juventude e pertencimento: identidades performadas em coletividades periféricas

May 16, 2019 | Author: Luiz Antonio Oliveira | Category: Sociology, Youth, Émile Durkheim, Thought, Family
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Artigo publicado como capítulo de livro sobre projeto de capacitação de jovens no litoral do Piauí....

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JUVENTUDE E PERTENCIMENTO: IDENTIDADES PERFORMADAS EM COLETIVIDADES PERIFÉRICAS Luiz Antônio de Oliveira*

INTRODUÇÃO Pensar o processo de constituição do sentimento de pertença a grupos ou coletividades situadas em espaços sociais periféricos poderia nos remeter a imagens reiteradamente difundidas de exclusão, pobreza, comportamentos característicos de populações tradicionais ou fenômenos de aculturação etc. Tal quadro tende a tornar-se complexo, quando associamos a ele “o problema do pertencimento” de indi víduos

a meio caminho entre a infância  – 

momento privilegiado de descobertas de lugares sociais  –  e   e a vida adulta  –  etapa   etapa em que se  pressupõe haver ocorrido a escolha e o desempenho de papéis sociais em seu grupo. No entanto, o pertencimento a um coletivo  –   ainda que marginal, em relação a um centro urbanizado  – , como se sabe, é um fenômeno ligado à socialização, momento liminar de aprendizagens, dizendo respeito, desse modo, ao processo de constituição de identidades coletivas e suas representaçõe r epresentações. s. 1 Deste modo, ao lançar-se um olhar investigativo sobre pertencimentos e localidades, é  possível compreender o sentido de ações sociais “criadoras de identidades” observando as motivações que presidem a opção dos indivíduos pelos códigos e valores “tradicionais”  de um

grupo. Conforme veremos, isto se dá não obstante a dinamicidade inerente aos processos culturais que regem as mudanças e transformações caracterizadoras, em nossa sociedade, das relações intergeracionais. Tal sentido subjetivamente visado da ação social do indivíduo, utilizando uma expressão weberiana, está ligado a um fenômeno complexo e dinâmico que une, a um só * Antropólogo, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Pernambuco e professor assistente do Campus Ministro Reis Velloso da Universidade Federal do Piauí. 1  Consideramos como fundamentais nessa discussão as reflexões pioneiras de Durkheim e Mauss a respeito das relações entre as representações individuais e as representações coletivas. A esse respeito, ver, principalmente, DURKHEIM, Émile. Représentations individuelles et représentations collectives. Revue de métaphysique et de morale, tome VI, maio 1898; DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. De quelques formes primitives de classification: contribution à l'étude des représentations collectives. Année sociologique , VI, (1901-1902), p. 172; 72; MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia . São Paulo: Cosac Naif, 2003. Quinta parte, p.367-97: Uma categoria do espírito humano: a noção da pessoa, a de “eu”; SENA, Custódia Selma. Durkheim e o estudo das representações. Anuário antropológico 82 . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p.134-166; MINAYO, Maria Cecília de Souza. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARESCHI, Pedrinho A.; JOVCHELOVITCH, Sandra (Org.). Textos em representações sociais . 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 89-111.

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tempo, as determinações sociais de sua identidade e comportamento e as avaliações e escolhas de códigos culturais mediante a vivência de experiências particulares. Nessa direção,  poderíamos seguir algumas pistas sugeridas por Marshall Sahlins (1990; 1997a; 1997b) ao demonstrar que os grupos, reproduzindo e transformando ao mesmo tempo, revelam a força do calcul sauvage ou “razão prática nativa”. Assim, lembrando que os valores e significados de uma cultura são constantemente reavaliados na prática de indivíduos concretos, o antropólogo da história do contato intercultural havaiano observa que as transformações históricas também são orquestradas segundo um modelo simbólico nativo. Por meio desse exemplo, que objetiva pôr em primeiro plano a autonomia cultural e a intencionalidade histórica das alteridades indígenas, podemos pensar a dialetização existente entre, de um lado, l ado, as práticas e representações dos indivíduos  –  aí  aí incluindo-se os segmentos etários mais jovens como formadores de uma realidade social particular  –   e, de outro, os valores e códigos culturais de seus grupos. Sugerimos, desse modo, que o sentido das transformações que marcam a vida de grupos ou coletividades periféricas, concebidas, por muitos, como estando submetidas às pressões desagregadoras de um processo aculturador, possa ser ressemantizado. ressemantizado. Além disso, observar o sentimento de pertença e os processos socializadores entre indivíduos jovens, premidos entre as transformações do presente e os valores e códigos sociais de seu grupo associados ao passado, pode ainda pô r em evidência a “condição reflexiva” da expressão de experiências vivencia enciadas. das. A juventude, então, concebida enquanto um momento liminar e, por conseguinte, “dramático” da vida em sociedade, teria a

capacidade de desnudar as contradições existentes entre continuidades e rupturas na trajetória histórica dos grupos. Vale ressaltar, nesse sentido, que os “jovens periféricos” vivenciam as suas experiências entre a exclusão e o pertencimento. Exposta às pressões da tradição e da modernidade, a dinâmica social de grupos ou coletividades tidas como periféricas, sobretudo na história de vida dos indivíduos mais jovens, nos faz pensar na importância da família como referência identitária e instituidora dos laços de sociabilidade. Assim, atuando como “espelho” na constituição de uma “moral” dos pobres nos espaços sociais periféricos, os

grupos sociais primários representam, também para os jovens, os meios de acesso e interpretação da realidade. 2  O papel que a família desempenha na socialização de jovens, 2

 A importância dos laços familiares em diversos fenômenos sociais, como, por exemplo, a migração, tem sido evidenciada no Brasil desde os chamados estudos de comunidade, orientados por um paradigma funcionalista, vigentes entre as décadas de 1950 e 1970. Sobre uma reflexão já tornada clássica a respeito do papel das redes familiares no fenômeno migratório, consultar DURHAM, Eunice Ribeiro. A caminho da cidade : a vida rural e a migração para São Paulo. 2. ed . São Paulo: Perspectiva, 1978. A imagem da “família como espelho”, foi inspirada no trabalho de SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho : um estudo sobre a moral dos  pobres na periferia de São Paulo. 1994. Tese (Doutorado em Antropologia) Programa de Pós-Graduação em

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mesmo nos contextos mais urbanizados, chega a pôr em questão a extensão da noção de “individualismo” como condição característica da

sociedade contemporânea (GONÇALVES,

2005). Ao referenciarmos o conceito turneriano de drama social, buscamos evidenciar a formação, entre segmentos juvenis peri-urbanos, de uma communitas  –   comunidade de identidade e de ações  –   que, por sua vez, orienta as suas práticas e representações. 3  Tal “comunidade”, fundante de um sentimento de pertença, articula, no mais das vezes, “o velho” e “o novo” de uma forma tensa, conflituosa, fazendo nascer do contraste seus principais

símbolos e referências identitárias. Ao misturar códigos e valores, herdados de seus grupos sociais primários e experienciados em suas vivências particulares, tais indivíduos, atuando como um bricoleur , são capazes de realizar deslocamentos sucessivos no tecido social da comunidade, transitando entre papéis sociais de coadjuvação  –   dada, muitas vezes, a sua dependência econômica em relação aos pais, avós ou outros parentes  –   e de protagonismo  –  quando assumem posições a respeito de suas comunidades que repercutem dentro e fora delas. Podem passar, desse modo, de figuras “tuteladas” a personagens que encarnam papéis de

liderança em relação ao seu grupo social de origem. Interessando-se por elementos estruturalmente arredios  –   agramaticalidades, atos falhos, elipses, hesitações, incoerências, erros e ruídos  – , os estudos de performance (DAWSEY, 2006, p.21) mostram-se como ferramentas valiosas na reflexão sobre os papéis liminares dos indivíduos jovens localizados em espaços sociais que podemos considerar como  periféricos, porque à margem dos centros urbanizados e das esferas políticas de decisão. Dando pistas sobre como “a sociedade é vista pela periferia” (DURHAM,

1986), sobretudo

em um grupo situado às margens da margem  –   os jovens de espaços sociais periféricos  – , a  perspectiva sugerida pelos estudos de performance também pode nos ajudar a ver “o político” nas práticas, por vezes interpretadas como apolíticas, dos jovens de comunidades pouco assistidas pelas ações públicas do Estado. Formando diferentes communitas, os jovens lançam mão de estratégias alternativas às formas clássicas de organização e participação política Antropologia Social, FFLCH/USP/São Paulo. 3 O conceito de drama social, elaborado por Victor Turner ainda na década de 1950, inspirado em uma estética da tragédia grega e no modelo dos ritos de passagem do Arnold Van Gennep, é referência constante em seus estudos de antropologia da performance e da experiência, publicados nos anos de 1980. Entre suas obras mais significativas, ver TURNER, Victor. O Processo ritual : estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974; The anthropology of performance , New York: PAJ Publications, 1987; Dramas, fields, and metaphors : symbolic action in human society. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1974; From ritual to theater : the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982. Ainda entre os autores de língua inglesa, a idéia de drama como perspectiva analítica para pensar a vida em sociedade, foi sugerida por BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas : uma visão humanística. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2005; e GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana . 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

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(militância em partidos políticos, agremiações estudantis, associações comunitárias etc.),  privilegiando, em diferentes momentos, o lúdico ou o “grotesco” .4 Demonstram, com isso,  por um lado, que nos espaços sociais liminares a vida é menos séria ou até mesmo perigosa e subversiva; e, por outro, que há tempos e espaços coletivos  –  criadores de um sentimento de  pertença e, por conseguinte, de identidades coletivas  –  que podem resistir às diversas ameaças de uma fragmentação aculturadora. Assim, fazendo menção, em alguns momentos, aos dados referentes a uma enquete realizada, em 2007, pela Aliança MANDU, entre jovens dos municípios de Cajueiro da Praia, Ilha Grande, Luís Correia e Parnaíba, no litoral piauiense, buscamos apontar para algumas  problematizações ligadas aos temas da juventude e do sentido de pertencimento em comunidades caracterizadas socioeconomicamente como periféricas. Investigar as dinâmicas sociais de espaços periféricos ou marginais, associadas à figura do jovem, não se constitui em novidade na literatura socioantropológica ou psico-educacional. No entanto, ao propormos  pensar essa realidade a partir de uma perspectiva “ritual” ou “dramática”,

acreditamos poder

enfatizar aspectos pouco explorados, como aqueles que associam a condição transitivo-social dos indivíduos jovens, as suas estratégias político-identitárias frente às suas comunidades de origem e, por conseguinte, os processos constituidores do sentimento de pertença a uma coletividade ou grupo social. Por fim, falar da juventude e dos processos sociais ligados ao sentimento de pertença nos conduz a uma série de reflexões a respeito dos diferentes tempos/espaços juvenis. Nessa abordagem, não se pode esquecer a importância das trocas intergeracionais na constituição das identidades dos jovens, mediadas, muitas vezes, pelas redes de sociabilidade doméstica. Assim, a dimensão do simbólico, como via privilegiada de análise, demonstra a condição “reflexiva” das

ações dos indivíduos jovens em seus processos de interação social.

Simultaneamente vivenciando e comunicando experiências, os jovens, em suas communitas, ritualizam os dramas, conflitos e contradições da realidade social do seu grupo de origem. Assim, para além dos papéis de vanguarda, rebeldia ou violência, classicamente atribuídos aos jovens nos estudos que procuram evidenciar a sua condição de sujeitos histórico-sociais ou portadores de comportamentos desviantes, buscamos enfatizar a condição seminal, sobretudo em espaços sociais periféricos, de algumas operações simbólicas realizadas pelos  jovens na construção de identidades coletivas. 4

  Sobre a apropriação popular, segundo uma lógica do cômico e do grotesco, de uma cultura elitista, ver BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento : o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UNB, 1999.

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CULTURA, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS JUVENIS Por meio de uma tal perspectiva, podemos olhar mais atentamente para o problema do  pertencimento de jovens moradores de comunidades periféricas como um fenômeno cultural complexo que equaciona, de modo particular, as noções de cultura, identidade e representações sociais. Desse modo, lembramos que, ao abordar o fenômeno da juventude, faz-se necessário levar em consideração as diferentes situações sociais nas quais ele se encontra inserido. Admitindo, então, diferentes leituras, o tema tem sido alvo de reflexão de diversos estudiosos. Podemos dizer, com isso, que os jovens, enquanto um objeto complexo de reflexão, dada a sua condição liminar e fronteiriça, são “bons para pensar” .

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Presença

constante em estudos de educação e psicologia, também classicamente estudada pela sociologia e antropologia, a juventude vem, na esteira das transformações ocorridas em torno de uma Nova História Cultural, se constituindo em um fecundo alvo de reflexão por parte dos historiadores.6 Levi e Schmitt (1996), propondo uma instigante “experimentação historiográfica” da juventude, lembram que n ão

se pode esquecer das noções de tempo,

espaço e cultura na sua formulação como um objeto de reflexão do historiador. Concebida como uma construção social e cultural, variando, por conseguinte, as suas formas de manifestação em diferentes coletividades distanciadas no tempo e no espaço, a juventude, nesse sentido, pode constituir-se em alvo privilegiado de reflexão historiográfica. Para tanto, torna-se necessário repensar os conceitos, as categorias e os métodos de investigação, adotando novas fontes como o cinema, a música, a propaganda, a pintura, a charge, a foto, o  panfleto, a poesia, o teatro etc., devendo ainda o historiador valer-se de toda a sua criatividade na utilização dessas fontes (MACHADO, 2004). 5

 Expressão usada por Claude Lévi-Strauss ao referenciar o valor simbólico da natureza, buscando demonstrar as linhas de continuidade entre uma realidade social e natural no fenômeno do totemismo. Sobre o assunto, ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1975; O pensamento selvagem . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. 6  No âmbito da “revolução” teórico -metodológica promovida pela École des Annales, movimento historiográfico surgido na França nos anos 1920, privilegiando a observação das formas cotidianas de interação social dos indivíduos em detrimento do registro cronológico de uma história política elitista, os historiadores franceses  passaram a se devotar ao estudo da cultura e formas de expressão populares. Surgiram, assim, as históri as “da vida privada”, das mentalidades, da mulher, da criança etc. Sobre as discussões a respeito dos novos caminhos da história, ver NORA, Pierre; LE GOFF, Jacques (Org.). História: novos objetos. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995; História: novas abordagens. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995; História: novos

 problemas. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. Sobre uma reflexão clássica a respeito do momento que antecede a vida adulta, consultar ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família . 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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 Na antropologia norte-americana, a juventude e o processo socializador se constituíram em objeto de investigações empíricas desde os trabalhos precursores de Margareth Mead, no âmbito da Escola Cultura e Personalidade, realizados na década de 1920. Dialogando com a perspectiva de uma psicologia social, seus pesquisadores, legaram contribuições significativas para o alargamento das áreas de interesse etnológico. 7 Ainda na  primeira metade do século XX, as investigações etnográficas empreendidas no contexto urbano descrito pela Escola de Chicago também são caracterizadas como referências clássicas sobre o assunto ao abordarem a realidade de jovens imigrantes e seus comportamentos desviantes, equacionando os temas de violência, criminalidade e desorganização social urbana.8  Nesse contexto, destacam-se as in vestigações sobre o “gangsterismo juvenil”, sobretudo no período da Depressão, que submeteu ao desemprego ou a atividades irregulares os filhos dos imigrantes que vieram aos Estados Unidos em busca de oportunidades de trabalho na “América em expansão”. O v ertiginoso

crescimento urbano de Chicago atraiu a

atenção de diversos cientistas sociais (antropólogos, sociólogos, psicólogos sociais)  preocupados em investigar os grupos sociais e seus comportamentos, sobremaneira a delinqüência juvenil. Pioneiros nos estudos etnográficos urbanos, os pesquisadores da Escola de Chicago viam na realidade social juvenil o reflexo da desorganização social dos imigrantes em seu  processo de adaptação à cidade americana. Assim, os estudos aí empreendidos tomam como objeto de reflexão os mundos desviantes existentes nos espaços urbanos periféricos, centrados, privilegiadamente, no universo jovem. O princípio unificador das gangues, revelado pelos pesquisadores de Chicago, é o território, descrevendo o processo de produção de zonas de marginalidade nos centros urbanos. Com esses estudos é instituída a imagem do desvio ou disfunção juvenil na sociedade. Representando realidades sociais desagregadas e,  por extensão, segregadas, as sociabilidades juvenis desnudariam as fraturas de um tecido social fragilizado, reorganizando os indivíduos em grupos sociais “marginais” responsáveis

 por graves problemas sociais urbanos, como a violência e a criminalidade. Tal situação evidenciaria a inexistência de mecanismos de controle social e cultural, potencializando conflitos entre segmentos sociais distintos. Do conjunto desses estudos, vale destacar a investigação realizada, no final da década 7

 A respeito das conseqüências psico-educacionais do conceito de adolescência a partir de uma etnografia entre os samoanos, consultar MEAD, Margareth. Adolescencia y cultura en Samoa . Buenos Aires: Paidós, 1967. 8  Sobre o assunto, consultar, principalmente, WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005; BECKER, Howard. Outsiders. Studies in sociology of deviance. Nova Iorque: The Free Press, 1997; ZALUAR, Alba. Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência. In: VIANNA, Hermano (Org.): Galeras cariocas : territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: edUFRJ, 1997.

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de 1930, por William Foote-Whyte (2005) a respeito do gangsterismo dos filhos de imigrantes italianos em um a região segregada de Boston. Dividindo os jovens em “Rapazes da Esquina” e “Rapazes Formados”, o autor, “treinando a observação participante”   (FOOTE-WHYTE,

1975), revela aspectos interessantes para a compreensão do sistema de  status e diferenciação social no espaço urbano. Busca demonstrar, assim, a existência de uma “sociedade de esquina” organizada,

que possui suas próprias hierarquias, definindo e reconhecendo as

 posições das pessoas e suas obrigações mútuas. Nesse sentido, aponta para o estabelecimento de um sistema de prestações e contraprestações entre os rapazes de esquina que distribui o  status de cada indivíduo segundo a sua função no grupo. Destaca-se, em sua organização, a figura do líder, representando os seus anseios perante os de fora e promovendo a solidariedade grupal. Indica, ainda, que um dos fatores geradores da sua estrutura é o fato de os indivíduos agrupados nas gangues compartilharem os mesmos problemas e expectativas. Enfim, apresentando a esquina como lócus privilegiado de socialização dos filhos dos imigrantes italianos, Foote-Whyte (2005, 1975) mostra que, além dos conflitos urbanos, resultantes da pobreza e segregação étnica e social, há uma organização subjacente a essa sociedade, sendo equivocado o discurso que a descreve como desorganizada. Movidos por uma preocupação semelhante, Norbert Elias e John Scotson também empreenderam uma pesquisa no final dos anos de 1950, tornada clássica no estudo sociológico urbano das relações sociais de poder (ELIAS; SCOTSON, 2000). Fruto de um trabalho de campo que durou cerca de três anos, a pesquisa sobre a diferença e a desigualdade social entre “os estabelecidos e os outsiders” teve como móvel inicial o interesse de Scotson

 pelos altos índices de delinqüência juvenil entre os habitantes de um povoado inglês. Pensando na relação, tensa e desigual, existente entre os moradores já estabelecidos no local antes de seu processo de industrialização recente e os habitantes advindos com tal processo, Elias e Scotson revelam a dinâmica de construção de identidades sociais urbanas, construídas  por meio de um contraste entre moradores “velhos” e “novos”. Percebidos como unidos e

separados ao mesmo tempo, os moradores do povoado são descritos como grupos de indivíduos interdependentes, formando uma “figuração social”, categoria proposta por Elias

 para compreender a natureza dos laços de interdependência que unem, separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais. 9  No entanto, às descrições tradicionais da juventude ligadas às imagens de 9

A idéia de “figuração”, de acordo com Elias, formada por um conju nto

particular de pontos de vista e de  posições sociais, define o objeto de estudo da sociologia. Sobre o assunto, ver ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia . Lisboa: 70, 1986.

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delinqüência, tópico central de um pensamento sociológico do desvio juvenil instituído pelos  pesquisadores da Escola de Chicago, são acrescidas, a partir de 1950, as descrições “românticas” dos jovens, ligadas à fruição do prazer, da liberdade, à rebeldia e às influências

dos meios de comunicação de massa. No cinema, James Dean encarna, em 1955, os conflitos e dilemas de uma “juventude transviada” personificando a rebeldia e angústia juvenis do pós -

guerra. Tal quadro resvala, na década de 1960, para as imagens dos movimentos contraculturais e estudantis de contestação aos regimes autoritários. Privilegiando, na observação dos conflitos intergeracionais, o engajamento político dos jovens, os estudos sobre o período apresentam como personagens protagonistas os indivíduos militantes, levantando as  bandeiras da natureza, da comunidade, dos dominados, dos discriminados etc. Contrapondose aos valores e hábitos industrial-burgueses de uma vida adulta, os jovens, nesse momento, são descritos em sua face contestatória. O exemplo da mobilização estudantil de maio de 1968 na França sublimou um modelo de juventude tornado paradigmático.  Nos chamados “anos rebeldes”, os jovens, descritos como atores portadores

de

 práticas e discursos revolucionários, foram vistos como expressão de certa politização que apontava para os ideais de construção de uma nova sociedade (FAUSTO NETO; QUIROGA, 2000). Mas, conforme sugere Bourdieu (1983), os pesquisadores também passaram a se  perguntar se a juventude existe ou se ela não seria “apenas uma palavra”. Refletindo

a

respeito da sobreposição das divisões geracionais e de classe na sociedade moderna, questionava-se a idéia de juventude como um grupo social homogêneo. Era, de certo modo, anunciada a necessidade de se pluralizar a categoria juventude, levando-se em consideração as diferentes divisões que definem a sua realidade sociocultural. Nessa direção, é palavra de ordem, na atualidade, adotar o sentido plural do termo, evidenciando o seu caráter relativo e relacional. A juventude, de acordo com os discursos atuais, está ligada a realidades socioculturais específicas, expressando a mediação entre situações e lugares sociais diferentes. É sob essa acepção que o tema tem conhecido, nas últimas décadas, um significativo aumento de interesse investigativo por parte de cientistas sociais, psicólogos, historiadores e pedagogos. Uma crescente preocupação pela temática denota, por si só, a sua importância na atualidade, sobretudo, se levarmos em conta a idéia de que a juventude  –   e o fenômeno que lhe é correlato, denominado juvenilização  – , conforme a sugestão de parte dos estudos sobre o assunto, está ligada às dinâmicas sociais contemporâneas, definidas por uma crescente “urbanidade” das relações sociais e de

trabalho. Desta forma, a categoria juventude, ligada à

imagem de uma sociedade moderna, encarnaria um conjunto de representações sociais

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“urbanas” que enfatizariam a sua condição transitória, descrevendo-a

como o momento de

 preparação para a vida adulta. Nesse sentido, interpretados como termos intercambiáveis, o  par juventude/modernidade aponta para a relação entre dependência econômica, educação e formação como fatores caracterizadores de uma fase etária intermediária. Tal quadro contrastaria com a realidade social juvenil de antigas sociedades tradicionais agrárias, onde o conjunto das relações sociais estaria voltado, prioritariamente, para o comprometimento com o trabalho, “espremendo” a fase juvenil

frente às necessidades de sobrevivência assumidas

desde cedo (POCHMANN, 2004, p.217). Vale lembrar, no entanto, que, nas sociedades tradicionais, há a indissociação entre vida e trabalho, sendo ritualizadas, nos saberes e fazeres cotidianos, as representações e identidades dos grupos comunitários. Desse modo, a relação de não equivalência entre juventude e trabalho, característica de uma dinâmica social moderna, ao lado da descontinuidade entre experiências sociais juvenis e vida adulta, apresenta os jovens como atores de uma cena, cada vez mais urbana, na qual desempenham os  papéis de aprendizes. Por conseguinte, constituindo uma consciência etária que procura colocar em primeiro  plano a oposição entre jovens e não jovens, os discursos sobre a sociedade moderna descrevem a juventude pelo prisma de uma marginalidade estanque sem comunicações ou trocas com as gerações mais velhas. Remetendo-nos a conflitualidades, sobretudo urbanas, tornaram-se modelos as abordagens da rebeldia, da delinqüência e da violência como desvios ou disfunções juvenis nas sociedades. Entretanto, lembramos que podemos pensar os jovens em sua cond ição “transitiva”, fazendo a ponte, nas experiências vivenciadas e suas diferentes formas de expressão, entre o centro e a periferia, entre a cidade e o campo ou entre o moderno e o tradicional, traduzindo o mundo ao seu redor por meio de práticas e representações originadas nesse contraste. Transitando entre o velho e o novo, os jovens de comunidades  periféricas “performam” sociabilidades instituídas

em um “tempo social transitivo”,

apontando, em suas ações e pensamentos, para as permanências e transformações que caracterizam as “reflexividades intergeracionais”.

É preciso destacar que essa condição

transitiva dos jovens não se reduz a uma situação de transitoriedade, de existência efêmera ou  passageira. Acreditamos, pelo contrário, que tal condição imprime marcas simbólico-sociais nos indivíduos jovens, dado o caráter inclusivo de suas práticas e representações, que orientam, de forma indelével, o sentido das identidades e papéis sociais assumidos na vida adulta. Sendo assim, o caráter “formativo” das troca s

simbólicas entre as gerações se

apresenta, então, como importante fator a ser levado em consideração em uma reflexão sobre

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a idéia de pertencimento. Em outras palavras, a contrastividade entre o tradicional e o moderno, experienciada pelos jovens, se constitui em um dos principais elementos de sua formação enquanto indivíduos que ocupam um lugar social determinado, permitindo ainda que eles, simultaneamente, possam pensar o grupo e a si próprios. Se os jovens ocupam um lugar social liminar, é justamente nesse espaço de margem que se produzem efeitos de estranhamento e geram-se conhecimentos (DAWSEY, 2006, p.18). O jovem, então, enquanto um mediador de valores e culturas, expressando e ao mesmo tempo formando experiências, demonstra, em suas práticas e representações, o caráter de interação, relação e reflexividade  presente nos processos de constituição de identidades e do sentido de pertencimento a um coletivo. Nesse sentido, a expressão de experiências dos jovens no tecido social do grupo a que eles pertencem pode ser interpretada como um ato comunicativo, dando forma e significado particulares às vivências e experiências intergeracionais. Além disso, nas communitas, os indivíduos vendo-se frente a frente como membros de uma mesma coletividade, recriam seus laços e instituem novas formas de sociabilidades, orientadas por uma lógica inclusiva e relacional. Isto significa dizer que, longe de excluir as referências tradicionais, eles as unem em uma nova síntese que evidencia a negociação e atualização dos símbolos identitários no momento mesmo de sua produção. Assim, dizendo respeito a um momento de aprendizagem e apreensão dos papéis sociais que irá desempenhar na vida adulta, a juventude  –   nela incluindo- se a “juventude  periférica” – ocupa um tempo e espaço “criador” de subjetividades ou modos de pensar, sentir

e agir particulares. Como já anunciado, o universo das relações sociais vivenciadas por tais indivíduos transita em torno das diferenças e desigualdades entre “o tradicional” – 



estabelecido  –  e “o moderno” –   ou universo de símbolos e valores outsiders, conforme a imagem sugerida por Elias e Scotson (2000). Procurando e ao mesmo tempo delimitando o seu espaço no tecido social da comunidade, os jovens vivenciam processos identitários, sintetizados na idéia de troca, que orientam, de um modo geral, o sentido de suas representações e o significado de suas ações. Nesse momento, vale lembrar alguns dos ensinamentos de Mauss (2003) a respeito da teoria da dádiva que evidenciam o caráter de aliança presente nas relações de troca. Forjando o princípio de reciprocidade, fundante do  pensamento estruturalista lévi-straussiano, Marcel Mauss mostra como os indivíduos instituem laços  –   inclusive diplomáticos, no caso das relações intertribais  –   formadores de sociabilidades específicas, juntando hierarquia, desigualdade e a necessidade de interação. Em outras palavras, a troca funda uma relação social desigual. Desse modo, a questão das relações entre indivíduos ou grupos, instituindo alianças, direitos e deveres é analisada, segundo uma

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lógica do simbólico, 10  por meio da idéia de contratos tácitos como princípios que fortaleceriam a solidariedade de grupos ou mesmo possibilitariam a organicidade desta solidariedade. Desse modo, ao invés de pensar a categoria juventude por meio de uma definição “globalizada”, individualista ou narcísica, propomos, em sentido inverso, compreender o

conjunto de representações sociais juvenis como expressões simbólicas de coletividades  particulares. Ademais, esclarecemos que, consoante aos ensinamentos de Durkheim, acreditamos ser comparáveis as representações individuais e sociais, evidenciando a lógica que preside a estruturação da vida coletiva dos indivíduos. Pensamos, então, que os valores e representações que conduzem o nosso comportamento, muitas vezes de forma inconsciente, se constituem nos resíduos deixados por nossa vida anterior: os hábitos adquiridos, os  preconceitos e as tendências que formam nosso caráter moral (DURKHEIM, [1898] 2002). Entre os jovens tal fato se dá de modo semelhante, quando a expressão de suas experiências de vida, ainda que revestida por práticas e discursos inovadores ou mesmo contestatórios, referencia os valores, regras e normas de um coletivo de origem. Apreendidos durante o  processo de socialização, tais símbolos se fazem presentes em suas principais chaves de interpretação da realidade, informando o conjunto de suas práticas sociais e representações. Acreditamos, dessa forma, transcender as limitações de uma polarização clássica da sociologia  –   concebida, por muitos, a partir de uma leitura pouco aprofundada dos textos de Durkheim – , na qual figuram como formas antagônicas e diferentes o indivíduo e a sociedade. Ao propor uma reflexão a respeito da relação entre as representações individuais e coletivas de jovens peri-urbanos, buscamos pô r em evidência o processo de “criação” de subjetividades. Nesse sentido, lembrando que é na interação dos jovens com seus grupos sociais de origem que se constroem suas referências identitárias e, por extensão, os elementos formadores de um sentimento de pertença, procuramos demonstrar a existência de linhas simbólicas de continuidade entre o indivíduo e a sociedade e não a sua oposição. Então, mais do que a justaposição de uma dimensão unicamente psicológica dos símbolos e representações individuais ao conjunto de símbolos e representações coletivos, é possível observar uma “síntese” de ambos no comportamento e pensamento de indivíduos concretos,

conforme os ensinamentos de Marcel Mauss (2003). Os jovens, então, adotando um ponto de vista sugerido por uma abordagem sociológica clássica, em suas ações e pensamentos, 10

A respeito da idéia do “simbólico” como categoria-chave nos pensamentos de TAROT, Camille. De Durkheim à Mauss, l'invention du symbolique : sociologie

Paris: La Découverte, 1999. (Bibliotèque du MAUSS).

Durkheim e Mauss, ver et science des religions.

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traduziriam a sua realidade social e não simplesmente a contestaria ou negaria face aos apelos “externos” de um mundo cada vez mais globalizado.

Mesmo partindo de uma outra perspectiva, dada pela abordagem da sociologia compreensiva, podemos também pensar no que confere unidade ao conjunto das ações desses atores sociais, refletindo sobre sua “cadeia motivacional”. Assim, percebendo a idéia da ação

social como um processo, de acordo com os ensinamentos weberianos, podemos buscar a compreensão do sentido ou do motivo da ação dos jovens. Nesse momento, vale lembrar que o conceito de motivo, no pensamento de Weber, é o que torna possível o estabelecimento da  ponte entre sentido e compreensão, constituindo, para o cientista social, em termos típicoideais, a causa  ou fundamento da ação. 11  Sendo dessa forma buscado o elemento que conferiria unidade à ação social dos indivíduos, voltamos a nos deparar com o processo social de formação de subjetividades, traduzido pela idéia de motivo. Haveria, então, uma dimensão intersubjetiva na construção de representações e símbolos identitários (e de pertencimentos) que direcionaria o sentido da ação social dos indivíduos. Lembramos que, nesse processo, a  presença de símbolos tradicionais orienta a maioria das escolhas dos indivíduos jovens, exercendo notada influência, senão no “conteúdo”, ao menos na “forma” de suas práticas e

representações. Afinal, podemos dizer que tais operações simbólicas, formadoras de subjetividades, dão o matiz das transformações ocorridas nas vivências coletivas dos jovens, orientando as suas escolhas. Isto nos ajuda a explicar o fato de que entre os jovens inquiridos pelo levantamento de dados referido, morador es do que denominamos “espaços sociais periféricos”, a igreja e suas formas de atuação junto à comunidade, por meio do incentivo de práticas culturais percebidas como tradicionais (danças, folguedos), se constituam em um dos principais símbolos de identificação coletiva e possível espaço de atuação política. Representando, a um só tempo, uma continuidade simbólica entre valores tradicionais do grupo e a possibilidade de transformações na dinâmica das relações sociais locais, as capelas e igrejas podem, por exemplo, ocupar o espaço social das associações comunitárias. Legitimadas inicialmente como lugares “sagrados” de sociabilidade tradicional, podem abrigar, gradativamente, os

anseios coletivos das comunidades, sobretudo nas igrejas cujos párocos possuam uma orientação mais progressista. Em alguns casos se constituem nos principais mediadores entre os moradores e o Estado. Nesse sentido, não custa lembrar o papel desempenhado pelas 11

  Vale também destacar que, na sociologia weberiana, o sentido das ações não é apreendido tal como se apresenta empiricamente, uma vez que ele é constituído por um feixe inesgotável de significados, sendo necessário o emprego do tipo ideal como instrumento de orientação na observação da realidade empírica, entendido, por conseguinte, como o meio privilegiado de construção de hipóteses.

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chamadas Comunidades Eclesiais de Base na organização e fomento de vários movimentos sociais, principalmente no campo. 12  No tocante a alguns grupos etnicamente diferenciados, tanto o universo das relações sociais primárias quanto as redes de sociabilidade construídas em torno da Igreja são descritas como instâncias privilegiadas na organização política das comunidades e na “criação” de lideranças, favorecendo as ações de afirmação de suas identidades e culturas. Tal é o caso de alguns grupos indígenas no Nordeste, como os Tapeba, na região metropolitana de Fortaleza, que, por meio da ação de segmentos diocesanos sensíveis à causa dos direitos dos índios, foram reorganizados politicamente a partir da segunda metade da década de 1970. Buscamos evidenciar, através dessas referências, que os jovens  –  incluindo aqueles de comunidades periféricas e etnicamente diferentes  –   podem desempenhar papéis de destaque na reorganização tradicional de seus grupos sociais de origem. Processo semelhante pode ser observado nos demais espaços sociais periféricos, dados pelas comunidades ou grupos sociais  pauperizados, onde as manifestações populares tradicionais se apresentam como espaços e tempos sociais privilegiados de entretenimento. No caso das comunidades do litoral piauiense inquiridas, os “folguedos” e o artesanato foram apontados como alguns dos p rincipais

elementos de identificação dos jovens, evidenciando que, mesmo diante de valores urbanos modernos, o que confere sentido de identidade  –   e, por extensão, de pertencimento  –   desses indivíduos são os elementos tradicionais de suas comunidades ou grupos sociais de origem. Depreendemos dessa observação que as manifestações culturais desses “jovens  periféricos” estão intimamente associadas aos símbolos identitários de suas comunidades.

 Não obstante a forte presença dos meios de comunicação de massa, veiculando imagens e símbolos de uma modernidade manifestamente “urbanizada”, os códigos e valores

tradicionais de seus grupos sociais de origem continuam a lhes fornecer elementos de identificação. Nesse sentido, conforme sugestão de Sarti (1994) em sua investigação sobre a vida dos migrantes na periferia de São Paulo, há que se pensar a condição de ser pobre no mundo moderno, lembrando que a incorporação de novos padrões de comportamento na cidade não significa a negação dos padrões tradicionais, uma vez que estes permanecem como  parte estruturante das relações sociais travadas na periferia. 12

 Buscando evidenciar uma face da I greja “comprometida com a afirmação da vida e com a causa dos pobres”, no contexto latino-americano, as CEBs favoreceram a organização popular no campo logo após a repressão do governo militar às ligas camponesas. Ajudaram, dessa forma, a fomentar os movimentos sociais rurais, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), criado na década de 1980. Sobre a atuação das CEBs, ver TEIXEIRA, Faustino. A gênese das CEBs no Brasil . São Paulo: Paulinas, 1988; BOFF, Clodovis et alii. As comunidades de base em questão . São Paulo: Paulinas, 1997; SANCHIS, Pierre (Org.). Catolicismo: cotidiano e movimentos. São Paulo: Loyola, 1992.

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Por meio desse exemplo da permanência dos valores tradicionais na cidade, podemos  pensar o caso dos jovens do litoral piauiense contactados como mais uma evidência empírica de que os símbolos do grupo orientam as escolhas dos indivíduos. Lembramos que, em suas vivências e experiências, os jovens dos espaços sociais não centrais estruturam suas identidades sociais e reconstroem seus valores, em muitos momentos, tendo como referência a rede de sociabilidade doméstica. Nesse sentido, os indivíduos jovens estão aptos a assumir o  papel de lideranças em suas comunidades, dado o seu potencial engajamento na promoção dos interesses e valores de sua coletividade. Observamos, ainda, que as manifestações culturais dos jovens expressam não apenas o lugar social que ocupam nas sociedades, mas também a condição dessa própria sociedade. Assim, o potencial papel de destaque na reorganização tradicional de realidades sociais locais, a partir das práticas e representações dos jovens, demonstra a força de realidades culturais localizadas face às pressões de uma sociedade capitalista moderna. Refletindo a respeito da complexidade do processo de interação entre as culturas locais e o capitalismo, afirma Sahlins (1997a, p.52) que tais coletividades “[...] vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem muito mais abrangente: o seu próprio sistema de mundo ”. Esclarece assim que, a despeito do “pessimismo sentimental” reinante nas consideraçõ es

atuais do conceito de

cultura, as ameaças de um capitalismo globalizante e homogeneizador às culturas locais  podem ser relativizadas, uma vez que os povos indígenas, por exemplo, se recusam tanto a desaparecer quanto a se tornar como nós. Desta forma, observa que, ao invés do empobrecimento material e cultural dos povos periféricos, “desmentido por acontecimentos e vozes subalternas”, houve o fortalecimento de suas vidas e culturas na nova ordem do sistema

mundial capitalista. Nesse sentido, nos adverte, ainda, que a história cultural hoje é feita “ [...] em um intercâmbio dialético do global com o local. Pois ficou bem claro agora que o imperialismo não está lidando com amadores nesse negócio de construção de alteridades ou de produção de identidades” (SA HLINS, 1997b, p.133).

Tomando o conceito de cultura como a forma pela qual as coletividades organizam simbolicamente as suas experiências coletivas, reiteramos o sentido do exemplo dado pelos  jovens peri-urbanos como uma demonstração da força das culturas e realidades sociais locais. Assim, observando a realidade sociocultural desses indivíduos e a consideração dos valores e símbolos manifestamente aceitos na estruturação de suas identidades sociais, pudemos apreender o alcance das ações sociais e representações dos jovens como expressões de subjetividades coletivas. Isto significa dizer que, ao privilegiar as operações simbólicas informadoras do sentimento de pertença dos jovens peri-urbanos, buscamos demonstrar como

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eles, em suas ações e pensamentos, articulam as noções de cultura, identidade e representações sociais, referenciando, no mais das vezes, as redes de sociabilidade primária. A organização simbólica das experiências coletivas juvenis, então, expressa antes o sentimento de pertencimento a um grupo que dialoga com os não jovens do que uma postura individualista e narcísica informadora de um self  moderno. TEMPOS E ESPAÇOS DE JUVENTUDES PERIFÉRICAS A adoção de uma linguagem ritual para pensar o sentido das práticas e representações de jovens periféricos, buscando perceber nelas como se dá a expressão do sentimento de coletividade, nos ajuda também a esclarecer alguns dos problemas ligados a uma temporalidade “juvenil”, momento “dramático” na vivência coletiva dos indivíduos.

Conforme já anunciado, os jovens, reproduzindo e transformando ao mesmo tempo, constroem seus códigos e valores de grupo em redes de sociabilidade que dramatizam o seu lugar social e a condição da sociedade a que pertencem. Nesse sentido, percebidos em sua condição transitiva, tais indivíduos, mediando diferentes situações sociais, atuam dentro de uma temporalidade determinada. Nesta fase liminar, na qual se negociam símbolos e valores identitários e onde também se operam “estranhamentos”, são produzidos conhecimentos

reflexivos a respeito dos próprios jovens e do grupo social a que eles pertencem. Acreditando, conforme os ensinamentos dos estudos de ritual e performance, que, “ao se sair  do grupo para ocupar as suas margens cada vez mais se entra nele”, afirmamos, novamente, ser necessário se

levar em consideração uma espécie de economia de trocas simbólicas entre as gerações. É dessa forma que podemos apreender, de um lado, o sentido do pertencimento dos jovens a um coletivo; e, de outro, a delimitação dos campos sociais de atuação tanto dos jovens, quanto dos adultos.13 Com efeito, diferente do que pregam algumas abordagens, as fronteiras dessa temporalidade são difíceis de ser definidas, uma vez que elas divergem segundo o período histórico que se toma como referência ou a realidade sociocultural considerada. Atendo-se a uma perspectiva apenas de passagem ou de transitoriedade, as abordagens geracionais enfatizam os quadros sociodemográficos de uma faixa etária de transição. Desse modo, cobrindo um intervalo que começa aos 15 e termina aos 24 anos, alguns estudos sociológicos 13

 A categoria de campo social, proposta por Pierre Bourdieu se constitui em importante contribuição teóricoanalítica para pensar as relações sociais de poder subjacentes às trocas simbólicas intergeracionais. A respeito de uma caracterização geral “desses espaços estruturados de posições”,  consultar BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia . Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. Algumas propriedades dos campos, p.89-94.

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do tema têm abordado “o problema da juventude” como expressão de conflitos e

descontinuidades. No entanto, não custa insistir que a contrastividade experienciada pelos  jovens pode ser interpretada como uma relação de troca e não exclusivamente de oposição. Refletindo sobre a questão da diversidade das culturas humanas, nos esclarece Claude LéviStrauss (1996, p.16), em um texto clássico, que tal diversidade “é menos função do

isolamento dos grupos, que das relaçõ es que os unem”. Observamos, então, que a  problemática das continuidades simbólicas entre os jovens e seus grupos sociais de origem se apresentam como temas de investigação negligenciados em função de perspectivas que  privilegiam apenas as rupturas e fragmentações socioculturais ocorridas na juventude ou, mais recentemente, que associam o jovem a uma ideologia individualista característica da moderna sociedade ocidental. Desta forma, os dramas e espaços juvenis são costumeiramente caricaturados em cenas de exclusão e de exceção, definindo o que é ser jovem tão somente por meio de lacunas e ausências. Contudo, quando nos voltamos para o tema de uma juventude periférica e o sentido coletivo de suas práticas e representações, aprendemos que tais lacunas e ausências podem ser ressiginificadas. Desse modo, longe de se apresentar o isolamento dos jovens ou as fragilidades de um tecido social ameaçado pela pobreza, é posto em evidência o papel desempenhado pelas redes de sociabilidade primária na estruturação de suas ações e  pensamentos. Conforme já anunciamos no exemplo do fenômeno migratório, é através da rede de sociabilidade primária, dada pelo grupo doméstico e pela rede familiar, que o migrante conhece, interpreta e traduz o mundo urbano. Vale lembrar que, em alguns casos, quem viaja  primeiro são os filhos jovens à procura de emprego e melhoria de vida como um projeto familiar. Logo, assegurada por um sistema de lealdades pessoais e familiares, a migração mostra como as obrigações morais de reciprocidade unem os jovens a seus parentes e iguais, havendo, ainda, o estreitamento de laços com a rede de vizinhança. A mobilidade espacial e ocupacional do fenômeno migratório, então, apesar de ser pensada como sendo de responsabilidade individual, possui, entretanto, uma contrapartida social (DURHAM, 1986,  p.86). Observando, dessa forma, o fundamento moral de algumas das ações sociais e representações dos indivíduos jovens, objetivamos pôr em primeiro plano a verdadeira base das organizações sociais. Estas, por sua vez, segundo Durkheim e Mauss ([1903] 2002), constituem-se nos alicerces para a organização da mentalidade e das coisas e, por conseguinte,  para o conjunto das práticas dos indivíduos. Procuramos, nesse momento, chamar a atenção

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 para os elementos que afetam a sensibilidade social dos indivíduos ou o fundamento moral de suas ações. Organizados segundo relações sociais definidas, orientadas por um princípio classificatório ou elemento de “afetividade social”, os jovens refletiriam a base da

organização da sociedade na qual se encontram inseridos. Intentamos, com isso, evidenciar mais uma vez as continuidades presentes nas operações simbólicas realizadas pelos jovens no conjunto de suas representações socioidentitárias. Todavia, seguindo ainda as pistas sugeridas  por Durkheim e Mauss ([1903] 2002, p.17), essa organização da mentalidade é suscetível de reagir a sua causa e de contribuir para modificá-la. Desse modo, as transformações em uma dada organização social seriam dadas pela própria atuação dos indivíduos em sua reprodução, anunciando um princípio de dinâmica das sociedades adotado pelo pensamento estruturalista. Para este, as possibilidades de mudança estariam encerradas no conjunto das estruturas “inconscientes” que regeriam nossos comportamentos. Nesse sentid o,

lembramos o papel

 privilegiado desempenhado pelos jovens nos tempos e espaços de reprodução e transformação. Dada a sua condição liminar e transitiva  – o que não significa dizer “marginal” e transitória  – , os indivíduos mais jovens ocupam um lugar social privilegiado na promoção de tais mudanças. Assim, negando as imagens moderno-capitalistas mundiais de uma efemeridade latente de todas as formas de organização social, desmanchando no ar a solidez das relações sociais tradicionais, observamos ser possível haver permanências ou linhas de continuidade nas transformações históricas ou mudanças de hábitos e costumes. Podemos perceber, com isso, que não só de contestação e rebeldia vivem os jovens, atuando também, em alguns casos, significativamente, na retradicionalização de suas comunidades. Afirmando isso, longe de nos  posicionarmos na contramão da história, acreditamos, ao contrário, podermo-nos inserir mais  profundamente nela, buscando entender sob que bases são construídas as idéias do porvir das coletividades, desmitificando a noção de historicidade como sucessão contínua e irrevogável de fases, aspectos característicos de uma “ideologia da história”.

Partindo de tal concepção,

não nos parece tão anacrônico juntar as categorias de juventude, tradição e memória em relações sociais complexas que articulam o velho e o novo, o tradicional e o moderno, por mais que insistamos, em nossas reflexões, em separá-las. Os jovens, então, mesmo quando espacialmente separados de seus grupos sociais de origem, podem continuar partilhando com eles símbolos e valores tradicionais. Um exemplo disso é dado pelos indivíduos que migraram do campo para a cidade ou de cidades do interior  para os centros urbanos próximos e permaneceram ligados às suas terras natais, retornando em momentos de festividades locais, como as festas de padroeiro. Nesses momentos rituais, a

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 presença dos “filhos ausentes”

incrementa o contingente de devotos ao santo da cidade ou da

família. Buscando travar relações novamente com os parentes e amigos que ficaram, esses indivíduos exercem também o papel de mediadores entre dois mundos. Nessa condição, ao mesmo tempo em que partilham de códigos e valores tradicionais locais, trazem conhecimentos e relatam experiências vivenciadas alhures. É nesse trânsito, comunicando saberes, experiências e símbolos diferentes, a partir de uma lógica de sociabilidade local, que se dão as transformações na realidade social e a construção da identidade dos indivíduos. Acreditando, como Walter Benjamin (1994), que a narrativa ou ato comunicativo expressa e forma a experiência coletiva, pensamos haver, por meio das trocas entre os jovens e os mais velhos, uma espécie de ritualização da vida social adulta na juventude. Além disso, concebendo a narrativa como um ato performático, uma vez que ela se caracteriza pela comunicação de experiências, podemos observar o modo como são reveladas as transições e mudanças nas realidades sociais. Assim, menos do que descrever as permanências e tradicionalismos arcaizantes das culturas locais ou coletividades periféricas  –  desse modo vistas como “paradas no tempo e no espaço” – ,

procuramos investigar o sentido dinâmico de constituição das identidades dos

indivíduos jovens. Identidade que se define por meio de um processo contínuo de trocas, dialetizando mudanças e permanências. Nesse sentido, tais indivíduos, partilhando de uma memória coletiva e reconstruindo o seu passado, também comemoram os valores do grupo, ainda que ressignificando-os segundo suas próprias experiências. Desse modo, inscritos nos limites dos “quadros sociais da memória”, a atuação desses indivíduos nos chamados

 processos de retradicionalização de suas comunidades  –   fenômeno recorrente nas comunidades etnicamente diferenciadas  – , nos mostram que, consoante às explicações de Halbwachs ([1925] 2002), a memória não faz reviver o passado, mas o reconstrói. Valorizando símbolos e códigos sociais de seus grupos sociais de origem, como, por exemplo, festas, danças e manifestações culturais populares tradicionais, os jovens poderiam, então, “refazer a trajetória histórica” de si e de seus grupos.

Sendo assim, podemos pensar que haveria uma memória dinamizada pela ação dos atores sociais, estando, dessa forma, aberta a um processo interativo de criatividade e de reinvenção. O relato do passado, então, seria orquestrado por formas locais de representação. Acrescentamos, nessa discussão, o fato de que as minorias ou grupos sociais periféricos, no mais das vezes, não se identificam com a versão oficial da história, construindo uma narrativa  própria do seu passado. É nesse momento que alguns grupos de jovens podem atuar decisivamente nos modos de rememoração do passado local e seus personagens, pondo em

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evidência cenas descritas como coadjuvantes por uma história oficial nacional ou local. Em Canguaretama, cidade do litoral Sul do Rio Grande do Norte, por exemplo, um grupo de  jovens teatraliza fatos do passado colonial local, esquecidos nas páginas da história da Guerra de Pernambuco contra os holandeses, “estimulados” por um discurso religioso que notabilizar a história do Estado. Mas, ao lado desse “teatro da memória” ,

 busca

que busca

 presentificar o evento histórico, tornando-o paradigmático, afloram outras “leituras nativas” do passado local, recriando outras seqüências de imagens, como as referências a encantamentos e tesouros, enterrados nas terras de um senhor de engenho cruel (OLIVEIRA, 2003).  Nesses espaços e tempos de atuação dos jovens junto a suas comunidades, podem manifestar-se certas posturas políticas, evidenciando as diferentes formas de ligação desses indivíduos aos seus grupos sociais e familiares. Como dissemos, a mediação das redes de sociabilidade doméstica pode orientar, de modo privilegiado, os processos sócio-identitários dos jovens na periferia, o que significa dizer que, nas trocas simbólicas vivenciadas por eles, são criados laços que os vinculam ao passado, presente e futuro de suas comunidades ou grupos familiares. Procuramos pôr em primeiro plano, mais uma vez, a condição reflexiva de suas ações e pensamentos enquanto elementos importantes na estruturação das formas de organização social local. Nesse sentido, ainda conforme Durkheim e Mauss ([1903] 2002), observamos que a classificação ou organização da sociedade, servindo para tornar compreensíveis as relações entre os homens, expressa, nas práticas e representações dos indivíduos, um pensamento refletido do grupo. Além disso, não devemos esquecer que nessas trocas, percebidas como atos performáticos, dadas as suas condições de interação e reflexividade, são transmitidos saberes sociais, memória e o sentido de identidade (TAYLOR, 2000). Por conseguinte, mesmo na fruição dos tempos e espaços sociais de lazer, os jovens  podem assumir posturas de manifesto significado político, como aquelas ligadas a retradicionalização de suas comunidades. Ainda que não ligadas a questões mais prementes da vida material de seus grupos sociais de origem, as diferentes formas de manifestação e associação juvenil, seja entre os próprios jovens, seja entre eles e os indivíduos mais velhos, obedecem a um claro princípio político-social de organização e identificação. No entanto, as manifestações dos jovens, sobretudo em torno de determinados movimentos culturais, são vistos, em vários momentos, como expressões de alienação (MARTINS apud FAUSTO  NETO; QUIROGA, 2000). Desqualificando muitas das manifestações juvenis, esquece-se que os jovens, em suas operações simbólicas, atuam ativamente nas formas de organização social

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em que se encontram inseridos. Devemos levar em consideração, desse modo, que os indivíduos jovens participam de forma ativa em suas escolhas e ações, não simplesmente reproduzindo códigos e valores simbólicos “sem significados”. Pelo contrário, o consumo ou assimilação dos jovens dos produtos e valores “externos” às suas

vivências sociais se dão

mediante escolhas motivadas exatamente por essas vivências e experiências. Além disso, conforme buscamos apresentar, elas fornecem as chaves de interpretação da realidade e orientam o sentido de seus processos de identificação e pertencimento. CONCLUSÃO Refletindo sobre as representações e práticas de indivíduos jovens em espaços sociais  periféricos, na tentativa de apreender o sentido do sentimento de pertença a grupos locais, observamos a importância de certas referências sócio-identitárias primárias na organização e expressão das experiências juvenis. De acordo com o exposto, acreditamos que a constituição dos laços sociais que os une é construída nas fronteiras simbólicas que articulam o velho e o novo, o tradicional e o moderno, pondo em evidência a complexidade da relação presente nas trocas intergeracionais. Desse modo, buscamos apreender a juventude, em sua dimensão transitiva e liminar, privilegiando o caráter reflexivo de suas redes de sociabilidade. Para tanto, se fez necessária a adoção de uma abordagem que mostrasse não apenas as contradições e descontinuidades de uma realidade juvenil, face aos ditames de uma vida adulta. Preferimos, em sentido contrário, abordar a dimensão do simbólico e da importância das sociabilidades domésticas na estruturação de suas vidas sociais e constituição de identidades coletivas. Transitando entre realidades sociais diferentes e, desse modo, dialetizando mudanças e  permanências na organização de suas experiências coletivas, os jovens equacionam de modo  particular as noções de cultura, identidade e representações sociais. Essas deixam de referenciar realidades estanques, para pôr em evidência as continuidades e comunicações simbólicas entre indivíduos, grupos e gerações. Foi visto, então, que, nos tempos e espaços de atuação dos jovens, organizados em torno de um princípio inclusivo de interação simbólica entre códigos e valores tradicionais de seus grupos de origem e aqueles experienciados em suas vivências coletivas, eles poderiam desempenhar protagonizar papéis de liderança frente à realidade social na qual estão inseridos. Assim, dizendo respeito a uma condição social particular e a um conjunto de representações específico, a juventude pôde ser apreendida enquanto uma realidade social complexa, definida pela idéia de communitas. Nesta, os indivíduos frente a frente com outros

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iguais são capazes de produzir estranhamentos e, por conseguinte, conhecimentos a cerca de si e de seus grupos sociais. Dessa forma, longe de pensar os jovens a partir de uma  perspectiva individualista, característica de uma suposta dinâmica social moderna, atomizando a realidade social juvenil em grupos de delinqüência ou de aprendizes que se definem apenas por um “vir a ser”, optamos por enfatizar as trocas e alianças instituídas entr e

 jovens e suas comunidades. As relações propostas, em alguns estudos, de oposição entre  jovens e não jovens, entre trabalho e lazer ou entre vida sociocultural e organização política,  podem ser, afinal, ressemantizados. Ao invés de desvios funcionais na sociedade, a organização social dos indivíduos jovens, conforme visto, pode refletir a própria organização da sociedade na qual eles se encontram. Aprendendo com Durkheim ([1898] 2002) que a vida coletiva, semelhante à vida mental dos indivíduos, é feita de representações, podemos pensar, associando estas às idéias de Turner (1974), que tais construções simbólicas dramatizam a vida social desses indivíduos. Assim, juntando representações individuais e representações sociais, podemos pensar o sentido do pertencer a um coletivo como uma síntese operada no comportamento e  pensamento de indivíduos concretos, refletindo uma dada ordem social. Nesse sentido, a identidade criada na periferia, lugar reservado aos pobres em uma divisão “moderna” da geografia capitalista, imprime marcas nas ações sociais e pensamentos dos indivíduos que orientam, em diversos momentos, o sentido de suas vivências e experiências coletivas. Lembramos, ainda, dizendo respeito a uma dimensão “inconsciente” de alguns dos atos e  pensamentos juvenis, tais operações simbólicas dão o matiz de suas escolhas sócioidentitárias.

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