KARL MANNHEIM - Ideologia e Utopia

January 13, 2017 | Author: ZeroAcesso | Category: N/A
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KARL MANNHEIM - Ideologia e Utopia...

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KARL MANNHEIM

IDEOLOGIA E UTOPIA

Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro

Revisão Técnica do Prof. César Guimarães

ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Título original:

IDEOLOGY AND UTOPIA An Introduction to the Sociology of Knowledge

Traduzido da edição publicada em 1960 por Houtledge & Kegan Paul Ltd., de Londres, Inglaterra.

capa de ÉRICO

1968

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por ZAHAR EDITORES Rua México, 31 Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta tradução Impresso no Brasil

Sumário NOTA PRELIMINAR .................................................................................................................................... 7 PREFÁCIO ........................................................................................................................................................ 8 I. ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA .............................................................................22 1. Conceito sociológico de pensamento ......................................................................................22 2. Os condicionamentos contemporâneos do pensamento ...............................................25 3. Origem dos pontos-de-vista epistemológico, psicológico e sociológico modernos....................................................................................................................29 4. O contrôle do inconsciente coletivo como um problema de nossa época ..............42 II. IDEOLOGIA E UTOPIA ........................................................................................................................56 1. Definição de conceitos ...................................................................................................................56 2. O conceito de ideologia na perspectiva histórica ..............................................................59 3. Da concepção particular à concepção total de ideologia ...............................................60 4. Objetividade e subjetivismo .......................................................................................................64 5. A passagem da teoria da ideologia à sociologia do conhecimento ............................67 6. A concepção não-valorativa de ideologia .............................................................................72 7. A passagem da concepção não-valorativa à concepção valorativa de ideologia .74 8. Juízos ontológicos implícitos na concepção não-valorativa de ideologia...............75 9. O problema da falsa consciência ...............................................................................................78 10. A procura da realidade através da análise da ideologia e da utopia ......................80 III. PANORAMA DE UMA POLÍTICA CIENTÍFICA: A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA SOCIAL E A PRÁTICA POLÍTICA ..........................................................................................................90 1. Por que não existe uma ciência política? ..............................................................................90 2. Os determinantes políticos e sociais do conhecimento ..................................................95 3. A síntese das diversas perspectivas como um problema de sociologia política......................................................................................................................... 111 4. O problema sociológico da “intelligentsia” ....................................................................... 115 5. A natureza do conhecimento político .................................................................................. 122 6. A comunicabilidade do conhecimento político ............................................................... 127 7. Três variedades de sociologia do conhecimento ............................................................ 135

IV. A MENTALIDADE UTÓPICA ......................................................................................................... 144 1. Utopia, ideologia e o problema da realidade .................................................................... 144 2. Realização de desejos e mentalidade utópica .................................................................. 152 3. Mudanças na configuração da mentalidade utópica: seus estágios nos tempos modernos ........................................................................................................................ 156 4. A utopia na situação contemporânea .................................................................................. 175 V. A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO ........................................................................................ 189 1. Natureza e alcance da sociologia do conhecimento ...................................................... 189 2. As duas divisões da sociologia do conhecimento ........................................................... 190 3. A demonstração da natureza parcial da epistemologia tradicional ....................... 205 4. O papel positivo da sociologia do conhecimento ........................................................... 206 5. Problemas de técnica de pesquisa histórico-sociológica no campo da sociologia do conhecimento .................................................................................................... 215 6. Breve esbôço da história da sociologia do conhecimento .......................................... 217

NOTA PRELIMINAR (DA EDIÇÃO INGLÊSA) ESTE volume contém diversos trabalhos do Autor. As Partes III e IV compõem a edição original de Ideologie und Utopie (F. Cohen, Bonn, 1929; atualmente SchulteBulmke, Frankfurt). A Parte V é o artigo “Sociologia do Conhecimento”, originalmente publicado no Dicionário de Sociologia de Alfred Vierkandt (Handwörterbuch der Soziologie, F. Enke, Stuttgart, 1931). Finalmente, a Parte I foi especialmente escrita, por Mannheim, para a edição inglêsa. Enquanto as Partes II, III e IV tratam dos problemas, centrais da Sociologia do Conhecimento, e aplicando seu método às fases mais significativas da vida social contemporânea, o texto final procura formular um esbôço conciso desta nova disciplina cultural. Estilisticamente, as quatro primeiras partes são bastante diferentes da última. Naquelas, os temas plenamente desenvolvidos, enquanto esta, originalmente um verbete para uma Enciclopédia, é pouco mais que um resumo esquemático. Não obstante as dificuldades do original, os tradutores procuraram manter-se o mais próximo possível do texto alemão. Mesmo quando foram necessárias algumas alterações, para fins de inteligibilidade, intentou-sé manter sempre, acuradamente, o sentido desejado pelo Autor. Agradecemos ao Prof. Robert Cooley An gell, da Universidade de Michigan, por ter lido seções das Partes II e V, e ao Sr. Arthur Bergholz, da Universidade de Chicago, que leu as seções 1 e 9 da Parte II. Agradecemos também à Sr.a E. Ginsberg (M. A., Oxon) e a Jean McDonald (B. Sc. (Econ.), Londres), pela ajuda e pelas sugestões quanto à presente edição. O manuscrito foi datilografado pelo Social Science Research Committee da Universidade de Chicago.

Louis WIRTH Edward A. SHILS

PREFÁCIO Louis Wirth

A edição original alemã de Ideologia e Utopia surgiu em uma atmosfera de acentuada tensão intelectual, marcada pela discussão generalizada, que somente se extinguiu com o exílio ou o silêncio forçado dos pensadores que buscavam uma solução honesta e sustentável para os problemas levantados. Desde então, os conflitos que, na Alemanha, levaram à destruição da República liberal de Weimar se fizeram sentir em vários países por todo o mundo, especialmente na Europa ocidental e nos Estados Unidos. Os problemas intelectuais que, em determinada época, eram considerados preocupação exclusiva dos escritores alemães passaram a envolver praticamente o mundo inteiro. O que, em uma época, se havia encarado como o interesse esotérico de uns poucos intelectuais de um único país veio a se tornar condição comum do homem moderno. Em resposta a esta situação, surgiu uma extensa literatura que fala do “fim”, do “declínio”, da “crise”, da “decadência” ou da “morte” da civilização ocidental. Mas, a despeito do alarme estampado em tais títulos, procura-se em vão em quase toda essa literatura uma análise dos fatores e processos básicos subjacentes a nosso caos intelectual e social. Em contraste com tais obras, o trabalho do Professor Mannheim se destaca como uma análise sóbria, crítica e bem fundada das correntes e situações sociais de nosso tempo no referente ao pensamento, à crença e à ação. Parece ser característico de nossa época o fato de que as normas e as verdades antigamente tidas como absolutas, universais e eternas ou aceitas com uma feliz ignorância de suas implicações estejam sendo questionadas. À luz do pensamento e da investigação modernos, para muito do que antes se aceitava como inconteste passou-se a exigir demonstração e comprovação. Os próprios critérios da prova tornaram-se objeto de controvérsia. Estamos presenciando uma descrença geral não apenas na validade das ideias, mas também nos motivos dos que as sustentam. Esta situação é agravada pela guerra de cada um contra os demais na arena intelectual, onde, mais do que a verdade, o auto engrandecimento se tornou o prêmio almejado. A crescente secularização da vida, o agravamento dos antagonismos sociais e a acentuação do espírito de competição pessoal ocuparam regiões que anteriormente se acreditava pertencerem totalmente ao domínio da busca objetiva e desinteressada da verdade. Por mais inquietante que possa parecer, esta mudança vem também exercendo influências benéficas. Dentre estas, poderíamos mencionar a tendência para um autoexame mais profundo e para uma consciência mais ampla das interconexões — das quais anteriormente se suspeitava — entre as ideais e as situações. Embora venha a parecer de um humor inoportuno falar-se das influências benéficas resultantes de um cataclismo que abalou os fundamentos de nossa ordem intelectual e social, deve-se reconhecer que o espetáculo de mudança e confusão, com que a ciência social depara, proporciona ao mesmo tempo oportunidades sem precedente para um novo e fecundo desenvolvimento. Tal novo desenvolvimento, no entanto, depende de que se tenha pleno conhecimento dos obstáculos

antepostos ao pensamento social. Isto não implica que este esclarecimento seja a única condição para o posterior desenvolvimento da ciência social, como se verá adiante, mas apenas que se trata de uma precondição necessária para o desenvolvimento ulterior.

I O progresso do conhecimento social se acha impedido, se não paralisado, por dois fatores fundamentais: um deles, exterior, e opondo-se ao conhecimento, o outro atuando dentro do próprio domínio da ciência. De um lado, as forças que bloquearam e retardaram o avanço do conhecimento no passado ainda não se convenceram de que o avanço do conhecimento social é compatível com o que consideram seus interesses, e, de outro lado, a tentativa de transferir a tradição e todo o aparato de trabalho científico do domínio físico para o social tem muitas vezes resultado em confusão, incompreensão e esterilidade. O pensamento científico sobre questões sociais teve de sustentar até agora uma guerra contra, sobretudo, a intolerância estabelecida e a repressão institucionalizada. Vem lutando por se estabelecer contra seus inimigos externos, o interesse autoritário da Igreja, do Estado e da tribo. No decorrer dos últimos séculos, contudo, logrou-se uma vitória, pelo menos parcial, sobre estas forças externas, do que resultou uma certa tolerância ao livre exame e mesmo um encorajamento ao pensamento livre. Por um breve interregno entre as épocas do obscurantismo espiritualizado medieval e do aparecimento das modernas ditaduras secularizadas, o mundo ocidental deu promessas de realizar a esperança de todas as mentes esclarecidas de todas as épocas: a de que, pelo exercício pleno da inteligência, os homens poderiam triunfar sobre as adversidades da natureza e sobre as perversidades da cultura. Entretanto, como tantas vezes no passado, esta esperança parece agora frustrada. Nações inteiras entregaram-se oficial e orgulhosamente ao culto da irracionalidade, e mesmo o mundo anglo-saxão que, por tanto tempo, tinha sido o refúgio da liberdade e da razão, proporcionou recentemente o ressurgimento das caçadas às bruxas intelectuais. Com o desenvolvimento do espírito ocidental, a busca do conhecimento do mundo físico resultou, após as duras penas da perseguição teológica, na concessão de um domínio autônomo para as Ciências Naturais. Desde o século XVI, afora algumas exceções notáveis, o dogmatismo teológico veio abandonando um após outro todos os campos de investigação até que se reconheceu amplamente a autoridade das Ciências Naturais. Face ao progresso da investigação científica, a Igreja tem abandonado e periodicamente reajustado suas interpretações doutrinais de modo que a divergência destas com relação às descobertas científicas não seja por demais evidente. Finalmente, a voz da ciência era escutada com um respeito próximo à reverência antes somente concedida aos pronunciamentos autoritários, religiosos. As revoluções que a estrutura teórica da ciência sofreram nas últimas décadas deixaram inacabado o prestígio da busca científica da verdade. Apesar de nos últimos cinco anos se haver ocasionalmente levantado o alarme de que a ciência exercia um efeito violentador da organização econômica, devendo sua atividade ser limitada, qualquer refreamento que possa ter-se verificado neste período no progresso da pesquisa da ciência natural será provavelmente mais o resultado da procura econômica decrescente dos produtos da ciência do que uma

tentativa deliberada de retardar o avanço científico com o intuito de estabilizar a ordem existente. A vitória da ciência natural sobre o dogma teológico e metafísico contrasta violentamente com o desenvolvimento dos estudos da vida social. Ao passo que o procedimento empírico efetuava profundas incisões nos antigos dogmas referentes à natureza, as doutrinas sociais clássicas se mostraram mais impenetráveis à investida do espírito secular e empírico. Isto pode ser em parte devido a que, entre os antigos, o conhecimento e a elaboração de teorias no que toca a questões sociais estavam muito mais adiantados do que as noções relativas à Física e à Biologia. Ainda não havia chegado a oportunidade de demonstrar a utilidade prática da nova ciência natural, e a inutilidade das doutrinas sociais existentes não podia ser convincentemente comprovada. Ao passo que a Lógica, a Ética, a Estética, a Política e a Psicologia de Aristóteles impunham sua autoridade às épocas subsequentes, suas noções de Astronomia, Física e Biologia se viam progressivamente relegadas ao museu das superstições antigas. Até o começo do século XVIII a teoria política e social ainda se encontrava sob o domínio das categorias de pensamento elaboradas pelos filósofos medievais e antigos, sendo em grande parte utilizadas em bases teológicas. O ramo da ciência social que tinha alguma utilidade prática se relacionava, originalmente, com assuntos administrativos. O cameralismo e a aritmética política, que representavam esta corrente, limitavam-se aos fatos rotineiros da vida cotidiana, raramente se alçando à teoria. Em consequência, o ramo do conhecimento social que se preocupava com questões mais sujeitas à controvérsia dificilmente podia aspirar ao valor prático alcançado pelas Ciências Naturais depois de um certo estágio de seu desenvolvimento. Nem tampouco podiam os pensadores sociais, de quem dependia o progresso dessas ciências, esperar o amparo da Igreja ou do Estado, onde os mais ortodoxos buscavam o seu sustento moral e financeiro. Quanto mais secularizada a teoria política e social se tornava e quanto mais completamente destruía os mitos santificados que legitimavam a ordem política existente, tanto mais precária se tornava a posição da ciência social emergente. O Japão contemporâneo fornece um exemplo dramático da diferença entre os conhecimentos tecnológico e social, quer quanto a seus respectivos efeitos, quer quanto às atitudes em relação a um e a outro. Desde que o país se abrira às correntes de influência ocidental, os produtos e os métodos técnicos do Ocidente foram àvidamente aceitos. Não obstante as influências políticas, econômicas e sociais vindas do exterior, são ainda hoje encaradas com suspeita e a elas obstinadamente se resiste. O entusiasmo com que se recebem no Japão os resultados da ciência física e biológica contrasta vivamente com o cultivo cauteloso e limitado da investigação econômica, política e social. Estes últimos assuntos ainda estão, em sua maior parte, sujeitos ao que os japoneses chamam kikenshiso ou “pensamentos perigosos”. As autoridades encaram como perigosa a discussão da democracia, do constitucionalismo, do imperador, do socialismo e de uma série de outros assuntos porque o conhecimento destes tópicos poderia subverter as crenças sancionadas e minar a ordem existente. Para que não pensemos, porém, que esta situação seja peculiar ao Japão, deve-se frisar que muitos dos tópicos que lá se reúnem sob o título de “pensamento perigoso” eram igualmente, até há pouco, considerados tabu na sociedade ocidental. Ainda hoje em dia,

uma investigação clara, franca e “objetiva” nas instituições mais sagradas e queridas se vê mais ou menos seriamente limitada em qualquer país do mundo. É praticamente impossível, por exemplo, mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, inquirir sobre a realidade dos fatos referentes ao comunismo, não importa quão desinteressadamente, sem correr o risco de ser tachado de comunista. Que em todas as sociedades exista, pois, uma área de “pensamento perigoso” parece ser assunto pràticamente indiscutível. Embora reconheçamos que o que é perigoso de se pensar pode variar de país a país e de época a época, os assuntos em geral marcados com o sinal de perigo são os que a sociedade ou os seus elementos controladores acreditam ser de tal forma vitais, e daí sagrados, que não tolerariam sua profanação pelo fato de discuti-los. O que, entretanto, não é tão facilmente reconhecível é o fato de que o pensamento mesmo na ausência de uma censura oficial é perturbador e, em determinadas condições, perigoso e subversivo. Pois o pensamento é um agente catalisador capaz de perturbar rotinas, desorganizar hábitos, romper costumes, solapar crenças e gerar o ceticismo. O aspecto peculiar ao enunciado da ciência social deve ser buscado no fato de que toda afirmativa, não importa quão objetiva possa ser, possui ramificações que se estendem para além dos limites da ciência propriamente dita. Uma vez que toda a afirmativa de um “fato” a respeito do mundo social afeta os interesses de algum individuo ou grupo, não se pode nem ao menos chamar a atenção para a existência de determinados “fatos” sem provocar as objeções daqueles cuja própria raison d’être na sociedade repousa em uma interpretação divergente da situação “fatual”.

II A discussão em torno deste tema tem sido conhecida tradicionalmente como o problema da objetividade na ciência. Na linguagem do mundo anglo-saxão ser objetivo tem como significado ser imparcial, não ter preferências, predileções ou preconceitos, tendências, valores ou juízos preconcebidos diante dos fatos. Esta noção era uma expressão da antiga concepção da lei natural de acordo com a qual a contemplação dos fatos da natureza, ao invés de estar impregnada pelas normas de conduta do contemplador, fornecia automàticamente estas normas.1 Depois de haver decaído a abordagem da lei natural ao problema da objetividade, tal modo não-pessoal de encarar os fatos foi novamente encontrar suporte, por algum tempo, por estar o positivismo em voga. A ciência social do século XIX é pródiga em advertências contra as destorcivas influências da paixão, do interesse político, do nacionalismo e do sentimento de classe, bem como em exortações de autopurificação. De fato, grande parte da história da filosofia e da ciência modernas revela uma inclinação, se não uma clara orientação para este tipo de objetividade. Isto, admite-se, implica, negativamente, a procura do conhecimento válido por meio da eliminação da percepção tendenciosa e do raciocínio vicioso, e, positivamente, na formulação de um ponto de vista criticamente autoconsciente e no desenvolvimento de sólidos métodos de observação e de análise. Se, à primeira vista, pode parecer que ao elaborar trabalhos de lógica e metodologia da ciência os pensadores de outras nações tenham sido mais ativos do que os ingleses e os americanos, esta noção bem poderia ser corrigida chamando-se a

atenção para o grande número de pensadores do mundo de língua inglesa que se preocuparam exatamente com estes mesmos problemas sem os titular especificamente de metodologia. É certo que a preocupação com os problemas e perigos implicados na busca do conhecimento válido constituiu porção em nada desprezível das obras de uma grande série de brilhantes pensadores de Locke, Hume, Bentham, Mill e Spencer a autores contemporâneos. Nem sempre consideramos estas abordagens dos processos de conhecimento como tentativas sérias de formular as premissas epistemológicas, lógicas e psicológicas de uma sociologia do conhecimento, quer por estarem investidas do título explícito, quer por não terem deliberadamente visado a tal fim. Não obstante nenhuma atividade científica ter sido desenvolvida de maneira organizada e autoconsciente, estes problemas sempre receberam considerável atenção. Na verdade, em trabalhos tais como o System, of Logic de J. S. Mill e o brilhante e bastante desprezado Study of Sociology de Herbert Spencer, o problema do conhecimento social objetivo mereceu tratamento sincero e amplo. No período que se seguiu a Spencer, o interesse pela objetividade do conhecimento social foi algo desviado pelo predomínio das técnicas estatísticas desenvolvidas por Francis Galton e Karl Pearson. Contudo, em nossos dias, os trabalhos de Graham Wallas e John A. Hobson, entre outros, assinalam o retorno desta preocupação. Os Estados Unidos, apesar do quadro infecundo de seu panorama intelectual, ao menos segundo descrições correntes nos escritos europeus, têm produzido vários pensadores que se interessam por este tema. Neste sentido, é de se destacar o trabalho de William Graham Sumner que, apesar de ter abordado o problema algo obliquamente através da análise da influência dos folkways e dos mores sobre as normas sociais, ao invés de, diretamente, através da crítica epistemológica, colocou o problema da objetividade num contexto caracteristicamente sociológico concreto dado o modo vigoroso com que encarou a destorciva influência do etnocentrismo sobre o conhecimento. Infelizmente seus discípulos não deram prosseguimento à exploração das ricas potencialidades de sua abordagem, interessando-se mais em elaborar outros aspectos de seu pensamento. De forma bastante similar no tratamento do problema, Thorstein Veblen, em uma série de ensaios brilhantes e penetrantes, explorou as intrincadas relações entre os valores culturais e as atividades intelectuais. Uma discussão posterior e realista deste mesmo problema encontrase em The Mind in the Making, de James Harvey Robmson, em que este renomado historiador toca em muitos dos pontos analisados em detalhe pelo presente volume. Ainda mais recentemente, em The Nature of the Social Sciences, o Professor Charles A. Beard estudou as possibilidades do conhecimento social objetivo, do ponto-de-vista pedagógico, revelando alguns traços de influência da obra do Professor Mannheim. Muito embora tenha sido necessária e salutar a ênfase na destorciva influência dos valores e interesses culturais, este aspecto negativo da crítica cultural do conhecimento chegou a um ponto em que tinha que ser reconhecida a relevância positiva e construtiva, para o pensamento, dos elementos valorativos. Enquanto o anterior modo de encarar a objetividade acentuava a eliminação da subjetividade pessoal e coletiva, a abordagem moderna acentua a importância cognitiva positiva de tal subjetividade. Enquanto anteriormente a busca da objetividade tendia a propor um “objeto” oposto ao “sujeito”, enfatiza-se atualmente uma íntima relação entre o objeto e o sujeito que o percebe. Com efeito, a mais recente colocação sustenta que o objeto emerge para o sujeito quando, no decorrer da vivência, o interesse do sujeito visa àquele específico aspecto do mundo. Assim,

a objetividade aparece sob duplo aspecto: um, em que o objeto e o sujeito são entidades distintas e separadas, o outro em que se enfatiza o intercurso dos dois. Se no primeiro sentido a objetividade refere-se à fidedignidade de nossos dados e à validade de nossas conclusões, no segundo sentido ela concerne relevantemente aos nossos interesses. No domínio do social, particularmente, a verdade não é meramente uma questão de simples correspondência entre pensamento e existência, mas é permeada pelo interesse do investigador na questão, por seu ponto-de-vista, por suas valorações, em suma, pela definição de seu objeto de atenção. Entretanto, esta concepção de objetividade não implica que daqui por diante não mais se possa distinguir entre verdade e erro. Não significa que o que quer que as pessoas imaginem serem suas percepções, atitudes e ideias — ou o que as pessoas desejem que os outros acreditem que elas são — corresponda aos fatos. Mesmo nesta concepção da objetividade devemos considerar a distorção produzida não apenas pela percepção inadequada ou pelo incorreto conhecimento de si mesmo, mas também pela dificuldade ou falta de boa vontade, em certas circunstâncias, para expor as próprias percepções e ideias com honestidade. Esta concepção de objetividade subjacente ao trabalho do Professor Mannheim não parecerá totalmente estranha àqueles que estejam familiarizados com a corrente de filosofia americana representada por James, Peirce, Mead e Dewey. Embora a abordagem do Professor Mannheim seja o produto de uma diferente herança intelectual, em que Kant, Marx e Max Weber desempenham os papéis principais, suas conclusões sobre vários temas centrais são idênticas às dos pragmatistas americanos. Essa convergência se verifica, entretanto, somente até os limites do campo da Psicologia Social. Entre os sociólogos americanos, este ponto de vista foi explicitamente enunciado pelo falecido Charles H. Cooley e por R. M. Maclver, e, implicitamente, por W. I. Thomas e Robert E. Park. Um motivo para não ligarmos imediatamente os trabalhos destes escritores ao complexo de problemas do presente volume é que nos Estados Unidos o assunto que a Sociologia do Conhecimento trata sistematicamente e explicitamente ou não foi abordado senão ocasionalmente dentro do quadro da disciplina especial da Psicologia Social ou tem sido um inexplorado subproduto da pesquisa empírica. A busca da objetividade faz surgir difíceis problemas para a tentativa de estabelecer um método científico rigoroso para o estudo da vida social. Enquanto ao lidar com os objetos do mundo físico o cientista pode perfeitamente se limitar às uniformidades e regularidades externas que se apresentam, sem buscar penetrar no significado interno dos fenômenos, no mundo social a pesquisa existe fundamentalmente para uma compreensão destes significados e conexões internos. Pode ser que existam alguns fenômenos sociais e, talvez, alguns aspectos de todos os acontecimentos sociais que se possam observar externamente como se fossem coisas. Mas isso não deve levar a inferir que somente são reais as manifestações da vida social que encontrem expressão em coisas materiais. Seria uma concepção bastante estreita da ciência social limitá-la aos objetos concretos externamente perceptíveis e mensuráveis. A literatura da ciência social demonstra amplamente que existem esferas amplas e bastante definidas de existência social em que é possível se obter conhecimento científico não somente fidedigno, mas que tem significativa relação com a política e a ação sociais. O fato de que os sêres humanos sejam diferentes dos demais objetos da natureza não implica

que nada exista de determinado a seu respeito. Apesar de que os seres humanos demonstrem em suas ações um tipo de acusação que não se verifica em quaisquer outros objetos da natureza, qual seja a motivação, deve-se, não obstante, reconhecer que sequências causais determinadas podem ser inferidas no domínio do social, do mesmo modo como o são no físico. Claro que se poderia objetar que o conhecimento preciso que temos das sequências causais nos outros domínios ainda não foi estabelecido no domínio social. Mas se há de existir algum conhecimento para além da sensação dos acontecimentos singulares e transitórios do momento, deve-se postular igualmente para o mundo social a possibilidade de se descobrir tendências gerais e séries previsíveis de acontecimentos, tais como as que se encontram no mundo físico. Contudo, o determinismo pressuposto pela ciência social, de que neste volume o Professor Mannheim trata tão penetrantemente, é de uma espécie diferente do implicado na mecânica celeste de Newton. Seguramente existem alguns cientistas sociais que pretendem que a ciência se deve restringir à causação dos fenômenos reais, que a ciência nada tem a ver com o que seria feito, ou com o que deve ser feito, mas com o que pode ser feito e qual a maneira de fazêlo. De acordo com esta noção a ciência social seria uma disciplina exclusivamente instrumental e não uma disciplina postuladora de objetivos. Mas, ao estudar o que é, não podemos eliminar totalmente o que deveria ser. Na vida humana, os motivos e os objetivos da ação fazem parte do processo pelo qual se realiza a ação e são essenciais para que se observe a relação das partes com o todo. Sem objetivo a maioria dos atos não teria qualquer significado ou interesse para nós. Não obstante, existe uma diferença entre considerar e postular objetivos. Qualquer que seja a possibilidade do desvinculamento completo ao lidar com os objetos físicos, não nos podemos permitir na vida social não considerar os valores e os objetivos dos atos sem perdermos a significação de muitos dos fatos em questão. Em nossa escolha de áreas de pesquisa, em nossa seleção de dados, em nosso método de investigação, em nossa organização de material, para não falar da formulação de nossas hipóteses e conclusões, existe sempre manifesto alguma suposição ou esquema de valoração mais ou menos claro, explícito ou implícito. De acordo com isso, cabe uma distinção bem fundada entre fatos subjetivos e objetivos, resultante da diferença entre observação externa e interna, ou, para usar os termos de William James, “conhecimento de” e “familiaridade com”. Se existe uma diferença entre os processos físicos e mentais — e não parece haver muita razão para se suprimir esta importante distinção — ela sugere uma diferenciação correspondente nos modos de se conhecer esses dois tipos de fenômenos. Os objetos físicos podem ser conhecidos (e a ciência natural ocupa-se deles exclusivamente porque podem ser conhecidos) puramente do exterior, enquanto os processos mentais e sociais somente podem ser conhecidos do interior, a não ser na medida em que também se mostram externamente através de indícios físicos, nos quais, por seu turno, captamos significados. Daí se poder considerar a introspecção (“insight”) como o cerne do conhecimento social. Chega-se a isto, estando-se no interior do fenômeno a ser observado, ou como o expressa Charles H. Cooley por introspecção simpática. É a participação em uma atividade que gera o interesse, o propósito, o ponto-devista, o valor, o significado e a inteligibilidade assim como a parcialidade. Já que as Ciências Sociais se ocupam de objetos possuidores de valor e significado, c observador que busca entendê-los precisa necessariamente fazê-lo por meio de categorias que, por sua vez, dependem de seus próprios valores e significados. Esta noção foi

repetidamente enunciada na controvérsia por muitos anos mantida entre os behavioristas, os cientistas sociais que lidavam com a vida social exclusivamente como o cientista natural lida com o mundo físico, e os que adotaram a posição de introspeccionismo simpático e compreensão seguindo a orientação traçada por um autor da importância de Max Weber. No conjunto, todavia, enquanto o elemento valorativo do conhecimento social recebia um reconhecimento formal, tem-se dado relativamente pouca atenção, principalmente entre os sociólogos americanos e ingleses, à análise concreta do papel dos interesses e valores efetivos tal como apareceram em doutrinas e movimentos históricos específicos. Uma exceção deve ser feita quanto ao caso do marxismo que, apesar de ter elevado este tema a uma posição central, ainda não formulou um enunciado sistemático satisfatório do problema. É neste ponto que a contribuição do Professor Mannheim assinala um nítido avanço sobre o trabalho até então realizado na Europa e na América. Ao invés de se contentar em chamar a atenção para o fato de que o interesse se reflete inevitavelmente em todo o pensamento, inclusive naquele seu aspecto a que se dá o nome de ciência, o Professor Mannheim procurou reconstituir a específica conexão entre os efetivos grupos de interesse na sociedade e as ideias e modos de pensamento que eles defendem. Conseguiu demonstrar que as ideologias, isto é, os complexos de ideias que dirigem a atividade com vista à manutenção da ordem existente, e as utopias — os complexos de ideias que tendem a gerar atividades com vista a mudanças na ordem prevalecente — não apenas desviam o pensamento do objeto da observação, mas também servem para fixar a atenção sobre aspectos da situação que de outra forma permaneceriam obscuros ou passariam despercebidos. Dessa maneira, ele elaborou, a partir de uma formulação teórica geral, um efetivo instrumento para uma fecunda pesquisa empírica. O caráter significativo da conduta, entretanto, não garante a inferência de que esta conduta seja invariavelmente o produto da reflexão e raciocínio conscientes. Nossa busca de compreensão surge da ação e até pode ser conscientemente preparatória para mais ação, mas precisamos reconhecer que a reflexão consciente ou o ensaio imaginativo da situação, a que chamamos de “pensamento”, não constitui parte indispensável de cada ato. De fato, parece haver acordo geral entre os psicólogos sociais sobre os fatos de que as ideias não se geram espontaneamente e de que, a despeito do que afirma uma psicologia antiquada, o ato antecede o pensamento. A razão, a consciência de e a consciência moral ocorrem caracteristicamente em situações marcadas por conflito. O Professor Mannheim está, portanto, de acordo com o crescente número de pensadores modernos que, ao invés de postularem um intelecto puro, se preocupam com as condições sociais efetivas em que emergem a inteligência e o pensamento. Se, como parece ser verdade, não somos meramente condicionados pelos acontecimentos que ocorrem em nosso mundo, mas somos ao mesmo tempo um instrumento que os modela, segue-se que os objetivos da ação nunca são completamente enunciáveis e determinados até que o ato esteja terminado ou que se o relegue tão completamente a rotinas automáticas que ele não mais requeira consciência e atenção. O fato de que, no domínio do social, o observador faça parte do observado e tenha isso um interesse pessoal no objeto da observação é um dos fatores principais da gravidade do problema da objetividade nas Ciências Sociais. Além disso, devemos considerar que a

vida social e portanto a ciência social se acha em larga medida ligada às crenças relativas aos objetivos da ação. Quando advogamos algo, não o fazemos como totais exteriores ao que é e ao que acontecerá. Seria ingênuo supor que nossas ideias fossem inteiramente conformadas pelos objetos de nossa contemplação que se acham fora de nós, ou que nossos desejos e nossos receios nada têm a ver com o que percebemos ou com o que irá acontecer. Seria mais próximo da verdade admitir que os impulsos básicos geralmente denominados “interesses” são na realidade as forças que ao mesmo tempo geram os objetivos de nossa atividade prática e despertam nossa atenção intelectual. Enquanto em determinadas esferas da vida, especialmente em Economia e num grau menor em Política, estes “interesses” se fizeram explícitos e articulados, na maioria das demais esferas eles se colocam sob a superfície, disfarçando-se em modos de tal forma convencionais que nem sempre os reconhecemos, mesmo se nos forem apontados. Por conseguinte, a coisa mais importante que podemos saber de um homem é o que ele tem por dado, e os mais básicos e importantes fatos sobre a sociedade são os que raramente se debatem e que se encaram geralmente como assentados. Em vão, porém, procuramos no mundo moderno a serenidade e a calma que pareciam caracterizar a atmosfera em que viveram alguns pensadores das eras passadas. O mundo não possui mais uma fé comum e nossa professada “comunidade de interesse” pouco mais é do que uma figura de retórica. Com a perda de um propósito comum e de interesses comuns nos vimos igualmente privados de normas, modos de pensamento e concepções do mundo comuns. Até a opinião pública transformou-se num conjunto de públicos “fantasmas”. Os homens do passado podem ter habitado mundos menores e mais paroquiais, mas os mundos em que viviam eram aparentemente mais estáveis e integrados para todos os membros da comunidade do que nosso largo universo de pensamento, ação e crença veio a ser. Uma sociedade é, em última análise, possível porque os indivíduos que nela vivem são portadores de algum tipo de imagem mental desta sociedade. Contudo, nossa sociedade, nesta época de rigorosa divisão do trabalho, de extrema heterogeneidade e profundo conflito de interesses, atingiu um momento em que estas imagens são nubladas e incongruentes. Daí não mais percebermos como reais as mesmas coisas, e, ao lado de nosso amorfo sentido de uma realidade comum, estamos perdendo nosso meio comum de expressar e comunicar nossas experiências. O mundo foi estilhaçado em incontáveis fragmentos de indivíduos e grupos atomizados. A ruptura da integridade da experiência individual corresponde à desintegração da cultura e da solidariedade de grupo. Quando as bases da ação coletiva unificada começam a se enfraquecer, a estrutura social tende a se partir e a produzir um estado que Emile Durkheim denominou anomie, com o qual se refere a uma situação que poderia ser descrita como uma espécie de vazio ou vácuo sociais. Em tais condições o suicídio, o crime e a desordem são fenômenos correntes porque a existência individual não se vê mais enraizada em um ambiente social estável e integrado, e grande parte da atividade da vida perde inteiramente o sentido. Que a atividade intelectual não seja isenta de tais influências é o que o presente volume documenta efetivamente. E, se é que se pode dizer que possua um objetivo prático, afora a acumulação e a ordenação de novas percepções sobre as pré-condições, os processos e os problemas da vida intelectual, este será o de questionar as possibilidades da racionalidade e da mútua compreensão em uma época como a nossa, que parece tão

frequentemente premiar a irracionalidade, e de onde parecem ter desaparecido as possibilidades de um mútuo entendimento. Enquanto em períodos mais remotos o mundo intelectual possuía pelo menos um universo comum de referência, oferecendo uma medida de certeza aos participantes daquele mundo, e imprimindo-lhes um sentido de respeito e confiança mútuos, o mundo intelectual contemporâneo não é mais um cosmos senão que apresenta o espetáculo de um campo de batalha de partidos em guerra e doutrinas em conflito. Cada facção conflitante não só possui seu próprio conjunto de interesses e propósitos, como cada uma possui sua imagem do mundo com a qual se atribui aos mesmos objetos significados e valores radicalmente diversos. Em um mundo destes, as possibilidades de comunicação inteligível e a fortiori de acordo se reduzem a um mínimo. A ausência de uma massa comum de apercepção prejudica a possibilidade de se recorrer aos mesmos critérios de relevância e verdade, e uma vez que o mundo se mantém unido em ampla medida por palavras, quando estas palavras deixam de significar a mesma coisa para os que as usam, segue-se que os homens irão necessariamente se desentender e falar sem se escutar. Afora esta inerente incapacidade de se compreender entre si, existe outro obstáculo para a obtenção de um consenso, qual seja a obstinação absoluta dos partidários em negarse a considerar ou a encarar seriamente as teorias de seus oponentes simplesmente porque pertencem a outro campo político ou intelectual. Este deprimente estado de coisas é agravado pelo fato de o mundo intelectual não se achar liberto das lutas pela projeção pessoal e pelo poder. Isto levou à introdução da astúcia comercial no reino das ideias e deu origem a uma situação em que mesmo os cientistas prefeririam estar à direita do que com o direito.

III Se nos sentimos mais profundamente atemorizados, pela ameaçadora perda de nossa herança intelectual, do que nas crises culturais anteriores, é porque nos tornamos vítimas de expectativas mais grandiosas. Pois em tempo algum anterior ao nosso tantos homens se viram levados a se abandonar a tão sublimes sonhos sobre os benefícios que a ciência podia trazer à espécie humana. A dissolução dos supostamente sólidos fundamentos do conhecimento e o desencanto que se seguiu levaram alguns dos de “espírito delicado” ao anseio romântico pelo retorno de uma época que já passou e por uma certeza irremediavelmente perdida. Presas da perplexidade e do atordoamento, outros procuraram ignorar ou contornar as ambiguidades, os conflitos e as incertezas do mundo intelectual por meio do humor, do cinismo ou da negação cabal dos fatos da vida. Em uma época da história humana como a nossa, quando em todo o mundo as pessoas não estão apenas se sentindo inquietas, mas questionando as bases da existência social, a validade de suas verdades e a sustentação de suas normas, dever-se-ia tornar claro que não existe valor não-vinculado a interesse e nem objetividade independente de acordo. Em tais condições, é difícil se apegar tenazmente ao que se acredita ser a verdade face à dissensão, tendendo-se a questionar a própria possibilidade de uma vida intelectual. A despeito do fato de que o mundo ocidental tenha sido nutrido por uma tradição de liberdade e integridade intelectuais conseguidas durante cerca de dois mil anos, os homens começam

a se perguntar se a luta para consegui-las valeu a pena, quando hoje em dia tantos aceitam complacentemente a ameaça de extermínio do que se alcançou de racionalidade e de objetividade nos assuntos humanos. De um lado, a generalizada depreciação do valor do pensamento, e, de outro, a sua repressão são indícios nefastos do crescente crepúsculo da cultura moderna. Somente por medidas as mais resolutas e esclarecidas se poderá evitar tal catástrofe. Ideologia e Utopia é em si mesma o produto deste período de caos e instabilidade. Uma das contribuições que faz para a solução de nossa difícil situação é a análise das forças que lhe deram origem. É duvidoso que um livro como este pudesse ter sido escrito em qualquer outra época, pois os problemas de que trata, fundamentais como são, só poderiam ter surgido em uma sociedade e em uma época marcadas por uma profunda crise social e intelectual. Não apresenta nenhuma solução simples para as dificuldades que deparamos, mas realmente formula os problemas básicos de tal modo a torná-los suscetíveis de abordagem e faz avançar a análise de nossa crise intelectual mais do que até então se conseguira. Face à perda de uma concepção comum dos problemas e na ausência de critérios de verdade unanimemente aceitos, procurou o Professor Mannheim indicar as linhas segundo as quais se pudesse construir uma nova base para a investigação objetiva dos temas controvertidos da vida social. Até há pouco, o conhecimento e o pensar, por isso que considerados como o objeto próprio da Lógica e da Psicologia, eram situados fora do domínio da Ciência Social visto não serem considerados processos sociais. Embora algumas das ideias apresentadas pelo Professor Mannheim sejam o resultado de um gradativo desenvolvimento da análise crítica dos processos de pensamento e constituam parte integrante da herança científica do mundo ocidental, a contribuição especial do presente volume parece ser o reconhecimento explícito de que o pensamento, além de ser um objeto próprio da Lógica e da Psicologia, somente se torna totalmente compreensível quando encarado sociologicamente. Isto envolve a referência das bases dos juízos sociais a suas específicas raízes na sociedade, vinculadas a interesses, por meio das quais a particularidade, e portanto as limitações, de cada visão se tornam evidentes. Não se deve pressupor que a mera revelação destes ângulos de visão divergentes levará automàticamente os antagonistas a adotar as concepções uns dos outros ou de que isto resultará imediatamente em harmonia universal. Mas o esclarecimento das fontes destas diferenças parece ser precondição para qualquer tipo de percepção, por parte de cada observador, das limitações de sua própria visão e, pelo menos, da validade parcial das visões dos outros. Embora isto não implique necessariamente que os interesses de cada um sejam postos de lado, pelo menos torna possível uma concordância operacional sobre o que sejam os fatos de uma questão e sobre um conjunto limitado de conclusões a se tirar deles. É com tentativa semelhante que os cientistas sociais, mesmo apesar de estarem em desacordo quanto aos valores últimos, podem hoje em dia erigir um universo de discurso dentro do qual podem ver os objetos a partir de perspectivas similares e podem comunicar uns aos outros seus resultados com um mínimo de ambiguidade.

IV Haver levantado, nítida e lucidamente, os problemas implicados nas relações entre a atividade intelectual e a existência social constitui em si mesmo uma importante realização. Mas o Professor Mannheim não ficou aí. Reconheceu que os fatores que atuam na mente humana, impulsionando e perturbando a razão, são os mesmos fatores dinâmicos que constituem as fontes de toda a atividade humana. Ao invés de postular um hipotético intelecto puro que produzisse e ministrasse a verdade, sem contaminá-la com os chamados fatores não lógicos, ele procedeu efetivamente a uma análise das situações sociais concretas em que o pensamento ocorre e em que a vida intelectual se desenvolve. As quatro primeiras partes do presente volume demonstram concretamente a fecundidade desta abordagem sociológica e fornecem uma exemplificação dos métodos desta nova disciplina, cujos fundamentos formais são esboçados na Parte V, sob o título de “A Sociologia do Conhecimento”. Esta nova disciplina se situa histórica e logicamente no âmbito da Sociologia Geral concebida como a ciência social básica. Se os temas tratados pelo Professor Mannheim fossem desenvolvidos sistematicamente, a Sociologia do Conhecimento se converteria em um esforço especializado de lidar, de modo integrado, sob um ponto de vista unificador e por meio de técnicas apropriadas, com uma série de questões até aqui apenas discreta e superficialmente encaradas. Seria prematuro definir a exata orientação a ser eventualmente tomada por esta nova disciplina. Os trabalhos do falecido Max Scheler e os do próprio Professor Mannheim se adiantaram, entretanto, suficientemente para permitir que se tente apresentar os temas básicos de que ela se deve ocupar. O primeiro, e básico, destes temas é a elaboração psicossociologica da própria teoria do conhecimento, que até então tinha seu lugar na Filosofia sob a forma da epistemologia. Por toda a história do pensamento, este assunto obcecou os grandes pensadores. Apesar do esforço já antigo para resolver a relação entre experiência e reflexão, crença e verdade, o problema da interconexão entre ser e conhecer permanece ainda como um desafio para o pensador moderno. Mas não é mais um problema de interesse exclusivo do filósofo profissional. Passou a ser um tema central não apenas na ciência, mas igualmente na educação e na política. A Sociologia do Conhecimento aspira a dar uma contribuição para um maior entendimento deste antigo enigma. Tal tarefa requer mais do que a aplicação de regras lógicas bem estabelecidas ao material existente, pois as próprias regras de Lógica até aqui aceitas são colocadas em questão e vistas, juntamente com o restante de nossos instrumentos intelectuais, como partes e produtos do conjunto de nossa vida social. Isto implica a investigação dos motivos subjacentes à atividade intelectual e uma análise do modo e da medida em que os próprios processos de pensamento são influenciados pela participação do pensador na vida da sociedade. Um campo de interesse estreitamente ligado à Sociologia do Conhecimento é o da reelaboração dos dados da história intelectual, com vista à descoberta dos estilos e métodos de pensamento dominantes em determinados tipos de situação histórico-sociais. A este respeito, é essencial pesquisar as variações do interesse e da atenção intelectuais que acompanham as mudanças em outros planos da estrutura social. É aqui que a distinção entre ideologias e utopias proposta pelo Professor Mannheim oferece diretivas promissoras para a pesquisa.

Ao analisar a mentalidade de uma época ou de um dado estrato da sociedade, a Sociologia do Conhecimento se interessa não apenas pelas ideias e os modos de pensar que se revelam, mas por todo o contexto social em que ocorrem. Vale dizer que se devem necessariamente levar em conta os fatores responsáveis pela aceitação ou rejeição de determinadas ideias por certos grupos da sociedade, e os motivos e interesses que impelem determinados grupos a enunciar conscientemente e a disseminar estas ideias em setores mais amplos. Além disso, a Sociologia do Conhecimento procura lançar luz sobre a questão de como os interesses e os propósitos de determinados grupos sociais vêm a encontrar expressão em certas teorias, doutrinas e movimentos intelectuais. De fundamental importância para a compreensão de qualquer sociedade é o reconhecimento concedido aos vários tipos de conhecimento e a correspondente parcela dos recursos da sociedade consagrada ao cultivo de cada um deles. De igual significação é a análise das variações nas relações sociais, ocasionadas pelos progressos de determinados ramos do conhecimento, tais como o conhecimento técnico e o crescente domínio sobre a natureza e a sociedade possibilitados pela aplicação deste conhecimento. De modo semelhante, a Sociologia do Conhecimento, em virtude de seu interesse pelo papel do conhecimento e das ideias na manutenção ou na mudança da ordem social, deve dedicar uma atenção considerável aos instrumentos ou recursos através dos quais se difundem as ideias, e ao grau de liberdade de indagação e expressão prevalecente. De forma conexa, deve-se atentar para os tipos de sistema educacional existentes e o modo segundo o qual refletem e modelam a sociedade em que operam. A esta altura, o problema da doutrinação que tanta discussão tem recentemente provocado na literatura educacional encontra um lugar proeminente. Da mesma forma, as funções da imprensa, da popularização do conhecimento e da propaganda recebem um tratamento apropriado. Uma compreensão adequada de tais fenômenos contribuirá para uma concepção mais precisa do papel das ideias nos movimentos sociais e políticos e do valor do conhecimento como um instrumento de controle da realidade social. A despeito do grande número de estudos especializados das instituições sociais, cuja função principal gravita em torno das atividades intelectuais da sociedade, não existe nenhum tratamento teórico adequado da organização social da vida intelectual. Uma das principais obrigações da Sociologia do Conhecimento consiste, portanto, em uma análise sistemática da organização institucional em cujo quadro se pratica a atividade intelectual. Isto implica, entre outros aspectos, o estudo das escolas, universidades, academias, sociedades culturais, museus, bibliotecas, institutos de pesquisa e laboratórios, fundações e editoras. É importante saber-se como e por quem são sustentadas estas instituições, os tipos de atividade a que se dedicam, sua política, sua organização interna e inter-relações, e seu lugar no todo da organização social. Finalmente, e em todos os seus aspectos, a Sociologia do Conhecimento se preocupa com as pessoas a quem incumbe a atividade intelectual, ou seja, os intelectuais. Em cada sociedade existem indivíduos cuja função específica é acumular, preservar, reformular e disseminar a herança intelectual do grupo. A composição deste grupo, sua origem social e o modo pelo qual são recrutados, sua organização, sua filiação de classe, as recompensas e o prestígio que obtêm, sua participação em outras esferas da vida social, constituem algumas das mais cruciais questões que a Sociologia do Conhecimento busca responder. A maneira segundo a qual estes fatores se expressam nos produtos da atividade

intelectual proporciona o tema central de todos os estudos encetados sob o nome de Sociologia do Conhecimento. Em Ideologia e Utopia, o Professor Mannheim apresenta não só o esboço de uma nova disciplina que promete dar uma compreensão nova e mais profunda da vida social, mas igualmente oferece um esclarecimento bastante necessário de alguns dos maiores temas morais de nossos dias. Foi na esperança de que dará alguma contribuição para a solução dos problemas com que depara o homem inteligente que se traduziu o presente volume.

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É justamente à corrente de pensamento que em seguida evoluiu para a Sociologia do Conhecimento, que constitui o tema central deste livro, que devemos a noção de que as normas ético-políticas não só não podem ser derivadas da contemplação direta dos fatos, mas exercem elas mesmas uma influência modeladora sobre os próprios modos de perceber os fatos. Cf., entre outros, os trabalhos de Thorstein Veblen, John Dewey, Otto Bauer e Maurice Halbwachs.

I. ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 1. Conceito sociológico de pensamento Este livro se dedica ao problema de como os homens realmente pensam. A finalidade destes estudos é investigar não como o pensamento aparece nos tratados de Lógica, mas como ele realmente funciona na vida pública e na política como instrumento de ação coletiva. Os filósofos dedicaram tempo em demasia preocupando-se com o seu próprio pensamento. Quando escreviam sobre o pensamento, tinham em mente sobretudo a sua história pessoal, a história da Filosofia, ou campos muito especiais do conhecimento como a Matemática ou a Física. Este tipo de pensamento somente pode ser aplicado em circunstâncias bastante especiais, e o que se pode aprender com sua análise não é diretamente transferível a outras esferas de vida. Mesmo quando se pode aplicá-lo, referese apenas a uma dimensão específica da existência, que não basta para seres humanos que busquem compreender e moldar o seu mundo. Enquanto isso, os homens de ação haviam, em todo caso, começado a desenvolver uma variedade de métodos para a penetração intelectual ou vivencial do mundo em que vivem, métodos estes jamais analisados com a mesma precisão que os modos de conhecimento chamados exatos. Quando, porém, qualquer atividade humana permanece por um longo período sem ser submetida ao exame ou à crítica intelectuais, a tendência é que ela se torne incontrolável. Em consequência, deve-se considerar como uma das anomalias de nossa época o fato de que os métodos de pensar através dos quais chegamos a nossas decisões mais cruciais, e com que buscamos diagnosticar e orientar nosso destino político e social, tenham permanecido sem reconhecimento, inacessíveis portanto ao controle intelectual e à autocrítica. Esta anomalia se torna ainda mais monstruosa quando nos apercebemos de que, nos tempos modernos, dependemos muito mais da interpretação correta de uma situação do que acontecia no caso das sociedades mais antigas. A importância do conhecimento social cresce na razão da crescente necessidade de intervenção reguladora no processo social. Entretanto, não se deve compreender este modo de pensamento chamado inexato ou précientífico (paradoxalmente também usado por filósofos e estudiosos de Lógica quando têm de tomar decisões práticas) unicamente pela utilização da análise lógica. Constitui um complexo que não pode ser prontamente destacado seja das raízes psicológicas dos impulsos emocionais e vitais, seja da situação de que emerge e que busca resolver. A mais essencial tarefa deste livro é elaborar um método conveniente para a descrição e para a análise deste tipo de pensamento e de suas mudanças, bem como formular os problemas a ele ligados, ambos fazendo justiça ao seu caráter único e preparando o caminho para sua compreensão crítica. O método que intentaremos apresentar é o da Sociologia do Conhecimento.

A principal tese da Sociologia do Conhecimento é que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais. Realmente, é verdade que só o indivíduo é capaz de pensar. Não há entidade metafísica alguma tal como uma mente de grupo que pense acima das cabeças dos indivíduos, ou cujas ideias o indivíduo meramente reproduza. Não obstante, seria falso daí deduzir que todas as ideias e sentimentos que motivam o indivíduo tenham origem apenas nele, e que possam ser adequadamente explicados tomando-se unicamente por base sua experiência de vida. Da mesma forma, como seria incorreto tentar derivar uma linguagem apenas da observação de um só indivíduo, que fala uma linguagem que não é somente dele, mas, antes, é a de seus contemporâneos e predecessores que para ele prepararam o caminho, é também incorreto explicar-se a totalidade de uma perspectiva com a referência exclusiva à sua gênese na mente do indivíduo. Somente num sentido muito limitado o indivíduo cria por si mesmo um modo de falar e de pensar que lhe atribuímos. Ele fala a linguagem de seu grupo; pensa do modo que seu grupo pensa. Encontra à sua disposição somente certas palavras e seus significados. Estas não apenas determinam em um sentido amplo os caminhos de abordagem ao mundo que o envolve, mas igualmente mostram, e ao mesmo tempo, d'e que ângulo e em que contexto de atividades os objetos foram anteriormente perceptíveis e acessíveis ao grupo ou ao indivíduo. O primeiro ponto a ser por nós enfatizado é que, intencionalmente, a abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do filósofo, prosseguir então diretamente até às alturas abstratas do “pensamento em si”. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado. Assim, quem pensa não são os homens em geral, nem tampouco indivíduos isolados, mas os homens em certos grupos que tenham desenvolvido um estilo de pensamento particular em uma interminável série de respostas a certas situações típicas características de sua posição comum. Estritamente falando, é incorreto dizer-lhe que um indivíduo isolado pensa. Antes, é mais correto insistir em que ele participa no pensar acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes dele. O indivíduo se encontra em uma situação herdada, com padrões de pensamento a ela apropriados, tentando reelaborar os modos de reação herdados, ou substituindo-os por outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desafios surgidos das variações e mudanças em sua situação. Cada indivíduo é, dessa forma, predeterminado em um duplo sentido pelo fato de crescer em uma sociedade: encontra, por um lado, uma situação definida e, por outro, descobre em tal situação padrões de pensamento e de conduta previamente formados. A segunda característica do método da Sociologia do Conhecimento é não separar os modos de pensamento concreta- mente existentes do contexto de ação coletiva por meio do qual, em um sentido intelectual, descobrimos inicialmente o mundo. Homens vivendo em grupos não apenas coexistem fisicamente enquanto indivíduos distintos. Não se confrontam os objetos do mundo a partir de níveis abstratos de uma mente contemplativa em si, nem tampouco o fazem exclusivamente enquanto sêres solitários. Pelo contrário, agem com ou contra os outros, em grupos diversamente organizados, e, enquanto agem,

pensam com ou contra os outros. Estas pessoas, reunidas em grupos, ou bem se empenham, de acordo com o caráter e a posição dos grupos a que pertencem, em transformar o mundo da natureza e da sociedade a sua volta, ou, então, tentam mantê-lo em uma dada situação. A direção dessa vontade da atividade coletiva de transformar ou manter é que produz o fio orientador para a emergência de seus problemas, seus conceitos e suas formas de pensamento. De acordo com o contexto particular da atividade coletiva de que participam, os homens tendem sempre a ver diferentemente o mundo que os circunda. Exatamente da mesma forma pela qual apartou o pensamento individual de sua situação de grupo, a análise lógica pura separou o pensamento da ação. E assim o fez na suposição tácita de que aquelas conexões inerentes que sempre existem na realidade entre, de um lado, o pensamento e, do outro, a atividade e o grupo, ou fossem insignificantes para o pensar “correto”, ou pudessem ser destacadas destes fundamentos sem que daí resultassem quaisquer dificuldades. Mas o fato de se ignorar algo não elimina, de forma alguma, sua existência. Nem é possível, a quem antes não se tenha totalmente entregue à observação exata da riqueza de formas pelas quais os homens realmente pensam, decidir a priori se este secionamento da situação social e do contexto de atividade pode ser realizado em todos os casos. Tampouco se pode determinar de antemão que uma dicotomia tão completa seja plenamente desejável, justamente no interesse do conhecimento objetivo dos fatos. Pode ser que, em certas esferas do conhecimento, seja o impulso para a ação que inicialmente torne os objetos do mundo acessíveis ao sujeito que age, e pode ser, além disso, que seja este fator que determine a seleção daqueles elementos da realidade que participam do pensamento. E não é inconcebível que, se se excluísse inteiramente este fator volitivo (na medida em que isto fosse possível), o conteúdo concreto desaparecesse completamente dos conceitos, e se perdesse o princípio organizador que possibilita uma colocação compreensível do problema. Tal não quer dizer, porém, que nos domínios onde a adesão ao grupo e a orientação para ação parecem ser um elemento essencial à situação, seja vã qualquer possibilidade de autocontrole crítico e intelectual. Talvez precisamente quando se tornem visíveis a dependência oculta do pensamento à existência do grupo e seu enraizamento na ação, é que seja realmente possível, pela primeira vez, obter-se um novo modo de controle sobre fatores do pensamento anteriormente incontrolados. Isto nos remete ao problema central deste livro. Estas observações devem tornar claro que uma preocupação com estes problemas e sua solução fornecerão um fundamento para as Ciências Sociais, e responderão à pergunta quanto à possibilidade de orientação científica para a vida política. É evidentemente verdade que nas Ciências Sociais, como em qualquer parte, vai encontrar-se o último critério de verdade ou de falsidade na investigação do objeto, e a Sociologia do Conhecimento não é um substituto para tal critério. Mas o exame do objeto não é um ato isolado; ocorre num contexto permeado por valores e impulsos volitivos do inconsciente coletivo. Nas Ciências Sociais é este interesse intelectual, orientado por uma matriz de atividade coletiva, que proporciona não apenas as questões gerais, mas as hipótese de pesquisa concretas e os modelos de pensamento para a ordenação da experiência. Somente na medida em que conseguimos trazer à área de observação consciente e explícita os vários pontos de partida e de abordagem dos fatos correntes tanto na discussão científica, como na popular, é que podemos esperar, no correr do tempo, controlar as motivações e pressupostos inconscientes que, em última análise,

deram existência a esses modelos de pensamento. Um novo tipo de objetividade pode ser obtido nas Ciências Sociais, mas não por meio da exclusão de valorações, e sim através da percepção e do controle crítico destas.

2. Os condicionamentos contemporâneos do pensamento Não se trata absolutamente de um acaso que o problema das raízes sociais e ativistas do pensar tenha emergido em nossa geração. Nem é por acidente que o inconsciente, que até aqui motivava nosso pensamento e nossa atividade, venha sendo gradativamente elevado ao nível da consciência, tornando-se dessa forma acessível ao controle. Seria errôneo reconhecer sua relevância para nossa condição se não observássemos que foi uma situação social específica que nos induziu a refletir sobre as raízes sociais de nosso conhecimento. É uma das intuições fundamentais da Sociologia do Conhecimento que o processo pelo qual se tornam conscientes as motivações coletivas inconscientes não pode operar em todas as épocas, mas apenas em uma situação bastante específica. Esta situação pode ser sociologicamente determinada. Pode-se indicar com relativa precisão os fatores que estão inevitàvelmente forçando um número cada vez maior de pessoas a refletir não apenas sobre as coisas no mundo, mas também sobre seu próprio pensamento e, neste caso, não tanto sobre a verdade em si mesma, mas sobre o alarmante fato de que o mesmo mundo possa se mostrar diferentemente a observadores diferentes. É claro que tais problemas somente podem tornar-se gerais numa época em que a discordância predomina sobre a concordância. As pessoas se voltam da observação direta de coisas para a consideração dos modos de pensar somente quando fracassa a possibilidade de elaboração contínua e direta de conceitos relativos a coisas e situações frente a uma multiplicidade de definições fundamentalmente divergentes. Estamos agora capacitados a apontar, de forma mais precisa do que uma análise geral e formal o possibilitaria, exatamente em que situação social e intelectual uma tal transferência de atenção das coisas para opiniões divergentes, e daí para as motivações inconscientes do pensamento, deve necessariamente ocorrer. Desejamos indicar adiante apenas alguns dos fatores sociais mais relevantes que estão operando nessa direção. Antes de mais nada, a multiplicidade de modos de pensar não se pode tornar um problema em períodos em que a estabilidade social fundamenta e garante a unidade interna de uma visão do mundo. Enquanto os mesmos significados das palavras, as mesmas maneiras de se deduzir ideias, são desde a infância inculcados em cada membro do grupo, não podem existir nesta sociedade processos de pensamento divergentes. Mesmo uma modificação gradativa nas maneiras de pensar (onde por acaso surja) não se torna perceptível aos membros de um grupo que vivam em uma situação estável, enquanto o tempo nas adaptações de maneiras de pensar a novos problemas seja tão lento que se estende por várias gerações. Neste caso, uma mesma geração dificilmente pode, no decorrer de sua vida, se tornar consciente da mudança que ocorre. Em acréscimo, todavia, à dinâmica geral do processo histórico, fatores de tipo bastante diverso devem intervir antes que a multiplicidade de modos de pensar se torne perceptível e emerja como tema para reflexão. Assim, é principalmente a intensificação da

mobilidade social que destrói a ilusão anterior, prevalecente numa sociedade estática, de que todas as coisas podem mudar, mas o pensamento permanece eternamente o mesmo. E o que é mais, as duas formas de mobilidade social, horizontal e vertical, operam de forma diferente para revelar essa multiplicidade de estilos de pensamento. A mobilidade horizontal (movimento de uma posição para outra ou de um país para outro, sem mudança do status social) nos mostra que povos diferentes pensam diferentemente. Enquanto, contudo, as tradições do grupo local ou nacional a que uma dada pessoa pertença permanecem intactas, essa pessoa persiste tão apegada à sua maneira de pensar costumeira que as maneiras de pensar percebidas nos demais grupos são encaradas como curiosidades, erros, ambiguidades ou heresias. Neste estágio ninguém duvida seja da correção de suas próprias tradições de pensamento, seja da unidade e uniformidade do pensamento em geral. Somente quando a mobilidade horizontal se faz acompanhar de uma intensa mobilidade vertical, isto é, do movimento rápido entre estratos no sentido de ascensão ou de descenso social, é que a crença de alguém na validade geral e eterna das próprias formas de pensamento é abalada. A mobilidade vertical é o fator decisivo para tornar as pessoas incertas e céticas de suas visões de mundo tradicionais. É evidentemente verdade que, mesmo nas sociedades estáticas com baixa mobilidade vertical, os diferentes estratos de uma mesma sociedade experimentaram o mundo de modo diferente. Devemos a Max Weber1 o ter demonstrado claramente, em sua sociologia da religião, como é comum que a mesma religião seja diversamente experimentada por camponeses, artesãos, mercadores, nobres e intelectuais. Em uma sociedade organizada segundo linhas de castas ou grupos fechados, a ausência relativa de mobilidade vertical serviu ou para isolar entre si as divergentes visões de mundo ou no caso, por exemplo, de professarem uma religião comum, para a interpretarem de maneira diferente, de acordo com seus diferentes contextos de vida. Isto explica o fato de a diversidade de modos de pensamento das diferentes castas não convergir em uma mesma mente — o que seria um problema. Do ponto de vista sociológico, a mudança decisiva ocorre quando se atinge aquele estágio de desenvolvimento histórico em que os estratos anteriormente isolados começam a se comunicar uns com os outros e se estabelece uma certa circulação social. O mais relevante estágio dessa comunicação é atingido quando as formas de pensamento e de experiência, que até então desenvolviam independentemente, penetram em uma mesma consciência compelindo a mente a descobrir a irreconciliabilidade das concepções conflitantes do mundo. Em uma sociedade bastante estabilizada, a mera infiltração dos modos de pensamento dos estratos mais baixos nos estratos superiores não teria maior importância, uma vez que a simples percepção pelo grupo dominante de possíveis variações no pensamento não os abalaria intelectualmente. Enquanto a sociedade mantém-se estável com base na autoridade e se concede prestígio social somente às realizações do estrato superior, esta classe tem poucos motivos para colocar em questão sua própria existência e o valor de suas realizações. Além de uma considerável ascensão social, não é senão quando temos uma democratização geral que a elevação dos estratos inferiores permite a seu pensamento adquirir uma relevância pública.2 Este processo de democratização possibilita, pela primeira vez, às maneiras de pensar dos estratos inferiores, antigamente sem validade pública alguma, adquirir validade e prestígio. Quando atingido o estágio de democratização, as técnicas de pensar e as ideias dos estratos inferiores estão pela primeira vez em condições de se confrontarem com as ideias dos estratos dominantes em um mesmo nível de validade.

E, então, também pela primeira vez, estas ideias e estes modos de pensamento são capazes de impelir a pessoa que pensa dentro de tais parâmetros a submeter os objetos de seu mundo a um questionamento fundamental. E é com este confronto de modos de pensamento, cada um com os mesmos reclamos de validade de representação, que se torna pela primeira vez possível a emergência da questão tão fatídica, mas igualmente tão fundamental, na história do pensamento, qual seja a de como é possível que idênticos processos de pensamento humano, referidos ao mesmo mundo, produzam concepções divergentes deste mundo. E basta apenas mais um passo para que se indague: é possível que os processos de pensamento aqui referidos não sejam idênticos? Não se descobrirá que, uma vez examinadas todas as possibilidades do pensamento humano, existem numerosos caminhos alternativos que podem ser seguidos? Não foi tal processo de ascensão social que, na democracia ateniense, deu margem ao primeiro grande surto de ceticismo na história do pensamento ocidental? Não foram os sofistas do Iluminismo grego a expressão de uma atitude de dúvida que emergiu essencialmente do fato de que, quando pensavam em cada objeto, dois modos de explicação colidiam? De um lado havia a mitologia que era a maneira de pensar da nobreza dominante, já condenada ao declínio; de outro, estava o hábito de pensamento mais analítico de um inferior estrato urbano artesão, em processo de ascensão. Na medida em que estas duas formas de interpretar o mundo convergiram no pensamento dos sofistas, e visto que para cada decisão moral havia à disposição pelo menos dois padrões, e para cada acontecimento cósmico e social pelo menos duas explicações, não é de estranhar eles que tivessem uma noção cética do valor do pensamento humano. Torna-se portanto sem sentido censurá-los, à maneira de mestre-escola, por terem sido céticos em seus trabalhos epistemológicos. Tinham, simplesmente, a coragem de exprimir o que tôda pessoa realmente característica da época sentia, ou seja, que a inambiguidade de normas e de interpretações fôra destruída, e que a solução satisfatória somente seria encontrada por meio de um profundo questionamento e da meditação sôbre as contradições. Essa incerteza generalizada não era absolutamente um sintoma de um mundo destinado à decadência global, sendo, antes, o ponto de partida de um processo salutar que caracterizava uma crise que conduzia à recuperação. Não se constituiu na grande virtude de Sócrates o ter tido a coragem de descer ao âmago dêsse ceticismo? Não tinha também êle sido originalmente um sofista que adotou a técnica de levantar questões e mais questões, fazendo-a sua? E não conseguiu êle superar a crise questionando mais radicalmente do que os próprios sofistas, alcançando dessa forma um nível de firmeza intelectual que, pelo menos para a mentalidade da época, se demonstrou um fundamento seguro? É interessante observar que, com tal procedimento, o mundo de normas e do ser veio a ocupar o ponto central de sua indagação. Sócrates estava, além do mais, pelo menos tão interessado na questão relativa a como os indivíduos são capazes de pensar e julgar os mesmos fatos de maneiras diferentes quanto nos fatos mesmos. Mesmo neste estágio da história do pensamento, torna-se evidente que, em vários períodos, os problemas do pensar não poderiam ser resolvidos unicamente pela preocupação com o objeto, mas, pelo contrário, somente por meio da descoberta do porquê as opiniões referentes a eles realmente diferiam. Além destes fatores sociais que respondem pela unidade inicial e pela subsequente multiplicidade das formas de pensamento dominantes, devemos mencionar outro fator

importante. Em cada sociedade, há grupos sociais cuja tarefa específica consiste em dotar aquela sociedade de uma interpretação do mundo. Chamamos tais grupos de intelligentsia. Tanto mais estática uma sociedade, tanto mais tende esse estrato a adquirir, nessa sociedade, um status bem definido ou a posição de uma casta. Assim os mágicos, os brâmanes e o clero medieval devem ser encarados como estratos intelectuais, cada um gozando em sua sociedade de um controle monopolístico sobre a formação da visão de mundo dessa sociedade, bem como sobre a reordenação, ou a reconciliação, das diferenças das visões de mundo dos demais estratos, ingenuamente formadas. Nesse sentido, o sermão, a confissão e a lição constituem meios pelos quais ocorre a reconciliação das diferentes concepções do mundo, em níveis menos sofisticados de desenvolvimento social. Este estrato intelectual, organizado como casta e monopolizando o direito de pregar, ensinar e interpretar o mundo, está condicionado pela ação de dois fatores sociais. Tanto mais ele se torna o intérprete de uma coletividade globalmente organizada (por exemplo, a Igreja), tanto mais seu pensamento tende a um “escolasticismo”. Tem que conceder uma força dogmaticamente coercitiva aos modos de pensamento válidos anteriormente apenas para uma seita, sancionando dessa forma a ontologia e a epistemologia implícitas neste modo de pensamento. A necessidade de se ter de apresentar uma frente unificada aos de fora compele a uma tal transição. O mesmo resultado pode igualmente advir da possibilidade de a concentração de poder dentro da estrutura social se tornar tão pronunciada que se possa impor a uniformidade de pensamento e de experiência, pelo menos aos membros da própria casta a que se pertença, com maior sucesso do que até então. A segunda característica deste tipo monopolístico de pensamento reside em seu relativo afastamento dos conflitos manifestos da vida cotidiana; assim, também neste sentido, é “escolástico”, isto é, acadêmico e sem vida. Este tipo de pensamento não surge primariamente do embate com os problemas concretos da vida, nem da tentativa e erro, nem de experiências de domínio sobre a natureza e a sociedade, mas, pelo contrário, de sua própria necessidade de sistematização, que sempre remete os fatos emergentes na esfera religiosa e nas demais esferas de vida a determinadas premissas tradicionais e intelectualmente não-controladas. Os antagonismos que emergem de tais discussões não espelham o conflito dos vários modos de experiência e, sim, as várias posições de poder dentro de uma mesma estrutura social, posições estas que, na ocasião, se haviam identificado com as diferentes interpretações possíveis da “verdade” dogmática tradicional. O conteúdo dogmático das premissas de que partiam tais grupos divergentes e que, sob formas diversas, tal pensamento buscava justificar, revela-se, na maioria dos casos, uma questão de acidente, se julgado pelos critérios de evidência fatual. Tal conteúdo é completamente arbitrário, na medida em que depende de qual seita consegue ter sucesso, de acordo com o destino político-histórico, em fazer de suas tradições intelectuais e de experiência as tradições de toda a casta clerical da igreja. Do ponto-de-vista sociológico, o fato decisivo dos tempos modernos, em contraste com a situação vigente na Idade Média, é o de ter sido quebrado este monopólio da interpretação eclesiástica do mundo, mantido pela casta sacerdotal, tendo surgido, no lugar de um estrato de intelectuais fechado e inteiramente organizado, uma intelligentsia livre. Sua característica principal é a de ser recrutada, de modo cada vez mais frequente, em estratos e situações de vida constantemente variáveis, e de seu modo de pensamento não

mais estar sujeito a ser regulado por uma organização do tipo casta. Devido à ausência de uma organização social própria, os intelectuais permitiram que os diversos modos de pensamento e de experiência chegassem a competir abertamente entre si, no mundo mais amplo dos demais estratos. Quando, além disso, se considera que, com a renúncia aos privilégios de uma existência do tipo casta, a livre competição começou a dominar os modos de produção intelectual, compreende-se porque, na medida em que estavam em competição, os intelectuais adotaram, de forma cada vez mais pronunciada, os mais variados modos de pensamento e de experiência à disposição na sociedade, e os jogaram uns contra os outros. E assim fizeram porque tinham de competir pelos favores de um público que, diferentemente do público do clero, não mais seria-lhes acessível sem esforço. Tal competição pelos favores dos vários grupos de público foi acentuada porque os modos de experiência e pensamento de cada grupo obtiveram progressivamente expressão pública e validade. Desaparece, nesse processo, a ilusão do intelectual de que haja apenas uma forma de pensar. O intelectual não é mais, como antigamente, um membro de uma casta ou grupo, cuja maneira escolástica de pensar aparece como o pensamento em si. Deve-se procurar, nesse processo relativamente simples, a explicação para o fato de que o questionamento fundamental do pensamento nos tempos modernos só teve início depois do colapso do monopólio intelectual mantido pelo clero. A visão de mundo quase unanimemente aceita, mantida artificialmente, foi destruída a partir do momento em que se destruiu a posição socialmente monopolista de seus produtores. Com a liberação dos intelectuais da rigorosa organização da igreja, foram sendo cada vez mais reconhecidas outras formas de interpretar o mundo. A ruptura do monopólio intelectual da igreja acarretou a rápida efervescência de uma riqueza intelectual sem precedente. Mas, ao mesmo tempo, devemos atribuir à desintegração organizacional da igreja unitária o fato de ser novamente abalada a crença na unidade e na natureza eterna do pensamento, que persistia desde a antiguidade clássica. As origens da profunda inquietação nos dias de hoje remontam a este período, apesar de nos últimos tempos haverem interferido no processo causas adicionais de natureza inteiramente diferente. Desta primeira aparição da profunda inquietude do homem moderno emergiram os novos modos de pensamento e de investigação, o epistemológico, o psicológico e o sociológico, sem os quais não nos seria possível atualmente sequer formular nossa problemática. Por esta razão, intentaremos mostrar, nas páginas seguintes, e em pelo menos suas linhas gerais, como desta situação social unitária surgiram as muitas formas de questionamento e de investigação de que dispomos.3

3. Origem dos pontos-de-vista epistemológico, psicológico e sociológico modernos A epistemologia foi o primeiro produto filosófico relevante da derrocada da visão de mundo unitária com a qual se inaugurou a era moderna. Nesta ocasião, como nos tempos antigos, foi o primeiro reflexo da inquietação resultante do fato de estarem os pensadores que haviam penetrado até os fundamentos do pensamento descobrindo não só numerosas

visões de mundo, mas, igualmente, numerosas ordens ontológicas. A epistemologia buscou eliminar essa incerteza fundando seu ponto de partida não em uma teoria de existência dogmaticamente ensinada, nem em uma ordenação de mundo que fosse validada por um tipo de conhecimento superior, mas em uma análise do sujeito conhecedor. Toda a especulação epistemológica está orientada dentro da polaridade de sujeito e objeto.4 Ou parte do mundo de objetos, que, de uma forma ou de outra, pressupõe dogmaticamente como familiar a todos, e com base nisto explica a posição do sujeito nesta ordenação do mundo, derivando daí seus poderes cognitivos; ou, então, parte do sujeito como o dado imediato e indiscutível buscando derivar dele a possibilidade de conhecimento válido. Em períodos em que a visão de mundo objetiva permanece mais ou menos inabalada, e nas épocas que conseguem apresentar uma ordenação de mundo inambiguamente perceptível, existe a tendência a basear nos fatores objetivos a existência do sujeito humano conhecedor e de suas capacidades intelectuais. Assim, na Idade Média, que não somente acreditava numa ordenação do mundo inambígua, mas que, igualmente, julgava conhecer um “valor existencial” a ser atribuído a cada objeto da hierarquia das coisas, prevaleceu uma explicação do valor das capacidades e do pensamento humanos que se baseava no mundo dos objetos. Entretanto, depois da derrocada que descrevemos, a concepção de ordem no mundo dos objetos, que havia sido garantida pela predominância da igreja, se tornou problemática, não restando outra alternativa que a reviravolta e a tomada do caminho oposto, tomando-se o sujeito como ponto de partida, para se determinar a natureza e o valor do ato humano de cognição, tentando-se dessa maneira encontrar, no sujeito conhecedor, um ancoradouro para a existência objetiva. Apesar de se poder encontrar seus precursores já no pensamento medieval, essa tendência emerge completamente pela primeira vez na corrente racionalista da filosofia francesa e alemã de Descartes a Leibnitz até Kant por um lado e, por outro, pela epistemologia mais psicologicamente orientada de Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. Era sobretudo esse o significado do experimento intelectual de Descartes, do conflito exemplar por meio do qual procurou pôr em dúvida todas as teorias tradicionais, para atingir finalmente o cogito ergo sum não mais questionável. Era este o único ponto a partir do qual ele poderia novamente intentar a nova colocação dos fundamentos de uma visão de mundo. Todas essas tentativas pressupõem a consideração mais ou menos explícita de que o sujeito nos é mais imediatamente acessível que o objeto que, como resultado das muitas interpretações divergentes a que foi submetido, passou a ser por demais ambíguo. Por esta razão devemos, sempre que possível, reconstruir empiricamente a gênese do pensamento no indivíduo, que é mais acessível a nosso controle. Na mera preferência pelas observações empíricas e pelos critérios genéticos que se tornaram gradativamente supremos, revelou-se em ação a vontade de destruir o princípio autoritário. Representa uma tendência centrífuga em oposição à Igreja como o intérprete oficial do universo. Somente tem validade o que eu puder controlar na minha própria percepção, o que for corroborado pela minha própria atividade experimental, ou que eu mesmo posso produzir ou, pelo menos, construir conceptualmente como possível de produzir. Consequentemente, no lugar de uma história tradicional da criação, garantida eclesiasticamente, emergiu uma concepção da formação do mundo, estando suas várias

partes sujeitas ao controle intelectual. Este modelo conceptual de produtibilidade da visão de mundo pelo ato cognitivo conduziu à solução do problema epistemológico. Esperava-se que se pudesse, por meio da inquirição das origens da representação cognitiva, atingir alguma noção do papel e da relevância do sujeito no ato de conhecer e do valor de verdade do conhecimento humano em geral. Considerava-se, não obstante, que esta tortuosa abordagem através do sujeito era um substitutivo e um expediente, à falta de melhor solução. Uma solução completa do problema somente seria possível se uma mente extra-humana e infalível pudesse emitir um juízo sobre o valor de nosso pensar. Tal método, porém, era o que precisamente fracassara no passado, porque quanto mais se progredia na crítica das teorias anteriores, tanto mais claro se tornava que as filosofias que haviam feito as reivindicações mais absolutas eram as que mais caíam em auto decepções facilmente perceptíveis. Daí vir a ser preferido o método que, entrementes, se tinha demonstrado o mais apropriado para a orientação natural frente ao mundo e para as Ciências Naturais, qual seja, o método empírico. Quando, no curso de tal desenvolvimento, se elaboraram as Ciências Filológicas e Históricas, surgiu também, para a análise do pensamento, a possibilidade de recorrer às concepções do mundo historicamente emergentes e de compreender esta riqueza de visões filosóficas e religiosas do mundo em termos do processo genético pelo qual vieram a existir. Assim, o pensamento passou a ser examinado em vários níveis diversos de seu desenvolvimento e em situações históricas bastante diferentes. Tornou-se evidente que se podia dizer muito mais sobre a maneira pela qual a estrutura do sujeito influencia sua visão do mundo quando se fazia uso da psicologia animal, da psicologia infantil, da psicologia da linguagem, da psicologia dos povos primitivos e da psicologia da história intelectual do que quando se utilizava uma análise puramente especulativa das realizações de um sujeito transcendente. O recurso epistemológico ao sujeito tornou possível, neste sentido, a emergência de uma psicologia que se tornou cada vez mais precisa, incluindo uma psicologia do pensamento que, como indicamos acima, se dividiu em numerosos campos de especialização. Entretanto, quanto mais precisa se tornou essa psicologia empírica e quanto maior o reconhecimento da amplitude da observação empírica, tanto mais evidente se fez que o sujeito não era de forma alguma — como se havia pretendido anteriormente — um ponto de partida tão seguro para a obtenção de uma nova concepção do mundo. É de fato verdade, em certo sentido, que a experiência interna é dada mais imediatamente que a experiência externa, e que a conexão interna entre experiências pode ser mais seguramente compreendida se, entre coisas, se for capaz de ter uma compreensão simpática das motivações que produzem certas ações. Não obstante, é evidente que não se pode evitar inteiramente os riscos implicados em uma ontologia. Também a psique, com todas as suas “experiências” interiorizadas imediatamente perceptíveis, é um segmento da realidade. E o conhecimento dessas experiências, adquirido por ela, pressupõe uma teoria da realidade, uma ontologia. Entretanto, exatamente como tal ontologia se tornara mais ambígua com relação ao mundo exterior, assim se tornou não menos ambígua com relação à realidade psíquica. O tipo de psicologia que ligou a Idade Média com os tempos modernos e que extraiu seus conteúdos da auto-observação do homem religioso permanece ainda de fato

operando com certos conceitos ricos em conteúdo, que evidenciam a continuada influência de uma ontologia religiosa da alma. Nesse sentido, reportamo-nos à psicologia surgida do conflito interno pela escolha entre o bem e o mal, agora concebida como ocorrendo no sujeito. Tal psicologia se desenvolveu nos conflitos de consciência e no ceticismo de homens como Pascal e Montaigne até Kirkegaard. Encontramos ainda neste, cheios de significado, certos conceitos orientadores de um tipo ontológico tal como desespero, pecado, salvação e solidão, que contêm uma certa riqueza da experiência, pois toda experiência, que desde o início se oriente para um objetivo religioso, tem conteúdo concreto. Não obstante, também estas experiências se tornam, com o passar do tempo, mais desprovidas de conteúdo, mais tênues e mais formais, na medida em que seu quadro de referência, sua ontologia religiosa, vão-se enfraquecendo. Uma sociedade em que os diversos grupos não podem mais concordar sobre o significado de Deus, da Vida e do Homem, será igualmente incapaz de decidir unanimemente o que se deve compreender por pecado, desespero, salvação ou solidão, O recurso ao sujeito quanto a estas questões não proporcionou nenhum auxílio real. Somente aquele que mergulha em si mesmo sem, no entanto, destruir quaisquer elementos de significado e de valor pessoais tem condições de encontrar respostas para as questões que implicam significado. Entretanto, neste meio tempo, como resultado desta formalização radical, a científica observação psíquica interna assume novas formas. Fundamentalmente, esta observação psíquica interna envolvia o mesmo processo que caracterizava a experimentação com objetos no mundo externo e o pensar sobre eles. Tais interpretações atribuidoras de significado, com conteúdos qualitativamente ricos (tais como, por exemplo, pecado, desespêro, solidão, amor cristão) foram substituídas por entidades formalizadas tais como o sentimento de ansiedade, a percepção do conflito interior, a experiência do isolamento e a libido. Estas últimas buscavam aplicar, à experiência interna do homem, esquemas interpretativos derivados da mecânica. O objetivo não era tanto compreender com o máximo de precisão a riqueza conceptual interna das experiências, tal como coexistem no indivíduo e operam juntas para a consecução de um fim significativo; a tentativa antes se destinava a excluir do conteúdo da experiência todos os elementos distintivos, a fim de, sempre que possível, aproximar a concepção dos acontecimentos psíquicos do esquema simples da mecânica (posição, movimento, causa e efeito). O problema passa a ser não o de como uma pessoa se compreende em termos de seus próprios ideais e normas e como, tendo tais normas como antecedentes, seus feitos e suas renúncias recebem significados, mas, antes, o de como pode uma situação externa, com um grau verificável de probabilidade, requerer mecanicamente uma reação interna. A categoria de causalidade eterna era crescentemente utilizada, operando-se com a ideia de uma sucessão regular de dois acontecimentos formalmente simplificados, como se exemplifica no seguinte esquema: “Surge o medo quando ocorre algo inusitado”, no qual se negligenciou propositadamente o fato de que cada tipo de medo muda completamente de acordo com seu conteúdo (medo em face da incerteza e medo em face de um animal), e de que também o inusitado varia totalmente de acordo com o contexto em que as coisas são usuais. O que se buscava era precisamente a abstração formal das características comuns a estes fenômenos qualitativamente diferenciados. Senão se empregava a categoria de função, no sentido de que os fenômenos simples eram interpretados a partir de seu papel no funcionamento formal do mecanismo psíquico total, como por exemplo no caso em que se interpretam os conflitos mentais como, basicamente, o resultado de duas tendências contraditórias não-integradas na esfera

psíquica, como expressões do desajustamento do sujeito. Sua função é compelir o sujeito a reorganizar seu processo de adaptação e alcançar um novo equilíbrio. Seria reacionário, frente ao fecundo desenvolvimento da ciência, negar valor cognitivo aos procedimentos simplificado- res tais como estes, que são facilmente controláveis e aplicáveis, com um alto grau de probabilidade, a grandes massas de fenômenos. A fecundidade destas ciências formalizadoras que trabalham em termos de causas e funções está ainda longe de se exaurir; e seria danoso impedir seu desenvolvimento. Uma coisa é testar uma linha fecunda de investigação e outra é encará-la como o único caminho para o tratamento científico de um objeto. Na medida em que a última é o ponto em questão, já está claro hoje em dia que a abordagem formal isolada não exaure o que pode ser conhecido do mundo, e especialmente da vida psíquica dos sêres humanos. As interconexões de significado, que por meio desse procedimento foram heuristicamente excluídas (no interesse da simplificação científica), para que se pudesse chegar a entidades formais e facilmente definíveis, não são recapturadas pelo mero aperfeiçoamento de formalização através da descoberta de correlações e funções. Pode ser realmente necessário, com vista à precisa observação da sequência formal de experiências, rejeitar os conteúdos concretos de experiência e valores. Constituir-se-ia, entretanto, num tipo fetichismo científico acreditar-se que tal purificação metódica substituísse efetivamente a riqueza original da experiência. É ainda mais errado pensar-se que uma extrapolação científica e uma enfatização abstrata de um aspecto de um fenômeno, pela única razão de se o haver concebido dessa forma, sejam capazes de enriquecer a experiência original da vida. Apesar de podermos conhecer bastante acerca das condições nas quais surgem os conflitos, podemos nada conhecer a respeito da situação interior dos seres humanos e de como, ao se abalarem seus valores, eles se perdem e buscam se reencontrar. Assim como a mais exata teoria de causa e função não pode responder à questão relativa a quem sou eu efetivamente, que sou eu efetivamente, ou o que significa ser um ser humano, da mesma forma não pode surgir desta teoria a interpretação do si mesmo e do mundo requerida mesmo pela mais simples ação baseada em qualquer decisão avaliativa. A teoria mecanicista e funcionalista é altamente valiosa como uma corrente na pesquisa psicológica. Falha, entretanto, quando se refere ao contexto total da experiência vital, porque nada diz sobre o fim significativo da conduta, sendo, assim, incapaz de interpretar os elementos da conduta com referência a ele. O modo mecanicista de pensamento somente é útil quando o objetivo ou o valor são indicados por outra fonte, e somente os “meios” são considerados. O mais importante papel do pensamento na vida consiste, entretanto, em proporcionar orientação para a conduta quando se tem de tomar decisões. Toda decisão real (tal como uma avaliação de outras pessoas ou de como se deve organizar a sociedade) implica um juízo relativo ao bem e ao mal, concernente ao sentido da vida e da mente. Encontramo-nos a esta altura frente ao paradoxo de que esta extrapolação dos elementos formalizados, por meio da mecânica geral e da teoria da função, surgiu originalmente para auxiliar os homens, em suas atividades, a alcançar seus objetivos mais facilmente. O mundo das coisas e da mente foi examinado mecanicisticamente e

funcionalmente para se chegar, através de uma análise comparativa, a seus últimos elementos constituintes, reagrupando-se-os então, de acordo com o objetivo da atividade. Quando se usou pela primeira vez o procedimento analítico, o fim ou objetivo prescrito pela atividade ainda existia (geralmente composto por fragmentos de um mundo anterior religiosamente compreendido). Os homens buscavam conhecer o mundo de forma que pudessem moldá-lo em conformidade com seu objetivo último; analisava-se a sociedade de modo a se alcançar uma forma de vida social mais justa ou mais agradável a Deus; os homens se preocupavam com a alma a fim de controlar o caminho da salvação. Mas quanto mais os homens se adiantavam na análise, tanto mais o objetivo desaparecia de seu campo de visão, de tal forma que hoje em dia um pesquisador poderia dizer com Nietzsche: “Esqueci por que comecei” (Ich habe meine Gründe vergessen). Caso alguém indague hoje em dia sobre os fins a que serviu a análise, a questão não pode ser respondida com referência à natureza, à alma ou à sociedade, senão estaríamos formalmente colocando uma condição ótima puramente técnica, psíquica ou social como, por exemplo, um máximo de “funcionamento sem fricção”.5 Este objetivo aparece como único quando, por exemplo, não levando em conta todas as suas observações e hipóteses complicadas, pergunta-se a um psicanalista qual o seu objetivo em curar os pacientes. Na maioria dos casos não terá outra resposta que a noção de um ótimo de adaptação. Quanto ao que seja este ótimo, ele nada poderá dizer tomando unicamente como base sua ciência, uma vez que todo fim significativo último foi, desde o início, eliminado dela. Revela-se, assim, outro aspecto do problema. Sem concepções valorativas, sem um mínimo de objetivo significativo, nada podemos fazer seja na esfera do social, seja na esfera do psíquico. Com isto queremos dizer que, mesmo quando se adota um ponto de vista puramente causal ou funcional, somente mais tarde é que se vai descobrir o sentido originalmente oculto na ontologia de que se partiu. Tal sentido preservou a experiência da atomização em observações isoladas, isto é, atomização sob o ponto de vista da atividade. Expressos nos termos da moderna teoria da gestalt, os significados que nos dá nossa ontologia servem para integrar as unidades de conduta e nos capacita a ver os elementos de observação individuais em um contexto configurativo, elementos que de outra forma tenderiam a permanecer separados. Mesmo que todo o significado veiculado pela visão de mundo mágico-religiosa fosse “falso”, ele ainda serviria — quando visto sob um ponto-de-vista puramente funcional — para tornar coerentes os fragmentos da realidade tanto da experiência psíquica interior quanto da experiência exterior, e para situá-los com referência a um certo complexo de conduta. Vemos cada vez mais claramente que qualquer que seja a fonte de onde extraímos nossos significados, sejam elas falsas ou verdadeiras, todas têm uma certa função psicológico-sociológica, que é a de fixar a atenção dos homens que desejam fazer alguma coisa em comum sobre uma certa “definição da situação”. Uma situação se constitui como tal quando é definida da mesma maneira pelos membros do grupo. Pode ser verdadeiro ou falso quando um grupo chama outro de herege, e como tal luta com este, mas é apenas por esta definição que a luta é uma situação social. Pode ser verdadeiro ou falso que um grupo lute somente por realizar uma sociedade fascista ou comunista, mas é só por essa definição, doadora de significado e avaliativa, que os acontecimentos produzem uma situação onde a atividade e a contra atividade são passíveis de distinção, e a totalidade de acontecimentos é articulada em um processo. A justaposição ex post facto de elementos esvaziados de

conteúdo significativo não produz unidade de conduta. Como resultado da exclusão extensiva de elementos significativos da teoria psicológica, torna-se mais e mais evidente que também na psicologia as situações psíquicas, para não se falar das histórias de vida interior, não podem ser percebidas fora de um contexto significativo. Além disso, de um ponto de vista puramente funcionalista, a derivação de nossos significados, quer sejam falsos ou verdadeiros, desempenha um papel indispensável, que é o de socializar os acontecimentos para um grupo. Pertencemos a um grupo não apenas porque nele nascemos, não porque professamos a ele pertencer, nem finalmente porque a ele prestamos nossa lealdade e obediência, mas, principalmente, porque vemos o mundo e certas coisas no mundo do mesmo modo que o grupo os vê (isto é, em termos dos significados do grupo em questão). Em cada conceito, em cada significado concreto, está contida uma cristalização das experiências de um certo grupo. Quando alguém diz “reinado”, o termo está sendo usado no sentido em que tenha significado para um certo grupo. Outra pessoa, para quem reinado é apenas uma organização, como, por exemplo, uma organização administrativa tal como a que se dá em um sistema postal, não participa das ações coletivas do grupo no qual se toma como dado o significado anterior. Entretanto, não existe em cada conceito somente uma fixação dos indivíduos com referência a um grupo de um certo tipo e à sua ação, mas toda fonte de onde derivamos o significado e a interpretação atual igualmente como um fator estabilizador das possibilidades de experimentar e conhecer objetos com referência ao objetivo central de ação que nos orienta, O mundo dos objetos externos e da experiência psíquica parece estar em una fluxo contínuo. Para esta situação os verbos são símbolos mais adequados do que os substantivos. O fato de darmos nomes a coisas que estão em fluxo implica inevitavelmente uma certa estabilização, orientada segundo as linhas da atividade coletiva. A derivação de nossos significados enfatiza e estabiliza o aspecto das coisas que é relevante para a atividade e encobre, no interesse da ação coletiva, o processo perpetuamente fluido, subjacente a toda as coisas. Exclui as outras organizações configuracionais que tendem a direções diferentes. Cada conceito representa uma espécie de tabu contra outras possíveis fontes de significado — simplificando e unificando, em benefício da ação, a multiplicidade da vida. Não é improvável que a visão das coisas formalizadora e funcionalizadora somente se tenha tornado possível, em nossos dias, por já estarem os tabus anteriormente dominantes, que fizeram o homem impermeável a significados derivados de outras fontes, perdendo sua força após a derrocada do monopólio intelectual da igreja. Nestas circunstâncias, veio gradativamente surgindo, para cada grupo opositor, a oportunidade de revelar abertamente ao mundo os significados contraditórios que correspondiam à sua compreensão do mundo peculiarmente concebida. O que era rei para um, era tirano para outro. Já se tinha assinalado, entretanto, que um número demasiado de fontes conflitantes, de onde derivem, numa mesma sociedade, os significados referentes a um dado objetivo, conduz, afinal à dissolução de todos os sistemas de significado. Em tal sociedade, dividida internamente quanto a todo sistema concreto de significado, somente se pode estabelecer um consenso quanto aos elementos formalizados do objeto (por exemplo, a definição de monarca que reza: “O monarca é aquele que, aos olhos de uma maioria de pessoas em um país, possui legalmente o direito de exercer o poder absoluto”). Em definições deste e de tipo similares tudo que há de substancial, toda avaliação para a qual não mais se encontra um consenso, é reinterpretada em termos funcionais.

Voltando então à nossa discussão das origens da Psicologia moderna, que toma o sujeito como o ponto de partida, vemos agora claramente que a dificuldade original, que deveria ser resolvida através do recurso e da concentração no sujeito, não foi dessa forma contornada. É verdade que grande parte do que é novo foi descoberta dos novos métodos empíricos. Eles nos habilitaram a penetrar na gênese psíquica de muitos fenômenos culturais, mas as respostas adiantadas desviaram nossa atenção da questão fundamental, concernente à existência da mente na ordem da realidade. Em particular, perdeu-se, pela funcionalização e mecanização dos fenômenos psíquicos, a unidade da mente bem como a da pessoa. Uma Psicologia sem uma psique não pode tomar o lugar de uma Ontologia. Tal Psicologia era ela própria o resultado do fato de que os homens estivessem tentando pensar em termos de um quadro de categorias que procurava negar toda avaliação, todo traço de significado comum, ou de configuração total. O que pode ser valioso como uma hipótese de pesquisa para uma disciplina especializada pode, entretanto, ser fatal para a conduta dos sêres humanos. A incerteza quanto a se contar com a Psicologia científica na vida prática se torna óbvia tão logo um pedagogo ou um líder político nela busque orientação. A impressão a que se chega, neste momento, é que a Psicologia existe noutro mundo, registrando suas observações de cidadãos que vivem em alguma outra sociedade que não a nossa. Esta forma de experiência do homem moderno, que, devido a uma divisão do trabalho altamente diferenciada, tende à falta de direção, encontra sua contrapartida na falta de raízes de uma Psicologia cujas categorias não nos permitem, sequer, meditar sobre os mais simples processos vitais. Que esta Psicologia constitua efetivamente uma incapacidade treinada para lidar com os problemas da mente responde pelo fato de que não forneça um esteio para os seres humanos em sua vida diária. Assim, duas tendências fundamentalmente diferentes caracterizam a Psicologia moderna. Ambas tornaram-se possíveis devido ao mundo medieval — que concedia um único conjunto de significados aos homens do mundo ocidental — estar em processo de dissolução. A primeira é a tendência de buscar por trás de cada significado e de compreendêlo em termos de sua gênese no sujeito (o ponto-de-vista genético). A segunda tendência consiste na tentativa de construir uma espécie de ciência mecânica dos elementos formalizados e despidos de sentido da experiência psíquica (mecânica psíquica). Torna-se aqui evidente que o modelo de pensamento mecanicista não se confina, como se supunha originalmente, ao mundo dos objetos mecânicos. O modelo de pensamento mecanicista representa basicamente uma espécie de primeira aproximação aos objetos em geral. Aqui, o objetivo não é uma compreensão exata das peculiaridades qualitativas e das constelações únicas, mas antes, a determinação das mais óbvias regularidades e princípios de ordenação, obtidos dentre elementos simplificados e formalizados. Reconstituímos em detalhe o método por último mencionado e vimos como o método mecanicista, apesar das realizações concretas de que lhe somos devedores, tem, sob o ponto-de-vista da orientação e da conduta de vida, contribuído em muito para a geral insegurança do homem moderno. O homem atuante precisa saber quem é, e a ontologia da vida psíquica preenche uma certa função quanto à ação. Na medida em que a Psicologia Mecanicista e seu paralelo na vida efetiva, o ímpeto social em direção à mecanização onienvolvente, negavam estes valores ontológicos, destruíam um elemento importante na auto orientação dos sêres humanos em sua vida cotidiana.

Gostaríamos agora de nos dedicar à abordagem genética. Devemos indicar aqui, inicialmente, que o ponto-de-vista genético, que se liga à abordagem psicológica, tem contribuído de muitas maneiras para uma compreensão mais profunda da vida no sentido acima indicado. Os expoentes dogmáticos da Lógica e da Filosofia clássicas se acostumaram a sustentar que a gênese de uma ideia nada tem a dizer com relação à sua validade ou significado. Evocam sempre o repetido exemplo a propósito de que nosso conhecimento da vida de Pitágoras e de seus conflitos internos, etc., é de pouco valor para a compreensão das proposições pitagóricas. Não acredito, entretanto, que se possa manter este raciocínio para todas as realizações intelectuais. Acredito que, do ponto-de-vista da interpretação estrita, somos infinitamente enriquecidos quando tentamos compreender a sentença bíblica, “Os últimos serão os primeiros”, como a expressão psíquica da revolta dos estratos oprimidos. Acredito que a compreenderemos melhor se, como Nietzsche e outros nos indicaram de várias formas, considerarmos e tomarmos conhecimento da significação do ressentimento na formação de juízos morais. Neste caso, por exemplo, se poderia dizer, quanto ao cristianismo, que foi o ressentimento que deu coragem aos estratos inferiores para se emanciparem, pelo menos fisicamente, da dominação de um sistema de valores injusto e para estabelecerem os seus em oposição a estes. Não pretendemos aqui levantar a questão relativa a se podemos, com o auxílio desta análise psicogenética, que trata da função geradora de valor do ressentimento, decidir se os cristãos ou as classes dominantes romanas estavam com a razão. Em todo caso, tal análise nos dá mais profundamente compreensão do significado da sentença. Não é irrelevante para o seu entendimento saber que a frase não foi lançada por qualquer pessoa em geral, nem era endereçada aos homens em geral, mas, pelo contrário, tinha um real apelo somente para aqueles que, como os cristãos, eram de alguma forma oprimidos e que, ao mesmo tempo, sob o impulso do ressentimento, desejavam libertar-se das injustiças vigentes. A interconexão entre a gênese psíquica, a motivação que conduz ao significado, e o próprio significado, difere, no caso citado, da que se dá nas proposições pitagóricas. Os exemplos especialmente elaborados, que os lógicos aduzem, podem, sob certas circunstâncias, fazer que as pessoas se tornem não-receptíveis às diferenças mais profundas entre um e outro significados, podendo levar a generalizações que obscurecem relações relevantes. A abordagem psicogenética pode portanto contribuir na grande maioria dos casos para um mais profundo entendimento do significado, sempre que nos preocupamos não com as in- ter-relações mais abstratas e formais, mas, antes, com os significados, cuja motivação pode ser simpaticamente experimentada, ou com um complexo de conduta significativa, que pode ser compreendida em termos de sua estrutura motivacional ou de seu contexto de experiência. Assim, por exemplo, quando eu souber o que um homem foi quando criança, quais os conflitos sérios que experimentou, em que situações ocorreram e como os resolveu, saberei mais a seu respeito do que se tivesse meramente uns poucos detalhes estéreis de sua história de vida exterior. Saberei em que contexto6 se produziu nele a inovação, à luz do qual se terá de interpretar cada detalhe de sua experiência. O grande mérito do método psicogenético é ter destruído a concepção mecânica anterior que tratava as normas e valores culturais como coisas materiais. Quando confrontado com um texto sacro, o método genético substituiu a obediência formalmente aquiescente a uma norma pela apreciação viva do processo pelo qual os valores e normas culturais surgem inicialmente, e com o qual eles devem manter-se em contato contínuo a fim de que sempre possam ser renovadamente interpretados e dominados. Assim, demonstrou-se que a vida de um fenômeno psíquico é o

próprio fenômeno. O significado da história e da vida está contido em seu vir-a-ser e em seu fluxo. Estas intuições foram inicialmente formuladas pelos românticos e por Hegel, mas, desde então, tiveram de ser repetidamente redescobertas. Havia, entretanto, desde o início, uma dupla limitação a este conceito de gênese psíquica na medida em que gradualmente se desenvolveu, penetrando nas Ciências Culturais (tais como a história das religiões, a história literária, a história da arte, etc.); e esta limitação ameaçava tornar-se com o tempo uma restrição definitiva quanto ao valor desta abordagem. A limitação mais essencial da abordagem psicogenética é a importante observação de que se tem de compreender cada significado à luz de sua gênese e no contexto original da experiência de vida que forma seu background. Mas esta observação contém em si a danosa restrição de que esta abordagem só se aplica em termos individuais. Na maioria dos casos, tem-se buscado a gênese de um significado no contexto individual de vivência ao invés de em seu contexto coletivo. Assim, por exemplo, quem tivesse alguma ideia a considerar (vamos tomar o caso mencionado acima da transformação de uma hierarquia de valores morais como vem expressa na frase: “Os últimos serão os primeiros”) e quisesse explicá-la geneticamente, iria apegar-se à biografia individual do autor e tentaria compreender tal ideia tomando unicamente como base os acontecimentos e motivações específicos da história pessoal do autor. É claro que muito se pode fazer com esse método, pois assim como as experiências que verdadeiramente me motivam encontram sua fonte e local originais em minha própria história de vida, assim também a história de vida do autor é o local de suas experiências. Mas é igualmente claro que, embora possa ser suficiente para a explicação genética de um modo de comportamento bastante específico o retornar ao período anterior da história de um indivíduo (a exemplo do que faria a Psicanálise que, partindo das experiências da infância, explica os sintomas de posteriores desenvolvimentos do caráter), não basta para um modo de comportamento de relevância social — tal como a transmutação de valores que transforma todo o sistema de vida de uma sociedade em todas as suas ramificações — a preocupação com a história de vida puramente individual, e sua análise. A transmutação acima indicada tem suas raízes basicamente em uma situação de grupo, na qual centenas e milhares de pessoas participam, cada uma à sua maneira, na subversão da sociedade existente. Cada uma destas pessoas prepara e executa esta transmutação, no sentido de que atua de uma maneira nova em um complexo total de situações de vida que lhe vão de encontro. O método genético de explicação, ainda que atinja suficiente profundidade, não pode, a longo prazo, limitar-se à história de vida individual, mas deve unir elementos até atingir finalmente a interdependência da história de vida e da situação de grupo mais inclusiva. Pois a história de vida individual é apenas um dos componentes de uma série de histórias de vida mutuamente interligadas, que têm seu tema comum na citada subversão; a nova motivação particular de um só indivíduo é parte de um complexo motivacional do qual, de várias maneiras, muitas pessoas participam. Constituiu mérito, do ponto-de-vista sociológico, estabelecer, ao lado da gênese individual do significado, a gênese do contexto da vida de grupo. Os dois métodos de se estudar fenômenos culturais aqui considerados, o epistemológico e o psicológico, tinham em comum uma tentativa de explicar o significado a partir de sua gênese no sujeito. O que importa neste caso não é tanto se pensavam no indivíduo concreto ou em uma mente genérica em si, mas que, em ambos os casos, se

concebia a mente individual como separada do grupo. Dessa forma fizeram, sem que o quisessem, falsas assumpções quanto aos problemas fundamentais da Epistemologia e da Psicologia, assumpções que a abordagem sociológica teve de corrigir. O mais importante a respeito desta última é que põe um fim à ficção do desligamento do indivíduo do grupo, dentro de cuja matriz o indivíduo pensa e tem experiências. A ficção do indivíduo isolado e autossuficiente está subjacente, em várias formas, à Epistemologia individualista e à Psicologia genética. A Epistemologia trabalhou com este indivíduo isolado e autossuficiente como se, desde o início, ele possuísse em essência todas as capacidades características aos sêres humanos, inclusive a do conhecimento puro, e como se ele produzisse seu conhecimento do mundo a partir apenas de si mesmo, através de mera justaposição ao mundo exterior. Similarmente, na Psicologia evolutiva individualista, o indivíduo passa necessariamente por certos estágios de desenvolvimento no decorrer dos quais o ambiente físico e social externo não tem outra função senão a de liberar estas capacidades pré-formadas. Ambas as teorias cresceram do solo de um individualismo teórico exacerbado (tal como o que se pode encontrar no período da Renascença e do liberalismo individualista) que somente poderia produzir-se em uma situação social em que se tivesse perdido de vista a conexão original entre o indivíduo e o grupo. Em tais situações sociais, frequentemente acontece que o observador perca de vista o papel da sociedade na formação do indivíduo, a ponto de derivar a maioria dos traços, que evidentemente somente são possíveis como resultado da vida em comum e da interação entre os indivíduos, da natureza original do indivíduo ou do embrião gerador. (Opomo-nos a esta ficção não a partir de algum ponto-de-vista filosófico último, mas simplesmente porque ela introduz dados incorretos no quadro da gênese do conhecimento e da experiência). Realmente, longe está de ser correto pretender-se que um indivíduo de capacidades absolutas mais ou menos rígidas confronte o mundo e que, buscando a verdade, construa uma visão de mundo a partir dos dados de sua experiência. Tampouco podemos acreditar que ele então compare sua visão de mundo com a de outros indivíduos, que adquiriram as suas de uma forma similarmente independente, e, numa espécie de discussão, a visão de mundo verdadeira venha a luz e seja aceita pelos demais. Ao contrário, é muito mais correto dizer-se que o conhecimento é, desde o primeiro momento, um processo cooperativo de vida de grupo, no qual cada pessoa desdobra seu conhecimento no interior do quadro de um destino comum, de uma atividade comum e da superação de dificuldades comuns (em que, entretanto, cada um enfrenta-se com uma parte diferente). Em conformidade com isso, os produtos do processo cognitivo já estão, pelo menos em parte, diferenciados, porque nem todos os aspectos possíveis do mundo se acham ao alcance dos membros de um grupo, mas apenas aqueles de que surgem dificuldades e problemas para o grupo. E mesmo esse mundo comum (não partilhado da mesma forma por quaisquer outros grupos estranhos) aparece diferentemente aos grupos subordinados dentro de um grupo maior. Aparece diferentemente porque os grupos e estratos subordinados numa sociedade funcionalmente diferenciada têm uma abordagem experimental diferente em relação aos conteúdos comuns dos objetos de seu mundo. No domínio intelectual sobre os problemas da vida, cabem a cada um segmentos diferentes, com os quais cada um lida bastante diferentemente, de acordo com os seus interesses vitais. O grau em que a concepção individualista do problema do conhecimento fornece uma descrição falsa do conhecimento coletivo corresponde ao que ocorreria se a técnica, modo de trabalho e a produtividade de uma fábrica internamente altamente

especializada, de 2.000 operários, fossem considerados como se cada um dos 2.000 operários trabalhasse em um cubículo separado, executasse por si só as mesmas operações, e por si só elaborasse cada produto individual, do início ao fim. Na realidade, é claro, os operários não fazem as mesmas coisas de forma paralela, mas, pelo contrário, através de uma divisão de funções, coletivamente elaboram o produto total. Vamo-nos indagar por um momento o que está faltando, na teoria antiga, quanto ao caso desta reinterpretação individualista de um processo de trabalho e realização coletivos. Em primeiro lugar, não se considerou o quadro que, em uma divisão real do trabalho, determina o caráter do trabalho de cada indivíduo, desde o presidente do conselho diretor até o menos importante aprendiz e que integra em uma maneira inteligente a natureza de cada produto parcial elaborado pelo operário individual. A omissão em observar o caráter social do conhecedor e do experimentar não era devida, principalmente, como muitos acreditam, a que não se considerava o papel da “massa” e superestimava o do grande homem. Antes, deve-se buscar sua explicação no fato de que jamais se analisou e apreciou o nexo social original, onde cada experiência e percepção individuais, no grupo, se nutre e se desenvolve.7 Esta interdependência original dos elementos do processo vital, que é análoga mas não idêntica à divisão do trabalho, difere, em uma sociedade agrária, do que é no mundo urbano. Além disso, no interior deste último, os diferentes grupos participantes da vida urbana têm, em qualquer tempo, problemas cognitivos diferentes e chegam a suas experiências através de caminhos diferentes, mesmo com relação a exatamente os mesmos objetos. Somente quando se introduz na abordagem genética, e isso desde o início, o pontode-vista segundo o qual um grupo de 2.000 pessoas não percebe a mesma coisa 2.000 vezes, mas que, de acordo com a articulação interna da vida grupai e com as várias funções e interesses, surgem subgrupos que agem e pensam coletivamente um com ou contra outro — somente quando vemos as coisas sob este ângulo é que podemos atingir uma compreensão de como, na mesma sociedade inclusiva, podem surgir significados diversos devidos às divergentes origens sociais dos diferentes membros da sociedade como um todo. Uma distorção inconsciente adicional, cometida pela Epistemologia clássica em sua caracterização da gênese do processo cognitivo, consiste em que ela procede como se o conhecimento surgisse de um ato de contemplação puramente teórica. Neste caso, ela parece elevar um caso marginal ao nível de princípio central. Em regra, o pensamento humano não é motivado por um impulso contemplativo, uma vez que requer uma corrente subterrânea volitiva e emocional inconsciente que assegure, na vida grupai, uma orientação contínua em direção ao conhecimento. Precisamente porque o conhecer é fundamentalmente um conhecer coletivo (o pensamento do indivíduo isolado é apenas um momento específico e um desenvolvimento recente), pressupõe uma comunidade de conhecer, que cresce a partir de uma comunidade de experiência formada no subconsciente. Entretanto, uma vez percebido o fato de que a maior parte do pensamento é erigida sobre uma base de ações coletivas, somos levados a reconhecer a força do inconsciente coletivo. A plena emergência do ponto-de-vista sociológico referente ao conhecimento traz consigo, inevitàvelmente, o descobrimento gradativo do fundamento irracional do conhecimento racional. Encontramos a explicação para que as análises epistemológicas e psicológicas da gênese das ideias só tardiamente deparassem com o fator social no conhecimento do fato de que ambas as disciplinas surgiram na época da forma individualista de sociedade. Elas

adquiriram o quadro de referência de seus problemas em períodos de individualismo e subjetivismo bastante radicais, na época da ordem social medieval em desintegração, e nos primórdios liberais da era capitalista burguesa. Nestes períodos, aqueles que se preocupavam com tais problemas, os intelectuais e as pessoas educadas na sociedade burguesa, achavam-se em circunstâncias em que o caráter original de interconexão da ordem social devia necessariamente estar amplamente invisível para eles. Podiam, pois, e com toda a boa-fé, apresentar o conhecimento e a experiência como fenômenos tipicamente individuais. Tanto mais que somente tinham em mente o segmento da realidade que se referia às minorias dominantes e que se caracterizava pela competição entre os indivíduos, os acontecimentos sociais podiam aparecer como se os indivíduos autônomos tivessem em si mesmos a iniciativa para agir e conhecer. Vista deste segmento social, a sociedade aparecia como se fosse apenas uma multiplicidade complexa e incalculável de atos individuais espontâneos de fazer e conhecer. Este caráter extremamente individualista não se dá nem mesmo na assim chamada estrutura social liberal, encarada como um todo, na medida em que também aqui a iniciativa relativamente livre da liderança dos indivíduos, tanto na ação como no conhecimento, é dirigida e guiada pelas circunstâncias da vida social e pelas tarefas por elas apresentadas. (Assim, também aqui vamos encontrar uma interconexão social velada, subjacente à iniciativa individual.) Por outro lado, é indubitàvelmente verdadeiro que há estruturas sociais nas quais existe a possibilidade, para certos estratos (devido à área maior de atuação da livre competição), de possuir um maior grau de individualização em seu pensamento e conduta. Seria, entretanto, incorreto definir a natureza do pensamento em geral com base nesta situação histórica especial em que se permitiu a um modo de pensar relativamente individualizado desenvolver-se em condições excepcionais. Seria forçar os fatos históricos encarar-se esta condição excepcional como se fosse a característica axiomática da Psicologia do Pensamento e da Epistemologia. Não conseguiremos atingir uma Psicologia e uma teoria do conhecimento inteiramente adequadas, enquanto nossa Epistemologia deixar, desde o início, de reconhecer o caráter social do conhecer e não encarar o pensar individualizado como apenas um momento excepcional. Também neste caso não se trata, obviamente, de acidente, que o ponto-de-vista sociológico somente em data relativamente recente se tenha somado aos demais. Nem é por acaso que a perspectiva que realiza a união das esferas social e cognitiva venha emergir em uma época em que o empenho máximo da humanidade mais uma vez consiste na tentativa de se contrapor à tendência de uma sociedade individualista não-dirigida, que se aproxima da anarquia, com um tipo mais orgânico de ordem social. Em tal situação, deve surgir um senso generalizado de interdependência — da interdependência que liga a experiência isolada ao caudal de experiência dos indivíduos isolados, e estas, por sua vez, à contextura da comunidade mais ampla de experiência e de atividade. Assim, também a teoria do conhecimento recentemente surgida é uma tentativa de se tomar em consideração o enraizamento do conhecimento na textura social. Nela põe-se em atuação uma nova espécie de orientação de vida, buscando sustar a alienação e a desorganização que emergiram do exagêro da atitude individualista e mecanicista. Os modos epistemológico, psicológico e sociológico de enunciar problemas são as três mais importantes formas de investigar e levantar questões sobre a natureza do processo cognitivo. Procuramos apresentá-los de tal forma que parecessem como partes de uma situação unitária, emergindo, uma após outra,

em uma sequência necessária, e se interpenetrando mutuamente. Dessa forma, proporcionam a base das reflexões do presente livro.

4. O contrôle do inconsciente coletivo como um problema de nossa época A emergência do problema da multiplicidade de estilos de pensamento surgida no decorrer do desenvolvimento científico e a perceptibilidade de motivações do inconsciente coletivo, anteriormente veladas, é apenas um dos aspectos da preponderância da inquietação intelectual que caracteriza nossa época. Apesar da difusão democrática do conhecimento, os problemas filosóficos, psicológicos e sociológicos por nós apresentados têm sido confinados a uma minoria intelectual relativamente pequena. Esta inquietação intelectual veio gradativamente sendo encarada, por tal minoria, como um seu privilégio profissional, e seria considerada como preocupação privada destes grupos se todos os estratos não tivessem, com o crescimento da democracia, sido atraídos à discussão política e filosófica. A exposição precedente já demonstrou, entretanto, que as raízes da discussão encetada pelos intelectuais se introduziram profundamente na situação da sociedade como um todo. Em muitos aspectos, seus problemas nada mais eram que a intensificação sublimada e o refinamento racional de uma crise intelectual e social que, no fundo, abarcava a sociedade inteira. A derrocada da visão de mundo objetiva, garantida na Idade Média pela Igreja, refletiu-se até nas mentes mais simples. O que os filósofos disputavam com uma terminologia racional era experimentado pelas massas na forma de conflito religioso. Quando muitas igrejas substituíram o sistema doutrinal único, garantido pela revelação, com o auxílio da qual se podiam explicar todas as coisas essenciais em um mundo agrário estático — quando surgiram vários setores pequenos onde havia anteriormente uma religião mundial, as mentes dos homens simples se viram afetadas por tensões similares às que os intelectuais experimentavam no nível filosófico em termos da coexistência de numerosas teorias de realidade e de conhecimento. Nos primórdios dos tempos modernos, o movimento protestante estabeleceu, no lugar da salvação revelada, garantida pela instituição objetiva da Igreja, a noção da certeza subjetiva da salvação. À luz desta doutrina, acreditava-se que cada pessoa deveria, de acordo com a sua própria consciência subjetiva, decidir se sua conduta era agradável a Deus e se levava à salvação. Assim, o protestantismo tornou subjetivo um critério que até então tinha sido objetivo, atitude paralela ao que fazia a Epistemologia moderna ao abandonar uma ordem de existência objetivamente garantida pelo sujeito individual. Não há que percorrer grande distância da doutrina da certeza subjetiva de salvação até ao ponto-de-vista psicológico, em que a observação do processo psíquico, transformada em verdadeira curiosidade, se torna gradativamente mais importante do que o apego aos critérios de salvação que os homens antigamente buscavam descobrir em suas próprias almas. Tampouco conduzia à crença pública em uma ordenação de mundo objetiva, quando a maioria dos Estados políticos tentavam, na época do absolutismo esclarecido, enfraquecer a Igreja por meios que haviam tomado à própria Igreja, isto é, através da tentativa de substituir a interpretação objetiva do mundo garantida pela Igreja por outra,

garantida pelo Estado. Assim fazendo, fortalecia a causa do Iluminismo que era, ao mesmo tempo, uma das armas da burguesia ascendente. Tanto o Estado moderno quanto a burguesia lograram sucesso, à medida em que a visão de mundo naturalista e racionalista ia cada vez mais deslocando a religiosa. Não obstante, isto ocorreu sem que os estratos mais largos fossem atingidos por aquela plenitude de conhecimento requerida pelo pensamento racional. Além do mais, esta difusão da visão de inundo racionalista era realizada, sem que se trouxesse os estratos nela implicados a uma posição social que permitisse uma individualização das formas de viver e pensar. Entretanto, sem uma situação social de vida impelindo e tendendo para a individualização, um modo de vida despido de mitos coletivos se torna dificilmente suportável. O comerciante, o empresário, o intelectual, cada um a seu modo ocupa uma posição que requer decisões racionais relativas às tarefas ditadas pela vida cotidiana. Para tomar tais decisões, sempre é necessário que o indivíduo liberte seus juízos dos juízos dos outros e medite certas possibilidades de uma maneira racional, do ponto- -de-vista de seus próprios interesses. Isto não acontece com os camponeses do tipo antigo, nem com a massa recentemente surgida de subordinados trabalhadores white-collars, que detêm posições que requerem pouca iniciativa e nenhuma previsibilidade de tipo especulativo. Seus modos de comportamento são em certa medida regulados com base em mitos, tradições ou obediência massiva ao líder. Homens que não são treinados em sua vida cotidiana por ocupações que os conduzam à individualização, no tomar suas próprias decisões, a saber, de seu ponto-devista pessoal, o que é certo e o que é errado, que jamais têm ocasião de analisar as situações em seus elementos e que, ainda, não desenvolvem uma autoconsciência que se manterá firme mesmo quando o indivíduo é separado do modo de juízo peculiar a seu grupo, e precisa pensar por si mesmo — tais indivíduos não estarão em condições, mesmo na esfera religiosa, de suportar crises internas tão graves quanto o ceticismo. Vida em termos de equilíbrio interno a ser sempre conquistado de novo é o elemento essencialmente original que o homem moderno precisa, ao nível da individualização, elaborar para si mesmo, se pretende viver com base na racionalidade do Iluminismo. Uma sociedade que, na sua divisão do trabalho e diferenciação funcional, não possa oferecer a cada indivíduo um conjunto de problemas e campo de atuação em que se possa exercitar plena iniciativa e discernimento individual, não pode igualmente realizar uma Weltanschauung individualista e racionalista penetrante, que possa aspirar a se tornar uma realidade social efetiva. Embora fosse falso acreditar — como os intelectuais tendem facilmente a fazer — que os séculos do Iluminismo realmente tivessem fundamentalmente transformado a plebe, uma vez que a religião, mesmo considerada enfraquecida, ainda permaneceu sob a forma de modos de experiência de rito, culto, devoção e êxtase, seu impacto foi, não obstante, suficientemente forte para abalar grandemente a visão de mundo religiosa. As formas de pensamento características da sociedade industrial gradativamente penetraram naquelas áreas que tinham qualquer contato com a indústria, eliminando, mais cedo ou mais tarde, um após outro, os elementos da explicação religiosa do mundo. O Estado absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas a consecução de sua própria interpretação do mundo, deu um passo que, com a democratização da sociedade, posteriormente tendeu, cada vez mais, para a abertura de um precedente. Mostrou que a política era capaz de usar sua concepção do mundo como uma arma e que a política não era apenas uma luta pelo poder, mas veio realmente a se tornar pela primeira vez significativa

quando, enfim, infundiu em seus objetivos uma espécie de filosofia política com uma concepção política do mundo. Bem podemos dispensar o delineamento detalhado do quadro de como, com a democratização progressiva, não só o Estado, mas também os partidos políticos buscaram dotar seus conflitos de fundamentos e sistematização filosóficos. Primeiro, o liberalismo, depois, seguindo hesitantemente o seu exemplo, o conservadorismo, e, finalmente, o socialismo, todos fizeram de seus objetivos políticos um credo filosófico, uma visão de mundo com métodos de pensamento bem fundados e conclusões prescritas. Assim, à ruptura da visão de mundo religiosa veio somar-se o fracionamento das visões políticas. Mas enquanto as Igrejas e seitas conduziam suas batalhas com artigos de fé irracionais distintos e somente desenvolviam o elemento racional, em última análise, para os membros do clero e do pequeno estrato de intelectuais leigos, os partidos políticos emergentes incorporavam argumentos racionais e, se possível, científicos em seus sistemas de pensamento em um grau muito maior, atribuindo- -lhes muito mais importância. Isto era em parte devido ao posterior aparecimento destes na história, em uma época em que a ciência como tal contava com a maior estima social, e, em parte, ao método pelo qual recrutavam seus funcionários, uma vez que, desde seus primórdios, eram amplamente escolhidos dentre os intelectuais emancipados que anteriormente mencionamos. Estava de acordo com as necessidades de uma sociedade industrial e com as destes estratos intelectuais que eles baseassem suas ações coletivas não em um enunciado sincero de seu credo, mas, antes, em um sistema de ideias racionalmente justificável. O resultado deste amálgama de pensamentos político e científico foi-se aplicar gradativamente, a cada tipo de política, pelo menos nas formas em que se oferecia à aceitação, uma tintura científica, vindo cada tipo de atitude científica a ser, por seu turno, dotado de uma coloração política. Este amálgama teve efeitos negativos e positivos. Facilitou de tal forma a difusão de ideias científicas que estratos cada vez mais amplos, no conjunto de sua existência política, tinham de buscar justificativas teóricas para suas posições. Aprenderam dessa forma — muito embora frequentemente de maneira bastante propagandística — a pensar sobre a sociedade e a política com as categorias da análise científica. Tal amálgama foi igualmente de valia para a ciência social e política, por ganhar maior acesso à realidade, sendo assim dotado de um tema para o enunciado de seus problemas, o qual forneceu um vínculo contínuo entre esta ciência e o campo de realidade com o qual tem de operar, que é a sociedade. As crises e as exigências da vida social ofereceram a matéria empírica, as interpretações sociais e políticas e as hipóteses por meio das quais os acontecimentos se tornaram analisáveis. As teorias de Adam Smith, bem como as de Marx — para se mencionar apenas estes dois — foram elaboradas e desenvolvidas com suas tentativas de interpretar e analisar eventos coletivamente experimentados. O principal risco, no entanto, desta conexão direta entre a teoria e a política reside no fato de que, enquanto o conhecimento tem de manter sempre seu caráter experimental, se deseja fazer justiça a um novo conjunto de fatos, o pensamento dominado pela atitude política não se pode dispor a ser continuamente readaptado a novas experiências. Os partidos políticos, pelo próprio fato de serem organizados, não podem manter elasticidade em seus métodos de pensamento, nem estar preparados para aceitar qualquer resposta que venha a surgir de suas indagações. Estruturalmente, trata-se de corporações públicas e organizações de luta. Por si mesmo, isto já os força a uma orientação dogmática. Quanto

mais os intelectuais se tornam os funcionários de partido, tanto mais perdem a virtude de receptividade e de elasticidade que trouxeram consigo de sua flexível situação anterior. O outro perigo que surge desta aliança entre a ciência e a política é o de que uma crise que afete o pensamento político venha também a se tornar uma crise do pensamento científico. Deste complexo vamo-nos concentrar em apenas um fato que, entretanto, se reveste de significação para a situação contemporânea. A política é um conflito e tende cada vez mais a se tornar uma luta de vida e morte. Quanto mais violento se tornou este conflito, tanto mais firmemente captou as correntes subterrâneas emocionais que anteriormente operavam inconscientemente, e com extrema intensidade, e as forçou ao domínio aberto do consciente. A discussão política possui um caráter fundamentalmente diferente do da discussão acadêmica. Busca não apenas estar com o direito mas, igualmente, demolir a base de existência social e intelectual de seu oponente. Portanto, a discussão política penetra mais profundamente no fundamento existencial do pensamento do que o tipo de discussão que somente pensa em termos de uns poucos “pontos-de-vista” selecionados e somente considera a “relevância teórica” de um argumento. O conflito político, uma vez que é desde o início uma forma racionalizada da luta pela predominância social, ataca o status social do opositor, seu prestígio público e sua autoconfiança. É difícil decidir, nesse caso, se a sublimação ou a substituição da discussão, em lugar das armas mais antigas de conflito, e o uso direto da força e da opressão constituíram realmente um progresso fundamental da vida humana. A repressão física é, na verdade, mais dura de se suportar externamente, mas a vontade de aniquilamento psíquico, que em muitas ocasiões tomou o seu lugar, é talvez ainda mais insuportável. Por conseguinte, não é de admirar que, especialmente nesta esfera, cada refutação teórica seja gradativamente transformada em um ataque muito mais fundamental ao todo da situação de vida do opositor, esperando-se, com a destruição de suas teorias, solapar igualmente sua posição social. Também nada há de surpreendente em que este conflito, onde, desde o início, não somente se leva em conta o que a pessoa disse, como também o grupo de que é porta-voz, e a que ação tinha em vista quando expôs seus argumentos, se visualizasse o pensamento em conexão com o modo de existência a que estava ligado. É verdade que o pensamento sempre tem sido a expressão da vida e da ação grupais (exceto quanto ao pensamento altamente acadêmico, que em dada época era capaz de se isolar da vida ativa). Mas a diferença estava em que, nos conflitos religiosos, as possibilidades teóricas não eram de relevância primordial; ou em que, ao analisar seus adversários, não se chegava a uma análise dos grupos a que seus adversários pertenciam porque, como já vimos, os elementos sociais dos fenômenos intelectuais não se tinham tornado visíveis aos pensadores de uma época individualista. Na discussão política nas democracias modernas, onde as ideias são mais claramente representativas de certos grupos, a determinação social e existencial do pensamento tornou-se mais facilmente perceptível. Em princípio, foi a política que primeiro descobriu o método sociológico no estudo dos fenômenos intelectuais. Foi basicamente nas lutas políticas que os homens pela primeira vez tomaram consciência das motivações coletivas inconscientes que sempre guiaram a direção do pensamento. A discussão política é, desde o início, mais do que argumentação teórica; ela é o desfazer-se de disfarces — o desmascaramento dos motivos inconscientes que ligam a existência em grupo a suas aspirações culturais e a seus argumentos teóricos. Contudo, à medida que a política moderna

empregava em suas batalhas armas teóricas, o processo de desmascaramento penetrava as raízes sociais da teoria. A descoberta de raízes social-situacionais do pensamento adotou, pois, a princípio, a forma de desmascaramento. Em acréscimo à dissolução gradativa da visão de mundo objetiva unitária, que para o homem comum tomou a forma de uma pluralidade de concepções do mundo divergentes, e para os intelectuais se apresentou como a irreconciliável pluralidade de estilos de pensamento, penetrou na mente pública a tendência para desmascarar as motivações situacionais inconscientes do pensamento grupai. Esta intensificação final da crise intelectual pode ser caracterizada pelos dois conceitos do tipo slogan “ideologia e utopia” que devido à sua importância simbólica foram escolhidos para título deste livro. O conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas emergentes do conflito político, que é a de que os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesse a uma situação que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação. Está implícita na palavra “ideologia” a noção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para si como para os demais, estabilizando-a portanto. O conceito de pensar utópico reflete a descoberta oposta à primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, mesmo involuntariamente, somente veem na situação os elementos que tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação existente da sociedade. Eles não estão absolutamente preocupados com o que realmente existe; antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situação existente. Seu pensamento nunca é um diagnóstico da situação; somente pode ser usado como uma orientação para a ação. Na mentalidade utópica, o inconsciente coletivo, guiado pela representação tendencial e pelo desejo de ação, oculta determinados aspectos da realidade. Volta as costas a tudo o que pudesse abalar sua crença ou paralisar seu desejo de mudar as coisas. O inconsciente coletivo e a atividade por ele impelida servem para ocultar — em duas direções — certos aspectos da realidade social. É possível, ademais, como já foi visto, determinar especificamente a fonte e a direção da distorção. É a tarefa deste livro alinhar — nas duas direções indicadas — as fases mais significativas na emergência desta descoberta do papel do inconsciente como aparece na história da ideologia e da utopia. A esta altura, estamos apenas preocupados em delinear o estado mental que decorre destas noções, uma vez que é característico da situação em que êste livro se produziu. A princípio, os partidos que possuíam as novas “armas intelectuais”, o desmascaramento do inconsciente, tinham uma vantagem formidável sobre os seus adversários. Os últimos tornavam-se aterrorizados quando se demonstrava que suas ideias eram, meramente, reflexos destorcidos de sua situação vital, antecipações de seus interesses inconscientes. O mero fato de que pudesse ser convincentemente demonstrado ao adversário que motivações, até então ocultas para ele, estavam atuando, deve tê-lo enchido de terror e despertado, na pessoa que utilizava a arma, um sentimento de maravilhosa superioridade. Era, ao mesmo tempo, a aurora de um nível de consciência que anteriormente

a humanidade havia sempre ocultado de si mesma com a máxima tenacidade. Nem foi por acaso que somente o atacante ousasse esta invasão do inconsciente, enquanto o atacado se via duplamente abatido — primeiro, pelo desnudamento do inconsciente em si, e depois, e em acréscimo, pelo fato de que o inconsciente era desnudado e evidenciado num espírito de inimizade. Pois claro está que se trata de uma considerável diferença se se lida com o inconsciente com propósitos de ajuda e cura ou com propósitos de desmascarar. Hoje em dia, entretanto, já atingimos um estágio em que esta arma de desmascaramento e desnudamento recíprocos das fontes inconscientes da existência intelectual se tornou propriedade não de um grupo entre muitos, mas de todos os grupos Mas, na medida em que vários grupos buscavam destruir a confiança de seus adversários em seu próprio pensar, com esta arma intelectual mais moderna de desmascaramento radical, destruíam igualmente, visto que todas as posições foram sendo gradativamente submetidas à análise, a confiança do homem no pensamento humano em geral. O processo de expor os elementos problemáticos do pensamento, latente desde o colapso da Idade Média, culminou finalmente no colapso d'a confiança no pensamento em geral. Nada existe de acidental, mas, pelo contrário, mais que inevitável é o fato de que cada vez maior número de pessoas se abriga no ceticismo ou no irracionalismo. Duas correntes poderosas seguem aqui juntas, reforçando-se uma à outra com forte pressão: uma, a desaparição de um mundo intelectual unitário com normas e valores fixos; e, outra, o surgimento repentino do inconsciente, anteriormente oculto, à radiosa luz do dia da consciência. O pensamento do homem havia-lhe, desde tempos imemoriais, aparecido como um segmento de sua existência espiritual e não como, meramente, um fato objetivo distinto. A reorientação havia frequentemente significado, no passado, uma mudança no próprio homem. Nestes períodos mais remotos, tratava-se, na maioria das vezes, de um caso de lenta alteração nos valores e normas, de uma transformação gradativa no quadro de referência de onde as ações humanas derivavam sua orientação última. Mas nos tempos modernos, trata-se de algo muito mais profundamente desorganizador. O recurso ao inconsciente tende a escavar o solo de que emergiam os vários pontos-de-vista. Tornam-se expostas as raízes, onde até aqui o pensamento humano se alimentava. Começa a ficar claro para todos nós que não podemos continuar vivendo da mesma maneira, já que conhecemos de nossos motivos inconscientes, da mesma forma que vivíamos quando os ignorávamos. O que experimentamos agora é mais do que uma nova ideia, e as questões que levantamos constituem mais do que um novo problema. O que nos preocupa, neste instante, é a perplexidade básica de nossos dias, que pode ser resumida na sintomática questão: “Como é possível que o homem continue a pensar e a viver em uma época em que os problemas da ideologia e da utopia vêm sendo radicalmente levantados e meditados em todas as suas implicações?” É possível, decerto, escapar a esta situação em que a pluralidade de estilos de pensamento se faz visível, e a existência de motivações coletivas inconscientes é reconhecida, bastando simplesmente que nos furtemos a estes processos. Pode-se buscar abrigo em uma lógica supratemporal, afirmando que a verdade como tal é imaculada, não tendo uma pluralidade de formas nem qualquer conexão com motivações inconscientes. Mas em um mundo em que o problema não é apenas um interessante tema de discussão, mas, antes, uma perplexidade interna, logo surgirá alguém, para sustentar contra estas noções que “nosso problema não é o da verdade em si, mas o nosso pensamento, tal como

o encontramos com seu enraizamento na ação na situação social em motivações inconscientes. Mostre-nos como podemos avançar, partindo de nossas percepções concretas a suas definições absolutas. Não nos fale da verdade em si, mostre-nos o caminho pelo qual o que enunciamos ao impulso de nossa existência social possa alçar-se à esfera em que se transcenda o partidarismo, a fragmentariedade da visão humana, em que a origem social e o predomínio do inconsciente no pensamento conduzam a observações controladas ao invés de ao caos”. Não se atinge o absoluto do pensamento afiançando-se, por meio de um princípio geral, possuí-lo nem começando a anunciar algum ponto-de-vista particular limitado (geralmente o próprio) como suprapartidário e dotado de autoridade. Tampouco temos saída quando somos dirigidos para umas poucas proposições em que o conteúdo é tão formal e abstrato (como na Matemática, na Geometria e na Economia pura) que parecem estar totalmente desvinculados do indivíduo social pensante. Não é a respeito destas proposições que se dá a luta, mas quanto à extensão maior de determinações fatuais, nas quais o homem diagnostica concretamente sua situação individual e social, percebe as interdependências concretas da vida e quando os acontecimentos externos são, pela primeira vez, compreendidos corretamente. A batalha se aviva na referência às proposições para as quais desde o, início se orienta significativamente cada conceito, em que usamos palavras tais como conflito, crise, alienação, insurreição, ressentimento — palavras que não reduzem situações complexas a uma descrição formal, externalizante, que não são capazes de reconstruí-las de novo, e que perderiam seu conteúdo caso se as despisse de sua orientação e de seus elementos valorativos. Já demonstramos em outra passagem que o desenvolvimento da ciência moderna conduziu ao crescimento de uma técnica de pensamento, por meio da qual se excluía tudo o que fosse apenas significativamente inteligível. O behaviorismo levou ao primeiro plano esta tendência à concentração em reações inteiramente perceptíveis do exterior, e procurou construir um mundo de fatos onde somente existem dados mensuráveis e correlações entre séries de fatores, com as quais se poderá prever o grau de probabilidade dos modos de comportamento em dadas condições. É possível, e mesmo provável, que a Sociologia tenha de passar por este estágio em que seus conteúdos sofrerão uma desumanização e formalização mecanicistas, exatamente como aconteceu com a Psicologia, de modo que, na devoção a um ideal de estreita exatidão, nada reste a não ser dados estatísticos, testes, levantamentos etc., e, ao fim de tudo, será excluída toda formulação significativa de um problema. Tudo o que se pode dizer aqui é que esta redução de tudo a uma descritibilidade mensurável ou inventorial é significante como uma tentativa séria de determinar o que seja inambiguamente averiguável e, ainda, de meditar o que acontece com o nosso mundo psíquico e social, quando se o restringe a relações comensuráveis puramente exteriores. Não pode mais restar dúvida alguma de que nenhuma real penetração na realidade social seja possível através desta abordagem. Tomamos como exemplo o fenômeno relativamente simples denotado pelo termo “situação”. O que resta deste termo? Será ele de algum modo inteligível quando for reduzido a uma constelação externa de padrões variados de comportamento reciprocamente relacionados, mas somente visíveis externamente? Por outro lado, é claro que uma situação humana somente pode ser caracterizada quando se leva em consideração as concepções que dela têm os participantes, como experimentam nesta situação suas tensões e como reagem às tensões assim surgidas. Ora, tomemos um ambiente; por exemplo, o ambiente em que existe uma determinada família. Não fazem as normas prevalecentes nesta família e somente inteligíveis por meio de uma interpretação

significativa parte do ambiente, pelo menos tanto quanto a vista ou a mobília da residência? Ainda mais, não se deve considerar esta família, as outras coisas permanecendo iguais, como um ambiente completamente diferente (por exemplo, sob o aspecto da educação das crianças) caso suas normas mudem? Se quisermos compreender um fenômeno concreto tal como a situação ou o conteúdo normativo de um ambiente, jamais será suficiente o esquema puramente mecanicista de abordagem, tendo que ser introduzido, em acréscimo, conceitos adequados para o entendimento de elementos significativos e incomensuráveis. Seria falso, porém, pretender que as relações entre estes elementos se revelariam menos claras e menos perceptíveis do que as que se encontram entre fenômenos puramente mensuráveis. Muito pelo contrário, a interdependência recíproca dos elementos que constituem um acontecimento é muito mais Intimamente compreensível do que a de elementos externos estritamente formalizados. Aqui, assume sua dimensão própria a abordagem que, seguindo Dilthey, eu gostaria de designar como compreensão da interdependência primária da experiência (das verstehende Erfassen des “ursprünglichen Lebenszusammenhanges”)8. Nesta abordagem, pela utilização da técnica da compreensão, a interpenetração funcional recíproca entre as experiências psíquicas e as situações sociais torna-se imediatamente inteligível. Aqui nos confrontamos com um domínio de existência no qual a emergência das reações psíquicas interiores se torna necessariamente evidente, e não é compreensível meramente como o é uma causalidade externa, em termos de grau de probabilidade de sua frequência. Tomemos algumas das observações elaboradas pela Sociologia com a utilização do método de compreensão, considerando a natureza de sua evidência científica. Quando ao se referir à ética das comunidades cristãs primitivas, alguém declarou que esta seria principalmente inteligível em termos de ressentimento dos estratos oprimidos, e quando outros acrescentaram que esta perspectiva ética era totalmente não-política porque correspondia à mentalidade de um estrato que ainda não possuía reais aspirações de domínio (“Dai a César o que é de César”), e quando se disse também que esta ética não é uma ética tribal, mas uma ética mundial, uma vez que cresceu do solo da já então desintegrada estrutura tribal do Império Romano, claro está que estas interconexões entre as situações sociais, de um lado, e, do outro, os modos de comportamento ético-psíquicos não são verdadeiramente mensuráveis, mas, não obstante, podem ser muito mais intensamente penetradas de seu caráter essencial do que se fossem estabelecidos coeficientes de correlação entre os vários fatores. As interconexões são evidentes porque utilizamos uma abordagem compreensiva das interdependências primárias da experiência de que surgiram estas normas. Tornou-se claro que as proposições principais das Ciências Sociais não são mecanicisticamente externas nem formais, nem representam correlações puramente quantitativas, mas, pelo contrário, diagnósticos situacionais, em que geralmente utilizamos os mesmos conceitos e modelos de pensamento concretos que foram criados para fins de atividade na vida real. Claro está, além disso, que cada diagnóstico da ciência social se acha estreitamente ligado às avaliações e orientações inconscientes do observador, e que a auto clarificação crítica das Ciências Sociais está intimamente vinculada à auto clarificação crítica de nossa orientação no mundo cotidiano. Um observador que não esteja fundamentalmente interessado nas raízes sociais das éticas cambiantes do período em que vive, que não medite os problemas da vida social em termos das tensões entre os estratos

sociais, e que não tenha descoberto também o fecundo papel do ressentimento em sua própria experiência, jamais estará em condições d'e observar a fase das éticas cristãs acima descritas, sem se falar de sua capacidade de compreendê-la. Justamente na medida em que participa avaliativamente (simpática ou antagônicamente) na luta pela ascensão dos estratos inferiores, na medida em que valora o ressentimento positiva ou negativamente, é que se torna consciente da significação dinâmica da tensão e ressentimento sociais. “Classe inferior”, “ascensão social” e “ressentimento”, ao invés de serem conceitos formais, são conceitos significativamente orientados. Se fossem formalizados, e as valorações lhe fossem retiradas, o modelo de pensamento característico da situação, no qual é justamente o ressentimento que produz novas e fecundas normas, seria totalmente inconcebível. Quanto mais detidamente se analisa a palavra “ressentimento”, tanto mais claro se torna que este termo aparentemente não-valorador e descritivo de uma atitude está repleto de valorações. Se estas valorações fossem deixadas de lado, a ideia perderia sua concretude. Mais ainda, se o pensador não tivesse interesse em reconstruir o sentimento de ressentimento, a tensão, que permeia a situação acima descrita do cristianismo primitivo, estaria inteiramente inacessível para ele. Assim, também aqui, a vontade orientada para um objetivo é a fonte de compreensão da situação. Para trabalhar nas Ciências Sociais é preciso participar do processo social, mas esta participação na luta do inconsciente coletivo de forma alguma significa que as pessoas dela participantes falsificam os fatos ou os veem incorretamente. Na verdade, pelo contrário, a participação no contexto da vida social é um pressuposto para a compreensão da natureza interna deste contexto de vida. O tipo de participação do pensador determina como este irá formular seus problemas. A não-consideração dos elementos qualitativos e da contenção total da vontade não constitui objetividade, mas, ao invés disso, é a negação da qualidade essencial do objeto. Mas, ao mesmo tempo, o raciocínio inverso de que quanto maior a subjetividade tanto maior a objetividade não é verdadeiro. Nesta esfera se obtém uma singular dinâmica interna dos modos de comportamento em que, pela retenção do élan politique, este élan se sujeita ao controle intelectual. Existe um ponto em que o élan politique colide com algo, após o que retorna a si e passa a submeter-se ao controle crítico. Existe um ponto em que o próprio movimento da vida, principalmente em suas maiores crises, se eleva por sobre si mesmo e se torna consciente de seus próprios limites. É neste ponto que o complexo de problemas da ideologia e utopia se torna o campo de interesse da Sociologia do Conhecimento, e em que o ceticismo e o relativismo, surgidos da destruição e da desvalorização dos objetivos políticos divergentes, se tornam um meio de salvação. Pois o relativismo e o ceticismo acarretam o autocontrole e a autocrítica, levando a uma nova concepção de objetividade. O que parece ser tão insuportável na vida individual — continuar a viver com o inconsciente à mostra — é o pré-requisito histórico da autoconsciência crítica científica. Também na vida pessoal, o autocontrole e a autocorreção somente se desenvolvem quando em nosso impulso vital, originalmente cego, nos defrontamos com um obstáculo que nos faça voltar sobre nós mesmos. No curso desta colisão com as outras formas de existência possíveis, a peculiaridade de nosso próprio modo de vida se nos mostra aparente. Mesmo em nossa vida pessoal somente nos tornamos senhores de nós mesmos quando as motivações inconscientes, de que anteriormente não nos dávamos conta, adentram

repentinamente nosso campo de visão, tornando-se assim acessíveis ao controle consciente. Não é desistindo de sua vontade de ação e colocando suas avaliações em suspenso, mas no confronto e no exame de si mesmo, que o homem consegue objetividade e conquista um self com referência à sua concepção de seu mundo. O critério para este auto esclarecimento é o de que não só o objeto, mas nós mesmos entramos totalmente em nosso campo de visão. Tornamo-nos visíveis para nós mesmos, não apenas vagamente, como um sujeito conhecedor em si, mas em um determinado papel até então escondido, em uma situação até então impenetrável e com motivações de que não tínhamos até então consciência. Em tais momentos, a conexão interna entre nosso papel, nossas motivações e nossos tipos e maneira de experimentar o mundo aparecem-nos repentinamente. Daí o paradoxo subjacente a estas experiências, que é o de que a oportunidade para a relativa emancipação de determinação social aumenta proporcionalmente à percepção desta determinação. As pessoas que mais falam de liberdade humana são as que, na realidade, se encontram mais cegamente sujeitas a determinação social, na medida em que, na maioria dos casos, não suspeitam do profundo grau em que sua conduta é determinada por seus interesses. Ao contrário, é de se notar que exatamente as que insistem na influência inconsciente dos determinantes sociais sobre a conduta é que lutam por superar estes determinantes tanto quanto possível. Elas revelam as motivações inconscientes a fim de fazer daqueles forças que anteriormente as dominavam cada vez mais objetos de decisão racional consciente. Esta ilustração de como a extensão de nosso conhecimento do mundo se acha intimamente relacionada com o crescente autoconhecimento e autocontrole pessoais não é acidental nem periférica. O processo de auto extensão do indivíduo representa um exemplo típico do desdobramento de cada tipo de conhecimento situacionalmente determinado, isto é, de cada tipo de conhecimento que não seja meramente a simples acumulação objetiva de informação sobre os fatos e suas conexões causais, mas que se interesse pela compreensão de uma interdependência interna do processo vital. A interdependência interna só pode ser captada pelo método compreensivo de interpretação, e os estágios desta compreensão do mundo estão ligados, a cada passo, ao processo de auto clarificação. Esta estrutura, de acordo com a qual o auto esclarecimento possibilita a extensão de nosso conhecimento do mundo que nos rodeia, obtém não só autoconhecimento individual, mas é igualmente o critério de auto esclarecimento do grupo. Embora aqui se deva novamente enfatizar que somente os indivíduos são capazes de auto esclarecimento (nada existe de semelhante a uma “mente do povo” e os grupos como um todo são tão incapazes de auto esclarecimento como o são de pensar), há grande diferença entre o indivíduo se tornar consciente das motivações inconscientes bastante específicas que caracterizavam particularmente seu pensamento e atuação anteriores ou tomar consciência daqueles elementos de suas motivações e pontode-vista que o ligavam aos membros de um grupo particular. Constitui-se também em problema a própria questão de se a sequência dos estágios de auto esclarecimento é integralmente uma questão de chance. Estamos inclinados a acreditar que o auto esclarecimento individual ocupa uma posição em um fluxo de auto esclarecimento, cuja fonte social é uma situação comum a diferentes indivíduos. Mas estejamos aqui preocupados quer com o auto esclarecimento de indivíduos, quer com o de grupos, uma coisa é comum a ambos, que é a sua estrutura. A dimensão basicamente fundamental desta estrutura reside em que, na medida em que o mundo se torna um problema, não o faz como um objeto desligado do sujeito, mas, pelo contrário, vai ao

encontro da contextura das experiências deste. A realidade é descoberta pelo modo em que aparece ao sujeito no decorrer de sua auto extensão (quando se estende sua capacidade de experiência e seu horizonte). O que até então ocultávamos de nós mesmos e não integrávamos em nossa Epistemologia é o fato de que o conhecimento difere, nas Ciências Sociais e Políticas, a partir de determinado ponto, do conhecimento formal mecanicista, difere a partir do ponto em que transcende a mera enumeração e correlação de fatos, e se aproxima do modelo do conhecimento situacionalmente determinado a que nos iremos referir várias vezes no presente trabalho. Uma vez tornada evidente a inter-relação entre a ciência social e o pensamento situacionalmente vinculado, como o que se pode encontrar, por exemplo, na orientação política, temos razão em investigar as potencialidades positivas bem como as limitações e os perigos deste tipo de pensar. Além disso, é importante que tomemos como ponto de partida o estado de crise e incerteza em que se revelaram os perigos deste tipo de pensar, bem como as novas possibilidades de autocrítica, por meio da qual se esperava encontrar uma solução. Se abordamos o problema deste ponto de vista, a incerteza que se havia tornado uma aflição cada vez mais insuportável na vida pública passa a ser o solo de onde a ciência social moderna retira intuições inteiramente novas. Estas se agrupam em três tendências principais: a primeira, a tendência para a autocrítica das motivações inconscientes coletivas, na medida em que determinam o pensamento social moderno; a segunda, a tendência para o estabelecimento de um novo tipo de história intelectual, que seja capaz de interpretar as mudanças de ideias relacionando-as às mudanças histórico-sociais; e a terceira, a tendência para a revisão de nossa Epistemologia que até agora não levou suficientemente em conta a natureza social do pensamento. Neste sentido, a Sociologia do Conhecimento é uma sistematização da dúvida que é encontrada, na vida social, sob a forma de insegurança e incerteza vagas. O objetivo deste livro é, por um lado, a formulação teórica mais clara de um mesmo problema sob vários ângulos, e, do outro, a elaboração de um método que, com base em critérios cada vez mais precisos, nos habilite a distinguir e isolar diferentes estilos de pensar e relacioná-los aos grupos de onde surgem. Nada é mais simples do que sustentar que um certo tipo de pensamento é feudal, burguês ou proletário, liberal, socialista ou conservador, enquanto não existir método analítico algum para demonstrá-lo e não se tiver deduzido nenhum critério que proporcione um controle sobre a demonstração. Por conseguinte, a principal tarefa, no atual estágio de pesquisa, é elaborai e concretizar as hipóteses implicadas, de modo a se fazer delas a base de estudos indutivos. Ao mesmo tempo, os segmentos da realidade com que lidamos precisam ser decompostos em fatores de forma bem mais exata do que a anteriormente realizada. Assim, nosso objetivo é o de, primeiro, refinar a análise do significado na esfera do pensamento tão profundamente que se possa superar termos e conceitos fortemente indiferenciados por caracterizações cada vez mais detalhadas e exatas dos vários estilos de pensamento; e, segundo, aperfeiçoar a técnica de' reconstrução da história social ao ponto de se ser capaz de perceber, ao invés de fatos isolados e distantes, a estrutura social como um todo, isto é, a rede das forças sociais em interação de onde surgiram os vários modos de observar e pensar sobre as realidades existentes, que apareceram em diferentes épocas.

Existem possibilidades tão amplas de precisão na combinação entre a análise do significado e o diagnóstico sociológico situacional que com o tempo será possível comparálos com os métodos das Ciências Naturais. Éste método terá em acréscimo a vantagem de não se deixar de lado o domínio do significado, por incontrolável, mas, pelo contrário, fará da interpretação do significado um veículo de precisão.9 Se a técnica interpretativa da Sociologia do Conhecimento conseguisse obter este grau de exatidão, e se, com seu auxílio, a importância da vida social para a atividade intelectual pudesse tornar-se demonstrável através de uma correlação cada vez mais precisa, ela traria igualmente consigo a vantagem de não ser mais preciso, nas Ciências Sociais, renunciar ao tratamento dos problemas mais importantes, com o intuito de ser exato. Porque não se deve negar que o transplante dos métodos da Ciência Natural para as Ciências Sociais conduz gradativamente a uma situação em que não se indaga mais o que se gostaria de saber e o que seria de importância decisiva para o próximo passo do desenvolvimento social, mas em que apenas se tenta lidar com complexos de fatos que são mensuráveis, de acordo com um certo método já existente. Ao invés de tentar-se descobrir o que é mais relevante com o mais elevado grau de precisão possível nas circunstâncias existentes, tende-se em atribuir importância ao que é mensurável meramente porque ocorre ser mensurável. No atual estágio de desenvolvimento ainda estamos longe de ter formulado sem ambiguidades os problemas ligados à teoria da Sociologia do Conhecimento, nem ainda refinamos, até o nível necessário, a análise sociológica do significado. Este sentimento de se estar no início de um movimento, e não no fim, condiciona o modo pelo qual o livro é apresentado. Existem problemas a respeito dos quais não se pode escrever livros- -texto ou sistemas perfeitamente consistentes. São as questões por enquanto ainda não inteiramente percebidas nem totalmente meditadas por uma época. Para tais problemas, os séculos anteriores, sacudidos pelas repercussões da revolução no pensamento e na experiência que se estendeu do século XVI ao século XVIII, inventaram a fórmula do ensaio científico. A técnica dos pensadores daquele período consistia em abordar qualquer problema imediato, que estivesse conscientemente à disposição, e observá-lo por tanto tempo e sob tantos ângulos que, finalmente, por meio de um caso individual acidental, se revelava e se iluminava algum problema marginal do pensamento e da existência. Esta forma de apresentação, uma vez frequentemente comprovada sua valia, serviu de protótipo ao autor quando no presente volume, com exceção da última parte, preferiu empregar a forma de ensaio e não o estilo sistemático de tratamento. Estes estudos constituem tentativas de aplicar uma nova forma de ver as coisas e um novo método de interpretação a vários problemas e conjuntos de fatos. Foram escritos em épocas diferentes e independentemente um do outro e, apesar de se centralizarem em torno de um problema unitário, cada um deles possui seu próprio objetivo intelectual. Esta forma ensaístico-experimental de pensamento explica igualmente por que não se eliminou as repetições e as contradições não foram resolvidas. O motivo pelo qual não se eliminam as repetições foi que a mesma ideia se apresentava em um novo contexto, revelando-se, portanto, sob uma nova luz. As contradições não foram eliminadas por ser convicção do autor que um dado esboço teórico pode frequentemente possuir latentes possibilidades variadas, as quais se deve permitir que encontrem expressão a fim de se poder verdadeiramente apreciar o âmbito da exposição.10 Ainda é sua convicção que frequentemente, em nosso tempo, várias noções derivadas de estilos de pensamento

contraditórios atuam sobre um mesmo pensador. Somente não as notamos, contudo, porque o pensador sistemático oculta cuidadosamente suas contradições, tanto para si mesmo como para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as contradições constituem uma fonte de desconserto, o pensador experimental nelas percebe pontos de partida, em que o caráter fundamentalmente polêmico de nossa situação atual se torna pela primeira vez realmente aberto ao diagnóstico e à investigação. Um breve sumário do conteúdo dos capítulos seguintes deverá proporcionar uma base para que se os analise: A Parte II examina as mudanças mais importantes na concepção de Ideologia, indicando, por um lado, como estas mudanças no significado estão vinculadas às mudanças históricas e sociais, e tentando, por outro lado, demonstrar com exemplos concretos como o mesmo conceito, em diferentes fases de sua história, pode significar, em um momento, uma atitude valorativa e, em outro, uma atitude não-valorativa, e como a própria ontologia do conceito se vê implicada em suas mudanças históricas, que quase passam despercebidas. A Parte III trata do problema da política científica: como é possível uma ciência da política face ao caráter inerentemente ideológico de todo o pensamento? Neste sentido, será feita uma tentativa de se elaborar empiricamente um importante exemplo de uma análise do significado de um conceito, de acordo com as linhas da Sociologia do Conhecimento. Será, por exemplo, demonstrado que os conceitos de Teoria e Prática diferem nos vocabulários de grupos diferentes, e como estas diferenças na utilização de palavras surgem das posições dos diferentes grupos e podem ser compreendidas por uma consideração de suas situações diferentes. A Parte IV trata da “Mentalidade Utópica” e se entrega a uma análise do elemento utópico em nosso pensamento e em nossa experiência. Faz-se uma tentativa d'e indicar, com respeito a apenas uns poucos casos cruciais, quão extensamente as mudanças do elemento utópico em nosso pensamento influenciam o quadro de referência que utilizamos para a ordenação e a avaliação de nossas experiências, e como tais mudanças podem ser referidas aos movimentos sociais. A Parte V oferece um sumário sistemático e as perspectivas da nova disciplina da Sociologia do Conhecimento.

1

Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, vol. I, cap. IV, § 7, Religionssoziologie: Stände, Klassen und Religion (Tübingen, 1925), pags. 267-296.

2

Assim, por exemplo, em nossos dias, o pragmatismo, como se verá mais adiante, quando visto sociologicamente, constitui a legitimação de uma técnica do pensamento e de uma Epistemologia que elevou os critérios da experiência cotidiana ao nível de discussão acadêmica.

3

Sôbre a natureza do pensamento monopolista, cf. K. Mannheim, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”. Relatório apresentado ao VI Congresso da Sociedade Sociológica Alemã em Zurique (Schriften der deutschen Gesellschaft für Soziologie, vol. VI, Tübingen, 1929).

4

Cf. K. Mannheim, “Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie”, Ergänzungsband der Kant-Studien, N.° 57 (Berlim, 1922).

5

Isto pode explicar a grande verdade contida na regulamentação segundo a qual, nos regimes parlamentares, os chefes de gabinete devam ser escolhidos não dentre os efetivos do pessoal administrativo, mas, pelo contrário,

dentre os líderes políticos. O burocrata administrativo, como todo especialista e perito, inclina-se a perder de vista o contexto e o objetivo final de sua ação. Presume-se aqui que a pessoa que encarna a integração livremente formada da vontade coletiva na vida pública — o líder político — pode integrar os meios disponíveis necessários às referidas ações de maneira mais orgânica que o perito administrativo deliberadamente neutralizado em questões de política. Cf. a seção sobre a sociologia do pensamento burocrático, págs. 143 e segs., Parte III. 6

Deve-se notar que o ponto-de-vista genético enfatiza a interdependência em contraste com a abordagem mecanicista que se preocupa com a atomização dos elementos da experiência.

7

Nada é mais fútil que supor que o contraste entre os pontos-de-vista individualista e sociológico seja o mesmo que o existente entre a “grande personalidade” e a “massa”. Nada existe na abordagem sociológica que exclua sua preocupação com a descrição do significado da grande personalidade no processamento social. A distinção real é que o ponto-de-vista individualista, na maioria dos casos, está incapacitado para ver o significado das várias formas de vida social para o desenvolvimento das capacidades individuais, enquanto o ponto-de-vista sociológico busca, desde o início, interpretar a atividade individual em todas as esferas do contexto da experiência grupal.

8

Utilizo aqui a expressão de Dilthey, deixando em aberto a questão de como seu uso do termo difere da utilização acima.

9

O autor tentou elaborar este método de análise sociológica de significados em seu estudo, “Das Konservative Denken: Soziologische Beitràge zum Werden des politisch-historischen Denkens in Deustschland”, Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1927), vol. 57. Neste trabalho tentou analisar tão precisamente quanto possível todos os pensadores importantes de uma única corrente política, quanto a seu estilo de pensamento, mostrando como usavam cada conceito de modo diverso do utilizado pelos outros grupos e como, com a mudança de sua base social, também mudavam seu estilo de pensamento. Enquanto naquele estudo trabalhamos por assim dizer "microscopicamente”, no sentido de que realizamos uma investigação precisa de um setor restrito da história social e intelectual, nos estudos contidos no presente volume usamos uma abordagem que poderia ser denominada “macroscópica”. Procuramos diagnosticar os passos mais importantes na história do complexo ideologia-utopia; ou, em outras palavras, esclarecer os pontos-chave que pareciam críticos quando vistos de uma certa distância. A abordagem macroscópica é a mais fecunda de todas quando, como no caso deste livro, alguém tenta estabelecer os fundamentos de um amplo complexo de problemas; a microscópica, quando alguém procura verificar detalhes de alcance restrito. Basicamente, as duas se completam e devem sempre ser aplicadas de modo alternativo e complementar, O leitor que deseje obter uma visão completa da aplicabilidade da Sociologia do Conhecimento na pesquisa histórica deve buscar referências neste estudo.

10

Neste sentido, deve-se observar como, na segunda parte do presente livro, as chamadas possibilidades relativistas das mesmas ideias, como, na quarta parte, os elementos utópico-ativistas, e, na última, a tendência para uma solução harmoniosa e sintética das mesmas possibilidades, são apresentadas. Na medida em que o método experimental de pensamento se dedica à exploração das várias possibilidades contidas nas ideias geradoras, o ponto acima ilustrado se toma manifesto: que os mesmos “fatos”, sob a influência da vontade e do ponto-de-vista cambiante, podem com frequência conduzir a concepções divergentes da situação total. Entretanto, enquanto uma conexão entre ideias permanecer em processo de crescimento e de transformação, ao invés de se ocultar as possibilidades nela ainda latentes, deve-se submetê-las, em todas as suas variações, ao juízo do leitor.

II. IDEOLOGIA E UTOPIA 1. Definição de conceitos A fim de se compreender a situação atual do pensamento, torna-se necessário começar com os problemas da “ideologia”. Para a maioria das pessoas o termo “ideologia” se acha intimamente ligado a marxismo, associação esta que determina em ampla medida as suas reações ao termo. Sendo assim, precisamos desde logo declarar que, apesar de o marxismo haver contribuído em muito para a colocação inicial do problema, tanto a palavra quanto seu significado se situam na história bem mais remotamente do que o marxismo, e, desde que este surgiu, novos significados da palavra têm emergido, tomando forma independentemente dele. Não existe melhor introdução para o problema do que a análise do significado do termo “ideologia”: temos primeiramente que isolar todos os diferentes matizes de significado aqui combinados em uma pseudo-unidade, e um estabelecimento mais preciso das variações dos significados do conceito, como é usado hoje em dia, preparará o caminho para sua análise sociológica e histórica. Tal análise mostrará que em geral existem dois significados distintos e separáveis do termo “ideologia” — o particular e o total. A concepção particular de ideologia é implicada quando o termo denota estarmos céticos das ideias e representações apresentadas por nosso opositor. Estas são encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situação, cujo reconhecimento não estaria de acordo com seus interesses. Essas distorções variam numa escala que vai desde as mentiras conscientes até os disfarces semiconscientes e dissimulados. Esta concepção de ideologia, que veio gradativamente sendo diferenciada da noção de mentira, encontrada no senso comum, é particular em vários sentidos. Sua particularidade se torna evidente quando é contrastada com a concepção total, mais inclusiva, da ideologia. Referimo-nos aqui à ideologia de uma época ou de um grupo histórico-social concreto, por exemplo, a de uma classe, ocasião em que nos preocupamos com as características e a composição da estrutura total da mente desta época ou deste grupo. Os elementos comuns bem como os específicos a estes dois conceitos são de imediato evidentes. O elemento comum a estas duas concepções parece consistir no fato de que nenhuma delas depende exclusivamente do que foi efetivamente dito pelo opositor para atingir uma compreensão de seu significado real e intenção.1 Ambas se voltam para o sujeito, seja indivíduo ou grupo, procedendo a um entendimento do que foi dito pelo método indireto de analisar as condições sociais do indivíduo ou de seu grupo. As ideias expressadas pelo indivíduo são dessa forma encaradas como funções de sua existência. Isto significa que opiniões, declarações, proposições e sistemas de ideias não são tomados por seu valor aparente, mas são interpretados à luz da situação de vida de quem os expressa. Significa, ainda mais, que o caráter e a situação de vida específicos do sujeito influenciam suas opiniões, percepções e interpretações.

Consequentemente, ambas as concepções da ideologia fazem das chamadas “ideias” uma função de quem as mantém, e de sua posição em seu meio social. Apesar de terem algo em comum, existem igualmente entre elas diferenças relevantes. Destas últimas, mencionaremos apenas as mais importantes: a) Enquanto a concepção particular de ideologia designa como ideologias apenas uma parte dos enunciados do opositor — e isto somente com referência ao seu conteúdo — a concepção total põe em questão a Weltamchauung total do opositor (inclusive seu aparato conceptual), tentando compreender estes conceitos como decorrentes da vida coletiva de que o opositor partilha. b) A concepção particular da ideologia realiza suas análises de ideias em um nível puramente psicológico. Se, por exemplo, pretende-se que um adversário esteja mentindo ou que esteja ocultando ou destorcendo uma dada situação de fato, pressupõe-se, não obstante, que ambos partilham critérios comuns de validade; pressupõe-se, também, que é possível refutar mentiras e desfazer fontes de erro tendo por referência critérios aceitos de validade objetiva comuns a ambos os lados. A suspeita de que um opositor seja vítima de uma ideologia não vai tão longe a ponto de excluí-lo da discussão com base em um quadro de referência teórica comum. Com a concepção total da ideologia, a questão é diferente. Quando a uma época histórica atribuímos um mundo intelectual e a nós mesmos atribuímos outro, ou quando um certo estrato social, historicamente determinado, pensa com categorias diferentes das nossas, não nos estamos referindo a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a modos de experiência e interpretação amplamente diferentes e a sistemas de pensamento fundamentalmente divergentes. Atingimos a um nível teórico ou noológico sempre que consideramos não apenas o conteúdo, mas igualmente a forma, e, mesmo, a estrutura conceptual de um modo de pensamento, como uma função da situação de vida de um pensador. “As categorias econômicas nada mais são do que as expressões teóricas, as abstrações, das relações sociais de produção... Os mesmos homens que estabelecem relações sociais em conformidade com sua produtividade material produzem os princípios, as ideias e as categorias igualmente em conformidade com suas relações sociais.” (Karl Marx, The Poverty of Philosophy, tradução para o inglês da Misère de la Philosophie, com um prefácio de Frederick Engels, traduzido por H. Quelch, Chicago, 1910, pág. 119.) São estas as duas formas de se analisar as afirmações como funções de sua base social; a primeira opera apenas no nível psicológico, a segunda, no nível noológico. c) Correspondendo a esta diferença, a concepção particular da ideologia opera principalmente com uma psicologia de interesses, enquanto a concepção total utiliza uma análise funcional mais formal, sem quaisquer referências a motivações, confinando-se a uma descrição objetiva das diferenças estruturais das mentes operando em contextos sociais diferentes. A primeira pretende que este ou aquele interesse seja a causa de uma dada mentira ou ilusão. A última pressupõe simplesmente que existe uma correspondência entre uma dada situação social e uma dada perspectiva, ponto-de-vista ou massa aperceptiva. Neste caso, embora uma análise das constelações de interesses possa, com frequência, ser necessária, ela nunca o será para estabelecer conexões causais, mas para caracterizar a situação total. Assim, a psicologia de interesses tende a ser substituída por uma análise da correspondência entre a situação por conhecer e as formas de conhecimento.

Uma vez que a concepção particular jamais realmente se afasta do nível psicológico, o ponto de referência em tais análises é sempre o indivíduo. Isto ocorre mesmo quando estamos lidando com grupos, uma vez que todos os fenômenos psíquicos devem ser finalmente referidos às mentes dos indivíduos. É verdade que o termo “ideologia de grupo” aparece frequentemente na linguagem popular. Neste sentido, existência de grupo somente pode significar que um grupo de pessoas, seja por suas reações imediatas a uma mesma situação, seja como resultado de uma interação psíquica direta, reage de forma similar. Em consequência, condicionadas pela mesma situação social estão sujeitas às mesmas ilusões. Se limitarmos nossas observações aos processos mentais que se produzem no indivíduo, encarando-o como o único portador possível de ideologias, jamais conseguiremos captar, em sua totalidade, a estrutura do mundo intelectual de um grupo social, em uma dada situação histórica. Apesar de que este mundo mental como um todo jamais pudesse ter existido sem as experiências e as reações produtivas dos diferentes indivíduos, não se encontrará a estrutura interna de tal mundo em uma mera integração destas experiências individuais. Os membros individuais da classe operária, por exemplo, não experimentam todos os elementos de um horizonte que se poderia chamar de Weltanschauung proletária. Cada indivíduo participa apenas em determinados fragmentos deste sistema de pensamento, cuja totalidade não é de forma alguma a simples soma destas experiências individuais fragmentárias. Sendo uma totalidade, o sistema de pensamento é integrado sistematicamente, e não é um mero ajuntamento casual de experiências fragmentárias dos membros isolados de um grupo. Segue-se, assim, que somente se pode considerar o indivíduo como o portador de uma ideologia, na medida em que lidamos com aquela concepção de ideologia que, por definição, se prende mais aos conteúdos isolados do que à estrutura global de pensamento, encobrindo modos falsos de pensamento e expondo mentiras. Quando utilizamos a concepção total de ideologia, procuramos reconstruir todo o modo de ver de um grupo social, e, neste caso, nem os indivíduos concretos nem o seu somatório abstrato podem ser legitimamente considerados como portadores deste sistema ideológico de pensamento como um todo. O objetivo da análise neste nível é a reconstrução da base teórica sistemática subjacente aos juízos isolados do indivíduo. As análises de ideologias, no sentido particular, que fazem o conteúdo do pensamento individual depender amplamente dos interesses do sujeito, jamais podem realizar esta reconstrução básica do modo de ver total de um grupo social. Podem, no máximo, revelar os aspectos psicológicos coletivos da ideologia, ou conduzir a alguma evolução da psicologia de massa, tratando seja do comportamento diferente do indivíduo na multidão, seja dos resultados da integração na massa das experiência psíquicas de vários indivíduos. E, apesar de que muitas vezes o aspecto psicológico coletivo possa aproximar-se dos problemas da análise ideológica total, ele não responde com exatidão a suas questões. Uma coisa é saber até que ponto minhas atitudes e meus juízos são influenciados e alterados pela coexistência de outros sêres humanos, mas já é outra coisa saber quais sejam as implicações teóricas do meu modo de pensamento idênticas às de meus semelhantes, membros do grupo ou do estrato social. Contentamo-nos, aqui, em meramente colocar a questão sem tentar uma análise integral dos difíceis problemas metodológicos que ela levanta.

2. O conceito de ideologia na perspectiva histórica Assim como as concepções total e particular de ideologia podem ser distinguidas uma da outra com base em suas diferenças de significado, assim também as origens históricas destes dois conceitos podem ser igualmente diferenciadas apesar de que na realidade estejam sempre interligadas. Por enquanto, ainda não possuímos um tratamento histórico adequado do desenvolvimento do conceito de ideologia, para não falar de uma história sociológica das muitas variações2 de seu significado. Mesmo que estivéssemos em condições de empreendê-la, não seria nossa tarefa, devido aos propósitos que temos em mente, escrever uma história dos significados cambiantes do conceito de ideologia. Nosso objetivo é simplesmente apresentar tais fatos a partir das evidências dispersas, de tal forma que exibam mais claramente a distinção entre os dois termos feita no capítulo anterior; e delinear o processo que conduziu gradativamente ao significado refinado e especializado que os termos vieram a possuir. Correspondendo ao duplo significado do termo ideologia, por nós aqui designado como concepções particular e total, existem respectivamente duas correntes distintas de desenvolvimento histórico. A descrença e a suspeita que em toda parte os homens evidenciam por seus adversários, em todos os estágios de desenvolvimento histórico, podem ser encaradas como precursoras imediatas da noção de ideologia. Mas somente quando a descrença do homem para com o homem, mais ou menos evidente em cada estágio da história humana, se torna explícita e reconhecida metodicamente, é que podemos falar propriamente de uma coloração ideológica nas afirmações dos outros. Atingimos este nível quando não mais fazemos os indivíduos pessoalmente responsáveis pelos equívocos que detectamos em suas afirmações, e quando não mais atribuímos o mal que fazem a sua astúcia maliciosa. Somente quando buscamos, mais ou menos conscientemente, descobrir a fonte de sua inverdade em um fator social é que estamos propriamente fazendo uma interpretação ideológica. Começamos a tratar as noções de nossos adversários como ideologias somente quando não mais as consideramos como mentiras calculadas e quando sentimos em seu comportamento total uma insegurança que encaramos como uma função social em que se encontra. A concepção particular de ideologia é, portanto, um fenômeno intermediário entre, num polo, a simples mentira e, no outro, o erro, que é o resultado de um aparato conceptual destorcido e defeituoso. Refere-se a uma esfera de erros de natureza psicológica que, ao invés do engano deliberado, não são intencionais, mas decorrem inevitável e involuntariamente de certos determinantes causais. De acordo com esta interpretação, a teoria dos idola de Bacon pode ser encarada, até certo ponto, como precursora da concepção moderna de ideologia. Os “ídolos” eram “fantasmas” ou “preconcepções”, e, como sabemos, havia os ídolos da tribo, da caverna, do mercado e do teatro. Todos eram fontes de erro, algumas vezes derivados da própria natureza humana, outras de indivíduos particulares. Também podem ser atribuídos à sociedade ou à tradição. Em qualquer caso, constituem obstáculos no caminho do conhecimento verdadeiro.3 Existe, com certeza, alguma ligação entre o moderno termo “ideologia” e o termo que Bacon utilizava, significando uma fonte de erro. Ademais, a compreensão de que a sociedade e a tradição podem tornar-se fontes de erro é uma antecipação direta do ponto-de-vista sociológico.4 Não obstante, não se pode afirmar que

exista uma relação efetiva, que se pudesse acompanhar diretamente através da história do pensamento, entre esta concepção e a concepção moderna de ideologia. É extremamente provável que tenha sido o trato cotidiano com assuntos políticos que, pela primeira vez, deu consciência e senso crítico ao homem face ao elemento ideológico de seu pensamento. Durante a Renascença, entre os concidadãos de Maquiavel, emergiu um novo adágio chamando a atenção para uma observação comum na época — que era a de que o pensamento do palácio é uma coisa, e o da praça pública é outra.5 Isto era uma expressão do crescente grau em que o público ganhava acesso aos segredos da política. Podemos aqui observar o início do processo no decorrer do qual o que antes havia sido apenas uma eclosão ocasional de suspeita e ceticismo, face aos pronunciamentos públicos, evoluiu para uma procura metódica do elemento ideológico em todos eles. A diversidade de formas de pensamento entre os homens é ainda, neste estágio, atribuída a um fator que, sem exagerar o termo indevidamente, poderia ser denominado sociológico. Maquiavel, em sua profunda racionalidade, tomou como tarefa específica relacionar as variações das opiniões dos homens às variações correspondentes em seus interesses. De acordo com sua prescrição de medicina forte para toda subjetividade das partes interessadas em uma controvérsia,6 Maquiavel parecia estar explicitando e estabelecendo como regra geral do pensamento o que estava implícito no adágio de seu tempo. Parece haver uma ligação direta que deste ponto da orientação intelectual do mundo ocidental conduz ao modo racional e calculado de pensamento característico ao período do Iluminismo. A psicologia de interesses parece nascer da mesma fonte. Uma das principais características do método de análise racional do comportamento humano, de que é exemplo a History of England de Hume, era a suposição de que os homens eram dados a “fingir”7 e a enganar seus semelhantes. Encontra-se a mesma característica nos historiadores contemporâneos que operam com a concepção particular de ideologia. Este modo de pensamento se esforçará sempre, em concordância com a psicologia de interesses, por lançar a dúvida sobre a integridade do adversário e denunciar seus motivos. Tal procedimento possui, não obstante, um valor positivo na medida em que estamos interessados, em um caso dado, em descobrir o significado autêntico de uma afirmação que se oculta por trás de uma camuflagem de palavras. Esta tendência “desmistificadora” do pensamento de nossos dias vem-se acentuando bastante,8 muito embora em círculos mais amplos este traço seja considerado indigno e desrespeitoso (e de fato a crítica se verifica enquanto a “desmistificação” seja um fim em si mesma), somos forçados a tal posição intelectual em uma época de transição como a nossa, que torna necessário romper com muitas das tradições e formas antiquadas.

3. Da concepção particular à concepção total de ideologia É preciso lembrar que o desmascaramento que ocorre no nível psicológico não deve ser confundido com o ceticismo mais radical e com a análise crítica mais penetrante e destruidora que se verificam nos níveis ontológico e noológico. Mas não se pode separá-las completamente. As mesmas forças históricas que ocasionam contínuas transformações em uma esfera atuam igualmente sobre a outra. Na primeira, as ilusões psicológicas são constantemente solapadas; na última, as formulações ontológica e lógica surgidas de visões

do mundo e modos de pensamento dados se dissolvem em um conflito entre as partes interessadas. Somente em um mundo em transformação, em que se estejam criando valores, novos fundamentais e destruindo os antigos, pode o conflito intelectual chegar ao ponto em que os antagonistas busquem aniquilar não só as crenças e atitudes específicas um do outro, mas igualmente os fundamentos intelectuais sobre os quais estas crenças e atitudes repousam. Enquanto as partes conflitantes vivessem num mesmo mundo e tentassem representá-lo, ainda que ocupassem polos opostos deste mundo, ou enquanto uma facção feudal combatesse contra outra, seria inconcebível tal destruição mútua mais profunda. Esta profunda desintegração da unidade intelectual só é possível quando os valores básicos dos grupos contendores constituem mundos à parte. A princípio, no decorrer desta desintegração cada vez mais penetrante, a descrença ingênua se transforma em uma noção particular e sistemática de ideologia, que, entretanto, permanece no plano psicológico. Mas, na sequência do processo, ela se estende à esfera noológico-epistemológica. A burguesia ascendente, trazendo consigo um novo conjunto de valores, não se contentava em lhe atribuir um lugar circunscrito dentro da antiga ordem feudal. Ela representava um novo “sistema econômico” (no sentido de Sombart), acompanhado de um novo estilo de pensamento, que finalmente deslocou os modos existentes de interpretar e explicar o mundo. A mesma coisa parece verificar-se igualmente com o proletariado de hoje em dia. Também aqui notamos um conflito entre duas visões econômicas divergentes, entre dois sistemas sociais e, correspondentemente, entre dois estilos de pensamento. Quais foram as etapas na história das ideias que prepararam o caminho para a concepção total da ideologia? Certamente ela não surgiu simplesmente da atitude de descrença que gradativamente deu origem à concepção particular de ideologia. Etapas mais fundamentais tiveram de ser atingidas antes que as numerosas tendências de pensamento, movimentando-se na mesma direção geral, pudessem ser sintetizadas em uma concepção total de ideologia. A Filosofia desempenhou uma parte no processo, mas não a Filosofia em um sentido estreito (como normalmente é concebida), como uma disciplina divorciada do contexto efetivo de vida. Seu papel foi antes o de intérprete último e fundamental do fluxo do mundo contemporâneo. Este cosmo em fluxo deve, por sua vez, ser visto como uma série de conflitos que surgem da natureza da mente e de suas respostas à estrutura continuamente cambiante do mundo. Indicaremos aqui apenas os estágios principais da emergência da concepção total de ideologia nos níveis noológico e ontológico. O primeiro passo significante nesta direção consistiu no desenvolvimento de uma filosofia da consciência. A tese de que a consciência seja uma unidade constituída por elementos coerentes levanta um problema de investigação que, principalmente na Alemanha, tem sido a base de monumentais tentativas de análise. A filosofia da consciência, no lugar de um mundo infinitamente variado e confuso, colocou uma organização da experiência cuja unidade é garantida pela unidade do sujeito que percebe. Isto não implica que o sujeito meramente reflita o padrão estrutural do mundo externo, mas antes que, no decorrer de sua experiência com o mundo, elabore espontaneamente os princípios de organização que o habilitam a compreendê-lo. Depois de demolida a unidade ontológica objetiva do mundo, fez-se a tentativa de substituí-la por uma unidade imposta pelo sujeito que percebe. Em lugar da unidade ontológica e medieval-cristã objetiva do mundo, emergiu a unidade subjetiva do sujeito absoluto do Iluminismo — “a consciência em si”.

Desde então, o mundo enquanto “mundo” somente existe com referência à mente que conhece, e a atividade mental do sujeito determina a forma pela qual o mundo aparece. Isto constitui, de fato, a concepção total embrionária de ideologia, ainda que esteja, por enquanto, despida de suas implicações históricas e sociológicas. Neste estágio, concebe-se o mundo como uma unidade estrutural, e não mais como a pluralidade de acontecimentos esparsos, tal como aparecia durante o período intermediário, quando a ruptura da ordem objetiva parecia trazer o caos. Acha-se relacionado em sua integridade a um sujeito, mas, neste caso, o sujeito não é um indivíduo concreto. Antes se trata de uma fícticia “consciência em si”. Neste ponto-de-vista, particularmente acentuado em Kant, o nível noológico se diferencia nitidamente do psicológico. Este é o primeiro estágio na dissolução de um dogmatismo ontológico que encarava o mundo como existindo independentemente de nós, de uma forma fixa e definitiva. Atinge-se o segundo estágio no desenvolvimento da concepção total de ideologia quando se vê na perspectiva histórica a noção total, mas supratemporal, de ideologia. Esta é principalmente uma realização de Hegel e da escola histórica. Esta última, e Hegel em um grau ainda maior, partem da suposição de que o mundo é uma unidade e é somente concebível com referência a um sujeito conhecedor. E neste ponto se acrescenta à concepção o que, para nós, constitui um elemento original decisivo — a saber, o de que esta unidade está em um processo de contínua transformação histórica e tende a uma constante restauração de seu equilíbrio em níveis sempre mais elevados. Durante o Iluminismo, o sujeito, enquanto portador da unidade de consciência, era visto como uma entidade totalmente abstrata, supratemporal e supra social: “a consciência em si”. Durante este período, o Volksgeist, o “folk spirit” vem a representar os elementos historicamente diferenciados da consciência, que Hegel integra em um “espírito do mundo”. É evidente que a crescente concreção deste tipo de Filosofia resulta da preocupação mais imediata com as ideias surgidas da interação social e da incorporação de correntes histórico-políticas de pensamento ao domínio da Filosofia. Desde então, no entanto, as experiências da vida cotidiana não mais são aceitas por seu valor aparente, sendo meditadas em todas as suas implicações e referidas a seus pressupostos. Deve-se, contudo, notar que a natureza historicamente cambiante da mente foi descoberta não tanto pela Filosofia, mas pela penetração da intuição política na vida cotidiana da época. A reação que se seguiu ao pensamento não-histórico do período da Revolução Francesa revitalizou e deu novo ímpeto à perspectiva histórica. Em última análise, a transição do sujeito genérico, abstrato, unificador do mundo (a “consciência em si”) para o sujeito mais concreto (o “folk spirit” nacionalmente diferenciado) constituiu não tanto uma realização filosófica, mas a expressão de uma transformação na maneira de se reagir ao mundo em todos os campos de experiência. Esta mudança pode ser referida à revolução no sentimento popular durante e após as Guerras Napoleônicas, quando realmente nasceu o sentimento de nacionalidade. O fato de se poder encontrar antecedentes mais remotos tanto para a perspectiva histórica quanto para o Volksgeist não compromete a validade desta observação.9 A última e a mais importante etapa da criação da concepção total de ideologia surgiu igualmente do processo histórico-social. Quando a “classe” tomou o lugar do “folk”

ou da nação, como portadora da consciência historicamente em evolução, aquela mesma tradição teórica, a que já nos referimos, absorveu a noção que, entrementes, crescia através do processo social, a saber — a de que a estrutura da sociedade e suas formas intelectuais correspondentes variam com as relações entre as classes sociais. Assim como em uma época anterior, o “folk spirit” historicamente diferenciado tomou o lugar da “consciência em si”, assim, agora, o conceito de Volksgeist, ainda mais inclusivo, é substituído pelo conceito de consciência de classe, ou mais corretamente ideologia de classe. Dessa forma, o desenvolvimento destas ideias segue um curso dúplice: de um lado, existe um processo de síntese e de integração, pelo qual o conceito de consciência vem a fornecer um centro unitário em um mundo infinitamente variável; do outro, existe uma tentativa de tornar a concepção unitária mais maleável e flexível, tentativa por demais rígida e esquemàticamente formulada no decorrer do processo de síntese. O resultado desta tendência dúplice foi que, ao invés de uma unidade fictícia de uma “consciência em si” intemporal e imutável (que jamais foi efetivamente demonstrada), obtivemos uma concepção que varia de acordo com períodos históricos, nações e classes sociais. No decorrer desta transição, continuamos a nos apegar à unidade de consciência, mas esta unidade é agora dinâmica e em constante processo de transformação. Isto responde pelo fato de que, apesar do abandono da concepção estática de consciência, o crescente corpo de materiais descobertos pela pesquisa histórica não permanece uma massa incoerente e descontinua de acontecimentos isolados. Esta última concepção de consciência proporciona uma perspectiva mais adequada para a compreensão da realidade histórica. Duas consequências decorrem desta concepção de consciência: primeira, percebemos claramente que os assuntos humanos não podem ser compreendidos pelo isolamento de seus elementos. Cada fato e cada acontecimento de um período histórico somente pode ser explicado em termos de significado, e, por seu turno, o significado se refere sempre a outro significado. Assim, a concepção da unidade e da interdependência dos significados de um período está sempre subjacente à interpretação daquele período. Em segundo lugar, este sistema interdependente de significados varia tanto em cada uma de suas partes como em sua totalidade de um período histórico para outro. Assim, a reinterpretação da contínua e coerente mudança de significados torna-se a principal preocupação de nossas Ciências Históricas modernas. Embora tenha provavelmente feito mais do que ninguém, ao enfatizar a necessidade de integração dos vários elementos do significado de uma dada experiência histórica, Hegel procedeu de uma maneira especulativa, ao passo que atingimos um estágio de desenvolvimento que nos possibilita traduzir esta noção construtiva, que nos foi dada pelos filósofos, em pesquisa empírica. O que tem importância para nós é que, se bem que as separamos em nossa análise, as duas correntes que levaram respectivamente às concepções total e particular de ideologia, e que tinham aproximadamente a mesma origem histórica, começam agora a se aproximar mais estreitamente uma da outra. A concepção particular de ideologia se liga à total. Isto se torna claro para o observador da seguinte maneira: a princípio, um adversário, representando uma determinada posição político-social, era acusado de falsificação, consciente ou inconsciente. Agora, a crítica é mais penetrante pelo fato de que, desacreditada a estrutura total de sua consciência, não mais o consideramos capaz de pensar corretamente. Esta simples observação significa, à luz de uma análise estrutural do

pensamento, que nas anteriores tentativas de descobrir as fontes de erro, ao se indicar as raízes pessoais de propensão intelectual, desvendava-se a distorção somente no plano psicológico. A aniquilação é agora mais penetrante visto que a ofensiva se dá no nível noológico, solapando-se a validade das teorias do adversário pela demonstração de que são apenas uma função da situação social geral prevalecente. Neste ponto se atinge um novo e, talvez, o mais decisivo estágio da história dos modos de pensamento. Contudo, torna-se difícil lidar com este desenvolvimento, sem antes analisar algumas de suas implicações fundamentais. A concepção total de ideologia levanta um problema, frequentemente vislumbrado anteriormente, mas que, pela primeira vez, adquire significação mais ampla, vale dizer, o problema de como pode vir surgir algo como a “falsa consciência” (falsches Bewusstsein) — o problema da mente totalmente destorcida que falsifica tudo o que se exponha ao seu alcance. O entendimento de que nosso horizonte total, distinto de seus detalhes, pode ser destorcido empresta à concepção total de ideologia uma significação e uma relevância especiais para a compreensão de nossa vida social. Deste reconhecimento nasce a profunda inquietação que sentimos em nossa presente situação intelectual, mas dele também nasce tudo que ela tem de fecundo e estimulante.

4. Objetividade e subjetivismo A suspeita de que pudesse existir algo como a “falsa consciência”, toda a sua cognição sendo necessariamente errada, e de que a mentira habita a alma, remonta à antiguidade. É de origem religiosa e chegou até nós como parte de nossa antiga herança intelectual. Aparece como problema sempre que a autenticidade de uma inspiração ou visão de um profeta fosse questionada quer por seu povo, quer pelo próprio profeta.10 Tudo indica que encontramos aqui uma ilustração de que uma concepção antiga se encontre subjacente a uma noção epistemológica moderna, existindo a tentação de se dizer que a essência da observação já se achava presente na formulação antiga; o que há de novo é apenas sua forma. Mas também aqui, como em outros pontos, devemos sustentar, em oposição aos que tentam derivar tudo do passado, que a forma moderna adotada pela ideia é muito mais importante do que sua origem. Enquanto, antigamente, a suspeita de que pudesse existir algo como a “falsa consciência” era apenas uma constatação de fatos observados, hoje em dia, trabalhando com métodos analíticos claramente definidos, fomos capazes de realizar uma ofensiva mais fundamental aos problemas da consciência. O que antes era um mero anátema tradicional transformou-se em nossos dias em um procedimento metódico baseado em demonstração científica. De importância ainda maior é a mudança que passaremos a discutir. Desde que o problema se liberou de seu contexto puramente religioso, não só mudaram os métodos de comprovação, de demonstração da falsidade ou da verdade de uma noção, como também se transformou profundamente inclusive a escala de valores pela qual aferimos a verdade e a falsidade, a realidade e a não-realidade. Quando o profeta duvidava da autenticidade de sua visão era porque se sentia abandonado por Deus, e sua inquietação se baseava em uma fonte transcendental de referência. Quando, ao contrário, nós, hoje em dia, nos tornamos céticos sobre nossas ideias, é porque tememos que elas não satisfaçam a algum critério mais secular.

Para determinar a natureza exata do novo critério de realidade que substituiu o critério transcendental, precisamos submeter o significado da palavra “ideologia”, também sob este aspecto, a uma análise histórica mais precisa. Se, no decorrer desta análise, formos levados a tratar da linguagem da vida cotidiana, isto indica simplesmente que a história do pensamento não está confinada apenas aos livros, mas obtém seu significado principal das experiências da vida cotidiana, e mesmo as principais mudanças nas avaliações de esferas diferentes de realidade, tais como aparecem na Filosofia, podem ser eventualmente referidas aos valores cambiantes do mundo cotidiano. A própria palavra “ideologia” não possuía de início nenhuma significação ontológica; não incluía nenhuma decisão quanto ao valor das esferas diferentes de realidade, uma vez que originalmente denotava apenas a teoria das ideias. Os ideólogos,11 eram, como se sabe, os membros de um grupo filosófico na França que, seguindo a tradição de Condillac, rejeitavam a metafísica e buscavam basear as Ciências Culturais em fundamentos antropológicos e psicológicos. A concepção moderna de ideologia nasceu quando Napoleão, achando que este grupo de filósofos se opunha a suas ambições imperialistas, os rotulou desdenhosamente de “ideólogos”. A partir daí, a palavra tomou um significado pejorativo que, assim como a palavra “doutrinário”, reteve até o dia de hoje. Entretanto, investigadas as implicações teóricas deste desdém, iremos descobrir que a atitude depreciativa existente é, no fundo, de natureza epistemológica e ontológica. O que se deprecia é a validade do pensamento do adversário porque é considerado irrealístico. Mas, se indagamos, irrealista com relação a quê? — a resposta seria, irrealista com relação à prática, irrealista quando contrastada com as questões em pauta na arena política. A partir de então, todo pensamento rotulado de “ideologia” é considerado fútil quando vem à prática, devendo-se buscar na atividade prática o único acesso à realidade digno de confiança. Quando aferido por padrões de conduta prática, o mero pensamento ou a reflexão sobre uma dada situação tornam-se triviais. Claro está, portanto, que o novo significado do termo ideologia traz a marca da posição e do ponto-de-vista daqueles que o cunharam, a saber, os homens de ação política. A nova palavra sanciona a experiência específica do político com a realidade,12 e empresta sustentação à irracionalidade prática, que tem tão pouco apreço pelo pensamento como um instrumento para captar a realidade. Durante o século XIX, o termo ideologia, utilizado neste sentido, passou a ter aceitação corrente. Isto significa que o senso de realidade do político passou a preceder e a deslocar os modos escolásticos de pensamento e de vida. Daí em diante o problema implícito no termo ideologia — o que é verdadeiramente real? — jamais desapareceu do horizonte. Mas esta transição precisa ser corretamente entendida. A pergunta relativa ao que constitui a realidade não é de forma alguma original; contudo, o fato de que esta questão viesse a surgir na área de discussão pública (e não apenas em círculos acadêmicos isolados) parece indicar importante modificação. A nova conotação adquirida pela palavra ideologia, ao ser redefinida pelo político em termos de suas experiências, parece evidenciar mudança decisiva na formulação do problema da natureza da realidade. Se, por conseguinte, quisermos fazer frente às demandas decorrentes da necessidade de análise do pensamento moderno, devemos cuidar que uma história sociológica das ideias se preocupe com o

pensamento real da sociedade, e não apenas com os sistemas de ideias pretensamente autossuficientes e que se autoperpetuam, elaborados numa rígida tradição acadêmica. Se, antigamente, o conhecimento errôneo era aferido pelo recurso à sanção divina, que revelava infalivelmente o verdadeiro e o real, ou pela contemplação pura em que se supunha descobrir as ideias verdadeiras, atualmente vai-se buscar o critério de realidade, em primeiro lugar, em uma ontologia derivada da experiência política. A história do conceito de ideologia de Napoleão ao marxismo, a despeito de suas modificações em conteúdo, retém o mesmo critério político de realidade. Este exemplo histórico evidencia, ao mesmo tempo, que o ponto-de-vista pragmático já estava implícito na acusação lançada por Napoleão a seus adversários. De fato, podemos dizer que, para o homem moderno, o pragmatismo se tornou, por assim dizer, em alguns aspectos, o modo de ver apropriado e inevitável, e que, neste caso, a Filosofia simplesmente adotou este modo de ver e a partir dele fez decorrer conclusão lógica. Chamamos a atenção para a nuance de significado dada por Napoleão à palavra ideologia a fim de mostrar, claramente, que o discurso comum contém frequentes vezes mais filosofia e é de maior significação, para a posterior colocação de problemas, do que as controvérsias acadêmicas que tendem a se tornar estéreis por deixarem de tomar conhecimento do mundo externo aos muros acadêmicos.13 Já nos adiantamos um passo em nossa análise, e estamos em condições de suscitar outro aspecto deste problema, referindo-nos ao exemplo há pouco citado, em outro sentido. No conflito com seus críticos, Napoleão era capaz de, como foi visto, em razão de sua posição dominante, desacreditá-los, indicando a natureza ideológica de seu pensamento. Nos estágios mais recentes de seu desenvolvimento a palavra ideologia é usada pelo proletariado como uma arma contra o grupo dominante. Em suma, uma intuição tão reveladora sobre a base do pensamento, como a que oferece a noção de ideologia, não pode permanecer por muito tempo como privilégio exclusivo de uma classe. Mas é precisamente esta expansão e difusão da abordagem ideológica que levam, finalmente, a um ponto em que não é mais possível para um ponto-de-vista e para uma interpretação refutar os demais por serem ideológicos, sem ter que enfrentar essa acusação. Atingimos assim, inadvertidamente, um novo estágio metodológico na análise do pensamento em geral. Houve de fato épocas em que utilizar a análise ideológica para desmascarar as motivações ocultas de seus adversários parecia uma prerrogativa do proletariado militante. O público esquecia rapidamente a origem histórica do termo que acabamos de indicar. Mas não totalmente sem justificação, pois apesar de reconhecida anteriormente esta abordagem crítica ao pensamento foi pela primeira vez enfatizada e desenvolvida metodicamente pelo marxismo. Foi a teoria marxista que por primeiro concretizou a fusão das concepções particular e total de ideologia. Foi esta teoria a que primeiro concedeu a devida ênfase ao papel da posição e dos interesses de classe no pensamento. Devido, em grande parte, ao fato de se haver originado no hegelianismo, o marxismo era capaz de ultrapassar o nível de análise meramente psicológico e de colocar o problema num quadro filosófico mais amplo. A noção de uma “falsa consciência”14 adquiriu assim um novo significado. O pensamento marxista atribuía à prática política, juntamente com a interpretação econômica dos acontecimentos, uma significação tão decisiva que estas duas se tornaram os critérios definitivos para separar o que não passasse de ideologia dos elementos do

pensamento mais relevantes para a realidade. Em consequência, não é de admirar que a concepção de ideologia seja geralmente encarada como integrando, e até identificada com, o movimento proletário marxista. Mas no decurso de desenvolvimentos sociais e intelectuais mais recentes este estágio já foi ultrapassado. Não é mais um privilégio exclusivo dos pensadores socialistas referir o pensamento burguês aos fundamentos ideológicos, desacreditando-o dessa forma. Atualmente, grupos com quaisquer pontos-de-vista usam esta arma contra todos os demais. Como resultado, estamos ingressando em uma nova época do desenvolvimento intelectual e social. Na Alemanha, os primeiros passos nesta direção foram dados por Max Weber, Sombart e Troeltsch — para se mencionar apenas os mais proeminentes representantes deste movimento. A verdade das palavras de Max Weber se torna cada vez mais clara à medida que o tempo passa: “A concepção materialista da história não pode ser comparada a um fiacre em que se pudesse entrar e sair à vontade, pois uma vez ingressando nem mesmo os revolucionários estariam livres para deixá-lo”.15 A análise do pensamento em termos de ideologia é por demais ampla em sua aplicação e uma arma importante demais para se tornar o monopólio permanente de uma das partes, qualquer que esta seja. Nada impedia que os opositores do marxismo se apossassem da arma e a utilizassem contra o próprio marxismo.

5. A passagem da teoria da ideologia à sociologia do conhecimento O capítulo anterior delineou um processo de que se pode encontrar numerosos exemplos na história intelectual e social. No desenvolvimento de um ponto-de-vista, enquanto uma das partes desempenha o papel pioneiro as demais precisam necessariamente fazer uso deste ponto-de-vista, a fim de corresponder à vantagem de seu adversário na disputa competitiva. Tal é o caso com a noção de ideologia. O marxismo nada mais fez que descobrir a chave para o entendimento e um modo de pensamento de cuja elaboração progressiva participou, entretanto, todo o século XIX. A formulação acabada desta ideia não é realização exclusiva de um único grupo nem se acha vinculada com exclusividade a nenhuma posição intelectual e social. O papel desempenhado pelo marxismo merece um elevado posto na história, não devendo ser minimizado. Contudo, o processo pelo qual a abordagem ideológica vem-se estendendo ao uso geral desenrola-se ante nossos próprios olhos, estando por conseguinte sujeito à observação empírica. É interessante observar que, como resultado da expansão do conceito ideológico, um novo modo de compreensão vem gradativamente se impondo. Este novo ponto de apoio intelectual constitui não apenas uma mudança de grau de um fenômeno já em atuação. Temos aqui um exemplo do processo realmente dialético, com frequência mal interpretado para finalidades acadêmicas — pois aqui vemos, de fato, uma questão de diferença de grau se tornar uma questão de diferença de natureza. Pois tão logo todas as partes estejam aptas a analisar as ideias de seus opositores em termos ideológicos, todos os elementos de significado estarão qualitativamente transformados, adquirindo a palavra ideologia um significado totalmente novo. No decorrer disso, todos os fatores com que lidamos em nossa análise histórica do significado do termo estarão, correspondentemente, também mudados.

Os problemas da “falsa consciência” e da natureza da realidade assumem a partir de então uma significação diversa. Este ponto-de-vista nos força em definitivo a reconhecer que nossos axiomas, nossa ontologia e nossa epistemologia sofreram uma profunda transformação. Vamo-nos limitar, no que se segue, a indicar as variações de significado por que passou o conceito de ideologia no decorrer desta transformação. Já delineamos a evolução da concepção particular para a total. Esta tendência vemse intensificando constantemente. Ao invés de se contentar em demonstrar que o adversário sofre de ilusões ou distorções em um plano psicológico ou vivencial, a tendência agora é submeter sua estrutura total de consciência e pensamento a uma análise sociológica profunda.16 Enquanto não se tiver posto em questão a própria posição, encarando-a como absoluta, ao passo que se interpretam as ideias dos opositores como meras funções da posição social que ocupam, ainda não se terá dado o decisivo passo adiante. É verdade, claro está, que neste caso se estará usando a concepção total de ideologia, uma vez que se está interessado em analisar a estrutura da mente do opositor em sua totalidade, e não em destacar meramente umas poucas proposições isoladas. Mas desde que, neste exemplo, se está apenas interessado em uma análise sociológica das ideias do opositor, jamais se ultrapassa uma formulação da teoria altamente restritiva ou que eu gostaria de chamar de restrita. Em contraste com esta formulação restrita, a forma genérica17 da concepção total de ideologia será usada pelo analista quando este tiver a coragem de submeter não só o ponto-de-vista do adversário, mas todos os pontos-de-vista, inclusive o seu, à análise ideológica. No presente estágio de nosso entendimento dificilmente é possível evitar esta formulação genérica da concepção total de ideologia, de acordo com a qual o pensamento de todas as partes em todas as épocas é de caráter ideológico. Pràticamente não existe uma só posição intelectual, e o marxismo não constitui uma exceção a esta regra, que não se tenha transformado durante a história e que, mesmo atualmente, não apareça sob muitas formas. Também o marxismo assumiu várias aparências diversas. Não deveria ser muito difícil para um marxista reconhecer a base social delas. Com a emergência da formulação genérica da concepção total de ideologia, a teoria simples da ideologia evolui para a Sociologia do Conhecimento. O que anteriormente constituía o arsenal18 intelectual de uma das partes se transformou em um método de pesquisa da história intelectual e social em geral. A princípio, um dado grupo social descobre a “determinação situacional” (Seimgebundenheit) das ideias de seus opositores. A seguir, elabora-se o reconhecimento deste fato em um princípio inclusivo, de acordo com o qual o pensamento de cada grupo é visto como emergindo de suas condições de vida.19 Assim, torna-se a tarefa da história sociológica do pensamento analisar, sem considerar tendências partidárias, todos os fatores da situação social efetivamente existente que possam influenciar o pensamento. Esta história das ideias sociologicamente orientada destina-se a dotar os homens modernos de uma visão retrospectiva de todo o processo histórico. Claro está, então, que, neste caso, a concepção de ideologia assume um novo significado. Partindo deste significado, surgem duas abordagens alternativas para a investigação ideológica. A primeira se limita a indicar, em todas as ocasiões, as interrelações entre o ponto-de-vista intelectual sustentado e a posição social ocupada. Isto

implica a renúncia a qualquer intenção de expor ou desmascarar as visões com que se está em desacordo. Ao tentar expor as visões de outro, o indivíduo esforça-se por fazer sua própria visão parecer infalível e absoluta, o que é um procedimento a ser totalmente evitado caso se esteja fazendo uma investigação especificamente não-valorativa. A segunda abordagem possível, no entanto, é se combinar esta análise não-valorativa com uma epistemologia definida. Do ângulo desta segunda abordagem, existem duas soluções distintas e separadas para o problema referente ao que consiste um conhecimento fidedigno — uma das soluções pode ser denominada relacionismo, e a outra relativismo. O relativismo é um produto do procedimento histórico-sociológico moderno que se baseia no reconhecimento de que todo o pensamento histórico se acha ligado à posição concreta na vida do pensador (Standortsgebundenheit des Denkers). Mas o relativismo combina esta inserção histórico-sociológica com uma teoria do conhecimento antiga que desconhecia ainda o intercurso entre as condições de existência e os modos de pensamento, e que modelava seu conhecimento a partir de protótipos estáticos semelhantes ao que se poderia exemplificar pela proposição 2 X 2 = 4. Este velho tipo de pensamento, que encarava exemplos como este como o modelo de todo o pensamento, seria necessariamente levado à rejeição de todas as formas de conhecimento que dependessem do ponto-de-vista subjetivo e da situação social do conhecedor e que, por isso, eram meramente “relativos”. O relativismo, portanto, deve sua existência à discrepância entre esta introspecção recentemente atingida nos processos efetivos de pensamento e uma teoria do conhecimento que até então não tinha levado em conta esta nova introspecção. Se desejamos emancipar-nos deste relativismo, devemos procurar entender, com o auxílio da Sociologia do Conhecimento, que não é a Epistemologia em um sentido absoluto, mas, antes, um determinado tipo historicamente transitório de Epistemologia que se acha em conflito com o tipo de pensamento orientado para a situação social. De fato, a Epistemologia está tão Intimamente imersa no processo social quanto a totalidade de nosso pensamento, e progredirá na medida em que possa dominar os problemas que surgem da estrutura cambiante do pensamento. Uma teoria moderna do conhecimento que considere o caráter relacional como distinto do caráter meramente relativo de todo o conhecimento histórico deve partir da suposição de que existem esferas de pensamento em que seja impossível conceber uma verdade absoluta, independente dos valores e da posição do sujeito, e sem relações com o contexto social. Nem mesmo um deus poderia formular uma proposição sobre questões históricas semelhante a 2 X 2 = 4, pois o que é inteligível na história somente pode ser formulado com referência a problemas e construções conceptuais que emergem no fluxo da experiência histórica. Desde que reconheçamos que todo o conhecimento histórico é um conhecimento relacional, e só pode ser formulado com referência à posição do observador, defrontamonos mais uma vez com a tarefa de discriminar o que neste conhecimento seja verdadeiro ou falso. Surge então a questão: que fundamento social vis-à-vis da história oferece a melhor oportunidade de se atingir um ótimo de verdade? Em todo caso, a este grau, ter-se-á que desistir da vã esperança de se descobrir a verdade sob uma forma que independa de um conjunto de significados social e historicamente determinado. O problema não está de forma

alguma resolvido quando tivermos chegado a esta conclusão, mas pelo menos estaremos em melhor posição para constatar os problemas efetivos que surgem, de forma menos restrita. A seguir, distinguiremos dois tipos de abordagem à investigação ideológica que surgem no nível da concepção total genérica de ideologia: primeiro, a abordagem caracterizada pela liberdade de juízos de valor, e, segundo, a abordagem normativa orientada epistemológica e metafisicamente. Por enquanto, não abordaremos a questão referente a se estaremos, na última abordagem, lidando com o relativismo ou com o relacionismo. A concepção não-valorativa genérica total de ideologia pode ser encontrada, originalmente, nas investigações históricas em que, provisoriamente, e visando à simplificação do problema, não se pronunciem juízos quanto à correção das ideias a serem tratadas. Esta abordagem se limita a descobrir as relações entre determinadas estruturas mentais e as situações de vida em que se dão. Devemos indagar constantemente como pode acontecer que um dado tipo de situação social dê origem a uma dada interpretação. Dessa forma o elemento ideológico do pensamento humano, visto a este nível, acha-se sempre ligado à situação de vida do pensador. De acordo com esta visão, o pensamento humano surge e opera não em um vácuo social, mas em um meio social definido. Não precisamos encarar como fonte de erro o fato de todo o pensamento se achar enraizado desta forma. Assim como o indivíduo, participando de um complexo de relações sociais vitais com outros homens, goza, por isso, da oportunidade de obter mais preciso e penetrante conhecimento de seus companheiros, assim um dado ponto-de-vista e conjunto de conceitos, por se acharem ligados e emergirem de uma determinada realidade social, oferecem pelo contato íntimo com esta realidade maior oportunidade de revelar seu significado. (O exemplo anteriormente citado demonstrou que o ponto-de-vista proletário-socialista se encontrava em uma posição particularmente favorável para descobrir os elementos ideológicos do pensamento de seus adversários.) Entretanto, o fato de que o pensamento esteja ligado à situação de vida e social em que surge cria tanto problemas quanto vantagens. Claro que é impossível obter-se uma visão de conjunto dos problemas, caso o observador ou o pensador se ache confinado a um dado lugar na sociedade. Por exemplo, como já se assinalou, não foi possível à ideia socialista de ideologia evoluir por si mesma até à Sociologia do Conhecimento. Parece inerente ao processo histórico o fato de que a estreiteza e as limitações que restringem um ponto-de-vista tendam a ser corrigidas pelo entrechoque com os pontos-de-vista opostos. A tarefa de um estudo da ideologia, que tenta ser livre de juízos de valor, consiste em compreender a limitação de cada ponto-devista individual e o intercurso entre estas atitudes distintas no processo social total. Aqui nos defrontamos com um tema inesgotável. O problema é mostrar como, em toda a história do pensamento, certos suportes intelectuais acham-se vinculados a certas formas de experiência, delineando a íntima interação entre as duas no curso da mudança intelectual e social. No domínio da moral, por exemplo, é preciso descrever não apenas as contínuas mudanças da conduta humana, mas também as normas em constante alteração pelas quais se julga esta conduta. Captaremos mais profundamente o problema se estivermos aptos a demonstrar que mesmo a moralidade e a ética são condicionadas por certas situações definidas, e que conceitos fundamentais tais como dever, transgressão e pecado não existiram sempre, mas surgiram em correlação com situações sociais distintas.20 A visão filosófica prevalecente, que cautelosamente admite que o conteúdo da conduta tenha sido

determinado historicamente, mas que ao mesmo tempo insiste na manutenção de formas eternas de valor e de um conjunto formal de categorias, não é mais sustentável. O fato de se haver efetuado e reconhecido a distinção entre o conteúdo e as formas de conduta constitui uma importante concessão à abordagem histórico-sociológica, que torna cada vez mais difícil que os valores contemporâneos sejam tidos por absolutos. Atingido esse reconhecimento, torna-se igualmente necessário relembrar que o fato de se falar a respeito da vida cultural e social em termos de valor constitui uma atitude peculiar ao nosso tempo. A noção de “valor” surgiu e se difundiu através da Economia, onde a escolha consciente entre valores era o ponto de partida da teoria. Esta ideia de valor foi mais tarde transferida para as esferas ética, estética e religiosa, o que ocasionou uma distorção na descrição do comportamento real do ser humano em tais esferas. Nada podia ser mais errado do que descrever a atitude real do indivíduo ao contemplar uma obra de arte, bastante irrefletidamente, ou ao agir de acordo com padrões éticos nele inculcados desde a infância, em termos de uma escolha consciente entre valores. A noção que sustenta que toda a vida cultural constitui uma orientação para valores objetivos não passa de mais uma ilustração de uma tipicamente moderna desatenção racionalista pelos mecanismos irracionais básicos que governam a relação do homem com seu mundo. Longe de ser permanentemente válida, a interpretação da cultura em termos de valores objetivos constitui na verdade uma característica peculiar ao pensamento de nossos dias. Mas apesar de que se conceda, por enquanto, que esta concepção tenha algum mérito, a existência de determinadas esferas formais de valores e sua estrutura específica somente poderia ser entendida se referida às situações concretas para as quais tenham relevância e nas quais sejam válidas.21 Não existe, portanto, nenhuma norma que possa pretender uma validade formal e que, na qualidade de elemento formal universal e constante, pudesse ser abstraída de seu conteúdo historicamente cambiante. Chegamos atualmente ao ponto em que podemos observar com clareza que existem diferenças nos modos de pensamento, não apenas em períodos históricos diferentes, mas também em culturas diferentes. Vai-se tornando progressivamente claro, para nós, que não apenas o conteúdo do pensamento se modifica, mas também sua estrutura categórica. Só muito recentemente tornou-se possível investigar a hipótese de que, no passado assim como no presente, os modos de pensamento dominantes fossem suplantados por novas categorias, quando a base social do grupo, de que estas formas de pensamento são características, se desintegra ou se transforma, sob o impacto da mudança social. A pesquisa na Sociologia do Conhecimento promete alcançar um estágio de exatidão, quando não porque, em nenhuma outra esfera do domínio da cultura, a interdependência nas modificações de significado e de ênfase se mostram tão claramente evidentes e passíveis de determinação tão precisa quanto o próprio pensamento. Pois o pensamento é índice particularmente sensível da mudança cultural e social. A variação no significado das palavras e as múltiplas conotações de cada conceito refletem polaridades de esquemas de vida mutuamente antagônicos, implícitos nestas nuances de significado.22 Entretanto, em nenhuma outra parte no domínio da vida social, encontraremos de modo tão nitidamente discernível a interdependência e sensibilidade para mudança e uma ênfase variável quanto ao significado das palavras. A palavra e o significado a ela ligado constituem verdadeiramente uma realidade coletiva. A mais leve nuance no sistema total

de pensamento repercute na palavra individual e nos matizes de significado que comporta. A palavra nos liga ao todo da história passada e, ao mesmo tempo, espelha a totalidade do presente. Quando, ao nos comunicarmos com os outros, buscamos um nível comum de entendimento, a palavra pode ser usada para aplainar as diferenças individuais de significado. Quando necessário, porém, a palavra pode-se tornar um instrumento para enfatizar as diferenças de sentido e as experiências singulares de cada indivíduo. Pode então servir de meio para detectar as aquisições novas e originais que se produzem no decorrer da história da cultura, acrescentando, assim, valores anteriormente imperceptíveis à escala da experiência humana. Em todas estas investigações será utilizada a concepção total e genérica de ideologia em seu sentido não-valorativo.

6. A concepção não-valorativa de ideologia O investigador que empreenda os estudos históricos sugeridos acima não necessita preocupar-se com o problema do que seja a verdade última. Tornam-se agora evidentes, tanto para a passado quanto para o presente, inter-relações que jamais poderiam antigamente ser analisadas de forma tão completa. O reconhecimento deste fato em todas as suas ramificações concede ao investigador moderno uma enorme vantagem. Este não mais se sentirá inclinado a perguntar qual das partes em litígio detém a verdade, mas, antes, dirigirá sua atenção para descobrir a verdade aproximada que emerge do complexo processo social, no curso do desenvolvimento histórico. O investigador moderno pode, se acusado de fugir ao problema do que seja a verdade, responder que a abordagem indireta à verdade, através da história social, será afinal mais fecunda do que uma investida lógica direta. Ainda que não descubra a “verdade em si”, irá descobrir a situação cultural e muitas “circunstâncias” anteriormente desconhecidas, relevantes para a descoberta da verdade. Na realidade, se acreditamos já possuirmos a verdade, perderemos o interesse em descobrir as próprias intuições que nos conduziriam a uma compreensão aproximada da situação. Nossa incerteza é que exatamente nos leva bem mais perto da realidade, mais do que foi possível nos períodos anteriores, quando se tinha fé no absoluto. Torna-se agora bastante claro que somente em um mundo intelectual rápida e profundamente cambiante se poderiam submeter as ideias, anteriormente consideradas fixas, a uma crítica aprofundada. Em nenhuma outra situação poderiam os homens estar suficientemente alertas para descobrir o elemento ideológico em todo o pensar. É verdade, claro, que os homens combatiam as ideias de seus adversários, mas, no passado, na maior parte dos casos, assim o fizeram apenas para agarrarem-se aos seus próprios absolutos mais obstinadamente. Hoje em dia, existem vários pontos-de-vista de igual valor e prestígio, cada um demonstrando a relatividade do outro, para que nos seja permitido tomar qualquer situação e encará-la como absorvente e absoluta. Somente tal situação intelectual socialmente desorganizada possibilita que se perceba o que até agora era obscurecido por uma estrutura social geralmente estável e pela prática de certas normas tradicionais — que qualquer ponto-de-vista é peculiar a uma situação social.23 Pode ser realmente verdade que, para agir, precisemos de uma certa dose de autoconfiança e de certa segurança intelectual. Pode igualmente ser verdade que a própria forma de expressão, com a qual revestimos nossos pensamentos, tenda a lhes impor uma tonalidade absoluta. Em nossa época,

entretanto, constitui justamente a função da investigação histórica (e como veremos dos grupos sociais de que são recrutados os estudiosos) analisar os elementos que conformam nossa autoconfiança, tão indispensáveis para a ação em situações concretas e imediatas e para contrabalançar o subjetivismo que pudesse surgir daquilo que nós, enquanto indivíduos, aceitamos sem contestação. Isto somente é possível por meio de incessante cuidado e pela determinação de reduzir ao mínimo a tendência de superestimação pessoal. Por este esforço, a unilateralidade de nosso ponto-de-vista é contrabalançada, e as posições intelectuais conflitantes podem realmente vir a se complementar umas às outras. Torna-se imperativo, no atual período de transição, fazer uso do crepúsculo intelectual que domina nossa época e no qual todos os valores e pontos-de-vista aparecem em sua relatividade original. Devemos compreender, de uma vez por todas, que os significados de que nosso mundo se compõe nada mais são do que uma estrutura historicamente determinada e continuamente evolui a estrutura em que o homem se desenvolve, não sendo absolutos em nenhum sentido. Neste ponto da história, em que tudo o que concerne ao homem, bem como a estrutura e os elementos da própria história se nos revelam subitamente sob uma nova luz, cabe a nós, em nosso pensamento científico, nos assenhorearmos da situação, pois não é inconcebível que mais cedo do que possamos suspeitar, como muitas vezes tem sido o caso na história, esta visão possa desaparecer, a oportunidade possa perder-se e o mundo mais uma vez venha a apresentar uma aparência estática, uniforme e inflexível. Esta primeira penetração não-valorativa na história não conduz inevitàvelmente ao relativismo, mas antes ao relacionismo. O conhecimento, visto à luz da concepção total de ideologia, não constitui de forma alguma uma experiência ilusória, pois que a ideologia em seu conceito relacional não se identifica absolutamente com a ilusão. O conhecimento, surgindo de nossa experiência das situações efetivas de vida, embora não absoluto, é, não obstante, conhecimento. As normas surgidas de tais situações de vida se dão em um vácuo social, mas são efetivas como sanções reais da conduta. Relacionismo significa apenas que todos os elementos de significado em uma situação mantêm referência um ao outro e derivam sua significação desta recíproca inter-relação em um dado quadro de pensamento. Tal sistema de significados somente é possível e válido em um dado tipo de existência histórica, ao qual fornece por um certo tempo sua expressão apropriada. Quando a situação social muda, o sistema de normas a que havia anteriormente dado origem deixa de estar em harmonia com ela. O mesmo afastamento se opera com referência ao conhecimento e à perspectiva histórica. Todo conhecimento está orientado para algum objeto e é influenciado em sua aproximação pela natureza do objeto a que tende. Mas o modo de aproximação ao objeto a ser conhecido depende da natureza do conhecedor. Isto se verifica, antes de mais nada, quanto à profundidade qualitativa de nosso conhecimento (especialmente quando estamos buscando alcançar uma “compreensão” de alguma coisa em que o grau de penetração a ser obtido pressupõe um parentesco mental ou intelectual entre aquele que compreende e o que é compreendido). Verifica-se, em segundo lugar, com relação à possibilidade de formular intelectualmente nosso conhecimento, principalmente desde que, para que se transmude em conhecimento, cada percepção deve e é ordenada e organizada em categorias. Entretanto, a extensão em que podemos organizar e exprimir nossa experiência em tais formas conceptuais depende, por seu turno, dos quadros de referência que se encontrem à disposição em um dado momento histórico. Os conceitos que possuímos

e o universo de discurso em que nos movemos, bem como com as direções em que tendem a se elaborar, dependem amplamente da situação histórico-social dos membros do grupo intelectualmente ativos e responsáveis. Temos, então, como tema deste estudo nãovalorativo da ideologia, o relacionamento de todo conhecimento parcial e seus elementos componentes ao corpo de significação mais amplo e, finalmente, à estrutura da realidade histórica. Se, ao invés de admitirmos plenamente esta intuição e suas implicações, nós as desconsiderássemos, estaríamos desistindo de uma avançada posição de realização intelectual penosamente conquistada. Tornou-se, assim, extremamente questionável, no correr da vida, se constitui um problema intelectual realmente válido procurar descobrir absolutos ou ideias fixas e imutáveis. Talvez se tratasse de tarefa intelectual mais valiosa aprender a pensar dinâmica e relacionalmente, mais do que estaticamente. Em nosso estado intelectual e social contemporâneo não é chocante descobrir que as pessoas que pretendem ter descoberto um absoluto são geralmente as mesmas que também pretendem ser superiores às demais. Encontrar pessoas em nossos dias tentando disseminar pelo mundo e recomendando aos outros algum elixir do absoluto, que apregoam haver descoberto, não passa de um indício da perda e da certeza intelectual e moral, e da necessidade delas, sentidas por amplos setores da população, incapazes de encarar a vida de frente. Será possivelmente verdade que, para continuar a viver e agir em um mundo semelhante ao nosso, seja vitalmente necessário procurar uma saída para essa incerteza frente a alternativas múltiplas; e, em consequência, as pessoas podem ser levadas a abraçar algum objetivo imediato como se fosse absoluto, pelo que esperam fazer que seus problemas pareçam concretos e reais. Mas não é inicialmente o homem de ação que busca o absoluto e o imutável, mas antes aquele que deseja induzir os demais a se apegar ao status quo por se sentir confortável e satisfeito com as condições em que estão. Os que estão satisfeitos com a ordem de coisas existente estarão provavelmente tendentes a erigir a situação casual do mundo como absoluta e eterna, de modo a possuir algo de estável em que se apegar e a minimizar os acasos da vida. Entretanto, isto não pode ser feito sem que se recorra a todo tipo de mitos e noções românticas. Defrontamo-nos, assim, com a tendência curiosamente espantosa do pensamento moderno, em que o absoluto que, em outra época, constituía um meio de se entrar em comunhão com o divino, tenha passado a ser agora um instrumento usado por aqueles que dele se beneficiam para destorcer, perverter e ocultar a significação do presente.

7. A passagem da concepção não-valorativa à concepção valorativa de ideologia Parece então que, começando com a concepção não-valorativa de ideologia, por nós inicialmente usada para captar o fluxo das realidades em continua mudança, vimo-nos involuntariamente levados a uma abordagem epistemológica valorativa e, finalmente, a uma abordagem ontológica metafísica. Em nossa argumentação, até aqui, o ponto-de-vista dinâmico não-valorativo tornou-se, inadvertidamente, uma arma contra uma certa posição intelectual. O que originalmente nada mais era do que uma técnica metodológica revelouse, em seguida, uma Weltanschauung e um instrumento de cuja utilização emergiu a visão não-valorativa do mundo. Aqui, como em tantos outros casos, somente ao término de nossa

atividade podemos finalmente nos tornar conscientes dos motivos que a princípio nos impeliram a colocar em movimento todos os valores estabelecidos, considerando-os parte de um movimento histórico geral. Vemos então que empregamos juízos de valor metafísicos e ontológicos dos quais não estávamos conscientes.24 Mas somente irão alarmar-se com este reconhecimento os que são presa dos preconceitos positivistas da geração passada, e que ainda acreditam na possibilidade de ser completamente emancipados em seu pensamento das pressuposições éticas, metafísicas e ontológicas.25 Na verdade, quanto mais conscientes nos tornamos das pressuposições subjacentes a nosso pensamento, no interesse de uma pesquisa verdadeiramente empírica, tanto mais se evidencia que este procedimento empírico (pelo menos nas Ciências Sociais) somente pode ser executado com base em certos juízos metafísicos, ontológicos e meta-empíricos e nas expectativas e hipóteses que deles decorrem. Quem não toma decisões não tem questões a levantar e nem mesmo é capaz de formular uma hipótese a testar que lhe permita colocar um problema e pesquisar a história em busca da resposta. Felizmente, o positivismo se permitiu certos juízos metafísicos e ontológicos, a despeito de seus preconceitos antimetafísicos e de suas pretensões em contrário. Sua fé no progresso e seu realismo ingênuo constituem exemplos de tais juízos ontológicos. Foram exatamente estas pressuposições que possibilitaram ao positivismo efetuar tantas contribuições significativas, algumas das quais terão de ser admitidas ainda por algum tempo. O perigo das pressuposições não reside meramente no fato de existirem ou de serem anteriores ao conhecimento empírico.26 Reside, antes, no fato de que uma ontologia transmitida pela tradição obstrui novos desenvolvimentos, particularmente nos modos básicos de pensamento, e de que, enquanto a particularidade do quadro teórico convencional permanece inquestionada, continuaremos na penosa lida com um modo estático de pensamento, inadequado ao presente estágio de desenvolvimento intelectual e histórico. Portanto, o que se precisa é de um alerta contínuo em reconhecer que cada pontode-vista é particular a uma determinada situação definida, e descobrir-se, pela análise, em que consiste esta particularidade. Uma admissão clara e explícita das suposições metafísicas subjacentes ao conhecimento empírico, e que o tornam possível, fará mais pelo esclarecimento e progresso da pesquisa do que uma negativa verbal da existência de tais pressuposições, acompanhada de sua admissão sub-reptícia quase clandestina.

8. Juízos ontológicos implícitos na concepção não-valorativa de ideologia Empreendemos esta incursão nos campos da ontologia27 e do positivismo porque nos pareceu essencial chegar a um entendimento correto dos movimentos de pensamento nesta fase mais recente da história intelectual. O que descrevemos como uma transição imperceptível da abordagem não-valorativa à valorativa não caracteriza apenas o nosso pensamento pessoal: é típico de todo o desenvolvimento do pensamento contemporâneo. Nossa conclusão, resultante desta análise, é que a investigação histórica e sociológica deste período foi originalmente dominada pelo ponto-de-vista não-valorativo, de onde evoluíram duas orientações metafísicas, significativas e alternativas. A escolha entre estas duas alternativas resolve-se, na presente situação, da seguinte forma: por um lado, é possível

aceitar como um fato o caráter transitório do evento histórico quando se tem a convicção de que o que realmente importa não reside na própria mudança nem nos fatos que constituem esta mudança. Segundo este ponto-de-vista, tudo o que seja temporal, tudo o que seja social, todos os mitos coletivos, e todo o conteúdo das significações e das interpretações habitualmente atribuídos aos acontecimentos históricos, pode ser ignorado, porque se pressente que, para além da abundância e da multiplicidade de detalhes de que emerge a sequência histórica ordenada, residem as verdades últimas e permanentes que transcendem a história e para as quais o detalhe histórico é irrelevante. Em consequência, pensa-se existir uma fonte intuitiva e inspirada da história que a própria história efetiva apenas imperfeitamente reflete. Os que são versados em história intelectual reconhecerão que tal ponto-de-vista é diretamente derivado do misticismo. Os místicos já sustentaram que existem verdades e valores além do tempo e do espaço, e que o tempo e o espaço, e tudo o que dentro deles ocorra, nada mais são do que aparências ilusórias, quando comparados com a realidade da experiência extática do místico. Mas na sua época os místicos não eram capazes de demonstrar a verdade de suas afirmações. O curso diário dos acontecimentos era aceito como uma questão de fato, estável e concreta, e o incidente inusitado era encarado como a vontade arbitrária de Deus. O tradicionalismo tinha supremacia num mundo que, apesar de animado pelos acontecimentos, admitia somente uma forma, estável, de interpretá-los. Além do mais, o tradicionalismo não aceitava as revelações do misticismo em sua forma pura; antes as interpretava à luz de sua relação com o sobrenatural, uma vez que esta experiência extática era considerada uma comunhão com Deus. A interdependência geral de todos os elementos de significado e sua relatividade histórica se tornou, entrementes, tão claramente reconhecida que quase passou a constituir uma verdade de senso comum, geralmente aceita sem contestação. O que em uma época constituía o conhecimento esotérico de uns poucos iniciados pode ser hoje em dia demonstrado a todo o mundo metodicamente. Tão popular se tornou esta abordagem que a interpretação sociológica, não diversamente da interpretação histórica, será utilizada em certas circunstâncias para negar a realidade da experiência quotidiana e da história por aqueles que veem a realidade como existente fora da história, no domínio da experiência mística e extática. Por outro lado, há um modo alternativo de abordagem que pode igualmente conduzir à pesquisa histórica e sociológica. Surge da noção de que as mudanças nas relações entre os acontecimentos e as ideias não constituem o resultado do desígnio arbitrário e voluntário, mas que estas relações, tanto em sua simultaneidade quanto em sua sucessão histórica, devem ser encaradas como se dando em uma determinada regularidade necessária que, apesar de não ser evidente na superfície, existe e pode ser compreendida. Desde que compreendamos o significado interno da história e percebamos que nenhum de seus estágios é permanente e absoluto, mas pelo contrário que a natureza do processo histórico apresenta um problema não-resolvido e desafiante, não nos contentaremos por muito tempo com o desinteresse orgulhoso do místico pela história como “mera história”. Pode-se admitir que a vida humana sempre seja algo mais do que se descobriu ser em qualquer período histórico ou em qualquer conjunto de condições sociais dado, e, mesmo que depois de se haver levado estes fatores em conta, restará ainda um domínio espiritual e eterno além da história, jamais completamente subordinado à própria história e que confere uma significação à história e à experiência social. Não devemos

concluir disto que a função da história consista em fornecer um registro do que o homem não é, mas que, antes, devemos considerá-la a matriz pela qual se expressa a natureza essencial do homem. A ascensão dos sêres humanos de meras peças da história à estatura de homens decorre e se torna inteligível no curso da variação nas normas, formas e obras da humanidade, no curso da mudança nas instituições e objetivos coletivos, no curso de seus pressupostos e pontos-de-vista em transformação, em cujos termos cada sujeito histórico-social toma consciência de si mesmo e faz uma apreciação de seu passado. Existe, é claro, a disposição de cada vez mais se encarar todos estes fenômenos como sintomas e de se integrá-los em um sistema, cuja unidade e significação torna-se nossa tarefa compreender. E mesmo que se conceda que a experiência mística constitui o único meio adequado de se revelar ao homem sua natureza última, ainda seria preciso admitir-se que o elemento inefável almejado pelos místicos deve necessariamente manter alguma relação com a realidade histórica e social. Em última análise, os fatores que moldam a realidade histórica e social determinam também, de alguma forma, o próprio destino do homem. Talvez não seja possível que o elemento extático da experiência humana, que na natureza do evento jamais se revela ou se expressa diretamente, e cujo significado jamais poderia ser plenamente comunicado, possa ser descoberto através dos vestígios que deixa na senda da história, dessa forma se revelando para nós. Este ponto-de-vista, que sem dúvida se baseia em uma atitude particular face à realidade histórica e social, revela tanto as possibilidades quanto os limites a ela inerentes no que concerne à compreensão da história e da vida social. Devido a seu desprezo pela história, uma visão mística, que considera a história a partir de um fundamento em um outro mundo, corre o risco de não se aperceber de quaisquer das importantes lições que a história oferece. Não se pode esperar de um ponto-de-vista que deprecia a importância da realidade histórica uma real compreensão da história. Um exame mais sério dos fatos irá mostrar que, apesar de nenhuma cristalização definitiva emergir do processo histórico, algo de profunda significação transpira no domínio do histórico. O próprio fato de cada acontecimento e cada elemento significativo da história estai ligado a uma posição situacional, espacial e temporal, e de que, por conseguinte, o que acontece uma vez não pode acontecer sempre, o fato de os acontecimentos e os significados na história não serem reversíveis, em suma, a circunstância de não encontrarmos na história situações absolutas, indicam que a história somente é muda e sem significado para aquele que não espera dela aprender coisa alguma, e que, no caso da história, mais do que em qualquer outra disciplina, o ponto-de-vista que encara a história como “mera história”, como o fazem os místicos, está fadado à esterilidade. O estudo da história intelectual pode e deve ser realizado de tal forma que verá, na sequência e na coexistência de fenômenos, mais do que meras relações acidentais, e buscará descobrir, na totalidade do complexo histórico, o papel, a importância e o significado de cada elemento componente. É com este tipo de abordagem sociológica da história que nos identificamos. Se esta penetração for progressivamente efetuada em detalhes concretos, ao invés de se permitir permanecer em uma base puramente especulativa, e se cada avanço fôr realizado com base em material concreto acessível, alcançaremos finalmente uma disciplina que colocará à nossa disposição uma técnica sociológica para diagnosticar a cultura de uma época. Procuramo-nos aproximar deste objetivo nos capítulos anteriores que tentavam mostrar o valor da concepção de ideologia para a análise da situação intelectual contemporânea. Ao analisar os diferentes tipos de ideologia, não pretendíamos

simplesmente alinhar casos diferentes de significação do termo, mas objetivávamos pelo contrário apresentar, na sequência de seus significados cambiantes, um corte transversal da situação intelectual e social total de nossos dias. Um tal método de diagnosticar uma época, embora possa iniciar-se não-valorativamente, não permanecerá dessa forma por longo tempo. Seremos eventualmente forçados a assumir uma posição valorativa. A passagem a um ponto-de-vista valorativo é exigida desde o início pelo fato de a história enquanto história ser ininteligível a menos que se enfatize alguns de seus aspectos em contraste com outros. Esta seleção e ênfase de determinados aspectos da totalidade histórica podem ser encaradas como o primeiro passo na direção que, em última análise, conduz a um procedimento valorativo e a juízos ontológicos.

9. O problema da falsa consciência Através do processo dialético da história ocorre inevitavelmente a gradativa passagem da concepção de ideologia não-valorativa, total e genérica à concepção valorativa (cf. anteriormente). A valoração a que agora aludimos, entretanto, difere bastante da que encaramos e descrevemos anteriormente. Não mais aceitamos os valores de um dado período como absolutos, e já não podemos, daqui por diante, desconhecer a compreensão de que as normas e os valores se achem histórica e socialmente determinados. A ênfase ontológica se transfere agora para outro conjunto de problemas. Sua finalidade será a de distinguir o verdadeiro do não-verdadeiro, o autêntico do espúrio dentre as normas, modos de pensamento e padrões de comportamento existentes lado a lado em um dado período histórico. O perigo da “falsa consciência” não está, em nossos dias, no fato de esta não poder captar uma realidade absoluta imutável, mas, antes, no de obstruir a compreensão de uma realidade que é o resultado da constante reorganização dos processos mentais que compõem os mundos em que vivemos. Torna-se portanto compreensível porque, impelidos pelos processos dialéticos do pensamento, seja necessário concentrarmos com maior intensidade nossa atenção sobre a tarefa de determinar quais, de todas as ideias em curso, são as realmente válidas em uma dada situação. À luz dos problemas com que nos defrontamos na atual crise do pensamento, vai-se encontrar a questão da “falsa consciência” em um novo contexto. A noção da “falsa consciência” já aparecera em uma de suas mais modernas formas quando, deixando de se referir aos fatores religiosos transcendentais, transferiu sua procura do critério da realidade para o campo da prática e, em especial, para o da prática política, de uma maneira que evocava o pragmatismo. Mas em oposição à sua formulação moderna, falta-lhe ainda um sentido do histórico. Ainda se encaravam o pensamento e a existência como polos fixos e separados, mantendo uma relação estática um com o outro em um universo imutável. Somente agora é que o novo sentido histórico começa a ter penetração e que se pode conceber um conceito dinâmico de ideologia e realidade. Em consequência, em nosso ponto-de-vista, uma atitude ética não seria válida se estivesse orientada para normas com as quais a ação, em um dado ambiente histórico, ainda que com as melhores intenções, não pudesse concordar. Seria então inválida quando não se pudesse mais conceber a ação não eticamente aceita do indivíduo como devida a sua transgressão pessoal, devendo-se antes atribuí-la à compulsão de um conjunto de axiomas

morais de bases erradas. A interpretação moral de uma de nossas próprias ações é inválida quando, por força dos modos de pensamento e concepções da vida tradicionais, não permita a adaptação da ação e do pensamento a uma situação nova e cambiante e, afinal, obscureça e entrave realmente este ajustamento e esta transformação do homem. Uma teoria será portanto errada se, em uma dada situação prática, usar conceitos e categorias que, utilizados, impediriam o homem de se adaptar àquele estágio histórico. Normas, modos de pensamento e teorias antiquados e inaplicáveis tendem a degenerar em ideologias, cuja função consiste em ocultar o real significado da conduta, ao invés de revelá-lo. Nos parágrafos seguintes citamos uns poucos exemplos característicos dos mais importantes tipos de pensamento que acabamos de descrever. A história do tabu levantado contra a cobrança de juros de empréstimos28 pode servir como exemplo da evolução de uma ética antiga para uma ideologia. O regulamento de que o empréstimo se efetuasse sem juros somente poderia ser posto em prática em uma sociedade que se baseasse econômica e socialmente em relações de intimidade e boa vizinhança. Neste mundo social, o “empréstimo sem juros” é um costume que impõe observância sem dificuldade, porque constitui uma forma de comportamento que corresponde fundamentalmente à estrutura social. Surgindo em um mundo de relações de intimidade e boa vizinhança, este preceito foi assimilado e formalizado pela Igreja em seu sistema ético. Quanto mais, porém, mudava a real estrutura da sociedade, tanto mais este preceito ético assumia um caráter ideológico e se tornava incapaz de aceitação prática. Sua arbitrariedade e irrealidade se tornaram ainda mais evidentes quando, no período do capitalismo ascendente, tendo muda do sua função, poderia ser usado como uma arma nas mãos da Igreja contra a emergente força econômica do capitalismo. No decurso da emergência do capitalismo, a natureza ideológica desta norma, que se exprimia no fato de que, quando muito ela era contornada, mas jamais obedecida, tornou-se tão patente que até a Igreja a abandonou. Como exemplos da “falsa consciência”, assumindo a forma de uma interpretação incorreta de si mesmo e seu papel, podemos citar aqueles casos em que as pessoas tentam encobrir suas relações “reais” consigo mesmas e com o mundo, e falseiam para si mesmas os fatos básicos da existência humana, deificando-os, romantizando-os ou idealizando-os, recorrendo, em suma, ao artifício de fugirem de si mesmas e do mundo, dando margem a falsas interpretações da experiência. Temos, portanto, um caso de distorção ideológica quando tentamos resolver conflitos e ansiedades recorrendo a absolutos, se bem que já não é mais possível viver de acordo com estes. Tal se dá quando criamos “mitos”, adoramos “a grandeza em si”, invocamos submissão a “ideais”, ao passo que em nossa conduta efetiva seguimos outros interesses, que tentamos mascarar simulando uma retidão inconsciente, que é por demais transparente. Encontramos, finalmente, um exemplo do terceiro tipo de distorção ideológica quando esta ideologia como uma forma de conhecimento não é mais adequada para a compreensão do mundo atual. O que poderíamos exemplificar com o proprietário de terras, cujos bens já se tivessem tornado uma empresa capitalista, mas que ainda tenta explicar suas relações com os seus lavradores e sua própria função na empresa por meio de categorias remanescentes da ordem patriarcal. Se tomarmos uma visão de conjunto de todos estes casos individuais, vemos a noção de “falsa consciência” assumindo um novo significado. Visto deste ponto-de-vista, o conhecimento é destorcido e ideológico

quando deixa de levar em conta as novas realidades ao se aplicar uma situação, e quando tenta ocultá-las ao refleti-las com categorias impróprias.29 Esta concepção de ideologia (o conceito de utopia será tratado na Parte IV)30 pode ser caracterizada como valorativa e dinâmica. Valorativa porque pressupõe determinados juízos concernentes à realidade das ideias e das estruturas de consciência, e dinâmica porque tais juízos são sempre medidos por uma realidade em constante fluxo.31 Embora estas distinções possam parecer à primeira vista bastante complicadas, acreditamos não serem nada artificiais, porque nada mais são do que uma formulação precisa de implicações já contidas na linguagem cotidiana de nosso mundo moderno e uma tentativa explícita de enquadrá-las logicamente. Esta concepção de ideologia (e de utopia) sustenta que, para além das fontes de erro comumente reconhecidas, devemos admitir igualmente os efeitos de uma estrutura mental deformada. Reconhece o fato de que a “realidade” que não conseguimos compreender pode ser uma realidade dinâmica; e de que, na mesma época histórica e na mesma sociedade, possam existir vários tipos deformados de estrutura mental interna, uns por ainda não haverem chegado ao presente, outros por já se encontrarem além do presente. Em qualquer dos casos, entretanto, a realidade a ser compreendida se acha deformada e dissimulada, pois esta concepção da ideologia e da utopia trata de uma realidade que se desenrola somente na prática efetiva. Em todo caso, todas as suposições contidas na concepção valorativa e dinâmica de ideologia repousam sobre experiências que, no máximo, poderiam ser entendidas de uma maneira diferente da aqui desenvolvida, mas que em nenhuma hipótese poderiam ser deixadas à margem.

10. A procura da realidade através da análise da ideologia e da utopia A tentativa de escapar às deformações ideológicas e utópicas constitui, em última análise, a procura da realidade. Estas duas concepções fornecem-nos uma base para um ceticismo firme, e podem ser utilizadas positivamente para evitar as armadilhas a que o nosso pensamento nos poderia levar. Especificamente, podem ser usadas para combater a tendência a separarmos, em nossa vida intelectual, o pensamento do mundo da realidade, a dissimular a realidade ou a exceder seus limites. O pensamento deveria conter nem mais nem menos do que a realidade em cujo meio opera. Assim como a verdadeira beleza de um estilo literário forte consiste em exprimir exatamente o que se pretende — em comunicar nem de mais, nem de menos — assim o elemento válido de nosso conhecimento se determina mais pela aproximação do que pelo afastamento da situação efetiva a ser compreendida. Ao considerar as noções de ideologia e de utopia, a questão da natureza da realidade entra novamente em cena. Ambos os conceitos contêm o imperativo de que cada ideia deva ser julgada por sua congruência com a realidade. Contudo, enquanto isso, mesmo a nossa concepção de realidade foi revista e posta em questão. Todos os grupos e classes conflitantes da sociedade buscam esta realidade em seus pensamentos e em seus atos, não sendo por conseguinte de estranhar que esta pareça ser diferente para cada um deles.32 Se o problema da natureza da realidade não passasse de mero produto especulativo da

imaginação, poderíamos facilmente ignorá-lo. Mas, à medida que nos adiantamos, torna-se cada vez mais evidente que é exatamente a multiplicidade das concepções de realidade que produz a multiplicidade de nossos modos de pensamento, e que cada juízo ontológico que façamos conduz inevitàvelmente a mais extensas consequências. Se examinarmos os vários tipos de juízos ontológicos com que os diferentes grupos se nos apresentam, começamos a suspeitar que cada grupo parece mover-se em um mundo de ideias separado e distinto, e que estes diferentes sistemas de pensamento, frequentemente em conflito um com o outro, podem ser em última análise reduzidos a diferentes modos de experimentar a “mesma” realidade. Claro que poderíamos ignorar esta crise de nossa vida intelectual, como geralmente se faz na vida prática cotidiana, em cujo decurso nos contentamos com encarar as coisas e suas relações como se fossem acontecimentos isolados cada um restrito a seu contexto particular imediato.33 Enquanto encararmos os objetos de nossa experiência de um ponto de apoio particular e na medida exata em que nossos recursos conceptuais bastem para lidar com uma esfera de vida altamente restrita jamais tomaremos consciência da necessidade de inquirição sobre o inter-relacionamento total dos fenômenos. Quando muito, em tais circunstâncias, iríamos ocasionalmente encontrar alguma obscuridade que, entretanto, somos normalmente capazes de superar na prática. Dessa forma, a experiência cotidiana tem por longo tempo operado com sistemas mágicos de explicação; e até a um certo estágio de desenvolvimento histórico tais sistemas eram adequados para lidar empiricamente com as situações de vida primitiva encontradas. O problema tanto para épocas mais remotas quanto para a nossa pode ser formulado da maneira seguinte: em que condições podemos dizer que o campo de experiência de um grupo tenha mudado tão fundamentalmente que tenha se tornado aparente a discrepância entre o modo tradicional de pensamento e os novos objetos de experiência (a serem compreendidos por este modo de pensamento)? Seria uma explicação por demais intelectualística pretender-se que as explanações antigas tenham sido abandonadas por quaisquer razões teóricas. Nestes períodos anteriores, porém, era uma mudança efetiva nas experiências sociais que acarretava a eliminação de certas atitudes e esquemas de interpretação que não estivessem em congruência com certas experiências novas fundamentais. As Ciências Culturais especiais, do ponto-de-vista de sua particularidade, não valem mais do que o conhecimento empírico cotidiano. Também estas disciplinas visualizam os objetos do conhecimento e formulam seus problemas de maneira abstrata, destacando-os de seus quadros concretos. Ocorre, às vezes, que a formulação coerente dos problemas se faça de acordo com a efetiva conexão orgânica com que se apresentam, e não meramente no sentido em que possam ser enquadrados pela disciplina. Mas frequentemente, ao se atingir um certo estágio, esta ordem orgânica e coerente é subitamente perdida. As questões históricas são sempre monográficas, seja devido à maneira limitada pela qual se concebe o assunto, seja devido à especialização do tratamento. Para a história, isso é de fato necessário, uma vez que a divisão acadêmica do trabalho impõe certas limitações. Mas quando o pesquisador empírico se auto elogia por sua recusa em ir além da observação especializada ditada pelas tradições de sua disciplina, por mais inclusivas que sejam, ele está utilizando um mecanismo de defesa que o protege contra o questionamento de seus pressupostos.

Mesmo aquele tipo de investigação que jamais transcende os limites de sua especialidade pode fornecer-nos mais dados e enriquecer nossa experiência. Talvez seja mesmo verdade que houve uma época em que este seria o ponto-de-vista apropriado. Mas assim como também as Ciências Naturais devem questionar suas hipóteses e seus pressupostos, tão logo uma discrepância surja a partir dos fatos que abordam, e assim como uma pesquisa empírica ulterior somente se torna possível quando os cânones gerais de explicação tenham sido revistos, assim nas Ciências Culturais atingimos atualmente um ponto em que os nossos dados empíricos nos levam a levantar determinadas questões a respeito de nossos pressupostos. A pesquisa empírica que se limite a uma esfera particular ocupa por um longo tempo a mesma posição do senso comum, vale dizer, a natureza problemática e a incoerência de sua base teórica permanecem ocultas porque a. situação total jamais é levada em consideração. Sustentava-se com justiça que a mente humana pode realizar as mais lúcidas observações com os conceitos mais inconsistentes. Mas atinge-se uma crise quando se intenta refletir sobre estas observações e definir os conceitos fundamentais das disciplinas em questão. A exatidão desta afirmativa se manifesta pelo fato de que, em determinadas disciplinas, as investigações empíricas são conduzidas tão tranquilamente como de costume, enquanto se observa uma verdadeira guerra a respeito dos conceitos fundamentais e dos problemas da ciência. Mesmo esta afirmativa, entretanto, é limitada, porque à guisa de uma proposição científica destinada a deter uma significação geral, formula uma situação da ciência que somente caracteriza um dado período. Quando, no início do século atual, estas ideias começaram a ser formuladas, os sintomas da crise somente eram visíveis na periferia da pesquisa, em discussões relativas a princípios e definições. Hoje em dia, a situação mudou — a crise penetrou até o próprio coração da pesquisa empírica. A multiplicidade de possíveis pontos de partida e definições e a competição entre os vários pontos-de-vista influem até na percepção do que antes parecia ser uma relação única e sem complicações. Ninguém nega a possibilidade da pesquisa empírica e ninguém sustenta que os fatos não existem. (Nada nos parece mais incorreto do que uma teoria ilusionista do conhecimento.) Também recorremos a “fatos” para nossa comprovação, mas a questão da natureza dos fatos constitui em si mesma um problema a ser considerado. Eles existem para a mente sempre dentro de um contexto intelectual e social. O fato de poderem ser compreendidos e formulados já implica a existência de um aparato conceptual. E, se este aparato conceptual é o mesmo para todos os membros de um grupo, as pressuposições (isto é, os possíveis valores intelectuais e sociais), subjacentes aos conceitos individuais, jamais se tornam perceptíveis. A certeza sonâmbula com referência ao problema da verdade, durante os períodos de estabilidade da história, torna-se dessa maneira inteligível. Contudo, uma vez quebrada a unanimidade,34 as categorias fixas que serviam para dar à experiência o seu caráter seguro e coerente sofrem uma desintegração inevitável. Surgem modos de pensamento divergentes e conflitantes que (sem o conhecimento do sujeito pensante) ordenam os mesmos fatos da experiência em diferentes sistemas de pensamento, fazendoos serem percebidos através de diferentes categorias lógicas. Isto resulta na peculiar perspectiva a nós imposta por nossos conceitos, e que fazem que o mesmo objeto apareça diferentemente, de acordo com o conjunto de conceitos com

que o vemos. Em consequência, nosso conhecimento da “realidade”, na medida em que vai assimilando cada vez mais tais perspectivas divergentes, se tornará mais amplo. O que antes aparentava ser meramente uma margem de ininteligibilidade, que não podia ser abarcada por um dado conceito, deu origem, hoje em dia, a um conceito complementar e às vezes oposto, por meio do qual se pode obter um conhecimento mais inclusivo do objeto. Mesmo na pesquisa empírica, reconhecemos cada vez mais claramente a grande importância do problema da identidade ou da falta de identidade de nossos pontos-de-vista fundamentais. Para os que se preocuparam seriamente sobre isto, o problema apresentado pela multiplicidade de pontos-de-vista é claramente indicado pela limitação particular a toda definição. Esta limitação foi reconhecida por Max Weber, por exemplo, mas Weber justificava um ponto-de-vista particularista fundado em que o interesse particular que motiva a investigação determina a definição específica a ser usada. Nossa definição de conceitos depende de nossa posição e ponto-de-vista influenciados, por seu turno, por um bom número de passos inconscientes de nosso raciocínio. A primeira reação do pensador, ao se ver confrontado com a natureza limitada e com a ambiguidade de suas noções, é bloquear por quanto tempo seja possível o caminho para uma formulação total e sistemática do problema. O positivismo, por exemplo, esforçou-se enormemente para ocultar a si mesmo o abismo existente por trás de todo o pensamento particularista. Por um lado, isto era necessário para promover o seguro prosseguimento de sua pesquisa dos fatos, mas, por outro lado, a sua recusa de tratar do problema conduziu repetidas vezes à obscuridade e à ambiguidade com relação a questões referentes ao “todo”. Dois dogmas típicos impediam particularmente que se levantassem temas fundamentais. O primeiro deles era a teoria que simplesmente considerava irrelevantes as questões metafísicas, filosóficas e assemelhadas. De acordo com esta teoria, apenas as formas especializadas de conhecimento empírico possuíam qualquer direito à validade. Até a Filosofia era considerada uma disciplina especial cuja preocupação primorial e legítima era lógica. O segundo destes dogmas, que bloqueavam o caminho para uma perspectiva do todo, tentava uma conciliação, dividindo o campo em duas áreas mutuamente exclusivas a serem ocupadas respectivamente pela ciência empírica e pela Filosofia — para as questões particulares e imediatas a primeira fornecia respostas certas e irrecusáveis, ao passo que para as questões gerais e para os problemas do “todo” se recorria a especulações filosóficas “mais elevadas”. Isto implicava, quanto à Filosofia, o abandono da pretensão de que suas conclusões estivessem baseadas em uma evidência universalmente válida. Uma solução destas se assemelha estranhamente ao dístico dos teóricos da monarquia constitucional, que proclama: “O rei reina, mas não governa”. Dessa forma, concedem-se todas as honras à Filosofia. A especulação e a intuição são, em determinadas circunstâncias, consideradas instrumentos mais elevados do conhecimento, mas apenas sob a condição de que não se imiscuam na investigação empírica positiva, democrática e universalmente válida. E assim, mais uma vez, evita-se o problema do “todo”. A ciência empírica pôs de lado este problema, e não se pode incriminar a Filosofia, que somente é responsável perante Deus. Sua evidência somente é válida no domínio da especulação e somente é confirmada pela intuição pura. A consequência de uma tal dicotomia é que a Filosofia, que deveria ter a tarefa vital de esclarecer o espírito do observador dentro da

situação total, não se acha em condições de fazê-lo, uma vez que perdeu contato com o todo, limitando-se a um domínio “mais elevado”. Ao mesmo tempo, o especialista, com seu ponto-de-vista tradicional (particularista), acha impossível alcançar esta visão mais ampla, que se faz tão necessária na atual condição da investigação empírica. Para o domínio de cada situação histórica, requer-se uma determinada estrutura de pensamento que surgirá em resposta às demandas dos problemas reais e efetivos encontrados, capaz de integrar o que haja de relevante nos vários pontos-de-vista em conflito. Também neste caso é necessário descobrir um ponto de partida axiomático mais fundamental, uma posição de onde seja possível sintetizar a situação total. Uma dissimulação temerosa e incerta das contradições e omissões não nos fará sair da crise, da mesma forma que não o farão os métodos da extrema direita e da extrema esquerda, que a exploram na propaganda para a glorificação do passado ou do futuro, esquecendo-se momentaneamente que sua própria posição está sujeita à mesma crítica. Tampouco será de grande valia interpretar a unilateralidade e o caráter limitado da perspectiva do adversário como sendo meramente outra prova da crise neste campo. Isto somente pode ser feito quando um método não está sendo questionado por nenhum outro, e, em consequência, somente na medida em que não se tenha consciência das limitações de seu próprio ponto-de-vista. Somente quando estivermos completamente conscientes do âmbito limitado de cada ponto-de-vista, estaremos a caminho da almejada compreensão do todo. A crise no pensamento não é uma crise que simplesmente afete uma única posição intelectual, mas uma crise de todo um mundo que tenha atingido um certo estágio de desenvolvimento intelectual. Ver mais claramente a confusão em que a nossa vida intelectual e social caiu representa mais um enriquecimento do que uma perda. Que a razão possa penetrar mais profundamente em sua própria estrutura não constitui um indício de falência intelectual. Nem se deve encarar como incompetência intelectual de nossa parte que um extraordinário alargamento de perspectiva necessite de uma revisão aprofundada de nossas concepções fundamentais. O pensamento é um processo determinado por forças sociais efetivas, continuamente questionando suas descobertas e corrigindo seu procedimento. (Por esta razão seria fatal recusar-se a reconhecer, devido à pura timidez, o que já se tornou claro.) Entretanto, o aspecto mais promissor da atual situação é que jamais poderemos estar satisfeitos com perspectivas estreitas, e constantemente procuraremos compreender e interpretar intuições particulares em um contexto sempre mais inclusivo. Até Ranke, em sua Politische Gespräch, colocou as seguintes palavras na boca de Frederick: “Jamais serás capaz de alcançar a verdade meramente escutando afirmações extremas. A verdade reside sempre fora do domínio onde se encontra o erro. Mesmo de todas as formas de erro tomadas em conjunto seria impossível extrair a verdade. A verdade terá de ser buscada e encontrada por seu próprio benefício e em seu próprio domínio. Todas as heresias do mundo não irão te ensinar o que seja o cristianismo — que somente pode ser aprendido no Evangelho”.35 Ideias tão simples e modestas, em sua pureza e ingenuidade, são remanescentes de algum Éden que nada sabe do reerguimento do conhecimento depois da Queda. Descobre-se, com demasiada frequência, que a síntese, apresentada com a certeza de que abarca o mundo, resulta ser, afinal, expressão do mais estreito provincianismo e que a adoção sem crítica de qualquer ponto-de-vista que esteja à mão constitui uma das mais certas maneiras de se impedir o atingimento da compreensão cada vez mais ampla e mais compreensiva possível, hoje em dia.

A totalidade, no sentido em que a concebemos, não é uma visão da realidade imediata e eternamente válida, somente atribuível a olhos divinos. Não se trata de um horizonte estável e auto delimitado. Pelo contrário, uma visão total implica tanto a assimilação quanto a transcendência das limitações dos pontos-de-vista particulares. Representa o contínuo processo de expansão do conhecimento, possuindo como objetivo não atingir uma conclusão válida supra temporalmente, mas a extensão mais ampla possível de nosso horizonte de visão. Tirando da experiência cotidiana uma ilustração simples deste esforço em direção a uma visão total, podemos tomar o caso de um indivíduo em uma dada posição na vida, que se ocupa dos problemas concretos individuais que encontra e subitamente desperta e descobre as condições fundamentais que determinam a sua existência intelectual e social. Neste caso, uma pessoa que se ocupa contínua e exclusivamente com suas tarefas diárias não assumiria uma atitude inquisidora com relação a si mesma e sua posição, e, no entanto, esta pessoa, a despeito de sua segurança, seria presa de um ponto-de-vista particularista e parcial até que atingisse a crise que lhe trouxesse a perda das ilusões. Não seria senão no momento em que pela primeira vez concebesse a si mesmo como sendo parte de uma situação concreta mais ampla, que iria nela despertar o impulso de ver suas próprias atividades no contexto do todo. É verdade que sua perspectiva pode permanecer tão limitada quanto o permita seu estreito âmbito de experiência; talvez a dimensão em que analisasse sua situação não transcendesse o âmbito da pequena cidade ou do círculo social limitado em que se movesse. Não obstante, tratar acontecimentos e sêres humanos como partes de situações similares às situações em que ela própria se encontra representa algo bastante diferente do que meramente reagir imediatamente a um estímulo ou a uma impressão direta. Tendo o indivíduo captado o método de se orientar no mundo, será inevitàvelmente levado para além do estreito horizonte de sua própria cidade, aprendendo a se compreender como parte de uma situação nacional e, mais tarde, de uma situação mundial. Da mesma maneira, será capaz de compreender a posição de sua própria geração, sua situação imediata dentro da época em que vive, e este período, por seu turno, como parte do processo histórico total. Em seus contornos estruturais, este tipo de orientação para a situação pessoal representa em miniatura o fenômeno de que falamos como o impulso cada vez mais amplo em direção a uma concepção total. Embora o material implicado nesta reorientação seja o mesmo das observações individuais que constituem a investigação empírica, a finalidade aqui é bastante diferente. A análise situacional é o modo de pensamento em todas as formas de experiência que se erguem acima do nível do lugar-comum. As possibilidades desta abordagem não são utilizadas plenamente pelas disciplinas especiais porque, de ordinário, seus objetos de estudo são delimitados por pontos-de-vista altamente especializados. Contudo, a Sociologia do Conhecimento procura encarar até mesmo a crise em nosso pensamento como uma situação que devemos visualizar como parte de um todo maior. Se em uma situação tão complicada como a nossa, precedida por um desenvolvimento intelectual tão diferenciado como foi o nosso, surgirem novos problemas do pensamento, os homens precisarão aprender a pensar novamente, porque o homem é um tipo de criatura que precisa continuamente se readaptar à sua história em mudança. Até hoje, nossas atitudes face aos nossos processos intelectuais (apesar de todas as pretensões lógicas) não foram muito diferentes das de uma pessoa ingênua. Isto é, os homens estavam acostumados a agir em situações que não compreendiam claramente. Mas assim como

houve um momento na história política em que as dificuldades de ação se tornaram tão grandes que não podiam ser ultrapassadas diretamente sem se refletir sobre a própria situação, e assim como o homem foi forçado a aprender cada vez mais a agir, inicialmente com base nas impressões externas da situação e mais tarde analisando-a estruturalmente, exatamente assim podemos encarar como a natural evolução de uma tendência o fato de que o homem esteja atualmente em combate com a situação crítica surgida em seu pensamento, buscando apreender mais claramente a natureza desta crise. As crises não são superadas por umas poucas, nervosas e apressadas tentativas de suprimir os problemas incômodos recentemente surgidos nem pelo refúgio seguro num passado morto. A saída será encontrada pela gradativa ampliação e aprofundamento de intuições recentemente conquistadas e através de cautelosos avanços em direção ao controle. 1

Se a interpretação repousa unicamente no que efetivamente foi dito, falaremos de uma “interpretação imanente”; se transcender estes dados, implicando por isso uma análise da situação de vida do sujeito, falaremos de uma “interpretação transcendental”. Uma tipologia destas várias formas de interpretação poderá ser encontrada no trabalho do autor “Ideologische und soziologische Interpretation der geistigen Gebilde”, Jahrbuch für Soziologie, vol. II (Karlsruhe, 1926), págs. 424 e segs.

2

3

Como uma biografia parcial do problema, o autor indica os seguintes dentre seus trabalhos: Mannheim, K., “Das Problem einer Soziologie des Wissens”, Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, 1925, vol. 54. Mannheim, K., “Ideologische und soziologische Interpretation der geistigen Gebilde”, Jahrbuch für Soziologie, compilação de Gottfried Salomon, II (Karlsruhe, 1926), págs. 424 e segs. Outros estudos de interesse serão encontrados em: Krug, W. T., Allgemeines Handwörterbuch der philosophischen Wissenschaften nebst ihrer Literatur und Geschichte, 2.a ed., Leipzig, 1833. Eisler, Philosophisches Wörterbuch. Lalande, Vocabulaire de la philosophie (Paris, 1926). Salomon, G., “Historischer Materialismus und Ideologienlehre”, Jahrbuch für Soziologie, II, págs. 386 e segs. Ziegler, H. O., “Ideologienlehre”, Archiv für Sozialwissenschap und Sozialpolitik, vol. 57, págs. 657 e segs. A maioria dos estudos de ideologia jamais atinge o plano da tentativa de uma análise sistemática, limitandose, via de regra, a referências históricas ou considerações mais gerais. Citamos a título de exemplo os conhecidos trabalhos de Max Weber, Georg Lukács, Carl Schmitt, e mais recentemente: Kelsen, Hans, “Die philosophischen Grundlagen der Naturrechstslehre und der Rechtspositivismus”, número 31 dos Vorträge der Kant Gesellschaft, 1928. As eminentes obras de W. Sombart, Max Scheler e Franz Oppenheimer são por demais conhecidas para necessitar uma referência detalhada. Em um sentido mais amplo os seguintes estudos são de especial interêsse: Riezler, K., “Idee und Interesse in der politischen Geschichte”, Die Dioskuren, vol. III (Munique, 1924). Szende, Paul, Verhüllung und Enthüllung (Leipzig, 1922). Adler, Georg, Die Bedeutung der Illusionen für Politik und soziales Leben (Iena, 1904). Jankelevitch, “Du rôle des idées dans l’evolution des sociétés”, Revue philosophique, vol. 66, 1908, págs. 256 e segs. Millioud, M., “La formation de l’idéal”, ibid., págs. 138 e segs. Dietrich, A., “Kritik der politischen Ideologien”, Archiv für Geschichte und Politik, 1923.

Eis aqui uma passagem característica do Novum Organum, de Bacon, § 38. “Os ídolos e as noções falsas que já preocuparam a compreensão humana, e que nela estão profundamente enraizados, não somente assaltam o espírito humano de tal forma que lhe dificulta o acesso, mas mesmo quando Se consiga acesso novamente se antepõem e nos perturbam na instauração das ciências, a menos que a humanidade, estando prevenida a seu respeito, se proteja com todo o cuidado possível”, The Fhysical and Metaphysical Works of Lord Bacon (including The Advancement of Learning and Novum Organum). Organizado por Joseph Devey, pág. 389. G. Bell and Sons (Londres, 1891).

4

“Há também ídolos formados pelo mútuo relacionamento e pela sociedade do homem com o homem, a que chamamos ídolos do mercado, devido ao comércio e à associação dos homens uns com os outros; pois os homens conversam por meio da linguagem, mas as palavras se formam segundo a vontade da generalidade, surgindo da formação má e inepta de palavras uma formidável obstrução à mente.” Bacon, op. cit., pág. 390, § 43. Cf. também § 59. Sobre o “ídolo da tradição” diz Bacon: “A compreensão humana, quando se tenha apresentado uma proposição (seja pela admissão e crença gerais, seja pelo prazer que proporciona), força tudo o mais a lhe acrescentar um novo apoio e uma nova confirmação: e, existindo embora os mais abundantes e convincentes elementos em contrário, ainda prefere ou não observá-los ou desprezá-los ou se livrar deles e rejeitá-los por qualquer distinção, com um violento e injusto preconceito, a sacrificar a autoridade de sua primeira conclusão.” Op. cit., § 46, pág. 392. Que nos encontremos aqui face a uma fonte de erro é o que a seguinte passagem evidencia: “A compreensão humana se assemelha não a uma luz seca, mas admite uma tintura de vontade e de paixões que, em consequência, geram seu próprio sistema, pois o homem sempre acredita mais prontamente no que prefere.” Op. cit., § 49, págs. 393-4. Cf. também § 52.

5

Machiavelli, Discorsi, vol. II, pág. 47. Citado por Meinecke, Die Idee der Staatsräson (Munique e Berlim, 1925), pág. 40.

6

Cf. Meinecke, ibid.

7

Meusel, Fr., Edmund Burke und die französische Revolution (Berlim, 1913), pág. 102, nota 3.

8

Carl Schmitt analisou muito bem este modo de pensamento contemporâneo característico quando disse que estamos continuamente com medo de nos desencaminhar. Em consequência nos encontramos perpetuamente em guarda contra os disfarces, as sublimações e as retrações. Assinala que a palavra simulacra, aparecida na literatura política do século XVII, pode ser tida como a precursora da atitude atual (Politisçhe Romantik, 2.a ed, [Munique e Leipzig, 1925], pág. 19).

9

Para posteriores referências, postulamos aqui que a Sociologia do Conhecimento, diversamente da história ortodoxa das ideias, não objetiva reconstituir as ideias até seus protótipos históricos no passado remoto. Será sempre possível, a quem estiver inclinado a reconstituir motifs similares até suas primeiras origens, encontrar “precursores” para qualquer ideia. Nada se disse que já não se houvesse dito antes (Nullum est iam dictum, quod non sit dictum prius). O tema específico de nosso estudo consiste em observar como e sob que forma a vida intelectual em um dado momento histórico se relaciona com as forças políticas e sociais existentes. Cf. meu trabalho, “Das konservative Denken”, loc. cit., pág. 103, nota 57.

10

“Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas procurai saber se os espíritos são de Deus, pois muitos falsos profetas andam por este mundo”, I João, IV, 1.

11

Cf. Picavet, Les idéologues, essai sut l’histoire des idées et des théories scientifiques, philosophiques, religieuses en France depuis 1789 (Paris, Alcan, 1891). Destutt de Tracy, fundador da escola mencionada acima, define a ciência das ideias como se segue: “A ciência pode ser chamada ideologia, caso se considere apenas seu objeto; gramática geral, caso se considere apenas seus métodos; e lógica, caso se considere apenas seu objetivo. Qualquer que seja o nome, contém necessariamente três subdivisões, já que não se pode tratar adequadamente de uma sem tratar igualmente das duas outras. Ideologia me parece ser o termo genérico porque a ciência das ideias compreende tanto a de sua expressão quanto a de sua derivação”. Les éléments de l’ideologie, 1.a ed. (Paris, 1801), citado segundo a 3.a ed., a única que se encontra à minha disposição (Paris, 1817), pág. 4, nota.

12

Partindo das conclusões da Parte III seria possível definir com maior exatidão, de acordo com a posição social que ocupe, o tipo de político, cuja concepção do mundo e cuja ontologia estamos aqui discutindo, pois nem todo político se acha preso a esta ontologia irracional. Cf. págs. 159 e segs.

13

A respeito da estrutura e das peculiaridades do pensamento escolástico e, neste caso, de todos os tipos de pensamento beneficiando-se de uma posição monopolista, cf. o artigo do autor apresentado em Zurique ao Sexto Congresso da Deutsch Gesellschaft für Soziologie, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, Verhandlungen des sechsten deutschen Soziologentages in Zürich (J. C. B. Mohr, Tübingen, 1929).

14

A expressão “falsa consciência” (falsches Bewusstsein) é ela mesma de origem marxista. Cf. Mehring, Franz, Geschichte der deutschen Sozialdemokratie, I, 386; cf. também Salomon, op. cit., pág. 147.

15

Cf. Weber, Max, “Politik als Beruf”, em Gesammelte Politische Schriften (Munique, 1921), pag. 446.

16

Isto não implica que a concepção particular de ideologia seja inaplicável quanto a certos aspectos dos conflitos da vida cotidiana.

17

Acrescentamos aqui outra distinção à nossa distinção precedente de “particular e total”, que é a de “restrita e genérica”. Enquanto a primeira distinção diz respeito à questão de saber se as ideias isoladas ou se a mentalidade inteira devam ser consideradas ideológicas, e se a situação social condiciona somente as manifestações

psicológicas de conceitos ou se penetra até nos significados noológicos, na distinção entre restrita e genérica a questão decisiva é saber se o pensamento de todos os grupos (inclusive o nosso) ou apenas o de nossos adversários é reconhecido como sendo socialmente determinado. 18

Cf. a expressão marxista: “forjar as armas intelectuais do proletariado”.

19

Com o termo “determinação situacional do conhecimento”, procuro diferenciar o conteúdo propagandístico do conteúdo sociológico científico no conceito ideológico.

20

Cf. Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der Sozialökonomik, parte III, pág. 794, que trata das condições sociais requeridas para a gênese da moral.

21

Cf. Lask, E., Die Logik der Philosophie und die Kategorienlehre (Tübingen, 1911). Lask usa o termo hingelten para explicar que as formas categóricas não são válidas em si, mas apenas com referência a seu conteúdo sempre cambiante, que inevitavelmente reage à sua natureza.

22

Por esta razão, a análise sociológica dos significados virá a desempenhar um papel importante nos estudos que se seguem. Podemos sugerir aqui que esta análise poderia ser desenvolvida numa sintomatologia baseada no princípio de que, no domínio social, se pudermos aprender a observar cuidadosamente, chegaremos a ver que cada elemento da situação analisada contém e lança uma luz sobre o conjunto.

23

Por estabilidade social não entendemos a ausência de acontecimentos ou a segurança pessoal dos indivíduos, mas a relativa fixidez da estrutura social total existente, que garante a estabilidade dos valores e das ideias dominantes.

24

Naturalmente, o tipo de juízos de valor e da ontologia que empregamos, em parte inconsciente e em parte deliberadamente, representa um juízo de nível inteiramente diferente, sendo uma ontologia bastante diferente da ontologia de que falávamos ao criticar a tendência ao absolutismo que tenta reconstruir (no espírito da escola romântica alemã) os escombros da história. A ontologia que implícita e inevitàvelmente constitui a base de nossas ações, mesmo quando não desejamos acreditar nisto, não é algo a que se chegue por um anseio romântico e que impomos arbitràriamente à realidade. Marca o horizonte dentro do qual se situa o nosso mundo de realidade e que não pode ser afastado simplesmente com o rótulo de ideologia. Neste ponto vislumbramos uma “solução” para o nosso problema, muito embora em nenhuma outra parte deste livro procuremos oferecer uma solução. A exposição dos elementos ideológicos e utópicos do pensamento só tem eficiência em destruir as ideias com as quais não nos identifiquemos muito intimamente. Pode-se então perguntar se, em determinadas circunstâncias, enquanto destruímos a validade de certas ideias me diante uma análise ideológica, não estaremos ao mesmo tempo erguendo uma nova construção, e se a maneira pela qual colocamos em questão crenças antigas não se acha inconscientemente envolvida na nova decisão. Como certa vez dizia o sábio, “Frequentemente, quando alguém vem a mim em busca de conselho, fico sabendo, à medida que o escuto, de que modo ele se aconselha a si próprio”.

25

Um positivismo um tanto mais crítico era mais modesto e estava disposto a admitir somente um “mínimo de pressupostos indispensáveis”. Poderíamos levantar a questão se este “mínimo de pressupostos indispensáveis” não acabaria por equivaler à irredutível ontologia elementar contida em nossas condições de existência.

26

Se o conhecimento empírico não fosse precedido por uma ontologia seria inteiramente inconcebível, pois somente podemos extrair significados objetivados de uma dada realidade na medida em que somos capazes de fazer perguntas inteligentes e reveladoras.

27

Cf. do autor: “Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie”, Ergänzungsband der Kant-Studien, N.° 57 (Berlim, 1922), pág. 37, n.° 1; pág. 52, n.° 1.

28

Para a documentação histórica deste caso, cf. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der Sozialökonomik, Parte III, págs. 801 e segs.

29

Uma percepção pode ser errônea ou inadequada à situação, por estar mais avançada com relação a esta, bem como por ser demasiadamente antiquada. Investigaremos esta questão com maior precisão na Parte IV, em que tratamos da mentalidade utópica. Por enquanto basta observar que estas formas de percepção podem também antecipar-se à situação, bem como se limitar a segui-la.

30

Esperamos demonstrar, ao tratarmos da mentalidade utópica, que a visão utópica, que transcende o presente e se orienta para o futuro, não constitui um mero caso negativo da perspectiva ideológica, que oculta o presente procurando compreendê-lo em termos do passado.

31

Esta concepção de ideologia somente é concebível no nível do tipo genérico e total de ideologia, constituindo o segundo tipo valorativo de ideologia que distinguimos anteriormente do primeiro conceito, ou conceito nãovalorativo. Cf. págs. 105 e segs; pág. 103, nota 17; pág. 114, nota 24; págs. 119 e segs., da Parte II.

32

Com relação à diferenciação de ontologia de acordo com as posições sociais, cf. meu trabalho “Das konservative Denken”, loc. dt., parte II. Cf. ainda Eppstein, P., “Die Fragestellung nach der Wirklichkeit im historischen Materialismus”, em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, lx (1928), págs. 449 e segs. O leitor cuidadoso notará talvez que a partir deste ponto a concepção valorativa de ideologia tende mais uma vez a assumir a forma da concepção não-valorativa, o que, no entanto, é devido à nossa intenção de descobrir uma solução valorativa. A instabilidade na definição do conceito faz parte da técnica de pesquisa que, poderíamos dizer, teria atingido a maturidade, recusando-se, por isso, a se escravizar a qualquer ponto-de-vista particular que possa restringir seu campo de visão. Este relacionismo dinâmico constitui a única saída possível para a situação no mundo em que nos encontramos, onde vemo-nos diante de uma multiplicidade de pontos-de-vista conflitantes, cada um deles a requerer validade absoluta, embora, como tivemos oportunidade de demonstrar, estejam relacionados a uma posição particular, sendo adequados exclusivamente a esta posição a que estão relacionados. Somente após haver assimilado todas as motivações e pontos-de-vista cruciais, cujas contradições internas respondem por nossa atual tensão política e social, estará o investigador em condições de chegar a uma posição adequada à nossa atual situação de vida. Se o investigar, ao invés de assumir de imediato uma posição definitiva, optar por incorporar à sua visão cada corrente contraditória e conflitante, seu pensamento resultará flexível e dialético, ao invés de rígido e dogmático. Esta elasticidade conceptual e o franco reconhecimento de que existam muitas contradições até aqui ainda inconciliáveis não deverão, entretanto, apesar de que isto ocorra com grande frequência na prática, obscurecer a visão do investigador. Na verdade, a descoberta de contradições ainda não solucionadas deverá, pelo contrário, constituir um estímulo ao tipo de pensamento que a atual situação requer. Como tivemos oportunidade de indicar anteriormente, temos por objetivo trazer tudo o que exista de ambíguo e de questionável na vida intelectual de nossos dias ao nível da consciência desperta e do controle, buscando com esta finalidade assinalar os elementos enganosos frequentemente ocultos e dissimulados em nosso pensamento. Um procedimento com estas características resulta em um relacionismo dinâmico que deve rejeitar qualquer sistema fechado, já que foi efetuado através de uma sistematização de elementos distintos e específicos, cujas limitações já se tornaram aparentes. Além disso, podemos indagar se a possibilidade e a necessidade de um sistema aberto ou de um sistema fechado não variam de acordo com as épocas e de acordo com as posições sociais. Mesmo estas poucas observações visam a esclarecer o leitor no sentido de que os tipos de formulação usados em nosso pensamento, sejam quais forem, não são criações arbitrárias, e sim meios mais ou menos adequados de compreensão e domínio das formas de existência e de pensamento em constante mudança que se exprimem nos vários tipos de formulação. Alguns comentários referentes â implicação sociológica dos “sistemas” de pensamento encontram-se em “Das konservative Denken”, op. cit., págs. 86 e segs.

33

Nada seria mais sem sentido ou incorreto do que argumentar deste modo: “Desde que cada forma de pensamento político e histórico está baseada até certo ponto em afirmações metateóricas, segue-se que não podemos confiar em nenhuma ideia ou forma de pensamento, sendo portanto absolutamente indiferente quais os argumentos teóricos empregados em um caso específico. Cada um deve, por conseguinte, fiar-se em suas intuições pessoais e particulares, ou em seus interesses privados, o que melhor lhe convier. Se assim fizéssemos, e não importa o partidarismo da visão de cada um, poderíamos manter nossos pontos-de-vista em boa consciência, e até sentirmonos satisfeitos a este respeito”. Em defesa de nossa análise contra a tentativa de utilizá-la para fins propagandísticos do tipo dos que se exemplificou acima, é preciso mostrar que existe uma diferença fundamental entre, de um lado, um partidarismo cego e o irracionalismo nascidos de mera indolência mental, que na atividade intelectual enxerga apenas juízos e propaganda pessoais e arbitrários, e, do outro, o tipo de inquirição voltado para uma análise objetiva que, depois de eliminar toda a valoração consciente, percebe a existência de um irredutível resíduo de valoração inerente à estrutura de todo o pensamento. (Para uma exposição mais detalhada cf. as formulações finais da discussão contida em meu artigo, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, e minhas observações ao artigo de W. Sombart sobre metodologia apresentado na mesma ocasião. Verhandlungen des seohsten deutschen Soziologentages, loc. cit.)

34

Para maiores detalhes no que respeita à causa sociológica desta desintegração, cf. o artigo do autor, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, loc. cit.

35

Ranke, Das politische Gespräch, ed. Rothacker (Halle, 1925), pág. 13.

III. PANORAMA DE UMA POLÍTICA CIENTÍFICA: A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA SOCIAL E A PRÁTICA POLÍTICA 1. Por que não existe uma ciência política? A emergência e o desaparecimento de problemas em nosso horizonte intelectual são governados por um princípio do qual não temos plena consciência. Mesmo a ascensão e o desaparecimento de sistemas inteiros de conhecimento podem ser reduzidos em última análise a determinados fatores, tornando-se dessa forma explicáveis. Já se registraram na história da arte algumas tentativas para se descobrir por que e em que períodos as artes plásticas como a escultura, o relevo ou outras surgiram e se tornaram as formas artísticas dominantes de um dado período. Da mesma forma, a Sociologia do Conhecimento deveria procurar investigar as condições em que os problemas e as disciplinas se formam e desaparecem. Em termos mais amplos, o sociólogo deve ser capaz de fazer mais do que atribuir a emergência e a solução de problemas à mera existência de certos indivíduos talentosos. A existência e a complexa inter-relação dos problemas de uma dada época e de um dado lugar devem ser vistos e compreendidos em confronto com a estrutura da sociedade em que ocorram, muito embora isto nem sempre nos possa dar o entendimento de cada detalhe. O pensador isolado pode ter a impressão de que suas ideias cruciais lhe ocorreram pessoalmente, independentemente de seu contexto social. É fácil para quem vive em um mundo social provinciano e circunscrito pensar que os acontecimentos que lhe dizem respeito constituem fatos isolados pelos quais somente o destino seria responsável. A Sociologia não pode, entretanto, contentar-se com a compreensão de problemas e acontecimentos imediatos emergentes desta perspectiva míope que obscurece toda relação relevante. Estes fatos aparentemente isolados e distintos precisam ser compreendidos nas configurações de experiência, sempre presentes, mas em constante mudança, em que são efetivamente vividos. Somente neste contexto é que eles adquirem um significado. Se a Sociologia alcançasse algum sucesso neste tipo de análise, muitos dos problemas até aqui sem solução, pelo menos no que se refere a suas origens, seriam esclarecidos. Tal desenvolvimento nos possibilitaria ainda observar por que a Sociologia e a Economia são ciências tão recentes e por que em alguns países progrediram, enquanto em outros se viram impedidas por diversos obstáculos. De forma semelhante, será possível pôr termo a um problema que tem permanecido sempre sem resposta: a saber, por que ainda não presenciamos o desenvolvimento de uma ciência política. Em um mundo permeado por um ethos racionalista como o nosso, este fato significa uma anomalia impressionante. Dificilmente há uma esfera de vida a respeito da qual não tenhamos qualquer conhecimento científico, bem como métodos comprovados de comunicação deste conhecimento. Pois bem, é possível que a esfera da atividade humana, no controle da qual repousa nosso destino, seja de tal modo intransponível que a investigação científica não consiga explorá-la no sentido de extrair seus segredos? As dimensões inquietantes e confusas deste problema podem ser deixadas de lado. Muitos já deveriam ter-se colocado

esta questão se se tratasse apenas de uma condição temporária, a ser solucionada mais tarde, ou, se já tivéssemos alcançado, nesta esfera, o limite supremo de conhecimento que nunca pode ser ultrapassado? Em favor da primeira possibilidade, pode-se dizer que as Ciências Sociais ainda estão em sua infância. Seria possível concluir que a imaturidade das Ciências Sociais básicas explique o atraso desta ciência “aplicada”. Se fosse assim, seria somente uma questão de tempo até que o atraso fosse superado, e uma investigação posterior poderia assegurar um controle sobre a sociedade, comparável ao que não possuímos atualmente sobre o mundo físico. O ponto-de-vista oposto se fundamenta na corrente a favor de que o comportamento político é qualitativamente diferente de qualquer outro tipo de experiência humana, e que os obstáculos no sentido de sua compreensão racional são ainda mais intransponíveis do que em outros campos do conhecimento. Daí, é de supor que todas as tentativas de submeter estes fenômenos à análise científica estão predestinadas ao fracasso, devido à natureza peculiar dos fenômenos a serem analisados. Mesmo uma exposição correta do problema constituiria uma conclusão de valor. Tomar consciência de nossa ignorância seria da maior importância, pois, a partir daí, saberíamos então por que o conhecimento real e a comunicação não são possíveis neste caso. Logo, a primeira tarefa deve ser uma definição precisa do problema: O que se quer dizer quando perguntamos: É possível uma ciência política? Há determinados aspectos da política imediatamente inteligíveis e comunicáveis. Um líder político experiente e treinado deveria saber a história de seu próprio país e a história dos países intimamente ligados ao seu e que constituem o mundo político circundante. Em consequência, pelo menos um conhecimento de história e d'os dados estatísticos relevantes é útil para sua própria conduta política. Além disso, o líder político deveria saber algo a respeito das instituições políticas dos países com os quais está relacionado. É essencial que seu treinamento não seja apenas jurídico, mas inclua também um conhecimento das relações sociais que são subjacentes à estrutura institucional e através das quais esta funciona. Ele deve igualmente estar a par das ideias políticas formadoras da tradição em que ele vive. Da mesma forma, não se pode permitir ignorar as ideias políticas de seus oponentes. Ainda existem questões mais importantes se bem que menos imediatas, que, em nosso tempo, têm sofrido contínua elaboração, como, por exemplo, a técnica de manipulação das multidões, sem a qual é impossível vencer em democracias de massa. História, Estatística, Teoria Política, Sociologia, História das Ideias e Psicologia Social, entre outras disciplinas, apresentam importantes campos de conhecimento ao líder político. Caso estivéssemos interessados em estabelecer um currículo para a educação do líder político, os estudos acima estariam sem dúvida incluídos. Entretanto, as disciplinas mencionadas acima oferecem apenas conhecimento prático, de utilidade para um líder político. No entanto, mesmo todas estas disciplinas em conjunto não criam uma ciência política. No máximo, poderão ser como disciplinas auxiliares para tal ciência. Se entendêssemos por políticos apenas a soma de todos estes pedaços de conhecimento prático, úteis à conduta política, então não haveria problema quanto ao fato de já existir uma ciência política nesse sentido, e de que esta ciência poderia ser ensinada. Então, o único problema

pedagógico consistiria na seleção, num estoque infinito de fatos existentes, daqueles mais relevantes para os objetivos da conduta política. Entretanto, é provavelmente evidente que desta algo exagerada afirmação, as questões “Sob que condições é possível uma ciência política e de que forma deverá ser ensinada?” não se referem ao corpo de informações práticas mencionado acima. Então em que consiste o problema? As disciplinas acima alinhadas estão estruturalmente relacionadas somente na medida em que se referem à sociedade e ao Estado, como se fossem os produtos finais da história passada. Todavia, a conduta política está relacionada ao Estado e à sociedade na medida em que estão ainda em processo de transformação. A conduta política tem pela frente um processo no qual cada momento cria uma situação singular e procura extrair desta permanente corrente de forças algo de caráter duradouro. Então, a questão é: “Há uma ciência desta transformação, uma ciência da atividade criadora?” O primeiro estágio no delineamento do problema está assim alcançado. Qual (no campo do social) é a importância deste contraste entre o que já se transformou e o que está em processo de transformação? O sociólogo e estadista austríaco Albert Scháffle1 assinalou que, em qualquer momento da vida sócio-política, dois aspectos são discerníveis — primeiro, uma série de fatos sociais que adquiriram um padrão definido, e ocorrem regularmente; e, em segundo lugar, aqueles fatos que ainda estão em processo de transformação, nos quais, em casos individuais, as decisões deverão ser tomadas, dando origem a situações novas e singulares. À primeira ele denominou “negócios rotineiros de Estado”, laufendes Staatsleben; à segunda, “a política”. O significado desta distinção será esclarecido por umas poucas ilustrações. Quando, na vida rotineira de um funcionário, as ocupações correntes são resolvidas de acordo com as regras e regulamentos existentes, estamos, segundo Schäffle, mais no campo da “administração” do que no da “política”. A administração é o domínio onde podemos observar exemplos do que Schäffle quer dizer com “assuntos de rotina do Estado”. Sempre que podemos cuidar de cada caso novo sob uma forma prescrita, temos não a política, mas o aspecto estabelecido e recorrente da vida social. Schäffle faz uso de uma expressão esclarecedora, encontrada no próprio campo da administração, para reforçar sua distinção. Para os casos que possam ser resolvidos pela simples consulta a uma regra estabelecida, isto é, de acordo com um precedente, usa a palavra alemã Schimmel,2 derivada do latim simile, significando que o caso em pauta pode ser resolvido de uma maneira similar a precedentes que já existem. Estamos no campo da política quando enviados a países estrangeiros concluem tratados anteriormente nunca celebrados; quando representantes parlamentares discutem novas medidas tributárias; quando se lança uma campanha eleitoral; quando certos grupos oposicionistas preparam uma revolta ou organizam greves — ou quando estas são reprimidas. Deve-se admitir que a fronteira entre estas duas classes é na realidade muito flexível. Por exemplo, o efeito cumulativo de uma modificação gradativa em uma extensa série de casos concretos na conduta administrativa pode realmente originar um novo princípio. Ou, tomando o exemplo oposto, algo tão singular quanto um novo movimento social pode-se achar profundamente permeado por elementos “estereotipados” e rotinizantes. Não obstante, o contraste entre os “assuntos de rotina do Estado” e a “política”

oferece uma certa polaridade que pode servir de fecundo ponto de partida. Concebendo a dicotomia em termos mais teóricos, podemos dizer que: todo processo social pode ser dividido em uma esfera racionalizada, que consiste em procedimentos estabelecidos e rotinizados para lidar com situações que se repetem de uma maneira ordenada, e a “irracional”, que a circunscreve.3 Estamos portanto distinguindo entre estrutura “racionalizada” da sociedade e matriz “irracional”. A esta altura apresenta-se uma nova questão. A característica básica da cultura moderna é a tendência a absorver o máximo possível na esfera do racional, submetendo-o ao controle administrativo — e, por outro lado, a reduzir o elemento “irracional” à insignificância. Um simples exemplo esclarecerá o significado desta afirmativa. O viajante de há 150 anos expunha-se a mil acidentes. Hoje em dia tudo corre dentro de um programa. A tarifa é calculada com exatidão, e toda uma série de medidas administrativas fez da viagem um empreendimento racionalmente controlado. A percepção da distinção entre o esquema racionalizado e o contexto irracional em que opera proporciona a possibilidade de uma definição do conceito de “conduta”. A ação do funcionário não-graduado que encaminha uma série de documentos segundo a maneira prescrita, ou a de um juiz que acredita que um caso cabe dentro das provisões de um certo parágrafo da lei e o encaminha de acordo com este, ou, por último, a de um operário fabril que produz um parafuso seguindo a técnica prescrita, não corresponderia à nossa definição de “conduta”. Nem tampouco a ação de um técnico que, para obter um determinado fim, combinasse certas leis gerais da natureza. Todos estes modos de comportamento seriam considerados meramente “reprodutivos” porque são executados dentro de um quadro racional, de acordo com uma prescrição definida não exigindo nenhuma decisão pessoal. A conduta, no sentido utilizado por nós, somente começa ao atingirmos a área ainda não penetrada pela racionalização, onde somos forçados a tomar decisões em situações até então não submetidas à regulamentação. É nessas situações que surge todo o problema das relações entre a teoria e a prática. A respeito deste problema, com base nas análises até aqui realizadas, podemos, mesmo a esta altura, arriscar mais algumas observações. Não há dúvida de que possuímos algum conhecimento relativo à esfera da vida social em que tudo e a própria vida já tenham sido racionalizados e ordenados. Aqui, o conflito entre a teoria e a prática não se converte em problema porque, na verdade, o mero tratamento de um caso isolado, subordinando-o a uma lei generalizada existente, dificilmente poderia ser designado de prática política. Por mais racionalizada que nossa vida possa parecer ter-se tornado, todas as racionalizações que até aqui se deram são meramente parciais, uma vez que as mais importantes esferas de nossa vida social se acham ainda agora presas ao irracional. Nossa vida econômica, embora extensivamente racionalizada em sua parte técnica, e, em alguns aspectos, calculável, não constitui em conjunto uma economia planificada. A despeito de todas as tendências para a monopolização e organização, a livre concorrência ainda desempenha um papel decisivo. Nossa estrutura social está construída segundo princípios de classe, o que significa que não são os fatores objetivos, mas as forças irracionais, que decidem o lugar e a função do indivíduo na sociedade. O predomínio na vida nacional e na internacional se consegue com luta, em si mesma irracional, em que o acaso desempenha um papel importante. Estas forças irracionais da sociedade formam aquela esfera da vida social que não é organizada nem racionalizada, e em que se tornam

necessárias a política e a conduta. As duas principais fontes de irracionalismo na estrutura social (a competição sem controle a a dominação pela força) constituem a esfera da vida social ainda não-organizada onde a política se torna necessária. Em volta destes dois centros, acumulam-se os outros elementos irracionais mais profundos, a que geralmente chamamos de emoções. Quanto ao aspecto sociológico, existe uma conexão entre a extensão da esfera não-organizada da sociedade, em que prevalecem a competição sem controle e a dominação pela força, e a integração social das reações emocionais. O problema deve então ser colocado nos seguintes termos: Que conhecimento é possível ou qual o que possuímos com relação a este campo da vida social e ao tipo de conduta que nela se verifica?4 Mas agora o nosso problema original foi colocado em sua forma mais altamente desenvolvida, em que parece se prestar à elucidação. Tendo determinado onde a esfera do político realmente começa, e onde é possível a conduta no seu verdadeiro sentido, podemos indicar as dificuldades existentes na relação entre a teoria e a prática. As grandes dificuldades com que o conhecimento científico se defronta neste campo surgem do fato de que não estamos lidando com entidades objetivas e rígidas, mas com tendências e anseios em constante fluxo. Outra dificuldade é que a constelação das forças em interação muda continuamente. Onde quer que as mesmas forças, cada uma imutável em caráter, interajam, e onde a sua interação siga um curso regular, é possível formular leis gerais. O que não é tão fácil quando novas forças estão penetrando incessantemente no sistema e formando combinações imprevisíveis. Ainda outra dificuldade é que o observador não está fora do domínio do irracional, mas participa no conflito de forças. Esta participação o vincula inevitàvelmente a uma visão partidária, através de suas valorações e interesses. Além disso, e da maior importância, existe o fato de que o teórico político não só é um participante do conflito, em razão de seus valores e interesses, mas a maneira pela qual o problema se apresenta a ele, seu modo de pensamento mais geral, incluindo até suas categorias, se vincula às correntes políticas e sociais gerais. Tanto quanto isso se dê, na esfera do pensamento político e social, devemos, a meu ver, reconhecer diferenças reais nos estilos de pensamento — diferenças que se estendem mesmo ao campo da Lógica. Nisto, sem dúvida, reside o maior obstáculo a uma ciência da política, pois, de acordo com as expectativas normais, uma ciência da conduta somente seria possível quando a estrutura fundamental do pensamento independesse das diferentes formas de conduta em estudo. Apesar de que o observador é um participante da luta, a base de seu pensamento, isto é, o seu aparato observacional e o seu método de estabelecer as diferenças intelectuais, deve estar acima do conflito. Não se pode resolver um problema obscurecendo-lhe as dificuldades, mas somente definindo-as tão nítida e pronunciadamente quanto possível. Por isso, nossa tarefa consiste em estabelecer de maneira definida a tese de que na política a formulação de um problema e as técnicas lógicas envolvidas variam com a posição política do observador.

2. Os determinantes políticos e sociais do conhecimento Procuraremos demonstrar agora, por meio de um exemplo concreto, que o pensamento político-histórico assume formas várias, de acordo com correntes políticas diversas. A fim de não nos distanciarmos em demasia do assunto, concentrar-nos-emos principalmente na relação entre a teoria e a prática. Veremos que mesmo este problema, o mais geral e fundamental de uma ciência da conduta política, é diversamente concebido pelas diferentes correntes histórico-políticas. Isto pode ser facilmente constatado por um levantamento das várias correntes políticas e sociais dos séculos XIX e XX. Como tipos-ideais representativos mais importantes, teremos os seguintes: 1. 2. 3. 4. 5.

O conservantismo burocrático. O historicismo conservador. O pensamento liberal-democrático burguês. A concepção socialista-comunista. O fascismo.

Consideraremos inicialmente o modo de pensamento do conservantismo burocrático. A tendência fundamental de todo pensamento burocrático é converter todos os problemas de política em problemas de administração. Como resultado, a maioria dos livros sobre política, na história da ciência política alemã, são de fato tratados de administração. Se considerarmos o papel sempre desempenhado pela burocracia, em especial no Estado prussiano, e em que medida a intelligentsia era amplamente recrutada na burocracia, esta unilateralidade na história da ciência política na Alemanha torna-se facilmente compreensível. A tentativa de ocultar todos os problemas da política sob a cobertura da administração pode ser explicada pelo fato de que a esfera de atividade do funcionário dáse apenas nos limites de leis já formuladas. Portanto, a gênese e a evolução da lei se situam fora do âmbito de sua atividade. Como resultado de seu horizonte socialmente limitado, o funcionário deixa de ver que, por trás de cada lei promulgada, se encontram os interesses socialmente articulados e as Weltanschauungen de um grupo social específico. Aceita de antemão que a ordem específica prescrita pela lei vigente equivale à ordem em geral. Não compreende que cada ordem racionalizada constitui apenas uma das muitas formas pela quais as forças irracionais socialmente conflitantes se conciliam. A mentalidade legalística administrativa possui seu tipo peculiar de racionalidade. Ao se defrontar com um conjunto de forças até então não-controladas como, por exemplo, a erupção de energias coletivas em uma revolução, somente pode concebê-las como distúrbios momentâneos. Portanto, não é de admirar que, diante de qualquer revolução, a burocracia busque encontrar um remédio por meio de decretos arbitrários, ao invés de enfrentar a situação política nos seus próprios termos. Considera a revolução um acontecimento sinistro dentro de um sistema de outra forma ordenado, e não a expressão viva de forças sociais fundamentais de que dependem a existência, a preservação e o desenvolvimento da sociedade. A mentalidade jurídica administrativa só sabe construir

sistemas de pensamento estáticos e fechados, deparando sempre com a tarefa paradoxal de ter que incorporar em seu sistema novas leis, que emergem da interação não-sistematizada de forças vivas, como se fossem apenas uma elaboração ulterior do sistema original. Um exemplo típico da mentalidade militar-burocrática se encontra em cada variante da lenda da “punhalada pelas costas” (Dolchstosslegenie) que interpreta uma erupção revolucionária simplesmente como uma interferência séria em sua estratégia cuidadosamente planejada. A única preocupação do burocrata militar é a ação militar e, se esta se desenrola de acordo com o plano, então tudo o mais na vida está também em ordem. Essa mentalidade faz lembrar a anedota do médico especialista, a quem se atribui o dito: “A operação foi um sucesso. Infelizmente o paciente morreu”. Cada burocracia, portanto, conforme a peculiar ênfase que atribui à própria posição, tende a generalizar sua experiência e a desconsiderar o fato de que o campo da administração e da ordem em funcionamento regular representa apenas uma parte da realidade política total. O pensamento burocrático não nega a possibilidade de uma ciência da política, mas a considera idêntica à ciência da administração. Desta forma, descuida dos fatores irracionais e quando, apesar de tudo, estes fatores afloram à superfície considera-os “assuntos de rotina do Estado”. Uma expressão clássica desta atitude vem contida em um ditado originário de tais círculos: “Uma boa administração vale mais do que a melhor constituição”.5 Além do conservantismo burocrático, que governou a Alemanha e especialmente a Prússia em larga medida, houve um segundo tipo de conservantismo que se desenvolveu paralelamente ao primeiro e que se pode chamar conservantismo histórico. Era peculiar ao grupo social da nobreza e aos estratos burgueses entre os intelectuais que eram os dirigentes intelectuais e efetivos do país, existindo, entretanto, entre estes últimos e os conservadores burocratas uma certa tensão. Este modo de pensamento trazia a marca das universidade alemãs, e, em especial, do grupo dominante de historiadores. Ainda hoje em dia, esta mentalidade encontra apoio principalmente nestes círculos. O conservantismo histórico se caracteriza pelo fato de estar ciente do campo irracional na vida do Estado, que não pode ser controlado pela administração. Reconhece a existência de um campo não-organizado e imprevisível que constitui a esfera própria da política. De fato, focaliza quase que exclusivamente sua atenção nos fatores irracionais e impulsivos que propiciam a base real para o desenvolvimento posterior do Estado e da sociedade. Considera tais forças como inteiramente superiores à compreensão, inferindo que, em si, a razão humana é impotente para entendê-las e controlá-las. Nesta esfera, somente um instinto tradicionalmente herdado, forças espirituais “operando silenciosamente”, o “folk spirit”, Volksgeist, derivando sua força das profundezas do inconsciente, poderão contribuir para moldar o futuro. Já no fim do século XVIII esta atitude era enunciada por Burke, que serviu de modelo à maioria dos conservadores alemães, através das seguintes palavras impressionantes: “A ciência de construir ou renovar ou reformar uma comunidade não pode, como qualquer outra ciência experimental, ser ensinada a priori. Tampouco será uma experiência breve que nos poderá fazer aprender nesta ciência prática”.6 As raízes sociológicas desta tese são evidentes de imediato. Ela exprimia a ideologia da nobreza dominante na Inglaterra e na Alemanha, e servia para legitimar suas pretensões à liderança

do Estado. O je ne sais quoi (o elemento de imprecisão) da política, que só pode ser adquirido através de uma longa experiência, e que em geral somente se revelava aos que por muitas gerações vinham participando da liderança política, visava a justificar o Govêrno por uma classe aristocrática. Isto esclarece a maneira pela qual os interêsses sociais de um dado grupo tornam os membros do grupo sensíveis a determinados aspectos da vida social, a que os situados em outra posição não reagem. Enquanto a burocracia é cega ao aspecto político de uma situação, em razão de suas preconcepções administrativas, a nobreza, desde o início, sente-se totalmente à vontade nesta esfera. Desde o princípio, esta última tem os olhos voltados para a arena em que as esferas de poder dentro e entre os Estados se entrechocam. Nesta esfera, a pequena sabedoria livresca não nos ajuda, e a solução dos problemas não pode ser deduzida mecânicamente das premissas. Daí não ser a inteligência individual que decide as questões; cada acontecimento é a resultante de fôrças políticas efetivas. A teoria histórica conservadora, que é essencialmente a expressão de uma tradição feudal7 qué toma consciência de si, acha-se basicamente preocupada com problemas que transcendem a esfera da administração. A esfera é considerada completamente irracional, não podendo ser elaborada por métodos mecânicos, mas se desenvolvendo por si. Esta visão refere tudo à dicotomia decisiva entre “a construção de acordo com um plano calculado” e a “não-interferência no desenvolvimento das coisas”.8 Não basta ao líder político meramente possuir o conhecimento correto e o domínio de determinadas leis e normas. Além destes, precisa possuir o instinto inato, aguçado mediante longa experiência, que o conduza à resposta correta. Dois tipos de irracionalismo foram conjugados para produzir esta forma irracional de pensamento: por um lado, o irracionalismo tradicionalista pré-capitalístico (que considera o pensamento legal, por exemplo, como uma forma de sentir e não como um cálculo mecânico), e, por outro lado, o irracionalismo romântico. Dessa forma, criou-se um modo de pensamento que concebe a história como sendo o domínio de forças pré-racionais e suprarracionais. Mesmo Ranke, o mais eminente representante da escola histórica, se colocava neste ponto-de-vista intelectual ao definir as relações entre a teoria e a prática.9 De acordo com ele, a política não constitui uma ciência independente que possa ser ensinada. O estadista realmente pode estudar a história com proveito, mas não de modo a derivar dela regras de conduta, e, sim, porque ela serve para aguçar o seu instinto político. Pode-se designar este modo de pensamento como a ideologia de grupos políticos que tenham tradicionalmente ocupado uma posição dominante, mas que raramente participaram da burocracia administrativa. Se confrontarmos as duas soluções até aqui apresentadas, tornar-se-á claro que o burocrata tende a dissimular a esfera política, enquanto o historicista a considera mais forte e exclusivamente como irracional, muito embora destaque os fatores tradicionais nos acontecimentos históricos e nos sujeitos atuantes. A esta altura encontramos o principal adversário desta teoria que, conforme assinalamos, surgiu originalmente da mentalidade aristocrática feudal, a saber, a burguesia liberal-democrática e suas teorias.10 A ascensão da burguesia foi acompanhada de um intelectualismo extremo. Intelectualismo, no sentido aqui empregado, se refere a um modo de pensamento que não considera os elementos da vida e do pensamento que se fundam na vontade, no interesse, na emoção e na Weltanschauung — ou, caso reconheça a existência deles, trata-os como se equivalessem ao intelecto,

acreditando que possam ser dominados e subordinados à razão. Este intelectualismo burguês reclamava expressamente uma política científica e procurava efetivamente fundar essa disciplina. Assim como a burguesia descobriu as primeiras instituições em que se podia canalizar a luta política (primeiro o parlamento e o sistema eleitoral, e mais tarde a Liga das Nações), também criou um lugar sistemático para a nova disciplina da Política. A anomalia organizacional da sociedade burguesa aparece também na sua teoria social. A tentativa burguesa no sentido de uma ampla e penetrante racionalização do mundo vê-se, no entanto, paralisada quando encontra certos fenômenos. Ao sancionar a livre concorrência e a luta de classes, chega mesmo a criar uma nova esfera irracional. Do mesmo modo, neste tipo de pensamento, o resíduo irracional da realidade permanece, sem se dissolver. Ademais, assim como o parlamento é uma organização formal — uma racionalização formal do conflito político, mas não sua solução — a teoria burguesa alcança apenas uma intelectualização formal e aparente dos elementos inerentemente irracionais. Claro, o espírito burguês tem consciência deste novo domínio irracional, mas é intelectualista na medida em que tenta, exclusivamente através do pensamento, da discussão e da organização, dominar, como se já estivessem racionalizados, o poder e as outras relações que aqui imperam. Assim, inter alia, acreditava-se que a ação política pudesse, sem dificuldade, ser cientificamente definida. A ciência em questão, ao que se supunha, viria a se dividir em três partes: Primeira — a teoria dos fins, isto é, a teoria do Estado ideal. Segunda — a teoria do Estado positivo. Terceira — a “política”, isto é, a descrição da maneira pela qual o Estado existente se transforma em um Estado perfeito. Para ilustrar este tipo de pensamento podemo-nos reportar à estrutura do “Estado Comercial Fechado” de Fichte, neste sentido recentemente analisado com bastante acuidade por Heinrich Rickert11 que, entretanto, aceita totalmente esta posição. Existe, pois, uma ciência dos fins e uma ciência dos meios. O fato mais notável no tocante a esta tese consiste na completa separação entre a teoria e a prática, entre a esfera intelectual e a esfera emocional. O intelectualismo moderno se caracteriza por sua tendência a não tolerar o pensamento valorativo e emocionalmente determinado. Quando, no entanto, vem a deparar com este tipo de pensamento (e todo o pensamento político se engasta essencialmente em um contexto irracional) tenta interpretar os fenômenos de modo que os elementos valorativos pareçam separáveis, e que, pelo menos, um resíduo de teoria pura permaneça. Nesta tentativa, nem mesmo se colocou a questão referente a se o elemento emocional não poderia em certas circunstâncias se achar tão interligado com o irracional que viesse a envolver a própria estrutura categórica, tornando de fato irrealizável a prescrita segregação dos elementos valorativos. O intelectualismo burguês, entretanto, não se incomoda com estas dificuldades. Com um otimismo a toda prova, lança-se à conquista de uma esfera completamente purgada de irracionalismo. No que se refere aos fins, esta teoria ensina que existe uma única série legítima de fins para a conduta política, série esta que, caso não tenha ainda sido encontrada, pode ser alcançada pela discussão. Assim a concepção original do parlamentarismo era, como foi claramente demonstrado por Cari Schmitt, a de uma sociedade de debates em que se

buscava a verdade através de métodos teóricos.12 Sabemos muito bem e podemos compreender sociologicamente em que reside a ilusão deste modo de pensamento. Reconhecemos hoje em dia que, por trás de cada teoria, existem forças coletivas que expressam propósitos, podêres e interesses de grupo. As discussões parlamentares se acham portanto longe de serem teóricas no sentido de que possam atingir finalmente a verdade objetiva: concernem a questões extremamente reais, a serem decididas no choque de interesses. Foi tarefa do movimento socialista, surgido em seguida como adversário da burguesia, elaborar especificamente este aspecto do debate em torno das questões reais. Em nosso tratamento da teoria socialista não diferenciaremos por enquanto o socialismo do comunismo, pois interessa-nos aqui não tanto a pletora de fenômenos históricos, mas as tendências agrupadas em torno dos polos opostos que determinam, em essência, o pensamento moderno. No conflito com seu adversário burguês, o marxismo tornou a descobrir que, em assuntos históricos e políticos, não pode haver “teoria pura” alguma. Vê que por trás de cada teoria existem pontos-de-vista coletivos. O fenômeno do pensamento coletivo, que se desenrola de acordo com os interesses e com as situações sociais e existenciais, era chamado por Marx de ideologia. Neste caso, como tantas vezes ocorre nos conflitos políticos, fez-se uma importante descoberta que, uma vez conhecida, teve de ser levada até sua conclusão final, tanto mais que ela continha o cerne do problema do pensamento político em geral. O conceito de ideologia serve para indicar o problema, mas não vem de forma alguma resolvê-lo ou esclarecê-lo.13 Somente se irá obter uma elucidação mais ampla ao se rejeitar a unilateralidade inerente à concepção original. Antes de mais nada, portanto, será necessário, para nossas finalidades, que façamos duas correções. De início, será fácil mostrar que os que pensam em termos socialistas e comunistas discernem o elemento ideológico somente no pensamento de seus opositores, enquanto consideram o seu pensamento inteiramente livre de qualquer tintura ideológica. Como sociólogos, nenhuma razão existe para que não viéssemos a aplicar ao marxismo as percepções que o próprio marxismo produziu, indicando, em cada caso, o seu caráter ideológico. Além disso, é preciso explicar que o conceito de “ideologia” está sendo aqui utilizado não como um juízo de valor negativo, no sentido de que insinue uma mentira política consciente, mas com o intuito de designar o ponto-de-vista inevitavelmente associado a uma dada situação histórica e social, bem como à Weltanschauung e ao estilo de pensamento vinculados a esta situação. Tal significado do termo, de relações mais próximas com a história do pensamento, precisa ser claramente diferenciado do outro significado. Claro, não negamos que, em outros aspectos, possa servir também para revelar mentiras políticas conscientes. Com este procedimento, nada que detenha um valor positivo para a pesquisa científica da noção de ideologia foi descartado. A grande revelação que ele propicia é que todas as formas de pensamento histórico e político se acham essencialmente condicionadas pela situação de vida do pensador e de seu grupo. Nossa tarefa consiste em desvencilhar esta percepção de sua inserção política unilateral e em elaborar sistemàticamente a tese de que a maneira pela qual o indivíduo encara a história, e a maneira pela qual o indivíduo constrói uma situação total, partindo de determinados fatos, dependem, ambas, da posição que o indivíduo ocupa na sociedade. Em cada uma das contribuições históricas e políticas, é possível determinar de que posição vantajosa os objetos foram observados. Entretanto, o fato de nosso pensamento ser determinado por nossa posição social não constitui

necessariamente uma fonte de erro. Pelo contrário, muitas vezes é o caminho para a percepção política. O elemento significativo da concepção de ideologia consiste, em nossa opinião, na descoberta de que o pensamento político se encontra integralmente vinculado à vida social. Eis o significado essencial da frase várias vezes citada: “Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, ao contrário, sua existência social é que determina sua consciência”.14 Mas, em íntima relação com esta, existe outra dimensão importante do pensamento marxista, a saber a de uma nova concepção da relação entre teoria e prática. Enquanto o teórico burguês devotava um capítulo especial à proposição de seus fins, o que sempre ocorria a partir de uma concepção normativa da sociedade, um dos mais significativos passos dados por Marx foi atacar o elemento utópico no socialismo. Desde o início, Marx recusou estabelecer um conjunto exaustivo de objetivos. Não existe norma alguma a ser alcançada que se possa destacar do próprio processo: “O comunismo para nós não é uma condição a ser estabelecida, nem um ideal a que a realidade se deva ajustar. Chamamos comunismo o movimento efetivo para abolir as condições presentes. As condições em que este movimento se processa resultam daquelas ora existentes”.15 Se hoje em dia perguntarmos a um comunista, com uma formação leninista, como será realmente a sociedade futura, ele nos responderá que esta pergunta é não-dialética, uma vez que o futuro será decidido no processo prático dialético do vir-a-ser. Mas em que consiste este processo dialético prático? Significa que não podemos calcular a priori o que uma coisa deveria ser ou o que deverá ser. Podemos apenas influenciar o curso geral do processo de vir-a-ser. O problema concreto sempre presente somente pode ser, para nós, o próximo passo avante. Não compete ao pensamento político erigir um esquema absoluto do que devesse ser. A teoria, incluindo mesmo a teoria comunista, é uma função do processo de vir-a-ser. A relação dialética entre a teoria e a prática consiste no fato de que, antes de mais nada, a teoria, ao surgir de um impulso definidamente social, clarifica a situação. E no processo de clarificação a realidade passa por uma mudança. Penetramos assim em uma nova situação de que emerge uma nova teoria. O processo se apresenta, então como se segue: 1) A teoria é uma função da realidade; 2) esta teoria conduz a um certo tipo de ação; 3) a ação modifica a realidade, ou, no caso de fracasso, nos força a uma revisão da teoria inicial. A mudança da situação efetiva ocasionada pelo ato dá emergência a uma nova teoria.16 Esta visão da relação entre a teoria e a prática marca um adiantado estágio na discussão do problema. Note-se que foi precedido pela unilateralidade de um intelectualismo extremo e de um irracionalismo total, e que teve de contornar todos os perigos que já se haviam revelado no pensamento e na experiência conservadores e burgueses. As vantagens desta solução residem no fato de que tenha assimilado as formulações prévias do problema, e em sua abertura para o fato de que no campo da política a corrente usual de pensamento é incapaz de realizar seja o que for. Por outro lado, esta visão é por demais profundamente motivada pelo desejo de conhecimento para que caia em um irracionalismo total a exemplo do conservantismo. Do conflito entre as duas correntes de pensamento resulta uma concepção bastante flexível da teoria. Uma lição básica derivada da experiência política e magnificamente formulada por Napoleão na máxima: “On s’engage, puis on voit”,17 encontra aqui sua sanção metodológica.18 Com efeito, o

pensamento político não pode ser desenvolvido especulando-se a seu respeito externamente. Antes, o pensamento vem a se clarificar quando se penetra em uma situação concreta, não apenas pelo atuar e o fazer, mas também pelo pensar que deve acompanhá-los. A teoria socialista-comunista constitui, assim, uma síntese do intuicionismo e de um desejo determinado de compreender os fenômenos de uma maneira extremamente racional. O intuicionismo aparece nesta teoria porque ela nega a possibilidade da avaliação exata de acontecimentos antes de sua ocorrência. A tendência racionalista dela participa porque visa a ajustar a um esquema racional qualquer novidade que, a qualquer momento, venha a aparecer. Em momento algum se permite agir sem teoria, mas a teoria que surge no decorrer da ação será de nível diferente da teoria que a precedeu.19 As revoluções, especialmente, criam um tipo de conhecimento mais valioso. Isto constitui a síntese que os homens tendem a fazer quando vivem no meio da irracionalidade e a reconhecem como tal, não desesperando, entretanto, na tentativa de interpretá-la racionalmente. O pensamento marxista se assemelha ao pensamento conservador no fato de não negar a existência de uma esfera irracional e de não tentar dissimulá-la como o faz a mentalidade burocrática, ou de tratá-la na forma puramente intelectual, como se fosse racional, como o fazem os pensadores liberal-democráticos. Distingue-se, contudo, do pensamento conservador, pelo fato de conceber esta irracionalidade relativa como potencialmente compreensível através de novos métodos de raciocínio.20 Pois, mesmo neste tipo de pensamento, a esfera do irracional não é inteiramente irracional, arbitrária ou incompreensível. É verdade que não existem leis definidas e estatisticamente fixadas a que o processo criador se conforme, nem existem quaisquer sequências de acontecimentos exatamente recorrentes, mas ao mesmo tempo somente um número limitado de situações pode ocorrer, mesmo nesta esfera. Eis no fim das contas a consideração decisiva. Mesmo quando novos elementos emergem no desenvolvimento histórico, eles não constituem apenas uma cadeia de acontecimentos inesperados; a própria esfera política se acha permeada por tendências que, embora sujeitas a mudança, determinam, não obstante, por sua mera presença, em uma ampla medida, as várias possibilidades. Portanto, a primeira tarefa do marxismo consiste na análise e na racionalização de todas as tendências que influenciam o caráter da situação. A teoria marxista elaborou essas tendências estruturais em três direções. Primeiro, assinala que a esfera política de uma dada sociedade se funda e é sempre caracterizada pelo estado das relações de produção que prevaleçam no momento.21 As relações de produção não são consideradas estaticamente, como um ciclo econômico continuamente recorrente, mas, dinamicamente, como um interrelacionamento estrutural que, também ele, se acha constantemente em mudança através do tempo. Em segundo lugar, percebe que as mudanças neste fator econômico se acham mais propriamente ligadas às transformações nas relações de classe, que implicam, ao mesmo tempo, uma alteração nos tipos de poder e uma distribuição do poder em constante variação. Mas, em terceiro lugar, reconhece ser possível compreender a estrutura interna do sistema de ideias, que em qualquer período domine os homens, e determinar teoricamente a direção de qualquer mudança ou modificação nesta estrutura. Ainda mais importante é o fato de que estes padrões estruturais não são considerados independentemente um do outro. Precisamente estas suas relações recíprocas

é que virão a constituir um único grupo de problemas. A estrutura ideológica não se modifica independentemente da estrutura de classe, e a estrutura de classes não se modifica independentemente da estrutura econômica. E exatamente esta interconexão e este entrelaçamento da formulação tríplice do problema, a econômica, a social e a ideológica, é que conferem às ideias marxistas a sua qualidade singularmente penetrante. Somente este poder sintético as possibilita formular sempre novamente o problema da totalidade estrutural da sociedade, não apenas para o passado, mas também para o futuro. O paradoxo se encontra no fato de que o marxismo reconhece a irracionalidade relativa e jamais a perde de vista. Mas, em contraste com a escola histórica, o marxismo não se contenta com a mera aceitação do irracional. Tenta, ao invés disso, eliminar o mais que pode o irracional através de um novo esforço de racionalização. Mais uma vez o sociólogo se defronta com a questão da forma de existência histórico-social geral e a situação particular de que surgiu o modo de pensamento próprio ao marxismo. Como podemos explicar o seu caráter singular, que consiste na combinação de um irracionalismo extremo com um racionalismo também extremo, de tal forma que desta fusão surja um novo tipo de racionalidade “dialética”? Considerada sociologicamente, eis uma teoria de uma classe ascendente que não se interessa por sucessos momentâneos e que, portanto, não irá recorrer a um putsch como um meio para arrebatar o poder, mas que, devido a suas tendências revolucionárias inerentes, precisa estar sempre sensível e alerta a constelações imprevisíveis da situação. Toda teoria que se origina de uma posição de classe e que se baseia não em massas instáveis, mas em grupos históricos organizados, precisa necessariamente possuir um largo campo de visão. Consequentemente, requer uma visão da história plenamente racionalizada, na base da qual seja possível a qualquer momento nos indagarmos onde estamos agora e em que estágio de desenvolvimento se encontra o nosso movimento.22 Grupos de origem pré-capitalista, em que prevalece o elemento comunal, podem ser mantidos coesos unicamente por tradições ou por sentimentos comuns. Nestes grupos, a reflexão teórica é de importância inteiramente secundária. Por outro lado, em grupos que não se achem basicamente interligados por estes laços orgânicos da vida comunitária, mas que apenas ocupam posições semelhantes no sistema social, a teorização rigorosa constitui um pré-requisito da coesão. Considerada sociologicamente, esta extrema necessidade de teoria é a expressão de uma sociedade de classes em que as pessoas têm de ser reunidas não pela proximidade local, mas por circunstâncias similares de vida em uma esfera social extensa. Laços sentimentais somente são eficientes em uma área espacial limitada, ao passo que uma Weltanschauung teórica retém um poder de unificação sobre grandes distâncias. Por isso, uma concepção racionalizada da história serve como fator de unificação social para grupos dispersos no espaço, e, ao mesmo tempo, propicia continuidade às gerações que crescem continuamente em condições sociais semelhantes. Na formação de classes, uma posição similar na ordem social e uma teoria unificadora são de primordial importância. Laços emocionais que em seguida venham a se manifestar nada mais são do que um reflexo da situação já existente, sendo sempre mais ou menos regulados pela teoria. A despeito desta tendência racionalizante extrema, implícita na posição da classe proletária, os limites da racionalidade desta classe são definidos por sua posição oposicional e, particularmente, por sua reconhecida posição revolucionária.

O propósito revolucionário impede que a racionalidade se torne absoluta. Muito embora nos tempos modernos a tendência para a racionalização se desenvolva em uma escala tão extensiva que as revoltas,23 que originalmente não passavam de erupções irracionais, são organizadas neste nível à maneira burocrática, ainda deve restar em algum ponto de nossa concepção da história e de nossos esquema de vida um lugar para a irracionalidade essencial que acompanha a revolução. Revolução significa que em alguma parte há uma antecipação e um intento de provocar uma ruptura na estrutura racionalizada da sociedade. Necessita, portanto, de uma vigilância para o momento favorável em que se deva arriscar o ataque. Se se concebesse toda a esfera política e social como sendo plenamente racionalizada, isto implicaria que não haveria mais necessidade de se estar de sobreaviso, à espreita de uma brecha. O momento nada mais é, entretanto, do que o elemento irracional no “aqui e agora” que toda teoria, em virtude de sua tendência generalizadora, obscurece. Mas visto que aqueles que necessitam e desejam a revolução não poderão deixar passar este momento favorável em que a brecha ocorre, desenvolve-se uma lacuna no quadro teórico a indicar que se avalia o elemento irracional pelo que este realmente é — ou seja, essencialmente, em sua irracionalidade. Todo esse pensamento dialético começa por racionalizar o que para os grupos histórico-conservadores parecia totalmente irracional; não consegue, entretanto, adiantarse em sua tendência a ponto de formular um quadro totalmente estático do que se acha em processo de transformação. Este elemento do irracional está incorporado no conceito de transformação dialética. As tendências dominantes na esfera política não são aqui interpretadas como combinações de forças matematicamente calculadas, e sim como capazes, em um dado momento, de súbita transformação, quando expelidas da órbita de suas tendências originais. Naturalmente, esta transformação não está nunca sujeita a previsão; pelo contrário, depende sempre do ato revolucionário do proletariado. Assim, o intelectualismo não é de forma alguma considerado legítimo em todas as situações. Muito pelo contrário, parece haver duas ocasiões em que desponta a intuição necessária à compreensão da situação. Em primeiro lugar, permanecerá sempre um dado incalculável, deixando-se que a intuição política determine o momento em que a situação esteja madura para a transformação revolucionária. Em segundo lugar, os acontecimentos históricos jamais podem ser tão exatamente calculados com antecedência que dispensem a chamada à ação para mudá-los. O pensamento marxista surge como uma tentativa de racionalizar o irracional. A exatidão desta análise vem a ser confirmada pelo fato de que, na medida em que os grupos proletários marxistas ascendem ao poder, desfazem-se dos elementos dialéticos de sua teoria e começam a pensar segundo os métodos generalizados do liberalismo e da democracia, que buscam atingir a leis universais, enquanto os que, devido a sua posição, ainda têm de recorrer à revolução, se apegam ao elemento dialético (leninismo). O pensamento dialético é na verdade racionalista, mas culmina no irracionalismo. Acha-se constantemente buscando a resposta a duas perguntas: a primeira — qual a nossa oposição atual no processo social?; a segunda — qual a exigência do momento? A ação nunca é guiada simplesmente pelos impulsos, mas por uma compreensão sociológica da história. Mas nem por isso se deve concluir que os impulsos irracionais possam ser inteiramente eliminados por uma análise lógica da situação e das ocorrências de momento.

Somente ao agir na situação é que podemos endereçar-lhe perguntas, e a resposta conseguida vem sempre na forma do sucesso ou do fracasso da ação. A teoria não é arrancada de sua essencial conexão com a ação, e a ação constitui o meio de clarificação em que se testa e se desenvolve toda teoria. A contribuição positiva desta teoria é, por sua própria experiência social concreta, demonstrar cada vez mais convincentemente que o pensamento político difere essencialmente das outras formas de teorização. Este modo dialético de pensamento possui tanto maior importância quanto incorporou quer os problemas do racionalismo burguês, quer os do irracionalismo historicista. Do irracionalismo derivou a noção de que a esfera político-histórica não se compõe de uma variedade de objetos sem vida e, portanto, um método que procure apenas as leis deve fracassar. Além disso, este método está totalmente desperto para o caráter completamente dinâmico das tendências que dominam o campo político e, sendo consciente da conexão entre o pensamento político e a experiência viva, não irá tolerar uma separação artificial entre a teoria e a prática. Por outro lado, assumiu do racionalismo a inclinação a encarar racionalmente mesmo as situações que hajam anteriormente desafiado a interpretação racional. Como quinto pretendente a um lugar no seio das correntes de pensamento modernas, devemos mencionar o fascismo, que emergiu pela primeira vez em nossos dias. O fascismo possui uma concepção própria das relações entre a teoria e a prática. Tomado como um todo, o fascismo é ativista e irracional. Associa-se de preferência com as filosofias e com as teorias políticas irracionalistas do período mais moderno. Em especial Bergson, Sorel e Pareto se viram, evidentemente após uma conveniente modificação, incorporados à sua Weltanschauung. No coração de sua teoria e de sua prática situa-se a apoteose da ação direta, a crença no feito decisivo, e a importância atribuída à iniciativa de uma elite dirigente. A essência da política consiste em reconhecer e se apegar às exigências do momento. Os programas não têm importância, o que importa é a incondicional subordinação a um líder.24 A história não se faz com as massas, nem com as ideias, nem com as forças “atuando em silêncio”, mas com as elites que de tempos em tempos se afirmam.25 Este é um completo irracionalismo, mas de forma alguma o tipo de irracionalismo conhecido pelos conservadores, não o irracional que ao mesmo tempo é supra-racional, não o folk spirit (Volksgeist), não as forças atuando silenciosamente, não a crença mística na criatividade de longos períodos de tempo, mas o irracionalismo do feito que nega mesmo a interpretação da história. “Ser jovem significa ser capaz de esquecer. Nós, os italianos, naturalmente nos orgulhamos de nossa história, mas não precisamos fazer da história o guia consciente de nossas ações — ela vive em nós como parte de nossa constituição biológica”.26 Seria necessário um estudo especial para se definir os diversos significados das várias concepções de história. Seria fácil mostrar que as diversas correntes intelectuais e sociais possuem diferentes concepções de história. A concepção de história contida na formulação de Brodrero não pode ser comparada à concepção conservadora, à liberaldemocrática ou à socialista. Todas estas teorias, em outros aspectos tão antagônicas, partilham do pressuposto de que existe na história uma estrutura definida e averiguável e que dentro dela, por assim dizer, cada acontecimento detém sua devida posição. Nem tudo

é possível em cada situação.27 Este quadro de referência está em constante mudança e as alterações devem ser passíveis de compreensão. Certas experiências, ações e modos de pensamento, etc., somente são possíveis em certos lugares e em certas épocas. Referências à história e ao estudo da história ou da sociedade são valiosas porque tomá-las como orientação pode e deve tornar-se um fator determinante na conduta e na atividade política. Por mais diferentes que sejam os modelos derivados da história pelos conservadores, liberais e socialistas, todos concordam em que a história se compõe de um conjunto de inter-relações inteligíveis. Acreditava-se, a princípio, que a história manifestasse o plano da providência divina, mais tarde que demonstrava o propósito superior de um espírito dinâmica e panteisticamente concebido. Tais formulações nada mais eram do que tateios metafísicos em direção a uma hipótese extremamente fecunda para a qual a história não consistiria meramente em uma sucessão heterogênea de acontecimentos no tempo, e, sim, em uma interação coerente dos fatores de maior significação. Buscava-se compreender a estrutura interna da história para que dela se derivasse uma unidade de mensuração para a conduta de cada um. Enquanto os liberais e os socialistas continuam a acreditar que a estrutura histórica fosse inteiramente suscetível de racionalização, insistindo, os primeiros em que seu desenvolvimento era progressivamente unilinear e os últimos encarando-a como um movimento dialético, os conservadores buscavam compreender a estrutura da totalidade do desenvolvimento histórico intuitivamente, através de uma abordagem morfológica. Embora diferentes em método e em conteúdo, todos estes pontos-de-vista compreendiam a atividade política como ocorrendo num contexto histórico, concordando todos que, em nossa época, torna-se necessário que cada um se oriente face à situação total em que se esteja colocado, a fim de se atingir objetivos políticos. Esta ideia de história como um esquema inteligível desaparece em face da irracionalidade da apoteose fascista do feito. Até certo ponto isto já ocorria com o seu precursor sindicalista Sorel,28 que negara a ideia de evolução em um sentido análogo. Os conservadores, os liberais e os socialistas se unem ao pressupor que se pudesse demonstrar na história a existência de uma inter-relação entre os acontecimentos e as configurações, através da qual tudo, em virtude de sua posição, vem a adquirir uma significação. Nem todo acontecimento teria a possibilidade de acontecer em cada situação. O fascismo considera toda a interpretação da história como mera construção fictícia destinada a desaparecer perante o feito do momento quando este irrompe no padrão temporal da história.29 O estarmos aqui lidando com uma teoria que sustenta que a história é destituída de significado não sofre mudança pelo fato de que na ideologia fascista, especialmente depois de sua virada para a direita, se encontrem as noções de “guerra nacional” e a ideologia do “Império Romano”. Afora a circunstância de que estas noções tenham sido, desde o início, conscientemente experimentadas como mitos, isto é, como ficções, é preciso entender que o pensamento e a atividade historicamente orientados não significam a idealização romântica de alguma época ou de algum acontecimento passados, mas, antes, consistem na consciência do lugar que cada um ocupa no processo histórico, que tem uma estrutura nitidamente articulada. É esta nítida articulação da estrutura que torna inteligível a participação do indivíduo no processo.

O valor intelectual de todo o conhecimento político e histórico qua conhecimento desaparece em face desta abordagem puramente intuitiva, que somente aprecia o seu aspecto ideológico e mitológico. Nesta abordagem o pensamento somente possui significação na medida em que expõe o caráter ilusório destas teorias estéreis da história e as desmascara como enganos. Para este intuicionismo ativista, o pensamento apenas abre o caminho para o feito puro livre de ilusões. O indivíduo superior, o líder, sabe que todas as ideias políticas e históricas são mitos. Ele próprio se acha delas inteiramente emancipado, mas as avalia — e este é o reverso da medalha de sua atitude — porque são “derivações” (no sentido de Pareto) que estimulam os sentimentos entusiásticos e que põem em ação os “resíduos” irracionais existentes nos homens, e são as únicas forças que conduzem à atividade política.30 Eis uma tradução para a prática do que Sorel e Pareto31 formularam em suas teorias do mito e que vieram a resultar em sua teoria do papel das elites e das vanguardas. O ceticismo profundo frente à ciência e, em especial, em face das Ciências Culturais, derivado da abordagem intuitiva, não é difícil de compreender. Enquanto o marxismo dedicava uma fé quase religiosa à ciência, Pareto a considerava uma mecânica social formal. No fascismo, encontramos o sóbrio ceticismo deste representante da decadência burguesa combinado à autoconfiança de um movimento ainda na infância. O ceticismo de Pareto face ao cognoscível mantém-se intacto, sendo complementado por uma fé no feito em si e em sua vitalidade própria.32 Quando tudo o que seja peculiarmente histórico é tratado como inacessível à ciência, resta apenas à pesquisa histórica a exploração do estrato mais geral de regularidades que sejam as mesmas para todos os homens e para todas as épocas. Afora a mecânica social, só se reconhece a Psicologia Social. O conhecimento da Psicologia Social tem utilidade para os líderes meramente como uma técnica para manipular as massas. Este primitivo estrato profundo da psique humana é idêntico em todos os homens, quer tratemos do homem atual, quer do romano antigo, quer do homem da Renascença. Verificamos aqui que este intuicionismo veio de súbito a se fundir com a procura, por parte da burguesia contemporânea, de leis gerais. O resultado foi a gradativa eliminação no positivismo, como Comte, por exemplo, o apresentava, de todos os vestígios de uma filosofia da história, de modo a se construir uma Sociologia generalizadora. Por outro lado, os primórdios da concepção que caracteriza a teoria dos mitos úteis podem ser amplamente referidos ao marxismo. Existem, contudo, ao se examinar de mais perto a questão, diferenças essenciais. Também o marxismo levanta a questão da ideologia no sentido de “tecido de mentiras”, de “mistificações”, de “ficções”, que procura desmascarar. Mas não inclui nesta categoria todas as tentativas de interpretação da história, mas tão-só aquelas a que se opõe. Nem todo tipo de conhecimento ganha o rótulo de “ideologia”''. Somente os estratos sociais que tenham necessidade de disfarces e que, da posição histórica e social em que se encontram, são incapazes de perceber as verdadeiras inter-relações tais como estas existem na realidade, serão necessariamente vítimas destas experiências ilusórias. Mas toda ideia, mesmo uma ideia correta, pelo simples fato de que possa ser concebida, aparece como relacionada a uma certa situação histórico-social. O fato de que todo o pensamento se relaciona a uma certa situação histórico-social não o priva, entretanto, de qualquer

possibilidade de atingir a verdade. Por outro lado, a abordagem intuitiva, que tão repetidamente se afirma na teoria fascista, concebe o conhecimento e a razoabilidade como algo incerto, e as ideias como fenômenos de importância inteiramente secundária.33 Só um conhecimento limitado da história e da política é possível — a saber, o que se acha contido na mecânica social e na Psicologia Social acima referidas. Para o fascismo, a ideia marxista da história como uma integração estrutural de forças econômicas e sociais também não passa, em última análise, de um mito. Assim como o caráter do processo histórico se desintegra no decurso dos tempos, assim também se rejeita a concepção classista da sociedade. Não existe um proletariado — existem apenas proletários.34 É característico deste tipo de pensamento e deste modo de vida dissolver-se a história em uma variedade de situações transitórias em que dois fatores são decisivos; por um lado, o êlan do grande líder e da vanguarda ou elites, e, do outro, o domínio do único tipo de conhecimento que se acredita possível obter e que se refere à psicologia das massas e à técnica de sua manipulação. A política somente é possível como ciência em um sentido restrito — a saber, na medida em que abre caminho para a ação. Ela faz isso de duas maneiras: primeiro — destruindo todas as ilusões que nos fazem ver a história como um processo; segundo — levando em conta e observando o espírito coletivo, e especialmente seus impulsos energéticos e seu funcionamento. Mas, em grande parte, esta psique coletiva segue, de fato, leis destituídas de conotação temporal, pois que ela mesma está fora do curso do desenvolvimento histórico. Em contraposição, o caráter histórico da psique social só é perceptível a grupos e pessoas que ocupam uma posição definida na estrutura social histórica. Em última análise, esta teoria da política tem suas raízes em Maquiavel, que já havia lançado seus princípios fundamentais. A ideia de virtú antecipa o élan do grande líder. Um realismo corrosivo que destrói todos os ídolos, e o constante recurso a uma técnica para a manipulação psíquica das massas, profundamente desprezadas, serão igualmente encontrados em seus escritos, muito embora estes possam diferir em detalhe das concepções fascistas. Finalmente, a tendência a negar a existência de um plano na história e a adoção da teoria da intervenção direta do feito são igualmente antecipadas. Mesmo a burguesia tem com frequência dado lugar em sua teoria a esta doutrina referente à técnica política, colocando-a, como Stahl pôde ver muito acertadamente, ao lado da ideia da lei natural, que desempenhava função normativa,35 sem no entanto ligar as duas. Quanto mais os ideais burgueses e a correspondente visão da história eram em parte realizados e em parte desintegrados pela desilusão, em virtude da elevação da burguesia ao poder, tanto mais este cálculo racional, destituído de quaisquer considerações pela sequência histórica dos fatos, era reconhecido como a única forma de conhecimento político. No período mais recente, esta técnica política totalmente desvinculada veio a se associar ao ativismo e ao intuicionismo, que negavam a inteligibilidade da história, convertendo-se na ideologia dos grupos que a uma mudança gradual e evolutiva, preferem a colisão direta e explosiva com a história. Esta atitude assume várias formas — aparecendo de início do anarquismo de Bakunin e de Proudhon, depois no sindicalismo de Sorel, e finalmente no fascismo de Mussolini.36 Do ponto-de-vista sociológico, seria esta a ideologia dos grupos “putschistas” guiados por intelectuais estranhos ao estrato de líderes liberal-burgueses e socialistas, que

esperam conquistar o poder explorando as crises que atacam constantemente a sociedade moderna em seu período de transformação. Este período de transformação, quer conduza ao socialismo, quer a uma economia capitallsticamente planificada, se caracteriza pelo fato de oferecer oportunidades intermitentes ao emprego de táticas putschistas. Na medida em que contém em si os fatores irracionais da vida econômica e social, atrai os elementos irracionais explosivos do espírito moderno. A exatidão da interpretação desta ideologia como expressão de um determinado estrato social é comprovada pelo fato de que as interpretações históricas baseadas neste ponto-de-vista se orientam na direção da esfera irracional acima referida. Estando psicológica e socialmente situados em um ponto de onde só conseguem discernir o que há de desordenado e de não-racionalizado na evolução da sociedade, o desenvolvimento estrutural e o quadro integrado da sociedade permanecem ocultos a seu campo de visão. É quase possível estabelecer uma correlação sociológica entre o tipo de pensamento a que os grupos organizados ou orgânicos recorrem, e uma interpretação sistemática e consistente da história. Por outro lado, existe uma profunda afinidade entre os grupos sem raízes sociais e um intuicionismo a-histórico. Quanto mais os grupos organizados e orgânicos se expõem a desintegração, tanto mais tendem a perder a inclinação a uma concepção consistentemente ordenada da história e tanto mais se inclinam ao imponderável e ao fortuito. À medida que os grupos golpistas espontaneamente organizados vão-se tornando mais estáveis, tornam-se igualmente mais receptivos às grandes perspectivas históricas e a uma visão ordenada da sociedade. Muito embora complicações históricas entrem frequentemente no processo, deve-se manter sempre presente este esquema, pois que delineia tendências e oferece hipóteses fecundas. Uma classe ou outro grupo orgânico similar nunca vê a história como constituída de acidentes transitórios e desconexos; tal somente é possível para grupos que surjam no seu interior. O próprio momento não-histórico concebido pelo ativismo, que espera dele fazer uso, é na realidade arrancado ao seu contexto histórico mais amplo. O conceito de prática, nesse modo de pensamento, constitui, da mesma forma, parte integrante da técnica golpista, enquanto os grupos socialmente mais integrados, mesmo quando em oposição à ordem existente, concebem a ação como um movimento contínuo no sentido da realização de seus fins.37 O contraste entre o élan dos grandes líderes e das elites, de um lado, e a turba cega, do outro, revela o cunho de uma ideologia característica de intelectuais mais interessados em conseguir autojustificações do que em obter apoio exterior. Trata-se de uma contra ideologia às pretensões de uma liderança que se considera um órgão de expressão dos interesses de amplos estratos sociais. O que vem a ser exemplificado pelo estrato dos líderes conservadores que se consideravam órgão do “povo”;38 pelos liberais que se acreditavam a encarnação do espírito da época (Zeitgeist), e pelos socialistas e comunistas que se supõem agentes de um proletariado com consciência de classe. Essa diferença nos métodos de autojustificação permite ver que os grupos que operam com a dicotomia líder-massa constituem elites ascendentes ainda socialmente desvinculadas, por assim dizer, e que ainda têm de criar uma posição social para si. Não se acham primariamente interessados em derrubar, reformar ou preservar a estrutura social — sua principal preocupação consiste em suplantar as elites dominantes existentes, substituindo-as por outras. Não é por acaso que um dos grupos encara a história como uma

circulação de elites, enquanto para os demais a história é uma transformação da estrutura histórico-social. Cada um deles só consegue ver, fundamentalmente, o aspecto da totalidade histórica e social a que o seu propósito o oriente. No processo de transformação da sociedade moderna existem, como já havíamos mencionado, períodos em que os mecanismos criados pela burguesia para a continuidade regulada da luta de classes (como o parlamentarismo) se revelam insuficientes. Há períodos em que o curso da evolução falha tempo- ràriamente, e as crises se tornam agudas. As relações de classe e a estratificação de classes se tornam tensas e deformadas. A consciência de classe dos grupos em conflito se faz confusa. Nestes períodos é fácil emergirem formações transitórias, e tendo os indivíduos perdido ou esquecido suas orientações de classes, vem a surgir a massa. E, em tais momentos, torna-se possível uma ditadura. A visão fascista da história e a sua abordagem intuitiva, que serve de preparativo para a ação imediata, transformaram o que não passa de uma situação parcial em uma visão total da sociedade. Com a restauração do equilíbrio que se segue à crise, as forças histórico-sociais organizadas tornam-se de novo atuantes. Ainda que a elite, alçada ao poder durante a crise, seja capaz de se ajustar satisfatoriamente à nova situação, as forças dinâmicas da vida social voltam apesar disso a se afirmar como anteriormente. Não é que houvesse uma alteração na estrutura social, mas um embaralhamento — uma troca de pessoal entre as várias classes sociais dentro do quadro do processo social, que continua a evoluir. A história moderna já presenciou, com certas modificações, um exemplo de tal ditadura: é o caso de Napoleão. Historicamente, esta ditadura não significou outra coisa que a ascensão de certas elites. Sociologicamente, constituiu uma indicação da vitória da burguesia ascendente, que sabia como explorar o imperialismo napoleônico para as suas próprias finalidades. Pode ocorrer que os elementos do espírito que ainda não tenham sido racionalizados se cristalizem sempre de novo em uma estrutura social mais estável. Pode também acontecer que a posição subjacente a esta filosofia irracionalista seja inadequada para abarcar as amplas tendências de desenvolvimento histórico e social. Mesmo assim, a existência destas explosões de curta duração atrai a atenção para os abismos irracionais ainda não-compreendidos e incompreensíveis pelos métodos históricos ordinários. Os elementos ainda não-racionalizados juntam-se aqui aos não-históricos e aos elementos da vida que não possam ser reduzidos a categorias históricas. Vislumbramos um campo que, até agora, parece ter permanecido imutável. Inclui os instintos biológicos cegos que, em sua identidade eterna, se encontram na base de todos os acontecimentos históricos. Estas forças podem ser dominadas externamente por uma técnica, nunca podendo, entretanto, atingir o nível da significação, nunca podendo ser entendidas internamente. Além deste elemento biológico sub-histórico, iremos igualmente encontrar nesta esfera um elemento espiritual transcendental. É desse elemento, não inteiramente incorporado na história, e que, como algo não-histórico e alheio a nosso pensamento, escapa à compreensão, que os místicos falaram. Apesar de os fascistas não o mencionarem, devemos não obstante alinhá-lo como o outro grande desafio ao racionalismo histórico. Tudo o que se fez inteligível, compreensível, racionalizado, organizado, estruturado, elaborado artisticamente e de outras maneiras, e, consequentemente, tudo o que é histórico parece de fato se colocar entre estes dois polos extremos. Se tentarmos observar,

deste ponto intermédio, as inter-relações dos fenômenos, jamais chegaremos a ver o que se situa acima e abaixo da história. Se, por outro lado, nos colocarmos em qualquer destes polos extremos e irracionais, perderemos completamente de vista a realidade histórica em sua concretude. Os atrativos do tratamento fascista do problema das relações entre a teoria e a prática residem no fato de designar como ilusão todo o pensamento. O pensamento político pode ser de valia para despertar o entusiasmo para a ação, sendo contudo inútil como um meio de compreensão científica do campo da “política”, que envolve a previsão do futuro. É extraordinário que o homem, vivendo no brilho ofuscante do irracional, ainda seja capaz de dominar, em cada momento, o conhecimento empírico necessário para prosseguir sua vida cotidiana. Sorel observou certa vez a este respeito: “Sabemos que os mitos sociais não impedem o homem de ser capaz de aproveitar todas as observações feitas no curso da vida cotidiana nem interferem na execução de suas tarefas regulares”. E, ao pé da página, acrescenta: “Tem-se notado com frequência que os sectários americanos e ingleses, cuja exaltação religiosa é sustentada por mitos apocalípticos, são apesar disso, em muitos casos, pessoas bastante práticas”.39 Assim, o homem pode agir a despeito de pensar. Tem insistido com frequência que mesmo o leninismo contém umas tinturas de fascismo. Mas seria um equívoco desprezar-se as diferenças ao se enfatizar as similaridades. O elemento comum às suas visões restringe-se meramente à atividade de minorias agressivas. Somente porque o leninismo constituiu originalmente a teoria de uma minoria inflexivelmente determinada a conquistar o poder por meios revolucionários foi que a teoria da importância dos grupos dirigentes e de sua energia decisiva veio a ser colocada em primeiro plano. Mas esta teoria jamais se refugiou em um irracionalismo completo. O grupo bolchevista era apenas uma minoria ativa dentro de um movimento de classe de um proletariado cada vez mais autoconsciente, de modo que os aspectos ativistas irracionais de suas doutrinas eram constantemente sustentados pela assumpção da inteligibilidade racional do processo histórico. O espírito a-histórico do fascismo pode ser em parte derivado do espírito de uma burguesia já no poder. Uma classe que já tenha ascendido na escala social tende a conceber a história em termos de eventos isolados e sem ligação. Os acontecimentos históricos somente aparecem como um processo enquanto a classe que observa tais acontecimentos ainda espera alguma coisa deles. Somente estas expectativas podem dar ocasião a utopias, por um lado, e a conceitos de processo, do outro. Contudo, o sucesso no conflito de classes afasta o elemento utópico, e relega as visões mais amplas para o segundo plano, a fim de melhor dedicar suas forças às tarefas imediatas. O resultado é que, em lugar de uma visão do conjunto que anteriormente levava em consideração as tendências e as estruturas totais, surge uma imagem do mundo composta de meros acontecimentos imediatos e fatos isolados. A ideia de um “processo” e da inteligibilidade estrutural da história se converte em um simples mito. O fascismo é capaz de adotar serenamente este repúdio burguês da história como estrutura e processo, sem nenhuma inconveniência, já que o próprio fascismo é o expoente de grupos burgueses. Em conformidade com isso, não tem a intenção de substituir a ordem social existente por outra, mas apenas a de substituir um grupo dirigente por outro grupo dirigente, dentro da configuração de classes existente.40 As probabilidades de uma vitória

fascista, bem como as de uma justificação de sua teoria histórica, dependem da ocorrência de conjunturas em que uma crise desorganize tão profundamente a ordem capitalista burguesa que os meios mais evolucionários de se levar avante o conflito de interesses não sejam mais suficientes. Nestes momentos as probabilidades de conquistar o poder estão com os que souberem utilizar a ocasião com a necessária energia, estimulando as minorias ativas ao ataque, e, dessa forma, arrebatando o poder.

3. A síntese das diversas perspectivas como um problema de sociologia política Nas páginas anteriores tentamos mostrar concretamente como um mesmo problema, ou seja, o da relação entre a teoria e a prática, assumia uma forma diferente de acordo com as posições políticas diferentes de que era abordado. O que ocorre com esta questão básica de qualquer política científica permanece igualmente válido para quaisquer outros problemas específicos. Pode-se demonstrar em todos os casos que não só diferem as orientações fundamentais, as avaliações e o conteúdo das ideias, mas que a maneira de formular um problema, o tipo de abordagem utilizada, e mesmo as categorias em que experiências são classificadas, coligidas e ordenadas, variam de acordo com a posição social do observador. Se o decurso das lutas políticas até agora tem demonstrado decisivamente que existe uma íntima relação entre a natureza das decisões políticas e a perspectiva intelectual, a conclusão aparente seria a de que é impossível uma ciência da política. Mas é precisamente neste ponto, em que as dificuldades se tornam mais pronunciadas, que atingimos um momento decisivo. A esta altura emergem duas novas possibilidades e, neste ponto da formulação do problema, vemos dois caminhos, ambos praticáveis. Por um lado, pode-se dizer: desde que, no campo da política, o único conhecimento que possuímos é um conhecimento limitado pela posição que ocupamos, e, desde que a formação de partidos constitui estruturalmente um elemento irremovível da política, segue-se que a política somente pode ser estudada de um ponto-de-vista partidário e ensinada em uma escola partidária. Acredito, de fato, que este raciocínio se mostre um caminho de que se seguem desenvolvimentos imediatos. Entretanto, tem-se tornado evidente e promete se tornar ainda mais que, devido ao caráter complexo da sociedade contemporânea, os métodos tradicionais de se preparar a futura geração de líderes políticos, que até então possuíam um caráter largamente acidental, não são mais adequados para suprir o político moderno com o conhecimento necessário. Os partidos políticos acharão portanto necessário desenvolver suas escolas partidárias com um cuidado e uma elaboração sempre crescentes. Não só irão fornecer o conhecimento fatual que habilite os prováveis líderes políticos a formular juízos fatuais quanto a problemas concretos, mas irão igualmente inculcar os pontos-de-vista respectivos, a partir dos quais a experiência possa ser organizada e controlada. Todo ponto-de-vista político implica, ao mesmo tempo, mais do que a mera afirmação ou rejeição de um conjunto inquestionável de fatos. Implica também uma Weltanschauung bastante compreensiva. A significação atribuída a esta última pelos líderes

políticos vem a se evidenciar nos esforços de todos os partidos em moldar o pensamento das massas, não só de um ponto-de-vista partidário, mas também do ponto-de-vista de uma Weltanschauung. A pedagogia política significa a transmissão de uma particular atitude face ao mundo, que irá permear todos os aspectos da vida. A educação política significa, hoje em dia, uma concepção definida da história, um certo modo de interpretar os acontecimentos, e uma tendência a procurar uma orientação filosófica de um modo definido. Esta clivagem de modos de pensamento e Weltanschauung, bem como esta crescente diferenciação de acordo com posições políticas, vêm-se processando com intensidade cada vez maior desde o início do século XIX. A formação de escolas partidárias irá acentuar esta tendência, e a levará à sua conclusão lógica. A formação de escolas partidárias e o desenvolvimento de teorias partidárias constituem, no entanto, apenas uma das consequências inevitáveis da situação atual. Consequência que interessa aos que, por ocuparem uma posição extrema na ordem social, devam apegar-se a seu partidarismo, conceber os antagonismos como absolutos, e suprimir qualquer concepção do todo. A situação atual propicia ainda outra possibilidade, que repousa, por assim dizer, no reverso do caráter fundamentalmente partidário da orientação política. Esta alternativa, pelo menos tão importante quanto a anterior, consiste no seguinte: não só é reconhecido o caráter necessariamente partidário de toda forma de conhecimento político, mas também o caráter peculiar de cada variedade. Tornou-se hoje indiscutivelmente claro que todo conhecimento político, ou que implique uma visão de mundo, é inevitavelmente partidário. O caráter fragmentário de todo o conhecimento é reconhecível claramente. Mas isso implica a possibilidade de uma integração de muitos pontos-de-vista mutuamente complementares em um todo amplo. Exatamente por nos acharmos, hoje em dia, em uma posição que nos possibilita ver com crescente nitidez que as opiniões e as teorias mutuamente opostas não são infinitas em número, nem produtos de uma vontade arbitrária e sim mutuamente complementares, derivando de situações sociais específicas, é que a política como ciência se torna, pela primeira vez, possível. A atual estrutura da sociedade possibilita uma ciência política que não será apenas uma ciência partidária, mas uma ciência do todo. A Sociologia Política, enquanto ciência que engloba toda a esfera política, atinge assim a fase de realização. Com isso, surge a demanda de uma instituição de base mais ampla que uma escola partidária, em que se possa desenvolver esta ciência da totalidade política. Antes de nos dedicarmos à possibilidade e estrutura deste tipo de investigação, é necessário estabelecer com maior firmeza a tese de que cada ponto-de-vista particular necessita ser complementado por todos os demais. Recordemos o exemplo que utilizamos para ilustrar a base partidária de todo problema. Verificamos que apenas determinados aspectos e áreas limitados da realidade histórica e política se revelam a cada um dos vários partidos. O burocrata restringia seu campo de visão à parte estabilizada da vida do Estado, o conservantismo histórico somente podia ver as regiões em que o Volksgeist, atuando silenciosamente, ainda se achasse em operação e em que, como na esfera dos usos e costumes, na associação religiosa e cultural,

forças orgânicas e não-organizadas estivessem atuando. O conservantismo histórico estava também ciente de que havia lugar para um tipo peculiar de racionalidade nesta esfera de forças orgânicas: tinha de decifrar as tendências inerentes de crescimento. Apesar de sua unilateralidade consistir no exagero da importância dos elementos irracionais na mente e das forças sociais irracionais, a ele correspondentes, na realidade histórica e social, o conservantismo histórico, não obstante, ressaltou um ponto importante que não poderia ser percebido de nenhum outro ponto-de-vista. O mesmo se aplica aos pontos- -de-vista restantes. O pensamento burguês democrático tanto descobriu como desenvolveu a possibilidade de um meio racional de levar avante o conflito de interesses na sociedade, que manterá sua realidade e função na vida moderna enquanto forem possíveis os métodos pacíficos do conflito de classes. O desenvolvimento desta abordagem dos problemas políticos constituiu uma realização histórica e duradoura da burguesia, podendo-se apreciar o seu valor, muito embora a unilateralidade de seu intelectualismo tenha ficado completamente exposta. O espírito burguês tinha um interesse social vital em ocultar a si mesmo, por meio deste intelectualismo, os limites de sua racionalização. Daí agir como se os conflitos reais pudessem ser plenamente resolvidos pela discussão. Deixou, porém, de compreender que, intimamente ligado ao campo da política, surgia um novo tipo de pensamento em que não se poderia separar a teoria da prática, nem o pensamento da intenção. Em parte alguma, o caráter mutuamente complementar das visões parciais social e politicamente determinadas será mais nitidamente visível do que aqui. Pois é aqui que se torna mais uma vez manifesto que o pensamento socialista começa onde o pensamento burguês democrático atinge seus limites, e que veio a lançar nova luz precisamente sobre aqueles fenômenos que seus predecessores, devido à conexão íntima com seus próprios interesses, haviam deixado obscurecido. Ao marxismo deve-se reconhecer a descoberta de que a política não consiste simplesmente em partidos parlamentares e nas discussões que mantêm, e que estes, qualquer que seja a forma concreta de que se revistam, são apenas a expressão de superfície de situações sociais e econômicas mais profundas, que podem tornar-se inteligíveis em grande parte, através de um novo modo de pensamento. Estas descobertas assinalam a colocação da discussão em um nível mais alto, de onde se pode obter uma visão mais extensa e inclusiva da história e uma concepção mais clara do que realmente constitui o domínio da política. A descoberta do fenômeno da ideologia se acha estruturalmente associada, de modo íntimo, a esta descoberta. Apesar de bastante unilateral, é a primeira tentativa de definir a posição do pensamento socialmente vinculado em oposição à “teoria pura”. Finalmente, para voltar à última antítese, enquanto o marxismo dedicava uma atenção exagerada e superenfatizava o fundamento puramente estrutural da esfera política e histórica, o fascismo voltava sua atenção para os aspectos amorfos da vida, para os “momentos” ainda presentes e importantes em situações críticas, em que as forças de classe se tornam desconexas e confusas, quando as ações dos homens, agindo como membros de massas transitórias, assumem importância, e quando o resultado depende inteiramente das vanguardas e dos líderes que momentaneamente dominem a situação. Mas também aqui se trataria de uma superênfase de uma fase isolada da realidade histórica considerar estas eventualidades, muito embora de ocorrência frequente, como a essência da realidade histórica. A divergência das teorias políticas deve-se sobretudo ao fato de que as diferentes

posições e pontos sociais vantajosos, ao emergirem na corrente da vida social, habilitam cada indivíduo a reconhecer, do ponto de observação particular que ocupa naquela corrente, a própria corrente. Assim, em diferentes épocas, emergem interêsses sociais elementares diferentes e, em consonância, diferentes objetos de atenção, na estrutura total, são iluminados e vistos como se fossem os únicos existentes. Todos os pontos-de-vista, em política, são apenas parciais, porque a totalidade histórica é sempre demasiado mais ampla para ser apreendida por qualquer dos pontos-devista individuais que dela emergem. Contudo, já que todos eles emergem da mesma corrente social e histórica, e já que sua parcialidade existe na matriz de um todo emergente, é possível vê-los em justaposição, e sua síntese se torna um problema que deve ser continuamente reformulado e resolvido. A síntese constantemente revista e renovada dos pontos-de-vista particulares existentes torna-se tanto mais possível quanto as tentativas de síntese, igualmente, possuem uma tradição, da mesma forma que o conhecimento fundado no partidarismo. Não tentou Hegel, chegando ao término de uma época relativamente fechada, sintetizar, em sua obra, as tendências que até então se haviam desenvolvido independentemente? Muito embora estas sínteses se revelassem, repetidas vezes, sínteses parciais que se desintegravam no decorrer do desenvolvimento subsequente, produzindo, por exemplo, o hegelianismo de direita e o hegelianismo de esquerda, muito embora não fossem sínteses absolutas, mas sínteses relativas, não deixavam de indicar uma direção bastante promissora. A exigência de uma síntese absoluta e permanente viria, segundo nossa opinião, a significar uma recaída na visão de mundo estática do intelectualismo. Numa esfera em que tudo se acha em processo de transformação, a única síntese adequada seria uma síntese dinâmica, reformulada de tempos em tempos. Existe ainda, contudo, a necessidade de solucionar um dos mais importantes problemas que podem ser postos, ou seja, de fornecer a visão do todo mais englobante que seja possível em um dado momento. Tentativas de síntese não aparecem sem relações umas com as outras, pois cada síntese, ao resumir as forças e opiniões de seu tempo, prepara o caminho para a seguinte. Pode-se notar um certo progresso em direção a uma síntese absoluta, no sentido utópico, no fato de cada síntese tentar alcançar uma perspectiva mais ampla do que a precedente, vindo a última a incorporar os resultados das que a precederam. Neste ponto da discussão surgem duas dificuldades, mesmo no tocante à síntese relativa. A primeira provém do fato de não mais podermos conceber a parcialidade de um ponto-de-vista como sendo meramente uma questão de grau. Se a clivagem nas percepções políticas e filosóficas consistisse apenas em que cada uma delas se dedicasse a outro lado ou seção do conjunto, cada uma iluminando apenas um segmento particular dos acontecimentos históricos, uma síntese por adição seria possível sem maiores problemas. Bastaria, tão-só, adicionar essas verdades parciais e reuni-las em um todo. Mas esta concepção simplificada não é mais sustentável desde o momento em que vimos que a determinação dos pontos-de-vista particulares por suas situações se baseia não apenas na seleção do tema, mas também na divergência dos aspectos e das maneiras de colocar o problema, e, finalmente, na divergência do aparato categórico e dos princípios de

organização. A questão consiste, portanto, no seguinte: será possível a diferentes estilos de pensamento (com o que nos referimos às diferenças nos modos de pensar acima descritas) fundir-se um com o outro e sofrer uma síntese? O curso do desenvolvimento histórico mostra a possibilidade desta síntese. Toda análise concreta do pensamento, que procede sociologicamente e busca revelar a sucessão histórica de estilos de pensamento, indica que estes sofrem uma ininterrupta fusão e interpenetração. Ainda mais, as sínteses de estilos de pensamento não são efetuadas apenas pelos que sejam basicamente sintesistas e que tentem, mais ou menos conscientemente, englobar em seu pensar toda uma época (Hegel, por exemplo). Fazem-nas também certos grupos contendores, na medida em que tentam unificar e conciliar pelo menos todas as correntes em conflito que encontrem em sua própria esfera limitada. Assim Stahl pretendeu reunir no conservantismo todas as tendências afins de pensamento, até então existentes, ligando, por exemplo, o historicismo ao teísmo. O próprio Marx dedicou-se à fusão da tendência generalizadora do pensamento liberal-burguês com o historicismo hegeliano que era de origem conservadora. Claro está, portanto, que não apenas os conteúdos do pensamento, mas também a própria base do pensamento, estão sujeitos à síntese. Esta síntese de estilos de pensamento, que até então se desenvolviam separadamente, parece tanto mais necessária, já que o pensar deve visar constantemente o aumento da capacidade de seu âmbito categórico formal, quanto pretenda dominar os problemas que crescem diariamente em número e dificuldade. Se mesmo aqueles cujos pontos-de-vistas são partidariamente vinculados constatam a necessidade de uma perspectiva mais ampla, esta tendência deveria mostrar-se ainda mais pronunciada entre os que, desde o início, buscaram a compreensão mais inclusiva possível da totalidade.

4. O problema sociológico da “intelligentsia” A segunda dificuldade que surge no presente estágio do problema consiste no seguinte: como devemos conceber os portadores sociais e políticos de qualquer síntese existente? Que interesse político irá assumir o problema da síntese e quem se empenhará em realizá-la na sociedade? Assim como em um período anterior iríamos recair em um intelectualismo estático se, ao invés de visarmos uma síntese relativa dinâmica, tivéssemos adotado uma síntese supratemporal e absoluta, da mesma forma corremos neste ponto o risco de perder de vista a natureza interessada, até agora constantemente enfatizada, do pensamento político, e de presumir que a síntese possa vir de uma fonte exterior à arena política. Uma vez reconhecido que o pensamento político está sempre vinculado a uma posição na ordem social, é coerente supor que a tendência a uma síntese total deva estar incorporada na vontade de algum grupo social. E, com efeito, um rápido relance pela história do pensamento político mostra que os expositores de síntese sempre representaram estratos sociais definidos, sobretudo classes que se sentiam ameaçadas de cima e de baixo e que, por necessidade social, procuram escapar por um caminho intermediário. Mas esta busca de um compromisso assume, desde o princípio, tanto uma forma estática quanto uma forma dinâmica. A posição social do grupo

a que se filiam os portadores da síntese determina amplamente qual destas duas alternativas deverá ser enfatizada. A forma estática de mediação dos extremos foi tentada, em primeiro lugar, pela burguesia vitoriosa, especialmente no período da monarquia burguesa na França, onde se exprimia no princípio do juste milieu. Este chavão constitui, no entanto, mais uma caricatura de uma verdadeira síntese do que sua solução, que somente pode ser uma solução dinâmica. Assim, tal chavão bem pode servir para mostrar que erros uma solução precisa evitar. Uma verdadeira síntese não é a média aritmética de todas as diversas aspirações dos grupos existentes na sociedade. Se assim fosse, tenderia apenas a estabilizar o status quo em benefício dos que acabam de ascender ao poder e que desejam proteger seus ganhos contra os ataques tanto da “direita” como da “esquerda”. Pelo contrário, uma síntese válida deve-se basear numa posição política que venha a constituir um desenvolvimento progressivo, no sentido de reter e utilizar boa parte das aquisições culturais e energias sociais acumuladas na época anterior. Ao mesmo tempo, a nova ordem deve permear os mais amplos setores da vida social, deve adquirir raízes naturais na sociedade, a fim de colocar em ação o seu poder de transformação. Esta posição requer uma especial vigilância para com a realidade histórica do presente. O “aqui” espacial e o “agora” temporal de cada situação devem ser considerados no sentido histórico e social, e sempre lembrados a fim de, em cada caso, se determinar o que já não é necessário e o que ainda pão é possível. Tal visão experimental, incessantemente sensível à natureza dinâmica da sociedade e à sua unicidade, não virá provavelmente a ser desenvolvida por uma classe que ocupe uma posição intermédia, mas por um estrato relativamente sem classe, cuja situação na ordem social não seja demasiado firme. O estudo da história, com referência a esta questão, fornecerá uma sugestão bastante fecunda. Este estrato desamarrado, relativamente sem classe, consiste, para usar a terminologia de Alfred Weber, na “intelligentsia socialmente desvinculada” (freischwebende Intelligenz). Seria impossível, a este respeito, esboçar mesmo o mais esquemático dos resumos do difícil problema sociológico colocado pela existência do intelectual. Mas os problemas de que estamos tratando não poderiam ser formulados adequadamente, e muito menos resolvidos, sem que abordássemos certas questões relativas à posição dos intelectuais. Uma Sociologia orientada apenas para a referência a classes socioeconômicas jamais compreenderá adequadamente este fenômeno. De acordo com esta teoria, os intelectuais constituem uma classe, ou, pelo menos, um apêndice de uma classe. Poderia assim descrever corretamente certos determinantes e componentes desse corpo social desvinculado, mas nunca a qualidade essencial do conjunto. Sem dúvida, ocorre que grande parte de nossos intelectuais provém dos estratos rentistas, cujos rendimentos derivam direta ou indiretamente de aluguéis e juros sobre investimentos. Mas, nesse caso, certos grupos de funcionários e das chamadas profissões liberais seriam igualmente membros da intelligentsia. Entretanto, um exame mais próximo da base social destes estratos mostrará que são menos claramente identificados a uma classe do que aqueles que participam mais diretamente no processo econômico. A se completar este corte sociológico por uma visão histórica da questão, veremos que se pronuncia uma heterogeneidade ainda maior entre os intelectuais. As mudanças nas relações de classe, ocorridas em épocas diversas, afetam favoravelmente alguns desses

grupos, e desfavoravelmente outros. Em consequência, não se pode sustentar que sejam homogeneamente determinados. Embora sejam por demais diferenciados para que se os considere como uma classe, existe, no entanto, entre todos os grupos de intelectuais, um vínculo sociológico de unificação, ou seja, a educação, que os enlaça de modo surpreendente. A participação em uma herança cultural comum tende progressivamente a suprimir as diferenças de nascimento, status, profissão e riqueza, e a unir os indivíduos instruídos com base na educação recebida. Em minha opinião, nada poderia ser mais errado do que interpretar mal esta afirmação, sustentando que os laços de classe e de status do indivíduo venham, em virtude disto, a desaparecer completamente. Constitui, entretanto, uma característica peculiar a esta nova base de associação o fato de que preserve a multiplicidade dos elementos componentes em toda a sua variedade, por criar um meio homogêneo dentro do qual as partes em conflito podem aferir suas forças. A educação moderna é, por sua origem, uma luta viva, uma réplica, em pequena escala, dos propósitos e tendências em conflito que se entrechocam na sociedade mais ampla. Consequentemente, o homem instruído é determinado, quanto ao seu horizonte intelectual, de múltiplas maneiras. Essa herança cultural adquirida sujeita-o à influência de tendências opostas na realidade social, enquanto a pessoa cuja orientação face ao todo não se processa em virtude da sua instrução, mas que participa diretamente no processo social de produção, tende simplesmente a absorver a Weltanschauung desse grupo particular e a agir exclusivamente sob a influência das condições impostas por sua situação social imediata. Um dos fatos mais marcantes da vida moderna é que, nela, diversamente do que acontecia nas culturas precedentes, a atividade intelectual não é exercida de modo exclusivo por um classe social rigidamente definida, como a dos sacerdotes, mas por um estrato social em grande parte desvinculado de qualquer classe social e recrutado em uma área mais extensa da vida social. Este fato sociológico determina essencialmente a singularidade do espírito moderno que, caracteristicamente, não se baseia na autoridade de um clero, não sendo fechado e acabado, mas dinâmico, elástico, em estado de constante fluidez e perpetuamente confrontado com novos problemas. O próprio humanismo já era, em grande parte, a expressão de um estrato mais ou menos socialmente emancipado, e sempre que a nobreza se fazia portadora de cultura rompia em muitos pontos a fixidez de uma mentalidade vinculada a classe. Mas somente depois de chegarmos ao período da ascendência burguesa é que o nível da vida cultural vai-se tornando cada vez mais desligado de uma classe determinada. A burguesia moderna teve, desde o início, uma dupla raiz social — por um lado, os proprietários de capital; por outro, os indivíduos cujo único capital consistia em sua instrução. Era comum, por isso, falar-se na classe proprietária e instruída, sem que, no entanto, o elemento instruído de forma alguma estivesse ideologicamente de acordo com o elemento proprietário.41 Surge, então, no interior desta sociedade profundamente dividida por cisões de classe um estrato que uma Sociologia orientada exclusivamente em termos de classe dificilmente poderia compreender. Não obstante, a posição social específica deste estrato pode ser adequadamente caracterizada. Apesar de situado entre classes, não forma uma classe média. Claro que não se acha suspenso em um vácuo em que os interesses sociais

não penetrem; pelo contrário, resume em si mesmo todos os interesses que permeiam a vida social. Com o aumento em número e variedade das classes e estratos em que se recrutam os diversos grupos de intelectuais, observam-se maiores multiplicidade e contraste nas tendências que, atuando ao nível intelectual, os ligam uns aos outros. Então, o indivíduo participa mais ou menos da massa de tendências em conflito mútuo. Enquanto os que participam diretamente no processo de produção — o operário e o empresário — estando vinculados a uma classe e a um ponto-de-vista particulares têm os seus pontos-de-vista e atividades direta e exclusivamente determinados por suas situações sociais específicas, os intelectuais, além de portarem indubitàvelmente a marca de sua afinidade específica de classe, são também determinados, em seus pontos-de-vista, por este meio intelectual que contém todos os pontos-de-vista contraditórios. Esta situação social sempre forneceu a energia potencial que habilitava os intelectuais mais eminentes a desenvolverem a sensibilidade social indispensável para que se tornassem sintonizados com as forças dinamicamente em conflito. Cada ponto-de-vista era constantemente examinado quanto à sua importância para a situação presente. Além disso, exatamente por meio dos vínculos culturais deste grupo, atingiu-se uma apreensão tão profunda da situação total que a tendência a uma síntese dinâmica reaparecia constantemente, apesar das deformações temporárias que ainda teremos de estudar. Até agora, tem-se quase que exclusivamente enfatizado o aspecto negativo do “desvinculamento” dos intelectuais, sua instabilidade social e o caráter predominantemente calculista de sua mentalidade. Foram, em especial, grupos politicamente extremistas que, exigindo uma declaração definida de simpatias, rotularam este traço de “falta de caráter”. Resta indagar, entretanto, se, na esfera política, a decisão a favor de uma mediação dinâmica não constituirá uma decisão tanto quanto o é a adoção brusca de teorias de ontem ou a ênfase unilateral nas teorias de amanhã. Duas são as linhas de ação efetivamente adotadas pelos intelectuais desvinculados como saída para esta posição a meio caminho: uma, que corresponde à voluntária filiação a uma ou outra das várias classes antagônicas; outra, o exame de suas próprias raízes sociais e a tentativa de cumprir sua missão de defensores predestinados dos interesses intelectuais do todo. No que se refere à primeira saída, os intelectuais desvinculados são encontrados em todos os campos no curso da história. Assim, sempre forneceram teóricos aos conservadores que, devido à sua estabilidade social, dificilmente conseguiam alçar-se até a autoconsciência teórica. Forneceram, da mesma forma, teóricos ao proletariado que, devido a suas condições sociais, carecia dos pré-requisitos para a aquisição do conhecimento necessário em face do conflito político moderno. Sua filiação à burguesia liberal já foi discutida. Esta capacidade de se vincularem a classes a que originalmente não pertenciam era possível aos intelectuais porque eles podiam adaptar-se a qualquer ponto-de-vista e porque eram os únicos em condições de escolher uma filiação, ao passo que os indivíduos imediatamente ligados por filiações de classe somente em raras exceções se mostravam capazes de transcender os limites de sua visto de classe. Esta decisão voluntária de aliar-se às lutas políticas de uma classe determinada unia-os realmente a essa classe durante a luta, mas não os punha a salvo da desconfiança nutrida pelos membros originais da classe. Esta

desconfiança constitui apenas um sintoma do fato sociológico de que a condição de assimilação de intelectuais a uma classe estranha é limitada por suas próprias características psíquicas e sociais peculiares. Sociologicamente, esta peculiaridade de pertencer à intelligentsia explica o fato de que um proletário que se torne um intelectual costuma mudar sua personalidade social. Não caberia aqui um estudo minucioso da atitude do intelectual ao deparar com essa desconfiança. Desejamos apenas assinalar que o fanatismo dos intelectuais radicalizados deve ser entendido à luz dessa desconfiança. Indica uma compreensão psíquica pela falta de uma integração mais fundamental em uma classe, bem como a necessidade de superar a própria desconfiança e a dos outros. Claro que se poderia condenar o rumo tomado pelos intelectuais e as suas infindas oscilações, mas só nos interessa aqui explicar este comportamento através da posição dos intelectuais na estrutura social total. Este abandono e transgressão sociais podem ser encarados como nada mais do que um abuso negativo de uma posição social peculiar. Ao invés de concentrar suas energias nas potencialidades positivas da situação, o indivíduo sucumbe às tentações potenciais da situação. Nada seria mais incorreto do que se basear um juízo sobre a função de um estrato social no comportamento apostático de alguns de seus membros, deixando de ver que a frequente “falta de convicção” dos intelectuais constitui apenas o reverso do fato de que somente eles se acham em condições de ter convicções intelectuais. Em termos de longo prazo, a história pode ser vista como uma série de experimentos de tentativa e erro, em que mesmo os fracassos humanos têm um valor provisório, sendo os intelectuais aqueles que, no seu curso, se viram mais expostos ao fracasso, devido à sua falta de inserção em nossa sociedade. As repetidas tentativas de se identificarem com outras classes, bem como as contínuas recusas destas últimas, devem eventualmente conduzir a uma concepção mais clara, por parte dos intelectuais, do significado e do valor de sua própria posição na ordem social. A primeira saída para a crise em que os intelectuais se encontram, que é a da filiação direta a classes e partidos, evidencia uma tendência, ainda que inconsciente, a uma síntese dinâmica. A classe que recebia o seu apoio era, em geral, a classe que necessitava de desenvolvimento intelectual. Basicamente, o conflito de intelectuais é que transformava o conflito de interesses em um conflito de ideias. Esta tentativa de alçar o conflito de interesses a um plano espiritual tem dois aspectos: por um lado, significava a glorificação vazia de interesses indisfarçados através das tramas de mentiras tecidas por apologistas; por outro lado, em um sentido mais positivo, significava a introdução de certas exigências intelectuais na política prática. Em consequência de sua colaboração com partidos e classes, os intelectuais puderam deixá-los marcados por este cunho. Se nada mais tivessem a seu crédito, somente isso já teria sido uma significativa contribuição. Sua função consiste em penetrar nas fileiras dos partidos em conflito, de modo a obrigá-los a aceitar suas demandas. Esta atividade, considerada em termos sociológicos, demonstrou, amplamente, em que ponto residem a peculiaridade sociológica e a missão deste estrato social desvinculado. A segunda saída para o dilema dos intelectuais consiste precisamente em tomar consciência de sua própria posição social e da missão nela implícita. Uma vez feito isto, a filiação ou a oposição políticas serão decididas com base em uma orientação consciente dentro da sociedade e de acordo com as exigências da vida intelectual.

Uma das tendências básicas no mundo contemporâneo é o gradativo despertar da consciência de classe em todas as classes. Assim sendo, segue-se que mesmo os intelectuais atingirão uma consciência — embora não uma consciência de classe — da posição social geral que ocupam e dos problemas e oportunidades que ela envolve. Esta tentativa de compreender o fenômeno sociológico dos intelectuais, e a de, com base nisto, tomar uma atitude face à política, possuem tradições próprias, tanto quanto a tendência de se assimiliar a outros partidos. Não nos preocupamos aqui em examinar as possibilidades de uma política exclusivamente conveniente a intelectuais. Tal exame provavelmente demonstraria que os intelectuais, no período atual, não poderiam tornar-se politicamente ativos em termos independentes. Em uma época como a nossa, em que os interesses e posições de classe vêm atingindo uma definição cada vez mais acentuada, derivando sua força e direção da ação de massa, dificilmente seria possível uma conduta política que buscasse outros meios de apoio. O que, entretanto, não implica que sua posição particular os impeça de realizar coisas de indispensável significação para o processo social total. Destas, a mais importante seria a descoberta da posição que possibilitasse uma perspectiva total. Desse modo, poderiam desempenhar o papel de vigias no que, de outra forma, seria uma noite impenetrável. Resta saber se seria desejável descartar-se de todas as oportunidades decorrentes desta situação peculiar. O ponto-de-vista político de um grupo, cuja posição de classe esteja mais ou menos definitivamente fixada, já se encontra por tal posição definido. Quando isso não sucede, como no caso dos intelectuais, existe uma área mais ampla de escolha e uma correspondente necessidade de orientação total e de síntese. Esta última tendência, oriunda da posição dos intelectuais, existe, ainda que a relação entre os vários grupos não conduza à formação de um partido integrado. Analogamente, os intelectuais permanecem capazes de chegar a uma orientação total mesmo depois de ingressarem em um partido. A capacidade de adquirir um ponto-de-vista mais amplo deveria ser considerada meramente um ônus? Não se trataria, pelo contrário, de uma missão? Só aquele que realmente pode escolher é que tem interesse em perceber o conjunto da estrutura social e política. Somente no período de tempo e no estágio de investigação que é dedicado a deliberação é que se poderá encontrar a localização sociológica e lógica do desenvolvimento de uma perspectiva sintética. A elaboração de uma decisão só é verdadeiramente possível sob condições de liberdade baseadas numa possibilidade de escolha que continue a existir, mesmo depois de tomada a decisão. Devemos a possibilidade de interpenetração mútua e compreensão das correntes de pensamento existentes à presença deste estrato médio relativamente desvinculado, que se encontra aberto ao ingresso constante de indivíduos das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os pontos-de-vista possíveis. Só nessas condições pode surgir a síntese incessantemente nova e ampla a que nos referimos. Mesmo o romantismo, devido à sua posição social, já havia incluído em seu programa a exigência de uma mediação ampla e dinâmica (dynamische Vermittlung) de pontos-de-vista conflitantes. Pela natureza do caso, esta exigência conduziu a uma perspectiva conservadora. No entanto, a geração que sucedeu ao romantismo suplantou esta visão conservadora com uma visão revolucionária que estaria mais de acordo com as necessidades da época. O essencial, no momento, é que, somente nessa linha de desenvolvimento, veio a persistir a tentativa de fazer desta mediação uma mediação viva e

de associar as decisões políticas a uma orientação total prévia. Hoje, mais do que nunca, espera-se que este grupo médio dinâmico se esforce por criar um foro, alheio às escolas de partido, que salvaguarde a perspectiva do todo e o interesse pelo todo. Precisamente a estas tendências latentes é que devemos a nossa atual concepção de que todos os interesses e conhecimentos políticos são necessariamente partidaristas e particulares. Só hoje, quando nos tornamos cônscios de todas as correntes e em condições de compreender todo o processo de surgimento dos interesses políticos e das Weltanschauungen, à luz de um processo sociológico inteligível, é que percebemos a possibilidade da política como ciência. É provável que, de acordo com o espírito da época, venham a surgir mais e mais escolas partidárias, e, assim, tanto mais será de se desejar que se crie um foro efetivo, quer nas universidades, quer em instituições especializadas de ensino superior, que sirva à busca desta forma avançada de ciência política. Se as escolas partidárias se dirigem exclusivamente àqueles cujas decisões políticas já foram tomadas de antemão pelos partidos, este outro modo de estudo se voltará para aqueles cujas decisões continuam ainda por ser tomadas. Seria tanto melhor que aqueles intelectuais que trazem pronunciados interesses de classe viessem, especialmente na juventude, a assimilar o pontode-vista e a concepção do todo. Mesmo numa escola deste tipo, não se deve esperar que os professores sejam isentos de tendências partidárias. Esta escola não tem por objetivo evitar que se chegue a decisões políticas. Mas existe uma profunda diferença entre um professor que, após cuidadosa deliberação, se dirige a seus alunos, cujas mentes ainda não estão formadas, de um ponto-de-vista adquirido por uma cuidadosa meditação, conduzindo a uma compreensão da situação total, e um professor exclusivamente interessado em inculcar um ponto-de-vista partidário já firmemente estabelecido. Uma Sociologia Política que vise não inculcar uma decisão, mas preparar o caminho para se chegar a decisões, poderá compreender relações até então nem sequer percebidas no campo político. Esta disciplina será especialmente valiosa para o esclarecimento da natureza de interesses socialmente vinculados. Apontará os fatores determinantes subjacentes a esses juízos de classe, revelando assim a maneira pela qual as forças coletivas se acham vinculadas a interesses de classe, fato esse que precisa ser levado em conta por todo àquele que trate de política. Servirá para esclarecer relações do tipo: tal ou qual interesse, dentro de determinado contexto de acontecimentos, produzirá tal ou qual tipo de pensamento, e tal ou qual visão do processo social total, Entretanto, a composição destes conjuntos específicos de interesses depende do conjunto específico de tradições que, por seu turno, depende dos determinantes estruturais da situação social. Só quem for capaz de formular o problema desta maneira estará em condições de transmitir a outros uma visão da estrutura do cenário político, e de ajudá-los a obter uma concepção relativamente completa do todo. Esta direção imprimida à investigação permitirá uma compreensão mais adequada da natureza do pensamento histórico e político, e demonstrará mais claramente as relações que sempre existem entre as concepções de história e os pontos-de-vista políticos. Os que adotam esta abordagem são, no entanto, muito sofisticados, politicamente, para acreditar que as decisões políticas possam ser ensinadas ou que se possa suspendê-las arbitràriamente, enquanto forem ainda prevalecentes. Em resumo: quaisquer que sejam os teus interesses, eles serão teus na qualidade de pessoa política, mas o fato de teres estes ou

aqueles interesses implica também que faças isto ou aquilo para compreendê-los, e em que devas conhecer a posição específica que ocupas no processo social total.42 Apesar de acreditarmos que interesses e propósitos não podem ser ensinados, é possível, contudo, a investigação e a comunicação da relação estrutural entre o juízo e o ponto-de-vista, entre o processo social e o desenvolvimento de interesse. Os que exigem que a política, enquanto ciência, ensine normas e fins deveriam considerar que esta exigência implica, efetivamente, a negação da realidade da política. A única coisa que podemos exigir da política, enquanto ciência, é que veja a realidade com os olhos de sêres humanos em ação, e que ensine a homens, na ação, a compreenderem, mesmo os seus adversários, à luz de seus motivos reais e de sua posição na situação histórico-social. A Sociologia Política, neste sentido, deve estar consciente de sua função de síntese mais completa das tendências de uma época. Deve ensinar unicamente o que se pode ensinar: as relações estruturais; os juízos não podem ser ensinados, mas podemos ter deles uma consciência mais ou menos adequada, bem como podemos interpretá-los.

5. A natureza do conhecimento político A pergunta sobre a possibilidade de uma ciência da política e de seu ensino deve ser respondida, se resumirmos tudo o que foi dito até agora, pela afirmativa. Naturalmente, nossa solução implica uma forma de conhecimento muito diferente da que geralmente se concebe. O intelectualismo puro não toleraria uma ciência tão intimamente associada à prática. O fato de que a ciência política, em sua forma espontânea, não se ajuste ao quadro existente da ciência, como nós a entendemos, e de que esteja em contradição com a nossa atual concepção da ciência não significa que a política seja culpada... Antes deveria ser um estímulo para a revisão de nossa concepção de ciência como um todo. Mesmo um passageiro relance às noções contemporâneas de ciência e à sua organização institucional mostrará que não temos sido capazes de lidar satisfatoriamente com teorias nas quais a ciência em questão esteja estreitamente ligada a problemas práticos. Não existe uma política científica tanto quanto não existe uma ciência da pedagogia. Ainda, não se iria ganhar coisa alguma se, depois de verificada nossa incapacidade para resolver os problemas mais importantes destes ramos da ciência, dispensássemos tudo o que fosse propriamente pedagógico e político por se tratar de “artes” ou “dons intuitivos”. Tudo o que, dessa maneira, se teria conseguido seria uma fuga a problemas que têm de ser enfrentados. A experiência real mostra que, no ensino como na política, é precisamente no curso da conduta efetiva que se pode, em proporções crescentes, obter um conhecimento específico e relevante, comunicável em certas condições. Consequentemente, torna-se claro que nossa concepção de ciência é muito mais restrita do que o âmbito dos conhecimentos atuais; e que o conhecimento atingível e comunicável não se restringe, de modo algum, aos limites das ciências atualmente estabelecidas. Se, no entanto, se verifica que a vida oferece possibilidades de conhecimento e de compreensão, mesmo em campos em que a ciência não desempenha papel algum, não constitui solução denominar-se este conhecimento de “pré-científico” ou relegá-lo à esfera

da “intuição”, simplesmente para preservar a pureza de uma definição arbitrária de ciência. Pelo contrário, impõe-se, acima de tudo, que investiguemos a natureza interna destes tipos de conhecimento ainda não formulados, para depois examinarmos a possibilidade de estender os horizontes e concepções da ciência, de modo a serem incluídas essas pretensas áreas pré-científicas do conhecimento. A diferença entre “científico” e “pré-científico” depende, naturalmente, do que pressupomos serem os limites da ciência. A esta altura, deveria estar claro que, até agora, a definição tem sido demasiado estreita, e que apenas determinadas ciências se tornaram, por motivos históricos, modelos do que uma ciência deveria ser. É, por exemplo, bem sabido a que ponto o desenvolvimento intelectual moderno reflete o papel dominante da Matemática. A rigor, e segundo este ponto-de-vista, somente seria considerado científico o que fosse mensurável. Em época mais recente, o ideal da ciência tem sido o conhecimento matemática e geometricamente demonstrável, ao passo que tudo o que é qualitativo somente se admite como derivado do quantitativo. O positivismo moderno (que sempre manteve sua afinidade com a visão liberal-burguesa e que se desenvolveu neste espírito) aderiu sempre a este ideal de ciência e de verdade. No máximo, acrescentou, em termos de uma séria forma de conhecimento, a busca de leis gerais. De acordo com este ideal predominante, o espírito moderno impregnou-se de medições, formalizações e sistematizações com base em axiomas fixos. Isso teve bastante sucesso junto a certos estratos da realidade, acessíveis a uma abordagem formal quantitativa ou, pelo menos, subordinados a generalizações. À medida que este modo de investigação se desenvolvia, tornava-se evidente que era adequado à compreensão científica de nível homogêneo de questões, mas que tais questões absolutamente não esgotavam a plenitude da realidade. Esta unilateralidade se manifesta, em particular, nas Ciências Culturais em que, por sua própria natureza, não nos interessa tanto a estreita esfera de questões redutíveis a leis, mas a riqueza de fenômenos e estruturas singulares e concretos com que os homens práticos estão familiarizados, mas que são inatingíveis pelos axiomas da ciência positivista. O resultado disto foi que o homem prático, lidando com situações concretas e aplicando informalmente seu conhecimento, mostrava-se mais entendido que o teórico que apenas observava uma esfera limitada, porque estava preso às pressuposições de uma ciência. Tornou-se cada vez mais evidente que o primeiro possuía algum conhecimento em campos dos quais o último — isto é, o intelectual teórico moderno — há muito deixara de ter qualquer conhecimento. Segue-se daí que não se pode considerar o modelo matemático-natural da ciência adequado ao conhecimento como um todo. A primeira dimensão a ser deslocada por este estilo de pensamento racionalista moderno que, sociologicamente, se encontrava estreitamente ligado à burguesia capitalista, foi o interesse pelo qualitativo. Mas, desde que a tendência fundamental da ciência moderna era analítica, e desde que nada era considerado científico a menos que tivesse sido reduzido a seus elementos constitutivos, desapareceu o interesse pela percepção direta e imediata de totalidades. Não foi por acaso que o romantismo foi o primeiro a assumir tendências do pensamento que davam nova ênfase ao valor cognitivo específico do conhecimento qualitativo e do conhecimento da totalidade. E devemos relembrar que o romantismo representa a moderna contracorrente que, na Alemanha, mesmo no campo da política, dirigiu o contra-ataque à concepção racionalista-burguesa do mundo. De modo semelhante, não é por acaso que, hoje em dia, a teoria gestaltista da percepção, e as teorias da morfologia

e da caracterologia, etc., que constituem um contra-ataque científico e metodológico à metodologia positiva, vêm-se impondo numa atmosfera que deriva sua concepção do mundo (Weltanschauung) e sua visão política do neo-romantismo. Não nos compete traçar aqui um exame detalhado do intercurso entre os movimentos políticos e as correntes da metodologia científica. Entretanto, a argumentação mostra, até agora, que a concepção intelectualista de ciência, subjacente ao positivismo, tem suas raízes em uma concepção do mundo (Weltanschauung) definida, e que se tem desenvolvido em estreita conexão com interesses políticos definidos. Do ponto-de-vista da Sociologia do Conhecimento, não revelamos plenamente o caráter essencial deste estilo de pensamento ao indicar suas tendências analíticas e quantitativas. Precisamos reportar-nos aos interesses políticos e sociais expressos por estes princípios metodológicos. Tal somente será possível após um exame do critério básico de realidade adotado pelos expositores deste estilo de pensamento. Este critério está contido na tese de que nada será considerado “verdadeiro” ou “cognoscível”, a não ser que possa ser apresentado como universalmente válido e necessário — sendo estes dois requisitos qualificados, sem maiores cuidados, como sinônimos. Presumia-se simplesmente que somente seria necessário o que fosse universalmente válido, isto é, comunicável a todos. Entretanto, esta sinonímia não é necessariamente correta, uma vez que é muito possível existirem verdades ou intuições corretas que sejam acessíveis apenas a uma certa disposição pessoal ou a uma determinada orientação de interesses de um certo grupo. O cosmopolitismo democrático da burguesia ascendente negava o valor e o direito à existência destas noções. Com isto, revelou-se um componente puramente sociológico no critério de verdade, que é o da exigência democrática de que estas verdades sejam as mesmas para todos. Esta exigência de validade universal teve importantes consequências para a teoria do conhecimento que a acompanhava. Decorria daí que somente seriam legítimas as formas de conhecimento que se aplicassem ao que é comum a todos os sêres humanos. A elaboração da noção de “consciência em si” nada mais é do que a destilação dos traços da consciência humana individual que pudéssemos presumir como sendo os mesmos em todos os homens, quer negros ou europeus, medievais ou modernos. O fundamento comum básico desta consciência comum foi encontrado, antes de mais nada, nas concepções de tempo e espaço, e, em estreita associação com estas, no campo puramente formal da Matemática. Sentia-se aí que fora construída uma plataforma de que todos podiam partilhar. E, de modo semelhante, acreditava-se na possibilidade de se construir, com base em uns poucos característicos axiomáticos, um homem econômico, um homem político, etc., independentemente de tempo e de raça. Somente o que se podia conhecer pela aplicação destes axiomas era considerado cognoscível. Tudo o mais devia-se simplesmente à perversa “multiplicidade do real”, com a qual a teoria “pura” não precisava preocupar-se. O principal objetivo deste modo de pensamento consistia em um conjunto purificado de conhecimento genericamente válido, cognoscível por todos e a todos comunicável. Todo o conhecimento que dependesse da receptividade total dos homens, ou de certos característicos histórico-sociais do homem concreto, era suspeito e devia ser eliminado. Assim, em primeiro lugar, era suspeita toda a experiência que se fundasse em percepções puramente pessoais do indivíduo. Originou-se aí o já mencionado repúdio ao

conhecimento qualitativo. Visto que a percepção sensorial do indivíduo, em sua forma concreta e singular, constitui uma função do ser vivo como um todo, e visto que somente com dificuldade esta percepção sensorial poderia ser comunicada, predominava a tendência de negar-lhe todo valor específico. De modo semelhante, desconfiava-se de qualquer tipo de conhecimento que somente pudesse ser adquirido por certos grupos histórico-sociais. Desejava-se exclusivamente o tipo de conhecimento que estivesse livre de todas as influências da concepção do mundo (Weltanschauung) do sujeito. O que não se notou foi que o mundo do meramente quantificável e analisável só podia ser descoberto com base numa concepção do mundo (Weltanschauung) definida. De modo análogo, não se percebia que uma concepção do mundo (Weltanschauung) não constitui necessariamente uma fonte de erro, mas que, muitas vezes, proporciona acesso a esferas de conhecimento de outra forma impenetráveis. Mais importante, contudo, era a tentativa de eliminar os interesses e os valores que constituem o elemento humano no homem. Na caracterização do intelectualismo burguês, voltava-se a atenção para o empenho em eliminar os interesses até da política, e em reduzir a discussão política a uma espécie de consciência geral e universal determinada pela “lei natural”. Assim, o nexo orgânico entre, de um lado, o homem como sujeito histórico e como membro da sociedade, e, do outro, o seu pensamento, foi arbitràriamente rompido. Eis a principal fonte de erro que, antes de tudo, teremos de examinar no presente contexto. Podese dizer, quanto ao conhecimento formal, que seja essencialmente acessível a todos e que seu conteúdo não é afetado pelo indivíduo e suas filiações histórico-sociais. Mas, por outro lado, é certo que existe uma grande variedade de temas somente acessíveis a certos indivíduos ou em certos períodos históricos, e que se tornam patentes através dos propósitos sociais individuais. Uma ilustração do primeiro caso é que somente a pessoa que ama, ou odeia, consegue ver no objeto amado, ou odiado, certos característicos invisíveis aos outros, meros espectadores. Além do mais, existe certo tipo de conhecimento que nunca pode ser concebido em termos das categorias de uma consciência em si puramente contemplativa, e cujo enunciado fundamental consiste em que é somente vivendo e agindo com os nossos semelhantes que podemos chegar a conhecê-los, não só porque se necessita de tempo para se observar as coisas, mas porque os sêres humanos não possuem “traços” que possamos considerar separadamente deles e que, como nos acostumamos a dizer erroneamente, “se manifestem automàticamente”. Tratamos aqui com um processo dinâmico do homem em que seus característicos emergem no curso de sua conduta concreta e no confronto com problemas reais. A própria autoconsciência não surge da mera contemplação, mas somente através de nossas lutas com o mundo — isto é, no decurso do processo em que, pela primeira vez, tomamos consciência de nós mesmos. Aqui a percepção de si e a dos demais se interligam inseparavelmente com a atividade e o interesse e com os processos de interação social. Sempre que o produto é isolado do processo e da participação no ato, os fatos mais essenciais são deformados. No entanto, esta é a dimensão fundamental do tipo de pensamento que se dirige para a natureza morta, pois que a todo custo deseja eliminar as relações subjetivas, volitivas e processuais

do conhecimento ativo, de modo a chegar a resultados puros e homogeneamente coordenados. O exemplo que acabamos de citar mostra um caso de determinação situacional do conhecimento, atuando na relação entre tipos específicos de personalidade e formas específicas de conhecimento. Mas existem também certos domínios de conhecimento cuja acessibilidade não depende de personalidades específicas, mas de certas precondições históricas e sociais definidas. Determinados acontecimentos da história e da vida psíquica do homem somente se tornam visíveis em certas épocas históricas, que, através de uma série de experiências coletivas e de uma concepção do mundo (Weltanschauung) paralelamente desenvolvida, abrem caminho a determinadas intuições. Além do mais, voltando ao nosso tema inicial, existem certos fenômenos cuja percepção depende da presença de determinados propósitos coletivos que refletem os interesses de estratos sociais específicos. Parece, então, que um conhecimento preciso e prontamente objetivável é possível na medida em que se trata de captar aqueles elementos da realidade social que, de início, definimos como componentes estáveis e rotineiros da vida social. Parece não haver obstáculo algum à formulação de leis neste domínio, uma vez que os objetos de atenção obedecem a um ritmo periódico de sequência regular. Contudo, ao entrarmos no campo da política, onde tudo se acha em processo de transformação e onde o elemento coletivo em nós, como sujeitos cognoscentes, contribui para moldar o processo de transformação, onde o pensamento não é contemplação do pontode-vista de um espectador, mas, antes, a participação ativa e a remodelação do próprio processo, parece emergir um novo tipo de conhecimento, que é aquele em que decisão e ponto-de-vista se acham inseparàvelmente ligados. Nestes campos, nada existe que se pareça com uma visão puramente teórica de parte do observador. A visão do homem é dada justamente pelas intenções que o homem tenha, muito embora seus interesses lancem apenas uma luz parcial e prática sobre aquele segmento da realidade total no qual se acha envolvido, e para o qual se orienta em virtude de seus propósitos sociais básicos. Nestes casos, nunca devemos separar do produto do pensamento o interesse, a valoração, e a concepção do mundo (Weltanschauung), devendo-se mesmo, caso já tenham sido separados, restabelecer a relação. Esta é a tarefa da Sociologia, na medida em que a Sociologia é a ciência do que é político. Não aceita nenhum argumento teórico como absolutamente válido em si, mas reconstrói os pontos-de-vista originários para os quais o mundo se apresenta de tal ou qual forma, e procura compreender a totalidade das visões, derivadas das várias perspectivas, através da totalidade do processo. A política como ciência, sob a forma de uma Sociologia Política, jamais constitui um domínio fechado e completo de conhecimento que se possa separar do contínuo processo em que se desenvolveu. Está sempre em transformação e, no entanto, permanece sempre ligada à corrente de que deriva. Surge no desdobramento dinâmico de forças em conflito. Consequentemente, pode-se construí-la com base em perspectivas bastante unilaterais, que reflitam as inter-relações de acontecimentos tal como determinado partido político os percebe, ou pode surgir em sua forma mais avançada — como uma tentativa constantemente renovada de síntese de todas as perspectivas existentes, visando a uma conciliação dinâmica.

Bem pode ser que o nosso intelectualismo venha a estimular repetidamente em nós o anseio por um ponto-de-vista que transcenda o tempo e a história — por uma “consciência em si” de que se originem intuições independentes de perspectivas particulares, e passíveis de formulação como leis gerais, eternamente válidas. Mas este objetivo não pode ser alcançado sem violentar o problema. Se buscamos uma ciência do que se acha em processo de transformação, uma ciência da prática e para a prática, somente podemos realizá-la pela descoberta de uma nova estrutura em que este tipo de conhecimento possa encontrar uma expressão adequada.

6. A comunicabilidade do conhecimento político O impulso original para se investigar o problema da ideologia surgiu da própria vida política, em seus mais recentes desenvolvimentos. Não constitui uma ciência “forçada”, nascida de sutilezas intelectualistas e minuciosas. Já temos um excesso de tais formulações e seria realmente prejudicial aumentar-lhes o número. Pelo contrário, o estudioso de ideologia está empenhado tão-só em meditar sobre um problema que tem embaraçado muita gente que procura orientar-se na vida cotidiana da sociedade. Este problema consiste essencialmente na inevitável necessidade de compreender-se a si mesmo e ao adversário no seio do processo social. A esta altura, torna-se indispensável introduzir algumas reflexões referentes às formas exteriores desta ciência, sua comunicabilidade e os requisitos para sua transmissão às gerações vindouras. Do que já tivemos oportunidade de falar, segue-se que, no tocante à sua forma exterior, a parte da ciência política que se compõe do conhecimento fatual concreto não está sujeita às considerações problemáticas que acabamos de mencionar. O que é particularmente problemático na política como ciência, e na política propriamente dita, somente aparece depois de alcançarmos a esfera da vida em que nossos interesses e nossas percepções estão Intimamente interligados, o que faz que os acontecimentos anteriores venham a se apresentar sob uma nova luz. Foi mostrado que também aqui existem relações passíveis de investigação, mas que, simplesmente por se acharem em fluxo constante, somente podem ser ensinadas levando-se em conta, no caso de cada aspecto a ser comunicado, a posição de observação que faz que estas inter-relações assumam um determinado caráter definido. Cada visão deve ser referida à posição social do observador. Se possível, deveria investigar-se, em cada caso, o motivo por que as relações se apresentam de uma determinada maneira quando encaradas de um dado ponto-de-vista. Nunca será demais insistir em que a equação social nem sempre constitui uma fonte de erro, sendo que, muito frequentemente, faz surgir certas interrelações que de outra forma não apareceriam. A unilateralidade peculiar a uma posição social é sempre mais evidente ao se a considerar em justaposição a todas as demais. A vida política que engloba, como sempre, pensamentos oriundos de polos opostos modifica-se no decorrer de seu próprio desenvolvimento, ao corrigir os exageros de um ponto-de-vista pelo que é revelado por outro. Em cada situação será, portanto, indispensável existir uma perspectiva total que abarque todos os pontos-de-vista.

O maior perigo para uma representação adequada das relações que nos interessam na esfera política reside, no entanto, na suposição por parte do investigador de uma atitude passiva e contemplativa capaz de destruir as relações efetivas que, como tais, interessam ao homem político. Devemos ter sempre em mente que, por trás de qualquer trabalho científico (por mais impessoal que pareça), existem tipos de mentalidade que influenciam em ampla medida a forma concreta da ciência. Consideremos, por um momento, uma disciplina próxima que lida teoricamente com materiais não-teóricos — a saber, a história da arte. A atitude fundamental desta disciplina constitui uma fusão das atitudes individuais de connoisseurs, colecionadores, filólogos e historiadores de ideias. As histórias da arte seriam bem diferentes se fossem escritas por artistas para artistas, ou do ponto-de-vista do espectador. Esta última situação prevalece quase exclusivamente na crítica de arte, em nossos dias. De modo análogo, o sujeito teórico corre o risco de ser iludido no estudo da política devido a que sua própria atitude contemplativa tende a subordinar sua atitude politicamente ativa, dissimulando as relações fundamentais ao invés de acentuá-las e de traçar-lhes as ramificações. O fato de as ciências serem cultivadas em meios acadêmicos constitui um perigo, pois as atitudes adequadas à compreensão de um setor real da experiência humana são reprimidas na atmosfera contemplativa que predomina nas instituições acadêmicas. Hoje em dia, praticamente aceitamos sem contestação que a ciência começa quando destrói nossa abordagem inicial e a substitui por outra, estranha à experiência vivida. Eis a mais importante razão por que a prática não pode tirar proveito deste tipo de teoria. Isso cria uma tensão entre a teoria e a prática, agravada cada vez mais pelo intelectualismo moderno. Resumindo a principal diferença entre este ponto-de-vista intelectualista e contemplativo e o ponto-de-vista resultante da experiência vivida e aceito no campo da prática, poderíamos dizer que o cientista aborda sempre seus temas com uma tendência ordenadora e esquematizadora, ao passo que o homem prático — em nosso caso o político — busca uma orientação com referência à ação. Uma coisa é procurar uma visão panorâmica esquemàticamente ordenada; outra coisa é buscar uma orientação concreta para a ação. O desejo de uma orientação concreta leva-nos a ver as coisas somente no contexto das situações de vida em que ocorrem. Um sumário esquematicamente ordenado rompe a interconexão orgânica a fim de chegar a um sistema ordenado que, apesar de construído artificialmente, pode, mesmo assim, ser ocasionalmente útil. Uma ilustração servirá para esclarecer ainda mais esta distinção central entre as atitudes esquematicamente ordenadoras e as ativamente orientadoras. Há três abordagens possíveis às teorias políticas modernas: em primeiro lugar, podem ser apresentadas por meio de uma tipologia desligada dos momentos históricos e das situações sociais concretas a que se referem. Esta tipologia alinha as teorias em uma espécie qualquer de série e, no máximo, procura descobrir algum princípio puramente teórico para diferenciá-las. Esta espécie de tipologia, muito em moda hoje em dia, pode ser chamada uma tipologia “de superfície”, porque constitui uma tentativa de apresentar a multiplicidade da vida em um nível artificialmente uniforme. A única justificação sensata de semelhante esquema é que existem diferentes modos de vida, e seguir um dentre eles não passa de uma questão de escolha. Oferece, naturalmente, um levantamento, mas um levantamento puramente esquemático. De acordo com este esquema, pode-se dar nomes às teorias e afixar-lhe rótulos, obscurecendo, no entanto, suas interconexões reais, uma vez que as teorias originàriamente

não são modos de vida em geral, mas simples ramificações de situações concretas. Uma forma algo mais complexa desta tipologia bidimensional é aquela a que já nos referimos, e que procura descobrir uma base de diferenciação em algum princípio — de preferência um princípio filosófico. Assim, por exemplo, Stahl,43 o primeiro teórico e sistematizador do sistema partidário alemão, classificou as diferentes tendências políticas de seu tempo em variantes de dois princípios teóricos — o princípio de legitimismo e o princípio de revolução. Sua classificação oferece não apenas um levantamento, mas também uma análise das ideologias partidárias existentes. Reduzindo-as a uma dicotomia filosófica, Stahl, sem dúvida, aprofunda nossa compreensão. O risco de semelhante dedução filosófica está em que confere uma ênfase indevida a um princípio teórico que, claro, está presente no desenvolvimento do século XIX, mas que não é decisivo. Tipologias desta espécie criam a impressão de que o pensamento político representa a formulação de possibilidades puramente teóricas. O primeiro modo de exposição representa o do colecionador de ideias, e o segundo representa o do sistematizador filosófico. O que em ambos os casos acontece é que as formas de experiência de tipos humanos contemplativos são arbitràriamente impostas à realidade política. Outro modo de apresentação das teorias políticas é o puramente histórico. Este procedimento, naturalmente, não destaca as teorias do contexto histórico imediato em que se desenvolveram, de modo a justapô-las em um nível abstrato, mas incorre no erro oposto de se apegar em demasia ao histórico. O tipo ideal de historiador se interessa, portanto, pelo complexo singular de causas que explicam estas teorias históricas. Para chegar até elas, introduz todos os antecedentes da história das ideias e vincula as teorias às personalidades singulares de indivíduos criadores. O resultado é que se envolve tanto na unicidade histórica dos acontecimentos que se torna impossível qualquer espécie de conclusões gerais sobre o processo histórico e social. De fato, os historiadores chegaram mesmo a se orgulhar da tese de que não se pode aprender coisa alguma com a história. Se os dois primeiros tipos de apresentação mencionados acima erravam por estarem tão distanciados dos acontecimentos históricos que era impossível achar o caminho de volta das generalizações, dos tipos e sistemas até a história, a abordagem histórica, mencionada por último, se acha tão vinculada aos imediatismos históricos que seus resultados são válidos apenas com relação às situações específicas e concretas de que trata. Em oposição a estes dois extremos, coloca-se uma terceira possibilidade que consiste em escolher o meio caminho entre, de um lado, a esquematização abstrata e, de outro, o imediatismo histórico. Precisamente em termos deste terceiro caminho é que vive e pensa todo político clarividente, embora nem sempre tenha consciência disto. Este terceiro método procede através da tentativa de compreender as teorias e suas mutações em estreita relação com os grupos coletivos e as situações totais típicas de que surgiram e que expõem. Neste caso, as conexões internas entre o pensamento e a existência social têm de ser reconstruídas. Não é a “consciência em si” que escolhe arbitràriamente dentre várias alternativas possíveis, nem é tampouco o indivíduo que, isolado, constrói uma teoria ad hoc que sirva às necessidades de uma determinada situação isolada; mas, antes, são os grupos sociais que, possuindo um certo tipo de estrutura, formulam teorias correspondentes a seus interesses tais como os percebem em determinadas situações. O resultado é que, para cada situação social específica, são descobertos certos modos de pensar e possibilidades de

orientação. Somente porque estas forças coletivas, estruturalmente condicionadas, continuam a existir além da duração de uma situação histórica isolada, é que perduram as teorias e as possibilidades de orientação. Apenas quando as suas situações estruturais mudam e são substituídas gradativamente por outras é que surge a necessidade de novas teorias e novas orientações. Somente será capaz de seguir inteligentemente o curso dos acontecimentos quem compreender o arranjo estrutural que é subjacente a uma determinada situação e a um determinado acontecimento históricos, e que os possibilita. Os que, no entanto, nunca transcendem o curso imediato dos acontecimentos históricos, bem como os que se perdem tão completamente em generalidades abstratas que jamais encontram o caminho de volta à vida prática, nunca serão capazes de captar o cambiante significado do processo histórico. Todo político que opera neste nível de consciência, adequado ao nosso atual estágio de desenvolvimento intelectual, pensa — implícita, se não explicitamente — em termos de situações estruturais. Este tipo de pensamento é o único que dá um significado e uma concretude à ação orientada para um objetivo distante, embora decisões de momento possam basear-se em orientações de momento. Assim, o político está protegido contra generalidades vazias e esquemáticas, conseguindo, ao mesmo tempo, bastante flexibilidade para não se impressionar em demasia com algum fato do passado — tomando-o como modelo inadequado de ações futuras. O homem de ação, seguro de seus objetivos, jamais indagará como algum líder admirado agiu numa situação passada, mas, antes, como realmente se orientaria na situação presente. Esta capacidade de se reorientar numa constelação de fatores em contínua reconformação constitui a capacidade essencialmente prática do tipo de espírito que se acha na busca constante de orientação para suas ações. Despertar esta capacidade, mantê-la alerta e torná-la eficiente com relação ao material disponível, eis no que consiste a tarefa específica da educação política. Nunca se deve permitir que, na exposição de inter-relações políticas, a atitude puramente contemplativa venha a deslocar a necessidade inicial que o homem político tem de uma orientação ativa. Considerando-se o fato de que nosso método educacional se orienta sobretudo no sentido de uma atitude contemplativa e de que na transmissão de nossa matéria tendemos mais para uma visão esquemática de conjunto do que para uma orientação concreta da vida, é imprescindível que, pelo menos, se determine um ponto de partida para os problemas que dizem respeito à educação de gerações futuras no campo da ação e da política. Não podemos tratar aqui de todas as ramificações do problema. Contentemo-nos em apresentar o princípio estrutural das relações essenciais ligadas ao problema. As formas e os métodos de transmissão da matéria social e psicológica variam com a peculiaridade das bases estruturais em que repousam.44 Uma certa forma de grupo social e uma certa técnica pedagógica favorecem a formação artística, outras favorecem a formação científica. Entre as várias ciências, o conhecimento matemático requer métodos pedagógicos e relações entre professor e aluno diferentes dos exigidos pela transmissão de matérias culturais. O mesmo se verifica no tocante a questões filosóficas em contraste com questões políticas, etc.

A história e a vida prática mostram uma busca constante, embora inconsciente, de métodos educacionais mais adequados nos diversos campos. A vida é um processo incessante de formação e educação. Usos, costumes e hábitos são formados por processos e em situações inteiramente desconhecidos. As formas de associação mudam continuamente; as relações entre indivíduos, bem como entre indivíduos e grupos, variam a cada momento. Em uma situação encontramos a sugestão; em outra, a participação espontânea; em outra, a simpatia; em outra, ainda, a coação, etc. Não seria possível estabelecer aqui uma tipologia completa das formas de comunicação. Surgem e passam no processo histórico, e somente podem ser entendidas através de seu contexto vivo e de suas mudanças estruturais — nunca, porém, no vácuo. A título de primeira orientação, apresentamos duas tendências da vida moderna que desempenham um papel importante na formação externa e interna da geração vindoura. Por um lado, existe a tendência, em concordância com o intelectualismo moderno, de homogeneizar e intelectualizar as formas de educação e de propagação do conhecimento. Em oposição a esta, existe o romantismo, que deseja o retorno às formas antigas e mais “originais” de educação. O significado disto será esclarecido por meio de uma ilustração. Para a transmissão de conhecimentos puramente classificadores, a preleção é o tipo mais adequado de técnica pedagógica. Se o conhecimento tem de ser sistematizado, classificado em tipos ou ordenado, a forma pedagógica mais adequada parece consistir naquela categoria peculiar de subordinação que se evidencia quando se assiste a uma preleção. O “ouvinte”, como mero “ouvinte”, toma “conhecimento” dela. Subjacente à preleção, encontramos o pressuposto — implícito na própria preleção — de que os fatores pessoais puramente subjetivos foram eliminados. Assim, o intelecto age sobre o intelecto em uma atmosfera rarefeita, isolada da situação concreta. Entretanto, visto que a matéria da preleção não se refere a textos sagrados e autoritários, mas com dados públicos e sujeitos à investigação livre e independente, que podem ser conferidos, é possível a discussão depois da preleção. Isto justifica a chamada técnica de seminário. Também aqui a característica essencial está em que os impulsos subjetivos e emocionais, bem como as relações pessoais, são relegados, tanto quanto possível, ao segundo plano, de modo que as possibilidades abstratas sejam consideradas, umas em confronto com as outras, em uma base fatual. Do ponto-de-vista da matéria estudada, este tipo de associação pedagógica entre o conferencista e os ouvintes e o tipo de comunicação que implica parecem justificar-se no caso das ciências que Alfred Weber45 chamou “civilizacionais”, isto é, as formas de conhecimento que não se acham sujeitas às influências da concepção do mundo (Weltanschauung) ou dos impulsos volitivos pessoais. É problemático que este tipo de comunicação se aplique às Ciências Culturais e, ainda mais, às que se relacionam com a prática imediata. Está de acordo com o tipo de conhecimento e a tendência inerente no intelectualismo moderno que este modo específico de associação entre professor e aluno e esta forma específica de comunicação viessem a ser estabelecidos como modelos e que se tentasse aplicá-los a outros campos de conhecimento. As instituições educacionais do escolasticismo medieval e, talvez ainda mais, as universidades da época do absolutismo, cujo principal propósito era a formação de funcionários estatais, serviram de instrumentos na elaboração e na estabilização deste tipo

de instrução. Somente as seitas e os conventículos que não estavam basicamente interessados em um ensino técnico especializado e para os quais o despertar espiritual constituía o pré-requisito para a aquisição de conhecimentos desenvolveram a tradição de outras formas de associação humana nos processos pedagógicos, e cultivaram outras maneiras de transmissão intelectual. Em nossa época, a insuficiência de um sistema educacional que se restringiu a meramente entregar e comunicar conhecimentos ao estudante, por meio do sistema de preleções que subordina o “ouvinte” ao “conferencista”, tornou-se evidente nos campos que costumamos chamar de “artes”. Também neste campo, a aprendizagem em academias organizadas substituiu a forma mais antiga de associação aluno-professor, cujo protótipo era a oficina (atelier). Todavia, o tipo de associação característico da oficina corresponde melhor ao substrato a ser comunicado do que a formação em academias. A oficina ocasiona uma relação de mútua participação entre o mestre e o aprendiz. Na oficina, nada é sistemàticamente exposto para que o aprendiz “tome conhecimento”. Tudo o que se comunica é mostrado em situações concretas segundo “as oportunidades apareçam”, e não apenas “dito”. O aprendiz e o mestre trabalham juntos, assistindo-se reciprocamente e participando em comum na realização de trabalhos criadores que podem ter-se originado de qualquer um dos dois. A iniciativa é transmitida do professor para o aluno e neste encontra uma resposta. Juntamente com a transmissão da técnica, segue igualmente a transmissão da ideia, do estilo, não por meio da discussão teórica, mas no decorrer de uma elucidação colaborativa, criadora do objetivo que os une. Dessa forma atinge-se a pessoa como um todo, havendo uma diferença profunda entre esta relação humana e o mero “tomar conhecimento” que ocorre no sistema de preleções. Ensina-se não um sistema esquemático, mas sempre uma orientação concreta (no caso do processo artístico, comunica-se um sentimento da forma). Também aqui, as situações análogas se repetem, mas são compreendidas à luz do caráter e da unidade da obra a ser criada de maneira nova. O impulso romântico levou a um reconhecimento instintivo da superioridade da forma de associação característica da oficina. Ressaltou o grande dano causado às artes plásticas pelas academias; ou, no mínimo, que a arte criadora existia não por causa das academias, mas apesar delas. Qualquer movimento que, de modo análogo, tendesse a conformar a idêntico padrão a pedagogia política ou jornalística era encarado com suspeita. Também neste campo, o intelectualismo encontra uma força compensadora no romantismo. O prestígio desta corrente romântica alcançou, de fato, resultados práticos em alguns ramos como, por exemplo, no dos ofícios manuais — ou, tomando-se uma esfera muito diferente, nas escolas de puericultura e nos jardins de infância. Encontrou aceitação em todas as esferas de vida em que o intelectualismo, devido não a uma necessidade inerente ocasionada por fatos da situação, mas, antes, a um impulso puramente formal de expansão, desalojou a forma colaborativa da relação artesanal inicialmente desenvolvida. Mas a tendência romântica atinge seus limites onde quer que o conhecimento sistemático constitua um requisito indispensável da vida moderna. Quanto mais adiantado o nível de formação e mais complexo o artesanato artístico, tanto mais questionável se torna a utilização de métodos artesanais, muito embora nestes níveis mais altos de atividade inúmeros excessos possam ser atribuídos a uma racionalização exagerada e inútil. (Notamos neste ponto uma analogia estrutural com o fenômeno de super-racionalização e superburocratização das empresas capitalistas). Podemos então definir exatamente os limites, além dos quais a contracorrente

romântica já não se justifica. A institucionalização acadêmica da instrução no caso dos arquitetos, por exemplo, não pode ser atribuída exclusivamente ao intelectualismo exagerado da nossa época, mas às condições fatuais da complexidade do conhecimento técnico, conhecimento que é essencial e que tem de ser dominado. Além disso, é essencial reconhecer que a existência e a predominância do nosso intelectualismo não constituem um fenômeno intelectualmente premeditado e provocado, mas que surgiu naturalmente da condição orgânica do processo total de desenvolvimento social. Não nos cabe, portanto, afastar o intelectualismo de lugares onde corresponda realmente a uma necessidade orgânica surgida em tempos recentes, mas daquelas esferas em que, devido ao seu impulso formal interno de expansão, tende a aplicar métodos intelectualistas mesmo onde abordagens mais diretas e espontâneas continuam ainda hoje eficientes. Os requisitos puramente técnicos da engenharia já não podem ser ensinados em oficinas. É bem possível, no entanto, quando se trata de impulsos criadores cuja forma se encontre ainda em processo de desenvolvimento, utilizar aquelas modalidades de associação educacional mais vivas que se destinam a “despertar” o interesse e a transmitir o conhecimento intuitivo. A solução já não pode ser encontrada em um ou em outro extremo, mas apenas com base em uma mediação realista entre as várias correntes antagônicas da nossa época, o que requer que procuremos descobrir com exatidão, em cada caso concreto, até que ponto, de acordo com a matéria particular, se deve usar o método sistematizador e, até que ponto, o de associação educacional colaborativa. O que se disse a respeito do ensino das “artes” aplica-se, mutatis mutandis, em ampla medida, à política. Até agora, a política como “arte” tem sido ensinada e transmitida apenas ocasionalmente “à medida em que surgem as oportunidades”. Dessa forma, o conhecimento e a aptidão políticos têm sido transmitidos sempre de um modo informal e espasmódico. A aprendizagem do especificamente político tem sido deixada a ocasiões fortuitas. O papel desempenhado pelo estúdio junto à arte criadora, pela oficina junto à mecânica, é o mesmo papel desempenhado pela forma social do clube junto à política da burguesia liberal. O clube é uma forma específica de associação humana, que se desenvolveu não-intencionalmente como um meio adequado à seleção social intrapartidária, e como base tanto para realizar uma carreira política quanto para o cultivo de interesses coletivos. A estrutura sociológica peculiar do clube constitui a chave para a compreensão das mais significativas formas de transmissão direta e indireta do conhecimento político, que se origina do interesse dos implicados. Mas no caso presente, como nas artes, notamos que as formas mais originais e espontâneas de aprendizado e de treinamento, que dependam de ocasiões fortuitas, não são suficientes. Nosso mundo atual é por demais complicado e cada decisão, mesmo quando deva basear-se apenas em parte no conhecimento e instrução possibilitados pelas oportunidades atuais, requer demasiados conhecimentos especializados e uma perspectiva demasiado ampla para que, no cômputo final, o tipo de conhecimento e aptidão adquirido pela associação casual seja suficiente. A necessidade de uma instrução sistemática tende, e no futuro tenderá ainda mais, à necessidade de se proporcionar um ensino especializado aos políticos e jornalistas em formação. Por outro lado, existe o perigo de que essa formação especializada venha descuidar do elemento essencialmente político. Um conhecimento puramente enciclopédico, que não enfatize a conduta real, será de pouca utilidade. Ao mesmo tempo,

surgirá, na verdade já surgiu para as pessoas de visão mais ampla, o problema seguinte: deve-se deixar a formação de políticos aos cuidados exclusivos das escolas partidárias? Sob este aspecto, as escolas partidárias levam uma certa vantagem: a inculcação de valores correspondentes a certos interesses ocorre quase automàticamente, permeando a matéria em todos os níveis de apresentação. A atmosfera do clube, que influi nos interesses dos membros, estende-se involuntàriamente à pesquisa e ao ensino. A verdadeira questão consiste em saber se esta forma de educação política é a única desejável, porque, examinada de mais perto, resulta ser nada mais do que o cultivo de uma determinada série de valores e perspectivas, ditados pelo ponto-de-vista parcial de um determinado estrato político e social. Mas não deveria e não poderia haver uma forma de educação política que viesse a pressupor uma escolha relativamente livre entre alternativas, forma essa que é e devia tornar-se, em uma escala ainda maior, a base do estrato intelectual moderno? Não estaremos abandonando, sem maiores cuidados, uma conquista significativa da história europeia, precisamente no momento crítico em que as máquinas partidárias ameaçam subjugar-nos se não tentarmos fortalecer as tendências que nos habilitam a tomar decisões com base numa orientação total prévia? Será que os interesses só podem ser levantados por meio de doutrinação? Os interesses que foram submetidos à crítica, e que dela surgiram, não são também interesses, e talvez uma forma ou tipo mais elevados de interesse, a que não se deveria renunciar sem uma reflexão cuidadosa? As pessoas não devem permitir que sejam aprisionadas no limitado mundo doutrinário, na terminologia e na visão de grupos extremistas. Não se deve supor que somente os interesses inculcados são interesses, e que somente a ação revolucionária ou contrarrevolucionária é verdadeira ação. Aqui, as duas alas extremas do movimento político insistem em impor-nos sua concepção unilateral da prática, ocultando, com isso, tudo que seja problemático. Deve-se supor que somente será política o que for preparação para uma insurreição? A contínua transformação das condições e dos homens não constitui igualmente a ação? A significação das fases revolucionárias pode ser compreendida do ponto-de-vista do todo, mas, mesmo neste caso, nada mais são do que uma função parcial no processo social total. Deve-se supor que não existam tradição e forma de educação que correspondam precisamente àqueles interesses que buscam estabelecer um equilíbrio dinâmico e que são orientados para o todo? O verdadeiro interesse do todo não estará no estabelecimento de um número maior de centros de onde se irradiem os interesses políticos imbuídos da vitalidade de um ponto-de-vista crítico? Existe a necessidade de um tipo de educação política no qual se possam ensinar as matérias históricas, legais e econômicas, requeridas para uma orientação crítica, a técnica objetiva da dominação de massas e a formação e controle da opinião pública. Esta educação deveria também levar em conta o fato de que existem esferas em que os interesses estão inevitavelmente ligados à percepção. Mais ainda, as matérias relacionadas com estas esferas deveriam ser apresentadas de uma maneira que pressuponha estarmos lidando com pessoas ainda em busca de soluções, que ainda não chegaram a decisões finais. E, como resultado, será possível determinar em que casos se podem aplicar as formas antigas de associação educacional teórico-formal, e quais os que solicitam a aplicação dos tipos mais vivos da associação política orientados para a ação.

Parece, então, certo que as inter-relações na esfera especificamente política somente podem ser compreendidas no decorrer da discussão, sendo que as partes em debate representam forças reais na vida social. Não há dúvida, por exemplo, de que a fim de desenvolver a capacidade de orientação ativa, o método de ensino deve-se concentrar em acontecimentos imediatos e reais, dos quais o estudante tenha uma oportunidade de participar. Não existe oportunidade mais favorável para compreender a estrutura peculiar do campo político do que debater com os adversários os problemas mais vitais e imediatos, pois que, em semelhantes ocasiões, se expressam as forças e os pontos-de-vista existentes em um dado período. Os que gozam da capacidade de observação baseada na orientação ativa verão a história diferentemente da maioria de seus contemporâneos. A história já não será estudada apenas do ponto-de-vista do arquivista ou do moralista. A historiografia já passou do estágio de crônica modesta ou de lenda, evoluindo posteriormente como retórica, obra de arte, e vívida representação pictórica, até chegar ao anseio romântico de imersão no passado. Já sofreu tantas transformações que, hoje em dia, pode mais uma vez passar por uma transformação. Estes modos de interpretação histórica correspondiam às orientações dominantes que cada época mantinha a respeito do passado. Desde que este novo modo de orientação ativa da vida, que procura descobrir as relações sociológicas estruturais, passe da vida política para o campo do estudo, uma nova forma de historiografia correspondente virá a se desenvolver. Esta nova forma de historiografia não implica que a importância concedida ao estudo das fontes e à consulta de arquivos venha a declinar nem tampouco que outras formas de historiografia deixem de existir. Existem, hoje em dia, necessidades que se satisfazem ainda com a pura “história política”, e outras que requerem uma apresentação “morfológica”. Mas os impulsos que, surgindo de nosso atual modo de orientação na vida, nos levam a considerar os acontecimentos do passado com uma sucessão de mudanças da estrutura social, ainda se encontram em fase inicial. Nossa atual orientação na vida não estará completa até que tenha apreciado sua continuidade com o passado. Uma vez que este ponto-de-vista se tenha estabelecido na vida, então também o passado se tornará inteligível à luz do presente.

7. Três variedades de sociologia do conhecimento Até agora não fomos capazes de oferecer uma solução definitiva para nosso problema, mas tivemos de nos contentar em descobrir as inter-relações ocultas, colocando em questão problemas aparentemente resolvidos. De que servirá receber respostas tranquilizadoras no tocante à política como ciência, enquanto o pensamento político não corresponder de forma alguma àquelas respostas? Devemos, antes de mais nada, compreender que o pensamento histórico-político produz um tipo de conhecimento peculiar que não é teoria pura, mas que, apesar disso, encerra uma real percepção. Analogamente, é preciso reconhecer que o conhecimento histórico-político é sempre parcial e vê as coisas apenas a partir de certas perspectivas; que surge em associação com os interesses coletivos de grupo e se desenvolve em estreito

contato com estes interesses, mas que, apesar disso, oferece uma visão da realidade, tal como observada de um ângulo específico. Foi por este motivo que procedemos a uma análise histórico-sociológica pormenorizada da formulação do problema, análise esta que pretende demonstrar que a questão fundamental da relação entre teoria e prática varia de acordo com o fato de ser considerada a partir de um ângulo burocrático, historicista, liberal, social-comunista ou fascista. De modo a apreciar a natureza peculiar do pensamento político, será necessário haver captado a distinção entre o conhecimento que se orienta para a ação e o conhecimento que visa apenas a uma classificação. Finalmente, era preciso mostrar que a peculiaridade das formas de comunicação do conhecimento corresponde aos requisitos específicos da educação política. Daí o tratamento pormenorizado das formas de exposição e pedagogia. Somente quando se perceberem com clareza estas diferenças e se tomarem em conta as dificuldades decorrentes, poderá haver uma solução adequada do problema da possibilidade de uma ciência da política. Uma análise deste tipo, que sempre tem presente o fato de que o conhecimento político se acha englobado com o modo de existência, e que busque constantemente compreender as formas de exposição de um ângulo social-ativista, é a que nos oferece a Sociologia do Conhecimento. Sem o tipo de formulação de problemas possibilitado pela Sociologia do Conhecimento, não nos seria acessível a natureza mais íntima do conhecimento político. No entanto, a Sociologia do Conhecimento ainda deixa abertas três vias de análise. Na primeira, depois de reconhecer que o conhecimento histórico-político está sempre vinculado a um modo de existência e a uma posição social, alguns se inclinarão, precisamente devido a esta determinação social, a negar a possibilidade de se alcançar a verdade e a compreensão. Esta será a resposta dos que tomam seus critérios e modelos de verdade em outros campos do conhecimento, e que deixam de perceber que cada nível de realidade pode ter sua própria forma de conhecimento. Nada seria mais perigoso do que esta orientação unilateral e estreita para o problema do conhecimento. Caso já se tenha examinado o problema deste ponto-de-vista e chegado a estas conclusões, surge a possibilidade de se adotar outra abordagem. Esta abordagem consiste na tentativa de se atribuir à Sociologia do Conhecimento a tarefa de descobrir e de analisar a “equação social” presente em toda a visão histórico-política. O que significa que a Sociologia do Conhecimento tem a tarefa de desvencilhar, de cada parcela concreta- mente existente de “conhecimento”, o elemento valorativo vinculado a interesses, e de eliminá-lo como uma fonte de erro, visando a alcançar um campo “não-valorativo”, “supra social” e “supra histórico” de verdade “objetivamente” válida. Não há dúvida de que esta 'abordagem tem sua justificação, pois, sem dúvida, existem áreas de conhecimento histórico- -político onde há uma regularidade autônoma que pode ser formulada, em grande parte, independentemente da concepção do mundo (Weltanschauung) e da posição social individuais. Vimos que existe uma esfera da vida psíquica de que se pode tratar, em grande parte, por meio da psicologia de massas, sem que se aborde a questão do significado objetivo. Analogamente, existe uma área da vida social em que se podem perceber certas regularidades estruturais gerais, isto é, as formas mais gerais de associação humana (“Sociologia Formal”). Em Economia e Sociedade, Max Weber escolheu como tarefa central a elaboração deste estrato de relações puramente perceptíveis, de modo a atingir este campo não-valorativo e objetivo da Sociologia.

Finalmente, mesmo as tentativas de extrair uma teoria pura da esfera da Economia Política, livre dos obstáculos da posição social e da concepção do mundo (Weltanschauung) individuais, constitui outro exemplo do propósito de distinguir nitidamente entre “valoração” e “conteúdo fatual”. Ainda não está definido até que ponto pode ir a separação destas duas esferas. Não é, de forma alguma, impossível a existência de campos onde isto possa ser feito. O caráter “não-valorativo”, “supra histórico e “supra social” destas esferas somente estará fundamentalmente assegurado depois de se haver analisado o conjunto de axiomas ou o aparato categórico por nós empregados com referência a suas “raízes” em uma concepção do mundo (Weltanschauung). Com extrema frequência, tendemos a aceitar como “objetivas” as estruturas categóricas e os postulados básicos que nós mesmos tenhamos adquirido inconscientemente durante nossa experiência e que, somente depois, se revelam ao estudioso da Sociologia do Conhecimento como os axiomas parciais, histórica e socialmente condicionados, de uma particular corrente de pensamento. Nada é mais evidente do que o fato de que justamente as nossas próprias formas de pensamento são aquelas cuja natureza limitada nos é mais difícil de perceber, e de que somente um desenvolvimento histórico e social posterior nos proporciona a perspectiva que possibilita a compreensão de sua particularidade. Devido a isto, mesmo os que se esforçam por atingir uma esfera não-valorativa separável do resto do conhecimento devem procurar continuamente, pelo menos como corretivo, a equação social de seu pensamento, usando meios tais como a Sociologia do Conhecimento. Embora não se possa predizer de antemão o resultado deste método, pode-se dizer o seguinte: se, depois de explanada a influência da posição político-social sobre o conhecimento, restasse ainda um campo de conhecimento não-valorativo (não simplesmente no sentido de liberdade com relação ao juízo político partidário, mas no sentido do emprego de um aparato axiomático e categórico unívoco e não-valorativo) — caso esta esfera realmente exista, somente poderíamos atingi-la se levarmos em conta todas as “equações sociais” do pensamento que nos fossem acessíveis. Chegamos, então, à terceira alternativa que nós mesmos apontamos. Consiste em afirmar que, no ponto em que começa o que é propriamente político, o elemento valorativo não pode ser separado com facilidade, pelo menos não no mesmo grau em que isso é possível no pensamento sociológico formal e em outras espécies de conhecimento puramente formalizante. Esta posição insistirá em que o elemento de vontade detém uma importância essencial para o conhecimento na esfera política e histórica, embora possamos observar, no curso da história, uma gradativa seleção de categorias que adquirem cada vez mais validade para todos os partidos. Entretanto, apesar de haver um consensus ex post46 ou um substrato cada vez mais amplo de conhecimentos válidos para todos os partidos, não devíamos deixar-nos enganar por isso ou deixar de levar em conta o fato de que, em qualquer ponto histórico do tempo, existe uma quantidade substancial de conhecimentos acessíveis somente quando vistos de uma perspectiva social. Mas, uma vez que ainda não vivemos em um período livre de complicações mundanas e situado acima da história, nosso problema consiste não em como lidar com um tipo de conhecimento que seja a “verdade em si”, mas antes em como o homem lida com os seus problemas cognitivos, vinculado que está, em seu conhecimento, à sua posição no tempo e na sociedade. Se defendemos uma visão compreensiva do que ainda não se pode sintetizar em um sistema é porque a

consideramos como a possibilidade relativa ótima em nossa situação atual, e porque acreditamos que agindo dessa forma (como sempre acontece na história) estejamos dando os passos preparatórios necessários para a síntese seguinte. Contudo, depois de enunciada esta solução para o problema, precisamos acrescentar, de pronto, que a disposição para chegar a uma síntese, a partir do ponto-de-vista mais compreensivo e avançado, traz implícita um juízo prévio, que é a nossa decisão de chegar a uma mediação intelectual dinâmica. Certamente, seríamos os últimos a negar que tenhamos feito este juízo de valor. De fato, nossa tese principal é que o conhecimento político, enquanto a política corresponder à definição anteriormente dada, é impossível sem tal decisão, e que esta decisão a favor da mediação intelectual dinâmica deve ser vista como um elemento da situação total. Mas existe uma diferença bastante grande entre o fato de esta pressuposição influenciar o nosso ponto-de-vista de modo inconsciente e ingênuo (impedindo uma ampliação fundamental de nossa perspectiva) e o fato de aparecer somente depois de tudo aquilo de que podemos ter consciência e que já sabemos ter influído em nossas deliberações. A quinta-essência do pensamento político parece-nos residir no fato de que o conhecimento ampliado não elimina as decisões, mas apenas as faz recuar cada vez mais. Mas o que ganhamos com Este recuo das decisões é uma ampliação de nosso horizonte e um maior domínio intelectual de nosso mundo. Podemos consequentemente esperar, devido aos adiantamentos na pesquisa sociológica sabre a ideologia, que as relações entre a posição social, os motivos e os pontos-de-vista, até agora só parcialmente conhecidos, se tornem cada vez mais transparentes. Como já tivemos ocasião de indicar, isto nos dará condições de calcular, com maior precisão, os interesses coletivos e seus correspondentes modos de pensamento, e de predizer aproximadamente as reações ideológicas dos diferentes estratos sociais. O fato de que a Sociologia do Conhecimento nos dá uma certa base não nos exime da responsabilidade de chegar a decisões, mais amplia o campo de visão em cujos limites as decisões devem ser tomadas. Aqueles que temem que um maior conhecimento dos fatores determinantes que influem na formação de suas decisões venha a ameaçar-lhes a “liberdade” podem ficar descansados. Na verdade, o menos livre e mais profundamente predeterminado em sua conduta é aquele que ignora os fatores determinantes importantes, e que age sob a pressão imediata de determinantes que desconhece. Toda vez que tomamos conhecimento de um determinante que nos dominava, removemo-lo do campo de motivação inconsciente para o da motivação controlável, calculável e objetivada. A escolha e a decisão não são, dessa forma, eliminadas; pelo contrário, os motivos que anteriormente nos dominavam tornam-se sujeitos ao nosso domínio; somos cada vez mais referidos a nosso verdadeiro self e, ao passo que antigamente éramos escravos da necessidade, agora achamos possível unir-nos às forças com as quais estejamos em total acordo. A consciência progressivamente mais nítida de fatores anteriormente nãocontrolados e a tendência a suspender os juízos imediatos até que sejam vistos em um contexto mais amplo parecem constituir a principal tendência no desenvolvimento do conhecimento político. Isto corresponde ao fato, anteriormente mencionado, de que a esfera do racionalizável e do racionalmente controlável (mesmo em nossa vida mais íntima) se encontra em constante crescimento, ao passo que a esfera do irracional se vai tornando proporcionalmente mais estreita. Não iremos discutir se este desenvolvimento nos levará, em última análise, a um mundo plenamente racionalizado em que já não poderiam existir a

irracionalidade e a valoração, ou se levará à cessação da determinação social no sentido da liberdade mediante uma total consciência de todos os fatores sociais implicados. Trata-se de uma possibilidade utópica e remota, não estando, portanto, sujeita à análise científica. Entretanto, pode-se afirmar com segurança que a política como política somente é possível enquanto o campo do irracional ainda existe (onde este desaparece, a “administração” toma o seu lugar). Além disso, pode-se afirmar que a natureza peculiar do conhecimento político, em contraste com as Ciências “Exatas”, surge da inseparabilidade, neste campo, entre o conhecimento e o interesse e a motivação. Na política, o elemento racional se acha inerentemente entrelaçado com o irracional; finalmente, existe uma tendência a se eliminar o irracional do campo do social e, em estreita ligação com ela, ocorre uma conscientização mais elevada dos fatores que, até então, nos dominaram inconscientemente. Na história da humanidade, isto se reflete no fato de os homens terem originalmente aceito as condições sociais como destino inalterável, da mesma maneira que, provavelmente, teremos sempre de aceitar limitações naturais tais como o nascimento e a morte. Junto a esta concepção aparecia um princípio ético — a ética do fatalismo, cujo principal dogma era a submissão a podêres superiores e imperscrutáveis. A primeira quebra desta visão fatalista ocorreu com a emergência da ética da consciência, segundo a qual o homem sobrepunha o seu self ao destino inerente ao curso dos acontecimentos sociais. Guardava sua liberdade pessoal, por um lado, no sentido de conservar a capacidade de originar novas sequências causais no mundo (embora renunciasse à capacidade de controlar as consequências destes atos) e, por outro lado, mediante a crença na indeterminação de suas próprias decisões. A nossa época parece representar um terceiro estágio dês- te desenvolvimento: o mundo das relações sociais já não é imperscrutável nem pertence ao destino, mas, pelo contrário, algumas inter-relações sociais são potencialmente predizíveis. A esta altura começa a surgir o princípio ético da responsabilidade. Seus imperativos principais são: primeiro, que a ação não só deveria estar de acordo com os ditames da consciência, mas deveria levar em consideração suas possíveis consequências, na medida em que estas sejam calculáveis; segundo, o que se pode acrescentar coro base em nossa discussão anterior, a própria consciência deveria ser submetida ao autoexame crítico, a fim de eliminar todos os fatores que atuam cega e compulsivamente. Max Weber forneceu a primeira formulação aceitável desta concepção da política. Suas ideias e pesquisas refletem o estágio da ética e da política, em que o destino cego parece encontrar-se, pelo menos parcialmente, em curso de desaparição do processo social, e o conhecimento de tudo que seja cognoscível se torna uma obrigação do homem ativo. É neste ponto, se é que em algum, que a política pode vir a ser uma ciência, uma vez que, de um lado, a estrutura do campo histórico a ser controlado se tornou transparente, e, por outro lado, a partir da nova ética emerge um ponto-de-vista que encara o conhecimento, não como contemplação passiva, mas como autoexame crítico, e neste sentido prepara o caminho para a ação política. 1

Cf. Schäffle, A., “Über den wissenschaftlichen Begriff der Politik”, Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaften, vol. 53 (1897).

2

O termo alemão Schimmel significa molde (“mould” — nota do tradutor inglês).

3

Para maior precisão, dever-se-ia acrescentar a seguinte observação: a expressão “elementos rotinizados estabelecidos” deve ser considerada em sentido figurativo. Mesmo os traços mais formalizados e ossificados da sociedade não podem ser considerados como algo guardado num sótão, a ser utilizado quando necessário. As leis, os regulamentos e os costumes estabelecidos somente têm uma existência na medida em que as experiências vivas as fazem existir. Tal estabilidade significa tão-só que a vida social, ao renovar-se constantemente, conforma-se às regras e processos formais que lhe são inerentes e isso está em reprodução constante, de forma recorrente. Da mesma forma o uso da expressão “esfera racionalizada” deve ser tomado em sentido amplo. Pode significar quer uma abordagem teórica e racional, como no caso de uma técnica racionalmente calculada e determinada; quer, também, no sentido de “racionalização”, na qual uma sequência de acontecimentos segue um curso regular, esperado (provável), como no caso da convenção, dos usos e costumes, em que a sequência dos acontecimentos não é plenamente entendida, mas sua estrutura parece ter um certo caráter determinado. Pode-se usar aqui o termo “estereótipo”, tal como o utilizou Max Weber, tanto em sentido amplo, quanto em sua distinção das duas subclasses da tendência de estereotipar: a) tradicionalismo; b) racionalismo. Não obstante tal distinção não seja relevante para nossos propósitos, usaremos o conceito de “estrutura racionalizada” no sentido mais abrangente em que Max Weber emprega a noção geral de estereotipar.

4

Deve-se aqui frisar que o conceito de “político”, usado em conjunção com os conceitos correlativos de estrutura racionalizada e campo irracional, é apenas um dos muitos conceitos possíveis de “político”. Embora particularmente apropriado para a compreensão de certas relações, ele não deve ser tido, absolutamente, como o único. Para uma noção oposta de “político”, cf. C. Schmitt, “Der Begriff des Politischen”, Archiv für Sozialwissenschäft und Sozialpolitik, vol. 58 (1928).

5

Necrológio de Böhlau pelo jurista Bekker. Zeitschrift der Savigny-Stiftung. Germanist. Abtlg., vol. VIII, págs. VI e segs.

6

Burke, Reflections on the Revolution in France, ed. por F. G. Selby (Londres: MacMillan and Co., 1890), pág. 67.

7

Cf. “Das konservative Denken”, op. cit., págs. 89, 105, 133 e segs.

8

Ibidem, pág. 472, n.° 129.

9

Cf. Ranke, Das politische Gespräch (1836), organizado por Rothacker (Halle a. d., Saale, 1925), págs. 21 e segs. Outros ensaios sobre o mesmo tema: “Reflexionen” (1832), “Vom Einfluss der Theorie”, “Über die Verwandtschaft und den Unterschied der Historie und der Politik”.

10

Para simplificar, não distinguimos liberalismo de democracia, muito embora sejam inteiramente diferentes, social e historicamente.

11

Cf. Rickert, Heinrich, “Über idealistische Politik als Wissenschaft, Ein Beitrag zur Problemgeschichte der Staatsphilosophie”, Die Akademie, Heft 4, Erlangen.

12

Cf. Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, 2.a ed. (Leipzig, 1926).

13

Para o que se segue deve-se consultar a Parte II, onde se procede a uma discussão mais ampla, da qual apenas os pontos essenciais são aqui citados. O conceito de ideologia total, genérica e não- valorativa, anteriormente descrito, é o único utilizado no presente contexto. A Parte IV abordará as concepções valorativas de ideologia e utopia. O conceito a ser utilizado em seguida será determinado pelos propósitos imediatos da investigação.

14

Marx, Karl, A Contribution to the Critique of Political Economy, tr. de N. I. Stone (Chicago, 1913), págs. 1112.

15

Cf. Mam-Engels, Archiv, organizado por D. Ryazanov (Frankfurt), vol. I, pág. 252.

16

“Quando o proletariado, por meio da luta de classes, muda sua posição na sociedade e, portanto, toda a estrutura social, em tomando conhecimento da situação social mudada, isto é, de si mesmo, encontra-se face a face não somente com um novo objeto de compreensão, mas também altera sua posição como sujeito cognoscente. A teoria serve para dar ao proletariado a consciência de sua posição social, isto é, ela possibilita que ele se encare a si mesmo, simultaneamente, como objeto e sujeito do processo social” (Lukács, Georg, Geschichte und Klassenbewusstsein, Berlim, 1923). “Esta consciência, por sua vez, torna-se a força motriz de uma nova atividade, pois a teoria, uma vez que se apodere das massas, transforma-se em força material” (Marx-Engels, Nachlass, I, pág. 392).

17

Tanto Lênin quando Lukács, como representantes da abordagem dialética, encontram justificação nesta máxima napoleônica.

18

“A teoria revolucionária é a generalização das experiências do movimento proletário em todos os países. Perde, naturalmente, sua essência se não se conexiona com a prática revolucionária, da mesma forma que a prática anda às cegas se o seu caminho não for iluminado pela teoria revolucionária. Mas a teoria pode tornar-se a força maior do movimento proletário porque só ela pode dar ao movimento confiança, orientação, vigor e compreensão das relações internas entre os acontecimentos, e só ela pode ajudar a prática a elucidar o processo e a direção dos movimentos de classe no presente e no futuro próximo” (Joseph Stalin, Foundations of Leninism, ed. rev., Nova York e Londres, 1932, págs. 26-27).

19

A revolução, em particular, cria a situação propícia ao conhecimento significativo: “A História em geral, e a história das revoluções em particular, tem sido sempre mais rica, mais variada e multiforme, mais vital e “astuta” do que concebem os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes, as classes mais avançadas. Isto é natural, pois as melhores vanguardas expressam a consciência, a vontade, as paixões e as imaginações de apenas dezenas de milhares, enquanto a revolução se dá num momento de excepcional exaltação e exercício de todas as faculdades humanas: consciência, vontade, paixão, fantasia de dezenas de milhões, espicaçados pela mais desapiedada guerra de classes.” (N. Lenin, “Left” Communism: an Infantile Disorder, pub. por The Toiler, s. d., págs. 76-7, Nova York e Londres, 1934). É interessante observar que, deste ponto-de-vista, a revolução não se apresenta como uma intensificação das paixões humanas, nem como mera irracionalidade. A paixão é valiosa unicamente porque torna possível a fusão da racionalidade acumulada e testada experimentalmente nas experiências individuais de milhões.

20

Assim, o destino, a sorte, tudo o que é repentino e inesperado, e a visão religiosa daí decorrente, são concebidos como funções do grau em que nossa compreensão da história ainda não alcançou o estágio de racionalidade. “Medo das forças cegas do capitalismo, cegas porque não podem ser previstas pelas massas do povo; forças que, a cada passo, na vida do proletariado e dos pequenos comerciantes ameaçam acarretar e realmente acarretam, desastres e ruínas “repentinas”, “inesperadas”, “acidentais”, convertendo-os em mendigos, paupérrimos ou prostitutas, e condenando-os à inanição; estas são as raízes da moderna religião, que o materialismo, se pretende manter-se materialismo, deve apontar. Nenhum livro educativo eliminará a religião da mente dos condenados ao trabalho árduo do capitalismo, até que eles mesmos aprendam a combater de modo unitário, organizado, sistemático e consciente as raízes da religião, a dominação do capital em todas as suas formas”. (Selections from Lenin — The Bolshevik Party in Action, 1904-1914, II. Do ensaio “The Workers’ Party1 and Religion”, Nova York, págs. 2745).

21

“O modo de produção da vida material determina o caráter geral dos processos social, político e espiritual da vida”. Marx, Contribution to the Critique of Political Economy, tr. por N. I. Stone (Chicago, 1913), pág. 11.

22

“Sem uma teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”. Lenin, What Is To Be Done?, Nova York e Londres, 1931.

23

“O levante armado é uma forma especial da luta política. Tem leis próprias de desenvolvimento, e estas devem ser aprendidas. Karl Marx expressou isto com extraordinária clareza quando escreveu que “a revolta é uma arte, como a guerra” (Lenin, Ausgewahlte Werke, Viena, 1925, pág. 448).

24

Mussolini: “Nosso programa é simples: queremos governar a Itália. Vivem perguntando-nos sobre programas. Há programas em demasia. A salvação da Itália não depende de programas, mas de homens de vontade vigorosa” (Mussolini, Reden, ed. por H. Meyer [Leipzig, 1928], pág. 105. Cf. também págs. 134 e segs.).

25

Mussolini (op. cit., pág. 13): “Sabeis que eu não sou um adorador do novo deus, as massas. De qualquer forma, a história demonstra que as mudanças sociais sempre têm sido iniciadas por minorias, por um mero pugilo de homens”.

26

De uma declaração de Brodrero no Quarto Congresso Internacional de Cooperação Intelectual, Heidelburg, outubro, 1927. É muito difícil organizar as ideias fascistas numa doutrina coerente. Além de não estar ainda desenvolvido, o fascismo não dá grande importância a uma teoria integralmente organizada. Seu programa muda constantemente, dependendo da classe a que se dirija. Neste caso, mais do que em qualquer outro, é essencial separar a mera propaganda da atitude real, a fim de obter-se a compreensão de seu caráter essencial. Este parece residir em seu absoluto irracionalismo e em seu ativismo, que explica também o caráter vacilante, volátil, da teoria fascista. Ideias institucionais como o Estado corporativo, organizações profissionais, etc., foram deliberadamente omitidas de nossa apresentação. Nossa tarefa é analisar a atitude para com o problema da teoria e da prática e a visão da história que daí resulta. Por esta razão, consideramos necessário ocuparmo-nos, por vezes, dos precursores teóricos desta concepção, particularmente Bergson, Sorel e Pareto. Na história do fascismo, dois períodos podem ser distinguidos — e cada um deles teve repercussões ideológicas diferentes. A primeira fase, de mais ou menos dois anos, durante a qual o fascismo era um mero movimento, caracterizava-se pela infiltração de elementos intuitivo-ativísticos em sua visão intelectual-espiritual. Foi o período em que as teorias sindicalistas penetraram no fascismo. Os primeiros “fasci” eram sindicalistas, e Mussolini, nesta época, dizia-se discípulo de Sorel. Na

segunda fase, iniciada em novembro de 1921, o fascismo se estabiliza e orienta-se definitivamente para a direita. Tomam então ênfase as ideias nacionalistas. Para uma discussão do modo pelo qual sua teoria se transformou, de acordo com a mudança da base de classe, e especialmente das transformações sofridas a partir de quando a alta finança e a grande indústria se aliaram a ele, cf. Beckerath, E. v., Wesen und Werden des fascistischen Staates (Berlim, 1927). 27

Em contraste com isto, diz Mussolini: “De minha parte, não tenho grande confiança nestes ideais (os do pacifismo). Não obstante, não os excluo. Nunca excluo o que quer que seja. Tudo é possível, mesmo o mais impossível e absurdo” (op. cit., pág. 74).

28

Quanto às relações de Mussolini com Sorel: Sorel o conheceu antes de 1914 e conta-se que, em 1912, ele disse: “Mussolini não é um socialista comum. Acreditem-me, um dia o verão à frente de um batalhão sagrado, saudando a bandeira italiana. Ele é um italiano ao estilo do século XV, um verdadeiro condottiere. Ninguém o conhece ainda, mas ele é o único homem suficientemente ativo para curar o Governo de sua debilidade.” Citado por Pirou, Gaetan, Georges Sorel (1847-1922), Paris (Marcel Rivière), 1927, pág. 53. Cf. também a resenha de Ernst Posse, em Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, vol. 13, págs. 431 e segs.

29

Cf. o ensaio de Ziegler, H. O., “Ideologienlehre”, em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, 1927, vol. 57, págs. 657 e segs. Este autor assume o ponto-de-vista de Pareto, Sorel, etc., para demolir o “mito da história”. Nega que a história tenha qualquer coerência discernível e aponta várias correntes de pensamento contemporâneas que também adotam esta abordagem a-histórica. Mussolini expressou o mesmo pensamento e forma políticoretórica: “Não somos mulheres histéricas que aguardam medrosamente o que o futuro trará. Não estamos esperando o destino ou a revelação da história” (op. cit., pág. 129) e ainda: “Não acreditamos que a história se repita, ou que siga um caminho prefixado”.

30

Cf. Sorel, G., Réflexions sur la violence (Paris, 1921), cap. 4, págs. 167 e segs.

31

Uma exposição concisa das posições sociológicas de Pareto pode ser encontrada em Bousquet, Précis de sociologie d’après Vilfredo Pareto (Paris, 1925).

32

Mussolini, em um de seus discursos, disse: “Criamos un mito. Este mito é uma fé, um nobre entusiasmo. Não precisa ser uma realidade(!), é um impulso e uma esperança, crença e coragem. Nosso mito é a nação, a grande nação que desejamos fazer realidade concreta” (citado por C. Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pág. 89).

33

“Os temperamentos dividem os homens mais do que as ideias”, Mussolini, op. cit., pág. 55.

34

Cf. Beckerath, E. v., op. cit., pág. 142. Também Mussolini, op. cit., pág. 96.

35

Cf. Stahl, F. J., Die Philosophie des Rechts, vol. I, 4.a ed., livro 4, cap. 1, “Die neuere Politik”.

36

Cf. Schmitt, Parlamentarismus, cap, 4.

37

O próprio Mussolini fala, convincentemente, da mudança que o golpista sofre, depois de chegado ao poder. “É incrível como um franco-atirador, um vagabundo, pode mudar quando se torna deputado ou funcionário comunal. Começa a achar que é preciso respeitar os orçamentos municipais e que estes não podem ser violados” (op. cit., pág. 166).

38

Neste sentido, Savigny criou a ficção, para o conservantismo evolucionário, de que os juristas ocupavam um status especial como representantes do folk spirit (Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Friburgo, 1892, pág. 7).

39

Sorel, op. cit., pág. 177.

40

Quanto à atitude de Mussolini frente ao capitalismo: “...a real história do capitalismo começará agora. O capitalismo não é um sistema de opressão — pelo contrário, representa a seleção dos mais aptos, iguais oportunidades para os mais dotados, um mais desenvolvido senso de responsabilidade”, op. cit., pág. 96.

41

Cf. Fr. Brüggemann, “Der Kampf um die bürgerliche Weltund Lebensanschauung in der deutschen Literatur des 18. Jahrhunderts”, Deutsche Viertelfahrsschrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, III (Halle, 1925), págs. 94 e segs. Trata-se de um bom tratamento da recrudescência periódica do elemento supra burguês nos círculos literários da burguesia do século XVIII.

42

Max Weber formulou os problemas da Sociologia Política de modo algo semelhante, embora partisse de premissas inteiramente diversas. Seu desejo de imparcialidade na política representa a velha tradição democrática. Não obstante sua posição tenha o defeito de separar a teoria da valoração, sua pretensão de criar um ponto de partida comum para a análise política é objetivo digno dos maiores esforços.

43

Stahl, Die gegenwärtigen Parteien in Staat und Kirche (Berlim, 1863).

44

A escola fenomenológica, em particular, procurou mostrar, em oposição ao intelectualismo moderno, que há mais que uma forma de conhecimento. Cf. em especial Max Scheler, Die Formen des Wissens und die Bildung (Bonn, 1925); Die Wissensformen und die Gesellschaft (Leipzig, 1926); Heidegger, “Sein und Zeit”, Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, Vol. 8 (Halle, 1927): este último trabalho oferece, ainda que indiretamente, uma contribuição valiosa a este propósito. Contudo, o caráter específico do conhecimento político não foi aí examinado.

45 46

Alfred Weber, “Prinzipielles zur Kultursoziologie”, Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1920).

Cf. para mais detalhes a tese apresentada pelo autor em 1928 em Zurique (“Die Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”), em que há uma apreciação a respeito da natureza e gênese do conhecimento consensual ex post.

IV. A MENTALIDADE UTÓPICA 1. Utopia, ideologia e o problema da realidade Um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre. Esta incongruência é sempre evidente pelo fato de que este estado de espírito na experiência, no pensamento e na prática se oriente para objetos que não existem na situação real. Contudo, não devemos encarar como utópico todo estado de espírito que esteja em incongruência com a situação imediata e a transcenda (e, neste sentido, “afastado da realidade”). Iremos referir como utópicas somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem, se se transformarem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento. Ao limitar o significado do termo “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao mesmo tempo, rompe as amarras da ordem existente, estabelece-se uma distinção entre os estados de espírito utópicos e os ideológicos. Uma pessoa pode-se orientar para objetos que sejam estranhos à realidade e que transcendam a existência real — e, não obstante, permanecer ainda ao nível da realização e na manutenção da ordem de coisas existente. No decurso da história, o homem tem-se ocupado mais frequentemente com objetos que transcendem seu âmbito de existência do que com os imanentes a ela e, apesar disso, formas efetivas e concretas de vida social têm sido construídas com base em tais estados de espírito “ideológicos” que estão em incongruência com a realidade. Esta orientação incongruente somente se tornou utópica quando, em acréscimo, tendeu a pôr fim aos laços da ordem existente. Em consequência, os representantes de uma dada ordem não adotaram em todos os casos uma atitude hostil para com as orientações que transcendessem a ordem existente. Antes, sempre pretenderam controlar estas ideias e interesses situacionalmente transcendentes, impossíveis de serem efetivados no quadro da ordem vigente, tornando-os, dessa forma, socialmente impotentes, de modo que tais ideias fossem confinadas em um mundo além da história e da sociedade, onde não pudessem afetar o status quo. Todos os períodos da história contiveram ideias que transcendiam a ordem existente, sem que, entretanto, exercessem a função de utopias; antes, eram as ideologias adequadas a este estágio de existência, na medida em que estavam “organicamente” e harmoniosamente integradas na visão de mundo característica do período (ou seja, não ofereciam possibilidades revolucionárias). Enquanto a ordem medieval, organizada feudal e clericalmente, pôde situar seu paraíso fora da sociedade, em qualquer outra esfera do mundo que transcendesse a história e que amortecesse seu potencial revolucionário, a ideia de paraíso ainda constituía parte integrante da sociedade medieval. Somente depois que certos grupos incorporaram estas imagens desiderativas à sua conduta efetiva foi que estas ideologias se tornaram utópicas. Se utilizarmos a terminologia de Landauer,1 e, em consciente oposição à definição usual, chamarmos toda ordem social em curso e

efetivamente existente de “topia” (da palavra grega topos), então estas imagens desiderativas que assumem uma função revolucionária se tornarão utopias. Claro está que uma concepção definitiva de “existência” e uma concepção correspondente da transcendência da existência é subjacente à distinção acima. Esta suposição deve ser profusamente investigada antes de avançarmos. A natureza da “realidade” ou a “existência em si” constitui um problema que pertence à filosofia e que não tem interesse aqui. Entretanto, o que em um dado momento deva ser encarado sociológica ou historicamente como “real” é de importância para nós e, felizmente, pode ser definidamente determinado. Na medida em que o homem é uma criatura primariamente vivendo na história e na sociedade, a “existência” que o cerca jamais constitui uma “existência em si”, mas é sempre uma forma histórica e concreta de existência social. Para o sociólogo, a “existência” consiste no que é “concretamente efetivo”, isto é, uma ordem social em funcionamento, que não exista apenas na imaginação de certos indivíduos, mas de acordo com a qual as pessoas realmente ajam. Toda “ordem operante de vida” concreta deve ser concebida e caracterizada mais claramente por meio da particular estrutura política e econômica em que se baseie. Mas abarca igualmente todas as formas de “vida em conjunto” humana (formas específicas de amor, sociabilidade, conflito, etc.) que a estrutura torna possível ou requer; e também todos os modos e formas de experiência e pensamento característicos deste sistema social e, consequentemente, em congruência com ele. (Para o presente enunciado do problema isso é suficientemente preciso. Não se pode negar que, a se levar adiante o ponto-de-vista a partir do qual se faz a análise, ainda haveria muito mais a explicar. A extensão em que um conceito explica algo jamais pode ser absoluta; sempre é correlata à expansão e à intensificação do entendimento da estrutura total.) Mas toda ordem de vida “efetivamente operante” contém concepções a que se pode designar de “transcendentes” ou “irreais” porque seus conteúdos jamais podem ser realizados nas sociedades em que existem e porque não se poderia viver e agir segundo eles dentro dos limites da ordem social existente. Em uma palavra, todas as ideias que não caibam na ordem em curso são “situacionalmente transcendentes” ou irreais. As ideias que correspondem à ordem de facto, concretamente existente, são designadas como “adequadas” e situacionalmente congruentes. Estas são relativamente raras, e somente um estado de espírito que tenha sido totalmente esclarecido sociologicamente opera com ideias e motivos situacionalmente congruentes. Em contraste com as ideias adequadas e congruentes, existem duas categorias principais de ideias que transcendem a situação — as ideologias e as utopias. As ideologias são as ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tomem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente à prática, são, na maior parte dos casos, deformados. A ideia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece, em uma sociedade fundada na servidão, uma ideia irrealizável e, neste sentido, uma ideia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa-fé, um motivo da conduta do indivíduo. É impossível viver harmoniosamente, à luz do amor fraterno cristão, em uma sociedade que não se acha organizada sob o mesmo princípio. O indivíduo se vê, em sua conduta pessoal,

sempre forçado — na medida em que não recorre à ruptura da estrutura social existente — a renunciar a seus motivos mais nobres. O fato de que esta conduta ideologicamente determinada sempre fique aquém de sua significação pretendida pode apresentar-se sob várias formas — e correspondendo a estas formas existe toda uma série de tipos possíveis de mentalidade ideológica. Podemos ter, como o primeiro tipo desta série, o caso em que o indivíduo — que pensa e concebe — se ache impedido de tomar consciência da incongruência de suas ideias com a realidade em virtude do corpo total de axiomas implicado em seu pensamento histórica e socialmente determinado. Um segundo tipo de mentalidade ideológica é a “mentalidade hipócrita”, que se caracteriza pelo fato de que, historicamente, tenha a possibilidade de desvendar a incongruência entre suas ideias e suas condutas, mas, ao invés de o fazer, oculta estas percepções, em atenção a determinados interesses vitais e emocionais. Como um tipo final, existe a mentalidade ideológica que se baseia no logro consciente, em que se deve interpretar a ideologia como sendo uma mentira deliberada. Neste caso não estamos tratando com a auto ilusão, mas antes com o enganar deliberadamente outra pessoa. Existe um número infindável de estágios transicionais variando desde a mentalidade bem intencionada situacionalmente transcendente, passando pela “mentalidade hipócrita”, até a ideologia no sentido de mentiras conscientes.2 A esta altura, não há necessidade de nos ocuparmos ainda mais com estes fenômenos. É entretanto necessário chamar a atenção para cada um destes tipos, a fim de perceber com maior clareza a peculiaridade do elemento utópico quanto a este aspecto. As utopias também transcendem a situação social, pois também orientam a conduta para elementos que a situação, tanto quanto se apresente em dada época, não contém. Mas não são ideologias, isto é, não são ideologias na medida e até o ponto em que conseguem, através da contra atividade, transformar a realidade histórica existente em outra realidade, mais de acordo com suas próprias concepções. Ao observador que delas tenha uma visão relativamente externa, esta distinção teórica e completamente formal entre utopias e ideologias parece oferecer pouca dificuldade. Contudo, determinar concretamente o que em um dado caso seja ideológico e o que seja utópico é extremamente difícil. Aqui nos defrontamos com a aplicação de um conceito que envolve valores e padrões. Para que tal aplicação se efetue, deve-se necessariamente partilhar dos sentimentos e das motivações das partes em luta pelo assenhoreamento da realidade histórica. O que em um dado caso aparece como utópico, e o que aparece como ideológico, depende essencialmente do estágio e do grau de realidade a que se esteja aplicando este padrão. Claro está que os estratos sociais representantes da ordem intelectual e social prevalecente irão experimentar como realidade a estrutura de relações de que são portadores, ao passo que os grupos de oposição à ordem presente irão orientar-se em favor dos primeiros movimentos pela ordem social por que lutam e que, por seu intermédio, se está realizando. Os representantes de uma ordem dada irão rotular de utópicas todas as concepções de existência que do seu ponto-de-vista jamais poderão, por princípio, se realizar. De acordo com esta utilização, a conotação contemporânea do termo “utópico” é predominantemente a de uma ideia em princípio irrealizável. (Pusemos deliberadamente de lado esta significação do termo na definição mais estreita.) Dentre as ideias que transcendem a situação, existem certamente algumas que em princípio jamais poderiam realizar-se. Não obstante, os homens, cujos pensamentos e sentimentos se acham vinculados a uma ordem

de existência na qual detêm uma posição definida, manifestarão sempre a tendência a designar de absolutamente utópicas todas as ideias que se tenham mostrado irrealizáveis apenas no quadro da ordem em que eles próprios vivem. Sempre, porém, que, nas páginas seguintes, falarmos de utopia estaremos usando o termo no sentido relativo, uma utopia significando, assim, o que pareça irrealizável tão-só do ponto-de-vista de uma dada ordem social vigente. A própria tentativa de determinar o significado do conceito “utopia” mostra a que ponto toda definição, no pensamento histórico, depende necessariamente da perspectiva da pessoa, isto é, contém em si mesma todo o sistema de pensamento que representa a posição do pensador em questão e especialmente as valorações políticas subjacentes a este sistema de pensamento. A própria forma pela qual se define um conceito e o matiz com o qual é empregado já encerra, em certo grau, um juízo prévio quanto ao produto da corrente de ideias elaborada sobre ele. Não é por acaso que um observador que, consciente ou inconscientemente, tenha assumido uma posição a favor da ordem social prevalecente, deve possuir uma concepção ampla e indiferenciada do utópico; isto é, uma concepção que suprime a distinção entre a inviabilidade absoluta e a relativa. Desta posição, é praticamente impossível transcender os limites do status quo. Esta relutância em transcender o status quo tende para a posição de encarar algo inviável apenas dentro da ordem dada, como se fosse totalmente inviável em qualquer ordem, de tal forma que, ao se obscurecerem estas distinções, se possa suprimir a validade das pretensões da utopia relativa. Chamando de utópico tudo o que ultrapasse a presente ordem existente, afasta-se a ansiedade que poderia ser provocada pelas utopias relativas, viáveis em outra ordem. No extremo oposto se encontra o anarquista G. Landauer (Die Revolution, págs. 7 e segs.) que considera a ordem existente um todo indiferenciado e que, somente atribuindo valor à revolução e à utopia, vê em toda topia (a presente ordem existente) o próprio mal. Assim como os representantes de uma ordem existente não diferenciam as variedades de utopia umas das outras (permitindo-nos falar de uma cegueira quanto à utopia), também se pode acusar o anarquista de cegueira quanto à ordem existente. Percebemos em Landauer o que é característico em todos os anarquistas, a saber, a antítese entre o “autoritário” e o “libertário” — uma oposição que simplifica tudo e que encobre todas as diferenças parciais, englobando como autoritário tudo, desde o Estado policial, passando pela república democrática, até o Estado socialista, enquanto somente o anarquismo é considerado libertário. A mesma tendência para a simplificação se opera igualmente na forma pela qual se retrata a história. Esta dicotomização rude obscurece as indubitáveis diferenças qualitativas entre cada uma das formas de Estado. Similarmente, ao se depositar a ênfase valorativa na utopia e na revolução, obscurece-se a possibilidade de notar qualquer tipo de tendência evolutiva no domínio do histórico e do institucional. Segundo este ponto-de-vista, cada acontecimento histórico constitui uma libertação sempre renovada de uma topia (ordem existente), a qual é efetuada por uma utopia que surge a partir da primeira. Somente existe verdadeira vida na utopia e na revolução, a ordem institucional nada mais sendo do que o resíduo maligno deixado pelas utopias e revoluções em declínio. Dessa forma, o caminho da história vai de uma topia, por uma utopia, até a topia seguinte, etc. A unilateralidade desta visão do mundo e desta estrutura conceptual é por demais evidente para requerer uma elaboração posterior. Seu mérito, entretanto, reside no fato de, em oposição à opinião “conservadora” que se pronuncia a favor da ordem estabelecida,

evitar que a ordem existente se torne absoluta, ao contemplá-la como apenas uma das possíveis “topias” de que irão emanar os elementos utópicos que, por seu turno, irão solapála. Torna-se assim claro que, para encontrar a concepção correta de utopia, ou, mais modestamente, a mais adequada ao presente estágio de nosso raciocínio, deve a análise baseada na Sociologia do Conhecimento ser empregada para revelar a unilateralidade de cada uma destas posições antagônicas, eliminando-as. Tornar-se-á então claro aquilo em que exatamente consiste a particularidade das concepções precedentes. Somente depois de se haver esclarecido esta questão é que se torna possível, tomando por base o discernimento pessoal de cada um, atingir uma solução mais inclusiva, que supere a unilateralidade que se tornou aparente. A concepção de utopia por nós utilizada parece neste sentido a mais inclusiva. Procura levar em conta o caráter dinâmico da realidade, na medida em que não assume como ponto de partida uma “realidade em si”, mas, antes, uma realidade concreta, histórica e socialmente determinada, que se acha em um constante processo de mudança (cf. págs. 120 e segs. e pág. 150, nota 13). Além disso, propõe-se a atingir uma concepção de utopia qualitativa, histórica e socialmente diferenciada, e, finalmente, manter a distinção entre o “relativamente” e o “absolutamente utópico”. Tudo isso ocorre, em última análise, por ser nossa intenção não estabelecer apenas abstrata e teoricamente algum tipo de relação arbitrária entre a existência e a utopia, mas, antes, se possível, fazer justiça à plenitude concreta da transformação histórica e social da utopia em um dado período. Mais ainda, assim fazemos porque não apenas buscamos observar contemplativamente e descrever morfologicamente esta transformação de forma na concepção de utopia, mas também porque desejamos assinalar o princípio vital que vincula o desenvolvimento da utopia com o desenvolvimento de uma ordem existente. Neste sentido, a relação entre a utopia e a ordem existente aparece como uma relação “dialética”. Queremos dizer com isso que cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as ideias e valores em que se acham contidas, de forma condensada, as tendências não-realizadas que representam as necessidades de tal época. Estes elementos intelectuais se transformam, então, no material explosivo dos limites da ordem existente. A ordem existente dá surgimento a utopias que, por sua vez, rompem com os laços da ordem existente, deixando-a livre para evoluir em direção à ordem de existência seguinte. Esta “relação dialética” já foi bem enunciada pelo hegeliano Droysen ainda que de uma maneira formal e intelectualista. Suas definições podem ser úteis para o esclarecimento inicial deste aspecto dialético. Assim, escreve êle:3 § 77 “Toda evolução no mundo histórico se processa da seguinte forma: O pensamento, que é a contrapartida ideal das coisas como estas existem na realidade, se desenvolve como as coisas deveriam ser...” § 78 “Os pensamentos constituem a crítica do que é, sem no entanto ser como deveria ser. Na medida em que possam elevar as condições ao nível deles, alargando-se depois e se enrijecendo de acordo com o costume, o conservadorismo e a obstinação, uma nova crítica se faz necessária, e assim por diante”.

§ 79 “Que a partir de condições já dadas, surjam novos pensamentos e, a partir dos pensamentos, novas condições — eis o trabalho dos homens”. Esta formulação da progressão dialética, da situação e das contradições a serem encontradas no domínio do pensamento deve ser encarada como apenas um esboço formal. O verdadeiro problema reside em se traçar o. intercurso das formas diferenciadas de existência social com as diferenciações correspondentes nas utopias. Disso resulta que os problemas levantados se tornam mais sistemáticos e mais inclusivos, na medida em que refletem a riqueza e a variedade da história. O problema mais imediato para a pesquisa consiste em levar o sistema conceptual e a realidade empírica a um contato mais próximo um com o outro. Aqui cabe a observação de que em geral o aparato conceptual dos partidos progressistas se presta melhor ao estudo sistemático — na medida em que sua posição social oferece possibilidades mais amplas para o pensamento sistemático.4 Por outro lado, os conceitos históricos que enfatizem a singularidade dos acontecimentos seriam tendencialmente produto dos elementos conservadores da sociedade. Pelo menos não pode haver dúvida quanto à exatidão desta imputação para a época em que surgiu a ideia de singularidade histórica, em oposição à de generalização. Em consequência, podemos prever que o historiador irá criticar nossa definição de utopia como sendo uma construção por demais arbitrária, de um lado, por não se ter limitado ao tipo de obras cujos títulos foram retirados da Utopia de Thomas More, e, de outro, por incluir muitas coisas não-relacionadas a este ponto de partida histórico. Esta objeção se apóia na suposição mantida pelos historiadores de que a) sua única tarefa consiste na apresentação dos fenômenos históricos em toda a singularidade concreta pela qual se apresentam; e que b) portanto, deve-se trabalhar exclusivamente com conceitos descritivos, isto é, conceitos que, segundo um ponto-de-vista sistemático, não são definidos com uma rigidez tal que os impeça de respeitar o caráter fluido dos fenômenos. Portanto, os acontecimentos devem ser agrupados e classificados tomando-se por base não um princípio de similaridade, mas antes na qualidade de fenômenos cuja relação pode ser descoberta (através de sinais perceptíveis), por se tratar de partes de uma situação histórica única. Claro está que quem se aproximar do estudo da realidade histórica com tais pressuposições irá obstruir, por meio de seu aparato conceptual, o caminho para a investigação sistemática. Concedendo-se que a história representa mais do que uma questão de concretude e de individualidade, e que possua alguma organização estrutural, chegando mesmo, até certo ponto, a seguir leis (uma suposição que deve ser mantida aberta como uma das possibilidades), como se poderia descobrir estes fatores com conceitos tão ingênuos que somente se referem à unicidade histórica? Um conceito ingênuo historicamente seria, por exemplo, o de “utopia”, na medida em que, em sua utilização técnica histórica, compreendesse as estruturas que se assemelhassem em termos concretos à Utopia de Thomas More, ou que, em um sentido histórico algo mais amplo, se referissem às “comunidades ideais”. Não pretendemos negar a utilidade de tais conceitos individualmente descritivos, uma vez que o objetivo seja a compreensão dos elementos individuais na história. Negamos, contudo, que seja esta a única abordagem aos fenômenos históricos. Neste caso, a pretensão dos historiadores de que a história, em si e para si, seja exatamente

este encadeamento de fenômenos únicos não se coloca como um argumento contra nossa afirmação. Como poderia a história ser algo melhor quando, com o simples enunciado do problema e a formulação dos conceitos, já se fechasse a possibilidade de se alcançar qualquer outra resposta? Quando se aplique à história conceitos que não foram projetados para revelar estruturas, como podemos esperar chegar, por seu intermédio, a estruturas históricas? Se nossas indagações não antecipam um certo tipo de resposta teórica, como podemos esperar obtê-la? (Trata-se aqui de uma repetição, em nível mais elevado, do procedimento que tivemos a oportunidade de observar anteriormente, no caso dos conservadores e dos anarquistas: a possibilidade de uma determinada resposta indesejável já se acha bloqueada pela maneira pela qual se enuncia o problema e através da formulação dos conceitos a serem aplicados. Cf. págs. 219 e segs.) Uma vez que a indagação que fazemos à história se destina, por sua própria natureza, a resolver o problema de existirem ou não ideias até então não concretizadas na realidade, que transcendam uma dada realidade, tais fenômenos podem ser enunciados como um complexo de problemas sob a forma de um conceito. Seria portanto coerente colocar a questão sobre se este conceito pode ser vinculado ao significado do termo “utopia”. A questão permite uma resposta dupla; na medida em que definimos o termo, “utopia irá significar isto e isto...”, ninguém poderá objetar nosso procedimento, porque admitimos que a definição foi proposta somente para determinados fins (como Max Weber viu perfeitamente). Quando, entretanto, além disso, vinculamos esta definição à conotação historicamente evoluída do termo, o fazemos com o propósito de mostrar que os elementos por nós enfatizados em nossa concepção da utopia já se achavam presentes nas utopias tal como estas apareceram na história. Por esta razão, somos da opinião de que nossos conceitos abstratos não são apenas construções intelectuais voluntárias e arbitrárias, mas possuem suas raízes na realidade empírica. Os conceitos que criamos existem não simplesmente para fins de especulação, mas para auxiliar na reconstrução das forças estruturais que se acham presentes na realidade, se bem que nem sempre evidentes. Uma abstração construtiva não é o mesmo que uma especulação onde nunca se vai além do conceito e da reflexão sobre ele. A abstração construtiva constitui um pré-requisito para a investigação empírica que, se preenche as antecipações implícitas no conceito ou, mais simplesmente, se fornece provas da exatidão do construto, confere ao último a dignidade de uma reconstrução. Em geral, a antítese do procedimento histórico e da construção sistemática somente deve ser usada com o máximo cuidado. Nos estágios preliminares do desenvolvimento de uma ideia, pode ser realmente de algum auxílio para o esclarecimento. Quando, no decurso da evolução histórica desta antítese, assumiram relevância as ideias de Ranke, um bom número de diferenças se viu provisoriamente esclarecido pelo contraste entre os dois procedimentos. Por exemplo, o próprio Ranke estava preparado para esclarecer suas diferenças com Hegel. Se, a partir deste contraste, efetuamos uma antítese final e uma oposição absoluta que nos conduz para além da evolução histórica e da estrutura imanente dos fenômenos, mas que somente é legítima e útil como um primeiro passo no desenvolvimento de uma ideia, o resultado será que, como é tão frequente acontecer, estaremos incorrendo na falha de tornar absoluto o que nada mais é que um estágio isolado no desdobramento de uma ideia. Também aqui o absolutismo bloqueia o caminho para a síntese das abordagens sistemática e histórica, obstruindo a compreensão da situação total.5

Devido a que a determinação concreta do que seja utópico procede sempre de um certo estágio de existência, é possível que as utopias de hoje venham a ser as realidades de amanhã: “Muitas vezes as utopias nada mais são do que verdades prematuras” (“Les utopies ne sont souvent que des verités prématurées”, segundo Lamartine). Sempre que uma ideia for rotulada de utópica, geralmente o autor deverá ser um representante de uma época que já tenha passado. Por outro lado, a revelação das ideologias como sendo ideias ilusórias, que se adaptam à presente ordem, será geralmente trabalho de representantes de uma ordem de existência que ainda se encontra em processo de emergência. Será sempre o grupo dominante, que esteja em pleno acordo com a ordem existente, quem irá determinar o que se deve considerar utópico, ao passo que o grupo ascendente, em conflito com as coisas como estão, determinará o que deve ser considerado ideológico. Outra dificuldade em definir com precisão o que se deve, em um dado período, considerar ideologia e o que se deve considerar como utopia resulta do fato de os elementos ideológicos e utópicos não ocorrerem separadamente no processo histórico. As utopias das classes ascendentes se acham frequentes vezes permeadas por elementos ideológicos. A utopia da burguesia ascendente consistia na ideia da “liberdade”. Era em parte uma verdadeira utopia, isto é, continha elementos orientados para a realização de uma nova ordem social, constituindo um instrumento para a desintegração da ordem previamente existente, e que, após sua realização, se converteram parcialmente em realidade. Liberdade no sentido de quebrar as cadeias da ordem de estado, guilda e casta, no sentido de liberdade de pensamento e de opinião, no sentido de liberdade política e liberdade do desenvolvimento sém entraves da personalidade, tornaram-se em um sentido amplo, ou pelo menos em um sentido mais amplo do que na sociedade feudal anterior baseada nos laços de status, uma possibilidade viável. Sabemos, hoje em dia, exatamente em que medida estas utopias se tornaram realidades e até que ponto a ideia de liberdade daquela época continha não apenas elementos utópicos, mas igualmente elementos ideológicos. Onde quer que a ideia de liberdade tivesse que fazer concessões à ideia concomitante de igualdade, estava colocando objetivos em contradição com a ordem social que requeria e que mais tarde se realizou. A separação dos elementos ideológicos da mentalidade burguesa dominante dos capazes de realização subsequente, isto é, os elementos verdadeiramente utópicos, somente poderia ser efetuada por um estrato social que mais tarde se apresentasse em cena para desafiar a ordem existente. Todas as incertezas por nós assinaladas como estando implicadas em uma definição específica do que seja utópico e do que seja ideológico na mentalidade de uma dada época tornam de fato mais difícil a formulação do problema, mas não impedem sua investigação. Somente quando nos encontramos no verdadeiro centro de ideias mutuamente conflitantes é que se torna extremamente difícil determinar o que se deve considerar verdadeiramente utópico (isto é, viável no futuro) no horizonte de uma classe em ascensão e o que se deve considerar meramente como a ideologia de classes dominantes, bem como de classes ascendentes. Mas, se olharmos para o passado, parece possível encontrar um critério razoavelmente adequado para a distinção entre o utópico e o ideológico. Tal critério é sua realização. Ideias que posteriormente se mostraram como tendo sido apenas representações destorcidas de uma ordem social passada ou potencial eram ideológicas, enquanto as que foram adequadamente realizadas na ordem social posterior eram utopias relativas. As realidades atualizadas do passado põem um termo ao conflito de meras

opiniões sobre o que, nas ideias situacionalmente transcendentes de antigamente, era relativamente utópico, rompendo os laços da ordem existente, e o que era uma ideologia, servindo unicamente para dissimular a realidade. A extensão em que as ideias são realizadas constitui um padrão complementar e retroativo para estabelecer distinções entre fatos que, na medida em que são contemporâneos, se acham imersos no conflito de opiniões partidárias.

2. Realização de desejos e mentalidade utópica O pensamento desiderativo sempre figurou nos assuntos humanos. Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fada, promessas supra terrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. Constituíam, mais precisamente, colorações complementares do retrato da realidade da época do que utopias atuando em oposição ao status quo, e desintegrando-o. Uma extraordinária pesquisa na história cultural6 demonstrou que as formas de aspirações humanas podem ser enunciadas em termos de princípios gerais e que, em determinados períodos históricos, a consecução de desejos se produzia através da projeção no tempo, ao passo que, em outros, se realizava através da projeção no espaço. De acordo com esta diferenciação seria possível chamar de utopias os desejos espaciais, e de quiliasmas, os desejos temporais. Esta definição de conceitos, segundo os interesses da história cultural, objetiva apenas princípios descritivos. Não podemos, entretanto, aceitar a distinção entre projeção de desejos espacial e temporal como um critério decisivo para diferenciar tipos de ideologias e utopias. Consideramos utópicas todas as ideias situacionalmente transcendentes (não apenas projeções de desejos) que, de alguma forma, possuam um efeito de transformação sobre a ordem histórico- -social existente. Sendo este o passo inicial de nossa investigação, vemo-nos diante de uma série de problemas. Já que, sob este aspecto, nos interessamos inicialmente pelo desenvolvimento da vida moderna, nossa primeira tarefa consiste em descobrir o momento em que as ideias situacionalmente transcendentes se tornam pela primeira vez ativas, isto é, se tornam forças que conduzem à transformação da realidade existente. Seria conveniente indagar aqui qual dos elementos situacionalmente transcendentes na mentalidade dominante, em diferentes épocas, assumiu esta função ativa. Pois na mentalidade humana nem sempre são as mesmas forças, substâncias ou imagens as que podem adotar uma função utópica, ou seja, a função de romper os laços da ordem existente. Veremos em seguida que o elemento utópico em nossa consciência está sujeito a mudanças de conteúdo e forma. A situação existente, em qualquer momento dado, acha-se constantemente abalada por diferentes fatores situacionalmente transcendentes. Esta mudança de substância e forma da utopia não ocorre em um campo independente da vida social. Seria possível demonstrar que, pelo contrário, especialmente em desenvolvimentos históricos modernos, as sucessivas formas de utopia se acham, no início, Intimamente vinculadas a dados estágios históricos de desenvolvimento e, em cada

um destes, a particulares estratos sociais. Ocorre com grande frequência que a utopia dominante surja inicialmente como a quimera de um único indivíduo, somente mais tarde incorporada nos objetivos políticos de um grupo mais inclusivo que, a cada estágio sucessivo, pode ser sociologicamente determinado com maior exatidão. Costuma-se falar em tais casos de um precursor e do seu papel como pioneiro, atribuindo-se esta realização individual, em termos sociológicos, ao grupo a que transmitiu sua visão e em cujo benefício concebeu tais ideias. Isto implica a suposição de que a aceitação ex post facto da nova visão por determinados estratos apenas evidencia o impulso e as raízes sociais da concepção de que o precursor já participava inconscientemente e de onde extraiu a tendência geral de sua realização, de outra forma indiscutivelmente individual. A crença de que a significação do poder individual de criação deve ser negada constitui um dos mais generalizados malentendidos a respeito das descobertas da Sociologia. Pelo contrário, de onde se ooderia esperar que o nôvo se originasse a não ser do espírito nôvo e singularmente pessoal do indivíduo que ultrapassa os limites da ordem existente? Constitui tarefa da Sociologia mostrar sempre que, não obstante, os primeiros indícios do que é nôvo (muito embora com frequência adotem a forma de oposição à ordem existente) se acham de fato orientados para a ordem existente e que a própria ordem existente possui suas raízes no alinhamento e na tensão das forças da vida social. Mais ainda, o que é nôvo na realização do indivíduo “carismático” singular somente pode ser utilizado para a vida coletiva quando, desde o início, se acha em contato com algum problema corrente importante e quando seus significados estão genèticamente enraizados nos objetivos coletivos. Não devemos, contudo, superestimar a significação da importância do indivíduo em relação à coletividade, como nos acostumamos a fazer desde a Renascença. Desde esta época, a contribuição da mente individual se eleva relativamente quando comparada ao papel que desempenhou durante a Idade Média e nas culturas orientais, mas sua significação não é absoluta. Mesmo quando um indivíduo aparentemente isolado atribui uma forma à utopia de seu grupo, este fato pode ser, em última análise, atribuído ao grupo a cujo impulso coletivo sua realização se conformou. Após havermos esclarecido as relações entre as realizações do indivíduo e as do grupo, achamo-nos em condições de falar de uma diferenciação de utopias de acordo com épocas históricas e estratos sociais, e de encarar a história segundo este ponto-de-vista. No sentido de nossa definição, uma utopia real não pode, a longo prazo, ser trabalho de um indivíduo, já que o indivíduo não pode por si mesmo romper a situação histórica e social. Somente quando a concepção utópica do indivíduo se impõe a correntes já existentes na sociedade, dando-lhes uma expressão, quando, sob esta forma, reflui de volta ao horizonte de todo o grupo, sendo por este traduzida em ação, somente então pode a ordem existente ser desafiada pela luta por outra ordem de existência. Com efeito, pode-se constatar, ainda mais, que se trata de uma dimensão bastante essencial da história moderna o fato de que, na gradativa organização da ação coletiva, as classes sociais somente se tornam eficientes na transformação da realidade histórica quando suas aspirações se encontram encarnadas em utopias apropriadas para a situação em mudança. Somente porque existiu uma estreita correlação entre as diferentes formas de utopia e os estratos sociais que estavam transformando a ordem existente é que as mudanças nas ideias utópicas modernas constituem um tema de investigação sociológica. Se podemos falar de diferenciações históricas e sociais de ideias utópicas, devemos então nos indagar se

a forma e a substância que em uma dada época possuíram não deveriam ser compreendidas através de uma análise concreta da situação histórico-social em que surgiram. Em outras palavras, a chave para a inteligibilidade das utopias consiste na situação estrutural do estrato social que, em um dado tempo, as espose. As peculiaridades das formas particulares de utopias em sucessiva emergência tornam-se de fato mais proximamente inteligíveis, caso não as consideremos meramente em termos de filiação unilinear de uma para a outra, e, sim, levando em conta o fato de que vieram a existir e se mantiveram como contra utopias em mútuo antagonismo. As diferentes formas das utopias ativas apareceram nesta sucessão histórica em vinculação com determinados estratos sociais definidos em luta pela supremacia. Apesar de frequentes exceções, esta vinculação continuou a existir de modo que, com o passar dos tempos, se torna possível falar de uma coexistência das diferentes formas de utopia que inicialmente apareciam em uma sucessão temporal. O fato de existirem em íntima vinculação, às vezes latente, às vezes manifesta, com estratos mutuamente antagônicos, reflete-se na forma que assumem. A mudança de destino das classes a que pertencem constantemente se expressa nas variações concretas na forma das utopias. O fato básico de precisarem se orientar uma às outras por meio do conflito, ainda que se trate apenas do sentido de oposição, deixa sobre elas uma marca definitiva. Em consequência, o sociólogo somente pode realmente compreender estas utopias como fazendo parte de uma constelação total em constante alteração.7 Se a história social e intelectual se preocupasse exclusivamente com o fato anteriormente delineado de que cada forma de ideologia socialmente vinculada está sujeita a mudança, só teríamos o direito de falar de problemas que dissessem respeito à transformação socialmente vinculada da “utopia”, mas não do problema da transformação da “mentalidade utópica”. Somente se poderá falar corretamente de uma mentalidade utópica quando a configuração da utopia, em qualquer época, constitua não apenas uma parte vital do “conteúdo” da mentalidade em questão, mas quando pelo menos permeie, em sua tendência geral, todo o campo desta mentalidade. Somente quando o elemento utópico, neste sentido, tenda a se infundir completamente em cada aspecto da mentalidade dominante na época, quando as formas de experiência, de ação e de visão (perspectiva) estejam organizadas em concordância com este elemento utópico, estaremos verdadeira e realisticamente no direito de falar não apenas de diferentes formas de utopia, mas, ao mesmo tempo, de diferentes configurações e estágios de mentalidade utópica. E é exatamente esta tarefa de provar que tal inter-relação profunda realmente existe que constitui a culminação de nossa pesquisa. O elemento utópico — isto é, a natureza do desejo dominante — determina a sequência, a ordem e a valoração das experiências singulares. Este desejo constitui o princípio organizador que modela a própria maneira pela qual experimentamos o tempo. A forma em que os acontecimentos se acham ordenados e o ritmo inconscientemente enfático que o indivíduo, em sua observação espontânea dos acontecimentos, impõe ao fluxo do tempo, aparece na utopia como um quadro imediatamente perceptível ou, pelo menos, como um conjunto de significações diretamente inteligíveis. A estrutura interna da mentalidade de um grupo nunca pode ser mais claramente captada do que quando tentamos compreender sua concepção do tempo à luz de suas esperanças, aspirações e propósitos. Com base nestes propósitos e expectativas, uma dada mentalidade ordena não só os acontecimentos futuros,

mas também os passados. Acontecimentos que à primeira vista se apresentam como uma mera acumulação cronológica, assumem, segundo este ponto-de-vista, o caráter de destino. Os simples fatos se colocam em perspectiva, distribuindo-se e parcelando-se ênfases de significação a eventos isolados de acordo com as direções fundamentais buscadas pela personalidade. Não é senão nesta significativa ordenação de acontecimentos, prolongandose muito além das meras ordenações cronológicas, que se irá descobrir o princípio estrutural do tempo histórico. Mas é necessário ir ainda mais além: esta ordenação de significados constitui, na verdade, o elemento mais importante na compreensão e na interpretação dos acontecimentos. Assim como a Psicologia moderna demonstra que o todo (Gestalt) cede as partes, e que nossa primeira compreensão das partes surge através do todo, da mesma forma sucede com a compreensão histórica. Também aqui temos o sentido do tempo histórico como uma totalidade significativa que ordena os acontecimentos “anteriormente” às partes, e através desta totalidade é que verdadeiramente compreendemos pela primeira vez o curso total de acontecimentos e nosso lugar nele. Exatamente devido a esta significação central do sentido de tempo histórico, iremos enfatizar em especial as conexões existentes entre cada utopia e a correspondente perspectiva histórica de tempo. Quando nos referimos a certas formas e estágios da mentalidade utópica, temos em mente estruturas de mentalidade concretas e possíveis de serem descobertas, tais como encontráveis em sêres humanos vivos e individuais. Não estamos pensando neste momento em alguma unidade construída de maneira puramente arbitrária (como a “consciência em si” de Kant) ou uma entidade metafísica a ser colocada além das mentes concretas dos indivíduos (como no “espírito” de Hegel). Antes nos referimos às estruturas de mentalidade concretamente possíveis de serem descobertas, tais como podem ser demonstradas a partir dos indivíduos. Portanto estaremos aqui preocupados com o pensar, agir e sentir concretos e com suas conexões internas em tipos concretos de homens. Os tipos puros e estágios da mente utópica somente constituem construções na medida em que são concebidos como tipos-ideais. Nenhum indivíduo isolado representa a encarnação pura de qualquer um dos tipos de mentalidade histórica e social aqui apresentados.8 Antes, em cada indivíduo concreto e isolado existiriam em atuação determinados elementos de um certo tipo de estrutura mental, muitas vezes misturados com outros tipos. Quando então analisarmos os tipos-ideais de mentalidades utópicas em suas diferenciações históricas e sociais, não as propomos como construções epistemológicas ou metafísicas. Trata-se simplesmente de recursos metodológicos. Nenhuma mente individual, tal como existiu efetivamente, correspondeu plenamente aos tipos e suas interconexões internas, que serão descritos. Contudo, cada mente individual, em sua concretude, tende (apesar de todas as mesclagens) a se organizar geralmente segundo as linhas estruturais de um destes tipos historicamente cambiantes. Estas construções, assim como os tipos-ideais de Max Weber, apenas servem para o domínio sobre as complexidades passadas e presentes. Em nosso caso, foram além disso propostas para a compreensão não apenas de fatos psicológicos, mas também para a compreensão, em toda a sua “pureza”, das estruturas que neles se desdobram e atuam historicamente.

3. Mudanças na configuração da mentalidade utópica: seus estágios nos tempos modernos a) A Primeira Forma da Mentalidade Utópica: O Quiliasma Orgiástico dos Anabatistas A mudança decisiva na história moderna foi, sob o ponto-de-vista do nosso problema, o momento em que o “Quiliasma” uniu suas forças às demandas ativas dos estratos oprimidos da sociedade.9 A ideia da aurora de um reinado milenar sobre a terra sempre conteve uma tendência revolucionarizante, e a Igreja fez todos os esforços para paralisar esta ideia situacionalmente transcendente com todos os meios de que dispunha. Estas ideias, que intermitentemente afloravam, reapareceram novamente em Joachim das Flores, entre outros, mas neste caso ainda não se cogitava delas como revolucionárias. Entretanto, entre os hussitas e depois em Thomas Münzer10 e os anabatistas estas ideias se transformaram nos movimentos ativadores de estratos sociais específicos. Aspirações que até então não se haviam apegado a um objetivo específico, ou se concentravam em objetivos extraterrenos, assumiram subitamente uma compleição mundana. Sentia-se que eram viáveis — aqui e agora — e infundiam um ardor singular à conduta social. A “espiritualização da política”, de que se pode dizer que começou neste momento da história, afetou em maior ou menor escala todas as correntes da época. A origem da tensão espiritual estava, porém, na emergência da mentalidade utópica originada nos estratos oprimidos da sociedade. É neste ponto que tem início a política, no sentido moderno do termo, se entendermos por política uma participação mais ou menos consciente de todos os estratos da sociedade na consecução de alguma finalidade mundana, em contraste com a aceitação fatalista dos acontecimentos como são ou com a do controle de “cima”.11 No período pós-medieval, somente muito gradativamente foram as classes mais baixas assumindo esta função motora no processo social total e atingindo uma consciência de sua própria importância política e social. Muito embora este estágio, como já indicamos, se ache ainda bem distante do da “autoconsciência proletária”, não obstante constitui o ponto de partida deste processo. Desde então as classes oprimidas da sociedade tendem, de uma forma mais claramente discernível, a desempenhar um papel específico no desenvolvimento dinâmico do processo social total. A partir desta época encontramos uma crescente diferenciação social de propósitos e de atitudes psíquicas. Isto não implica de forma alguma que esta forma mais extrema de mentalidade utópica tenha sido o único fator determinante da história desde essa época. Não obstante, sua presença no campo social tem exercido uma influência quase contínua até sobre as mentalidades antitéticas. Mesmo os opositores desta forma extrema de mentalidade utópica se orientaram, embora involuntária e inconscientemente, com referência a ela. A visão utópica provocou uma visão contrária. O otimismo quiliástico dos revolucionários veio finalmente a dar origem à formação da atitude conservadora de resignação e, na política, à atitude realista. Esta situação foi de grande importância não só para a política, mas igualmente para as tendências espirituais que se haviam fundido com os movimentos práticos e que tinham abandonado sua posição desvinculada e afastada. Energias orgiásticas e irrupções extáticas começaram a operar em um quadro terreno e as tensões que anteriormente transcendiam a

vida cotidiana se tornaram agentes explosivos dentro do todo-o-dia. O impossível faz nascer o possível,12 e o absoluto interfere no mundo e condiciona os acontecimentos efetivos. Esta forma fundamental, a mais radical de utopia moderna, foi conformada a partir de um material singular. Correspondeu à fermentação espiritual e ao excitamento físico dos camponeses, de um estrato que vivia o mais próximo da terra. Era ao mesmo tempo robustamente material e altamente espiritual. Nada seria mais enganoso do que tentar entender estes acontecimentos sob o pontode-vista da “história das ideias”. Ideias não impeliram estes homens a feitos revolucionários. Sua explosão efetiva era condicionada por energias extático-orgiásticas. Os elementos da consciência transcendentes à realidade, que foram aqui despertados para uma função utópica ativa, não eram “ideias”. Ver tudo o que ocorreu durante este período como o trabalho de “ideias” constitui uma deformação inconsciente produzida durante o estágio liberal-humanitário da mentalidade utópica.13 A história das ideias foi a criação de uma época marcada pela ideia, que reinterpretava Involuntàriamente o passado à luz de suas próprias experiências centrais. Não foram as “ideias” que impeliram os homens, durante as Guerras Camponesas, à ação revolucionária. Esta erupção tinha suas raízes em níveis bem mais elementares e mais profundamente vitais da psique.14 Se quisermos aproximar-nos de um entendimento da verdadeira substância do Quiliasma, possibilitando o acesso a sua compreensão científica, impõe-se antes de mais nada distinguir entre Quiliasma e as imagens, símbolos e formas com os quais pensava a mente quiliástica. Pois em nenhuma outra ocasião nossa experiência será tão válida quanto aqui no que ao fato de que o que já se encontre formado e a expressão assumida pelas coisas tendem a se desligar de suas origens e a prosseguir seu próprio caminho independentemente dos motivos que as inspiraram. A dimensão essencial do Quiliasma reside em sua tendência a sempre se dissociar de suas imagens e símbolos. Justamente porque a força impulsionadora desta utopia não se situa na forma de sua expressão externa é que uma visão do fenômeno baseada na mera história de ideias deixa de lhe fazer justiça. Tal visão se arrisca constantemente a perder o ponto essencial. Se utilizarmos os métodos da história das idéias tenderemos a colocar no lugar da história da substância do Quiliasma a história dos quadros de referência que já se esvaziaram de conteúdo, isto é, a história das meras ideias quiliásticas em si mesmas.15 De modo semelhante, a investigação das carreiras dos revolucionários quiliásticos resulta enganosa, uma vez que pertence à natureza da experiência quiliástica refluir ao curso do tempo e sofrer uma irremediável transformação ao longo das experiências pessoais. Portanto, a fim de nos apegarmos firmemente ao próprio tema da investigação, devemos buscar um método de pesquisa que propicie uma percepção viva do material e que o apresente como se nós mesmos o estivéssemos vivendo. Devemos constantemente nos indagar se a própria atitude quiliástica se encontra efetivamente presente nas formas de pensamento e experiência com que num dado caso estejamos lidando. A única característica identificadora, talvez a única que seja direta, da experiência quiliástica é a da atualidade absoluta. Sempre ocupamos algum lugar aqui e agora nos níveis temporal e espacial, mas segundo o ponto-de-vista da experiência quiliástica a posição que ocupamos é meramente acidental. Para o verdadeiro quiliasta, o presente vem a ser a fenda pela qual o que anteriormente quedava interiorizado irrompe subitamente, toma posse do mundo exterior e o transforma.

O místico vive na rememoração do êxtase ou na sua expectativa. Suas metáforas descrevem este êxtase como uma situação psíquica inconcebível em termos espaciais e temporais como uma união com o mundo fechado do além.16 É talvez esta mesma substância extática que, para o quiliasta, se torna um aqui e agora imediato, mas para unicamente o deleitar, mas a fim de arrebatá-lo e dele fazer uma parte de si mesmo. Thomas Münzer, o profeta quiliasta, assim se exprimiu; “Por esta razão, todos os profetas deveriam falar da seguinte forma, ‘Assim fala o Senhor’ e não ‘Assim falava o Senhor’ como se tivesse ocorrido mais no passado do que no presente”.17 A experiência do místico é puramente espiritual, e se há alguns traços de experiência sensorial em sua linguagem isto se deve a que ele tem de exprimir um contato espiritual inexprimível e somente pode encontrar seus símbolos nas analogias sensoriais da vida cotidiana. Entretanto, com o quiliasta a experiência sensorial se acha presente em toda a sua pujança, sendo tão inseparável da espiritualidade nele existente quanto ele se acha de seu presente imediato. Seria como se através deste presente imediato ele tivesse pela primeira vez vindo ao mundo e entrado em seu próprio corpo. Para citar o próprio Münzer: “Busco apenas que aceiteis a palavra viva em que vivo e respiro, de modo que ela não a mim não retorne vazia. Levai-a ao coração, eu vos conjuro pelo nome do rubro sangue de Cristo. Tomo conhecimento de vós e desejo dar-vos o conhecimento de mim. Se não puder ser assim, seja eu o filho da morte temporal e eterna. Não vos posso oferecer penhor mais alto”.18 O quiliasta espera uma união com o presente imediato. Por isso, não se acha preocupado, em sua vida diária, com esperanças otimistas quanto ao futuro ou com reminiscências românticas. Sua atitude se caracteriza por uma tensa expectativa. Está sempre de pé, esperando o momento propício, não havendo portanto nenhuma articulação interna do tempo para ele. Não se acha realmente preocupado com o milênio que há por vir;19 o que para ele tem importância é que isto se produza aqui e agora, e que tenha surgido da existência terrena, como se fosse um rápido volteio noutra espécie de existência. A promessa de um futuro que virá não constitui para ele uma razão para o adiamento, mas apenas um ponto de orientação, algo de externo ao curso normal dos acontecimentos, onde ele se encontra à espreita, pronto para se lançar. Devido à peculiaridade de sua estrutura, a sociedade medieval e feudal não conheceu uma revolução no sentido moderno.20 Desde o aparecimento desta forma de mudança política, o quiliasma tem sempre acompanhado as eclosões revolucionárias, emprestando-lhes seu espírito. Quando este espírito reflui e abandona tais movimentos, permanece no mundo, e em seu rastro, um frenesi da massa e uma fúria desespiritualizada. O quiliasma encara a revolução como um valor em si mesmo, não como um meio inevitável de se atingir um fim racionalmente estabelecido, mas como o único princípio criador do presente imediato, como a esperada realização de suas aspirações neste mundo. “A vontade de destruir é uma vontade criadora”, dizia Bakunin,21 devido ao demônio que o possuía, o Satã de que gostava de dizer que trabalhava por contágio. Que ele não estivesse fundamentalmente interessado na realização de um mundo racionalmente concebido é o que se depreende desta afirmação: “Não acredito em constituições ou leis. A melhor

constituição me deixaria insatisfeito. Precisamos de algo diverso. De tempestade e de vitalidade e de um novo mundo sem leis e consequentemente livre”. Sempre que o espírito extático se fatiga de amplas perspectivas e de imagens, encontramos um reaparecimento da promessa concreta de um mundo melhor, embora isto não deva de forma alguma ser tomado em um sentido totalmente literal. Para esta mentalidade, as promessas de um mundo melhor distante no tempo e no espaço se assemelham a cheques indescontáveis — sua única função é de fixar o ponto do “mundo além dos acontecimentos” de que falávamos, do qual quem estiver esperando ansiosamente o momento propício possa assegurar-se da separação face ao que se ache meramente em processo de vir a ser. Não estando de acordo com quaisquer acontecimentos que transpareçam no “mal” aqui e agora, espera apenas a junção crítica dos acontecimentos e o momento em que a concatenação externa das circunstâncias coincida com a inquietação extática de sua alma. Em consequência, ao observarmos a estrutura e o curso do desenvolvimento da mentalidade quiliástica, é de muito pouca importância (embora para a história das variações em motif talvez seja significativo) que no lugar de uma utopia temporal tenhamos uma utopia espacial, e que na Idade da Razão e do Iluminismo o sistema fechado de dedução racional venha a permear o horizonte utópico. Em um certo sentido, o ponto de partida axiomático e racional, o sistema fechado de procedimento dedutivo, e o equilíbrio internamente verificado dos motivos compreendidos no corpo de axiomas, são tão capazes de infundir esta coerência interna e este isolamento do mundo quanto os sonhos utópicos.22 Além do mais, o que de forma meramente racional é correto e válido está tão afastado do tempo e do espaço que tal afastamento conduz a um reino estranho a experiência mais pro- vàvelmente do que se poderia esperar dos sonhos utópicos impregnados do conteúdo corpóreo do mundo tal qual é. Nada é mais distante dos acontecimentos reais que o sistema racional fechado. Em determinadas circunstâncias, nada contém um impulso mais irracional do que uma visão de mundo intelectualista e totalmente autossuficiente. Não obstante, existe em qualquer sistema racional formal o perigo de que o elemento extático-quiliástico venha a refluir por trás de uma fachada intelectual. Portanto, nem toda utopia racional equivale à fé quiliástica, e nem toda utopia racional representa, neste sentido, um distanciamento e uma alienação do mundo. A natureza abstrata da utopia racional contradiz o intenso impulso emocional de uma fé quiliástica sensorialmente alerta ao presente completo e imediato. Assim, a mentalidade utópica racional, apesar de muitas vezes nascida da mentalidade quiliástica, pode inadvertidamente se tornar a sua primeira antagonista, da mesma forma que a utopia liberal-humanitária tendeu progressivamente a se voltar contra o quiliasma. b) A Segunda Forma da Mentalidade Utópica: A Ideia Liberal-Humanitária Também a utopia do humanitarismo liberal surgiu do conflito com a ordem existente. Em sua forma característica, estabelece igualmente uma concepção racional “correta” a ser utilizada contra a realidade maligna. Entretanto, não se utiliza esta contra concepção como um plano de acordo com o qual se venha, em qualquer ponto do tempo, a reconstruir o mundo. Antes, serve meramente como uma “unidade de aferição”, por meio da qual o curso dos acontecimentos concretos pode ser teoricamente avaliado. A utopia da

mentalidade liberal-humanitária é a “ideia”. Esta não consiste, entretanto, na ideia platônica estática da tradição grega, que era um arquétipo concreto, um modelo primeiro das coisas; aqui se concebe a ideia como um objetivo formal projetado no futuro infinito, cuja função consiste em proceder como um mero dispositivo regulador dos negócios mundanos. Algumas outras distinções precisam entretanto ser feitas. Onde, como por exemplo na França, a situação resultou em um ataque político, a utopia intelectualista assumiu uma forma racional com contornos decisivamente nítidos.23 Onde não foi possível seguir o

mesmo caminho, como na Alemanha, a utopia se introverteu, assumindo uma tonalidade subjetiva. Aqui não se buscou o caminho do progresso pelas revoluções ou por feitos externos, mas exclusivamente pela constituição interna do homem e suas transformações. A mentalidade quiliástica suprime todas as relações com as fases de existência histórica que se encontrem, em nosso meio, em um processo diário de vir a ser. Tende cada momento a entrar em hostilidade com o mundo, sua cultura e todas as suas obras e realizações terrenas, encarando-os como nada mais do que gratificações prematuras de um esforço mais fundamental que somente pode satisfazer-se adequadamente no Kairos.24 A atitude fundamental do liberal se caracteriza por uma aceitação positiva da cultura e pela atribuição de uma tonalidade ética aos assuntos humanos. Encontra-se mais em seu elemento quando no papel de crítico do que no de destruidor criativo. Não rompeu seu contato com o presente — o aqui e agora. À volta de cada acontecimento existe uma atmosfera de ideias inspiradoras e objetivos espirituais a serem alcançados. Para o Quiliasma o espírito consiste em uma força que se difunde e se exprime por nosso intermédio. Para o liberalismo humanitário consiste naquele “outro domínio”,25 que, ao ser absorvido em nossa consciência moral, vem a nos inspirar. As ideais e não o puro êxtase orientaram a atividade da época imediatamente anterior e posterior à Revolução Francesa, que se dedicou à reconstrução do mundo. Esta ideia humanitária moderna se irradiou, do campo político, a todas as esferas da vida cultural, culminando finalmente, na Filosofia “idealista”, numa tentativa de alcançar o mais elevado estágio atingível de autoconsciência. O mais fértil período da história da Filosofia moderna coincide com o nascimento e a expansão desta ideia moderna, e quando novamente esta particular tendência na Filosofia, adequada ao horizonte humanitário liberal, passa a ter limites mais estreitos na esfera política, começa a se desintegrar. O destino da Filosofia idealista se achava muito estreitamente vinculado à posição social de seus protagonistas para que deixássemos de assinalar, pelo menos sob este aspecto, o mais importante estágio desta relação. No que concerne à sua função social, a Filosofia moderna emergiu para derrubar a visão de mundo clerical-teológica. Foi, antes de mais nada, adotada pelos dois partidos que na época se encontravam em ascensão — a monarquia absoluta e a burguesia. Somente mais tarde se tornou exclusivamente a arma da burguesia, quando veio a representar a um só tempo a cultura e a política. A monarquia, ao se tornar reacionária, foi buscar refúgio nas ideais teocráticas. Também o proletariado veio a se emancipar do quadro intelectualista da Filosofia idealista, que havia anteriormente mantido em comum com a burguesia, agora seu adversário consciente. O pensamento liberal moderno, que mantém um duplo conflito, é de uma textura peculiar, altamente elevada, uma criação da imaginação. Esta mentalidade idealista evita

tanto a concepção visionária da realidade implicada no apelo quiliasta a Deus quanto a dominação conservadora e muitas vezes bitolada sobre as coisas e os homens, implicada na noção do mundo vinculada ao tempo e à terra. Socialmente, esta visão intelectualista encontra suas bases em um estrato médio, na burguesia e na classe intelectual. Esta visão, de acordo com a relação estrutural dos grupos que a representam, desenvolveu um curso médio entre a vitalidade, o êxtase e a índole vingativa dos estratos oprimidos, e a concretude imediatista de uma classe dominante feudal, cujas aspirações se achavam em total congruência com a realidade então existente. O liberalismo burguês se encontrava por demais preocupado com as normas para se interessar pela situação efetiva, tal como esta existia na realidade. Daí ter necessariamente erigido para si seu próprio mundo ideal. Elevado e desvinculado, e ao mesmo tempo sublime, perdeu todo o sentido das coisas materiais, bem como qualquer relação real com a natureza. Neste contexto de sentido, a natureza, em grande parte, significava razoabilidade, um estado de coisas regulamentado pelos padrões eternos de certo e errado. Mesmo a arte da geração então dominante refletia as noções de sua Filosofia — o eterno, o incondicionado e um mundo destituído de corpo e individualização.26 Aqui, como na maioria dos demais períodos da história, a Arte, a Cultura e a Filosofia nada mais são do que a expressão da utopia central da época, configurada pelas forças sociais e políticas contemporâneas. Exatamente como a ausência de profundidade e de cor caracteriza a arte correspondente a esta teoria, uma ausência semelhante se torna aparente no conteúdo desta ideia liberal-humanitária. A ausência de cor corresponde à vacuidade de conteúdo em todos os ideais dominantes, no apogeu deste modo de pensamento: a cultura no sentido mais estreito, a liberdade, a personalidade constituem apenas arcabouços para um conteúdo que, se poderia dizer, tenha sido propositadamente deixado indeterminado. Já nas Cartas sobre a Humanidade de Herder, e, portanto, nos estágios iniciais do ideal de “humanidade”, não há nenhum enunciado definido daquilo em que consiste o ideal: em um dado momento consiste na “razão e justiça”, que aparecem como o objetivo; em outro consiste no “bem-estar do homem”, que ele considera digno de nosso empenho. A ênfase demasiada na forma em Filosofia, bem como em outros campos, corresponde a esta posição média e à falta de concretude de todas as suas ideais. A ausência de profundidade nas artes plásticas e a predominância do puramente linear correspondem à maneira de experimentar o tempo histórico como um progresso e uma evolução unilineares. Esta concepção de progresso unilinear deriva, essencialmente, de duas fontes distintas. Uma das fontes surgiu no desenvolvimento capitalista ocidental. O ideal burguês de razão, erigido como o objetivo, contrastava com o estado de coisas existente, sendo necessário preencher o hiato entre a imperfeição das coisas, tais como ocorriam em um estado de natureza, e os ditames da razão, por meio do conceito de progresso. Esta reconciliação das normas com o estado de coisas existente se efetuou através da crença de que a realidade se movesse continuamente para uma proximidade cada vez maior com o racional. Embora esta ideia da aproximação cada vez maior fosse inicialmente vaga e indeterminada, a ela é dada uma forma relativamente concreta e clássica pelo girondino Condorcet. Condorcet, como Cunow,27 teve a oportunidade de analisar corretamente sob o ponto-de-vista sociológico, incorporou a decepcionante experiência dos estratos médios

após a queda dos girondinos ao conceito de história sustentado por estes estratos. Não se renunciava ao fim último de um estado de perfeição, mas se considerava a revolução apenas como um mero estágio de transição. A ideia de progresso colocava dificuldades em seu próprio caminho, ao descobrir os passos necessários e os estágios de transição implicados no processo de desenvolvimento, que, ainda se acreditava, fosse unilinear. Enquanto anteriormente tudo o que fosse provisório era afastado, do ponto-de-vista da razão, como erro ou preconceito, vamos encontrar em Condorcet pelo menos uma concessão de validade relativa aos estágios experimentais que precediam a um estado de perfeição. Os “preconceitos” prevalentes em qualquer época dada eram reconhecidos como inevitáveis. Foram assimilados à ideia de progresso como “partes do quadro histórico” do período, que, com o correr do tempo, veio-se diferenciando em estágios e períodos. Outra fonte da ideia de progresso se encontra na Alemanha. Na Erztehungies Menschengeschlechts de Lessing, a ideia emergente de evolução possuía, segundo as opiniões de von der Goltz e -Gerlich,28 um caráter pietista secularizado. Se, em acréscimo a esta derivação, considerar-se que o pietismo, transplantado da Holanda para a Alemanha, continha originalmente certos elementos batistas, a ideia religiosa de desenvolvimento pode, pesse caso, ser entendida como um refluxo do impulso quiliástico — como um processo em que a fé permanente (Harren) se torna, no ambiente alemão, uma “espera e antecipação”, vindo o sentido quiliástico de tempo se fundir imperceptivelmente a um sentido evolucionista. Partindo de Arndt, Coccejus, Spener e Zinzendorf, a linha conduz a Bengel, o contemporâneo pietista de Lessing, que já falava da direção histórica de Deus e do progresso contínuo e uniforme desde o princípio até o fim do mundo. É dele que se pretende tenha Lessing recebido a ideia da infinita perfectibilidade da espécie humana, por ele então secularizada e combinada com a crença na razão, sendo assim legada, como uma herança, ao idealismo alemão. Qualquer que seja a maneira pela qual esta concepção de progresso tenha surgido, seja como uma continuada transformação da mentalidade religiosa, seja como um contra movimento por parte do racionalismo, nela já vinha contida, em contraste com a mentalidade quiliástica, uma crescente preocupação com o “aqui e agora” concreto do processo em curso. O preenchimento das expectativas quiliásticas podia ocorrer a qualquer momento. Agora, com a ideia liberal-humanitária, o elemento utópico recebe uma localização definida no processo histórico — constitui o ponto culminante da evolução histórica. Em contraste com a concepção mais remota de utopia, que viria a irromper subitamente no mundo vinda totalmente do “exterior”, esta noção significa, a longo prazo, uma atenuação relativa da noção de uma súbita mudança histórica. Desde então, mesmo uma visão utópica encara o mundo como se movendo na direção de uma realização de seus objetivos, ou de uma utopia. De outro ângulo, o utopismo se torna crescentemente vinculado ao processo de vir a ser. A ideia, que somente poderia ser completamente realizada em algum tempo distante, tornase, no decurso do continuado desenvolvimento do presente, uma norma que, aplicada a detalhes, efetua uma gradativa melhoria. Quem quer que critique os detalhes se torna ligado por esta mesma crítica ao mundo como este se encontra. A participação nas mais imediatas tendências do desenvolvimento cultural do presente, a intensa fé no institucionalismo e no

poder de formação da política e da economia caracterizam os herdeiros de uma tradição que não se encontram somente interessados em cultivar, mas que querem colher a safra desde agora. Contudo, a política deste estrato social ascendente ainda não veio a captar efetivamente o verdadeiro problema da sociedade, e, nas épocas do antagonismo liberal contra o Estado, ainda não havia compreendido a importância histórica daquilo que os estratos dominantes dotavam de valor absoluto, ou seja, a importância do poder e da violência indisfarçada. Abstrata como possa parecer, quando vista segundo o ponto-de-vista dos conservadores, esta visão que repousa teoricamente sobre a cultura, no sentido mais estreito, e na Filosofia, e, pràticamente, na Economia e na Política, não obstante ela é, na medida em que se refere a acontecimentos históricos terrenos, bastante mais concreta do que a mentalidade quiliástica com seu afastamento da história. Esta maior proximidade ao histórico transparece no fato de que o sentido histórico do tempo, sempre um sintoma seguro da estrutura de uma mentalidade, se encontra muito mais definido do que na mentalidade quiliástica. A mentalidade quiliástica não possuía, como vimos, sentido algum do processo de vir a ser; somente era sensível para o momento súbito, o presente impregnado de sentido. O tipo de mentalidade que permanece ao nível quiliástico tampouco sabe ou reconhece — mesmo quando seus opositores já tenham absorvido este ponto-de-vista — o caminho que conduz a um objetivo ou um processo de desenvolvimento — conhece apenas o fluxo e o refluxo do tempo. Por exemplo, o anarquismo revolucionário, em que a mentalidade quiliástica se acha preservada em sua mais pura e autêntica forma, encara os tempos modernos, desde o declínio da Idade Média, como uma única revolução. “Faz parte do fato e do conceito de revolução que, à semelhança de uma febre de convalescença, ela venha entre dois acessos da enfermidade. Não existiria de todo se não fosse precedida pela fadiga nem seguida pela exaustão”.29 Assim, muito embora esta atitude apreenda muito de seus opositores, algumas vezes assumindo um aspecto conservador e outras um aspecto socialista, ela surge, mesmo em nossos dias, nos instantes decisivos. A experiência quiliástica absoluta do “agora”, que exclui qualquer possibilidade de se experimentar o desenvolvimento, serve, entretanto, à única função de nos prover de uma diferenciação qualitativa do tempo. Existem, segundo esta visão, tempos impregnados de significado e tempos destituídos de significado. Reside neste fato uma importante abordagem à diferenciação histórico-filosófica dos acontecimentos históricos. Sua significação somente poderá ser estimada após se haver tornado clara a impossibilidade de uma consideração empírica da história sem uma diferenciação histórico-filosófica do tempo (com frequência, latente e portanto imperceptível em seus efeitos). E, muito embora possa parecer improvável à primeira vista, a primeira tentativa, acima mencionada, de uma disposição qualitativa das épocas históricas surge realmente do distanciamento quiliástico e da experiência extática. A mentalidade normativo-liberal igualmente contém esta diferenciação qualitativa dos acontecimentos históricos, manifestando, além do mais, um desprezo como a uma realidade maligna a tudo o que se tenha tornado uma parte do passado ou que seja parte do presente. Adia para o futuro remoto a realização efetiva destas normas, e, ao mesmo tempo, ao contrário do quiliasta, que antecipa sua realização em algum ponto extático além da história, vê esta realização como surgindo do processo de vir a ser do aqui e agora, a partir dos acontecimentos de nossa vida cotidiana. A partir disto se desenvolveu,

como vimos, a concepção tipicamente linear de evolução e a conexão relativamente direta entre um objeto anteriormente transcendental e significativo e a existência presente efetiva. A ideia liberal somente pode ser adequadamente entendida como uma contrapartida da atitude extática do quiliasta frequentemente oculta por trás de uma fachada racionalista e que oferece histórica e socialmente uma ameaça contínua e poderosa contra o liberalismo. Trata-se de um grito de guerra contra o estrato da sociedade cujo poder advém de sua posição herdada na ordem existente, estrato capaz de dominar o aqui e agora, a princípio inconscientemente e mais tarde através do cálculo racional. Vemos aqui a diversidade com que as utopias podem modelar toda a estrutura da própria consciência, e podem refletir a divergência entre dois mundos históricos e os dois estratos sociais correspondentes, fundamentalmente diferentes, e que corporificam dois horizontes. O Quiliasma encontrou seu período de existência no mundo da Idade Média em decadência, um período de tremenda desintegração. Tudo conflitava com tudo. Era o mundo de nobres, patrícios, aldeões, jornaleiros, vagabundos e mercenários, todos se guerreando mutuamente. Tratava-se de um mundo em sublevação e em inquietação, em que os mais profundos impulsos do espírito humano buscavam expressão externa. Neste conflito, as ideologias não se cristalizam de modo suficientemente claro, nem sempre sendo fácil determinar em definitivo a posição social a que cada uma delas pertencia. Como Engels observou claramente, foi a Revolta Camponesa que, pela primeira vez, reduziu a termos mais simples e menos ambíguos o turbilhão espiritual e intelectual da Reforma.30 Torna-se agora mais claro que a experiência quiliástica é característica dos estratos mais baixos da sociedade. Subjacente a ela encontra-se uma estrutura mental peculiar aos camponeses, aos jornaleiros, a um Lumpenproletariat incipiente, a pregadores fanaticamente emocionais, etc.31 Longo tempo se passou até a aparição da forma seguinte de utopia. Entrementes, o mundo social havia sofrido uma completa transformação. “O cavaleiro se tornou um funcionário, o grande lavrador um cidadão obediente.” (Freyer.) Tampouco a nova forma de utopia era a expressão do estrato mais baixo na ordem social; antes, era o estrato médio que se estava disciplinando através de auto elaboração consciente e que considerava a ética e a cultura intelectual sua principal autojustificação (contra a nobreza), e que, inconscientemente, deslocou as bases da experiência do plano extático para um plano educacional. Abstrata como possa parecer ao ponto-de-vista do quiliasta, ou à abordagem concreta dos conservadores, a ideia liberal, não obstante, deu vida a um dos mais importantes períodos da história moderna. Seu caráter abstrato, apenas gradualmente revelado pela crítica da esquerda e da direita, jamais foi sentido pelos expositores originais da ideia. Talvez residisse exatamente nesta indeterminação, que deixava em aberto uma gama de possibilidades e que estimulava a imaginação, aquela qualidade fresca e juvenil, aquela atmosfera estimulante e sugestiva que mesmo o Hegel envelhecido, apesar de sua reorientação para o conservadorismo, sentiu quando, nos últimos dias de vida, relembrava o penetrante impacto das grandes ideais do período revolucionário. Em contraste com as sombrias profundezas da agitação quiliástica, os elementos centrais da mentalidade intelectualista se achavam abertos à luz clara do dia. O ânimo dominante do Iluminismo, a

esperança de que enfim as luzes raiariam sobre o mundo sobreviveu o bastante para dar a estas ideais, mesmo neste último estágio, seu poder de condução. Entretanto, em acréscimo a esta promessa que estimulava a imaginação e mirava um horizonte distante, as mais profundas forças ofensivas das ideais do Iluminismo residem no fato de que apelavam à vontade livre e mantinham vivo o sentimento de ser indeterminado e incondicionado. O caráter distintivo da mentalidade conservadora consistia, entretanto, no fato de que cegava o fio desta experiência. E, se alguém deseja formular em uma só sentença a realização máxima do conservadorismo, poder-se-ia dizer que em consciente oposição à visão liberal, deu ênfase positiva à noção de determinação de nossas visões e de nosso comportamento. c) A Terceira Forma da Mentalidade Utópica: A Ideia Conservadora A mentalidade conservadora, como tal, não possui predisposição alguma a teorizar. O que se acha de acordo com o fato de que os sêres humanos não teorizam sôbre as condições concretas em que vivem enquanto a estas se encontram bem ajustados. Tendem, em tais condições de existência, a encarar o ambiente como fazendo-parte de uma ordenação natural do mundo, que, em consequência, não apresenta problema algum. A mentalidade conservadora, como tal, não detém nenhuma utopia. Em termos ideais, acha-se por sua própria estrutura completamente em harmonia com a realidade sobre a qual, por hora, mantém domínio. Faltam-lhe todos os reflexos e aclaramentos do processo histórico que advenham de um impulso progressista. O tipo conservador de conhecimento consiste originalmente no gênero de conhecimento que fornece um controle prático. Compõe-se das orientações habituais e, frequentemente, também reflexivas, face aos fatores imanentes à situação. Existem elementos ideais em sobrevivência no presente como vestígios da tensão em períodos anteriores, quando o mundo ainda não se encontrava estabilizado e que, agora, somente atuam ideologicamente como fés, religiões e mitos, que se viram banidos para um mundo além da história. Neste estágio, o pensamento, como assinalamos, se inclina a aceitar o ambiente total na concretude acidental com que se dá, como se fosse a ordem adequada do mundo, a ser aceita de antemão e sem apresentar nenhum problema. Somente o contraataque de classes oponentes e a sua tendência a romper com os limites da ordem existente irá motivar a mentalidade conservadora para questionar as bases de seu domínio, ocasionando necessariamente, entre os conservadores, as reflexões histórico-filosóficas concernentes a eles mesmos. Surge, dessa forma, uma contra utopia que serve como um meio de auto orientação e de defesa. Se as classes socialmente ascendentes não tivessem, na realidade, levantado estes problemas e se não lhes tivessem dado expressão em suas respectivas contra ideologias, a tendência do conservadorismo a se tornar consciente de si teria permanecido latente, e o horizonte conservador teria permanecido em um nível de comportamento inconsciente. Mas o ataque ideológico de um grupo socialmente ascendente, representando uma nova época, ocasiona de fato uma certa consciência das atitudes e ideais que unicamente se afirmavam na vida e na ação. Evoluindo aguilhoada por teorias oponentes, a mentalidade conservadora somente descobre sua ideia ex post facto.32 Não é por acaso que, enquanto todos os grupos progressistas encaram a ideia anterior ao ato, para o conservador Hegel a ideia de uma realidade histórica somente se torna visível posteriormente, quando o mundo já tenha assumido uma forma interna fixa: “Apenas mais uma palavra concernente ao desejo de

ensinar ao mundo o que deveria ser. Para tanto, a Filosofia, pelo menos, chega sempre demasiado tarde. A Filosofia, como o pensamento do mundo, não aparece até que a realidade tenha completado seu processo de formação e se tenha dado por acabada. A história, portanto, corrobora os ensinamentos da concepção de que somente na maturidade da realidade vem a aparecer o ideal como uma contrapartida do real, apreende o mundo real em sua substância e o conforma como um reino intelectual. Quando a Filosofia pinta seu cinza sobre cinza, uma forma de vida envelheceu, e por meio do cinza ela não pode ser rejuvenescida, mas somente conhecida. O mocho de Minerva somente alça seu voo quando chega o crepúsculo”.33 Na mentalidade conservadora, o “mocho de Minerva” realmente só inicia seu voo com a escuridão que se aproxima. Em sua forma original, a mentalidade conservadora não se achava, como mencionamos, preocupada com ideais. Foi o seu opositor liberal quem, por assim dizer, veio a forçar sua entrada no campo de conflito. A particular característica do desenvolvimento intelectual parece residir exatamente no fato de que o mais recente antagonista é que dita o ritmo e a forma da luta. Seguramente pouca verdade existe na chamada ideia progressista de que somente o novo detém os horizontes da existência futura, enquanto tudo o mais gradativamente evanesce. Pelo contrário, deve o mais velho, guiado pelo mais novo, transformar-se continuamente, acomodando-se ao nível do mais recente opositor. Assim, em nossos dias, os que tenham utilizado modos de pensamento remotos, ao depararem com argumentos sociológicos, devem igualmente recorrer a estes mesmos métodos. Da mesma forma, no princípio do século XIX, o modo de pensamento intelectualista liberal levou os conservadores a se interpretarem por meios intelectualistas. É interessante observar que as classes sociais originalmente conservadoras, que haviam anteriormente adquirido estabilidade pelo apego à terra (Möser, v. d. Marwitz) não conseguiram uma interpretação teórica de sua própria posição, e que a descoberta da ideia conservadora se tornou o trabalho de um corpo de ideólogos que se vincularam aos conservadores. A realização nesta direção, dos românticos conservadores, e especialmente de Hegel, consistia em sua análise intelectual do significado da existência conservadora. Tendo aí um ponto de partida, forneceram uma interpretação intelectual de uma atitude face ao mundo que já se encontrava implícita na conduta efetiva, mas que não se havia ainda explicitado. Daí, no caso dos conservadores, o que corresponde à ideia é, em essência, algo bastante diferente da ideia liberal. Constituiu a grande realização de Hegel estabelecer, em oposição à ideia liberal, uma contrapartida conservadora, não no sentido de criar, por uma combinação artificial, uma atitude e um modo de comportamento, mas, antes, elevando um modo de experiência já existente a um nível intelectual e enfatizando as características distintivas que o destacassem da atitude liberal face ao mundo. Os conservadores encaravam a ideia liberal que caracterizou o período do Iluminismo como algo fluido e carente de concretude. E foi deste ângulo que a atacaram, depreciando-a. Hegel a considerava nada mais do que uma mera “opinião” — uma simples imagem — uma possibilidade apenas por trás da qual as pessoas se refugiam, escapam, fugindo às demandas do momento. Em oposição a esta mera “opinião”, esta imagem puramente subjetiva, os conservadores conceberam a ideia como enraizada e se expressando concretamente na

realidade viva do aqui e agora. Significado e realidade, norma e existência, não estão aqui separados, porque o utópico, a “ideia concretizada”, acha-se, em um sentido vital, presente neste mundo. O que no liberalismo não passa de uma norma formal adquire, no conservadorismo, um conteúdo concreto nas leis prevalentes do Estado. Nas objetivações da cultura, na arte e na ciência, a espiritualidade se desdobra, e a ideia se expressa em uma plenitude tangível. Já tivemos ocasião de observar que, na utopia liberal, na ideia humanitária, em oposição ao êxtase quiliástico, existe uma relativa aproximação ao “aqui e agora”. Encontramos no conservadorismo completado o processo de aproximação ao “aqui e agora”. A utopia se encontra neste caso, desde os momentos iniciais, implantada na realidade existente. A isto corresponde, evidentemente, o fato de que a realidade, o “aqui e agora”, não venha mais a ser vivenciada como uma realidade “maligna”, mas como a corporificação dos mais elevados valores e significados. Embora se verifique que a utopia, ou a ideia, tenha-se tornado completamente congruente com a realidade concretamente existente, isto é, tenha sido assimilada a esta, este modo de experiência — pelo menos no mais elevado ponto do período criador desta corrente — não conduz, todavia, a uma eliminação das tensões e a uma aceitação inerte e passiva da situação como esta se apresenta. Um certo grau de tensão entre a ideia e a existência surge do fato de que nem todo elemento desta existência encarna significação e de ser sempre necessário distinguir entre o que é essencial e o que é não-essencial, e, ainda, de que o presente nos defronta continuamente com tarefas e problemas novos que não tenham ainda sido dominados. No intuito de atingir alguma norma de orientação, não deveríamos confiar em impulsos subjetivos, mas recorrer às forças e ideais que em nós, ou em nosso passado, tenham adquirido objetivação; ao espírito que, até agora, tenha atuado dentro de nós para a criação daquelas, que são nossas obras. Mas esta ideia, este espírito, não foi racionalmente conclamado nem arbitràriamente escolhido o melhor dentre um número de possibilidades. Ou se acha em nós, como uma “força atuando silenciosamente” (Savigny), percebida subjetivamente, ou se trata de algo como uma enteléquia que se desdobra nas criações coletivas da comunidade, do povo, da nação ou do Estado, como uma forma interna a ser, em sua maior parte, morfologicamente percebida. A perspectiva morfológica, dirigida para a linguagem, para a arte e para o Estado se desenvolve a partir deste ponto. Pràticamen- te no mesmo momento em que a ideia liberal colocou a ordem existente em movimento, estimulando a especulação construtiva, Goethe se voltou desta abordagem ativística para a contemplação — para a morfologia. Dispôs-se a usar a apercepção intuitiva como um instrumento de ciência. A abordagem da escola histórica é em alguns aspectos análoga à de Goethe. Seguem a emanação de “ideais” através da observação da linguagem, dos costumes, da lei, etc., fazendo uso não de generalizações abstratas, mas, antes, de intuição simpática e descrição morfológica. Também neste caso, a ideia que assume uma posição central na experiência política (isto é, a forma de utopia correspondente a esta posição social) auxiliou na conformação do segmento da vida intelectual que se achava vinculado à política. Em todas as variações destas buscas pela “forma interna”, persistia a mesma atitude conservadora de determinação e, quando se projetar exteriormente, irá igualmente encontrar expressão na ênfase sobre a

determinação histórica. De acordo com esta noção, e segundo o ponto-de-vista desta atitude face ao mundo, o homem não é de forma alguma absolutamente livre. Nem todas as coisas em geral, e cada coisa em particular, são possíveis a todo momento e em todas as comunidades históricas. A forma interna de individualidade histórica existente em qualquer época dada, seja a de uma personalidade isolada, seja a de um espírito de povo, e as condições externas que, juntamente com o passado, se encontram por trás dela, todas determinam a conformação das coisas por existir. É por esta razão que a configuração histórica existente em uma dada época não pode ser construída artificialmente, mas cresce como uma planta, a partir da semente.34 Mesmo a forma conservadora de utopia, a noção de uma ideia implantada e expressa na realidade, somente pode ser entendida, em última análise, à luz de seus conflitos com as demais formas coexistentes de utopia. Seu antagonista imediato é a ideia liberal, que foi traduzida em termos racionalistas. Enquanto nesta última acentua-se a experiência do normativo, o “deveria”, no conservadorismo a ênfase se desloca para a realidade existente, o “é”. O fato da mera existência de uma coisa dota-a de um valor mais elevado, seja isto devido, como no caso de Hegel, ao teor de racionalidade mais elevado por ela encarnado, ou, como no caso de Stahl, devido aos efeitos fascinantes e mistificadores exatamente de sua irracionalidade. “Existe algo de maravilhoso em experimentar aquilo de que se pode dizer que é — ‘Este é o teu pai, este é o teu amigo, e, através deles, atingistes esta posição’. ‘Por que exatamente a esta?’ ‘Por que és exatamente a pessoa que és? Esta incompreensibilidade consiste no fato de que a existência jamais pode ser plenamente absorvida no pensamento, e de que a existência não é uma necessidade lógica, mas tem suas bases em um poder autônomo mais elevado”.35 Aqui, o fecundo antagonismo entre, de um lado, a ideia encarnada e expressa na realidade e, do outro, a que meramente existe (derivada dos dias sossegados do conservadorismo) ameaça transformar-se em uma congruência total, tendendo o quietismo conservador a justificar, por meios irracionais, simplesmente tudo o que exista. O sentido de tempo deste modo de experiência e de pensamento se opõe completamente ao do liberalismo. Enquanto, para o liberalismo, o futuro constituía tudo e o passado nada, o modo conservador de experimentar o tempo encontrou a melhor corroboração de seu sentido de determinação ao descobrir a importância do passado, na descoberta do tempo como um criador de valor. A duração absolutamente não existia para a mentalidade quiliástica,36 somente existindo para o liberalismo na medida em que, desde então, possibilita o progresso. Contudo, para o conservadorismo, tudo o que existe possui um valor positivo e nominal, simplesmente porque veio lenta e gradativamente a existir. Em consequência, não só se volta a atenção para o passado, fazendo-se um esforço para salvá-lo do esquecimento, como também a presença e a imediação de todo o passado se torna uma experiência concreta. Nesta visão, não se pode mais pensar a história como uma mera extensão unilinear de tempo, nem tampouco ela consiste em simplesmente unir a linha que, do presente, conduz ao futuro, àquela que, do passado, conduziu ao presente. A concepção de tempo ora em questão possui uma imaginária terceira dimensão que deriva do fato de o passado ser experimentado como virtualmente presente. “A vida do espírito contemporâneo constitui um ciclo de estágios, que, por um lado, ainda contém uma coexistência sincrônica, e somente por outro prisma aparece como uma sequência no tempo

já passado. As experiências que o espírito parece ter atrás de si existem igualmente nas profundidades de seu ser presente.” (Hegel.)37 A experiência quiliástica localiza-se fora do domínio do tempo, mas, nas ocasiões em que irrompeu no domínio temporal, santificava o momento incidental. A experiência liberal estabeleceu uma conexão entre a existência e a utopia, ao reportar ao futuro a ideia, enquanto objetivo pleno de significado e permitindo, através do progresso, que as promessas da utopia venham, pelo menos em alguns aspectos, gradativamente a ser realizadas em nosso próprio meio. A experiência conservadora se funde ao espírito que, em um dado momento, surgiu sobre nós vindo de fora, e ao qual damos expressão, com o que já existe, permitindo que se tornasse objetivo, se expandisse em todas as dimensões, dotando, assim, cada acontecimento de um valor intrínseco e imanente. O modo conservador de experiência, afora seu conflito com a ideia liberal, teve que manter seu combate particular com a concepção quiliástica, a que sempre encarara como um inimigo interno. A mesma experiência quiliástica, que começou na época dos anabatistas a desempenhar um papel ativo no mundo, tinha outro destino a esperá-la, algo diverso dos até agora mencionados. Vimos já três tendências alternativas na experiência quiliástica. Ou bem permanece inalterada, persistindo em sua forma emergente original, frequentemente vinculada a ideologias as mais fundamentalmente divergentes — como, por exemplo, no anarquismo extremista — ou reflui, desaparecendo, ou, ainda, se “sublima” em uma ideia. Segue outro caminho, distanciando-se dos acima mencionados, quando mantém sua tendência supratemporal e extática introvertendo-se, e, neste caso, não mais ousando aventurar-se no mundo, perdendo seu contato com os eventos mundanos. Impelido por circunstâncias externas, o modo quiliástico-extático de experiência seguiu na Alemanha, em uma extensão bastante ampla, este caminho de introversão. As subcorrentes pietistas, que podem ser acompanhadas durante longos períodos nos países germânicos, representam esta introversão do que fora o êxtase quiliástico. Mesmo quando introvertida, a experiência extática representa um perigo para a ordem existente, pois se acha constantemente tentada a se expressar exteriormente, e somente a prolongada disciplina e a repressão transformam-na em quietismo. A ortodoxia, por isso, manteve um combate constante contra o pietismo, somente entrando em uma união aberta com êste quando a ofensiva revolucionária necessitou da conclamação de todas as fôrças disponíveis para a espiritualização dos podêres dominantes. Sob pressões externas e devido às situações estruturais sociologicamente inteligíveis, a experiência quiliástica, através justamente desta introversão, naturalmente sofre uma mudança de caráter. Neste, como em outros casos, a interpenetração estrutural dos fatores socialmente “internos” e dos fatores “externos” pode ser acompanhada em detalhe. Enquanto originalmente a experiência quiliástica manifestava um impulso corpóreo e robusto, ao se ver reprimida tornou-se, pelo contrário, docemente inócua e fluida, liquefez-se em mero entusiasmo, somente vindo o elemento extático a reviver novamente, embora de uma forma suavemente mitigada, na “experiência do despertar” pietista. O que, entretanto, é mais importante para as conexões que desejamos assinalar é que, através da perda de contato com o mundo no processo efetivo de vir a ser (êste contato, observado segundo o ponto-de-vista do conjunto, ocorre na esfera política e não na esfera privada), esta atitude desenvolve uma incerteza interna. Surge no lugar do tom pontificante

da profecia quiliástica a vacilação insegura, a indecisão pietista frente à ação. Somente se poderá entender adequadamente a “escola histórica” na Alemanha, com seu quietismo e sua ausência de padrões, quando se tiver levado em conta sua continuidade com o pietismo. Tudo o que uma pessoa ativa expressa espontaneamente, sendo desde logo aceito, se acha aqui destacado de seu contexto erigido em problema. A “decisão” se torna uma fase independente de ação, sobrecarregada de problemas, e esta separação conceptual entre o ato e a decisão unicamente aumenta a incerteza, ao invés de eliminá-la. O esclarecimento interno propiciado pelo pietismo não oferece solução alguma para a maioria dos problemas da vida cotidiana, e se, de súbito, se tornar necessário atuar no processo histórico, procurase interpretar os acontecimentos da história como se fossem indicações da vontade de Deus. Neste momento, instala-se o movimento das interpretações religiosas da história,38 através do qual se esperava eliminar a indecisão interna na atividade política. Mas, ao invés de encontrar uma solução para os problemas da conduta correta e ao invés de a história fornecer orientação divina, esta incerteza interna foi projetada no mundo. É importante para o modo de experiência conservadora, ativo, subjugar igualmente esta forma de utopia e harmonizar a seu próprio espírito as energias vitais latentes aí presentes. O que se precisa aqui controlar é o conceito de “liberdade interna”, que ameaça constantemente transformar-se em anarquismo (já que uma vez se transformou em uma revolta contra a Igreja). Também aqui a ideia conservadora, implantada na realidade, desenvolve uma influência repressiva sobre a utopia esposada pelos inimigos internos. De acordo com a teoria dominante do conservadorismo, a “liberdade interna”, em seu objetivo temporal indefinido, deve subordinar-se ao código moral, código este já definido. Ao invés de “liberdade interna”, temos “liberdade objetiva”, a que a primeira deve ajustar-se. Isto poderia ser interpretado em termos metafísicos como uma harmonia preestabilizada entre a liberdade internamente subjetivizada e a liberdade externamente objetivizada. Que esta corrente do movimento, caracterizada por atitudes pietistas introspectivas, se conforme à interpretação acima, somente se explica por sua fatal impotência frente aos problemas do mundo. Desta forma, passa as rédeas ao domínio do grupo conservador realista quer sujeitando-se inteiramente, quer retirando-se para algum canto obscuro. Mesmo hoje em dia encontra-se grupos arquiconservadores que nada querem ouvir sobre política de força da época de Bismarck, e que, na orientação de introversão da corrente que se erigiu em oposição a Bismarck, veem os elementos verdadeiramente valiosos da tradição.39 d) A Quarta Forma da Mentalidade Utópica: A Utopia Socialista-Comunista Mesmo o modo de pensamento e de experiência socialista-comunista que, no concernente a suas origens, pode ser tratado como uma unidade, será melhor entendido em sua estrutura utópica se for observado por três ângulos. O socialismo precisou, por um lado, radicalizar a utopia liberal, a ideia, e, por outro, precisou tornar impotente ou, em um dado caso, superar completamente a oposição interna do anarquismo em sua forma mais extrema. Seu antagonista conservador é considerado apenas secundariamente, assim como na vida política geralmente se procede mais firmemente contra o opositor proximamente relacionado do que contra o distante, parque é maior a tendência a resvalar para o seu ponto-de-vista, sendo consequentemente necessário se exercer uma vigilância especial contra esta tentação interna. O comunismo, por exemplo, luta com maior energia contra o revisionismo do que o faz contra o

conservadorismo. Isto nos auxilia a compreender por que a teoria socialista-comunista ostenta uma disposição a aprender muito com o conservadorismo. O elemento utópico do socialismo, devido a esta situação multifacetada e à sua tardia origem, apresenta uma face de Jano. Representa não apenas um compromisso, mas também uma nova criação, baseada em uma síntese interna das várias formas de utopia até então surgidas e que se vêm combatendo mutuamente na sociedade. O socialismo concorda com a utopia liberal no sentido de que ambos acreditam que o domínio da liberdade e da igualdade somente virá a existir no futuro remoto.40 É, contudo, característico que o socialismo localize este futuro em um ponto muito mais especificamente determinado, que é o período da derrocada da cultura capitalista. Esta solidariedade do socialismo com a ideia liberal, em sua orientação para um objetivo localizado no futuro, encontra explicação em sua comum oposição à aceitação e afirmação conservadoristas diretas e imediatas da ordem existente. A ampla indefinição e espiritualidade do objetivo distante corresponde, igualmente, à rejeição liberal e socialista da excitação quiliástica e ao seu comum reconhecimento de que as energias extáticas latentes devam ser sublimadas através de ideais culturais. Contudo, na medida em que a questão seja a da penetração da ideia no processo de evolução e no desenvolvimento gradativo dela, a mentalidade socialista não a experimenta nesta forma espiritualmente sublimada. Defrontamo-nos aqui com a ideia sob a forma de uma nova substância, quase à semelhança de um organismo vivo que tenha condições definidas de existência, cujo conhecimento pode tornar-se o objeto de investigação científica. Neste contexto, as ideais não são sonhos nem desejos, imperativos imaginários baixados de alguma esfera absoluta; antes, possuem uma vida concreta própria e uma função definida no processo total. Arrefecem quando se tornam antiquadas e podem ser realizadas quando o processo social atinge uma dada situação estrutural. Destituídas desta relevância para a realidade, tornam-se meras “ideologias” obscurizantes. Ao se analisar a posição liberal, descobre-se, de uma perspectiva bastante diversa da empregada pelo conservador, o caráter abstrato e puramente formal de sua ideia. A “mera opinião”, a mera imagem da ideia que somente se realiza na atitude subjetiva, é também aqui reconhecida como inadequada, estando sujeita à crítica sob outro ângulo, que não o da oposição conservadora. Não basta ter boas intenções em abstrato e postular no futuro remoto um domínio realizado de liberdade, cujos elementos não se acham sujeitos a controle. Seria antes necessário tomar consciência das condições reais (neste caso econômicas e sociais) sob as quais esta realização de desejos possa tornar-se de alguma forma operante. O caminho que, do presente, conduz a este objetivo distante deve ser igualmente investigado, de modo a serem identificadas as forças do processo contemporâneo, cujo caráter dinâmico e imanente, sob nossa direção, conduza passo a passo à realização da ideia. Enquanto o conservadorismo depreciava a ideia liberal como uma mera opinião, o socialismo, em sua análise da ideologia, elaborou um método crítico coerente, que, na verdade, constituía uma tentativa de anular a utopia dos antagonistas, ao demonstrar que tinham suas raízes na situação existente. Desde então, vem ocorrendo um conflito desesperado visando à desintegração fundamental das crenças do adversário. Cada uma das formas de mentalidade utópica até o momento tratadas por nós, voltando-se contra as demais, exige que correspondam à

realidade, e, em cada caso, apresenta ao adversário, como “realidade”, uma forma de existência diversamente constituída. A estrutura econômica e social da sociedade torna-se para o socialista a realidade absoluta. Transforma-se na portadora da totalidade cultural que os conservadores já haviam percebido como uma unidade. A concepção conservadora de espírito de povo (Volksgeist) foi a primeira tentativa relevante de compreender os fatos aparentemente isolados da vida intelectual e psíquica, como emanações de um único centro de energia criadora. Para os liberais, tanto quanto para os conservadores, esta força propulsora constituía algo de espiritual. Na mentalidade socialista, pelo contrário, emerge, da secular afinidade dos estratos oprimidos por uma orientação materialista, uma glorificação dos aspectos materiais da existência, anteriormente experimentados apenas como fatores negativos e obstrutivos. Mesmo na valoração ontológica dos fatores que constituem o mundo — sempre o mais característico de qualquer estrutura de consciência — uma hierarquia de valores, inversa à empregada por outros modos de pensamento, vai aos poucos atingindo predomínio. As condições “materiais”, anteriormente encaradas tão-só como obstáculos malignos no caminho da ideia, são aqui hipostasiadas em força motora dos assuntos do mundo, sob a forma de um determinismo econômico reinterpretado em termos materialistas. A utopia que alcança a mais próxima relação com a situação histórica e social deste mundo evidencia esta aproximação não apenas ao localizar seu objetivo cada vez mais no interior do quadro da história, mas ao elevar e espiritualizar a estrutura econômica e social imediatamente acessível. O que acontece aqui é, essencialmente, uma particular assimilação do sentido conservador de determinismo à utopia progressista que busca refazer o mundo. O conservador, devido a sua consciência de ser determinado, glorificava o passado, a despeito ou mesmo devido à sua função determinante e, ao mesmo tempo, dava, de uma vez por todas, uma indicação adequada da importância do passado para o desenvolvimento histórico. Entretanto, para os socialistas, é a estrutura social que se torna a força mais influente no momento histórico, encarando-se seus podêres conformadores (em uma forma glorificada) como os fatores determinantes de todo o desenvolvimento. O fenômeno novo que aqui encontramos, o sentimento de determinismo, é perfeitamente compatível, entretanto, com uma utopia localizada no futuro. Enquanto a mentalidade conservadora estabelecia naturalmente a conexão do sentimento de determinação com a afirmação do presente, o socialismo combina uma fôrça social progressista com as restrições que a ação revolucionária automàticamente se impõe ao perceber as forças determinantes da história. Estes dois fatores, a princípio imediatamente interligados, divergem nó decorrer do tempo para formar duas facções oponentes, mas em interação mútua no movimento socialista-comunista. Os grupos que chegaram recentemente ao poder e que, ao participar e ao partilhar da responsabilidade pela ordem existente, se comprometam com as coisas como são, exercem uma influência de retardamento, ao esposarem a mudança através de uma evolução ordenada. Por outro lado, os estratos que ainda não possuíam nenhum interesse investido nas coisas tais quais são tornaram-se os portadores daquela teoria comunista (e também da sindicalista) que enfatiza a suprema importância da revolução.

No entanto, antes da cisão, que corresponde a um posterior estágio no processo, esta mentalidade progressista tinha antes de mais nada de se estabelecer face à oposição dos demais partidos. Dois obstáculos tinham que ser ultrapassados: o sentido de indeterminação histórica contido no quiliasma, que assumiu uma forma moderna no anarquismo radical, e esta mesma cegueira quanto às forças determinantes da história que acompanha o sentido de indeterminação da “ideia” liberal. Na história da moderna experiência quiliástica foi decisivo41 o conflito entre Marx e Bakunin. Foi no desenrolar deste conflito que veio a ter fim o utopismo quiliástico. Quanto mais um grupo que se prepara para assumir o poder busca tornar-se um partido, tanto menos irá tolerar um movimento que, de uma forma sectária e irruptiva, visa, em algum momento indeterminado, a tomar de assalto as fortalezas da história. Também aqui, a desaparição de uma atitude fundamental — pelo menos sob a forma de que falávamos — se acha intimamente ligada à desintegração da realidade econômica e social que constitui seu embasamento (como Brupbacher teve ocasião de demonstrar).42 A vanguarda de Bakunin, os anarquistas da Federação de Jura, desintegrou-se quando o sistema doméstico de manufatura relojoeira, em que se achavam aplicados e que lhes possibilitava uma atitude sectária, foi superada pelo sistema industrial de produção. No lugar de uma experiência oscilante e não-organizada da utopia extática, surge o bem organizado movimento revolucionário marxista. Podemos novamente notar aqui que a maneira de o grupo conceber o tempo manifesta mais claramente o tipo de utopia em consonância com o qual a consciência do grupo se organiza. Aqui se experimenta o tempo como uma série de pontos estratégicos. Esta desintegração da utopia extática anarquista foi brusca e brutal, tendo sido contudo ditada, como fatal, uma necessidade pelo próprio processo histórico. Uma visão de apaixonada profundidade desapareceu do primeiro plano da cena política e o sentido de determinismo veio a se impor sobre uma esfera mais ampla. O pensamento liberal se relaciona ao pensamento anarquista porque também possuía um sentido de indeterminismo, muito embora (como já foi visto) chegasse, através da ideia de progresso, a uma relativa proximidade com o processo histórico concreto. O sentido liberal de indeterminismo se baseava na fé em um relacionamento imediato com uma esfera absoluta de imperativos éticos — à própria ideia. Esta esfera de imperativos éticos não derivava sua validade da história; não obstante, para o liberal, a ideia podia, nela, tornar-se uma força impulsora. Não é que o processo histórico produza as ideais, mas somente a descoberta das ideais, sua expansão e o “esclarecimento” a seu respeito é que as torna forças históricas. Uma verdadeira revolução copernicana ocorreu quando o homem começou a considerar não apenas a si próprio, não só o homem, mas também a existência, a validade e a influência destas ideais como fatores condicionados, encarando o desenvolvimento das ideais como vinculado à existência e integrante do processo históricosocial. O que antes de mais nada importava ao socialismo não era combater esta mentalidade absolutista entre seus opositores, mas, antes, estabelecer, em seu próprio campo, a nova atitude em oposição ao idealismo ainda dominante. Bem cedo, portanto, ocorreu este afastamento das utopias da “alta burguesia”, cuja melhor análise pode ainda ser encontrada em Engels.

Saint-Simon, Fourier e Owen ainda sonhavam suas utopias no estilo intelectualista antigo, embora já trouxessem a marca de ideais socialistas. A situação deles à margem da sociedade se exprimia em descobertas que alargavam as perspectivas sociais e econômicas; entretanto, retinham em seu método o aspecto de indeterminação característico do Iluminismo. “Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absolutas, precisando apenas ser descoberto para conquistar o mundo através de seu próprio poder”.43 Também aqui, tinha que se vencer uma ideia e, em consequência, o sentido de determinação histórica deslocou a outra forma competidora de utopia. A mentalidade socialista, em um sentido bem mais fundamental do que a ideia liberal, representa uma redefinição da utopia em termos de realidade. Será somente ao término do processo que a ideia se estabelece em sua indefinição e indeterminação proféticas, mas o caminho que, das coisas tais são, conduz à realização da ideia já se encontra claramente demarcado histórica e socialmente. Aqui, novamente, existe uma diferença na maneira de se experimentar o tempo histórico: enquanto o liberal concebia o tempo futuro como sendo uma linha reta conduzindo diretamente a um objetivo, surge agora uma distinção entre o próximo e o remoto, uma distinção cujos primórdios já se encontravam em Condorcet e que é de importância tanto para o pensamento quanto para a ação. O conservadorismo já diferenciava o passado desta maneira, mas desde que sua utopia ia tendendo cada vez mais para uma completa harmonia com o estágio de realidade já atingido na época, o futuro permanecia, para o conservador, completamente indiferenciado. Somente através da união de um sentido de determinação com uma concepção viva do futuro, seria possível criar um sentido histórico de tempo com mais de uma dimensão. Mas esta perspectiva mais complexa de tempo histórico, que o conservadorismo já havia criado para o passado, possui, aqui, uma estrutura completamente diferente. Não é somente através da virtual presença de cada acontecimento passado que cada experiência presente encarna uma terceira dimensão apontando de volta ao passado, mas igualmente porque o futuro está sendo nela preparado. Não é apenas o passado, mas igualmente o futuro, que tem uma existência virtual no presente. Uma ponderação de cada um dos fatores existentes no presente e uma intuição das tendências latentes nestas forças somente podem ser obtidas se se compreender o presente à luz de sua concreta realização no futuro.44 Enquanto a concepção liberal do futuro era inteiramente formal, estamos aqui lidando com um processo de concretização gradativa. Embora esta conclusão do presente pelo futuro seja, de início, imposta pela vontade e por imagens desiderativas, este esforço orientado para um objetivo atua como um fator heuristicamente seletivo, tanto na pesquisa quanto na ação. De acordo com este ponto-de-vista, o futuro está continuamente se testando no presente. Ao mesmo tempo, a ideia, que a princípio era apenas uma vaga profecia, está sendo constantemente corrigida e tornada mais concreta à medida que o presente se adianta para o futuro. A “ideia” socialista, em sua interação com os acontecimentos “reais”, opera não como um princípio transcendente e puramente formal, que do exterior regula o acontecimento, mas, antes, como uma “tendência” no interior da matriz desta realidade, continuamente se corrigindo com referência a este contexto. A investigação concreta da interdependência de toda a gama de acontecimentos, dos econômicos aos psíquicos e aos

intelectuais, deve reunir as observações isoladas em uma unidade funcional, contra o embasamento de um todo em desenvolvimento. Dessa forma, nossa visão da história vai adquirindo um quadro de referência cada vez mais concreto, diferenciado, mas ao mesmo tempo mais flexível. Examinamos cada acontecimento com vista a descobrir o que significa e qual a sua posição na estrutura total em desenvolvimento. Seguramente, a área de livre escolha se torna, assim, mais restrita; descobre-se um número maior de determinantes, pois não só o passado constitui um fator de determinação, mas a situação econômica e social do presente também condiciona o acontecimento possível. O propósito orientador não consiste mais, aqui, em uma atividade com base em impulsos fortuitos em direção a algum aqui e agora arbitràriamente escolhido, mas, antes, em fixar a atenção sobre um ponto de ataque favorável no todo estrutural em que vivemos. Torna-se tarefa do líder político reforçar deliberadamente as forças cuja dinâmica pareça adiantar-se na direção por ele desejada, e orientar em sua própria direção, ou pelo menos tornar impotentes as que pareçam opor-se a ele. A experiência histórica se torna, dessa forma, um verdadeiro plano estratégico. Tudo o que existe na história pode ser agora experimentado como um fenômeno intelectual e volitivamente controlável. Também neste caso, o ponto-de-vista inicialmente formulado na área política penetra toda a vida cultural: da investigação sobre a determinação social da história surge a Sociologia que, por seu turno, se transforma gradativamente em uma ciência-chave, cuja perspectiva permeia todas as Ciências Históricas especiais que tenham alcançado um estado similar de desenvolvimento. Uma confiança e uma segurança, autorizadas pelo sentimento de determinação, fazem surgir ao mesmo tempo um ceticismo criador e um élan disciplinado. Um tipo especial de “realismo” permeia o domínio da arte. O idealismo do filisteu burguês de meados do século XIX dissipou-se e, enquanto persistir uma tensão fecunda entre o ideal e a existência, os valores transcendentes, concebidos a partir de agora como encarnados na existência efetiva, serão buscados no próximo e no imediato.

4. A utopia na situação contemporânea No momento atual o problema assumiu sua forma própria e singular. O próprio processo histórico nos mostra uma utopia que, em uma dada época, transcendia completamente a história, vir gradativamente descendo em uma aproximação cada vez mais chegada à vida real. Ao se tornar mais próxima da realidade histórica, sua forma sofre mudanças tanto em função quanto em substância. O que de origem se colocava em absoluta oposição à realidade histórica tende agora, seguindo o modelo do conservantismo, a perder seu caráter de oposição. Claro está que nenhuma das formas destas forças dinâmicas que emergem em uma sequência histórica jamais desaparece por completo, e tampouco em época alguma qualquer delas é incontestavelmente dominante. A coexistência destas forças, sua oposição recíproca, bem como sua constante interpenetração mútua, dão existência a formas cuja riqueza de experiência histórica aparece pela primeira vez. A fim de não obscurecer com um excesso de detalhes o que é decisivo, somente ressaltamos as mais importantes tendências em toda esta variedade, emprestando-lhes uma

ênfase maior ao retratá-las como tipos-ideais. Muito embora, no decorrer da história, jamais se perca realmente nada desta multiplicidade de coisas e de acontecimentos, é possível mostrar com crescente clareza diversos graus de predomínio e de alinhamento das forças em atuação na sociedade. Ideias, formas de pensamento e energias psíquicas persistem e são transformadas em estreita conexão com as forças sociais. Nunca é por acaso que elas aparecem em determinados momentos do processo social. A este propósito, está à vista um determinante estrutural específico que, pelo menos, merece indicação. Quanto maior a classe que adquire um certo domínio sobre as condições concretas de existência, e tanto maiores as possibilidades de uma vitória por meio de uma evolução pacífica, tanto mais tenderá esta classe a seguir o caminho do conservadorismo. Isso significa, porém, que os diversos movimentos terão renunciado aos elementos utópicos em seus modos de vida. Isso se demonstra de uma maneira mais nítida pelo fato, já mencionado, de que a forma relativamente mais pura da mentalidade quiliástica moderna, tal como se acha encarnada no anarquismo radical, desaparece quase que por completo da cena política, resultando daí que se elimina um elemento de tensão d'as formas remanescentes de utopia política. É verdade, certamente, que muitos dos elementos que constituíam a atitude quiliástica foram transmutados e se refugiaram no sindicalismo e no bolchevismo, sendo assimilados e incorporados à atividade destes movimentos. Dessa forma, transfere-se para eles, e particularmente para o bolchevismo, a função de acelerar e de catalisar a ação revolucionária, ao invés de deificá-la. O abrandamento generalizado da intensidade utópica se verifica ainda noutro sentido importante: cada utopia que se forma em um estágio posterior de desenvolvimento, manifesta uma aproximação maior ao processo histórico-social. Quanto a este aspecto, a ideia liberal, a socialista e a conservadora nada mais são do que estágios diversos e, na verdade, formas de oposição no processo que vai continuamente se distanciando do quiliasma e se aproximando cada vez mais dos acontecimentos deste mundo. Todas estas formas de oposição à utopia quiliástica evoluem em íntima conexão com o destino dos estratos sociais que as adotaram originalmente. Como tínhamos visto, constituem formas já moderadas do êxtase quiliástico original, mas no decurso de um desenvolvimento posterior eliminam estes derradeiros vestígios utópicos, aproximando-se involuntàriamente da atitude conservadora. Ao que tudo indica, constitui lei geralmente válida da estrutura do desenvolvimento intelectual o fato de que, na ocasião em que novos grupos penetram em uma situação já estabelecida, eles não adotem de imediato as ideologias já elaboradas, mas, antes, adaptem as suas ideais tradicionais à nova situação. Assim, o liberalismo e o socialismo, ao entrarem em uma situação mais conducente ao conservadorismo, adotaram intermitentemente as ideais que o conservadorismo lhes oferecia como modelo, preferindo, entretanto, em geral adaptar à nova situação as suas ideologias originais. Quando estes estratos vieram a ocupar a posição social previamente mantida pelos conservadores, desenvolveram espontaneamente um sentimento de vida e modos de pensamento que se encontravam estruturalmente relacionados ao conservadorismo. A intuição inicial do conservador quanto à estrutura do determinismo histórico, a ênfase e, sempre que possível, a superênfase das forças em silenciosa atuação,

a contínua absorção do elemento utópico na vida cotidiana apareceram também no pensamento destes estratos, às vezes sob a forma de uma nova criação espontânea, outras como uma reinterpretação de antigos padrões conservadores. Verificamos portanto que, condicionado pelo processo social, se desenvolve nestes tipos de pensamento, em diversos pontos e sob diversas formas, um relativo afastamento em relação à utopia. Este processo, que por si só já possui uma qualidade dinâmica própria, é acelerado ainda mais em seu ritmo e intensidade pelo fato de que diferentes formas coexistentes de mentalidade utópica se estejam destruindo em um conflito recíproco. Tal conflito recíproco entre as diversas formas de utopia não acarreta necessariamente o aniquilamento do próprio utopismo, pois o conflito, por si mesmo, não faz senão elevar a intensidade utópica. A forma moderna de conflito recíproco apresenta, todavia, uma peculiaridade já que a destruição do adversário não se verifica a um nível utópico, fato que se torna mais nitidamente perceptível no modo pelo qual os socialistas empreenderam o desmascaramento das ideologias de seus antagonistas.45 Não acusamos o adversário de adorar falsos deuses; destruímos a intensidade de sua ideia demonstrando que ela é histórica e socialmente determinada. O pensamento socialista, que até aqui vem desmascarando as utopias de todos os seus adversários como ideologias, jamais levantou o problema da determinação com respeito à sua própria posição. Jamais aplicou o método a si mesmo e nunca refreou seu próprio desejo de ser absoluto. No entanto, é inevitável que também aqui o elemento utópico desapareça, com o aumento do sentido de determinação. Aproximamo-nos, assim, de uma situação em que o elemento utópico, através de suas muitas formas divergentes, ter-se-á (pelo menos na política) aniquilado completamente. Ao se tentar seguir as tendências que já se dão, projetando-as no futuro, a profecia de Gottfried Keller — “O triunfo final da liberdade será estéril”46 — passa a assumir, pelo menos para nós, um alarmante significado. Sintomas desta “esterilidade” se revelam em muitos fenômenos contemporâneos, podendo ser claramente entendidos como radiações d'a situação política e social nas esferas mais remotas da vida cultural. Com efeito, quanto mais ativamente um partido em ascensão colabora em uma coalizão parlamentar, tanto mais abandona seus impulsos utópicos originais e, com eles, sua perspectiva ampla, tanto mais seu poder para transformar a sociedade tenderá a ser absorvido por seu interesse em detalhes isolados e concretos. Em termos bastante paralelos à mudança que pode ser observada no domínio político, efetua-se uma mudança na visão científica que se conforma às demandas políticas: o que constituíra meramente um esquema formal e uma visão total e abstrata tende a se dissolver em uma investigação de problemas específicos e distintos. O esforço utópico visando a um objetivo e a possibilidade, intimamente relacionada a ele, de uma perspectiva ampla desintegram-se, no conselho consultivo parlamentar e no movimento sindical, em mero conjunto de orientações para dominar um vasto número de detalhes concretos, com vista a assumir posição política quanto a eles. Da mesma forma, no campo da pesquisa, o que anteriormente constituía uma Weltanschauung unificada e sistematizada converte-se, no intento de lidar com problemas individuais, em uma mera perspectiva orientadora e em um princípio heurístico. Mas desde que todas as formas mutuamente conflitantes de utopia atravessam o mesmo ciclo de vida, tornam-se, tanto no domínio da ciência quanto no da prática parlamentar, cada vez menos artigos de fé mutuamente conflitantes, e cada vez mais partidos em competição ou possíveis hipóteses de pesquisa. Enquanto em uma época de

ideais liberais a Filosofia refletia melhor a situação social e intelectual, hoje em dia a condição interna das situações intelectuais e sociais se reflete mais claramente nas diversas formas de Sociologia. A visão sociológica das classes que ascendem ao poder sofre transformações segundo linhas particulares. Estas teorias sociológicas, à semelhança de nossa atual concepção cotidiana do mundo, encarna os “pontos-de-vista possíveis” conflitantes que nada mais são do que transformações gradativas de utopias anteriores. O que esta situação tem de peculiar é que, nesta luta competitiva pela correta perspectiva social, todas estas abordagens e pontos-de-vista conflitantes de forma alguma se “desacreditam” a si próprios, isto é, não se revelam fúteis ou incorretos. Antes, demonstram com uma clareza crescente ser possível pensar proveitosamente, de qualquer ponto-de-vista, embora o grau de proveito a ser atingido varie de posição a posição. Cada um destes pontos-de-vista revela, de um ângulo diverso, as inter-relações no complexo total de acontecimentos, crescendo dessa forma a suspeita de que o processo histórico seja algo mais abrangente que todos os pontosde-vista individuais existentes, e de que nossa base de pensamento não alcance, no presente estado de atomização, uma visão compreensiva dos acontecimentos. A massa de fatos e de pontos-de-vista é muito maior do que o atual estado de nosso aparato teórico e de nossa capacidade de sistematização pode comportar. Isto, porém, lança uma nova luz sobre a necessidade de nos acharmos continuamente preparados para uma síntese, em um mundo que vai atingindo um dos altos pontos de sua existência. O que anteriormente se desenvolvera aleatoriamente, a partir das particulares necessidades intelectuais de classes e círculos sociais restritos se torna de súbito perceptível como um todo, e a profusão de acontecimentos e de ideais produz um quadro bastante confuso. Não é por fraqueza que um povo, chegado a um estágio maduro de desenvolvimento histórico e social, se submete às diferentes possibilidades de visualizar o mundo, tentando encontrar um quadro teórico que as abranja todas. Essa submissão surge antes da intuição de que cada uma das certezas intelectuais antecedentes repousava sobre pontos-de-vista parciais tornados absolutos. Constitui uma característica de nossos dias o fato de que os limites destes pontos-de-vista parciais se tenham revelado evidentes. Neste estágio maduro e adiantado de desenvolvimento, a perspectiva total tende a desaparecer em proporção ao desaparecimento da utopia. Somente os grupos da extrema esquerda e da extrema direita, na vida moderna, acreditam haver uma unidade no processo de desenvolvimento. No primeiro encontramos o neomarxismo de um Lukács, com a sua obra de profunda importância, e no último o universalismo de um Spann. Seria supérfluo demonstrar, a esta altura, as diferenças nos pontos-de-vista sociológicos destes dois extremos, reportando-nos às diferenças em suas concepções da totalidade. Não estamos interessados em esgotar essa questão, mas, antes, em uma determinação provisória dos fenômenos sintomáticos da situação atual. Diferentemente dos autores acima mencionados, que encaram a categoria de totalidade como uma entidade metafísico-ontológica, Troeltsch a utilizou como uma hipótese de trabalho na pesquisa. Empregou-a em uma forma um tanto experimental, como um princípio ordenador para uma abordagem da massa de dados e, recorrendo a diferentes linhas de tratamento do material, buscou descobrir os elementos que em qualquer época lhe

conferissem uma unidade. Alfred Weber procura reconstruir o todo de uma época histórica passada como uma Gestalt — uma unidade configurativa por meio da qual se pode observar intuitivamente. Seu método se coloca em decidida oposição ao dogmatismo racionalista fundado sobre a dedução. O fato de que Troeltsch e Alfred Weber, como democratas, se encontrem entre os dois extremos de Lukács e de Spann se reflete em suas respectivas estruturas mentais. Embora aceitem a concepção de totalidade, o primeiro evita qualquer pressuposto metafísico e ontológico ao falar dela, e o último rejeita a atitude racionalista geralmente associada a essa concepção pelos radicais. Em contraste com os adeptos do marxismo ou com a tradição históricoconservadora em sua concepção da totalidade, outro elemento do grupo intermediário procura ignorar inteiramente o problema da totalidade a fim de, com base nesta renúncia, ser capaz de concentrar mais plenamente sua atenção na abundância de problemas particulares. Toda vez que a utopia desaparece, a história deixa de ser um processo que conduz a um fim último. O quadro de referência de acordo com o qual avaliamos os fatos deixa de existir, restando-nos uma série de acontecimentos, todos idênticos no que se refere à sua significação interna. Desaparece o conceito de tempo histórico, que conduzia a épocas qualitativamente diferentes, e a história se torna cada vez mais semelhante ao espaço nãodiferenciado. Todos os elementos de pensamento enraizados nas utopias são agora vistos de um ponto-de-vista cético e relativista. Ao invés da concepção de progresso e da dialética, adotamos a busca de tipos e de generalizações válidas eternamente, e a realidade se torna apenas uma combinação especial destes fatores gerais (cf. a Sociologia Geral de Max Weber). O quadro conceptual da Filosofia Social que fundamentava os trabalhos dos últimos séculos parece desaparecer com a fé nas utopias como alvos coletivos dos esforços humanos. Esta atitude cética, fecunda em muitos sentidos, corresponde primariamente à posição social de uma burguesia já no poder, cujo futuro se converteu gradativamente em seu presente. Os demais estratos da sociedade manifestam tendências idênticas, à medida que também se aproximam da realização de seus objetivos. Não obstante, a evolução concreta de seu modo de pensamento atual também se acha até certo ponto sociologicamente determinada pela situação histórica em que tiveram origem. Caso se retire do método sociológico marxista a concepção dinâmica de tempo, também aqui teremos uma teoria generalizante da ideologia que, sendo cega às diferenciações históricas, iria vincular as idéias exclusivamente às posições sociais dos que as mantêm, sem considerar a sociedade em que ocorrem nem a função particular que ali possam exercer. Os contornos de uma Sociologia indiferente à noção histórica de tempo já eram perceptíveis na América, onde o tipo dominante de mentalidade tornou-se mais completo e rapidamente congruente com a realidade da sociedade capitalista do que ocorreu no pensamento alemão. Na América, a Sociologia derivada da Filosofia da História foi bem mais cedo posta de lado. A Sociologia, ao invés de constituir um retrato adequado da estrutura do conjunto da sociedade, esfacelou-se em uma série de problemas técnicos distintos de reajustamento social. “Realismo” tem diferentes significações em contextos diferentes. Na Europa, significava que a Sociologia tinha de focar sua atenção na tensão bastante acentuada entre as classes, enquanto na América, onde havia maior liberdade de ação no campo econômico,

não era tanto o problema das classes que se considerava o centro “real” da sociedade, mas os problemas de técnica e de organização sociais. Para as formas de pensamento europeu que se encontravam em oposição ao status quo, Sociologia significava a solução do problema das relações de classe — de um modo mais geral, um diagnóstico científico da época atual. Para o americano, pelo contrário, significava a solução dos problemas técnicos e imediatos da vida social. Isto ajuda a explicar por que, na formulação europeia de problemas sociológicos, sempre se faz a desconcertante pergunta sobre o que nos guarda o futuro e, de maneira semelhante, se lança a luz sobre o impulso, estreitamente correlato, para uma perspectiva total. Do mesmo modo é possível explicar, com base nesta diferença, o tipo de pensamento envolvido na formulação americana do problema, representado da seguinte forma: Como é que faço isso? Como é que resolvo este problema concreto isolado? E em todas estas indagações sentimos o eco otimista: não preciso preocupar-me com o todo, o todo toma conta de si próprio. Na Europa, contudo, o desaparecimento completo de todas as doutrinas que transcendem a realidade — as utópicas bem como as ideológicas — ocorreu não apenas pelo fato de se mostrar que todas estas noções eram relativas à situação econômico-social, mas também por outros meios. A esfera da realidade última repousava na esfera econômica e social, pois era a esta que o marxismo vinculava, em última análise, todas as ideais e valores; estava ainda histórica e intelectualmente diferenciada, isto é, ainda continha algum fragmento da perspectiva histórica (devido amplamente à sua derivação hegeliana). O materialismo histórico era materialista apenas no nome-, a esfera econômica era, em última análise, apesar de ocasionais negativas deste fato, um inter-relacionamento estrutural de atitudes mentais. O sistema econômico existente era exatamente um “sistema”, isto é, algo que se forma na esfera do espírito (o espírito objetivo, como o entendida Hegel). O processo que de início começou por solapar a validade dos elementos espirituais na história passou, mais tarde, a perturbar esta esfera do espírito, reduzindo todos os acontecimentos a funções de impulsos humanos, completamente desligados dos elementos históricos e espirituais. Isto também possibilitou uma teoria generalizante; os elementos que transcendem à realidade, as ideologias, as utopias, etc. — já não se achavam em relação com situações sociais de grupo, mas com impulsos — com formas eternas da estrutura dos impulsos humanos (Pareto, Freud, etc.). Esta teoria generalizante dos impulsos já fora prenunciada na Filosofia Social e na Psicologia Social inglesas dos séculos XVII e XVIII. Assim, por exemplo, em seu Enquiry concerning Human Understanding, dizia Hume: “Reconhece-se universalmente que haja uma grande uniformidade entre as ações dos homens, em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana permaneça sempre a mesma, em seus princípios e manifestações. Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações. Os mesmos acontecimentos decorrem sempre das mesmas causas. A ambição, a avareza, o egoísmo, a vaidade, a amizade, a generosidade, o espírito público: estas paixões, combinadas em vários graus e distribuídas pela sociedade, têm sido desde o início do mundo, e ainda o são, a fonte de todas as ações e iniciativas que se têm sempre observado na humanidade”.47 Este processo de completa destruição de todos os elementos espirituais, os utópicos bem como os ideológicos, encontra um paralelo nas mais recentes tendências da vida moderna, e nas tendências correspondentes no domínio da arte. Não devemos encarar o desaparecimento na arte do humanitarismo, a emergência de uma “constatação de fato”

(Sachlichkeit) na vida sexual, na arte e na arquitetura e a expressão dos impulsos naturais no esporte — não se deveria interpretar tudo isso como sintomático do crescente recesso dos elementos utópicos e ideológicos da mentalidade dos estratos que virão a dominar a situação atual? Não deveriam a gradativa redução da Política à Economia, em cuja direção existe pelo menos uma tendência perceptível, a rejeição consciente do passado e da noção de tempo histórico, o abandono consciente de qualquer “ideal cultural”, ser interpretados como um desaparecimento, também na arena política, de qualquer forma de utopismo? Aqui, uma certa tendência para agir sobre o mundo promove uma atitude para a qual todas as ideais se acham desacreditadas e todas as utopias, destruídas. Esta atitude prosaica que vem surgindo atualmente deve ser em grande parte bem recebida como o único instrumento de domínio sobre a situação atual, como a transformação do utopismo em ciência e como a destruição das ideologias enganadoras que se acham em incongruência com a realidade de nossa presente situação. Seria necessário ou bem uma insensibilidade que nossa geração provavelmente já não poderia adquirir ou, então, a crédula ingenuidade de uma geração recentemente nascida para o mundo, para se poder viver em inteira congruência com as realidades deste mundo, totalmente despidas de qualquer elemento transcendente, quer sob a forma de uma utopia, quer sob a de uma ideologia. Em nosso atual estágio de autoconsciência, esta seria talvez a única forma de existência real possível em um mundo que já não se acha em formação. É possível que o melhor que nossos princípios éticos têm a oferecer seja a “autenticidade” e a “franqueza”, no lugar dos antigos ideais. A “autenticidade” (Echtheitskategorie) e a franqueza aparentam não ser mais do que a projeção da “constatação de fato” ou do “realismo” gerais de nossos dias, no campo da Ética. Talvez um mundo que não esteja mais em formação possa permitir-se isso. Mas acaso teremos atingido um estágio em que possamos dispensar o esforço? Não iria esta eliminação de todas as tensões significar igualmente a eliminação da atividade política, do cuidado científico — numa palavra, do próprio conteúdo da vida? Assim, se não nos quisermos contentar com esta “constatação de fato”, devemos levar avante nossa pesquisa e indagar se não existiriam outras forças em atividade no campo social, além dos estratos sociais que, pela sua atitude satisfeita, promovem este relaxamento da tensão psicológica. Caso a pergunta seja colocada desta maneira, contudo, a resposta deverá ser a seguinte: A aparente ausência de tensão no mundo de hoje está sendo solapada por dois lados. De um lado, acham-se os estratos cujas aspirações ainda não se realizaram e que se inclinam para o comunismo e para o socialismo. Para eles, a unidade da utopia, do pontode-vista e da ação é inconteste enquanto permaneçam à margem do mundo atual. A sua presença na sociedade implica a ininterrupta existência de, pelo menos, uma forma de utopia, e, assim, até certo ponto, sempre fará que tornem a se acender e a se conflagrar contra utopias, pelo menos todas as vezes que esta ala de extrema esquerda entre em ação. Se isto irá ou não de fato acontecer, depende amplamente da forma estrutural do processo de desenvolvimento com que atualmente nos defrontemos. Se formos capazes de, através de uma evolução pacífica, alcançar, em um estágio posterior, uma forma algo superior de industrialismo que seja suficientemente elástica e que proporcione aos estratos mais baixos um grau de relativo bem-estar, então também elas sofrerão o tipo de transformação que já se evidenciou nas classes detentoras do poder. (Deste ponto-de-vista, pouco importa que esta forma superior de organização social do industrialismo, através do acesso dos estratos

mais baixos a uma posição de poder, redunde em um capitalismo suficientemente elástico para assegurar-lhes um relativo bem-estar, ou que este capitalismo seja antes transformado em comunismo.) Se este estágio posterior do desenvolvimento industrial somente puder ser obtido através da revolução, os elementos utópicos e ideológicos do pensamento voltarão a florescer, com renovado vigor, por toda parte. Seja como for, será no poder social desta ala da oposição à ordem existente que se irá encontrar um dos determinantes de que depende o destino dos conceitos que transcendem a realidade. Mas a forma futura da mentalidade utópica e da intelectualidade não depende apenas das vicissitudes deste estrato social extremo. Em acréscimo a este fator sociológico, ainda existe outro a ser considerado neste sentido: um estrato médio social e intelectual distinto que, apesar de manter uma relação definida com a atividade intelectual, não foi considerado em nossa análise anterior. Até agora todas as classes abrangeram, além dos que efetivamente representavam seus interesses diretos, outro estrato mais orientado para o que se pode chamar de reino do espírito. Sociologicamente, poderiam ser denominados “intelectuais”, mas, para nossas finalidades, precisamos ser mais precisos. Não nos referimos aqui aos que portam as insígnias exteriores da instrução, mas aos poucos dentre estes que, consciente ou inconscientemente, se acham interessados em algo mais do que o sucesso no esquema de competição que visa a desalojar o atual. Por maior que seja a serenidade com que se encare a questão, não se poderá negar que este pequeno grupo quase sempre existiu. Sua posição não apresentava nenhum problema enquanto seus interesses intelectuais e espirituais estivessem em congruência com os da classe em luta pela supremacia social. Experimentava e conhecia o mundo segundo a mesma perspectiva utópica do grupo ou estrato social com cujos interesses se identificava. Isto se aplica tanto a Thomas Münzer quanto aos combatentes burgueses da Revolução Francesa, tanto a Hegel quanto a Karl Marx. A situação deles se torna, no entanto, questionável sempre que o grupo a que se identificam alcança uma posição de poder, quando, em decorrência desta obtenção de poder, a utopia se desliga da política. Consequentemente, o estrato que era identificado com tal grupo, com base nesta utopia, é igualmente desligado. Os intelectuais serão também desligados destes vínculos sociais tão logo o estrato mais oprimido da sociedade venha a partilhar do domínio da ordem social. Os intelectuais socialmente desvinculados serão, ainda mais do que hoje em dia, recrutados em proporções crescentes dentre todos os estratos sociais e não simplesmente dentre os mais privilegiados. Este setor intelectual, que se vem tornando cada vez mais separado do resto da sociedade e se vê entregue a seus próprios recursos, defronta-se, sob outro aspecto, com o que acabamos de caracterizar como uma situação total que tende para o completo desaparecimento de tensão social. Mas uma vez que os intelectuais não se encontram de forma alguma em concordância com a situação existente, e que ela não deixa de lhes aparecer como problema, também eles se esforçam por ultrapassar esta situação desprovida de tensão. As seguintes quatro alternativas se apresentam aos intelectuais que dessa forma se viram rejeitados pelo processo social: o primeiro grupo de intelectuais que se filiam à ala radical do proletariado socialista-comunista em absoluto nos interessa aqui. Para ele, pelo menos sob este aspecto, não existem problemas; o conflito entre a lealdade social e a intelectual ainda não existe.

O segundo grupo, que se viu rejeitado pelo processo social ao mesmo tempo que sua utopia era afastada, torna-se cético e passa, em nome da integridade intelectual, a destruir os elementos ideológicos da ciência pela maneira acima descrita (Max Weber, Pareto). O terceiro grupo se refugia no passado e tenta encontrar aí uma época ou uma sociedade em que uma forma extinta de transcendência à realidade dominasse o mundo, e, através desta reconstrução romântica, tenta espiritualizar o presente. A mesma função, deste ponto-de-vista, é desempenhada pelas tentativas de reanimar o sentimento religioso, o idealismo, os símbolos e os mitos. O quarto grupo se isola do mundo e renuncia conscientemente à participação direta no processo histórico. Tornam-se extáticos como os quiliastas, mas com a diferença de que já não se preocupam com movimentos políticos radicais. Tomam parte no grande processo histórico do desengano, em que todo significado concreto das coisas, bem como os mitos e as crenças vão sendo lentamente postos de lado. Diferem, entretanto, dos românticos, que visam essencialmente a conservar as crenças antigas em uma época moderna. Este êxtase a-histórico que inspirou tanto o místico quanto o quiliasta, se bem que de maneiras diferentes, se encontra agora colocado, em toda a sua crueza, no próprio centro da experiência. Vamos encontrar um sintoma deste fato, por exemplo, na arte moderna expressionista, em que os objetos perderam seu significado original, parecendo servir simplesmente como um meio para a comunicação do extático. De modo semelhante, no campo da Filosofia, vários pensadores não acadêmicos, como Kierkegaard, rejeitaram, na busca de fé, todos os elementos históricos concretos da religião, e tendem, em última análise, para uma pura e extática “existência em si”. Tal afastamento do elemento quiliástico do meio da cultura e da política talvez preservasse a pureza do espírito extático, mas deixaria o mundo sem significação nem vida. Este afastamento acabará sendo fatal também ao êxtase quiliástico, desde que, como já vimos, ao se interiorizar e abandonar seu conflito com o mundo concreto imediato, ele tende a se tornar manso e inócuo, ou a se perder em um pura auto edificação. Terminada esta análise, é inevitável que nos indagassem o que o futuro nos guarda; e a dificuldade desta questão põe a nu a estrutura da compreensão histórica. Predizer é tarefa de profetas, e cada profecia transforma necessariamente a história em um sistema puramente determinado, privando-nos, dessa forma, da possibilidade da escolha e decisão. Como um resultado posterior, desfaz-se o impulso a pesar e a refletir com relação a esta esfera constantemente emergente de novas possibilidades. A única forma em que o futuro se nos apresenta é a da possibilidade, ao passo que o imperativo, o “deveria”, nos diz qual destas possibilidades devemos escolher. No que se refere ao conhecimento, o futuro — enquanto não estamos interessados na parte puramente organizada e racionalizada — se apresenta como um meio impenetrável, um muro intransponível. E, quando nossas tentativas de devassá-los são repelidas, começamos a tomar consciência da necessidade de escolher resolutamente o nosso caminho, e, em estreita conexão, da necessidade de um imperativo (uma utopia) que nos leve avante. Somente quando sabemos quais os interesses e imperativos envolvidos, é que estamos em posição de questionar as possibilidades da situação presente e, assim, de obter nosso primeiro “insight” da história. Aqui, finalmente, vemos por que só pode existir uma interpretação da história

na medida em que esta se oriente pelo interesse e pelo esforço intencional. Das duas tendências em conflito no mundo moderno — as correntes utópicas em luta contra uma tendência complacente a aceitar o presente — é difícil dizer de antemão qual acabará por vencer, pois o curso da realidade histórica que determinará esta vitória repousa ainda no futuro. Poderíamos mudar toda a sociedade amanhã, caso todos concordassem. O verdadeiro obstáculo é que cada indivíduo se acha preso a um sistema de relações estabelecidas que, em grande parte, entrava a sua vontade.48 Mas estas “relações estabelecidas” repousam, em última análise, sobre decisões não-controladas dos indivíduos. A tarefa consiste, portanto, em remover esta fonte de dificuldade, revelando os motivos ocultos subjacentes às decisões do indivíduo, e dessa forma colocando-o em condições de realmente escolher. Então, e somente então, suas decisões realmente procederão dele. Tudo o que foi dito até aqui, neste livro, destina-se a auxiliar o indivíduo a penetrar nestes motivos ocultos e a revelar as implicações de sua escolha. Entretanto, para o nosso propósito analítico mais restrito, que podemos designar como uma história sociológica dos modos de pensamento, torna-se claro que as mudanças mais importantes da estrutura intelectual da época de que nos ocupamos devem ser compreendidas à luz das transformações do elemento utópico. É possível, portanto, que no futuro, em um mundo em que nunca haja nada de novo, em que tudo esteja terminado, sendo cada momento uma repetição do passado, venha a existir uma condição em que o pensamento seja completamente despido de quaisquer elementos ideológicos e utópicos. Mas a completa eliminação de elementos transcendentes à realidade, em nosso mundo, nos levaria a uma “constatação de fato” que significaria, em última análise, a decomposição da vontade humana. Neste aspecto reside a mais essencial diferença entre estes dois tipos de transcendência à realidade: enquanto o declínio da ideologia representa uma crise apenas para certos estratos, e a objetividade que nasce do desmascaramento das ideologias sempre assume a forma de um auto esclarecimento para a sociedade como um todo, a completa desaparição do elemento utópico do pensamento e da ação humanos significaria que a natureza e o desenvolvimento humanos iriam assumir um caráter totalmente novo. A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término de um longo e tortuoso, mas heroico desenvolvimento, justamente no mais elevado estágio de consciência, quando a história vai deixando de ser um destino cego e se tornando cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de compreendê-la.

1

Landauer, G., Die Revolution, vol. 13 da série Die Gesellschaft, ed. por Martin Buber (Frankfurt, 1923).

2

Para maiores detalhes, cf. Parte II, “Ideologia e Utopia”.

3

Droysen, T. G., Outline of the Principles of History, trad, por Benjamin Andrews, Boston, 1893, págs. 45-6.

4

Para as causas, cf. meu Das Konservative Denken, op. cit., págs. 83 e segs.

5

Quanto aos perigos práticos da conceituação histórica, cf. a crítica de Meinecke por Schmitt: “Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsräson”, Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1926), LVI, págs. 226 e segs. É lamentável que os problemas decorrentes da controvérsia entre estes dois típicos representantes de seus

respectivos pontos-de-vista não tenham sido mais amplamente elaborados na literatura. Com respeito ao problema da relação entre história e sistematização, cf. Sombart, W., “Economic Theory and Economic History”, Economic History Review, II, n.° 1, janeiro, 1929; Jecht, H., Wirtschaftsgeschichte und Wirtschaftsiheorie (Tübingen, 1928). 6

Doren, A., Wunschräume und Wunschzeiten (Conferências, 1924-5, da Biblioteca Warburg, Leipzig, Berlim, 1927, págs. 158 e segs.). Esta obra é citada para futura referência como o melhor guia para o tratamento do problema do ponto-de-vista da história cultural e da história das ideias. Contém, igualmente, uma excelente biografia. No presente trabalho, citamos somente aquelas obras que não aparecem nas referências bibliográficas do livro de Doren. O ensaio de Doren pode ser classificado como uma história do motivo (algo semelhante à iconografia na história da arte). Para tal finalidade, sua terminologia (“aspiração espacial” e “aspiração temporal”) é particularmente apropriada, mas para nosso propósito, isto é, a construção de uma história sociológica da estrutura da moderna consciência, tem apenas valor indireto.

7

É mérito de Alfred Weber o ter feito desta análise de constelações um instrumento da Sociologia Cultural. Tentamos aplicar tal formulação do problema, embora num sentido específico, ao caso acima tratado.

8

Cf. subtítulo I da Parte II e subtítulo I desta Parte IV.

9

Fixar o início de um movimento num ponto dado da sequência de eventos históricos é sempre perigoso e implica fazer caso omisso dos precursores do movimento. Mas a reconstrução bem sucedida do que é mais essencial no desenvolvimento histórico depende da habilidade do historiador em dar a ênfase apropriada aos pontos cruciais decisivos na articulação dos fenômenos. O fato de o socialismo moderno frequentemente reportar suas origens ao tempo dos anabatistas demonstra, em parte, que o movimento liderado por Thomas Münzer deve ser tido como um passo em direção aos movimentos revolucionários modernos. É óbvio, naturalmente, que não estamos lidando aqui com proletários com consciência de classe. Do mesmo modo, deve ser desde logo aceito que Münzer era um revolucionário social por motivos religiosos. Contudo, o sociólogo deve dar particular atenção a este movimento, porquanto nele o quiliasma e a revolução social estão estruturalmente integrados.

10

Das obras sobre Münzer citamos apenas K. Holl, “Luther und die Schwärmer” (Gesammelte Aufsätze zur Kirchengeschichte, Tübingen, págs. 420 e segs.), onde estão admiravelmente reunidas citações, em grande número, sôbre um mesmo problema. Nas referências que se seguem, simplesmente citaremos a passagem em Holl, sem a citar detalhadamente. Para a caracterização do quiliasma, cf. especialmente Bloch, E., Thomas Münzer als Theologe der Revolution (Munique, 1921). Uma afinidade íntima entre Münzer e este autor tornou possível uma exposição muito adequada da essência do fenômeno do quiliasma. Este já fora em parte corretamente avaliado por Doren, op. cit.

11

A política pode, evidentemente, ser definida de várias maneiras. Neste caso, novamente, devemos reiterar o anteriormente afirmado: a definição está sempre relacionada à sua finalidade e ao ponto-de-vista do observador. Nossa finalidade, aqui, é traçar a relação entre a formação da consciência coletiva e a história política, e, consequentemente, nossa definição, que seleciona certos fatos, deve ser relacionada a tal formulação do problema.

12

O próprio Miinzer falava de “coragem e vigor para realizar o impossível”. Para as citações, cf. Holl, pág. 429.

13

Questão a ser discutida na próxima seção.

14

Münzer refere-se ao “abismo do espírito”, que só pode ser visto quando as forças da alma se põem a descoberto. Cf. Holl, pág. 428, nota 6.

15

No conflito entre Münzer e Lutero, há provas da supramencionada divergência sobre a ênfase a ser dada à fé, que pode tão-só ser experimentada, e as “ideias” que a simbolizam. Segundo Münzer, Lutero acredita exclusivamente na letra das Escrituras. Para Münzer, tal fé é uma “paródia simiesca, furtada, nunca experimentada”. Citações em Holl, pág. 427.

16

Meister Eckehart: “Nada afasta mais a 'alma do conhecimento de Deus que o tempo e o espaço” (Meister Eckehart, Schriften und Predigten, ed. por Büttner (Iena, 1921, I, pág. 137). “Se a alma quiser perceber Deus, deve situar-se acima do tempo e do espaço!” (Ibid., pág. 138). “Se a alma consegue superar-se e negar-se, a si e a suas atividades, só o faz pela graça” (I, 201). Para a distinção entre o misticismo medieval e a religiosidade de Münzer, cf. o pertinente comentário de Holl. “Enquanto os místicos da Idade Média se preparavam para Deus por meios artificiais, pelo ascetismo, e, por assim dizer, tentavam forçar a união com a divindade, Münzer acreditava que é ‘o próprio Deus quem toma a foice para cortar as ervas daninhas de entre os homens’” (cf. Holl, pág. 483).

17

Münzer se expressa similarmente na seguinte passagem: “Ele deveria saber que Deus está dentro dele e que não se deveria pensar em Deus como se estivesse a mil milhas de distância” (Holl, pág. 430, nota 3). Em outra citação, aparece o radicalismo religioso de Münzer na distinção que faz entre o Cristo doce como mel e o Cristo amargo. Münzer acusou Lutero de representar apenas o primeiro. (Holl, págs. 426-7.) Para a interpretação, cf. Bloch, op. cit., págs. 251 e segs.

18

Na arte criadora da época, representada pela pintura de Grünewald, pode-se encontrar, levado a um extremo grandioso, um paralelo desta íntima fusão do mais forte sensualismo com a mais elevada espiritualidade. Porque se conhece muito pouco de sua vida, é impossível determinar se ele tinha ligações com os anabatistas. A referência a Grünewald, contudo, pretende apenas ilustrar o que foi dito acima. (Cf. Heidrich, E., Die altdeutche Malerei (Iena, 1909), págs. 39-41, 269). Cf. também a instrutiva obra de Heidrich, Dürer und die Reformation (Leipzig, 1909), na qual êle mostra claramente a relação demonstrável entre os entusiastas extáticos e seus seguidores entre os pintores Hans Sebald, Barthel Beham e Georg Pencz, em Nuremberg, e a defesa de Dürer contra êles. Heidrich vê na arte de Dürer a expressão da religiosidade luterana, e na de Grünewald, o paralelismo com os entusiastas do êxtase religioso.

19

Münzer: “... que nós, criaturas de carne e osso, deveríamos tornar-nos Deuses graças à Encarnação de Cristo, e, assim, convertermo-nos com Ele em discípulos de Deus, ensinados por ele e em Seu espírito, tornados divinos e totalmente transformados n’Ele, e esta vida terrena tornar-se-ia o paraíso”. (Citação em Holl, pág. 431, nota 1.) A propósito da sociologia da interiorização das experiências e, em geral, da teoria das relações das formas de experiência com as formas da atividade política pública, deve ser notado que, à medida que Karlstadt e os batistas do sul da Alemanha se afastaram de Münzer, tornaram-se mais e mais afastados da experiência quiliástica da imediação, orientando-se para a experiência profética e para uma esperança otimista no futuro (cf. Holl, pág. 458).

20

Uma das características da moderna revolução, estudada por Stahl, consiste em que ela não é um levante comum contra um opressor determinado, mas um esforço por um levante contra toda a ordem social existente, de forma sistemática e completa. Se tomarmos esta forma sistemática como o ponto de partida da análise e estudarmos seus antecedentes históricos e intelectuais, chegaremos, neste caso, também ao quiliasma. Não obstante a-sistemático em muitas outras questões, o quiliasma, em certa fase, manifestou tendências para a orientação sistemática abstrata. Assim, por exemplo, Radványi indicou que o quiliasma não atacava os indivíduos, mas só perseguia o princípio ativo do mal nos indivíduos e nas instituições. (Cf. sua dissertação não-publicada, Der Chiliasmus, Heidelberg, 1923, pág. 98). Outras citações em Holl, pág. 454.

21

A literatura sobre Bakunin é citada adiante. Demonstraremos, mais tarde, que o anarquismo de Bakunin é o que, em nosso entender, mais se aproxima, em visão, da continuidade do quiliasma no mundo moderno.

22

Cf. Freyer, H., “Das Problem der Utopie”, Deutsche Rundschau, vol. 183, págs. 321-345. Também o livro de Girsberger, citado em detalhes adiante.

23

Sobre o conceito francês de “ideia”, lemos no Deutsches Wörterbuch de Grimm: “... num período mais remoto, o uso francês do século XVII dava a essa palavra o sentido rarefeito de representação mental, pensamento, conceito de algo” (Littré, 2, 5c). É neste sentido que encontramos a palavra “ideia”, sob a decisiva influência francesa, entre os escritores alemães da primeira metade do século XVIII; durante algum tempo a palavra é inclusive escrita com o acento francês.

24

Na mitologia grega, Kairos é o Deus da Oportunidade — o gênio do momento decisivo. A noção cristianizada disto é dada na obra de Paul Tillich, The Religious Situation, traduzida por H. R. Niebuhr, Nova York, 1932, pags. 138-9: “Kairos é o tempo realizado, o momento do tempo invadido pela eternidade. Mas Kairos não é a perfeição ou a realização no tempo”. (Nota do tradutor da ed. inglêsa.)

25

Cf. Freyer, op. cit., pág. 323.

26

Cf. Pinder, Das Problem der Generation in der Kunstgeschichte Europas (Berlim, 1926), pags. 67 e segs., 69.

27

Cunow, H., Die Matzsche Geschichts-, Gesellschafts- und Staatstheorie (Berlim, 1920), I, pág. 158.

28

von der Goltz, “Die theologische Bedeutung J. A. Bengels und seiner Schüler”, Jahrbücher für deutsche Theologie (Gota, 1861), vol. VI, pags. 460-506. Gerlich, Fr., Der Kommunismus als Lehre vom tausendjährigen Reich (Munique, 1920). Este livro, escrito para fins propagandísticos, é em muitos aspectos simplificado e superficial, mas muitas ideais básicas, como as citadas acima, parecem estar muito bem compreendidas. (Cf. o apêndice.) Doren (op. cit.) fez uma correta apreciação deste livro.

29

Landauer, op. cit., pág. 91.

30

Engels, Der deutsche Bauernkrieg, ed, por Mehring (Berlim, 1920), págs. 40 e segs.

31

Holl (op. cit., pág. 435) procura ver um argumento contra uma interpretação sociológica no fato de que as idéias de Münzer, as quais, de acordo com a tipologia geral de Max Weber (Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der Sozialökonomik, Parte III, V, I, págs. 267 e segs., parág. 7), devem ser correlacionadas com as classes baixas, fôssem também aceitas pelos “intelectuais” do período (como Seb. Franck, Karlstadt, Schwenkenfeld, etc.). Se alguém simplificar tanto o problema da Sociologia como ele o fez, é de esperar que se acabe por rejeitá-la. Max Weber sempre insistiu que sua tipologia geral foi criada para caracterizar tendências ideal-típicas, e não constelações únicas imediatamente perceptíveis (ibid., pág. 10). A Sociologia que procura analisar historicamente

constelações únicas deve proceder com cuidados especiais ao abordar a determinação sociológica da posição dos intelectuais. É necessário considerar as seguintes questões na formulação do problema: a) A questão de sua ambivalência sociológica (não é esta já uma característica sociológica particular, quando consideramos que não se dá em todos os estratos sociais?); b) Em que ponto particular do tempo os representantes dos intelectuais são induzidos a um ou a outro campo?; c) De que maneira as ideais que os intelectuais derivam de outros campos são modificadas no curso de sua assimilação? (É frequentemente possível determinar as mudanças de posição social pelo “ângulo de refração” em que as ideais são aceitas.). Assim, o próprio Holl (págs. 435 e segs., 459, 460) apresenta uma corroboração documental muito interessante da correção da Sociologia a que se opõe. Mostra que, quando as pessoas instruídas adotavam os conceitos de Münzer, não eram capazes de elaborá-las e em nada de fundamental contribuíam para a doutrina. Recorriam muito mais aos livros e escritos dos místicos germânicos, particularmente a Theologia deutsch, bem com a Agostinho, do que à sua própria experiência interior imediata. Não trouxeram qualquer enriquecimento da linguagem. Deformaram o que era singularmente místico em pontos decisivos e fizeram um inócuo amálgama dos ensinamentos dos místicos medievais e da doutrina da cruz de Münzer. (Tudo isto são argumentos diretos em favor da teoria sociológica acima referida, concernente à determinabilidade do “ângulo de refração” intelectual, que se dá quando um estrato assume as ideais de outro.) Além disso, Holl conta-nos que os intelectuais, entre outros, através de seus líderes já mencionados, se afastaram mais e mais do movimento, à medida que este avançava e se radicalizava; que, entre outros, Franck, em sua Chronika, condena a guerra camponesa ainda mais duramente que o próprio Lutero; que, em seguida a este afastamento de Münzer, sua Weltanschauung sofreu uma transformação radical; que, após tal afastamento, a concepção de mundo dos intelectuais adquiriu traços misantrópicos; como perdeu suas “características sociais”; e como, em lugar da intransigência quiliástica, emergiu a ideia mais tolerante, quase sincrética, da “Igreja invisível” (ibid., págs. 459 e segs.). Aqui, muita coisa pode ser entendida sociologicamente, bastando que se coloquem as questões apropriadas e se utilize o aparato conceptual que delas provém. 32

Devemos considerar também a ideologia do absolutismo sob este aspecto, muito embora não possamos abordála em detalhes. Ela também mostra uma concepção originalmente voltada para o domínio de uma situação vital, e que adquire a tendência a refletir friamente sobre a técnica de dominação — da mesma forma que o chamado maquiavelismo. Somente mais tarde (em grande parte compelida por seus adversários) aparece a necessidade de uma justificação mais intelectual e elaborada da ocupação do poder. Para a confirmação desta proposição mais geral, citamos a seguinte passagem de Meinecke que observa o processo referido: “Assim surgiu o ideal do Estado moderno que aspira não apenas a ser um Estado político (Machtstaat), mas também um Estado cultural, e a raison d’état quanto a meros problemas de manutenção imediata do poder, que ocupou largamente a atenção dos teóricos do século XVII, foi ultrapassada”. Isto se refere particularmente à época de Frederico, o Grande. Meinecke, Fr., Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte (Munique, Berlim, 1925), pág. 353.

33

Famoso parágrafo final do prefácio da Filosofia do Direito, de Hegel.

34

“A constituição dos Estados não pode ser inventada; os mais esclarecidos cálculos nesta matéria são tão ineficazes como a total ignorância. Não há substitutivo para o espírito do povo, para a força e ordem que dele dimanam, que não podem ser encontrados mesmo nas mentes mais brilhantes dos grandes gênios”. (Müller, Adam, Über König Friedrich II und die Natur, Würde, und Bestimmung der preussischen Monarchie (Berlim, 1810), pág. 49). Esta ideia, derivada do romantismo, tornou-se o tema central de toda a tradição conservadora.

35

Stahl, Fr. J., Die Philosophie des Rechts, I4, pág. 272.

36

Münzer diz, além disso: “Os intelectuais e eruditos não sabem por que as Santas Escrituras devem ser aceitas ou rejeitadas, mas somente que vêm sendo transmitidas desde um passado remoto... os judeus, os turcos e todos os outros povos têm também tal forma simiesca, imitativa, de justificar suas crenças”. (Holl, pág. 432, nota 2.)

37

Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (Leipzig, Reclam, 1907), cf. págs. 123-5. Maiores referências poderão ser encontradas em minha obra Das konservative Denken, págs. 98 e segs., onde tentei, pela primeira vez, compreender as formas de “sentido histórico do tempo” à luz da estrutura da consciência política dada, em determinado momento. Para outras referências, cf. o seguinte; Stahl procura caracterizar o sentimento de tempo e da vida de Schelling, Goethe e Savigny com as seguintes palavras: “nestes escritores acontece o mesmo que em todas as fases e nuanças da vida: parece que o que é, sempre foi assim. Mas quando olhamos para trás, descobrimos o que mudou. Mas não é tão óbvio para nós descobrir onde e como a transição de um estágio a outro ocorreu. No curso do mesmo desenvolvimento invisível, as situações e circunstâncias próximas emergem e mudam. Da mesma forma que nas situações de nossa vida, e no seu decurso, aqui também percebemos o sentimento de existência eterna e necessária e, ao mesmo tempo, o da emergência e mudança temporais. Este desenvolvimento sem fim, este processo vivo de vir-a-ser, também domina a visão de Schelling e seu sistema representa uma luta sem trégua para expressá-lo. Savigny, em seu domínio, apresenta a mesma característica”. (Die Philoshophie des Rechts, I4, págs. 394 e segs.)

38

Alguns dos aspectos mais importantes desta tendência foram bem estudados por meu aluno Requadt, P., Johannes v. Müller und der Frühhistorismus (Munique, 1929).

39

Cf., por exemplo, a última seção de ensaio de v. Martin, “Weltanschauliche Motive im altkonservativen Denken”, Deutscher Staat und deutsche Parteien: in Festschrift, Fr. Meineck zum 60. Geburtstag dargebracht (Munique, Berlim, 1922).

40

Esta asserção não se aplica ao socialismo antes do século XIX. O socialismo utópico do Iluminismo do século XVIII, num período em que os fisiocratas interpretavam a história à luz da ideia de progresso, tinha sua utopia localizada no passado, correspondendo à mentalidade pequeno-burguesa reacionária de seus defensores. Sociologicamente, essa volta ao passado tem suas raízes, em parte, na persistência de certos remanescentes do antigo sistema de terra “comum”, que de algum modo mantinha viva a memória das instituições “comunistas” do passado. Quanto a esta relação, muitos detalhes podem ser encontrados em Girberger, H., Der utopische Sozialismus des 18. Jahrhunderts in Frankreich und seine philosophischen und materiellen Grundlagen: Zürcher Volkswirtschaftliche Forschungen, Heft I, cf. esp. págs. 94 e segs.

41

Sobre Bakunin, ver as obras de Netdau, Ricarda Huch e Fr. Brupbacher. A obra deste último, Marx und Bakunin (Berlim-Wilmersdorf, 1922), oferece uma exposição concisa de muitos problemas importantes. As obras completas de Bakunin foram editadas na Alemanha por “Der Syndikalist”. Cf. também a confissão de Bakunin ao Czar Nicolau I, descoberta nos arquivos secretos do chefe da terceira seção da Chancelaria do último Czar, e traduzida por K. Kersten, Berlim, 1926.

42

Brupbacher, op. cit., págs. 60 e segs., 204 e segs.

43

Engels, Fr., Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft, 4.a ed., Berlim, 1894.

44

Uma confirmação da análise acima e uma quase matemàtica- mente exata confirmação de nossa teoria sobre os modos diferenciais, social e politicamente, de experimentar o tempo histórico, é dada pelo seguinte excerto de um artigo do comunista J. Révai: “O presente só existe realmente em virtude da existência do passado e do futuro — o presente é a forma do passado desnecessário e do futuro irreal. A tática é o futuro manifestando-se como presente”. (“Das Problem der Taktik”, em Kommunismus: Zeitschrift der Kommunistischen Internationale, 1920, II, pág. 1676. A presença virtual do futuro no presente é aí claramente expressada. Está em completo contraste com a citação de Hegel, anteriormente feita). Dever-se-ia comparar esta frase com outras citações dispersas no presente texto.

45

A mudança de significado do conceito de ideologia, que apresentamos na Parte II, é simplesmente uma fase deste processo mais geral.

46

“Der Freiheit letzter Sieg wird trocken sein”.

47

Hume, Enquiries concerning the Human Understanding and concerning the Principles of Morals. Ed. por L. A. Selby-Bigge, 2.a ed. (Oxford, 1927), pág. 83.

48

Aqui, também, em questões tão decisivas quanto estas, são reveladas as diferenças mais fundamentais nos modos de experimentar a realidade. O anarquista Landauer pode ser citado, representando um extremo: “O que entendeis então pelos fatos duros e objetivos da história humana? Não, certamente, o solo, as casas, as máquinas, as estradas de ferro, as linhas telegráficas e coisas semelhantes. Se, porém, vos referis assim à tradição, ao costume e ao complexo de relações, objetos de pia reverência, tais como o Estado e organizações, condições e situações similares, então não é possível desfazermo-nos deles, dizendo que são simples aparências. A possibilidade e a necessidade do processo social, tal como da estabilidade à decadência, e daí para a reconstrução, baseia-se no fato de que não há organismo desenvolvido que esteja acima do indivíduo, mas uma complexa relação de razão, amor e autoridade. Assim, sempre novamente, ocorrem, na história de uma estrutura social, que é uma estrutura tão-só enquanto os indivíduos a alimentam com sua vitalidade, ocasiões em que os vivos se envergonham dela, como um fantasma estranho do passado, e criam novos agrupamentos. Por isso afastei meu amor, razão, obediência e vontade daquilo que chamo ‘Estado’. Que eu seja capaz de fazer isso depende da minha vontade. O não serdes capazes de fazer isto não altera o fato decisivo de que esta incapacidade particular está inseparavelmente ligada com vossa própria personalidade e não com a natureza do Estado.” (De uma carta de Gustav Landauer a Margarete Susmann, transcrita em Landauer, G., sein Lebensgang in Briefen, ed. por Martin Buber (1929), vol. II, pág. 122.) No outro extremo, eis a seguinte citação de Hegel: “Visto que as fases do sistema ético são a concepção da liberdade, elas são a substância da essência universal dos indivíduos. Existam ou não os indivíduos, isto é indiferente para a ordem ética objetiva, que se basta a si mesma. Ela é a força que governa a vida dos indivíduos. Tem sido representada pelas nações como a eterna justiça, ou como deidades absolutas em confronto com as quais a luta dos indivíduos é um jogo vazio, como o barulho das ondas”. Hegel, Philosophy of Right, trad. por J. W. Dyde (Londres, 1896), pág. 156, § 145, em ad.

V. A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO 1. Natureza e alcance da sociologia do conhecimento a) Definição e Subdivisões da Sociologia do Conhecimento A Sociologia do Conhecimento é um dos mais novos ramos da Sociologia; enquanto teoria, procura analisar a relação entre conhecimento e existência; enquanto pesquisa histórico-sociológica, busca traçar as formas tomadas por esta relação no desenvolvimento intelectual da humanidade. Surgiu ela no esforço de desenvolver, como seu campo peculiar de pesquisa, aquelas múltiplas interconexões que se tornaram aparentes na crise do pensamento moderno, e principalmente os laços sociais entre teorias e modos de pensamento. Busca, por um lado, descobrir critérios capazes de determinar as inter-relações entre pensamento e ação. Por outro lado, considerando este problema do início ao fim, de maneira radical e sem preconceitos, espera desenvolver uma teoria, apropriada à situação contemporânea, envolvendo a relevância dos fatores condicionantes não-teóricos sobre o pensamento. Somente desta maneira podemos esperar superar a vaga, mal definida e estéril forma de relativismo face ao conhecimento científico, o qual prevalece cada vez mais hoje em dia. Esta condição desencorajadora continuará a existir enquanto a ciência não lidar adequadamente com os fatores que condicionam cada produto do pensamento — fatores mais claramente evidenciados pelo próprio desenvolvimento mais recente da ciência. Em vista disso, a Sociologia do Conhecimento se atribuiu a tarefa de resolver o problema do condicionamento social do pensamento, reconhecendo ousadamente estas relações, trazendo-as para o horizonte da própria ciência e usando-as para verificar as conclusões de nossa pesquisa. Enquanto as antecipações concernentes à influência do “background” social permaneceram vagas, inexatas e exageradas, a Sociologia busca reduzir as conclusões tiradas a suas verdades mais sustentáveis e, dessa forma, aproximar-se mais do domínio metodológico sobre os problemas em questão. b) A Sociologia do Conhecimento e a Teoria da Ideologia A Sociologia do Conhecimento está intimamente relacionada, mas se distingue cada vez mais da teoria da ideologia, que também surgiu e se desenvolveu em nossos dias. O estudo das ideologias se atribuiu a tarefa de desvendar os enganos e disfarces mais ou menos conscientes dos grupos de interesse humanos, especialmente os dos partidos políticos. A Sociologia do Conhecimento não está tão interessada nas distorções devidas ao esforço deliberado de iludir, mas nos modos variáveis segundo os quais os objetos se apresentam ao sujeito, de acordo com as diferenças das conformações sociais. Assim, as estruturas mentais são inevitàvelmente formadas diferentemente em conformações sociais e históricas diferentes. De acordo com esta distinção, deixaremos à teoria da ideologia apenas as primeiras formas do “incorreto” e do não-verdadeiro, enquanto a unilateralidade de observação, que

não é devida à intenção mais ou menos consciente, será separada da teoria da ideologia, e tratada como objeto específico do estudo da Sociologia do Conhecimento. Na antiga teoria da ideologia, não se fazia distinção entre estes dois tipos de observação e enunciado falsos. Hoje em dia, contudo, é aconselhável separar mais acentuadamente estes dois tipos — ambos anteriormente descritos como ideologias. Daí falarmos de uma concepção particular e de uma concepção total de ideologia. Incluímos na primeira todas as expressões cuja falsidade é devida à ilusão de si mesmo ou de outros, intencional ou não, consciente, semiconsciente ou inconsciente, que ocorre em um nível psicológico e se assemelha estruturalmente à mentira. Chamamos de particular a esta concepção de ideologia porque ela se refere somente a afirmativas específicas que podem ser consideradas como dissimulações, falsificações ou mentiras, sem que com isso se atinja a integridade da estrutura mental total do sujeito que as enuncia. A Sociologia do Conhecimento, por outro lado, toma como seu problema exatamente esta estrutura mental em sua totalidade, tal como ela aparece nas diferentes correntes de pensamento e grupos histórico-sociais. A Sociologia do Conhecimento não critica o pensamento ao nível das próprias afirmativas, que podem envolver enganos e disfarces, mas as examina ao nível estrutural ou noológico, que vê não como sendo necessariamente o mesmo para todos os homens, mas, ao contrário, como permitindo que um mesmo objeto assuma diferentes formas e aspectos no decurso do desenvolvimento social. Uma vez que a suspeita de falsificação não se inclui na concepção total de ideologia, o uso do termo “ideologia” na Sociologia do Conhecimento não possui intenção moral ou denunciadora. Antes, indica um interesse de pesquisa que leva a se colocar a questão de quando e onde as estruturas sociais vêm expressar-se na estrutura de asserções, e em que sentido as primeiras determinam concretamente as últimas. No domínio da Sociologia do Conhecimentos, iremos, pois, na medida do possível, evitar o uso do termo “ideologia”, devido à sua conotação moral, e, ao invés dele, falaremos da “perspectiva” de um pensador. Com este termo queremos referir-nos ao modo global de o sujeito conceber as coisas, tal como determinado por seu contexto histórico e social.

2. As duas divisões da sociologia do conhecimento a) A Teoria da Determinação Social do Conhecimento A Sociologia do Conhecimento é, por um lado, uma teoria, e, por outro, um método histórico-sociológico de pesquisa. Enquanto teoria, pode assumir duas formas. É, em primeiro lugar, uma investigação puramente empírica, através da descrição e análise estrutural das maneiras pelas quais as relações sociais influenciam, de fato, o pensamento. O que pode levar, em segundo lugar, a uma inquirição epistemológica voltada para o significado desta inter-relação para o problema da validade. É importante notar que estes dois tipos de indagação não estão necessariamente ligados, podendo-se aceitar os resultados empíricos sem se tirar as conclusões epistemológicas. O Aspecto Puramente Empírico da Investigação da Determinação Social do Conhecimento. De acordo com esta classificação e não levando em consideração, na medida do possível, as implicações epistemológicas, apresentaremos a Sociologia do

Conhecimento como uma teoria da determinação social ou existencial do pensamento efetivo. Seria bom começar pela explicação do que significa o termo mais amplo “determinação existencial do conhecimento” (“Seinsverbundenheit1 des Wissens”). Como um fato concreto, ele pode ser melhor abordado por meio de uma ilustração. A determinação existencial do pensamento pode ser encarada como um fato demonstrado naqueles domínios de pensamento em que podemos demonstrar: a) que o processo de conhecer de fato não se desenvolve historicamente de acordo com leis imanentes; que não procede da “natureza das coisas” ou das “possibilidades puramente lógicas”, e que não é dirigido por uma “dialética interna”. Pelo contrário, a emergência e a cristalização do pensamento efetivo são influenciadas em muitos pontos decisivos por fatores extra teóricos dos mais diversos tipos. Tais fatores podem ser chamados fatores existenciais, em contraposição aos fatores puramente teóricos. Tal determinação existencial do pensamento também terá de ser encarada como um fato: b) se a influência desses fatores existenciais sobre o conteúdo concreto do conhecimento for de importância não apenas periférica, se eles forem relevantes não só para a gênese de ideais, mas penetrarem em suas formas e conteúdo e se, além disso, determinarem decisivamente o alcance e a intensidade de nossa experiência e de nossa observação, isto é, aquilo a que nos referimos anteriormente como a “perspectiva” do sujeito. Os Processos Sociais que Influenciam o Processo de Conhecimento. Considerando agora o primeiro conjunto de critérios para a determinação das conexões existenciais do conhecimento, isto é, o papel efetivamente desempenhado pelos fatores extra teóricos na história do pensamento, descobrimos que as mais recentes investigações, empreendidas no espírito da história sociologicamente orientada do pensamento, proporcionam um crescente acúmulo de evidências comprobatórias. Em nossos dias, já parece estar perfeitamente claro o fato que o antigo método de história intelectual, orientado para a concepção a priori de que as mudanças de ideais devessem ser entendidas ao nível das ideais (história intelectual imanente), bloqueava o reconhecimento da penetração do processo social na esfera intelectual. Com a ampliação das provas das falhas de tal assumpção apriorística, um número crescente de casos concretos torna evidente que a) toda formulação de um problema somente é possibilitada por uma experiência humana própria efetiva que envolve tal problema; b) a seleção da multiplicidade de dados implica um ato de vontade do sujeito cognoscente; e c) as forças que emergem da experiência vivida são significativas para a direção que o tratamento do problema tomará. Em conexão com estas investigações, tornar-se-á cada vez mais claro que as forças vivas e as atitudes efetivas subjacentes às atitudes teóricas não são, de maneira alguma, meramente de natureza individual, vale dizer, não têm sua origem, em primeiro lugar, na tomada de consciência de seus interesses pelo indivíduo, no decurso de seu pensar. Antes, emergem dos propósitos coletivos do grupo, subjacentes ao pensamento do indivíduo, e de cuja visão prescrita ele apenas participa. Neste sentido, torna-se mais claro que não se pode compreender corretamente uma grande parte do pensar e do saber, enquanto não se levar em consideração suas conexões com a existência ou com as implicações sociais da vida humana. Seria impossível relacionar todos os múltiplos processos sociais que, no sentido acima, condicionam e conformam nossas teorias, e nos confinaremos, portanto, a uns poucos exemplos.

Podemos encarar a competição como um dos casos representativos em que os processos extra teóricos afetam a emergência e a direção do desenvolvimento do conhecimento. A competição2 controla não apenas a atividade econômica através do mecanismo do mercado, nem somente o curso dos acontecimentos políticos e sociais, mas, igualmente, fornece o impulso motor de diversas interpretações do mundo que, quando se vem a descobrir seu fundamento social, se revelam como expressões intelectuais de grupos conflitantes em luta pelo poder. Na medida em que vemos estes fundamentos sociais emergirem e se tornarem reconhecíveis como forças invisíveis subjacentes ao conhecimento, compreendemos que pensamentos e ideais não resultam da inspiração isolada de grandes gênios. Mesmo à profunda intuição do gênio estão subjacentes as experiências coletivas históricas de um grupo, as quais o indivíduo toma como dadas, mas que não devem, em condição alguma, ser hipostasiadas como “mente de grupo”. Há que observar, numa inspeção mais próxima, que não há apenas um complexo de experiência coletiva com uma tendência exclusiva, como sustentava a teoria do folk spirit. Conhece-se o mundo através de muitas orientações diferentes, porque existem muitas tendências de pensamento simultânea e mutuamente contraditórias (de modo algum de valor igual), lutando entre si, com suas diferentes interpretações da experiência “comum”. Não se há de encontrar, portanto, a chave deste conflito no “objeto em si mesmo” (se assim fosse, seria impossível compreender por que o objeto aparece em tantas refrações diferentes), mas nas várias e diversas expectativas, propósitos e impulsos que nascem da experiência. Se, na nossa explicação, tivermos que nos reportar ao desempenho e contra desempenho dos diferentes impulsos na esfera social, uma análise mais exata mostrará que a causa deste conflito entre os impulsos concretos deve ser procurada não na própria teoria, mas nestes impulsos variados opostos, enraizados, por seu turno, na matriz global dos interesses coletivos. Estas divergências, na aparência “puramente teóricas”, podem, à luz de uma análise sociológica (que descobre os ocultos passos intermediários entre os impulsos originais a observar e a conclusão puramente teórica), ser reduzidas, em sua maior parte, a diferenças filosóficas mais fundamentais. Mas estas últimas estão, por sua vez, invisivelmente guiadas pelo antagonismo e pela competição entre grupos conflitantes concretos. Para mencionar apenas uma das muitas outras bases possíveis de existência coletiva, das quais podem surgir diferentes interpretações do mundo e diferentes formas de conhecimento, podemos indicar o papel desempenhado pela relação entre gerações diferentemente situadas. Em muitos casos, tal fator influencia os princípios de seleção, organização e polarização das teorias e pontos-de-vista predominantes em uma dada sociedade, num determinado momento. (A este ponto é dada uma atenção mais detalhada no ensaio do autor, “Das Problem der Generationem”).3 Do conhecimento advindo de nossos estudos sobre competição e gerações, concluímos que o que parece ser, do pontode-vista da história intelectual imanente, a “dialética interna” no desenvolvimento das ideais, torna-se, do ponto-de-vista da Sociologia do Conhecimento, o movimento rítmico na história das ideais enquanto afetadas pela competição e pela sucessão das gerações. Ao considerar a relação entre formas de pensamento e formas de sociedade, lembraremos a observação de Max Weber4 de que o interesse na sistematização pode ser em grande parte atribuído a um “background” escolástico, que o interesse pelo pensamento “sistemático” é correlato ao das escolas científicas e jurídicas de pensamento, e que a

origem desta forma organizadora de pensamento repousa na continuidade das instituições pedagógicas. A esta altura deveríamos também mencionar o relevante empreendimento de Max Scheler,5 visando a estabelecer a relação entre as várias formas de pensamento e certos tipos de grupos que são os únicos em que elas podem surgir e ser elaboradas. Isto deve bastar para indicar o que se quer dizer com a correlação entre, por um lado, tipos de conhecimento e de ideais e, por outro, os grupos e processos sociais de que são característicos. A Penetração Essencial do Processo Social na “Perspectiva” do Pensamento. Os fatores existenciais são de importância meramente periférica no processo social, devem ser encarados, meramente, como condicionando a origem ou o desenvolvimento fatual de ideais (isto é, são eles de relevância meramente genética), ou penetram na “perspectiva” de afirmações particulares concretas? Esta é a questão que ora tentaremos responder. A gênese histórica e social de uma ideia somente seria irrelevante para sua validade última se as condições temporais e sociais de sua emergência não tivessem efeito algum sobre seu conteúdo e forma. Sendo este o caso, só se distinguiriam dos períodos quaisquer da história do conhecimento humano pelo fato de, no período mais remoto, ainda se desconhecerem certas coisas e ainda existirem certos erros, que foram totalmente corrigidos pelo conhecimento posterior. Esta relação simples entre um período de conhecimento anterior incompleto e um posterior completo pode ser, em larga medida, apropriada quanto às Ciências Exatas (embora, hoje em dia, a noção da estabilidade da estrutura categórica das Ciências Exatas esteja, em comparação com a lógica da Física clássica, consideràvelmente abalada). Para a história das Ciências Culturais, entretanto, os estágios anteriores não são tão simplesmente suplantados pelos estágios posteriores, e não é tão facilmente demonstrável que erros anteriores tenham sido subsequentemente corrigidos. Cada época tem sua abordagem fundamentalmente nova e seu ponto-de-vista característico, e, consequentemente, vê o “mesmo” objeto de uma perspectiva nova. Por conseguinte, a tese de que o processo histórico-social é de essencial importância para a maioria dos domínios do conhecimento tem apoio no fato de que podemos observar, quanto à maioria das afirmações concretas dos sêres humanos, quando e onde surgiram, quando e onde foram formuladas. A história da arte tem mostrado, bastante conclusivamente, que se pode definitivamente datar as formas artísticas de acordo com seu estilo, uma vez que cada forma só é possível em condições históricas dadas e revela as características de tal época. O que é verdadeiro quanto à arte permanece válido, mutatis mutandis, quanto ao conhecimento. Assim como na arte podemos datar formas particulares com base na sua associação definida com um período particular da história, podemos, no caso do conhecimento, detectar, com crescente exatidão, a perspectiva devida a um contexto histórico particular. Mais ainda, podemos determinar, pela utilização da pura análise da estrutura de pensamento, onde e quando o mundo se apresentou de tal modo, e somente deste, ao sujeito que fez a afirmação, e frequentemente a análise pode prosseguir até que se responda à questão mais inclusiva: por que o mundo se apresentou precisamente de tal modo? Enquanto a afirmativa (para se citar o caso mais simples) de que duas vezes dois são quatro não indica quando, onde e por quem foi formulada, sempre é possível, no caso de uma obra de Ciências Sociais, dizer se foi inspirada pela “escola histórica”, pelo

“positivismo” ou pelo “marxismo”, e de que estágio, no desenvolvimento de cada um destes, ela data. Em afirmativas deste tipo, podemos falar de uma “infiltração da posição social” do investigador nos resultados de seu estudo e da “relatividade-situacional” (“Situations-gebundenheit”), ou a relação destas afirmativas com a realidade subjacente. Neste sentido, “perspectiva” significa a maneira pela qual se vê um objeto, o que se percebe nele, e como alguém o constrói em pensamento. A perspectiva é, portanto, algo mais do que a determinação meramente formal do pensamento. Refere-se, também, a elementos qualitativos da estrutura de pensamento, elementos que devem ser necessariamente negligenciados por uma lógica puramente formal. São precisamente tais fatores os responsáveis pelo fato de que duas pessoas possam — ainda que apliquem de forma idêntica as mesmas regras lógico-formais, como, por exemplo, a lei da contradição ou a fórmula do silogismo — julgar o mesmo objeto de forma bastante diferente. Dentre os traços pelos quais se pode caracterizar a perspectiva de uma afirmação, e dentre os critérios que nos auxiliarão a atribuí-la a uma dada época ou situação, exporemos apenas uns poucos exemplos: a análise do significado dos conceitos utilizados; o fenômeno do contra conceito; a ausência de certos conceitos; a estrutura do aparato categórico; os modelos dominantes de pensamento; o nível de abstração; e a ontologia pressuposta. Por meio de uns poucos exemplos, pretendemos mostrar, no que se segue, a aplicabilidade destes traços e critérios identificadores na análise da perspectiva. Será mostrado, ao mesmo tempo, até que ponto a posição social do observador afeta seu modo de ver. Começaremos com o fato de que a mesma palavra, ou na maioria dos casos o mesmo conceito, significa coisas muito diferentes quando usados por pessoas diferentemente situadas. Quando, nos primeiros anos do século XIX, um conservador alemão do estilo antigo falava de “liberdade”, queria com isto dizer o direito de cada Estado viver de acordo com seus privilégios (liberdades). Se pertencesse ao movimento protestante e românticoconservador, compreenderia a expressão como “liberdade interna”, isto é, o direito de cada indivíduo viver de acordo com sua personalidade individual. Ambos os grupos pensavam em termos do “conceito qualitativo de liberdade” porque entendiam que liberdade significava o direito de manter sua individualidade histórica ou íntima. Quando um liberal do mesmo período usava o termo “liberdade”, estava pensando exatamente em liberdade destes privilégios que ao conservador ao estilo antigo pareciam ser as próprias bases de toda liberdade. A concepção liberal era, então, uma “concepção igualitária de liberdade”, para a qual “ser livre” queria dizer que todos os homens têm os mesmos direitos fundamentais à sua disposição. A concepção liberal de liberdade era a de um grupo que buscava subverter a ordem social não-igualitária, externa e legal. Por outro lado, a ideia conservadora de liberdade era a de um estrato que não desejava ver quaisquer mudanças na ordem externa das coisas, esperando que os acontecimentos continuassem em sua singularidade tradicional; a fim de sustentar as coisas como estavam, tinham igualmente que desviar as questões referentes à liberdade do campo político externo para o campo nãopolítico interno. O fato de que o liberal visse apenas um, e o conservador visse apenas outro lado do conceito e do problema, está clara e comprovadamente ligado a suas respectivas posições na estrutura política e social.6 Em suma, mesmo na formulação dos conceitos, o ângulo de visão é guiado pelos interesses do observador. Isto é, o pensamento é dirigido de

acordo com as expectativas de um grupo social específico. Assim, entre os possíveis dados da experiência, cada conceito incorpora apenas aqueles que, à luz dos interesses do investigador, seja essencial dominar e abranger. Daí, por exemplo, o conceito conservador de Volksgeist ter sido provavelmente formulado como um contra conceito em oposição ao conceito progressista de “espírito da época” (Zeitgeist). A própria análise dos conceitos em um dado esquema conceptual proporciona a mais direta aproximação à perspectiva de estratos distintamente situados. A ausência de certos conceitos frequentemente indica não apenas a ausência de certos pontos-de-vista, mas também a ausência de um impulso definido para se atingir uma compreensão de certos problemas vitais. Assim, por exemplo, o aparecimento relativamente tardio do conceito de “social” da história comprova o fato de não se haver até então colocado as questões implicadas no conceito de “social”, e, da mesma forma de não existir, até então, um modo de experiência definido, denotado pelo conceito de “social”. Entretanto, não só os conceitos, em seus conteúdos concretos, divergem uns dos outros, como também as categorias básicas de pensamento podem igualmente divergir. Assim, por exemplo, o conservadorismo alemão do início do século XIX (tiramos a maioria de nossas ilustrações desta época porque ela tem sido, do ponto-de-vista sociológico, mais completamente estudada do que qualquer outra), e quanto a isto também o conservadorismo contemporâneo tende a usar categorias morfológicas que não rompem a totalidade concreta dos dados da experiência, mas, pelo contrário, preservam-na em toda a sua singularidade. Opondo-se à abordagem morfológica, a abordagem analítica, característica dos partidos de esquerda, rompeu cada totalidade concreta a fim de atingir unidades menores, mais gerais, que pudessem ser então recombinadas através da categoria de causalidade ou de integração funcional. É nossa tarefa aqui não só indicar o fato de que pessoas em posições sociais diferentes pensam diferentemente, mas tornar inteligíveis as causas de sua diferente ordenação do material das experiências em categorias diferentes. Os grupos de tendência esquerdista intentam fazer algo de novo do mundo como é dado, e, por conseguinte, desviam o olhar das coisas como estão, tornam-se abstratos e atomizam a situação dada em seus elementos componentes, a fim de recombiná-los originalmente. Somente aparece configurativa ou morfologicamente aquilo que estamos preparados a aceitar sem maiores questões e que, fundamentalmente, não desejamos mudar. Mais ainda, pretende-se estabilizar por meio da concepção configurativa justamente aqueles elementos que ainda estão em fluxo e, ao mesmo tempo, invocar a aprovação para o que existe porque é como é. Tudo isto torna bastante claro a que ponto até mesmo as categorias e princípios de organização abstratos, aparentemente tão distantes da luta política, têm sua origem na natureza pragmática e meta teórica da mente humana e nos recônditos mais profundos da psique e da consciência. É por isso que escapa à questão falar-se aqui de ilusão consciente, no sentido de criar ideologias. O próximo fator que pode servir para caracterizar a perspectiva de pensamento é o assim chamado modelo de pensamento; isto é, o modelo implícito na mente de uma pessoa, quando se põe a refletir sobre um objeto. É bem sabido que, por exemplo, uma vez formulada a tipologia de objetos nas Ciências Naturais, e que as categorias e métodos de pensamento derivados destes tipos se tornaram modelos, intentou-se resolver todos os problemas em outros campos da existência,

incluindo o social, através deste método. (Esta tendência é representada pela concepção mecânico-atomista dos fenômenos sociais). É importante observar que quando isso aconteceu, como em todos os casos similares, nem todos estratos da sociedade se orientaram, de saída, para este modelo único de pensamento. Durante este período histórico nada se ouvia da nobreza territorial, das classes deslocadas e do campesinato. O novo caráter de desenvolvimento cultural e as formas ascendentes de orientação face ao mundo pertenciam a um modo de vida que não o seu. As formas da ascendente perspectiva de mundo modeladas pelos princípios da ciência natural chegaram a estas classes como se viessem de fora. Na medida em que o intercurso das forças sociais trouxe para a linha de frente da história outros grupos, representando as classes mencionadas acima e expressando sua situação de vida, os modelos de pensamento opostos, como, por exemplo, o “organicista” e o “personalista”, foram lançados contra o tipo “funcional-mecanicista” de pensamento. Dessa forma, Stahl, por exemplo, que aparece no ápice deste desenvolvimento, já era capaz de estabelecer conexões entre modelos de pensamento e correntes políticas.7 Por trás de cada pergunta e resposta definidas há de se encontrar, implícita ou explicitamente, um modelo de como o pensamento proveitoso pode ser desenvolvido. Se se pudesse traçar em detalhe, em cada caso individual, a origem e o raio da difusão de um determinado modelo de pensamento, descobriríamos a peculiar afinidade que tem para com a posição social de determinados grupos e sua maneira de estes interpretarem o mundo. Com estes grupos queremos referir-nos não apenas a classes, como o faria um tipo dogmático de marxismo, mas também a gerações, grupos de status, seitas, grupos ocupacionais, escolas, etc. A menos que se preste cuidadosa atenção a grupamentos sociais deste tipo, altamente diferenciados, e às correspondentes diferenciações de conceitos, categorias e modelos de pensamento, vale dizer, a menos que se refine o problema da relação entre superestrutura e infraestrutura, será impossível demonstrar que, correspondendo à riqueza de tipos de conhecimento e perspectivas aparecidos no decorrer da história, existem diferenciações similares na infraestrutura da sociedade. É claro que não pretendemos negar que o mais importante, dentre os grupamentos e unidades sociais mencionados acima, seja a estratificação de classes, uma vez que, em última análise, todos os demais grupos sociais surgem e são transformados como partes das condições mais básicas de produção e dominação. Não obstante, o investigador que, face à variedade de tipos de pensamento, tenta situá-los corretamente, não pode mais se contentar com o conceito indiferenciado de classe, mas deve considerar as unidades e fatores sociais existentes, além dos de classe, que condicionam a posição social. Encontra-se outra característica da perspectiva através da investigação do nível de abstração, além do qual uma dada teoria não progride, ou do grau em que ela resiste a uma formulação teórica sistemática. Nunca é por acaso que uma certa teoria deixa, total ou parcialmente, de se desenvolver para além de um determinado estágio de relativa abstração e oferece resistência a que tendências posteriores se tornem mais concretas, seja censurando esta tendência, ou declarando-a irrelevante. Também aqui é significativa a posição social do pensador. Pode-se mostrar, precisamente no caso do marxismo e da relação que mantém com as descobertas da Sociologia do Conhecimento, como uma inter-relação só pode muitas

vezes ser formulada numa forma de concretude que é própria a um ponto-de-vista particular. Pode ser demonstrado, no caso do marxismo, que um observador, cuja visão esteja presa a uma dada posição social, jamais conseguirá por si mesmo assinalar os aspectos mais gerais e teóricos, implícitos nas observações concretas que realiza. Seria de esperar, por exemplo, que há muito tempo o marxismo tivesse formulado de maneira mais teórica as descobertas fundamentais da Sociologia do Conhecimento concernentes à relação entre o pensamento humano e as condições de existência em geral, principalmente porque sua descoberta da teoria da ideologia também implicava pelo menos as preliminares da Sociologia do Conhecimento. Que implicação jamais pudesse ser expressa e elaborada teoricamente, e que, no máximo, apenas foi enunciada parcialmente, deve-se ao fato de que, no momento concreto, esta relação só fosse percebida no pensamento do oponente. Além do mais, isto foi provavelmente devido a uma relutância subconsciente em meditar sobre as implicações de uma percepção concretamente formulada, até o ponto em que as formulações teóricas latentes nesta percepção fossem suficientemente claras para produzir um efeito inquietante na posição do próprio pensador. Vemos, assim, como um foco estreito imposto por uma determinada posição e os impulsos dirigidos que governam suas meditações tendem a obstruir a formulação geral e teórica destas visões e a restringir a capacidade de abstração. Há uma tendência a sustentar uma visão particular imediatamente obtida e a impedir que se coloque a questão sobre se o fato de estar o conhecimento ligado à existência não é inerente à estrutura humana de pensamento em si. Além disso, a tendência do marxismo a se intimidar com uma formulação geral sociológica pode muitas vezes ser ligada a uma limitação similar que um dado ponto-de-vista impõe a um método de pensar. Por exemplo, não se permite a ninguém levantar a questão de se a “reificação” (Verdinglichung), tal como foi elaborada por Marx e Lukács, é um fenômeno de consciência mais ou menos geral e se a reificação capitalista é, meramente, uma de suas formas particulares. Enquanto esta forte ênfase na concretude e no historicismo surge de uma localização social particular, a tendência oposta, ou seja o voo imediato aos mais altos domínios de abstração e de formalização, pode levar, como o marxismo enfatizou acertadamente, a um obscurecimento da situação concreta e de seu caráter único. Isto poderia ser mais uma vez demonstrado no caso da “Sociologia Formal”. Não desejamos de forma alguma colocar em questão a legitimidade da Sociologia Formal como um tipo possível de Sociologia. Quando, entretanto, face à tendência de introduzir maior concretude na formulação de problemas sociológicos, ela se propõe como a única Sociologia, está inconscientemente guiada por motivos similares aos que impediam seu precedente histórico, o modo de pensamento burguês-liberal de ultrapassar, em sua teoria, um modo de observação abstrato e generalizante. Ela se intimida de lidar histórica, concreta e individualmente com os problemas da sociedade, com medo de que seus próprios antagonismos internos, por exemplo os antagonismos do capitalismo, se tornem visíveis. Assemelha-se nisto à crucial discussão burguesa do problema da liberdade, onde normalmente se colocava e se coloca o problema apenas teórica e abstratamente. E mesmo quando colocada dessa maneira, a questão da liberdade é sempre de direitos políticos, antes que sociais, uma vez que se se considerasse a última esfera, os fatores de propriedade e de posição de classe, em sua relação com a liberdade e a igualdade, viriam inevitàvelmente a surgir.

Em resumo: a abordagem de um problema, o nível em que vem a ser formulado, o estágio de abstração e o estágio de concretude que se espera atingir estão todos, e da mesma maneira, ligados à existência social. Seria finalmente apropriado lidar com o substrato subjacente a todos os modos de pensamento, com suas ontologias pressupostas e suas diferenciações sociais. É precisamente porque o substrato ontológico é fundamentalmente relevante para o pensar e o perceber que não podemos, em espaço limitado, lidar adequadamente com os problemas daí surgidos; reportamo-nos, pois, a estudos mais elaborados em outro local.8 Aqui basta dizer que, apesar de se justificar o desejo da Filosofia moderna em elaborar uma “ontologia básica”, é perigoso abordar tais problemas ingenuamente, sem primeiro levar em consideração os resultados sugeridos pela Sociologia do Conhecimento. Pois se abordamos ingenuamente este problema, o resultado quase inevitável será o de, ao invés de obtermos uma autêntica ontologia básica, tornamo-nos vítimas de uma ontologia acidental arbitrária que o processo histórico casualmente nos possibilite. Estas reflexões devem ser suficientes, a esta altura, para esclarecer a noção de que as condições de existência afetam não somente a gênese histórica das ideais, mas constituem uma parte essencial dos produtos do pensamento e se fazem sentir em seu conteúdo e forma. Os exemplos que acabamos de citar devem servir para esclarecer a estrutura peculiar e as funções da Sociologia do Conhecimento. A Abordagem Especial Característica da Sociologia do Conhecimento. Duas pessoas, desenvolvendo uma discussão num mesmo universo de discurso — correspondente às mesmas condições histórico-sociais — podem e devem discutir de maneira bastante diversa de duas pessoas identificadas com posições sociais diversas. Estes dois tipos de discussão, isto é, entre participantes social e intelectualmente homogêneos e entre participantes social e intelectualmente heterogêneos, devem ser claramente distinguidos. Não é por acaso que a distinção entre estes dois tipos de discussão foi reconhecida explicitamente como um problema, numa época como a nossa. Max Scheler chamou nosso período contemporâneo de “época da igualação” (Zeitalter des Ausgleiches), o que, aplicado a nossos problemas, significa que o nosso mundo é um mundo no qual os grupamentos sociais, que até então viviam mais ou menos isolados uns dos outros, cada qual se tendo, e ao seu modo de pensamento, por absolutos, estão agora, de uma forma ou de outra, se interpenetrando mutuamente. Não apenas o Oriente e o Ocidente, não apenas as várias nações do Ocidente, mas também os vários estratos sociais destas nações, anteriormente mais ou menos isolados, e, finalmente, também os diferentes grupos ocupacionais dentro destes estratos e os grupos intelectuais neste mundo altamente diferenciado — todos eles foram agora arrancados do estado autossuficiente e complacente, no qual se tinham por absolutos, e foram forçados a manter a si mesmos e as suas ideais, face à investida destes grupos heterogêneos. Mas como desenvolvem esta luta? No que se refere a antagonismos intelectuais, eles normalmente o fazem, afora umas poucas exceções, “discutindo sem se reconhecerem”; isto é, mesmo estando mais ou menos cientes de que a pessoa com quem discutem o assunto representa outro grupo, e de que é provável que sua estrutura mental, como um todo, seja muitas vezes bastante diferente quando se discute algo concreto, falam como se suas diferenças se confinassem à questão específica em pauta, em torno da qual se cristalizou

seu desacordo presente. Desprezam o Jato de que seu antagonista difere deles em seu aspecto total e não apenas na opinião acerca do ponto em discussão. Isto indica que há também tipos de intercurso intelectual entre pessoas heterogêneas. No primeiro, as diferenças na estrutura mental total permanecem obscuramente no fundo, na medida em que dizem respeito ao contato entre os participantes. Para ambos, a consciência se cristaliza em torno da circunstância concreta. O “objeto” tem um significado mais ou menos diferente para cada um dos participantes porque se desenvolve a partir do conjunto de seus respectivos quadros de referência, e, em consequência, o significado do objeto na perspectiva da outra pessoa permanece, pelo menos em parte, obscuro. Portanto, a “discussão sem reconhecimento” é um fenômeno inevitável da “época da igualação”. Por outro lado, pode-se abordar os participantes divergentes com a intenção de usar cada ponto teórico de contato como uma ocasião para remover os desentendimentos, averiguando a origem das diferenças. Extrairemos, assim, os pressupostos variáveis implicados nas duas respectivas perspectivas como consequências das duas situações sociais diferentes. Em tais casos, o sociólogo do conhecimento não encara seu antagonismo na maneira usual, de acordo como a qual se lida diretamente com os argumentos do outro. Pelo contrário, procura compreendê-lo através da definição da perspectiva total, vendo-a como uma função de uma determinada posição social. Devido a esse procedimento, tem-se acusado o sociólogo do conhecimento de evitar a questão real, de não se preocupar com o assunto efetivo em discussão, mas de buscar, ao invés disso, por trás do assunto imediato de debate, a base total de pensamento do arguidor, a fim de a revelar como apenas uma dentre muitas bases de pensamento e como não mais do que uma perspectiva parcial. Passar por cima das afirmações dos oponentes e não considerar os argumentos efetivos é, em certos casos, legítimo, onde quer que, devido à ausência de uma base comum de pensamento, não haja um problema comum. A Sociologia do Conhecimento busca ultrapassar a “discussão sem reconhecimento” dos vários antagonistas, assumindo, como seu tema explícito de investigação, a descoberta das origens dos desentendimentos parciais que nunca seriam percebidos pelos disputantes, devido à sua preocupação com o assunto imediato do debate. E supérfluo ressaltar que só se justifica que o sociólogo do conhecimento acompanhe os argumentos até à própria base de pensamento e à posição dos disputantes no caso e enquanto exista uma disparidade real entre as perspectivas da discussão, resultando num desentendimento fundamental. Enquanto a discussão procede da mesma base de pensamento e se situa dentro do mesmo universo de discurso, sua intervenção é desnecessária. Aplicada desnecessariamente, podese tornar um meio de desviar a discussão. A Aquisição de Perspectiva como uma Precondição para a Sociologia do Conhecimento. Para um filho de camponês que cresceu dentro dos estreitos limites de sua vila e que passa a vida inteira no lugar onde nasceu, o modo de pensar e de falar característico a esta aldeia é algo que ele toma inteiramente como dado. Mas para o jovem camponês que vai para a cidade e se adapta gradativamente à nova vida, o modo rural de viver e pensar deixa de ser algo a ser tomado como dado. Conquistou um certo desligamento deste, e agora distingue, talvez bastante conscientemente, entre modos “rural” e “urbano” de pensamento e de ideais. Há nesta distinção os primeiros indícios daquela aproximação

que a Sociologia do Conhecimento procura desenvolver detalhadamente. O que dentro de um dado grupo se aceita como absoluto aparece, a quem está de fora, como condicionado pela situação do grupo e é reconhecido como parcial (no caso acima, como “rural”). Este: tipo de conhecimento pressupõe uma perspectiva mais desligada. Esta perspectiva desligada pode ser adquirida das seguintes maneiras: a) um membro de um grupo deixa sua posição social (ascendendo a uma classe mais alta, emigrando, etc.); b) alteram-se as bases de existência de todo um grupo com relação a suas normas e instituições tradicionais;9 c) dois ou mais modos socialmente determinados de interpretação, dentro de uma mesma sociedade, entram em conflito e, criticando um ao outro, se tornam mutuamente transparentes e cada um estabelece perspectivas com referência ao outro. Resulta daí que uma perspectiva desligada — através da qual se descobrem os contornos dos modos de pensamento contrastantes — entra na esfera de possibilidade para todas as diferentes posições e passa a ser, mais tarde, o modo de pensamento reconhecido. Já havíamos indicado que a gênese social da Sociologia do Conhecimento repousa primariamente na última possibilidade mencionada. Relacionismo. O que já foi dito dificilmente deixaria qualquer dúvida quanto ao que se tem em mente quando se designa o procedimento da Sociologia do Conhecimento como “relacional”. Quando o menino camponês urbanizado caracteriza como “rústicas” certas opiniões sociais, filosóficas ou políticas encontradas entre seus parentes, ele não mais questiona tais opiniões como um participante homogêneo, isto é, lidando diretamente com o conteúdo específico do que é dito. Antes, as relaciona a um certo modo de interpretar o mundo que, por sua vez, está, em última análise, relacionado a uma certa estrutura social que constitui a sua situação. Eis aí um exemplo do procedimento “relacional”. Abordaremos mais adiante o fato de que, quando tratamos desta forma com asserções, não está implícito que elas sejam falsas. A Sociologia do Conhecimento somente supera aquilo que, de uma forma tão crua, as pessoas frequentemente fazem hoje em dia, na medida em que consciente ou sistematicamente subordina todos os fenômenos intelectuais, sem exceção, à seguinte questão: em conexão com que estrutura social surgiram e são válidos? Não se deve confundir o relacionar ideais individuais à estrutura total de um dado objeto histórico-social com um relativismo filosófico que negue a validade de quaisquer padrões e da existência de ordem no mundo. Assim como o fato de toda mensuração no espaço depender da natureza da luz não significa que nossas medidas são arbitrárias, mas apenas que somente são válidas em relação à natureza da luz, da mesma forma se aplica a nossas argumentações não o relativismo, no sentido de arbitrariedade, mas o relacionismo. Relacionismo não significa que não haja critérios de verdade e erro numa discussão. Insiste, entretanto, no fato de que é da natureza de certas afirmativas a impossibilidade de se as enunciar de modo absoluto, mas apenas em termos da perspectiva de uma dada situação. Particularização. Tendo descrito o processo relacional, tal como é concebido pela Sociologia do Conhecimento, inevitavelmente se coloca a pergunta: o que nos pode garantir a validade de uma afirmativa que não conheceríamos se não fôssemos capazes de relacionála ao ponto-de-vista do enunciador? Dizemos alguma coisa a respeito da verdade ou falsidade de uma afirmação quando demonstrarmos que deve ser imputada ao liberalismo ou ao marxismo? A esta questão podem ser dadas três respostas:

a) Pode-se dizer que se nega a validade absoluta de uma afirmação quando é demonstrada sua relação estrutural a uma dada situação social. Neste sentido, há, de fato, na Sociologia do Conhecimento e na teoria da ideologia uma corrente que aceita a demonstração deste tipo de relação como uma refutação da afirmativa oponente, e que usaria tal método como um recurso para anular a validade de todas as afirmações. b) Pode haver outra resposta, em oposição a esta, ou seja, a de que as imputações, estabelecidas pela Sociologia do Conhecimento, entre uma afirmação e seu enunciador nada nos dizem com referência ao valor de verdade da afirmação, uma vez que a maneira pela qual ela se origina não afeta sua validade. O fato de uma afirmação ser liberal ou conservadora não nos dá, em si ou por si mesmo, nenhuma indicação quanto à sua correção. c) Há uma terceira forma possível de julgar o valor das afirmações feitas pelo sociólogo do conhecimento, a qual representa o nosso ponto-de-vista. Difere da primeira visão por mostrar que a mera demonstração e identificação fatuais da posição social do enunciador ainda nada nos diz quanto ao valor de verdade de sua afirmativa. Implica, apenas, a suspeita de que esta afirmação poderia representar meramente uma visão parcial. Em oposição à segunda alternativa, sustenta que seria incorreto encarar a Sociologia do Conhecimento como dando não mais que uma descrição das condições efetivas das quais surge a afirmativa (gênese fatual). Toda a análise sociológica do conhecimento completa e profunda delimita, tanto em conteúdo quanto em estrutura, a visão a ser analisada. Em outras palavras, tenta não apenas estabelecer a existência da relação, mas, ao mesmo tempo, particularizar seu alcance e a extensão de sua validade. As implicações deste fato serão, a seguir, desenvolvidas em maiores detalhes. O que a Sociologia do Conhecimento intenta com sua análise foi claramente exposto em nosso exemplo do jovem camponês. A descoberta e a identificação de seu anterior modo de pensamento como “rural”, em contraste com o “urbano”, já envolvem a noção de que as perspectivas diferentes não são particulares somente por pressupor esferas diferentes de visão e diferentes setores da realidade total, mas, igualmente, porque os interesses e os poderes de percepção das diferentes perspectivas estão condicionados pelas situações sociais nas quais surgiram e para as quais são relevantes. Já nesse nível o processo relacional tende a se tornar um processo particularizante, pois não se está somente relacionando a afirmativa a um ponto-de-vista, mas se está, ao fazê-lo, restringindo sua pretensão de validade, antes absoluta, a um âmbito mais estreito. Uma Sociologia do Conhecimento totalmente desenvolvida segue a mesma abordagem por nós ilustrada acima com o caso do jovem camponês: apenas o faz com um método deliberado. Com o auxílio de uma análise da perspectiva, consistentemente elaborada, a particularização adquire um instrumento orientador e um conjunto de critérios para tratar dos problemas de imputação. O alcance e grau de compreensão de cada um destes vários pontos-de-vista tornam-se mensuráveis e delimitáveis através de seu aparato categórico e da variedade de significados que cada um apresenta. A orientação para certos significados e valores, inerentes a uma dada posição social (o modo de ver e a atitude condicionados pelos propósitos coletivos de um grupo), e as razões concretas das diferentes perspectivas que a mesma situação apresenta para as diferentes posições, tornam-se, assim, ainda mais determináveis, inteligíveis e suscetíveis de estudo metódico, graças ao aperfeiçoamento da Sociologia do Conhecimento.10

Com os refinamentos metodológicos crescentes da Sociologia do Conhecimento, a determinação da particularidade de uma perspectiva torna-se um índice cultural e intelectual da posição do grupo em questão. A Sociologia do Conhecimento avança, por intermédio da particularização, mais um passo em relação à anterior determinação dos fatos, à qual se limita o mero relacionismo. Cada passo analítico empreendido no espírito da Sociologia do Conhecimento chega a um ponto em que esta se torna mais que uma descrição sociológica de fatos que nos informam como certas visões se originaram de um dado milieu; ela passa a ser igualmente uma crítica, pela redefinição do alcance e limites da perspectiva implícita em determinadas afirmativas. Neste sentido, as análises características da Sociologia do Conhecimento não são de modo algum irrelevantes para a determinação da validade de uma afirmação; mas, por outro lado, tais análises, por si sós, não revelam completamente a verdade, porque a mera delimitação das perspectivas não é de modo algum um substitutivo para a discussão direta e imediata dos pontos-de-vista divergentes ou para o exame direto dos fatos. A função das descobertas da Sociologia do Conhecimento está, e isto até agora não foi compreendido claramente, entre, de um lado, a irrelevância para o estabelecimento da verdade e, do outro, a total adequação para determiná-la. Tal pode ser demonstrado por uma cuidadosa análise da intenção original das afirmações singulares da Sociologia do Conhecimento e pela natureza de suas descobertas. Uma análise baseada na Sociologia do Conhecimento é o primeiro passo preparatório que conduz à discussão direta, numa época ciente da heterogeneidade de seus interêsses e da desunidade de suas bases de pensamento, época que busca atingir essa unidade num nível mais elevado. b) As Consequências Epistemológicas da Sociologia do Conhecimento Sustentávamos, no parágrafo inicial deste capítulo, que era possível apresentar a Sociologia do Conhecimento como uma teoria empírica das relações efetivas do conhecimento com a situação social sem levantar quaisquer problemas epistemológicos. Partindo de tal assunção, todos os problemas epistemológicos foram evitados ou colocados num segundo plano. É possível tal reserva de nossa parte, e é mesmo desejável tal isolamento artificial de um conjunto puramente abstrato de problemas, na medida em que nosso objetivo seja somente o de uma análise desinteressada de determinadas relações concretas, sem distorções oriundas de preconceitos teóricos. Todavia, uma vez que as relações fundamentais entre as situações sociais e os aspectos correspondentes estão fidedignamente estabelecidas, nada nos resta senão devotarmo-nos a dar franca relevância às valorações que delas decorrem. Quem quer que tenha condições de captar a interconexão dos problemas que surgem, inevitàvelmente, da interpretação de dados empíricos, e quem, ao mesmo tempo, não esteja ofuscado pela complexidade da especialização no ensino moderno — a qual muitas vezes impede um acesso direto aos problemas — deve ser notado que os fatos apresentados na seção denominada Particularização são, por sua própria natureza, difíceis de serem aceitos como meros fatos. Eles transcendem o puro fato e exigem maior reflexão epistemológica. Temos, por um lado, o puro fato de que, quando se assinala, por meio da Sociologia do Conhecimento, uma relação entre uma afirmativa e uma situação, existe, contida na própria intenção deste procedimento, a tendência para “particularizar” sua validade. Fenomenologicamente, pode-se tomar conhecimento deste fato sem se questionar a pretensão de validade nele implícita. Mas, por outro lado, o fato posterior de que a posição do observador influencia os resultados do pensamento, e o fato (intencionalmente tratado por nós em maiores detalhes) de que a validade parcial de uma dada perspectiva é

perfeitamente determinável, devem levar-nos, mais cedo ou mais tarde, a levantar a questão da relevância deste problema para a epistemologia. Nossa opinião, pois, não é que a Sociologia do Conhecimento irá, por sua própria natureza, superar a inquirição epistemológica e noológica, mas, pelo contrário, que ela tem feito certas descobertas que possuem uma relevância mais do que meramente fatual e que não podem ser tratadas adequadamente antes que sejam revistos alguns dos preconceitos e concepções da epistemologia contemporânea. Descobrimos, no fato de sempre atribuirmos a afirmativas particulares uma validade somente parcial, aquele elemento novo que nos impele a rever os pressupostos fundamentais da epistemologia contemporânea. Estamos aqui lidando com um caso em que a pura determinação de um fato (o fato da parcialidade de uma perspectiva, demonstrável em afirmações concretas) pode tornar-se relevante para a determinação da validade de uma proposição, e em que a natureza da gênese de uma afirmativa pode originar um significado (wo eine Genesis Sinngenesis zu sein vermag). Isto cria, para se dizer o mínimo, um obstáculo para a construção de uma esfera de validade na qual os critérios de verdade são independentes das origens. Será impossível, em termos dos pressupostos dominantes na Filosofia atual, utilizar esta nova visão na epistemologia, por estar a teoria moderna de conhecimento baseada na suposição de que a mera descoberta de fatos não tem relevância alguma para a validade. Sob a sanção deste artigo de fé, qualquer enriquecimento de conhecimento nascido da pesquisa concreta, que — encarado de um ponto-de-vista mais amplo — ouse abrir considerações mais fundamentais, é estigmatizado com o termo “sociologismo”. Uma vez que se decide, e se eleva ao domínio do a priori, que nada que tenha relevância para a validade de afirmações pode surgir do mundo de fatos empíricos, tornamo-nos cegos à observação de que este a priori mesmo era, originalmente, uma hipostasia prematura de uma inter-relação fatual, derivada de um tipo específico de afirmativa e formulada, apressadamente, como axioma epistemológico. Com a paz de espírito proveniente da premissa a priori de que a Epistemologia independe das ciências específicas “empíricas”, a mente se fecha, de uma vez por todas, à percepção que um empirismo mais amplo poderia trazer. O resultado é que se deixa de ver que esta teoria de autossuficiência, esta atitude de autopreservação, não serve a nenhum outro propósito que o de baluarte para um certo tipo de Epistemologia acadêmica que, em seus últimos estágios, tenta preservar-se do colapso que poderia resultar de um empirismo mais avançado. Os defensores desta visão antiquada menosprezam o fato de que, dessa forma, estão perpetuando não a Epistemologia como tal, que estariam preservando de uma revisão pelas ciências individuais, mas, antes, meramente um tipo específico de Epistemologia, cuja singularidade consiste, apenas, no fato de ter estado anteriormente em conflito com um estágio mais remoto de um empirismo mais estreitamente concebido. Estabilizou, então, a concepção de conhecimento derivada de apenas um segmento específico da realidade e que representava tão-só uma das muitas variedades possíveis de conhecimento. A fim de descobrir onde a Sociologia do Conhecimento nos pode levar, devemos mais uma vez nos reportar ao problema da alegada primazia da Epistemologia sabre as ciências específicas. Tendo iniciado a discussão do problema com um exame crítico, estaremos em condições de formular, pelo menos esquematicamente, uma apresentação positiva da Epistemologia já implícita no próprio problema da Sociologia do Conhecimento. Devemos antes aduzir aqueles argumentos que enfraquecem ou pelo menos colocam em

questão a autonomia absoluta da Epistemologia quanto às ciências específicas, e sua primazia sobre estas. Epistemologia e Ciências Específicas. Verifica-se uma dupla relação entre a Epistemologia e as ciências específicas. A primeira, de acordo com suas aspirações construtivas, é fundamental para todas as ciências específicas, uma vez que fornece as justificativas básicas para os tipos de conhecimento e as concepções de verdade e correção em que tais ciências se apóiam, em seus métodos concretos de procedimento, e isto afeta suas descobertas. Entretanto, isto não altera o fato de que toda teoria de conhecimento é, ela mesma, influenciada pela forma assumida na época pela ciência, somente da qual pode obter sua concepção da natureza do conhecimento. Em princípio, sem dúvida, ela proclama ser a base de toda ciência, mas, de fato, é determinada pela condição da ciência em qualquer época dada. O problema torna-se, assim, mais difícil, pelo fato de que os próprios princípios, à luz dos quais se vai criticar o conhecimento, aparecem social e historicamente condicionados. Por conseguinte, sua aplicação é limitada a períodos históricos dados e aos tipos específicos de conhecimento então prevalecentes. Uma vez que tais inter-relações são claramente reconhecidas, não se pode mais sustentar a crença de que a Epistemologia e a Noologia, devido à sua justificável pretensão de desempenharem funções de fundamento, devam desenvolver-se autônoma e independentemente do progresso das ciências específicas, e de que não estejam sujeitas a serem basicamente modificadas por estas. Consequentemente, somos forçados a reconhecer que só é possível um desenvolvimento global da Epistemologia e da Noologia se concebermos sua relação com as ciências específicas da seguinte maneira: Novas formas de conhecimento surgem, em última análise, das condições da vida coletiva e não dependem, para sua emergência, da demonstração anterior de sua possibilidade por uma teoria do conhecimento; elas não necessitam, portanto, de ser primeiro legitimadas por uma Epistemologia. A relação é, na realidade, a inversa: o desenvolvimento das teorias de conhecimento científico nasce da preocupação com os dados empíricos e a sorte das primeiras varia com a dos últimos. As revoluções na Metodologia e na Epistemologia são sempre consequências e repercussões das revoluções nos procedimentos empíricos imediatos para se adquirir conhecimento. Somente através de um recurso constante ao procedimento das ciências empíricas específicas podem os fundamentos epistemológicos tornar-se suficientemente flexíveis e extensos para não somente sancionar as pretensões das formas mais antigas de conhecimento (sua finalidade original) mas, igualmente, dar respaldo às formas mais recentes. Esta situação peculiar é característica de todas as disciplinas filosóficas e teóricas. Sua estrutura é mais claramente perceptível na Filosofia do Direito que pretende ser o juiz e crítico do Direito positivo, mas que, na maioria dos casos, não é efetivamente mais que a formulação post facto e a justificação dos princípios do Direito positivo. Ao se dizer isto, não se está negando a importância da Epistemologia ou da Filosofia como tais. As indagações básicas que empreendem são indispensáveis e, na verdade, quem atacasse a Epistemologia e a Filosofia em termos teóricos não poderia evitar o emprego de princípios teóricos. É claro que tal ataque teórico, justamente na medida em que penetrasse em aspectos fundamentais, seria, em si mesmo, uma preocupação filosófica. A cada forma fatual de conhecimento corresponde um fundamento teórico. Esta função

básica da teoria, a ser entendida num sentido estrutural, jamais deve ser desvirtuada para dar uma certeza a priori a descobertas particulares. Se assim mal utilizada, iria frustrar o progresso da ciência e conduziria ao não-aproveitamento, em virtude das certezas a priori, de visões derivadas de observações empíricas. Os erros e a parcialidade nas bases teóricas da ciência devem ser continuamente revistos à luz dos novos desenvolvimentos nas atividades científicas imediatas. Não se deve permitir que a luz lançada, pelo novo conhecimento fatual, sobre o fundamento teórico seja obscurecida por possíveis obstáculos ao pensamento, derivados da teoria. Descobrimos, mediante o procedimento particularizante da Sociologia do Conhecimento, que a Epistemologia antiga está correlacionada com um modo particular de pensamento. Este é um exemplo da possibilidade de estender nosso campo de visão, permitindo-se às comprovações empíricas recentemente descobertas lançar nova luz sobre nossos princípios teóricos. Estamos assim implicitamente convocados a procurar um fundamento epistemológico apropriado para estes variados modos de pensamento. Além disso, estamos solicitados a descobrir, se possível, uma base teórica sob a qual se possam classificar todos os modos de pensamento que conseguimos estabelecer no curso da história. Podemos agora examinar até que ponto é verdade que as Epistemologias e Noologias até aqui dominantes fornecem apenas um fundamento específico para um único tipo de conhecimento.

3. A demonstração da natureza parcial da epistemologia tradicional a) A Orientação Para a Ciência Natural como um Modêlo de Pensamento. A particularidade da teoria do conhecimento predominante hoje em dia é, agora, claramente demonstrável pelo fato de terem sido escolhidas as Ciências Naturais como um ideal ao qual todo o conhecimento devesse aspirar. Somente porque a ciência natural, principalmente em suas fases quantificáveis, pode ser amplamente destacada da perspectiva histórico-social do investigador, é que foi elaborado um ideal de conhecimento verdadeiro tal que todas as tentativas para se atingir um tipo de conhecimento que visasse à compreensão de qualidade são consideradas métodos de valor inferior. Pois a qualidade contém elementos mais ou menos entrelaçados com a concepção de mundo (Weltanschauung) do sujeito cognoscente. No momento em que as forças histórico-sociais colocam outros tipos de conhecimento no centro de debate, torna-se necessário rever as premissas antigas que foram, se não exclusivamente, pelo menos em grande parte formuladas para o entendimento e justificação das Ciências Naturais. Exatamente como Kant uma vez colocara os fundamentos da Epistemologia moderna indagando a respeito das Ciências Naturais já existentes, “Como são possíveis?”, devemos fazer hoje em dia a mesma pergunta com referência ao tipo de conhecimento que busca o entendimento qualitativo e tende, pelo menos, a afetar toda a questão. Devemos, além disso, indagar como e em que sentido podemos chegar à verdade por meio deste tipo de conhecimento. b) A Relação entre os Critérios de Verdade e a Situação Histórico-Social. Estamos aqui em face de uma conexão ainda mais profundamente enraizada entre a Epistemologia, em suas variedades históricas concretas, e a “situação existencial” correspondente. A teoria do conhecimento assume das condições concretas de conhecimento de um período (e, portanto, de uma sociedade) não apenas o seu ideal do que o conhecimento fatual deva ser,

mas também a concepção utópica de verdade em geral, como, por exemplo, sob a forma de uma construção utópica de uma esfera da “verdade em si”. As possíveis utopias e imagens desiderativas de uma época, como concepções do ainda-não-real, estão orientadas para o que já se realizou nesta época (não sendo, por conseguinte, fantasias ocasionais indeterminadas ou resultados da inspiração). Similarmente, o padrão utópico de correção, a ideia de verdade, surge dos modos concretos de aquisição de conhecimento prevalecentes em um dado tempo. Assim, o conceito de verdade não permaneceu constante através de todos os tempos, mas foi envolvido no processo histórico de mudança. A fisionomia exata do conceito de verdade, em um dado tempo, não é um fenômeno casual. Antes, constituem-se em indícios, para a construção da concepção de verdade desse tempo, os modos de pensamento representativos, bem como sua estrutura, da qual surge uma concepção quanto à natureza da verdade em geral. Vemos, portanto, que não só a noção de conhecimento em geral depende da forma de conhecimento concretamente prevalecente, e dos modos de conhecer nela expressos e aceitos como ideal, mas que, também, o próprio conceito de verdade depende dos tipos de conhecimento já existentes. Assim, com base nestes estágios intermediários, existe um nexo fundamental, embora não imediatamente visível entre a Epistemologia, as formas do conhecer dominantes e a situação sócio intelectual geral de um tempo. Desta forma, a Sociologia do Conhecimento penetra, em um dado ponto, e através de suas análises por meio do método de particularização, igualmente no domínio da Epistemologia, onde resolve o possível conflito entre as várias Epistemologias, concebendo cada uma como uma subestrutura teórica apropriada meramente a uma só forma dada de conhecimento. A solução final do problema apresenta-se, então, de tal forma que somente após a justaposição dos diferentes modos de conhecimento e de suas respectivas Epistemologias é que se pode elaborar uma Epistemologia mais fundamental e inclusiva.

4. O papel positivo da sociologia do conhecimento Uma vez que compreendemos que, apesar da Epistemologia ser a base de todas as ciências empíricas, ela somente pode derivar seus princípios dos dados fornecidos por estas, e uma vez que compreendemos, além disso, em que medida a Epistemologia foi, até aqui, profundamente influenciada pelo ideal das Ciências Exatas, torna-se, então, evidente o nosso dever de inquirir como o problema será afetado quando se levar em consideração outras ciências. Isto sugere os seguintes argumentos: Revisão da Tese de que a Gênese de uma Proposição é, em quaisquer Circunstâncias, Irrelevante para a sua Verdade. O dualismo abrupto e absoluto entre “validade” e “existência” — entre “significado” e “existência” — entre “essência” e “fato” é, como se tem indicado várias vezes, um dos axiomas da Epistemologia e Noologia “idealistas” prevalecentes em nossos dias. Considerado impermeável, é o obstáculo mais imediato para a utilização não-tendenciosa das descobertas da Sociologia do Conhecimento. Com efeito, se o tipo de conhecimento representado pelo exemplo 2 X 2 = 4 for sujeito a exame, a correção desta tese estará bastante bem demonstrada. É verdade, quanto a este tipo de conhecimento, que sua gênese não interfere nos resultados do pensamento. A

partir daí, basta um pequeno passo para se construir uma esfera de verdade em si mesma, de tal maneira que ela se torna completamente independente do sujeito cognoscente. Ainda mais, esta teoria da separabilidade do conteúdo de verdade de uma afirmação, das condições de sua origem, tem grande valor na luta contra o psicologismo, já que somente com o auxílio desta teoria é que foi possível separar o conhecido do ato de conhecer. A observação de que se deve manter a gênese de uma ideia separada de seu significado se aplica igualmente na Psicologia descritiva. Somente porque neste campo se poderia demonstrar, em certos casos, que os processos psicológicos que produzem os significados são irrelevantes para a sua validade, é que esta afirmação foi legitimamente incorporada às verdades da Noologia e da Epistemologia. Entre, por exemplo, as leis do mecanismo de associação e o juízo a que se atinge através deste mecanismo associativo existe um hiato, tornando plausível que uma gênese deste tipo não contribua, em coisa alguma, para a avaliação do significado. Existem, contudo, tipos de gênese que não são desprovidas de significado, e até agora suas peculiaridades não foram analisadas. Assim, por exemplo, pode-se considerar a relação entre a posição existencial e o ponto-de-vista correspondente como uma relação genética, mas num sentido diverso do anteriormente usado. Também neste caso intervém a questão da gênese, visto que não resta dúvida de estarmos lidando, neste caso, com as condições de emergência e de existência de uma afirmação. Quando falamos da “posição subjacente a um ponto-de-vista”, temos em mente um complexo de condições de emergência e de existência que determina a natureza e o desenvolvimento de uma afirmação. Mas estaríamos caracterizando falsamente a situação existencial do enunciador se deixássemos de levar em consideração o seu significado para a validade da afirmação. Uma posição na estrutura social traz consigo, como já foi visto, a probabilidade de que aquele que a ocupa pense de um certo modo. Significa existência orientada com referência a certos significados (Sinnausgerichtetes Sem). Não se pode descrever a posição social em termos isentos de significados sociais como, por exemplo, por mera designação cronológica, 1789, como data cronológica, é completamente sem sentido. Como designação histórica, entretanto, essa data indica um conjunto de acontecimentos sociais significativos que demarcam, por si mesmos, o âmbito de um certo tipo de experiências, conflitos, atitudes e pensamentos. A posição histórico-social somente pode ser adequadamente caracterizada por meio de designações significativas (como, por exemplo, por designações tais como “posição liberal”, “condições proletárias de existência”, etc.). A “Existência social” é, portanto, uma área de ser, ou uma esfera de existência, que a ontologia ortodoxa, que somente reconhece o dualismo absoluto entre, de um lado, o ser desprovido de significado, e, do outro, o significado, não leva em consideração.11 Poderíamos caracterizar uma gênese deste tipo chamando-a “gênese significativa” (Sinngenesis) em contraste com a “gênese fatual” (Faktizitätsgenesis). Se se tivesse em mente um modelo deste tipo ao se declarar a relação entre ser e significado, não se teria assumido como absoluta, na Epistemologia e na Noologia, a dualidade entre ser e validade. Ao invés disso, teria havido uma série de gradações entre estes dois polos, onde casos tais como “ser investido de significado” e “ser orientado para significado” teriam encontrado um lugar, sendo incorporados na concepção fundamental. A próxima tarefa da Epistemologia é, em nossa opinião, a de superar sua natureza parcial, incorporando a multiplicidade de relações entre existência e validade (Sein und Geltung), descobertas pela Sociologia do Conhecimento, bem como dar atenção aos tipos de conhecimento que atuam numa região do ser que está plena de significado e que afeta o

valor de verdade das afirmações. Dessa forma, a Epistemologia não é suplantada pela Sociologia do Conhecimento, mas faz-se necessário um novo tipo de Epistemologia que tome em consideração os fatos revelados por aquela. Ulteriores Consequências da Sociologia do Conhecimento para a Epistemologia. Tendo-se observado que a maioria dos axiomas da Noologia e da Epistemologia dominantes foi adotada das Ciências Naturais quantificáveis sendo, por assim dizer, meras extensões das tendências singularmente características dessa forma de conhecimento, torna-se claro que se deve reformular o problema noológico com referência ao contra modelo de variedades de conhecimento mais ou menos determinadas existencialmente. Pretendemos agora enunciar, em poucas palavras, a nova formulação do problema que julgamos necessária, uma vez que reconhecemos o caráter parcial da Noologia antiga. A Descoberta do Elemento Ativista no Conhecimento. O fato de se encarar o ato de conhecer, na concepção “idealista” de conhecimento, como principalmente um ato puramente “teórico”, no sentido de percepção pura, encontra suas origens, além da já mencionada orientação para os modelos matemáticos, no fato de que na base desta Epistemologia está o ideal filosófico da “vida contemplativa”. Não nos podemos preocupar neste momento com a história desse ideal ou com a maneira pela qual a Epistemologia foi, pela primeira vez, permeada pela concepção puramente contemplativa do conhecimento. (Isto requereria o exame da pré-história da lógica científica e do desenvolvimento do filósofo a partir do mago, de quem aquele assumiu o ideal de “visão mística”). Basta-nos indicar que este grande apreço pelo que é contemplativamente percebido não é produto “puro” da observação do ato de pensar e saber, mas surge de uma hierarquia de valores baseada numa certa Filosofia de vida. A Filosofia idealista, que representa esta tradição, insistia em que o conhecimento somente era puro quando fosse puramente teórico. A Filosofia idealista não se perturbava com a descoberta de que o tipo de conhecimento representado pela teoria pura era apenas um pequeno segmento do conhecimento humano, e que, em acréscimo, pode haver conhecimento onde os homens, enquanto pensam, estejam também agindo, e finalmente, que em certos campos o conhecimento somente surge quando e na medida em que ele próprio é ação, isto é, quando a ação é permeada pela intenção do espírito, no sentido de que os conceitos e o aparato total do pensamento estão dominados e refletem esta orientação ativista. Não o propósito em acréscimo à percepção, mas o propósito na própria percepção é que, em certos campos, revela a riqueza qualitativa do mundo. Também o fato fenomenologicamente demonstrável de que nestes campos a gênese ativista penetra na estrutura da perspectiva, dela não sendo separável, não poderia dissuadir a Noologia e a Epistemologia antigas de desprezar este tipo de conhecimento, que se integra com a ação, ou de ver nele apenas uma forma “impura” de conhecimento. (É interessante notar que as conotações da designação “conhecimento impuro” parecem indicar uma origem mágica do termo). A partir de agora, o problema consiste não em rejeitar este tipo de conhecimento desde o início, mas em considerar a maneira pela qual se deve reformular o conceito de conhecer, a fim de que se possa obter conhecimento, mesmo onde esteja intervindo uma ação intencional. Esta reformulação do problema noológico não pretende abrir as portas da ciência à propaganda e aos juízos de valor. Pelo contrário, quando falamos de intenção fundamental da mente (intentio animi), inerente a toda forma de conhecimento, e que afeta a perspectiva, referimo-nos ao irredutível resíduo do elemento intencional no conhecimento, que permanece mesmo quando se tenha eliminado toda a unilateralidade e

as valorações explícitas e conscientes. É evidente por si mesmo que a ciência (na medida em que é livre de valoração) não é um artifício propagandístico e não existe com o propósito de comunicar valorações, mas de determinar fatos. O que a Sociologia do Conhecimento procura revelar é apenas que, depois de o conhecimento se haver libertado dos elementos de propaganda e valoração, ele ainda contém um elemento ativista que, em sua maior parte, não se tornou explícito e não pode ser eliminado, podendo e devendo, no máximo, ser levado à esfera do controlável. O Elemento Essencialmente Perspectivista em Certos Tipos de Conhecimento. O segundo ponto do qual devemos tornar-nos cientes é o de que, em certas áreas de conhecimento histórico-social, deveria ser encarado como certo e inevitável que uma dada descoberta devesse conter os traços da posição do conhecedor. O problema consiste não em tentar esconder estas perspectivas ou em se desculpar por elas, mas em formular a questão de como, dadas tais perspectivas, o conhecimento e a objetividade são ainda possíveis. Não é uma fonte de erro que, na figura visual de um objeto no espaço, somente possamos, pela natureza da situação, obter uma visão perspectiva. O problema não é o de como poderíamos chegar a uma figura não-perspectivista, mas o de como, pela justaposição dos vários pontosde-vista, se pode reconhecer cada perspectiva como tal, atingindo-se, dessa forma, um novo nível de objetividade. Chegamos, assim, ao ponto em que se deve substituir o falso ideal de um ponto-de-vista desvinculado e impessoal pelo ideal de um ponto-de-vista essencialmente humano situado dentro dos limites de uma perspectiva humana, em constante esforço por se alargar. O Problema da Esfera de Verdade em Si. Examinando a Filosofia de vida que fornece os antecedentes para a Epistemologia e a Noologia idealistas, torna-se claro que o ideal de um domínio da verdade em si (que, por assim dizer, preexiste independentemente de um ato histórico-psicológico de pensamento, e do qual todo ato concreto de conhecer não faz mais que participar) é o último rebento da visão de mundo dualista que, ao lado do nosso mundo de acontecimentos concretos imediatos, criou um segundo mundo acrescentando outra dimensão do ser. Com a postulação de uma esfera de verdade que seja válida em si mesma (um produto da doutrina de ideais) pretende-se fazer o mesmo, para o ato de conhecer, que a noção de contingente e transcendental fez para a metafísica dualista no domínio da Ontologia, ou seja, postular uma esfera de perfeição que não guarde os estigmas de suas origens e, por cuja medida, todos os acontecimentos e processos se mostrem finitos e incompletos. Mais ainda, assim como nesta metafísica espiritualista extrema, concebia-se a qualidade de “ser humano” como “meramente ser humano” — despido de tudo que fosse vital, corpóreo, histórico ou social — da mesma forma se fazia a tentativa de estabelecer uma concepção de conhecimento da qual estes elementos humanos estivessem apartados. É necessário, sempre e mais uma vez, levantar a questão de se podemos imaginar o conceito de conhecer sem levar em consideração o complexo total de traços pelo qual o homem se caracteriza, e de como, sem tais pressupostos, não poderíamos sequer pensar neste conceito, para não falar na realização efetiva de tal ato. No domínio da Ontologia, nos tempos modernos, esta visão dualista (surgida com o propósito de provar a inadequação “deste” mundo) foi, além do mais, gradativamente destruída no decurso da pesquisa empírica. Na Noologia e na Epistemologia, entretanto, ela

é ainda uma força. Mas, desde que nestes ramos os pressupostos básicos no campo da teoria da ciência não são, digamos, tão transparentes, acreditou-se que este ideal de uma esfera de validade supra-humana e supratemporal não seria uma construção possível, que emergisse de uma visão do mundo, mas um dado e um pré-requisito essenciais para a interpretação do fenômeno de “pensar”. Nossa discussão, neste trabalho, pretende mostrar que, do ponto-devista da fenomenologia do pensamento, não há necessidade alguma de se encarar o conhecimento como se fosse uma intrusão da esfera dos acontecimentos efetivos na esfera da “verdade em si mesma”. No máximo, tal construção seria de valor heurístico para os modos de pensamento representados pelo exemplo 2 X 2 = 4. Pelo contrário, nossas reflexões têm por objetivo mostrar que o problema de conhecer se torna mais inteligível se nos atemos, estritamente, aos dados apresentados pelo pensar fatual efetivo que desenvolvemos neste mundo (que é o único tipo de pensamento conhecido por nós e que independente desta esfera ideal) e se aceitamos o fenômeno de conhecer como o ato de um ser humano. Em outras palavras, a Sociologia do Conhecimento encara o ato cognitivo em conexão com os modelos aos quais ele aspira em sua qualidade existencial bem como em sua qualidade significativa, e não como uma intuição de verdades “eternas”, emergentes de um ímpeto contemplativo, puramente teórico, nem como alguma espécie de participação nestas verdades (como ainda pensou Scheler), mas como um instrumento para se lidar com as situações de vida, à disposição de um certo tipo de ser vivo, em certas condições de vida. Todos os três fatores, a natureza e a estrutura do processo de lidar com as situações de vida, a conformação própria do sujeito (em seus aspectos biológicos, tanto quanto em seus aspectos histórico-sociais) e a peculiaridade das condições de vida, principalmente o lugar e a posição do pensador, influenciam os resultados do pensamento. Mas também condicionam o ideal de verdade que este ser humano é capaz de construir a partir dos produtos do pensamento. A concepção do conhecimento como um ato intelectual, que somente será completa quando não mais guardar os traços de sua derivação humana, tem, como já havíamos indicado, seu maior valor heurístico naqueles campos onde, como no exemplo 2 X 2 = 4, se possa, com maior ou menor justificação, demonstrar fenomenologicamente a existência efetiva das características mencionadas acima. Trata-se, contudo, de um descaminho, tendendo a obscurecer fenômenos fundamentais, naqueles campos mais amplos do conhecível onde, caso se despreze o elemento humano histórico, os resultados do pensamento são completamente desvirtuados. Somente a comprovação fenomenológica, derivada de modelos de pensamento existente, pode ser usada como argumento contra ou a favor de certos conceitos envolvidos no conhecimento. Motivos disfarçados, emergentes de uma determinada visão do mundo, não têm poder algum nesta questão. Não há nenhuma razão para se manter o desdém, em nossa Noologia, por coisas sociais, dinâmicas, temporais, sensuais e corpóreas, características deste tipo de ser humano pressuposto na Filosofia “idealista”. Existem, e confrontam-se, no presente momento, dois tipos de conhecimento de significação representativa, havendo, correspondentemente, duas possibilidades de explicação noológica e epistemológica do conhecimento. Seria bom que, por enquanto, estas duas abordagens fossem mantidas separadas e que se ressaltasse as diferenças entre elas, ao invés de se as minimizar. Somente pelo processo de tentativa e erro se tornará claro qual destas bases de interpretação é a mais sólida, e se chegaremos mais longe se, como foi feito anteriormente,

tomarmos como ponto de partida o tipo de conhecimento situacionalmente desvinculado, considerando o condicionado situacionalmente como secundário e sem importância, ou, inversamente, caso encaremos o tipo de conhecimento desvinculado situacionalmente como um caso marginal e específico do situacionalmente condicionado. Caso fôssemos inquirir das possíveis direções da Epistemologia, se ela seguisse o modelo de pensamento mencionado por último e reconhecesse a “determinação situacional” inerente a certos tipos de conhecimento, dela fazendo a base para suas reflexões posteriores, seríamos confrontados com duas alternativas possíveis. O cientista tem, neste caso, a tarefa de ser o primeiro a tornar explícitas as possibilidades das posteriores implicações de seu problema e de apontar todas as eventualidades capazes de entrar no âmbito de sua visão. Deveria contentar-se em somente afirmar o que pudesse determinar sinceramente, no seu estágio presente de penetração no problema. A função do pensador não é a de qualquer preço pronunciar um julgamento sempre que um novo problema surge pela primeira vez, mas, antes, a de, cônscio de que a pesquisa está ainda em andamento, afirmar apenas o que se tornou definitivamente perceptível. Duas são as alternativas que ele pode seguir, uma vez chegado a este ponto. As Duas Direções da Epistemologia. Uma das duas direções tomadas pelo estudioso da Epistemologia enfatiza a prevalência da determinação situacional, sustentando o caráter radical de tal elemento no curso do progresso do conhecimento social, podendose, portanto, esperar que o ponto-de-vista de uma pessoa seja peculiar à sua posição. Isto exigiria a revisão da base teórica do conhecimento pela postulação da tese da estrutura inerentemente relacional do conhecimento humano (da mesma forma que a natureza essencialmente perspectivista dos objetos percebidos visualmente é admitida sem discussão). Esta solução não implica a renúncia ao postulado da objetividade e à possibilidade de se chegar a decisões nas disputas quanto aos fatos; tampouco envolve a aceitação do ilusionismo de acordo com o qual tudo é aparência e nada pode ser decidido. Implica, isto sim, que está objetividade e está competência para se chegar a decisões somente podem ser obtidas por meios indiretos. Não se pretende afirmar que os objetos não existem ou que a confiança na observação é inútil e fútil, mas, pelo contrário, que as respostas que conseguimos para as perguntas feitas à matéria em questão somente são possíveis, em certos casos, de acordo com a natureza das coisas, nos limites da perspectiva do observador. O resultado, mesmo aqui, não é o relativismo, no sentido de que uma afirmação seria tão boa quanto outra. O relacionismo, como é usado por nós, declara que cada afirmação somente pode ser formulada relacionalmente. Somente se torna um relativismo quando está ligado ao antigo ideal estático de verdades eternas, não-perspectivistas, independentes da experiência subjetiva do observador, e quando é julgado por este ideal de verdade absoluta, que lhe é estranho. No caso do pensamento situacionalmente condicionado, objetividade significa algo bastante diverso e novo: a) há, antes de mais nada, o fato de que, na medida em que observadores diferentes se acham imersos num mesmo sistema, eles irão, com base na identidade de seu aparato categórico e conceptual, e através do universo de discurso comum assim criado, chegar a resultados similares, estando em condições de erradicar como um erro tudo o que divirja desta unanimidade; b) e existe recentemente o reconhecimento do

fato de que, quando os observadores possuem perspectivas diferentes, somente se pode obter a “objetividade” de uma maneira mais aproximativa. E, neste caso, o que fora correta mas diversamente percebido pelas duas perspectivas deve ser compreendido à luz das diferenças na estrutura desses modos variados de percepção. Deve-se fazer um esforço para se encontrar uma fórmula de tradução dos resultados de um nos do outro, e para se descobrir um denominador comum para estes “insights” perspectivistas variáveis. Uma vez encontrado tal denominador comum, é possível separar as diferenças necessárias entre as duas visões, dos elementos equivocados e arbitràriamente concebidos, que também neste caso deveriam ser considerados erros. A controvérsia em torno dos objetos percebidos pela visão (que, de acordo com a natureza do caso, somente podem ser vistos em perspectiva) não é resolvida ao se estabelecer uma visão não-perspectivista (que é impossível). Resolve-se, ao invés disso, pela compreensão — à luz da visão situacionalmente determinada do próprio indivíduo — de porque o objeto aparece diversamente a cada um, em uma posição diferente. Similarmente, também em nosso campo, obtém-se objetividade pela tradução de uma perspectiva aos termos da outra. É natural que a esta altura devêssemos indagar qual dos vários pontos-de-vista é o melhor. E também para isso há um critério. Como no caso da perspectiva visual, onde certas posições tinham a vantagem de revelar as dimensões decisivas do objeto, também aqui se dá preeminência à perspectiva que permite maior amplitude e maior fecundidade no lidar com os materiais empíricos. A teoria do conhecimento também pode seguir um segundo caminho pela ênfase nos seguintes fatos: O ímpeto para a pesquisa na Sociologia do Conhecimento pode ser orientado de forma a não tornar absoluto o conceito de “determinação situacional”; antes, pode ser dirigido de tal maneira que, justamente ao descobrir o elemento de determinação situacional das visões em estudo, será dado um primeiro passo para a solução do próprio problema de determinação situacional. Tão logo eu identifique uma visão, que se estabelecera como absoluta, como representando apenas um ângulo de visão, neutralizo, em um certo sentido, sua natureza parcial. A maior parte de nossa anterior discussão deste problema movimentou-se em direção à neutralização da determinação situacional pela tentativa de se erguer acima dela. A ideia da base continuamente a se alargar do conhecimento, a ideia da contínua extensão do self e da integração dos vários pontos sociais privilegiados no processo do conhecimento — observações, todas elas, baseadas em fatos empíricos — e a ideia de uma Ontologia que a tudo envolva, a ser procurada — todas se movem nesta direção. Esta tendência na história social e intelectual está em íntima conexão com os processos de contato e interpenetração grupais. Em seu primeiro estágio, tal tendência neutraliza os vários pontos-de-vista conflitantes (isto é, despoja-os de seu caráter absoluto); em seu segundo estágio, cria, a partir desta neutralização, uma base de visão mais compreensiva e utilizável. É interessante notar que a construção de uma base mais ampla está ligada a um grau de abstração maior e tende, em um grau crescente, a formalizar os fenômenos que nos interessam. Esta tendência formalizadora consiste em relegar, a uma posição subordinada, a análise das afirmações qualitativas concretas que conduzem a uma dada direção, e em substituir, por uma visão puramente funcional modelada a partir de um padrão puramente mecânico, a descrição qualitativa e configurativa dos fenômenos. Esta teoria de abstração crescente será designada como a teoria da gênese social da abstração. De acordo com esta derivação sociológica da abstração (a ser claramente observada na

própria emergência do ponto-de-vista sociológico), a tendência para um maior grau de abstração é correlata ao amálgama de grupos sociais. Este ponto é corroborado pelo fato de a capacidade de abstração entre indivíduos e grupos crescer na medida em que são partes de grupos e organizações heterogêneos, em unidades coletivas mais inclusivas, capazes de absorver grupos locais ou de algum modo particulares. Mas tal tendência para a abstração em um nível mais alto permanece ainda de acordo com a teoria da determinação situacional, por isso que o sujeito absorvido neste pensamento não é de forma alguma uma “mente em si mesma” absolutamente autônoma, mas, pelo contrário, um sujeito cada vez mais inclusivo, que neutraliza os anteriores pontos-de-vista particulares e concretos. Todas as categorias justificadamente formuladas pela Sociologia Formal são produtos desta operação neutralizante e formalizadora. A conclusão lógica desta abordagem é que, no final, ela vê apenas um mecanismo formal em operação. Assim, para citar um exemplo da Sociologia Formal, dominação é uma categoria que somente pode ser abstraída a partir das posições concretas das pessoas envolvidas (isto é, o dominador e o dominado), porque se contenta em enfatizar a inter-relação estrutural (o mecanismo, por assim dizer) do comportamento envolvido no processo de interação. O que faz, ao operar com conceitos tais como sub ou super-ordenação, força, obediência, sujeição, etc. O conteúdo qualitativo da dominação em concreto (que imediatamente apresentaria a “dominação” num contexto histórico) não se torna acessível por meio desta fórmula, e somente poderia ser adequadamente retratado se o dominado tanto quanto o dominador relatassem quais foram suas experiências nas situações em que vivem. Pois nem mesmo as definições formais que descobrimos flutuam no ar diluído; pelo contrário, elas surgem dos problemas concretos de uma situação. Surge a esta altura a noção, que evidentemente precisa de verificação detalhada, de que o problema do perspectivismo concerne principalmente ao aspecto qualitativo de um fenômeno. Devido, entretanto, a que o conteúdo dos fenômenos sócio intelectuais é primariamente significativo, bem como a que o significado é percebido em atos de compreensão e interpretação, podemos dizer que o problema do perspectivismo na Sociologia do Conhecimento se refere, antes de mais nada, ao que é compreensível nos fenômenos sociais. Mas não estamos com isto de forma alguma indicando um campo estreitamente circunscrito. Os fatos mais elementares da esfera social ultrapassam em complexidade as relações puramente formais, e somente podem ser compreendidos com referência a conteúdos e significados qualitativos. Em suma, o problema da interpretação é um problema fundamental. Mesmo onde a formalização se adiantou ao máximo e onde estamos preocupados com simples relações, existe ainda um mínimo de evidências da direção geral de interesse do investigador, as quais não puderam ser totalmente eliminadas. Por exemplo, Max Weber, ao classificar os tipos de conduta, distinguindo entre as condutas “tradicional” e “racional com relação a fins”, estava ainda exprimindo a situação de uma geração na qual um grupo havia descoberto e dado ênfase valorativa às tendências racionalistas do capitalismo, enquanto outro, comprovadamente compelido por motivações políticas, descobria o significado da tradição, enfatizando-a em detrimento da anterior. O próprio interesse no problema de uma tipologia da conduta surge dessa situação social particular. E quando descobrimos que justamente estes tipos de conduta foram assinalados e formalizados exatamente nesta direção, devemos buscar a fonte desta tendência para a abstração na situação social concreta da época, que se preocupava com o fenômeno de conduta visto sob este

ângulo. Se outra época houvesse tentado uma sistematização formal dos tipos de conduta, ela haveria de chegar a uma tipologia bastante diversa. Em outra situação histórica, diferentes abstrações teriam sido descobertas e assinaladas num complexo total de acontecimentos. Em nosso entender, a Sociologia do Conhecimento não precisa, em virtude de suas premissas, negar a existência ou a possibilidade do pensamento formalizado e abstrato. Precisa apenas mostrar que, também sob este aspecto, o pensamento não é independente da “existência”, pois não é um objeto supra social ou sobre-humano, exprimindo-se em categorias “em si” nesta tipologia. Pelo contrário, as neutralizações das diferenças qualitativas entre os pontos-de-vista variáveis, emergentes de certas situações definidas, resultam em um esquema de orientação que somente permite emergir, à superfície da experiência e do pensamento, a certos componentes formais e estruturais dos fenômenos. De uma forma rudimentar, já se pode observar tal processo nas regras de etiqueta e intercurso social, que surgem espontaneamente do contato entre grupos diferentes. Também neste caso, quanto mais efêmeros os contatos tanto menor a preocupação com a compreensão qualitativa da relação mútua, que é a tal ponto formalizada que se torna uma “categoria formal sociológica”, por assim dizer, apenas indicando o papel específico da relação. A outra parte é meramente encarada como um “embaixador”, um “estrangeiro” ou um “condutor de trem”. No intercurso social somente reagimos ao outro com referência a estas características. Em outras palavras, em tais casos a formalização é, ela mesma, uma expressão de certas situações sociais, e a direção adotada pela formalização (quer escolhamos sua função, como fazemos no caso do “embaixador”, como a de representante político, quer, como no caso do “estrangeiro”, destaquemos seus traços étnicos) é dependente da situação social, que, mesmo de uma forma diluída, penetra nas categorias usadas por nós. De forma similar, pode-se observar que, em jurisprudência, a lei formalizada toma o lugar da justiça informal — que emerge de solicitações concretas e representa um juízo qualitativo derivado da situação, exprimindo o sentido de direito de uma comunidade — sempre que uma economia de troca atinge o ponto em que sua própria existência depende de se saber de antemão o que será a lei. A partir de então, torna-se menos importante fazer justiça total em cada caso, em sua singularidade absoluta, do que ser cada vez mais corretamente capaz de classificar e submeter cada caso a categorias formalizadas preestabelecidas. Como já se havia indicado, ainda não estamos atualmente em condições de decidir a questão referente a qual das duas alternativas, mencionadas acima, uma teoria científica do conhecimento será forçada a seguir, em vista da natureza dos dados empíricos. Em qualquer dos dois casos, entretanto, teremos que considerar a determinação situacional como um fator inerente ao conhecimento, assim como a teoria do relacionismo e a teoria da base cambiante do pensamento. Em qualquer dos dois casos, devemos rejeitar a noção de que exista uma “esfera de verdade em si” por ser uma hipótese injustificável e desintegradora. É instrutivo notar que as Ciências Naturais parecem estar, sob muitos aspectos, em uma situação bastante análoga, principalmente se usarmos como base para nossa comparação a interpretação de sua condição presente tão habilmente apresentada por W. Westphal. No seu ponto-de-vista, uma vez descoberto que nossos padrões convencionais de aferição, tais-como relógios, etc., e a linguagem cotidiana a eles associada somente são possíveis e utilizáveis neste plano de orientação cotidiana e de senso comum, começou-se a compreender que na teoria dos quanta, por exemplo, onde lidamos com a medição de

elétrons, é impossível falar-se de um resultado formulado independentemente do instrumento de aferição usado. Pois neste último caso se interpreta o instrumento aferidor como um objeto influenciando, ele mesmo, e relevantemente, a posição e a velocidade dos elétrons a serem aferidos. Assim surgiu a tese de que as aferições de posição e velocidade somente podem ser expressas em “relações indeterminadas” (Heisenberg) que especificam o grau de indeterminação. Mais ainda, o passo seguinte dessa ideia foi negar a asserção, estreitamente aliada ao método antigo de pensar, de que os elétrons em si mesmos devem ter, na realidade, caminhos bem definidos, devido a que tais asserções “em si” pertencem àquele tipo de asserções totalmente sem conteúdo que, para sermos exatos, comunicam um tipo de imagem intuitivamente derivada, mas completamente desprovida de conteúdo, uma vez que não se lhes pode tirar consequência alguma. Argumentava-se que o mesmo se aplicava ao enunciado de que os corpos em movimento devem ter uma velocidade absoluta. Mas desde que, de acordo com a teoria da relatividade de Einstein, esta não é, em princípio, determinável, tal enunciado, à luz da moderna teoria, se equipara a essas asserções vazias, tais como a tese de que, em acréscimo ao nosso mundo, existe outro mundo que, em vista de sua natureza, é inacessível à nossa experiência. Se prosseguíssemos nessa linha de pensamento, surpreendentemente similar à nossa própria linha por seu relacionismo não-formulado, o estabelecimento do postulado lógico de que exista uma esfera de “verdade em si” parece tão difícil de justificar como todos os demais dualismos existenciais vazios, antes mencionados. Realmente, desde que somente vejamos determinabilidades relacionais em todo o domínio do conhecimento empírico, a formulação de uma esfera do “em si” não terá consequências de espécie alguma para o processo de conhecer.

5. Problemas de técnica de pesquisa histórico-sociológica no campo da sociologia do conhecimento A mais importante tarefa da Sociologia do Conhecimento, no momento, é demonstrar sua capacidade efetiva de pesquisa no campo histórico-sociológico. Neste campo, precisa elaborar critérios de exatidão para estabelecer verdades empíricas e assegurar seu controle. Deve sair do estágio em que se ocupa com intuições casuais e generalizações grosseiras (tais como a primitiva dicotomia envolvida na afirmação de que, de um lado, temos o pensamento burguês, do outro, o pensamento proletário, etc.) mesmo que isso implique sacrificar sua clareza simplificadora. Neste particular, pode e deve aprender com os métodos e resultados do procedimento preciso das disciplinas filológicas, e com os métodos da história da arte, em particular com a sucessão estilística. Nesta última, os métodos de “datar” e “localizar” as diferentes obras de arte estão especialmente adiantados, e mutatis mutandis muito há que se aprender com eles. A tarefa básica da pesquisa na Sociologia do Conhecimento, neste sentido, é determinar os vários pontos-de-vista que gradativamente surgiram na história do pensamento e que estão, constantemente, em processo de mudança. Estas várias posições são determinadas pelo método da imputação. Isto implica uma concepção nítida da perspectiva de cada produto do pensamento e a colocação da

perspectiva assim estabelecida em relação com as correntes de pensamento de que é parte. Por sua vez, estas correntes de pensamento devem ser referidas, por sua vez, às forças sociais que as determinam (este passo não foi ainda executado pela história da arte em seu domínio próprio). A tarefa de imputação pode ser conduzida em dois níveis. O primeiro (Sinngemässe Zurechnung) trata dos problemas gerais de interpretação. Reconstrói os estilos de pensamento e perspectivas integrais, investigando expressões singulares e registros de pensamento que pareçam estar relacionados a uma Weltanschauung, que eles expressam. Torna explícito todo o sistema implícito nos segmentos separados de um sistema de pensamento. Quanto aos estilos de pensamento que não se mostram abertamente parte de um sistema fechado, este primeiro nível descobre a unidade de visão subjacente. Mesmo depois disto feito, ainda não se resolveu completamente o problema da imputação neste nível. Mesmo se, por exemplo, tivermos conseguido demonstrar que na primeira metade do século XIX a maioria das atividades e produtos intelectuais pode, a partir de seus significados, ser classificada e imputada à polaridade de pensamentos “liberal” e “conservador”, ainda surgiria o problema de esta referência explícita a uma visão central, que atua puramente em um nível intelectual, corresponder efetivamente aos fatos. É bem possível que um investigador, partindo dos fragmentos de expressão, consiga construir os dois sistemas fechados e antitéticos do pensamento conservador, de um lado, e do pensamento liberal, do outro, apesar de que os liberais e conservadores daquela época pudessem, de fato, não ter absolutamente pensado daquela forma. O segundo nível de imputação (Faktizitatszurechnung) opera presumindo que os tipos ideais construídos pelo processo acima descrito são hipóteses indispensáveis à pesquisa, indagando, então, até que ponto os liberais e conservadores pensavam efetivamente nestes termos, e em que medida, em casos individuais, tais tipos-ideais eram efetivamente concebidos em seu pensamento. Todos os autores da época acessíveis para nós devem ser examinados sob este ponto-de-vista e, em cada caso, deve-se proceder à imputação com base nas combinações e cruzamentos de pontos-de-vista a serem encontrados em suas afirmações. O consistente prosseguimento desta tarefa de imputação irá produzir, a seu término, o retrato concreto do curso e direção do desenvolvimento efetivamente ocorrido. Revelará a história real destes dois estilos de pensamento. Este método oferece o máximo de confiança na reconstrução do desenvolvimento intelectual, uma vez que analisa em seus elementos o que a princípio era meramente uma impressão sumária do curso da história intelectual, e, ao reduzir esta impressão a critérios explícitos, torna possível a reconstrução da realidade. Consegue, dessa forma, assinalar, subsequentemente, as forças anônimas e desarticuladas que operam na história do pensamento. E o faz, entretanto, não meramente na forma tosca de conjeturas, nem em termos narrativos (que ainda é o nível de nossa história cultural ou política), mas, antes, na forma da determinação controlável dos fatos. É claro que, justamente no processo de investigação detalhada, é que muito do que antes parecia certo se torna problemático. Assim, por exemplo, pode haver muita controvérsia, em face do caráter ambivalente dos tipos mistos, quanto ao estilo ao qual deveriam ser imputados. Entretanto, a fecundidade do método histórico no estudo dos estilos artísticos não é refutada, sendo antes fortalecida, quando surgem questões com respeito a se o trabalho de certos artistas deve ser imputado à Renascença ou ao Barroco.

Uma vez constituídas as estruturas e tendências dos dois estilos de pensamento, teremos pela frente a tarefa de sua imputação sociológica. Como sociólogos, não tentamos explicar as formas e variações do pensamento conservador simplesmente pela referência à Weltanschauung conservadora, por exemplo. Pelo contrário, buscamos em primeiro lugar derivá-las da composição dos grupos e estratos que se expressam por tal modo de pensamento. E, em segundo lugar, buscaremos explicar o impulso e a direção do desenvolvimento do pensamento conservador pela situação estrutural e pelas mudanças que ela sofreu num todo maior, historicamente condicionado (tal como a Alemanha, por exemplo), bem como pelos problemas constantemente variáveis levantados pela estrutura em mudança. Levando constantemente em consideração todos os vários tipos de conhecimento, ordenando desde as iniciais impressões intuitivas até a observação controlada, a Sociologia do Conhecimento busca obter uma compreensão sistemática da relação entre a existência social e o pensamento. A vida inteira de um grupo histórico-social apresenta-se como uma configuração interdependente; o pensamento é apenas sua expressão, e a interação entre estes dois aspectos da vida é o elemento essencial na configuração, devendo-se investigar suas detalhadas interconexões, se se pretende compreendê-la. À frente daqueles que fazem progredir a Sociologia do Conhecimento e a história sociológica das ideais estão os estudiosos que, em suas pesquisas específicas, utilizam um método consciente para lidar com materiais concretos. A controvérsia relativa a problemas particulares de imputação na Sociologia do Conhecimento comprova a transição do nível de conjeturas impressionistas para o estágio da pesquisa empírica efetiva.

6. Breve esbôço da história da sociologia do conhecimento As causas mais essenciais que deram emergência à Sociologia do Conhecimento já foram tratadas nas páginas precedentes. Devido a ser uma disciplina surgida das exigências do desenvolvimento social, é claro que as atitudes e passos intelectuais que conduziram até ela foram dados vagarosamente, sob as mais diversas condições e em épocas diferentes. Devemos aqui nos confinar exclusivamente aos nomes e fases mais importantes de sua história. A Sociologia do Conhecimento surgiu realmente com Marx, cujas contribuições profundamente sugestivas atingiram o cerne da questão. Entretanto, em sua obra, a Sociologia do Conhecimento é ainda indistinguível do desmascaramento das ideologias, visto que, para ele, os estratos e classes sociais eram os portadores de ideologias. Além do mais, apesar de aparecer no interior do quadro de uma dada interpretação da história, a teoria da ideologia não fora ainda consistentemente elaborada. A outra fonte da moderna teoria da ideologia e da Sociologia do Conhecimento pode ser encontrada nos rasgos intuitivos de Nietzsche, que combinou observações concretas neste campo com uma teoria de impulsos e uma teoria do conhecimento que fazia lembrar o pragmatismo. Também ele realizou imputações sociológicas, utilizando como categorias principais as culturas “aristocráticas” e “democráticas”, atribuindo a cada uma certos modos de pensamento.

Partindo de Nietzsche, as linhas de desenvolvimento levam às teorias dos impulsos originais de Freud e Pareto e aos métodos desenvolvidos por eles, encarando o pensamento humano como distorções e como produtos de mecanismos instintivos. Uma corrente similar, conduzindo ao desenvolvimento da teoria da ideologia, pode ser notada no positivismo, que conduz de Ratzenhofer, através de Gumplowicz até Oppenheimer. Jerusalem, que estimulou discussões mais recentes, pode ser igualmente considerado entre os positivistas. Não viu, entretanto, as dificuldades do problema, surgidas com o historicismo e com a posição de Dilthey nas Ciências Culturais.12 O método da Sociologia do Conhecimento foi elaborado de uma forma mais cuidadosa em duas linhas principais: a primeira por intermédio de Lukács, que volta a Marx e trabalha os fecundos elementos hegelianos contidos em sua teoria. Atingiu desse modo uma solução bastante fértil, esquemática e dogmática do problema, mas que padecia da unilateralidade e das vicissitudes de uma dada Filosofia da História. Lukács não ultrapassou Marx, na medida em que deixou de distinguir entre o problema do desmascaramento das ideologias, de um lado, e a Sociologia do Conhecimento, do outro. Constitui mérito de Scheler a tentativa, ao lado de muitas observações valiosas, de integrar a Sociologia do Conhecimento à estrutura de uma visão de mundo filosófica. Deve-se, entretanto, dar principalmente ênfase à realização de Scheler na direção de um avanço metafísico. Isto responde pelo fato de ele mais ou menos ignorar os conflitos internos inerentes a esta nova orientação intelectual e as implicações dinâmicas e novos problemas daí emergentes. É verdade que ele desejava fazer toda a justiça à nova perspectiva aberta pela Sociologia do Conhecimento, mas somente na medida em que ela pudesse ser conciliada com a Ontologia, a Metafísica e a Epistemologia que ele representava. O resultado foi um esboço sistemático e grandioso, cheio de profundas intuições, mas carente de um método de investigação claro e praticável, apropriado a uma ciência cultural sociologicamente orientada. Se nesta sumária apresentação da Sociologia do Conhecimento não a apresentamos em toda a sua variedade, mas somente na forma pela qual o autor a concebe e tal como foi elaborada nas primeiras quatro partes deste livro, é porque desejamos apresentar o problema da forma mais unificada possível a fim de facilitar sua discussão.

1

Por “determinação” não nos referimos aqui a uma sequência mecânica de causa-efeito: deixamos em aberto o significado de “determinação”, e somente a investigação empírica nos poderá mostrar até que ponto é estrita a correlação entre situação de vida e processo de pensamento, ou qual a gama de variações existente na correlação. (A expressão alemã “Seinsverbundenes Wissens” proporciona um significado que deixa em aberto a natureza exata do determinismo).

2

Para exemplos concretos, cf. o artigo do autor “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, op. cit.

3

Kölner Vierteljahrshefte für Soziologie (1928), vol. VIII.

4

Cf. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, op. cit., especialmente a parte referente à Sociologia do Direito.

5

Cf. principalmente seus trabalhos, Die Wissensformem und die Gesellschaft, Leipzig, 1926, e Die Formen des Wissens und der Bildung, I, Bonn, 1925.

6

Cf. do autor “Das konservative Denken”, Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, vol. 57, págs. 90 e segs.

7

A história das teorias do Estado, principalmente como as vê Oppenheimer, F., em seu System der Soziologie (vol. II, “Der Staat”), é um tesouro de material ilustrativo.

8

Cf. do autor “Das konservative Denken” (loc. cit., págs. 489 e segs., e principalmente pág. 494), e págs. 116 e segs., 126 e segs., e 217 e segs. deste volume.

9

Um bom exemplo é fornecido por Karl Renner, em Die Rechtsinstitute des Privatrechts (J. C. B. Mohr, Tübingen, 1929).

10

Para maiores detalhes, cf. o tratamento da relação entre teoria e prática, supra, Parte III, onde pretendemos desenvolver esta análise sociológica da perspectiva.

11 12

Cf. o ensaio anteriormente referido “Ideologische und soziologische Interpretation geistiger Gebilde”, loc. cit.

Os trabalhos representativos desta tendência, inclusive as investigações dos sociólogos franceses referentes ao “pensamento primitivo”, não são aqui tratados.

Este livro foi composto e impresso pela EDIPE Artes Gráficas Rua Conselheiro Furtado, 516 SÃO PAULO

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