais e artísticos. No entanto, em vez de simplesmente assimilarmos as artes das culturas tradicionais africanas ou nativas americanas às normas europeias, na crença paternalista de que lhes estamos a prestar uma homenagem, devemos aprender através da sua compreensão das artes tão diferente da nossa e discutir o seu lugar na sociedade. Então, desde o início do séc. XIX que temos definidas as polaridades básicas: Arte versus artesanato, artista versus artesão, estética versus utilidade, ou finalidade prática. Há uma tradição de resistência a esta divisão, mas o certo é que os trabalhos da maioria dos resistentes e apóstatas das normas das belas-artes (p. ex. os que tinham dúvidas e parodiavam e ironizavam com a arte no séc. XX, Marcel Duchamp e os Dadaístas, ou as figuras de proa da arte Pop e da arte conceptual) foram absorvidos pelo “Templo da Arte” e estão hoje representados nos principais museus
que
pretenderam parodiar. Mas mesmo enquanto o mundo das belas-artes estava a recapturar e domar estes actos de resistência, estava também a expandir os seus próprios limites, primeiro através da assimilação de novos tipos de arte, como a fotografia o filme ou o jazz, depois através da apropriação de obras de arte “primitiva” e popular, e finalmente através da aparente dissolução total das suas própria fronteiras, ao assimilar tudo, da auto-mutilação (body-art) aos ruídos de John Cage. No entanto, mesmo os artistas e críticos de arte que parodiam ou se opõem ao sistema das artes moderno, referindo-se à “morte da arte”, acabam por lhe ser tributários. O sistema estabelecido tem um enorme poder de 4
5 perdurabilidade; a arte não é apenas uma “ideia”, mas sim um sistema de ideais, práticas e instituições. A dimensão mais importante da arte, que até agora ainda não referimos, é a emoção. A arte não é apenas um conjunto de conceitos e instituições, mas algo em que as pessoas acreditam, uma fonte de conforto e prazer, de poderosas emoções, capaz de despertar sensações fortes: por exemplo, falamos num “amante das artes”. Mesmo quando pretendemos pôr em causa o actual sistema de crenças e valores relativo às artes, e repensar os seus ideais e instituições, necessitamos de explorar as suas raízes históricas como um prelúdio absolutamente imprescindível para avançarmos nessa crítica. Antes da separação entre belas-artes e artesanato, a distinção entre artista e artesão não era ainda normativa. Para L. Shiner, a ideia vastamente difundida de que foi no Renascimento que se estabeleceram os modernos ideais de arte, artista e estética não pode ser aceite. Este autor mostra que, apesar dos passos importantes dados nessa direcção, o velho sistema que unia arte e artesanato, artesão e artista, ainda era a norma na Itália de Miguel Ângelo e na Inglaterra de Shakespeare. A grande fractura neste sistema ocorreu, segundo Shiner, durante o século XVIII, separando finalmente as belas-artes do artesanato, o artista do artesão, a finalidade estética da utilidade. É nesta altura que se estabelecem determinadas instituições como o museu de arte, o concerto secular, os direitos de autor. É no século XIX que se completa a construção do novo sistema das artes, através da elevação da Arte ao nível dos mais altos valores, encarando-se a vocação artística como um apelo espiritual único, e da disseminação por toda a Europa e Américas das instituições das belas-artes, que é acompanhada do estabelecimento do comportamento estético que se julgava adequado à fruição das artes. No final do século XIX e no início do século XX, o sistema das artes moderno foi capaz de assimilar quer novas artes (a fotografia), quer novas formas de resistência (o movimento Arts and Crafts, o Construtivismo russo), sem alterar as suas polaridades básicas. Este sistema (belas-artes versus artesanato), que ainda hoje se mantém fortemente enraizado, tem sido acompanhado de processos de resistência e de assimilação que vão minando
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6 seriamente as polaridades do sistema vigente, dando azo a que questionemos se virá a caminho um terceiro sistema das artes. No velho sistema das artes não havia, é claro, artesãos e artistas, no sentido que actualmente damos a estes termos, mas sim artesãos/artistas que juntavam em si qualidades que só foram separadas de forma definitiva no século XVIII. O actual sistema das artes, ou sistema das artes moderno, é assim o resultado de uma invenção do século XVIII. Isto não quer dizer que tenha surgido de repente, do nada; embora possamos falar de uma ruptura ou descontinuidade entre o sistema pré-moderno das artes e o moderno (actual) sistema das artes, tal não implica que não tenha havido continuidades entre ambos. Alguns aspectos do actual sistema das artes encontravam-se já latentes nos autores gregos da Antiguidade, nos pintores do Renascimento ou nos filósofos do século XVII, mas estas ideias só se organizaram num discurso regulador e num sistema institucional em finais do século XVIII. Este sistema das artes estabelecido no século XVIII continua a ser o enquadramento no seio do qual têm lugar muitas das mudanças actuais. A arte foi vista como “imitação” até ao advento do modernismo, altura em que os artistas iniciaram uma busca da essência da arte que culminou em 1965, quando a pop art e a arte conceptual demonstraram que não havia uma maneira “correcta”, ou paradigmática, de a arte se apresentar. A arte revelara finalmente a sua verdadeira natureza: algo que faz uma afirmação e a corporiza, ou encarna, de forma auto-consciente. Depois da revelação de que a essência da arte é “significado, ou sentido, incorporado” (embodied meaning) (Arthur Danto, After the End of Art, 1997), a verdadeira forma da polaridade arte versus artesanato tornou-se igualmente aparente: significado corporizado versus mera utilidade e génio versus mera capacidade. O conceito de “morte da arte” em Danto (filósofo contemporâneo) tem que ver com a ideia de que “a arte é eternamente a mesma”, e que a essência da arte se foi revelando progressivamente ao longo da história. Este autor combina audaciosamente um ponto de vista essencialista com uma visão historicista. Agora que a essência foi revelada, a fase histórica da arte terminou: a arte já não tem uma “direcção narrativa”. É este o sentido da controversa frase de Danto, “the end of art”, que, embora provocadora, apenas significa que a própria arte deixou de procurar a sua essência. 6
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Pode-se encontrar no passado algumas semelhanças esparsas com os ideais e as práticas modernas das belas-artes. O que é incorrecto é permitir que essas familiaridades reconfortantes nos impeçam de ver as enormes diferenças e criem a ilusão de que a ideia moderna de arte esteve sempre connosco. O importante é perceber quando e onde é que um antigo sistema de artes/artesanato – um complexo integrado de ideais, práticas e instituições – foi substituído por um novo sistema de belas-artes versus artesanato. Há diferenças radicais entre as nossas concepções e a concepção e organização das artes dominante desde a Grécia Antiga até meados do século XVII. Durante cerca de dois mil anos, a cultura ocidental não teve um termo ou conceito para designar as belas-artes, e encarava o artista/artesão como um fazedor mais do que como um criador, havendo a convicção de que estátuas, poemas e músicas não existiam essencialmente por si mesmas, mas serviam determinadas finalidades. Na Idade Média, não havia artesanato e belas-artes, mas apenas artes, assim como não havia artistas ou artesãos, mas apenas artesãos/artistas, que davam igual importância à habilidade e à imaginação, à tradição e à invenção. Também não houve uma mudança brusca entre a Idade Média e o Renascimento, como durante muito tempo se pensou. No Renascimento, as artes e os seus executores ainda operavam inseridos num sistema de patronato/encomenda, que destinava a maior parte das obras a públicos, funções e locais específicos. O século XVI assiste ao surgimento de várias novas práticas (as biografias dos artistas, o auto-retrato), de algumas instituições inovadoras (as academias de arte), e de um começo de novas relações de produção (alguns coleccionadores e mercados de arte), mas o antigo modo de conceber e organizar a arte manteve-se dominante. O século XVII constituiu um período de transição crucial: o desenvolvimento da ciência e o surgimento de uma economia de mercado minavam a base social e intelectual do antigo sistema das artes, tornando obsoleto o velho esquema artes liberais/artes mecânicas, e atribuindo à ideia de gosto um novo papel na experiência da artes. No entanto, apesar dos sinais de ruptura, as sociedades seiscentistas ainda conseguiam unir num só arte e artesanato, artista e artesão, prazer e finalidade.
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8 No final do século XVIII, haviam surgido na Europa uma série de instituições culturais, acompanhadas do aparecimento de um mercado e de um público distintos para as belas-artes, bem como de novas concepções
de
belas-artes, artista e estética. A convergência destas mudanças sociais, institucionais e intelectuais deu lugar ao moderno sistema das artes. O período entre 1750 e 1800 foi crucial, dado que assistiu à separação definitiva entre belas-artes e artesanato, artista e artesão, e da estética em relação aos restantes modos de experiência. Entre cerca de 1800 e 1830, o termo “arte” começou a significar um domínio espiritual autónomo, a vocação artística foi santificada, e o conceito de estética começou a substituir o de gosto. Porque se dá esta viragem do antigo sistema das artes dos séculos passados para o sistema das belas-artes? As razões foram sobretudo de ordem intelectual: as ideias de belas-artes, artista e estética trouxeram soluções a uma série de problemas conceptuais herdados de séculos anteriores. Mas as mudanças de conceitos foram igualmente justificações para as novas instituições que lhes deram corpo e para a nova elite cultural que neles acreditou. O moderno sistema das artes só se estabeleceu definitivamente entre 1680 e 1830, o que, de um ponto de vista sociológico, é o resultado de um longo processo de diferenciação social iniciado no final da Idade Média. A moderna ideia de arte não é um destino histórico nem um universal humano, como pretendem as concepções essencialistas, mas sim uma resposta às forças gerais de modernização e secularização; o facto de a arte se ter tornado um campo independente é consequência da dissolução natural das actividades integradas da sociedade medieval nas diferentes esferas da política, da economia, da religião, da ciência e da arte. As novas instituições artísticas tiveram um papel-chave na mediação entre conceitos e contextos socio-económicos. Instituições como o museu de arte, o concerto secular, a critica literária, foram o ponto onde convergiram o social e o ideacional, constituindo-se e reforçando-se mutuamente. Há assim na emergência do sistema das belas-artes uma ligação entre os factores intelectuais,
institucionais e o socio-económicos. Surge um sistema de
mercado que vai crescendo, e dá-se a expansão de um público artístico de classe média. O novo ideal do artista está relacionado com a necessidade de os artistas garantirem a independência do novo mercado artístico e do novo 8
9 público das artes, na altura em que o velho sistema de patronato entrava em colapso. Surgem instituições como as exposições de pintura separadas e os negociantes de arte, os concertos seculares regulares e a oficialização dos direitos de autor. É consagrada uma nova imagem do artista como génio criador, juntamente com uma nova concepção da “obra” como um mundo autónomo em si mesmo. A ideia de uma experiência estética distinta para a arte emerge do problema do gosto. A expressão institucional desta nova sensibilidade tornou-se visível em aspectos como a eliminação de lugares para o público no palco dos teatros ou da ópera, ou o desenvolvimento do tour, a viagem pitoresca. Assim, uma enorme mudança nos ideais e instituições da arte teve lugar através da Europa. Do mundo seiscentista onde as artes estavam integradas propositadamente na sociedade e em que havia muito poucas instituições artísticas autónomas, a expansão da classe média e o surgimento de um sistema de mercado para as artes levaram à emergência de quase todas as instituições e práticas modernas das belas-artes: na pintura, havia agora exposições, leilões de arte, negociantes de arte, crítica de arte, história da arte, e uma nova ênfase na assinatura; na música, havia agora concertos seculares, a eliminação dos lugares sentados no palco da ópera, o desenvolvimento da crítica musical e da história da música, a emergência do conceito de “obra” e as suas práticas de notação rigorosa, a introdução da numeração dos opus, o fim do empréstimo e da reciclagem. Na literatura, assistimos ao surgimento das bibliotecas itinerantes, da crítica e da história literária, ao desenvolvimento dos cânones vernaculares, ao estabelecimento dos direitos de autor e ao aparecimento de um novo estatuto para o autor como livre-criador. A acompanhar estas mudanças institucionais e comportamentais, dá-se uma revolução paralela nos conceitos e termos artísticos.
A antiga e alargada
noção de arte (“uma arte”), foi dividida nas categorias de belas-artes versus artesanato, a antiga ideia do artesão/artista dividiu-se no ideal do artista como criador versus o artesão como um fazedor rotineiro, e a antiga ideia do gosto dividiu-se na experiência refinada e intelectualizada chamada “estética” em contraste com os prazeres vulgares do sentido e da função. Surgem novos significados para velhos termos, como “artista”, por exemplo, que integra agora novas conotações de ideais elevados de liberdade 9
10 e de génio, assim como profundas mudanças que fazem com que se passe da imitação à originalidade, da invenção à criação, da reprodução à imaginação criativa. Todas estas modificações nas instituições, nas práticas, nos ideais, nos termos, constituem o moderno sistema das belas-artes, que ainda se encontra largamente em vigor na actualidade. A noção de “contemplação desinteressada” torna-se parte do discurso de Kant e Schiller, embora não fosse universalmente aceite. A criação de um museu nacional de arte no Louvre, por parte dos revolucionários, na sequência da Revolução Francesa, retirando as obras de arte dos seus contextos funcionais para serem contempladas no museu, consubstanciou ou novo ideal da contemplação estética da “arte por si mesma”. Se o século XVIII cindiu a antiga ideia da arte em belas-artes versus artesanato, o século XIX transformou as próprias belas-artes numa “Arte” reificada, um domínio independente e privilegiado do espírito, da verdade e da criatividade. De forma similar, o conceito de artista era agora santificado como um dos chamamentos mais altamente espirituais da humanidade. Em contraste, o estatuto e a imagem do artesão continuaram a declinar, dado que muitas pequenas oficinas foram forçadas a fechar devido ao processo de industrialização, e muitos artesãos especializados engrossaram as fileiras fabris, como operários, executando rotinas pré-estabelecidas. Finalmente, a “estética”, construída através da transformação do gosto refinado numa forma especial de contemplação desprendida, tornou-se para certas elites cultas uma espécie de experiência superior à ciência e à moral. Estas elevações foram acompanhadas das mudanças correspondentes nas instituições e nos comportamentos. Um número crescente de pessoas das classes médias tinha agora acesso à aprendizagem de um comportamento estético adequado. As audiências mais alargadas no campo das artes tornaram-se mais claramente divididas e começaram a frequentar diferentes instituições. A elevação e a consagração dos ideais de arte, artista e estética estavam amplamente completas por volta de 1830, mas levou-se quase o resto do século XIX para erigir as instituições artísticas, inculcar os novos ideais e modificar os comportamentos. Assim como houve antecipações dos modernos ideais da vocação artística do Renascimento em diante, também houve remanescentes do antigo 10
11 sistema arte/artesanato que perduraram. O período entre 1800 e 1830 parece ter sido o momento da consolidação e elevação finais. Em meados do século XIX, o termo “arte” passara não só a designar uma categoria das belas-artes (poesia, pintura, música, etc.), mas também um corpo autónomo de obras e performances, valores e instituições. A arte podia agora ser definida como uma espécie de essência metafísica. De forma correspondente, o ideal do artista como criador era visto como uma espécie de chamamento religioso, muitas vezes elevado ao estatuto de
profeta e padre, mas igualmente
permitindo as poses do dandy ou do boémio, juntamente com a do mártir e do rebelde. Finalmente, as “obras de arte” como criações fixas da imaginação inspirada suscitavam uma atenção estética, “por si mesmas”, um estado da mente e um comportamento insistentemente inculcado em audiências de concertos e visitantes de museus. O lado negativo da elevação da arte ocorrida no século XIX foi sem dúvida a posterior despromoção das artes e ofícios populares, a redução de muitos artesãos a operários industriais, e uma crescente separação dos públicos das belas-artes e das artes populares. No final do século XIX, esta divisão ocorrida no século XVIII tornara-se um verdadeiro abismo. Dois processos ocorrem posteriormente, afectando o sistema das belasartes como um todo. L. Shiner designa-os por “assimilação” e “resistência”. Por assimilação, entende o autor a progressiva expansão belas-artes
do campo das
do seu núcleo original da poesia, música, pintura, escultura e
arquitectura (mais a dança, a oratória, etc.), até incluir novas artes, ou artes até aí excluídas, como a fotografia no final do século XIX, o cinema, o jazz e a “arte primitiva” no início do século XX, as artes que usam meios “artesanais” a partir de 1950, a música electrónica e o novo jornalismo desde os anos 60, e, desde os anos 70, quase tudo. Estas assimilações tiveram ainda o condão de provocar um efeito contrário de resistência radical às divisões profundas no sistema das artes. Assimilação e resistência tiveram as suas consequências ao nível das instituições artísticas.
Isto torna-se muito claro sobretudo no que diz
respeito à assimilação, que não se reduz a uns poucos de críticos ou filósofos a defenderem argumentos a favor da integração de novas artes ou formas de arte na categoria da arte, mas que passa pela incorporação dessas novas 11
12 artes ou formas de arte nos museus de arte, nas organizações sinfónicas, nos departamentos de literatura.
De igual modo, a resistência às polaridades
básicas do sistema das belas-artes
significa não só algumas pessoas a
lançarem ataques verbais à estreiteza dos ideais dominantes de belas-artes, artista e estética, mas
igualmente a existência de artistas e curadores a
trabalhar contra ou fora das instituições artísticas estabelecidas. No entanto, assimilação e resistência acabam por estar dialeticamente relacionadas. As instituições artísticas procuram perpetuar-se a si mesmas através da incorporação de ideias e obras dos que lhes resistem, e os que lhes resistem são constantemente tentados a satisfazerem-se com a mera expansão das categorias e instituições da arte. Movimentos “anti-arte” como o dadaísmo e o Construtivismo russo, ou os autores de gestos anti-arte como Marcel Duchamp ou John Cage, por exemplo, foram frequentemente ambivalentes no que respeita à categoria da arte e às instituições artísticas que atacaram, e estas instituições, por seu lado, preocuparam-se rapidamente em recuperar e conservar obras e acções anti-arte. Um caso interessante é o da assimilação da fotografia, inventada em 1839, pouco depois da consolidação do moderno sistema das artes. A assimilação da fotografia só se completou no início do século XX, quando começou a entrar nos museus de arte. A resistência mais conseguida à divisão belas-artes versus artesanato foi a de Ruskin e William Morris, cujas ideias encontraram uma corporização institucional no movimento Arts and Crafts, que se espalhou das Ilhas Britânicas ao Continente e à América nas últimas décadas do século XIX. De 1890 em diante, a viragem em direcção ao que chamamos modernismo nas belas-artes reafirmaria processo de assimilação
as divisões entre o sistema das belas-artes e o de novos estilos. Ao mesmo tempo, a rejeição
modernista dos ideais de imitação e beleza exigia novas formas de justificação teórica, como o formalismo (Roger Fry) e o expressionismo (Benedetto Croce). Mas os efeitos combinados da experimentação modernista e do choque da I Guerra
Mundial também produziram
vigorosos actos de resistência à
separação entre arte e sociedade. Três desses movimentos exemplares foram o Dadaísmo/Surrealismo, o Construtivismo russo e a Bauhaus. A partir dos anos 60 do século XX, o processo de assimilação foi acelerado, até que as 12
13 fronteiras do que podemos entender como arte se foram expandindo de forma a incluir quase tudo, qualquer material, som ou actividade concebíveis, e a torná-los
aceites
pelas
instituições
artísticas.
Floresceram
igualmente
resistências às polaridades deste moderno sistema das artes, não só entre escritores e compositores que ultrapassam as fronteiras entre arte erudita e arte popular, mas igualmente entre artistas identificados com abordagens ligadas à performance, ao meio-ambiente e à arte conceptual. Quer a assimilação quer a resistência, embora se movam em direcções opostas, acabam por minar o sistema das belas-artes e por suscitar a questão de saber se estamos a caminhar para além da arte dividida. Na contemporaneidade, a ideia de assimilação vai ganhando mais força. As disciplinas dedicadas ao estudo, crítica e história das belas-artes têm mudado. A história da arte readquiriu o interesse pelo contexto político e social e por novos métodos de análise, dando especial atenção às mulheres artistas e aos artistas oriundos de minorias. Os revisionistas disciplinares mais radicais pretendem dissolver a literatura nos estudos culturais, a história da arte na história das imagens, a história da música clássica ocidental numa etnomusicologia
alargada.
No
entanto,
muitas
destas
propostas
interdisciplinares parecem destinadas a complementar mais do que a suplantar disciplinas já existentes.
Mas ir para além do moderno sistema das artes
significaria também ultrapassar a ambivalência em relação à habilidade, beleza, função e prazer sensual. O ideal de reunir belas-artes e artesanato ao nível do corpo tornou-se agora mais complexo devido ao advento da revolução digital. O surgimento do hipertexto, da ciber-arte, de modelos arquitectónicos virtuais, do som sintetizado, da transcrição automática, fizeram parecer as tradicionais formas de escrever, desenhar ou compor “à mão” ainda mais problemáticas em muitas artes. A elevação e espiritualização crescentes isolaram muitas vezes as belas-artes num enclave cultural; este isolamento gerou a vontade de reintegrar arte e sociedade ou arte e vida. Os valores inter-relacionados de função e prazer sensual, muitas vezes depreciados no passado, adquirem agora
importância no processo de recuperação do respeito pelos ofícios
artesanais. A “estética do quotidiano” de certas práticas tradicionais japonesas, por exemplo, poderá ensinar-nos muito. A tradição japonesa, privilegiando as 13
14 experiências sensoriais de aspectos transitórios da vida quotidiana, atribui igual valor à beleza formal, ao trabalho artesanal e à função. O verdadeiro multiculturalismo não se deve limitar à inclusão de alguns exemplos japoneses ou africanos na nossa arte, música ou antologias literárias, mas trata-se sim de um problema de aprender com as outras culturas as limitações das nossas categorias tradicionais. As artes tiveram sempre múltiplas funções, mas entre elas a educação foi sempre fundamental. A arte como uma religião de substituição: as belasartes oferecem à nossa sociedade individualista e secular mais perspectivas espirituais variadas do que as religiões históricas. Para alguns pequenos segmentos das elites culturais, as belas-artes foram de facto investidas com o tipo de sentimento e compromisso em tempos reservados às religiões tradicionais. A resposta à arte dividida passa obviamente por não rejeitar ideais como a liberdade, a imaginação e a criatividade, mas uni-las a princípios como a facilidade, o serviço e a função. Não há, no entanto, uma fórmula mágica para este equilíbrio.
(Tradução livre, adaptada e incompleta de Larry Shiner, The invention of art – A cultural history, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2001, pp. 318, 75-77, 153-155, 187-188, 225-228 e 303-307)
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