KEHL, Maria Rita.tortura e Sintoma Social...
O QUE RESTA DA DITADURA A
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B R A S I L E I R A
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Copyright © Boitempo Editorial, 2010
Coordenação editorial
Ivana Jinkings
Editor-assistente
Jorge Pereira Filho
Assistência editorial
Ana Lotufo, Elisa Andrade Buzzo, Frederico Ventura e Gustavo Assano
Preparação
Flamarion Maués
Revisão
Alessandro de Paula
Capa e diagramação
Silvana de Barros Panzoldo Sobre foto de repressão ao Dia Naciona de Luta, protesto realizado em 23 de agosto de 1977 – Arquivo/ Agência Estado.
Marcel Iha e Paula Pires
Produção
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Q35 O que resta da ditadura : a exceção brasileira / Edson Teles e Vladimir Safatle (Orgs.). - São Paulo : Boitempo, 2010. - (Estado de Sítio) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7559-155-0 1. Brasil - História - 1964-1985. 2. Brasil - Política e governo, 1964-1985. 3. Ditadura - Brasil - História - Século XX. 3. Direitos humanos - Brasil História - Século XX. 4. Justiça - Brasil - História. 5. Ciências sociais e história. 6. Violência - Brasil - História. I. Teles, Edson, 1968-. II. Safatle, Vladimir, 1973-. III. Série. 09-5696. CDD: 981.064 CDU: 94(81)”1964/1985” 03.11.09 11.11.09 016126
É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora. Este livro atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009. 1a edição: março de 2010 1 reimpressão: junho de 2010 a
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SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................................9
1
A EXCEÇÃO JURÍDICA Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico ............................15 Paulo Ribeiro da Cunha Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988 ...........................................................41 Jorge Zaverucha “O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece”: a persistência da estrutura administrativa de 1967 ...........77 Gilberto Bercovici Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro ..................................................................................91 Flávia Piovesan O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio..........................109 Glenda Mezarobba
2
O PREÇO DE UMA RECONCILIAÇÃO EXTORQUIDA Tortura e sintoma social.....................................................................123 Maria Rita Kehl Escritas da tortura..............................................................................133 Jaime Ginzburg As ciladas do trauma: considerações sobre história e poesia nos anos 1970 ..........................................................................................151 Beatriz de Moraes Vieira
O preço de uma reconciliação extorquida ..........................................177 Jeanne Marie Gagnebin Brasil, a ausência significante política (uma comunicação) .................187 Tales Ab’Sáber 3
A POLÍTICA DO BLOQUEIO, O BLOQUEIO DA POLÍTICA 1964, o ano que não terminou ..........................................................205 Paulo Eduardo Arantes Do uso da violência contra o Estado ilegal .........................................237 Vladimir Safatle Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade e justiça” no Brasil ..................................................253 Janaína de Almeida Teles Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul ................................................................299 Edson Teles Dez fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina ou de como os patetas sempre adoram o discurso do poder ...............................................................................319 Ricardo Lísias
Bibliografia ..............................................................................................329 Sobre os autores .......................................................................................347
2 O PREÇO DE UMA RECONCILIAÇÃO EXTORQUIDA
TORTURA E SINTOMA SOCIAL Maria Rita Kehl
Em um livro escrito em 2004 1 eu me referi ao ressentimento como um dos sintomas mais representativos da relação ambivalente da sociedade brasileira com os poderes que, em tese, deveriam representar e defender interesses coletivos. Fruto dos abusos históricos que aparentemente “perdoamos” sem exigir que opressores e agressores pedissem perdão e reparassem os danos causados, o ressentimento instalou-se na sociedade brasileira como forma de “revolta passiva” (Bourdieu) ou “vingança adiada” (Nietzsche), ao sinalizar uma covarde cumplicidade dos ofendidos e oprimidos com seus ofensores/opressores. A mágoa “irreparável” do ressentido indica que ele sabe, mas não quer saber, que aceitou se colocar em uma condição passiva diante dos abusos do mais forte; por covardia, por cálculo (“mais tarde ele há de reconhecer e premiar meu sacrifício”) ou por impotência autoimposta, o ressentido acaba por se revelar cúmplice do agravo que o vitimou. É importante ressaltar, entretanto, que o ressentimento não abate aqueles que foram derrotados na luta e no enfrentamento com o opressor, e sim os que recuaram sem lutar e perdoaram sem exigir reparação. O expediente corriqueiro – por má-fé ou mal-entendido? – de chamar de “ressentidos” aqueles que não desistiram de lutar por seus direitos e pela reparação das injustiças sofridas não passa de uma forma de desqualificar a luta política em nome de uma paz social imposta de cima para baixo. Nossa tradicional cordialidade, no sentido que Sérgio Buarque de Hollanda tomou emprestado de Ribeiro Couto, obscurece a luta de classes e desvirtua a gravidade dos conflitos desde o período colonial. 1
Maria Rita Kehl, Ressentimento (São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004).
Tortura e sintoma social
zação, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas dos que buscam a clínica psicanalítica. Mas mesmo os sintomas relatados, um a um, nos consultórios dos psicanalistas, são muito menos individuais do que se pode supor. Lacan, na conferência “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” escreve que a originalidade do método psicanalítico está em abordar não o indivíduo, mas o “campo da realidade transindividual do sujeito [...] O inconsciente é aquela parte do discurso concreto enquanto transindividual que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente”2. Por que as formações do inconsciente ultrapassam a experiência dita individual do sujeito? Porque o sujeito não é um indivíduo, no sentido radical da palavra; é dividido desde sua origem, a partir de seu pertencimento a um campo simbólico cuja sustentação é necessariamente coletiva. As formações do inconsciente, como fenômenos de linguagem, são tributárias da estrutura desse órgão coletivo, público e simbólico que é a língua em suas diferentes formas de uso. “Na perspectiva analítica”, escreve Marie-Hélène Brousse 3, “a oposição individual/coletivo não é válida, e o desejo que o su jeito visa a decifrar é sempre o desejo do Outro”. No Seminário 14 : A lógica do fantasma , Lacan radicalizou esta relação ao propor a fórmula “o inconsciente é a política”4. Toda “realidade” (social) produz, automaticamente, uma espécie de “universo paralelo”: o acervo de experiências não incluídas nas práticas falantes. Experiências loucas , desviantes, proscritas ou simplesmente doentias. Pois mesmo aquilo que temos de mais singular, o modo de cada um padecer e adoecer, nem sempre pertence exclusivamente a nós. Por vezes a doença, sobretudo a chamada doença mental, não passa de um fragmento do real, um pedaço excluído da cultura – e o doente é seu “cavalo”, como se diz no candomblé. O doente é o lugar (social) onde a doença encontrou uma brecha para se manifestar. Nietzsche acertou ao afirmar que a doença institui um ponto de vista privilegiado sobre a realidade. 2
3
4
Jacques Lacan, “Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis” (1953), em Escritos (trad. Tomás Segovia, Madri/México, Siglo Veintiuno, 1994, v. 1), p. 227-310. Marie Hélène Brousse, Conferência 1, “O analista e o político”, O inconsciente é a política (São Paulo, Seminário Internacional da Escola Brasileira de Psicanálise, 2003), p. 17. Jacques Lacan, Seminário 14: A lógica do fantasma . Disponível em: < http://www. tellesdasilva.com/fantasma.html>.
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