Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

March 25, 2018 | Author: Fernando Carlucci | Category: William Shakespeare, Tiger, Memory, Love, Paradise
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JORGE LUIS BORGES – OBRAS COMPLETAS VOLUME III 1975-1985 Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges – Obras Completas 98-3272 Copyright ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.

1ª Reimpressão-9/98 2ª Reimpressão-1/99 3ª Reimpressão – 12/99 Edição baseada em: Jorge Luis Borges – Obras Completas, publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha. Coordenação editorial: Carlos V. Frías Capa: Joseph Ulbach / Emecé Editores Ilustração: Alberto Ciupiak Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá Assessoria editorial: Jorge Schwartz Preparação de textos: Maria Carolina de Araújo Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian, Luciana Vieira Alves e Márcia Menin Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda. Fotolitos: GraphBox Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos, Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman

Agradecimentos especiais a Élida Lois Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à EDITORA GLOBO S.A. Avenida Jaguaré, 1485 CEP O5346-9O2 – Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP E-mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Impressão e acabamento: Gráfica Círculo CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte – Câmara Brasileira do Livro, SP Borges, Jorge Luis, 1899-1986. Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. – São Paulo : Globo, 1999. Título original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vários tradutores. V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O (v. 4.) 1. Ficção argentina 1. Título. Índices para catálogo sistemático 1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4 2. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4 CDD-ar863.4

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A Memória de Shakespeare La memória de Shakespeare Tradução: Bella Jozef

A MEMÓRIA DE 1 SHAKESPEARE

1

Compreende três contos inseridos em diferentes publicações, anteriores a 1983, e um intitulado "A memória de Shakespeare" (1980), não incluído até agora em livro.

VINTE E CINCO DE AGOSTO, 1983

Vi no relógio da pequena estação que já passavam das onze da noite. Fui caminhando até o hotel. Senti, como das outras vezes, a resignação e o alívio que os lugares muito conhecidos nos infundem. O largo portão estava aberto; a casa de campo, às escuras. Entrei no vestíbulo, cujos pálidos espelhos repetiam as plantas do salão. Curiosamente, o dono do hotel não me reconheceu e estendeu-me o livro de registro. Peguei a pena que estava presa à escrivaninha, molhei-a no tinteiro de bronze e, ao inclinar-me sobre o livro aberto, ocorreu a primeira surpresa das muitas que essa noite me depararia. Meu nome, Jorge Luis Borges, já estava escrito e a tinta, ainda fresca. O dono disse-me: – Pensei que o senhor já tivesse subido. Depois, olhou-me bem e corrigiu-se: – Desculpe. O outro se parece tanto, mas o senhor é mais jovem. Perguntei-lhe: – Em que quarto ele está? – Pediu o 19 – foi a resposta. Era o que eu temia. Larguei a pena e subi correndo as escadas. O quarto 19 ficava no segundo andar e dava para um pobre pátio desmantelado em que havia uma varanda e, lembro-me, um banco de praça. Era o quarto mais alto do hotel. Abri a porta que cedeu. Não haviam apagado o lustre. Sob a impiedosa luz eu me

reconheci. De costas na estreita cama de ferro, mais velho, enfraquecido e muito pálido, estava eu, os olhos perdidos nas altas molduras de gesso. Veio-me a voz. Não era precisamente a minha; mas a que costumo ouvir em minhas gravações, ingrata e sem matizes. – Que estranho – dizia –, somos dois e somos o mesmo. Mas nada e estranho nos sonhos. Perguntei assustado: – Então, tudo isto é um sonho? – É, tenho certeza, meu último sonho. Com a mão mostrou o frasco vazio sobre o mármore da mesinha-de-cabeceira. Você terá, entretanto, muito com que sonhar, antes de chegar a esta noite. Em que dia você está? – Não sei muito bem – disse-lhe aturdido. – Mas ontem fiz sessenta e um anos. – Quando sua vigília chegar a esta noite, você terá feito, ontem, oitenta e quatro. Hoje estamos em 25 de agosto de 1983. – Terei de esperar muitos anos – murmurei. – Para mim já nada me resta – disse ele bruscamente. – Posso morrer a qualquer momento, posso perder-me naquilo que não sei e continuo sonhando com o duplo. O fatigado tema que me deram os espelhos e Stevenson. Senti que a evocação de Stevenson era uma despedida e não uma atitude pedante. Eu era ele e compreendia. Não bastam os momentos mais dramáticos para ser Shakespeare e dar com frases memoráveis. Para distraí-lo, disse-lhe: – Sabia que isso ia acontecer com você. Aqui mesmo há anos, em um dos quartos abaixo, iniciamos o rascunho da história deste suicídio. – Sim – respondeu-me lentamente, como se amealhasse recordações, Mas não vejo relação. Naquele rascunho eu havia comprado uma passagem de ida para Adrogué, e já no hotel

Las Delicias havia subido até o quarto 19, o mais afastado de todos. Ali eu me suicidara. – Por isso estou aqui – disse-lhe. – Aqui? Sempre estamos aqui. Aqui o estou sonhando na casa da rua Maipú. Aqui estou indo embora, no quarto que foi da mãe. – Que foi da mãe – repeti, sem querer entender. – Eu sonho com você no quarto 19, no pátio de cima. – Quem sonha com quem? Eu sei que sonho com você, mas não sei se você está sonhando comigo. O hotel de Adrogué foi demolido já faz tantos anos, vinte, talvez trinta. Quem sabe quantos. – O sonhador sou eu – repliquei com certo desafio. – Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar se há um único homem sonhando ou dois que sonham um com o outro. – Eu sou Borges, que viu seu nome no livro de registro e subiu. – Borges sou eu, que estou morrendo na rua Maipú. Houve um silêncio, o outro disse-me: – Vamos fazer a prova. Qual foi o momento mais terrível de nossa vida? Inclinei-me sobre ele e ambos falamos ao mesmo tempo. Sei que nós dois mentimos. Um tênue sorriso iluminou o rosto envelhecido. Senti que, de algum modo, esse sorriso refletia o meu. – Nós mentimos um para o outro – disse-me ele – porque nos sentimos dois e não um. A verdade é que somos dois e somos um. Essa conversa me irritava. Foi o que eu lhe disse. Acrescentei: – E você, em 1983, não vai revelar-me nada sobre os anos que me faltam? – O que posso dizer-lhe, pobre Borges? Repetir-se-ão as desgraças às quais você já está acostumado. Ficará sozinho

nesta casa. Tocará nos livros sem letras e no medalhão de Swedenborg e na bandeja de madeira com a Cruz Federal. A cegueira não é a treva; é uma forma de solidão. Você voltará à Islândia. – A Islândia! A Islândia dos mares! – Em Roma, você repetirá os versos de Keats, cujo nome, como o de todos, foi escrito na água. – Nunca estive em Roma. – Há outras coisas também. Você escreverá nosso melhor poema, que será uma elegia. – À morte de... – disse eu. Não me atrevi a dizer o nome. – Não. Ela viverá mais do que você. Ficamos em silêncio. Prosseguiu: – Você escreverá o livro com o qual sonhamos tanto tempo. Por volta de 1979, você compreenderá que sua suposta obra é apenas uma série de rascunhos, uma miscelânea de rascunhos, e você cederá à vã e supersticiosa tentação de escrever seu grande livro. A superstição que nos infligiu o Fausto de Goethe, Salammbô, o Ulysses. Inacreditavelmente, enchi muitas páginas. – E, afinal você compreendeu que havia fracassado. – Algo pior. Compreendi que era uma obra-prima no sentido mais opressivo da palavra. Minhas boas intenções não haviam passado das primeiras páginas; nas demais estavam os labirintos, as facas, o homem que se crê uma imagem, o reflexo que se crê verdadeiro, o tigre das noites, as batalhas que retornam ao sangue, Juan Muraria cego e fatal, a voz de Macedonio, a nave feita com as unhas dos mortos, o inglês antigo repetido durante as tardes. – Esse museu me é familiar – observei com ironia. – Além disso, as falsas recordações, o duplo jogo dos símbolos, as longas enumerações, o bom manejo do prosaísmo, as simetrias imperfeitas que os críticos descobrem com estardalhaço, as citações nem sempre apócrifas. – Você publicou esse livro?

– Brinquei, sem convicção, com o melodramático propósito de destruí-lo, talvez pelo fogo. Acabei publicando-o em Madri, sob pseudônimo. Falou-se de um inábil imitador de Borges, que tinha o defeito de não ser Borges e de haver repetido o aspecto exterior do modelo. – Isso não me surpreende – disse eu. – Todo escritor acaba sendo seu discípulo menos inteligente. – Esse livro foi um dos caminhos que me conduziram a esta noite. Quanto aos demais... A humilhação da velhice, a convicção de já haver vivido cada dia... – Não escreverei esse livro – disse. – Você vai escrevê-lo. Minhas palavras, que agora são o presente, serão apenas a memória de um sonho. Incomodou-me seu tom dogmático, sem dúvida o mesmo que uso em minhas aulas. Incomodou-me que nos parecêssemos tanto e que ele se aproveitasse da impunidade que a iminência da morte lhe propiciava. Para revidar, disse-lhe: – Você tem tanta certeza de que vai morrer? – Sim – replicou. – Sinto uma espécie de doçura e de alívio que nunca senti. Nem posso expressá-lo. Todas as palavras requerem uma experiência compartilhada. Por que o que digo parece incomodá-lo tanto? – Porque nos parecemos demais. Detesto sua cara, que é minha caricatura, detesto sua voz, que é arremedo da minha, detesto sua sintaxe patética, que é a minha. – Eu também – disse o outro. – Por isso resolvi suicidar-me. Um pássaro cantou lá na casa de campo. – É o último – disse o outro. Com um gesto, chamou-me para seu lado. Sua mão procurou a minha. Recuei; temi que as duas se confundissem. Disse-me: – Os estóicos ensinam que não devemos queixar-nos da vida; a porta da prisão está aberta. Sempre entendi assim, mas a preguiça e a covardia me detiveram. Há uns doze dias, eu estava dando uma conferência em La Plata sobre o Livro

VI da Eneida. De repente, ao escandir um hexâmetro, descobri qual era meu caminho. Tomei esta decisão. A partir daquele momento, senti-me invulnerável. Minha sorte será a sua, você receberá a inesperada revelação, em meio ao latim e a Virgílio, e já terá esquecido inteiramente este curioso diálogo profético, que transcorre em dois tempos e em dois lugares. Quando voltar a sonhar com isso, você será o que eu sou e você será meu sonho. – Não esquecerei isso e vou escrevê-lo amanhã. – Ficará no fundo de sua memória, debaixo da maré dos sonhos. Quando você o escrever, pensará estar urdindo um conto fantástico. Não será amanhã, ainda lhe faltam muitos anos. Parou de falar, compreendi que havia morrido. De certo modo eu morria com ele; inclinei-me angustiado sobre o travesseiro e já não havia ninguém. Fugi do quarto. Do lado de fora não havia o pátio, nem as escadas de mármore, nem a grande casa silenciosa, nem os eucaliptos, nem as estátuas, nem o caramanchão, nem os chafarizes, nem o portão da grade da casa de campo no povoado de Adrogué. Fora outros sonhos esperavam-me.

TIGRES AZUIS

Uma famosa página de Blake faz do tigre um fogo que resplandece e um arquétipo eterno do Mal; prefiro aquela frase de Chesterton, que o define como símbolo de terrível elegância. Não há palavras, além do mais, que possam ser cifra do tigre, essa forma que há séculos habita a imaginação dos homens. O tigre sempre me atraiu. Sei que me demorava, quando garoto, diante de certa jaula do Zoológico: as outras nada me interessavam. Julgava as enciclopédias e os textos de história natural pelas gravuras dos tigres. Quando os Jungle Books me foram revelados, desagradou-me que Shere Khan, o tigre, fosse inimigo do herói. Ao longo do tempo, esse curioso amor não me abandonou. Sobreviveu a minha paradoxal vontade de ser caçador e às comuns vicissitudes humanas. Até há pouco – a data parece-me longínqua, mas na realidade não o é –, conviveu de modo tranqüilo com minhas tarefas habituais na Universidade de Lahore. Sou professor de lógica ocidental e oriental e consagro meus domingos a um seminário sobre a obra de Spinoza. Devo acrescentar que sou escocês; talvez o amor pelos tigres tenha sido o que me trouxe de Aberdeen ao Punjab. O curso de minha vida tem sido normal, nos sonhos sempre vi tigres. (Agora outras formas os povoam,) Mais de uma vez narrei essas coisas e agora parecem-me estranhas. Transcrevo-as, entretanto, já que minha confissão as exige. Em fins de 1904, li que na região do delta do Ganges

haviam descoberto uma variedade azul da espécie. A notícia foi confirmada por telegramas posteriores, com as contradições e disparidades próprias do caso. Meu velho amor reanimou-se. Suspeitei ser um erro, dada a habitual imprecisão dos nomes das cores. Recordei ter lido que em islandês o nome da Etiópia era "Bláland", Terra Azul ou Terra de Negros. O tigre azul bem podia ser uma pantera negra. Nada se disse das listras nem da estampa de um tigre azul com listras de prata que a imprensa de Londres divulgou; era evidentemente apócrifa. O azul da ilustração pareceu-me mais próprio da heráldica que da realidade. Em um sonho vi tigres de um azul que eu nunca havia visto e para o qual não achei a palavra justa. Sei que era quase negro, mas essa circunstância não basta para imaginar o matiz. Meses depois, um colega disse-me que em certa aldeia muito distante do Ganges havia ouvido falar de tigres azuis. O dado não deixou de surpreender-me, porque sei que nessa região os tigres são raros. Sonhei novamente com o tigre azul, que, ao andar, projetava sua longa sombra sobre o solo arenoso. Aproveitei as férias para empreender a viagem a essa aldeia, de cujo nome – por motivos que depois esclarecerei – não quero lembrar-me. Cheguei quando já terminava a estação das chuvas. A aldeia estava encolhida ao pé de um monte, que me pareceu mais largo que alto, e a selva, de cor parda, cercava-a e a ameaçava. Em alguma página de Kipling tem de estar a aldeola de minha aventura, já que nelas está toda a índia, e de algum modo todo o orbe. Para mim, basta contar que uma vala, com pontes oscilantes de bambu, mal protegia as choças. Em direção ao sul havia pântanos e arrozais e uma depressão com um rio lodoso cujo nome nunca soube, e depois, de novo, a selva. A população era de hindus. O fato, que eu havia previsto, não me agradou. Sempre me dei melhor com os muçulmanos, apesar de o Islã, bem sei, ser a mais pobre das crenças que procedem do judaísmo.

Sentimos que na índia o homem pulula; na aldeia senti que o que pulula é a selva, que quase penetrava nas choças. O dia era sufocante e as noites não refrescavam. Os anciãos deram-me as boas-vindas e com eles mantive um primeiro diálogo, feito de vagas cortesias. Já falei da pobreza do lugar, mas sei que todo homem tem certeza de que sua pátria encerra algo único. Ponderei as duvidosas acomodações e os não menos duvidosos manjares e disse que a fama dessa região havia chegado a Lahore. Os rostos dos homens mudaram; intuí, imediatamente, que havia cometido uma infâmia e que devia arrepender-me. Senti-os possuidores de um segredo que não compartilhariam com um estranho. Talvez venerassem o Tigre Azul e lhe professassem um culto que minhas temerárias palavras haviam profanado. Esperei a manhã do outro dia. Consumido o arroz e bebido o chá, abordei meu tema. Apesar da véspera, não entendi, não consegui entender, o que sucedeu. Todos olharam-me com estupor e quase com espanto, mas, quando lhes disse que meu propósito era prender a fera da curiosa pele, ouviram-me com alívio. Alguém disse que o havia divisado no limite da selva. No meio da noite despertaram-me. Um rapaz disse-me que uma cabra havia escapado do cercado e que, ao procurá-la, divisara o tigre azul na outra margem do rio. Pensei que a luz da lua nova não permitisse precisar a cor, mas todos comfirmaram o relato, e alguém, que antes guardara silêncio, disse que também o havia visto. Saímos com os rifles e vi, ou pensei ver, uma sombra felina que se perdia na treva da selva. Não deram com a cabra, mas a fera que a levara bem podia não ser meu tigre azul. Indicaram-me com ênfase alguns rastros que, claro, nada provavam. Depois de algumas noites, compreendi que esses falsos alarmes constituíam uma rotina. Como Daniel Defoe, os homens do lugar eram destros na invenção de dados circunstanciais. O tigre podia ser avistado a qualquer hora, perto dos arrozais do sul ou perto da maranha do norte, mas não demo-

rei a perceber que os observadores se revezavam com uma regularidade suspeita. Minha chegada coincidia invariavelmente com o exato momento em que o tigre acabava de fugir. Sempre me mostravam a pegada e algum estrago, mas o punho de um homem pode falsificar os rastros de um tigre. Uma ou outra vez fui testemunha de um cão morto. Uma noite de lua, pusemos uma cabra como isca e esperamos em vão até a aurora. Pensei, a princípio, que essas fábulas cotidianas obedecessem ao propósito de que eu prorrogasse minha estada, que beneficiava a aldeia, já que as pessoas me vendiam alimentos e cuidavam de meus afazeres domésticos. Para verificar essa conjetura, disse-lhes que pensava procurar o tigre em outra região, localizada águas abaixo. Surpreendeu-me que todos aprovassem minha decisão. Continuei percebendo, entretanto, que havia um segredo e que todos desconfiavam de mim. Já disse que o monte frondoso em cujo pé se amontoava a aldeia não era muito alto; um planalto o truncava. Do outro lado, em direção ao oeste e ao norte, estendia-se a selva. Como a encosta não era áspera, propus-lhes uma tarde escalar o monte. Minhas simples palavras os consternaram. Um exclamou que a ladeira era muito escarpada. O mais idoso disse com gravidade que meu propósito era de impossível execução. O cume era sagrado e estava proibido aos homens por obstáculos mágicos. Quem o pisasse com pés mortais corria o risco de ver a divindade e de ficar louco ou cego. Não insisti, mas nessa noite, quando todos dormiam, esgueirei-me da choça sem fazer ruído e subi a fácil encosta. Não havia caminho e o mato me fez demorar. A lua estava no horizonte. Reparei com singular atenção em todas as coisas, como se pressentisse que aquele dia ia ser importante, talvez o mais importante de meus dias. Lembro ainda os tons escuros, às vezes quase negros, da folhagem. Clareava e no espaço das selvas não cantou um único pássaro. Vinte ou trinta minutos de subida e pisei o planalto. Nada me custou imaginar que era mais fresco que a aldeia, sufocada a

seus pés. Comprovei que não era o cume, mas sim uma espécie de plataforma, não muito dilatada, e que a selva se estendia para cima, no flanco da montanha. Senti-me livre, como se minha permanência na aldeia tivesse sido uma prisão. Não me importava que seus habitantes houvessem querido enganar-me; senti que de algum modo eram crianças. Quanto ao tigre... As muitas frustrações haviam desgastado minha curiosidade e minha fé, mas de modo quase mecânico procurei rastros. O solo era gretado e arenoso. Em uma das fendas, que por certo não eram profundas e ramificavam-se em outras, reconheci uma cor. Era, inacreditavelmente, o azul do tigre de meu sonho. Oxalá não o houvesse visto nunca. Prestei muita atenção. A greta estava cheia de pedrinhas, todas iguais, circulares, muito lisas e de poucos centímetros de diâmetro. Sua regularidade emprestava-lhes algo de artificial, como se fossem fichas. Inclinei-me, pus a mão na fenda e peguei algumas. Senti um levíssimo tremor. Guardei o punhado no bolso direito, em que havia uma tesourinha e uma carta de Allahabad. Estes dois objetos casuais têm seu lugar em minha história. Já na choça, tirei o casaco. Deitei-me na cama e voltei a sonhar com o tigre. No sonho observei a cor; era a do tigre já sonhado e a das pedrinhas do planalto. Despertou-me o sol alto no rosto. Levantei-me. A tesoura e a carta estorvavam-me para tirar os discos. Tirei um primeiro punhado e senti que ainda restavam dois ou três. Uma espécie de comichão, uma agitação muito leve, deu calor a minha mão. Ao abri-la, vi que os discos eram trinta ou quarenta. Eu teria jurado que não passavam de dez. Deixei-os sobre a mesa e procurei os outros. Não precisei contá-los para verificar que se haviam multiplicado. Juntei-os em uma única pilha e tentei contá-los um a um. A simples operação tornou-se impossível. Olhava firmemente qualquer um deles, retirava-os com o polegar e o indicador e, quando havia um só, eram muitos. Comprovei que

não tinha febre e experimentei várias vezes. O obsceno milagre repetia-se. Senti frio nos pés e no baixo-ventre e tremiam-me os joelhos. Não sei quanto tempo passou. Sem olhá-los, juntei os discos em uma única pilha e atirei-os pela janela. Com estranho alívio, senti que seu número havia diminuído. Fechei a porta com firmeza e deitei-me na cama. Procurei a exata posição anterior e quis persuadir-me de que tudo havia sido um sonho. Para não pensar nos discos, para povoar de algum modo o tempo, repeti com lenta precisão, em voz alta, as oito definições e os sete axiomas da Ética. Não sei se me ajudaram. Estava em tais exorcismos quando ouvi uma batida. Instintivamente, temi que me houvessem escutado falar sozinho e abri a porta. Era o mais velho, Bhagwan Dass. Por um instante sua presença pareceu restituir-me o cotidiano. Saímos. Eu tinha a esperança de que houvessem desaparecido os discos, mas aí estavam na terra. Já não sei quantos eram. O ancião olhou-os e olhou-me. – Estas pedras não são daqui. São lá de cima – disse com uma voz que não era a sua. – E isso mesmo – respondi-lhe. Acrescentei, não sem um desafio, que as havia encontrado no planalto, e imediatamente envergonhei-me de dar-lhe explicações. Bhagwan Dass, sem dar-me atenção, ficou olhando-as fascinado. Ordenei-lhe que as recolhesse. Não se mexeu. Dói-me confessar que tirei o revólver e repeti a ordem em voz mais alta. Bhagwan Dass balbuciou: – Mais vale uma bala no peito do que uma pedra azul na mão. – Você é um covarde – disse-lhe. Eu estava, creio, não menos apavorado, mas fechei os olhos e peguei um punhado de pedras com a mão esquerda. Guardei o revólver e deixei-as cair na palma aberta da outra. Seu número era muito maior,

Sem saber, já estava acostumando-me a essas transformações. Surpreenderam-me menos que os gritos de Bhagwan Dass. – São as pedras que procriam! – exclamou. – Agora são muitas, mas podem mudar. Têm a forma da lua quando está cheia e essa cor azul que só é permitido ver nos sonhos. Os pais de meus pais não mentiam quando falavam de seu poder. A aldeia inteira cercava-nos. Senti-me o mágico possuidor dessas maravilhas. Ante o assombro unânime, apanhava os discos, elevava-os, deixava-os cair, espalhava-os, via-os crescer e multiplicar-se ou diminuir estranhamente. As pessoas aglomeravam-se, acometidas de estupor e de horror. Os homens obrigavam suas mulheres a olharem o prodígio. Uma tapava o rosto com o antebraço, outra fechava as pálpebras. Ninguém se animou a tocar os discos, salvo um menino feliz que brincou com eles. Naquele momento senti que essa desordem estava profanando o milagre. Juntei todos os discos que pude e voltei para a choça. Talvez tenha tentado esquecer o resto daquele dia, que foi o primeiro de uma série de desventuras que não terminou ainda. O certo é que não lembro. Por volta do entardecer, pensei com nostalgia na véspera, que não havia sido particularmente feliz, já que esteve povoada, como as outras, pela obsessão do tigre. Quis amparar-me nessa imagem, antes armada de poder e agora insignificante. O tigre azul pareceu-me não menos inócuo que o cisne negro do romano, que descobriram depois na Austrália. Releio minhas notas anteriores e comprovo que cometi um erro capital. Desviado pelo hábito dessa boa ou má literatura que pessimamente se chama psicológica, quis recuperar, não sei por quê, a sucessiva crônica de minha descoberta. Mais me teria valido insistir na monstruosa índole dos discos. Se me dissessem que há unicórnios na lua, eu aprovaria ou rejeitaria essa informação ou retiraria minha opinião, mas poderia imaginá-los. Em compensação, se me dissessem que na

lua seis ou sete unicórnios podem ser três, eu afirmaria de antemão que o fato é impossível. Quem entendeu que três e um são quatro não faz a prova com moedas, com dados, com peças de xadrez ou com lápis. Entende a coisa e basta. Não pode conceber outra cifra. Há matemáticos que afirmam que três e um é uma tautologia de quatro, um modo diferente de dizer quatro... Coube a mim, Alexander Craigie, a sorte de descobrir, entre todos os homens da terra, os únicos objetos que contradizem essa lei essencial da mente humana. A princípio eu temera estar louco; com o tempo, creio que teria preferido estar louco, já que minha alucinação pessoal importaria menos que a prova de que no universo cabe a desordem. Se três e um podem ser dois ou podem ser catorze, a razão é uma loucura. Naquele tempo adquiri o hábito de sonhar com as pedras. A circunstância de que o sonho não voltasse todas as noites me concedia um resquício de esperança, que não tardava a converter-se em terror. O sonho era mais ou menos o mesmo. O princípio anunciava o temido fim. Uma varanda e uns degraus de ferro que desciam em espiral e depois um porão ou um sistema de porões que se afundavam em outras escadas cortadas quase a pique, em ferrarias, em serralharias, em calabouços e em pântanos. No fundo, em sua esperada fenda, as pedras, que eram também Behemoth ou Leviatã, os animais que significam na Escritura que o Senhor é irracional. Eu acordava tremendo e aí estavam as pedras na gaveta, prontas para se transformarem. As pessoas estavam diferentes comigo. Alguma coisa da divindade dos discos, que eles apelidavam de tigres azuis, havia-me tocado, mas também sabiam que eu era culpado por haver profanado o cume. A qualquer instante da noite, a qualquer instante do dia, os deuses podiam castigar-me. Não se atreveram a atacar-me ou a condenar meu ato, mas notei que todos eram agora perigosamente servis. Não voltei a ver o garoto que havia brincado com os discos. Temi o veneno ou um

punhal nas costas. Uma manhã, antes da aurora, evadi-me da aldeia. Senti que a população inteira me espiava e que minha fuga foi um alívio. Ninguém, desde aquela primeira manhã, havia querido ver as pedras. Voltei a Lahore. Em meu bolso estava o punhado de discos. O âmbito familiar de meus livros não me trouxe o alívio que eu procurava. Senti que no planeta persistiam a tediosa aldeia e a selva e o declive espinhoso com o planalto e no planalto as pequenas fendas e nas fendas as pedras. Meus sonhos confundiam e multiplicavam essas coisas díspares. A aldeia eram as pedras, a selva era o pântano e o pântano era a selva. Fugi da companhia de meus amigos. Temi ceder à tentação de mostrar-lhes esse milagre atroz que solapava a ciência dos homens. Ensaiei diversas experiências. Fiz uma incisão em forma de cruz em um dos discos. Misturei-o aos demais e perdi-o depois de uma ou duas conversões, apesar de ter aumentado o número dos discos. Fiz uma prova análoga com um disco que havia aparado com uma lima, um arco de círculo. Este também se perdeu. Com um buril, abri um orifício no centro de um disco e repeti a operação. Perdi-o para sempre. No dia seguinte, retornou de sua permanência no nada o disco da cruz. Que misterioso espaço era esse, que absorvia as pedras e devolvia com o tempo uma ou outra, obedecendo a leis inescrutáveis ou a um arbítrio inumano? O mesmo desejo de ordem que no princípio criou a matemática fez com que eu procurasse uma ordem nessa aberração da matemática que são as insensatas pedras que procriam. Em suas imprevisíveis variações quis encontrar uma lei. Consagrei os dias e as noites a fixar uma estatística das mudanças. Dessa etapa conservo alguns cadernos, em vão carregados de cifras. Meu procedimento era este. Contava com os olhos as peças e anotava o número. Depois as dividia em dois punhados, que eu jogava sobre a mesa. Contava as duas cifras, anotava-as e repetia a operação. Inútil foi a busca de uma ordem, de

um desenho secreto nas rotações. O máximo de peças que consegui foi 419; o mínimo, três. Houve um momento em que esperei, ou temi, que desaparecessem. Pouco depois de ensaiar, comprovei que um disco isolado dos outros não podia multiplicar-se ou desaparecer. Naturalmente, as quatro operações de somar, subtrair, multiplicar ou dividir eram impossíveis. As pedras negavam-se à aritmética e ao cálculo de probabilidades. Quarenta discos podiam, divididos, dar nove; os nove divididos, por sua vez, podiam ser trezentos. Não sei quanto pesavam. Não recorri a uma balança, mas tenho certeza de que seu peso era constante e leve. A cor era sempre aquele azul. Essas operações ajudaram-me a salvar-me da loucura. Ao manipular as pedras que destroem a ciência matemática, pensei mais de uma vez naquelas pedras do grego que foram os primeiros algarismos e que legaram a tantos idiomas a palavra "cálculo". A matemática, disse a mim mesmo, tem sua origem e agora seu fim nas pedras. Se Pitágoras houvesse feito as operações com estas... No fim de um mês, compreendi que o caos era inextricável. Indômitos, aí estavam os discos e a perpétua tentação de tocá-los, de voltar a sentir comichão, de atirá-los, de vê-los aumentar ou diminuir e de prestar atenção em pares ou impares. Cheguei a temer que contaminassem as coisas e particularmente os dedos que insistiam em manipulá-los. Durante alguns dias, impus-me o íntimo dever de pensar continuamente nas pedras, porque sabia que o esquecimento só podia ser momentâneo e que redescobrir meu tormento seria intolerável. Não dormi na noite de 10 de fevereiro. Após uma caminhada que me levou até a aurora, transpus os portais da mesquita de Wazil Khan. Era a hora em que a luz não revela ainda as cores. Não havia vivalma no pátio. Sem saber por quê, megulhei as mãos na água da cisterna. Já no recinto, pensei que Deus e Alá são dois nomes de um único Ser inconcebível

e pedi-lhe em voz alta que me livrasse de minha carga. Imóvel, aguardei uma resposta. Não ouvi os passos, mas uma voz próxima disse-me: – Aqui estou. Ao meu lado estava o mendigo. Decifrei no crepúsculo o turbante, os olhos apagados, a pele citrina e a barba cinzenta. Não era muito alto. Estendeu-me a mão e disse-me, sempre em voz baixa: – Uma esmola, Protetor dos Pobres. Procurei e respondi-lhe: – Não tenho uma única moeda. – Você tem muitas – foi a resposta. Em meu bolso direito estavam as pedras. Tirei uma e deixeia cair na mão oca. Não se ouviu o menor ruído. – Você tem de dar-me todas – disse-me. – Aquele que não deu tudo não deu nada. Compreendi e disse-lhe: –Quero que você saiba que minha esmola pode ser espantosa. Respondeu-me: –Talvez essa esmola seja a única que eu possa receber. Pequei. Deixei cair todas as pedras na mão côncava. Caíram como no fundo do mar, sem o mais leve rumor. Depois, disse-me: –Não sei ainda qual é sua esmola, mas a minha é espantosa. Você fica com os dias e as noites, com a prudência, com os hábitos, com o mundo. Não ouvi os passos do mendigo cego nem o vi perder-se na aurora.

A ROSA DE PARACELSO DE QUINCEY: Writings, XIII, 345. Em sua oficina, que abrangia os dois quartos do porão, Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer Deus, que lhe enviasse um discípulo. Entardecia. O escasso fogo da lareira lançava sombras irregulares. Levantar-se para acender o candeeiro de ferro dava trabalho demais. Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu sua prece. A noite havia apagado os empoeirados alambiques e o cadinho quando bateram à porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve escada de caracol e abriu uma das folhas da porta. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso indicou-lhe um banco; o outro sentou-se e esperou. Durante algum tempo não trocaram uma palavra. O mestre foi o primeiro a falar. – Lembro rostos do Ocidente e rostos do Oriente – disse, não sem certa pompa. – Não recordo o seu. Quem é você e o que deseja de mim? – Meu nome é o de menos – replicou o outro. – Caminhei durante três dias e três noites para entrar em sua casa. Quero ser seu discípulo. Trago todos os meus bens. Tirou um saco e virou-o sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro. Fez isso com a mão direita. Paracelso lhe tinha dado as costas para acender o candeeiro. Quando se virou, percebeu que a mão esquerda segurava uma rosa. A rosa o inquietou. Recostou-se, juntou a ponta dos dedos e disse:

–Você me julga capaz de elaborar a pedra que transforma todos os elementos em ouro e oferece-me ouro. Não é ouro o que procuro, e, se o ouro lhe interessa, você nunca será meu discípulo. – O ouro não me interessa – respondeu o outro. – Essas moedas são apenas uma parte de minha vontade de trabalha r. Quero que você me ensine a Arte. Quero percorrer a seu lado o caminho que conduz à Pedra. Paracelso disse com lentidão: – O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a Pedra. Se não entende estas palavras, você não começou a entender ainda. Cada passo que você der será a meta. O outro olhou-o com receio. Disse com voz diferente: – Mas há uma meta? Paracelso riu. – Meus detratores, que não são menos numerosos que estúpidos, dizem que não e me chamam de impostor. Não lhes dou razão, mas não é impossível que seja um iludido. Sei que "há" um Caminho. Houve um silêncio, e o outro disse: – Estou pronto para percorrê-lo com você, embora deva-mos caminhar muitos anos. Deixe-me atravessar o deserto. Deixe-me divisar, ainda que de longe, a terra prometida, apesar de os astros não me deixarem pisá-la. Quero uma prova, antes de empreender o caminho. – Quando? – disse Paracelso com inquietação. – Agora mesmo – disse o discípulo com brusca decisão. Começaram falando em latim; agora, em alemão. O rapaz ergueu a rosa no ar. – É fama – disse ele – que você pode queimar uma rosa e fazê-la ressurgir das cinzas, por obra de sua arte. Deixe-me ser testemunha desse prodígio. Isso lhe peço, e dar-lhe-ei depois minha vida inteira. – Você é muito crédulo – disse o mestre. – Não preciso da credulidade; exijo a fé.

O outro insistiu. –Precisamente porque não sou crédulo quero ver com meus olhos a extinção e a ressurreição da rosa. Paracelso a havia segurado e, ao falar, brincava com ela. –Você é crédulo – disse. – Você diz que sou capaz de destruí-la? –Ninguém é capaz de destruí-la – disse o discípulo. – Você está enganado. Porventura, acredita que algo pode ser devolvido ao nada? Você acredita que o primeiro Adão no Paraíso conseguiu destruir uma única flor ou um fiapo de capim? – Não estamos no Paraíso – disse teimosamente o rapaz – ; aqui, sob a lua, tudo é mortal. Paracelso havia-se posto de pé. – Em que outro lugar estamos? Você acha que a divindade pode criar um lugar que não seja o Paraíso? Acredita que a Queda não é outra coisa senão ignorar que estamos no Paraíso? – Uma rosa pode queimar-se – disse com desafio o discípulo. – Ainda resta fogo na lareira – disse Paracelso. – Se você atirasse esta rosa às brasas, acreditaria que foi consumida e que as cinzas são verdadeiras. Digo-lhe que a rosa é eterna e que só sua aparência pode mudar. Para mim, uma palavra bastaria para que você a visse de novo. – Uma palavra? – disse com estranheza o discípulo. O cadinho está apagado e os alambiques estão cheios de pó. O que faria você para que ressurgisse? Paracelso olhou-o com tristeza. – O cadinho está apagado – repetiu – e os alambiques estão cheios de pó. Neste trecho de minha longa jornada uso outros instrumentos. – Não me atrevo a perguntar quais são – disse o outro com astúcia ou com humildade. – Falo daquilo que a divindade usou para criar os céus e a terra e o invisível Paraíso em que estamos e que o pecado

original nos oculta. Falo da Palavra que nos ensina a ciência da Cabala. O discípulo disse com frieza: – Peço-lhe a gentileza de mostrar-me o desaparecimento e o aparecimento da rosa. Não me importa que você opere com alquitaras ou com o Verbo. Paracelso refletiu. Por fim, disse: – Se eu fizesse isso, você diria que se trata de uma aparência imposta pela magia de seus olhos. O prodígio não lhe daria a fé que você procura. Portanto, deixe a rosa. O jovem olhou-o, sempre receoso. O mestre levantou a voz e disse-lhe: –Além disso, quem é você para entrar na casa de um mestre e exigir-lhe um prodígio? Que fez você para merecer semelhante dádiva? O outro replicou, trêmulo: –Já sei que não fiz nada. Peço-lhe em nome dos muitos anos que estudarei a sua sombra que você me deixe ver as cinzas e depois a rosa. Não lhe pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho de meus olhos. Bruscamente, pegou a rosa encarnada que Paracelso havia deixado sobre a escrivaninha e lançou-a às chamas. A cor perdeu-se e só ficou um pouco das cinzas. Durante um instante infinito esperou as palavras e o milagre. Paracelso não se alterara. Disse com curiosa simplicidade: –Todos os médicos e todos os boticários de Basiléia afirmam que sou um embusteiro. Talvez estejam certos. Aí estão as cinzas que a rosa foi e que não tornará. O rapaz sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ou um mero visionário, e ele, um intruso, havia franqueado sua porta e obrigava-o agora a confessar que suas famosas artes mágicas eram vãs. Ajoelhou-se e disse-lhe: – Agi de modo imperdoável. Faltou-me a fé, que o Senhor exigia dos crentes. Deixe que continue vendo a cinza. Voltarei

quando for mais forte e serei seu discípulo, e no fim do Caminho verei a rosa. Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava o velho mestre, tão venerado, tão agredido, tão insigne e, portanto, tão vazio. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega que por trás da máscara não havia ninguém? Deixar-lhe as moedas de ouro seria uma esmola. Retomou-as ao sair. Paracelso acompanhou-o até o pé da escada e disse-lhe que nessa casa sempre seria bem-vindo. Ambos sabiam que não voltariam a ver-se. Paracelso ficou só. Antes de apagar o candeeiro e de sentarse na fatigada poltrona, virou o tênue punhado de cinzas na mão côncava e disse uma palavra em voz baixa. A rosa ressurgiu.

A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE

Há devotos de Goethe, das Eddas e do tardio cantar dos Nibelungos; Shakespeare foi meu destino. Ainda é, mas de um modo que ninguém teria podido pressentir, salvo um único homem, Daniel Thorpe, que acaba de morrer em Pretória. Há outro cujo rosto nunca vi. Sou Hermann Soergel. O curioso leitor talvez tenha folheado minha "Cronologia de Shakespeare", que achei ser necessária certa vez à boa inteligência do texto e que foi traduzida para vários idiomas, inclusive o castelhano. Não é impossível que recorde também uma prolongada polêmica sobre certa emenda que Theobald intercalou em sua edição crítica de 1734 e que, desde essa data, é parte não discutida do cânone. Hoje, surpreende-me o tom incivil daquelas quase alheias páginas. Por volta de 1914 redigi, e não entreguei à publicação, um estudo sobre as palavras compostas que o helenista e dramaturgo George Chapman forjou para suas versões homéricas e que retrocedem o inglês, sem que ele pudesse suspeitar disso, a sua origem (Urprung) anglo-saxônica. Nunca pensei que sua voz, que esqueci agora, ser-me-ia familiar... Alguma separata assinada com iniciais completa, creio, minha biografia literária. Não sei se é lícito acrescentar uma versão inédita de Macbeth, que realizei para não continuar pensando na morte de meu irmão Oito Julius, que caiu na frente ocidental em 1917. Não a concluí; compreendi que o inglês dispõe, para seu bem, de dois registros – o germânico e o latino –, enquanto nosso alemão, apesar de sua melhor música, deve limitar-se a um só. Nomeei Daniel Thorpe. Apresentou-o a mim o major Barclay, em certo congresso shakespeariano. Não direi o lugar nem a data; sei muito bem que tais precisões são, na realidade,

imprecisões. Mais importante que o rosto de Daniel Thorpe, que minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era sua notória infelicidade. Ao longo dos anos, um homem pode simular muitas coisas, mas não a felicidade. De modo quase físico, Daniel Thorpe exalava melancolia. Depois de uma longa sessão, a noite encontrou-nos em uma taverna qualquer. Para sentir-nos na Inglaterra (onde já estávamos), apuramos em rituais jarras de peltre, cerveja morna e negra. – No Punjab – disse o major – mostraram-me um mendigo. Uma tradição do Islã atribui ao rei Salomão um anel que lhe permitia entender a língua dos pássaros. Era fama que o mendigo tinha em seu poder o anel. Seu valor era tão inestimável que nunca pôde vendê-lo e morreu em um dos pátios da mesquita de Wazil Khan, em Lahore. Pensei que Chaucer não desconhecesse a fábula do prodigioso anel, mas dizê-lo teria sido o mesmo que estragar a historieta de Barclay. – E o anel? – perguntei. – Perdeu-se, segundo o costume dos objetos mágicos. Talvez esteja agora em algum esconderijo da mesquita ou na mão de um homem que viva em algum lugar onde faltem pássaros. – Ou onde haja tantos – disse – que o que dizem se confunde. – Sua história, Barclay, tem alguma coisa de parábola. Foi então que Daniel Thorpe falou. Ele o fez de modo impessoal, sem olhar-nos. Pronunciava o inglês de modo peculiar, que atribuí a uma longa permanência no Oriente. – Não é uma parábola – disse ele –, e, se o for, é verdade. Há coisas de um valor tão inestimável que não podem ser vendidas. As palavras que tento reconstruir me impressionaram menos do que a convicção com que as disse Daniel Thorpe.

Achamos que diria algo mais, mas de repente calou-se, como que arrependido. Barclay despediu-se. Juntos, nós dois voltamos ao hotel. Era muito tarde, mas Daniel Thorpe propôs-me que prosseguíssemos a conversa em seu quarto. Após algumas trivialidades, disse-me: – Ofereço-lhe o anel do rei. É claro que se trata de uma metáfora, mas o que essa metáfora encobre não é menos prodigioso que o anel. Ofereço-lhe a memória de Shakespeare desde os dias mais pueris e antigos até os do início de abril de 1616. Não acertei em pronunciar uma palavra. Foi como se me oferecessem o mar. Thorpe continuou: –Não sou um impostor. Não estou louco. Rogo-lhe que não julgue até depois de ouvir-me. O major deve ter-lhe dito que sou, ou era, médico militar. A história cabe em poucas palavras. Começa no Oriente, ao alvorecer, em um hospital de sangue. A data precisa não importa. Em suas últimas palavras, um soldado raso, Adam Clay, que havia sido atingido por duas descargas de fuzil, ofereceu-me, pouco antes do fim, a preciosa memória. A agonia e a febre são inventivas; aceitei a oferta sem dar-lhe crédito. Além disso, depois de uma ação de guerra, nada é muito estranho. Mal teve tempo de explicarme as singulares condições do presente. O possuidor tem de oferecê-lo em voz alta e o outro, de aceitá-lo. Aquele que o oferece perde-o para sempre. O nome do soldado e a cena patética da entrega pareceramme literários, no mau sentido da palavra. Um pouco intimidado, perguntei-lhe: –O senhor, agora, tem a memória de Shakespeare? Thorpe respondeu: – Tenho, ainda, duas memórias. A minha pessoal e a daquele Shakespeare que parcialmente sou. Ou melhor, duas memórias me têm. Há uma zona em que se confundem. Há um rosto de mulher que não sei a que século atribuir.

Perguntei-lhe então: – O que fez o senhor com a memória de Shakespeare? Houve um silêncio. Depois disse: – Escrevi uma biografia romanceada que mereceu o desdém da crítica e algum sucesso comercial nos Estados Unidos e nas colônias. Acho que é tudo. Preveni-o de que meu presente não é uma sinecura. Continuo à espera de sua resposta. Fiquei pensando. Não havia consagrado minha vida, não menos incolor que estranha, à busca de Shakespeare? Não seria justo que no fim da jornada eu desse com ele? Disse, articulando bem cada palavra: – Aceito a memória de Shakespeare. Algo, sem dúvida, aconteceu, mas não percebi. Apenas um princípio de fadiga, talvez imaginária. Lembro claramente que Thorpe me disse: – A memória já entrou em sua consciência, mas é preciso descobri-la. Surgirá nos sonhos, na vigília, ao virar as folhas de um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impaciente, não invente lembranças. O acaso pode favorecê-lo ou atrasá-lo, segundo seu misterioso modo. A medida que eu vá esquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um prazo. O que sobrava da noite foi dedicado a discutir o caráter de Shylock. Abstive-me de indagar se Shakespeare havia tido contato pessoal com judeus. Não quis que Thorpe imaginasse que eu o submetia a uma prova. Comprovei, não sei se com alívio ou com inquietação, que suas opiniões eram tão acadêmicas e tão convencionais como as minhas. Apesar da vigília anterior, quase não dormi na noite seguinte. Descobri, como em outras tantas ocasiões, que eu era um covarde. Pelo temor de ser defraudado, não me entreguei à generosa esperança. Quis pensar que era ilusório o presente de Thorpe. Irresistivelmente, a esperança prevaleceu. Shakespeare seria meu, como ninguém foi de ninguém, nem no amor, nem na amizade, nem sequer no ódio. De algum modo eu seria Shakespeare. Não escreveria as tragédias nem

os intrincados sonetos, mas recordaria o instante em que me foram reveladas as bruxas, que também são as parcas, e aquele outro em que me foram dadas as vastas linhas: And shake the yoke of inauspicious stars From this worldweary flesh. Lembraria Anne Hathaway como lembro aquela mulher, já madura, que me ensinou o amor em um apartamento de Lübeck, há tantos anos. (Tentei recordá-la e só pude recuperar o papel de parede, que era amarelo, e a claridade que vinha da janela. Esse primeiro fracasso deveria antecipar-me os demais.) Eu havia postulado que as imagens da prodigiosa memória seriam, antes de mais nada, visuais. Não foi o que aconteceu. Dias depois, ao barbear-me, pronunciei ante o espelho algumas palavras que me surpreenderam e que pertenciam, como um colega me assinalou, ao A, B, C de Chaucer. Uma tarde, ao sair do Museu Britânico, assobiei uma melodia muito simples que nunca ouvira. Já terá o leitor percebido o traço comum dessas primeiras revelações de uma memória que era, apesar do esplendor de algumas metáforas, bem mais auditiva do que visual. De Quincey afirma que o cérebro do homem é um palimpsesto. Cada nova escrita encobre a escrita anterior e é encoberta pela seguinte, mas a todo-poderosa memória pode exumar qualquer impressão, por mais momentânea que tenha sido, se lhe derem o suficiente estímulo. A julgar por seu testamento, não havia um único livro, nem sequer a Bíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora as obras que freqüentou. Chaucer, Gower, Spenser, Christopher Marlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, o Plutarco de North. Eu possuía de maneira latente a memória de Shakespeare; a leitura, quer dizer, a releitura desses velhos volumes seria o estímulo que procurava. Reli também os sonetos, que são sua obra mais imediata. Em algum

momento encontrei a explicação ou várias explicações. Os bons versos impõem a leitura em voz alta; depois de alguns dias recuperei sem esforço os erres ásperos e as vogais abertas do século XVI. Escrevi na Zeitschrift für germanische Philologie que o soneto 127 referia-se à memorável derrota da Armada Invencível. Não lembrei que Samuel Butler, em 1899, já havia formulado essa tese. Uma visita a Stratford-on-Avon foi, previsivelmente, estéril. Depois ocorreu a transformação gradual de meus sonhos. Não me foram oferecidos, como a De Quincey, pesadelos esplêndidos nem piedosas visões alegóricas, à maneira de seu mestre, Jean Paul. Rostos e quartos desconhecidos adentraram minhas noites. O primeiro rosto que identifiquei foi o de Chapman; depois, o de Ben Jonson e o de um vizinho do poeta, que não consta nas biografias, mas que Shakespeare veria com freqüência. Quem adquire uma enciclopédia não adquire cada linha, cada parágrafo, cada página e cada gravura; adquire a mera possibilidade de conhecer algumas dessas coisas. Se isso acontece com um ente concreto e relativamente simples, tendo em vista a ordem alfabética das partes, o que não acontecerá com um ente abstrato e variável, ondoyant et divers, como a mágica memória de um morto? A ninguém é dado abarcar em um único instante a plenitude de seu passado. Nem a Shakespeare, que eu saiba, nem a mim, que fui seu parcial herdeiro, ofereceram esse dom. A memória do homem não é uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas. Santo Agostinho, se não me engano, fala dos palácios e cavernas da memória. A segunda metáfora é a mais justa. Foi nessas cavernas que entrei. Tal como a nossa, a memória de Shakespeare incluía zonas, grandes zonas de sombra repelidas voluntariamente por ele. Não sem algum escândalo lembrei que Ben Jonson fazia-lhe recitar hexâmetros latinos e gregos e que o ouvido, o

incomparável ouvido de Shakespeare, costumava errar uma quantidade deles, em meio às risadas dos colegas. Conheci estados de felicidade e de sombra que transcendem a comum experiência humana. Sem que eu soubesse, a longa e estudiosa solidão havia-me preparado para a dócil recepção do milagre. Depois de uns trinta dias, a memória do morto animava-me. Durante uma semana de curiosa felicidade, quase acreditei ser Shakespeare. A obra renovou-se para mim. Sei que a lua, para Shakespeare, era menos a lua que Diana e menos Diana que essa obscura palavra que se demora: moon. Anotei outra descoberta. As aparentes negligências de Shakespeare, essas absence dans l'infini de que apologeticamente fala Hugo, foram deliberadas. Shakespeare tolerou-as, ou as intercalou, para que seu discurso, destinado à cena, parecesse espontâneo, nem burilado nem artificial demais (nicht allzu glatt und gekünstelt), Essa mesma razão levou-o a misturar suas metáforas. my way of life Is fall´n into the sear, the yellow leaf. Certa manhã discerni uma culpa no fundo de sua memória, Não procurei defini-la; Shakespeare o fez para sempre. Para mim, basta declarar que essa culpa nada tinha em comum com a perversão. Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra coisa que as circunstâncias de Shakespeare. É evidente que estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que executou com esse material inconsistente. Ingenuamente, eu havia premeditado, como Thorpe, uma biografia. Não demorei em descobrir que esse gênero Literário requer condições de escritor que por certo não são minhas. Não sei narrar. Não sei narrar minha própria história, que é bem mais extraordinária que a de Shakespeare. Além do mais, esse

livro seria inútil. O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vividos que o homem cinza que sonhou com eles, em versos que as gerações não deixarão desaparecer, em música verbal. Para que destecer essa rede, para que minar a torre, para que reduzir às módicas proporções de uma biografia documental ou de um romance realista o som e a fúria de Macbeth? Goethe constitui, segundo se sabe, o culto oficial da Alemanha; mais íntimo é o culto a Shakespeare, que professamos com nostalgia. {Na Inglaterra, Shakespeare, que tão distante está dos ingleses, constitui o culto oficial; o livro da Inglaterra é a Bíblia.) Na primeira etapa da aventura senti a felicidade de ser Shakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, as duas memórias não misturavam suas águas. Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase afogou, meu modesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo a língua de meus pais. Já que a identidade pessoal baseia-se na memória, temi por minha razão. Meus amigos vinham visitar-me; assombrou-me que não percebessem que eu estava no inferno. Comecei a não entender as coisas cotidianas que me rodeavam (díe alltägliche Umwelt).1 Certa manhã perdi-me entre grandes formas de ferro, de madeira e de cristal. Aturdiramme assobios e clamores. Demorei um instante, que pôde parecer-me infinito, em reconhecer as máquinas e vagões da estação de Brêmen. À medida que transcorrem os anos, todo homem é obrigado a suportar o crescente peso de sua memória. Duas me angustiavam, confundindo-se às vezes: a minha e a do outro, incomunicável. Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu 1

"O meio ambiente cotidiano." (N. da T.)

Spinoza. A pedra quer ser uma pedra, o tigre, um tigre, eu queria voltar a ser Hermann Soergel. Esqueci a data em que decidi libertar-me. Dei com o método mais fácil. No telefone marquei números ao acaso. Vozes de criança ou de mulher respondiam. Achei que meu dever era respeitá-las. Dei por fim com uma voz culta de homem. Disse-lhe: – Você quer a memória de Shakespeare? Sei que o que lhe ofereço é muito sério. Pense bem. Uma voz incrédula replicou: – Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de Shakespeare. Declarei as condições da dádiva. Paradoxalmente, sentia ao mesmo tempo a nostalgia do livro que eu deveria ter escrito e que me foi proibido escrever e o temor de que o hóspede, o espectro, nunca me deixasse. Desliguei o telefone e repeti como uma esperança estas resignadas palavras: Simply the thing I am shall make me live. Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga memória; tive de buscar outras para apagá-la. Uma entre tantas foi o estudo da mitologia de William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg. Comprovei que era menos complexa do que complicada. Esse e outros caminhos foram inúteis; todos levavam-me a Shakespeare. Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: a estrita e vasta música, Bach.

PS. 1924 – Já sou um homem entre os homens. Na vigília sou o professor emérito Hermann Soergel; manuseio um fichário e redijo trivialidades eruditas, mas na aurora sei, algumas vezes, que aquele que sonha é o outro. De vez em quando, surpreendem-me pequenas e fugazes memórias que talvez sejam

autênticas.

ÍNDICE A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE Vinte e cinco de agosto, 1983..... Tigres azuis................................ A rosa de Paracelso.................... A memória de Shakespeare........

425 430 440 444

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