Joao Perci Schiavon

January 24, 2024 | Author: Anonymous | Category: N/A
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

João Perci Schiavon

Pragmatismo Pulsional - Clínica Psicanalítica

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica, sob a orientação do Prof. Doutor Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO 2012

RESUMO A tese principal pode ser formulada, de maneira breve, nos seguintes termos: a pulsão é uma prática, um exercício, que pode ou não se dar – não se dá naturalmente. Disso decorre seu valor pragmático e sua consistência ética. É uma formulação estranha em face da idéia de que as pulsões já estão aí, por assim dizer, como uma natureza, e que o psiquismo deverá se constituir e se organizar à medida que as controla, domina, alinha, domestica, submete e, sobretudo, investe, sempre por intermédio de recursos simbólicos e culturais disponíveis. Ora, um desdobramento da tese consiste em dizer que há uma diferença profunda entre as imagens da pulsão, construídas por instâncias não pulsionais, e a própria visão pulsional. Quando se está à altura da pulsão e do seu saber? Como se exerce a visão pulsional? Em que condições a pulsão é praticada? E qual o tempo dessa prática? Estas questões são ainda interiores à tese em pauta, como ainda lhe pertencem o que chamamos de traços da pulsão, a saber, os traços pelos quais a pulsão ou as pulsões se tornam audíveis, visíveis, inteligíveis. O caráter inteligível da pulsão sugere, finalmente, uma lógica, uma lógica da pulsão. Temos assim uma ética e uma lógica da pulsão, uma prática e um entendimento, com a conseqüência necessária de concebermos a sublimação como um destino originário da pulsão. Se isto se sustenta, a clivagem entre psiquismo e pulsão deve ser revista, e mesmo o que se pensa sobre o psíquico, quando considerado de um prisma pulsional. O real, longe de ser impossível, não só é uma questão de experiência, como é uma questão de prática. Do mesmo modo, as noções de ordem e desordem (ou caos), do ponto de vista de um psiquismo, precisam ser repensadas. Não é preciso dizer que a partir desses questionamentos, os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte, inclusive em seus reviramentos mais críticos, devem ser igualmente revistos. O interesse maior dessa pesquisa reside em suas implicações práticas, clínicas – e logo políticas, estéticas... E em que ela investe todo tempo? No caráter ativo da análise. Palavras chave: pulsão, pragmatismo, ética e lógica pulsionais, a sublimação e o seu tempo, o caráter ativo da análise...

ABSTRACT The main thesis can be formulated, briefly, as follows: the drive is a practice, an exercise, which may or may not happen – it does not occur naturally. This is the origin of its pragmatic value and its ethical consistency. It is a strange formulation considering the idea that the drives are already there, so to speak, as a nature, and that the psyche must be constituted and organized as it controls, dominates, aligns, domesticates, subjugates them and, especially, invests, always through available cultural and symbolic resources. Now, a splitting of the thesis refers to saying that there is a profound difference between the images of the drive, built by not driving bodies, and the driving vision itself. When is it up to the drive and its knowledge? How does it exercise the drive vision? Under what conditions is the drive practiced? And what is the proper time of this practice? These issues are still inside the thesis in question, as still belong to the thesis what we call features of the drive, namely, the features by which the drive or the drives become audible, visible, understandable. The intelligible character of the drive suggests, finally, some logic, the drive logic. Thus we have a drive ethic and a drive logic, a practice and an understanding, with the necessary consequence of conceiving the sublimation as an originating destination from the drive. If this is supported, the split between psyche and the drive should be reviewed, and even what is thought about psychic, when it is seen from a drive perspective. The real, far from being impossible, is not only a matter of experience, as it is a matter of practice. Similarly, the conceptions of order and disorder (or chaos), from the point of view of a psyche, must be rethought. It is not necessary to say that, based on these questions, the concepts of life drive and death drive, including their most critical issues, should also be reviewed. The major interest of this research lies in its practical, clinical - and therefore political, aesthetic... – implications. And in what does it invest all the time? In the active character of the analysis. Keywords: drive, pragmatism, drive ethic, drive logic, the sublimation and its time, the active character of the analysis...

SUMÁRIO

1. PRAGMATISMO PULSIONAL........................................................1 Introdução...........................................................................................1 O sonho do automóvel planador.........................................................5 O caso de Alexandre e sua égua.........................................................7 O campo pulsional............................................................................13 O campo analítico e suas versões.....................................................20 Atividade e linguagem.......................................................................34 2. UMA VIDA, UM DIZER.................................................................45 A sublimação e o cosmo....................................................................47 Nas imediações dos afetos originários, em sete tomadas.................51 A imanência do dizer.........................................................................62 Imagens da pulsão e visão pulsional................................................67 3. O SENTIR, O SABER, O SENTIDO...............................................75 Além da representação......................................................................75 Repetição do mesmo e repetição da diferença..................................81 O gozo do “savoir-faire” e o estágio da cura..................................96 O saber da diferença.......................................................................104 4. AS FORÇAS PULSIONAIS – AGIR, AVALIAR, EXISTIR........119 Um sonho à velocidade da luz........................................................119 Agir, avaliar, dizer, existir..............................................................124

Os graus da pulsão e sua justiça....................................................154 A dobra (Dioniso e Ariadne)...........................................................163 Niilismo e não-senso.......................................................................178 5. O TEMPO DA PULSÃO................................................................203 Precisa-se de tempo........................................................................203 O tempo da análise é o tempo de um saber prático........................206 As medidas do tempo.......................................................................207 Luz “contemporânea”.....................................................................215 O domínio do tempo I – Metapsicologia.........................................220 O domínio do tempo II – Pulsão de morte......................................224 O domínio do tempo III – A vida e a arte.......................................230 O domínio do tempo IV – Pulsão de vida.......................................241 6. SABER DA CURA (CONCLUSÃO).............................................249 O originário e o conceito de pulsão: a medida da cura.................251 Um primeiro equívoco sobre o saber..............................................255 Um segundo equívoco sobre o saber..............................................258 Um terceiro equívoco sobre o saber...............................................264 BIBLIOGRAFIA.............................................................................267

PRAGMATISMO PULSIONAL Sooner murder an infant in its cradle than nurse unacted desires. He who desires but acts not, breeds pestilence. (William Blake) 1

Introdução Seria um exagero voltar ao conceito de pulsão, a fim de esclarecê-lo, como se ainda permanecesse obscuro? Mas ele permanece obscuro, e a psicanálise, seja no plano teórico ou no processo clínico, talvez não seja outra coisa que a retomada incessante de tal esclarecimento. A pulsão é uma dessas fendas conceituais por onde o pensamento faz seu retorno à vida. Como é possível este retorno? Como o pensar pode se ajustar novamente à vida, ao vivo? Será possível esta justiça? Era o que Lacan entendia por final de análise, o momento em que o sujeito passa a viver a pulsão 2. A psicanálise se torna simples e translúcida, quando se entende que sua inteligibilidade é dada pela pulsão. Mas a pulsão não é um conceito simples, ou melhor, não se alcançou ainda sua elucidação exaustiva e seu uso mais aguçado, muito pelo contrário. Já em Freud adquiriu diferentes aspectos, conforme aumentava a exigência de precisão clínica e se aprofundava a elaboração teórica. A clareza a respeito da pulsão depende, porém, da experiência que se faz dela. Desde Freud são notáveis as descrições de como afetos originários mudam de aspecto a ponto de se tornarem irreconhecíveis, embora – fato curioso, porém previsível – a maior parte dos afetos reconhecidos como originários possam ser ainda derivados, secundários, correspondendo, em código lacaniano, aos efeitos de significante 3. É o que se passa com a pulsão, dos temas psicanalíticos o mais original, pois mesmo o inconsciente deve ser considerado sob o seu prisma, todavia obscuro e, como dissemos acima, pouco explorado, o que exige uma renovação constante da crítica e da suspeita. Pode-se objetar que, ao contrário, este conceito foi demasiadamente investigado, que não se parou de falar dele, de maneira que se deveria passar adiante de coisa já tão resolvida, seja integrando-a de vez ou dispensando-a. Mas como o conceito de pulsão foi tratado até aqui? Como pulsão parcial, 1

“Antes assassinar uma criança em seu berço que nutrir desejos que não agem”. “Aquele que deseja mas não age, gera a peste”. Dos Provérbios do inferno, em Blake, W., O matrimônio do céu e do inferno – e O livro de Thel, p. 24 e 28, Iluminuras, SP, 1995. 2 Lacan, Jacques, O seminário, Livro 11- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 258, Zahar, RJ, 1998: “Como, um sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão?” 3 É até onde foi, de modo geral, a escola lacaniana no concernente ao afeto. A angústia assinalava uma fronteira, a presença e já a ausência de uma concatenação significante. Era uma aproximação do que chamamos de afetos originários.

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ligada à zona erógena, perfazendo um circuito em retorno, contornando o objeto e voltando à origem – a exemplo das pulsões oral, anal ou escopofílica? Como pulsões sexuais e suas antíteses, as pulsões do eu? Ou como pulsões de vida e de morte, para descrever uma vez mais, e de um modo ainda mais radical, com um acento cósmico ou bíblico, o insistente circuito em retorno – do pó viestes e ao pó retornarás? Não estarão todas essas modalidades de aparição do processo pulsional, a se mostrar a cada vez segundo o regime de entendimento que irá captar esse processo, compreendidas na fórmula maior do retorno – “onde isso era devo eu advir”, por ser precisamente pelo dizer e pelo entendimento que devo ali advir? Apesar das diferenças significativas de visão que se pode ter sobre o assunto, conservamos o conceito de pulsão por ser igualmente aplicável: 1) ao impessoal ou extra-pessoal, pois a pulsão precede o regime meramente pessoal da experiência; é este traço, aliás, decorrente de seu caráter sexual e ao mesmo tempo ético, que torna possível a escuta analítica e a chamada comunicação de inconscientes; 2) ao singular, porque não há pulsão que não exista em ato e não se expresse à sua maneira, isto é, como um dizer, por mais alheio e distante que esteja da experiência subjetiva; 3) ao simples, por ela ser elementar e originária, feita de uma única peça; 4) ao refinado, uma vez que ela é, imediatamente, seu destino mais nobre, a sublimação, de modo a se definir também como dedicação, disciplina, sobriedade, autonomia e arte; 5) ao abstrato, por três razões: não se esclarece pelas relações da forma e da matéria, mas por linhas de força, movimentos e temporalidades; não se dirige a um objeto natural ou específico – o seu, justamente, é um x, a variação por excelência; e consiste, essencialmente, em uma prática constante e sem modelo; 6) ao real, pois é como pulsão, ou através dela, que se concebe a vida, a atividade e a lucidez em psicanálise. Como se pode constatar, cada uma dessas aplicações tem seu duplo, e compõe com ele uma espécie de dueto destinado a fazer ouvir a pulsão. Extra-pessoal e singular, simples e refinado, abstrato e real são termos que, remetendo a um mesmo conceito, poderiam sugerir alguns paradoxos. Uma análise mais detida, porém, aproxima-os de tal modo que se tornam indiscerníveis. Tomemos um deles, o dueto simples-refinado. Certas obras de Arcângelo Ianelli, como é o caso de Vibrações em azul, de 1996, são, ao mesmo tempo, profundamente refinadas e profundamente simples – as intensidades do azul. E as Figuras de Francis Bacon, embora exijam uma gama considerável de procedimentos, uma limpeza exaustiva, de modo a 2

eliminar os clichês figurativos e a narração, ganham o caráter simples de uma figuração direta das forças. Na música, o que Deleuze e Guattari chamam de plano sonoro imanente, em que “as formas cedem lugar a puras modificações de velocidade” 4, aponta ainda o dueto pulsional, pois se trata sempre de um único e mesmo plano (a peça única) de composição, com todas as suas velocidades e lentidões. Ao descrever uma dança popular dos índios tarahumara, Artaud ressaltava o ritmo, a música que lhe fazia ouvir algo desse “plano fixo sonoro”: “Dançam ao som de uma música pueril e refinada que nenhum ouvido europeu pode conceber; parece que estamos escutando sempre o mesmo som, escandido sempre com o mesmo ritmo; porém, com o tempo, esses sons sempre idênticos e esse ritmo despertam em nós como que a recordação de um grande mito; evocam o sentimento de uma história misteriosa e complicada.” 5 Mas se, ao mesmo tempo, a peça única se dá com aquilo que ela dá, deve-se ver aí uma prática constante e sem modelo, o abstrato-real. O conceito de pulsão é em tudo apropriado para designar a idade de ouro no devir dos afetos, isto é, uma idade de ouro sempre a ponto de recomeçar. A distinção entre pulsão e instinto, corrente depois de Lacan, permite situar a distância em que nos encontramos de tudo que possa ser conotado de natural e conhecido ao nos ocuparmos do campo, digamos inóspito, da pulsão, já por ele ser, a princípio, de difícil acesso. Na verdade, ainda que se trate de uma condição originária da experiência humana, é a raridade com que esse acesso se verifica que nos recomenda as maiores reservas quanto ao natural e ao conhecido. Por um lado, esse campo já foi exaustivamente catalogado, descrito; por outro, nos é inteiramente desconhecido. Será que o humano como tal, com sua decantada duplicidade, chega a entrar aí? Será que anunciando as “novas núpcias do significante com o vivo”, que é como são apresentados os Outros escritos de Lacan, se estaria dando o passo necessário? Ao se falar de “núpcias” se efetua, de fato, um avanço na compreensão da pulsão, se tivermos em vista o que se disse a respeito da mesma em toda a digressão lacaniana anterior. Sustentar o discurso analítico na intocável divisão do sujeito, no sujeito barrado e na verdade mentirosa, era permanecer ainda aquém da linha do horizonte psíquico; no melhor dos casos nas suas 4

Deleuze, G. e Guattari, F., Mil platôs, vol, 4, p. 56, Editora 34, SP, 1997. Artaud, A., Los tarahumara, p. 79, Barral Editores, Barcelona, 1977. Félix Guattari concidera as potencialidades criativas do caos segundo um mesmo tipo de paradoxo: “Essa concepção do caos me permite caracterizar o funtor ontológico que qualifico de Universo incorporal, ao mesmo tempo hipersimples – ritornelo alijado de qualquer relação com uma referência – e o hipercomplexo, desenvolvendo-se no seio de campos de virtualidade infinitos”. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 78, Editora 34, SP, 1998. 5

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imediações, isto é, na borda da cratera do vulcão. Além se estende, ainda desconhecido, inexplorado, o campo metapsíquico. Haveria uma experiência de fronteira? A primeira abordagem conceitual da pulsão, realizada por Freud, ao situar o campo analítico propriamente dito, foi considerá-la como ser de fronteira, entre o psíquico e o somático, a ponto de ela parecer dúplice ou de dupla face, idéia e afeto. A pulsão se faz sentir ou pressentir nos fenômenos de fronteira, no sinal da angústia, na presença do estranho, na divisão do sujeito no processo de defesa, nas formações do inconsciente, mas ela mesma, ela em si, não é fronteira, tendo sua vigência além da divisão, além da angústia e da castração. De um ponto de vista relativo, não há uma e sim diversas experiências de fronteira, conforme avança a análise do inconsciente e se transita de um estrato ideo-afetivo a outro, segundo a direção que é dada pela pulsão; mas de um ponto de vista absoluto há uma única fronteira, mais litoral, talvez, que fronteira, cuja transposição dá acesso ao real, isto é, à experiência direta da pulsão. As “novas núpcias do significante com o vivo” constituiriam um ponto mais avançado da experiência em relação ao passado? Ou ainda se pensaria a mesma disjunção de idéia e afeto, de simbólico e sexual, de linguagem e vida? O gozo decorre do significante, como quer J. A. Miller em seu prólogo aos Outros escritos? Desde que o significante decorra do vivo, que não é apenas afetado pelas “manipulações linguageiras”, não é apenas gozo histérico, mas atividade, poder de manipulação, razão primeira da existência simbólica e do que dela resulta. Aliás, é nisto que consiste a genial lalangue de Lacan, o idioma indígena de cada um. A nossa proposição é de que operando aquelas disjunções não estamos ainda na altura da pulsão. Eis para o que serve este conceito, já que, apesar das tentativas de diluir seu caráter estranho, sua face estrangeira – assimilando-o, por exemplo, à pulsão de morte, como vertente última e exclusiva – ainda ficou a salvo de reduções definitivas, e isto pela própria natureza da pesquisa analítica, quando ela não perde de vista o seu filão. Que esta pesquisa constitua um saber de não-senso, como pretendia Lacan, é o que encaminha a turba claudicante dos sentidos na direção da pulsão 6. E no entanto, idéia e afeto pulsionais, indiscerníveis na origem, não só garantem o sentido dessa mesma direção como também, para além da última fronteira, decidem o lugar de todas as demais coisas, isto é, de todos os demais destinos, agora esvaziados de seu poder e de seu saber: sentido inaudito, visionário, soberano, inacessível aos outros; daí, precisamente, sua face de não-senso. 6

O não-senso, aqui, poderia ser um caos, e foi identificado, mais de uma vez, ao inconsciente a céu aberto da psicose. Este inconsciente, porém, decorre ainda da visão neurótica do universo e de sua dissolução. Outra coisa é o inconsciente pulsional.

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Dois exemplos de acontecimentos clínicos poderão sugerir uma aplicação do que estivemos dizendo até aqui. Sonho do automóvel planador Jorge sonhou que estava em sua casa de campo, como acontecia em outros tempos, quando os filhos eram ainda pequenos e toda a família passava ali os fins de semana. No sonho havia um lago, uma espécie de represa, com um dique de pedras bem construído; a água tinha um movimento suave, tranqüilo. Observa um automóvel que passa por um túnel. Não é ele que dirige o carro. Pausa. Indagado se esse relato era todo o sonho, respondeu que sim. Segundos depois, porém, continuou animadamente, dizendo que se encontrava numa parte posterior da casa, num lugar aberto, onde se erguia uma árvore. Acima dela, havia um automóvel planando, de rodas para o ar. Façamos um parêntese: uma coisa é o sonho, outra o seu relato, outra ainda é a sua interpretação, e não foi sem uma intuição profunda das dobras oníricas que Freud insistiu nessas distinções. Além de transitar de uma linguagem regida pelo processo primário a uma linguagem que obedece às leis e convenções do processo secundário, a comunicação do sonho envolve a alteridade de modo impactante e transformador: o fato onírico adquire, mediante o relato, uma inesperada consistência. O processo singular do sonho é indissociável de seu caráter extra-pessoal. Isto se dá em mais de um sentido, começando pelo fato de que o analista pertence ao conceito de inconsciente 7. Mas como as distinções requeridas concorrem para o devir onírico como tal? A pulsão é um vetor “caósmico” em todos os nìveis em que se verifica o seu exercício 8. A dita transferência com o analista é apenas uma modalidade de expressão, por certo aqui e ali privilegiada, do devir pulsional sob o aspecto daquele dueto. Não é preciso dizer que o vetor pulsional é imanente tanto aos processos ditos primários como aos secundários, ou que essa distinção mesma é secundária em relação à outra, que conjuga o singular e o extra-pessoal. Os termos desta primeira distinção, entretanto, quando tomada em seu devir, 7

Cf. Lacan, O seminário, livro 11, op. cit., p. 125: “A interpretação do analista não faz mais do que recobrir o fato de que o inconsciente – se ele é o que eu digo, isto é, jogo do significante – em suas formações – sonho, lapso, chiste ou sintoma – já procedeu por interpretação. O Outro, o grande Outro (A) já está lá, em toda abertura por mais fugidia que ela seja, do inconsciente”. 8 Guattari fala de uma dobra autopoiética que funciona segundo duas facetas, “inextricavelmente associadas, de apropriação ou de grasping existencial e de inscrição transmonádica”. Nenhuma das facetas é primeira em relação à outra, uma remete incessantemente à outra. A consistência do processo singular “monádico” compreende, necessariamente, seu “transmonadismo”. Caosmose: um novo paradigma estético, op. cit., p. 143 e 144.

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tornam-se indiscerníveis. É que quanto mais se gradua o traço singular, mais se evidencia seu teor extra-pessoal. Jorge lembrou que recentemente um dos cavalos da fazenda escapara pelo portão aberto, e ao atravessar a estrada foi atropelado por um carro que passava em baixa velocidade, segundo argumentou depois o seu condutor. O cavalo caiu sobre o carro, mas não sofreu nenhuma lesão. O veículo, em contrapartida, ficou muito danificado, e seu proprietário responsabilizou Jorge pelos prejuízos. A falta de controle do animal foi uma espécie de extensão da falta de controle de Jorge sobre o que acontecia na casa de campo. A ordem que o caseiro tinha de manter os cavalos numa área restrita havia sido desobedecida. Como foi dito, Jorge já não acompanhava de perto o que se passava ali. O assunto se relacionava ao tema que vinha sendo tratado em análise, a saber, que ele se preocupava com o curso atual dos acontecimentos familiares. Seu filho mais velho, além de fazer um uso abusivo de maconha, parecia sofrer de pequenos surtos psicóticos, e o mais novo acabara de sair de casa, com certo acento de rebeldia. Dir-se-ia que esse era o resultado das ausências de Jorge durante a adolescência dos filhos, dedicado quase exclusivamente ao trabalho que, entretanto, promovia uma boa condição de vida material à família. Quem dirigira as coisas em casa, nesse período, fora sua mulher, com seu estilo autoritário e controlador. Desde que Jorge, mais próximo, passou a intervir junto à esposa, operou-se certa mutação no ambiente familiar, uma flexibilidade que deve estar na origem da suspensão dos estados alucinatórios do seu filho. Uma primeira interpretação, um primeiro plano de elucidação do sonho, consistiria nessa idéia de que, diferentemente do tempo em que tudo era controlado, regrado e sereno como o lago e a bem construída represa, ele se ausentou, deixou de dirigir a família, e o resultado foi que ela enlouqueceu, ficou de pernas para o ar – o carro sobre a árvore, de rodas para cima. Mas outra visão tomou a dianteira, pois concomitantemente a essa narrativa de contorno histórico, que parecia compreender o exercício de uma função paterna, familiar, havia o tema da liberdade ou da liberação, da possibilidade de pensar livremente, estranhamente, e era esse, afinal, o sentido do sonho, o carro acima da árvore, de rodas para o ar. Essa linha de pensamento atravessava todos os elementos oníricos, era a linha unívoca e remetia à peça única (o simples), a um poder de escolha imanente afetado de uma não-naturalidade, isto é, de uma eticidade originária. Singular e extra-pessoal, o devir onírico e surreal de Jorge se conjuga ao devir a-familiar de sua própria famìlia. Relação com o “Fora”, como diria Foucault, ainda que esse fora seja o devir da pulsão em pessoa. Linhas temporais arquitetam o sonho, construído na pura e quase impensável duração. Por quanto tempo ele vigora? Tendo reiniciado a análise, 6

depois de alguns anos, Jorge comenta sua sensação de liberdade quando atravessava uma rua movimentada para chegar ao consultório. Essa experiência da rua, de um asfalto molhado, era acompanhada de uma recordação da adolescência, do tempo em que veio morar na capital. O universo familiar religioso e acanhado do vilarejo natal havia ficado para trás, especialmente em momentos luminosos como aquele. O sonho é uma composição de tempos, a partir da sucessão manifesta: as crianças e os fins de semana no campo; a adolescência dos filhos e o seu envolvimento quase exclusivo com o trabalho; os dias atuais e uma catástrofe “em termos”. Uma linha de fuga percorre o sonho e é o seu umbigo móvel, o atrator em torno do qual se desdobra e se redobra a complexidade onírica. O simples e o refinado. As vozes alucinatórias, através das quais o filho respira, eclodem num espaço adjacente ao espaço sufocante, sem saída, constituído pelo território materno (ou pela língua mater). Ali, ao lado, ele existe e insiste. Jorge reconhece que no retorno ao núcleo familiar, dominado pela esposa, mantevese inicialmente reservado, endossando as atitudes dela com os filhos. Não queria desautorizá-la. Aos poucos, porém, começou a intervir, precisamente depois de se deparar com os acessos psicóticos do filho. O fato de aplacar as iniciativas pedagógicas da esposa repercutiu positivamente, conforme dissemos acima, pois data desse momento a cessação das experiências alucinatórias. Ou seja, há um sopro de liberdade em ação, provocando mudanças aceleradas, ora recebidas com apreensão frente ao suposto caos iminente, ora com certa leveza – o carro de rodas para o ar planando acima da árvore. Talvez estivesse em curso uma espécie de confiança no movimento pulsional. Terá sido também um modo de Jorge se colocar ao lado dos filhos, como os filhos. O que concorreu fortemente para a escolha da linha de fuga positiva na interpretação principal do sonho foi sua declaração, como um apêndice alegre ao relato onírico definitivo, de ter acordado com notável sensação de alívio. Deve-se acrescentar ao exposto certo devir-cavalo selvagem de Jorge, sobretudo se considerarmos que era com prazer evidente que ele descrevia a cena de um animal sem inibições, impetuoso o bastante para experimentar os acasos do mundo. A pulsão, no entanto, não é impulsividade cega; ela é ao mesmo tempo o tratamento construtivo do sonho, sua força imagética e a interpretação superativa. Eterna outsider, ela é o que não podia ser previsto, a criação mesma. O caso de Alexandre e sua égua

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Alexandre gosta de cavalos, mas as exigências ritualizadas a que se submete para desenvolver a equitação são a tal ponto severas e exasperantes, que todo o prazer almejado a cada vez se esvai, como uma pretensão vã, no tormento de uma imposição incessante, nos numerosos “tem que” prévios a toda satisfação. Esta fica relegada ao derradeiro instante de todos os programas efetuados, quando Alexandre desfalece, exaurido, sem o alento indispensável a uma experiência ativa, avaliadora, pela qual o mundo possa ser transubstanciado em si. À maneira, por exemplo, como se degusta uma maçã, isto é, como gosto estético, o que, em outras palavras, chamamos de saber do gozo ou gozo do saber. “A beleza será comestìvel ou não será...”, dizia Dali. Saber e gozo conciliados são inerentes à atividade pulsional. Mas a coincidência de saber e gozo é certamente polêmica, se muitas vertentes do pensamento psicanalítico propõem que o gozo deva ser temperado, ou recusado – para alguns, em favor do desejo. Muitas são as modalidades de gozo, o originário, porém, é o do saber. E é este gozo-saber que orienta a trama analítica, é ele que garante o acesso ao inconsciente, como uma espécie de fruto do desejo, uma vez que aceder ao inconsciente é aceder ao saber da pulsão. Neste caso, não há distinção entre o movimento do desejo e o caminho do saber. Os “tem que” de Alexandre destinam-se visivelmente a separá-lo, o quanto possível, do que ele pode, ou seja, da atividade pulsional que o anima e de sua satisfação concomitante, de seu sentir, de seu saber, de sua lucidez e seu júbilo. Por que deve ser separado e por que se separa do que pode? Por deter nele próprio um x, um poder estranho, ignorado, que só pode existir num resto de dia, de prazer, de autonomia, o que Lacan chamava de objeto a, o dejeto. Após assistir, como era seu hábito antes de dormir, aos vídeos sobre treinamento de cavalos, era preciso que escrevesse minuciosamente num caderno, enumerando-os, os passos adotados pelos domadores, cada procedimento técnico e seus resultados, numa caligrafia regular e sem erros ortográficos, caso contrário teria que refazer o relatório desde o início. Lembra-se de como a mãe nunca estava satisfeita com as lições que ele fazia, mandava recomeçá-las muitas vezes até ficarem impecáveis, enquanto sua vontade de brincar na rua com os outros meninos devia esperar; quando concluía as lições, já anoitecera, e não havia mais tempo para brincadeiras. Uma das modalidades de “tem que” aparentemente irracional – pois havia os racionais, como aqueles, por exemplo, ligados à prática da equitação – era o ato compulsivo de dar dois passos para trás antes de avançar e entrar num recinto; se não obedecesse à tenaz prescrição, o avô morreria. Sabia o 8

quanto era insensato submeter-se a isso, mas não se permitia pôr em risco a vida do avô. A existência deste e a ordem obsessiva eram idéias que se enlaçavam na vida real. Empregado na fazenda do avô, tinha um destino prefigurado, mas desejava romper o contrato e lidar com cavalos. Sem coragem, relutava. Para o pai, estava sempre aquém dos outros, com os quais era freqüentemente comparado; nunca recebera um elogio, um incentivo. Procurou análise a partir da leitura casual de um poema atribuído a Jorge Luis Borges, onde este, aos oitenta e cinco anos – “agora que”, como diz o verso, “estou morrendo” – lamenta não ter sido mais despreocupado, tomado mais sorvete, saído mais vezes à rua sem guarda-chuva, corrido mais riscos e vivido experiências mais ousadas e prazerosas. O poema teve o efeito de um choque em seu pensamento. Seus vinte e sete anos adquiriram um relevo temporal até então impensado: o que estava fazendo da sua vida? A proposição de que o saber da análise é um saber prático se demonstrou aí – pois o choque o impeliu à análise. É um saber mobilizante. Poderíamos reconhecer nesse movimento a função da pressa no tempo lógico, já que um saber dessa ordem, se não é exercido, se obscurece e é suplantado por outras razões. Isso até que haja um novo choque (se houver), com a feição imprevisível que possa ter no futuro. A análise, neste caso como em muitos outros, começou antes da análise. Aos poucos Alexandre se permite procedimentos mais flexíveis na prática da equitação, e verifica que obtém não só um prazer esquecido, como o próprio desempenho, em vista do relaxamento da exigência, parece crescer sensivelmente. Confirma a importante distinção freudiana entre formação de ideal, mecanismo fomentador de angústia e inibição, e a sublimação. Enquanto seguia minuciosos modelos, agia com sua égua da mesma maneira autoritária e exigente com que seu pai o educara. Ela nunca alcançava os níveis desejáveis de rendimento. Alexandre era o pai em relação à égua; logo, ele era a égua do pai. Observava agora o quanto sua égua, que tinha uma vida e, segundo ele, pensamentos próprios, era sensível e receptiva aos novos comandos, e como era diferente orientá-la, a cada instante, de acordo com uma percepção mais fina das suas disposições reais e das variações de sua sensibilidade, e pretender dominá-la a partir de um modelo, aplicado rigidamente, sem a consideração devida a um ser vivo, singular e, à sua maneira, sensível e inteligente. Experimentação, gozo, pesquisa e descoberta de veios vitais. O retorno de um prazer antigo e esquecido pode abrir novo tempo analítico, ao evocar um tempo anterior pelo qual o presente pode ser medido e avaliado, a par de linhas de subjetivação que não coincidem mais com as linhas sintomáticas e 9

atuais. A isto, em psicanálise, se chama de infância, esse fundo de reserva de disposições ativas e seu vir-a-ser. Mas estas disposições não se encontram lá, à espera; terão que ser relembradas como um corte no presente e exercidas, e é neste sentido que a pulsão é uma exigência 9. A análise é provocativa, exige, adapta-se à pulsão, age assim como o poema de Borges – ao lê-lo, o sujeito se põe a pensar, a sentir, separa-se das condições sintomáticas; um prazer mais ousado o instiga e procura a análise. Eis a razão profunda para a perquirição sobre a infância, tão cara ao procedimento analítico: a ampliação do tempo e o retorno às condições originárias, ativas, atuais, urgentes, grávidas de futuro. A pulsão, dizia Freud, é uma urgência (Dräng). Em análise, Alexandre volta sua atenção à mulher, a quem, na vida cotidiana, maltrata com palavras duras, de censura, sobretudo quando ela se aproxima dele carinhosamente. Acusa-a de querer outro homem, aquele com quem ela viveu antes dele e chegou a ter um filho. Imagina que é comparado, e que certamente ela preferiria esse outro se pudesse escolher; sente-se inferior, e nisto parece reeditar a mesma impressão de inferioridade resultante das comparações que o pai fazia com os outros, nas quais se via sempre em desvantagem. Ora, a vida do casal adquire um novo aspecto, um contorno mais afetuoso, quando decide sair mais vezes de casa, e não para ter outras mulheres – motivação pressuposta até então e que incitava a esposa, por sua vez, a cercear-lhe os passos – mas para conversar com amigos, tecer novas relações, fora do seu restrito círculo familiar. É ele, vê-se bem, que quer outro homem, quer devir outro homem, em nome de sua idade real, de sua “eterna meninice”, como diz uma canção de Elomar. É uma memória da infância, sair à rua e brincar com os outros. Eis, até aqui, o percurso analítico de Alexandre: a satisfação renovada com a equitação reanimou um prazer antigo, evocou outro tempo, uma infância esquecida e o pressentimento de um tempo originário. Essa linha de força do tempo (o abstrato) induz à experiência do devir, do devir outro, devir outro homem, e as questões relativas ao outro, ao afeto, ao estranho, à mulher e à criança se colocam como medidas e graus desse devir. A noção de um tempo originário serve para medir tanto o presente atual como o presente antigo (ou passado infantil: a lembrança, por exemplo, de que Alexandre não podia sair à rua e brincar com as outras crianças); o antigo e o atual

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Relaxamento e exigência trocam de lugar quando não se trata mais do ideal, e sim da pulsão. Em nome dos ideais de eu, isto é, de um modo não inocente, desenvolve-se a suposição e o equívoco grosseiro: se deixássemos a subjetividade por conta da pulsão, voltaríamos à animalidade. Daí a importância do devir animal em Deleuze e Guattari.

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constituem séries de acontecimentos coexistentes em relação a esse outro tempo, que lhes serve de medida e de linha de fuga 10. Uma paisagem existencial ainda desconhecida se forma, uma nova linha de horizonte, e ondas de oxigênio invadem o espaço. Descortina-se o caminho do campo. Pensar e respirar são o mesmo (o simples, a peça única). Instaura-se um campo problemático para além das coordenadas ideativas até então vigentes: estar com os amigos, sim, mas quais amigos, se há tempo não os freqüenta? São de outro tempo, não estarão mais disponíveis. Mas X às vezes propõe saídas e ele não aceita por falta de hábito. São certamente as forças do hábito que, mais que a esposa, lhe cerceiam agora os passos – o sintoma arcaico e suas seqüelas na vida cotidiana. Ainda que não encontre de imediato uma solução para isto, modifica-se inteiramente a relação com a esposa e, por conseqüência, com os filhos. Uma suavidade familiar está prestes a se instalar, já é possível sentir uma brisa benfazeja. Um mal estar quase intolerável, porém, se interpõe de repente ao novo estado de coisas. Só agora o fantasma, incisivo, pode tomar a palavra, destacando-se da ternura recém conquistada: Alexandre não deve se aproximar fisicamente do filho de onze anos porque, do contrário, o menino se tornará homossexual. Tal era também a apreensão do pai quanto a ele, ao menos assim interpretara ao longo do tempo o distanciamento físico e afetivo do mesmo. Repetia idêntica conduta com o filho. Estamos mais próximos dos afetos originários, a linha do recalque já se torna visível. A lógica dos afetos é insidiosa: uma vez iniciado, o processo se deflagra, imperioso. Não é apenas uma questão edípica. É bem mais uma sentença que está em jogo: o afeto fora desqualificado e com ele a existência real, o novo, impelidos a ficar, desde então, fora de cena. A decepção que pensa ter causado ao pai no início da adolescência, ao recusar timidamente uma jovem que este, combinando licenciosidade e prepotência, lhe oferecia para ser acariciada, intensificava o sentimento, a cada ocasião de insucesso com uma mulher, de que era ou estava se tornando homossexual. Isso antes do casamento e antes de descobrir que, afinal, as mulheres com quem se relacionara não o haviam esquecido, talvez devido ao seu modo delicado de tratá-las, ao seu romantismo e à sua consideração por elas – qualidades ditas femininas, algo reativas no caso de 10

Cf. Deleuze, G., Diferença e repetição, p. 177 a 179, Graal, RJ, 1988. “Com efeito, se os dois presentes, o antigo e o atual, formam duas séries coexistentes em função do objeto virtual que se desloca nelas e em relação a si mesmo, nenhuma das duas séries pode ser designada como sendo a original ou a derivada (...) Nossos amores não remetem à mãe, pois esta simplesmente ocupa, na série constitutiva de nosso presente, um certo lugar em relação ao objeto virtual, lugar que é necessariamente preenchido por outro personagem na série que constitui o presente de uma outra subjetividade...” O “objeto virtual” a que Deleuze se refere, e que jamais se atualiza inteiramente, evoca um passado puro. Embora o passado puro não seja a última palavra sobre o tempo, é uma aproximação decisiva de sua derradeira figura.

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Alexandre, “condenáveis”, cuja virtude consistia em escaparem do modelo paterno. Ao traçar um esboço dessas qualidades, Alexandre ensaiava terminar com o juízo de Deus, como diria Artaud. Mas esse traçado poderia indicar apenas a noção mais aguçada de si e dos outros (o traço extra-pessoal), deixada de lado, relegada ao término do dia ou da vida. Uma relação renovada, transformada, com os outros e consigo mesmo, tal é, certamente, o sentido do devir-mulher deleuziano, o devir da diferença. Ora, é evidente que a análise de Alexandre servia para reconstituir a eficácia do traço extrapessoal, a vitalidade do afeto. Ouvir a pulsão e analisar são uma e mesma coisa. Pensar é começar a viver. A inadequação do pensar e do ser expressa pela fórmula de Lacan “sou onde não penso, penso onde não sou” não é irredutível, se tivermos em conta que o sujeito do inconsciente é um avaliador em ato. É preciso conceber a pulsão como um sujeito por vir, como um devir sujeito. Acontece de se ter, em momentos fecundos, um vislumbre daquele poder de avaliação em ato. E o que ele avalia? Antes de tudo, sua própria integridade e as condições de integridade ao seu redor. Alexandre revê seus atos, experimenta novas ações, libera uma sensibilidade excluída pelo modelo paterno de subjetividade e, por extensão, pelos modelos de eqüinocidade segundo os quais mensurava o desempenho de sua égua e a disciplinava. Com isso, fato curioso porém lógico, ela mesma desperta de seu sono rebelde. Onde se localiza a pulsão? Ela é a atenção dada ao poema de Borges, é o pensar, é a prática renovada, é o sentir que reconstitui as condições originárias de avaliação, é a própria avaliação... Ela é também o dizer que reúne os aspectos obscuros da expressão sintomática e, por isso mesmo, a diz-tende e diz-solve, em nome de um dizer mais esclarecido, isto é, em nome de si mesma, exatamente por compreender (= integrar e entender) o sentido interno do sintoma, sua origem constante e seus desdobramentos temporais e tópicos – ou seja, seu modo de se atualizar e aparecer, finalmente, à consciência. Ela é, por tudo o que antecede, “a origem constante”, o falo que se revelava ao fim dos mistérios antigos, mas não sem reuni-los. Dotada, portanto, de uma virtude de integração, ela se caracteriza também como força super-ativa: as formações do inconsciente (mas o que não é, para uma escuta atenta e ao longo do tempo, uma formação do inconsciente?), com seu teor de não-senso, de desconcerto, de ruptura e transformação, são provas vivas e incessantes desse traço de superação ainda desconhecido, meios pelos quais o processo originário, irresistível, vence todos os obstáculos e assoma à superfície com sua face estrangeira. Deleuze diria tratar-se de um devir animal de Alexandre, e estaríamos de acordo, especialmente porque esse devir se define pelas efetuações de certo 12

grau de potência – os afetos: o que um corpo pode, o que um inconsciente pode, o que Alexandre e sua égua podem. O que isso pode vem antes do que isso representa, e não se esclarece em última instância por significações ocultas, mas por linhas de força e movimento. Isso, ou seja, a pulsão, compreende relações extensivas com elementos heterogêneos: além do pai e da mãe, o poema de Borges, o avô, os cavalos da fazenda e os de treino, os vídeos e os treinadores, a égua receptiva ou resistente, a mulher real e os amigos do porvir, o filho maldito e querido; além disto, a pulsão é afeto, intensidade, efetuação de potência, criança, égua, mulher, amigos... E se além de um mapeamento, uma cartografia envolvendo essas relações com o exterior e com os diferentes afetos, o inconsciente requer que se proceda ainda a uma decifração (por exemplo, hoje como na infância a satisfação será invariavelmente adiada), esta se faz por critérios práticos, isto é, etológicos e éticos 11: como instaurar ou restaurar a experiência do devir e do íntegro, a linha do devir e da retidão? Como conservá-la e conservar-se nela? Como devir mais? Como poder mais? Só se pode mais tornando-se outro, ou seja, quem se é. Não se deve esquecer que essa espécie de devir do não-humano no homem é ainda o devir do homem segundo critérios atualmente desconhecidos, e por isso já é ou prenuncia a sublimação, a melhor ação possível, o destino originário da pulsão. E é este o segredo pulsional: o dizer e a vida são o mesmo. Com isto não pronunciamos nada de novo. Lacan afirmou precisamente a mesma coisa, ao falar que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” 12. O campo pulsional Em seu destino originário, a pulsão é analítica e sublimatória. Existem assim destinos pulsionais que não são redutíveis às organizações neuróticas e perversas da sexualidade, e nem tampouco se confundem com as desorganizações psicóticas. Devires, são filhos do futuro. As chamadas estruturas clínicas são decisões, decisões em favor de subjetividades nãopulsionais, sem excetuar aqui as psicoses, onde toda escolha, bem como as tentativas de representação de um sujeito tendem a ser profundamente solapadas – não sem que obscuras decisões tenham sido tomadas nessa direção. Toda a dinâmica do falso self poderia ser evocada aqui. Embora 11

“Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por caracterìsticas de Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afetos. Chamamos „etologia‟ um tal estudo, e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira Ética”. Deleuze, G., e Guattari, F., Mil platôs, vol. 4, p. 42, Ed. 34, RJ, 1997. Essa conjunção etologia-ética se explicita numa composição singular dos afetos. 12 Lacan, J., O seminário, Livro 23, O sinthoma, p. 18, Zahar, RJ, 2007.

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adquirisse relevo especial em autores como Winnicott, essa dinâmica já existia em Freud sob a forma geral do sintoma e do núcleo patógeno, bem como sob a forma de “um outro construìdo para um outro” em Lacan, que soube definir o “ego” por sua função de desconhecimento e como frustração na essência. Destinos ignorados escapam àquelas estruturas tanto quanto possível, pois elas são, justamente, modalidades de defesa contra esses destinos 13. É aí que a análise compreende uma escolha constante, caminhos que se bifurcam e alianças que se renovam ou se desfazem. A escolha se fará pela representação ou pelo afeto originário 14? A análise seguirá o caminho da identidade ou da diferença? Fará aliança com o eu ou com a pulsão? A determinação progressiva do campo pulsional destina-se a torná-lo mais praticável; o que se concebe acerca desse campo – que se pode chamar igualmente de analítico – é inseparável do grau de liberação da escuta, com todas as suas conseqüências. O que se concebe a propósito da pulsão concebese gradualmente, e nisto consiste o progresso da análise, o que não impede que a experiência da pulsão seja a de um salto no real. Aliás, presidindo todo o processo, este salto é a pedra de toque da constância analítica 15. Pois não se 13

Se elas são ainda modalidades de defesa em relação ao meio, que é a motivação maior para a construção defensiva do falso self segundo Winnicott e outros, isso não invalida a nossa proposição, pois o alvo da defesa continua sendo a pulsão, e a aliança subjetiva continua sendo com as instâncias não pulsionais, por mais que esse procedimento contenha em si sua própria linha de reversão – pronta a ser (re) traçada quando houver (ou retornar) a ocasião oportuna (ver Winnicott, D. W., Da pediatria à psicanálise, Obras Escolhidas, Imago, RJ, 2000). Assim, defender-se da pulsão pode se traduzir mais profundamente em deixá-la em reserva, neutralizála por um tempo indeterminado, congelá-la. 14 Se, conforme Pierre Lévy, em lúcida retomada da visão freudiana, um psiquismo pode ser pensado segundo quatro dimensões – a topológica, a semiótica, a axiológica e a energética -, o afeto se define como processo ou acontecimento que põe em jogo pelo menos uma dessas dimensões. “Mas, sendo essas quatro dimensões mutuamente imanentes, um afeto é, de maneira mais geral, uma modificação do espírito, um diferencial de vida psíquica. Simetricamente, a vida psíquica manifesta-se como um fluxo de afetos”. Lévy, P., O que é o virtual?, p. 103-105, Ed. 34, 1999, SP. O afeto originário é, portanto, a vida do psiquismo ou sua condição de existência. 15 O que chamamos de salto no real corresponde ao momento de “retificação das relações do sujeito com o real”, tal como foi destacado por Lacan em A direção do tratamento (Lacan, J., Escritos, p. 604, Zahar, RJ, 1998). Segundo esse autor, trata-se do primeiro passo propriamente analítico. Evocando a participação essencial do sujeito na fabricação da realidade de que sofre, esse passo estabelece as bases da transferência no que esta tem de promissor, pois situa tanto a função do analista como a determinação ética do processo analìtico como tal. A mudança de plano discursivo decorrente da “retificação” e da transferência dá ocasião ao terceiro passo propriamente analítico – a interpretação, tendo em vista que esta se realiza, em última instância, por meio do próprio movimento da verdade no sujeito, instaurado pelos passos anteriores. Lacan soube mostrar que depois de Freud essa ordem foi completamente invertida: a interpretação, tomando a dianteira, revelava que o analista concebia a priori, de acordo com seu ideal de eu e seus pressupostos teóricos, o andamento efetivo da análise; a transferência se instalava, conseqüentemente, por força de uma idealização do analista e de seu conhecimento; a partir daí, era inevitável que o que concernia ao real se resolvesse em uma adaptação do sujeito à realidade, tal como esta deveria corresponder ao princípio de realidade do analista. Conforme veremos adiante, a retificação ou a correção da relação do sujeito com o real é sem dúvida o primeiro passo da análise, mas é também o passo constante, sempre retomado, até o fim do processo

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trata apenas de compreender, mas de agir, de decidir – não sem compreender, o que difere da passagem ao ato inconsciente. No plano do inconsciente, porém, é uma constante passagem ao ato esclarecido. De chofre, um solo originário. Já dissemos em outro lugar que a psicanálise, originariamente clínica e uma teoria do real, necessita, no entanto, de um contínuo banho de real para se colocar à altura de sua destinação e aí permanecer, e que este banho consistiu, até agora, no crivo pelo qual fizeram-na passar o próprio Freud, depois Lacan, e até mesmo Deleuze e Guattari, aparentemente seus antípodas. A esquizoanálise é ainda a psicanálise, como a física quântica é ainda a física. Colocarse à sua própria altura – mas é isto, repetimos, que se opera in progress, como convém à ciência da pulsão. Tudo depende de se manter essa direção, de não perder o rumo. Não avançar, bem entendido, já é perdê-lo. Insistimos, portanto, acreditando que por meio desta insistência seja possível dar um passo esclarecedor, sobretudo quando lidamos com um tema cuja assimilação se mescla imediatamente à sua prática. Prática do pensar, mas também do viver. Talvez haja um ponto em que o pensar e o viver sejam indiscerníveis, e esse seja o seu ponto mais alto. Qual a amplitude do campo pulsional (ou analítico)? Será possível dizer que nada fica fora desse campo, que ele é o um-todo, o ovo filosófico, e por isto também a derradeira descoberta da ciência – nada fica fora do seu campo? Da física e da química à biologia e desta à psicanálise há um percurso, que se poderia chamar de crítico e ético, pelo qual se renovam as condições do saber no Ocidente; é o processo amplo e molecular em que o sujeito da ciência, subvertido, retorna ao inconsciente, ao real. Ao agente da subversão foi dado o nome de pulsão. É desse processo e de sua necessidade clínica que nasce o conceito. Estamos às voltas com uma concepção de sujeito que, se manifesta o ser em algum sentido, manifesta-o como atividade e poder de avaliação. A condição ativa nos adverte, no entanto, que é apenas desde um campo de representação que a subversão aparece como tal, pois no plano dos afetos, isto é, da vida pulsional, opera-se uma reversão ética, legitima por sua origem, de feição pré-socrática em alguns aspectos, kierkegaardiana em outros, onde o viver e o saber coincidem 16. analítico. É um salto, pois implica em mudança de plano. Nunca se trata, porém, de um único salto, e sim de uma série deles, o que indica uma graduação, uma aproximação por graus – graus do real. 16 É bem verdade que em Kierkegaard se trata da fé, da crença, e não do saber, dimensão menor da vida cristã, segundo este autor. O que procuramos demonstrar é que a noção de pulsão traz para o campo do saber o que Kierkegaard chamaria de energia da fé, uma espécie de convicção quanto à passagem ao ato. Não se considera aqui uma compreensão que se basta a si mesma, mas uma passagem da compreensão à ação que afeta inevitavelmente as condições do próprio conhecimento. Tanto é assim que Kierkegaard pode dizer: “se o homem, no próprio segundo em que reconheça o justo, não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o conhecimento estanca (...) E quando se obscurece suficientemente, o conhecimento põe-se em mais completo

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A práxis analítica não faz outra coisa que revolver o solo das vitalidades e dos saberes esquecidos e ainda por vir; e assim não cessa de relembrar, no curso da escuta flutuante, que o esquecido originário é o devir do saber e da vida. Ela ensina, aliás, que não há outro devir. Diga-se de passagem, é preciso contar com uma considerável potência de esquecimento para lembrar disso. Esse gênero de recordação, espécie de recordação pura, evoca diretamente o sujeito do inconsciente, isto é, o lugar e a ocasião da maior vitalidade e da maior lucidez. É uma recordação pura, sem conteúdo ou representação, por ser o pressuposto de todas as histórias subjetivas; mas aparece também como um resultado, como a eclosão da diferença e um futuro. “Diferença”, aqui, não decorre de uma busca de diferenciação em relação aos outros, busca equivocamente narcísica, onde, inclusive, os outros continuariam sendo a medida de todo o esforço empreendido e, por esta razão, necessariamente abortado. “Diferença” é um modo preciso de nomear a lucidez de um mundo e seu brilho, sua verdade. Pensamos assim em uma ciência da vida para além da biologia, numa bio-lógica, de maneira a envolver com esse termo a noção freudiana de metapsicologia. Para exprimi-lo em poucas palavras, o que não é biológico e nem psíquico, e nem imediatamente ontológico, é ético 17. Que a pulsão seja acordo com a vontade; por fim é o acordo perfeito, porque aquele passou para o campo contrário e ratifica tudo o que esta arranja” (Kierkegaard, Sören, O desespero humano, p. 160 e 161, Livraria Tavares Martins, 1961). Na especulação pura, a passagem do pensamento ao ser é fácil, tudo é dado antecipadamente, não há resistência ou demora, nenhum embaraço, pois não leva em conta, como insiste Kierkegaard, o indivíduo real. Ora, o que garante esta passagem ao real é o afeto (ou seja, a dimensão dos valores inconscientes). Daí a importância, nesse pensamento, da noção de angústia. Em psicanálise, porém, trata-se de ligar o afeto ao saber. Uma convicção, tal como a mencionamos acima, já não se esteia na fé, não é mais uma crença, e sim um entendimento orientado pela pulsão. O entendimento, aqui, é uma avaliação, e esta é um afeto. Esclareçamos mais este ponto: para Kierkegaard, há uma insuficiência na concepção de falta ou de pecado quando este coincide inteiramente com a ignorância, conforme o critério socrático; segundo este critério, quem compreende o justo não pratica o injusto; se este é praticado, é porque se ignora o que é justo. Não está presente na versão socrática do pecado a categoria do querer, do desejo. Pois bem, assevera Kierkegaard, do ponto de vista cristão pode-se não querer praticar o justo. Já estamos, assim, no domínio dos afetos, isto é, do real, do homem vivo. Mas isto também é válido para o saber da análise: é possível não querer saber. E no entanto, esse saber é diretamente a prática do justo. É a descoberta psicanalítica da linguagem inconsciente, e em última instância da pulsão, que permite um retorno do homem ao “poder que o criou”, como se expressa Kierkegaard, mas não mais pela fé, como quer este autor, e sim pelo saber. O inconsciente psicanalítico não é, portanto, um assunto de fé ou de crença, mas sua incidência ética não difere da formulada por Kierkegaard a propósito do desespero humano, do pecado e da fé, enquanto experiência do indivíduo humano perante Deus. 17 Uma ontologia adequada à ética em questão seria possivelmente uma ontologia da imanência semelhante à de Spinoza. Deve-se distingui-la, como pretende Deleuze em suas aulas sobre Spinoza (Deleuze, G., En medio de Spinoza, p. 44 e seguintes, Cactus, Buenos Aires, 2008), da metafísica do Uno. Se este é o Bem, é superior ao ser, pois só o Bem faz ser, só ele garante o ser, e assim hierarquiza a ordem dos seres. É o prisma moral instalado no cerne de todo o pensamento metafísico, de Platão a Schopenhauer. Os seres estão julgados de antemão. No regime da imanência, porém, o ser se diz da mesma maneira de cada ente, e cada qual se esforça por efetuar sua potência: toda hierarquia só se erige secundariamente, o que faz a questão do ser e da potência, de início ontológica, refluir para uma ética da existência. A filosofia se torna prática. O bem e o mal

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de consistência ética (e não apenas um problema ético), é coisa que precisa ser ainda estabelecida. Costuma-se dizer que a pulsão é um construto teórico, uma ficção, como queria Freud, quando fazia intervir die Hexe, a bruxa metapsicológica, para resolver um impasse teórico que, no caso da psicanálise, teria sempre conseqüências clínicas. Não o real, mas uma espécie de mito acerca do real, um meio de representá-lo, de torná-lo inteligìvel. “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia” (Freud). Não sendo somática e nem propriamente psíquica, a pulsão não é diretamente apreendida senão como idéia e afeto. Essa noção central, no entanto, deve ter uma funcionalidade, deve servir clinicamente, já que não há pensamento psicanalítico sem implicações clínicas. É daí justamente que advém a força e a fecundidade da análise, do fato de se tratar de uma prática, ou ainda de um pensamento prático 18 que, desde sua origem, se desarranja e se orienta pelos enigmas e as aberturas de sentido com os quais se defronta na clínica. Os conceitos precisariam estar aliados a esse empreendimento. Ora, deste ponto de vista, a pulsão mesma será entendida, e muito especialmente ela, não só como presença obscura que aturde e mobiliza o pensamento, mas também como práxis, isto é, como procedimento ou exercício em seus diversos graus de inteligibilidade real. A questão da pulsão é a da experiência que se pode fazer dela e da sua eficácia, e se ela é produção do real como pretende, por exemplo, Garcia-Roza, é ainda em um sentido diferente de ser uma descrição do real que o produz como “uma ficção autenticamente cientìfica”. Ela será concebida como práxis que produz e re-produz, por efeito de superação constante, suas próprias condições de exercício. Este conceito se torna, imediatamente, uma operação. Há uma armadilha da teoria que é uma armadilha do pensamento: como a pulsão “nunca se dá por si mesma (nem a nìvel consciente e nem a nível inconsciente), ela só é conhecida pelos seus representantes: a idéia (Vorstellung) e o afeto (Affekt). Além do mais, ela é meio física e meio psìquica. Daì seu caráter mitológico” 19. Com isso, tal pensamento não teria uma incidência imediata na prática analítica. Os traços de equivocidade e de indiscernibilidade da pulsão dão abertura e elasticidade clínica ao conceito, mas é preciso não perder logo adiante o que há pouco se conquistou. cedem lugar às apreciações reais acerca do bom e do mau, do que favorece a vida, ou seja, do que é favorável à efetuação da potência em tais circunstâncias, aumenta a capacidade de agir e dá lugar a alegrias ativas, e o que a envenena e paralisa, promovendo as paixões tristes. O conhecimento, que nos faz experimentar alegrias ativas, é assim diretamente ético. O ponto de partida da análise, sua neutralidade, sua ausência de preconceitos e de juízos sobre a existência, torna-a exemplar como prática da imanência. 18 A filosofia de Spinoza foi chamada de “prática” por Deleuze, e precisamente por ser uma Ética. Seu interesse para a psicanálise é considerável, e embora Lacan, especialmente, o tivesse percebido, não parece ter extraído disso todas as conseqüências. 19 Garcia-Roza, L. A., Freud e o inconsciente, p. 115, Zahar, RJ, 1996.

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Afastando-se muito facilmente o problema da pulsão para o campo da representação, perde-se o fio pragmático, essencialmente ativo, desse conceito admirável, com o agravante de desconhecer, de modo implícito, que o real é a experiência direta da pulsão. Ainda mais contundente em sua forma de afastar para o campo teórico e especulativo o problema das pulsões, Fabio Herrmann afirma que “as teorias diversas que compõem a metapsicologia freudiana, como o nome o diz, formam uma espécie de metafísica da psique e possuem, como tal, valor operacional interpretante; valor, porém, que só é vigente nos campos teóricos” 20 . Uma vez reduzida ao horizonte metafísico da teoria e desconhecida sua enorme plasticidade, a noção de pulsão, que devia ser o alfa e o ômega da clínica, perde sua eficácia e se torna clinicamente inútil. Note-se o que está em jogo: a pulsão é, a cada vez, a medida de nossa relação com o inconsciente, ou seja, com a verdade de nosso ser, com o coração deste ser, ainda que ele seja afetado de uma profunda indeterminação – indeterminação decorrente, é claro, do andamento que ainda será dado a essa relação. Assim, a neutralização desse conceito extemporâneo, dotado de tal virtude operatória, não deixará de ter conseqüências teóricas e clínicas. Mas o que Herrmann irá chamar de “sentido de imanência”, aduzindo a esta noção um caráter misterioso, não será, precisamente, a pulsão de vida enquanto princípio ativo, atuando, ao longo do tempo, em diferentes graus de experimentação? O vivo, embora não habitualmente detectado, é de uma evidência prática espantosa, em especial na operação analítica – seja a irrupção do vivo no lapso, ou, para usar conceitos de Herrmann, no vórtice que anuncia a ruptura de um campo psíquico. Acontece de ser este vivo uma determinação constante, e se de alguma forma ele resulta, como quer esse autor, do método psicanalítico aplicado, que ao seu tempo o provoca, o convoca, isto se dá legitimamente na medida em que o método guarda uma aliança essencial com a vida – isto é, com a pulsão – e sua ética originária. A partir daí, essa ética encontra no método seu meio de afirmação, sua precisão. A psicanálise não é uma ciência do “homem psicanalìtico”, mas da vida, tal como ela se diferencia, se aprofunda e se abisma nas condições de experiência do homem. E não, é claro, do homem em 20

Herrmann, F., Introdução à teoria dos campos, p. 85, Casa do Psicólogo, SP, 2004. “Não resta dúvida que, se alguém se sente tentado a usar sem mediações tais teorias de alto nível na clínica diária, será inexoravelmente conduzido a cometer aberrações do tipo da reificação implicada em explicar a destrutividade de um analisando pelo montante de seu “instinto de morte” e, quando este melhora, justificar o fato pela vitória do “instinto de vida”, em favor do qual colaborou o analista”. O uso abusivo e mesmo aberrante destas noções não autoriza, no entanto, seu abandono clínico, pois vida e morte são critérios éticos pelos quais o sujeito, via pulsão, é reconduzido à posição de desejo e saber. A pulsão não é um mero conceito explicativo, operante apenas no campo teórico; é um conceito polêmico, clínico e provocativo. Não se trata aqui, porém, de criticar Herrmann e sua concepção de clínica. É apenas um exemplo da disparidade de perspectivas na compreensão da análise ou, no mínimo, conforme pensamos, de seu conceito fundamental.

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geral, mas de cada um, conquanto o destino de um possa interessar ao destino de todos. Dizer que a pulsão de vida não é uma coisa metafísica, meramente especulativa, mas uma prática, aproxima-nos de suas condições reais. Quais os passos teóricos que permitiriam transpor a barreira da representação em direção à determinação desse conceito prático, a ponto de esclarecer seu vetor clínico? E com qual intuito o faríamos? Como diz um personagem de Godard, “conhecer a possibilidade de representar nos consola da sujeição à vida. Conhecer a vida nos consola do fato de que a representação tem caráter de sombra” 21. É o segundo conhecimento que poderá nos curar. O clínico é originário 22. Aliás, desde Nietzsche, com o antecedente da Ética de Spinoza, a filosofia é (para usar ainda uma expressão deleuziana) crítica e clínica. Crítica porque avalia as condições de um pensamento; clínica porque essa avaliação, além de considerar um pensamento pelo prisma sintomatológico, é também uma medicina. Uma visão clínica avalia os estados de saúde e de doença, os graus de vitalidade de um processo, de um pensamento; esta visão não é a de um juiz, ela pertence ao processo e é como que o seu cerne, a subjetividade do processo. Quanto mais singular este for, mais viva e lúcida será a avaliação de que é capaz. Entenda-se que o singular, aqui, não é um sujeito constituído de suas particularidades – é um acontecimento único, originário e, como tal, uma anomalia, capaz de recriar e sanear, à sua maneira, as formas e dispositivos culturais com os quais se enfrenta. A propósito da literatura, diz Deleuze que “não se escreve com as próprias neuroses (...) A doença não é processo, mas parada do processo (...) Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo” 23. No caso da psicanálise, nada impede que se veja no analista uma espécie de médico, desde que ele se alie à pulsão que é, ela mesma, a medicina adequada. A pulsão é o médico e a medicina, o curador e o modo de curar. É o mesmo que Freud já dizia, com outras palavras, no estágio inicial da sua teoria – que o sujeito é o verdadeiro intérprete do sonho 24. Mas ele só é efetivamente o verdadeiro intérprete do sonho se fizer justiça ao seu descentramento, o que é garantido pela pulsão. Cabe perguntar, 21

Extraído do filme Para sempre Mozart, de Jean-Luc Godard. Assinalemos, de passagem, que uma tendência atual a condenar a clínica psicanalítica devido ao micropoder implicado nos dispositivos clínicos em geral, com suas modalidades de subjetivação e sujeição, desconhece o poder peculiar da análise de restaurar as vias singulares, existenciais – isto é, pulsionais – pelas quais os modelos de subjetividade são subvertidos e superados. Ora, essas vias se inscrevem num plano ético, relativo, em última instância, à vida e à morte. O clínico e o ético pertencem, assim, ao mesmo plano. 23 Deleuze, G., Crítica e clínica, p. 13, Ed. 34, SP, 1997. 24 Freud, S., Obras completas, vol. I, p. 407, Biblioteca Nueva, Madrid, 1973. Em nota de rodapé, Freud destaca a diferença essencial de seu método: consiste em “confiar ao próprio sujeito do sonho o trabalho de interpretação, não atendendo senão ao que lhe ocorre nesse trabalho de interpretação, e não ao que pudesse ocorrer ao intérprete...” 22

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porém, se não se opera assim um recentramento do sujeito, agora no plano de uma realidade pulsional, perdendo-se de vista o que fora obtido com a noção de inconsciente, ou seja, que as questões subjetivas não se fechassem em um fundamento, em uma essência, aos quais pudessem ser referidas de uma vez por todas. Não é este o caso se concebermos a pulsão como atividade, como dizer. Se nos ativermos a isso, a idéia de centro deixa de ser aplicável e dá lugar às noções de linha, de movimento, de direção. A virtude do conceito reside, precisamente, em sua pertinência aos atos. A Trieb freudiana continua sendo uma novidade no campo dos conceitos. Através dele, como dissemos no início, o pensamento faz seu retorno à vida. Não é difícil entender porque será um retorno clínico. O campo analítico e suas versões Num texto esclarecedor, intitulado Descentramento e sujeito – versões da revolução coperniciana de Freud, Benilton Bezerra Jr. aponta as três versões do descentramento subjetivo 25 que têm decidido pelo curso da pesquisa psicanalítica em sentido amplo: o que ele chama, por comodidade de exposição, de concepção “mentalista”, a concepção estruturalista desenvolvida pela escola lacaniana, e a concepção que se volta ao campo originário das pulsões. Em relação a estas linhas de entendimento sobre o que seja atuar e pensar psicanaliticamente, mais ou menos estabelecidas na atualidade, o autor oferece ainda um ponto de vista diferenciado, com base nos pragmatismos lingüísticos de Austin, Wittgenstein, Davidson, Derrida e outros. Retomemos com brevidade, porém passo a passo, sua exposição crítica. O “mentalismo” parte de uma teoria da linguagem baseada na representação e no pressuposto de que existem coisas, afetos, emoções, verdades subjetivas independentes da linguagem, e que apenas encontrariam nela a sua representação justa, aproximada ou distorcida. A noção de inconsciente introduziria assim, quase que naturalmente, a idéia de algo que existe em profundidade, intocado pelas palavras, um lugar das significações e das verdades ocultas, uma origem essencial do sujeito. É uma visão essencialista ou fundamentalista do sujeito, de suas ações e de seus objetos. Segundo essa referência, a tarefa analítica consiste em descobrir a emoção 25

Costa, Jurandir Freire, Redescrições da psicanálise: ensaios pragmáticos, p. 119, Relume-Dumará, RJ, 1994. Segundo Birman, citado por Bezerra Jr. (p. 125), há três momentos no processo de descentramento do sujeito operado pela psicanálise: um primeiro que se verifica da consciência para o inconsciente, implicando uma extensão do psíquico para além dos limites da consciência; um segundo, do eu para o outro, a partir de uma análise da alteridade fundamental do eu, baseada nas noções de narcisismo, de identificação, de ideal de eu; e um terceiro momento que promove o descentramento da consciência, do eu e do inconsciente para as pulsões, as quais compreendem, no limite, o elemento intensivo que escapa a toda representação.

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“diretamente vivida”, em explicar a causa mais remota do sintoma, em revelar o verdadeiro agente das justificações racionais conscientes e das defesas egóicas. Uma concepção desse gênero conserva as antigas dicotomias da metafísica ocidental, tais como falso e verdadeiro, aparente e essencial, periférico e central, contingente e transcendente, sempre acompanhadas de uma projeção espacial que evoca o superficial e o profundo. Resulta daí, inevitavelmente, um critério clínico normativo, cuja orientação é dada pelo estatuto do que é profundo, verdadeiro, essencial. Os acasos e a indeterminação que parecem constituir a experiência humana, e que determinam a existência de uma prática clínica que recebe o nome de psicanálise, destinada a enveredar, com sua escuta flutuante, pelas singularidades de uma história real, são esquivados como elementos secundários, não essenciais à pesquisa de uma verdade profunda do sujeito. Ao negligenciar o contingente, o imprevisto e o anormal, o “mentalismo” perde de vista a psicanálise, no mínimo o melhor dela. A pesquisa estrutural dedica-se a desmontar a ilusão desse entendimento da linguagem como representação e de seu ponto de partida, a existência de coisas em si que subsistiriam aquém da linguagem. Sustenta que todos os fenômenos da experiência humana, conscientes e inconscientes, são estruturados como linguagem, sendo o sujeito um vazio exigido pela estrutura, em deslocamento constante. A linguagem se apresenta assim como dado primeiro, a-semântico, matriz estrutural de todas as significações possíveis. Que não haja um sentido anterior às operações de linguagem exige uma revisão da natureza do sujeito, de sua identidade consigo mesmo, por mais inconsciente que pareça, pois agora passa a ser entendido como fato de linguagem. “O homem fala, mas é porque o sìmbolo o fez homem”, diz Lacan. A experiência de ser um eu, um sujeito em face de outros sujeitos e de compartilhar de um mundo depende inteiramente da pré-existência da linguagem. Com isto deve-se distinguir a linguagem enquanto estrutura e esquema matricial de suas múltiplas efetuações, seus inumeráveis produtos, do mesmo modo que se pode distinguir a língua dos atos de fala, o código lingüístico das produções que ele viabiliza. No plano do sujeito essa distinção se fará pela clivagem entre enunciação e enunciado. O sujeito da enunciação é vazio, negatividade radical, não idêntico a si, mas, como tal, é exigido logicamente pela linguagem enquanto estrutura. Não se confunde com qualquer discurso sobre si, mas é o que torna possível a série indefinida dos eus, tal como aparecem na diacronia dos enunciados. Estes constituem, ao longo do tempo, a história psicológica de cada indivíduo, como tantas tentativas de preencher com um sentido positivo, uma descrição suficiente, a negatividade essencial ao sujeito. Não se trata mais, diz Bezerra Jr., de 21

desencavar, elucidar, revelar uma verdade oculta e reconciliar o sujeito consigo mesmo, nem de obturar a falta que lhe é constitutiva, ou de desalienálo 26. A análise se volta a uma destituição subjetiva, a uma “separação do sujeito da cadeia do seu próprio discurso. Transpostas as cadeias das ilusões psicológicas, das defesas egóicas e das marcas identificatórias do eu, o sujeito deve poder se defrontar com sua não-identidade a si, deve poder reconhecer-se „causado como falta‟, e desse modo poder vir a desejar intransitivamente” 27. Mas ao promover uma noção de linguagem atemporal, a versão estruturalista se encaminhou, inevitavelmente, para uma metafísica da falta e do desejo. Sua apreensão despojada da subjetividade manteve o apoio em uma instância subjetiva que seria a verdade última do sujeito, sua posição transcendental, ainda que vazia. A não identidade a si, por um lado, e as representações egóicas, por outro, repetem e acentuam a distinção entre o sujeito verdadeiro, mesmo que conotado como furo, falta, e as ilusões do eu. O furo, a falta, o vazio, embora negativos, são ainda essenciais, atemporais, pois não se confundem com o contingente, o acidental e o empírico. São invariantes estruturais. É a crítica que O anti-Édipo já dirigia à psicanálise estruturalista, na medida em que esta não cessa de reconduzir as posições subjetivas, moleculares, micro-desejantes, a uma falta molar, à castração simbólica, o que equivale na prática clínica a reduzir a diversidade dos enunciados e a pluralidade das vozes a um único vazio de silêncio e ausência. Já a perspectiva que tem por foco operatório a pulsão, ou as pulsões, se pauta pelo argumento de que os conflitos, as escolhas, as inibições e invenções humanas não podem ser entendidos sem o recurso às noções de força e de alvo, relativas ao chamado campo pulsional. Pode-se dizer que, em Lacan, é o real que faz a função desse campo, o que exige uma discussão mais nuançada da lógica estrutural que ele adota. É verdade que Lacan repele a idéia de força como obscura, em favor de uma causalidade inconsciente, ligada à idéia de hiância, de falta. Dois aspectos da leitura psicanalítica que dá primazia à pulsão serão destacados por Bezerra Jr., compreendidos por este autor como nodulares nas digressões sobre a mesma: que Freud a tenha localizado entre o psíquico e o somático, como uma ponte que já não pertence ao campo biológico e nem se resolve inteiramente no campo das representações – conceito limite, ponto de partida e ponto de chegada dos fenômenos que interessam à investigação analítica; e que seja definida sobretudo como Dräng, força e exigência de trabalho, urgência. O primeiro aspecto irá remeter, de saída, à distinção entre instinto e pulsão, decorrente da previsibilidade da conduta animal em relação à 26 27

Redescrições da psicanálise, op. cit, p. 136. Idem, p. 136.

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indeterminação que caracteriza a experiência humana. Quer dizer que o corpo, concebido como pulsional, não encontra derivação imediata e fixa de suas excitações; tudo nele já compreende uma mediação psíquica, simbólica, e um destino em aberto. O segundo aspecto, o caráter de Dräng, refere-se tanto à força como à atividade, e por isso a definimos freqüentemente como força ativa (vis activa). Curiosamente, Bezerra Jr. e os autores de modo geral, excetuando muito especialmente Lacan, não consideram este traço essencial da pulsão. E no entanto, é somente do ponto de vista de sua atividade que um ser vivo pode afetar e ser afetado, conforme uma definição de força dada por Deleuze. A pulsão é assim uma força constante com um destino indeterminado. O que é criticável na perspectiva psicanalítica que adota o elemento pulsional como ponto de partida? Segundo Benilton Bezerra Jr. é a pretensão de estender a pesquisa até o que seria o fundamento pulsional da experiência, envolvendo de novo as idéias de verdade última e de uma essência do humano em geral. Ingressar no que constituía, já para Freud, um terreno mitológico, parece ser um empreendimento de retorno duvidoso, de interesse secundário, se o que importa realmente, clinicamente, a propósito das pulsões, são os fenômenos analíticos observáveis, isto é, aqueles acontecimentos que podem ser descritos, relatados em análise, tais como as fantasias, os sintomas, os sonhos, os lapsos. A crítica retoma, aqui, a posição acima discutida de Fabio Hermmann. “É preciso lembrar que para Freud só se pode falar da pulsão quando há representação, ou seja, a energia é sempre representada e são seus representantes, e não ela própria, o que interessa à análise. Há uma grande diferença entre reconhecer o caráter de força dos atos psíquicos e reivindicar para ela uma perspectiva ontológica” 28. Embora na frase acima haja um desnível nas colocações, pois afirma, num primeiro momento, que o interesse clínico recai sobre as representações e não propriamente sobre a energia pulsional, para em seguida valorizar o caráter de força dos atos psíquicos – ou seja, a energia que se acabou de deixar em segundo plano –, o decisivo concernente à crítica de um fundamento pulsional é dito, a saber, a inconveniência de se pensar num ser da pulsão. Qualquer dimensão mais radical do sujeito reconstitui o ponto de vista essencialista que se procurava evitar com a descrição do seu descentramento, o qual, como já dissemos, é a pedra de toque da noção de inconsciente. Um centro, um fundamento, uma essência dos processos psíquicos acaba por neutralizar nada menos que a noção mesma de inconsciente.

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Idem, p. 144.

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Ora, não será a pulsão, justamente ela, que irá neutralizar essa inquietante noção. Muito pelo contrário, se é certo que ambas as noções se copertencem, ou melhor ainda, se a pulsão é a garantia de abertura do inconsciente. “Falar de pulsional é afirmar que a experiência psìquica não se explica por algum tipo de lei natural, que a sexualidade humana e seus regimes de prazeres e sofrimentos não obedece a padrões previsíveis e controláveis, e estão na dependência de trajetórias que a cultura e a linguagem põem à sua disposição” 29. Aí reside, segundo Bezerra Jr., o interesse clínico da noção de pulsão, e não em seu pretenso realismo Mas se o recurso conceitual à pulsão serve para evocar a força, o alvo, o destino e a singularidade de um processo psíquico, não se deve esquecer que ela é, em essência, atividade. E tão importante quanto sua essência ativa é sua consistência ética. É precisamente nestes termos que o conceito se ilumina, e que a concepção pragmática da linguagem que iremos abordar em seguida permanece em seu campo de aplicação. Nas três versões do descentramento apresentadas há apenas deslocamento do centro, ou sua distribuição móvel, não a sua abolição. Conforme diz Bezerra Jr., a revolução coperniciana de Freud teria consistido em demonstrar, de acordo com essas três versões, que o centro do psiquismo não se encontraria na consciência, e sim em outro lugar. A revolução ficou a meio caminho? Ainda que a imagem do centro esteja pulverizada na perspectiva estrutural, resta ainda a noção de um lugar outro, de pura negatividade, para onde refluiriam e se resolveriam, como uma espécie de buraco negro sempre deslocado, todas as peripécias subjetivas 30. De acordo com essas versões, as questões relativas à investigação analìtica se fariam nos seguintes termos: “Qual o sentido verdadeiro, latente, da representação manifesta?” (versão mentalista). “Como revelar o sujeito verdadeiro por trás das identificações imaginárias?” (versão estrutural). “Como ultrapassar os limites da fala e da linguagem e trazer à tona a dimensão verdadeiramente fundante da intensidade pulsional?” (versão pulsional). 29

Idem, p. 146. Em que medida a análise foi “desativada” pelo pensamento estrutural? A partir da idéia de pulsão e de seu poder de descentramento, Chaim Samuel Katz fez ressoarem, pelo avesso, o privilégio do significante, próprio da perspectiva estrutural, e os interesses da cultura: “Freud jamais postulou o primado de significantesignificado como questão (...) central para a psicanálise, por mais que muitos se esforcem por fazê-lo dizer tal. A unidade discursiva é provisória não apenas (como afirmam Lacan e os seus seguidores) porque todo significante que se torna em significado é logo substituído por outro significante. Mas porque, contra a unidade e a unilinearidade da cadeia significante (na linha do pensamento lacaniano) se põe a marca vital da pulsão, que é plural, não determinada por centros, ex-centros (à la Heidegger, Lacan) ou faltas. E, especialmente, porque a pulsão é profunda e arraigadamente associal” . Katz, C. S., Ética e psicanálise: uma introdução, p. 206 e 207. Graal, RJ, 1984. Conforme veremos adiante, o traço extra-pessoal da pulsão não a torna gregária, muito pelo contrário. 30

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Todas essas questões evocam um centro, uma verdade essencial, transcendente ou metafísica, como alvo final do processo analítico e sua razão de ser. O que é então adotar o ponto de vista pragmático com respeito à linguagem? Em que ele é liberador em relação à ficção de um centro, de um fundamento, de uma essência ou de uma transcendência às quais se reportaria o sujeito? Como contornar essa ficção de origem metafísica, enraizada nas três concepções destacadas, e que parece se conservar em detrimento do que seria a novidade psicanalítica por excelência – uma atenção rigorosa à contingência, à história, à singularidade, à invenção? O descentramento do sujeito pode ser tratado de um modo não essencialista ou metafìsico: “Quando Freud esfumaça a fronteira entre a normalidade e a psicopatologia, ou ainda quando aponta as origens libidinais das exigências morais, ele não responde nem inverte a tradicional questão sobre o centro da vida subjetiva: ele simplesmente usa um vocabulário para descrever a experiência psìquica que torna a idéia de centro menos útil”. A idéia de inconsciente serve especialmente a esta relativização do normal e do patológico, assim como para apontar as fontes não morais da moralidade, iluminando uma experiência humana mais rica, complexa e nuançada, e fazendo entrar na legitimidade do humano o que antes lhe pareceria exterior, estranho, ameaçador. E o que temos a dizer de novo acerca da pulsão que permitirá integrar a pragmática lingüística ao seu conceito? E em que sentido, integrando-a, com todos os seus elementos críticos, o conceito ainda é exigido – com ela, para além dela? Eis uma breve indicação: a questão analítica, vista pelo prisma de uma pragmática pulsional, não é de centro ou de essência, de verdade ou de fundamento, mas de determinação, de sobre-determinação, de hiperdeterminação e de auto-determinação... É certo que todas aquelas denominações podem ser utilizadas como metáforas, a título de apoio ao que verdadeiramente interessa. Não vemos problema algum no fato de usarmos termos como “profundo” e “superficial”, se pensarmos, ao modo de Paul Valéry, que o mais profundo pode ser a pele. Para autores como Wittgenstein e Austin, a linguagem deve ser definida como uma atividade. É um bom começo – inequívoco, sóbrio, vital. Considerá-la assim tem o mérito de evitar, logo de início, a tentativa de responder pela sua natureza última, pela sua essência, ou seja, evita caracterizá-la por uma função única, seja a de representar, de expressar, ou outra qualquer. “Assim como as atividades humanas não estão a priori codificadas em qualquer elenco fixo e predeterminado, tampouco a linguagem 25

pode ser reduzida a uma tarefa essencial” 31. A linguagem pode se prestar a muitos usos, sendo ela mesma tão múltipla quanto os seus usos. Ao pensar em termos de “jogos de linguagem”, Wittgenstein alcança uma formulação decisiva para sua concepção de linguagem, o que não implica – e aqui reside o interesse da expressão – em nenhuma essência que a palavra “jogos” pudesse evocar, muito pelo contrário. O resultado é estarmos diante de muitas linguagens, e não da Linguagem. Em relação à consideração dos jogos em geral, Wittgenstein recomenda: “Não diga: „Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam „jogos‟, – mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense, veja!” 32 Linguagens e formas de vida, para Wittgenstein, são o mesmo. É notável a proximidade com a nossa pragmática pulsional. A linguagem será então concebida como ação, as palavras como ferramentas, e o seu uso dependerá de regras de uso específicas, de acordo com o contexto de atividades em que essas regras se aplicam. As perguntas, em cada caso, são aquelas propostas em O anti-Édipo: “como isso funciona?”, e “para que serve?”, e não mais “o que representa?” ou “o que quer dizer?”, embora a linguagem também possa servir para representar e exprimir. À semelhança de uma caixa de ferramentas, em que cada ferramenta, cada utensílio (seja um martelo, uma serra, um metro, um vidro de cola, pregos, etc.) tem uma finalidade tão díspare quanto possivel de outra, Wittgenstein propõe uma lista em aberto de jogos de linguagem: “comandar, e agir segundo comandos; descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas; produzir um objeto segundo uma descrição; relatar um acontecimento; conjeturar sobre o acontecimento; expor uma hipótese e prová-la; apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas; inventar uma história; ler; representar teatro; cantar uma cantiga de roda; resolver enigmas; fazer uma anedota; contar; resolver um exemplo de cálculo aplicado, traduzir de uma língua para outra; pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar...” 33 É certo que entre os diversos usos da linguagem alguns poderiam adquirir maior importância para a vida humana, a ponto de se indagar por uma destinação maior da linguagem. Considerando-a como atividade, como conduta expressiva, isto é, pragmaticamente, de que modo situarìamos a seguinte versão de Hölderlin quanto à sua finalidade: “Ao homem foi dada a língua, o mais perigoso dos bens, para que ele dê testemunho de o quê ele é”? Trata-se aqui de uma concepção idealista da 31

Idem, p. 149. Wittgenstein, L., Investigações filosóficas, p. 52, § 66, Os pensadores, Ed. Nova Cultura, SP, 1996. 33 Idem, p. 35 e 36. 32

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linguagem ou do seu uso, digamos, mais elevado, mais remoto, aquele que, de uma forma ou de outra, já pressupõe os demais usos? Que as questões de uso estejam em primeiro plano quando se define a linguagem como ação tem por conseqüência necessária que o sentido deixa de ser algo prévio à expressão lingüística, ou, ao contrário, o efeito de uma combinatória de significantes em si mesmos vazios de significação; ele passa a ser uma propriedade da ação de linguagem, ou melhor ainda, ele coincide com o seu exercìcio. “A significação de uma palavra é seu uso na linguagem” 34 , de tal modo que investigá-la envolve o conhecimento das regras de uso que a condicionam, assim como, repetimos, o contexto em que essas regras têm sua aplicação. Conforme assinala Bezerra Jr., em alguns casos as regras de uso podem não ser muito transparentes e óbvias, mas estão lá, organizando o sentido das palavras que são usadas. Entender o funcionamento de uma linguagem é compreender, em última instância, uma forma de vida. É possível fazer uma analogia da linguagem, compreendida nesses termos, com a loucura, tal como esta aparece aos olhos de um Lima Barreto, em O cemitério dos vivos: “Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só.” 35 As diversas modalidades de determinação dos processos psíquicos a que nos referimos anteriormente poderiam ser evocadas a propósito das regras de uso não evidentes que, no entanto, concorrem para a determinação do sentido de certos enunciados mais complexos, aqueles que compreendem, por exemplo, temas que costumam figurar no espaço analítico, como as questões sexuais, éticas, existenciais. Inseridas em contextos históricos e sociais, as regras que organizam estas questões, tal como vigoram no quadro de uma composição mais singular, não são imediata e visivelmente dadas. Fundamental para uma teoria da pulsão, a idéia de força é também integrada de modo indissolúvel ao ato lingüístico. Não se trata mais de uma força que investe numa representação ou num conjunto de representações, de modo que elas sejam dotadas de um poder que não teriam antes disto; se é um ato de linguagem, ele já contém em si mesmo a tensão que o leva a se realizar. A tensão, a intenção, a força são inerentes à ação de falar, não se distinguem da articulação da palavra, não existem fora de sua efetuação. Também aqui encontramos uma correspondência entre o pragmatismo lingüístico e a nossa 34 35

Idem, p. 43. Barreto, Lima, O cemitério dos vivos, p. 43, Planeta, SP, 2004.

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visão do campo pulsional, tendo em vista, especialmente, nossa fórmula para o sentido e a força – que a força é a do sentido, e o sentido é o da força. Para Wittgenstein, a energia, tanto quanto o sentido, são propriedades do ato lingüístico. A dimensão da força, que junto com a dimensão representacional deve explicar o funcionamento da linguagem, ganha nas análises de Austin uma formulação simples e decisiva: dizer é fazer. Quando digo “eu prometo”, não descrevo ou represento a idéia de prometer, faço efetivamente uma promessa. O aspecto performático da linguagem, evidente em casos como este, mostra-se extensivo a todos os atos de linguagem 36. Ao enunciar uma frase, realiza-se sempre algo além de expressar um sentido com as palavras – ao dizer algo, realiza-se uma ação como a de comunicar, de comandar, de influir, de censurar, de conjeturar... O significado das palavras presentes na frase não é suficiente para cobrir todo o sentido de um ato lingüístico. Além disto, a mesma frase enunciada pode produzir diferentes efeitos. Este novo componente do dizer ou do sentido remete – tanto quanto o ato imanente à frase, ao que o falante quis dizer, produzir – a um campo de intenções e de desejos. Assim, ao invés de servir para transportar sentidos, os atos de linguagem fazem coisas, produzem efeitos. Como estes não podem ser previstos ou controlados inteiramente, graças à equivocidade que reina no interior da linguagem, as conseqüências indesejáveis, os mal entendidos decorrentes dos atos de linguagem não são meros acidentes; ao contrário, pertencem ao horizonte dos seus efeitos, com o mesmo direito que os demais 37 . Pensar deste modo acerca da linguagem tem o mérito de aproximar a pesquisa lingüística das condições do vivo, da vida humana e da indeterminação que lhe é própria. Tal aproximação não pode prescindir da referência a um agente, a uma vida subjetiva, e se utilizará da noção de crença no lugar da de representação, na medida em que esta é insuficiente para integrar a atividade inerente à vida. Entenda-se “crença” no sentido que lhe confere Pierce, isto é, como regra para a ação, e não como representação possível da realidade. Já estamos muito perto de uma versão nietzschiana da verdade, entendida como uma crença que se mostrou valiosa aos propósitos da vida. Crenças e desejos constituem a rede que Davidson denomina de sujeito. A rede é mutante em alguns aspectos, duradoura em outros. A cada aspecto da rede, pode-se atribuir uma subjetividade, pois cada crença é um modo de responder às circunstâncias do meio interno e externo. Um modo de responder – aí reside o sujeito, indissociável da crença por meio da qual ele se orienta e 36 37

Ver adiante o sub-capitulo Atividade e linguagem, p. 34. Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 154 e 155.

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age. O sujeito é assim dispersado na rede, em seus diversos níveis; não guarda nenhuma semelhança com uma instância separada, profunda ou vazia, que se distinguisse da multiplicidade de crenças e volições. “Na proposição davidsoniana, há superposição e conflito entre subconjuntos da rede, que funcionam sem regime de coerência interna. Ela (a rede) corresponde à idéia de uma subjetividade clivada, cindida, operando permanentemente sob o modo do conflito e de estabilizações provisórias” 38. A idéia de um centro para a rede não é mais imprescindível, nem se é tentado a conceber um olho interno que inspecione os estados subjetivos. Aqui reside o interesse maior dessa concepção e, ao mesmo tempo, a forte possibilidade de deslizar para a inconsistência. Se ela mantém a abertura à invenção subjetiva, pois nada a faz retornar ao mesmo, perde de vista, em contrapartida, o saber integrativo que torna a invenção um acontecimento consistente e único. Acima nos reportamos a uma visão clínica inconsciente, inerente aos processos humanos. Um poder de avaliação desse gênero não se confunde com um olho interno fixo, atemporal, nem com uma constante histórica; é uma prática, um exercício de cunho originário, uma memória prática, isto é, ativa, que investiga o interesse que um saber ou uma crença, enquanto constituem uma regra de ação, possam ter em determinadas circunstâncias e ao longo do tempo. Mostraremos que o saber integrativo de que tratamos, longe de coibir as novas e inauditas possibilidades da existência humana, é fundado na suspeita e, portanto, na condição de saber, muito mais que no conteúdo de um saber: avalia a pertinência dos saberes e das crenças do ponto de vista da vitalidade e da potência. A preservação da condição ativa é essencial à vida e à existência do homem, não importa se esse termo – “essencial” – esteja contaminado de pensamento metafísico. O que faz a análise senão ensinar a prática da suspeita? E se, por meio de seu procedimento flexível, assevera que uma crença é digna de ser conservada, deve ser também capaz de situar o contexto de sua utilidade provisória. Pois bem, este saber de uso já não pode ser considerado em si mesmo uma crença. Além do mais, nem tudo é parcialidade, clivagem subjetiva e pluralidade de pontos de vista “sem coerência interna”. Não desconhecendo o caráter de complexidade do psiquismo humano e não reduzindo-o, portanto, a qualquer denominador comum, deve-se ter em conta que uma vida não é intercambiável, transferível, eludível – será sempre uma vida. Seja como sujeito deste ou daquele estrato, daquele campo ou “andaime”, irei responder de um modo ou de outro pelo que fiz e pelo que deixei de fazer. É claro que sempre poderei dizer: “onde estive com a cabeça?”, ou ainda, “não me vejo 38

Idem, p. 157.

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capaz de ter feito o que fiz”. Mas ninguém morrerá no meu lugar. Este traço de unicidade incontornável não se resolve apenas pela referência a um organismo singular e por uma responsabilidade social. O corpo é mais que um organismo. É uma prática e uma ética. Memória viva, não deve ser descrito apenas pelas suas funções, mas também pelos seus graus de vitalidade, de intensidade, pelo seu poder de expressão. O corpo é sobretudo corpo falante. É preciso pensar, ao mesmo tempo, as múltiplas configurações do corpo e a linha contínua que as reúne, sua duração, à qual denominamos pulsão de vida. Considere-se essa passagem de O pensamento e o movente, de Bergson 39 , e como ela pode sugerir a idéia de uma memória viva, ativa, e o difícil vislumbre do que é uma duração: “Caberá portanto evocar a imagem de um espectro de mil matizes, com graduações insensíveis que fazem com que se passe de um matiz para o outro. Uma corrente de sentimento que atravessasse o espectro tingindo-se sucessivamente de cada um de seus matizes experimentaria mudanças graduais, cada uma das quais anunciaria a seguinte e resumiria em si as que a precedem. Mesmo assim, os matizes sucessivos do espectro permanecerão exteriores uns aos outros. Justapõem-se. Ocupam espaço. Pelo contrário, o que é duração pura exclui toda idéia de justaposição, de exterioridade recìproca e de extensão”. A duração inclui, no entanto, todos os graus da atividade lingüística. Tudo já é ação e linguagem na experiência humana, de modo que o uso da palavra, ao responder igualmente à duração, pode se efetuar em diferentes temporalidades e pertencer, obviamente, a um mesmo processo de vida. A linguagem onírica é expressiva a este respeito, e mais de um cineasta soube explorá-la. Um dos mais recentes experimentos é o de David Linch, com seu Império dos sonhos. “Eu não sei se aconteceu amanhã ou ontem...” diz a heroìna do filme. Os lapsos e os sonhos são chamados de formações do inconsciente porque se compõem de diferentes temporalidades, como uma espécie de ajuste simbólico e inteligente entre elas. A ação lingüística inesperada, não raro enigmática, é este ajuste. As “intensidades” pulsionais consistem, assim, nos diferentes graus em que uma questão – por exemplo, a da existência – pode ser tratada, vivida, entendida. Graus de intensidade são graus de entendimento, indissociáveis dos graus de precisão no dizer. Intensidade e entendimento são uma e mesma coisa. Retornemos à rede de crenças e desejos que constitui o sujeito, segundo Davidson. Não há necessidade de uma instância central, fundadora, que dê conta da complexidade dessa rede psíquica, inevitavelmente clivada. Composta de subdivisões com certo grau de autonomia, operando em 39

Bergson, H., O pensamento e o movente, p. 190, Martins Fontes, SP, 2006.

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diferentes níveis e graus de visibilidade, a rede articula estruturas de crenças, às quais correspondem desejos, expectativas e afetos que interagem entre si e determinam, a cada vez, o comportamento lingüístico. Descrever o sujeito dispersado na rede, marcado pela cisão e pelo conflito, constituindo-se por integrações parcelares e disjunções relativas, não implica, contudo, em abandonar a idéia de um eu. “Na prática clìnica e na vida cotidiana”, diz Bezerra Jr., “não se pode dispensá-la” 40. O caso é justamente este: considerar de um ponto de vista prático e ético os assuntos analíticos deve também orientar o tratamento teórico dos mesmos. Não é em relação a uma essência ou a um fundamento que se coloca a questão do sujeito e, com ela, a da pulsão; essas questões dão consistência ao saber da análise em virtude de serem essencialmente práticas e éticas. Daí que a noção de pulsão é novamente requerida. Na medida em que alguns aspectos da rede não aparecem, mas condicionam, de perto ou de longe, o comportamento lingüístico evidente, cabe indagar clinicamente pela sua estranheza e sua energia nos processos da vida cotidiana. A inteligibilidade de um processo de vida decorre dessa investigação. Além disso, a pressão do estranho depende do seu grau de importância em termos de vitalidade e de potência, tanto no sentido de que uma direção assumida pode reduzi-las e até mesmo inviabilizá-las, como no sentido de que pode, ao contrário, restaurá-las em certos níveis e reforçá-las. Esse discernimento não constitui uma crença, mas um saber, uma avaliação pertinente em um momento preciso. Conforme mostraremos adiante 41, um saber dessa ordem não se distingue da satisfação pulsional, se esta for compreendida no âmbito da práxis analítica. Embora a correspondência saber-satisfação adquira aí um relevo propriamente clínico, ela é constatável, com maior ou menor clareza, em todos os processos sublimatórios. A estranheza, sua determinação invisível e sua força, bem como o discernimento ativo que ela implica, pertencem ao que chamamos de campo pulsional. Esse campo é, a cada vez, uma espécie de extrato de memória viva, atuante, imediatamente lingüística e relativamente disponível. Como foi dito acima, nada é tão apropriado como um lapso para reunir todos esses aspectos. Dentre as razões práticas para se preservar a idéia de eu, assinaladas por Bezerra Jr., está “a possibilidade de modificação, abandono ou aquisição de crenças que visem ao estabelecimento de narrativas que conciliem e reordenem acasos, eventos, causas e razões, de modo a estabelecer uma trajetória subjetiva, uma história na qual o sujeito possa se reconhecer, onde antes parecia haver apenas determinações anônimas, injunções 40 41

Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 163. Ver os capítulos O sentir, o saber, o sentido (p. 75) e Saber da cura (p. 249).

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desconhecidas”. Ou seja, deve-se contar com alguém interessado na mudança das crenças e nas novas narrativas, alguém que queira integrar, numa prática de entendimento e no curso de suas ações, o que antes parecia anônimo, disparatado e atuava fora do seu alcance. É claro que esse alguém se constitui ou se constrói como sujeito na instauração e na renovação incessante deste processo – o que o autor chama de trajetória subjetiva –, sem que seja preciso evocar uma instância transcendente ou fundante que garanta e explique, finalmente, todo o processo. Isto, aliás, teria como efeito eliminar o caráter de contingência e de invenção da aventura subjetiva, relegando-o, na melhor das hipóteses, a uma determinação menor, secundária. Aí reside o benefício maior do conceito de pulsão e a sua definição derradeira como pulsão de vida. Quando alguém quer a modificação, a integração, etc., é a vida que o quer, a vida nas condições da experiência humana. Mas, dizendo “a vida o quer” não estarìamos justamente reintroduzindo o transcendente, o fundante? Não, se ela for concebida à maneira analítica, isto é, como pulsão, e se, para tanto, soubermos destacar os seus traços imanentes – de ação, integração, superação, movimento, existência, singularidade e sentido. Qual a vantagem de acrescentá-la como um pressuposto necessário à noção de sujeito que se constrói? Seu caráter ativo e o critério de direção da análise, ambos baseados nos índices de vitalidade, de potência e de lucidez de um processo. É claro que com isto introduzimos a noção de escolha, de direito de escolha. Pois bem, outra razão para se conservar o eu no tratamento analítico das questões humanas se vincula a essa noção: “A idéia de eu é importante ainda na medida em que implica o reconhecimento do sujeito moral, em outras palavras, na medida em que a utilizo para atribuir a mim e aos outros não só atributos intencionais (computadores sofisticados poderão talvez um dia ser descritos assim), mas o estatuto de sujeito singular, desejante, autônomo, a quem reconheço como „um de nós‟. A história mostra que nem sempre este estatuto foi atribuìdo a estrangeiros, mulheres, negros, índios, infiéis etc., e que só recentemente tornou-se extensível universalmente. Mas do ponto de vista analítico, não há como dispensá-lo” 42. A partir daí, a questão passa a ser: em que medida a condição de escolha coincide com a condição de saber? O caráter ético, neste contexto, adquire uma feição originária. Novamente a pulsão. Singularidade, autonomia, desejo, não são condições secundárias, terciárias, do homem – este ser, como dizia Nietzsche, que não está determinado. São condições originárias, que podem ou não ser exercidas. Ver os seres humanos sob este prisma significa considerá-los de um prisma 42

Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 164.

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originário. É o que chamamos de realismo pulsional. Podemos pensar, como faz o autor que utilizamos, que a psicanálise é datada, histórica, e assim são os seus conceitos, vivos enquanto viáveis, e que ela se destina a indivíduos, “seres historicamente construìdos de modo a se perceberem livres, autônomos e dotados de um mundo secreto e intransferìvel” 43, condição esta que está longe de se verificar em muitas culturas e povos, inclusive atuais. A historicidade contextualizada da psicanálise, herdeira da “tradição judaicocristã laicizada” do mundo ocidental, não é o acidente e o desconcerto que sobrevêm às concepções psicanalíticas, às quais se atribuiria de bom grado um caráter imutável. O aspecto mais vigoroso dessas concepções é sua contemporaneidade, sua aplicação às questões humanas atuais, sua aptidão para esposar o contingente e o imprevisível, o fluxo histórico, o devir e suas possibilidades, tanto no plano individual como no plano da cultura. Daí que seus conceitos devem estar igualmente submetidos a um crivo pulsional. Mas será que dizendo isto esclarecemos o “pulsional”? Não é porque as mulheres não eram ouvidas que não fazia diferença alguma se eram ouvidas ou não. Aliás, a noção de inconsciente decorre do fato de que Freud passou a ouvi-las. E não é tão certo que elas não fossem ouvidas na antiguidade. Bastaria o testemunho das sibilas para se ter dos antigos uma idéia mais apropriada. Quanto à singularidade e ao grau de autonomia, é preciso dizer que não excluem o caráter extra-pessoal do processo, muito pelo contrário. E por que não faríamos, a partir de certo estágio de nossa pesquisa, descobertas que os antigos fizeram e foram esquecidas, ou que não puderam realmente fazer, ainda que, em casos notáveis 44, estivessem na eminência de fazê-las? Que essa reflexão sobre os antigos valha como uma consideração intempestiva. A psicanálise não existe apenas para atenuar o sofrimento e gerar bem estar. Mais importante que isto é sua destinação ética. Quando falamos em vitalidade, potência, lucidez, não evocamos diretamente o bem estar e a satisfação, mas o vigor ético da auto-determinação... Observa ainda Bezerra Jr. que além do passo decisivo que foi tratar o sujeito humano numa perspectiva ética inovadora, a uma boa distância de qualquer abordagem instrumental, a psicanálise re-descreveu a singularidade individual ao transformá-la em realidade trans-subjetiva, “com isso desfazendo fronteiras entre o social e o individual, o coletivo e o singular” 45. O traço extra-pessoal destacado no início deste capítulo, serve para abordar, do ponto de vista do vivo, essa polarização da existência. Não é difícil 43

Idem, p. 165. Um desses casos é o de Platão, que por muito pouco não fez uma filosofia da diferença, como afrima Deleuze. É verdade que este “por muito pouco” é decisivo. 45 Idem, p. 165. 44

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perceber porque o traço em questão é uma espécie de bússola do saber analítico: o sexual e o ético são aí contemplados, e querem dizer, cada um à sua maneira, que a pulsão ama a diferença e se afirma como diferença. É nesta medida que eu é um outro. Mas acima de tudo a pulsão ama o que faz diferença, isto é, a diferença que se tornou interna. Eros, dizia Freud, vive de tensões, de diferenças vitais. Eros é combate. Não é mesmo notável que a metapsicologia freudiana seja, mais que qualquer outra coisa, uma ética e uma política? “O descentramento e a contingência têm como conseqüência uma visão da história das sociedades e de cada indivíduo como um processo de reconstrução permanente, sem ponto final. (...) E se a psicanálise não pode ter utilidade na proposição de como se deve ser ou de como as sociedades devem se constituir, ela certamente é um instrumento contra qualquer ilusão de que se possam resolver essas questões definitivamente” 46. Mas como se garante a precisão desse instrumento? Ora, é para manter aberto o campo do imprevisível e do inventivo na intervenção analítica que se tem o conceito de pulsão. “Contra qualquer ilusão”, diz o autor. Pulsão e real em psicanálise visam exatamente isto. Não apenas indicando um limite ao saber, no sentido de que não se pode saber o que seria o melhor para o outro, atual ou vindouro, mas porque a vida repele uma definição exaustiva, idealista. É assim que o pragmatismo é elevado a uma determinação superior. E aí reside seu estatuto ético. Por que a questão psicanalítica não é só uma questão de cultura e de história? Por que não é apenas o gosto e a defesa narcisista do nosso modo de ser? A psicanálise é histórica, sim, mas deve ter algo de inatual. Ou o pensar psicanalítico interessa à vida ou não interessa... A vida... – mas em que termos? A psicanálise é uma ciência dos termos da vida, de uma vida que adquire ciência de si. Quem ousaria dizer, em algum momento que fosse, que já conhece esses termos? Atividade e linguagem Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari destacam quatro postulados da lingüística, pertinentes exclusivamente ao campo da linguagem. Esses postulados são revistos sob o prisma da ação e da vida, à luz, portanto, de um pragmatismo que define como extra-linguística a sua razão oculta. Daí revelarem uma feição sintomática.

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Idem, p. 166 e 167.

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Comecemos com as proposições iniciais do capítulo destinado ao tema, a partir do postulado de que “a linguagem será informativa, e comunicativa” 47 : ora, ao ensinar uma regra de gramática ou de cálculo não se está informando, comunicando regras – dá-se ordens, comanda-se, impõe-se uma sintaxe e uma gramaticalidade, com seus dualismos, sua composição de sujeitos e objetos. Ao se pretender que ela informa, comunica, ignora-se que ela comanda, impõe, decide. As palavras de ordem se difundem por todo o campo da linguagem como a sua real condição, assumindo, entretanto, outros aspectos além do específico de comandar, todos eles implicando atos imanentes à palavra ou ao enunciado 48. Um verso de Bonvicino, referindo-se a certa pintura, é um exemplo luminoso, pictórico, de uma ação imanente à palavra: “onde o óleo se mistura aos olhos da vida”. O vocábulo óleo se mistura sonoramente a olhos, e realiza linguisticamente, como evento vivo, o que está sendo descrito. É uma face poética e vitalizante da palavra de ordem, quando ela envolve, como dizem Deleuze e Guattari, um “componente de passagem”, transpõe fronteiras, turva os limites, constituindo zonas de indiscernibilidade: palavra e coisa, idéia e afeto, símbolo e sexo. Essas transposições de fronteiras podem ser também mudanças de estado, desdobramento de planos, signos de um devir, nos quais a palavra não tem apenas uma função indicativa, sendo ela mesma a operação de transição, o meio ou o elemento da passagem, como uma espécie de fórmula mágica ou senha esotérica. Ato de transição, translado ou transdução e sua nomeação simultânea. É a virtude latente do verbo, revelada pela célebre frase de Guimarães Rosa: “Ninguém morre, a gente fica encantada”. É também o ato lingüístico que cria a aflita re-asseveração da morte de quem morre no microconto de Bueno, El diablo de mêdia-noche, em seu portunhol de fronteira, mesclado de guarani: “Ahora, añaì, por supuesto, por suplìcio, deja morir ao muerto”. A palavra “añaì”, fronteira, limite, joga e ressoa, todo o tempo, com a palavra “añá”, diabo, demônio, e com “añaretãmeguaì” 49, demônio interior. Além de descrever as imprecisões e desdobramentos dos limites entre interior e exterior (“frontêra de la frontêra de la frontêra”, ou ainda “en la dôbla de la dôbla, da dobladura final”), e de incidir sobre o limiar da vida e da morte (“el diablo de mêdia-vida”), a escrita do conto, também designável como uma excrita, intensifica a impressão já sensível de uma presença estrangeira, demoníaca, e acelera a experiência das mutações e passagens por meio das 47

Mil platôs, op. cit.,vol. 2, p. 11. Já tínhamos visto acima, a propósito de Austin, como se universalizava o domínio performático da linguagem. 49 Conforme esclarecimento de Bueno, añaretãmegua é “coisa infernal”; com o acréscimo do “i” passa a ser “coisa infernal interna”. 48

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invasões de uma língua na outra. A linguagem é assim como algumas plantas, faz proliferarem íncubos e súcubos por todos os cantos e de todos os modos. Vale para a pesquisa dos limiares, em que o passo constitui a passagem, a advertência de Mil platôs para não se incorrer nos dualismos maniqueístas, elegendo, por exemplo, o rizoma contra a árvore (ou raiz), pois há de tudo em tudo: “problema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo exatamente. E de modo algum porque seria necessário passar por isto (um outro ou um novo dualismo), nem porque poder-se-ia proceder somente por aproximações: a anexatidão não é de forma alguma uma aproximação; ela é, ao contrário, a passagem exata daquilo que se faz”. A precisão do anexato se demonstra na pergunta: “Mas do que estamos falando exatamente?” Como vimos antes, enunciados do tipo “eu juro” ou “eu te amo” são simultaneamente atos em que alguém jura e se compromete, acarretando transformações instantâneas de natureza incorporal que, desde então, têm efeitos sobre os corpos, sobres seus estados de ação e de paixão, sobre suas misturas e separações. Os casos são muito diversos, e vão até a comédia em que o sujeito passa a amar perdidamente depois de declarar seu amor. Quando um juiz emite uma sentença, transforma instantaneamente um estado, por exemplo, de réu, num estado de condenado, com conseqüências no plano dos corpos que irão se desenvolver ao longo do tempo: a reclusão, a vida na prisão, o estado psicológico do condenado, etc. A transformação operada pela palavra de ordem constitui uma singularidade, a partir da qual um novo estado, uma nova realidade dos corpos se instaura, como o ponto de ebulição da água. Freud já dissera que as palavras dos poetas são verdadeiros atos, e associou a elas a palavra analìtica e sua função transformadora (“talking cure”). Tanto para as palavras do poeta como para a sentença do juiz, tanto para a transição que oxigena como para o juízo que mata, cabe usar a mesma noção de palavra de ordem, pois esta compreende sempre uma nova disposição das forças no campo da experiência, a instauração de uma nova ordem de acontecimentos, cujos vetores ideo-afetivos poderão conduzir à vida ou à morte. As razões, os motivos, as explicações para os atos de palavra são menores que os atos, pois são estes que alteram os estados de coisas. Em O discreto charme da burguesia, o que importa é a palavra do ministro determinando que os prisioneiros (uma quadrilha da alta burguesia traficante de drogas) sejam libertados, e não as razões que oferece ao comissário de polícia, inaudíveis sob o ruído de um avião que passa naquele instante. O comissário transmitirá a palavra de ordem ao sargento e, diante da estupefação deste, alegará os motivos que, mais uma vez, não serão ouvidos em meio ao ruído quase ensurdecedor das máquinas de escrever. 36

O “Recado do Morro”, de Rosa 50, é uma trama complexa da linguagem e dos acontecimentos. Ocorre em diferentes dimensões do tempo, intercomunicantes, e marca, a cada passo da narrativa, sua incidência gradual nos corpos, até a deflagração final onde o recado se atualiza inteiro. Pê-boi se salva, derrubando uns e fazendo correr aos outros, apenas por alcançar, no derradeiro instante, o plano das transformações incorporais e, com isso, antecipar a mudança de uma camaradagem festiva para uma hostilidade violenta. Divisou assim, por entre as palavras, as ações e as paixões inimigas que lhe seriam fatais, se já não estivesse prevenido. Quem escuta pela primeira vez o recado do Morro, e o comunica, é um velho eremita, muito simplório, que vive nos fundos de uma grota, nuns altos de serra. Algum tempo depois, seu irmão, que mora em meio mais civilizado, repete com certo assombro o que ouviu dele a um padre. Mas só um menino, que estava próximo e atento, escutou a mensagem, pois o padre se preocupava apenas em dirigir o interlocutor à devoção. E o menino contou o que ouviu a um bobo de fazenda, meio idoso, grosso e resmungão, mas matraqueador. Impressionado com a narrativa, que em cada um dos estágios se alterava, agregando novos elementos, como neste caso a palavra “menino”, o paspalho tenta reproduzi-la a um beato delirante que não pára de anunciar, pelas estradas e nas portas das igrejas, o fim do mundo e dos tempos. O recado reaparece, agora, nas invectivas de condenação aos infernos proferidas pelo beato. É ele que, não fazendo outra coisa em sua doidice, tem maior poder de propagação. Logo chegam aos ouvidos de um poeta cantador, amigo do herói da estória, os elementos da narrativa caótica, cujo aspecto simbólico, enigmático, acaba atraindo de tal maneira seu interesse que não irá sossegar enquanto não transformar em trovas e em cantiga o agora longínquo e, no entanto, já tão próximo recado do Morro. Pedro Osório, o Pê-boi, ouve por um tempo a composição e segue seu caminho, reúne-se ao bando de amigos e ruma com eles, noite adentro, na floresta, em direção ao lugar da festa. No percurso o recado se atualiza, a memória o recompõe, a cena é a mesma do recado do Morro e da cantoria, e ele percebe a tempo o perigo. Está entre inimigos, é uma armadilha. Fazendo menção à tradição poética e à prática dos oráculos no mundo grego antigo, Foucault mostrou que o discurso do poder era diretamente o discurso verdadeiro e, como tal, tramava o destino. Com Sócrates e Platão irá se operar, de um modo eficaz e duradouro, a separação desses discursos 51. O conto de Rosa parece atestar a confluência originária de verdade e poder, de 50

Rosa, João Guimarães, Ficção completa, vol. 1, p. 615, Nova Aguilar, RJ, 1995. “Entre Hésiode et Platon un certain partage s‟est établi…” Foucault, M., L’ordre du discours, p. 17, Gallimard, 1971. 51

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vida e linguagem; e situa numa altitude do tempo – o Morro – o dizer oracular, que sofrerá as vicissitudes de suas atualizações e levará ainda algum tempo para se encarnar nos corpos, em suas ações e paixões. Lá, naquela altura, os dados já foram lançados. Entenda-se: antes de uma representação dos fatos futuros, o que o eremita ouviu foi um recado. Aquelas palavras de nexo incompreensível deviam orientar as ações de Pedro Osório – o “rei” que aparece na diversas versões do recado e por fim nos versos da cantoria. O ser, dizia Lacan, é da ordem do dito, mas o dizer “ex-siste” a todo o 52 dito . O ser é a Figura, nos termos dos autores de Mil platôs, e ela compõe, com a palavra-sentença, toda a equação do sistema do juízo. A palavra de ordem será, neste caso, do campo do dito, e não do dizer. Tema caro a Artaud e a Deleuze, o sistema pré-existente do juìzo “impede a chegada de qualquer novo modo de existência”, e por isso sua palavra será idêntica, em última instância, a uma sentença de morte. Mais uma vez, assimilamos a pulsão ao dizer, entendendo que, devido à sua pertinência à vida e à morte, os atos imanentes à palavra são primeiros em relação aos processos mentais e aos processos físicos ou somáticos. Tudo reflui para a pulsão, ou para o dizer. É a lição de O recado do morro. A concepção de Deleuze e Guattari de que os atos de palavra acarretam transformações incorporais que se efetuam, a posteriori, nos corpos, sejam estes físicos ou psíquicos, permite que se entenda o sentido dado aqui à atividade, bem como à ética que lhe corresponde, enunciada por Lacan como a do bem-dizer – em nada distante, afinal, da irrevogável talking cure com a qual se definiu o processo analítico. Insistimos, porém, nesse último aspecto – o valor ético da noção de atividade –, ligando-o à idéia de começo, de decisão, de invenção, à força e ao eu, enquanto compreendido pulsionalmente. O eu pulsional e o si freudiano são a mesma instância do inconsciente, essencialmente ativa. Por isso sua consistência é prática e ética. Atividade, neste ponto, não se distingue de uma vitalidade, graças a qual se efetua a condição da linguagem. Todos os dizeres se reúnem na soberania de um dizer inconsciente em curso. É o que fazia Foucault alertar para o futuro da experiência da loucura: se hoje ela aparece como um Exterior, um negativo da nossa experiência, um dia, escreve ele, esse Exterior falará de nós. Un-heimlich. Se Deleuze e Guattari dizem que a palavra de ordem se dirige à vida, que a escuta e obedece (ob-audire), e por isto ela facilmente se caracteriza como sentença de morte, assinalam, em contrapartida, a linha de fuga pela qual a mesma palavra guarda seu potencial de passagem, de reversão e 52

Lacan, J., O seminário, Livro 20, Mais, ainda, p. 139, Zahar, RJ, 1982. Ao designar um fora, a partícula “ex” coloca no exterior do ser e do dito tanto a existência como o dizer.

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variação em relação a toda fixação numa figura, a toda conformação a um recorte estático destinado a inibir o vir-a-ser, os devires e os novos agenciamentos. Daì a força de Rimbaud: “sou de raça inferior por toda a eternidade”. É o que sucede também com a obra de Jean Genet, a transmutação do que é julgado vil em nobre pelo uso de uma linguagem artesanal e luxuosa. Como se a palavra de ordem, enquanto ato imanente à palavra, pudesse esposar uma linha de desterritorialização ou de fluidez propriamente ativa, espiritual, reencontrar uma vitalidade originária e se definir por ela... Mas se dissermos apenas, como fazem os autores de Mil platôs, que o ambiente de onde emergem os enunciados é o ambiente do discurso indireto, coletivo, anterior às significações e subjetivações que ele determina e distribui, ainda deixaremos em suspenso a fonte ativa a partir da qual se instaura um novo dizer. Naquela obra é adotado, por um momento, um exemplo de David Cooper, a fim de ilustrar o que ali é chamado de cogito esquizofrênico: “Ouvi vozes dizendo: ele tem consciência da vida”. Cooper esclarece a expressão “ouvir vozes” com a idéia de uma consciência que foge às coordenadas do sentido comum e do discurso normal, uma inusitada consciência da vida que ultrapassa o eu e seus enunciados familiares. O que não cessamos de enfatizar é que o eu ultrapassado pertence ao mesmo terreno de seus enunciados, sendo ainda do seu ponto de vista e da falência desse ponto de vista que “se ouvem vozes”. Tratava-se, no entanto, de esposar o estranho e reconhecer-se verdadeiramente nele, segundo o princípio ativo que, todavia, se faz ouvir. Tornar-se o ex-estranho, como diz um sujeito em análise, apropriando-se da expressão de Leminski 53. De fato, o caos-cosmos discursivo, presente em um agenciamento coletivo, se mostra indireto e é realmente assim porque está além do discurso direto em que a consciência é um eu separado de suas condições originárias, pulsionais, extra-pessoais. O discurso só é direto em aparência, pois se apóia em outro discurso e este por sua vez em outro ainda, indefinidamente. Mas a reversão inteira do sentido consiste em sustentar que a vida afirmativa, isto é, a força, o eu pulsional só adquire ciência de si mediante um dizer originário. Na verdade, não existe distinção entre o dizer e o eu pulsional, extra-pessoal que, nesse ato mesmo, porta uma ciência de si. Daí a razão para repisarmos o começo, o passo inusitado, o traço singular, o ato que se efetua, entretanto, no meio do caminho, no meio de tudo. “O sertão está em toda parte” . É muito simples, o que não significa que seja apreendido facilmente e que esteja à mão.

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O ex-estranho, título de um livro de poemas de Paulo Leminski (Iluminuras, SP, 1996).

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Por isso uma pretendida máquina abstrata da língua, conforme o postulado II (“Haveria uma máquina abstrata da lìngua que não recorreria a qualquer fator „extrìnseco‟”), que trata o pragmático como exterior não lingüístisco, deve dar lugar, para que a abstração seja conseqüente, a uma máquina abstrata que compreenda a interpenetração da língua com o campo social e os problemas polìticos, a um “diagrama de agenciamento que não é jamais de pura linguagem, salvo por defeito de abstração”. Assim, “é a linguagem que depende da máquina abstrata, e não o inverso”. Ora, a máquina abstrata é, ela mesma, a pulsão, o vetor originário das forças. Não dizemos nada de novo, apenas formulamos que os “agenciamentos maquìnicos de corpos” e os “agenciamentos coletivos de enunciação” em Deleuze e Guattari, uns dizendo respeito ao conteúdo e suas formas, outro à expressão e suas formas, correspondem, ponto por ponto, ao achado clínico que Freud denominou de pulsão 54. O que chamam de diagrama, que é o conjunto dos agenciamentos, a máquina abstrata singular, é o que chamamos de determinação propriamente inconsciente, ou auto-determinação. Esta só pode existir, obviamente, em exercício, isto é, em seus agenciamentos. Segundo aqueles autores, deve-se considerar dois estados do diagrama, dependentes da altura em que ele será apreendido: um em que as variáveis de conteúdo e as de expressão se distribuem sobre um plano de consistência segundo sua forma heterogênea e em pressuposição recíproca (não por causalidade); outro em que essas variáveis se tornam indiscerníveis, pois agora é o plano que lhes comunica sua variabilidade intrínseca – o real e o símbolo, a vida e a palavra se fundem numa linha fluente, supra-sensível. Um único vetor – natureza e cultura. A isto se dará o nome de estilo, a essa condição originária, singular, de colocar em estado de variação contínua tanto os elementos lingüísticos como os não lingüísticos. Avancemos um passo na determinação do estilo enquanto condição originária: é uma condição de escolha que afeta, a cada vez, o conjunto da vida. É assim porque o plano é em si mesmo ativo, atividade imanente. A filosofia de Spinoza, profundamente prática, já havia estabelecido essa condição originária ao identificar idéia e vontade, tendo em vista que uma idéia é sempre uma afirmação ou uma negação, ou seja, é sempre uma escolha, um ato.

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Não queremos reduzir a um denominador comum as nuances e complexidades desses novos conceitos (agenciamento, máquina abstrata, etc.). Pelo contrário, por meio de tais referências apenas indicamos a profundidade e a riqueza do campo pulsional descoberto por Freud (“ali onde hoje descobrimos templos, amanhã serão descobertos continentes”). Não o fazemos, porém, sem explorar a incidência do pulsional no campo analítico, introduzindo, de nossa parte, noções orientadoras, tais como: a prática pulsional, o dizer, o ato, o saber e a satisfação, a direção do processo, a consistência ética da pulsão, a autodeterminação, o singular e o extra-pessoal, etc.

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O primeiro estado do diagrama diz respeito aos movimentos de desterritorialização relativos, enquanto que o segundo se refere ao movimento absoluto. É no plano do movimento absoluto que situamos uma atividadevitalidade originária. É o que fazem também Deleuze e Guattari, quando opõem a cada um dos postulados da lingüística recenseados o vetor incoercível da variação contínua, o poder de escolha que caracteriza um estilo e sua “linguagem secreta” (não escondida). E não como acontecimento excepcional dentro de uma configuração mais geral das leis da lingüística (o caso, por exemplo, dos grandes poetas), mas como condição originária da vida que se engendra a si mesma, simbólica e falante, na altura do homem. Não foi outra coisa que Freud descobriu ao pesquisar as formações do inconsciente: a língua indígena de cada um. O inconsciente, nesse caso, não é senão o estado de variação contínua, isto é, o poder imanente de escolha e seus graus de efetuação. Não se trata de um poder atual, mas virtual-real, como dizem aqueles autores. Essa distinção é decisiva, uma vez que isso, o poder imanente de escolha, está em aberto, é pulsional e de consistência ética. Ali onde nos encontramos num estado de desterritorialização relativa nos movemos ainda na altura das “obrigações sociais”, das palavras de ordem com sua dupla face e suas alternativas – a constante figural ou a variação contínua. A constante figural é, na verdade, um procedimento pelo qual as variáveis dos enunciados e dos estados de coisas são remetidos às mesmas figuras, de modo que todos os processos sofrem uma espécie de segmentação: cabe à constante figural proceder à administração ou ao julgamento dos segmentos. O variável é estimado e medido, em última instância, por sua referência ao não variável, ao fixo e constante. Assim, a palavra de ordem constitui uma verdadeira sentença e uma sentença de morte, pois um sujeito, para mudar de enunciado ou de estado, deve passar pela morte. Ele é o que se poderia chamar de “peixe preso”, para lembrar o extraordinário e conciso código de lei dos baleeiros, tal como é explicado em Moby-Dick 55, talvez o mais desterritorializante dos romances. O regime da constante figural não é somente um problema de ciência lingüística, é de natureza política e envolve questões diretamente éticas. Diz respeito às escolhas entre vida e morte. “A morte, com efeito, está em toda a parte como essa fronteira intransponível... É (...) um regime que remete a um Senhor imóvel e hierático, legiferando a todo momento por meio de constantes, proibindo ou limitando estritamente as metamorfoses, fixando para as figuras contornos nítidos e estáveis, opondo duas a duas as formas, impondo aos sujeitos que morram para que passem de uma à outra” 56. Daì existir um liame a priori entre a Sentença e a Figura (“a 55 56

Moby Dick, op. cit., p. 166. Mil platôs, op. cit. vol. 2, p. 55.

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morte é a Figura”), na medida em que correspondem à forma de expressão e à forma de conteúdo no que diz respeito a um dos aspectos da palavra de ordem. O outro aspecto é a linha de fuga, ou de força (vis activa), como a chamamos, em que prevalece o estado de variação contínua. Ética da diferença ou do devir. A via ativa garante a persistência do desejo através de todas as figuras e sentenças, revertendo-as a cada vez, em favor de novas condições de vida ativa. “Peixe solto”. É o ponto de vista ativo que garante o ponto de vista ativo. Ora, quando a lingüística insiste nas constantes e invariantes para estudar uma língua de maneira científica (conf. postulado III), não podendo, a partir desses pressupostos, deixar de distinguir língua e palavra, considera somente o aspecto neutralizador e centralizador da linguagem, ainda que as constantes e invariantes possam ser submetidas a um uso vital, a uma variação contínua. Não se trata, é claro, de lançar fora as referências mais constantes da linguagem, mas de reapropriar-se delas, imprimindo-lhes uma vitalidade capaz de redefinir pragmaticamente as suas funções, agora num contexto aberto e fluente. É onde Freud já ancorara a sua escuta, isto é, na perversão polimórfica da criança e na constatação de que o sexual e o simbólico são as duas faces do real, em estrita equivalência. O que isso quer dizer? Sexual e simbólico são termos que não têm um término, um limite. São potências da vida. Os postulados lingüísticos abordados pelos autores de Mil platôs envolvem sempre o mesmo problema no que diz respeito à vida, ou seja, a sua exclusão sumária das questões de linguagem, já por ser considerada fator secundário. É uma razão para insistirmos, desde as primeiras linhas, na idéia de um inconsciente identificado à vida, às potências secretas da vida, como quer D. H. Lawrence. Fazemos assim justiça à visão freudiana dos fenômenos originários do inconsciente, enquanto dão testemunho de uma linguagem viva, isto é, de uma micro-língua pela qual se restabelece a intimidade da verdade com a vida desejante. Do inconsciente estruturado como linguagem à lógica do significante é menos que um passo; não é dessa lógica, contudo, que se extrai o sentido dos processos inconscientes, mas de agenciamentos vitais que constituem, eles próprios, sua lógica contextual 57. 57

Em Mil platôs a psicanálise é tratada de um modo ímpio, isto é, de um modo inteiramente salutar, a ponto de se pensar que nada sobra desse saber cuja consistência, no entanto, residiria no poder de interrogar os saberes constituídos. Afinal foi a tentativa de Lacan ao desenvolver a lógica dos quatro discursos, agregando a eles, em seguida, o do capitalista. A psicanálise daria testemunho de um misto de dois regimes de signos, nomeadamente o de significância (ou do significante) e o de subjetivação. Uma das observações mais decisivas de Deleuze e Guattari em relação aos regimes de signos é que esses dois, que explicam, segundo eles, a semiótica psicanalítica, não são primeiros e nem fundamentais. Ora, é evidente que a pulsão não pertence ao regime do significante, mas e ao outro, não teria ela seu lugar precisamente ali, no regime de subjetivação, compondo com o significante a semiótica mista da psicanálise? A pulsão poderia constituir o ponto de subjetivação pelo qual se instaura a linha de fuga própria

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Pois bem, um quarto postulado da lingüìstica sustenta que “não se poderá estudar cientificamente a língua senão sob as condições de uma língua maior ou standard”. Em vista deste postulado as lìnguas menores, as microlínguas, deverão ser tratadas como secundárias e acidentais à compreensão e à realidade mesma da linguagem, quando elas são, ao contrário, essenciais ao seu devir. Ao trabalharem de dentro e com certa autonomia a língua maior, como o fazem as formações do inconsciente, incluindo aí os atos poéticos, elas a inserem na corrente vital de uma variação contínua. Só elas são reais, só elas detêm a virtude sublimatória dos verdadeiros atos de linguagem. Só elas são os dizeres superativos que renovam as condições de vida, sendo esses dizeres mesmos as novas condições e sua expressão, isto é, os vetores de passagem que fazem da passagem o chão originário de todos os estados e de todas as condições. Nomadismo pulsional. É por isso que um dizer existe e insiste nas fronteiras, como uma força (ex) estranha. Añaí, añá

do regime pós-significante, de maneira que os processos pulsionais que caracterizamos como originários não seriam mais que uma das modalidades de um mesmo regime de signos. Estaríamos considerando o mesmo regime de signos, fosse ele desencadeado pelo Deus dos hebreus enquanto ponto de subjetivação ou pela pulsão num processo de análise. A diferença consiste no seguinte: a pulsão é ponto nômade, estranho a cada vez, imprevisível, e constitui ela própria a linha de fuga; ela é, nela mesma, dobra, subjetivação, mas nunca a partir de um único ponto de partida. Ela só existe em ato e em devir, de tal modo que, se admitimos um ponto pulsional de subjetivação, ele se distingue muito de um ponto imóvel na origem do processo (Deleuze e Guattari o identificam com o analista) – é o próprio devir, ou, se preferirmos, a linha do devir. É precisamente seu caráter nômade que faz da pulsão o pressuposto e o ponto de chegada de todos os processos subjetivos. Assim, ela constitui um ponto móvel de subjetivação e, ao mesmo tempo, uma instância de dessubjetivação constante. Nós a encontraremos não ao nível dos regimes de signos, mas do plano de consistência, como máquina abstrata...

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UMA VIDA, UM DIZER Cantar é existir. Para um deus, muito fácil. Mas nós, quando é que existimos? 58

O que nos leva além da representação? Em primeiro lugar, deve-se aproximar a pulsão do dizer, de maneira a explicitar, sem mediações, seu destino originário. O bem-dizer ético não é algo que se aplica secundariamente ao homem, depois de satisfeitas as suas necessidades básicas. É originário, e tudo deve ser lido desde a ótica do originário. E não a partir de algum ponto da existência, mas desde sua origem. Será sempre extraordinário que Freud tenha descoberto o caminho do dizer, chamando-o de pulsão (Trieb). Esta deve ser entendida, portanto, em seu mais alto grau, como natureza e arte. “O homem fala”, escreve Lacan em Função e campo da palavra e da linguagem, “porque o símbolo o fez homem”; não é menos certo, porém, que são os dizeres inconscientes e os dizeres poéticos que efetuam a condição simbólica. No princípio, o verbo não se distingue do ato, do dizer (ato fabulatório, dizer ético). Da mesma forma que a pulsão, a linguagem só é realmente linguagem quando exercida, praticada. Mais tarde, no seminário O sinthoma, Lacan dirá: “criamos uma lìngua na medida em que a todo instante damos um sentido, uma mãozinha, sem isso a língua não seria viva. Ela é viva porque a criamos a cada instante” 59. Mas a prática da linguagem não é assim tão evidente, ou melhor, ela se dá em vários níveis de expressividade, de modo mais claro ou mais obscuro; e não é o dizer inconsciente, o do lapso ou do sonho, que se qualificaria de mais obscuro. Se o compararmos aos usos da linguagem cotidiana, utilitária 60, aquele dizer, mesmo sob a forma do enigma, é uma luz, uma luz oculta. As formações do inconsciente como o sonho, o lapso, o sintoma, a fantasia e o delírio são caminhos do saber, se tivermos em vista o coração do ser que, note-se bem, não é necessariamente o ser. O mais claro aparece assim sob o aspecto do mais obscuro. Tudo depende do lugar em que nos situamos em relação ao dizer, isto é, à pulsão. Quanto mais se transita de uma língua dominante, com seu teor de recalque, a um idioma originário, mais a linguagem perde sua função de representar coisas para abrir clareiras na percepção, dar a ver o invisível, fazer ouvir o inaudível 61. Não é exatamente o 58

“Gesang ist Dasein. Für den Gott ein Leichtes./ Wann aber sind wir?...” Rilke, R. M., Sonetos a Orfeu (parte I, 3) - Elegias de Duíno, p. 25, Petrópolis, RJ, Vozes, 2000. 59 O seminário, Livro 23, O sinthoma, op. cit., p. 129. 60 Distinguimos o uso utilitário dos signos cotidianos de uma pragmática pulsional, voltada aos afetos e às suas implicações éticas e estéticas. 61 É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve”, diz Deleuze em Crítica e clínica, op. cit., p. 9.

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inédito que ela invoca, ainda que se trate também dele, mas a condição renovada de ver, de ouvir, os afetos intempestivos (de que tempo? de que lugar?), os graus de potência esquecidos. O destino originário da pulsão é, portanto, a sublimação. Ao destacar a condição de ver, de ouvir, de dizer, enfatizamos a tendência, mais que o objeto, que dela deriva tanto em sua feição como em seu valor. Todos os acontecimentos analíticos (a vida de modo geral) serão lidos a partir daquele destino, e tal é a envergadura do processo instaurado pela análise. “Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só” 62. Deveria ser uma proposição elementar para os psicanalistas, mas curiosamente não é assim. Mesmo a incidência exaustiva da investigação lacaniana em torno do objeto a, com todos os seus paradoxos (dele não se tem imagem nem idéia), redefinindo a questão do objeto para além das pretensões imaginárias de completude e naturalidade, não foi suficientemente precisa para reconhecê-lo como objeto de sublimação em sua origem 63. Não há objeto libidinal que não seja construído, obviamente com os elementos de que a pulsão dispõe. Winnicott o identificara como objeto transicional, engendrado entre o isso e o mundo externo e, dada sua aptidão ao gozo, como uma espécie de composição estética. Foram precisos vinte anos depois de Lacan para se dizer, como faz Miller, que o objeto a não é real; que, do gozo, ele “é apenas o núcleo elaborável num discurso” 64, deixando subsistir em aberto a questão do gozo real. Mas é comum afirmar que o real está excluído do sentido, e até estaria bem assim, se houvesse uma ressalva – que do real, no entanto, se goza como do único sentido originário, ativo, frente ao qual todos os outros, menores, emudecem, por não se mostrarem suficientemente adequados ao gozo, isto é, à lucidez originária. Em relação a esta, todos os demais sentidos perdem o sentido. Daí a impressão, a certa distância, de um não-senso. Em outras palavras, trata-se aí de um saber de não-senso porque é um saber sem explicação – ele não recebe luz de nenhum outro. O gozo deste saber, a isto é que Lacan chamava de agalma 65. Mas será que ele era entendido? É claro que o gozo diz respeito ao vivo, mas que ambos se esclareçam como saber, como lucidez, eis o retorno do arco e o sentido da análise, dos 62

Diálogo com Guimarães Rosa, por Günter Lorenz, em Ficção completa, op. cit., p. 47. Aqui nossa pesquisa encontra a de Guattari: “Tento levar o objeto parcial psicanalìtico, adjacente ao corpo e ponto de engate da pulsão, na direção de uma enunciação parcial”. Caosmose, op. cit., p. 25. Guattari fala ainda da separação de um “objeto parcial” ético-estético do campo das significações dominantes (p. 24). Pois bem, uma enunciação parcial de cunho ético e estético é sempre relativa às significações dominantes, sendo nela mesma, por ela mesma, em sua gênese e em sua consistência, o que chamamos de um dizer inteiro ou íntegro. A idéia de “parcial” permanece enquanto referida a um recorte... 64 Lacan, J., Outros escritos, Prólogo, p. 13, Zahar, RJ, 2003. 65 Lacan, J., O seminário, Livro 8 – A transferência, p. 139, Zahar, RJ, 1992. 63

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quais se teve até hoje apenas um vislumbre turvo, um balbucio, um embrião de pensamento. Acontece que esse saber existe em ato, é uma autorização e, como tal, imediatamente um dizer. Lacan foi preciso em enunciar que o analista “s‟autorise de soi même”, a partir de si mesmo e não por si mesmo ou em si mesmo, como se ouve às vezes, pela simples razão de que uma “autoridade” se exerce no mundo, junto aos outros, por força de seu saberfazer e sob a forma de uma intervenção, de um dizer. A sublimação e o cosmo A sublimação é uma estranheza não-humana e cósmica, pois abrange uma gama considerável de práticas originárias que não poderiam mais ser circunscritas à esfera dos procedimentos humanos 66, ainda que estes possam compreender aquela amplitude e, paradoxalmente, nela se incluir. Compreender e se incluir não são atos muito comuns; na verdade são bem raros, quase impossíveis e, no entanto, que outro destino poderia haver para o homem? Em sua leitura dos fragmentos de Heráclito, Heidegger pergunta como o logos humano é grande e se engrandece, respondendo igualmente por graus: “quanto mais estiver recolhido na coletividade originária” 67. Isto serve para evocar o caráter precioso – e não menos perigoso – da indeterminação a que está sujeita a experiência humana, proporcional à condição de autodeterminação inconsciente, não realizada, que deve explicá-la em termos absolutos. As formações do inconsciente são dizeres tateantes, semi-ocultos, pelos quais se desenham campos de experiência expressiva, com seus territórios afetivos e domínios existenciais que, todavia, se encontram ainda fora do alcance de uma prática esclarecida. O peso dos recalques é imenso. “O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas” 68. O lapso ou outra expressão privilegiada, ao mesmo tempo que desterritorializa pelo efeito de não-senso ou de excesso de sentido, é signo de expansão territorial, anuncia novos estratos discursivos, evoca regiões de saber ainda inexploradas. Chave esotérica, abre portas secretas de entendimento e visão. E assim é a vida, incisiva, contundente em seu nãosenso, uma faísca, uma explosão, por mais diminuída que esteja – um sinal de luz na superfície.

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“A arte não espera o homem para começar...” Mil platôs, vol. 4, op. cit., p. 129. Heidegger, M., Heráclito, p. 364, Relume-Dumará, RJ, 2002. “Coletividade originária” é uma das versões de Heidegger para o Logos heráclitiano. 68 Diálogo com Guimarães Rosa, em Ficção completa, op.cit., p. 47. 67

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Uma mulher em análise se queixa, em dado momento, das suas condições financeiras, dizendo-se, porém, longe de querer abrir mão do conforto e do luxo. Repele a idéia de privar-se de um bem ou de um gosto, e acrescenta: “é que já me senti privada demais!”. A expressão privada demais ressoa, ramifica-se, distribui-se em estratos, em mais de um plano de experiência e, por conseguinte, em diferentes alturas do tempo. Privada de coisas por uma dinâmica econômica controlada pelo ex-marido; privada enquanto vaso, recebendo as descargas sexuais do então marido, que não se dedicava a proporcionar-lhe o prazer devido; privada ao modo de uma propriedade, pois, justamente, teve um único companheiro, e mesmo depois da separação permaneceu ligada a ele, como se, sozinha, ainda lhe pertencesse, independente do tempo já transcorrido e por transcorrer ainda: “privada demais”. A percepção radial dos estratos experienciais e das alturas do tempo se dá quase que de um golpe só, como desvendamento de sentido. O sentido pulsional se define por uma desterritorialização progressiva, isto é, por uma abolição progressiva dos sentidos enquanto efeitos de significante, de história, de cultura – até onde? Abolição dos sentidos, bem entendido, quer dizer aqui re-apropriação, domínio, superação, emergência de vida subjetiva, existência, clareza. É que o real, em seus diversos graus, é digestivo, triturador, antropofágico. Há limiares de passagem que vão do cultural ao caos aparente – a estação infernal – e deste ao cosmo, enquanto pressuposto de todas as passagens. Mas não é o mesmo antigo cosmo, ordeiro e seguro, se seu fulcro é a vida, coisa que Lacan não viu ao contrapor – acertadamente, diga-se de passagem – a função da angústia, correlata da indeterminação de que falávamos, tanto à visão cósmica estável, tradicional, quanto ao sentido de um progresso histórico, evolutivo, que é tão caro à modernidade, por esta se acreditar no seu ápice 69. Subsiste a faceta cósmica da experiência analítica, a linha de passagem a um cosmo aberto, perspectivo, vivo, em ordenação constante. Foi nestes termos últimos, aliás, que Freud situou a experiência humana, ao ver seus desdobramentos refluírem às pulsões de vida e de morte. Ora, não há vida que não se ligue por fios visíveis e invisíveis ao universo 70. Por que ir tão longe, pode-se objetar, quando a vida de um sujeito humano já dá o que fazer no âmbito social, em relação à cultura, com os outros e consigo mesmo? O erro está em conceber o cósmico como uma realidade distante, uma referência remota. O cósmico, o vivo, é o mais 69

Lacan, J., O seminário, livro 10, A angústia, p. 47 e 48, Zahar. RJ, 2005. “Porque se o nosso corpo é a matéria à qual a nossa consciência se aplica, ele é coextensivo à nossa consciência. Compreende tudo o que nós percebemos, vai até as estrelas”. Bergson, H., Les deux sources de la morale et de la religion, Oeuvres, p. 277, PressesUniversitaire de France, Paris, 1963. 70

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próximo, é o micro, o molecular, o mais íntimo (das Heimlich), aqui e agora, por mais longe que esteja da experiência subjetiva (das Unheimlich). Assim, recomendando a interdição das escolas por umas duas gerações, em vista da ênfase nociva que as fórmulas educacionais dão à “compreensão mental”, pois separam a consciência da criança de suas bases dinâmicas, não mentais, D. H. Lawrence, num ensaio singular sobre psicanálise, chega a uma proposição escandalosa para as nossas referências culturais modernas: “Understanding is the devil”. Explica este anátema descrevendo a visão de uma criança: “Uma criança não precisa entender coisas. Ela deve tê-las à sua maneira. Sua visão não é a nossa. Quando um garoto de oito anos vê um cavalo, ele não vê o correto objeto biológico que nós pretendemos que ele veja. Ele vê uma grande presença viva sem uma forma particular, com os cabelos de seu pescoço flutuando e quatro pernas. Se ele põe dois olhos de perfil, está bastante certo. Porque ele não vê com visão óptica, fotográfica. A imagem em sua retina não é a imagem de sua consciência. A imagem em sua retina de fato não vai para dentro dele. Seu inconsciente está cheio de uma forte, escura, vaga presciência de uma poderosa presença, a iminente visão de uma presença que tem dois olhos, quatro pernas e uma longa crina. E forçar o garoto a ver um correto perfil de cavalo com um olho é como fixar um cartaz na frente de sua visão. Isto simplesmente mata sua visão interna. Não queremos que ele veja um cavalo apropriado. A criança não é uma câmera. Ela é um pequeno organismo vital que tem uma relação dinâmica direta com os objetos do universo exterior. Ela percebe desde seu peito e seu abdômen, com um profundo realismo, a natureza elementar da criatura. De modo que até este dia a árvore da Arca de Noé é mais real que uma árvore de Corot ou uma árvore de Constable: e uma gorda vaca da Arca de Noé tem uma realidade vital mais profunda que uma vaca de Cuyp” 71. Picasso parece reconstituir uma condição originária de ver, e por isso, à primeira vista, sua arte poderia se afigurar esquizofrênica, como pretendeu julgá-la Jung, ao mesmo tempo maravilhado e estarrecido. Na verdade, realiza 71

A child mustn‟t understand things. He must have them his own way. His vision isn‟t ours. When a boy of eight sees a horse, he doesn‟t see the correct biological object we intend him to see. He sees a big living presence of no particular shape with hair dangling from its neck and four legs. If he puts two eyes in the profile, he is quite right. Because he does not see with optical, photographic vision. The image on his retina is not the image of his consciousness. The image on his retina just does not go into him. His consciousness is filled with a strong, dark, vague prescience of a powerful presence, a two-eyed, four-legged, long-maned presence looming imminent. And to force the boy to see a correct one-eyed horse-profile is just like pasting a placard in front of his vision. It simply kills his inward seeing. We don‟t want him to see a proper horse. The child is not a little camera. He is a small vital organism wich has direct dynamic rapport with the objects of the outer universe. He perceives from his breast and his abdomen, with deep-sunken realism, the elemental nature of the creature. So that to this day a Noah‟s Ark tree is more real than a Corot tree or a Constable tree: and a flat Noah‟s Ark cow has a deeper vital reality than even a Cuyp cow”. Lawrence, D. H., Fantasia of the unconscious and Psychoanalysis and the unconscious, p. 89 e 90, Penguin Books, Great Britain, 1972.

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uma integração vital (o que chamávamos a pouco de vetor cósmico), perspectivista, ativa, sublimatória, não sujeita às unidades conceituais estáveis e consensuais da percepção. A não sujeição não exclui uma ação ordenadora. Cada qual, portanto, com seu olhar e sua justiça. “Quando tinha a idade destas crianças”, refletia Picasso em 1956, “sabia desenhar como um Rafael; mas precisei de uma vida para aprender a desenhar como elas”. Até onde se estende a infância? Em suas pinturas e gravuras se tornam visíveis, uma vez ou outra, em meio à trama de traços seguros e ágeis, uma fisionomia egípcia, um afresco etrusco, um vaso pré-colombiano. Esta conexão antiga e até préhistórica não impedia a existência de um Picasso maneirista, com a consciência de que a beleza clássica e o Quattrocento perduravam em sua obra 72 . O artista procede, certamente, a uma recomposição atual de elementos antigos, assim como a uma decomposição de elementos modernos, para deixar como saldo uma espécie de memória sensível das eras. Mas faz variar o objeto de acordo com a potência do olhar, isto é, de acordo com o devir desse olhar no tempo. O cubismo não é igual à arte primitiva, as figuras que cria não são iguais ou semelhantes às de culturas remotas, já extintas; originário não é o objeto, mas o poder de apropriação e elaboração das matérias expressivas disponíveis, seu grau de autonomia criadora, sua inatualidade, ao operar além das coordenadas usuais de espaço e de tempo. Não é um retorno ao primitivo, nem uma sobre-codificação atual dos dados antigos, mas um uso originário de signos de diversa procedência, uma trans-criação, mais ou menos à maneira como Heidegger se apropria do grego antigo e o dota de um poder de enunciação poético-filosófica inusitado, dir-se-ia atemporal, a fim de demarcar, ao mesmo tempo, a possibilidade do pensar e a sua raridade 73. A propósito, é sempre risível a redução do vetor pulsional, enquanto aparelhado de uma zona erógena, ao objeto que lhe é destinado pela natureza ou pela cultura, pois não se vê que o circuito da pulsão vai muito além dos primeiros pretensos objetos, pode integrar, em sua potência real-virtual, séculos de experiência visual ou auditiva, e isto não de modo secundário, por um desvio sublimatório, mas por uma via originária que dá a medida de todas as outras vias. Alguns dos primeiros pretensos objetos são decididos, conforme os termos de Lacan, pela demanda do Outro, sustentada por um ideal de eu. Eles têm assim a face que o ideal de eu lhes imprime. Até aqui, os olhos são olhos para não ver. Os objetos da percepção já foram fixados. É 72

“Braque disse-me uma vez: „No fundo, sempre amaste a beleza clássica‟. É verdade. Ainda hoje isso é verdade. Nem todos os anos é inventada uma nova espécie de beleza”. Citado em Walther, I. F., Pablo Picasso, p. 86, Benedikt Taschen, Köln, 1990. 73 Cf. Deleuze, em Crítica e clínica, op. cit., p. 112: “Chegou até nós a notìcia de que nem sequer a etimologia de Heidegger, nem mesmo Lethê e Alethés, era exata. Mas será que o problema está bem colocado? Acaso todo critério científico de etimologia não foi recusado de antemão, em favor de uma pura e simples Poesia?”

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preciso ser uma Santa Luzia ou um Édipo com os olhos vazados para começar a ver. Deve-se dizer da pulsão, bem como de sua prática, a análise, o mesmo que Lacan diz do inconsciente – que seu estatuto é ético e não ôntico. Não se trata do ser da pulsão, mas de sua prática. Esta se refere mais ao ter do que ao ser, se entendermos o ter a partir de um movimento de apropriação expressiva e da constituição de um domínio, ou seja, a partir de uma experiência estética. “A propriedade é primeiro artìstica, porque a arte é primeiramente cartaz, placa” 74. Em seguida será estilo. Já em Freud a questão do inconsciente é a de um domínio, de uma conquista progressiva de partes do isso, o que não exclui, bem entendido, que o retorno ao isso, à pulsão, e o retorno da pulsão sejam a mesma coisa. Daí se tratar de uma prática. Essa conquista, esboçada na elaboração onírica, na fantasia e na construção delirante, é originalmente estética. “Seja qual for o caminho que eu escolher”, dizia Freud, “um poeta já passou por ele antes de mim”. Ou seja, a visão poética antecipa o que se deverá entender por inconsciente. Como se salta do ético ao estético? O salto é instantâneo, pois a condição ativa, que conotamos de ética, é diretamente sublimatória. Não há mediação, nem transição e nem desvio quanto aos fins originais. Quando Guattari diz que a perspectiva esquizo-analítica estabelece uma cisão metodológica com as prática analíticas tradicionais e rompe, finalmente, com os paradigmas científicos, “para fazer passar todas as produções de subjetividade sob a égide de paradigmas ético-pragmáticos, ético-estéticos” 75, apenas reconduz a psicanálise ao seu devir originário, de feição pulsional. O caráter estético reside no que se denomina, em Mil platôs, de “automovimento expressivo”, isto é, num certo grau de autonomia em relação às condições dadas do meio interno e do meio externo. Neste caso, as pulsões, enquanto constituintes do meio interno, estariam no melhor dos casos submetidas ao regime expressivo, este sim dotado de uma potência autônoma. Ora, essa potência é ainda a pulsão com seu poder integrativo e, por isso mesmo, expressivo. É a pulsão que tem a força de apropriação, é ela que constitui território (que é ao mesmo tempo integrado e expressivo), assim como é ela que desterritorializa. De fato, as pulsões se explicam pela pulsão. A integrativa das demais é a de vida – a tendência superior (não total). Por isso Heidegger pode dizer que o pensamento originário é a vida. Nas imediações dos afetos originários, em sete tomadas 74 75

Mil platôs, vol. 4, op. cit., p. 124. Caosmose, op. cit., p. 79.

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I O que entendemos por afeto originário? Uma disposição afetiva cuja natureza é evocada, por exemplo, em algumas observações de Freud sobre a ignorância dos seres humanos quanto à sua vida erótica, como esta anotação que consta do artigo Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina: “Não posso desprezar a oportunidade de expressar, de passagem, meu espanto de que os seres humanos possam atravessar tão grandes e importantes momentos de sua vida erótica sem notá-los muito; na verdade, às vezes nem mesmo possuir a mais pálida suspeita de sua existência, ou então, havendo-se dado conta desses momentos, enganarem-se a si mesmos tão completamente no julgamento deles. Isto não acontece apenas em condições neuróticas, onde estamos familiarizados com o fenômeno, mas parece ser também bastante comum na vida ordinária” 76. A regra, neste caso, é ditada pela vida neurótica, de tal modo que esta é mais extensiva do que se desejaria crer. A título de ilustração do que queremos dizer sobre o originário, e sobre o fato de que a vida erótica tem mais de uma altura, lembrar aqui a concepção desenvolvida por Georges Bataille de um erotismo que se gradua em erotismo dos corpos, do amor e do sagrado 77. Planos ou graus do originário. Não partilhamos, porém, da visão desse autor quanto à gênese do erotismo, isto é, que este se explique como ato de transgressão do mundo humano, organizado pelo trabalho e pela razão, ainda que esse ato implique um retorno relativo às condições de origem – no caso, ao estado primitivo de violência sexual. Precisamente por se tratar do originário, Eros é fonte de toda e qualquer legitimidade. O originário tem assim um primeiro sentido, o de ser ignorado, inconsciente, inclusive em sua legitimidade. Há mesmo um Freud para o qual a pulsão de vida é apenas transgressão. II Eis um segundo sentido: um afeto originário compreende os afetos derivados, secundários, integra-os no entendimento, esclarece-os e os subordina a si. O exemplo poderia ser o de Antígona e sua afeição inabalável ao irmão Polinice, traidor da pátria. O amor e a devoção ao morto antecedem, e por isso integram e superam, o seu destino de traidor. Nessa altura já não 76 77

Obras completas, op. cit., p. 2557 e 2558. Cf. Bataille, G., O erotismo, L&PM, Porto Alegre, 1987.

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intervém nenhum juízo, nenhuma distinção valorativa entre Polinice e Etéocles. Antes de sofrer as vicissitudes do heroísmo ou da traição, eles são seus irmãos. Antes ainda, pertencem ao gênero humano. O desejo alcança a sua condição absoluta. Antígona fala em nome de leis eternas, que nunca foram escritas. É o domínio dos afetos originários. Se eles não perecem, não se deterioram, é porque são, como aquelas leis, indestrutíveis. O desenvolvimento da tragédia apenas atesta esta verdade, descrevendo a série de malefícios que advém do fato de se perder a noção desses afetos, de não serem mais experimentados e de ficarem esquecidos. Contudo, mesmo ignorados, eles presidem ao surgimento de todos os outros, medindo-os e esclarecendo-os. III Recebem a designação de originários por um terceiro motivo, já mencionado no segundo: antecedem o sistema do julgamento. São extramorais. E por isso são visados pelo vetor analítico, que não os considera de um ponto de vista exterior, como um projeto de transformação que se impusesse ou fosse sugerido de fora, por meio de um discurso cultural ou de um saber de mestre, mas que os descobre falantes, por mais obscura que essa fala tenha se tornado. Na verdade, eles é que são o fora dos discursos e do pensamento, e por isso mesmo constituem o campo analítico. É claro que faz toda a diferença se a fala é obscura ou esclarecida, diferença equivalente à que existe entre o recalque e a reconstituição da ordem originária dos afetos. O sentido extra-moral deve ser precisado. Trata-se de considerar um poder de avaliação que não se confunde mais com o sistema do juízo. Ora, os afetos originários, com sua inteligência avaliadora, são este poder em ato. Eros, como já dissemos, é um deus que pesa, avalia, estima. IV Deste sentido extra-moral decorre ainda um quarto motivo para a designação de afeto originário: ao introduzir uma ética extemporânea, esse afeto vigora inconsciente, isto é, subsiste ou insiste, como dissemos acima, como rastro de ausência e limar extremo, em todos os graus e modalidades afetivas, por não serem ele próprio ou não estarem à sua altura. Poderíamos evocar o exemplo de quem se encontra à beira da morte e recorda, depois de tê-los esquecido por muito tempo, seus amores indestrutíveis, pai, mãe, irmãos, esposa, filhos, amigos, ou ainda o fatum desmedido de ter estado aqui, o sentimento da infância, algo como o remoto e secreto “rosebud” de Cidadão 53

Kane. Ou o caso de quem recupera, no último instante, a febre de viver, e se depara com uma grandeza invisível, com o abismo. “Pois o que é verdadeiramente espantoso e temível no homem ainda não foi posto em palavras e livros. E a proximidade da morte, que torna todos iguais, impressiona com uma última revelação, que apenas um autor saído de entre os mortos poderia descrever adequadamente” 78. Pode-se pensar também no acesso a um afeto vidente, a uma visão do curso inexorável do devir – do que virá se, justamente, não se perder de vista o afeto visionário. Não perdê-lo de vista e “não abrir mão do desejo" passam a ser, neste caso, a mesma coisa – firmeza é o seu nome. O filme O sacrifício, de Tarkovski, explora esse gênero de vidência, tão vinculada ao desejo que constitui, com ele, um vínculo sagrado. Se a ação altamente singular era estranha, grande demais para o personagem central (um intelectual e escritor que cansara de só falar), pois iria afetar o curso do mais sombrio dos acontecimentos, ela era simplesmente inconcebível para os demais, que só tinham uma experiência geral e estatística dos afetos. Como ele não seria, no final, tomado por louco? Mas isto já não importava, a obra havia sido concluída. Sua família e o mundo estavam salvos. Esse quarto motivo ou sentido para o originário se refere, portanto, aos limites da vida e da morte, da lucidez e da loucura. A psicanálise deve servir para atualizar os afetos originários em tempo, quando eles ainda podem desencadear atos e decisões 79. A seriedade do assunto não exclui, porém, a condição originária do humor, essa faceta positiva do superego (segundo Freud) de enfrentar serenamente as mais severas adversidades. Firmeza e flexibilidade são as características de uma vida que persevera em seu ser. São traços que perfazem, também, o que se exige de uma condução analítica. Seja como for, o riso se aproxima da graça e do milagre, mas mais profundamente do saber de não-senso, com o “sentido” que lhe damos. G. sonhou que corria por um caminho estreito, ladeado de um mato crescido, lembrando a região onde, no início da adolescência, estivera com o 78

Moby Dick, op. cit.. O caso, difundido pela mídia brasileira, do menino (João Hélio é seu nome) preso ao automóvel e arrastado pelas ruas, na seqüência de um assalto realizado por menores delinqüentes, é tão horrível quanto exemplar. As análises se centraram no gênero de castigo que os atos de violência praticados por menores recebiam ou precisariam receber por parte do aparelho judiciário. Um intelectual, professor de ética numa universidade, sugeria, ao modo de confissão dos seus sentimentos, que os assassinos deveriam sofrer na prisão um tratamento igualmente desconsiderado por parte de outros condenados. Apesar das críticas dirigidas às declarações desse professor, os debates deixaram de lado, de modo geral, a seguinte verdade: que os jovens insensíveis, sem a menor noção de humanidade, agindo com a mais crua perversidade, já eram eles próprios, há muito tempo, a criança arrastada pelas ruas, o “boneco de Judas”, nas palavras de um deles. A prova é que faltou pouco para que não fossem linchados. Objeto a de Lacan, o dejeto. Não se trata de uma metáfora. É o tratamento que o originário recebe em nossa civilização atual. Com efeito, é eloqüente a distância da vida social em relação aos afetos originários. 79

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pai, em férias – região agreste, onde passavam os dias caçando. Sua memória não registra outra ocasião como esta, de convivência plena. Numa curva do caminho, havia um homem parado, de pé. Talvez fumasse um cigarro. Era seu pai, vestido todo de branco. Ele jamais vira seu pai vestir-se desse modo. Usava habitualmente camisa branca, mas não a calça. É que – pensou – ele está morto. O pai fitava-o firmemente. Conhecia esse olhar, era mesmo o de seu pai, e significava uma indagação algo expectante, como se o inquirisse, olhando nos olhos: “vai se decidir ou não?”, ao mesmo tempo em que perguntava verbalmente se resolvera o problema que, assim sentia, só podia ser financeiro. O pai nunca tivera bons rendimentos, vivendo de maneira precária do ponto de vista das finanças: é um traço de identificação, com ressalvas. Em seguida o pai virou de perfil, olhando em outra direção, como se já houvesse tratado de tudo o que era preciso. Questões econômicas motivaram, por certo, aquela pergunta do sonho, mas G. não pôde deixar de constatar que sua situação financeira estava sob controle e, melhor ainda, era promissora. “Ora, devo ter um anjo da guarda, pois é na verdade um milagre que eu, que nunca me ocupei de dinheiro, esteja com a vida estável nesse aspecto; o mais provável teria sido um verdadeiro desastre em termos de subsistência. Em momentos críticos, alguma coisa acontecia, e o assunto se arranjava a contento”. O pai parecia um anjo da guarda e a indagação do olhar, perguntando quando decidiria, denunciava sua tendência a adiar decisões importantes. E de fato G. se encontra em mais um momento decisivo de sua vida “Vou passar a acreditar em anjo e em milagre, pois afinal sobrevivi”. “Saiba que”, lhe retornou o analista, “o milagre mesmo consiste em você dizer, pela primeira vez em todos esses anos, que as coisas deram certo”. Pois antes havia sempre o desgosto expresso, associado a uma “coisa metafísica” funesta, de que nada dava certo em sua vida. O sonho aponta um limiar, um termo, a partir do qual a subjetividade muda de plano, de natureza ou de discurso. Asas do desejo. O afeto avaliador de um percurso existencial, com seu poder decisório infuso e sua expressão em ato, ainda que este fosse onírico, passam pela evocação transfiguradora do pai, o anjo da guarda, postado além da última fronteira.

V Quinto sentido. Deve-se incluir no âmbito dos afetos originários, como fator capaz de desencadeá-los, ou de soltá-los, aquelas qualidades sensíveis ou impressões que nos causam uma estranha alegria, sem que saibamos por quê. Um cheiro, um gosto, um passeio de pedras, ao mesmo tempo que designam 55

um objeto, insinuam a presença obscura de um objeto completamente distinto a ser decifrado, e que não ressurge, finalmente, apenas como foi no passado, mas sob um aspecto jamais vivido, numa espécie de eternidade. “São signos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum, signos plenos, afirmativos, alegres” 80. Que, de acordo com Deleuze, a “essência ideal” evocada pelas qualidades sensíveis só encontre inteira elucidação nos signos da arte, é bem o que formulamos ao sustentar que a pulsão se esclarece por seus graus superiores 81. VI Os afetos originários estão na origem da cultura, na origem do humano, bem como nas imediações do elemento não-humano que eles despertam e desenvolvem – o estranho, o novo. Por isso o seu domínio é, igualmente, o da sublimação originária. E esse é um sexto sentido para a noção que utilizamos. Não se deve imaginar que os afetos originários são bondosos, amorosos, piedosos, ainda que esses traços possam entrar em sua composição. Eles são, sobretudo, temíveis, pois podem levar ao fim do mundo. Assim é, por exemplo, a determinação solitária de Ahab, em Moby Dick. Conforme vimos no caso de Alexandre e sua égua, descrito no primeiro capítulo, um devir animal – para continuar usando as noções deleuzianas destinadas ao afeto – pode se conjugar com outros devires e eventualmente envolvê-los. Pode ser acompanhado de um devir mulher, de um acesso à alteridade e, portanto, à própria capacidade sensível, ou de um devir criança, mediante as questões: “Quem é seu filho?” ou “Quem é, desde a infância, ele próprio?”. E mais profundamente: “Como instaurar um novo começo?”. E é mesmo notável como Alexandre obtém uma composição desses devires ao integrar mulher e filhos a uma linha de fuga ou de cura, à vertente do desejo, ao movimento de tornar-se outro. Desaprender, mudar de sentir, ressurgir dos mortos. Como já dissemos, não há distinção a ser feita entre os devires deleuzianos e os pulsionais 82. 80

Deleuze, G., Proust e os signos, p. 13, Ed. Forense Universitária, RJ, 1987. Coube a Deleuze desenvolver o mais profundo recenseamento dos signos, e analisar os modos de seu aprendizado de acordo com as linhas do tempo. As qualidades sensíveis, com o desdobramento do tempo redescoberto que implicam, são signos verídicos em relação aos signos mundanos, que são vazios, e aos signos do amor, que são enganadores. 81 “(...) todos os signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, convergem para a arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte”. 82 “O que se pode dizer, no mìnimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que quiseram não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na criança. No animal, vêem um representante das pulsões ou uma representação dos pais. Não vêem a realidade de um devir-animal, como ele é o afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. Não há outras pulsões que os próprios agenciamentos”. Mil platôs, vol. 4, p. 45.

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Ao longo de sua linha de cura, Alexandre dissolve as determinações familiares enquanto representações fixas, enquanto figuras simbólicas e imagens, e as reconstitui (e se reconstitui) no plano originário dos afetos: brincar com sua égua ao invés de exigir dela o desempenho filial impecável, voltar a ser sensível, beijar seu filho, ouvir-se, sair de casa, respirar. É tudo muito simples, mas o simples, o corpo vivo, a peça única, embora não seja derivado ou secundário, está longe de ser imediatamente dado – ele é objeto de conquista. É nele, aliás, que se resolvem todos os paradoxos do objeto a de Lacan, o objeto do qual não se tem imagem e nem idéia. Como? Ele é o além e o aquém desse objeto, é o que esse objeto designa em última instância; encontra-se lá onde subsiste apenas o traçado de uma linha abstrata e sublimatória, a linha de força de uma prática sem modelo (devir imperceptível). Mas isto já não se distingue do caminho da análise. Deleuze e Guattari mostraram que o cavalo fóbico do pequeno Hans, antes de ser edipiano, era um investimento extra-familiar, uma relação com o exterior, um exercício da pulsão 83. Um cavalo pode compreender, assim, o não-humano no homem 84, o que ainda não foi determinado. Eis alguns de seus traços: 1) compõe-se de afetos, na medida em que estes exprimem determinados graus de potência – de ver, de sentir, de avaliar, de agir; 2) é um acontecimento único, uma individuação: ou é o cavalo de Hans 85, ou o de Nietzsche, ou o do sonho de Raskolnikov 86, ou o da criança de Lawrence ou

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“O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo”. Mil platôs, vol. 4, p. 43. Como já dissemos, o não-humano no homem é ainda o homem segundo critérios que permanecem, em grande medida, desconhecidos. Se envolve elementos não-humanos na produção de subjetividade tais como as “instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etologia, interações institucionais de diferentes naturezas, dispositivos maquìnicos” da informática, enfim, as grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas (Caosmose – um novo paradigma estético, op. cit., p. 20), é preciso acrescentar a essa composição pré-subjetiva complexa a ordem dos afetos originários, que têm sua vigência fora do humano em seu alcance estatìstico, ou, se quisermos, que subsiste lá onde o “demasiado humano” não pode alcançar. Como explica Guattari, o “não-humano” não é uma referência anti-humanista, e sim uma exploração da estranheza no campo da subjetividade, implicando tanto aqueles fatores mencionados como o que chamamos de originário. É possìvel que com a expressão “agenciamentos coletivos de enunciação” Deleuze e Guattari queiram contemplar esse conjunto de condições. 85 “(...) um indivìduo num agenciamento maquìnico: cavalo de tração-diligência-rua”. Mil platôs, op.cit., p. 43. 86 Raskolnikov, personagem central de Crime e castigo, sonha que ainda é criança e assiste à cena na qual um bando de mujiques bêbados, munidos de paus e ferros, desferem golpes violentos numa égua pequena e frágil, a pretexto de que ela, desobediente, resiste a puxar o carro em que eles todos se apinham e que, no entanto, pelo tamanho e pela carga, está muito acima de suas forças mover o mínimo que seja. Um dos mujiques, chamado Mikolca, instado por alguns espectadores menos truculentos a deixar a pobre égua em paz, grita que ela lhe pertence e que irá golpeá-la até a morte. Chega a pedir um machado, arma mais contundente que o ferro com o qual lhe espanca o lombo. O menino Raskolnikov, emocionado, parece se apiedar do animal, agora estendido no solo, agonizante, e em seguida se enfurece contra Mikolca. Acorda e pensa em sua vítima. O machado denuncia a relação com o crime que irá cometer. Ele é a criança dos afetos originários e, também, Mikolca, já tão distante dos mesmos. Cf. Dostoievski, F., Crime e castigo, p. 70 a 74, Editora 34, RJ, 2009. 84

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ainda a égua de Alexandre, sempre uma presença excessiva, incontornável, e um modo extremo de sentir o que só pode ser sentido; 3) evoca um plano de sensibilidade ou de vida que atravessa as espécies 87. Mas como um cavalo não é um conceito, uma figura, o representante de uma espécie ou de um gênero, como ele não é feito de características formais e sim de afetos, como ele é um ser vivo, surge feito uma inexplicável anomalia na fronteira de uma manada, de um bando, tal como Josefina e o povo dos camundongos no conto de Kafka. É o caso do devir animal do escritor, despontando na linha do horizonte de seus contemporâneos. Por mais que a voz clame no deserto, não clama absolutamente sozinha, mas sempre nas imediações de um povo, mesmo que seja de um povo por vir, como pensa Deleuze, ao considerar os anseios de artistas como Kafka e Klee. Inexplicável anomalia do afeto e sua tendência a surgir na linha do horizonte. Os sonhos visionários de O enigma de Kasper Hauser, de Herzog, parecem dar provas disso. Quanto mais singular a composição afetiva, mais originária e sem genealogia ela será. O sujeito da composição será assim como Melquisedeque, filho de um tempo original. Algo similar a essa anomalia e, no entanto, radicalmente diferente, uma patologia iluminadora, pode se verificar nas fronteiras de um povo que carece da noção de si próprio e dos outros povos. Assim é o personagem de Medo e obsessão (Land of plenty), de Wenders. Em seu delírio de agente secreto americano dedica a existência a investigar os germes de ações terroristas árabes nos anos que se seguem a 11 de setembro. É um pária, mas parece concentrar em si o pavor e o ódio de uma nação rica, inconsciente de si e do mundo, justamente ele que, a exemplo dos que se alimentam no abrigo para indigentes “Pão da Vida”, não tem mais nada a perder, nem mesmo a razão. Quando o mendigo árabe que ele persegue secretamente, julgando-o membro de um grupo terrorista em ação, é eliminado a tiros, acredita que o suposto terrorista tenha sido morto por uma facção islâmica poderosa, para a qual, talvez, aquele ato menor prejudicaria o plano maior, a ser descoberto por ele, Mas cabe aqui um esclarecimento: a simpatia ou a piedade pelo animal não é ainda ou não é mais um afeto originário; a identificação ao animal pertence a um plano secundário, plano de representação, em que os afetos já são tomados numa rede de significantes. O originário consiste numa co-participação no Ser (conforme o caráter extra-pessoal da pulsão). Homem e animal “não são absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois num só e mesmo sentido” (Mil platôs, op. cit. p. 44). Freqüentam o mesmo plano de Natureza, e é somente por isso, precisamente, que o devir animal é uma anti-natureza. O plano é o de uma natura naturans, segundo a qual todo o devir é uma operação. A participação afetiva é imediatamente uma prática, um procedimento, um cuidado artístico, uma composição e um estilo (a conjunção, conforme indicamos no início, do simples e do refinado). 87 “Não se trata de um acordo entre homem e bicho, nem de uma semelhança, mas de uma identidade profunda, de uma zona de indiscernibilidade mais profunda que toda identificação sentimental: o homem que sofre é um bicho, o bicho que sofre é um homem”. Deleuze, G., Lógica da sensação, p. 32, Zahar, RJ, 2007.

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paladino invisível dos EUA. Concluíra, sumariamente, que os assassinos não eram do FBI, não podiam ser americanos. Mais tarde é informado de que se tratava de um bando de jovens brancos, envolvidos com crack. Desconcertado, sente que há algo de errado em suas premissas anti-terroristas. É um delírio paranóico que expressa, no plano dos afetos, toda a distância de um povo em relação aos afetos originários, seu profundo esquecimento de si, sua grave desorientação 88. A agudeza de percepção, a dedicação, a vigília do personagem, uma espécie de limpidez da consciência, convicta de suas razões, para a qual o menor indício se converte em fonte de confirmação indiscutível, demonstram como é possível se iludir quanto aos afetos originários, presumindo-os tão próximos quando já se encontram do outro lado da linha, a uma distância quase intransponível. Para o personagem do filme subsistem apenas os sentimentos patrióticos estereotipados de pertencimento a uma nação esquecida de si. São os afetos originários que constituem a noção real de si e do outro. Na verdade, eles são esta noção. Considere-se ainda um devir cão ao modo de Wilson Bueno, autor que, como poucos, compõe uma zoofilia literária apta a situar os afetos nas fronteiras do humano. Desde Diário vagau, tanto em “Cão ìntimo” como em “Conversa de cão”, desponta esse cão soturno, judiado, rebelde e solitário, inscrevendo a experiência íntima do outro não-humano “no rés-do-chão do meio fio”. Esse limiar canino se transformará, com o tempo, na experiência de um cão inteiramente literal, sublimatório, posto que ficcional até a medula, o singularìssimo “Brinks” de Mar paraguayo 89. É ele que explora o devir cão em todos os seus graus intensivos. Se antes era “eu e o cão” 90, por mais íntimo que fosse, agora o exercício da pulsão se identifica integralmente ao bem-dizer. Na verdade, era esse dizer inteiro que estava na origem, pois a origem é o entendimento superior de tudo o que veio a suceder a partir dela, 88

“Como é mostrado no filme todo”, diz Wenders, “os americanos colonizaram o subconsciente. Você conhece os americanos dos filmes. Mas quando você mora nos EUA e você viaja pelos EUA, os americanos são completamente diferentes. Principalmente se você sair das cidades, sair de Los Angeles ou de Nova York, das cidades grandes, e for para o interior, de repente os americanos são um povo desorientado, esquecidos e perdidos no tempo. E desinformados. E estranhamente desamparados. E estranhamente desligados, desconectados. O meu filme é sobre esta desconexão com o resto do mundo. Os americanos ficaram tão acostumados a serem o centro do universo e a se considerarem a nação mais poderosa que tendem a pensar que as outras nações foram construídas ao seu redor. Mas quando você dirige pelos EUA você se dá conta desta ilusão, não há um centro, e os Estados Unidos com certeza não são o centro de gravidade do mundo. E os americanos... Às vezes acho lamentável como eles são sem noção, como não têm idéia do que o mundo pensa a respeito deles, do que o mundo sente em relação a eles...”. Entrevista com Wim Wenders, em extra no DVD do filme Medo e obsessão, 89 Bueno, W., Mar Paraguayo, Iluminuras, SP, 1992. 90 “Agora era eu sozinho com meu silêncio, eu e ele apenas, o cão desdentado...” Bueno, W., Diário vagau, p. 29, Travessa dos Editores, Curitiba, 2007.

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na sua direção ou mesmo na direção inversa. A pulsão, sendo imediatamente superativa, é a própria sublimação, porém mesclada, desde os primeiros tempos, com a necessidade de contrariar, de inverter, de negar o que lhe era contrário, o que parecia ser seu avesso, o que já era sua própria negação... “Brinks” é um ato, uma prática, um puro experimento. Se antes havia a pulsão cruel, doída, canina –, agora (mas este agora é o tempo original) há uma operação sutil, uma abstração radical, pois a inexistência de “Brinks” 91 como representação revela sua existência prática, o ato de dizê-lo, o bem dizer. Que finalmente “Brinks” seja menos que um vìrus, uma bactéria, que ele seja infinitesimal, é o que indica sua pertinência ao real, isto é, ao pequeno, ao micro, à pulsão – palavra e afeto. Quase por conseqüência lógica, Bueno inventa, com Cachorros do céu, algumas fábulas despojadas de todo acento moral, como quem procura a pureza de uma fabulação larvar, anterior à Gênese, um tempo original em que o juízo que decide o que deve ou não existir não se instaurou ainda. “Alzorres”, o lobo-cachorro, é também um tipo de anomalia nos limites da matilha... 92 É que os afetos originários não são generalizáveis, não podem ser abstraídos, nem podem ser objeto da razão. Eles são antes uma grande razão viva, diferença selvagem e espiritual que anima a sublimação e a cultura, e insiste como seu esteio constante, incorruptível. Designam o que um corpo pode, o que se pode e não se sabia (= não se praticava) ainda. VII Um sétimo sentido para o uso da expressão “afeto originário” encontraremos em Spinoza, e muito especialmente a partir da leitura deleuziana dos textos desse filósofo. Os afetos de origem são paixões alegres ou tristes, ou melhor, são vetores de alegria ou de tristeza, e correspondem ao aumento ou à diminuição de potência, isto é, ao aumento ou à diminuição da capacidade de agir. A proximidade com o sentido pragmático das noções de pulsão de vida e de pulsão de morte, tal como as desenvolvemos aqui, permite constatar uma semelhança surpreendente entre a ética spinozista e a psicanalítica. Segundo esta convergência ética, o que chamamos de afeto originário aparece, mais propriamente falando, ao nível do terceiro gênero de conhecimento. Aparece, portanto, por último, como “auto-afeto”. Mas é este auto-afeto que esclarece todos os outros níveis afetivos. Como é possível? O cursor ético que desdobra os três planos do conhecimento se instaura a partir 91

Convém não esquecer que “Brinks” é nome emprestado – intencionalmente, segundo o autor - de uma empresa de segurança, transportadora de valores monetários. 92 Bueno, W., Cachorros do céu, p. 91, Editora Planeta, SP, 2005.

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do último, pois é o último que garante o mais puro discernimento ético. É o último – a ciência intuitiva – que garante a possibilidade de um desdobramento ético dos planos de conhecimento. Por quê? Porque é o único plano que poderá ou não se constituir. É decisivamente de consistência ética. É apenas uma maneira de dizer que, para uma visada ética, está em jogo, todo o tempo, a apropriação d‟isso. Mas vamos por passos na compreensão do sétimo sentido de afeto originário. Há uma distinção spinozista entre afecção e afeto muito elucidativa. As afecções são os efeitos que os corpos causam uns nos outros, são as idéias desses efeitos, inevitavelmente inadequadas, posto que não incluem o conhecimento das causas: é a idéia do calor que sinto quando o sol queima minha pele. Idéia-afecção instantânea que pode gerar alegria, isto é, aumento de potência, ou tristeza, diminuição de potência. Esse elemento da passagem para mais ou para menos, esse sentido de maior ou menor perfeição no que diz respeito à capacidade de agir, eis o que Spinoza chama de afeto. Nada me faz, até aqui, conhecer o sol, mas os afetos de alegria, mesmo sob a forma da paixão, são luzes, signos vetoriais, índices de um de conhecimento possível, aquele que terá a consistência das noções comuns. O que de comum existe entre o meu corpo e um outro, que relações aí se combinam de modo a resultar em aumento de potência? Qual o bom vetor, para que nele me coloque? É todo um aprendizado das combinações favoráveis, dos bons encontros, envolvendo um conhecimento das causas. Um exemplo deleuziano: como se comporta o elemento fluido do mar para que eu possa adaptar a ele, progressivamente, o meu nado ainda incipiente? E como o meu nado deverá se desenvolver para que as ondas lhe sejam favoráveis? As ondas do mar se compõem, finalmente, como os movimentos do meu corpo. Sou um nadador. O conhecimento resulta de relações que se compõem, mas, desde então, propicia futuros bons encontros que não se definem mais por paixões alegres e sim por alegrias ativas. Entramos, assim, na posse de nossa potência de agir, o que aqui temos chamado de exercício da pulsão, não sem insistir que esse exercício é também o do saber – saber nadar, saber-fazer. Isto não nos dá ainda uma visão direta da essência no sentido spinozista, ou seja, do grau de potência que torna possível, em última instância, tanto as afecções do primeiro grau do conhecimento, ainda circunscrito às idéias inadequadas, como as noções comuns que constituem o segundo grau do conhecimento, a ciência das causas. Ascender ao terceiro gênero significa apreender diretamente o poder de afetar e de ser afetado. É o auto-afeto ou, em nossos termos, a volta inteira da pulsão. A ciência intuitiva de Spinoza, com seu acento místico, pois compreende a intimidade das essências singulares, de Deus e do mundo, não se distingue de um dizer imanente, unívoco, de um hen panta decididamente 61

panteísta 93 e do auto-afeto que lhe corresponde, a beatitude. Mas por que se trata de um dizer? Só se é o grau de potência que se é em ato. Com os “afetos originários” não queremos evocar o melhor dos mundos possíveis, mas apenas observar, com interesse clínico, que os verdadeiros combates começam nas suas imediações. A imanência do dizer Pelo que se viu acima, a pulsão pode ser exercida ou não; seu exercício não se dá naturalmente. Os lapsos de linguagem, de modo geral tão preciosos, são eclosões do dizer em meio ao dito, laivos de existência – ex, sempre fora, estrangeira. Esses lampejos do saber inconsciente são índices da pulsão, de sua atividade, do dizer que se encaminha e se depura como bem-dizer. Se a ética da análise é a do bem-dizer, convém pensar, à maneira de Spinoza, que é justamente nessa prática (constante) que consiste a beatitude, a satisfação, o gozo, o saber. Entendido como legein, como logos, o dizer recolhe, reúne, junta – é integrativo e íntegro. Não é verdade que só se tem acesso aos representantes da pulsão, à idéia e ao afeto, pois o fator de reunião ideo-afetivo é o dizer, do qual, evidentemente, se faz experiência. O dizer é o fruto, o verbo encarnado. Que essa experiência, porém, não seja de fácil acesso, é outra coisa, decorrente de seu caráter ético. O dizer é imanente à idéia e ao afeto, ao saber e ao gozo, e por isto se pode afirmar, com Lacan, que o sujeito é imanente à voz que ele ouve na alucinação, ou seja, que ele existe nessa voz, (existirá) nesse dizer. No âmago da idéia e do afeto, enquanto são “representantes” da pulsão, há o dizer, o grau mais alto da pulsão. Não existe voz alucinatória sem um componente ideoafetivo que a torna audível, e no qual, embutido, insiste um dizer. É ali que o sujeito subsiste. Ele só é imanente à voz que ouve porque existe naquele dizer, por meio daquele dizer que, no entanto, não reconhece e não pode reconhecer como seu. Em razão disto, sua existência se encontra por um fio. A voz não é uma voz qualquer – é uma voz separada dos ruídos do mundo e, na sua fonte, um dizer não-realizado. Daí a tenacidade com que o sujeito sustenta a realidade do que ouve. É a certeza do seu cogito solitário, por mais que se denomine, a si próprio, “legião”. Lacan trouxe para um mesmo plano, com alguma audácia, o problema dessa voz alucinatória e o da voz demoníaca de Sócrates 94. No caso da 93

“Um-todo” ou, como sugere Deleuze, “o um todas as coisas”. Deleuze assinala a ousadia filosófica de Spinoza, que assestou o golpe panteìsta “por toda a eternidade”. En medio de Spinoza, op. cit., p. 484 e 485. 94 Cf. Lacan, O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 243.

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psicose, a voz de escárnio e censura, por exemplo, é ainda o existir sob a condenação do Outro, ou melhor, é o não-existir nessas condições de julgamento, o que é igual a não-dizer, pois se trata de um dizer expropriado, irreconhecível, vindo do Outro. Afeto dilacerante, o sujeito se identificando com a expropriação que o mortifica, que o sentencia à morte. Faz um com a sentença. Percebe-se então porque o dizer veicula tanto a vida como a morte. Isto não revoga, porém, que o dizer seja exatamente como a pulsão – que é de vida. Em decorrência do suicídio ainda recente do pai, Cláudio se mostra muito deprimido, cultiva idéias suicidas e ouve vozes. Dias antes da tragédia, o pai procurou-o por telefone (a voz), relatando que uma viga caíra em sua cabeça e passara a ter idéias esquisitas. Não levou em conta aquele apelo. A desatenção deste momento somou-se a outra, relativa às dificuldades financeiras que o pai enfrentava, e que certamente eram a causa de uma prolongada depressão. Há tempo sabia dessa crise financeira, mas não investigou o montante das dívidas. Ao se inteirar dos valores após a morte do pai e verificar que dispunha de economias suficientes para saldá-las, sentiu-se egoísta e culpado. Procurou análise por sentir-se frágil, melancólico e, como se disse acima, inclinado a um destino semelhante ao do pai. Tem medo de ficar sozinho ou no escuro, vê vultos e quando acontece de guardar o carro na garagem, sai dela rápido, assustado, com receio de que alguém o segure pelo braço. Ouve vozes dizendo-lhe para fazer isto e aquilo. Ora, quando era pequeno tinha medo do escuro e de ficar sozinho – e quem, senão o pai, tranqüilizava-o nessas horas até que adormecesse? Como não sentiria de novo aqueles medos, agora que se via duplamente em dívida com ele? Durante a infância e inicio da adolescência acompanhava-o em tudo. Passeava, caçava freqüentemente com ele, e nessas ocasiões recebia muitos conselhos – a origem das vozes. Há dois estágios nesse retorno à infância: o mais profundo, e que mobiliza todo o evento psicótico, remonta à infância que deseja existir, com seus afetos originários e ativos, possivelmente por não ter sido integrada à prática da vida e persistir desfigurada, como era o caso, numa espécie de delinqüência juvenil, envolvendo drogas e arruaças. O sujeito se vê impelido, no afã de se salvar, a um tempo remoto onde a culpa não havia se instalado ainda. O segundo estágio evoca o nascedouro da angústia, da culpa, ali onde a linha de fuga do inconsciente se interrompe. Como ela se interrompe? É bastante comum que um dispositivo infernal de captura reduza as disposições ativas, pulsionais, a um coeficiente de transgressão e rebeldia, e que uma má consciência se insinue no processo do desejo, dando-lhe o aspecto vicioso do crime e do castigo. 63

Cláudio passa a sofrer de medos e de alucinações auditivas, próprios do tempo limítrofe em que a voz da lei ainda vem de fora e já se esboça, no entanto, um superego. A não-integração daquele tempo anterior insiste como falta ética – pois quem poderia realizar a integração? – e repercute nos desenvolvimentos da experiência sob as formas neuróticas e perversas da transgressão. Em situações extremas, ocorre a dissociação psicótica que reconstitui um estado de não-integração primordial. Este estado só se verifica porque fracassou o recuo maior ao estágio anterior, ao sujeito do inconsciente, coisa que a análise deve propiciar. É o único estágio que faz do inconsciente um devir. E não há paradoxo nisto, pois a anterioridade lógica e ética do sujeito do inconsciente, enquanto instância ativa radical, reconstitui a dimensão do futuro, dimensão que o pai de Claúdio não soube ou não quis mais encontrar e que este procura, assombrado, tateando no escuro. O real, dito impossível, é no entanto o berço de toda possibilidade, o que é outra maneira de dizer, mais ao gosto popular, que para tudo, do ponto de vista do real, existe um jeito. É preciso, como insistia Deleuze, acreditar no mundo. No sentido da não-integração primordial, o chamado discurso indireto é de origem, pano de fundo algo caótico e des-subjetivado, e as vozes alucinatórias dos estados psicóticos dão testemunho inequívoco dessa condição de origem dos discursos. Entretanto, é preciso incluir nos pressupostos originários a própria pulsão, a vis activa, como fator de integração ou reunião perspectivista – não ideal – e sua resolução em dizeres inteiros ou íntegros. A polifonia da fala não exclui o dizer íntegro, assim como as pulsões não excluem a pulsão de vida, por meio da qual encontram sua ordenação interna, superior, inorgânica. De tal modo que a não-integração primordial dos estados psicóticos mencionada acima não se confunde com o originário. No caso da experiência psicótica, deve-se considerar o eventual exercício da pulsão, sempre possível, viável, por maior que seja o extravio subjetivo, se essa experiência estiver realmente integrada ao campo analítico, isto é, ao campo do originário – o que dá uma indicação para o tratamento das psicoses 95. Longe de estar encerrado o assunto, seja porque, como se tornou comum dizer, o psicótico não faz transferência, seja porque nas manifestações psicóticas mais graves já não haveria indício de um sujeito (o que é 95

Identificar o campo analítico ao originário pode sugerir algo excessivo, uma mistificação. Mas, por um lado, a análise é um procedimento destinado a considerar o singular, o imprevisível, o estranho, a diferença, assim como a viabilizar o dizer e o que descrevemos como afeto originário, anterior, lógica e eticamente, ao sistema do juízo. Por outro, tal como a pulsão, a análise precisa ser exercida. O campo é o de uma prática; não é dado naturalmente, não está previamente constituído, não preexiste ao seu exercício. Daí sua homologia com a pulsão. Não há nada, senão por um desvio do entendimento, mais avesso à mistificação. A escuta e sua conseqüência, a intervenção, se provam em pleno combate.

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inconcebível), é na verdade a vitalidade daquele campo que está em questão, sua aptidão para evocar a pulsão de vida, o pressuposto originário, sobretudo ali onde o sujeito parece estar parcialmente eclipsado e sua relação com o Outro profundamente alterada. É quando o exercício da pulsão é mais exigido do analista, sendo decisivo se ele se encontra verdadeiramente no seu agir ou não. Por quê? É o que servirá de bússola no mar de inconsistência e niilismo da experiência psicótica, seja qual for a temática delirante que ela tenha assumido. Por sofrer a inflexão de uma culpa insuportável, Cláudio abre mão da condição ativa, ou seja, da condição de escolha, que não é senão a própria atividade pulsional. A partir daí, as vozes são o seu dizer não reconhecido, não exercido. Autores como Winnicott, Rollo May e os anti-psiquiatras (Laing, Cooper), voltados a uma análise existencialista, desenvolveram a noção de “falso self” para situar esse não exercìcio progressivo e seu ponto de ruptura esquizofrênico. O verdadeiro, eis o norte, com a ressalva de que ele só existe em ato. É dele que se trata todo o tempo, das vias pelas quais deixa de ser exercido e dos efeitos acumulados desse não exercício. Quanto mais o sujeito é sensível à sua ausência, ao nada, nihil, mais o resultado é a mortificação psicótica, o que se chamou em psicanálise de masoquismo primordial. O oposto é a psicopatia, enquanto denota uma insensibilidade gélida a essa mesma ausência. A forma de atividade adotada, via de regra brutal, sádica, é um recurso defensivo extremo contra o sentir, e a violência não passa, neste caso, de um símile do princípio ativo – ela cobre o vazio de um duplo esquecimento, para falar à maneira de Heidegger. Os celerados de 120 dias de Sodoma são incansáveis em constatar que sua lubricidade exige estímulos cada vez mais fortes. Ao final de cada investida em nome do gozo, seu ódio se renova, não sem antes germinar no vazio da apatia, em um não sentir exasperado. O germinar do ódio e sua renovação não cessam, e não cessam porque são gerados, em última instância, por uma força constante. É comum se construir uma imagem sado-masoquista da pulsão, pensar seu circuito em retorno como uma violência que retorna ao sujeito, sem ter em conta que o sadismo, assim como o masoquismo, são modalidades de expressão pulsional no interior do sistema do juízo, ou seja, no interior de uma condenação que faz do sujeito um verdugo ou uma vítima, ou os dois ao mesmo tempo, por mais que esta configuração seja encenada, desejada. Tanto que o masoquismo se funda numa espécie de pecado original. A demanda do Outro (nos dois sentidos do genitivo latino) introduz uma distorção no processo do desejo, a ponto de, no limite, transmutar a pulsão de vida em pulsão de morte. É a face ou a fase fascista da pulsão. Nada a estranhar que ela dispare na direção do juízo final. Por isto Lacan prescrevia que se trouxesse a 65

demanda de volta à pulsão, de modo que esta aparecesse em sua legitimidade originária. É notável a convergência do ativo, do verdadeiro e de seu pleno exercício como prova de consistência. Mas dizer que é notável é pouco, pois essa convergência é essencial aos três termos – pai, filho e espírito santo são uma e mesma coisa. São as condições originárias do homem. Falar em “verdadeiro” inspira hoje suspeita por não se saber mais em que plano da experiência humana situar a sua incidência. Questionava-se Lacan por não dizer logo o verdadeiro sobre o verdadeiro. Ora, dizê-lo só poderia ser uma mentira, como ele rebateu em certo momento. Que não vissem isto apenas prova a falta de noção que reina sobre o assunto, ou seja, que o verdadeiro reside na condição de dizer e no dizer mesmo. O não exercício da pulsão será vivido como falta ética. No caso da voz demoníaca de Sócrates, ela era simplesmente a prudência ou o dizer socrático como tal, a quem o filósofo obedecia como a um mestre, já que, a crer no oráculo, não havia outro em seu horizonte. A voz lhe recomendava prudência na escolha dos seus interlocutores. Se ela lhe serviu de defesa contra a acusação de impiedade – pois um daimon é um deus –, é porque sua atividade nunca foi outra coisa que a denúncia da presunção humana. Pode-se objetar que o demônio interior não foi tão eficaz. Com sua maiêutica, Sócrates conseguiu muitos inimigos, a ponto de ser condenado à morte. Mas se pode pensar que, graças à voz subterrânea, sobreviveu o máximo possível, o suficiente para que o mundo humano, hoje, seja inconcebível sem esse personagem conceitual, para falar como Deleuze e Guattari.. Caberia mencionar ainda o sonho narrado por Freud no início do 7º capítulo da Interpretação dos sonhos. O filho morto se aproxima do leito do pai adormecido e, tocando-lhe o braço, profere em tom de reprovação: “pai, não vês que estou ardendo?” A voz do além emite o dizer culposo do pai que não viu, que se descuidou e adormeceu. Se este dizer lhe chega do Outro na voz do filho morto, é porque não foi assumido ainda como seu, embora seja integrativo em si mesmo ao expressar, com precisão angustiante, o estado de alheamento. O pai subsiste acordado pela voz que emite a reprovação, exatamente quando todos dormem, inclusive ele. O alhear-se, o descuidar-se, o dormir, denunciam a culpa no plano dos atos inconscientes, pois o pai, apesar do seu desvelo junto ao filho moribundo, esteve alheio ao mais essencial, isto é, ao sentido da sua própria existência e à força dos afetos originários, certamente ligados ao filho pela origem e pela continuidade. Ele dormia, a vela tombou. A análise do sonho detecta o desejo de continuidade – o filho se mantém vivo e é esse o desejo do sonho –, o “perseverar em seu ser” spinozeano ou ainda a força constante, mas nas condições em que é 66

praticada. Vale observar que no caso desse pai o existir é imanente à culpa, ou seja, à voz do morto (ex-). O erro, a falta, é a morte. O dizer é atividade primordial, não derivada. É a prática do desejo na sua pureza originária, e por isso ela é abstrata, por mais incisiva que seja na vida cotidiana. Não há mistério nisto: o exercício da pulsão e a prática d’alíngua, da pequena língua indígena de cada um, são a mesma coisa. O que dizemos de novo é que este exercício, esta prática, é a pulsão em seu destino originário – o pressuposto, portanto, de todas as formações do inconsciente, da alucinação ao lapso 96. Não há o que não incida em seu campo clínico – o umtodo... Muitas coisas podem ser ditas desse começo chamado de pulsão: que ele é ativo, ético, íntegro, verdadeiro, clarividente... A pulsão é uma phisis, um logos. Por que se chegou a concebê-la perversa? Ou, em outras palavras, como adquiriu um aspecto perverso? Freud acercou-se dela, tanto nos Três ensaios sobre a sexualidade como no metapsicológico As pulsões e seus destinos, por intermédio das perversões. O prisma sexual? Lembremos que ela também foi chamada de libido – a energia sexual. Nada mais apropriado, se ela une, integra, recolhe, afirma, diz. Imagens da pulsão e visão pulsional. Mas, é ela perversa? Alguns cineastas como Buñuel, Pasolini, Marco Ferreri souberam destacar uma imagem perversa e por vezes não-humana da pulsão, e ligaram-na, inevitavelmente, à pulsão de morte, como sua expressão última. No inìcio de “Escravos do Rancor”, onde se trata de transmitir “o espìrito do romance de Emily Brontë” 97, lê-se que os personagens “estão à mercê de seus instintos e paixões. São seres únicos para quem não existem convenções sociais. O amor de Alejandro por Catalina é um sentimento feroz e desumano que só podia se realizar com a morte”. Em “Teorema”, assiste-se 96

É a atividade poética que esclarece mais profundamente o exercício da pulsão, e por isso transitamos da pulsão ao dizer sem qualquer mediação, deslocamento ou desvio. Félix Guattari adota claramente essa transição imediata quando propõe, por exemplo, uma ampliação da abordagem dos modos de subjetivação parcial – e, portanto, pulsional – a partir de análises como as de Bakhtine sobre a poesia. Diz Guattari, retomando esse autor: “a subjetividade criadora, para se destacar, se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á, de preferência: 1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; 2) de suas significações materiais com suas nuanças e variantes; 3) de seus aspectos de ligação verbal; 4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos; 5) do sentimento da atividade verbal do engendramento ativo de um som significante que comporta elementos motores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um movimento no qual são arrastados o organismo inteiro, a atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta. E, evidentemente (...), é esse último aspecto que engloba os outros”. Caosmose, op. cit.,p. 26. Esse último aspecto é o que, de nossa parte, chamamos de dizer, ou seja, a atividade apropriativa por excelência e a integridade que ela transmite a todos os elementos implicados (simples-refinado). Por isso se pode falar em “movimento que arrasta o organismo inteiro” e em “unidade concreta” da palavra e da atividade que a anima. 97 Autora do livro O morro dos ventos uivantes. Buñuel adaptou-o ao cinema com o tìtulo “Escravos do Rancor”.

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à desintegração de um universo burguês, capitalista e familiar sob o efeito da presença desconcertante de um estranho, um estrangeiro sem nome, uma espécie de anjo do mal. Após sua breve e enigmática passagem, pontuada de seduções eróticas, nenhum dos personagens irá permanecer o mesmo. O destino peculiar de cada um passou a ter, no entanto, um aspecto em comum: o brutal desregramento, a perda da identidade e a ruína acelerada das antigas condições de existência 98. É um exemplo do trabalho ruinoso – embora alguém pudesse dizer: saneador – das pulsões desencadeadas, do Eros negro, como o chamava Lacan, impelindo a um mundo originário de loucura, misticismo, selvageria e caos. No final se estende um deserto bíblico, o mesmo que se intercalava às cenas do filme e anunciava, aos poucos, o temível retorno ao pó. Só resta, no último instante, um grito de desespero. Em Deleuze, inclusive em alguns momentos de Mil platôs e em Cinema – imagem-movimento, textos relativamente recentes desse autor, as pulsões são ainda tratadas como vetores destrutivos ou cegos. Uma ligeira indagação em seu segundo livro, porém, feita a propósito de Buñuel e das duas repetições (a que condena e a que salva), parece reabrir a questão da natureza última da pulsão, pois Deleuze se pergunta se elas não se confrontariam como as pulsões de vida e de morte. Ora, é justamente na altura da pulsão de vida que todas as demais modalidades pulsionais se esclarecem, de modo que o originário proposto por Deleuze no texto sobre cinema é ainda uma maneira de ver e de tratar o campo pulsional. A “imagem-pulsão” 99 é, de fato, uma imagem da pulsão, mas não uma visão pulsional. As paixões violentas, os “ensaios de crimes”, a perversão, os objetos fetiches, a repetição malsã, todos esses temas caros a Buñuel são leituras da pulsão nas condições de nossa modernidade, ainda que, mediante sistemas variáveis de valoração, possam servir a outros contextos culturais. Que ela tenha um caráter destrutivo e dissoluto, que seja parcial e se ligue a pedaços e deformidades, se deve à visão que as instâncias culturais e gregárias 98

Diz, por exemplo, o jovem filho do industrial ao estranho sedutor: “Não me reconheço mais. O que me tornava igual aos outros foi destruído. Eu era como os outros, talvez com muitos defeitos, os meus e os de meu mundo. Você me tirou da ordem natural das coisas. E, enquanto você estava perto, eu não tinha percebido. Agora entendo que você vai embora. E perder você me conscientizou da minha diferença. O que será de mim? O futuro será como viver perto de um outro „eu‟ que não tem nada a ver comigo. Devo chegar ao fundo dessa diferença que você me revelou e que é a minha íntima e angustiante natureza? Mas, se não quero... Tudo isso não vai me colocar contra tudo e contra todos?” 99 Deleuze, G., Cinema – imagem-movimento, p. 157, Ed. Brasiliense, SP, 1983. Nesse livro (capitulo “Do afeto à ação: a imagem-pulsão), Deleuze parece entender que a ação é um declínio, uma queda em relação ao afeto, e explora a noção de pulsão a partir dessa idéia de ação como queda, o que só poderia resultar na sua resolução como pulsão de morte. Outra saída é a de ligar a noção de pulsão à de princípio ativo, vis activa, enquanto poder de afeto, como fazemos. Pois bem, este poder de afeto, com o sentido de afeto ativo, originário, que lhe damos, está presente na concepção deleuziana das forças. Por isso a visão sobre as pulsões no texto citado apenas desenvolve as imagens perversas da pulsão.

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ameaçadas têm dela, conforme o velho compromisso da transgressão e da lei. Sade, como se sabe, não é senão o mundo cristão invertido. O universo de Buñuel é assim marcadamente cristão, e é desse universo que procedem os fatores “naturalistas” que o levam à decomposição. Como Deleuze não viu? Mas não foi nestes mesmos termos que Freud concebeu a pulsão, como força impulsiva a ser domesticada, a ser civilizada? Não é desta necessidade que deriva o mal-estar na Cultura? Ele não viu então que a psicanálise mesma era obra da pulsão não domesticada, desafiando todas as resistências que lhe eram contrárias? Considere-se ainda a obra de David Linch, tanto o seu “Veludo Azul”, como o mais antigo porém não menos belo e escabroso “Coração Selvagem”, em que as parcialidades perversas, os horrìveis pedaços e as negras perversidades se resolvem no fluxo irrefreável da tendência superior, vitoriosa – o coração selvagem é a pulsão de vida, Eros, com seu poder de união, sobretudo interna. Toda superação – como um passe de mágica (a varinha-falo) – deve-se à integridade do herói. Depois de uma série de perigos e de prisões, ele cumpre, finalmente, a promessa de cantar “Love me tender” para a sua garota, e seria um desfecho romântico quase típico se não fosse, ao mesmo tempo, a celebração de uma impulsividade autônoma e provocadora. O cinema vai além, muito além desse insensato mundo. Se o Eros analítico é um Eros negro, como queria Lacan, ao denunciar os idealismos burgueses infiltrados na psicanálise, convém não desconhecer que ele é, além de negro, clarividente. É notável e de fato revelador que traços como integridade, firmeza e visão ampla pareçam estranhos ao campo pulsional, quando asseveram, ao contrário, seu pleno exercício. Esses traços se ajustam ao que se pode chamar de estilo, à maneira própria de cada um. Como não abrir mão dela? Como desenvolver sua lei singular, tendo em vista que ela não é dada? Tal raridade – o exercício dessa lei singular – só é possível com firmeza, integridade, ou seja, mediante ela própria. Em “Crônica de um Amor Louco”, Marco Ferreri, subscrevendo que a vida, como dizia Fitzgerald, é um processo de demolição, não deixa de propor, logo de início, pela boca de seu Bukowski alcoolizado, a saúde ou a salvação pelo estilo: “Estilo é a resposta de tudo. É um jeito de fazer uma tolice ou algo perigoso. Antes fazer uma tolice com estilo que fazer algo perigoso sem estilo. Fazer algo perigoso com estilo é o que eu chamo de arte”. Veja-se no filme de Henri-Georges Clouzot, “Le Mystère Picasso”, como o pintor retoca diversas vezes o quadro de uma cabeça de cabra com o risco iminente de estragá-lo; como a pintura vai adquirindo a cada etapa, que bem poderia ser a última – e quase o desejaríamos aliviados –, uma nova e estranha beleza, que será de novo perigosamente destruída em benefício da próxima, até o momento em que Picasso, sóbrio e preciso, dá a obra por terminada. A 69

cabeça caprina é uma peça esplendida, única e essencial, feita de seu próprio metal recém-descoberto. Picasso, o metalúrgico. Sem a ousadia do artista não teria existido essa cabeça de cabra celeste – deslumbrante, definitiva. Quanto mais se esclarece a natureza naturante da pulsão, mais ela se define como prática e menos como impulso. Nada nos impede, porém, de usar a palavra impulso para falar dela, se a palavra designar um impulso esclarecido. Mas um impulso esclarecido só poder ser uma prática, um estilo. Por que essa tendência em fazer da pulsão o fulcro de toda experiência, inclusive da mais alta, a estética? A razão é simples: ao dizer que se avizinha, obscuro, meio amorfo, meio disforme, Freud deu exatamente o nome de pulsão ou de tendência (Trieb), já que ela pode ou não se verificar, pode ou não se consolidar – não se dá naturalmente. Eis a junção do estético com o ético, e a questão da existência em aberto. A definição do inconsciente como o não-realizado (Lacan) se deve a esta mesma razão. Insistamos com a pergunta: como se passa do regime da representação à prática analítica? Ou, em outras palavras, como se passa das imagens da pulsão à visão pulsional? Em seu levantamento exaustivo das ressonâncias do termo Trieb no idioma de Freud, Luiz Hanns, na linha de outros autores, concebe um arco pulsional operando em múltiplos registros: “é das pulsões que se trata em todas as manifestações da vida, seja nos seus aspectos genéricos, seja nas suas formas específicas de manifestação: como força da mãe natureza, como instinto biológico, como estímulo nervoso na fisiologia, como imagem do desejo nas alucinações do bebê, ou como pensamento”. A consideração isolada de qualquer uma dessas manifestações “transforma a teoria pulsional em algo de outra ordem, por exemplo, numa teoria dos impulsos, dos afetos e das imagens, ou em uma teoria da linguagem, ou em uma teoria organicista, ou em uma teoria biológica ou ainda em uma teoria metafìsica” 100. O amálgama de referências (ou de realidades, como se preferir), as mesclas de fatores biológicos e fisiológicos com psíquicos, mas também a ressonância das leis da natureza no plano psíquico, conforme as observações do autor citado, todos esses campos e referências ativados, na origem e em última instância, pelo móvel pulsional, expressam evidentemente uma realidade complexa e objetiva. Sim, mas desde qual ponto de vista? A escuta freudiana se demora na apreensão de todos esses aspectos da experiência humana? É preciso, antes de tudo, alcançar o ponto de vista pulsional e sua incidência clínica. Ao dizer que qualquer redução dessa complexidade de expressões e definições do arco pulsional resultaria em uma teoria limitada e tendenciosa (biológica, 100

Hanns, L., A teoria pulsional na clínica de Freud, p. 161, Imago, RJ, 1999.

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lingüística ou metafísica), Luiz Hanns não parece ainda levar em conta a pulsão a partir dela própria – que é o ponto de vista psicanalítico por excelência. É, para ser breve, o ponto de vista do inconsciente, denominado por Freud “o umbigo do sonho.” Aquele autor, no entanto, observa que “na escuta analítica não se trata de operar com uma outra lógica que a do consciente, a saber, a do inconsciente, mas com uma somatória de lógicas, ou melhor, com a simultaneidade de leis de regulação pulsional, bem como com determinações mútuas entre instâncias diversas. É claro que o foco central da escuta se dá sobre o inconsciente dinâmico; contudo, este também contém materiais já elaborados em linguagem e em parte ordenados conforme as leis do pensamento consciente” 101. Embora seja sensato dizer que a escuta do inconsciente enquanto foco central inclui a atenção aos processos oriundos de outros campos, com isto não se esclarece a natureza dessa escuta e a direção da análise: perde-se de vista a determinação pulsional, inconsciente, segundo a qual se ordenam todos os processos, mesmo que eles se ordenem ao avesso e de maneira confusa, intrincada, com um sentido inverso ou rasurado quanto às procedências. A pulsão é audível, legível, praticável. Simplicidade, portanto, da análise, destinada a restaurar uma ordem. Na medida em que subordina a si as demais lógicas e saberes, é de fato a lógica do inconsciente ou, o que vem a ser o mesmo, o saber pulsional que deve presidir o processo analítico e decidir pela sua direção. Quando evocamos uma lógica inconsciente, pulsional, não a limitamos ao funcionamento psíquico descrito segundo as leis do processo primário – deslocamento e condensação ou, em outro registro, metonímia e metáfora, e assim por diante. Ela é anterior a essas modalidades de funcionamento e decide, obviamente, seu curso: as associações inconscientes e as cadeias significantes que as determinam não se constituem e proliferam, como se sabe, por mero mecanismo; seu curso não é aleatório, não resulta de uma combinatória ao acaso. As sobredeterminações dos acontecimentos psíquicos e inclusive suas descontinuidades, o que Fábio Herrmann chama de ruptura de campo, resultam da vida desejante como de uma origem contínua. Dois fatores aparecem combinados nesta origem contínua, o ético e o estético, ambos pulsionais. Por se tratar justamente de um prisma pulsional e, portanto, de avaliações tanto éticas como estéticas, pode-se dizer que a lógica do inconsciente é a lógica dos afetos originários. O “sentido de imanência” que, segundo Herrmann, garante a continuidade de atribuição e impede a despersonalização nos momentos de alteração mais ou menos drástica das condições de existência, e que decai e se degrada exteriormente como rotina, 101

Idem, p. 155.

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hábito, vida regular, permanece uma incógnita, e deve ser remetido às condições originárias, de ordem pulsional. Herrmann pressupõe uma combinação do constitucional e do adquirido na tessitura desse sentido de imanência, rodeado de mistério, e não o concebe, conforme já observamos anteriormente, como pulsional e ético na origem, isto é, como determinação constante (admitida ou não) em direção ao seu próprio exercício, nem considera, portanto, a decorrente possibilidade de que este exercício se verifique em diversos graus, em diferentes alturas 102. A rotina é sem dúvida uma queda em relação àquele sentido e seu exercício continuado – coisa que o autor citado observa muito bem –, pois é este exercício continuado que promove as rupturas dos campos e garante, ao mesmo tempo, uma continuidade ativa à qual são referidas todas as manifestações. E se a análise tem aí uma função eminente, não é por instaurar esse movimento continuo que, de outro modo, não existiria. Ela o esposa, afirma-o, e não cessa de recordar, por meio da escuta flutuante e da intervenção conseqüente, a ética originária que o anima, ao redescobri-la de novo, a cada vez, nos lapsos, nos sonhos, na vida cotidiana, no amor. Repetimos: o saber pulsional decide pela direção da análise, e se o analista assim mesmo a dirige, é em virtude de sua escuta, dedicada a ouvir a pulsão. E por isso a psicanálise não é uma ciência da análise, mas uma ciência da vida, nos dois sentidos do genitivo latino (objetivo e subjetivo). Sim, o campo pulsional é igual ao campo analítico, o analítico esposa o pulsional, são uma e mesma coisa, mas o pulsional precede o analítico. Por uma razão muito simples: a análise é uma de suas invenções. A propósito: as concepções de Herrmann sobre a análise parecem ignorar o ponto de partida da mesma. Com sua “casa” e seu “homem” psicanalíticos, feitos sob medida para não se incorrer na ilusão da objetividade, pois também aqui o método forjaria seu objeto 103, Herrmann parece desconhecer que, desde o início, a existência da psicanálise, assim como de cada análise particular, é autorizada pelo real. Por isto não é o método, e sim a ética analítica que esclarece o procedimento. O método é apenas o modo adequado de expressão ética. Daí a questão essencial relativa ao procedimento recair sobre o desejo do analista – por não se tratar, justamente, de um problema metodológico ou técnico. Se a questão se resolve 102

“(...) Existem alguns mecanismos que asseguram o sujeito nesses trânsitos vertiginosos. O mais básico, e também o mais misterioso, é o já mencionado sentido de imanência. O sentido de imanência, para nós, é tãosomente aquilo que assegura que meus pensamentos e emoções são da minha autoria, provêm do meu psiquismo. Sua origem é difícil de precisar, pode ser constitucional ou adquirida, com maior probabilidade deve combinar os dois componentes, porém é algo constatável empiricamente...” Introdução à teoria dos campos, op. cit., p. 154. 103 “(...) a livre associação é manifestação do vórtice basal de longa duração, que acompanha o processo analìtico. Não é uma condição da análise, mas um dos seus efeitos”. Idem, p. 206.

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na altura do desejo, deixa de haver problema de método ou de técnica; e se há, é certamente um problema menor. Estamos num campo diferente do campo científico tradicional. Foi preciso uma redefinição das condições do saber para que a psicanálise alargasse o círculo da ciência e aí se incluísse – com todo o inconsciente e sua ética extemporânea. Não foi sem uma razão profunda, ligada a uma visão renovada da ciência, que Lacan lembrava o quanto a pureza de alma do alquimista era essencial ao procedimento e aos seus resultados. Psicanálise: ciência do singular, isto é, de uma vida que se pronuncia em nome de sua própria ciência. Mas não é isto, afinal, que diz Hermmann, com seu real-produtor? A questão é se a análise, requisitada pelo real, dirige-se efetivamente a ele, ou seja, se cumpre com a sua destinação, orientando-se pelo desejo originário que – como soube ver esse autor – é desejo do real. Daì sustentar que “o desejo humano deseja o mundo humano, o real” 104, é um passo menor, pois seria preciso explicar o que se entende por mundo e por humano. O mundo humano é a Cultura, em sentido amplo? Conforme dissemos anteriormente, é a arte a fonte da cultura, e não o inverso. Isso é o nódulo e a essência do que formulamos até aqui. E qual é a fonte da arte? Por se deter no meio do “caminho do campo”, a investigação deixou inexplorado o conceito de pulsão e, logicamente, a pulsão mesma, enquanto princípio ativo e prática constante – o ponto de vista do inconsciente. “Vem daì que falar abstratamente de instintos, impulsos ou „pulsões‟ como fonte do desejo, seja perfeitamente inócuo, caso não possamos identificá-los no fluxo de representações, nas idéias que vão se sucedendo na situação analítica. Libido ou Tânatos e qualquer outro fundamento hipotético do desejo não fazem parte do consultório, sendo reificações do psiquismo” 105. É preciso apurar o entendimento, pois as idéias e representações que se sucedem em uma análise são indicadores de uma atividade pulsional, e as pulsões de vida e de morte, enquanto conceitos práticos por excelência, são medidas clínicas – tanto no sentido das atitudes quanto das mensurações (os graus de exercício) – e determinantes éticas que decidem pela direção da análise. Não se deve esquecer, para uma apreciação fecunda desses conceitos e de sua enorme plasticidade, que a pulsão é o seu próprio critério de avaliação, sua própria medida. Como dissemos no início, o saber pulsional rege o entendimento teórico e clínico da psicanálise. Aliás, o esforço de Freud vai claramente nesse sentido: ao tratar a pulsão sob o aspecto fisiológico, como meio de estabelecer, por aproximações, um novo campo, um novo conceito, ele a concebe segundo 104 105

Idem, p. 43. Idem, p. 45.

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traços que serão válidos não apenas para o âmbito da fisiologia (nem se pode dizer “fisiologia da pulsão”, posto que ela não é fisiológica), mas também para os demais campos (psicológico, metapsicológico...). A ineficácia da fuga motora (como protótipo da fuga aos estímulos) frente ao estímulo pulsional e, por conseqüência, o caráter de força constante desse estímulo, tais são os traços ou indícios iniciais da pulsão, suficientes para garantir, como signos objetivos e realistas, a distinção entre mundo interno e mundo externo. É um dos meios freudianos de situar o eu-real (real-Ich), fazendo-o contracenar com o eu-prazer e o eu-realidade, constituídos por regimes e signos distintos do pulsional 106. Ora, no início do artigo metapsicológico O recalque, Freud retoma aqueles traços iniciais num enunciado que passa a valer para o plano psìquico: “Se se tratasse do efeito de um estímulo externo, o meio de defesa mais adequado contra ele seria a fuga. Tratando-se, porém, da pulsão, a fuga não tem qualquer valia, pois o eu não pode fugir de si próprio” 107 . Como é fácil presumir, esta formulação se estende e se aplica igualmente a uma dimensão ética, onde a força constante (konstante Kraft) alcança sua plena incidência como prática constante. É ainda a retificação das relações com o real que pensamos aqui, compreendendo a verdade pulsional e o sentido clínico que lhe atribuímos. Sim, a pulsão de vida é dada, mas ela precisa ser exercida – em que grau, em que altura? O que temos dito, seguindo Lacan, é que a condição ética ou sublimatória integra e subordina a si as demais condições da experiência humana. É ela, portanto, que esclarece a direção da análise.

106

O eu-prazer se constitui pela lógica de expulsão do que causa desprazer e de introjeção do que causa prazer, de maneira que o expulso, que pode ser inclusive a própria pulsão, constituirá o mundo externo, isto é, o não-eu, o estranho e o mal. É claro que esta distinção é ficcional e narcisista, e conta com o recalque. O eurealidade se funda na distinção entre, de um lado, a representação e o mundo subjetivo e, de outro, o objeto real e o mundo externo. O teste de realidade, seguindo o fio da representação, buscará o reencontro do objeto. O eu se liga agora à representação como tal; torna-se subjetivo – a ficção é reconhecida. No caso da distinção pulsional, o critério é real: ineficácia da fuga, força constante (o lugar da atividade). Curiosamente, Lacan parece não ter levado em conta esta distinção, e pensou o eu-real apenas como totalidade do sistema nervoso. 107 Obras completas, op. cit., vol. II, p. 2053.

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O SENTIR, O SABER, O SENTIDO Maçã cheia, pêra e banana Groselha... Tudo isso fala Morte e vida na boca... Eu pressinto... É o que se deve ler na fisionomia de uma criança, Quando lhe sente o sabor. Vem de longe. Não se torna aos poucos sem nome em vossa boca? Aonde antes estavam palavras, correm descobertas Surpreendentes que se libertam da carne do fruto. Ousai dizer o que chamais de maça. Essa doçura que só se concentra Para, instalada suavemente no sabor, Tornar-se clara, vígil e transparente, Ambígua, ensolarada, terrena, daqui -: Experiência, sensação, alegria -, abundantes. 108

Além da representação O que é preciso, então, para elucidar o prisma pulsional? Um primeiro passo foi identificar a pulsão ao dizer. Agora convém introduzir, no tratamento da pulsão, uma idéia renovada de sentido. Por intermédio destas duas operações, assimilando a pulsão ao dizer e reconhecendo nela uma experiência de sentido, transpõe-se a barreira da representação em direção à práxis (direção da análise), inclinando-se o pensamento à vida. A pulsão se torna praticável. Pode-se indagar ainda uma vez por que é preciso transpor o campo da representação, e a resposta será simples: a pulsão não é um objeto nem a imagem (representação) de um objeto; não é tampouco um sujeito, se ele não sabe o que diz. Não se trata de buscar uma representação da pulsão na origem, pois na origem ela se apresenta como aquilo que ela é – a diferença em pessoa. Os procedimentos da representação são inadequados para pensar e afirmar a diferença. Isto não impede que ela seja passível de experiência direta. Se houvesse uma teologia analítica, sua fórmula derradeira seria eu e a pulsão somos um. Se, por um lado, a idéia de não-senso, enquanto ponto de partida e ponto de chegada, é liberadora e abre o campo das significações ao imprevisível, à criação, por outro tende a localizar o sentido no nível da representação, separando a subjetividade do real. Com isto não se foi além da 108

Sonetos a Orfeu, (parte 1, 13), op. cit., p. 45.

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segunda distinção freudiana entre mundo interno (de representação, subjetivo) e mundo externo (objetivo, real). O não-senso é uma passagem, abre um campo, mas a consistência desse campo e o esclarecimento do não-senso são indissociáveis de um sentido pulsional 109. Ali onde aparece o não senso, anuncia-se o sentido pulsional; por isto as formações do inconsciente como o lapso, o sonho ou o sintoma só encontram sua decifração adequada sob o ponto de vista da pulsão. O teor de não-senso, no entanto, se desloca; é sempre o índice de uma transposição de fronteira. Como é possível bem-dizer sem ouvir, sem ver? Mas se temos olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, como diz o Evangelho? Localize-se a questão do exercício pulsional: a linha de sentido evoca o sentir, o ouvir, o ver, estar vivo, acordado. Freud falava em pulsão sexual e acertava o alvo, pois o sexo é saber, sabor, gosto. Mas foi para encadear o sentido das narrativas que Lacan inventou o objeto a, sua eminente descoberta. Como o sentido e o objeto a se articulam, e o que isto tem a ver com o sentir, o acordar? No filme Esse obscuro objeto do desejo, de Buñuel, duas atrizes fazem, alternadamente, a mesma personagem, à qual o sujeito apaixonado nunca tem o acesso esperado. A evasiva, a escapada, determinam o desenrolar dos acontecimentos. As cenas diferem e, no entanto, tudo se repete. A mulher que invariavelmente foge no último momento é tão essencial, tão decididamente o objeto cobiçado, que surpreende o fato de não precisar ser sempre a mesma. É evidente que o sujeito dorme, hipnotizado por uma idéia. Esse truque de Buñuel alcança, por vezes, o espectador, que pode passar boa parte do filme, e até o filme inteiro, dependendo de sua vulnerabilidade à sugestão, sem perceber que são duas atrizes e não uma. Ora, esse “obscuro objeto” tanto hipnotiza como faz acordar. Ele remete à diferença e à sua repetição, ou seja, à pulsão em pessoa 110. É verdade que é só no âmbito da sublimação, em virtude de seu caráter extra-pessoal, que a existência do outro, enquanto sujeito de desejo, passa a ser devidamente considerada. Quando Lacan afirma não existir relação sexual porque não existe o saber do outro sexo, porque esse outro gozo é impossível, assimila ainda uma vez o saber ao sexo, como desde cedo Freud vinculou a curiosidade infantil às pesquisas sexuais. A razão disto parece simples, embora, por motivos óbvios, 109

É ainda uma aproximação tímida de Lacan pretender que o saber da análise seja de não-senso, e que o gozo do sentido se circunscreva apenas ao campo do simbólico e do imaginário. Digamos que o saber da análise seja de não-senso por conta da abertura analítica; ora, é justamente essa abertura que faz – do ponto de vista pulsional – todo o sentido. Um estilo, por si próprio, faz sentido. E nada faz mais sentido que o real. É claro que é preciso ter presente o que se entende por sentido e por real. Adiantemos a fórmula de que o sentido real não é um significado, ou uma explicação, mas uma orientação no tempo. 110 “A diferença e a repetição só se opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não nos faça dizer: „A mesma e no entanto outra‟.” Proust e os signos, op. cit., p. 49.

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nem sempre esteja disponível à consciência: na origem, todo o saber é da diferença, saber do vivo, e por isto coincide com uma atividade imanente. Já o auto-erotismo era isto, experimentação e gozo da diferença. Fineza de Freud ao distingui-lo do narcisismo, que se define pela prevalência da imagem, pelo regime da semelhança e do mesmo. Até onde se levará a indagação sobre o gozo sem inscrevê-lo na ordem do saber? Uma tal ordem não se refere apenas a um campo, mas a uma ordenação do que é primeiro, originário, e do que é secundário e derivado. O gozo não serve para nada, diz Lacan em Mais, Ainda. Eis uma proposição inteira, acabada. Sim, é isso. Mas com que esmero se fez do gozo a coisa mais enfadonha no campo do conhecimento! E devido a quê? Ao fato de não se ter aliado o gozo ao conhecimento. E no entanto a psicanálise não é senão esta aliança. Ao contrário do que se presume nos meios psicanalíticos, gozo e desejo não são incompatíveis, se o gozo for o do saber. É o único caso, mas é o caso originário. A vida, em seu ponto mais aguçado, é luz. Mas o gozo é inútil... Seria no mesmo sentido em que a obra de arte é inútil, como queria Oscar Wilde? Mais uma vez, a resposta é simples: ele não serve a nenhum uso porque antecede todos os usos; não se deixa sujeitar, subjugar. É neste sentido, precisamente, que implica uma dessubjetivação. Se formos muito rápidos e, conforme a tendência dominante, só concebermos o gozo como redutível ao lust-Ich (o que se faz muito freqüentemente), ou como um estado out of control e, no limite, como uma espécie de pântano mortífero, perderemos de vista seu nódulo ativo – é a nível desse nódulo que se decidem todos os usos. Por isto não é passividade e sofrimento, Coisa e Morte, mas condição ativa – o gozo é o ouro, o sol desta condição. Cabe insistir ainda na natureza desse conhecimento gozoso: é um conhecimento intuitivo, para dizêlo à maneira de Spinoza e de Bergson 111, acentuando-se o sentido que adquire neste último de ser uma direção contrária à que é ordinariamente adotada pela inteligência, voltada para a utilidade e o domínio prático da matéria. Conhecimento, portanto, que não serve para nada; diríamos contemplativo, 111

É claro que a “ciência intuitiva” de Spinoza, nome dado ao terceiro grau do conhecimento, ou seja, ao conhecimento das coisas singulares e de Deus, não corresponde ao método intuitivo de Bergson; não se trata, absoltamente, de sugerir a mesma espécie de conhecimento. O ponto em comum, no entanto, diz respeito ao que se pode chamar de um conhecimento “direto”, seja de Deus, da Vida, ou ainda do Tempo. Pensamos, aqui, na expressão de Deleuze para considerar, a propósito do cinema, a imagem-tempo, isto é, o que ele denomina de ”imagem direta do tempo”, distinguindo-a da imagem-movimento, que faria do tempo uma apresentação indireta (cf. Deleuze, G., Cinema II - imagem-tempo, Brasiliense, SP, 2005). Sobre a intuição como método em Bergson, cabe lembrar ainda que não se trata, de modo algum, de um sentimento, de um pressentimento obscuro, mas do que ele chama de “precisão” em filosofia (Cf. Deleuze, G., Bergsonismo, p. 7, Editora 34, SP, 1999). Está longe, portanto, de ser um saber de natureza “instintiva”, “feminina”, desprovido de lógica ou de razão. O instintivo e o feminino estão compreendidos em sua razão superior, o que é muito diferente.

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não fosse o vetor ativo em que se resolve como potência de avaliação (afeto). Eis um ponto que exige o maior discernimento, pois o caráter desprendido desse saber não exclui seu valor prático, não retira a importância de sua incidência na vida real. Na verdade, a vida real está na altura desse saber desprendido. É ele que decide pelo valor dos valores, é ele o ouro da condição ativa. Seja um exemplo literário, extraído da vida real. Quando T. E. Lawrence reflete sobre o interesse que haveria em avançar, conforme os objetivos já traçados, sobre Medina, ponto alto da revolta árabe contra os turcos, torna muito evidente, como só um autor brilhante e profundamente sensível saberia fazê-lo, que a ordem do saber se desdobra em planos, até o estágio mais desprendido. Esgotado com a longa e áspera viagem, doente, recolheu-se dez dias em uma tenda, a fim de se recuperar. Sofria, escreve ele, “de uma fraqueza física que fazia meu ego animal se esconder, até que a vergonha passasse. Como sempre, em tais circunstâncias, minha mente ficou bastante lúcida, os sentidos se aguçaram. Comecei finalmente a pensar...” Até então prevalecera a necessidade da ação imediata, de modo que os líderes da revolta estiveram agindo, no geral, instintivamente, segundo as metas já estabelecidas, sem se perguntarem realmente o que queriam ao final de tudo. Lawrence observa que o abuso do instinto, “sem base no conhecimento passado e na reflexão, se tornara intuitivo, feminino (...). Assim”, continua ele, “naquela inação compulsória, procurei a equação entre a leitura de livros e meus movimentos. Passei intervalos entre os sonos e sonhos irrequietos a sondar nosso presente” 112. Um dos resultados práticos das inquirições filosóficas e estratégicas sobre a guerra em geral e a revolta árabe em particular, conjugadas à responsabilidade do escritor no conflito, foi a conclusão de que Medina, em face dos acontecimentos mais recentes, já não apresentava o menor interesse. O intuitivo e feminino que Lawrence menciona não corresponde ao que se poderia chamar legitimamente de intuição à maneira bergsoniana, muito mais próxima do pensar que nasce e se desenvolve naquelas condições de “inação compulsória”. Logo, não falta a esse pensar lógica e precisão, muito pelo contrário. Mas não é da lógica que ele surge, e sim de uma reversão no pensamento, a contra corrente do mecanismo automático da inteligência e dos chamados instintos. Começar a pensar, já dissemos, é começar a viver, mas no ponto em que o viver é “sondar nosso presente”, em uma espécie de visão direta do tempo. O que se quer realmente, e como os tempos se encaixam, afinal, dentro do tempo? Desse ponto de vista, o tempo de conquistar Medina passou, sob o tempo maior da 112

Lawrence, T. H., Os sete pilares da sabedoria, p. 169, Ed. Record, 3ª edição, RJ.

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liberdade árabe. Mas T. E. Lawrence retoma mais uma vez o tema, insistindo no caráter feminino da intuição, e mais uma vez toca no âmago da questão, tanto da pulsão como do pensamento, precisamente ali onde existiriam atos de decisão em jogo, com seu poder de integração e de superação: “Os lìderes árabes possuíam um instinto aguçado, confiavam na intuição, o que sempre nos deixava aturdidos. Como mulheres, eles compreendiam e julgavam rapidamente, sem qualquer esforço, muitas vezes irracionalmente. Quase que parecia que a exclusão das mulheres na política oriental fora compensada com a transferência para os homens de seus dotes específicos. Uma parte da rapidez e sigilo que nos levaram à vitória pode ser atribuída a isso, ressaltando-se a característica excepcional de que, do princípio ao fim, não houve nada de feminino no Movimento Árabe, exceto as camelas” 113. Como diz o autor, “instinto aguçado, confiança na intuição” são dotes femininos; a pulsão, porém, e muito especialmente sob a forma do pensar, é uma força de apropriação, é o aguçamento do instinto e a introdução das potências da vida na lógica e na razão. Ora, essa apropriação se dá por uma série de escolhas, por uma série de decisões verificáveis ao longo do tempo. Há nela uma constância processual, uma direção que se aprofunda. É preciso tornar-se feminino e, ao mesmo tempo, guerreiro, confiar na “intuição”, adotar esse poder estranho, exercê-lo como recurso próprio e incliná-lo à vitória. Mas não se deve esquecer que tal exercício já é essa inclinação e também a vitória. De que modo esse conhecimento atua na vida para que não seja apenas platonismo redivivo? Já o dissemos, é preciso que ele seja a própria vida. Subjetividade da vida, vida interior, Desejo. A vida humana ganha consistência e alcança sua própria altura com a ciência que adquire de si. Em outras palavras, só é possível uma noção clara do que é a vida quando as suas condições originárias são reconstituídas. Tal reconstituição, porém, é inteiramente singular, como era, aos olhos atentos de Lawrence, a revolta dos árabes. Se existe uma indeterminação de saída, ela não implica que se possa escolher qualquer direção que seja, como se todas as conseqüências fossem equivalentes. A precisão, aqui, é a exigência e a garantia de uma prática constante, consistente e sem modelo. Pulsão, tal é o nome da precisão em psicanálise. Daí a necessidade de se distinguir dois aspectos desta precisão. O primeiro é que a liberdade de escolha ou a indeterminação do querer não exclui o discernimento das vias que permitem um exercício ainda mais apurado dessa mesma liberdade, bem como daquelas que, mais cedo ou mais tarde, irão enfraquecê-lo, torná-lo inconsistente e inviabilizá-lo. Pelo 113

Idem, p. 192.

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contrário, esse discernimento é inerente à liberdade do querer. É o que permite abordar o segundo aspecto da precisão analítica, pois se é verdade que o saber da diferença de que falamos há pouco, referindo-nos ao sexo, é imediatamente prático – para que serve, como funciona, como se goza dessa e daquela coisa, desse e daquele movimento? – também é verdade que esta praticidade muda de plano quando se considera a espécie de uso que se fará de tal coisa, de tal movimento, e isto ainda em nome da diferença. Para irmos adiante diremos agora: em nome do que faz diferença. A diferença se tornou interna, e a pergunta passa a ser então pelo sentido de tal coisa e tal movimento a certa altura do tempo ou da duração (para usar uma expressão cara a Bergson). O que faz diferença todo o tempo não condiz com qualquer caminho; pelo contrário – e nisto consiste o segundo e mais profundo aspecto da precisão –, diz respeito a um único caminho, o único pelo qual se pode alcançar uma auto-determinação 114. É devido a esta singularidade absoluta que a autodeterminação é de natureza ética. “Sempre sei, realmente. Só que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar, como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possìvel da gente é que consegue ser a certa” 115. A palavra-valise jouissance, empregada por Lacan e traduzível por “gozo-sentido”, compreende um conjunto de semas que explicitam a noção de sentido pulsional, malgrado a limitação de seu uso ao conjunto do simbólico e do imaginário nas digressões lacanianas: je jouis, j’ouis, oui, sense... Eu ouço significa também eu obedeço, isto é, ajo de acordo, pratico, digo, afirmo. Eis aí, inclusive, uma maneira adequada de se conceber o saber prático da análise – a escuta flutuante e suas conseqüências. Esse saber, gerador de análise e de analista, faz sentido em si mesmo, o que não exclui que seja também de nãosenso. Não é difícil compreender porque insistimos na idéia de um sentido pulsional: o caminho do desejo não é qualquer caminho. Mas, o não-senso não sugere a dispersão e o caos? Já dissemos que o não-senso decorre de que

114

Pensamos essa “auto-determinação” a partir do processo pulsional, e não a partir de um eu, de um sujeito da consciência. A auto-determinação pulsional se encontra assim na mesma linha do que designávamos de “auto-afeto” em Spinoza, ou ainda do que Deleuze-Guattari chamam de “auto-movimento expressivo”, reportando-se à constituição estética de um território. 115 Rosa, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas, p. 452, Nova Fronteira, RJ, 1986.

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aquela “pauta”, aquele caminho único, não recebe explicação de nenhum outro saber. Repetição do mesmo e repetição da diferença Em “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, os convidados sofrem uma degradação moral rápida, irresistível, à medida que se vêem presos de maneira insólita à tensão de irem embora, na hora propícia, e permanecerem onde estão, sem saída, durante um tempo angustiante que não se escoa; repetem a impossibilidade até o ponto de repetirem a possibilidade, e isso por meio de um retorno cênico às condições iniciais, ao reconstituírem as posições e atitudes relativas ao instante em que ainda podiam sair. De fato, como observa Deleuze, as duas repetições, a que condena e a que salva, se confrontam como as pulsões de vida e de morte. Que a repetição salvadora passe pela sexualidade, que a virgem se ofereça em sacrifício ao Deus-anfitrião e este ato restaure um élan vital, traga de volta o instante de sair, a liberdade de ir, o futuro, é o que se deve atribuir à força constante e originária da pulsão – ao que faz diferença todo o tempo. Quer dizer, todo o tempo havia a eventualidade dessa solução, ou melhor, desta escolha, insistindo como abertura ou saída não encontrada, passagem virgem, linha de fuga ainda ignorada, inconsciente. Que a cena se repita na igreja, onde os personagens acabam de comemorar sua liberação, e se repita de um modo ainda mais alarmante e intenso, situa-nos diante de uma espécie de dilema pulsional, de uma escolha entre a repetição do mesmo e a repetição da diferença. Mas por que o dilema? 116 A repetição da diferença como caminho do saber, gai-savoir, se faz certamente com experiência, degustação, avaliação, sempre sob o regime superior da indeterminação e seu correlato, o discernimento. É um caminho, uma direção que se define tanto pelo sentido como pela constância: exige uma determinação do desejo. Uma análise, aliás, serve para garanti-la, e isso graças ao desejo do analista, já que o do sujeito está em questão. No filme de Buñuel, a repetição do mesmo é uma escolha menor, uma escolha pelo desconhecimento, pelo fechamento do inconsciente, com todos os fenômenos 116

Será do mesmo gênero das questões formuladas por Lacan quanto à alienação e à separação, onde se coloca igualmente em cena uma escolha, como a que deve decidir pelo ser ou pelo sentido, a bolsa ou a vida? O seminário, Livro 11, op. cit., p. 201. É notável que Lacan não tivesse chegado à decisão originária, relativa às duas repetições, isto é, à vida e à morte, se as operações em jogo remetiam necessariamente às pulsões primordiais. Talvez elas ainda não tivessem adquirido o sentido de uma prática, de serem operações por excelência. A operação de reunião, promovida pelo traço unário, unifica pela alienação e faz desaparecer o vivo sob o representante da representação, enquanto a separação reabre o campo do inconsciente ao reintroduzir a falta (isto é, a diferença) no sujeito e no Outro. A reabertura desse campo é um sopro de oxigênio existencial. Ora, o primeiro processo era o de identificação, o segundo de castração, cujo lado direito é a experiência positiva, real, da diferença, isto é, do saber pulsional.

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de degradação resultantes de um processo que estanca, reflui sobre si e perde a direção, como se deslizasse para dentro de um pântano: a falência progressiva dos códigos culturais e éticos, as fixações perversas, as violências mesquinhas, os maus hábitos, o recurso esotérico ao nome impronunciável, pedaços de animais mortos, as insinuações escatológicas, tudo parece descer a um fundo negro indescritível: pulsão de morte. Em contraste com a integridade e a pureza dos animais vivos, o filhote de urso, os cordeiros. Ao longo de um tempo asfixiante, mortal, os convivas, um após o outro, abrem as portas de um armário (uma delas pintada com a figura de um anjo, outra com a de um santo), fecham-nas atrás de si e entram na escuridão: ali dão curso às necessidades fisiológicas, têm encontros amorosos e até recolhem o cadáver de um deles. Desde o início do banquete a má repetição (por exemplo, a repetição do brinde, como um gesto sem memória, automático e vazio, fora de contexto), as intrigas amorosas, a hipocrisia burguesa, as superstições e os misticismos já anunciavam o pântano. Não se trata de uma queda no campo originário das pulsões, como interpretava Deleuze 117, mas de uma abstenção progressiva de sua prática que, assim, se torna cada vez mais obscura e irreconhecível. O que se passa nos bastidores, a perda da virgindade, o sexo, o saber, o deslanchar da vida, tal é a saída reencontrada. Se é verdade que Buñuel concebe uma salvação pela fé à maneira de Kierkegaard, não deixa de vislumbrar uma saída pelo saber, mesmo que ainda o faça obscuramente (deflorar = conhecer no velho sentido bíblico). O surpreendente da repetição em Buñuel é que ela exprime um nódulo da descoberta psicanalítica: depois de uma volta inteira, a questão primordial do desejo se recoloca e torna possível um novo lance de dados. Não há, porém, um modelo, o dilema existencial que se repete é singular, e o sujeito deverá achar uma solução inteiramente própria, sob pena de não encontrar a salvação ou a cura. Por este mesmo motivo não se pode, rigorosamente, falar em cura, mas numa infinidade de curas. Mas por que é tão comum preferir o não-saber e a repetição mortal? Por que, quando tudo parecia indicar a sua superação, recai-se nela, à maneira da reação terapêutica negativa descoberta por Freud, derradeira resistência a uma cura já eminente? Freud respondia com a idéia de um masoquismo primordial e, finalmente, de uma pulsão de morte atuando como obstáculo à recuperação. O que se verifica aí, senão a ausência do saber, isto é, ausência de sua prática? Mas ouve-se em análise que o saber adquirido nem sempre tem o poder de salvar das crises de angústia e da recaída nos sofrimentos neuróticos. Mesmo evocando o que já se sabe, fica-se às vezes impotente para administrar uma 117

Cinema – A imagem-movimento, op. cit., p. 157.

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conhecida crise. O que se passa? É a falta de fé? É o desespero humano pela ausência da fé, como pensava Kierkegaard? É a impotência do saber quando se trata da passagem ao ato, quando se trata do real? Eis um ponto crucial: em que consiste a virtude, a força do saber? É evidente que se deve distinguir este saber dos saberes convencionais, sempre optativos, no sentido de que exercêlos ou não é uma questão secundária do ponto de vista da existência; não, talvez, da existência física, mas da existência psíquica ou espiritual. É notável que se possa afirmar que só o sujeito do inconsciente existe e ao mesmo tempo perguntar: como ele chega a existir? A pergunta e a afirmação desdobradas, esmiuçadas, vividas, praticadas, é nisto que consiste o saber do ponto de vista analítico. Mas, como no caso da fé em sua relação com o pecado, segundo a dialética vertiginosa de Kierkegaard, o saber aqui se relaciona com a falta, não a falta de um objeto, pedra de toque de todo o esmero lacaniano, mas diretamente com a falta ética. Por isso o saber que interessa à análise é uma exigência (Dräng), envolve um custo, uma ascese difícil, rara. Se não se constituir em prática, ele se apaga. Sua consistência é ética, como é a do inconsciente. Mas não se deve pensar que a exigência de que falamos é um fardo, uma imposição superegóica. É uma exigência do real, nos dois sentidos de que o real requer e de que o desejo, em última instância, o quer – isto é, quer o real e o que ele quer. É por fim um alívio, dizia Freud, deixar cair a máscara. Não há realmente desejo, ou seja, desprendimento, senão em última instância. Nossa fórmula: ama o real como a ti mesmo. O fechamento do inconsciente deve-se sempre a um objeto oclusivo, como Lacan soube mostrar. Este objeto ficcional, narcísico, seja ele qual for, tem um caráter ideal, pois promete o que não irá se cumprir, promete o impossível, ou seja, o fechamento do inconsciente de uma vez por todas. Por isso é o núcleo da fantasia. Esse objeto pode ser alguém, um estado de coisas, um conhecimento, uma teoria. O curioso é que ele funciona essencialmente como efígie, em ausência, não importando se figura a fantasia da possibilidade ou a melancolia da perda irremediável – era sempre ele, tudo dependia dele, deveria ser ele. Abre-se mão da perspectiva ativa, pulsional, em nome dos favores do objeto, até o grau de idealização do que seria viver se ele ainda existisse ou se algum dia tivesse existido. O grau de idealização desses objetos é proporcional ao abandono da perspectiva ativa. Ora, esta perspectiva é a do saber, é seu alfa e seu ômega. Assim, a abertura do saber, mesmo sob o abandono e o esquecimento, se renova constantemente. Ou seja, o real insiste através de suas formações, até o ponto de receber em psicanálise o nome de pulsão. Isso significa que, mediante a pesquisa freudiana, o real e o saber encontraram seu ponto de união. Não há mistério nisto, uma vez que essa união se comprova com o menor dos fatos analíticos. É preciso apenas 83

estendê-la, torná-la processo, instituí-la como prática constante. Não é assim tão fácil, tão simples e rápido – pode alguém objetar – estar de mãos dadas com o real e o saber, se é que isto é possível. Mas este caminho se instaura a cada vez como repetição da diferença ou do que faz diferença, seja no lapso ou no mais cristalino dizer, sempre que se renova uma posição de desejo; todo o tempo, de modo aberto ou fechado, se repõe a questão dessa união rara, remota e até impossível, se preferirmos assim, porém não menos insidiosa em sua presença obscura, em sua não-presença que é, sem a menor dúvida, a razão última das noções de inconsciente e pulsão. “Sempre sei, realmente”. Por que então se escolhe um objeto idealizado em detrimento de uma perspectiva ativa? O objeto idealizado equivale a um repouso, a um término, à morte, mesmo sob a forma de uma experiência de plenitude, a Coisa enfim encontrada. Mas não há término, nem repouso, nem morte, e a Coisa é a própria pulsão, seu próprio exercício. Por isso, tudo, na experiência do sujeito, oscila entre pulsão de vida e pulsão de morte, entre a boa e a má repetição, a primeira como exigência constante – Freud dizia “tensão” – e a segunda como relaxamento da exigência, o que se caracteriza, de modo geral, como gozo, e, dada sua inclinação cada vez mais irresistível de ir ao fundo, como gozo mortífero. É por isto que às vezes se evoca este ser raro que é o santo, um saint-homme, ou o Buda de sexo indeterminável 118, para dar ao gozo um outro destino, tanto na experiência quanto no entendimento – no caso, o entendimento analítico. A saída medíocre de se propor o prazer como alternativa ao gozo reedita simplesmente o recalque com boa consciência, a menor tensão, a menor exigência possível, o meio termo, o estado morno que as Escrituras vomitam, sem ousar se decidir pela pulsão, pelo seu saber cruel e suas crescentes exigências, como se estas não abrissem mais as portas do céu, e assim não se precisasse mais ouvi-las. A escuta freudiana constatou, porém, que as exigências pulsionais não ficam em silêncio, não importa se são ouvidas ou não. Ainda que Freud apenas distinguisse formação de ideal e sublimação, não deixando de observar que um excesso de idealização inibe a prática sublimatória, podemos afirmar que são processos inconciliáveis. Assim, um saber da insuficiência e da falácia daqueles objetos ideais não se resolve positivamente como práxis, senão como uma práxis sem direção, à qual faltam agora os ideais norteadores. De que natureza então ele é? É apenas um saber da ausência, da supressão, da abstração e do nada, pois ainda incide sobre o ideal. É, justamente, um saber que não salva e não cura, saber da castração, da falta e do furo. Se o sentido era dado por aquele ideal, agora, sob o escrutínio 118

Cf. O seminário, Livro 10, A angústia, op. cit., p. 244 a 251.

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da razão, nada faz sentido. Nome para isto: niilismo, ou o que Freud chamou de “cessação da febre de viver”. Será o deslize para a fé o último recurso frente a uma razão pessimista, niilista? Ao saber que não salva, que inclusive condena, contrapõe-se a fé; ela pareceria insuficiente, porém, para fornecer uma saída constante, por ser exatamente a negação de um saber. Mas é este o motivo para que Kierkegaard evocasse a possibilidade do escândalo, como medida da fé, como medida de seu vigor. Frente ao saber especulativo, conceitual e idealista, Kierkegaard opunha a angústia do “indivìduo real” e sua resolução pela fé. Mas, com a psicanálise, o indivíduo real passou a ser ouvido de uma maneira nova, inusitada; é uma escuta que, por ela própria, constitui um saber renovado, um saber dos afetos, ativo, pulsional, com o poder de ultrapassar a saída pela fé, isto é, com o poder de curar. Mas a exigência nem por isto diminui, pelo contrário: não mais a posição da crença, em atitude heróica frente à possibilidade do escândalo, mas a firmeza do pensamento, o desejo esclarecido e a determinação de não abrir mão dele. Para uma visão superficial, a fé pode parecer mais difícil que o saber pulsional, e, no entanto, precisamente por ser um saber, e não uma crença, para a qual se pressupõe a ausência de apoio – é inclusive próprio da crença carecer de apoio –, sustentar o saber da pulsão enquanto saber é sem dúvida o mais raro e difícil, pois ele se apóia em si próprio. Isto significa – e aqui reside a raridade, a alta exigência – que esse saber não se distingue de sua prática, do mesmo modo que coincide com uma condição ativa originária. Vê-se assim como é inaceitável que se apregoe nos meios psicanalíticos uma espécie de fé no inconsciente, quando este é diretamente posição de saber. É evitando o saber, é no movimento de sua elisão, que os processos humanos se organizam em sintoma: a perversão consiste na renegação de um saber que tem por nódulo a morte, a castração; é, digamos, um exercício de fé de que esse centro vazio não existe, ou não é central, e por isso a fantasia é sua obra. Essa obra, no entanto, denuncia constantemente o seu sentido, que é o de recobrir aquele vazio e desviar-se dele. Mais de uma vez se viu nesse gesto de superação a origem das obras de arte. Existe, assim, uma forte tendência a se ligar a atividade artística à crença e não ao saber, que a faria soçobrar. É que se entende, via de regra, que o saber é o da castração e da morte, e não o da vida, o savoir-faire. O que avaliza esse entendimento? O que predispõe a ele? Uma sobriedade? Um realismo? Ou uma distância em relação ao campo pulsional, notadamente ativo e prático? No processo analítico haverá sempre – e em razão da pulsão – uma experiência de morte, de separação. Mas a experiência analítica não se esgota nisso. Se a análise for conseqüente e não seguir um roteiro meramente lógico, a separação consistirá, ao mesmo tempo, 85

em um processo de reunião ao campo pulsional, de onde, inclusive, emana o saber e a força da separação. Ao contrário do que se crê, sabe-se muito menos sobre a vida e a diferença que sobre a morte e a castração. Estas são o avesso daquelas, sua imagem invertida, e exprimem, como tais, a angústia monótona e cotidiana do narcisismo. Diz Lawrence a propósito do seu Cristo: “E o destino da vida lhe pareceu mais feroz e compulsivo até que o destino da morte. A sina da morte era uma sombra comparada com a fúria do destino da vida, a determinação do assomo da vida” 119. O saber se instaura, de modo geral, como o fracasso de um ideal e um ferimento narcisista, e por isso tem a feição da castração. Fala-se dos golpes que o narcisismo humano sofreu com as pesquisas de Copérnico, Darwin e Freud. É uma imagem do saber que se distingue progressivamente da imagem que o idealismo, de Platão a Hegel, fez dele. Assim não se vê mais que o saber possa engendrar um contentamento, exceto sob o ponto de vista dúbio do saber tecnológico, e deixa-se essa função à fé, ao espírito religioso. É preciso ter uma propensão spinozista ao conhecimento para reverter o sentido do saber – e situá-lo, por assim dizer, do lado direito. Acontece que esse lado direito é de uma exigência constante, uma konstante Kraft que favorece, na medida do seu exercício, uma intimidade progressiva com o devir. Em outras palavras, o saber não acomete mais como um fato (ou fatum) estrangeiro, como a morte que vem de fora ainda que venha de dentro; ele é exercido no interior do devir, e por isso ele se torna, e não cessa de se tornar, a subjetividade do devir. Não mais a experiência trágica de que isso, a vida, os acontecimentos me escapam e me fazem sofrer, me impõem a morte e a dissolução, mas a experiência restaurada do devir, ali onde a vida não pode mais ser ferida. O que importa, em primeiro lugar, não é exatamente o que se sabe, mas a condição de saber – é a isto que chamamos de pulsão. Sem dúvida a perversão é um não-saber – apesar do savoir-faire do perverso, tão próximo da sublimação –, mas um não-saber que escamoteia (eis o sentido do savoir-faire) o saber do ferimento e a angústia, os quais repercutem quand même ao nível da experiência subjetiva sob as formas da paixão, do impulso irrefreável, do objeto irresistível, do fascínio e da passividade. É devido à repercussão inconsciente do saber como sofrimento que as fantasias perversas se esclarecem pelos fins passivos: ser castrado, ser comido, ser espancado – e se alcance, como fez Freud, a idéia de um masoquismo primordial. Será essa versão extrema do masoquismo uma das derradeiras imagens do saber, isto é, da satisfação? A imagem que antecede o saber real? Seria instrutivo ler do início ao fim o salmo 22 de David, que 119

Lawrence, D. H., Apocalipse - O homem que morreu, p. 134, Companhia das Letras, 1990.

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começa com as palavras de desespero e abandono reproduzidas, mais tarde, conforme o relato bíblico, pelo Cristo crucificado. O que este tinha presente ao espírito naquele momento crucial só se pode avaliar com a leitura do salmo inteiro, que não é senão a glorificação de Deus e da vida eterna. Num contexto analítico, toda repetição malsã se caracteriza como resistência e renúncia ao saber e ao risco que ele envolve, ao perigo desconhecido que ele anuncia, talvez a destruição de um estado de coisas, a perda de um bem que a ignorância conservava (como tal), talvez a morte do sujeito, identificado àquele estado de coisas e àquele bem. Mas por trás dessas inquietações o saber convoca a exigências mais altas, as de firmeza e cuidado, a partir das quais, e somente a partir das quais é possível avaliar os perigos a que está sujeita a experiência de renúncia ao saber, o maior deles sendo a perda da alma, como se dizia antigamente, ou, nos nossos termos, da condição de escolha, que a análise deve propiciar e garantir. Firmeza e cuidado condizem com uma implicação ativa, decidida, especialmente com o mais perigoso dos bens, por meio do qual se dá testemunho de quem se é 120. O bem é proporcional ao perigo, exigindo o cuidado preconizado por Heidegger que, em termos analíticos, se esclarece como exercício ético do bem-dizer. E o saber, onde localizá-lo? Ora, ele é a noção da implicação ativa, da firmeza e do cuidado necessários a cada momento e, portanto, a noção do perigo; ele é também o testemunho (por vezes ainda a ser decifrado) de quem se é. Sem dúvida é um savoir-faire, mas desses que envolvem uma vida inteira. Um problema filosófico moderno encontraria assim sua solução – não mais a opção pela vida sem atentar para a questão da existência, ou a opção pela existência em detrimento da vida (Bergson ou Sartre do ponto de vista de Sartre), mas a confluência da vida e da existência ao nível da prática pulsional. A vitalidade de um processo, sua força existencial e o grau em que o saber inconsciente é praticado são uma única e mesma coisa. O que Lacan chamava de pulsação do inconsciente, abertura e fechamento, concerne à abertura do saber e ao seu velamento ou, mais que isto, à sua elisão, o que se denominou de divisão do sujeito, pois era esta, exatamente, a resultante do procedimento renegatório (“cisão do eu no processo de defesa”). Mas será preciso observar ainda que o abrir-se do inconsciente e a pulsão são uma única e mesma coisa? Não se deve esquecer que o saber do inconsciente não se encontra suspenso, à espera, inerte, ele existe em ato, é imediatamente um dizer, cujos graus diversos de realização, mas também de iluminação vão do dizer mais obscuro ao mais clarividente. 120

“Por isso foi (...) dado ao homem a lìngua, o mais perigoso dos bens (...), para que ele dê testemunho de o que ele é (...)” Hölderlin, F., Poemas, prefácio de Paulo Quintela, p. XXXI, Atlântida, Coimbra, 1959.

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O sonho de Isabel: sua filhinha estava junto à cerca de arame farpado e ela, dentro da casa, olhava pela janela, a mãe logo atrás lhe dizendo – o quê? Que a menina iria se ferir no arame... Não, não se machucaria, sabia o que fazer, ainda que houvesse algum perigo. Sem dúvida, Isabel é a criança do sonho. Desde o início tratou a filha de maneira diferente da que foi tratada, de modo que as inovações nos cuidados se reportam aos ensaios de relação renovada consigo mesma. Acredita cuidar bem de sua filha e se defende das dúvidas da mãe por meio de argumentos seguros, retirados de sua própria experiência; mas, em seguida e pelo resto do tempo é atingida por uma descrença total em sua capacidade para cuidar do que quer que seja, inclusive de si mesma. Sente-se aniquilada. No sonho aparece dentro da casa, à sombra da mãe. O que se passa? Ao invés do saber das próprias condições, o sentimento de nulidade. A história com a mãe é antiga e um episódio marcante sugere o modo como ela incide na vida de Isabel. Ainda criança, alegrou-se muito, certa vez, com uma festa da escola, especialmente pela presença dos pais. Na ida para casa a mãe se mostrou triste, inconsolável, pois tivera uma conversa com a professora e soube que Isabel faltava às aulas. Era o fim da alegria. Deprimir-se por ser a causa da tristeza da mãe e, assim, encontrar um meio de ser aceita por ela, de satisfazê-la, tornou-se mais importante que a conservação de uma Isabel alegre e aventureira (junto à cerca de arame farpado). A sombra da mãe desceu sobre ela. Se a tristeza da mãe a envenena, separado-a do que ela pode, é porque sua alegria adquiriu má consciência. Trata-se de uma operação de recalcamento ou, em termos nietzschianos, de uma transformação da força ativa em reativa. É o efeito de “afânise” 121 de que falava Lacan, aproveitando a expressão de Ernest Jones para indicar o caráter letal do significante binário, o representante da representação – é o desaparecimento do desejo. É, portanto, o modo pelo qual o sujeito cai sob o dito do Outro ou, em outras palavras, como sua existência sucumbe ao sistema do juízo. Essa queda ou capitulação não sucede apenas por uma disposição desfavorável das forças, tal como a impotência da criança frente ao poder dos adultos. Por importante que seja, a disposição das forças conta como um fator a mais no cadinho da alienação. É preciso incluir ali uma insegurança prévia, talvez alimentada pelo mesmo gênero de envenenamento, ou, mais precisamente, uma falha ética que, onde mais se exigiria firmeza, coragem, insinua a dúvida e a hesitação, a ponto de neutralizar a condição ativa. O amor, que não raro nutre a reação, pode ter nessa desistência ética um papel central. Claro, essa adesão ao inimigo não deixa de ser uma estratégia defensiva frente ao ambiente inóspito; por meio dela se organiza um “falso 121

Em medicina, esse termo designa o medo mórbido de perder a capacidade sexual.

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eu”, como diriam os analistas ingleses na década de 50, com a função de proteger o verdadeiro, ou, em nossos termos, a pulsão de vida. O falso eu é ainda uma invenção da pulsão de vida, e em nome dela. Mas é também suspensão de seu exercício e celebração da morte. Esse conjunto estratégico tem por efeito a afânise. O poder de avaliação se obscurece e, nesta mesma medida, o sistema do juízo se reconstitui. É um problema ético, não importando a idade em que ele se coloca, porque ele subsiste como não resolvido, repercutindo em todas as formações do inconsciente. Sim, houve uma solução, mas não aquela, a verdadeira, a pulsional. Não se pode afirmar, num caso assim, que havia uma solução melhor que a encontrada; o que se pode dizer é que ficou uma pendência afetiva, ética, existencial, produzindo efeitos ao longo do tempo. Um dia terá que ser revista, e essa aspiração insiste, todo o tempo, como índice da pulsão. O mesmo movimento que gera a alienação por identificação, por reunião (o papel do amor) – no caso à mãe, ao universo familiar e cultural – também torna a pulsão outsider. Já o era na origem? Desde a origem a pulsão é extra-territorial, estrangeira, cósmica. Além da cerca de arame se estende o campo, o cosmo. A reunião e a identificação, que deviam sustentar uma totalidade, uma unidade de experência, são afetadas por uma falha, uma falta, pois a existência se pronuncia alhures, como formação do inconsciente – o sonho de Isabel. O que preside ao sonho, o que em última instância o determina, é também o que promove a separação, conforme as impressões de estranheza e de não-senso que anunciam, de modo geral, a proximidade do campo pulsional. A escolha pelo sentido vacila na medida em que este se define pelo regime da identidade. Mas não chegamos lá no que diz respeito ao caso de Isabel. Neste vigoram ainda a alienação, os processos de reunião e de identificação e, por isso, quando se anunciar a alegria virá logo a tristeza como contrafação e inibição. O sonho, no entanto, revela um avanço no entendimento – por certo gradual (a casa, a cerca...), e indireto, por se aplicar à relação com a filha. Na interpretação é ela, é seu desejo, porém não exercido, não reconhecido por meio de uma prática efetiva. Não chegou à existência, ao dizer. Quando há pouco falávamos de um “dizer obscuro” devìamos acrescentar que é o dizer ainda não-realizado, correlato de uma existência nãoexercida. É claro que desde cedo a questão do desejo é de ordem ética. Afetado pela palavra materna em ocasiões como a da festa da escola, o humor de Isabel se tornava imediatamente sombrio, embora gazear aulas fosse a expressão de uma atividade exuberante: tendo finalizado agilmente o que ocupava ainda os outros alunos e não vendo mais nada a fazer na sala de aula, ensaiava movimentos inéditos, saía e pesquisava novos sítios, ousava ações mais excitantes e perigosas. Agora, diante das ocasiões em que poderia 89

exercer suas habilidades e experimentar movimentos novos, prazeres desconhecidos, ela se retrai, deprimida, procurando conservar-se nas dimensões do território materno e familiar. Como dizia Spinoza, o poder ama a tristeza. Isabel presume, talvez, que o território da mãe, com sua tristeza e suas palavras de censura, possa protegê-la dos perigos internos e externos, das pulsões e do mundo. Abandona assim a integração das pulsões ao mesmo tempo em que ignora, no sentido analítico, a linha superior da autodeterminação pulsional. Cada pulsão é uma apreensão do entorno, do mundo; cada pulsão é uma percepção e um afeto, isto é, uma valoração, uma avaliação parcial, uma concepção. Mas a pulsão de vida é a integração de todas as pulsões. É enquanto potência ética que ela integra as demais. Ou seja, a integração não se dá naturalmente, ela resulta de uma integridade ética – aliás, é uma e mesma coisa, apenas sem esta aquela não pode ser devidamente pensada. Uma integridade originária corresponde, por certo, à ética analítica de não se abrir mão do desejo. E nela reside o critério superior segundo o qual será considerada e finalmente julgada, para além do sistema do juízo, a diversidade dos pontos de vista da “rede subjetiva”. Deixando-se todavia enredar por aquele sistema, Isabel trai a si mesma. Ao contrário de Antígona, esquece o critério originário que nunca chega a ser escrito, que é eterno. Daí decorre o declínio, a tristeza, a morte. A relação de Isabel com o pai sofre de uma inflexão similar. Ela poderia exercer a mesma profissão do pai de forma mais “agressiva” – era assim que soava – e competente que ele, e por certo seria sua concorrente, se não encontrasse mais espaço em sua firma. Isto a inibe e neutraliza. Ir além dele é diminuir-lhe a importância, a prevalência. Eis a experiência de morte ou de castração e a sua recusa, a renegação, a père-version, com vistas a estancar o processo que, pelo critério do saber, culminaria naquela experiência. Mas o saber renegado reverbera em sentido inverso: é preferível castrar-se e morrer, tendência a que chamaríamos de masoquismo primordial e que se resolve, finalmente, como pulsão de morte. É preferível não saber, não viver. Essa atitude solidária parece garantir a conservação dos vínculos familiares, isto é, a conservação do mesmo – o narcisismo de ser amada segundo o sistema do juízo materno –, às expensas do saber pulsional. Seria um erro, no entanto, qualificar a pulsão de anti-familiar, pois o saber prático em questão também pode construir bases familiares favoráveis ao exercício da própria pulsão. Até se poderia dizer, a partir de um prisma analítico e pulsional, que é para este fim que existe uma família. Do mesmo modo, a pulsão não é, em princípio, contrária a uma tradição, dependendo do quanto essa tradição estrutura a viabilidade constante da expressão pulsional. 90

As realizações mentais, mecânicas e tecnológicas de nosso mundo não implicam em superioridade sobre as civilizações dos egípcios, dos caldeus, dos persas, dos etruscos, dos indus do Indo, se é verdade, como diz Lawrence, que “a cultura e a civilização se medem em termos de consciência vital” 122. Não é preciso dizer que as famílias contemporâneas estão hoje em dia muito longe de se organizar e de operar de acordo com esse princìpio “culto” e no entanto básico, o que não exclui que as crianças se ressintam da indigência cultural do seu ambiente. A linha de sentido pulsional não se distingue, portanto, de uma linha de entendimento superior, linha de tempo; e se esclarece aos poucos ou de um golpe como linha de destino, apreendida e enunciada pela divinatio analítica. Uma tal linha se transforma, ao longo dela própria, e por força do poder avaliador restaurado, em linha de experimentação, e a pergunta relativa ao sentido passa a ser – que uso se faz de tal coisa, para que serve, qual seu grau de importância numa estimativa renovada dos valores, tendo em vista o pressuposto daquele poder e a sua preservação em ato? Em todas as perguntas se ouve a mais decisiva: qual a direção? Uso, estimativa, direção. A análise é inteiramente pragmática, mas de um pragmatismo especial, na medida em que visa renovar as condições de avaliação e, portanto, de integração pulsional (as pulsões, a pulsão). O sentido é, na essência, sentido de direção, e tem valor prático. E é quase uma ingenuidade presumir que devido à crítica a toda noção metafísica de sentido deveríamos nos ater somente às experiências de nãosenso, como expressão do real. Confunde-se muito rapidamente o sentido com as exigências lógicas do princípio de identidade e seus correlatos, os princípios de não-contradição e do terceiro excluído. Não faz sentido dizer – e é importante observar que se trata de uma proposição – que uma coisa é e não é ela mesma. Mas o sentido – que agora definimos como pulsional – não se determina apenas por razões lógicas e no interior de uma proposição, ainda que não lhe falte razão, lógica e intimidade com o dizer; ele se esclarece, sim, por um princípio ativo, integrativo, superativo que faz sentido em si mesmo. Por isso dissemos em outro contexto que o sentido é o sentido da força, não sem acrescentar que a força, por sua vez, é a força do sentido. Consideremos dois casos, um que se diria prosaico (o sonho de uma senhora de meia idade); o outro, filosófico, da maior dignidade (a meditação de Heidegger sobre a concepção nietzscheana da arte), ambos para situar analiticamente o problema do sentido, do não-senso e da escolha (ou do desejo). 122

Apocalipse – O homem que morreu, op. cit., p. 52.

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O primeiro caso: L., uma senhora de quarenta e poucos anos, separada há dez, morando sozinha numa cidade do interior, tem o seguinte sonho: estava na casa de sua cunhada, na capital, usando meias pretas, como as meias que usa para dormir. A cunhada veste-se toda de preto. Logo a casa se enche de pessoas, parece uma festa; mas ela permanece quieta, sentada num sofá, lendo um livro. Não se envolve com os convivas. Em dado momento, se dirige a um pátio interno, belo e agradável. Está de volta com seu livro, a um canto, quando uma mulher aparece na porta, lhe mostra um bebê nos braços e desaparece. O sonho é um saber do tempo, é uma memória e um devir. A cunhada é uma ex-cunhada, separada há muitos anos do irmão da sonhadora – o termo é duplamente apropriado, pois um longo período de sua análise transcorreu como análise de sonhos –, não tendo experimentado desde então nenhuma novidade em sua vida, como se mergulhasse num infindável processo de luto – as roupas pretas. A identificação com a ex-cunhada é clara, ainda que L. use apenas meias pretas, como se tratasse de um luto parcial, relativo ou em vias de se concluir. De fato pensa em morar numa cidade maior, onde sempre teria motivos para sair de casa, ir ao teatro, cinema e shoppings, encontrar pessoas, fazer novas amizades. A comemoração da formatura do seu sobrinho, para a qual fora convidada pelo mencionado irmão, deu origem à festa do sonho. Uma primeira avaliação sugerida pelo texto onírico consistiria em ver que tanto no interior como na capital ela se dedicaria ao que realmente gosta, a leitura de romances, e que sua satisfação não dependeria do lugar onde estivesse. Mas é uma abordagem parcial, não considera todos os dados do sonho. É dentro de uma experiência de luto que a mencionada satisfação deve ser estimada. Sem reconhecer o luto prolongado, ela vive, no entanto, sob a sua lei, não experimentando senão seus efeitos. Dir-se-ia que a vida acanhada e solitária que leva só se abre e se povoa com os romances que lê. O notável é que o sonho problematize esse estado de coisas. Ele é pulsional na origem e, como tal, encena um problema. Enquanto ela permanecer de luto, tanto na pequena cidade onde mora como na cidade maior para onde almeja ir – pois a certa altura da análise do sonho entende que o pátio tão atraente é a imagem do seu desejo, visão de um novo espaço, de outra cena, tabuleiro de novo lance de dados e nova chance de existir –, enquanto não acreditar que tem o direito (= poder) de renovar suas condições de vida, limitar-se-á ao gozo residual dos romances, acomodada à solidão e à mesmice. O admirável do inconsciente é que a renovação das condições de vida não se distingue da renovação das condições de saber. Ora, no plano da elaboração onírica L. já existe, existe por antecipação, ao nível do saber inconsciente: memória viva e devir. 92

Com o termo “memória viva” pensamos em um poder de interpretação e avaliação que se exerce no curso do que se poderia chamar, com Deleuze, de uma aprendizagem dos signos; e também, por conseqüência, em uma memória que pressupõe, em seu desenvolvimento, as verdades já encontradas, cada qual em seu nível. Na medida em que compreende os graus menores do entendimento e estabelece os graus mais elevados, a memória é uma graduação da vida. É segundo essa graduação que as potências de renovação acedem à imagem onírica e à palavra, e que o saber se expõe à decifração. Analisar-se é começar a existir. Trata-se, no caso exposto, de acreditar, não por uma fantasia, uma crença desejosa, mas por força de um saber. Este é, em si próprio, problematizante, desejante. Condiciona o uso do sonho, compreende a estimativa do que está em jogo, decide a direção do processo de cura. Entenda-se, porém, que o uso do sonho vale em dois sentidos, pois condiz com o uso que se pode fazer do sonho em análise e o sonho mesmo é o uso das idéias e das imagens, das circunstâncias e das escolhas em jogo segundo uma direção constante, por mais velada (= não-realizada) que essa direção esteja. A estimativa do que está em jogo se estratifica e se hierarquiza conforme os elementos considerados, e a direção analítica se resolve como o entendimento mais aguçado, mais profundo. A este sonho seguiu-se um outro. L. se vê dentro de um buraco na terra, mais precisamente, numa vala; ao redor dela se ergue uma cidade. A contundência do sonho, o caráter chocante da imagem, associada à idéia de cova, serve para não permitir a fácil acomodação, o esquecimento cotidiano. É claro que subsiste o laço transferencial e seu modo de se insinuar na elaboração onírica – estará sonhando o que o analista deseja dela, para ela? Sente-se autorizada por ele a querer morar em outro lugar, a situar-se em outra cena, todavia circunscrita ao ideal de eu do analista, a um ideal de existência? Ou antes espera realmente ser ouvida, enuncia o desejo através do sonho para ser ouvida e, por fim, ouvir-se? A moção pulsional, sendo nada menos que um dizer nascente, em andamento – e este é um ensino básico, o que não significa que já esteja perfeitamente assimilado –, não se orienta por um ideal de eu, não se baseia em um processo de identificação. É bem verdade que as imagens da pulsão se mesclam à pulsão, e algumas são de fato falsas imagens, derivadas de interesses avessos à pulsão. Como discernir essas imagens e a pulsão mesma? Existirá um critério exterior à pulsão pelo qual se possa estar seguro de captar sua presença real? De forma alguma, pois o critério maior, na verdade o único legítimo, é pulsional. Sua direção singular, estrangeira e nômade – posto não se deixar capturar ou fixar – dirige a análise pelos critérios do real, o que exige uma audição igualmente pulsional. O analista só 93

dirige a análise por se orientar pela pulsão. Freud chamava a isso de comunicação de inconscientes. Sugerimos assim a idéia de que a vida sabe por onde caminhar? Não exatamente, apenas apontamos o que interessa à questão da subjetividade inconsciente, ou seja, os graus mais elevados de potência e vitalidade. Mas o que são esses graus? São, evidentemente, graus de saber e de autorização. Isto está longe de compreender uma atitude ensimesmada, narcísica, de um sujeito voltado ao próprio umbigo, a um eu ideal, mas nem tampouco se endereça a um ideal de eu, encarnado ou não. O “umbigo do sonho” é, ao contrário, uma relação renovada com o exterior, e por isso a pulsão é, imediatamente, noção real, aculturada, do outro. Foucault chamou esse misterioso umbigo de Fora interior. A decisão atuante, porém, reside na pulsão. Em relação às variações do princípio de identidade e a vigência do sentido, devemos isolar o princípio do terceiro excluído (ou é A ou não-A) por certa peculiaridade que lhe é essencial, destacada por Deleuze em uma de suas aulas 123. Nas duas fórmulas do princípio de identidade que antecedem a do terceiro excluído (A = A, A não é não-A, ou ainda A é A e não B) constata-se que o elemento nodal é o verbo ser (é, não é), enquanto nesta última o elemento central é a partìcula “ou”, cuja função de articular as duas alternativas e introduzir uma dimensão de escolha evoca, em última instância, uma potência existencial. Essa potência ou é puro não-senso ou faz sentido em si mesma. Tanto que não se trata, como mostra Deleuze, de uma escolha que o herói da Recherche faria entre Albertine e Andrea, mas entre o modo de existência que teria se amasse Albertine e a escolhesse, e o modo de existência que, em sua imaginação, passaria a ter se escolhesse Andrea. Elegeria “não entre dois termos chamados objetivos, mas entre dois modos de existência” 124 . Assim se comporta o sonho de L., onde a alternativa cidade do interior e cidade grande se aprofunda em conservar o luto ou concluí-lo de vez, as quatro alternativas coexistindo numa pergunta pelo futuro, pelo devir desse estado de coisas (a festa antecipada, a criança de colo). O problema é assim mobilizado por um desejo que já não é possível discernir de sua solução, isto é, por um desejo que é saber, visão. Na medida em que o sonho se elabora e se esclarece, o desejo se formula como escolha e saber da escolha. Tampouco a cidade grande é solução suficiente; o que desterritorializa, o que desprende da terra, é a conclusão do luto. Que a questão do sonho se concentre em uma escolha não elimina que só um caminho seja o certo, como quer o Riobaldo de Grande Sertão, pois é possível não escolher esse caminho, como de modo geral acontece. 123 124

www.webdeleuze.com - Image mouvement – image temps, Cours Vincennes – 17/05/1983. Idem.

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A digressão deleuziana, estabelecendo uma convergência entre Pascal, Kierkegaard e Sartre, irá desembocar, inevitavelmente, no problema da escolha que consiste em não escolher, mediante o argumento de que não se tem escolha. Eis o problema ético, de modo algum restrito à consciência. É pulsional, originário, e anima todo o inconsciente. A pulsão é assim a colocação do problema e a sua solução – todavia prática, o que introduz, por certo, uma exigência, graças à qual o sonho se transforma em teatro da crueldade, sempre de acordo com uma escuta cruel. O sentido pulsional reside, em última instância, na reconstituição ou na renovação da condição de escolha, a qual, é preciso não esquecer, se reconstitui em ato. Por ser originária, essa condição tem ares de não-senso. O segundo caso. À medida que Heidegger progride em seu estudo do “pensamento originário” de Nietzsche, aborda a arte, por ser esta a expressão mais direta e, portanto, a mais elucidativa, a mais transparente, da vontade de poder. E se demora no exame do “grande estilo” que, em Nietzsche, é o nome da arte em seu ponto culminante, ou seja, da arte como medida e critério da existência. Observa então que as contradições vivas que o texto de Nietzsche oferece ao entendimento do “grande estilo” – a presença da lei, da forma, do ser, e a embriaguez dionisíaca, o devir – subordinam-se, ao se aprofundar a leitura, a um ponto de vista superior que ele, Heidegger, chama de “jugo”, domìnio, decisão, “liberdade co-originária em relação às contradições extremas”. É certamente um alto exercício de liberdade manter vivas as contradições extremas, sob o jugo de uma serenidade criadora. Mas o dionisíaco em Nietzsche não é apenas um dos termos da contradição como quer Heidegger. Sob o aspecto da embriaguez e do devir, ao qual se deve o caráter transitório da existência, aproxima-se do verdadeiro princípio dionisíaco que, de um ponto de vista ainda mais profundo, concernente às condições originárias, é a própria serenidade criadora, o ser ou a força do devir. Tanto que Nietzsche dirá: “A ilusão de Apolo: a eternidade da bela forma; a norma aristocrática: „assim deve ser sempre!‟ (...) Dioniso, sensualidade e crueldade. O transitório poderia ser explicado como gozo da força criadora e destruidora, como criação constante”. 125 A constância se desloca da forma para a criação. É a repetição da diferença. Quando se está à altura do saber pulsional, ou, para continuar com os termos do segundo caso, quando se está à altura de um desejo dionisíaco? Pulsão, Dioniso, são medidas móveis da existência. Esta se mensura a cada vez, valendo por todas as vezes. A escolha, a direção a tomar é decisiva em

125

Nietzsche, F., Obras completas, vol. IV, 1048, p. 386, Aguilar, Buenos Aires, 1967.

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relação a tais medidas. Decide pelo grau de existência. E é deste grau que, finalmente, se goza. O gozo do "savoir-faire” e o estágio da cura Mas esta palavra – “gozo” – é adequada ao sentido que se quer dar à mais alta exigência, ao desejo mais desprendido, mais puro? É muito comum destinar a palavra “gozo” à experiência de alienação, à repetição patológica e mortífera. Na verdade é uma tolice propor uma opção entre desejo e gozo, quando o desejo também pode ser alienado, também pode ser de abolição e morte. Do mesmo modo, o gozo pode ser ativo, gozo do vivo, como é o caso do gozo do saber. É freqüente encontrar, entre os psicanalistas, essa tendência a sofrer de didatismo, doença que se caracteriza pela necessidade de uma simplificação sumária dos termos, possivelmente para encaixar as estranhezas e singularidades em encaixes seguros, familiares, longe dos perigos da noite escura e do ímpeto criador. Não é sem algum preparo que se aborda esse campo – Acheronta movebo... Lacan, como ele próprio reconhecia, era bem mais herético 126. A propósito do gozo, se em dado momento e segundo determinado nível de articulação ele distingue o prazer do verdadeiro e o gozo do real, e afirma que este comporta o masoquismo, o ápice do gozo dado pelo real 127, em outro momento pergunta: “o que é o verdadeiro, senão o verdadeiro real?” 128 Que o real se encontre “nos emaranhados do verdadeiro” é ainda uma maneira de dizer que se encontram do mesmo lado. Tratando de um fazer (savoir-faire) que nos escapa, fazer do artifício, fazer do artista, Lacan observa que ele transborda em muito o gozo que podemos ter dele – “esse gozo bem fininho mesmo é o que chamamos de espìrito” 129. Como se poderia assimilar esse gozo do savoir-faire, que é “fininho” mas se gradua, 126

É evidente que desejo e gozo não são tratados de maneira unívoca na obra de Lacan. Somente no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo vemos o tema se desenvolver em diferentes registros: 1. Lacan define a castração como recusa do gozo, para que este “possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo” (Subversão do sujeito e dialético do desejo, em Escritos, op. cit., p. 841). Neste caso, há uma recuperação do gozo na linha do desejo. 2. E, no entanto, afirma-se nesse mesmo texto que “o desejo é uma defesa, uma proibição de ultrapassar um limite no gozo” (idem, p. 839). As duas observações não são contraditórias, mas exigem que se conceba diferentes modalidades de gozo, em especial no concernente ao desejo. 3. Assim, nada impede Lacan de dizer que Alcebìades é o ser desejante por excelência, “o homem que vai tão longe quanto possìvel no gozo...” (idem, p. 840). 4. E sobre o Gozo, escreve Lacan que sua falta “tornaria vão o universo” (idem, p. 834), de tal modo que não vemos mais como o gozo deva ser terminantemente recusado, a menos que seja em proveito, como foi dito acima, de sua recuperação no plano do desejo. E o que é o gozo nesse plano? E o que é a Lei do desejo, para que se saiba “desse” gozo? É a questão que procuramos desenvolver no presente trabalho, explorando o tema da pulsão. 127 O seminário, livro 23, O sinthoma, op. cit., p. 76. 128 Idem, p. 83. A expressão “verdadeiro real” se contextualiza numa referência a Heidegger e ao que, segundo Lacan, seria o seu fracasso. 129 Idem, p. 62.

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posto que o saber e o fazer inconscientes do artifício vão muito além dele, ao gozo masoquista e sua distância do verdadeiro? A primeira e decisiva razão para adotarmos a idéia de que não há experiência do homem vivo sem uma medida de gozo de algum tipo, e de que é preciso situar a natureza do gozo em relação aos estágios da cura, é a pertinência, no entendimento analítico, da noção de pulsão que, como estivemos repisando, não pode ser eliminada sem se eliminar a psicanálise. O termo usual em Freud, substituído pela escola lacaniana por gozo, é “satisfação”, e designa o alvo invariável da pulsão. A análise conduziria a um modo de satisfação pulsional mais direto em relação às modalidades de satisfação obscuras e tortuosas da neurose (Lacan). Esse modo mais direto compreende a clareza, a lucidez do devir sublimatório, entendido que não existe outro devir. É por isso que chegamos à fórmula de que o saber do gozo e o gozo do saber são o mesmo para um critério de final de análise. A sublimação é ainda a pulsão sob a forma de um destino determinado; há uma satisfação (ou gozo) que lhe é própria, aparentada ao que Lacan chamou, na passagem acima citada, de gozo “fininho” do savoir-faire inconsciente. Insistimos, porém, na afirmação de que a sublimação é o destino originário da pulsão, seu destino mais nobre. É ela que, gradualmente, nos cura, e é nessa cura que consiste a satisfação pulsional direta – e não, note-se bem, uma satisfação indireta, como pretenderiam as apreensões neuróticas e perversas da sublimação. É que estas disposições subjetivas compreendem a satisfação como um declive, um relaxamento, um fascínio, um ser comandado e um deixar-se ir, não conseguindo conciliar satisfação pulsional com exigência, comando, precisão, sobriedade, atividade. Essa conciliação, porém, encontrase em Lacan, quando ele confere à arte o poder de atingir o sintoma, o que significa subordiná-lo a ela, desarticulá-lo 130. Mas não estamos assim no pólo oposto ao do masoquismo – que não é, como martelou Lacan ao longo do seu ensino, o sadismo? Nem por isto saímos do âmbito do real: talvez se descortine aqui sua dimensão mais profunda. Continuando com Lacan: é motivo para rir a clareza com que esse autor vincula a responsabilidade ao savoir-faire, abarcando com isto o Juízo Final 131. Quer dizer, o motivo para rir está em que o dito savoir-faire atinge níveis inconscientes profundamente velados. Assim como não se tem uma noção exaustiva do próprio savoir-faire (o que já parece uma incongruência), assim também não se tem noção da 130

“Quando digo que a arte pode atingir inclusive o sintoma, é o que vou tentar substancializar”. Idem, p. 40. A potência de atingir o sintoma – tal é a força ativa da arte, semelhante à da análise. 131 “Só se é responsável na medida do seu savoir-faire. Que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à arte da qual se é capaz um valor notável, porque não há Outro do Outro para operar o Juìzo Final”. Idem, p. 59.

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própria responsabilidade. Pois, a quem compete o “saber-fazer” do lapso, o seu engenho, a sua agudeza? Do lapso à arte, a distância é de grau ou de natureza? Goza-se da direção tomada a cada vez em conformidade com as avaliações pulsionais, critério decisivo e incontornável, por mais distorcido que esteja pelas determinações não pulsionais que compõem, em última instância, o sistema do juízo. Por exemplo, o mundo cristão invertido de Sade, configurando-se ainda no horizonte desse sistema, não se confunde de modo algum com a reversão do platonismo em Nietzsche. O primeiro investe, sem dúvida, o campo pulsional, mas esse campo é visto sob o prisma cristão, sob a ótica do mal, de modo que o investimento é apenas um gesto de sublevação. O segundo, ao instaurar uma nova perspectiva de avaliação, ensaia uma reversão profunda do pensamento às condições originárias, criadoras, não sem antes se apropriar do cerne da experiência cristã: “Não somos mais cristãos: nós nos destacamos do cristianismo; não porque moramos muito longe dele, mas porque moramos muito perto dele; mais ainda, porque crescemos a partir dele – não é senão a nossa piedade mais severa e mais fastidiosa que nos proíbe hoje de sermos cristãos”. 132 Goza-se sempre, mas nem sempre do saber. Quando não se está à altura da experiência pulsional tem-se o impulso, a compulsão à repetição, o ato sintomático. A dinâmica pulsional repercute em todos os estratos da experiência por meio das formações do inconsciente, mas não da mesma maneira, pois tudo depende do grau de proximidade com a pulsão. Esta se parece ao corpo-sem-órgãos de Artaud, tal como é descrito em Mil Platôs, ou seja, ainda que esteja sempre lá, precisa ser construído, praticado. Do contrário, é como se não existisse, não adquirisse consistência. Sua consistência é igual ao seu grau de existência (= vitalidade = lucidez). Ora, isso que não se constitui se não for praticado é de natureza ética – não se produz naturalmente. É uma questão de desejo. Pode-se chamar a isto de uma finalidade? É a espécie de finalidade que não se distingue de um exercício constante em nome dele próprio (conatus), e não o que resulta como término de um processo ou de uma atividade. É o próprio gozo da atividade. E é nisto que consiste a subjetividade pulsional, o real-Ich de que falava Freud. O tema psicanalítico do real-Ich (eu-real) nos permite abordar a segunda razão para se falar em gozo no estágio da cura e não somente no estágio da patologia. O real-Ich contracena com o lust-Ich, cuja tradução corrente é “eu-prazer” e que se articula na teoria à noção de lust-Principz, princípio do prazer. Este segundo eu, que por um momento aparece como o 132

Citado em Heidegger, M., Nietzsche, vol. 1, p. 145, Ed. Forense Universitária, RJ, 2007.

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mais primitivo, se rege e se define, conforme o texto freudiano, pelo princípio do prazer. Corresponde ao eu-ideal, tanto na concepção freudiana quanto na abordagem lacaniana. É evidente que a noção de gozo introduzida por esta abordagem refere-se ao campo de coordenadas do lust-Ich, seja sob a forma do gozo recôndito da neurose, seja sob a forma do gozo explícito da perversão. A confusão terminológica que pode se dar entre gozo e prazer deveria nos alertar contra o didatismo mencionado acima, tendo em vista que confusões dessa ordem nunca são inocentes. Definições estanques encontram logo adiante dificuldades insuperáveis numa doutrina flexível e complexa como a psicanálise. Que distinção se fará, a certa altura, entre prazer e gozo? Por isso mantemos o uso freudiano do “prazer” para re-assegurar, em contraposição, o critério ético do desejo. Ou seja, não é o prazer, aqui entendido como relativo ao princípio do prazer e ao eu-prazer, que se institui como critério último de uma direção de análise. Em relação a esta, o critério do prazer constitui, o mais das vezes, senão sempre, um desvio e uma resistência. Nestes termos, não difere do gozo, se dermos a este o sentido corrente que se dá em algumas vertentes do pensamento psicanalítico. O princípio do prazer, compreendendo o seu correlato no plano do sujeito, o euprazer, é o responsável metapsicológico pelo recalque e pela experiência neurótica. É o responsável, portanto, pela compulsão à repetição, que não é outra coisa que a efusão da morte na vida. Essa efusão da morte na vida decorre da incidência, na economia do desejo inconsciente, do narcisismo e seus desdobramentos ideais, a saber, o eu-ideal e o ideal de eu. A esta breve digressão sobre as razões para se manter a vigência de um gozo real que não é o masoquismo, que é, ao contrário, o gozo de um saber ativo, é suficiente acrescentar que a pulsão é o que destoa, o que se desvia desses ideais narcísicos e sua vertente mortífera. É o sinistro que irrompe no campo do imaginário egóico e que, se representa a morte nesse campo, a cova do sonho, é a vida do desejo como tal, tanto em relação à sua procedência pulsional quanto ao seu devir. Seria preciso, então, incluir na discussão em jogo mais um termo, imprescindível ao conceito de pulsão – a “satisfação” – e se perguntar se, neste caso, estaremos falando de prazer ou de gozo. E acrescentar mais uma interrogação: se a psicanálise é sublimação, não deveremos ser conseqüentes com o conceito e admitir que ela mesma implica em satisfação? Chamaremos a satisfação de gozo ou prazer? Não é, portanto, o gozo ou o prazer que nos fará situar a patologia ou a cura; ao contrário, é o saber ético que decidirá, em cada caso, a modalidade de gozo em questão, inclusive a que resulta deste saber e lhe é, ao mesmo tempo, intrínseca – a originária. Dizemos que resulta e é ao mesmo tempo intrínseca porque o decisório é o saber. Trata-se, é claro, de um savoir-faire em ato, daí sua 99

determinação ativa e ética. Trata-se, então, no nível mais alto da existência, de um dizer, onde o verdadeiro é o verdadeiro real 133. Nada impede pensar que assim o gozo é atingido na escala invertida da lei do desejo, como quer Lacan. É a modalidade originária do gozo, tão originária quanto a lei do desejo. Tudo já é dado de uma só vez, embora se decida por meio de uma escolha, também ela originária. A dupla afirmação da arte é o conjunto de decisão e ato, sua integridade. Mas é possível insistir ainda que o gozo se refere ao além do princípio do prazer, à pulsão de morte, e que é desta distância que se extrai a distinção entre prazer e gozo. É nesse horizonte conceitual que se distribuiriam mais uma vez o verdadeiro e o prazer, de um lado, e o real e o gozo (masoquista) de outro. Com isto se perderia de vista, uma vez mais, que o prazer é relativo ao princípio do prazer, e que este, na teoria – extraída, no entanto, da clínica – é uma relação de compromisso entre morte e vida, o que significa, em termos clínicos, que esse compromisso se expressa nas disposições neuróticas, perversas e psicóticas da subjetividade humana. É preciso ler Freud analiticamente, segundo as volutas conceituais de seu texto e os saltos e passagens, às vezes abruptas, de uma investigação que se opera em vários níveis, e entender que o além do princípio do prazer não diz respeito apenas à pulsão de morte, mas também à pulsão de vida. O “além” quer dizer, para uma linguagem clínica – de clínica analítica, bem entendido –, além do critério suspeito (e vai aqui toda a dinâmica da suspeita freudiana, ponto de partida da investigação psicanalítica) do princípio do prazer, e isto em nome de um ponto de vista superior, anterior, decisivo, ético, que traz ao primeiro plano as potências de vida e de morte. Eros não é o prazer, o que não significa que exclua o prazer. A questão, todo o tempo, é de anterioridade, de comando e subordinação. Mais uma vez asseveramos o interesse da metapsicologia freudiana para a intervenção analítica, acompanhando as observações oportunas de Pierre Fédida sobre o assunto: “A qualidade de um texto metapsicológico está no fato de ser sempre muito claro, de abrir a liberdade de pensar. Ele fala ao psicoterapeuta ou ao psicanalista em sua prática, lida com as dificuldades que essa prática comporta. (...) A importância que devemos atribuir a essa noção de „metapsicologia‟ pode referir-se também a textos que são habitualmente reputados como textos não psicanalíticos. Por exemplo, certos textos literários apresentam um caráter metapsicológico e, mesmo na psicanálise, os textos de psicanálise aplicada são freqüentemente textos de alto teor metapsicológico”. 133

Na crítica a Heidegger, Lacan não esclarece se quer aproximar o verdadeiro do real, sob a forma do verdadeiro real, ou se quer manter, contra Heidegger, a sua distância. Acreditamos, de nossa parte, que há um ponto em que essa junção é obtida, e que é nela que consiste a cura analítica.

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A razão da utilidade dos textos e dos conceitos metapsicológicos reside no fato de não serem apenas especulativos, de valor puramente teórico; ao contrário, exploram um campo de condições pré-psicológicas, éticas e vitais, ao qual se reportam a escuta e o ato analítico, encontrando ali seu esteio, seu móvel primeiro. Os desenvolvimentos da teoria pulsional são desdobramentos do ponto de vista clínico, ou seja, são os passos de esclarecimento do que seja uma clínica psicanalítica, de qual é seu sentido, sua direção e envergadura. A linha de sentido e o evento do dizer, uma vez assimilados à pulsão, tornam-na inteligível e praticável clinicamente. Quando esses aspectos da pulsão – ela tem ainda outros – não são levados em conta, o conceito se torna obscuro e sua prática vacilante. Por que é assim? Não inventamos nada: toda pulsão, considerada analiticamente, constitui um dizer na origem e como tal se revela, de modo que a sua prática, por esta razão originária, é a única que faz sentido. Um dizer é a expressão de um domínio e de um princípio, uma primeira direção, algo como a terceira metamorfose do espírito em Assim falava Zaratustra, quando o espírito se torna criança: “inocência e olvido, novo começar, jogo, roda que se move por si própria, primeiro móvel, afirmação santa” 134. Falávamos que o sentido é antes de tudo sentido de direção, e isto se estende, é claro, a uma idéia de direção da análise. Retomemos, por um instante, e a propósito dessa terceira metamorfose, o caso de L, a mulher de luto parcial. Depois da sessão em que foi analisado o sonho das meias pretas, ela se consulta com a médica que acompanha a evolução de seu quadro ainda incipiente, e certamente controlável, de diabete. Nesta ocasião, pergunta à médica – não sem observar, no relato que faz disto na sessão, que no fundo sabia ser um assunto a se tratar em análise – o que deveria fazer para não sofrer mais das dores que sentia pelo corpo inteiro, quando acordava no meio da noite ou pela manhã, e que a obrigavam a se levantar. A médica sugere uma troca de travesseiro ou de colchão, ou ainda outra posição de dormir que não a usual. Tudo isso é besteira, pensa ela, a médica não tem a menor noção do que acontece. No dia seguinte e nos subseqüentes acorda sem as dores. É claro que sabia da origem psíquica do incômodo físico, conforme a percepção de que a médica estava longe de acertar o alvo e de que era assunto que devia destinar à análise; quis, entretanto, conservar ainda a crença de que as sensações dolorosas não eram do alcance do seu entendimento, isto é, da sua cabeça. Foi rápida a verificação de que as dores no corpo pertenciam à idéia de estar só, sem um homem, ou melhor, dado o seu luto já terminal, sem “aquele” homem. O importante era perceber que se tratava dela, do seu modo de conceber as coisas, e que 134

Nietzsche, F., Assim falava Zaratustra, p. 29, Editorial Presença, Lisboa, 1972.

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dependia dela falar, entender, concluir o luto, e não de outro (o ex-marido distante, a médica ou o travesseiro recomendado). L conta, em seguida, na mesma sessão, que se deparou com um fenômeno muito estranho. Já havia acontecido uma vez e aconteceu de novo. Sozinha em casa, em dado momento, o rádio se pôs a funcionar. Como era possível? Isto, refletia, não poderia ser esclarecido pela análise. Mas o que ela pensava sobre o estranho evento? De fato cabia a pergunta: como teria sido possível? Era preciso não indagar por um fator objetivo que explicasse o fenômeno – ou que o rádio não funcionava bem, ficando semi-desligado e semi-ligado por uma razão técnica desconhecida, ou que sem se dar conta ela tivesse ligado o aparelho –, pois estas vias de investigação não diriam respeito a ela enquanto sujeito pulsional daquela cena misteriosa. Como ela afirma resolutamente não se tratar de um espírito ou de um fantasma, pois não acredita nessas coisas, a pergunta analítica se propõe nos seguintes termos: “não abordarei o fenômeno extraordinário em si mesmo; indago apenas pela maneira enfática com que é afirmada a descrença em espírito e em fantasma. Não quero absolutamente sugerir que reveja esta descrença específica, considere apenas em relação a quê, em sua vida, tem havido uma descrença decidida, análoga à descrença em espìritos”. A resposta veio prontamente: “não acredito, de maneira alguma, que um dia eu volte a ter um companheiro”. “Será que, tendo em vista o fenômeno do rádio, não é hora de rever essa descrença, que não é senão a crença de que sua vida afetiva terminou há dez anos atrás?” O extraordinário do inconsciente é que, para uma leitura apropriada, o desejo expõe claramente sua posição: denuncia, neste caso, a descrença ou a fé invertida, introduzindo um elemento irracional, não ponderado e sem explicação na experiência do sujeito. Este elemento corresponde, em primeiro lugar, à participação de outro ser na dinâmica dos afetos e no plano dos corpos (a materialidade do som, do rádio), e de outro ser, bem entendido, que até então se reduzia à condição de fantasma, de espírito, isto é, a um ausente-presente, um ex. Mas, em segundo lugar, o elemento estranho encarna o próprio desejo e sua potência desconhecida. L não tem dúvida, neste momento, de que foi isto o que aconteceu. O fenômeno do rádio se tornou secundário. De modo análogo ao que se passou com as dores do corpo, o enigma físico – talvez alguém o chamasse de quântico – reflui para o dizer e se resolve no entendimento. Por isso dizemos que a pulsão é a cabeça em pessoa. Nela reside, finalmente, o estranho, o inexplicável, a roda que se move por si própria. Não se tratava, para L, de esperar ou sair em busca de um companheiro, mas simplesmente de reabrir o que estava fechado, concluído, reduzido à expressão física, e revertêlo em luz e oxigênio. Reabrir a questão, para L, é a causa de uma alegria ativa, baseada no saber. 102

Ao pensar a direção da análise e de la cure, Lacan enunciava os princípios do seu poder, isto é, de sua força – lembrando, por exemplo, que o sujeito, livre pelo preceito analítico para tomar a palavra, envereda inexoravelmente pela trama dos significantes do seu destino até as suas implicações mais remotas. Não há como fugir de si, isto é, da pulsão, pois ela repercute em todos os níveis da experiência subjetiva conforme o grau em que é praticada. Progredir em sua direção significa dirigir-se à sua elucidação e à sua resolução prática. Nada faz mais sentido que isso, que é tanto mais decisivo quanto mais o processo subjetivo avança e se aproxima de suas condições pulsionais originárias. Nesta aproximação, a força ativa se esclarece cada vez mais (a cabeça originária) e cada vez mais chega à altura do seu poder, realizando o que ela pode. Dizemos “força ativa”, mas ela é também consciência, existência, ato. Poderíamos evocar igualmente, com Nietzsche, a força reativa, considerar que ela também é de origem, mas retornaríamos do mesmo modo ao princípio ativo, por ser esse princípio que esclarece o conceito de força (tanto ativa como reativa) e dá a direção clínica. Daí a nossa fórmula quanto ao sentido e à força – que um se explica pelo outro. Não é só, portanto, que a força dá o sentido, ou que o sentido de tal coisa depende, na interpretação, da força que se apropriou dela; é preciso, quanto ao sentido, começar antes, torná-lo imanente à força, dizer que ela advém do sentido na mesma medida em que o sentido é o da força. A força é a força de uma inteligência, e o sentido é o sentido de uma energia, uma vontade. Quanto mais uma prática adquire sentido, mais força e consistência ela tem – e é nisto que consiste a análise: a prática da força (ativa) é também a do sentido. É claro, repetimos, que o sentido já não se confina ao campo das representações, já não diz respeito ao bom senso e ao senso comum. Ele passa a ser o sentido da atividade, informa sua direção e, ao mesmo tempo, exprime a sensibilidade dessa atividade para consigo própria, o que chamamos também de saber ou satisfação. Mas não se espere encontrar uma razão ou um sentido para a existência dessa atividade. Ela existe fora do mundo, e é tudo. É certo dizer que a direção da análise é dada pela pulsão. Se um lapso de linguagem orienta a atenção analítica, que não o descarta feito um erro da comunicação efetiva, e sim o acolhe como precipitado de saber inconsciente a ser entendido, decifrado, é porque ele tem o valor de índice do movimento pulsional. A verdade desse movimento guia o processo da análise. Mas não se trata aqui de uma adequação do intelecto à coisa, e sim à Coisa, à Vida. A análise, ela própria, não se distingue da prática da pulsão. Então a pulsão é arte, é ciência? O lapso só interessa porque com ele ingressamos, não sem alguma ousadia, no âmbito de uma prática onde o dizer se conjuga com a 103

ciência do vivo, conjugação que tende a se ocultar num enigma, sob uma montanha de cinzas. O saber da diferença O saber da diferença apresenta pelo menos duas faces, uma voltada para a sensação, o reinado das grandes e das sutis diferenças (“maçã cheia, pêra, banana...”), outra voltada para uma diferença de plano, segundo a qual a sensação deixa de ser o critério elementar e único da diferença. Esse saber se inscreve numa história antiga, a história do pensamento no Ocidente, mas sua projeção é, por todo o tempo, planetária, universal. No curso do pensamento ocidental se fundou a separação, e também a discórdia, entre o supra-sensível e o sensível, a idéia e o corpo. Em rápido sobrevôo, pode-se dizer que ao supra-sensível, à idéia, associou-se a noção de unicidade, de identidade, de fixidez, de ser, e ao sensível ligou-se a idéia da diversidade, da multiplicidade, da diferença, o movimento incessante e o não-ser próprios do devir. Uma vez que o supra-sensível, o ser, foi considerado o plano superior e normativo, depreciou-se o sensível, a aparência, o vir-a-ser, e com eles a vida mesma. A reversão do platonismo intentada por Nietzsche devolvia à vida o poder de definir critérios e estabelecer metas. Com isso, o conceito de diferença avança ao primeiro plano. Deixa de se referir apenas ao sensível, ao que é apreendido pelos órgãos dos sentidos, ao orgânico e suas múltiplas formas de apreensão e configuração do mundo, às pulsões parciais e suas diferentes perspectivas. Abrangendo a pulsão de vida ou a vida inorgânica, alcança a autodeterminação ética enquanto existência, e decide assim pelo valor dos valores. Uma coisa é o corpo constituído por zonas erógenas (regiões de contato com o exterior, bordas, aberturas, superfície da pele), o corpo como receptáculo da libido, como superfície de inscrição, que se deixa cifrar e decifrar simbolicamente, corpo imaginário, psicofísico, psicossomático, superfície de sentido sobre a qual se desenrolam as redes dos signos, a história de cada coisa e seus sentidos; outra é o corpo feito de uma única peça, corpo pleno, íntegro, supra-sensível, o que, como bem diz o termo, não exclui o sensível, nem as histórias e seus sentidos, mas dá às narrativas seu sentido superior. A superfície, experimentada agora como limiar ou fronteira, se define – inclusive no sentido visual de melhor definição da imagem – como mudança de plano. Quando se fala em “corpo” evoca-se um mundo e suas dimensões, suas dobras, suas linhas de força, seus caminhos, suas paisagens, suas camadas geológicas e suas temporalidades relativas. Mas todos esses aspectos do mundo vivo e sensível transformam-se efetivamente em mundo, em jogo espiritual, sob o golpe de uma real e decisiva lucidez, uma espécie de 104

terceira visão que aproxima o próximo e o longínquo, a origem e o porvir. Este novo domínio é o domínio da arte e do tempo, bem como o de um novo começo, roda que se move por si própria... Dizer assim, porém, esclarece muito pouco essa roda, talvez adense as brumas, pois seria preciso demorar-se na concepção do tempo em jogo, apurar o sentido e a natureza do seu domínio. Retomemos as considerações acima acerca do sexo, do saber e do sentido, que nos parecem ainda muito genéricas. Existem nuanças que não devem ser esquecidas, derivações psicopatológicas no âmbito sexual, por exemplo, que certamente decidem pelo saber e pelo sentido ao nível da experiência subjetiva. Todas as modalidades de gozo, perversas e outras, esboçam um horizonte, um limar para o saber, e a experiência do sentido transcorre no interior desse círculo esboçado. Poderíamos dizer que tal limiar, tal círculo de saber e poder (a ser entendido também como permissão, como autorização) indicam critica e clinicamente até onde se aventura a subjetividade na experiência da diferença, enquanto esta é reportada à máxima diferença e ao que, por conseguinte, determina o valor dos valores e a ordem originária dos investimentos afetivos. Se Lacan foi sábio ao enunciar que o sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta subjetivamente, é na medida em que a diferença como tal, também designada de pulsão, reverbera em todas as fronteiras subjetivas sob diferentes aspectos, isto é, sob a forma de diferentes enigmas que, o mais das vezes, nem sequer chegam a ser experimentados como tais. A vida subjetiva pode se encontrar muito distante de sua decifração e permanecer, assim, inteiramente alheia ao saber ali reunido. Essa vida diminui, extingue-se pouco a pouco, na mesma medida desse alheamento. O saber inconsciente, porém, não é apenas um conhecimento interior, é sobretudo uma prática. Na teoria lacaniana, a reverberação da diferença é indicada pelo estatuto do objeto a em suas diversas modalidades. Estas são, na verdade, as leituras possíveis do que determina o valor dos valores, o que se chama em teoria psicanalítica sua carga libidinal. Sejam leituras experienciais ou teóricas, efetuam-se conforme os diferentes graus de aproximação do campo irredutível da diferença – ao qual denominamos, por isso mesmo, de originário. Mais uma vez Sade. Dizer, como faz Klossowski em sua descrição da ascese sadiana, que “são os mesmos impulsos que nos intimidam ao mesmo tempo que nos insurgem” 135, incitando ao gozo assim como, uma vez ociosos, ao remorso, conforme se apliquem às imagens do ato promissor de gozo ou às imagens do temor, da compaixão, do horror e do arrependimento pelos atos a cometer ou já cometidos – dizer isso não permite vislumbrar ainda, como 135

Klossowski, Pierre, Sade meu próximo – precedido de O filósofo celerado, p. 32, Brasiliense, SP, 1985.

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reconhece aquele autor, o rosto originário das “forças impulsionais”, pois o ato promissor do gozo é nitidamente o da transgressão, o do ultraje, e conta com a idéia da lei moral e do pudor para se exercer em sua plenitude. Só assim o ato responde ao desejo sádico. As “forças impulsionais” são lidas e experimentadas perversamente, isto é, através do crivo da moral em curso e constituem “o mal” do ponto de vista da consciência cristã. Eros já foi envenenado há muito tempo. A moral da apatia em Sade consistirá, então, em opor a reiteração do ato violento tanto ao gozo perverso como à virtude que retorna sob o aspecto do horror e do remorso, de modo a escapar à dupla face da perversão e atingir uma pureza, uma espécie de estado de natureza originário. Só pode atingi-lo, porém, pela destruição do outro e pela autodestruição. Em Sade, a pulsão de morte, votada à extinção do ser, é elevada a sistema. Seu alvo: a redução da diferença a zero – o grau zero da apatia. Posição difícil a de Sade, a busca de uma de santidade às avessas, como somente Genet, à sua maneira, saberá ousar. Do mesmo modo, a proverbial insatisfação do desejo é um equívoco histérico que traduz, tão somente, a ênfase no objeto e na identidade, ou seja, é um indicador do quanto o sujeito se mede pelo objeto (nunca encontrável) e pela identidade (sempre subvertida) e não pela tendência. Diga-se de passagem, este equívoco em especial não deveria servir de fundamento à razão analítica e de ponto de convergência das interpretações, como é corrente observar em algumas orientações psicanalíticas. Motivadas pelo culto nivelador da falta, limitam-se a uma leitura superficial do desejo e a um emprego neurótico do instrumento analítico. O que falta, na verdade, é proceder a uma raspagem do inconsciente, como se diz em O anti-Édipo. Os exemplos se multiplicam. Falar de um luto primordial como ponto de partida para o desejo é incorrer ainda na lógica de um gozo inaudito, aquele que seria primordialmente visado – designado, em alguns autores, como um “auto bastar-se” – e que, sendo impossível, afeta o desejo de uma falta constitutiva. Pouco importa se esse gozo infinito ou fechado, de caráter fictício, é situado na origem ou no fim, pois se trata em ambos os casos de uma visão defensiva e neurótica do gozo e, sobretudo, do desejo. O sujeito de desejo surgiria da renúncia a um gozo primordial que não passa de ficção, que é proibido e, no entanto, impossível. Não que os sujeitos não se deixem levar por tal ficção e a ela subordinem sua condição desejante, mas não é esta ficção que explica, em última instância, o desejo. A posição de desejo não é a de renúncia a um gozo finalmente ilusório. É uma posição de saber, de convicção, de pesquisa, de criação, ainda que possa compreender a renúncia a um determinado gozo como medida de esclarecimento de sua própria medida. O melhor que se pode dizer é que uma inclinação ao gozo fictício obscurece a instância do desejo. 106

Para uma decantação do decantado objeto a: do mais idealizado, a potência, o falo, a ser alcançado ou já perdido (objeto de identificação na melancolia), passando pela mulher como objeto do desejo erótico, ao mais virulento, capaz de causar a perda dos bens mais estimados, ou ainda, ao mais desprezível, seja sob a forma do objeto de sevícias masoquista, o farrapo, o dejeto humano, seja sob a forma do corpo flagelado do asceta e do ser votado à extinção do suicida. O caso da jovem homossexual relatado por Freud 136 oferece elementos em profusão para se pensar a questão do objeto a (a de autre) e seu tratamento clínico, tendo em vista que o tema do objeto a é o da diferença. A jovem, numa séria tentativa de suicídio, atirou-se de uma ponte após o encontro fatídico com o pai, encontro do desejo com a lei, diz Lacan, em seu comentário à exposição de Freud 137. O que foi este encontro? Tudo leva a crer que era um encontro previsível, pois aconteceu no caminho que o pai fazia do escritório para casa. Ela vinha acompanhada de sua amada, mulher alguns anos mais velha, de nome respeitável na sociedade, porém de uma conduta repreensível para a moral estabelecida, quando cruzaram com ele. O olhar irado que o pai lhe devolveu, declarando aversão à sua opção invertida, teve o efeito de desarticular a cena. Esta era mais uma versão representativa da cena geral, que se constituía, dia após dia, como um verdadeiro acting out: a jovem comportava-se com sua dama ao modo de um cavalheiro, no mais característico estilo cortês, inclusive movida pelo desejo de salvá-la. Embora apresentasse indícios anteriores, sua conduta homossexual se acentuou visivelmente após o nascimento de um irmãozinho, e devia ser, conforme a análise de Freud, uma resposta ao pai pelo amor não correspondido, um produto do ressentimento e da vingança por não ser ela a escolhida, e sim a mãe, com quem mantinha uma relação de rivalidade. Ora, por ocasião do dito encontro, e em face do constrangimento público e da inconveniência social que a reprovação do pai representava, a senhora a quem devotava seu amor, tão logo se inteirou do motivo daquele olhar, rechaçou-a no mesmo instante, decidindo que não mais se veriam. Foi quando ela se atirou da ponte. A cena do acting out, como tantas outras que mobilizaram os pais a procurarem a psicanálise, é, toda ela, a encenação do falo, no sentido de que realizaria a fantasia de vingança contra o pai ao mostrar – para quem quisesse ver, mas muito especialmente para ele – a posição viril do amante frente ao objeto feminino altamente valorizado. Mas a jovem precisaria do apoio receptivo da mulher amada para viabilizar seu desejo cênico; disso dependia sua posição de desafio ao pai, a eficácia de sua vingança e sua própria existência nos termos 136 137

Obras completas, op.cit., vol. 3, Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad feminina, p. 2545. O seminário, Livro 10, A angústia, op. cit., p. 122 e seguintes.

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em que pôde sustentá-la até aquele momento. A decepção que teria sofrido com o pai voltou a se repetir, pois a amada, longe de aceitar a sua atitude heróica em detrimento das conveniências, retirou-se (exit) e a cena se decompôs. Se a cena lhe permitia existir, a partir dessa ruptura perdeu o chão e lançou-se da ponte. Identificada inteiramente ao a, para falar como Lacan, deixou-se cair, como coisa sem valor no mundo. Pode-se pensar com Freud e Lacan que o pivô da história clínica dessa jovem é o desejo de ter um filho com o pai, seguido da decepção com o nascimento do irmão. É edipiano, óbvio. Freud insistia na orientação normativa da sexualidade de sua paciente, mas sabia que ela mentia mesmo em sonhos quando lhe dava indícios de seguir esta direção. Ou seja, ela escapa, e Freud, por sua vez, como soube ver Lacan, a deixa cair, niederkommt sie 138, passa ao ato, transferindo o caso a uma colega psicanalista. Freud assinala já no início de sua exposição que a análise não existe para satisfazer ideais culturais, neste caso, o dos pais, cuja expectativa era de ver a filha desistir de sua preferência sexual algo aberrante, especialmente pela maneira declarada e até escandalosa de exercê-la para os padrões da época. Mas apesar desta ressalva ética, é inegável que Freud buscava isto, tanto que os sonhos e os bons propósitos de sua paciente pareciam responder aos seus anseios terapêuticos. Ele não era tão tolo para acreditar nesses propósitos, ou mesmo surdo, pois ela era explicita em dizer que, uma vez casada conforme a tradição, saberia despistar o incauto marido e se dedicar mais livremente às mulheres, seu verdadeiro objeto de amor. O incauto, o tolo, o enganado irá constituir uma série: o pai, Freud e o futuro marido, série monótona, idêntica à que se desenvolve no caso Dora, em que o analista se coloca também ao lado do marido e do pai. O que Freud não considerou, e nem Lacan soube discernir com clareza, é que a questão da jovem homossexual se propunha ao nível da existência, isto é, do seu valor (o auto-afeto). Tanto o falo como o dejeto indicam que se trata do valor, mas o que subsiste não tocado, e que Lacan identifica como a questão da feminilidade, remete à possibilidade de que a jovem exista em sua diferença irredutível, e que seja como tal considerada, ouvida. Freud chega a detectar uma preferência evidente do pai pelo seu filho temporão, do sexo masculino. Em que termos ela poderia, a partir daí, se fazer reconhecer? O móvel pulsional, porém, não é o do reconhecimento senão por equívoco histérico; o que importa é a afirmação da diferença e o seu correlato clínico, a escuta analítica, que é a dobra mesma da dupla afirmação. Mas vamos por passos na elucidação do equívoco. A mãe era, de fato, a escolhida, 138

Niederkommt sie, como aparece no texto de Freud, pode ser traduzido por “deixá-la cair”, mas também como “dar à luz”. Idem, p. 124, e em especial a nota do tradutor.

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e sempre em benefício daquele filho prestigioso. Restava à jovem, portanto, compor uma cena que tinha, afinal, o caráter de falo, de eu ideal, uma cena especular onde desafiava o pai, sem deixar, no entanto, de estar sob a sua lei, como diz Lacan. Por um lado, agia como o filho que ela devia ser, por outro, como o amante, o homem dedicado inteiramente à mulher, com desvelo, lealdade e até sacrifício – no caso, de seu narcisismo, de sua beleza, de seus cuidados consigo mesma. Freud tem razão em ver aí a sobrevivência do antigo amor pela mãe, com a função suplementar de neutralizar o seu ódio a ela. Tem de tudo, mas, por isso mesmo, cabe discernir o essencial, o que move todas as peças, e que é a questão da existência – não a do eu homossexual, mas a do sujeito do inconsciente. Falsa existência? A mentira, a enganação – que vão desde os subterfúgios para ver sua dama até os sonhos enganadores – , mas também a exposição pública a que ela se entrega na composição da cena, introduzem a questão da verdade sobre ela, sobre a sua existência, a qual só se deixa entrever, como um indício do real, na passagem ao ato – ela não serve para nada. É um não-existir em ato ou o ato de não existir, e que se reporta, em última instância, ao sujeito do inconsciente – ao Es, à pulsão de vida que, na operação analítica, se refere mais ao ato que ao ser. Digamos que o ato é o coração do ser. Faltaria, então, só meia volta para constatar que o que não serve para nada pode ser o mais valioso, e concernir ao ato de existir, ao existir em ato. Ora, do mais valioso também se diz que não serve para nada, e por uma razão muito simples, ainda que sua experiência não esteja tão à mão – o mais valioso decide o uso de todas as coisas, não sendo, ele próprio, sujeito a qualquer uso. E por isso não serve para nada, é sem explicação, sem sentido, verdadeiro não-senso. O problema do sonho mentiroso é especialmente revelador no caso da jovem homossexual. Freud elucida o que poderia causar espanto – o inconsciente engana? – com a distinção entre sonho e inconsciente, uma vez que o sonho compreende uma elaboração complexa, uma composição onde entram elementos pré-conscientes que deformam e recobrem a mensagem propriamente inconsciente, relativa ao desejo. A questão em jogo de imediato se resolveria se o desejo fosse o de enganar, mas isso faria do propósito consciente ou pré-consciente o motor do sonho. A jovem tinha perfeita noção de seu interesse em ludibriar, como declara explicitamente que o faria com um futuro marido, isto é, o mesmo que faz com o pai e, por meio do sonho, com Freud. Exceto nos chamados sonhos infantis, o sonho não é o desejo inconsciente, mas o modo como o desejo inconsciente se apresenta. O fato de que os sonhos, desenvolvida a sua interpretação, previssem a cura da inversão sexual, expressassem a alegria da jovem pelas novas perspectivas de vida e revelassem, como observa Freud, seu anseio por um homem e por filhos, 109

entrava em franca contradição com as assertivas dela na vida desperta, o que até poderia reforçar a interpretação dada, supostamente fiel às motivações inconscientes. Mas Freud os denunciou como falsos e hipócritas, destinados a enganá-lo – tal como ela enganava habitualmente o pai –, e viu que além da intenção de desorientá-lo deviam abrigar um desejo de conquistar o seu favor, de agradá-lo e de obter dele uma boa opinião, talvez com o propósito de, em seguida, desapontá-lo ainda mais profundamente. É que um pensamento préconsciente e mesmo consciente pode ser re-moldado por impulsos inconscientes, e assim experimentar uma deformação típica da elaboração onírica. No caso da jovem, tratava-se de um desejo inconsciente, antigo, de agradar o pai. “As duas intenções, de enganar e agradar o pai, procedem do mesmo complexo; a primeira nasce do recalque da segunda, e esta é reconduzida àquela pela elaboração onírica” 139. Freud, pelo encaminhamento que dá ao caso, privilegia a intenção de trair, e embora elucide o fenômeno onírico e sua relação com o inconsciente, deixa este de lado, deixa-o cair, somos tentados a dizer, não exatamente porque o inconsciente revela um desejo amoroso pelo pai, mas porque reintroduz a dimensão da verdade. Em que pesem suas advertências éticas sobre a autonomia do processo analítico, seria preciso que Freud não fosse mais um na série constituída por pais e mestres. Por meios inconscientes, a jovem lhe dizia que, além do seu homossexualismo decidido, havia outras disposições amorosas, uma fixação infantil à mãe, supostamente na origem da atual conduta sexual, desvelos de ternura maternal com um garotinho, certa paixão pelo irmão imediatamente mais velho e o amor ao pai, também antigo, vivo e intenso o suficiente para causar-lhe um profundo ressentimento. Ora, o fato de se sentir pouco estimada por ele, isto é, pouco estimada em seu valor (=potência) existencial, ainda mais incerto pelo modo como se constituiu sua posição solitária de filha entre os demais irmãos, é certamente um fator determinante dos sonhos mentirosos. Esse valor é primeiro estimado no âmbito dos afetos originários. E é no nível desses afetos que a história começa e é em relação a eles que ela desanda, se desconstrói e se reconstrói, sem que eles deixem de ser, todo o tempo, um norte e uma medida. Os sonhos enunciam antes de tudo uma pergunta dirigida a Freud, e neste sentido ele estava certo, eram destinados a ele. Irá compor a série de pais e mestres ou irá ouvi-la, de acordo com a ética analítica? Se Freud sustentasse a análise por todo o tempo não se colocaria no lugar daquele que a jovem quer enganar e, com o passar do tempo, se ele ignorasse essa intenção, desapontar ainda mais profundamente. Ela queria enganá-lo sim, se ele fosse mais um na série. E ele era? Os sonhos eram de fato um problema 139

Obras completas, op. cit., vol. 3, p. 2557.

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colocado pelo desejo. A pergunta enunciada acima, móvel último dos sonhos enganadores, era um ensaio de transferência e já a transferência inteira. Só faltava que Freud a aceitasse, à transferência inteira; ou melhor, que pudesse aceitá-la. Se é certo, como diz Lacan a propósito desse caso, que existe uma glória do pai, a jovem homossexual, rebelde e desafiadora, estava ainda sob o efeito de seu brilho ofuscante. A passagem ao ato ensaia uma evasão deste campo, mas ainda sob os critérios desse campo, e é nisto que compreende uma espécie de juízo final. Ao despedi-la, Freud reedita o juízo. É óbvio que a análise deve conduzir a outra saída. Do mais valioso ao rebotalho, é sempre de um alto valor ou do valor dos valores que se trata no tocante a esse objeto insituável, inquietante, a exprimir, em última instância, em todas as suas vicissitudes, a força constante (konstante Kraft). As vertentes do sentido são definidas em relação às posições do objeto a em cada caso. Se houver idealização de uma figura parental, de um ser do mesmo ou do outro sexo, ou mesmo de uma situação de vida que recubra todos os investimentos afetivos, diremos que os acontecimentos subjetivos se conformarão ao sentido dessa idealização; ela será o móvel último e a explicação última das experiências do sujeito. Se o objeto erótico, seja uma mulher ou outro, decidir sobre o destino que é dado a cada evento da vida, pelo menos aos mais importantes, veremos que no fundo desses eventos se estende a linha que os estrutura, e é aquela que nasce e aporta na relação erótica. Pode-se dar ainda que as ações em geral encaminhem uma única e insidiosa ação suicida, sob a forma de uma doença, de uma depressão, de um acidente ou de um desfecho suicida planejado. É verdade que esses sentidos desvelados constituem, a cada vez, os limites de um estrato e um grau determinado de inconsciência. O objeto a de Lacan fechava um campo e, por assim dizer, abria outro, mas abria outro na medida em que se dissipava na pulsão, como saber e falência do sentido (daquele estrato, bem entendido). Alguém pode morrer de fato por não ter decifrado o enigma de um grau de experiência que apontava para a morte, e ter deixado, assim, de penetrar em outro estrato, onde as questões já seriam outras. Morrese por ignorância e por falta ética 140. Nada impede de pensar que esses 140

Binswanger, com base em sua analìtica existencial, pensa algo similar com a noção de “exaltação”: “(...) exaltação significa aqui mais que uma mera classificação, enquanto não somente se trata de uma impossibilidade do continuar no sentido da experiência, senão de um estar imobilizado e fascinado em um certo degrau elevado da experiência humana. A „escala da altura‟ – tão extremamente móvel – desta problemática não é compreendida aqui em sua essência; é imobilizada ou absolutizada em determinado „problema‟, um determinado ideal, uma determinada ideologia. Se aqui ainda se faz „experiências‟, elas já não são valoradas, nem se as faz valerem como tais, pois „o valor‟ está fixado de uma vez para sempre”. Binswanger, L., Tres formas de la existencia frustrada, p. 28, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1972.

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estratos são construções, cada qual realizada ao seu tempo, desde que se tenha em vista o poder obscuro e pré-existente de determinação, o que torna o problema da construção – de modo algum superado – mais delicado, mais sutil que o da construção de uma casa segundo uma planta pré-existente. Só se constrói quem se é, o que passa a ter o sentido de uma reconstrução. Às vezes, no entanto, pareceria mais uma reconstituição, ou mesmo uma conquista. Possuir sua própria potência. Com efeito, também se conquista quem se é, como se pode perder de vista, de vez, quem se poderia ser. A expressão “quem se poderia ser” é justa, pois não há garantia de que se seja quem se é – ou, em outras palavras, que se exerça aquilo que se pode. Scott Fitzgerald escreveu um pungente depoimento sobre o enigma de quem se é ao recordar e, de certo modo, homenagear, seu amigo íntimo Ring Lardner, dois anos depois de vê-lo à beira da morte num leito de hospital, contra todas as expectativas. “Jamais senti que o tivesse conhecido o bastante, nem que alguém o conhecesse – não era uma sensação de que havia nele mais substância e que ela deveria aparecer, era antes uma diferença qualitativa, como se, por alguma inadequação em nós mesmos, não tivéssemos penetrado em algo não-resolvido, novo e inédito. É por essa razão que desejamos que Ring tivesse escrito mais sobre o que havia em sua mente e em seu coração. Isso o teria conservado por mais tempo entre nós, o que por si só já seria bastante. Mas eu gostaria de saber o que era e agora vou continuar a desejar... o que Ring queria, como ele queria que as coisas fossem, como ele achava que as coisas eram?” 141 Uma interpretação consciente e sensata dos fatos pode não estar de acordo com os atos. São estes, dos acidentes aos lapsos de linguagem, os elementos de precisão analítica, o meio fidedigno de determinação do sentido oculto. Este, contudo, também vela, e pode encobrir um estrato inteiro. Muitos são os estratos, e seu conjunto confina com o que não é mais estratificado. O objeto a é o recorte da pulsão no campo do Outro, do mundo ou da cultura, é o seu modo de captura na ordem do discurso e nos dispositivos políticos, e como tal oferece, ao mesmo tempo, um testemunho direto da divisão subjetiva e um testemunho indireto do que sobra fora do mundo. É a diferença, porém fagocitada. Lacan dizia que seu objeto a era sempre um único objeto, aquele que faz obstáculo ao imaginário e sua tendência englobante. Ele constitui furo, falha, diferença. O que denominamos captação da pulsão no campo do Outro é exatamente esse englobamento imaginário. Se a captação não é definitiva, isto não a impede de se exercer, compondo uma imagem e uma idéia daquilo de que não se tem idéia nem imagem. Não é por 141

Fitzgerald, S., Crack-up, p. 42, L&PM, Porto Alegre, RS, 2007.

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ser imaginário que esse englobamento não se efetua em prática. Tudo se pratica. Uma pessoa que viu, repetidas vezes, a sua manifestação de vida mais singular – seja uma atitude humanitária ou uma obra poética – ser tratada de maneira ligeira e rude no seu meio familiar e social, pode desenvolver, se alguma fragilidade pessoal a predispuser a isto, um delírio de perseguição em que suas palavras, seus enunciados de modo geral, passam a sofrer uma deterioração imediata, sobrevindo-lhe do exterior, em qualquer cotidiano incidente, como agressão e zombaria. Como se capitulasse frente a um mundo inóspito que, por sua vez, tomasse a dianteira, expropriando-a de suas palavras e servindo-se delas, não sem transmutá-las em signos hostis, venenosos. Digamos que se trata de um delírio interpretativo francamente persecutório, permeado de alucinações auditivas, mas isso apenas evidencia um modo de captação da experiência pulsional pelos dispositivos micro-políticos do socius. Essa experiência pode ser neurotizada, pervertida ou psicotizada, de acordo com um procedimento que, sendo intrínseco à captação mesma, é a razão de seu sucesso. Mas quem quer que sofra esse naufrágio não é inocente de sua sorte. A presunção de domínio sobre uma ação ou uma realidade que estava longe de ser conhecida (eis um tipo de fragilidade) pode perfeitamente resultar na falência da condição de dizer, a par de uma irrupção incontrolável das falas mortíferas que desqualificam, as “falas impostas”. Os sentidos de partida já não são os de chegada e, se estes prevalecem, a morte subjetiva é iminente. É possível reduzir a zero a diferença? Há toda uma graduação do sentido até sua degradação terminal, de acordo com as vicissitudes da pulsão no campo sóciohistórico. O sentido, quando não é mais o sentido originário da pulsão, é apenas uma ponte ficcional, uma fantasia de união com a qual se conjuga a pulsão e o mundo, a pulsão e a cultura, servindo de esteio a toda sorte de compromissos de bom senso e de senso comum. No delírio persecutório que descrevemos o compromisso parece desfeito; há uma dissonância violenta entre o que o sujeito diz e o que lhe retorna da sua mensagem. A objetivação de suas palavras não se distingue mais de uma trama de invasão desconsiderada, segundo a qual a intimidade (ou o fora de toda identificação, a diferença existencial) é vivida como devassada, expropriada, quando precisaria ser discernida e decididamente exercida. Mas o que faria o desejo cair nessa armadilha, senão a força de uma idealização? Do ponto de vista pulsional, aí residiria a falta ética. Por exemplo, idealização da união referida acima, adesão a algum ideal de eu que, como instância de autorização, continua em vigor, coexistindo com a decepção sofrida. Há sempre o vetor niilista do surto psicótico, precariamente recoberto pelo delírio. O amor se converte, a todo o instante, em derrisão. Como se a boa fé do amor se visse, de repente, drasticamente abalada, mas se 113

conservasse mesmo assim. Continuar acreditando no amor quando os seus signos se mostraram profundamente enganosos... O que demonstra a acuidade freudiana em constatar a incidência da atitude renegatória não só nas perversões como também nos processos psicóticos. Enquanto nos primeiros a transgressão confina com a lei na produção de um mesmo objeto fetiche, nestes a experiência da crença obstinada e a de sua falência aguda compõem um único flagelo. Crença e falência perfazem o conjunto do delírio de intrusão Essa mortificação não cessa enquanto não se operar a dita retificação subjetiva, ou seja, o retorno à pulsão ou o retorno da pulsão, que é igual ao seu exercício. É o caso, desta vez, do sujeito que sustenta a todo custo, frente a um diagnóstico opressor, formulado por uma medicina psiquiátrica aos seus olhos incauta, a idéia de que teve, não um surto paranóico-esquizofrênico, mas um surto mediúnico, o que é inteiramente diferente. A captação de que falamos tende a ser subvertida pela escuta analítica, na medida em que esta se volta à ordem originária dos afetos. Inversamente, essa escuta pode ser solapada pelas modalidades reiteradas de captação de um dizer – o qual, possivelmente, subsiste em estado crítico, beligerante – e sua redução a algo semelhante ao que Lacan chamou, no seminário O sinthoma, de “falas impostas” 142. O estranho é ver que nesse momento do Seminário o próprio Lacan exemplifica a passagem da escuta analítica à captação alienante da maneira mais infeliz possível, ou seja, demonstrando como o analista, no caso ele mesmo, pode ser a instância (possivelmente ideal) de transmutação do dizer em fala imposta. Como Lacan não viu, e parece de fato ignorar, que o sujeito que ele diz atender e que se auto nomeia “telepata emissor”, exprimindo deste modo a impressão enlouquecedora de que todo mundo era avisado de suas mais ìntimas reflexões, inclusive sobre as “falas impostas”, a ponto de não ter mais segredos, nenhuma reserva, o que, diga-se de passagem, o teria levado a uma tentativa de suicídio – como, repetimos, Lacan não viu que este paciente era objeto de uma apresentação de caso onde, evidentemente, achava-se exposto a uma fala – a de Lacan – que se servia da sua mas não era mais a sua, a uma fala imposta? Essa passagem do Seminário faz lembrar a menção irônica e crítica de Ronald Laing, no início do livro O eu dividido 143, a uma apresentação de caso realizada por Kraepelin, onde este não ouve que o delírio do seu paciente esquizofrênico, descrito como alheio à realidade, se referia à situação presente de exposição e de objetivação a que era submetido. Um descaso como o de Lacan lança uma suspeita sobre o que, de modo geral, se pensa estar em jogo numa escuta analítica. 142 143

O sinthoma, op. cit., p. 92 e 93. Laing, R. D., O eu dividido, Vozes, Petrópolis, 1978.

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O sentido simbólico-imaginário (fora do real) é o sentido da fantasia, é a própria fantasia de união com o Outro, o mundo e os outros, todavia desfeita ou profundamente abalada nas experiências psicóticas. Mas essa união, cujo aspecto mais imediato, mais superficial, é o da comunicação, é possível? É viável uma junção da pulsão ao campo do Outro, da ex-sistência – como escreve Lacan para demarcar a separação – e do mundo? O sentido simbólicoimaginário e a fantasia em que ele se resolve asseveram, por sua própria natureza, que não. Sobra o real. O objeto a de Lacan, na qualidade de ser sempre o mesmo, não tem outra função que sustentar a denúncia dessa obstinada ficção, tão obstinada quanto a pretensão de captura total de que falávamos há pouco. Essa obstinação é muito comum e parece resguardar uma certa economia do socius. A impressão freqüente de não se dizer tudo, inclusive e muito especialmente numa análise, decorre, em parte, das resistências que se opõem à palavra, em parte da fantasia de que existe uma totalidade a ser dita, e de que é possível dizê-la. Mas existe uma incursão vitoriosa nesse campo de relações instáveis entre a pulsão de vida e o mundo. Trata-se da sublimação, e por um motivo oposto ao das fantasias de completude, na medida em que estas são fixações ou estases do processo pulsional. A sublimação introduz diretamente uma diferença no mundo, um ponto de vista insuspeitado, o qual se caracteriza, essencialmente, pelo poder de reabri-lo e mantê-lo em aberto. Kafka e Dostoievski inviabilizam para sempre definições exaustivas do mundo humano e da pulsão. E é por isto que a comunicação (de inconscientes) em análise é bem sucedida. Daí a visão sustentada por certo número de psicanalistas 144 de que os diversos sentidos aos quais se chega em análise a propósito de um dado sintoma são equivalentes e, finalmente, arbitrários. Todos já compreendem a derivação da experiência pulsional pelo campo sócio-histórico, já denunciam sua captação, sua père-version. O sujeito é alcoólatra porque na infância seus pais se separaram, mas também era uma forma de eliminar a ansiedade frente aos colegas e amigos. Havia também o fato de seus pais, duros, explosivos, castigarem-no violentamente na infância e no início da adolescência. E o alcoolismo público e quase sempre escandaloso do pai não estaria, mais que os outros fatores, na origem de sua dependência? Como decidir pelo sentido determinante? Mas, na verdade, os sentidos não se propõem de modo aleatório e equivalente, ao menos não deveria ser deste modo. Se a análise é conduzida adequadamente, se ela é conduzida no sentido da pulsão, da diferença 144

Por exemplo, Colete Soler, (em Variáveis do fim da análise, p. 108, Papirus, Campinas, 1995): “È, pois, um problema para a psicanálise, porque ela opera com o sentido, dá sentido aos sintomas.. Mesmo que seja para reduzir o sintoma a seu centro de non sense, este passa pela elaboração do sentido. O inconveniente é que este „dar sentido‟ tem o mesmo procedimento que o delìrio; e assim podemos dar sentido para tudo”.

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absoluta, os sentidos se encadeiam e se ordenam segundo a força do sentido superior, mesmo que este, no seu próprio nível, neutralize ou dissolva os anteriores. Mais profundamente, porém, ele os redime a todos. É que ele era o pressuposto de todos eles, tanto quanto a razão constante de sua subversão. Aproximando verdade e poesia, Hölderlin descreve essa ordenação do sentido pulsional de modo cristalino: “A verdade mais verdadeira é, unicamente, aquela em que também o erro torna-se verdade, na medida em que a verdade dispõe do erro no todo de seu sistema, em seu tempo e lugar. Ela é a luz que ilumina tanto a si como a noite. A poesia mais elevada é também aquela em que o não poético se torna poético porque, no todo da obra de arte, se diz no tempo e no lugar oportunos”. 145 Em seu próprio nível, o sentido pulsional não coincide com nenhuma das versões que recebeu no campo sócio-histórico. Na verdade, por ser originário, é inexplicável. Se resulta de todos os outros por uma espécie de exaustão dos sentidos, é também o que eles velavam. E por isso existe uma direção de análise. Não vem ao caso saber, observa Soler, as razões pelas quais a menina anoréxica não fala, pouco importa os sentidos de sua anorexia; interessa fazê-la falar, como dizia Lacan em seu seminário 11 146. Ora, é exatamente na reconstituição de uma eficácia prática, na medida em que se reporta à atividade imanente denominada pulsão, que reside a dobra ou o sentido pulsional. Os sentidos de uma história individual, bem como de cada evento dessa história, podem ser vários, como inclusive é o caso do sentido de um desvio do sentido superior, que é um desvio daquele sentido que esclarece todos os outros. Esclarecer todos os outros sentidos significa revogá-los, não estar mais no seu campo de incidência; só assim se poderia falar em “fora” do corpo, em terceira visão, lugar de entendimento e uso desimpedido da linguagem. Acreditamos que ao se referir ao “sentido real” Lacan pretendia pôr em relevo um poder de determinação não eliminável, o que aqui chamamos de sentido superior. Não se trata de instaurar um modelo moral no âmago do processo do desejo, muito pelo contrário; na verdade, os modelos é que são decalcados, à maneira de reflexos invertidos e distorcidos, das condições originárias de que falamos. O extraordinário é que Freud descobriu o campo pulsional e suas alturas, seus graus de exercício, precisamente por ter visto, na decifração dos fenômenos sintomáticos, uma determinação constante que só é oculta em face de seu não-exercício. É como o plano de consistência de Deleuze, ele não préexiste à sua constituição, mas é assim mesmo o pressuposto de todos os acontecimentos, de todos os afetos. 145 146

Hölderlin, F., Reflexões, p. 25, Relume Dumará, RJ, 1994. Variáveis do fim da análise, op. cit., p. 108. O seminário, Livro 11, op. cit., p. 18.

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Mais uma vez: se há um salto na direção do não-senso, é porque os sentidos anteriores perdem o sentido ou a força em vista do superior – que supera a todos. Sublimação. Cada vez mais, a cada transposição de fronteira, até a última, que chamaremos de metapsicológica em homenagem a Freud, torna-se mais evidente, precisa e incontornável a questão ética. Ela já incluía o fato de que as fronteiras são problemas éticos. Digamos que se trata de atingir, na palavra de Nietzsche, a hora do meio-dia, a hora da menor sombra. Esta posição mesma será uma prática, rara e difícil; dela porém, que é a mais obscura, a mais escondida das posições, aquela que justifica para sempre o nome de inconsciente, se originam todas as clarezas e facilidades. Mas que seja obscura, escondida, inconsciente, não exclui, bem entendido, que seja construída, constituída, instaurada. Dado o nosso miraculoso cérebro, é preciso ainda habitá-lo. Cabe aqui uma epígrafe de Beckett, em Malone morre: “tudo já foi dito, e nada foi dito ainda”.

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AS FORÇAS PULSIONAIS – AGIR, AVALIAR, EXISTIR... Este capítulo evocará constantemente as filosofias de Nietzsche e de Bergson. Acreditamos que a aproximação fecunda da psicanálise com essas duas linhagens de pensamento deve prosseguir, não obstante tudo o que já rendeu. Com o tratamento que damos à noção de pulsão e tendo em vista um melhor esclarecimento da mesma, esperamos, de nossa parte, contribuir um pouco mais para esse diálogo clínico-filosófico. Um sonho à velocidade da luz Zélia se vê num lugar ao ar livre, onde se desenvolvem treinamentos físicos para jovens da polícia federal. Era requerido dos atletas algo próximo ao movimento de reviravolta observado em natação, quando se chega à margem e se impulsiona, com o pé, o reinício do nado. Embora o exercício não fosse na água, o pé se aplicava, do mesmo modo, a um suporte que permitia a renovação do impulso. Zélia, que deveria participar desse treinamento, reage, rindo, com excelente bom humor: onde se viu, na sua idade, submeter-se a tal acrobacia! Isso servia para a gente forte e atlética da polícia, não para ela. Em seguida, procura instalar-se numa prancha de madeira que funcionava à base de corda. Para colocá-la em aceleração máxima, de modo a atingir a velocidade da luz, era necessário dar pelo menos dez voltas na corda. Desvia a atenção da prancha, por alguns instantes, ao perceber a presença de M., mulher admirável, já falecida, e que se envolvera, no período da infância de Zélia, em lutas agrárias. Era uma dessas mulheres capazes de empunhar carabina e de liderar movimentos de resistência. M. lhe entrega uma espécie de dossiê, muito bem escrito, de todo o estado de corrupção política do país, mapeado com todas as suas nuances e interrelações. Pensa imediatamente que A., da polícia federal, e S., sua assessora, amiga recente de Zélia, deveriam ser os primeiros a ler aquele primoroso e claríssimo texto. Volta à prancha, desta vez com A., e a corda exigida é dada. Disparam e somem na velocidade da luz. Nunca um sonho de Zélia pareceu tão claro. Como pode o sonho ser notoriamente mais preciso, mais lúcido, que a vigília? Era exigido, ou ela se exigia, pouco importa nesse estágio da interpretação, um esforço, uma capacidade atlética, uma habilidade para fazer piruetas que, embora fossem oniricamente admissíveis para jovens treinados, eram inimagináveis para as condições físicas de uma mulher como ela, já de certa idade. Tratava-se de uma metáfora magistral do esforço psíquico a que se entregava há mais de dois anos, com o intuito de colaborar nas investigações de corrupção 119

deflagradas pela polícia federal. Mais de um especialista sugeriu-lhe que havia uma proporção de delírio nesse envolvimento intenso, segundo estimativas que variavam de vinte cinco a três por cento, conforme as flutuações da racionalidade clínica. O esforço despendido, desproporcional à sua condição de cidadã comum, combinava-se com a idéia, explicitada no sonho, de uma extrema aceleração. Logo atingiria a velocidade da luz, se desmaterializaria e sumiria. O texto perfeitamente escrito confirmava, feito prova suplementar, essa leitura do dado onírico, pois Zélia já detinha de maneira clara e exaustiva todo o mapa das irregularidades no país, antecipando-se às pesquisas que o eminente investigador da polícia ainda precisaria efetuar. Em ulterior apreciação do sonho, Zélia informa que o dossiê continha também uma descrição minuciosa da estratégia de ação, ampla e complexa, que seria empregada para o saneamento total do estado de coisas. Ela percorre assim, em velocidade máxima, seu miraculoso mapa. É por isso que, pela terceira vez que decide caminhar – de maneira a realizar, por motivo de saúde, um exercício físico ultra-recomendado –, torce o pé e cai. A velocidade vertiginosa, à beira da desmaterialização, mantém seus pés longe do chão. O sonho, como já dissemos, problematiza os termos de uma experiência, indicando vias de mudança, linhas de fuga, dimensões existenciais e linhas de abolição, para usar termos de Mil platôs. Será que se trata, para Zélia, de desacelerar, de reencontrar, por assim dizer, o ponto em que a linha vertical de puras virtualidades se cruza com a horizontal de atualizações existenciais, o ponto crucial, portanto, da encarnação – en corps, encore...? Seja como for, a pulsão é, nela própria, correção, ajuste, medida para o imensurável, graduação para o intensivo, sendo ela mesma imensurável, ela mesma intensiva. É saber dela própria, e por isso, como insistimos ao longo deste trabalho, é saber de não-senso. Ou seja, não um saber meramente intelectual, ou meramente racional, e sim um saber vivo, afetivo, intensivo, imperioso do ponto de vista da pulsão, por mais que possa ser desconhecido, recusado. O sonho coloca um problema quanto à escolha em jogo: neste ritmo, nesta velocidade, empreendendo tamanho esforço psíquico, Zélia irá sumir do mapa. Diz, portanto, que ela deve calibrar o ritmo, não chegar à corda máxima, às dez voltas. Exprime assim um saber pulsional, isto é, um saber da condição de escolha. O texto onírico se resolve como um ensaio fronteiriço, e algo decisivo, de interlocução inconsciente ou de transmonadismo, conforme a expressão de Guattari; conta, por assim dizer, com a intervenção analìtica e sua ética originária: “é isso, finalmente, o que você quer – desaparecer?” Zélia parece freqüentar um mapa ideal, decidido de uma vez por todas e inteiramente definido, ainda que sua efetuação esteja em curso. Ela espera 120

impaciente; desmaterializa-se, pois todo o mapa já foi percorrido à velocidade da luz. Mapa-ideal-em-velocidade-máxima – o que será isto? Ela se lança, decidida, em uma linha de abolição, o que não se confunde com o que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização. Qual é a diferença? Desterritorializar não é desencarnar. Embora se faça relativa em numerosos casos, a desterritorialização tende a ser absoluta, enquanto uma linha de abolição não é outra coisa que a interrupção dessa tendência. Neste caso, a vida em suas condições superiores, absolutas, não será mais alcançada, não por meio daquela linha. Uma bússola secreta, inconsciente, indica, contudo, a direção segundo a qual a tendência ao absoluto – ou a tendência absoluta – não será interrompida, ainda que se demore, se gradue, dê voltas, serpenteie: ela esposa sempre uma linha de retidão. Que bússola é esta? Talvez venha de Bergson a resposta mais profunda: é a duração, é o tempo, o devir. É que ali onde se perdeu de vista a duração, a morte espreita. Deixemos isto mais claro. No sonho de Zélia exerce-se um poder de avaliação, um poder do vivo, cujo domínio é o da duração. O saber pulsional não reside em um princípio de realidade, mas em um princípio do vivo, no qual se funda o ato livre, por mais raro que seja. Procuremos esclarecer um pouco mais. O domínio da duração é o domínio das tendências vitais, e o que aí se encontra em jogo, fundamentalmente, são as tendências a um aumento de vida e à sua diminuição. O limite da diminuição coincide com a interrupção mortal de que falávamos. O aumento, em contrapartida, é ilimitado. Ora, o saber se refere a um poder de escolha, e de tal modo isso é de consistência ética que esse poder – só existindo em ato, como tudo o que diz respeito à pulsão – já é uma escolha em curso. Dela só pode resultar um aumento do mesmo poder = aumento de vida. Acreditamos que uma linha de vida superior, de modo geral obscura, se deixe entrever aqui e ali nas formações do inconsciente, e muito especialmente nos processos sublimatórios diretos. É ela que garante, na medida do seu exercício, uma estranha univocidade do ser, que não é mais ontológica que prática e ética: “... para cada dia, e cada hora, só uma ação possìvel da gente é que consegue ser a certa”. Mas, por isso mesmo, não se deve esquecer que a escolha em curso, fazendo justiça a um poder pulsional de escolha, não é necessariamente escolhida, não é naturalmente exercida. Muito pelo contrário. Ela só existe mediante um esforço, uma determinação ética, e só se resolve, efetivamente, como prática constante. O dizer obscuro que leva o nome de Zélia não deixa de insinuar no texto onírico a seguinte proposição filosófica: por mais complicada que seja a trama da corrupção no país, subsiste um poder de escolha e uma indeterminação tais que atravessam de longe essa trama, à velocidade da luz. Virtualmente, a dita trama tem seus dias contados. Uma linha de fuga, cruzando mundos muito 121

mais complexos, levará de roldão, e à luz do dia, o conjunto das irregularidades políticas e das estratégias de limpeza geral 147. O processo onírico parece esposar, assim, uma insuspeitada imanência, subscrevendo a observação de Freud de que um sonho nunca é suficientemente analisado. Não se trata de otimismo, mas de realismo pulsional – o que, repetimos, não garante a vida real a ninguém, pois ele precisa ser exercido. Espécie de “cavaleiro da fé”, Zélia erra, no entanto, o alvo, pois tudo lhe parece decidido de antemão, quando tudo só se decide em ato, a cada vez. Já vimos que o umbigo do sonho se esclarece, de modo geral, como poder de escolha. Será que se encontra no cruzamento do virtual e do atual – ponto móvel em que o vivo alcança a sua potência máxima? Potência de agir, liberdade de movimento. Não se deve, entretanto, confundir o virtual com o ideal. Deleuze insiste: o virtual é real. Mas o que os distingue? A experiência tende a confundi-los, por razões a serem exploradas em cada caso. Se o mapa virtual se redefine por inteiro a cada vez, em consonância com as atualizações existenciais, o ideal está decidido de uma vez por todas. O ato livre decorre diretamente do todo virtual, mas está eliminado do mapa ideal, ao qual correspondem, em contrapartida, os atos de abolição, ou o que denominamos de pulsão de morte. Eu ideal e ideal de eu efetuam assim, em suas projeções mais avançadas, uma linhagem sombria, mortuária. Zélia, a bem dizer, não precisa de um corpo, mas a pulsão não a livra do corpo. Pelo contrário, ao avesso e de modo contundente, exprime a encarnação-Zélia e uma potência de escolha. Ou seja, subverte, no limite do limite, o plano ideal. É outra maneira de dizer que o virtual não pode ser pensado sem aquilo que o atualiza (e em que ele se atualiza) diretamente, a saber, o afeto. Como dissemos, as potências da vida estão no cruzamento. Por que no cruzamento? Não existe vida, por mais desconhecida, sem o ato que a atualiza em certo aspecto. Desse lugar móvel saem, como numa espécie de jorro constante, as formações do inconsciente. Elas testemunham com maior ou menor intensidade o que Deleuze, ao analisar a pintura de Bacon, descreveu como próprio das sublimações originárias – esse modo pelo qual a vida grita para a morte e a expõe à luz, tornando-a visível e até mesmo aliada. A vida julga a morte, e não o inverso, “no qual nos comprazìamos”. Parecia, até então, que estávamos vivendo, mas estávamos morrendo. Postulamos o seguinte: as formações do inconsciente são como pequenos ensaios de sublimação, um murmúrio 147

Há uma espécie de mensagem filosófica de Bergson, em A evolução criadora, que poderia corresponder à proposição do sonho de Zélia: “O animal tem a planta como ponto de apoio, o homem cavalga na animalidade, e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, à frente e atrás de nós, numa arremetida capaz de vencer todas as resistências e de atravessar todos os obstáculos, talvez até a morte” (Bergson, H., A evolução criadora, p. 267, Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura, Editora Delta, RJ, 1964).

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incessante. É toda uma inquietação do real, toda uma justiça, indissociável do exercício móvel e mutante da micro-língua. Assim, uma das imagens do sonho em questão é o plano ideal em que Zélia se instala (o dossiê completo e, equivocamente, a prancha na velocidade da luz – na medida em que remete tanto ao ideal como ao virtual); mas o plano onírico inteiro compreende o plano virtual-real em que os problemas se colocam e mais a sua atualização afetiva, existencial – o conjunto, portanto, do que chamamos de poder de avaliação e de escolha em ato (ou decisão em curso). É evidente que o afeto “atualizador” só pode ser pensado em vista do plano virtual que ele atualiza em certo aspecto, ainda que um afeto possa atualizá-lo por inteiro em determinados casos 148. Mas o que se deve pensar desse plano virtual-real, em que consiste? Já o abordamos em outro momento, referindo-nos à vida em suas condições superiores 149. Existem filões de vida inconsciente ainda não realizada, graus de poder e de avaliação ainda não experimentados. O virtual remete assim a uma vitalidade inconsciente, real, porém não realizada, e que não pode ser destruída ou abolida. Graus e graus de vida desconhecida. É em relação a essa vitalidade que situamos os afetos originários, afetos que a atualizam diretamente, e que parecem ser dotados de 148

Atualização por inteiro do virtual – acreditamos que consista nisto a conjugação feita por Deleuze do plano de imanência com uma vida. Ora, essa atualização por inteiro do virtual é, sem dúvida, uma vida (= um modo de ser afetado...), o que Lawrence chamava de vida maior. É uma espécie de acontecimento eterno. O plano de imanência, o virtual por inteiro (atualizando-se) e a univocidade do ser designam, provavelmente, a mesma coisa. O que nos interessa acrescentar é que essa coisa só existe, só se atualiza, mediante uma prática. Não existe sem que seja feita. Daí a importância da atualização, da existência, do afeto, do agenciamento, da sublimação. Talvez o que chamamos de pulsão seja o cruzamento... Cabe ainda a seguinte observação: o virtual por inteiro é o aberto, não o completo, e por isso só se esclarece pelo poder de escolha e pelo ato livre. A mesma necessidade lógica (e ética) faz Lacan dizer que o analista pertence ao conceito de inconsciente. Não haveria inconsciente sem analista, isto é, sem ato de intervenção inconsciente, isto é, sem pulsão. 149 A assimilação do virtual às condições superiores da vida já aparece em Bergson, especialmente em A evolução criadora, “onde a própria vida é comparada a uma memória, correspondendo os gêneros e as espécies a graus coexistentes dessa memória virtual”. Bergsonismo, op. cit., p. 61. Diz Bergson na obra mencionada: “Se, no seu contato com a matéria, a vida pode ser comparada a um impulso, considerada em si mesma é uma imensidão de virtualidade, uma apinhar-se de mil e uma tendências, que todavia só serão „mil e uma‟ depois de exteriorizadas em relação umas às outras, isto é, uma vez espacializadas. (...) Efetivamente, a matéria divide o que só virtualmente era múltiplo, e, nesse sentido, a individuação é em parte obra da matéria, em parte efeito do que a vida contém em si”. A evolução criadora, op. cit., p. 256. Essa parte relativa ao que a vida contém em si, e que se insinua e se preserva, em intensidades variáveis, na individuação, permite falar em uma atualização do todo virtual ou do virtual por inteiro, pois é isto que sempre acontece. O todo virtual, segundo Bergson, se dissocia segundo linhas de diferenciação – é o seu modo de se atualizar -, mas em cada linha de atualização dá testemunho ainda de sua totalidade subsistente. “A diferenciação é sempre a atualização de uma virtualidade que persiste através de suas linhas divergentes atuais”. Bergsonismo, op. cit., p. 76. Embora o homem mesmo seja uma linha de diferenciação da vida, a margem de presença ou de subsistência do virtual nessa linha de atualização específica parece, contudo, não ter limites. A atualização ilimitada se efetua como sublimação (enquanto destino originário da pulsão). “Dir-se-ia que no homem, e somente no homem, o atual torna-se adequado ao virtual. Dir-se-ia que o homem é capaz de reencontrar todos os níveis, todos os graus de distensão e de contração que coexistem no Todo virtual... E as durações que lhe são inferiores ou superiores são ainda interiores a ele. Portanto, o homem cria uma diferenciação que vale para o Todo e só ele traça uma direção aberta, capaz de exprimir um todo aberto” (p. 87).

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sua virtude – como ela, são indestrutíveis, imperecíveis. Não é sem razão que a prancha é de madeira, à base de corda, como um brinquedo de infância, e que Zélia se depare com M., heroína dos seus primeiros anos. A força do sonho ou do delírio é o afeto extemporâneo, imperecível. Há, além disto, um gozo evidente, de conteúdo erótico, na parceria com A., ambos instalados, finalmente, na prancha infantil, à velocidade da luz. O notável é que esse gozo é saber, saber do sonho, saber vital. A, o investigador, é o conhecimento de Zélia, e tal é, sem dúvida, o desejo do sonho. A ciência dos processos oníricos deveria ser, como pretendia Freud, a psicanálise. Mas ela só é ciência dos sonhos quando parte do pressuposto de que o sonho é, ele próprio, ciência, ciência do outro, ciência em movimento, ciência em processo, e isto em vários sentidos. Por exemplo, existe a participação do investigador no sonho de Zélia – aquele que deve tomar conhecimento do mapa (virtual/ideal); alude, possivelmente, ao analista e à sustentação de um saber ignorado. Mas há também M., referência ideal, que detém o mapa e oferece-o a Zélia: dir-se-ia que o inconsciente é concebido assim, sob uma forma idealizada, como A Mulher, sem que o A esteja barrado, o que significa o seu fechamento. É em sua abertura, porém, é em seu devir que o inconsciente se mostra no sonho, sendo o processo onírico mesmo a abertura, o anúncio e já o devir. O sonho é o ato, é o novo, mas na medida em que integra um terceiro momento, além do sonho propriamente dito e de sua recordação em vigília, que é o de seu relato e de sua decifração em análise, conforme o caráter “trans-monádico” ou extra-pessoal apontado anteriormente. Todos os “outros” – A., M., o analista – remetem à pulsão, que os atualiza como dados de um problema, não sem se atualizar ela mesma sob o aspecto móvel e imprevisto da formação onírica e sua decifração. Esta, contudo, se distingue cada vez menos do saber de não-senso em ato. Agir, avaliar, dizer, existir O fenômeno clìnico e cotidiano da “negativa” 150, versão intelectual do recalque, demonstra em ato a separação, verificável em muitos campos da atividade humana, entre as funções intelectuais e os processos afetivos, supostamente unidos na origem. Em que realidade primitiva, embrionária, não-realizada ou superior estariam unidos? É um dos nódulos da descoberta freudiana: a pulsão é ao mesmo tempo idéia e afeto, força e sentido, natureza e cultura. Para se entender essa conjugação originária, é preciso ter em conta 150

A negativa (ou denegação) é um meio de inclusão na argumentação consciente de uma idéia até então recalcada, com a condição de que essa idéia seja negada – “eu não quis dizer isto” –, permanecendo excluído o afeto correspondente.

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que a expulsão ou separação regida pelo princípio do prazer, conforme se lê no texto sobre a “negativa”, procede do eu e de sua constituição ideal, e não da pulsão que, nesta operação, se reduz ao não-eu, ao estranho, ao exterior e ao mal – tornando-se, paradoxalmente, objeto de rechaço e recalque. O eu ideal se constitui ao separar-se do que não poderia de modo algum incorporar, e assim deixa de fora as diferenças irredutíveis que fariam dele um eu estilhaçado. Estado ideal, idealizado, subsiste em confronto com a multiplicidade real e seu devir, isto é, com o nomadismo pulsional. Mas o que chamamos de pulsão em psicanálise não é, por sua vez, um estado de natureza, em eventual confronto com as instâncias egóicas e culturais, e sim a reconstituição ativa e constante, mediante ensaios e atos sublimatórios, daquela multiplicidade real. Neste caso não há mais distinção entre vida e pensamento. E o que é o desejo (essência da realidade, segundo Lacan) senão isso – vida e pensamento? A separação re-atualizada pela negativa parece garantir, todavia, a função da consciência e mesmo do pensar, conforme uma das proposições do texto freudiano. Mesmo assim, de nossa parte, deixamos de conceber um estado primitivo de indistinção inconsciente para insistir, em contrapartida, em uma realidade superior onde a separação não mais se verifica, embora permaneça não-realizada. Como resolver esse impasse no plano especulativo, sem fazer a consciência submergir de novo na inconsciência, uma vez que, para uma leitura já canônica do dito texto, a negativa, apesar de contornar o afeto, salva a consciência e libera o pensar? Ao ingressarmos, porém, no terreno da análise, a questão deixa de ser apenas especulativa e passa a ser também clínica. Já compreende uma reversão no pensamento, pois o clínico reorienta o especulativo. É que o descolamento da função intelectual do processo afetivo faz perder de vista o poder de avaliação dos afetos. Não é uma operação essencial, no sentido de que dela dependeria todo o pensamento, e sim uma leitura hegeliana da exposição de Freud, ou de uma das vertentes dessa exposição – a operação do negativo liberando o pensar. Para uma visão psicanalítica, é apenas uma modalidade de pensamento. A análise mesma consiste em uma prática do pensar distinta, a ser aprendida e a cada vez reiniciada, envolvendo a ciência dos afetos (nos dois sentidos do genitivo latino). É de fato curioso como tudo aparece invertido na ordem do pensamento quando se começa com a negação. A princípio estaríamos procedendo a uma limpeza, deixando os afetos de lado e desenvolvendo a função intelectual – o cálculo despojado, o juízo, a capacidade de ajuizar, de ser imparcial. Mas nos traìmos, pois a proposição “não é isto” com a qual afastamos a dimensão afetiva e utilizamos a idéia, embora nos situe, efetivamente, no plano estrito das idéias, deixa-nos aí com um pé em falso: 125

reintroduzimos sub-repticiamente, na própria operação, o elemento não intelectual, pois todo juízo negativo pressupõe uma expectativa que não se cumpriu, ou um modo de prevenir o interlocutor, ou ainda uma defesa. Uma célebre análise bergsoniana da negação 151 reencontra aqui posições freudianas fundamentais, e evoca igualmente uma exploração direta do real: o inconsciente, onde não existe o não, é afetado de uma afirmação (Bejahung) originária. Do ponto de vista analítico, é desde sempre um começo afirmativo a ser afirmado, conforme estivemos repisando a propósito do arco pulsional. Não a negação da negação, com a qual permaneceríamos no regime estritamente intelectual, mas a afirmação da afirmação, pela qual o afeto se torna consciência, intelecção de si. Não mais a consciência separando-se da força, mas elevando-se até ela. É esta, finalmente, a conclusão a que chega o conciso texto de A negativa, para além dos extravios que possa provocar sua composição estratigráfica, dotada de diferentes ritmos e velocidades. 152 É quase a mesma coisa o estranhamento da pulsão e seu recalque, e é esse estranhamento e esse recalque que darão consistência ao objeto a de 151

Cf. as seguintes passagens de A evolução criadora: “Uma vez formulada a negação, esta apresenta um aspecto simétrico da afirmação. Parece-nos então que, se esta afirmava uma realidade objetiva, aquela deve afirmar uma não-realidade igualmente objetiva e, por assim dizer, igualmente real. No que ao mesmo tempo erramos e acertamos: erramos porque a negação não poderia objetivar-se naquilo que tem de negativo; mas acertamos porque a negação de uma coisa implica a afirmação latente de sua substituição por outra coisa, que sistematicamente se deixa de lado. Mas a forma negativa da negação beneficia-se da afirmação que está no fundo dela...” (op. cit., p. 289). “Assim, sempre que acrescento um „não‟ a uma afirmação, sempre que nego, levo a cabo dois atos bem definidos: 1º, interesso-me pelo que é afirmado por um dos meus semelhantes, ou pelo que ele ia dizer, ou pelo que poderia ser dito por um outro eu que estou prevenindo; 2º, anuncio que uma segunda afirmação, cujo conteúdo não especifico, deverá substituir aquela que tenho perante mim. Mas em ambos estes dois atos se encontra exclusivamente afirmação. O caráter sui generis da negação deve-se à sobreposição do primeiro ao segundo. Em vão, portanto, se atribuiria à negação a possibilidade de criar idéias sui generis, simétricas das que são criadas pela afirmação e dirigidas em sentido contrário. Dela não pode sair nenhuma idéia, pois o único conteúdo que tem é o do juízo afirmativo que ela julga” (idem, p. 284). É a mesma lógica empregada por Freud, para quem a escuta analítica deve subtrair o não do enunciado denegatório e ouvir, em sua limpidez, a asserção do inconsciente (“a pessoa que aparece no sonho não é a minha mãe” = “é minha mãe”). Mas existem torções notáveis nessa aproximação com Bergson, pois este demonstra que a negação, que pareceria desenvolver uma operação intelectual despojada, contém, invariavelmente, um elemento extra-intelectual não explicitado, e que corresponde ao primeiro dos dois atos acima destacados: ela se dá em uma relação social, compreendendo uma expectativa ou uma prevenção. Poderia ser igualmente um procedimento de defesa, tal como a negativa no contexto analítico. É por isso que esta denuncia, feito selo de origem (made in), a operação original de recalque. É no mínimo curioso que as análises se aproximem tanto, embora movidas por preocupações aparentemente distintas: metafísicas e lógicas em Bergson, clínicas em Freud. 152 Apesar de desenvolver profundamente uma possibilidade do texto freudiano, o célebre Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud, por Jean Hyppolite (em Escritos, op. cit., p. 893), pretende fazer da negação da negação o móvel não só do pensamento como tal, mas também da análise. O admirável é que Lacan não procedeu a nenhum reparo quanto a este ponto, como se fosse assim em Freud. E, na verdade, não há nenhum mito da origem do pensamento no artigo de Freud, como quer Hippolite, mas explicitação de um procedimento defensivo, de uma prática efetiva pela qual a função intelectual separa-se da vida e, sobretudo, das implicações metapsicológicas e clínicas dessa separação. Não se deve esquecer que todos os temas articulados pelo texto são colocados, em última instância, na perspectiva das pulsões de vida e de morte.

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Lacan, ou seja, ao objeto estranho por excelência, porque insituável. Não reduzido pelo recalque, escapa, indefinidamente, a toda captura. O círculo da idealização, seja do eu ou do todo, não se perfaz graças a esse obscuro objeto que, no limite, remete à libido, a não domesticável. Não há projeção ideal (seja à velocidade da luz) que a recubra e domine 153. A libido será sempre constituição em ato do objeto por ser a ponta mais aguçada do presente, e assim já é um futuro. O objeto opera, aqui, como o avesso do ideal de eu, e suas variações exprimem o modo como a pulsão – a estrangeira – poderá ser lida. O que interessaria analiticamente nas perversões senão a prática desviante, o acento singular, isto é, sua distância e sua parcialidade em relação ao ideal de eu, embora o objeto fetiche convocado em cada caso indique ainda uma modalidade de captura? 154 É o que veremos adiante a propósito do masoquismo. Em contrapartida, nas condições originárias a libido é integrativa e íntegra, e por isso recebeu o nome de Eros – não só em virtude das integrações que promove, mas também de sua própria integridade. Suas integrações, porém, não são totais ou totalizantes, e sua integridade se afirma em pleno combate. É a prova da diferença e o sentido do real. Ora, o recalcado originário é, precisamente, essa prova e esse sentido. Mas como ela integra sem totalizar? Que espécie de integração peculiar é esta, alvo do recalque, e alvo privilegiado, especialmente pelo seu teor de desintegração dos conjuntos simbólicos e imaginários – ou ainda pelo seu poder de desagregação das formações gregárias? A pulsão é extra-pessoal, mas isto não significa que seja gregária. Enquanto Lu não levar em conta o que já sabe, incorrendo assim, de novo, na precipitação de concluir que o mais desejado está acontecendo, o encontro com o homem de sua vida, e que era só o que faltava para deixar tudo perfeito, se vê repetidamente diante da questão, sem dúvida inevitável, mas nem por isso desenvolvida: o que a faz perder de vista o saber? O que a impele, tão fortemente, à conclusão precipitada? A necessidade imperiosa, responde ela, de inverter a história em que fora rejeitada, antes de nascer, pelo pai, e se compensar, a partir de agora, com os cuidados que não teve... Cada 153

Pensamos que seja isto que Lacan pretende formular ao seu modo: “Ora, basta dizer que a coisa só pode escrever-se como acoisa (....), o que significa que ela está ausente ali onde ocupa o seu lugar. Ou, mais exatamente, que, uma vez tirado, o objeto pequeno a que ocupa esse lugar só deixa nele, nesse lugar, o ato sexual tal como eu o acentuo, ou seja, a castração”. (Lacan, J., O seminário, livro 18 – De um discurso que não fosse semblante, p. 71, Zahar, RJ, 2009). Desde que, bem entendido, se conceba o “ato sexual” como idêntico ao ato sublimatório, e a castração como afirmação da diferença. Não há certamente nenhum equívoco de nossa parte quando sustentamos tal aplicação imediata das idéias de ato sexual e de castração. É o que está em jogo, por exemplo, em toda a digressão lacaniana sobre a ética do amor cortês. 154 Usamos a noção de objeto fetiche para todas as disposições perversas, acompanhando aqui MDMagno em sua concepção de perversão: cada um seu sexo, sua forma de satisfação, sendo o objeto fetiche exatamente o dispositivo, marcado de singularidade, que garante o deslanchar do gozo.

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situação nova, cada novo encontro, sofre o peso dessa história não concluída. A solução consistiria em ela abrir mão da compensação apaziguadora que a identifica como vítima do destino. Obstinada, Lu quer reverter essa infelicidade. Mas a infelicidade só é revertida a partir da idéia de que não há nada a apaziguar senão a revolta, isto é, senão sua tendência a voltar ao estágio dos cuidados ideais, atemporais, como se nada houvesse se passado desde então. Temos uma tendência idealizadora, instaurada por motivos infantis, e um saber pulsional que insiste em desconcertar, em desfazer a trama idealizada – dir-se-ia em nome do real. Podemos afirmar que o real não é o sonho ou a fantasia, e que por isso ele desfaz as tramas imaginárias. Mas, neste caso, o real não precisaria ser nada além da realidade e seu principio, que não é o do prazer. Seria então excessivo chamar de saber pulsional o velho princípio de realidade. Ora, não é isto que causa o sofrimento de Lu, não é o limite imposto pela realidade – ignorado a cada vez que ela almeja e constata, por breve que seja a carícia da ilusão, a perfeição compensatória – não é esse limite que a deixa, mais cedo ou mais tarde, inconsolada. O que a deixa inconsolada é a manutenção da revolta e a idealização de alguém – remoto ou por vir – que poderia livrá-la do sofrimento revoltoso, do destino infeliz. Não abandona aquela história, e assim inibe, ativamente, a existência de qualquer outra. Aprendeu a viver só, por sua própria conta; e agora, depois de tudo, sente-se vitoriosa. Mas a relação com um homem reenvia ao velho tema, o da rejeição e da compensação, nunca solucionável porque não deve ser solucionado, já que ela aprendeu a viver só, etc. A prova disto é que, para uma observação mais aguda, Lu rejeita, antes de qualquer nova experiência de rejeição, quem quer que não apresente o conjunto dos traços ideais do pai que ela não teve, incluindo entre esses traços, muito especialmente, o cuidado paternal mais devotado. A situação perfeita exclui o pretendente, e ela continua só. O que a deixa inconsolada é o fato de perder de vista o caminho pulsional que a faria voltar, sim, mas ao futuro, ao novo. Em suma, a pulsão é integrativa de todos os dados do problema, e por isso é a sua solução. É ela que é recalcada pelos processos de idealização, com suas estases e objetos específicos. Não condiz com nenhum princípio de realidade doloroso, exceto, por vezes, em uma primeira tomada de cena; quando ela se esclarece, quando se decifra, é invariavelmente o que sempre terá sido um saber dessa ordem – satisfação. Por quê? Porque esclarecê-la é exercê-la, isto é, exercer aquilo que se pode. E é nesse exercício que consiste a satisfação, e não em algum estado ou objeto. Pelo mesmo motivo, o sofrimento consiste na abstenção, em maior ou menor grau, da prática do saber pulsional. O que faz a pulsão senão introduzir uma lógica da diferença em todo pensamento? E o ao fazê-lo, o que ela promove, senão uma limpeza, seja 128

gradual ou contundente, por insistência ou por desconcerto, de tudo o que obscurece essa lógica? A lógica da diferença, como a entendemos, é a da pulsão de vida, jamais sujeitável a um regime de identidade, jamais integrável aos regimes do símbolo e da imagem. Um dos aspectos dessa lógica vital 155 consiste em que a diferença, para se dar como tal, precise ser afirmada. Isso compreende, inevitavelmente, uma prática, um exercício, um dizer. É claro, pelo exposto acima, que a pulsão de vida e sua lógica são uma e mesma coisa. Quando insistimos em livrar a noção de pulsão (ou de desejo) de toda idéia de falta, na medida em que esta remete, negativamente, a uma totalidade ideal, colocamos em evidência o caráter determinante do móvel pulsional: o grau de experiência da pulsão e – o que vem a ser o mesmo – a modalidade de subjetivação aí implicada, determinam a constituição do objeto, sua natureza, sua feição. O objeto não é independente do valor que adquire. Pelo contrário, ele é o valor que tem. De tal forma que, vistos de um plano pulsional, os objetos são criados, ou trans-criados. Tudo depende da altura em que se faz a experiência da pulsão. Em última instância, e como medida maior, tem-se a sublimação que é, como a definiu Lacan, a “elevação do objeto à dignidade da Coisa” 156. Mas o que é a Coisa senão o real? E o que é o real senão a pulsão? A pulsão não é de modo algum reativa, não é, como se costuma entender, a excitação endógena produzida por um objeto exterior ou pela instalação de um significante enigmático, para empregar um termo caro a Jean Laplanche. Esse é o destino histérico da pulsão, o ponto de vista histérico sobre o desejo, que se estende até o grotesco de conceber a criança recémnascida como “um bolo de carne”, esperando que o Outro ali deposite significantes. Para a clínica analítica, a pulsão é uma potência apropriativa, e o objeto, assim como o significante, são tomados e transubstanciados em seu devir sublimatório 157. Isso vale clinicamente, eticamente, e se aplica tanto aos procedimentos artísticos como aos sexuais, ainda que nestes a potência apropriativa possa não se dar diretamente. Em numerosos casos ela se encontra, por assim dizer, sob véus. O exemplo clássico, mais uma vez, é o masoquismo, cujo caráter ativo não deve aparecer em cena. É o inverso, portanto, do que se quis ver inicialmente na sublimação, a saber, que esta seria um desvio quanto aos fins ou um encobrimento do real, da castração, das 155

Laplanche opõe a ordem sexual a uma ordem vital. Trata-se para nós de articular as mesmas ordens? Certamente não, pois a ordem vital em Laplanche diz respeito ao dado biológico e às suas montagens instintivas predeterminadas (cf. Laplanche, J., Freud e a sexualidade - o desvio biologizante, Zahar, RJ, 1997), enquanto para nós diz respeito ao ético e também ao sexual – ainda que a este segundo fator poderíamos nomear igualmente de estético, sem nenhuma necessidade de derivação. 156 Lacan, J., O seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise, p. 140 e 141, Zahar, RJ, 1987. 157 É um raciocínio análogo àquele de Bergson, quando este critica o evolucionismo pela tentativa de explicar as diferenças a partir de uma causalidade exterior. “Como teria podido uma energia fìsica, por exemplo, a luz, „converter uma impressão deixada por ela em uma máquina capaz de utilizá-la?‟” Bergsonismo, op. cit., p. 80.

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motivações sexuais. Se não foi apenas essa noção menor, neurótica, que prevaleceu na teoria, pois a sublimação também seria apreendida como revelação, denúncia, e sobretudo como realização de desejo, não deixou de fazer seu estrago, sugerindo um descolamento do real, um “mesmo assim” que fazia desse destino um recurso ficcional frente à falta irremediável. Ora, a sublimação é o exercício direto da pulsão, sua feição originária, ativa, e não há outro real que o de sua prática – ao mesmo tempo do pensar e do viver. Vidapensamento. Mas por que – alguém ainda pode objetar-nos – sustentamos essa primazia do vetor pulsional, quando se sabe fartamente que o contato erogeneizado do seio com a mucosa da boca produz desde a primeira marca, como efeito indelével e conjunção indissolúvel de zona e representação, a repetição da excitação (Reiz) que denominamos de pulsão oral? Não foi preciso o seio e sua inscrição erógena para instaurá-la? O órgão erogeneizado é segundo em relação à potência inorgânica que a criança pequena encarna. Essa potência tem a mesma primazia que a vis activa de Leibniz, unidade de ação (o simples) que determina, em última instância, a dobradura essencial do órgão, sua complicação e sua aplicação erógena. Já estão em jogo, desde o nascimento, afetos e perceptos muito nuançados, muito refinados, próprios de uma atividade originária, imanente 158. Em outras palavras, a criança não é informada de seu lugar e de sua destinação pela cultura sem ser, ao mesmo tempo, um ponto de vista sobre a cultura, sem ser a cultura em estado nascente. Já dissemos que a pulsão é extra-pessoal ou impessoal, o que quer dizer sexual e ética desde a origem. A alteridade é seu domínio originário. Ela lembra curiosamente o animismo e, em especial, o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, segundo o qual os salmões, por exemplo, são tão humanos quanto os seres humanos, não devido a uma semelhança, mas, justamente, devido a uma diferença; e não a uma diferença externa e extensiva, mas interna e intensiva, pela qual tanto os salmões como os seres humanos diferem de si mesmos na amplitude da mais estranha humanidade. São as alturas virtuais desta humanidade que decidem pela força subjetiva em cada caso, de tal modo que “a „personitude‟ e a „perspectividade‟ – a capacidade de ocupar um ponto de vista – é uma questão de grau e de situação, mais que uma propriedade diacrítica fixa desta ou daquela espécie. Alguns não-humanos atualizam essas potencialidades de modo mais completo que outros; certos deles, aliás, manifestam-nas com uma intensidade superior à 158

“Não há dúvida de que num bebê a vontade de potência se manifesta de maneira infinitamente mais precisa que no homem de guerra. Pois o bebê é combate, e o pequeno é a sede irredutível das forças, a prova mais reveladora das forças”. Crítica e clínica, op. cit., p. 151.

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de nossa espécie, e, neste sentido, são „mais pessoas‟ que os humanos” 159. Ou seja, o grau de humanidade dos seres vivos decorre da possibilidade de ocuparem, em intensidades variáveis, um ponto de vista vital, ou seja, de agenciarem um mundo (por isso os seres exemplares são os predadores e as presas). Humanidade e vitalidade são aqui sinônimos, e Vida é igual a vida subjetiva. Uma criança em seu auto-erotismo já é uma pessoa no sentido indígena, já preenche um ponto de vista, já interage com seus irmãos – as plantas, os animais, os outros seres humanos, os espíritos – em uma humanidade que se insinua por toda a natureza. Por isso a distinção ocidental entre Natureza e Cultura não se sustenta no perspectivismo ameríndio. Do mesmo modo, quando os Araweté invocam o inimigo e a lógica da vingança 160 , fazem vigorar a lei de uma vida metafísica ou extra-pessoal, aquela que deve prevalecer sobre a morte em nome de uma transformação perpétua da subjetividade em seu caráter originário, isto é, relacional. É um continuum vital de todas as metamorfoses, estendendo-se através de todos os reinos. Natura naturans. Como diz Deleuze em Crítica e clínica 161, mesmo as antipatias mais agudas são conjunção de fluxos, embate erótico, abraço. Mas a pulsão não se constitui, então, a partir de um significante especial? Ela mesma é um dizer e, como tal, um novo dizer. Ela mesma é movimento vers un nouveau signifiant, ainda que, atualmente, possa ser movimento não-realizado. A noção de inconsciente deveria servir, entre outras coisas, para nos lembrar disto, ou seja, que é preciso conceber acoisa inteira, isto é, o dizer em seu devir, inteirando-se no tempo. Consideremos, por um momento, o célebre aforismo de Heráclito, ethos anthropo daimon, que parece evocar uma altura, um plano, um lugar na vizinhança de Deus, se admitirmos a tradução proposta por Heidegger da palavra ethos 162. Retirada de seu emprego comum, onde se associa a costume, tradição, passa a exprimir a idéia de morada, terra natal, sítio originário. Estar próximo ao deus – ou ao dizer, para falar como Lacan – é uma destinação ética a partir da qual todas as demais condições de existência serão avaliadas – e com elas os objetos, os seres, as realidades. “Em redor do herói tudo se torna tragédia; em redor do semideus tudo se torna sátira; em redor de Deus tudo se torna – como? Talvez „mundo‟?”. 163 Encontramos em Bergson uma visão semelhante: a altura da memória (ou do passado puro) em que o espírito se 159

Viveiros de Castro, Eduardo, A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia, p. 353, Cosac Naify, SP, 2006. 160 Idem, p. 265. 161 Crítica e clínica, op. cit., p. 62. 162 Tradução de Heidegger: “o homem enquanto homem mora na proximidade do deus”. 163 Nietzsche, F., Para além do bem e do mal – prelúdio a uma filosofia do futuro, 150, p. 80, Companhia das Letras, SP, 2001.

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instala, determina a profundidade com que serão concebidos os objetos e a realidade 164. É por serem inconscientes as alturas da pulsão – ou do dizer, enquanto elas sãos seus graus esquecidos ou não realizados, que o estatuto do inconsciente é ético 165. A eticidade se define aqui por três aspectos: primeiro, as alturas ou graus da pulsão, coincidindo com suas vicissitudes e, por conseguinte, com diferentes modalidades de subjetivação, são inseparáveis de uma experimentação ética, de tal modo que podem ou não se verificar (não ocorrem naturalmente); segundo, esses graus são saberes práticos, só podem ser alcançados, experimentados e exercidos de acordo com os passos dados, isto é, por força de uma travessia, de um risco, de decisões efetivas, de uma inscrição real; terceiro, o inconsciente é decididamente ético porque, sob o seu nome, a verdade fala 166. Não importa quão enigmática seja a denúncia inconsciente, ela é insidiosa e jamais ficará sem conseqüências. Faz enorme diferença, no entanto, se o lapso será lido analiticamente ou não. A verdade se declara mesmo não sendo ouvida; mas ouvi-la e, mais que isto, estar à sua altura, praticá-la – pois nada a distingue da pulsão – é assumir a ética do inconsciente e tornar-se seu sujeito. O “tornar-se”, neste caso, é soberano, incessante. Assim, não se pode mais conceber a força pulsional (ou o devir verdadeiro da força) senão como prática constante. Por que não usamos preferencialmente o termo “sujeito do inconsciente” e sim “pulsão”, se ambos remetem à mesma instância? Prevalece o conceito de pulsão devido à sua plasticidade clínica. Convém observar ainda que as diferentes alturas da pulsão não são genéricas ou ideais; são planos de visão, perspectivas, já que a condição ativa é perspectivista. Além disto, como critério suficiente de verdade, a pulsão é sua própria medida, seu metro, seu mestre; é imune à transcendência e escapa a todo juízo. Daí que o analista se autoriza de si próprio, como queria Lacan. Repetindo, esse conceito não exige a falta de um objeto, desde sempre, irremediavelmente, objeto ideal, e portanto perdido. Os objetos como o fóbico e o fetiche permitem, à maneira de hieróglifos, que se leia a pulsão. Mas a pulsão no grau e na modalidade em que é feita a sua experiência – digamos, no percurso analítico. A pulsão só é lida adequadamente por ela mesma. Em razão disso, um dos seus nomes é força ativa, vis activa, Dräng 167. 164

Bergson, H., Matière e memoire, p. 128-129, Presses Universitáire de France, Paris, 1990. Cf. O seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 37. 166 Escritos, op. cit., p. 410. 167 Lacan, em seu Seminário 11, op. cit., p. 26, fazia notar que o conceito de inconsciente dinâmico não era muito esclarecedor por depender da idéia de força que, segundo ele, indicava um lugar de opacidade. Enveredava, com isto, para a noção de causa, de hiância, de abertura. Ora, a força é precisamente a da 165

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Esclareçamos mais esta designação: afirmando que o objeto é acima de tudo o valor que ele tem, ingressamos numa região de avaliações que primam pela anterioridade, e onde a questão dos valores morais e da imoralidade adquire, em psicanálise, toda a relevância. A que profundidade inconsciente os problemas morais se insinuam? Nietzsche dizia que mesmo na química, devido ao peso das leis, subsistia um ressaibo moral. Problema eminentemente freudiano, pois, conforme dizíamos, as modalidades de experiência erótica traduzem, à sua maneira, os nìveis desse “aprofundamento” moral 168. Objeto = seu valor libidinal, entendido que esse valor depende das condições de avaliação pulsional, inclusive daquelas que se encontram além do bem e do mal 169. Pareceria surpreendente, a princípio, aproximar o valor libidinal de uma coisa à dimensão da verdade, e todavia nunca se fez nada mais proveitoso em psicanálise que estabelecer, por meios clínicos e teóricos, essa luminosa aproximação. A chave, aqui, reside mais uma vez no conceito renovado de pulsão, em especial se entendida como poder de avaliação. Estimar, avaliar, enquanto procedimentos originários, supra-intelectuais (o que não significa, bem entendido, exclusão da intelecção), se referem tanto aos investimentos afetivos como às graduações da verdade. Há um ponto, aliás, em que afeto e verdade passam a ser uma única e mesma coisa. Um aforismo póstumo de Nietzsche oferece uma definição de verdade propriamente analítica ou, se quisermos, pulsional, associada à imoralidade como garantia de veracidade: “„Meu propósito‟: demonstrar a absoluta homogeneidade em todos os fatos e a aplicação das diferenciações morais condicionada pela perspectiva: demonstrar que tudo o que é exaltado desde o ponto de vista moral é essencialmente da mesma natureza que o imoral, e que toda a evolução moral foi obtida por meios imorais e com fins imorais; e que, ao inverso, tudo o que se considerou imoral, desde o ponto de vista econômico, é o superior e o principal, e que uma evolução orientada para uma maior plenitude de vida está condicionada necessariamente pelo progresso da imoralidade. „Verdade‟, o grau em que nós nos permitimos o exame desses fatos” 170. As observações preliminares, encaminhando o argumento do aforismo até a conclusão sobre a verdade, são todas elas de feição analítica, uma vez que a avaliação pulsional antecede as valorações morais. É do prisma abertura, e longe de parecer uma idéia obscura, ela se resolve com precisão se a entendemos como força do sentido pulsional, a abertura como condição de saber, etc. 168 Nietzsche observava que o cristianismo, depois de vinte séculos, já se tornara instinto. 169 Nos termos de Guattari, “a expressão pática não se instaura em uma relação de sucessividade discursiva, para colocar o objeto sob o fundo de um referente bem circunscrito. Estamos aqui em um registro de coexistência, de cristalização de intensidade. (...) Há desdobramento de ordenadas axiológicas, sem que haja constituição de um referente exterior a esse desdobramento”. Caosmose, op. cit., p. 43. 170 Obras completas, op. cit., 272, p. 117.

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da pulsão que se pode ler no mesmo plano o moral e o imoral. Este prisma anterior demarca o solo da pesquisa freudiana, o lugar da escuta e da intervenção analíticas, a base ética e lógica de onde procede a garantia de neutralidade e a razão do seu limite, pois a partir desse solo não se passa a um “vale tudo” como quer Magno, e sim ao que vale acima de tudo 171. Mesmo assim, o imoral parece preceder e legitimar o moral. É que as perspectivas extra-morais, criadoras, são comumente designadas de imorais. Estamos de chofre lançados no campo problemático das pulsões. Dada a multiplicidade de suas versões, a pulsão e seu exercício (o que vem a ser o mesmo) constituem o problema por excelência (que sentido isso tem? qual o seu valor? qual a sua direção?), inclusive com suas soluções implícitas, uma vez que a pulsão é o conjunto de suas soluções. À medida que ela é decifrada, entendida, ela é também exercida, praticada. Nesse decifrar-viver reside o mais abstrato dos saberes e a concreção mais viva, a mais cruel, por ser a mais decisória. A vertente ativa, que é a essência da pulsão, se exprime a cada vez como um grau de exame ou, em última instância, como potência de avaliação. Eis o sentido da veracidade no pensamento psicanalítico 172 – e isto segundo um desdobramento de planos, pois se o caráter de verdade reside nesse grau de exame alcançado, é preciso também dizer que esse grau repercute em todas as graduações menores do entendimento, por não serem ainda aquele grau 173. “Em todas as coisas, só os graus superiores importam”, escreve Nietzsche em Aurora 174, ao considerar o talento originário dos gregos para aprender com os outros povos, de civilização mais antiga, o que estes tinham de melhor, transformando as novas aquisições em algo próprio, inicial, destinado ao futuro. O sentido evolutivo se concilia, aqui, com o eterno retorno às potências originárias, apropriativas, antropofágicas. O retorno se gradua, e o grau de 171

“Vejam que passamos de Afeto, para Lei, para Amor, para Consideração, e estamos no caminho do Valetudo”. Magno, M. D., A psicanálise, novamente: um pensamento para o Século II da era freudiana, p. 166. Novamente, RJ, 2004. O “valetudo” de Magno é uma nova versão da máxima “tudo é permitido”, proposta pelo personagem de Dostoievski a partir da não existência de Deus, embora para Magno a permissão não decorra da inexistência de Deus e sim do Não-Haver. Como observa Deleuze ao analisar um quadro de El Greco (Lógica da sensação, op. cit., p. 18), é graças à existência de Deus que tudo é permitido. Essa permissão não-humana ou sobre-humana é, entretanto, um passo de transição, e como tal provisório, para a consideração do que vale acima de tudo. O vale-tudo libera o acima de tudo que é, certamente, o seu pressuposto.. 172 Se a análise nos induz a este tipo de experiência, algo nietzschiana, ela tem igualmente traços spinozistas. A Ética, enquanto filosofia prática, “não nos faz conhecer qualquer coisa, mas compreender nossa potência de conhecer”. Deleuze, G., Spinoza – filosofia prática, p. 90, Escuta, SP, 2002. 173 Outra maneira de enunciar o que Lacan já havia formulado em A direção do tratamento: que na análise “se trata da verdade, da única, da verdade sobre os efeitos da verdade”. Escritos, op. cit. p. 620. 174 A visão nietzschiana se aproxima aqui do “perspectivismo amerìndio”, segundo o qual a condição de humanidade é a condição cosmológica de partida para considerar a diversidade das espécies de vida, incluindo a humana.

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exercício pulsional – avaliador, clínico – equivale ao grau de exame atingido. Parece uma ousadia chamar a isto de pulsão, e no entanto não há nada mais psicanalítico. E nem seria preciso dizer que esses graus de exame são graus do real, ou graus de retorno à pulsão e da pulsão. E a linguagem? E o simbólico? Ora, estão compreendidos na sublimação, pelo que a pulsão e o dizer são o mesmo. Vê-se assim como a ética em questão, inerente ao aludido retorno e indissociável, por isso mesmo, de um exame o mais desimpedido possível, é extra-moral, não baseada nos costumes e obrigações sociais. Não se opõe necessariamente a eles, mas os submete ao seu crivo impiedoso e avaliador. Nietzsche se nomeava “o imoralista”, era sua maneira de ser “verìdico”; deste modo segurava as rédeas das apreciações morais que, também elas, podem ser impulsivas. Um remorso pode ser tão impulsivo quanto o ato criminoso que ele recorda. Não é, pois, o impulso que caracteriza a pulsão, mas um poder de avaliação extra-moral que pode ou não se exercer. Ele é de consistência ética, e sua naturalidade, se existe alguma, precisa ser conquistada. Essa escalada da verdade, decidida pelo grau de exame de que somos capazes, redefine a cada vez a ordem dos investimentos afetivos. No caso de Lu, um primeiro estágio de avaliação, o mais distante do exercício pulsional, corresponde à descoberta maravilhada, ilusória, de um sucedâneo do pai; o segundo, mais próximo da pulsão, compreende a alta exigência que exclui os pretendentes e garante, com isto, a sua solidão fecunda, empreendedora; o terceiro, o exercício direto da pulsão, enquanto poder de avaliar, abre uma perspectiva de vida que escapa à revolta e à compensação ideal com as quais, no entanto, Lu assegurava uma posição ativa, ainda que solitária. A pulsão é abertura, poder de escolha que reanima, à medida que se reconstitui, o sentido profundo de uma variação contínua. Afirmação da afirmação. Extra-pessoal, sempre outra além de si, sempre diferindo de si, ela é também o continuum da variação. Por tudo isso, sua abertura e seu poder não consistem em um estado, e sim em uma prática. O poder de avaliação denominado de pulsão é um a priori necessário para se entender, psicanaliticamente, as tendências niilistas da subjetividade, ou seja, os processos insidiosos pelos quais a pulsão deixa de ser exercida. Uma das concepções que temos da pulsão consiste na idéia de que ela se exerce de qualquer maneira, não importa a direção que o processo subjetivo tome; daí que ela necessite ser domesticada, tarefa que se atribui a outras instâncias – seja ao princípio de realidade e ao seu correlato psíquico, o ego, seja à cultura, por meio do superego. Esquece-se com isto que a pulsão de vida, sendo um poder de avaliação imanente, integra, ordena e dirige os processos humanos segundo seus próprios critérios; que sua ação se exerce em 135

um plano de horizonte infra e supra-cultural, e que, nessas condições originárias, determina e orienta a cultura. De outro modo não se entenderia a extensão sobre-humana da sublimação. Entre as divindades que, conforme dizia Blake, residem no coração humano, deve-se contar o próprio homem em suas condições ainda desconhecidas. A sublimação faz existir o próprio homem, o homem em suas condições ainda inexploradas; é a este destino que reenvia o “devir mulher” de Mil platôs, não muito distante da proposição de Lacan de que “o homem criacria... a mulher” 175. Além de ser definida como um poder de avaliação, a pulsão pode ser designada, igualmente, de vis activa (força ativa). O a priori de que falamos assinala o que é imperioso na concepção das forças – que as reativas só são claramente compreendidas quando referidas às ativas, as quais se compreendem, por assim dizer, a si próprias e às outras 176. O fato mesmo de que as forças reativas triunfem, e não, a princípio, por somarem o maior número, mas por separarem a força ativa do que ela pode, operando por contaminação e subtração e convertendo-a, assim, em reativa, só pode ser analisado e concebido claramente de um prisma ativo. Segundo a análise nietzschiana, a operação reativa consiste, basicamente, em insinuar a má consciência no exercício da força ativa, induzindo-a ao conflito consigo mesma e à autoflagelação. Não é por se somarem que as forças reativas triunfam, mas por desencadearem o conflito em que a força ativa pára de se afirmar. É esta afirmação que é finalmente subtraída. E no entanto, é essa segunda afirmação – pois a primeira é diretamente a força ativa – que decide, em última instância, pela existência e seus diferentes graus. O aforismo seguinte de Nietzsche propõe a restauração de uma perspectiva anterior e posterior ao que ele chama de niilismo, uma visão interna e no entanto já distanciada, avaliadora e clínica, capaz de atravessá-lo e medi-lo. “Eu pretendo que se torne a admitir o agente na ação depois de tê-lo suprimido com o pensamento, isolando assim a ação; que se torne a admitir na ação o fazer alguma coisa, o „fim‟, a „intenção‟, a „meta‟, depois de tê-los subtraído artificiosamente da ação, deixando-a, assim, vazia. Todos os „fins‟ e as „metas‟, os „sentidos‟, são somente modos de expressão e metamorfose da única vontade que é inerente a tudo o que sucede: da vontade de poder. Ter fins, metas, intenções, „querer‟, em geral, é um querer devir mais forte, um 175

Mais, ainda, op. cit. p. 177. A moral de escravos desenvolve uma concepção negativa da força: se a força ativa se afirma a si própria, e só num segundo momento nega o que não condiz com essa afirmação, a reativa, já de início, nega o que lhe é estranho, diferente, e se afirma por meio desta negação. Por isso, na ordem dos afetos, ela começa com o ódio, a revolta e o ressentimento. 176

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querer crescer, e querer também os meios necessários para isso. O instinto mais geral e profundo em toda ação e vontade foi o que mais desconhecido e oculto ficou precisamente por isto: porque na prática seguimos sempre o seu mandato, porque somos este mandato... Todas as avaliações são somente conseqüências e perspectivas mais estreitas a serviço dessa vontade única: o avaliar mesmo não é mais que esta vontade de poder. Uma crítica do ser que parta de qualquer um desses valores é coisa absurda e impossível de compreender. Ainda supondo que naquela crítica se introduza um processo de destruição, esse processo se encontra sempre a serviço dessa vontade. Avaliar o ser mesmo! Mas se já o avaliar é esse ser! E ainda quando negamos, fazemos sempre o que somos. Deve-se compreender o absurdo destes gestos julgadores da existência, e logo tratar de adivinhar o que sucede realmente com eles. É coisa sintomática.” Não se trata, para nós, de fazer coincidir vontade de poder e pulsão de vida, mas de fazer ressoar uma lógica dos afetos e da existência que aproxima o texto nietzschiano dos problemas analíticos, oxigenando-os ao seu modo selvagem e livre. Lembremos que as preocupações de Nietzsche eram decididamente clínicas. Readmitir o agente na ação depois de tê-lo suprimido pelo pensamento... Enquanto representação e princípio metafísico, enquanto sujeito do cogito, o agente foi, certamente, subvertido, e dessa subversão participaram ativamente tanto a filosofia nietzschiana como a psicanálise. Ora, só é possível readmiti-lo em outro plano, segundo uma nova perspectiva. É na altura da pulsão que o reencontraremos, porém transmutado em pulsão e práxis. Por isto Nietzsche dirá que seguimos na prática o mandato inconsciente, que somos este mandato. Mas faz toda a diferença estar ou não à altura dele, ou seja, exercê-lo ou não, vivê-lo ou não. Todas as alturas são possíveis como graus de proximidade ou distância da pulsão, a qual equivale ao dito mandato. Tais alturas correspondem, então, a processos que o esposam e o contrariam, a diversas perspectivas de valor em confronto, que se opõem ou se reforçam, incluindo aí toda a escala dos híbridos, de sorte que esse mandato-pulsão pode esboçar, finalmente, um aceno pálido, impreciso, profundamente desfigurado na superfície das representações e das condutas, à maneira do retorno do recalcado com suas falsas imagens. “Ainda quando negamos, fazemos o que somos” – por certo de maneira obscura, quase sem luz e sem vida; é o que chamamos de pulsão de morte e é o que Nietzsche detectava no móvel profundo do ideal ascético, esse desdobramento invertido da mesma e incoercível vontade de potência. O mandato era, porém, o próprio ser enquanto poder de avaliar e já a avaliação em curso. A existência não pode ser julgada, pois ela é, em si mesma, processo de avaliação. No caso da experiência humana, esta avaliação não se realiza em 137

nome da sobrevivência, da adaptação ou da utilidade, mas do próprio existir e do existir mais. Eis uma dobra essencial, revelando uma diferença de natureza no reino dos seres vivos: dada a pulsão, é preciso ainda afirmá-la, o que equivale ao seu exercício. Não que algo semelhante a essa dupla afirmação não se esboce em outras espécies vivas; a arte, como saber-fazer que se afirma, integrativo e expressivo, constituindo territórios e distâncias vitais, parece ser coextensiva a toda a Natureza 177. Mas no caso do homem o caminho do saber e da arte, a sublimação, é essencialmente aberto; ela pode ou não ser exercida, e o será segundo diferentes graus de exercício. Essa condição de abertura, essa hiância constitutiva do humano 178, repercute em todas as demais condições de existência, sejam elas biológicas ou culturais, por ser a condição própria do existir (ou do dizer) como tal. A pulsão se torna assim inteligível como lógica da existência, e seu exercício se traduz em graus de existência. Do mesmo modo, a esses graus correspondem as depurações da prática pulsional – são uma e mesma coisa. Um juízo final sobre a existência – que ela, por exemplo, tenha ou não um sentido – é uma presunção idealista e atua como recalque da experiência pulsional. O critério analítico, isto é, o critério da máxima abertura ou da total indeterminação impele a escuta e o poder de exame ao campo do originário, como se estivéssemos sempre – e a cada vez – no começo ou a ponto de começar. A roda que se move por si própria é o pressuposto não-realizado. Não se existe para ser feliz, piedoso, sábio, amoroso, beatífico ou santo; a felicidade, a santidade, a sabedoria, etc., consistem em se existir realmente, o que é igual, conforme temos dito, à prática da pulsão, à consciência da força (no sentido objetivo e subjetivo). “O juìzo”, escreve Deleuze, impede a chegada de qualquer novo modo de existência. Pois este se cria por suas próprias forças, isto é, pelas forças que sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova combinação. Talvez esteja aì o segredo: fazer existir, não julgar” 179. Um único juízo, ao estilo do enunciado em O espelho de Guimarães Rosa, seria ainda admissìvel: “Você chegou a existir?” De modo geral, porém, ninguém duvida de sua própria existência. Existir é o que há de mais evidente. O que significa então uma pergunta como esta – você chegou a existir? –, na medida em que transmite a idéia de algo difícil, remoto? Ela pressupõe o sistema do juízo, cuja prevalência torna rara, de fato, a possibilidade de um novo modo de existência; e, a bem da verdade, só se existe realmente mediante um novo modo de existência. É precisamente 177

Cf. Mil platôs, vol. 4, op. cit., capítulo 11, Acerca do ritornelo, p. 115 em diante. Ao contrário do que Lacan deixa entender (Seminário 11), não há nenhuma inconveniência em encontrar na idéia de hiância constitutiva tanto a noção de causa como a de força. São uma e mesma coisa. 179 Crítica e clínica, op. cit., p. 153. 178

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neste ponto de articulação do existir e do novo modo de existência que ganha relevo o que parece ser um problema ético originário, próprio do inconsciente, e que se exprime em suas formações. Ninguém acede à existência sem uma tomada de decisão, comportando riscos e perdas. Tal acesso exige coragem e uma determinação quase delirante. Existe-se na medida do saber, sem desconhecer que esse saber, da espécie que não recebe explicação de nenhum outro, só é ele mesmo quando em ato, ou seja, como decisão. “Raramente se tem a coragem de afirmar o que verdadeiramente se sabe”, escreve Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos, e, no entanto, é somente no interior dessa afirmação e através dela que se existe realmente. É o que se chama de desejo em psicanálise. Decididamente, não é fácil existir. Os obstáculos, às vezes, chegam a ser enormes. Alguns processos, correntemente chamados de delirantes, dão uma noção intensiva de como a existência pode se sustentar de quase nada, mas de tal maneira que parece indestrutível. Ninguém acredita em mim, no que digo. Acham que é um delírio, que não serei morto tão logo puser os pés fora de casa, que não existem motivos para encomendarem minha morte, que meus amigos me querem bem. Minha mãe deseja o melhor para mim, me ama, e assim, quando eu estiver degolado, esquartejado, ou baleado, depois de ter descuidado da minha segurança em nome do bom senso e do amor dela – quando eu estiver estendido na rua, sangrando, quando eu estiver morto, ela dirá: “que horror, eu não podia esperar algo assim, fiz o que pude, que tristeza!” Mas eu estarei morto. Quero viver, embora não possa mais viver como antes. Minha existência está por um fio, e só posso contar comigo. Não é uma questão psicológica, não se trata de uma mudança subjetiva, de uma morte simbólica, passagem de um eu que fui e não sou mais a outro ser, ainda desconhecido, que estou em vias de me tornar, mas de mudança real, do ser vivo que sou para um cadáver. A minha vida, que me é muito cara, depende de eu não colocar em dúvida essa certeza. Não há nada mais óbvio a fazer senão defendê-la. Sim, há uma repetição, sem dúvida me encontrei em situação análoga mais de uma vez ao longo da vida, e desde a infância. É um azar... Mas sem deixar de ser um destino individual, sendo-o até mesmo da maneira mais aguda, “existir realmente” diz respeito ao destino de todos. E por isso, não importa quão remota seja essa tendência, ela tende a assombrar o socius. “Realmente”, aqui, significa existir segundo critérios de legitimidade intrínseca. Ou seja, a legitimação não procede, em última instância, de uma cultura ou de um povo, o que a aproxima de uma experiência psicótica. Mesmo que o povo ou a cultura se constituam como forma suprema de autoridade, e isto ainda em nome da vida, subsiste, além dessa autoridade, 139

outra mais alta e escondida, que é a própria Vida e suas exigências – e de onde procede o que chamamos de legitimação intrínseca. É no espaço e no tempo desse além imanente que a análise deve operar. A pulsão de vida é, nela mesma e por ela mesma, o supremo critério de avaliação. Mas quando se pode constatar a vigência desse critério e se apropriar d‟isso – o real do inconsciente – e ser quem se é, isto é, de exercer aquilo que se pode? A essas condições de chegada denominamos de condições originárias do homem. Eis, mais uma vez, a fórmula analítica dessa chegada: autorizar-se de si próprio. Não é mesmo notável que se pareça tanto ao delírio? Minha existência depende de eu não abrir mão dessa certeza, conquanto a sustente sozinho. Mas é precisamente por isso...Tanto é assim que toda tentativa de solidariedade me soa cínica ou mentirosa, mesmo e especialmente quando sugere adesão simpática ao meu suposto delírio. Aproximar aquela autorização e o delírio serve para demonstrar o caráter risível e sem dúvida absurdo dos juízos sobre essa ou aquela existência, bem como a natureza sintomática dos mesmos, pois se erigem secundariamente, à maneira de um mundo invertido e como produto de forças reativas. O originário não pode ser julgado, pois toda legitimidade emana dele. Ao sustentar que o desejo é autônomo em relação à lei, porque é dele que ela deriva, Lacan soube localizar a ética analítica no campo do originário; fora, portanto, do sistema do juízo 180. Não é preciso dizer o quanto a inversão de perspectivas em relação ao originário, convertendo o existir em objeto de juízo, pode ser descrita pelos mecanismos de recalque, de renegação, pela melancolia, pelas falências psicóticas. Estas modalidades clínicas expressam deserções éticas em andamento ou, o que vem a dar no mesmo, um abandono progressivo e eventualmente crítico das perspectivas ativas, não sem implicarem, ao mesmo tempo, posições de desejo, ensaios sublimatórios, linhas de fuga que revertem, até certo ponto, aquela inversão. Dizemos “até certo ponto” porque as estruturas clínicas são modos de sujeição em que a própria linha de fuga é prevista e interceptada, embora nunca o seja inteiramente. Por isso existe a análise – em nome dessa margem restante, às vezes quase nula, de indeterminação. Sim, garanto minha existência, mas ela está por um fio. Eu só não me deixei matar. Tudo o mais aconteceu, e já não tenho a vida de antes. Pesa sobre mim, continuamente, uma sentença de morte. Estou sozinho, e quase vai se tornando este o crime pelo qual devo morrer... Só posso existir enquanto sentenciado, adiando o instante fatal. Ser sentenciado à morte, jurado de 180

Escritos, op. cit., Subversão do sujeito e dialética do desejo, p. 828.

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morte, morto por antecipação, e existir assim mesmo parecem convergir para um único ponto de exasperação. Tanto mais resisto, mais a sentença incide. Não sei como suportei isso até aqui. Tudo está decidido, mas eu luto, e vou continuar lutando. É claro que a neurose, a perversão e a psicose podem ser lidas, com igual direito, como modos de resistência às formas de sujeição inventadas pelo socius, suas mecânicas sendo explicáveis por diferentes limiares de cooptação. Freud viu bem que a renegação (die Verleugnung), própria da perversão, aparecia de um modo ou de outro nas demais disposições psicopatológicas. “Eu já estou morto, mas mesmo assim” é um enunciado propriamente renegatório, encontrável com alguma freqüência em discursos psicóticos; é o equivalente do “eu sei (sobre castração), mas mesmo assim” da atitude perversa. O que essa universalidade da operação renegatória poderia indicar, senão que há um ponto em que o juízo encontra o desejo, e que ambos se conservam, por assim dizer, no mesmo plano, numa espécie de equilíbrio instável? O sistema do juízo parece garantir um lugar na cultura, a pertença a um povo, a aceitação do grupo, o acolhimento familiar, as atitudes de reconhecimento, mas se quero igualmente existir, e se a diferença radical que constituiria meu modo de existência não está prevista e, muito menos, instituída, que acertos precisarei fazer? O problema não está bem colocado, ainda que pareça refazer o conhecido conflito do eu dividido entre dois senhores, o id e o superego. Seria preciso inverter os dados iniciais relativos à renegação, e situar o saber no campo do id, no plano das pulsões, e a idealização no campo do ego e do superego. Ora, a fantasia perversa é, invariavelmente, uma capitulação subjetiva frente às instâncias ideais, por mais que elas sejam reviradas em sua função normativa. Retomaremos os termos desse reviramento logo adiante, ao tratarmos das condições pulsionais do masoquismo que, segundo nosso ponto de vista clínico, não diferem de suas condições existenciais. Deixamos todavia um alerta para que o viés existencialista, com seus termos inevitáveis – o eu, a consciência, a liberdade, a angústia – não se mescle à nossa temática, provocando a confusão da qual prudentemente se guardaram os psicanalistas, com o prejuízo de ignorarem um dos aspectos essenciais da pulsão – a saber, sua potência existencial. Assim mesmo ficaram reféns da noção de angústia, como de um retorno do recalcado. O existencialismo, em suas diversas vertentes, é ainda um produto da dialética; operou, invariavelmente, com a negação da negação para poder “começar” pela consciência e a liberdade de escolha. Sua prática, começando adiante do desejo, isto é, da pulsão de vida, só poderia terminar no vazio, na escolha vã, no tédio ou no suicídio. Ensino nietzschiano: a consciência 141

enquanto tal, separada, não é criadora; criadora é a força, e por isso a consciência deve elevar-se até ela. Afirmação da afirmação. Onde ficaria a castração nesse modo de colocar a questão do desejo (e da existência), onde localizar o saber da castração, aquele que, justamente, remete à diferença? Onde ficaria o fator sexual e o gozo dito perverso nessa digressão sobre o juízo e a existência? Estamos ainda no campo analítico? Tomemos um exemplo freudiano precioso, o objeto fetiche que tem por enunciado “um brilho no nariz” (ein Glanz auf der Nase) 181. Ele se esclarece ao nível dos idiomas. Glanz, brilho, faz remontar, já na decifração analítica, a glance, olhadela, conforme se passa, pela sonoridade significante, do alemão à língua materna do sujeito. O brilho vela – o quê? A própria olhadela, com a falta (ou a diferença) que ela descobre. Mas a olhadela é, ela mesma, a diferença secreta... O que há de angustiante nessa falta para que ela seja recoberta, escamoteada? O que angustia é o abalo narcísico, a derrocada do regime do mesmo e da semelhança, a quebra de uma harmonia préestabelecida, o fim de uma presunção familiar. Mas subsiste, aquém e além, o gozo da diferença e seus perigos, seus riscos. Uma breve e subversiva incursão pelo estágio do espelho de Lacan nos faria ver, de um golpe, que o júbilo da criança não decorreria, como sempre se acreditou, da identificação à imagem de completude em seu apogeu narcísico, mas do que não aparece na imagem, uma diferença sensível, existencial e irredutível que ali – para continuar a usar o dito estágio como instante estrutural e genético de uma novidade – tomava consciência de si pela primeira vez. No lugar do buraco, a dobra intensiva, o riso beatífico. Até onde a diferença pode ser exercida? De onde vem a medida? Para o entendimento analítico, vem da própria diferença em sua legitimidade intrínseca, o que denominamos pulsão de vida. Do ponto de vista do juízo, a medida procede das distinções gregárias. É que o gozo erótico – como a liberdade de pensar – é essa parcela da existência irredutível a qualquer apropriação; é intransferível, e seu campo de experimentação tem algo de inexpugnável... Um brilho no nariz, eis onde o gozo singular se localizou ao termo de uma fuga. A escapada perversa, no entanto, trai seu fracasso, ou melhor, sua capitulação discreta. O falo é mantido, a igualdade preservada e a morte, sob o aspecto da passagem, do devir e do saber, é ainda uma vez eludida. O campo era mesmo inexpugnável? Até certo ponto. Como tudo isso pode ser tão excitante, tão erótico? Toda a intensidade de uma vida, de uma existência, parece se localizar naquele ponto equívoco, entre a vida e a morte. Outra coisa é o exercício inequívoco da pulsão: em ambos os casos o saber 181

Obras completas, op. cit., Fetichismo, p. 2993.

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insiste, mas somente no segundo ele é exercido como tal, e nisto consiste o gozo igualmente inequívoco. Seu nome talvez seja beatitude. Esclareçamos um pouco mais: o gozo perverso é equívoco por ser uma dosagem de morte na vida, uma oscilação entre diferença e identidade em nome da identidade, um modo de gritar para a morte e, ao mesmo tempo, de se comprazer com ela, com sua medida. Toda intensidade se vê lançada nessa dosagem, nessa oscilação, ao mesmo tempo contenda com a morte e capitulação frente a ela. Já não estamos mais no plano dos afetos originários, mas no terreno da angústia e do prazer. A análise não visa abolir e nem tampouco favorecer as condutas sexuais perversas. É absolutamente neutra neste aspecto. Não é sobre elas que incide o processo analítico como tal, mas sobre o curso intensivo da diferença, e é o móvel pulsional que deverá situar e avaliar, em cada caso, aquelas condutas. É claro, portanto, que a avaliação pulsional não se confunde de modo algum com a angústia ou o prazer, antes os submete ao seu crivo vital. É que não estamos mais nos domínios do principio do prazer, e sim além dele... Chamamos de pulsão de morte o abandono abrupto ou gradual das perspectivas ativas, a diminuição ou a abstenção do exercício pulsional. Só cabe ainda falar de “pulsão” de morte por se tratar, todo o tempo, da pulsão – a phisis psicanalítica –, de seu distanciamento ou de sua aproximação (como se diz da aproximação de um foco). Se a ética analítica consiste na prática da pulsão, a pulsão de morte é a expressão mais pura da deserção ética 182. Mas a deserção é também uma prática e se faz por graus; compreende estações de repouso, lugares de enlevo subjetivo, acomodações e estases a meio caminho da autodestruição, conforme a visão freudiana dos compromissos da vida com a morte, expressos claramente em um princípio – o do prazer. Em Mil platôs, Deleuze e Guattari tocam no sentido real do procedimento masoquista ao mostrarem que se trata, por meio dele, de garantir a distinção e a independência do desejo em relação ao prazer. Mas essa distinção é ainda marcada de culpabilidade e de compromisso entre o desejo e o sistema do juízo. Mesmo que a noção de culpa deva ser afastada do entendimento essencial do masoquismo em favor dos motivos estéticos, como mostra Deleuze em seu livro Sacher-Masoch: o frio e o cruel 183, esses motivos são como que dobrados pela culpabilidade, que se insinua na cena perversa, seja ela sádica ou masoquista, por meio do ideal de eu e do eu ideal. 182

É uma ética que tem seu antecedente em Spinoza: “quanto mais temos idéias inadequadas e tristezas, maior é relativamente a parte de nós mesmos que morre; ao contrário, quanto mais temos idéias adequadas e alegrias ativas, maior é „a parte que persiste e permanece salva‟, muito menor é a parte que morre e é tocada pelo mau”. Spinoza, filosofia prática, op. cit., p. 50. 183 Deleuze, G., Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Zahar, RJ, 2009.

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Na cena masoquista a punição é exercida por força do desejo – o desejo pune e é por causa dele que existe punição. É como se a pulsão de vida perdesse de vista seu movimento maior e, girando em torno de si mesma, recaísse num estado determinado. O que insufla esse giro concêntrico, o que paralisa e fixa o processo pulsional e, portanto, o desativa, sem contudo eliminá-lo, pois isso é impossível, é o vetor de idealização indispensável à fantasia perversa: o masoquismo é a derrisão da figura do pai, mas em nome de um eu ideal que encontra na mãe mítica o equivalente simbólico do pai. É ainda uma estação do inferno. É o que dizíamos acima: o eu narcísico, ideal, que preside à fantasia masoquista, opera uma espécie de congelamento do processo pulsional – o frio... Há um progresso do pensamento e da clínica que vai da perversão à prática da existência, da père-version à sublimação. O traço diferencial, singular, sugerido pela composição perversa (“um brilho no nariz”) sob a forma da transgressão, encaminha o tema da existência até um nível intermediário, o que caracteriza a divisão do sujeito; mas o que é apenas sugerido passa a ser exercido diretamente, sem qualquer transgressão, ao nível da existência e da sublimação. Não se trata, por certo, de abolir as condutas sexuais perversas nesse trânsito à existência e à sublimação, mas de considerálas à luz desse destino. Não há outro sentido para a realização do inconsciente, que é decididamente a do bem-dizer, senão o dessa prática. “O dizer ex-siste...” 184. Esta proposição de Lacan chega a ser lírica. O dizer é um deus. As formações do inconsciente são fenômenos que envolvem simultaneamente o dizer e o existir – são uma combinação expressiva e variável, em diferentes graus, da prática dos mesmos (enquanto pulsão de vida) e de sua redução ou abstenção (enquanto pulsão de morte). Assim, falando de seu gosto pela literatura, uma mulher em análise conta que Henrique VIII mandou queimar as obras de Shakespeare e que Luís IV, na França, confiscou o Cândido de Molière. O engano em citar Molière ao invés de Voltaire, autor da obra, traz ao primeiro plano a dimensão do próprio e da autorização, isto é, do real. Estamos na altura da prática pulsional e de suas vicissitudes. Existir como mulher (Molière) na sua juventude fora de tal modo hesitante, conflitante, que tudo o que ela escrevia parecia-lhe imprestável, destinado à lixeira. O lapso, Molière no lugar de Voltaire, era a expressão em ato, com todas as conotações implícitas – ser uma mulher, hesitar sobre o que lhe é próprio 185, não possuir 184

Cf. Mais, ainda, op. cit., p. 139: “Pois o próprio do dito é o ser... Mas o próprio do dizer, é de ex-sistir em relação a qualquer dito que seja”. E na p. 161: “É assim que o simbólico não se confunde, longe disso, com o ser, mas ele subsiste como ex-sistência do dizer”. 185 Num texto intitulado O sujeito em processo, Julia Kristeva dizia não haver um simbólico próprio da mulher. Derrida, J. – Kristeva, J,, El pensamiento de Antonin Artaud, Ediciones Calden, Argentina, 1975.

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conhecimentos sólidos – de sua insegurança existencial ou, em outros termos, da inibição e crise da prática pulsional e já essa prática em andamento sob o aspecto de uma formação do inconsciente, com seu teor de denúncia e vitalidade. Eis meu sofrimento e minha luta, minha vida impedida e seu desimpedimento momentâneo – a ação da micro-língua imprevisível e seu poder de denúncia. Sublimação ou prática do bem-dizer, a análise reenvia todas as manifestações subjetivas à questão derradeira da existência – ou do dizer, o que é a mesma coisa. Pode-se objetar que o uso do exemplo acima é tendencioso, que nem todos os casos de psicopatologia da vida cotidiana compreendem o dizer e o existir. Para vencer essa objeção, poderíamos evocar o mais célebre dos exemplos, o de Signorelli, com o qual Freud abre a sua Psicopatologia... Na origem do esquecimento desse nome próprio estavam os temas da sexualidade e da morte – balizas extremas na investigação do real. O entrave na corrente associativa resultou da antevisão da pulsão de morte, o elemento trágico da existência, e isto por uma conseqüência necessária da investigação analítica que ele, Freud, havia iniciado. Foram determinantes do esquecimento tanto o fato de receber, durante a viagem em que cometeu o lapso, a notícia do suicídio de um paciente afetado de grave perturbação sexual, quanto o sentimento da pesquisa audaciosa que desenvolvia, e com a qual tocava em pontos nodais da experiência humana. Seguiria em frente até as últimas coisas? 186 É um herói edípico, e a existência da psicanálise é inseparável de sua existência. Botticelli e Boltrafio, nomes dos pintores que lhe vieram à mente em substituição ao esquecido, denotam ainda um dizer que insiste, contrariando as resistências de Freud à análise, ou ao seu desejo: o herói se deparava com a enormidade do desafio, exatamente frente a um voto de nãoexistência e de um ato suicida. O sexo é o desejo, o saber, o existir. Na origem, todo o saber está orientado pelo sexo, pela alteridade, isto é, pela diferença. O trágico, como ensinavam os gregos antigos, consiste em tudo ter conseqüência, todos os atos e todas as escolhas, saber e não querer saber, tudo se decide, no limite, entre vida e morte, sem apelação. O segundo exemplo da mesma obra 187, que trata do esquecimento de uma palavra estrangeira, aliquis, é transparente quanto à equação do dizer e do 186

Freud esqueceu o nome Signorelli quando quis mencionar o autor dos afrescos da capela de Orvieto, obra que, justamente, tem por tìtulo “As últimas coisas”. Obras completas, op. cit., p. 756. 187 Recomendamos uma leitura atenta desta passagem da Psicopatologia da vida cotidiana (idem, p. 760) para se ter uma idéia de como o sujeito se localiza, finalmente, no lugar de alguém (aliquis) que não deve existir. Brevemente, ao citar em latim uma frase da Eneida, em conversa com Freud, e a propósito das limitações do povo judeu em sua geração, o sujeito em questão esquece uma palavra – aliquis, alguém. A frase era: “Que surja alguém de nossos ossos como vingador”. A partìcula ex – empregada para designar procedência: de nossos ossos (ex nostris ossibus) - indica também extração. A corrente associativa complexa, ramificada, localiza, finalmente, um perigo, e descerra um plano afetivo mais originário – o temor do jovem judeu de ter

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existir, e exprime com precisão a fórmula lacaniana do dizer como exsistência. Coloca-se ao sujeito, neste caso, a alternativa de suprimir-se (a alguém, aliquis), inclusive pela omissão, ou de existir; e tal é a questão ética originária responsável pelo esquecimento. Ele diz, mas diz sob o aspecto do não-dizer; suprime a palavra e suprime a si mesmo, segundo um projeto equívoco de (não) existir. O dizer excluído continua dizendo, como se investigasse a possibilidade de reverter sua exclusão (ex-). Quer, afinal, ser ouvido, quer existir. O inconsciente é expressivo, cênico, performático. Faz existir pelo avesso. Ser ouvido, sim, mas não sob a forma do reconhecimento, o que era talvez almejado pelo sujeito em seu discurso exaltado e culto, cujo ápice teria sido a citação da Eneida – a altura em que o chão se abriu. A existência não se pronuncia pelo viés do reconhecimento; pelo contrário, ali onde esse viés falha, ali ela se afirma – como falha, ruptura. Na verdade, o sujeito só existe se ouvir o “mandato” inconsciente, o que é igual a erigi-lo como seu dizer, para além de qualquer identidade narcísica. Ele é um outro, um estrangeiro (aliquis). A análise não é outra coisa que a prática da existência. Mais que suspender o sistema do juízo, ela passa ao largo do mesmo, seguindo os critérios pulsionais de ação, integração, superação... Falamos do trágico e aludimos à pulsão de morte, mas é preciso situálos devidamente, situá-los em relação ao agir, o primeiro dos quatro termos que intitulam o presente sub-capítulo. Pensando em ato, ingressamos imediatamente no terreno do trágico. O ato pertence ao real, e não existe nada que não se reporte a um ato na origem. Posso dizer que apenas penso, que penso inclusive de modo a não agir, mas a minha suspensão diante da ação, meu retardo da decisão, esse momento de reflexão, não importa o quanto dure, é um ato de suspensão, um ato de retardo, é um ato de pensamento que serve para inibir decisões e, portanto, uma decisão exatamente neste sentido. Não escolher é ainda uma escolha com suas conseqüências. “Eu não tive escolha” foi, em muitos casos, uma justificativa que prontamente fez aliança com algum fascismo. Se tudo se pratica, tudo tem conseqüência. A atividade subjacente a todos os processos acaba por ter, assim, o aspecto de uma atividade imanente. Nós a reportamos à força constante (konstante Kraft) freudiana. Mas convém ir devagar nesse assunto relativo à constância, pois ele deve ser situado em um domínio ético e não somente ontológico. O fato de se engravidado uma cristã. Tal é a mobilização inconsciente pelo futuro “do seu povo”. O voto expresso pela citação da Eneida é contraditório em si, inteiramente problemático, quando se tem em vista a situação inconsciente: o sujeito deixa ao futuro, à descendência, a solução do impasse presente (como se dissesse: não é mais comigo), ao mesmo tempo em que essa omissão significa assumir uma descendência a princípio indesejável.

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pensar o ato como originário, coisa que remonta à antiga acepção do “logos”, esclarece a razão pela qual concebemos uma ética também originária. Diríamos se tratar de uma ética do ato, da atividade, do ativo. Mas também aqui é preciso cautela, de maneira a situar devidamente o plano em que essa ética do ativo se torna legítima, isto é, originária. Pois não paramos de falar da estranheza e do não-senso como propulsores da análise, e certamente devido ao desconcerto que produzem em nossas certezas e, por conseqüência, em nossa atividade. Páginas luminosas de Deleuze, expondo como o neo-realismo no cinema, suplantando a imagem-movimento, soube introduzir situações óticas e sonoras que ultrapassavam qualquer possibilidade de reação dos personagens. Os gregos já haviam concebido algo assim com sua profunda noção do trágico. Édipo se vê em tudo ultrapassado. E no entanto, como já observamos antes, a tragédia tem um desdobramento, e a sabedoria de Édipo, a partir de Édipo em Colono, não é mais a de um mortal. A ação necessária, com suas implicações coletivas, é sempre grande demais para o herói trágico. Mais uma vez: o caráter extra-pessoal da atividade requerida – daquela que é imanente ao sonho e à arte – circunscreve a experiência trágica e, ao mesmo tempo, vai além dela, em uma espécie de superação purificadora. É o sentido, como já vimos, do filme O sacrifício, de Tarkovski. Pois bem, trata-se de esposar eticamente esse nível de ação (singular e extra-pessoal) ali onde está em jogo o procedimento analítico e se tem em vista o plano do inconsciente. Ora, essas núpcias não ocorrem sem uma de-subjetivação concomitante. Não se trata mais, portanto, de ação sensório-motora, mas de atividade pulsional, ético-estética. E nada mais distante do ato fascista, decidido inteiramente por um processo de identificação subjetiva. O agir se desdobra no avaliar, embora se possa dizer, também, que este é a sua dobra. É claro que a análise é um processo de re-avaliação dos valores, uma transvaloração, na qual se incluem os valores inconscientes. Será em nome de algo verdadeiro, ou de algo mais verdadeiro? São célebres, e clinicamente decisivas, as ampliações do campo analítico propostas por Winnicott, de maneira a viabilizar processos de regressão em que um “eu verdadeiro” pudesse, por fim, respirar, readquirir vida e se tornar novamente uma força ativa. O que procedesse dele, fosse amor ou agressão, seria legitimado como real e considerado bom. Vida e verdade aqui se conjugariam, como há pouco o real e o saber. Mas procuremos elucidar essa conjunção olhando-a mais de perto, retomando o afeto originário, avaliador. Era um desígnio nietzschiano reconduzir todas as questões sobre a verdade e o verdadeiro a um processo de avaliação, conforme indicamos com a citação do aforismo 272, onde a verdade é assimilada à graduação do exame. 147

Naquela passagem, o prisma avaliador se aplicava às estimativas morais. É notável como ele se dobra sobre si mesmo quando se trata de situar a verdade e o verdadeiro (algo que poderia ser expresso, se não perdermos de vista o afeto, por uma fórmula de Lacan – “a verdade sobre os efeitos da verdade”). Pois bem, no aforismo seguinte Nietzsche parece explicitar essa dobra: “A avaliação: „eu acredito que isso e aquilo sejam assim‟ enquanto a essência da verdade. Nas avaliações expressam-se condições de conservação e de crescimento. Todos os nossos órgãos de conhecimento e todos os nossos sentidos só são desenvolvidos em vista de condições de conservação e crescimento. A confiança na razão e em suas categorias, na dialética, ou seja, a avaliação característica da lógica, não demonstra outra coisa que a sua utilidade, comprovada por meio da experiência, para a vida: não a sua „verdade‟. (...) O fato de uma grande quantidade de crenças estar presente; o fato de ser permitido julgar; o fato de não haver dúvida alguma em relação a todos os valores essenciais; esse é o pressuposto de todo vivente e de sua vida. Portanto, o fato de algo precisar ser tomado por verdadeiro é necessário – não o fato de algo ser verdadeiro (...). „O mundo verdadeiro e o mundo aparente‟essa oposição é reconduzida por mim a relações valorativas. Projetamos as nossas condições de conservação como predicados do ser em geral. Do fato de precisarmos ser estáveis em nossas crenças para prosperarmos fizemos com que o mundo „verdadeiro‟ não fosse nenhum mundo mutável e deveniente, mas um mundo que é.” 188. A verdade é assimilada a uma crença e o conhecimento a critérios de avaliação do ser vivo; ou seja, tanto a crença, fixada como verdade, quanto o processo de conhecimento, estão a serviço dos interesses da vida, são decididos e moldados por ela. A verdade, entendida como correção, como adequação da representação ao representado, do intelecto à coisa, passa, com Nietzsche, ao estatuo de crença que se mostrou útil, de uma crença digna de ser conservada, tendo em vista o crescimento e a conservação do ser vivo que dela se utiliza. Não mais que uma crença, o que permitiria a aproximação – que evocamos no primeiro capítulo – entre a concepção nietzschiana da verdade e certo pragmatismo em psicanálise. Mas também dissemos que essa aproximação tem um limite, pois a noção de crença, em Nietzsche, polemiza com a idéia de verdade como correção, tal como esta aparece na história do pensamento ocidental. Outra coisa é afirmar que a verdade é, em essência, avaliação. Já não se trata de dizer que o mais valioso para a vida, em dado momento, o que lhe serve de apoio e perspectiva, deve ser confiável e, portanto, se beneficiar do caráter de fixidez, de permanência, de ser; isto apenas denuncia o caráter de crença do que se 188

Obras completas, op. cit., 506, p. 197.

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designou como verdade e a necessidade de tal designação. A verdade é em essência avaliação porque a vida é avaliação, e é nela, na vida em si, que reside a verdade. E é aqui que ingressamos no terreno pulsional. Houve um deslocamento do cogito ao desidero no que diz respeito à verdade: coloca-se novamente, porém em outro plano, a questão do verdadeiro, coincidindo agora com o que decide pela vitalidade do próprio pensamento. Por isso Nietzsche pode assimilar a verdade ao grau de exame, à potência de avaliação e já, também, à sua efetuação. É essa verdade, tanto sob o aspecto da efetuação como da potência, não importa se obscura ou esclarecida, que chamamos de pulsão. Desse ponto de vista, vida e verdade são o mesmo. Já dissemos: a morte é o erro, mas o erro remete, aqui, à falha ética, e não à inadequação do intelecto à coisa. O erro significa, então, a escolha pela desvitalização do pensamento, pela via que o levará, mais cedo ou mais tarde, à inconsistência. É o passo em falso, o gesto equivocado, que o alpinista-filósofo, para usar uma imagem de Michel Serres, poderia cometer no momento crucial 189. Podese pensar, igualmente, em uma série de passos em falso, uma série de pequenos erros que, pelo desgaste, pela dissipação da força e pelo desvio crescente, culminariam no gesto fatal, na parada do processo ou na morte do desejo. Em contrapartida, a vida persevera, mas não como mera conservação de si, no mesmo nível já alcançado. É próprio da vida avançar, tornar-se mais e mais incisiva, mais e mais ela mesma, tornar-se indestrutível, vitoriosa – tal como ela é. Se, no entanto, é o homem que faz e garante essa constatação de veracidade, de continuidade, de elevação, de indestrutibilidade, não caberia a ele o caráter de “verdadeiro”? Mas toda a filosofia de Nietzsche não é o tema do além do homem? “A verdade”, “o verdadeiro”, “o homem” – não são essas antigas figuras da metafísica ocidental que devem ser superadas segundo a mais declarada crítica nietzschiana? E como essas questões aparecem no campo analítico? Tudo deve ser revisto sob o novo e originário prisma em que a verdade e a vida são o mesmo. Em primeiro lugar, o caráter de verdadeiro faz justiça ao grau de exame de que somos capazes – já de um ponto de vista extra-moral. Como já dissemos, Winnicott soube elaborar essa justiça, com agudeza clínica, ao sustentar a idéia de um self verdadeiro que decide pelo que é bom e mau, real ou irreal, independentemente de qualquer critério moral ou de qualquer senso de realidade estabelecido. Mais de uma vez Nietzsche teria escrito “nós, os verìdicos”, além da expressão que é comumente lembrada – “nós, os imoralistas”. Acrescente-se que aquele grau de exame não se 189

Serres, M., Variações sobre o corpo, p. 12, Bertrand Brasil, RJ, 2004: “... os exercìcios corporais são um ótimo início para um programa de filosofia básica: na alta montanha, qualquer hesitação, rotas equivocadas, mentiras ou má-fé equivalem à morte”.

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distingue do grau de autorização para se dizer o que se diz. A perspectiva avaliadora é aqui dominante. Em segundo lugar, o homem – a quem atribuímos, com reserva, o caráter de verdadeiro – deve ser concebido como um ser que não está determinado. É por isso que ele é uma ponte – para além de si? O verdadeiro não cabe, então, a um ser determinado, fixado. A análise se situa exatamente neste ponto, pois na transformação da livre associação em empreendimento ético, na torção gradual do involuntário em voluntário, um dizer se autoriza, e isto de acordo com a abertura – também gradual – do exame. Não estamos mais no ponto de atribuir o caráter de verdadeiro a uma representação, ou a uma proposição, tendo em vista sua adequação à coisa ou sua consistência lógica, neste caso sendo considerada em si mesma e em sua estrutura interna. Esse gênero de conhecimento e seu valor pragmático já são decorrentes de uma decisão quanto aos interesses superiores da pulsão de vida, tanto no sentido de cumprir com essa destinação superior como no sentido de se desviar dela. Em certos casos, principalmente ali onde o novo e o desconhecido abrem caminho, tais interesses são dificilmente apreendidos e, do ponto de vista gregário, dificilmente tolerados. A arte é a exceção, diz Godard, e a cultura a morte da exceção. É no entanto no plano da decisão quanto aos movimentos reais da vida – e se isso vale para a vida humana vale também para todos os seres vivos – que se encontram, para uma visão metafísica renovada, o verdadeiro e a verdade, isto é, a vida mesma. É por isso que aprendemos algo de novo com o perspectivismo indígena, que conserva atuante, em sua cosmologia e em seus ritos, uma atitude vital que precisaríamos redescobrir. Se esse perspectivismo ensina que o estado de humanidade é originário, exigindo uma profunda redefinição do que significa natureza e cultura no contexto ameríndio, envolve igualmente uma ética muito próxima da pulsional: “Se tudo é humano, nós não somos especiais... E, ao mesmo tempo, se tudo é humano, cuidado com o que você faz, porque, quando corta uma árvore ou mata um bicho, você não está simplesmente movendo partículas de matéria de um lado para o outro, você está tratando com gente que tem memória, se vinga, contra-ataca, e assim por diante. Como tudo que é humano, tudo tem ouvidos, todas as suas ações têm conseqüências”. 190 A sublimação é originária, e tudo deve ser medido por ela. Agir, avaliar, dizer... Enquanto lapso a verdade fala, e o lapso é mesmo uma escolha feliz, amálgama de saber e força, inteligência e determinação inconsciente – demarca o instante em que saber e força se tornam o mesmo. Avaliação em curso, distingue aqui e agora o mais importante, distingue a 190

Trecho de entrevista com Eduardo Viveiros de Castro, Revista Cult, Ano 13, Dez/2010.

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existência e seu modo de ser, a tal ponto que esse arranjo de linguagem contém a agudeza da singularidade. Combinação única, o lapso é um engenho existencial. E assim retomamos o nosso quarto termo, o existir, espécie de causa final e de pressuposto universal dos outros três: existir é existir em ato, é avaliar e discernir o novo modo de existência e, segundo esse modo, avaliar as demais coisas. Existir em ato, porém, é dizer. O que se denomina pulsão não é senão o precipitado desses quatro termos. “Verdadeiro” passa a ter o sentido de ìntegro, sem concessões, como o lapso sabe sê-lo. Quando um sujeito, ao examinar a tendência que identifica como decisiva em sua sintomática, chama-a de tarática, surpreendendo-se com a incisão desse lapsus linguae, depara-se com um fenômeno muito curioso, todavia cotidiano: a divisão e a integridade de uma só vez. Versado em teoria psicanalítica, percebe a presença incontornável da tara, do tesão, na inclinação tanática a se aterrorizar com a idéia dos perigos que, por exemplo, uma viagem de trabalho chega a lhe inspirar. E no entanto a viagem, além de prometer uma satisfação conhecida e certa, é uma dessas ocasiões significativas para a sua carreira bem sucedida, alicerçada em um ofício que desde muito cedo esteve de acordo com o seu desejo. Saber, satisfação, atividade, sentido são termos que perfazem as condições pulsionais de partida; reúnem-se no saber-fazer que caracteriza o inconsciente. Por que, então, o sujeito se aterroriza? Por que, na série dos terrores, lhe vêm à mente as imagens do irmão morto, antigo companheiro de infância, do pai já muito velho, um “sobrevivente” como o próprio sujeito, a cova e a terra lúgubre, o futuro inviável e a sua própria fragilidade angustiada diante das tarefas do dia, da vida – cena congelada a desafiar a realidade que parece desmenti-la? Por que esse ser frágil prepondera e o frio, dir-se-ia de ficção, chega a se exercer com todo o prestígio do real? Na infância assustava o irmão, que era mais novo e franzino, atiçando os cães da redondeza. Os cães, explica ele, não eram temíveis, não eram rottweilers e pitbulls; se fossem, não os provocaria com as batidas de pé. Era ele o cão, a infundir pavor no irmão trêmulo, submetido a uma proteção malévola e divertida. O gozo de atormentar o pequeno com um perigo que não existia e que ele, entretanto, fazia existir. Irá além de seu companheirinho comportado e tímido em três sentidos: sendo o enfant terrible, sagaz e ousado, tendo sucesso profissional e sobrevivendo de fato a ele, que morreu jovem, vítima de uma doença. A experiência com o irmão é apenas um exemplo, uma metáfora representativa de um certo modo de compor os afetos. A excitação que é a vida, mesclada de culpa, torna-se tarática. Quando ele se aterroriza, é ainda a vida, a saúde que ali se expressam, como a essência de um ato que se tornou obscuro e adquiriu o aspecto da paixão, do sofrimento. Essa essência se revela, porém, nos ensaios 151

sublimatórios, como é o caso da intromissão da tara na fala, provocando a reversão a um princípio ativo. Na verdade, é o princípio ativo que determina a reversão, e o faz pelos engenhos da micro-língua. É em momentos assim que a vida, tal como é, se introduz novamente no pensamento. E assim podemos dizer, com Lacan, que a verdade fala, mas também que a própria divisão do sujeito é expressa de modo verdadeiro, íntegro, através da palavra-valise tarática. Eis aí, simultaneamente, a excitação vital e a volta contra si. A pulsão fala, e fala direta e integralmente das condições em que se exerce na atualidade. Com isso propõe, igualmente, um problema, ao evocar no âmbito da análise um outro tempo – o da pulsão como tal ou o do re-começo. Neste caso, a necessidade da volta contra si é decifrada e desativada. E é nessa desativação que consiste a dobra, o cuidado de si. Como não pareceria também uma desdobra, uma de-subjetivação? Verdade, verdadeiro. Por que – insistimos em perguntar – essas categorias são utilizadas pelo pensamento psicanalítico? Não bastaria falar em consistência, em desejo ou em criação? Aquelas categorias, agora associadas à vida e ao vivo, ganham uma nova consistência, pois é no âmbito dos afetos e segundo sua ordem real que elas começam a ser consideradas. Atestam, assim, direitos e prerrogativas sancionados pelas forças da vida, antes de qualquer outro poder. É a lógica intensiva do “pensador privado”, para usar uma expressão de Deleuze, que se pronuncia nessas condições de partida. Esse pensador do fora se encontra longe do Estado, de sua moralidade e de sua racionalidade do mesmo modo que os sistemas físicos dissipativos e criadores de ordem, investigados por Prigogine e seu grupo, se encontram longe do equilíbrio. É claro que, referido ao plano das forças, o problema do pensamento não interessa apenas à história da filosofia; afetando profundamente a vida e suas possibilidades, renova, por assim dizer, o uso do “verdadeiro”. Nessa medida é também o problema da psicanálise, da ciência, da arte, da literatura. A obra de Kafka não pára de secretar um pensamento nômade e sua resistência vital, não importa quão enredado esse pensamento esteja nas tramas dos poderes oficiais, burocráticos e administrativos: “Sendo assim, podia bem acontecer, caso ele não estivesse sempre alerta, que um dia, a despeito de toda a amabilidade das autoridades e da realização plena de todas as obrigações oficiais tão exageradamente fáceis, iludido pelo favor aparente que lhe era dispensado, conduzisse sua outra vida de forma tão descuidada que, nesse ponto, ele desmoronasse e as autoridades, sempre brandas e amigáveis, tivessem de vir, como se fosse contra a vontade, mas em nome de alguma ordem pública que desconhecia, para tirá-lo do caminho. E o que era ali, na verdade, aquela outra vida? Em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal 152

maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham trocado de lugar. O que significava, por exemplo, o poder até agora apenas formal que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.? Acontecia assim que, ali, um procedimento um pouco mais ligeiro, uma certa distensão, só cabiam na relação direta com as autoridades, ao passo que no mais era sempre necessário um grande cuidado, um olhar em volta para todos os lados antes de cada passo” 191. O verdadeiro designa, certamente, o mais comum dos homens, e K. não passa de um ser insignificante para os senhores e funcionários do Castelo; mas é também o mais estranho, aquele que diz e espera as coisas mais incabíveis, professando essa “outra vida” como um devir alegre, inquieto e perigoso. Daí a necessidade de estar à espreita, como dizia Deleuze do filósofo, do escritor, do animal... K é assim a própria pulsão, sua verdade. Retomaríamos neste ponto uma distinção entre verdade e exatidão promovida por Lacan em seu escrito sobre A carta roubada, de Poe. Chama ali de exatidão o registro do consenso científico ou burocrático, e de verdade o que exprime um ponto de vista singular, envolvendo outros pontos de vista, e isso dentro de um mundo de subjetivações instáveis, cambiantes, freqüentemente mobilizadas por uma questão inconsciente: no conto, o circuito da carta, os modos de subjetivação que ela opera e a perspectiva real desse deslocamento. O verdadeiro também coincidiria, aqui, com o anexato, conforme a expressão introduzida por Deleuze-Guattari para apreender o rigor das passagens, a prática das fronteiras e a travessia dos reinos. Sim, estamos ainda no âmbito das proposições nietzschianas sobre a verdade, mas esta não se explica mais pela idéia de crença útil como prova de veracidade. É toda uma reversão no entendimento pela qual o saber – que não é senão afeto 192 – e o verdadeiro coincidem: “nós, os verìdicos”. Lacan atentou para essa coincidência em sua lógica dos quatro discursos, ao formular que no discurso do analista o saber ocupa o lugar da verdade. O saber de uso, o saber-fazer e, finalmente, o saber de não-senso, para o qual os dois primeiros refluem, não se confundem, como já dissemos, com nenhuma espécie de crença, e constituem em si mesmos uma prova, a prova do saber como tal, ou seja, daquele saber que não recebe luz de nenhum outro. No que diz respeito ao modo de existência, esse saber em ato é a prova ética por excelência. Como não constituiria um critério do verdadeiro? Este critério não se refere mais à 191

Kafka, F., O castelo, p. 71. Companhia das Letras, SP, 2008. Afeto-saber ou afeto lúcido já não diz respeito ao saber enquanto procedimento, expressão ou conteúdo, embora possa implicá-los; refere-se antes a uma posição de saber, a um saber das condições de saber, e por isso não se distingue de um exercício ético. 192

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adequação lógica de uma proposição, nem tampouco ao pretendente platônico, à boa cópia, mas à instância nômade que, não se deixando adequar e nem fazendo ressoar um modelo, abre o pensamento ao não pensado ainda, ao novo. Mas estaríamos aqui no plano do direito natural, tal como o conceberam Hobbes e Spinoza, e para o qual vale tudo, desde que se queira e tenha poder para isso? É preciso insinuar certa luz nesse mundo natural para saber como ele se transforma através dela, como adquire ele próprio uma consistência, experiência que todo recém-nascido começa a fazer... O vale-tudo logo é superado – graças a uma potência de avaliação em curso (por nós denominada de pulsão) – pelo que vale acima de tudo. A prova existencial se propõe desde o começo; aliás, ela é o começo a ser sempre re-começado. Conforme observamos no início destas páginas, a idade do ouro dos afetos está sempre a ponto de recomeçar. E por que, na esteira da pergunta anterior, empregamos a noção de integridade, evocando algo de “integro”, quando são expressões que resvalam facilmente para o domínio moral? Talvez não baste falar em consistência de um processo, pois com este termo designamos as condições de uma articulação, ou de uma composição; apontamos seu caráter estético, não necessariamente sua determinação ética. Não existe consistência sem determinação ética, mas esta remete menos à obra que à força que se expressa na obra, e que é feita de uma única peça (o simples). A força, no entanto, é inseparável de sua expressão. É sempre uma única coisa, mas são dois modos de vê-la e dizê-la. É o fora e sua experimentação, seja sob o aspecto do fragmentário, do parcial, do múltiplo e de sua consistência, seja sob o aspecto da peça única, o íntegro, ou que Deleuze denominava de “uma vida”. Os graus da pulsão e sua justiça É claro, por outro lado, que a pulsão será interpretada como pulsão de morte pelas instâncias recalcantes, pois do ponto de vista dessas instâncias a pulsão é, para repetir Fitzgerald, um processo de demolição – demolição do que não é ela, do que não participa de sua lógica e resiste à sua práxis. Ora, esse caráter destrutivo é crítico, clínico, avaliador. É uma justiça. O exercício da pulsão é ao mesmo tempo dissolvente e construtivo, no sentido de que reconstrói dissolvendo simultaneamente o que lhe resiste e oferece dele uma falsa imagem. “Justiça como modo de pensar construtivo, excludente, aniquilador, oriundo das avaliações: suprema representante da própria vida” 193 . O termo “representante”, aqui, não nos remete à representação, mas ao ato 193

Citado em Nietzsche, op. cit., p. 495.

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legítimo. De fato, não se tem acesso direto à pulsão pela representação, seja esta qual for, pois a pulsão é o abstrato puro, a mais alta abstração, precisamente por ser a prática por excelência. Poderíamos usar termos aproximados para descrever o retorno da pulsão – como “restauração”, “reconstituição”, desde que se trate do retorno de um poder de avaliar que já é, em si mesmo, uma prática avaliadora. É preciso sempre dizer, no entanto, que a pulsão não é exercida de uma vez por todas; ela é exercida a cada vez, é de sua natureza sê-lo a cada vez, e nisso consiste o seu caráter constante – die konstante Kraft. Por isso também essa constância é de natureza ética, ela pode não se verificar. Que ela não se verifique não anula a constância latente, não assumida, da questão, outro viés pelo qual vigora, de modo contínuo, a ética do inconsciente. No seu ponto mais alto de integração – pois ela é integrativa – a pulsão de vida afirma de uma só vez todo o devir. Amor fati. É o que se passa com o sonho de Jorge, apresentado no primeiro capítulo: o tempo antigo, o da adolescência dos filhos e da sua ausência de casa, e o tempo atual, que exige uma espécie de transvaloração dos valores, se reúnem em um mesmo dizer – o texto onírico e sua comunicação – em nome de uma abertura do pensamento que parece ser o alvo do processo inconsciente, sem deixar de ser o pressuposto de todos os passos ou tempos desse processo. O sonho se constrói tendo em vista o desfecho – o surrealismo do carro planando sobre a árvore, de rodas para cima. Entretanto, essa força do delírio, que no caso não é senão a liberdade de pensar, põe em movimento todas as peças do sonho, de tal modo que o alvo é sua causa eficiente. Ali de onde nasce o sonho, para esse mesmo lugar todo ele reflui. É – como uma vida – um dizer que se diz aos poucos, forçando o surgimento gradual de todos os seus estratos. Sua narrativa cifrada, seu desdobramento temporal se resolvem, no entanto, em outro tempo, aquele no qual vigora o pensamento inconsciente (ou desejo) e sua intensidade própria. Disso são testemunhos, ao que parece, o riso e o alívio que acompanham a recordação e depois o relato. No ponto mais alto de integração – que é também seu umbigo, pois é dali, do carro planando, que todo o sonho deve ser lido, pois ali reside, precisamente, a leitura do sonho, sua interpretação ou seu desejo – todo o devir é afirmado, ou seja, não só o que se passou, como o que está por vir. O sonho é simultaneamente revelação, realização de desejo e preparação: compreende em si mesmo o exercício de uma perspectiva, e assim põe em jogo as tarefas do futuro que essa perspectiva mesma se dá, e que só poderiam ser dadas na altura em que ela se exerce. Afirmar de uma vez todo o devir é também se preparar e se por a caminho, pois essa afirmação só pode valer como prática e a cada vez. É nisto que consiste a dobra pulsional e a razão última pela qual um sonho nunca chega a ser inteiramente analisado. 155

Se cada vez pode valer por todas as vezes, é porque comunica com todas elas no ponto mais alto de integração. Esse fio inter-comunicante já se mostra no fato de que cada uma das vezes influi sobre todas as outras, conforme a lógica cruel ou trágica de que falávamos. Mas o devir onírico instaurado reordena os tempos históricos, e os insere em seu movimento intempestivo, supra-histórico. Ele os transforma em peças, engrenagens de sua potência. É a isso que Nietzsche denominava amor fati. Sob a devoção do camelo e a coragem do leão já havia o riso contido da criança, o rumor da roda que se move por si mesma. A pulsão de vida é uma prática, e é em sua constância ética que reside a satisfação, isto é, o saber, o sabor, o gosto e o gozo de seu eterno retorno. Se as coisas nesse terreno não acontecem de uma vez por todas, como faria presumir a idéia de uma satisfação final, constante, identificada ao repouso absoluto (derradeiro mito psicanalítico da tendência à descarga total das tensões), só será possível uma constância conservando-se a direção do sujeito do inconsciente, progredindo em seu campo, perseverando em seu ser que, conforme o dizer de Nietzsche, é o próprio avaliar. Como sucede no cone bergsoniano do tempo, a pulsão tem diversas alturas que coexistem umas com as outras. Lençóis de memória, dirá Deleuze – mas a pulsão mesma é a constituição de uma linha transversal que, como um novo lençol, intercomunica os demais e chega a atualizá-los, de uma vez só, em uma experiência direta do tempo 194. Um lapso progride desde os estratos de onde emerge, sinaliza uma nova altura, é a ponta da pulsão, o fio intercomunicante, uma prática que se esclarece. Nunca ocorre sem relação com o contexto em que surge, que o prepara e é, mais profundamente, preparado por ele – dizer que se avizinha, que se gradua, de maneira a poder existir. A análise é a prática desse dizer. Como se pode conciliar a idéia de que a pulsão é uma prática, que ela mais se exprime quanto mais se exerce, e que ela é o que é na medida do seu exercício e do grau de poder atingido, com o fato de que há uma inteligência inconsciente infinitamente superior à que nos é familiar, para a qual a consciência é apenas um meio descontínuo e um efeito superficial? O fato de não sabermos o que um corpo (o inconsciente) pode não anula, assim, o seu poder, nem impede suas realizações? Ora, a questão é bem esta, pois é completamente diferente estar ou não, e em que medida, à altura dos processos 194

“Constituìmos um lençol de transformação que inventa um tipo de continuidade ou de comunicação transversais entre vários lençóis e tece entre eles um conjunto de relações não-localizáveis. Deslindamos assim um tempo não cronológico. Extraímos um lençol que, através de todos os outros, apreende e prolonga a trajetória dos pontos, a evolução das regiões”. Cinema II – a imagem-tempo, op. cit., p. 150. Deleuze fala de um procedimento, de uma prática, e não, certamente, de algo dado.

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inconscientes. Estar à sua altura significa alcançar o seu princípio – e isto a cada vez, dado o caráter movente da pulsão, bem como daqueles processos. “A maior elevação da consciência de força no homem: eis o que gera o superhomem”, diz Nietzsche 195. Trata-se de gerar as condições superiores de exercício da pulsão, sendo ela própria o estágio superior. Não é o caso de promover mais e mais consciência às expensas, digamos, da força. Esse procedimento, o sentido separando-se da força e, a partir da separação, progredindo indefinidamente na direção do ideal (a conjugação mais aguda do simbólico e do imaginário, com elisão do real), caracterizou o pensamento dialético e a metafísica do Ocidente. Trata-se, ao contrário, de elevar a consciência até a força, o que é igual a exercê-la. Daí a exortação de Zaratustra: “Trazei, como eu, de volta à terra a virtude perdida, trazei-a de volta à vida e ao corpo...”. A virtude perdida é o exercìcio ético imanente, pulsional, segundo o qual as condições de vida são medidas, e com elas as vicissitudes do pensamento. É uma medida dionisìaca: “Quando o corpo grego e a alma grega „floresciam‟, e não em estados de exaltação mórbida e de loucura, nasceu aquele símbolo misterioso da mais alta afirmação do mundo e de transfiguração da existência que jamais foram alcançados sobre a terra. Eis a medida pela qual tudo quanto cresceu desde então é julgado pequeno, demasiadamente pobre e estreito: pronuncie-se apenas o nome de Dioniso diante do que há de melhor entre os homens e as coisas modernas, por exemplo, diante de Goethe, Beethoven, Shakespeare ou Rafael, e estarão de súbito julgadas nossas coisas e nossos melhores momentos. Dioniso é um juiz! Compreenderam-me? Não há dúvida de que os gregos tratavam de interpretar com suas experiências dionisìacas os últimos mistérios e segredos do „destino da alma‟ e tudo o que sabiam da educação e da purificação do homem, e sobretudo da imutável hierarquia e da desigualdade de valores entre homem e homem: aqui se encontra, para tudo que é grego, a grande profundidade, o grande silêncio: não se conhece aos gregos até que se descobre este misterioso caminho subterrâneo.” Digamos que o misterioso caminho inconsciente é o do campo pulsional, e que ele serve de medida a todos os estados da subjetividade, a todas as nuanças de sentido, de afeto e ideação. Apropriamo-nos do símbolo de Dioniso e dessa referência nietzschiana a uma via mais secreta da experiência grega com intenção crítica e clínica. Conjugamos assim justiça, 195

Aforismo extraído de uma edição da obra de Nietzsche que segue a organização de seus manuscritos feita por Elisabeth Foerster Nietzsche. Essa organização teria sido observada na primeira edição das “Obras Completas”, em quinze volumes, publicada em novembro de 1901. Assim, o aforismo em questão, de número 379, encontra-se no livro intitulado “Vontade de Potência”, capìtulo “Disciplina e Seleção” (cf. Nietzsche, F., Vontade de potência, p. 366, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1945).

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saber oculto e saúde. Ou será que pretendemos assimilar os segredos dionisíacos à práxis analítica? Em Mais, ainda, Lacan faz menção ao que se revelava ao fim dos mistérios antigos, isto é, o falo, o real ou a pulsão de vida. É evidente que não buscamos considerar aqui, sob o prisma dionisíaco, os pontos altos da civilização atual. Todos os casos singulares, apreciados analiticamente, oferecem diferentes estados de alma (seus destinos), igualmente mensuráveis pelos seus graus superiores, pela mais alta afinação (die höcheste Stimmung). Além disso, é provável existirem, no vastíssimo campo da experiência humana, graus de elevação da vida que mereceriam a designação de dionisíacos e que, todavia, permanecem anônimos, ignorados por nossa civilização. Heidegger soube ver na “metafìsica” de Nietzsche 196 a junção essencial da noção de verdade com a de justiça, e como estas duas noções se esclareciam, finalmente, pela idéia de criação artística. É o conceito nietzschiano de vida que permite o desdobramento do pensamento nesses termos – criação, verdade, justiça. E é esse, também, o ponto de vista analítico, que remete a verdade à pulsão e faz desta uma justiça. Embora quase tudo seja ensaio na vida cotidiana, esboço, tentativa, quase tudo gesto e fala inconscientes, com deslocamentos mínimos apenas pressentidos, não há nada que não constitua, assim mesmo, uma justiça, e isso graças ao pressuposto ético pelo qual se instaura, a cada vez, a oportunidade de uma prática constante – de uma prática, diríamos, que faça justiça à força constante. Por isso Heidegger pode sustentar que “a própria vida é, no fundo, o que Nietzsche denomina justiça” 197. Se a vida é a justiça, o vivo é o justo. Na mesma linhagem do vivo se reúnem o criador e o verdadeiro. E isso é, talvez, toda a justiça. Os graus da pulsão são graus de proximidade com o real, são graduações do saber e níveis de vitalidade. Uma vez alcançados, repercutem em todas as condições de existência – biológicas, culturais, afetivas, ideacionais. Não exercê-los, não praticá-los, também afeta as demais condições, de tal modo que se experimenta, a cada vez, o que é justo. Mas se a própria vida é a justiça, isto não constituirá um modelo, um arquétipo, uma lei, um comando soberano, um juízo universal? Não estaríamos retomando o discurso do mestre como o único discurso realmente 196

Heidegger, cuja filosofia gira em torno do pensamento e da meditação sobre o ser, pretende que Nietzsche seja o último grande metafísico. Perde assim de vista que Nietzsche instaura, com a vontade de poder, uma nova perspectiva ética. Para este filósofo do devir, a reversão do platonismo (e do pensamento como tal) é de ordem ética, e consiste, fundamentalmente, em conceber a arte, que de Platão a Hegel é apenas um meio, um estágio na elevação do espírito, como a atividade verdadeiramente metafísica da vida. 197 “O esclarecimento que comanda e a transfiguração que cria poeticamente são „corretos‟ e justos porque a vida é, no fundo, o que Nietzsche denomina justiça”. Em Nietzsche, op. cit. p. 502.

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válido, por ser o mais valioso? Como o discurso da diferença, que é o da análise, pode assegurar uma identidade de vida e justiça sem se inviabilizar? Leiamos a seguinte passagem de Assim falava Zartustra, que se encontra no capitulo chamado Dos caminhos do criador: “Dizes-te livre? O que pretendo conhecer é o teu pensamento soberano; não me interessa saber qual o jugo que sacudiste de ti. És daqueles que têm o direito a subtraírem-se ao jugo? Muitos perderam a última parcela do seu valor no dia em que se libertaram de sua servidão. Livre de quê? Pouco importa a Zaratustra. Mas que teu olhar me diga claramente para que fim és livre. Saberás prescrever a ti próprio o teu bem e o teu mal, e suspender acima da tua cabeça o teu amor erigido em lei? Saberás ser o teu próprio juiz e o vingador da tua própria lei? Terrível é um tal diálogo, frente a frente com o juiz e o vingador de nossa própria lei! Assim um astro se vê precipitado no espaço vazio e no hálito glacial da solidão” 198. Em primeiro lugar, Zaratustra declara: “pretendo conhecer o teu pensamento soberano”, e não o pensamento soberano. Em segundo, pergunta se existe o direito de se subtrair ao jugo do que é considerado reto, justo, legítimo, legal. Do contrário, melhor é manter-se sob tal jugo, pois é deste que emana o valor que se tem quando não existe o direito de subtrair-se a ele. E de onde vem esse direito, quando é permitido exercê-lo? Só pode ser exercido quando se sabe prescrever a si próprio o bem e o mal, suspender acima de si o seu amor erigido em lei; ser o próprio juiz e o vingador da própria lei. Mas como não entrar desse modo no círculo vicioso demasiado familiar do juiz e do réu, do algoz e da vítima, que modula as neuroses e algumas perversões? Como não incorrer nas presunções do eu que a psicanálise não cessa de denunciar? É preciso um passo a mais, uma determinação mais originária que esclareça como, a partir de quê, é permitido chegar a ser efetivamente juiz de si próprio e vingador da própria lei – e de que modo esses termos – si próprio, a própria lei – ainda se justificam, quando investigamos o que possa ser o justo e a justiça para uma lógica do inconsciente. A autoridade – de onde vem? Vem da vida. Mas dizer isso é insuficiente, pois não se sabe ainda de qual vida se trata. D. H. Lawrence falava de uma vida maior, distinguindo-a da vida do pequeno eu. Sem dúvida, é uma questão de direito, mas de um direito que se conquista. Pressupõe os passos dados pela vida na direção em que esse direito, finalmente, se torna legítimo; e que, portanto, a vida mesma avance além de suas conquistas pelos passos do “criador” – o que é, para ela, imergir ainda mais profundamente em suas possibilidades, encontrar e efetuar cada vez mais a sua potência. Por exemplo, só é possível uma reversão do 198

Assim falava Zaratustra, op. cit., p. 66.

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platonismo se este for exaustivamente compreendido, vivido, realizado, a ponto de ser visto de fora; se não for assim, continua a decidir pelas visões menores que engendra, algumas imbuídas da presunção de tê-lo superado. Atravessá-lo de ponta a ponta é o que dá o direito à sua reversão. A psicanálise mesma, em algumas das suas vertentes, ficou refém da dialética platônica, aquela que atou o desejo à falta 199. Que a análise descobrisse na experiência clínica uma lógica da falta variando ao infinito, apenas atesta a profundidade do pensamento platônico em captar toda uma tendência do desejo humano, bem como o fascínio que esse pensamento exerceu 200. Não é, porém, a última palavra sobre o desejo. Ou seja, o pensar analítico, não importa onde se deteve, fascinado, é o giro pulsional em todos os seus estágios. Falamos de como se chega a ser juiz de si próprio, e de que esse é o processo da análise. Dizer isso, porém, só faz sentido se o ponto de incidência da justiça for a pulsão, e não o eu. Nietzsche evoca aquele giro inteiro ao se declarar “o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que ultrapassou o niilismo, tendo-o vivido em sua alma – e vendo-o atrás de si, abaixo de si, longe de si” 201. A perspectiva analítica também investe na superação do niilismo, entendido como uma doença do homem, nos dois sentidos de acometê-lo e só a ele – pois todo resto da natureza segue o seu curso – e de se mostrar, antes e durante o processo de cura, indissociável do seu ser. Mas superá-lo é também vivê-lo e entendê-lo. O niilismo e sua superação surgem assim como um tema insidioso, incômodo, coloca em jogo uma exigência, algo de real, algo de clínico. Abramos um parêntese, pois o assunto será retomado mais adiante. É fácil demonstrar brevemente, por meio de alguns fatos da teoria, que o niilismo é também um tema freudiano. O texto A negativa (die Verneinung), que abordamos acima, se conclui com uma observação sobre o negativismo psicótico, colocando-o em relação com a afirmação (die Bejahung) do inconsciente. É no estilo aforístico desse texto singular que Freud propõe a perspectiva analítica ou pulsional: tudo deve ser lido a partir da afirmação de 199

Toda a dialética do amor em O banquete se desenvolve a partir da idéia de que o amor deseja o que ele não tem, o que ele não é, conforme a ironia socrática. “Aquilo que ela não tem, o que ela mesma não é e de que carece, tais são as coisas de que uma pessoa tem desejo e amor” (Platão, Diálogos, O banquete, p. 73, Cultrix, SP, 1963). O amor não é uma força, mas uma carência. É a insinuação do negativo no pensamento sobre os afetos, separando a consciência da força. A crítica nietzschiana à operação socrática incide exatamente aí, pois de um ponto de vista trágico o amor é a força, e a ele não falta nada. 200 Profundidade em detectar e, ao mesmo tempo, constituir um plano ideal de longa duração; contou com o cristianismo e sua paixão pelo pecado (a falta) para adquirir uma segunda vida. Fascínio por induzir ao seu modo, inclusive no caso moderno e particular da psicanálise, seja na experiência clínica da mesma ou na teoria, uma interpretação do desejo a partir da falta. 201 Obras completas, vol. IV, op. cit., 3, p. 15.

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partida. O negativismo, ou o niilismo, como queiramos, consiste em uma ruptura com o campo pulsional e decorre dela. Não que a pulsão não negue, não rechace, não destrua, mas ela o faz em nome do seu próprio exercício, e nesse sentido originário é inteiramente afirmativa. Ela mesma, enquanto dobra, enquanto afirmação da afirmação, já é o amor fati que dela resulta. O outro fato teórico, mas não menos clínico, e que se perfila na esteira do primeiro, é a descrição freudiana das psicopatologias maiores, as chamadas estruturas clínicas, sempre designadas por um traço de negação (Verdrängung, Verleugnung, Verwerfung). Em cada uma delas está em jogo, em diferentes modalidades e graus, a negação da atividade pulsional. Seja sob a forma do recalque, da renegação ou da forclusão, é a força pulsional – que não é senão a do dizer – que está sendo visada. O retorno do recalcado e, de modo mais radical, o reaparecimento no real do que foi forcluído, isto é, do dizer mesmo, oferecem tão-somente uma imagem da pulsão nos termos do recalque ou da forclusão. Essa imagem é indissociável, portanto, do corte e do distanciamento operado em relação à visão pulsional 202. Se esta não é inteiramente neutralizada, sofre todavia de uma conversão constante em seu retorno. É preciso, repetimos mais uma vez, escavar, limpar, proceder a uma raspagem do inconsciente, como dizem em O Anti-Édipo, de modo a tocar o originário – o que não se distingue de constituí-lo em prática. Que tudo deva ser lido a partir da afirmação inconsciente indica algo muito simples: a ciência analítica do re-começo 203. 202

A forclusão do nome do pai, como Lacan a concebeu, é simplesmente a inviabilização de um dizer que, mesmo assim, com a irrupção do delírio e sob a forma da alucinação, reaparece no real, ou seja, no campo pulsional. A subjetividade psicótica se mantém em tensão em relação a esse campo, ora atraída, ora repelida por ele. É que ao incidir sobre a representação (simbólico-imaginária), o rechaço psicótico atinge também o real em sua determinação ativa. Lança fora a criança junto com a água suja do banho. Indecidível, a experiência do psicótico, assim como, mais claramente, a do borderline, é uma experiência não mediada do real sob uma forma negativa, diferente da neurose, em que a negação (sob a forma do recalque) permite apenas uma experiência indireta, representativa, do real. A negatividade psicótica consiste em uma recusa narcísica radical da representação (neurótica, perversa) e na conservação, simultânea, de um eu ideal em estado crítico ou em processo de estilhaçamento. A conseqüência desse estado é a intrusão do real não assumido, isto é, da pulsão não exercida, sob a forma das alucinações auditivas e visuais. O real não assumido é o próprio dizer – a pulsão mesma. O caso do borderline é o de uma oscilação, de uma hesitação entre a representação e o real, o eu e a pulsão. Do ponto de vista da representação e do eu, a pulsão é o caos, mas subsiste o pressentimento de que nela reside a força, a vida e portanto a verdade de todo o processo subjetivo. É a proposição de Winnicott – que há uma espécie de intuição secreta atuando na estruturação psicótica, e que se traduz, ao mesmo tempo, no senso de irrealidade do falso eu e na espera (em latência) de uma ocasião propícia para que o verdadeiro possa novamente (ou pela primeira vez) se pronunciar. 203 A criação de novos significantes, para situar a questão lacanianamente, também exige que toda a memória tenha sido percorrida, uma apuração de toda a cadeia significante, tal como sucede no célebre poord’jeli destacado por Serge Leclaire (em Psicanalisar, p. 81 e seguintes, Perspectiva, SP, 2007), e que consiste em uma cambalhota, um giro pulsional. É curioso, no entanto, que essa vinculação à pulsão não tenha sido formulada por Leclaire. Não basta enfatizar a cifra significante – todavia essencial à demarcação do traço singular –, quando a cifra é diretamente o dizer, o ritornelo da pulsão ou a vitalidade do processo em jogo. O

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Não há diferença entre o “caminho do criador” e o caminho subterrâneo, inconsciente, pelo qual se processa e se esclarece o “destino da alma”. Que se trate, porém, da tua alma, eis um aspecto decisivo desse pensamento que reverte, em cada um de nós, uma espécie de platonismo subsistente. É sobre o caminho da tua alma que se opera o recalcamento originário, o que não remete, tampouco, ao reencontro de uma relação eu e tu, mas antes à redescoberta pulsional de uma coletividade originária. Aquele direito só pode ser conquistado em um campo de imanência. Assim, o dito caminho precisa ser aberto, como é preciso garantir a sua abertura e o próprio avanço do “criador”. Chamamos de pulsão a essa condição em aberto, mas também à abertura efetiva e ao seu exercício continuado. Zaratustra pergunta: livre para quê? Livre para que fim? Não é a lógica do ser liberto que é evocada aqui, mas a da auto-determinação pulsional em seu devir. E se agir como “o juiz de si próprio” significa precipitar-se “no espaço vazio e no hálito glacial da solidão”, isso decorre de não haver outra instância, anterior ou posterior à pulsão, que autorize aquele devir. O caminho inconsciente não é descoberto senão quando praticado, mas o que se descobre é efetivamente sua prática. Como a análise se desenvolve nessa direção, sua abordagem do real não é outra coisa que a verificação prática de uma autorização e de uma autoridade que, para todos os efeitos, recebe o nome de inconsciente. O que não significa que se deva fazer disso um ideal. A direção é uma direção do inconsciente, segue o critério da pulsão, termo freudiano destinado a situar uma instância cuja atividade é estranha aos ideais de eu, aos propósitos pré-conscientes e conscientes. Uma reversão às condições originárias requer, como dizíamos, uma travessia de ponta a ponta, um cruzar todas as alturas do sentimento (avaliação), um reencontrar a ordem dos afetos originários (discernimento), um manter o grau de decisão (ordenação) e, a partir dele, um avançar segundo a perspectiva alcançada (direção). Essa versão pulsional ou analítica demanda certamente coragem, firmeza e cuidado, disposições estas que pareceriam estranhas ao campo pulsional em virtude da distância em que se vive dele – distância, dizíamos, da consciência em relação à força. Avaliação, discernimento, ordenação, direção, tais são as determinações originárias segundo as quais a cabeça-pulsão encontra e ao mesmo tempo cria o seu próprio nível, isto é, o nível de uma clareza resolutiva, desprendida dos emaranhados históricos e de sua trama de sentidos. Sobrevôo vital no tempo. Avaliação (afeto): refere-se ao valor do que vemos e como vemos tendo em vista as demais determinações. Discernimento (desdobramento da nome secreto é o nome da pulsão. Essa vinculação à pulsão não é menos essencial, pois é nela que reside o originário (singular e extra-pessoal, simples e refinado, abstrato e real).

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avaliação e sua motivação interna): compreende a distinção do que é mais importante – não só à conservação do estágio alcançado como, a partir dele, ao avanço continuado, o que não implica em contradição, pois é possível recuar do estágio alcançado e deixar de avançar precisamente por se perder de vista o mais importante. Este é, contudo, o originário, de modo que se avança em seu aprofundamento, segundo uma afirmação cada vez mais resoluta de suas determinações. Ou seja, o discernimento destaca o ponto de vista por meio do qual o poder de avaliação se renova e novos discernimentos são possíveis. Ordenação (movimento que vai do discernimento à decisão): todas as coisas são ordenadas de acordo com o discernimento do mais importante. Direção (a decisão em curso): evoca a dimensão do ato, a decisão propriamente dita, cuja orientação deve fazer justiça às três primeiras determinações. Tudo, entretanto, é ato (de avaliação, discernimento, ordenação, direção), e todas as determinações são modos simultâneos de afirmação da pulsão de vida. Esse conjunto de determinações é, em si mesmo, criador de continuidade e continuidade criadora. Mas pode-se objetar que esses termos servem a qualquer projeto humano, que um empresário, um político, um intelectual, um religioso ou um terrorista podem se servir igualmente dessas referências, de acordo com o que julgam de primeira importância. A partir de suas “razões superiores”, avaliarão cada passo do percurso e ordenarão todos os demais assuntos de seu ambiente prático, existencial e coletivo, de modo que a direção a ser tomada faça, por fim, justiça a esses procedimentos. Como poderíamos chamá-los ainda de éticos e originários? As quatro determinações, porém, são inconscientes, pulsionais: subvertem e desordenam as pretensões ideais, egóicas, narcísicas e gregárias, tanto como se desviam da direção dos propósitos conscientes e pré-conscientes; seu exercício é eminentemente singular (e extra-pessoal), e não há nada mais difícil e raro na experiência humana que exercê-las de modo continuado. Ao enumerá-las, dizemos que o inconsciente não é cego, caótico e sem direção, como fazem crer as instâncias não pulsionais que se atribuem o poder exclusivo, inteligente, de ordenar e conhecer. Muito pelo contrário, avaliação e discernimento são afetos originários, ordenação e direção são decisões do entendimento e constituem, como tais, a ordem desejante, em consonância com aqueles afetos. Os quatro termos, os segundos se dobrando sobre os primeiros, perfazem o que chamamos de dupla afirmação. A dobra (Dioniso e Ariadne)

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Com o fito de determinarmos mais claramente o campo pulsional, lancemos um olhar nietzschiano ao que deveria decidir pelo valor das ações no período mais longo da história dos homens, no período de sua pré-história. “O valor e o não valor de uma ação era deduzido de suas conseqüências”. Nietzsche o chama de período pré-moral. Aos poucos a significação dos atos se deslocou das conseqüências para a origem (“perìodo que se pode denominar moral no senso estrito”), inicialmente por uma disposição aristocrática das forças (os atos são bons porque sua procedência é nobre), em seguida pelo avanço de uma interpretação mais estreita – porém insidiosa – da origem como intenção. E é nesta que passa a residir, finalmente, o valor de uma ação. Ora, diz Nietzsche, “... não estarìamos no limiar de um perìodo que, negativamente, de imediato se poderia designar como extra-moral: agora, quando pelo menos entre nós, imoralistas, corre a suspeita de que o valor decisivo de uma ação está justamente naquilo que nela é não-intencional, e que toda a intencionalidade, tudo o que dela pode ser visto, sabido, „tornado consciente‟, pertence ainda à superfìcie, à sua pele – que, como toda pele, revela algo, mas sobretudo esconde?” 204 Como se pode concluir, nessa nova inquirição sobre o valor das ações trata-se ainda da origem, mas da origem de uma ação que começa muito antes, da qual a suposta intenção na origem é apenas um sinal, um sintoma tardio, um efeito, com seu teor de distorção, de disfarce. Com a pretensão de que a intenção respondesse pela origem de uma ação, é compreensível que, por meio dela, se inibisse e finalmente se recalcasse a investigação extra-moral. Pois bem, o que estivemos afirmando é justamente o caráter originário dessa investigação, graças à qual as forças pulsionais, a partir de certo momento, passam a ser praticadas – o mencionado caminho do inconsciente ou do campo pulsional. Mas detalhemos a anterioridade do prisma extra-moral: é ele que permite a elucidação da origem mais remota dos atos e a decisão sobre o seu valor. Seria possível identificar o não-intencional ao inconsciente impulsivo, ao que escapa ao jogo das avaliações e à precisão do discernimento. Aí, no entanto, reside o engano sobre o originário e, por conseguinte, sobre o inconsciente. A mais fina e precisa avaliação pertence ao campo do inconsciente. As questões relativas ao desejo inconsciente, inclusive quando ele investe a submissão e a auto-destruição, compõem o âmago da existência e explicitam sua tendência mais incisiva – que talvez seja a sua negação, para o que concorrem, todavia, um processo ideativo eficaz e uma estratégia inteligente, em grande parte ocultos. Na superfície pode se passar outra coisa, um arranjo que parece saudável, promissor. Compor o âmago da existência 204

Além do bem e do mal, op. cit., 32, p. 38 e 39.

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quer dizer: todos os atos trazem em si o sabor e saber daquela tendência, ainda que velados. É o que está em questão, vivo, no plano do inconsciente. Deve-se ter em conta, porém, que a submissão e a auto-destruição, por mais inconscientes que sejam, não são originários. São leituras do originário, embora gerem conseqüências a seu nível, inclusive as da doença e da morte. É preciso começar antes, alcançar o plano extra-moral, onde a vida ainda não se voltou contra si. Aí reside a virtude dessa investigação além do bem e do mal, de modo que e o investigar mesmo, com o qual identificamos a própria análise, é de cunho originário. Não se distingue, portanto, do que chamamos de avaliação pulsional. As imagens do originário, assim como a submissão e a auto-destruição, podem se estender até o campo do inconsciente e, de maneira indireta ou direta, se mesclar à pulsão. Por que, ao enumerar o que pode ser inconsciente sem ser originário, deixamos de lado a tensão agressiva e a tendência à destruição? Na medida em que elas têm por objeto as leituras menores do processo pulsional, do real, elas trazem em si a ciência das coisas originárias. E a insistente pergunta: como se pode estar certo de freqüentar esse campo? De onde procede a garantia de que estamos à sua altura? É aqui, ao tratar da exclusão e da destruição que devemos, como já expusemos anteriormente, situar o “pensamento excludente, aniquilador, oriundo das avaliações” e dele extrair todas as conseqüências analíticas. Em que esse pensamento se distingue do recalque e, de modo mais específico, de um idealismo, um narcisismo ou um fascismo, que excluem e neutralizam o que lhes é estranho? O vetor psicanalítico adquire toda a sua relevância nesse discernimento, e isto na medida em que – para ser consistente e estar acima de qualquer confusão contra-transferencial – se alia à pulsão. Como garantir, no entanto, a pureza do discernimento? Como assegurar que a análise se alie de fato à pulsão e não a outra instância subjetiva com a qual a pulsão aparece de modo geral mesclada, a uma visão pulsional e não a uma imagem da pulsão? Sem dúvida entra em questão, e de forma decisiva, o desejo do analista. O que ele quer? O problema levantado por Foucault relativo aos dispositivos de poder envolvidos na produção de uma verdade do sujeito merece aqui nossa atenção: a análise não se parece a uma nova versão da confissão? Não emprega um instrumento ainda mais sutil de incitação ao discurso verdadeiro? E não se dedica assim a uma produção de verdade que não é, finalmente, outra coisa que a constituição de uma interioridade, a fabricação de um sujeito? O que pareceria inicialmente revelação de algo profundo, é tão-somente montagem de superfície? Freud fala em das unseres Wesen, o coração de nosso ser. É possível conceber qualquer coisa dessa natureza sem recair na crença de uma verdade última, a ser desvelada por meio do exame de si mesmo e sob o 165

testemunho instigante de um ouvinte autorizado? O impasse aparente se desfaz quando se pensa não em termos de uma verdade interior recôndita, a ser desentranhada mediante uma fala sobre si, mas em termos de poder e saber obscuros e atuantes, e que não se esclarecem senão quando exercidos. A verdade da pulsão é a desse poder e desse saber em seus diferentes graus de exercício. Do mesmo modo, a pulsão é uma exigência, todavia adormecida em seus diversos graus de profundidade. É que a vida como tal não pode ser produzida – ela se auto-produz como exigência exercida sobre si (a dobra). Mas mesmo esta auto-produção só se autoriza pelo devir de uma potência mais alta, que é onde reside sua obscura vitalidade. Dessa potência decorre a necessidade de se falar em graus, graus de potência. Com a vida humana a vida alcança seu princípio, isto é, sua essência e feição ativas. O vivo é tanto mais vivo quanto mais decide em direção à sua potência ativa. É próprio da vida – e portanto do vivo enquanto vivo – começar a partir de si, autorizar-se de si, embora isso seja o mais raro, seu destino mais avançado e o mais perigoso. Neste sentido, a vida é aristocrática, entendido esse termo à maneira nietzschiana – nobreza originária das forças ativas. Mas não se deve esquecer que, por mais originária que seja, uma nobreza se constrói, se exerce, se consolida. A análise se dirige a este cerne ativo, e quanto mais se aproxima dele, mais a existência se constrói e se pronuncia ao seu modo. É o “coração do ser” e sua obra. A ele convém reportar a origem do que Foucault chama de “focos de resistência”, ou seja, as forças que não só resistem aos dispositivos institucionais de poder-saber, mas também às potências cegas, psicoquímicas, “neuromagmáticas”, que inundam o campo social. Esses focos de resistência seriam os verdadeiros defensores da vida, o que poderia se condensar na constatação de serem, simplesmente, os verdadeiros, isto é, aqueles que estão do lado da verdade. E a verdade seria apenas um sinônimo de vida ativa – nome que daríamos, também, a uma potência de escolha 205. Eis um fragmento de relato clínico: 205

As questões do verdadeiro e da verdade se deslocam para o domínio ético da prova e do combate. Em suas aulas sobre Spinoza, Deleuze distingue os sentidos do verdadeiro e do falso conforme se apliquem a uma moral ou a uma ética. Com esta, ao menos em Spinoza, estamos no domínio da etologia, isto é, das maneiras de viver. Não o juízo que decide a adequação do intelecto à coisa, não os juízos morais que julgam os existentes e os seus atos com uma medida extrínseca, mas a autenticidade do modo de existência e as provas de sua consistência. A prova e não o juízo (Cf. Deleuze, En médio de Spinoza, op. cit., p. 65 e 66). Reaparece aqui, de outro modo, uma análise de Foucault sobre a pesquisa da verdade e o desenvolvimento das formas jurídicas: ele assinala uma mudança decisiva no estatuto da justiça (e por conseqüência no critério de verdade), quando o processo judicial passa da prova ou da disputa (que presidia, por exemplo, a ética dos cavaleiros), para a instauração de uma terceira instância, própria dos governos monárquicos e estatais, aparelhada de um procurador e de um procedimento de inquérito. É a substituição do processo ético da prova pelo procedimento moral do juízo (Cf. Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Nau Editora, RJ, 2002).

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Ivan decidiu fazer palestras nas sessões de análise. A cada vez, de pé, em estilo professoral, expõe um assunto que, pode-se dizer, é de interesse de todos, embora só eu esteja ali, sentado, como de costume, na minha poltrona. Penso que é muito inusitado, que Ivan opera uma distorção profunda do setting analítico. Ele não fala de si, e as intervenções que faço no sentido de reorientar sua atenção para os problemas da vida soam aos seus ouvidos, de modo geral, como perturbações da preleção em curso. Ao discorrer, usa freqüentemente o pronome “nós”, ou a expressão “a gente”, indicando com isso que sua fala é supra-pessoal e se sustenta, em última instância, em uma comunidade espiritual. A mais recente expressão do que chamaríamos, no primeiro instante, de um exorbitante acting out, é ele se nomear analista. Diante da minha interpelação – “para que sirvo eu, então, se você mesmo é o analista? Para que você vem aqui?” –, observou apenas que uma coisa não exclui a outra, que ele pode, sim, vir às sessões e ser ouvido por um analista, mas também exercer essa função em relação a si e ao mundo. Logo depois, em meio a uma palestra sobre a importância dos conhecimentos filosóficos, fez menção, de passagem, ao nosso diálogo de analistas, e como esse diálogo se incorporava ao processo de transmissão do saber. É que eu questionara a eficácia de palestras dirigidas a uma única pessoa, sendo que, pelas suas palavras, depois de ter vencido algumas batalhas espirituais, as grandes verdades já podiam fluir para todos. Isso, obviamente, não constituía um problema, pois a transmissão desses conhecimentos superiores não dependeria de meios acadêmicos e outras formas tradicionais de ensino para alcançarem as pessoas, sua difusão se faria por contágio, pela exemplificação prática, pelo modo de vida, não importando o quão discreto e silencioso ele fosse. As forças espirituais não têm a menor dificuldade em se expressar através daqueles que, preparados ou não para isso, lhes servem de condutores, e o fazem de múltiplas maneiras, seja pelos gestos, pela fala, pelos acontecimentos ou por outros meios ainda. Sessões após sessões, Ivan desenvolveu seus conhecimentos de história, ciência natural, filosofia, psicanálise, história da arte, história da religião, destinando o horário de uma sessão para cada assunto, sem pretender, contudo, que suas pesquisas fossem muito profundas ou exaustivas. Ele reconhecia o caráter provisório e parcial desses estudos, mas não abria mão de sua importância e do direito de se manifestar a respeito. Eu me via, a cada vez, entre irritado e ligeiramente aturdido, pois não estava claro que a sua atuação sistemática e a conseqüente deformação do setting fossem inaceitáveis sem uma intervenção mais incisiva da minha parte, ou melhor, que sua performance precisasse ser interpretada como uma resistência à 167

análise, como expressão de um narcisismo prepotente, altamente defensivo, ou algo assim. Sentia que minha neutralidade analítica estava sendo testada de várias maneiras, bem como a eficácia clínica do meu modus operandi. Em que medida podia permitir a subversão do procedimento sem que este sucumbisse definitivamente, e em que medida precisaria admitir que o procedimento era flexível o bastante para permitir as inovações de Ivan, as quais, segundo ele, eram necessárias ao seu processo? Mas também existia, como disse acima, a impressão irritante de estar sendo neutralizado, convertido em espectador ou, pior ainda, em uma espécie de aluno privilegiado, de qualquer modo expulso do contexto da análise, não sem que ela fosse expulsa comigo. Às vezes me sentia transformado em uma peça, aparelhada de olhos e ouvidos, da máquina mediúnica que se denominava a si mesma Ivan. Havia algo de confortável e desconfortável ao mesmo tempo no fato de pensar que eu só precisava estar ali, sentado, e mais nada. Talvez pudéssemos passar anos assim, tendo essas ocasiões semanais de descanso e perplexidade para mim, e de interlocução vazia – envolvendo, porém, um prazer indefinível – para Ivan. Pareceu-me que se operava ali a chamada identificação projetiva, segundo a qual o paciente, no processo analítico, reduz o analista a uma não existência efetiva. É uma espécie de liquidação da diferença. Captado em uma imagem paralisante, eu perdia assim todos os meios de agir na situação clínica. Minhas tentativas de reverter esse quadro, uma vez empreendidas, me soavam frágeis, pouco convincentes. O argumento, sob a forma de uma interpretação, de que essa necessidade de expor e transmitir conhecimentos evocava a frustração existencial de não se sentir reconhecido no ambiente familiar, especialmente pelo pai, e que isso ainda o fazia sofrer – tanto que o máximo que conseguia era uma exposição das mais intimistas, aquela que se desenvolve no espaço confidencial da análise –, era um argumento que obtinha sua concordância, mas não alterava o andamento da cena. Eu poderia ainda dizer: “vamos parar com isto, sente-se!”, ou “deite-se, e passe a associar livremente!”. Mas eu já havia aberto o campo para o delírio e a eventualidade de uma atuação inusitada. A máquina analítica resistiria? A análise constitui um espaço de virtualidades e experimentação. Não edipiana, é pulsional e pragmática. Deve se guiar pelas linhas do inconsciente sem perder de vista a pulsão, o poder de avaliação, de intervenção ativa, pela qual, justamente, o analista faz parte do conceito de inconsciente. O campo analítico é um laboratório existencial. A crítica de Foucault se mantém incólume, mas também a análise permanece em seu ethos eficaz, posto que opera uma torção ali onde o “biopoder” tende a tirar todas as conseqüências de sua produtividade difusa, 168

microfísica e micrológica – a produção e reprodução de vida subjetiva. Que torção é esta? E onde, de fato, ela atua? Ali onde se esperaria um novo modo de sujeição e, com ele, uma maneira muito contemporânea de eludir as verdadeiras questões – aquelas que dizem respeito à condição originária de escolha e, por conseguinte, à sua desativação sistemática em favor do que hoje se poderia chamar de servidão generalizada –, ali mesmo se instala um laboratório existencial, sem ponto de partida e sem meta. Quase um caos, não fosse o desejo do analista e o dispositivo ético que ele monta a cada vez, de modo a valer certamente para todas as vezes, segundo o critério da força constante. Quando acima procurávamos saber o que permite destacar a visão pulsional das imagens da pulsão no contexto analítico, recorremos à pergunta: o que o analista quer? Ele quer a emergência de uma vida ativa e sua prática constante. Talvez se objetasse: mas não é isto um ideal de eu do analista? Por que o sujeito não poderia desejar algo diferente para si? Não poderia, por exemplo, querer morrer? A autodestruição não é também o exercício de um poder de escolha? Por que dissemos que ela não é originária? Lacan, por sua vez, disse que o analista quer a diferença absoluta. Não é difícil demonstrar que a diferença absoluta não se distingue de uma vida ativa. Não se trata, em análise, da verdade do que está sendo falado, ou ainda do sujeito enquanto alvo do discurso, mas simplesmente de que a verdade fala. A abertura analítica à fala não é a ocasião privilegiada de emergência de uma verdade à qual a fala, em última instância, entregue a ela mesma, se reportaria, ainda que o fizesse obscuramente; ela é diretamente abertura à verdade da fala em seus diversos graus de exercício. A vida ativa fala, e sua fala é plena. Mas isso compreende ouvir-se, ter atenção com o que se diz, cuidar de si. Ela não seria suficientemente ativa se não cuidasse de si. O curioso é que, quanto mais ela é capaz de cuidar de si, mais impessoal ela se torna. Mas vamos por passos. Uma coisa é o curso biológico da vida, outra o cuidado de si. Com este se opera uma dobra e a constituição de um novo plano, ético e estético, onde tudo passa a se decidir. É a aplicação ativa do pensamento em não só aprimorar, mas em constituir uma vida. O ponto de vista ativo é uma conquista e uma prática. Agir, aqui, não se confunde com o agir sensório-motor. Diremos que é ético, espiritual, mas também que não há outro princípio espiritual que esse agir mesmo, em todos os seus graus. Por isso o segundo plano, que chamamos de ético e estético, pode, por sua natureza mesma, ser constituído ou não, e o será em diferentes graus. É a possibilidade de uma constituição ativa, supra-biológica, inorgânica, que estará em jogo todo o tempo. Daí o interesse clínico e crítico da pulsão. Não se trata de um projeto existencial que a consciência impõe à vida, mas de um 169

modo de ouvi-la que não se distingue de exercê-la, torná-la ativa, transformála no que ela é. É o circuito em retorno da pulsão e o sentido da análise. Quanto mais se distinguem os dois planos, mais o segundo se constitui, mais alcança o seu poder, o que não significa nenhuma separação ou divisão, pois o determinante de todo o processo é esse princípio ativo em exercício, entendido que ele não se distingue de uma prática. Uma bio-lógica decide agora todas as coisas. Em vista disso, sempre terá sido assim. É o que significa o amor fati. Não é preciso dizer que esse segundo plano compreende um ritmo de tempo distinto das cadências biológicas. Dir-se-ia que Ivan começa a aterrisar. Seu surto teve um ápice, quando então foi internado num hospital psiquiátrico, contra a vontade, mas assim mesmo pacificamente. De fato, não houve violência da parte dele, em momento algum. Nas suas palavras, estava em êxtase, e a família, não o reconhecendo naquele estado, concluiu que era caso de reclusão e tratamento especializado. Já depois de um tempo de análise, passou por um momento crítico “com a medicina”. Sua carteira de habilitação para dirigir só seria renovada mediante uma junta médica – a declaração de seu psiquiatra atestando que ele podia dirigir não era suficiente para neutralizar o efeito do diagnóstico que recebeu no período da internação: “surto paranóicoesquizofrênico”. Isso porque respondeu honestamente ao questionário onde se perguntava pelo uso de medicamento psiquiátrico. Com essa informação chegou-se ao diagnóstico de origem, e daí à determinação de um procedimento especial, a junta médica. “Meu surto não foi esquizofrênico, e sim mediúnico”, disse ele, recusando, finalmente, submeter-se “à ignorância da medicina atual em assuntos espirituais”, e ao “constrangimento” de se sentir avaliado. Mas por que não se submeteria ao exame, se o que estava em jogo era sua habilitação, e esta lhe traria o conforto e a funcionalidade do automóvel? A falta da carteira, porém, lhe parecia providencial, pois deixaria de ser o motorista de prontidão da mãe e não precisaria mais se ocupar, tão amiúde, dos assuntos dela. Por que não se desvencilhava dessas obrigações com a mãe de um modo mais direto, sem o prejuízo dos seus movimentos? Região turva, pois dependia de recursos familiares que foram deixados pelo pai, recém falecido, e que a mãe administrava atualmente. Por que não procurava trabalhar, como todo mundo? Ainda mede seus passos. Está retornando devagar das guerras espirituais que travou. Está aterrisando – constituindo, quem sabe, um território onde possa existir. A análise é um pequeno campo de batalha. Nela se atualizam combates que são, em última instância, de natureza ética. Se o analista se alia às forças pulsionais é porque elas procedem do reino dos céus. Contudo, um dos grandes desafios dessa destinação é manter, mesmo assim, os pés no chão. É o 170

que ensina o caso de Zélia e, agora, o de Ivan, com sua necessidade de pouso. Em outras palavras, a pulsão precisa ser exercida, praticada, aqui, en-corps, como diz Lacan, encore (mais ainda). E é sem dúvida o clamor de Zaratustra: “trazei de volta à Terra a virtude perdida, trazei-a de volta à vida e ao corpo...” Como já dissemos, a linha de desterritorialização absoluta não é uma linha de desencarnação, e sim a constituição de um plano ético pelo qual a vida se torna o que ela é. Sempre se poderia afirmar: melhor um saudável estado inconsciente, com sua automática e fina inteligência, que uma consciência pretensiosa e iludida, contrariando a pulsão e formando juízos sintomáticos sobre a existência. Como distinguir, então, esse estado inconsciente, sem dúvida de ação, do exercício ético da pulsão? Que diferenças – se mantivermos que faz toda a diferença estar ou não à altura dos processos inconscientes –, aí se observam? A dupla afirmação é intrínseca à pulsão; é dela que deriva o traço ou a escrita existencial, o estilo; é ela que se expressa nos graus superiores de perfeição e domínio. A diferença estará entre existir e não existir ainda? “Ainda não nascemos”, dizia Artaud. Mesmo o existir tem mais de uma figura no pensamento, e isto na medida em que o pensamento apreende, aqui e ali, fagulhas do real. Assim é o caso do cogito cartesiano. Mas o existir depende também do trabalho que se faz sobre si, de geração em geração, o que Nietzsche denominava de cultura, seja a dos gregos ou dos alemães (“o que foi necessário para produzir um povo de pensadores...”). A pulsão é uma dobra, uma volta sobre si, Dioniso e Ariadne, uma dupla afirmação, uma natureza e uma cultura. Esse arco em retorno, que se deixa apreender, por exemplo, em suas modalidades e derivações perversas (o retorno sobre o eu ou a passagem do ativo ao passivo, conforme alguns destinos pulsionais recenseados por Freud), aparece no pensamento analítico de dois modos extremos: um de contorno especulativo, meio biológico e meio metafìsico, em que “o arco é a vida e seu alvo é a morte”, e outro clìnico ou ético, pelo qual se assinala um retorno ao isso, à pulsão, à prática do inconsciente. Num caso se tem em vista a pulsão de morte, no outro a sublimação 206. 206

Insistimos no uso diferencial de pulsão de morte e de sublimação, apesar do modo como esses termos foram aproximados em uma leitura renovada de Freud. Não é apenas por comodidade de exemplo que se evoca a apatia sádica e o masoquismo para falar de uma dessexualização na origem do pensamento. É a negatividade da consciência e suas idealizações que mobilizam a dessexualização, fazendo crer que o pensamento tem aí sua origem. É preciso dar um passo além, e retomar a idéia de uma ressexualização do pensamento, também encontrável nas pesquisas freudianas – o que chamamos, de nossa parte, de retorno do pensamento à vida e da vida ao pensamento. Desse ponto de vista, a pulsão de vida é diretamente pensamento, diretamente sublimação. Produzir diferença por negatividade é próprio da consciência, não do inconsciente. Este compreende, todo o tempo, uma afirmação da diferença (= pulsão). Não é raro, porém, que a dupla afirmação originária se instrumentalize da negação, o que a faz ser lida como pulsão de morte por instâncias não pulsionais.

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Uma consciência à altura da pulsão ou, em outras palavras, uma prática da pulsão, na medida em que evoca planos de imanência inconscientes, não explorados, não construídos, desenvolve-se como saber do homem vivo e se verifica, portanto, como um saber prático. Tal saber não deve ser confundido com um saber utilitário; diz respeito, ao contrário, ao uso mais lúcido dos recursos disponíveis, incluindo obviamente a inteligência. Mas o que se entende por “uso mais lúcido”? Aquele que tem em vista os afetos originários e o grau mais alto de existência. Eis o que compete à subjetividade enquanto poder de avaliar, se estendermos a idéia de avaliação à de apreciação, degustação, gosto. Um poder de avaliação deve ser compreendido como um poder de gozo, o que não significa nenhum gozo mortífero, nenhuma vontade de gozo. O gozo, nos termos pulsionais, e ao contrário do que se habituou a pensar, não aparece como uma finalidade, mas como o que é inerente aos exercícios de avaliação-apreciação – de novo, não em nome de um gozo almejado, mas de uma elevação das condições de vida. Para quê? A pergunta é redundante, pois elevação quer dizer, aqui, conservação de uma vida ascendente. Resumindo, o gozo aí implicado por definição é o gozo de um poder de avaliar e já a avaliação, a apreciação, a pesagem. Desse modo se compreende porque a satisfação é imanente à atividade pulsional e se resolve em saber, e como é possível recuperar, pelo caminho analítico, os fundamentos de uma ars erótica, ou simplesmente da arte, distinguindo-a da scientia sexualis com a qual nos habituamos no ocidente. Compreende-se também porque a análise, ao abrir o campo subjetivo a novos pontos de vista, a uma visão exterior do sintoma, tornando-o inteligível, reduzindo-o a não ser mais que uma equação lógica, acompanhada, talvez, de riso, compreende-se, repetimos, porque a análise é uma gaia ciência. Um exemplo analítico simples, dos mais cotidianos, pode indicar a presença dessa ciência alegre: seja o caso de uma senhora de idade, viúva e decididamente devota, espantada com o fato de faltar-lhe a voz quando se põe a rezar ou a entoar hinos religiosos, tanto em público, na igreja, como em casa, sozinha, ela que sempre louvou e agradeceu a Deus em alto e bom som. A que se deve a perda da voz, precedida, na solidão do lar, por um bocejo, o qual serve de alerta para que ela, mesmo baixinho, continue orando e, assim, não caia no sono? O que acontece, se antes era tão prazeroso louvar aos céus em voz alta? “Será”, pergunta ela, “que fiquei descrente? Não é possìvel, eu acredito em Deus!”. À pergunta analìtica “O que é acreditar em Deus?”, ela responde: “É acreditar que Ele nos protege”. Eis o ponto: talvez essa crença esteja em questão. Conforme um tema constante de sua análise, se não cuidar de si mesma, ninguém irá cuidar. Cuidar de si, em sentido amplo, significa 172

remontar à origem de todas as questões, trazê-las para o âmbito da pulsão que, como já dissemos, é a cabeça em pessoa. Ela – a cabeça pesquisadora, graças à qual e para a qual se constitui o plano ético de que falávamos – já não dispõe da voz para aquele fim obscuro. A análise mesma é a criação desse plano. “Eu queria um milagre”, diz a senhora, entre lamentando e rindo. Seria o caso de lhe dizer que o milagre é a cabeça que temos? Dada a miraculosa cabeça, tudo passa a depender do uso que fazemos dela, ou seja, tudo passa a depender dela mesma. “A filosofia, a arte, a ciência”, dizem Deleuze e Guattari, “não são objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos pelos quais o cérebro se torna sujeito” 207. A psicanálise é um pouco de ciência e arte na vida cotidiana. Talvez a fé em Deus possa permanecer intacta, desde que mude de sentido. Afinal, por que a cabeça não seria um milagre de Deus? Quanto ao uso dela, já não depende de milagre algum. Pensar é uma auto-determinação rara, é quase um milagre, mas se distingue inteiramente de um milagre por não depender de nada. Sem dúvida é um confronto com o caos, mas a pulsão mesma não é um caos de pulsões, e sim ordenação originária. Esta pode ou não se verificar, por isso é de ordem ética e não depende de nada. Se não sabemos o que um corpo (o inconsciente) pode, como pensava Spinoza, não sabemos como construí-lo ou, em nossos termos, como praticálo. Atualizar esse poder-saber – tal é o empreendimento psicanalítico. Uma análise, para ser movida pelo desejo, não precisa motivar-se por um sofrimento. Se este chega a ser a razão propulsora, sem dúvida presente na maioria dos casos, não é contudo a mais importante, não é a essencial. Que a dor não seja o móvel primeiro acha-se de acordo com a crítica nietzschiana ao hedonismo e ao pessimismo, inclinações filosóficas aparentemente contrárias que partem da mesma idéia, isto é, de que toda atividade é causada e regulada pelo prazer e o desprazer. É o que também Freud assinalou, ao conceber um além do princípio do prazer. O que move essencialmente a análise é o desejo de perseverar no exercício do desejo. Mais que o sofrimento, é a estranheza, o inusitado, o acaso, o desafio que atiçam o desejo de perseverar, implicando o poder e o saber que para tanto será preciso desenvolver. Também a análise é uma aprendizagem. Nada nos impede de usar aqui uma terminologia nietzschiana e dizer que uma análise é movida pelo exercício da vontade de poder, desde que saibamos o que esse conceito exprime 208. Ora, semelhante 207

Deleuze, G., Guattari, F., O que é a filosofia?, p. 269, Ed. 34, RJ, 1992. “Por que se deve juntar ao termo vida a qualidade de desejante? Porque é vida que se afirma, que se quer, que insiste, que persevera. Não em razão de um objeto que falta, em razão de coisa nenhuma, mas por ser intrínseco ao querer subjetivar-se, querer-se como tal: vontade de potência, dizia Nietzsche”. Schiavon, J. P, O caminho do campo analítico, p. 137, Travessa dos Editores, Curitiba, 2002. Traçamos uma linha que interliga Spinoza, Nietzsche e a psicanálise, e pela qual o desejo toma ora o aspecto do conatus ora da vontade 208

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exercício envolve a viabilização reiterada de saberes ainda desconhecidos, de potências vitais que pertencem ao âmbito das experiências originárias, e isto por meio de novas avaliações que são tantas medidas de poder não-realizado. É evidente que tal exercício, que pode ser inclusive o do pensar, ou melhor, que é precisamente o do pensar em um sentido originário, é o mais nobre destino da pulsão, seu destino ativo – a sublimação. O sofrimento neurótico consiste no fato de não se estar nessa direção de modo dominante, ativo. Por isso a neurose expressa uma experiência reativa da pulsão, um modo de negar ou de minar sua prática, subtraindo-lhe o sentido. Consistindo na viabilização reiterada de experiências originárias (a força constante), esse sentido lhe é subtraído por meio de uma falsa imagem, uma falsa interpretação de suas condições reais – subtração essa que também se constitui em prática. Não é preciso dizer o quanto essa falsa imagem pode se insinuar no pensamento e na teoria, e o quanto a clínica pode se tornar um empreendimento que apenas representa a pulsão, ao invés de se tornar a sua prática. Mesmo a prática do significante não é ainda a da pulsão; sua lógica estrutural, se depura o espaço da representação, não alcança a pragmática pulsional. O significante como tal cobre o domínio dos seus efeitos, mas não responde pela atividade imanente que engendra um novo significante. É a diferença entre o sintoma e a arte que, como dizia Lacan, tem o poder de desarticulá-lo. Na medida em que o significante, não alcançando o plano de um pragmatismo superior, pulsional, figura como instância última da clínica, intercepta e neutraliza o processo do desejo ali, justamente, onde este passaria aos verdadeiros problemas – o do valor (relativo aos afetos originários), o da integridade (a determinação ética do processo), o da criação (o destino da pulsão). É que a composição significante esboça, freqüentemente, certo trajeto singular e, ao mesmo tempo, extra-pessoal; mas, elevada a uma abusiva primazia, termina por eludir a verdade clínica de que somente a pulsão, tal como a entendemos, dá consistência prática àquele trajeto, somente ela opera o seu traçado real. É muito simples: o significante tem efeitos na vida, está na vida, mas não é a vida. O dizer, ao contrário, é a vida em seu estágio mais apurado. De modo que o significante pode ser legitimamente mantido, usado na teoria e na clínica, se subordinado ao critério pulsional 209.

de potência, constituindo todo o tempo o fulcro ético da análise. Desse ponto de vista, não vemos sustentação na crítica nietzschiana da conservação de si em Spinoza, se a conservação é de desejo e tem como sentido o trânsito a uma maior perfeição. Sob este ângulo, o conatus em nada difere da vontade de potência. Uma “maior perfeição” no processo analítico corresponde ao trajeto de retorno a uma prática constante. 209 Lacan soube fazer a análise recuar da realidade, tal como a supomos nos constituindo, ao significante, revertendo a tendência dos analistas a cair na degradação psicológica do sujeito. Faltou mais um passo na mesma direção, o de subordinar a ordem significante ao real (= pulsão).

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Às invariantes estruturais, a pulsão opõe a variação contínua (o valor da diferença). Às constantes linguísticas, opõe a prática constante de uma língua indígena (o exercício ético, sublimatório). É claro que desta oposição resultam duas concepções sobre a linguagem inconsciente – uma que repousa na estrutura, outra na atividade. Elas não serão todavia excludentes se houver subordinação da primeira à segunda. É fácil observar, inclusive no âmbito da teoria, como o sentido se descola da prática pulsional, onde se resolve em perspectiva, em direção, para se localizar no espaço da representação (intersecção do simbólico e do imaginário, para usar os termos de Lacan). As perguntas para que serve?, a quem serve?, são convertidas em o que quer dizer?, o que significa?, nas quais são elididas a força e o uso, ou seja, a pulsão, tanto do ponto de vista da potência como da prática. As primeiras exprimem os problemas reais do inconsciente (domínio das avaliações pulsionais), as segundas, na medida em que tomam o lugar das primeiras, operacionalizam inquisições normativas pré-conscientes e conscientes (é o sistema do juízo), sobretudo quando incidem sobre as formações do inconsciente. As segundas, contudo, serão úteis se subordinadas às primeiras, funcionando como momentos ou peças de um processo de reversão. A conversão de que falamos resulta no que Lacan denominou de fading do sujeito (ou do afeto originário), que é o seu desaparecimento em favor do sentido representado. Lacan não esclareceu, porém, que subsistia o sentido inconsciente da pulsão, ou seja, o seu discernimento, sem o qual não haveria possibilidade de análise. Voltando ao exemplo da senhora devota, a pulsão, como poder de avaliar e discernir e, no caso, como uma pequena claridade recémconquistada, subtrai a voz ao uso letal, sendo ela mesma essa subtração – se a considerarmos do ponto de vista da representação (“será que virei descrente?”). Do ponto de vista dela mesma, ensaia retomar o circuito em retorno, a perspectiva ativa, a dobra, o cuidado de si. Não mais orar em voz alta – isso significa descrença? Pode ser. Mas é secundário, derivado. Colocam-se em confronto, aqui, duas representações (“sempre fui crente, e agora...”), que tanto podem instaurar um julgamento como denunciar uma fenda. Muito diferente é a pergunta – que a fenda deixaria entrever – pelo uso da voz em uma perspectiva pulsional, ativa. Para que serve, a quem serve a voz (e o corpo)? Enquanto processo de avaliação, essa pergunta concerne aos atos e às forças, e não ao ser. Ela já aconteceu, já se respondeu, bem antes da pergunta pelo significado, e antecedeu inteiramente o juízo. Este pode ser imediatamente reconstituído, assim como o ato inconsciente imediatamente afirmado. O inconsciente é isso, a antecedência real – do ato, da força. Talvez, a partir de certo momento, a voz daquela senhora passasse a servir apenas à 175

fala, à talking cure. Nesse ato do inconsciente observa-se algo de “um funcionamento vital e corporal do pensamento” 210, por mais fugaz e obscuro que seja. Não um pensamento representativo, mas intuitivo, direto, ativo. Em um texto intitulado Disciplina e seleção, Nietzsche desenvolve uma série de proposições relativas ao que ele chama de ideal aristocrático. Verdadeiras recomendações de caráter prático, todas elas têm um traço em comum – a exigência de superação. Por exemplo, “levar até a sua sutileza mais extrema a casuìstica da honra”. Quem diria que isso tem a ver com a pulsão? Força atuante e já processo de autodeterminação como tal (a dobra e a desdobra), a pulsão estabelece fins de disciplina e seleção, de modo a favorecer o mais importante, isto é, o próprio poder de avaliar e de estabelecer fins. Não há, no entanto, tal poder senão como avaliação em curso, ativa, atuante, que a todo o tempo procura as melhores condições para o seu exercìcio. É nisto que consiste o que Nietzsche chama de “firmeza”, quando aproxima a noção de honra, em seu grau mais elevado, da condição de avaliação: “O que exijo de vós, ainda que soe mal em vossos ouvidos, é o seguinte: que submetais a uma crítica vossas valorações morais. Que ao impulso do sentimento moral que quer submissão e não crítica, retornai-lhe esta pergunta: por que submissão? Firmeza é o que falta. Esta exigência de um porque, esta crítica da moral dever ser considerada justamente como a forma atual da moral, como a espécie mais sublime de moral que vos honra e ao vosso tempo. Que vossa lealdade, vossa vontade de não vos enganar se manifeste com estas palavras: „por quê não?‟, „ante qual tribunal?‟” 211 Vê-se que o ideal aristocrático de que fala Nietzsche consiste na prática do real, ou seja, da força ativa. Dizemos “prática” porque a força ativa não se distingue da exigência e da firmeza que a constituem como ativa e que são, efetivamente, a sua prática, a sua realidade em ato. Poder-se-ia pensar: exigência de perfeição e firmeza de propósito, mas seria apenas aproximativo e daria margem a equívocos – o culto de um ideal pode se valer dos mesmos critérios. É bem antes a exigência de exame crítico e a firmeza para sustentá-lo frente a todo juízo moral e a todo conhecimento adquirido. Não é um ceticismo ou um cinismo à maneira antiga. A firmeza de que falamos é toda ela decisão, ato, e por vezes avança por regiões onde nenhuma instância moral, nenhum conhecimento normativo autorizariam. Essas disposições – exigência de avaliação e firmeza de decisão – aguçam o real, ou melhor, elas são a própria textura do real. Pode-se suspeitar que indicamos assim o que é preciso entender como ética analítica. 210

Cf. O que é a filosofia?, citado por Luiz B. L. Orlandi, em Cadernos de subjetividade, p. 67, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC-SP, 2010. 211 Obras completas, op. cit., 399, p. 157.

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O sintoma, ou o sofrimento neurótico, é sem dúvida sinalizador de saúde, um alerta de que a vida se detém em algum ponto, se ressente de um prejuízo e investiga seus próprios meios, suas linhas de fuga, suas possibilidades de inovação. É óbvio que essas impressões e buscas, de origem pulsional, não precisam ser conscientes e diretas; pelo contrário, na sua imensa maioria são inconscientes e muito tortuosas, conforme os obstáculos em jogo e a atuação deles no tempo. E aqui, mais uma vez, é preciso argúcia no discernimento, é preciso estabelecer, no concernente ao processo analítico, verdadeira aliança com as forças pulsionais, de modo a não perder de vista o seu critério vital. Dir-se-ia que o alvo privilegiado da análise consiste na criação de uma condição privilegiada de exame. A imagem freudiana da batalha entre a baleia e o urso polar figura uma situação de partida e sugere, naturalmente, a complexidade do empreendimento: como esses animais se enfrentarão, se um vive no mar e outro na terra? 212. É necessário construirlhes um mesmo plano, assim como aos termos inconscientes do conflito psíquico, de maneira que a subjetividade, nessa nova superfície, seja um poder renovado de avaliação e esteja em condições de decidir, agora, pela sua própria direção. Só se pode realmente decidir pela própria direção. É um dos sentidos da análise, propiciar o retorno esclarecido do recalcado – a própria direção. Trata-se de uma atividade avaliadora restaurada, renovada. Uma análise não visa outra coisa que restaurar essa condição, não apenas pelo sentido ético de deixar ao sujeito a tarefa de resolver-se com os termos de um conflito já elucidado, mas porque a condição de exame é, ela própria, de origem pulsional, já é o exercício da pulsão, e é este, mais que qualquer conteúdo (objeto) sobre o qual possa incidir, o alvo da análise. Não há, repetimos, diferença entre o alvo da análise e o da pulsão – uma vez que esta almeja seu próprio exercício constante. Tal é a sua satisfação. Percebe-se deste modo o quanto o recalcado originário é justamente esse exercício. O caminho de uma análise não é indiferente, ou melhor, não há neutralidade analítica para além daquela que se abstém de ajuizar sobre os objetos pulsionais – os meios para a satisfação. Pois a questão pulsional não é a do objeto, originário, mítico, faltante ou singular, mas a do exercício como tal da pulsão – antes de tudo, como poder de avaliação. Trata-se de uma questão relativa à atividade, ao princípio ativo em jogo e, por conseqüência, às circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis à preservação ou à restauração desse princípio prático, não representativo, abstrato. Note-se que esse alvo não tem relação direta com o significante, a representação ou a identidade. Em MDMagno, que é um dos poucos autores cuja pesquisa, graças ao privilégio 212

Obras completas, op. cit., Analisis terminable y interminable.

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dado à noção de pulsão, passa ao largo do espaço da representação, aquele princìpio corresponderia a um lugar “angélico”, de indiferença e de neutralidade. Para nós corresponde ao lugar da diferença em pessoa, da mais intensa atividade (que, obviamente, não se deve confundir com ativismo psicomotor), ao lugar, portanto, de uma potência de exame que distingue e hierarquiza em conformidade com ela própria. Assim, a pulsão de vida não só tem seu próprio critério de verdade como ela é esse critério. Niilismo e não-senso Falamos de preferência em vida pulsional – por que não em desejo? Porque o desejo deve ser concebido de acordo com a noção de pulsão; esta sim é uma noção fundamental. Novidade psicanalítica por excelência, contém as ideias de atividade, exigência, constância, alvo invariável, objeto absolutamente variável, circuito em retorno, etc. 213, que permitem definir em que medida, e sob quais critérios, a pulsão e o desejo vêm a ser o mesmo, ou seja, em que medida a cura se torna uma prática efetiva. O niilismo como condição psicológica – mas se poderia dizer também a psicopatologia em suas diversas modalidades – só se esclarece, de um ponto de vista analítico, no curso da transmutação do afeto obscuro em lucidez, de acordo, portanto, com a elucidação da lógica pulsional em sua incidência prática, em sua inscrição real. Esclarecer o niilismo significaria então, ao mesmo tempo, superá-lo teórica e clinicamente, avançando além das estruturas clínicas descritas até o presente, se é verdade, como estamos sugerindo, que todas elas expressam diferentemente a presença insidiosa do “mais sinistro de todos os hóspedes”. O privilégio da lei 214 na conformação da experiência neurótica se constitui por meio da falha, da repetição do mesmo, do sintoma; já a perversão denota o privilégio equívoco da transgressão que, sendo impensável sem a lei 213

Poderíamos acrescentar ainda as idéias clínicas de vida e de morte, bem como os destinos pulsionais, a começar pelo originário, a sublimação, seguido das destinações menores, isto é, da perversão, da neurose, da psicose, etc. O desejo será sempre considerado segundo critérios pulsionais. Mas isto significa que o desejo, em suas condições originárias, é a prática decidida da pulsão. 214 Falamos em lei por abreviação, comodidade de expressão, pois com essa palavra – ao menos no contexto presente – pretendemos designar, além da lei (no sentido amplo e usual), um modelo, um modelo ideal, uma forma hegemônica, o que é, por exemplo, normativo nas fórmulas da sexuação de Lacan, isto é, o lado Homem e sua resolução lógica, assim como a figura dominante do “homem-branco-europeu...”, destacada em Mil Platôs (à qual se contrapõem as vias minoritárias e os processos de singularização). Já pressupomos, portanto, o questionamento de Foucault à idéia de lei como representação do poder, em favor da análise de um bio-poder e de seus dispositivos estratégicos, de sua micro-física e suas tecnologias. A forma da lei, porém, sob o aspecto específico do juízo, não deixa de incidir na experiência subjetiva, precisamente na medida em que esta se orienta pela representação. É disto, aliás, que temos falado quando, com interesse clínico, investigamos os caminhos de tratamento pragmático e não representativo do campo pulsional.

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(Sade e a moral cristã, Bataille e o catolicismo), nunca vai além de uma pèreversion. As prisões, dizia Blake, se constroem com as pedras da lei, os bordéis com os tijolos da religião. Ora, as psicoses são verdadeiras rupturas com o dueto da lei e da transgressão, a tal ponto que o psicótico vive, não raro, uma sentença de morte, e sufoca sob um juízo monstruoso: não houve transgressão, a lei que condena é descabida, a perseguição é injusta. De fato, é uma incursão pelo real, mas inteiramente assombrado pela lei (eu só não me deixei matar. Tudo o mais aconteceu, e já não tenho a vida de antes). O que existe de comum nos três casos? O sistema do juízo 215 se encontra em plena vigência e se insinua por tudo. Estendendo sobre o orbe humano – mas quais serão as dimensões desse orbe? – malhas cada vez mais finas e flexíveis, esse sistema serve para reter e neutralizar as potências desconhecidas da vida. É, como dizia Artaud, uma espécie de consciência coletiva em estado de vigília, de alerta. Seu sucesso consiste no desdobramento infinitesimal de tal rede, mas, dada sua competência reativa, é uma operação que atesta um insucesso crônico 216. É como o recalque em relação ao recalcado. Essa condição derivada, reativa, não dá lugar a nenhum otimismo, pois o juízo tende a ser fatal. Estender a rede não se distingue de moldar, produzir segundo os modelos vigentes, modular esperanças e medos, constituir, enfim, o orbe humano, tanto em seu lado direito como em seu avesso. As transgressões perversas são ainda modalidades de captura, e não evocam a pulsão senão como pulsão domesticada, desfigurada. São escapadas fictícias, modos de se deixar apanhar. Já os desmoronamentos psicóticos encarnam o avesso radical daquele sistema, sua pura negatividade, embora na experiência nada seja assim tão puro. Nela se misturam, antes de mais nada, os destroços do juízo. Esse estado de coisas e suas misturas, suas derivas controladas, explicam em grandes linhas as psicopatologias, isto é, indicam o fundamento das diversas formas de divisão do sujeito, permitindo compreender a função da análise em nossa cultura. Eis então, lançados no cadinho clínico, esses três termos: o niilismo, o sistema do juízo e as psicopatologias. Como se articulam, se é que existe aí uma articulação possível? É a lógica pulsional que permite e mesmo exige essa articulação. Ela não é o negativo ou o avesso do que designam aqueles termos, e sim uma distância clínica capaz de discernir, usar, subordinar, 215

Devemos a Deleuze o termo “sistema do juìzo”, com a acepção com que aparece, por exemplo, em Crítica e clínica. Seu emprego em Deleuze decorre, em grande parte, da presença da idéia de “juìzo” e sua crìtica nas obras de Nietzsche, Kafka e Artaud. 216 A bio-polìtica, segundo Foucault, designa “o que faz entrar a vida e os seus mecanismos no domìnio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”. Mas isto “não significa”, continua ele, “que a vida tenha sido exaustivamente integrada nas técnicas que a dominam e gerem; ela escapa-lhes sem cessar” (citado por Ana Godinho, em Cadernos de subjetividade, 2010, p. 76).

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deslocar, desarticular tanto o niilismo como o juízo, em favor de destinos pulsionais ainda desconhecidos. Demarca assim uma anterioridade lógica e ética. Mas qual o ponto de junção do sistema do juízo com o niilismo? O projeto de eliminação da exceção e a defesa dos ideais em curso; ou, o que vem a ser o mesmo, a inibição (e condenação) de novos modos de existência. Detenhamo-nos um pouco nesse estágio da análise. Por um lado, a exceção ou o novo modo de existência devem ser remetidos à vida pulsional, tal como a estivemos definindo até aqui; por outro, o niilismo deve ser concebido à maneira nietzschiana, isto é, com suas etapas ou fases (também situáveis no que Nietzsche denominou “a história de um erro”): um primeiro tempo consistindo na instauração de uma ordem ideal (a promoção da idéia ou do ser), um segundo na destruição ativa desse mundo dos valores ideais (a vontade de nada ou o niilismo ativo) e um terceiro na eliminação da vontade (o nada de vontade ou o niilismo perfeito). A negatividade, o não à existência, o voltar as costas à vida é o projeto niilista inicial, cujos desdobramentos culminam com o nada de vontade. Esse projeto é o princípio e o motor do niilismo, pois quando este assume um caráter ativo, visa nada mais que os valores ideais em curso, e destrói, por assim dizer, aquilo pelo que iniciou. Ou seja, é um projeto autodestrutivo, suicida desde a origem. Nome psicanalítico para isso: pulsão de morte. É que aqueles ideias, ao menos em nossa civilização, mantêm desde sua origem relações conflitantes com o que se poderia chamar de vida e devir. Combatê-los, conduzi-los à derrisão, destruílos, não significa mais que suprimir finalmente o que parecia constituir a base de nossa civilização e, ao mesmo tempo, a nossa estruturação subjetiva. O niilismo ativo, porém, é apenas o estertor terminal do niilismo, seu grito de morte, antes do seu silencio perfeito. Ele não é, portanto, a via nietzschiana e nem a psicanalìtica, embora estas passem através dele. “Uma filosofia experimental, tal como a vivo”, escreve Nietzsche, “antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até ao inverso – até um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção... Supremo estado que um filósofo pode alcançar: estar dionisiacamente diante da existência – minha fórmula para isso é amor fati” 217. É preciso muita atenção e discernimento para não se fazer do niilismo um destino, e sim um instrumento. Aí reside, sem dúvida, o poder de dissolução da análise – poder pulsional, em si mesmo afirmativo.

217

Nietzsche, F., Obras incompletas, Os Pensadores, vol. XXXII, p. 401, Abril Cultural, SP, 1974.

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Existe uma espécie de ardil do sistema do juízo que conduz logicamente à morte as potências que se opõem ou resistem a ele. O seu avesso é a negatividade psicótica. O delírio onírico de Jorge, o automóvel sobre a árvore, de rodas para cima, poderia sugerir esse negativo da ordem e do juízo, não fosse analiticamente a correção mesma do processo desejante. O ardil: só é possível escapar efetivamente ao juízo colocando-se fora da vida, o que é renunciar a toda a participação. Como diz K, o secretário Klamm o vigia em seu quarto de dormir mais que em qualquer outro lugar. Todo o niilismo opera, portanto, no interior do sistema do juízo, de tal modo que não se distingue do desdobramento desse sistema e lhe dá, assim, seu sentido último. A lógica rigorosa do niilismo consiste, obviamente, na eliminação da diferença: o nada de vontade. Como ele pode se tornar instrumento de afirmação da diferença? Quando empregado ativamente, contra o seu princípio. Se o niilismo ativo se define pela tendência à destruição dos valores superiores, o que isso tem a ver com a psicanálise – se é que aventamos aqui um uso clínico desse hóspede sinistro? Há uma face niilista da psicanálise, com seu teor crítico e dissolvente, que deve ser contextualizada, situada como um momento ou um dos aspectos do pensamento analítico e sua práxis. Niilismo ativo da análise, é preciso discerni-lo clinicamente, não confundi-lo com um fim, e muito menos com a natureza do processo desejante como tal. Considerar essa face niilista em sua função crítica, contextual, e também como o pensamento que deve ser atravessado de ponta a ponta, permite avaliar adequadamente o percurso analítico. Em face do que estivemos dizendo, o saber de não-senso aparece como o termo do processo analítico. Como se chegaria a ele senão por meio de algumas “santas destruições”? Mas ele é também inìcio. É saber de não-senso porque não recebe luz de nenhum outro – coisa que nunca chegamos a repetir o bastante. Não é, portanto, caos ou loucura, puro não-senso em si – esta designação não seria procedente. Do ponto de vista do em si, trata-se antes de um saber autônomo, desprendido de toda coerção. Ao constatar que todo o sentido cultuado como alvo do vir-a-ser se mostrou ilusório, deixando o sentimento de um enorme desperdício de forças, e que “a decepção quanto a um pretenso alvo do „eterno vir-a-ser‟ é a causa do niilismo”, Nietzsche estaria indicando, no limite, esse saber de não-senso? Ora, são coisas inteiramente diferentes, embora se cruzem em certo momento. O saber de não-senso, repetimos, é precisamente o alvo psicanalítico, o alvo pulsional. A emergência sombria da idéia de não-sentido irremediável, em certa medida explicável no âmbito do pensamento analítico pela noção de falta 181

estrutural, será amplamente acolhida pelos psicanalistas como a pedra de toque da visão sobre o desejo. Não se pode dizer que Freud foi responsável por essa universalização da falta, ele que identificava o desejo ao sentido dos sonhos. A decifração onírica não desemboca em furo, em não-senso, senão do ponto de vista das representações. Existem sonhos que retificam as relações do sujeito com o real, não sem afirmar satisfações (ou saberes) pulsionais. É o caso do sujeito que sonha e, como era comum no passado, vê-se às voltas com um pesadelo. Logo sente, porém, no decurso do sonho, que não há motivo algum para ter pesadelos. O sentimento de não existir o menor pesadelo é tão decisivo como era, há pouco, o sentimento de estar imerso nele. O sonho atesta, antes de tudo, uma condição de escolha. E, na verdade, o umbigo do sonho é um dizer inteiro: “está em minhas mãos decidir”. Ao invés de falta ou buraco, ou além desses termos, convém pensar em mudança de plano, em outra altura do tempo, outros afetos e dizeres. Às vezes a noção de falta atua como oxigênio no campo do saber, pois deixa em aberto o que, de outro modo, seria reduzido a um conjunto fechado, narcísico, por efeito de saberes totalizantes. Assim é o lado Mulher nas fórmulas da sexuação. Aquela noção, porém, não alcança o saber da diferença, para o qual não existe o pressuposto da totalidade, da completude ou do Mesmo. Por ser originário, o saber da diferença tem a positividade do lapso, do ato. Não é total, mas íntegro. Tomemos uma pesquisa que se pretende de ponta no âmbito do movimento psicanalítico, inclusive como “um pensamento para o século II da era freudiana”, a concepção de MDMagno acerca da pulsão, reconhecida por ele como a noção fundamental da psicanálise. A definição exaustiva desse conceito pela fórmula Haver desejo de não-Haver 218, a pulsão como um “empuxo” ao não-Haver que, obviamente, não há, leva às últimas conseqüências lógicas o vetor niilista da psicanálise que, note-se bem, lhe é contingente, crítico, e até mesmo necessário em certo momento (tanto da teoria como da clínica), porém não é essencial, isto é, não traduz as condições absolutas do processo analítico ou – o que é a mesma coisa – do processo pulsional. Magno, contudo, sustenta que a máquina de revirar imanente ao nosso psiquismo, buscando sempre avessar as condições dadas de existência, sejam elas biológicas, etológicas ou culturais, tenderia, em última instância, a avessar o próprio Haver, passar ao seu contrário absoluto, ao não-Haver. Isso, todavia, é impossível, não apenas no momento (não importa a amplitude de tempo desse momento), mas absolutamente, porque o não-Haver não há. Fracassando em seu intento, o movimento libidinal retorna ao Haver ou nele 218

Magno, MD, A natureza do vínculo, p. 169, Imago, RJ, 1994: “Haver desejo de não-Haver: a fantasia primordial capaz de desenhar toda e qualquer outra fantasia com rosto de valor intermediário, ou não”.

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recai, sem deixar de requerer, novamente, o impossível que requeria antes, e assim eternamente. Investidas extremas na direção do não-Haver, permeadas de perigos e de eventuais catástrofes, podem resultar na abertura de novas perspectivas éticas, em descobertas científicas, em criações artísticas. O retorno eterno ao Haver subverte de maneira engenhosa a falta absoluta, transfigurada em falácia universal. É uma falácia, no entanto, que decide pelo curso do desejo. Além de ser uma falsa imagem do eterno retorno de Nietzsche, é uma falsa imagem da pulsão, que não é de modo algum dialética. Não é verdade que o que caracteriza a pulsão seja o avessamento das condições dadas, o empuxo ao contrário do que é, o não que se oporia à afirmação do fatum, seja ele biológico ou cultural. A pulsão demarca, sim, uma diferença em relação ao dado biológico e ao dado cultural, e é enquanto afirmação dessa diferença que ela os considera e avalia ao longo do tempo, subordinando-os aos seus critérios superiores. Quais são esses critérios? Aqueles que indicam a continuidade de seu próprio exercício – critérios de ação, de integração, de superação, de movimento, de existência, de singularidade e de sentido (enquanto direção de todo o processo) 219. Ela não precisa querer radicalmente o não-Haver para subverter ou superar as formações bio-culturais do momento; basta-lhe querer-se a si própria. Não existe dificuldade ou desafio que ela não queira vencer, mas isto apenas traduz o gosto (compreenda-se estima) por si própria, pelo exercício de sua própria atividade ou dela própria como princípio ativo. Ela é um poder, mas um poder a ser reencontrado, capaz de subordinar a si, isto é, às suas condições absolutas, todas as demais condições de existência – pois ela é a condição existencial por excelência. Existir e existir mais (com mais força e continuamente), tornar-se quem se é, e não o contrário, sumir, extinguir-se, conforme a falsa noção sobre o desejo, que o subordina a uma falta estrutural (a castração), a uma impossibilidade absoluta ou ainda – para estabelecer a conexão que estivemos desenvolvendo acima – ao niilismo perfeito. Não se trata, tampouco, de uma política do esgotamento, mas de uma política da vida, 219

Cf. os critérios pulsionais abordados em O caminho do campo analítico, op.cit. p. 117 e seguintes. Retomemos brevemente esses critérios: de ação – não em um sentido sensório-motor, mas no sentido de princípio ativo, psicanaliticamente evocável pela presença ativa da pulsão em todo acontecimento; de integração - porque a pulsão, em seu nível, é integrativa (embora possa desintegrar em outro nível que não o seu), ou seja, reúne elementos heterogêneos em seu devir, e essa reunião mesma é, ao mesmo tempo, saber e satisfação; de superação – uma vez que a pulsão visa, todo o tempo, superar suas condições atuais de exercício em favor de novas condições; de movimento – pois, justamente, em conformidade com os três primeiros critérios, ela é nômade, apenas concebível como processo, deslocamento, prática; de existência – tendo em vista que agir, integrar, superar e se deslocar são atos de existir (“só se existe em ato”); de singularidade – que é o traço essencial da pulsão, o que indica que estamos em seu campo, isto é, na altura de sua potência; de sentido – pois essas “virtudes” pulsionais, imanentes umas às outras, compreendem (cada uma e em seu conjunto) uma direção, condição decisiva para garantir a consistência (ou integridade) de todo o processo.

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precisamente porque nunca esteve em jogo um esgotamento da vida subjetiva – eis aí o impossível real – e sim de uma de suas dobras, aquela que leva o nome de niilismo. A pulsão não visa o avesso ou o contrário de tudo o que há, o não-ser, o não-Haver, a morte, mas alcançar-se a si própria e exercer o mais remoto poder de avaliação e discernimento, a diferença como tal, o princípio ativo pelo qual todo o Haver possa ser afirmado e bendito, o grau mais alto da existência. Ao situar a verdade em uma altura onde o moral e imoral pudessem ser igualmente avaliados, em uma perspectiva, portanto, extra-moral, Nietzsche não buscava desaparecer nas nuvens para sempre. O tema da pulsão é o da vida em suas condições superiores, e não o da morte absoluta. Este, contudo, deve ser integrado secundária e criticamente ao primeiro, inclusive porque cabe perguntar, já de um ponto de vista clínico, analítico, a que se deve a tendência a substituir pela morte absoluta o verdadeiro alvo da pulsão, que é a vida em suas condições superiores? A suposição de que a vida, em tais condições, é impossível? Cremos que sim, pois a esse impossível foi associada a noção de recalque originário: não é possível passar, segundo Magno, ao nãoHaver, há uma inelutável quebra de simetria. Eis o único recalque não removível, a castração no seu sentido maior, graças à qual, para falar misticamente, as portas do céu permanecem fechadas Retomemos o argumento de Magno relativo à pulsão: a quebra de simetria, a impossibilidade de fechar o último dos ciclos, Haver/não-Haver, abre à criação, à renovação incessante. É o grande estratagema e a grande permissão de Deus. A pulsão de morte não designa mais o retorno ao estado inanimado da matéria nua, mas o que produz a falha, a ruptura, a fissura na tendência a retornar ao Mesmo, na tendência, portanto, que teria sempre a forma final – preenchida – da recognição e da reconciliação. Não há estado ou forma final. Mas seria preciso dar um passo além da concepção plerômica de Magno, um passo além do homem, e entender que é ainda a vida em suas condições superiores, desconhecidas, que aparece como quebra de simetria e forma vazia no âmbito da representação (isto é, no mundo do homem). De um modo genial, Magno estende até o limite a lógica psicanalítica da falta, e quase a revira, não fosse a paixão em fazer da desistência o alvo real do desejo (desejar não mais desejar). O que seria revirar aquela lógica? Seria demonstrar que o desejo almeja perseverar como desejo, e não mais pelo expediente da falta, que é o modo negativo de perseverar (porque não consigo morrer, porque falta alguma coisa e essa coisa, que não posso deixar de requerer, é impossível). A falta e a negatividade atuam juntas. Ambas repelem o devir, pois o explicam por uma medida extrínseca. Mas o devir é como o desejo, o alfa e o ômega da existência. Nietzsche definiu o sobrevôo desejante 184

como amor fati. É através da visão de sobrevôo de Eros (ou pteros) que as demais condições de existência, sejam elas naturais, biológicas ou culturais, são avaliadas e, por todo o tipo de aparelho ou tecnologia que se queira, operadas e desenvolvidas. Não é a desistência que caracteriza o movimento desejante, mas o desprendimento. O processo pulsional compreende diferenças de grau e de natureza – a condição desejante é de natureza diferente da condição biológica ou cultural; o desprendimento, por sua vez, se faz por graus –, instaura hierarquias e subordinações, atuando de acordo com a elevação da consciência da força, sempre em nome, portanto, de condições superiores de exercício (= os graus de desprendimento), já que, repetimos, a pulsão é sua própria prática. A diferença absoluta não é o não-Haver, mas a vida em seu princípio ativo, integrativo, superativo... Não pensamos que a diferença se oponha a tudo o que é, polarize com tudo o que é, com o Haver por inteiro, e sim que seja capaz de afirmá-lo por inteiro, o que é muito diferente. E se essa experiência da diferença parece impossível, isto se deve à dificuldade que apresenta, à sua raridade, à sua quase insustentável continuidade, pois significa, de fato, vencer o mundo, mas não no sentido de lançar-se em seu contrário inexistente. Instalar-se em seu princípio não é igual a suprimi-lo ou a querer suprimi-lo. A diferença absoluta é o avesso real de tudo o que não é ela, a pulsão em pessoa e a plenitude de sua prática. É por isso que ela está no começo dos mundos. Em outras palavras, e usando os termos de Magno, o Haver não quer desistir, e sim voltar a existir, e existir mais. A Coisa está em aberto porque depende de nós. Aliás, ao tratar da clínica analítica e da operação de cura, Magno sugere precisamente isso, pois o endereçamento subjetivo, por breve que seja na experiência humana, ao que ele chama de hiperdeterminação – aqui sinônimo e traço de pulsão – permite que se revele algo do Haver que antes não era percebido, que não fora ainda destacado de seu abismo e que, no entanto, passa a existir pela nossa intervenção. Ora, nós mesmos passamos a existir pela nossa intervenção. Não é naturalmente que se alcança esse estágio da cura, esse plano de hiperdeterminação pulsional, para não falar do esforço de instalar-se aí e de experimentá-lo sob a forma de uma prática constante. Esse lugar, porém, não é de indiferenciação ou de indiferença, como quer MDMagno, e sim de uma diferença absoluta. Freqüentá-lo faz toda a diferença, e não significa que tanto faz o que quer que se afigure no âmbito das demais coisas, o “valetudo” de que se serve Magno para descrever a afirmação do Haver por inteiro, pois todas elas se ordenam segundo as apreciações e pesagens que decorrem desse plano superior de visão. Por que se diz superior? Porque é por ele e a partir dele que todas as demais coisas podem ser compreendidas e avaliadas. Existe todavia o caso em que as demais coisas se tornam indiferentes: se faziam 185

sentido em seu próprio nível e promoviam os deslocamentos subjetivos, uma vez subordinadas à visão de sobrevôo, extra-territorial, deixam de servir de apoio e de horizonte, e já não decidem nenhuma sorte de movimento. O movimento em direção a esse plano de determinação superior, isto é, de autodeterminação, se constitui como sentido do processo pulsional, sentido este que jamais desemboca em não-sentido, exceto nos termos que estivemos repisando. Trata-se de um aumento progressivo de sentido, à medida que se acentua, por assim dizer, a linha de autodeterminação 220. Essa linha e o poder integrativo da pulsão de vida são a mesma coisa. Todos os aspectos da existência, enquanto condições menores, relativas ou secundárias, se reúnem em um devir único, superior e, dada a sua direção, absoluto. Isso não contraria, portanto, o movimento eterno do vir-a-ser, não se confunde com o esgotamento das forças ou com um alvo final; ao contrário, o exercício constante de integração pulsional constitui o fluxo integrativo ou a subjetividade do devir. Não é preciso evocar o não-Haver (ou uma falta absoluta) para entender o empuxo desejante, se este, em sua constância, é a diferença absoluta. Em outras palavras, o devir não tem um alvo no qual desembocaria – é puro amor fati. É assim homólogo à pulsão, cujo alvo é o seu próprio exercício. A diferença interna a que aludimos se deixa vislumbrar, como que por trás de muitos véus, nos lapsos e tropeços da vida cotidiana. É a descoberta psicanalítica por excelência. Os lapsos de linguagem, como as demais formações do inconsciente, se antecipam ao sujeito – isso o precede – e o 220

Precisemos, mais uma vez, estes termos. Parece-nos inteiramente apropriada a idéia de uma “hiperdeterminação” proposta por MDMagno (cf. A natureza do vínculo, op. cit.), na medida em que se distingue da sobredeterminação simbólica e eleva o processo do desejo a uma determinação superior. Ora, esta só pode ser a pulsional, apta, por sua direção ética, a reunir todas as vertentes simbólicas. A análise se dirige a ela e é dirigida por ela; mas estar à altura dela, de uma natura naturans, é estar à altura de uma autodeterminação. O conceito de autopoiese, tal como é empregado por Guattari, diferindo do uso restrito que Francisco Varela faz dele, guarda uma proximidade com a noção de autodeterminação pulsional: os sistemas ou as máquinas autopoiéticas se autoproduzem em sua abertura à alteridade, ganhando, ao mesmo tempo, uma dimensão evolutiva, coletiva e temporal (Caosmose, op. cit., p. 52). A idéia de um “auto-movimento expressivo” em Mil platôs sugere o mesmo tipo de processo, pois, na constituição de território, as qualidades expressivas são mobilizadas de modo autônomo em relação às determinações do meio interno e do meio externo (Mille plateaux, op. cit., p. 390). A autodeterminação de que falamos recebeu em psicanálise o nome de sublimação, não se distinguindo, portanto, de um dizer. Seu caráter extra-moral, estético, não contradiz sua condição extra-pessoal, ou seja, sua implicação ética. Envolve a constituição do plano ético que descrevemos há pouco. A distância em relação a qualquer voluntarismo egoísta ou pessoal é enorme (daí a subversão conceitual de Guattari, procurando abrir o sistema autopoiético que em Maturana e Varela permanece fechado, circunscrito ao individuo). As perspectivas egoístas ou pessoais são demasiadamente estreitas para sequer oferecerem uma idéia aproximada do que se entende aqui por autodeterminação. Têm por alvo, de modo geral, a conservação de um território, mas não a constituição de um, e muito menos o movimento mais amplo de desterritorialização. A autodeterminação é o que há de mais raro, e compreende o desrecalque originário, isto é, coloca em jogo precisamente as potências não pessoais do inconsciente (singular e extrapessoal).

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colocam, por assim dizer, em processo. São sinais e eventos, não exatamente de uma história, mas de um devir cujo enunciado seria: tornar-se quem se é, entendido que não se é sem se tornar. “A mania de a gente querer ser o que é ainda há de nos levar além”, dizia Leminski, assinalando o nomadismo pulsional. Além da ausência de sentido do vir-a-ser, o niilismo (ou o cansaço do homem) tem ainda outras duas figuras de referência. Na sua origem encontrase igualmente a crença em uma totalidade metafísica ou em uma unidade transcendente, também apreendida sob o aspecto da ordem e da organização e pressuposta como fundamento de tudo o que sucede. O valor do homem adviria dos laços profundos com um todo que lhe é infinitamente superior. Mas o todo, concebido para dar crédito a esse valor, não existe. Não existe tal unidade. Proposição realista e niilista, pois destrói uma crença antiga e preciosa, esse enunciado assumiu várias feições no pensamento psicanalítico. Quando Lacan afirma que a verdade não pode ser dita toda, que afinal ela é não-toda, no mesmo sentido em que, segundo a fórmula da sexuação, a mulher não existe, está derrocando a idéia do todo, não fazendo nada além do que sempre se fez em psicanálise ao investir na noção de inconsciente, que é, como se sabe, essa noção que subverte as pretensões subjetivas a uma totalidade. O que merece ser destacado, para além da propriedade com que se desenvolveu essa visão crítica e despojada, é a extensão nefasta do efeito niilista, que faz perder de vista nada menos que o inconsciente pulsional, forçando o entendimento, agora cúmplice da neurose, a girar em torno da falta. O todo não se realiza, algo falta, falta inclusive esse mesmo todo, sem que se pergunte pela instância que presumia sua existência, que o requeria, que dependia dele – não era certamente a pulsão, com seu realismo de origem. O niilismo começa antes de sua vertente destruidora, começa com o idealismo. Mas tampouco essa vertente é expressão última da vontade de potência, como não é a realização do circuito pulsional. Se a proposição que nega o todo é realista, e se o niilismo compreende, em dado momento, um excesso providencial de força para destruir o que deve ser destruído, em nome de condições superiores de exercício pulsional 221, não devemos desconhecer que com isso apenas meia volta foi dada. É preciso perfazer o circuito, dar a volta inteira e alcançar a visão pulsional, que jamais teve a necessidade de um todo idealizado e que, portanto, não se ressente da sua falta. Sua integridade extrapessoal e seu caráter decididamente estrangeiro caracterizam-na como aberta e múltipla ao mesmo tempo (mais uma vez, o simples e refinado). Se isso 221

O niilismo, segundo Nietzsche, “pode ser indìcio de força, pode o vigor do espìrito aumentar até parecerem impróprios os fins que até então desejava alcançar („convicções‟, „artigos de fé‟)....” Vontade de potência, op. cit., 2, p. 111.

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resulta em amor ao fragmentário, deve-se ter em conta que o fragmentário é indício, aqui, de um devir, assim como o sonho – fragmento intempestivo que invade o curso cotidiano da existência – é a ponta, não de um todo, mas de um processo vivo cujas dimensões mais remotas escapam a todo o cálculo. O “todo”, transferido para a experiência do real, ganha o aspecto da inteireza e da integridade existencial, as quais só podem existir em uma espécie de abertura caósmica, desmesurada. O inverso também é verdadeiro: o aberto só pode ser sustentado na inteireza. É assim porque a ética originária em jogo não se distingue da potência do exame (o grau de verdade) – da condição, portanto, de saber. Não existe pulsão deprimida. A depressão consiste em um afastamento ético, experiencial e lógico do processo pulsional. Esse afastamento, porém, tem sua origem no idealismo. É claro que “o ocaso dos ìdolos”, por sua vez, tem sua origem última na pulsão, ainda que seja origem obscura, devido às mesclas do saber pulsional com as formações dominantes em uma cultura. Aquele saber sofre uma distorção (o que chamamos de recalque) e, como tal, deixa de ser praticado, mas não seus sucedâneos. O real aparece então subvertendo a ordem, quando, na verdade, ele é ordenação originária 222. É o que sugere ainda Leminski, no poema In Honore Ordinis Sancti Benedicti: “À ordem de São Bento/ a ordem que sabe/ que o fogo é lento/ e está aqui fora/ a ordem que vai lá dentro/ a ordem sabe/ que tudo é santo/ a hora a cor a água/ o canto o incenso o silêncio/ e no interior do mais pequeno/ abre-se profundo/ a flor do espaço mais imenso”. A ordem bendita do poema é certamente a do bem-dizer. Do ponto de vista clínico, o niilismo deve se compor com a sua superação. Em outras palavras, a redescoberta do sentido pulsional enquanto verdadeira ordenação do real deve ser (e é) concomitante à destruição das estases do pensamento, à qual serve de esteio e direção (“a ordem que vai lá dentro”). Não sem que essa destruição, por sua vez, purifique a pulsão. A este processo inteiro, à volta inteira da pulsão, poderíamos chamar de transvaloração dos valores, conforme a terminologia nietzschiana. Ora, a volta inteira da pulsão é a pulsão por excelência. A unidade do eu, questionada pelo saber psicanalítico e inteiramente subvertida pela sua práxis – já que esta consiste na prática da pulsão e já que a 222

Poderíamos considerar aqui as duas ordens descritas por Bergson (em especial no livro A evolução criadora, op. cit.) – uma ordem automática, secundária, e uma vital, criadora. Essas duas ordens, de naturezas diferentes e, portanto, de grau de realidade e de importância também diferentes, servem à crítica da idéia de desordem: a ordem vital, primária, pode aparecer como força desordenadora e também como estado desordenado, caótico, para o ponto de vista que considera apenas a ordem secundária. Em Caosmose, Guattari propõe uma distinção análoga, ao opor o que ele chama de “ordenada intensiva”, que instaura ou abre um Agenciamento, à “coordenada discursiva”, que opera o seu fechamento (op. cit., p. 74).

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pulsão é o elemento da discórdia psíquica, da desunião, da ruptura – deixou como saldo a noção, destinada a figurar como verdade eterna, da divisão do sujeito. O mesmo raciocínio, o mesmo resultado: o sujeito dividido é um efeito do saber (por certo experiencial) que depõe a pretensa unidade subjetiva, cartesiana e, de modo geral, metafísica. Mas é ainda um produto bastardo do idealismo, medido pela pretensão idealista de sustentar uma unidade que não se verifica no real. Não é o resultado da volta inteira que, justamente, compreende a experiência inteira ou íntegra da pulsão. Aliás, não existe outra integridade. Ao dizer que a pulsão, sendo parcial, é por excelência pulsão de morte, Lacan não explica que a considera de um ponto de vista extra-pulsional, ou seja, para usar seus termos, que a situa desde um ponto de vista simbólicoimaginário, para o qual a pulsão, ainda longe de construir uma integridade vital (ou viva), aparece como o fator que subverte e destrói as unidades, as totalidades e as organizações imaginárias e simbólicas estabelecidas. É a meia volta que define negativa e equivocadamente a pulsão, ainda que tenha, ao seu tempo, um valor crítico e um interesse clínico. Ao seu tempo, isto é, no momento histórico e lógico da investigação teórica e de uma análise em particular. O modo como a pulsão aparece ao nível de uma instância nãopulsional não deixa de sinalizar sua presença real. Mas se este modo prevalece e, para além de seu momento crítico e polêmico, passa a designar diretamente a pulsão, volta a fazer parte do conjunto de idéias que antes, sob véus, denunciava, pois ainda tem o rosto que este conjunto lhe atribui. Terá havido, sem dúvida, um deslocamento, digamos que o todo é subvertido, não se acredita mais nele graças à parcialidade da pulsão, mas o caráter parcial desta ainda deriva negativamente da idéia do todo. Seria possível conservar o traço parcial da pulsão independente de sua referência subversiva à totalidade, seja do eu ou do organismo? Sim, se o parcial remeter a um todo virtual, aberto. É o caso em que o parcial encarna o todo virtual e, à sua maneira inconclusa, constitui um devir desse todo. O sonho de Jorge poderia servir de exemplo mais uma vez. É um fragmento de existência, uma obra em aberto, espécie de signatura de um processo do qual não se conhece os últimos contornos. Está imerso na estranheza por um lado, e faz sua aparição discreta, familiar, por outro. O texto onírico mesmo se constrói assim, segundo uma progressão do mais familiar ao mais estranho – porque ele é isso. O sonho da “Injeção de Irma”, que retomaremos logo adiante, propõe um encaminhamento similar, pois seu jorro de possíveis pode ser ainda atualizado por nós: graças à nossa perspectiva pulsional, estamos implicados, queiramos ou não, em seu devir, que é certamente o da psicanálise. 189

Mas por que, sendo parcial, a pulsão é de morte? Porque significa a subversão do todo, a morte do conjunto orgânico, a perda da unidade, o fim da organização. Também a pulsão de morte deriva de uma concepção idealista das condições originárias – em derrocada, certamente, mas ainda idealista, pelos motivos que expusemos, ou seja, que é de morte devido ao seu caráter parcial, o qual deriva, por sua vez – sem dúvida como subversão e índice do real –, da ficção do todo. O que não retira o valor de uma concepção como a do objeto parcial: ele permite ler processos moleculares em meio a uma disposição molar das forças, mas também indica, como observamos acima, a passagem do atual ao virtual e vice-versa, sendo ele mesmo essa passagem. No entanto, do ponto de vista da pulsão mesma, o experimento em jogo, seja o do sonho ou do lapso, se qualifica de íntegro, pois não sobra nem falta nada à composição. Como se poderia dizer que sobra ou falta algo à obra de Freud? Simplicidade de uma obra, tanto mais simples (ou íntegra) quanto mais aberta. Curiosamente, Freud desejava essa abertura para o conceito de pulsão – que nenhum ”fascìnio pelas definições” fizesse perder de vista o movimento da pesquisa. A transformação das linhas de desejo (ou de fuga) em linhas de abolição, conforme a descrição, em Mil platôs, dos perigos de um devir, é a resultante de um equívoco sobre o movimento pulsional, cujo saber obscuro aparece mesclado – e isso é tanto teórico como experiencial – às versões que recebe em seu percurso, especialmente da parte das instâncias pelas quais é temido, rechaçado ou convertido. Mesmo a idéia, que se poderia atribuir a Deleuze e a Guattari, de conceber a esquizofrenia como razão universal do processo desejante, ou, de modo mais preciso e menos sujeito a mal entendidos, de fazer da desterritorialização positiva e absoluta (e, por conseqüência, da experiência de um espaço liso, desestratificado) o sentido lógico e ético do devir, tende a incorrer, de modo geral, numa confusão dos planos e das ordens. O perigo não é tanto a imersão abrupta no espaço liso, a desestratificação violenta, mas esse movimento precipitado sem o devido discernimento (que, de fato, tende a ser gradual) de uma ordem e outra, de um plano e outro. O perigo está na precipitação e na confusão dos planos, em que o originário é tratado ainda pelos critérios do secundário, quando a verdadeira reversão, a saúde, consiste no inverso – o secundário ser tratado com os critérios do originário. Nesse caso, as destruições não passam de “santas destruições”. É por isso que as experiências extremas precisam encontrar sua linguagem, isto é, sua ferramenta existencial. Precisam encontrar a linguagem do plano que elas instauram e freqüentam, sendo ele mesmo feito dessa linguagem. Um dizer, um deus. 190

Artaud, nos primeiros tempos de seu internamento, e especialmente a propósito do rito do peyote entre os tarahumara, do qual participou alguns anos antes, empregou em textos e cartas elementos inconfundíveis da mística cristã, e o fez com tal convicção fervorosa, na época estimada por ele como inteiramente justa, que perguntamos como pode repudiá-los pouco tempo depois, com uma disposição de ânimo ainda mais forte. O que aconteceu? Artaud acredita que a impregnação de sua experiência indígena com os signos do universo cristão resultou, decisivamente, da série de sessões de eletrochoque à qual foi submetido, e que teve o poder de envenenar e neutralizar sua lucidez poética. Parecia que a expressão da experiência fosse o testemunho fiel da mesma, de modo algum esquecida em suas tonalidades mais fortes. Mas havia uma falsificação em curso. Com o decorrer do tempo ganha corpo uma novidade em termos de vida-linguagem. No último período de internação, uma espécie de potência do início passa a operar com meios inéditos. Surge a partir daí um deleite inequìvoco, renovado: “este mundo é também uma maquinaria real cuja alavanca de mando eu possuo, é uma fábrica verdadeira cuja chave é o humor-nato. sama tafans tana/ tanaf tamafts bai” 223. A linguagem arrebatada do misticismo cristão, mesclando elementos do rito tarahumara, era ainda infidelidade a si mesmo, ao humor-nato? A experiência dos limites (para falar como Bataille), tal como se apresentou com o uso do peyote e foi elaborada alguns anos depois, precisaria ser corrigida? Ou se tratava, melhor ainda, de redescrevê-la, de relê-la, agora, porém, na ausência dos códigos cristãos, profundamente fixados na carne dos séculos? Toda uma memória precisaria ser assim revertida? Em Suplemento à viagem ao país dos tarahumara, Artaud escreve coisas do seguinte gênero: “Houve uma época em que estive longe de Deus, porém nunca me senti tão longe de minha própria consciência, e vi que sem Deus não há consciência e nem ser e que o homem que crê estar vivo nunca poderá, todavia, entrar dentro de si. Assim foi que, movendo-me em direção a Deus, encontrei os tarahumara... Não sei até que ponto as doutrinas iniciáticas da terra, cuja fonte única conheço, e se chama Jesus Cristo, dizem ter conhecido sóis, desde o primeiro até o sexto, porém se poderia muito bem dizer que os tarahumara do México não desceram do primeiro, pois conservaram neles a imagem ígnea dessa fonte que chamam o Filho de Deus.” 224 Ora, um ano e meio depois pede ao seu editor que não publique esse Suplemento, pois nele cometeu, segundo escreve, “a imbecilidade de dizer que me converti a Jesus Cristo... (...) Não foi Jesus Cristo que fui buscar entre os tarahumara, mas a mim mesmo.” A nova 223

Os tarahumara, op. cit. p. 105. A frase citada aparece no texto “Uma nota sobre o Peyote”, datado de 1947. 224 Idem, p. 92 e 93.

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linguagem, que parece coincidir com uma saúde recém-conquistada, se instala e opera como maquinaria real. “Compreendia que estava inventando a vida, que essa era a minha função e a minha razão de ser e que me aborrecia quando perdia a imaginação, mas o peyote ma restituìa”. Pensamos, contudo, que essa variação da linguagem e do sentido em experiências qualificáveis de místicas, mas que chamaríamos de encontros com o real, seja indissociável de um curar-se ainda pouco conhecido. Os graus do real, como já dissemos, são graus de cura. Em numerosos casos não se trata nem mesmo de destruir, mas de subordinar o conjunto dos estratos e das ordens aos critérios superiores da pulsão de vida. Discernir a si própria e subordinar o que vem depois, tal é o poder avaliador e indestrutível da pulsão. Deleuze e Guattari falam em doses prudentes de significante e de subjetivação, de estrato e de reterritorialização, para que as linhas de fuga não fujam abruptamente, não se precipitem em buracos negros – algo próximo ao conselho anti-psiquiátrico de David Cooper: enlouqueça com discrição. Não dizemos o contrário. Desse modo, porém, apenas fazemos coexistirem os planos, como se, por excesso, um pudesse fazer perder o outro. Na verdade, o estratificado ou, em estágio mais avançado, a confusão de ambos, fazem perder de vista o liso; mas este, em contrapartida, subordina o estratificado, uma vez que é o ordenador vital do espaço. A questão, portanto, é de discernimento e subordinação, e não propriamente de abandono. Ou melhor, abandono, sim, do privilégio do plano estriado na concepção experiencial do espaço, mas não da ciência e do uso desse espaço estriado. A vida, dizem aqueles autores, freqüenta os dois espaços, mas é pelo liso que ela avança, que ela é devir, ainda que se sirva dos estratos para avaliar, ponderar, redimensionar seus avanços. Mas o que são o estriado, o liso? Assim como encontraremos no sonho de Jorge elementos do recalque mesclados ao recalcado originário, assim também encontraremos as duas modalidades de espaço (spatium) e suas misturas. A casa da fazenda, a represa e o lago, a vazão comedida da água, indicam o estriamento do espaço existencial, enquanto o túnel parece sugerir uma mescla, o estriamento tomado em um fluxo, em um contínuo que reflete as condições do espaço liso, bem como uma espécie de mutação da existência. O carro planando acima da árvore, em revirão, é certamente o liso, o desestratificado, a pulsão mesma. Abordamos o problema dos espaços, tal como são descritos em Mil platôs, tendo em vista as idéias de unidade e divisão, de todo e parcialidade, de organização e desorganização. Estas, em sua feição prática, se reportam ao espaço estriado. Eis, portanto, um modo de situar ainda o campo pulsional, ou seja, em termos de espaço liso. Ultrapassamos assim a divisão em seu nível 192

mais profundo, ali onde ela dependia de uma definição dos espaços privilegiada pelo estriado, operada pelos seus critérios, para os quais o liso significa quebra, subversão, dispersão, destruição ou caos. Na verdade, ele não é temido e rechaçado sem ser convertido, segundo as leis e perspectivas do estriado, em algo que só faz sentido à conservação do estriado, e isto de duas maneiras complementares: o liso, desconhecido como tal, é substituído por um absoluto englobante e, ao mesmo tempo, por um centro englobado, ambos garantindo o afastamento, para fora dos limites do globo integrado, do que tenderia a desintegrá-lo. É que o estriado necessita de um fundamento que o justifique em todos os seus desdobramentos e ramificações (é a mesma árvore), bem como de um ponto de convergência de todas as suas linhas, de um centro que tome o lugar da linha de fuga, de um legislador-rei-sacerdotemestre que, enquanto desejante legítimo, justifique a submissão de todos os súditos, de modo que tudo se mantenha atado, junto e nada escape, exceto se for uma escapada prevista, arranjada. Convertido ou reduzido a outra coisa, o liso nem por isso deixa de existir. O que acontece? Sua subordinação óptica ao espaço estriado, à extensão segmentarizada. Ora, do ponto de vista do espaço liso, a ordenação do espaço é regida por uma vitalidade inorgânica e intensa – que só não chamaremos de espiritual em razão do modo como “o espìrito” foi atribuído àquele fundamento e àquele centro; é ela que decide pela sorte do orgânico que dela deriva, como extensão instrumental. Mais uma vez, não caímos na armadilha de uma escolha – ou isto ou aquilo, pois a questão é de comando e subordinação, do que vem antes e do que vem depois, do que mede e do que é medido. É ainda do estriado, é ainda do organismo que emana a alternativa “ou isto ou aquilo”, como opções exclusivas. Porque o liso, mas também se poderia dizer o corpo sem órgãos, não se contenta em eliminar o suposto fundamento (o englobante absoluto, transcendente) e erradicar, ao mesmo tempo, o centro mítico ou ideal. Apropria-se, ademais, das estrias e dos órgãos, em favor de seus empreendimentos vitais. É que o liso deve ser entendido: não é uma substância, mesmo tornada inteiramente fluida; ele é fluido, sim, mas enquanto prática, enquanto escolha, enquanto escolha exercida a cada vez. Eis o liso – não capturável, nômade e ético. A vitalidade inorgânica, intensa, é o liso; as funções que ela desenvolve e organiza é o estriado. Mas isso não é contraditório ou, no mínimo, paradoxal? Como o liso pode estriar se o espaço estriado se conserva ao reduzi-lo, ao desfigurá-lo? Tudo parece acontecer ao mesmo tempo devido às mudanças de plano, às inversões e reversões de perspectivas. Mas são dois momentos: um ativo, em que o liso cria órgãos e gera estratos segundo os quais a vida avalia seus avanços, estabelecendo hierarquias secundárias, centros móveis de ressonância, limiares em deslocamento constante; e outro 193

reativo, conservador, em que o sentido de todo acontecimento, bem como sua origem, parecem emanar do espaço estriado. Trata-se, no segundo caso, de uma profunda distorção do processo do desejo, cujas linhas de fuga procedem do espaço liso. Na verdade, enquanto ativas, essas linhas constituem o liso. Tampouco o liso está dado. Se elas serão ou não reenviadas a ele, se irão garantir sua experiência e prevalecer, é um problema ético originário, de feição analítica e clínica. Portanto, não se deve confundir aquela vitalidade com uma identidade latente, fundante, globalizante, ou com um centro cujas linhas convergentes ressoam ao infinito, embora pareça sofrer essa redução em vista da conservação do espaço estriado e de sua inversão de perspectivas. Ela não tem e nunca teve a forma do todo, nem se determina como centro de onde se estendem os círculos concêntricos até os limites imponderáveis do orbe. É intensa, deslocada, móvel, e seu horizonte é o intempestivo. Ela é devir. Francis Bacon a tornou visível, entre uma estria e outra, ao pintar “a maneira pela qual o corpo escapa do organismo...” 225 É claro, então, que a sua virtude não consiste em assegurar uma totalidade, nem em fundar um povo ou um Estado, e sim em vitalizar até os confins do Cosmo. Essa vitalidade compreende, no entanto, uma integridade capaz de criar e ordenar funções e órgãos, e isso a partir de certo caos. Entenda-se esse caos: ele só se define a partir da ordenação de funções e órgãos. A ordenação é originária, e por isso chega a criar um povo. O que a faz íntegra e, por conseqüência, apta a criar? A direção superior da pulsão de vida, que é sua autodeterminação: natura naturans. Mas conforme o alerta de Mil platôs, não se deve “jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar”, pois o liso não é dado ou alcançado de uma vez por todas. A força vital da Abstração que traça o espaço liso, sendo de natureza ética, pulsional, só pode se exprimir como prática (força) constante. Ainda que Deleuze e Guattari considerem uma espécie de alternância crítica na experimentação dos espaços, para concluir que o liso não basta para nos salvar, não deixam de fazê-lo coincidir com a desterritorialização positiva e absoluta. Esta, sendo prática e clínica, dá sentido e direção aos procedimentos analíticos. O liso é a prática absoluta ou abstrata da saúde, o exercício espiritual mais puro, a altura em que o viver e o pensar se tornam indiscerníveis. Tal pensamento do devir, vivo e nômade, tal saber imanente e prático, supera o niilismo no terreno do real: o realismo niilista carrega consigo os escombros da transcendência, mas a pulsão o antecede e supera, é o real realíssimo das forças ativas reencontradas.

225

Lógica da sensação, op. cit. p. 56.

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Por meio de qual ação específica as forças ativas são reencontradas? Como o niilismo é superado em seu próprio terreno, isto é, ali onde a apreensão do real se conjuga com a divisão do sujeito? Entenda-se: o niilismo é o sentimento da falência dos valores não pulsionais, ora experimentada do ponto de vista da pulsão (niilismo ativo), ora das instâncias não pulsionais (niilismo reativo e niilismo passivo ou perfeito) – o que evoca os dois planos da divisão. A análise é precisa: a superação se verifica ao nível da microlíngua inconsciente; em uma altura, portanto, em que a linguagem adquire sua feição pulsional e o viver e o pensar voltam a se reunir. Eles se reúnem no inconsciente, antes mesmo do pensamento, antes que eu possa dizer “penso onde não sou”, fórmula psicanalìtica que subverte o postulado cartesiano da unidade subjetiva do ser e do pensar. A certeza freudiana ancora-se no afeto inconsciente, no pensamento enquanto afeto. É a certeza do desejo ou, se preferirmos, o mais alto entendimento, o mais vivo (= o mais lúcido). Se a dúvida serve de orientação para Freud de que ali, no sonho, existe um pensamento inconsciente do qual se pode estar certo, sendo a dúvida uma resistência e ao mesmo tempo um indício revelador, temos uma idéia da natureza do saber em jogo: é o saber do afeto em seu estado de progressão, cujo termo inconsciente é o afeto enquanto saber. Ou seja, saber de não-senso e afeto são o mesmo, e não só constituem uma certeza como são – indiscerníveis – o que pode haver de mais certo. A certeza inconsciente escapa a todo juízo. Até o advento da psicanálise, a unidade do cogito não deixou de emprestar uma razão filosófica à forma do recalcamento. Não é pouco expressivo que a conquista do cogito ergo sum exigisse suspender, por meio da dúvida, isto é, do próprio cogito, a existência do corpo, do sentir, do querer, do imaginar – numa palavra, o que se chama de vida – e que, em seguida, o pensamento, valendo agora como medida universal da subjetividade, tudo recuperasse sob sua égide: “penso que tenho um corpo, penso que sinto, penso que quero, penso que imagino”. A fórmula “sou onde não penso”, subvertendo o cogito, descreve um retorno, ou melhor, um momento crítico desse retorno, precisamente ali onde se evidencia a divisão do sujeito. Por isso a fórmula é niilista, ainda que salutar ao seu tempo. Se a fala em análise, sob o escrutínio da ratio analítica, demonstra a realidade da divisão, não deixa de indicar o advento de uma nova integridade. Esta é definida pelo real e não mais pelos ideais de eu. É imanente e não mais transcendente. Prática constante, não remete mais ao Bem, ao Ser ou ao Nada, e sim à força (konstant Kraft). Mas por que, insistamos, a fala parece ser o veículo privilegiado e a expressão imediata de uma nova integridade? Será que ela é íntegra em si mesma? Seu campo é o da prática, e a integridade em questão, sinônimo de 195

consistência ou ainda de virtú (força, talento), é também de ordem prática. Um lapso de linguagem é um ato soberano em relação aos outros atos; sua consistência resulta do conjunto de razões que integra, e sua força, seu talento, se revelam na precisão com que passa a existir no momento oportuno. Há uma virtude tal do ato inconsciente, imprevisível, que por ele podem se retificar as relações do sujeito com o real, isto é, com seu princípio ativo. É em razão desse princípio ativo no seio do real que o imprevisível insiste como formação do inconsciente. Ainda que seja sob a forma da doença, a micro-língua é incontornável. Nossa essência desejante fala, sob véus ou esclarecida. Os graus superiores do dizer (ou da pulsão) são assim o pressuposto de todas as enunciações. Além da ausência de sentido e da ficção do todo, existe ainda um terceiro fator que, em Nietzsche, deflagra o niilismo no pensamento e na vida. Quando já se admitiu que o devir não tem finalidade alguma e nem é regido por um todo de onde os seres humanos retirariam o valor de sua existência, resta detratá-lo como ilusão, como erro, e postular, em contrapartida, um mundo supra-natural, verdadeiro, ideal. Mas ao se compreender que este mundo verdadeiro do além não tem fundamento, que foi concebido para responder a anseios demasiado humanos, sobrevém a forma mais avançada do niilismo – a negação e a destruição do mundo metafísico, a supressão da crença em um mundo-verdade. Não é mais possível interpretar o mundo e estimar o valor da existência por meio das categorias de finalidade, unidade e verdade. Elas foram úteis às perspectivas de conservação da vida humana e de seu domínio sobre o caos, mas não são em si mesmas verídicas. E no entanto, são as categorias da razão. Nossa vontade de verdade, dizia Nietzsche, ainda nos destruirá. Sim, porque verídico passa a designar, por um lado, um processo de devastação de tudo o que se construiu na ordem do ser, sem a devida atenção para os interesses que a vida teve em construir e ordenar o que chamamos de ser; por outro lado, o verídico indica que a verdade, enquanto é a forma do sujeito do conhecimento e da moral, se volta contra si, liberando uma potência escondida, desconhecida, “a mais alta potência do falso”, dirá Nietzsche, cujos sinais na superfície do mundo humano são aquela devastação. A crença nas categorias da razão e sua subversão dionisíaca são a causa, finalmente, do niilismo. Mas este é diferentemente apreendido conforme o plano em que se desdobra. Há um niilismo ativo, como já dissemos, ao nível pulsional, como há também, em outro extremo, um niilismo passivo, de cunho cultural, institucional, familiar, egóico, representativo, narcísico, e que anseia pelo fim: narcisismo e depressão em massa. Tudo é movido pela pulsão, mas em seus diferentes estágios, e de acordo com as figuras que adota em seu percurso nômade. Os diversos niilismos coexistem. Não se tolera o devir, mas 196

já não é possível esquivar-se a ele; e no entanto, ele é linha de fuga, desejo, produção. As formações do inconsciente são pequenos ensaios de fuga desejante, com seu teor de niilismo ativo em curso: o que sucede com a emergência irreprimível do lapsus linguae senão a destruição, mais ou menos bem sucedida, do discurso da representação, bem como a revogação – por momentânea que seja – da subjetividade familiar e institucional? Ao mesmo tempo ele é, como já vimos, o devir-sujeito da pulsão. A depressão e as figuras do narcisismo são, em contrapartida, a abstenção do exercício pulsional em graus variáveis, de n a zero. Ora, no que diz respeito à verdade, como antes em relação ao sentido, trata-se ainda dos usos. Qual o uso pulsional da verdade? Nesse trânsito, a questão da verdade sofreu mutações consideráveis. Numa primeira abordagem, dir-se-ia que ela mesma se tornou niilista, e que exprimiria, por fim, uma vontade de nada. E de fato foi associada à morte e à mulher (enquanto inexistência) nas digressões psicanalíticas. À medida, porém, que a pesquisa pulsional se aprofunda, ela adquire outro aspecto no campo analítico – torna-se intrínseca ao devir, ou seja, à pulsão enquanto prática constante. 226 A constância é essencial ao princípio ativo que caracteriza a pulsão. Esse princípio, que não existe senão em atividade, é a subjetividade e o saber do devir, e quer o devir tanto quanto quer devir ele próprio. Além de ser perspectivista, algo como a vis activa de Leibniz, esse princípio é um exercício, uma prática e uma determinação que pode se verificar ou não, e se verifica em diferentes graus. Opera como critério ético, pois descobre o vetor ativo em todo acontecimento; como começo, não havendo outro ponto de partida para a visão analítica, pulsional; e como virtude eficaz, à maneira do princípio ativo de uma planta ou de uma droga. É claro que ele é a verdade de todas as ações e reações, mas enquanto é ou não exercido. E, na medida em que é exercido, compreende um investimento em sua própria direção, tal como sucede ou deve suceder na práxis analítica. Assim como se deve tratar a noção de sentido, considerando a volta inteira pela qual, finalmente, sua natureza pulsional se esclarece, do mesmo modo se tratará o todo e a verdade: ao todo ideal sobrevém, de um ponto de vista crítico e realista, mas também político e ético, a parcialidade incoercível e, portanto, ao modo de um refluxo, a falta, a incompletude, a insatisfação – em uma palavra, a crise, ao seu tempo inevitável, do ideal de totalidade. Mas o que sempre se mostrou real, a diferença, que é o que positivamente aparece no 226

Lacan, no escrito Intervenção sobre a transferência, chama de “desenvolvimentos da verdade” o resultado imediato das reviravoltas dialéticas operadas por Freud no caso Dora. Desde a “retificação das relações do sujeito com o real” (mobilizada pela pergunta “qual a tua parte na desordem que denuncias?”), o discurso de Dora passa a ser orientado pulsionalmente (Escritos, op. cit., p. 214).

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lugar da falta, e obviamente no sacrifício, não terá ela sua própria integridade, não será ela essencialmente íntegra? Trata-se exatamente disto. A verdade, que se pretendia toda, passou a ser concebida como nãotoda. Esta figura lógica inventada por Lacan reproduz ainda o pretendido saber analítico de que toda verdade é apenas meia verdade, de que sempre fica um resto, não-dito e não analisável ao final de toda análise. Sob o nome de inconsciente, a verdade fala em análise (Lacan), mas fala e se desdiz, fala pelo avesso, fala de modo obscuro no sonho, no sintoma. Nessa meia verdade se exprime nada menos que a sacrossanta divisão do sujeito. Concluindo-se assim a história da verdade, perdemos de vista que ela envolve mais um giro, o derradeiro, a partir do qual a verdade não se distingue mais de um dizer íntegro. Afinal, nunca houve toda a verdade – senão como ideal – para que se falasse legitimamente de meia verdade, mesmo que esta pudesse ser constatada em inumeráveis casos. É que a experiência humana, trazendo a marca do ideal, compreende também a fissura, o corte que fará da divisão a verdade da experiência. Falamos anteriormente que a pulsão se aplica ao simples, isto é, à força, e que consiste em uma prática constante. Pois bem, um dizer íntegro ou inteiro é um dizer em devir. E não há nenhum paradoxo nisto. Nele está contida a força e o saber do devir, ou seja, sua potência, seu segredo. Ele mesmo é uma linha de força. Qualquer fato analítico dá provas disto. Tomemos, a título de exemplo, um caso célebre, o sonho da Injeção de Irma; sua análise abre a Interpretação dos sonhos, de Freud 227. Uma vez elucidado, o texto onírico se torna decididamente o dizer que é. Ou se trata da força de um dizer que se impõe, ainda obscuro, sob a forma do sonho... Um primeiro aspecto dessa força consiste em não esperar a “comemoração” 228; antecipa-se sob a forma do sonho e, com isto, antecipa os acontecimentos. Aqui se distribuem diferentes linhas de tempo, diferentes temporalidades, conforme se considera o antigo, o atual, o longínquo ou o intempestivo – de tal modo que uma força é um amálgama de tempos. Jung talvez chamasse o sonho antecipador de prospectivo, mas em Freud se resolve como realização de desejo. Eis então o segundo aspecto da energia do dizer onírico, imbricado no primeiro, e que consiste em seu efetivo grau de penetração pelos vários níveis da memória, reunindo-os numa transversal única, a transversal do desejo. O sonho abriga o dizer freudiano e seu destino, como um segredo ou um fruto que amadurece 229 . Toda a psicanálise, dizia Freud nessa época, estava ali, quase que 227

Obras completas, op. cit., vol. 1, p. 406. O sonho antecipa a festa de aniversario da Sra. Freud. 229 Ver, a propósito, a análise desse sonho retomada por Lacan, J., O seminário, Livro 2 – O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Zahar, RJ, 2010. 228

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inteiramente delineada. Máquina abstrata e suas linhas, seus diagramas, se quisermos usar os termos de Mil Platôs. Seja por meio das referências associativas à experiência desastrosa com a cocaína, seja na formulação de diagnósticos levianos e até desatinados, trata-se sempre do surgimento da psicanálise, de seus fundamentos e de seu futuro. O sonho é um combate: as mulheres que resistem e a que se entrega, os inimigos e os aliados. Freud, no sonho, quer vencer – mas vencer, note-se bem, é não abrir mão do devir psicanalítico. Nunca deixará de surpreender que a realização de desejo deste sonho inaugural é a descoberta, e sua confirmação em ato, de que a essência de um sonho é uma realização de desejo. Plano inconsciente em que o desejo e o entendimento são o mesmo. A descoberta não se distingue de um dizer que se desvela, implicando já o seu devir. Os níveis de memória reunidos pela transversal do desejo são também os diferentes planos em que se colocam as questões do devir freudiano e da psicanálise como tal no curso de sua criação. Discussões ocorrem em vários planos, envolvendo personagens do meio familiar e do ambiente científico-cultural de Freud. É notável como esses embates, que dizem respeito em última instância à psicanálise, ao savoir-faire de Freud, são intensamente afetivos, neles intervém o amor e a agressão, as rivalidades, os temores e as ambições. A análise é, em si mesma, uma espécie de purificação do entendimento, uma depuração de todos os sentimentos de maneira a esclarecer o desejo. Os erros passados de Freud, seus acertos são, por assim dizer, contabilizados. Uma série de saberes – é preciso acrescentar – afetivos, que têm sua origem em diferentes “lençóis” de memória, entram em ressonância, e toda a complexidade do sonho se resolve como um extrato, uma essência, uma resolução aguda, um dizer inteiro, cuja vigência não se distingue de seu devir. Onde este começa? Onde termina? Considerar ao mesmo tempo o dizer, o desejo e o devir dá claridade à proposição freudiana de que um sonho nunca chega a ser completamente analisado. Ou seja, aquele trio já compõe a última instância analítica (o juízo final) – a precisão em termos de inconsciente. Em outras palavras ainda, esse trio não pode ser por nada medido, precisamente por ser a medida das demais coisas. Um dizer íntegro é um ato e não um ser. Por isso o tema do inconsciente – e o da análise – como queria Lacan, é ético e não ôntico. É claro que esse ato evoca ao mesmo tempo o ser, a existência, uma vez que existir é agir na altura da pulsão. Mas o ser devém constante por sua ação constante, a qual se poderia chamar muito apropriadamente de sublimação. O dizer íntegro corresponde a uma integridade ou inteireza que abrange o acontecimento de uma vida inteira – é a verdade eterna desse acontecimento. Daí sua pertinência ao sujeito do inconsciente. “O sujeito”, dizia Lacan, “vai muito além do que o indivíduo experimenta subjetivamente, tão longe quanto a verdade que ele 199

pode alcançar”. Tão longe, aqui, quer dizer o grau intensivo pelo qual se esclarece um destino. Há, portanto, estreita afinidade entre o dizer, verificável no campo da análise e da vida humana como sublimação originária, e a interpretação analítica tal como a concebe Lacan, isto é, à maneira de uma adivinhação das linhas do destino. Desde que, bem entendido, se compreenda por linhas de destino e sua adivinhação o esforço pelo qual se chega, ainda nas palavras de Lacan, a “passar por esse lixo decidido para, talvez, reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real”. É sempre uma mesma coisa – a limpeza em questão, a precisão sublimatória, a adivinhação (ou interpretação) das linhas do destino e as próprias linhas do destino (ou do desejo). O caminho do campo pulsional conduz ao que se chama em psicanálise saber do gozo ou gozo do saber, ou melhor, ele é esse saber em curso, em ato, e como tal não se distingue mais do próprio desejo. Nunca é demais repetir que as noções correntes de saber e de gozo faziam parte do lixo: para que o saber e o gozo sejam uma única coisa, deverá haver um salto, justamente na direção do real-desejo. “Sempre sei, realmente. Só que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive”. Essa coisa inteira constitui o fulcro da experiência do eterno retorno em Nietzsche, mas também da pulsão em Freud. Retornar é devir e devir é tornar-se quem se é, mesmo quando se é uma dinamite. Mas isso não é senão retornar ao seio do devir e da vida – e é a este movimento, a esta prática e a este acontecimento, mais que a uma energia ou a um impulso, que se dá o nome de pulsão. É preciso dizer, no entanto, que a força, a energia pulsional consiste precisamente nesse retorno. Por isso afirmamos que o sentido da força e a força do sentido são uma e mesma coisa. O retorno é, ele próprio, o de uma inteireza, o de uma integridade. É na linha desse retorno que se coloca a questão da existência e dos graus de experiência que se pode fazer dela. Quanto mais se restaura a inteireza de um dizer, mais nítida e clarividente se torna a existência (“sempre sei, realmente”). Pareceria um contra-senso restaurar algo inteiro aos poucos, mas já falamos dos graus do real – é para isso, justamente, que serve o conceito de pulsão, para indicar algo elementar, feito de uma única peça, que se exerce ou não, podendo ser exercido em diferentes graus. É para situar o problema pulsional em termos éticos que falamos em graus de exercício, em graus do real. Mais uma vez, a pulsão é uma prática, uma prática do real – e não há outro real senão o dessa prática. Mas o que é essa prática, senão a do dizer? Reportar o real à prática pulsional e esta ao dizer pode parecer exorbitante, pode sugerir uma limitação, um estreitamento ou uma redução forçada e abrupta – do quê a quê? Convém ir devagar nesse assunto pouco esmiuçado. Por que a experiência do real de 200

que tratamos não é de preferência extática, silenciosa, e não se desenvolve além de todas as palavras? Assinalamos o caráter extra-pessoal da pulsão para dissociá-la de qualquer tendência narcísica, acentuando, em contrapartida, sua natureza sexual e ética. A pulsão compreende a existência de todos os outros além de nós mesmos. Graças a ela, portanto, podemos dizer que todo o sangue derramado no mundo é o nosso. E isso só é verdadeiro porque podemos dizêlo e o dizemos. É o caso do verbo encarnado. Ora, o que é o verbo encarnado senão o dizer? Porque é mesmo preciso chegar a dizer... Quem não estaria implicado nisso? Essa implicação ou complicação de todo mundo na encarnação do verbo faz com que Deleuze e Guattari falem de “agenciamentos coletivos de enunciação”, argumentando que uma enunciação jamais se reduz ao sujeito individual (“o sujeito vai muito além do que o indivìduo experimenta subjetivamente...”). O sonho de Freud é um agenciamento desse gênero, muitos estratos ideo-afetivos e diferentes temporalidades são convocados por um “movimento expressivo autônomo”, desprendido das coerções científicas, sociais e psíquicas de seu momento datado (23-24 de julho de 1895). A medida dessa autonomia, que era então imponderável, tornou-se visível nos dias de hoje? Ou seja, o dizer freudiano encontrou seu limite, já se consumou sua queda no ser, no dito? Nossas proposições acerca da pulsão investigam as potencialidades futuras do devir psicanalítico, trazendo ao primeiro plano os problemas da autorização analítica e das dimensões do campo pulsional. Pois, como se sabe, não é exatamente da origem que se trata – o que faz com que os psicanalistas se equivoquem sobre o desejo de Freud, sobre o fato de que restasse algo de não analisado na origem, “o pecado original de Freud”, como se expressou Lacan em dado momento –, mas do originário, tal como o concebemos clinicamente, e que exige, conforme o mesmo Lacan soube ver, a renovação constante da pergunta “o que é a psicanálise?”. Desde que lugar, então, se renova efetiva e constantemente essa pergunta? O desejo não analisado de Freud, afinal, não tem nada de misterioso – ele é a própria psicanálise, o dizer analítico. A psicanálise é sua interpretação. Sustentamos, portanto, a abertura do inconsciente evocando os critérios (= forças) pulsionais pelos quais a pulsão e o dizer são o mesmo. Esses critérios constituem o saber inconsciente, originário, da análise, e são apreendidos precisamente ali onde incidem no real, isto é, ali onde adquirem sua feição prática, ética, clínica...

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O TEMPO DA PULSÃO Embora o mundo se transforme com rapidez, Como formações de nuvens, Tudo, que se perfaz, retorna Aos tempos da origem. Sobre transformações e passagens, Mais amplo e mais livre, Ainda perdura teu prelúdio, Deus com a lira! 230

Precisa-se de tempo... É sempre um equívoco sobre a psicanálise pensar que ela se ocupa do passado ou da infância. Jung propôs um método sintético prospectivo ou teleológico para a apreciação dos dados simbólicos do inconsciente, contra a linha freudiana baseada na análise (decomposição) e na regressão aos fatores causais. Não se trata apenas, segundo ele, de um desejo infantil na origem de toda a produção onírica, mas de um fim a que todo o processo psíquico, ou algumas de suas vertentes, tenderia em face de tudo o que transcorreu até o momento e de tudo o que a nossa percepção, sobretudo a subliminar, inconsciente, permite esboçar quanto ao que está por vir. O psiquismo reagrupa os dados antigos, integra-os e investe nas disposições atuais, visando a ação futura. O procedimento analítico, por sua vez, deveria aliar-se aos movimentos do inconsciente e, por se tratar de um processo vivo, adquirir ciência de suas tendências, de seu curso, de seu sentido teleológico 231. Jung estaria certo em sua oposição se a análise não fosse desde a origem análise do futuro, apesar de seus praticantes raramente terem disto uma noção clara. O passado em psicanálise é pensado em sua atualização constante, é memória viva, de outra forma não teria o menor interesse: a infância não é apenas o lugar de uma inibição e o objeto de uma nostalgia, ou ainda a fixação de uma pretensão primitiva, irreal; ela é uma alegria e um futuro, um devir. Aquela atualização, inevitável e em grande medida inconsciente, ganha uma consistência operatória suplementar por meio da transferência, fenômeno clínico em que o sujeito torna presente e vivencia, aqui e agora, uma certa relação estrutural com o Outro que permeou sua experiência de vida até o 230

Sonetos a Orfeu, op. cit., p. 57. Jung, C. G., O eu e o inconsciente, p. 7, 9 e 10, Vozes, Petrópolis, 1987: “O sonho é portanto um produto natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas de certas tendências básicas do processo psíquico. Este último, como qualquer outro processo vital, não consiste numa simples seqüência causal, sendo também um processo de orientação teleológica”. 231

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momento, escolhendo a pessoa do analista como representante privilegiado desse Outro e receptáculo de seus traços, inclusive e especialmente como aquele que sabe, isto é, como sujeito do inconsciente. Entende-se assim que a análise transcorre na transferência, pois caberá ao analista, desde então, interferir de modo a que o campo de relação com o Outro (que inclui tanto o ambiente simbólico e cultural como o estranho em si próprio, o que denominamos de pulsão) se reabra a novas possibilidades de experiência, e os dados sintomáticos sejam revertidos em favor das condições originárias, pulsionais. Essas condições atualizam um poder de avaliação que se diria constante, se fosse exercido; e na verdade é, mas de maneira obscura, tanto que é possível reencontrá-lo: ele se insinua, irreconhecível, nas palavras e nos atos, induzindo a formação dos chistes, dos lapsos, dos sonhos, dos sintomas... Os indícios desse poder, no entanto, são os de um devir das condições originárias que insiste e se anuncia, já próximo ou ainda longínquo, de tal maneira que o tempo de esclarecimento das formações do inconsciente coincide com o esclarecimento progressivo do tempo como tal, isto é, do tempo que concerne àquelas condições. Também o tempo é uma questão de prática. A fala, ao longo de sua duração, é sem dúvida uma formação do inconsciente; prova-o a escuta analítica, que não pára de instigá-la com seu “vazio”. Conforme o conselho de Schiller a um jovem poeta que se queixava de improdutividade, uma palavra após a outra, emitidas assim ao acaso, sem que o espírito crítico iniba seu fluxo, podem oferecer ao cabo de um tempo um conjunto nada desprezível de idéias, e mesmo uma fina trama de sentido que a princípio não se poderia conceber nem visualizar 232. A análise, como cada um de nós, precisa de tempo. Se existe uma função da pressa no tempo lógico 233, ela se insere numa paciência que, no curso da análise, é a expressão maior do tempo que dedicamos à redescoberta do tempo – ou da pulsão. Como diz Riobaldo, “o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”. 234A avaliação pulsional, medindo e estimando os estados pelos quais um sujeito passa, decifra-se ao longo de um tempo, e esse processo corresponde à análise como tal. Mas o decifrar, em si mesmo pulsional, se aprofunda e se refina numa arte 232

Freud o menciona no início da Interpretação dos sonhos, ao discorrer sobre o método da livre associação. Obras completas, op. cit., p. 410. 233 Cf. a noção de tempo lógico desenvolvida por Lacan em O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, em Escritos, op. cit., p. 197. 234 Grande Sertão:Veredas, op. cit., p. 21 e 22.

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divinatória, imprecisamente chamada de interpretação, ao trazer à superfície as linhas ocultas de um destino, isto é, de um devir. Essas linhas eram e são linhas ativas de entendimento, elas mesmas são feitas de luz e ato, são um fiat... O devir é uma clareza que se experimenta, uma lucidez que se conquista: a análise sempre foi análise do futuro. Uma jovem mulher se aborrece e se desconcerta, intrigada, com o sintoma físico de que sofre ainda, que persiste como corpo estranho paralelo à sua vida, quando todos os outros males parecem eliminados pela análise. Experimenta um novo momento, abrem-se perspectivas, projetos que antes não pareciam viáveis podem agora se concretizar. Resta aquele incômodo inqualificável, pois já não se sabe se de ordem biológica ou psíquica. Neste último caso, que outros esforços seriam exigidos dela? Uma hipnose talvez? Afinal, até o presente a análise não teve o poder de curá-la daquele resto enigmático. Apesar de questionar essa idéia, pois conhece a origem da psicanálise e distingue com precisão os dois métodos, aflige-a pensar que é culpada por permanecer neste estado, que não quer curar-se. Buscar outro expediente, outra terapêutica, seria fazer alguma coisa. Mas não tem certeza de que a análise seja inútil para tratar do sintoma remanescente, quem sabe precisasse de tempo. O sintoma físico é uma diarréia, e acarreta o sentimento de algo que está fora do seu alcance. É o que fez evocar a hipnose como recurso derradeiro, um poder de exploração e de controle do Outro. Teve alguma outra crise de diarréia no passado? Não teve senão esta, prolongada, que começou a dois anos, a partir de uma série de perdas afetivas que se deram quase ao mesmo tempo. É possível fazer analogias com a idéia de uma coisa que se esvai, que não se tem meios de reter, de perdas sobre as quais não se teria mais alcance, e assim com um sentimento de causas perdidas. Será que ela ainda deplora aquelas perdas? Avançar significaria deixá-las para trás? Será um traço de melancolia? O devir é um real que empalidece a importância das coisas perdidas e vai sempre além das tristezas. Mas como se chega a ele, para que ele, por sua vez, possa sobrevir? É preciso apagar os vestígios dos amores abandonados, rasurar a memória, ignorar as cicatrizes? Os amores passados são relações, envolvem um modo de ser, um eu, e são esses conjuntos amorosos, com seu teor narcísico, que resistem às novas condições: a permanência do sintoma físico à margem da vida. Não é a memória dos amores que impede a experiência do devir, pois memória e devir fazem um; o que a impede é a fixação narcísica e a melancolia que dela resulta, com seus efeitos deletérios. A frase “todos os esforços têm sido vãos”, que ela utiliza com freqüência e num certo tom de desespero, evoca os amores perdidos e a morte; já a frase “é talvez uma questão de tempo”, enunciada como reflexão, fala da vida e do futuro. Na primeira disposição subjetiva o poder do tempo 205

desaparece, na segunda readquire sua força intempestiva, divinatória. Pode-se objetar que certos processos devem mesmo encontrar um termo, sob pena de não traduzirem mais que uma obstinação neurótica. Mas as alternativas não são equivalentes, não dependem, exceto por deslize ético, da preferência do analista. Elas coexistem em diferentes alturas do tempo, de tal modo que cabe perguntar, em atenção ao caso, se houve tempo suficiente para chorar as perdas e superá-las. O tempo se amplia, cresce, se aprofunda, alcança a infância. Ela tinha muitos irmãos e muitas tarefas na infância, de modo que não dispunha de tempo, exceto quando ficava doente: podia então se dedicar a si mesma e ainda obter que o Outro, a mãe, seu mais remoto amor, dispusesse de tempo para atendê-la. O analista é a mãe? Sim, a que ouve para além da doença, para além desse conjunto amoroso que poderia ser designado de mãefilha doente e que a analisanda reluta em abandonar de vez. Lembremo-nos de que ela vive um momento novo, voltada para as tarefas que elegeu como suas. “A morte”, dizia Ginsberg, “não é senão a quebra de uma dimensão familiar”. O além da doença é o tempo reencontrado, a infância indestrutìvel. Todos os tempos se atualizam na redescoberta progressiva do tempo. A noção de inconsciente, que ao evocar outra cena evoca sempre outro tempo, deve servir a esse reencontro. Como dissemos acima, memória ativa e devir são o mesmo. O fim a que tende o processo inconsciente é o começo de tudo, e o que afasta o sentido teleológico, desta vez contra Jung, é o fato de que este retorno às condições originárias não é natural, é não-natural, o que não significa que seja contra-a-natureza. Ele é de natureza ética. O tempo da análise é o tempo de um saber prático “Muito bem dito, respondeu Cândido, mas temos de cultivar nosso jardim.” 235

O tempo é sempre o tempo de uma encarnação, seja esta de uma idéia, de um pensamento ou de um afeto. É indissociável de uma prática. Assim, a paciência e o tempo ampliado de uma análise não incentivam a inação, não subscrevem a inércia de saberes que não teriam conseqüências reais. A tendência a se considerar a análise apenas como tomada de consciência das condições neuróticas ou perversas em que vivemos, uma espécie de resignação com conhecimento de causa, uma admissão, por exemplo, de nossa falta constituinte, ignora que esta falta constitui a neurose e é, como este seu rebento indigesto e no entanto cultivado como o melhor dos mundos possíveis, o índice afetivo e estrutural, permeado de angústia e capaz de comprometer nossa razão, de uma prática que não se verifica. O inconsciente é assim uma 235

Voltaire, Cândido, p. 135, Abril, 2010.

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insistência no não-dito pela simples razão de que seria preciso dizê-lo, e por isto esta insistência já é um dizer obscuro, truncado, pobre, esgarçado, mas é mesmo assim uma inquietude, um rumor no escuro. Nada acontece, porém, na direção do inconsciente, na altura em que aquele dizer se engendra, se não houver um passo na vida real e não apenas no intelecto; e ao dá-lo, novos problemas e temas, que se distribuem em diferentes alturas do tempo, que podem ser muito antigos, encontram a ocasião de avançar ao primeiro plano, como um inesperado sítio arqueológico que se desencava, exigindo, por sua vez, uma consciência prática conseqüente com o novo avanço da pesquisa. A imagem do sítio arqueológico não deve nos enganar sobre a natureza do que se encontrará ali; não objetos, utensílios, ornamentos, ossaturas, sob a forma de representações, mas atos, atos de percepção, afetos não realizados, pedaços de dizeres e dizeres íntegros. Desde sua primeira definição, a pulsão é uma exigência, e sua “força constante” se esclarece como prática constante. E tal é de fato a sua força, pois os graus em que os problemas se graduam no tempo, na memória, são graus de poder, de força – de agir, de realizar, de pensar. A graduação da memória e o devir da força pulsional constituem um mesmo processo: sublimação. Por isso, como dizia Leminski, é preciso toda uma vida para fazer um poema, entendido que toda uma vida não se resolve como história, mas como intensidade. Seu tempo não é o cronológico, mas o intempestivo. As medidas do tempo A expressão “o tempo da pulsão” deve ser lida em vários sentidos, pois se aplica aos diferentes desdobramentos do tema. Diz respeito ao tempo próprio da pulsão, aquele que convém à pulsão ou, ainda, que é determinado por ela; além disto, designa algo próximo ao Kairós dos gregos, o tempo oportuno, o momento da pulsão. Sim, vários sentidos são convocados aqui, e diferentes graus, porque não é a mesma coisa falar de um tempo que é determinado pela pulsão e de um tempo que convém ou que corresponde a ela. Não são contraditórios ou excludentes, mas modalidades distintas de apreensão conceitual e de experiência. O que faz toda a diferença neste caso especial é o estágio da pulsão. Em outras palavras, é a pulsão que dá acesso ao tempo que lhe corresponde, mas seu exercício pode não ter alcançado ainda esse estágio, que denominaríamos de estágio da cura. Se digo que o tempo corresponde a ela, é porque tempo e pulsão fazem um nas condições originárias; mas se o tempo é determinado pela pulsão, tudo dependerá do estágio em que a pulsão é exercida. Repetimos: o tempo também é uma prática, remete à pulsão e ao seu exercício. Temos, por assim dizer, o tempo 207

que merecemos, de acordo com o exercício da pulsão. É que a pulsão, como foi visto até aqui, definindo-se como modo de subjetivação, graduação da existência e saber prático, é imediatamente expressão, dizer, sublimação em diferentes estágios. Todas as glórias e perigos se perfilam ao longo do horizonte pulsional. É um circuito em retorno (Freud, Lacan), mas o que nele retorna depende do grau de exercício da pulsão, para o qual concorrem – e isto é decisivo – os meios de que ela se serve, bem como os modos de captura em que ela se precipita. O termo “se precipita” é pertinente, pois sugere uma adesão subjetiva (=afetiva) fascinada aos ardis pelos quais a pulsão deixa, finalmente, de ser exercida. Tomado em uma espécie de bruxaria, para falar como Artaud, o processo pulsional se retorce e se transforma em pulsão de morte. Não se trata, porém, de transformar um processo dessa ordem em uma vítima de poderes implacáveis, não há inocência ou ignorância nesse campo, pois os ardis se armam e se tecem com falhas éticas. Em Monsieur Klein, de Joseph Losey, assistimos com perplexidade crescente o devir judeu de um não judeu em Paris, durante a ocupação nazista da cidade, em 1942. O senhor Klein é um cidadão francês de início alheio aos dramas da guerra e da discriminação racial, é um comerciante de obras de arte movido pelo dinheiro e o luxo. Mas tem algo nele, uma violência muda, que contrasta com as atitudes superficiais e descomprometidas. A referência de passagem ao Moby Dick de Melville insinua, para além da percepção imediata de um diletantismo literário do personagem, a idéia de alguém que vai às últimas conseqüências do seu desejo. Essa violência suspensa, parada, destacada por Deleuze, e segundo ele encontrável também em certos criminosos de Genet, reflete uma honestidade de fundo irremovível, a nuvem carregada e o raio iminente. O que desencadeia essa comoção de fundo no personagem é a presença-ausência quase onírica de um outro senhor Klein, reconhecido como judeu e que, misteriosamente, se desloca, desliza, deixando pistas e confundindo as identidades sociais de ambos. Para sermos breves, diríamos que estamos diante de um devir autêntico, pulsional, porém lançado em estranhas vicissitudes no que se poderia chamar, com Deleuze, de meio derivado. Não é improvável que a pulsão se converta em pulsão de morte, posto que assume “el siniestro”, o outro enquanto devir minoritário, usando ainda termos de Mil Platôs. Daí o perigo de que a obscura assunção se converta em tendência para a morte ou coincida com ela. É que o destino da pulsão, assimilada ao meio derivado, se define como volta contra si. A razão disto é simples: em sua potência ativa, em sua diferença absoluta e irredutível não-senso, a pulsão é o fora do meio derivado. É originária, cósmica, real. Por isso Lacan disse algo definitivo: “a civilização é o lixo”. A pulsão só não se converte em pulsão de morte quando alcança sua feição real, sublimatória. 208

Alcançá-la, contudo, não garante nada além de alcançá-la num instante, pois em seguida tudo depende de se poder mantê-la, conservá-la ou conservar-se nela. Neste caso, como já dissemos antes, deve-se contar com a firmeza, a tal ponto que a firmeza faz parte do conceito de pulsão; é sua mais inequívoca expressão ética. Lacan soube enunciar essa ética dizendo, primeiro, que ela consiste em não se abrir mão do desejo e, segundo, que é uma ética do bem dizer. Somos assim lacanianos, para além das escolas. Prosseguindo: todo plano que não é de sublimação, que não é de indeterminação, é plano de realidade ou meio derivado, plano menor do ponto de vista pulsional, e a pulsão só pode se realizar nesse plano menor, ou através dele, sob a forma da volta contra o eu. O eu aparece como o que deve ser suprimido, na medida em que a pulsão se vê capturada, por assim dizer, pelo meio derivado. O eu, na duplicidade que lhe é própria, isto é, sob uma de suas faces, não deixa de representar a pulsão no meio derivado – por isso se qualifica rapidamente como bode expiatório, destinado ao suplício 236. Poderíamos evocar, a propósito dessa captura por identificação, um processo diretamente clínico, de clínica psicanalítica, tal como foi destacado por alguns autores, especialmente da escola inglesa. Trata-se da identificação projetiva, a qual pode se exercer, eventualmente, sobre a figura do analista, como parecia acontecer no caso de Ivan e de suas sessões-palestras. As sutilezas da transferência e da contratransferência, enquanto sustentam a análise, encontrariam assim seu limite a partir de um movimento que, justamente, não envolveria mais o analista, senão como receptáculo silencioso de uma projeção inteiramente atribuível ao paciente. A conseqüência dessa identificação projetiva é a neutralização do analista, como se fosse colocado fora do campo de articulação possível com a alteridade. Tal processo começaria por dificultar, travar e finalmente inviabilizaria a análise, não fosse a contratransferência originária ou primordial do analista que o situa em uma margem de exterioridade apta a traçar, a cada vez, os limiares móveis do campo analítico, no qual a identificação projetiva, por mais extensiva que seja, figurará como uma possibilidade provocada pela virtude mesma desse campo. Já dissemos que o campo analítico se esclarece pelo pulsional, pois é neste que reside a margem de exterioridade que decide pela natureza e pela potência 236

Considere-se, aqui, o masoquismo, a volta sobre o eu, inclusive sob o aspecto do masoquismo primordial, pelo qual Freud postulou a pulsão de morte. Como deve ser entendido? O circuito em retorno da pulsão, enquanto dobra, tem em vista seu próprio exercício – é nisto, aliás, que consiste a satisfação. O ideal, porém, toma o lugar desse alvo originário. Transformado em objeto da pulsão, o eu mescla-se com o alvo, introduzindo no seio do movimento pulsional a lógica mortífera, a saber, a idealização do eu, tanto sob a forma do eu ideal como do ideal de eu. Como Deleuze soube mostrar, a primeira modalidade de idealização do eu diz respeito ao masoquismo, a segunda ao sadismo (cf. Sacher-Masoch: o frio e o cruel, op. cit., p. 109 em diante).

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daquele. É a margem de desejo indômito, não capturável, reservada e conservada pelo analista que dá a medida de sua imunidade à identificação projetiva que, de outro modo, neutralizaria sua possibilidade de agir. É essa margem, note-se bem, que causará a transferência do sujeito com seu próprio processo, a ponto de não ser mais alcançado pelas identificações hipnóticas e garantir, com isso, o passo existencial, a vida desejante. É óbvio que a identificação projetiva, sendo defesa contra a diferença, tem na pulsão o seu alvo. Ora, antes de mais nada a pulsão é a escuta analítica. Não encontrando onde se fixar, posto que o analista se tornou o fora de toda identificação, aquela defesa entra em colapso, perde sua função de fechar o inconsciente e neutralizar o dado pulsional. Neste momento, a pulsão se torna novamente o alvo eventual e visível das identificações projetivas que já se encontravam em curso, que foram originalmente mobilizadas sobre o próprio sujeito e sucumbiram, por fim, aos recalques secundários. Dizemos secundários porque o originário consistiu na identificação projetiva mesma, incidindo sobre o processo pulsional. Essa espécie de recalque originário é como que a essência dos diversos processos de identificação, cujo destino último consiste em paralisar o movimento pulsional. O retorno do recalcado, na medida em que retorna, quase invariavelmente, nas condições dadas do recalque originário, cai sob novas modalidades de identificação, de modo que o recalcado originário se torna cada vez mais obscuro e inacessível. Mas o que é aquele movimento em sua origem real? A determinação ética da diferença, entendendo-se por determinação tanto o caráter imperioso do processo quanto o esclarecimento da diferença. E isso porque a força do processo e sua inteligência imanente, em grande medida ocultos, são indissociáveis. Ora, seguindo essa analogia com o dispositivo ético da análise, pensamos que o eu deve ser ultrapassado pelo movimento pulsional na medida mesma em que a pulsão é o futuro do sujeito, seu devir. O sujeito do inconsciente designa a constância desse devir pulsional. O que acontece, então, quando a pulsão deixa de ser exercida, quando seu exercício vacila, quando ela deixa de se exercer? Isso, aliás, só pode acontecer porque ela foi separada (ou separou-se) do que ela pode, isto é, de seu próprio exercício. Como isto é possivel? A pulsão deixa de ser exercida ou separa-se do que pode quando é submetida a um processo de identificação. Não se trata de uma submissão inevitável, sob o domínio de forças que são, de modo geral, de magnitude superior à dela. Há uma decisão em curso, por obscura que seja, que opta, em tal momento, pela identidade, em detrimento da diferença. A pulsão, repetimos, é de consistência ética. Todos os traços da pulsão precisariam ser atualizados ao mesmo tempo, o que podemos simplificar dizendo que ela é diretamente princípio, potência e prática. Não se deve 210

esquecer que a pulsão é, ao mesmo tempo, ato e destituição subjetiva sempre a ponto de ser renovada; ou ainda, renovação prática, isto é, em ato, de uma perspectiva vital. Assim, se o movimento pulsional ultrapassa o sujeito e é o seu futuro (devir sujeito), ao mudar de forma o sujeito inicial, sob o juízo que decide seu limite, deve encontrar a morte. A mudança de forma se engendra no curso do imprevisto, do inusitado, do novo, e é aqui que o juízo, clinicamente observável na identificação projetiva, incide com a maior intensidade. Força clínica de Artaud, ao perceber que Van Gogh se torna um “suicidado da sociedade” exatamente quando chega a ser e saber quem era 237. É o dado trágico, a partir de certo ponto incontornável, mas não absolutamente necessário desde o início. A arte, a análise, são nossas modalidades de luta e de salvação constante. Pensamos que seja por sua imersão, todavia inevitável, no meio derivado, e apenas nesta medida, que Nerval, Van Gogh, Artaud perecem, cada qual à sua “maneira derivada”, seja pelo suicìdio ou pela loucura. No caso de Artaud, mostramos que a infusão de elementos da mística cristã em sua experiência dos limites teve por efeito a confusão dos espaços e um destino de alienado por nove anos, o espaço liso (= saúde) só podendo ser efetivamente conquistado com o discernimento progressivo da nociva infusão e o seu rechaço – “não fui ao México para encontrar Jesus Cristo, mas para encontrar a mim mesmo”. A tarefa analìtica é, certamente, a de reencontrar a cada vez o idioma indígena, ou seja, os fluxos vitais que são diretamente fluxos de linguagem. Quando Deleuze diz que “o meio real, atual, é o veìculo de um mundo que se define por um princípio radical, um fim absoluto, uma linha de maior inclinação” 238, deve-se extrair dessa proposição duas conseqüências distintas. Primeiro, que o mundo pulsional adquire o aspecto de fim absoluto mediante o meio no qual se encarna: “o mundo originário não existe independentemente do meio histórico e geográfico que lhe serve de veículo. É o meio que recebe um princípio, um fim e sobretudo uma inclinação. É por isso que as pulsões são extraídas dos comportamentos reais que ocorrem num meio determinado, das paixões, sentimentos e emoções que os homens reais experimentam nesse meio. (...) A um só tempo: o mundo originário só existe e opera no fundo de um meio real, e só vale por sua imanência a este meio, cuja violência e 237

Artaud, A., Oeuvres completes, vol. XIII, Van Gogh le suicidé de la société, p. 20, Gallimard, 1974: “Et où ést dans ce delire la place du moi humain? /Van Gogh chercha le sien pendant toute sa vie avec une énergie et une determination étranges,/ et il ne s‟est pas suicide dans um coup de folie, dans le transe de n‟y pas parvenir,/ mais au contraire il venait d‟y parvenir et de découvrir ce qu‟il était et qui il était, lorsque la conscience générale de la société, pour le punir de s‟être arraaché à elle,/le suicida.” 238 Deleuze se refere aqui ao “mundo originário das pulsões” (Cinema – imagem movimento, op. cit., p. 157). Já observamos anteriormente que não há correspondência direta com os termos que utilizamos (originário, pulsão), uma vez que nesse texto de Deleuze tais termos são relativos ao que chamamos de imagens da pulsão e do originário, distintas de uma visão pulsional, originária.

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crueldade revela; mas, também o meio só se apresenta como real na sua imanência ao mundo originário, tem o estatuto de um meio „derivado‟ que recebe do mundo original uma temporalidade como destino”. Assim, o que Deleuze chama de originário, fazendo-o coincidir com o domínio das pulsões, carrega consigo os destroços do meio derivado, já é o próprio destroçar que ruge no fundo desse meio, desfazendo-o em esboços, pedaços, membros dispersos, e conduzindo tudo, feito pulsão de morte, a um grande campo de lixo ou pântano. É o tempo de Cronos. 239 A segunda conseqüência, no entanto, é que essa é apenas uma imagem do campo pulsional e de seu tempo, é a versão do meio derivado para aquilo que o subverte e conduz à dissolução. Só apreende do originário as imagens que a si próprio se oferece, só o experimenta, portanto, a partir de seus próprios critérios não pulsionais. Ou seja, o que Deleuze chama de meio real capta as forças que o atravessam como potências diabólicas de fragmentação, de desmembramento violento, de de-subjetivação forçada e de estigmatização terminal (o bode expiatório) anunciando, no limite, a sua extinção. O deserto bíblico, sem nome. Neste ponto, porém, damos um passo além da concepção de pulsão proposta por Deleuze em Cinema – imagem-movimento, não sem registrar que essa concepção “derivada” não é, certamente, a última palavra de Deleuze sobre a vida pulsional 240. É toda uma revisão da noção de pulsão parcial que precisaria ser feita, a fim de situar devidamente o problema das pulsões. A vinculação do pulsional ao orgânico – isto é, às zonas erógenas, às bordas dos lábios, do ânus, etc. – e sua determinação como parcial (e de morte), decorrem de uma tomada (no sentido de uma tomada de cena) da pulsão no que Deleuze e Guattari chamam de espaço estriado – geométrico, orgânico – onde ela aparece, sem dúvida, destacada do organismo – é este órgão, esta borda, esta função – sem deixar, no entanto, de se reportar a ele segundo uma versão perversa, ou seja, como transgressão. A lei é a do organismo, que a pulsão não cessa de transgredir. É que ela é vista pelo prisma da lei orgânica e se move no interior de um espaço estriado – a père version. A pulsão de vida, porém, não é parcial, e nem propriamente localizável, fixável a este ou aquele processo orgânico. Ela é nômade, inorgânica, processo por excelência. “Se tudo é vivo, não é porque tudo é orgânico e organizado, mas ao contrário, porque o organismo é um desvio da vida” 241 O originário, sob este aspecto – o “naturalismo” –, não se separa do meio derivado, a ponto de Deleuze dizer que ali onde a separação existe não 239

Cinema – imagem-movimento, op. cit., p. 158. Ver, a propósito, nota de rodapé nº 99, p. 68. 241 Lógica da sensação, op. cit. 240

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estamos mais no naturalismo, conforme o exemplo de Pasolini. Isso não impede, no entanto, a apresentação de uma imagem da pulsão em Pasolini que em tudo a aproxima da pulsão de morte. Se este autor não se põe a diagnosticar as condições de nossa civilização pela exploração de seus sintomas, de seus ídolos e fetiches 242, como acontece ao naturalismo de Buñuel e Losey, parece apostar, em contrapartida, numa transformação da cultura, numa revolução saneadora – sendo a pulsão o veículo destrutivosaneador. Ainda aqui, porém, a pulsão não será compreendida como criadora de novas condições de vida. Pasolini professa uma espécie de retorno estético ao trágico. Assim, em ambos os casos, no sintomatológico ou no trágico, é o poder de dissolução que caracteriza o processo pulsional. E no entanto, tomado em si mesmo, esse processo não tem fim. Aliás, é o único que não tem fim, ao modo de Dioniso, que se torna por isso mesmo medida ou, como quer Nietzsche, juiz. Diga-se de passagem, não foi em O processo que Kafka descreveu um devir da pulsão como tal, mas em O castelo, seu último romance, cuja chave consiste, talvez, em não ter um término. Freud evoca igualmente essa dimensão meta-psicológica do tempo ao propor uma análise interminável. Mas vejamos em detalhe, do início ao fim, o estranhamento progressivo de Monsieur Klein. À medida que se torna mais nítido, o devir estranho a si mesmo adquire também uma tonalidade mais sombria, e se precipita para um término, algo paradoxal, de uma discriminação que apaga as particularidades, votando o dejeto não-humano ao indiferenciado – o trem de uma raça espúria e condenada. Se é verdade, como diz um personagem de Godard, que “todos nós estamos rodeados de sonhos invisìveis”, alguns desses sonhos são verdadeiros pesadelos, e ameaçam, igualmente, a se atualizar. No interior de um dos vagões providos de grades, logo atrás do senhor Klein, acha-se o judeu de quem ele comprou, logo no início do filme, o quadro de um pintor holandês. Klein se aproveitara da situação, oferecendo um valor bem abaixo da qualidade da obra. Com seus recursos se extinguindo, o judeu não teve escolha. Como foi possível a Klein, que parecia tão distante daquele destino desigual, juntar-se finalmente à massa de judeus e desaparecer? Não estava mais sob a pressão de um poder exterior, pois ele próprio já fora muito além das investigações da polícia nazista. Era impelido por uma força irresistível, não-identificável, e seguia agora pela mesma linha de seu duplo incógnito. Na última hora, seus amigos influentes obtiveram os documentos que o protegeriam, mas ele simplesmente os ignorou.

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Cinema – imagem-movimento, p. 159.

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De todo o seu acervo, apreendido em dado momento pela polícia graças às confusões com o duplo, conservou apenas o quadro do pintor holandês, com o qual se identifica cada vez mais. Teria havido na vertente holandesa dos Klein algum sangue judeu? Seu pai descarta essa possibilidade, mas ela repercute, ao longo das investigações de Monsieur Klein, com as aparições do quadro, cada vez mais carregado de enigma e afeto. Esvaziou-se inteiramente de seu valor financeiro inicial para adquirir, em troca, o sentido de um vaticínio. Por que Losey repete a aparição dessa pintura holandesa nas cenas, espécie de fetiche, ou mais precisamente de objeto a, a encarnar uma latência de valor e gozo prestes a irromper em cena? Sua potência afetiva insiste em se efetuar, emitindo o signo de uma revelação ruinosa. A ficção se adensa, ganha foros de verdade. Losey faz do quadro uma dobra do cinema, e deste a linha de fuga de um declínio inesperado, irresistível, para o qual aflui todo o meio derivado. O judeu, que no início renuncia à posse do quadro, e sobretudo Klein, que o compra por cobiça e indisfarçável cinismo capitalista, indiferente ao anti-semitismo circundante, parecem pressentir que suas linhas de fuga ou de desejo se conjugam em algum ponto, ali, precisamente, onde começam a se mesclar com a linha da morte. O meio derivado não é criador, de tal modo que o desejo, quando assumido – e Klein não mais abrirá mão dele –, se confundirá, nesse meio, com uma deriva para o fim. A confusão decorre da imagem que recebe do meio derivado; na verdade, uma quase não-imagem, um negativo do que deve existir, sempre acompanhado de uma solução final – a identificação (ou extinção) projetiva. Quando falamos em linha de fuga ou de desejo, pensamos em procedimentos, em práticas de imanência e em seu teor ético. Podemos afirmar, seguindo Deleuze, que Monsieur Klein tem acesso à mais perturbadora das assunções: ao ingressar no comboio da raça espúria, desumanizada, encontra-se mais próximo do seu desejo que antes, quando ainda não havia começado sua investigação obstinada e algo psicótica. É um Édipo, e seu destino trágico parece dosar, no ato final, o terror com a santidade 243. Já está morto e, no entanto, nunca esteve tão próximo de si, do começo, da força (o caso Van Gogh). Mesmo assim exprime o destino da pulsão no meio derivado, adotando imagens e recursos derivados. É a este embate entre a pulsão e o meio derivado, precisamente ali onde se mesclam, 243

Cf. algumas observações de Lacan a respeito do santo, ao situar a condição de analista. “O santo, para que me compreendam, não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade”. Lacan joga com o termo décharité e déchet (dejeto). Não se espere do santo nenhuma expectativa de recompensa, e mesmo de gozo. Ele “está pouco se lixando” para isso; inclusive, “lixar-se para a justiça distributiva é, muitas vezes, de onde ele partiu”. Outros escritos, op.cit., p. 518 e 519. Como não ver que Monsieur Klein se movimenta nessa direção, na qual se poderia ver, com Lacan, uma saída do discurso capitalista, depois de sê-lo do discurso fascista? No filme de Losey, porém, a saída em questão sucumbe com o meio derivado.

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se misturam, que se deve atribuir o caráter trágico da existência, com suas soluções finais, seus final cuts. Édipo, entretanto, vai além. Cego, perambula longe das cidades, no exterior, fora de tudo, de onde extrai uma vidência que os reis de Tebas e Atenas não alcançam. Depois de Orfeu, será o único mortal a entrar vivo no Hades. Esse privilégio dá a medida do desejo e do saber em jogo, bem como a dimensão de tempo correspondente. É dessa outra temporalidade que advém a lufada de ar existencial que chamamos de pulsão, por mais estranho que isso possa parecer ao nosso hábito positivista, no qual Freud mesmo recaiu, apesar da psicanálise – de localizar a fonte da pulsão nos processos somáticos. Como costuma acontecer, o novo encontrava apoio no mais estável e conhecido, neste caso, no dado científico inquestionável do elemento biológico. Precisava de uma imagem que neutralizasse, em certa medida, a impressão de estranheza que a vida inconsciente suscitava, tendo em vista que essa estranheza, olhada de frente, escancarava um abismo. Ora, o recurso à pulsão tem o sabor do combate, pois nada parece mais tentador que desconhecer sua estranha vitalidade – enquanto conceito, enquanto prática, enquanto acontecimento. Sim, existe algo de inquestionável na pulsão, mas na medida em que ela própria é colocação em questão, e isso em nome da potência de colocar em questão – o que remete à indeterminação originária. Mas se o originário, mesclado ao meio derivado, afeta-o de uma temporalidade que é a de Cronos, que espécie de tempo não receberia mais sua determinação de um fim, e nem por isso se confundiria com a eternidade? É o intempestivo. Ora, a psicanálise não é outra coisa que a descoberta do intempestivo em ato, na vida cotidiana. Na verdade, a descoberta do intempestivo em ato não é senão a da pulsão. Ambos fazem um. Falamos de descoberta, mas se trata de uma conquista e, mais profundamente, de uma prática. Nietzsche concebia outro ponto de vista, outra altura do tempo, pelo qual a vida contemporânea pudesse ser lida e avaliada. Se este outro ponto de vista é sintomatológico, trágico ou criador, isto se deve ao deslocamento da pulsão, ao seu nomadismo em relação ao meio derivado e à sensibilidade deste meio a ela, com o cortejo de identificações projetivas que a cercam a cada passo do seu trajeto desviante. O movimento pulsional compreende, portanto, uma verdadeira prática à altura do intempestivo. É o que nos dizem em Mil Platôs: sim, existe a deriva da droga, do masoquismo, da esquizofrenia, mas é possível obter tais efeitos por outros procedimentos, que não se distinguiriam mais de devires imperceptíveis, não identificáveis. Luz “contemporânea”

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O nomadismo pulsional é inseparável do intempestivo. Aganbem explora uma aproximação semelhante ao propor que o contemporâneo “é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber nele não as luzes, mas o escuro” 244. Como estivemos mostrando, há pelo menos duas experiências do escuro: uma em que ele é o negativo das luzes, outra em que ele é a luz oculta do próprio tempo. A primeira envolve um processo de identificação e sua sombra, a segunda um discernimento constante, o intempestivo mesmo em sua claridade, em sua clareira. É sem dúvida o que Agamben explicita, na esteira de Nietzsche, com a idéia de uma dissociação em relação ao tempo atual, uma vez que “pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de apreender o seu tempo”. O lapso, enquanto fenômeno psicanalítico exemplar, é uma potência do inconsciente, ou melhor, é efetuação de potência, é ato novo, desconcertante, e isso graças à inevitável estranheza, ao efeito de dissociação em relação à experiência atual. Todo um passado, fazendo corpo com o presente, pode se exprimir através dele, vivo e inesperado: pulsão 245. Ele pode integrar em si, como o fazem sonho e o delírio (e igualmente o poema e o êxtase místico), diferentes temporalidades e, portanto, estratos diversos de pensamento e de saber inconscientes; de tal modo que, sob a ação analítica, estes só se desdobrarão e se tornarão visíveis, sensíveis e praticáveis, a partir dele. Essa desconexão temporal que antecipa o porvir, esse devir-sujeito do lapso finalmente assumido, são concebidos por Agamben como um paradoxo: “ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar”. É que a pulsão é deslocamento constante, o novamente de todas as vezes 246. Sua intimidade com o tempo é absoluta. É um futuro latente, em atualização constante nas formações do inconsciente. Como já observamos outras vezes, Freud tocou nesse paradoxo desde o início, e muito especialmente em sua Interpretação dos sonhos, quando situou a dimensão de um conteúdo latente ao qual nunca cessamos de aportar, e isso na medida em que um sonho nunca é inteiramente analisável. Diz Radmila Zygouris: “O conteúdo latente é um nicho de liberdade criado por Freud, que possibilita a construção de um pensamento 244

Agamben, G., O que é o contahemporâneo? e outros ensaios, p. 62, Argos, Chapecó – SC, 2009. Trieb quer dizer renovo, broto, além de impulso e tendência. 246 A propósito da expressão “novamente”, é de se registrar o uso admirável que MDMagno faz dela, ao falar do eterno retorno de uma “nova mente” (Cf. Magno, MD, A psicanálise, novamente: um pensamento para o século II da era freudiana, Novamente, RJ, 2004). 245

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atual. O sentido que se desvenda é um saber do intérprete que se atualiza” 247. Gostaríamos de sacudir um pouco o significado dessa frase, pegá-la, por assim dizer, pela raiz, e acrescentar que o intérprete se atualiza, ele mesmo, junto com o saber. A dissociação em relação ao tempo atual, característica do intempestivo e do contemporâneo (Aganbem), é, pois, de ordem pulsional. Ou seja, ela implica uma espécie de deslocamento físico e metafísico da experiência, bem como a constituição de um plano de superação extra-orgânica. A abordagem do intempestivo, se não for mera digressão intelectual ou, pior ainda, um fantasma da atualidade, não pode se dar sob a forma do organismo e das correlações orgânicas. É uma vida inorgânica que se apropria do espaço e do tempo, ou melhor, que é, ela mesma, a conquista de um espaço liso e de uma visão direta do tempo. Tudo se dá ao mesmo tempo: o espaço liso, a potência inorgânica e a visão direta do tempo. Entendamo-nos: o orgânico e a organização, o estriado e o estratificado, não são destruídos nessa operação intempestiva. Eles são literalmente superados, ou ainda, litoralmente situados. Trata-se de uma transposição de tempo e de espaço, mas segundo a qual essas determinações se alteram completamente: a física é uma verdadeira física (extensio), e a metafísica uma consciência do tempo (intensio). “Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo”. É, portanto, amar o lapso... O que torna contundente a frase “ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar” é a idéia de compromisso – que é o que urge dentro do tempo cronológico e que o transborda. “E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite aprender o nosso tempo na forma de um „muito cedo‟ que é, também, um „muito tarde‟, de um „já‟ que é, também, um „ainda não‟”. Não queremos forçar o entendimento de algo novo com o recurso ao já conhecido, quando observamos que a urgência apontada, assim como a tensão temporal do muito cedo com o muito tarde, são aspectos decisivos do processo pulsional. É que este não é, de modo algum, o que se pode chamar de conhecido, familiar, atual. Justamente, é o que já vigora por muito tempo, sem ser ainda advindo. Reside no escuro de nosso tempo, atravessando-o de ponta a ponta, começando antes e continuando depois, sem estar por isso sujeito a uma cronologia. Pelo contrário, desfaz toda cronologia, em nome do que está por vir. Como diz Aganbem, “ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”. A 247

Zygouris, Radmila, Pulsões de vida, p. 49, Editora Escuta, SP, 1999.

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partir daí, o compromisso consiste em não haver outro meio de ser pontual senão por determinação ética (a coragem, a firmeza de poder fitar as trevas). O desejo intempestivo do sonho é o fio dessa determinação – e isso em mais de um sentido, conforme o ponto de vista em jogo: o do sonhador, por exemplo, não saberia identificar onde começa e onde termina o processo pulsional que o anima, e que ele passa a detectar no meio do percurso, quando a obscuridade e o enigma adquirem um relevo vital. “O real, a gente o encontra é no meio do caminho mesmo”. A vitalidade do desejo e o saber que reside na sombra fazem um só. Mas, paradoxalmente, a vitalidade só se sustenta por determinação ética, e não se distingue mais de um saber de si própria. É o que dizíamos acima: o sujeito e o saber são um só do ponto de vista do inconsciente. Aliás, este plano, obscuro por excelência, instiga pelo saber que ali dormita, tanto quanto a vida. Atualizar esse saber é uma arte, uma práxis, um engenho, uma maquinaria abstrata e real. Lá onde isso era devo eu advir é assim a fórmula do “contemporâneo” considerado ao modo de Aganbem. Não faltaria precisão na abordagem do processo pulsional e seu caráter “contemporâneo” se disséssemos que a determinação ética – que garante sua consistência – esposa diretamente uma indeterminação originária. É daí que a pulsão retira sua força constante. O “compromisso” de que estamos tratando não se distingue, assim, de uma ética pulsional – lá onde isso era... A proposição de Aganbem (“ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar”) precisaria então ser revista. Primeiro, não se trata de ser pontual e de faltar ao mesmo tempo, mas de ser pontual em abrir ou reabrir a perspectiva pulsional e, desde então, em não cessar de abrir; freqüentar – sob a “forma informal” da prática constante – essa indeterminação originária de onde pode nascer o ato livre. E isso graças ao caráter nômade dessa pontualidade. Não se trata tampouco da ocupação de um vazio estrutural sempre deslocado. Nós faltamos quando não abrimos, de modo que a falta é ética. Em toda a psicanálise sempre se fez confusão entre a falta (que pressupõe a postulação de um todo idealizado ou o formalismo de um lugar vazio na estrutura) e a abertura (dos códigos, do entendimento). Ora, são coisas e planos inteiramente diferentes. Nunca haverá falta ou vazio se o critério for o da abertura, enquanto potência da vida (e do tempo). E é este, obviamente, o critério pulsional. Mesmo admitindo-se que um fechamento imaginário é providencial em certo momento do processo, a questão retorna para a determinação ética: é um problema de subordinação. A abertura não exclui os cuidados que a preservam de uma interrupção. Abertura significa saber prático, experimental – desde que se tenha em mente que pensar é um ato; significa o exame cada vez mais desimpedido, cada vez mais extra-moral 218

e extra-pessoal; significa domínio, precisão, reunião, dizer. Abertura é a condição originária do ato livre e já sua efetuação. Mais profundamente, a abertura como tal é um ato, ou melhor, é o ato por excelência. É como abrir os olhos. Segundo, é muito cedo e já tarde para o eu, não para a pulsão. Tudo depende de onde situamos o ponto de vista avaliador. A pulsão nos serve para dar a medida dionisíaca, o “mais ainda”. Aí reside, como dissemos, sua força. E é equivocado presumir que eu nunca advenho ali onde isso era, se a pulsão for minha medida. Posso nunca cessar de advir segundo essa medida. Isso, certamente, exige abertura constante, e nada é mais raro de se obter – é o que no início chamamos de idade de ouro dos afetos. Mas, insistamos, que abertura é esta? A do saber enquanto experimentação – experimentação de um pensamento que não se dissocia da práxis, que é práxis, e por isso é também ético, estético, político, clínico... – um pensamento que é diretamente pulsão de vida. E já que o inconsciente é o nome daquela abertura, como conceber seu sujeito? Ele e o saber de que falamos fazem um. Nós somos o saber que exercemos, de tal modo que o saber do inconsciente é igualmente seu sujeito. Ora, esse saber vigora o tempo todo, e não se confunde com os meios derivados. Nós o divisamos e finalmente o vivemos quando as portas do céu (mas poderiam ser as do inferno) se abrem. O que se abre, sendo já a própria abertura, sendo o abrir como tal, é pulsão, seja sob a forma do lapso ou do sonho. Mas o que assim se abre é também o tempo e suas alturas. “Todo e qualquer trabalho sobre o sonho é ao mesmo tempo um trabalho sobre o tempo” 248, e é o ingresso nas diferentes alturas do tempo que decide pelos diferentes graus de desubjetivação, isto é, pelos diferentes graus de distinção e separação do meio derivado. O sonho de Jorge é uma abertura, uma fenda, que pode ou não ser exercida, que pode ou não tornar-se prática constante. É um entre-céus do tempo dominado, cronológico, ou seja, a potência mesma do tempo. Diríamos que a linha de desejo separa-se do meio derivado – a casa de campo, a represa e mesmo o túnel – exatamente no instante em que a cena onírica atinge o nãosenso do automóvel planando de rodas para cima. Essa linha superior do sonho, ela própria linha de destino, orienta toda a interpretação, segundo uma aproximação mais direta do tempo. A esta altura, pulsão e tempo se tornam indiscerníveis. O espaço, sob a ação do intempestivo, se orienta topologicamente. Passamos do estriado ao liso. O devires não são propriamente espaciais, mas topológicos, intensivos. 248

Pulsões de vida, op. cit., p. 61.

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O domínio do tempo I - Metapsicologia O sentido pulsional, entendido sobretudo como um sentido de direção, só é encontrável nessa altura do tempo que até então estivera fora de nosso domínio. O inverso é igualmente verdadeiro: uma altura do tempo, até então fora de nosso domínio, só pode ser freqüentada na medida em que a direção pulsional se esclarece. Como se coubesse indagar, a cada passo de uma análise ou de uma vida, dada tal manifestação subjetiva, sintomática ou de desejo, a quantas anda – nas palavras de Rosa – “o céu do tempo”. A polivocidade da expressão “o domìnio do tempo” é proposital. Além de se referir ao âmbito próprio do tempo e à sua soberania, compreende a idéia de um domínio possível desse âmbito, por mais fugaz e precário que seja; a idéia, portanto, de uma experiência ou de um conhecimento direto do tempo, o que chamamos acima de uma visão de entre-céus. Ser um com a soberania do tempo, eis o que poderia significar a máxima freudiana “lá onde isso era devo eu advir”, com seu vetor ético. Lá onde isso era evoca, por certo, uma altura do tempo, sugerindo, desde já, um panorama à nossa investigação do tempo em psicanálise. Pois os lugares do sonho de Jorge – a fazenda, o túnel, a árvore e o céu acima dela – são lugares no tempo e, por força da cena originária (o automóvel surreal), descrevem um devir. Daí a exigência, não exatamente de um espaço, mas de uma topologia para pensar a pulsão. É que, como observamos há pouco, a extensão também se torna intensiva no regime pulsional (... de rodas para cima, planando). No sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos, Freud registra duas operações fundamentais da elaboração onírica: a transformação das idéias latentes, inconscientes, em imagens sensíveis, e a representação, seja qual for o tempo da coisa ou do evento representado, em forma de situação presente. Ora, essas duas operações, uma relativa à experiência do real e outra à experiência do tempo, são solidárias nos planos manifesto e latente. Dizer que há um desejo infantil ao qual o sonho deve sua energia, como faz Freud, significa sustentar que o sonho, em última instância, remete a algo que nunca deixou de existir. O presente é o tempo em que o desejo se realiza, esteja este projetado na antecipação do futuro ou retido na aspiração passada. O condicional “seria”, ou “tomara fosse” (... Otto culpado das dores de Irma), transforma-se em um “é” (... ele, afinal, o culpado). Este “é” reporta-se ao desejo imperecível. Por isso a defesa de Freud naquele sonho inaugural vai muito além do que ele poderia, a princípio, experimentar subjetivamente, tão longe quanto a verdade que a interpretação, ao longo do tempo, viesse alcançar. Mas a interpretação, insistimos nisto, é o próprio desejo, o 220

pensamento e a vida do sonho, sua dimensão virtual-real, sua duração. Não se trata de uma ausência do tempo na resolução final das formações inconscientes, mas da incidência de um tempo não cronológico em todo o suceder psíquico, não importa quão remota e obscura possa ser essa incidência. Os graus da duração são os graus do real. O “é” exprime a coexistência de uma grande infância esquecida com o presente atual; indica a reunião de todos os tempos em um único alto tempo. “É com o nosso passado inteiro, inclusive com a curvatura primordial da nossa alma, que desejamos, queremos e agimos”, escreve Bergson em A evolução criadora. Toda interpretação de sonhos se parece assim a uma arqueologia. O mesmo se pode dizer, no entanto, de toda sublimação. Aliás, uma ação é tanto mais sublimatória quanto mais inclui, depura e transmuta todas as outras, envolvendo suas respectivas temporalidades. A transmutação em jogo denuncia a presença do intempestivo. O outro aspecto, a transformação da idéia em imagem sensível, tem íntima relação com o intempestivo, mas de um modo que é preciso ainda esclarecer. Com o relaxamento da atenção e com a suspensão da atividade motora durante o sono, o sistema sensório-perceptivo, que responderia pelo início de todo o processo psíquico, volta a ser investido e acionado. Na verdade, estamos sempre remontando no tempo. Ao distinguir na formação do sonho, assim como no sintoma neurótico e nos delírios psicóticos, três classes de regressão – uma tópica, no sentido dos sistemas CS-PCS-ICS, uma temporal, por tratar-se de um retorno a formações psíquicas anteriores, e uma formal, em que as formas de expressão e representação são substituídas por correspondências primitivas – Freud apenas desdobra o que a regressão temporal já reunia. “Essas três classes de regressão são no fundo a mesma coisa, e coincidem na maioria dos casos, pois o mais antigo temporalmente é também o primitivo na ordem formal e o mais próximo na tópica psíquica ao extremo da percepção”. A idéia de regressão, porém, pode gerar limitações no entendimento do tempo onírico. Pareceria apenas um retorno ao mundo rudimentar, primitivo, ao início sensório do acontecimento psíquico, no qual as idéias, as relações e problemas do texto latente buscariam uma expressão possível, obedecendo às leis do processo primário. Como se os pensamentos sofressem uma espécie de derrocada em imagens, em dados sensíveis, e fossem dispostos em linguagem hieroglífica, arcaica. Ora, é a potência do pensamento onírico que afeta a sensibilidade, que extrai dela sua virtude sensível... Bergson distingue a imagem-sensória da imagem-lembrança, e esta da lembrança pura, que é o elemento próprio do passado puro ou do tempo como tal. É no espaço das segundas que se intercala toda a memória e, por 221

assim dizer, todo o tempo 249. O sonho indica, sem dúvida, um investimento especial que escapa ao regime sensório-motor da atenção generalizante e utilitária do estado de vigília. Operando sempre no mesmo plano, essa atenção segue preferencialmente um movimento automático. Mas se no sonho ou na alucinação estamos diante de imagens sensíveis, enquanto são elementos primitivos aos quais as idéias, buscando expressão, recorrem por via regressiva, não devemos esquecer que o tratamento desse sensível se dá em um spatium metapsicológico onde os diferentes planos de memória são convocados. O sensível aí se aprofunda, se refina, se singulariza. As escolhas se graduam. Diríamos, a princípio, que o afeto se faz intelecção, ou melhor, que ele ganha a tonalidade da idéia. Na verdade, em sua operação real, o afeto é uma idéia clara, uma intelecção superior, uma lucidez em devir. Toda a questão é precisamente esta: como ele se torna sensível? Como a consciência o alcança? Não é certamente sem esforço, dedicação, sobriedade. Nem sem ousadia, firmeza e exame desimpedido. Essas condições do salto ou da passagem já constituem, em si mesmas, graus do real. O sonho, dizia Freud, é uma via régia para o inconsciente. Existem outras. A análise serve para tornar real aquele alcance, ou seja, para fazer dele uma prática. Lu sonha que faz amor com T, sua mais recente paixão. A relação é deliciosa e envolvente. As sensações, porém, vão se tornando mais fortes, ela tem a impressão de um sexo real, e logo de um estupro. Sente internamente os movimentos da outra pessoa, e pensa: “existe alguém dentro de mim”. Continua o relato do sonho dizendo: “Me forcei a acordar”. Encontrava-se em uma casa estranha, alugada para sua mãe e seu padrasto, mas fazia sentido estar ali. Eles ocupavam um quarto separado. Era, possivelmente, alguém do hotel que a havia estuprado. Entra no banheiro com a mãe. Escorre sangue pelas suas pernas. Por que ela se força a acordar no meio do sonho? Segundo Freud, um processo onírico se resolve, em última análise, como realização de desejo. Neste caso, de que desejo se trata? Nunca cessamos de testar a teoria freudiana da realização de desejo. Até onde ela é válida? É quase sensível que Lu dá 249

“Vimos que a subjetividade já se manifestava na imagem –movimento: ela surge desde que haja separação entre movimento recebido e movimento executado, entre ação e reação, excitação e resposta, imagempercepção e imagem-ação. E, se a afecção também é uma dimensão desta primeira subjetividade, é porque ela pertence à separação, constitui o „dentro‟ desta, de certo modo a ocupa, mas sem preenchê-la ou suprimi-la. Agora, ao contrário, a imagem-lembrança vem preencher a separação, supri-la efetivamente, de tal modo que nos leva individualmente à percepção, em vez de prolongá-la como movimento genérico. Tira proveito da separação, a supõe, já que se insere nela, mas é de outra natureza. A subjetividade ganha então um novo sentido, que já não é motor ou material, mas temporal e espiritual: o que „se acrescenta‟ à matéria, e não mais o que a distende; a imagem-lembrança, e não mais a imagem-movimento”. Cinema II - imagem-tempo, op. cit. p. 63. Convém observar que a “afecção” não é ainda o afeto; este não é senão a subjetividade mesma, inclusive com o sentido que adquire na perspectiva do tempo.

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nascimento a si mesma, que o sexo real compreende, ao mesmo tempo, uma separação e uma lucidez, sendo o estupro uma espécie de violência capaz de vencer suas resistências, a inércia de continuar dormindo, equacionando suas relações amorosas segundo o modelo de relação com a mãe, não no sentido de que adotou esse modelo, mas de que foge incessantemente dele. Não era sua casa, e sim uma casa estranha. Mãe e padrasto apenas a ocupavam em uma relação decididamente à parte, em quarto separado. Não era alguém de casa que a violentara, tal como sucedera no passado, o abuso que, ainda menina, sofrera por parte do antigo padrasto. No banheiro com a mãe... O sangue é, sem dúvida, o da castração, ou seja, o signo de uma separação real. Por certo foi dela o trabalho de se separar, de se engendrar a si própria 250. Houve um esforço para se fazer acordar e existir. Nesse caso, o analista, que faz parte do conceito prático e ético de inconsciente, tem algo do estuprador. Na medida em que é um extrato de entendimento, o processo onírico alcança um pico do tempo. Escava tanto mais o real quanto mais tempo aglutina em si. Os sonhos sempre são imagens-tempo. No caso de Lu, o mais sensível, a sensação real do estupro, envolvia o estado de maior lucidez, bem como a duração própria do desejo que, também ela, precisa ser exercida (“me forcei a acordar”). A casa estranha ou sua nova casa sucede a esse esforço, e esclarece assim o acordar no meio do sonho. É nesse meio, nesse entre-céus que localizamos o intempestivo. “O real, a gente o encontra é no meio do caminho mesmo”, diz Riobaldo. Não se trata, contudo, de um ponto do percurso subjetivo, mas de uma clareira do tempo. Lu se depara com um vazio, que não é senão a ausência das narrativas já conhecidas, moldadas pelas alternativas que a relação-modelo estabelecera como uma espécie de programa, tendo em vista um único resultado – que ela pudesse ficar só. Mas esse vazio é o do tempo não curvado, sem finalidade e sem fim. É o tempo da ação grande demais para o eu. Por isso Lu vive o assomo selvagem desse tempo, o do sexo real, ou seja, da pulsão (“alguém dentro de si”), como um estupro. É quando o desejo do sonho se esclarece, sendo ele próprio a interpretação. O tempo se degrada, na medida em que a pulsão deixa de ser exercida. Inversamente, quanto mais ela se exerce, mais o tempo se gradua. O intempestivo, enquanto força obscura, é a insinuação do tempo originário na vida cotidiana, nos sonhos, nos lapsos, nos acontecimentos. E ele apresenta certa curvatura de acordo com a resistência que encontra no meio onde se insere, bem como por parte de quem o experimenta e nas condições de vida em que o experimenta, segundo atesta, por exemplo, o devir judeu de 250

“Separare, separar”, dizia Lacan, “conclui-se aqui em se parere, gerar a si mesmo”. Escritos, op. cit., Posição do inconsciente, p. 857.

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Monsieur Klein. A abertura inconsciente, sob a forma do não-senso, denuncia nada menos que a presença do intempestivo, de tal modo que as formações do inconsciente não fazem senão nos aproximar desse outro tempo, tornando sensíveis as graduações de sua força. Na verdade, as formações do inconsciente são essas graduações. O tema da pulsão nos conduz , assim, ao do tempo, e vice-versa. O domínio do tempo II - Pulsão de morte A morte se desloca ao longo da especulação analítica: da morte como finalidade, em uma primeira leitura de Freud (Além do princípio do prazer) à morte como processo, tal como será tratada por diversos autores, inclusive por Deleuze (por exemplo, em Diferença e repetição), é todo um entendimento acerca da pulsão que se altera e se aprofunda, sem que se possa dizer que essa alteração não estivesse virtualmente presente em Freud. É toda uma perspectiva do tempo que se abre – a partir da noção de pulsão... Certamente a morte interfere de modo profundo em nossa experiência do tempo. Mas qual morte? Em Blanchot aparecem duas mortes, a pessoal e a impessoal. Dada a nossa descrição inicial da pulsão, aplicando-a ao singular e impessoal, a morte só poderia ser situada pulsionalmente como experiência impessoal. Trata-se então de um morrer no infinitivo, de um “morre-se”, e não do pessoal “eu morro”. Algo dessa distinção já se verificava em Freud a propósito da primeira teoria das pulsões. Segundo os critérios de autoconservação, o indivíduo é o principal e a sexualidade apenas mais uma de suas atividades vitais; mas para as pulsões sexuais, que se projetam além do indivíduo e assinalam seu caráter mortal, ele é acessório e passageiro, e não faz mais que transmitir “o plasma germinativo que lhe é confiado pelo processo da geração” 251. A morte pessoal e a morte que não cessa (mas também poderia ser a vida que não cessa) – aí se perfilam como duas perspectivas distintas sobre a vida e a morte. O “plasma germinativo” evoca a ação grande demais para o eu, aquela que concerne ao intempestivo, na medida em que esse tempo é apenas vislumbrado, entre-céus, e raras vezes apreendido diretamente. Aquele plasma imortal evoca, portanto, os devires, as passagens, as metamorfoses. Lu já não tem pressa, desapareceu sua impaciência, a urgência de ter alguém porque tudo estaria no fim. “Faz sentido estar ali”, na estranha casa do sonho, que é também a do tempo. A ação intempestiva é grande demais para o eu, mas não para a pulsão.

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Obras completas, op. cit., Los instintos y sus destinos, p. 2040.

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A idéia de um tempo selvagem (seja o do estupro), indomável, não ordenado, de um “pai do tempo” 252 que desviou dos homens o seu rosto, como dizia Hölderlin a propósito da tragédia em Sófocles, será referida por alguns autores à pulsão de morte, na medida em que esta se caracteriza por uma energia caótica, indiferenciada, livre ou não-ligada . Mas vimos a coalescência do tempo com a pulsão no filme de Losey, e como esta se transformava em pulsão de morte no meio derivado, inclinando-o para um fim. A precipitação de Klein era simplesmente precursora. Como não perceber, frente à multidão de indivíduos já destituídos de traços particulares, e que ao modo de um vagalhão se afunila e escoa, em uma aceleração angustiada, para dentro dos vagões, que esse comboio da morte antecipava nada menos que o fim do Terceiro Reich? Tudo parecia desembocar em campos de extermínio e ansiar por uma solução final. É um dos modos de viver a pulsão, o modo como ela se arranja no meio derivado, como se mescla ao que resiste a ela e como, finalmente, impele todas as coisas à exaustão, todos os destinos ou formas de vida ao esgotamento. A imagem que se extrai dela nesse processo incontrolável de destruição, também passível de ser lido como tendo um fim autodestrutivo, é de uma força indômita, selvagem, caótica e desumana (o deus desviou dos homens o seu rosto), fora de qualquer domínio. Todas as temporalidades são igualmente arrastadas por essa desmedida. O tempo cíclico, obediente e ordenado dos mitos e da reminiscência platônica, mas também o tempo da história e sua pretendida racionalidade, já não passam de quimeras. Respondendo à pulsão selvagem, o que pode se abrir agora, não ligado a nada que o curve, é um tempo vazio de razão ou de justiça, uma espécie de tempo de exceção 253. Monsieur Klein, assim como acontece aos heróis sofocleanos, experimenta a duração sob a forma da tragédia, do desamparo e do abismo. Existe uma modalidade kafkeana de experimentação pulsional que mereceria um exame demorado, mas apenas a mencionaremos aqui, acreditando que possa refletir, à sua maneira, as relações da pulsão com o intempestivo. K., à espera de Klamm, se dá conta de que já anoiteceu. “Ainda 252

Hölderlin traduzia Zeus por “pai do tempo”, de modo a sensibilizar a alma hespérica: “De forma determinada ou indeterminada, é Zeus que deve ser dito. Preferencialmente, na maior seriedade: pai do tempo ou pai da terra...” Reflexões, op. cit., p. 104. 253 Jô Gondar, fazendo coincidir tempo e pulsão, observa que a pulsão de morte introduz uma não-ligação, um vazio de sentido que o psiquismo, desenvolvendo suas estratégias, busca capturar, dominar. “Podemos considerar a pulsão como determinante da temporalização humana: é o seu tempo selvagem e não-ligado que o psiquismo tentará dominar, produzindo modos de encadear lógica ou cronologicamente o antes e o depois, transformando o tempo puro em ordenações temporais”. Gondar, Jô, Os tempos de Freud, p. 123, Revinter, RJ, 1995. Ou ainda: “Não poderíamos pensar o tempo da pulsão de morte sem enfatizar o seu aspecto demoníaco, que faz advir a dispersão e o excesso a uma superfície precariamente equilibrada, ameaçando-a constantemente de dissolução”. Idem, p. 104.

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pode demorar muito tempo”, disse o cocheiro, bocejando. “O que pode demorar tanto assim?”, pergunta K., como quem espera a resposta de que Klamm, conquanto tarde, chegará em algum momento. “Até que o senhor vá embora”, replicou o cocheiro. Não é Klamm que finalmente aparece, mas um dos seus secretários. Ao mesmo tempo em que é hostilizado silenciosamente pela atitudes do cocheiro, K. enceta um diálogo redundante com o secretário, que também procura demovê-lo da espera. “– Estou aqui esperando alguém – disse K. já sem esperança de êxito, mas por uma questão de princípio. – O senhor não vai vê-lo de todo modo, ficando ou indo embora – disse o secretário, manifestando bruscamente a sua opinião...” Aquelas palavras não teriam o poder de expulsar K., nem mesmo de intimidá-lo. O secretário, dando de ombros, desviando o olhar de K. e voltando a si próprio como quem volta à sensatez, ordenou ao cocheiro que desatrelasse os cavalos. O trenó não seria usado. K. percebeu que estava sendo deixado para trás – de um lado o trenó se afastava em direção ao estábulo, de outro o jovem senhor seguia na direção da porta por onde K. entrara, ambos devagar, como se ainda lhe dessem uma chance. “Parecia a K. que agora todas as ligações com ele tivessem sido rompidas e estivesse sem dúvida mais livre que nunca e pudesse ali esperar no local antes proibido para ele quanto tempo quisesse e tivesse lutado por essa liberdade como quase nenhum outro e ninguém tivesse permissão para tocá-lo ou mandá-lo embora, nem mesmo interpelá-lo. No entanto, essa convicção era no mínimo igualmente forte, como se, ao mesmo tempo, não existisse nada mais sem sentido, nada mais desesperado do que essa liberdade, essa espera, essa invulnerabilidade.” Não se submetendo à palavra do secretário, não se intimidando com os gestos do cocheiro, K. alcança uma autonomia inesperada. Em sua espera decidida, vitoriosa, adquire certo domínio do tempo – “pode ali esperar quanto tempo quiser”. Alcança, por assim dizer, uma posição de desejo inteiramente legítima, precisamente por não abrir mão dele. A estranheza e o não sentido que às vezes pareciam emanar do diálogo, apesar da “sensatez” muito natural dos personagens do Castelo, invadem totalmente a atmosfera rarefeita de K, quando ele fica só. E é isso o intempestivo, a abertura de um tempo que não tem qualquer serventia atual. Não se subordina a nada do que vigora atualmente, é excessivo, sem finalidade. O meio derivado perdeu a eficácia, o poder de determinar os acontecimentos. Seus personagens saíram de cena. Não há mais nenhum fantasma, o secretário de Klamm enveredou por um corredor escuro e o cocheiro desapareceu na neblina. Mas com a destituição do meio derivado, que serventia tem essa vitória, a liberdade recém conquistada? Não decorre daí nenhum contentamento (exceto, talvez, no primeiro momento), apenas a impressão de que o tempo liberado é um tempo 226

para nada. Pulsão de morte. Quase adotaríamos a versão de MDMagno para descrever esse movimento de K. até o ponto culminante da espera – o empuxo pulsional ao Não-Haver. E, em face dessa versão, como não recuar? Como não retornar, em algum ponto, ao meio derivado? Como não “reterritorializar”? É que o tempo, não sendo mais curvado, é ainda um vazio de desespero, um estranho nada deixado pela superação do meio derivado. Ainda não é lido em sua positividade. Nessa altura recém atingida ainda não o vemos aliado à pulsão de vida. Ainda não vemos que abaixo e acima do meio derivado, insinuando-se como vazio e não senso em suas encostas e franjas, em seus acidentes e escuridões, assim como em seus altiplanos (“essa invulnerabilidade”), existe para sempre a claridade do tempo e da pulsão. O intempestivo parece ser o tempo da pulsão de morte, mas isto em vista do modo como se concebe a pulsão mesma. É preciso ir além da versão negativa – e, em última instância, ilegítima – que o meio derivado oferece de sua própria superação. Se a pulsão mobiliza o psiquismo por contrariedade, se impõe um limite, um fim e uma indeterminação frente ao que estava determinado, concluído e deveria durar, não o faz por ser, de seu ponto de vista – porque ela é um ponto de vista –, ausência de ordem, dispersão e caos, mas por introduzir, incessantemente, uma ordenação superior, relativa a outra altura do tempo. Daí, certamente, advém o conflito, o embate, que compreende as modalidades de visão das instâncias que se enfrentam, dentre elas uma visão psíquica, imaginária e narcísica, porém não menos simbólica, cultural e metafísica, de que a pulsão é dispersão e caos. O narcisismo e a perversão no plano subjetivo, assim como boa parte da filosofia ocidental e do pensamento psicanalítico no plano cultural, sustentam essa mesma visão, seja para predispor ao caos ou para conjurá-lo, não raro propondo uma espécie de composição instável dessas duas tendências. No primeiro caso, o dito caos será concebido como criativo ou favorável à criação; no segundo, como vetor de abolição psíquica ou existencial; no terceiro, será visto ainda como vital, porém em doses moderadas. Não adotamos nenhuma dessas medidas, simplesmente porque o real (ou a pulsão) não é um caos. Cocaína, alcoolismo e pornografia, que antes pareciam “pequenos excessos” multiplicadores de possibilidades, tornaram-se eles mesmos excessivos para a avaliação algo hesitante de H. Ele hesita, pois não sabe bem que posição tomar frente ao que lhe parece, por um lado, o que realmente quer, o que lhe proporciona uma satisfação real, o gesto mais livre, e, por outro, aquilo a que se sente coagido, as obrigações sociais, produtivas e familiares, embora reconheça que elas também compõem o universo de suas escolhas. Um dia chega à sessão dizendo que abomina os mentores da paz 227

interior. Parado em um engarrafamento de trânsito, pensava que era intolerável a placidez iogue dos motoristas. A vida é tumulto, intensidade, dissonância interna. Defendia, portanto, a inquietação e combatia o gosto pelo nirvana, e embasava o seu argumento, não sem alguma ironia, evocando a pulsão de morte de Freud, ou seja, essa sombria tendência do ser vivo à inércia e à morte. Confessa certo alívio, contudo, em poder partilhar agora uns dias de férias com a família, que lhe serve de contenção e de limite oportuno. Na verdade, a onda de excessos, discreta socialmente, porém já ruinosa à vida familiar, é motivo de preocupação crescente para ele e a mulher. Eis aqui uma oscilação de H. cuja conseqüência é a de deixar-se conduzir, até o momento, pela tendência mais pronunciada – de vida ou de morte? “Alto lá!”, parece dizer. “Não vão me pegar”. Como K., ele parece se esquivar aqui e avançar ali, de modo a não ser capturado pela lógica dos dispositivos molares nem pela mecânica flexível dos fascismos micro-fisicos. Pois se trataria de exercer uma auto-vigilância, um policiamento que inibisse as práticas do excesso. Ora, o que H. mais teme, o que requer da sua parte o máximo cuidado, aquilo para o que se sente particularmente prevenido, são os fascismos de qualquer espécie, inclusive os da saúde “gorda”, como a chamava Deleuze. Todavia, os pequenos excessos sempre foram linhas de fuga que, segundo ele, só faziam sentido em relação ao sistema de obrigações e compromissos sociais, às determinações gregárias. Pensa que essas linhas precisam do regime molar como de um inimigo que lhes dá a medida, que é daí que retiram a sua função liberadora. É uma questão de dosagem. E novamente a imprecisão se instala, como se essa imprecisão se beneficiasse das recomendações de Deleuze e Guattari: algumas doses de significante, de estrutura, de molaridade, seriam medidas de prudência. Mas, justamente, não é esse o velho modelo da transgressão, que Deleuze e Guattari chamam de “derrisório em relação à lei”? 254 Por que não se lê adequadamente esses autores? É fascista, segundo H., a recomendação de que você deve se cuidar. O fato é que, no seu caso, os excessos ampliaram seu domínio. Parecia desconcertá-lo a observação de que os excessos do gozo também podiam denotar fascismo, pois prevaleciam, tirânicos e inflexíveis, sobre qualquer outra consideração, e mais perturbador ainda parecia ser o problema do cuidado de si – pois, afinal, a quem atribuir essa função? No momento, ele deixava à família a incumbência de amenizar suas intensidades e frear sua aceleração, de outro modo desimpedida. Logo mais poderia ser o Estado. E já não teria mais do seu lado nem Deleuze e nem Foucault. É por isso que, para uma perspectiva ética e política do desejo, o problema analítico das pulsões de 254

Cf. O anti-Édipo, op. cit.

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vida e de morte ascende rapidamente ao primeiro plano, colocando em tela de juízo a noção de pulsão de morte. É que a noção de pulsão de morte, mesmo em seus reviramentos mais críticos, não compreende o discernimento das linhas de destino, que tanto podem ser de fuga como de abolição. Umas e outras participam igualmente da mesma tendência. Novamente o empuxo ao Não-Haver... Assim considerado, o cuidado de si termina por comungar com certo fascismo necessário, o bom recalque. Essa conhecida solução de compromisso apenas ressalta a necessidade de um ponto de vista superior, capaz de avaliar as linhas, discernindo a de maior vitalidade. Avaliar as linhas, eis o que chamamos de cuidado de si. Avaliar é também estimar, degustar, gozar. E isto, note-se bem, já é linha de fuga, ou seja, linha de força ou de desejo. O gozo do excesso transgressor é uma falsa imagem da avaliação pulsional e, sem dúvida, o modo mais insidioso, mais reativo, de distorção e captura. Diríamos que a hesitação, a margem de uma quase realidade em que nos instalamos, o tempo e sua dilatação para compreender, sua graduação para avaliar e assim por diante, abrem perspectivas ao pensamento, ampliam o campo de escolhas, insinuam aqui e ali nos processos da subjetividade a indeterminação que, como temos visto, é originária – a verdadeira fonte da pulsão. Os benefícios da hesitação são claros. Freud viu seu valor para a função do pensamento. À maneira de uma ação virtual, o pensar, como o Deus de Riobaldo, “se economiza”, ensaia a variação possível dos atos, inclusive os do pensamento. Agir de modo decidido, movido por uma certeza inamovível, sem a menor hesitação, caracteriza não raro a ação fascista, com sua política de identificação. Desse ponto de vista, a hesitação é mesmo um antídoto ao fascismo, principalmente o do pensamento. Ela é não-fascista, mas não seguramente, uma vez que tudo depende do que está em jogo. Pode-se hesitar frente ao desejo, ou ainda frente ao fascismo, e quase adotá-lo, quando seria preciso ser firme, não hesitar, não colaborar, passar adiante, não enfermar. Mas – girando ainda em torno do argumento de H. – como se distingue o momento em que a linha de fuga se transforma em linha de abolição? A princípio, não parece difícil. Ela perde seu poder de multiplicar encontros favoráveis, de abrir possibilidades ideo-afetivas, e essa redução ou diminuição de potência, para falar como Spinoza, assinala o desvio a ser corrigido. Contase com o menos para descobrir o mais, com a negação da potência para restabelecer a potência em seu curso, e assim por diante. Ora, a diminuição da vida, a tristeza, a negação são condições contingentes, não essenciais, para que a linha de desejo ou de força se oriente. Ela se orienta por seus próprios critérios, embora nada nesse domínio seja assegurado de uma vez por todas. Ou seja, o que chamamos anteriormente de dupla afirmação abole, como 229

pretendia Nietzsche, o negativo (ou o reativo), mas não, repetimos, de uma vez por todas. De fato, ele não retorna, desde que a dupla afirmação se exerça na constância que lhe é própria, ou seja, a cada vez. O alto tempo é, assim, uma conquista decisivamente ética. Eis um modo de dizer que a ontologia se esclarece pela ética. Pelo que sabemos, não há outro sentido para a imanência. No caso clínico de H., assim como em qualquer outro, as diferentes visões em jogo, incluindo a pulsional, não são um problema de representação, mas de uso. Já dissemos que o tempo é também uma prática. A pulsão utiliza as demais instâncias não pulsionais e seus recursos, mas essas instâncias resistem ao poder pulsional em nome delas próprias. Procuram cercá-lo, neutralizá-lo, reduzi-lo a outra coisa – é seu modo de captura. Não há diferença aqui entre capturar e induzir à reação. A distorção do processo pulsional que resulta dessa operação não é, porém, apenas uma máscara, sob a qual sobrevive a experiência real; a distorção é agora a matéria da experiência. A isso, em psicanálise, deu-se o nome de recalque. O domínio do tempo III - A vida e a arte Há uma estreita afinidade entre a sublimação e o que chamamos de tempo originário. Toda obra de arte que mereça esse nome tem uma duração expressiva e antecipa o porvir. O poeta é a antena da raça, dizia Pound. Mas se tivermos em conta a dimensão pulsional e o seu tempo, o que vale para a experiência do grande artista vale, em princípio, para toda a vida humana. O alto tempo da criação não cessa de vigorar, não cessa de não passar. Por isso é o tempo redescoberto ou o tempo em estado puro. É o pressuposto de todas as temporalizações. De acordo com Deleuze em Proust e os signos, o tempo se distribui em séries, em linhas, segundo seus signos específicos. Façamos uma breve incursão por esse livro, que é um verdadeiro tratado sobre o tempo. O que nos afeta constitui signo, hieróglifo a ser decifrado. Dada a impressão que um signo causa, como decifrá-lo, como interpretá-lo? Ele só revelará sua verdade (a razão de seu poder de nos afetar), ao longo de uma interpretação, a qual não se distingue do próprio desenvolvimento do signo. A interpretação do signo requer um tempo, o tempo de um esclarecimento. Talvez nunca se tenha precisado tão bem o elo entre a verdade e o tempo, se tomarmos a verdade como interpretação, decifração, e não como adequação do intelecto à coisa, como correção. Já dissemos que a verdade coincide com o grau de exame de que somos capazes, e que o grau de exame corresponde a uma altura do tempo. É claro, no entanto, que deste ponto de vista a idéia de correção não pode ser inteiramente descartada, pois estamos sempre corrigindo nosso 230

entendimento, de acordo com o grau de exame e o tempo em que ele se exerce. Os signos de La recherche du temps perdu se ordenam segundo linhas de temporalização, isto é, segundo uma graduação do tempo e da verdade: signos do mundo, signos do amor, signos da sensibilidade (ou da natureza) e signos da arte. Adivinhamos, assim, todo um devir dos signos em direção à sublimação, toda uma leitura da vida em direção à arte, toda uma mobilização do pensamento em direção à pulsão e em nome dela. A natureza dos signos nos dá, portanto, a medida de uma graduação do tempo e da verdade, se esta verdade for, não esqueçamos, a da pulsão avaliadora. Até certo ponto genéricos e convencionais, os signos mundanos não deixam de ter suas sutilezas, conforme as classes ou as “famìlias espirituais” que eles compõem. Aprendê-los é identificar as razões pelas quais alguém será ou não recebido em determinado mundo de relações, e descobrir os “papas” e “legisladores” que decidem a extensão e a profundidade desse mundo. São signos que valem diretamente como tais, sem remeter a outra coisa, e por isso são vazios ou de sentido nulo. Algo como o brinde que o anfitrião de O anjo exterminador repete, fora de contexto, enquanto os convivas, sem notá-lo, conversam e riem. “Por essa razão, a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se pensa, não se age, mas emitem-se signos”. 255 As modas se sucedem, mas como signos que renascem, vazios, de suas próprias cinzas. Sob um aparente imobilismo, as famílias e as sociedades se alteram e passam. Uma das meditações de Marco Aurélio é luminosa a esse respeito: “Considera, por exemplo, a época de Vespasiano, e o que vês? Homens e mulheres se casando, criando família, ficando doentes, morrendo, guerreando, banqueteando-se, fazendo comércio, cultivando, bajulando, sendo arrogantes, invejando, amaldiçoando, murmurando contra o presente, amando, enriquecendo, ambicionando o poder. De todas essas vidas perdidas, nada sobreviveu. Passa agora à época de Trajano: de novo é a mesma coisa; as mesmas cenas, e tudo desapareceu...” Eis uma primeira linha de tempo, a do tempo que se perde. Ora, como já dissemos anteriormente, a pulsão é uma medida e uma potência avaliadora. E é isso, medida e potência, que nos interessa articular ao feixe das linhas de tempo, tal como são desfiadas por Deleuze no texto sobre Proust. Pois a relevância dos signos mundanos está subordinada, clinica e eticamente, ao critério pulsional; o uso desses signos, bem como a sua valorização, recebem ao longo de certo tempo uma espécie de sanção clínica, que poderia se resumir, por exemplo, no veredito: “vida que se perde”. Tal veredito, no 255

Proust e os signos, op. cit., p. 6.

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entanto, já se insinuava obscuramente nas formações do inconsciente, como sua engrenagem invisível. É o que sustentamos, quando atribuímos consistência ética à noção de pulsão. Tomemos, a propósito, um exemplo simples, psicanalítico: um médico sofre um acidente grave e fica, por certo tempo, afetado mentalmente; recupera-se e volta a clinicar. Um dia, em análise, diz não ser insubstituível – o paciente que desejar trocá-lo por um desses médicos “quebra-galhos”, que se sinta à vontade; com o tempo verá o erro cometido e desejará voltar ao bom profissional. Como podia ter dito que não era insubstituível, se em seguida adverte que os “quebra-galhos” nunca alcançarão a qualidade dos seus serviços? Os termos contraditórios fazem sentido quando distribuídos em momentos diferentes da vida: não ser insubstituível diz respeito ao tempo anterior ao acidente, quando se dedicava ao atendimento de pacientes em ritmo intenso, acelerado, mais voltado, segundo ele, à quantidade que à qualidade, e excessivamente mobilizado pelo retorno financeiro de suas atividades. Com isso deixou de lado os princípios que o nortearam desde o inicio da profissão, e que prescreviam uma atenção meticulosa no exame de cada situação clínica, não importando o tempo que exigisse – princípios, portanto, de zelo e consideração. Havia se destacado entre os colegas e agora corria o riso de ser substituído. Não é a observância moral dos princípios da atividade médica que está em jogo, não do ponto de vista originário; e sim o saber real e portanto irredutível do que convém enquanto sublime ação – o saber do inconsciente e a graduação do tempo que lhe corresponde. O que é recalcado, em última instância, senão o saber? Já dissemos que o saber do afeto (avaliador) e o sujeito da pulsão são o mesmo. Ao tirá-lo de cena por alguns meses, com um prognóstico incerto, o acidente tornou ainda mais real o perigo de que ele fosse substituído por outros médicos. Não é preciso dizer que o acidente de automóvel fazia parte do processo de aceleração e descuido que dominara a sua vida e terminou por colocá-la em risco. Ele próprio se tornara “quebra-galho” para si mesmo, incompetente para cuidar de si. Teria de retornar aos bons cuidados? Atualmente esmerava-se em sua prática, de maneira a não ser facilmente substituìdo. Que ele “não era insubstituìvel” indicava, sobretudo, que naquele tempo fora arrogante, imaginando-se inatingível em sua posição de destaque no meio clínico e social. Precisou desenvolver esse raciocínio passo a passo, pois a princípio, mediante a intervenção analítica, ficou aturdido com a contradição de suas palavras. Estas se anteciparam à consciência, à compreensão clara, graças ao saber depositado em sua matéria sutil – o mais elementar descobrimento freudiano, mas ainda e sempre uma das mais surpreendentes percepções acerca da condição humana e da vida como tal. Concentra-se na palavra inadvertida toda uma ciência do 232

caminho percorrido, todo um devir concreto da verdade ou simplesmente a verdade do devir. As palavras parecem lançadas de um modo desordenado, insensato, no curso do que pretendia ser seu uso comunicativo; o que parece desordenar, porém, é também o que as reúne, o que as conjuga, a saber, a ordem pulsional do entendimento. É claro que a comunicação, longe de ser suspensa, se refina, se aprofunda. Por mais distante que esteja da experiência subjetiva, aquela perspectiva dominante – posto que supera, sob a forma do lapso, toda visão menor – deve, no entanto, ser exercida como prática de entendimento, sem o que a vida que existe nela, e que é ela, ficará, por assim dizer, perdida. “Aquilo está no encoberto”, continua Riobaldo, “mas fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e visível mas não achável, do verdadeiro viver”. A lei escondida, o fio de Ariadne, é a própria pulsão, enquanto prática de avaliação e entendimento. Será que, antes dessa prática, as palavras do médico, formulando versões contraditórias sobre o valor de sua atividade, apontam ainda uma presunção dura, residual, e um perigo à vida? A propósito, por que Riobaldo fala em “lei escondida e visível mas não achável”? Fala assim porque essa lei mesma precisa ser feita e exercida, desde as trevas mais profundas. O médico que “não era insubstituìvel” fazia um balanço de suas escolhas e avaliava o quanto se guiara, durante um período de sua vida, por signos mundanos, por sua velocidade, em detrimento do modo como concebera inicialmente a “arte médica”. Mas, se depois de aprendidos, os signos mundanos deixam a impressão decepcionante de artificialismo, de esnobismo e frivolidade, ensinam, em contrapartida, uma perfeição ritual e um formalismo não encontráveis em outro domínio. De fato se aprende o que toma o lugar da ação, embora mantenha seu aspecto exterior (o rito), assim como o que toma o lugar do pensamento, embora conserve dele uma espécie de vestígio (a forma, a formalidade). A noção de rito, o trato com a forma e o sentimento da “perda de tempo”, se não resumem todo o aprendizado, deixam entrever o caráter vazio dos signos mundanos. E tal é a verdade obtida ao longo do tempo que se perde. Ora, a busca da verdade não poderia se subtrair à aprendizagem desses signos e de sua temporalidade 256. Quanto aos signos amorosos, sua verdade é a do tempo perdido, na medida em que ela só se revela quando deixou de nos interessar, quando o eu do intérprete, o eu que amava, não existe mais. Não são vazios de sentido 256

“Na realidade, a Recherche du temps perdu é uma busca da verdade”. Idem, p. 15.

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como os mundanos, mas sua verdade, além de ter um desenvolvimento impreciso, equívoco, pois se combina com a mentira (os signos do amor são enganosos), chega sempre tarde demais. É, portanto, a verdade de um tempo perdido. Já não estamos nele de corpo e alma no momento em que o sentido dos signos se esclarece. Os signos do amor vêm acoplados aos do ciúme e do sofrimento, ou seja, trazem o germe de sua própria ruína. A traição parece inevitável. O amor sempre se mescla ao sentimento de traição – de trair, de ser traído, de trair-se a si mesmo –, e por isso o desenvolvimento de seu sentido é equívoco e doloroso. As promessas que pretendíamos ler nos signos do amor não se cumprem. O objeto amado não corresponde inteiramente ao signo, e guardará para sempre o mistério de um mundo remoto, desconhecido, a que o amante ciumento jamais terá acesso. É o ensinamento da Recherche. À decepção objetiva, isto é, à decepção com o objeto que não revela, por fim, o que esperávamos do signo que ele emitia, segue-se um ensaio de compensação subjetiva com o qual reconstruímos, mediante nossos próprios recursos, conjuntos associativos destinados a salvar o objeto e, assim, o tempo despendido. Operação que se mostrará, mais cedo ou mais tarde, insuficiente, pois nada revela de essencial – apenas o exercício das associações ao bel prazer do sujeito. Tempo perdido. “Não mais amar, não mais se dar, não mais tomar” 257, enquanto lema ético, decorre em parte disso. No seio desse tempo perdido subsiste, todavia, um tempo de aprendizado, obscuro, necessário. Subimos na escala do tempo Mais uma vez, tendo em vista nossos propósitos, caberia aqui uma leitura suplementar. Seria preciso investigar as condições do amor e de seus signos, bem como de sua temporalidade, a partir de critérios pulsionais. Sem dúvida é o que Deleuze, por seus próprios meios, realiza com Proust e os signos – uma exploração dos signos da Recherche a partir da Recherche mesma, ou seja, a partir da obra de arte, o que coincide rigorosamente com o pensamento de Proust e o próprio desenvolvimento de sua obra. Nesse ponto, sustentando a nossa noção de pulsão, encontramos tanto o escritor como o filósofo. Pois sendo a sublimação o destino originário da pulsão, todos os outros destinos serão avaliados a partir dela, legitimados ou não por ela. É da sublimação que o amor recebe, finalmente, a sua sanção. Para poder estar à sua altura, precisa existir em ato e se beneficiar do traço extra-pessoal e singular que atribuímos à pulsão. É que no desenvolvimento dos signos do amor, intervém, certamente, a função do eu, tal como esta se esclarece no pensamento analítico, isto é, como função de desconhecimento. Lembremos que Freud faz uma distinção 257

Tal como aparece no texto de Deleuze sobre Lawrence, em Crítica e clínica, op. cit., p. 61 e 62.

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importante no que diz respeito às relações do eu e da pulsão com os afetos de amor e ódio: o enunciado de que a pulsão ama seu objeto é pensável, adequado, mas não o de que ela o odeia. Este último sentimento jamais tem origem na pulsão. Logo, sua fonte é o eu, o eu narcísico, o eu-prazer do qual já falamos, e que apenas equivocadamente foi reconhecido como o primeiro, o original. O eu real o antecede lógica e eticamente, a despeito de ser alcançado (= exercido) por último, nos termos do que chamamos acima de sujeito pulsional. É no nível desse sujeito que encontraremos o amor além da lei mencionado por Lacan 258, um amor extra-pessoal ou impessoal que não compreende mais os signos enganosos, nem os sofrimentos da traição. Estes eram apenas a reverberação da diferença no psiquismo, dessa diferença que o amor pessoal, narcísico, voltado para o gozo de um eu idealizado (seja o do próprio sujeito ou o do objeto amado), se esforçava por elidir. O amor pessoal encontra em Narciso sua medida. É por isso que tão freqüentemente se transforma no seu oposto, o ódio, segundo híbridismos afetivos que, de modo geral, aprofundam a divisão do sujeito. Na verdade, a divisão do sujeito, sendo basicamente afetiva (amoródio), faz do amor um signo equívoco, enganoso, traiçoeiro, afetado intrinsecamente pelo seu contrário, de maneira simultânea (conforme a neurose obsessiva) ou sucessiva (conforme a histeria, a fobia, etc.). Os ciúmes em relação ao objeto amado – dado envolver um mundo que escapa inexoravelmente ao cálculo pessoal do amante – denunciam o ingresso sutil do ódio na composição dos afetos. Esse ódio, a princípio meramente virtual, era como que o horizonte e o futuro daquele amor, tanto do ponto de vista do real como do tempo. O ódio nasce da condição pessoal e, portanto, essencialmente narcísica do amor, e em sua efetuação pode penetrar, aos poucos ou de uma vez só, em todos os processos afetivos, inclusive nos atos. É desse modo que, gradual ou abruptamente, a força pulsional deixa de ser exercida e é separada do que pode. No lugar de sua prática entra em vigor o que chamamos de pulsão de morte. Seria ocasião para evocar a filosofia dos afetos de Spinoza, tal como é desenvolvida na Ètica, e observar que as paixões tristes como o ciúme, a inveja e o ressentimento traçam a linha de decomposição cujo extremo é o ódio. E tais são, de fato, as afinidades do eu com esse último afeto. Ele é mais antigo que o amor no que concerne ao objeto, uma vez que este, enquanto separado e localizado no exterior, se constitui pela expulsão para fora do eu narcísico, auto-suficiente, de tudo o que possa destruir sua completude e provocar desprazer. O objeto fóbico é uma decorrência direta desse procedimento de defesa e projeção no exterior do que causa a desestabilização 258

O seminário, Livro 11, op. cit., p. 260.

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narcísica, por isso ele é a pulsão nas condições permitidas pela defesa. Assim se erige a unidade ideal do eu, com a condição de expulsar o que iria rompê-la – em última instância, a própria diferença, o vivo em pessoa. Daí a virtude subversiva do objeto a de Lacan, o objeto do qual não se tem imagem nem idéia, e isso na medida em que traz o selo da pulsão. Uma de suas encarnações é o objeto transicional de Winnicott, intersecção de criança e mundo. Pois bem, para que o amor não seja apenas narcísico deve compreender os mesmos traços que atribuímos à pulsão, aplicar-se simultaneamente ao impessoal e ao singular, ao simples e ao refinado, ao abstrato e ao real. Não é, pois, o eu que decide pela natureza última do amor, mas a pulsão de vida. Nela se inscreve, por seu caráter extra-pessoal, toda relação verdadeira, isto é, toda relação viva. É o que vimos, desde o início, com o trans-monadismo pulsional, especialmente a propósito da interpretação do sonho e da implicação do analista no conceito de inconsciente. O verdadeiro tem parte com a diferença, com a força, não com o idêntico e o mesmo. “Ora, um eu é algo feito para ser dado ou tomado, que deseja amar ou ser amado, é uma alegoria, uma imagem, um Sujeito, não uma verdadeira relação (...) Tem a tendência a identificar-se com o mundo”, mas já é um declive para a morte. É por força de uma idealização que se fixa assim o caráter do eu, feito figura e sentença, e é nesta fixação que reside a pulsão de morte. O eu ideal e o ideal de eu são os dois pólos dessa fixação: o primeiro, narcísico, é pleno e, do ponto de vista dele próprio, só pode se dar; enquanto o segundo é a instância ideal que o eu histérico precisa tomar para si, incorporar. Assim, o núcleo da relação constituída pelo eu não é mais a vida, mas uma idéia, e por isso não é uma verdadeira relação. Em O homem que morreu, o encontro do renascido com Madalena exprime esse veneno do amor idealizado, subjetivado, e sua potência mortal: “Ele olhou-a e percebeu que ela tentava agarrar-se ao homem que antes havia nele e morrera e agora estava morto, de sua vida pequena, de dar sem tomar (...) – Agora tenho de ascender até meu Pai – explicou ele, recolhendo-se aos arbustos, e assim virou-se depressa e saiu, dizendo a si próprio: „Agora não sou de ninguém, e nada me prende a ninguém, já não tenho missão nem Evangelho. Ah! Não sei sequer construir minha própria vida, e que tenho eu a salvar?... Posso aprender a ser só”. 259 Trazido, porém, para o campo pulsional, o amor adquire sua feição originária, extra-pessoal, a tal ponto que mesmo as antipatias, como diz Deleuze, são abraço, conjunção. Esse campo já é, bem entendido, o da sublimação. “Era a vida do dia pequeno, a vida da gente pequena. E o homem que morrera disse a si próprio: „A menos

259

Apocalipse – O homem que morreu, op. cit., p. 141 e 142.

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que o englobemos no dia maior, e coloquemos a vida pequena no círculo da vida maior, tudo é desastre”. 260 Segundo Deleuze, e retomando Proust e os signos, cada faculdade do pensamento responde pelo esclarecimento final de determinados signos. No caso da mundanidade e do amor, essa faculdade é a da inteligência 261. Ela nos faz compreender, ao termo da pesquisa, que os signos frívolos do mundo correspondem a certas leis (leis gerais do vazio), e que os signos do amor exprimem repetições (de um tema amoroso original e suas variações). É a inteligência que nos salva do aspecto malévolo de cada um desses signos quando tomado isoladamente. “Um a um os seres que amamos nos fizeram sofrer; mas a cadeia interrompida que eles formam é um alegre espetáculo da inteligência” 262. Pensando que perdíamos tempo, aprendíamos. Tudo adquire assim o aspecto de um ensaio, de um ensaio de sublimação. A partir dos signos sensíveis, porém, ocorre um processo distinto, uma espécie de elevação do tempo, correspondendo ao tempo que se redescobre. Seja aroma, impressão visual ou sabor, uma qualidade sensível desencadeia nossa memória involuntária e, por meio dela, uma antiga lembrança. Esta, por sua vez, deixa vislumbrar, como se até então recolhido dentro dela, o esplendor de um acontecimento que nunca foi propriamente vivido, mas detém o brilho de uma verdade eterna. Clareira que se abre no meio do tempo perdido (do passado) e nos oferece uma imagem da eternidade. É, talvez, o sentido do passado puro bergsoniano, passado em si, que não se confunde com o passado que um dia foi presente. Assinalamos, a propósito, o em si desse passado, evocando com ele a temporalidade do wo Es war soll Ich werden de Freud e seu caráter originário. As faculdades convocadas agora são a memória involuntária, o desejo e a imaginação. Não se trata mais de leis gerais ou de repetição de casos, mas de singularidades. Não são as leis e nem o intelecto que esclarecem esses signos. Falamos deles anteriormente, quando abordamos os afetos originários e sua grande razão, não sem vincular essa razão superior à duração como tal, ou seja, ao mais alto tempo. Breve parêntese: a memória involuntária, o desejo e a imaginação são potências do tempo. Ao contrário, portanto, da verdade do amor, própria de um tempo perdido e de um eu que não existe mais, a verdade dos signos sensíveis (ou o seu poder de nos afetar) é acompanhada de um renascimento do eu tal como nunca foi vivido, a par de uma alegria intensa e genuína. Recorde-se o verso da “Canção da Meia Noite”, de Assim falava Zaratustra: “A dor diz „passa e perece‟, mas a alegria quer a eternidade, a profunda eternidade”. Contudo, a alegria que acompanha 260

Idem, p. 162. O amor além da lei, contudo, é supra-intelectual. 262 Proust e os signos, op. cit., p. 24. 261

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essa recordação pura, a ressurreição do eu que lhe corresponde e o vislumbre de eternidade, sofrem de uma limitação, de uma espécie de desgaste devido à impressão material que subsiste ainda, ao dado contingente e à determinação exterior (que inclui o nível da imagem mnemônica) em que a recordação pura se encarnou. Só os signos da arte são inteiramente bem sucedidos, só o seu desenvolvimento encontra, segundo Proust e os signos, a realização integral do sentido. Há uma progressão na relação do signo e do sentido conforme avançamos na escala do tempo, isto é, na aprendizagem dos signos do mundo, do amor, da natureza... Embora o “signo” remeta a um objeto, não se confunde com o objeto em sua contingência e determinação extrínseca (ele não se distingue do fato de sermos afetados por ele); e embora o “sentido” remeta a um sujeito, tampouco se confunde com o sujeito e o curso das associações subjetivas (ele não se distingue do poder de sermos afetados, na medida em que esse poder antecede e sucede o regime das associações). Ora, a relação do signo com o objeto – contingente, determinado extrinsecamente – e a do sentido com o sujeito – enquanto referido ao complexo de associações subjetivas – perdem sua força e se tornam menos determinantes na medida em que nos aproximamos da essência, que “é exatamente essa unidade do signo e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte”. 263 Os signos da arte são imateriais, e seu sentido desenvolvido é puramente espiritual. De fato as essências se encarnam nas matérias, com maior ou menor perfeição. No caso da arte, porém, as matérias que ela trabalha, sejam as cores, os sons ou as palavras, são a tal ponto penetradas e desfiadas pelo estilo do artista, pelo seu savoir-faire, que se tornam espiritualizadas, vitais, capazes de “refratar a essência”. Os outros signos eram ainda muito pesados, opacos, contavam sempre com uma referência extrínseca, e por isso refratavam a essência de maneira obscura, insuficiente. Daí falarmos, insistentemente, no esclarecimento gradual da pulsão. Em nossos termos, a revelação da essência pela arte corresponde ao exercício esclarecido da pulsão. O que se ganha com essa aproximação? Elucidamos a análise como saber prático, sublimatório, como retorno clínico à imanência, conforme a significação mais apurada do circuito pulsional. É o que chamamos de direção da análise (ou da cura). Seguindo ainda Proust e os signos, é somente com a arte que alcançamos um plano propriamente ativo. Na medida em que a arte porta os signos mais importantes, atinge os níveis mais profundos do inconsciente. O tempo das essências que a sublimação freqüenta é assim o originário, em estado puro – o tempo redescoberto. 263

Idem, p. 41.

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Uma aventura do involuntário fomentaria toda a busca da verdade, precisamente ali onde se trata dos signos e do seu poder de nos afetar. A inteligência, assim como a memória e a imaginação (nascida do desejo), são involuntárias no que diz respeito aos signos. A inteligência só se anima a decifrá-los sob a pressão de seu vazio angustiante ou do seu caráter doloroso; do mesmo modo, somos forçados a buscar o sentido dos signos sensíveis, e é através da memória involuntária que nos acercamos dele. E os signos da arte, a que eles nos forçam? Ao ato de pensar: “eles mobilizam o pensamento puro como faculdade das essências” 264. É todo um dinamismo de pressões que ascende na escala do tempo: os signos coagem uma faculdade como a inteligência ou a memória, e estas põem em movimento o pensamento, de maneira a que ele pense a essência. Pode-se dizer, inversamente, que o pensamento puro, enquanto faculdade das essências, se diversifica em imaginação, memória ou inteligência, de acordo com a espécie de signo em questão e a faculdade exigida. Se antes dissemos que o sofrimento neurótico não é o desencadeador principal da análise, não excluímos de seu início e de toda a sua evolução a aventura do involuntário. Pulsão é seu primeiro nome, Dräng... É verdade que uma vez querido, o involuntário se transmuta em voluntário, de acordo com o procedimento ético instaurado por Freud e descrito em sua Interpretação dos sonhos. Essa transmutação é o que chamamos de dobra pulsional. Mas o que é uma essência, nos termos em que a tratamos aqui, buscando estabelecer as afinidades da sublimação com o tempo? Como fizera antes Spinoza, Deleuze aplica essa noção a um campo de imanência, o que difere por completo de seu uso transcendente. No caso deste uso, a essência é referida à identidade, à identidade a si, não sem implicar logicamente uma forma de re-conhecimento ou de re-cognição. É o Mesmo, o Um que se revela, finalmente, sob a diversidade das máscaras. Por isso o caminho de seu desvelamento é necessariamente o da representação, e sua determinação, em última instância, é conceitual e lógica. No caso do uso imanente, a essência só se revela pela arte, mesmo que seja por uma arte filosófica, pois ela se deixa apreender como potência e como diferença irredutível, tão sensível como supra-sensível (a unidade do signo e do sentido). Trata-se então de um ser que é diretamente volição, atividade, prática. Para Spinoza, a essência é toda a potência de ser e de agir de uma coisa. Já em Proust e os signos, como em outros textos de Deleuze, a essência é uma diferença última e irredutível – não remete jamais a um modelo. “O essencial”, diz ele, “é a diferença interiorizada, tornada imanente”. Seja entretanto potência que se efetua ou 264

Idem, p. 97.

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diferença que se encarna, trata-se sempre de uma operação que exige firmeza e constância. Diga-se de passagem, aí reside, enquanto garantia do processo, a ética do analista (ou do inconsciente). É que a repetição da diferença é, sem nenhum deslocamento, afirmação da diferença. É somente na decisão que age, constante, que atingimos a imanência. Não dissemos outra coisa a propósito da pulsão – ela é uma prática. Por isso também o ser é, sem nenhuma mediação, o domínio dos afetos e dos atos. Decorre daí a razão ontológica para que Spinoza escrevesse uma Ética. Esta ressoa, junto com Proust e os signos, em nosso pragmatismo pulsional. Se cada sujeito exprime um mundo de certo ponto de vista, o ponto de vista é mais profundo que ele. Reside em seu âmago, mas não se confunde com ele 265. É nesse lugar, todavia, capaz de autorizar um novo dizer, que situamos o “sujeito-artista” ou, como se fala em psicanálise, o sujeito do inconsciente, não para designar a instância obscura de um eu, e sim uma essência imanente, uma potência, inseparável de decisão e ato. Como foi observado anteriormente, a vida, a partir de um ponto extremo, passa a se pronunciar em nome de uma legitimidade intrínseca – a da exceção, para falar ao modo de Godard –, de onde retira a sua autoridade. O que se revela com a sublimação é a diferença em pessoa e, com ela, um tempo original, em estado puro, “complicado, enrolado na essência, abarcando de uma só vez todas as suas séries e dimensões” 266. Enquanto atividade e alvo pulsional, a sublimação coincide, portanto, com a explicitação dessa diferença originária e com o tempo redescoberto. Opera no nível mais profundo, ali onde a “essência é revelada”. Só então descobrimos a razão última, até então oculta, da relação do signo e do sentido, e o pressuposto de suas variações nos níveis anteriores. Nestes havia ainda muita generalidade, muita contingência e muita determinação exterior. No plano da arte, que é o plano do inconsciente, a individuação se aguça, a par e passo com a necessidade da obra, como uma espécie de “imperativo do ser”. Esse imperativo, note-se bem, é de ordem ética. Mas o que aí difere radicalmente do platonismo? Os pontos de vista singulares, extra-pessoais. Eles determinam, em alta repetição, o começo dos mundos. Eram eles que animavam os signos mundanos, os signos amorosos e os signos sensíveis, mas de maneira obscura, diluídos na generalidade e na contingência. Quanto mais subimos na escala da relação do signo com o sentido, mais individuada e necessária ela se torna, mais ilumina a si própria e aos seus níveis mais baixos, como um problema que se esclarece progressivamente. Do mesmo modo, pela arte tenho acesso a esse outro mundo, a esse outro ponto de vista, diferenciado 265 266

Idem, p. 108 e 109. Idem, p. 46.

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e absoluto, que não é aquele pelo qual se constitui o meu mundo. A arte revela assim uma insuspeitada fraternidade. “Estamos, então, em condições de dar à essência o que lhe pertence e recuperar todas as verdades do tempo, como também todas as espécies de signos, para fazer delas partes integrantes da própria obra de arte” 267. Tudo, por força da sublimação, se esclarece e se reordena no tempo redescoberto ou na linha do inconsciente. Essa “recuperação”, porém, pode sugerir um uso estritamente estético das verdades e signos, quando é mais que isto. Para que os signos do amor, por exemplo, deixem de ser enganosos e não se resolvam apenas na verdade do tempo perdido, para que sejam transmutados, eles mesmos, em signos verídicos, é preciso que o nível superior da essência (a sublimação) os alinhe e conserve vivos no tempo redescoberto. É o que acontece aos amantes de Hiroshima, mon amour, de Resnais: acabaram de se conhecer e estão a poucas horas da separação, ora mergulhando no passado melancolicamente, ora perscrutando, angustiados, o futuro, isto é, o insondável processo de esquecimento mútuo, e no entanto são tomados, ao longo do filme, por verdadeiros “picos de presente”. Todos os tempos confluem para o tempo redescoberto. Semelhante transformação dos signos do amor não é uma finalidade, mas um resultado da sublimação originária. Pelo que vimos até aqui, duas conclusões são exigidas: 1) A essência (ou a potência de fazer existir) é inseparável do ato sublimatório, entendido que “revelar” é também “produzir” (producere = trazer à luz). 2) A linha do tempo redescoberto jamais poderia ser chamada de linha natural ou de acaso, mas somente de desejo, de discernimento (e portanto de escolha) e decisão. Compreende-se, assim, porque é preciso remeter à pulsão de vida as derradeiras questões relativas à sublimação e ao tempo, de maneira a serem devidamente colocadas... O domínio do tempo IV. Pulsão de vida Porque deus nada mais é do que tempo 268

Uma idéia que, num primeiro momento, pode gerar equívocos, é no entanto retomada com certa insistência pela abordagem deleuziana de Proust. Trata-se das relações valorativas entre vida e arte. Parece-nos provisória a idéia de que a vida deva ser suplantada pela arte, uma vez que é próprio da

267 268

Idem, p. 88. Hölderlin, F., Reflexões, p. 100, Relume-Dumará, RJ, 1994.

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vida suplantar artisticamente a vida 269. A redundância apenas assevera que a arte é o supremo expediente da vida, “sua atividade metafìsica”. É o que chamamos de arco pulsional. A redescoberta do tempo, enquanto verdade da arte, compreende as decisões mais altas, aquelas pelas quais a vida ingressa em um tempo que não cessa de não passar, tão original quanto ela. Problema analítico: como destravar a arte – ou a vida maior – no seio da vida cotidiana? Que a arte suplante a vida, sem que a superação seja própria da vida, coloca a arte na dependência da pulsão de morte. É o que justificaria o reviramento da noção de pulsão, tal como esta havia sido formulada inicialmente por Freud, e sua resolução exaustiva como pulsão de morte. Nesta residiriam os poderes da diferença e da repetição. A diferença, a princípio atribuída à pulsão de vida, seria deslocada para junto da repetição, desde sempre associada à pulsão de morte. Retomando: por que esse reviramento não satisfaz inteiramente, embora represente um progresso em relação à metáfora meio metafísica e meio biofísica de Freud de retorno ao inorgânico e anulação das diferenças vitais? A pulsão de morte não envolve o discernimento, o poder de avaliar e nem, por conseqüência, o poder de escolha, no entanto essenciais ao conceito de pulsão de vida, quando este recebe o tratamento devido. Não compreende o fato de que a pulsão é uma prática, exercendo-se em diferentes graus. Nem que esses graus são graus do tempo, ou seja, alturas do tempo em que as perspectivas vitais se ampliam, aprofundando e singularizando as escolhas. Finalmente, está longe, enquanto conceito, de implicar que existe outra vitalidade além da vitalidade conhecida, dominada, assim como, de acordo com Nietzsche, no fundo da derradeira caverna surge uma nova, e depois outra ainda... Ou seja, há uma vida vivida, mas há também o invivível da vida 270, do mesmo modo que, em nome de uma nova lucidez, é preciso sondar o escuro 269

Em Proust e os signos, são freqüentes as observações que fazem da arte o estágio superior à vida, próprio das essências: “Nisto consiste a superioridade da arte sobre a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual”. (Idem, p. 41). As duas potências da essência, a diferença e a repetição, diriam respeito à arte e não à vida. “A vida não possui as duas potências da arte; ela só as recebe degradando-as e só reproduz a essência no nível mais baixo, no mais fraco grau”. (Idem, p. 50). É que Deleuze reserva o domínio da vida aos outros signos, aos signos menores que obscuramente nos põem no caminho da arte e das essências, mas ao mesmo tempo resistem, em sua opacidade, a essa progressão, assim como constituem as quedas, as descidas na escala do tempo em relação à leveza superior da arte e de seu tempo redescoberto. Mas o que garante a firmeza na progressão e a constância nesse estágio superior? Em que consiste a força da repetição? 270 Cf. Pelbart, Peter Pál, A vertigem por um fio – Políticas da subjetividade contemporânea, p. 81 e 82, Iluminuras, SP, 2000. Pelbart observa que, para Deleuze, “a literatura tem menos a ver com a morte do que com a vida, apesar de toda uma tradição recente, e que inclui até mesmo Blanchot (...); menos a ver com a vida vivida do que com o invivível da vida, menos a ver com a vida tal como ela é do que com o Acontecimento que dela se extrai...” Assim, as proposições de Proust e os signos a respeito da vida e da arte precisariam ser nuançadas, recolocadas, tendo em vista as formulações ulteriores de Deleuze sobre o tema, como veremos adiante.

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de nosso tempo. Todas as questões relativas à subjetividade se recolocam na perspectiva do invivível: em que altura do tempo, e mediante quais procedimentos, a linha que parecia mortal revela novos graus de potência e vitalidade ainda desconhecidos? O invivível é também o pensamento que continua não pensado, e não existe senão a arte para introduzi-lo no mundo. As formações do inconsciente são esboços de experimentação similar que receberão ou não o tratamento analítico. Em um misto de ousadia e prudência, o sonho do automóvel planador investigava o que era para Jorge, naquele momento, o invivível da vida. Um segundo ponto, articulado ao primeiro, e que também não aparece claramente em Proust e os signos, é no entanto da maior importância para se entender a sublimação. Certamente o estivemos repisando ao longo destas páginas: é o fato de ela ser um destino tão ético quanto estético. O tempo redescoberto é inseparável de uma decisão, tanto que esta se anunciava na procura (recherche) inquieta, insistente, pela qual se desenvolvida o aprendizado dos signos. É certo igualmente que apenas a boa vontade não impele a esse gênero de aprendizado. Movidos por uma necessidade imperiosa, sob o impacto explosivo dos signos afetivos, começamos a pensar, isto é, começamos a querer lê-los, interpretá-los. Alexandre e o poema de Borges, Jorge e sua vertigem onírica... No caso deste último, pode-se constatar que o não-senso do gran finale, percorrendo todo o processo, sendo mesmo sua linha de fuga, revela a duração maior do inconsciente, lá onde isso estava em vigor todo o tempo. A propósito, façamos mais um breve interlúdio clínico. Algum tempo depois de sonhar com o carro planador de rodas para o ar, Jorge teve outro sonho decisivo. Era um domingo e, em vista do almoço em família, acordou cedo com a intenção de preparar uma carne assada e um mignon, não ao molho madeira, como era de sua preferência, e sim na cerveja, para atender ao pedido do primogênito. Mas era ainda muito cedo, e resolveu dormir mais um pouco. Sonhou então que estava em casa com os filhos, preparando as carnes. Logo ingressou em outro ambiente, não menos familiar, onde se encontravam sua mãe, seus irmãos e cunhados. Trouxeram para o recinto o pai, que se esforçava visivelmente para ver – quem? Jorge, que acabava de chegar. Dois dos irmãos dizem ao pai que é o “barbudo” que vem ali, que é ele que está chegando. Dos olhos do pai saem muitas lágrimas. Acompanhemos o diálogo analítico, tal como se desenvolveu após o relato do sonho: J: Parece mais um sonho direto, como os infantis, onde não há disfarce, onde tudo é imediatamente manifesto. E é como se passasse sem turbulência 243

alguma do primeiro ao segundo fragmento do sonho. É interessante como o pensamento se move claramente, compondo uma cena após a outra. Pois tudo se relaciona com a véspera e os dias anteriores. Durante a semana, meu filho pediu que eu preparasse um mignon na cerveja, e assim dispus as coisas para o domingo... Acredito que o sonho encena a relação pai e filho, que é isso que o motiva. É claro que há realizações de desejo – tanto a de preparar a carne desejada por meu filho, como a de que meu pai estivesse vivo. Estivemos reunidos na véspera, como sempre fazemos nesse dia do mês (que é o dia de falecimento do pai) – em nome dele, e para dar uma satisfação à mãe. Além de ser um rito familiar quase religioso, é uma ocasião de congraçamento. A: Sim, parece óbvio. Mas existem detalhes, como por exemplo as lágrimas que saem dos olhos de seu pai... J: Minha mãe contou que ele se mostrava emotivo, demasiado sensível nas últimas semanas de vida, e que muitas vezes o viu chorando copiosamente. Deve ser por isso que aparece em meu sonho naquele estado. A: E o “barbudo”? Você é chamado assim? J: Não. Aquela designação só fazia algum sentido para mim, pois usei barba numa época. Mas não, em casa (dos pais) me chamam somente de Jorginho. A: Que época era aquela? J: Eu tinha uns 34 anos, minha filha acabara de nascer... Meu pai também usou barba por um tempo, antes de mim. Além disso, havia X, irmão mais novo que, na verdade, usava apenas um bigode e um cavanhaque. Não era como usar uma barba, que cobre todo o rosto. A: A barba lhe cobria o rosto? J: Que coisa! Agora ela está parecendo mais um disfarce! O “barbudo” é isso, uma máscara, cobrindo o rosto! A: É como se, chamando-o de “barbudo”, o denunciassem. Quem o chamava assim no sonho? J: Creio que eram meus irmãos A e Z. Havia certo tom jocoso em me anunciarem assim. No meio familiar são aqueles que não param de fazer chistes. Curioso, pois são também os carolas, os devotos, os católicos. A: Você, ao contrário, embora esteja ali... J: Não tenho nada a ver com aquela beatice. Neste sentido sou um estranho em família, embora não pareça... A: É o “barbudo”... J: Sim, é pelo chiste que me revelo, talvez fosse o único modo de deixar aparecer a verdade. A: Deixando cair a máscara.

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J: É, a verdade do inconsciente. Mas agora me ocorre que o “barbudo” é meu verdadeiro rosto. É o bicho. Jorginho era o disfarce. O barbudo é Leon Tolstoi, Dostoievski, Marx, Jesus... A: Os nomes do bicho... Ao mesmo tempo que introduz o desconcerto na placidez linear do pensamento, inicialmente reivindicada por Jorge, o “barbudo” assinala o invivível, o “bicho” e sua temporalidade extra-pessoal. “Jorginho era apenas um disfarce”. Os nomes da história servem para nomear essa potência estranha, controversa, inexplicável, sem idade. Potência do alto tempo? O “barbudo” faz voar pelos ares o regime familiar dos signos. Não é a boa vontade, como dizíamos, que mobiliza o pensar, mas os choques nas fronteiras subjetivas. E no entanto, sem que haja uma decisão implícita, sempre renovada, de decifrar, de investigar, sem que haja uma disposição de desejo que faça do aprendizado uma necessidade imperiosa, ele não ocorreria, ou ocorreria parcial e ocasionalmente. E nisto o aprendizado em questão é uma prova, ou uma série delas, e seu resultado, não sendo natural, é indeterminado. O andamento da pesquisa pela qual se atinge, finalmente, a revelação sublimatória, não pode ser separado do desejo enquanto vetor ético originário. O que desconcerta, o que abala as convicções, as certezas do pensamento, aproxima-nos do trágico. E é esta, como vimos, uma imagem mais avançada do tempo – o tempo selvagem, fora dos eixos de Hamlet. Ao circuito do cotidiano ou do habitual – da vida pequena, como dizia Lawrence – e ao círculo da reminiscência platônica e da re-cognição, a “forma vazia” do tempo – porque não dobrada, não sujeita a nenhuma finalidade – impõe sua linha reta, a linha direita, ética, pela qual o novo – isto é, a diferença – retorna. Ela é diretamente o surgimento, a cada vez, do informal puro, que aqui denominamos de pulsão. Por isso o trágico parecia ser a última palavra da experiência do tempo. Mas se esta aparece em aberto, destampada, se não há mais o ciclo da reconciliação, nem por isso ela se esgota em dilaceramento e abismo. O tempo do desamparo humano era ainda demasiado humano. Era o alto tempo, todavia experimentado sob a forma do vazio e da morte 271. Qual é 271

Encontramos em Deleuze uma espécie de filosofia pulsional do tempo, tanto mais por se graduar temporalmente. Podendo ser designada também de filosofia da repetição, como quer esse autor, ela se desenvolve segundo alguns passos necessários. Para alcançar o último estágio da repetição, que é o da diferença, é preciso atravessar os anteriores, preenchendo suas exigências, não sem que o derradeiro imponha sua tensão aos primeiros. Cada estágio compreende uma sorte de problemas cuja saída é o estágio seguinte. O primeiro diz respeito à fundação do tempo enquanto presente vivo, segundo o qual a repetição dos instantes sucessivos depende de um poder de contemplação (“primeira sìntese passiva”) que os contrai, não sem transvasar uma diferença para o que se repete. É que os instantes nunca atingiriam o estágio de repetição se

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não houvesse essa outra instância – o eu contemplativo – que insinua a diferença entre um e outro, sendo o “e” o elemento da contração. A repetição se resolve em hábito, e a tendência a repetir por contração, isto é, por contemplação e transvasamento de uma diferença ao que se repete, se converte em princípio, o chamado princípio do prazer. O presente vivo, porém, sofre de uma insuficiência. Por maior que seja o número de instantes que ele contrai, encontrará sempre um limite a partir do qual ele passa e se torna, inevitavelmente, um antigo presente em relação ao atual. Aquela diferença deixa de ser transvasada, a repetição é abolida, e isso em nome de um novo presente vivo. Embora Deleuze não o designe assim em Diferença e repetição, o eu contemplativo da primeira síntese passiva corresponde a uma subjetividade pessoal, definida pela conformação do organismo individual e de suas funções sensíveis. Coloca-se, então, a exigência de um fundamento para o tempo, distinto de sua fundação, e que se estenda além do presente vivo. Esse fundamento poderia ser o passado puro (ou Mnemósina), tal como Bergson soube abordá-lo com seus quatro célebres paradoxos. Todavia, o modelo colocado em questão por Deleuze será o da reminiscência platônica, é ela, muito especialmente, que dá a tonalidade e o sentido desse passado. Todos os níveis da memória não fazem senão repercutir, em diferentes graus de pureza, o estado original da idéia. O tempo tem a forma circular, pois é decidido pelo movimento da reminiscência. Ainda em vigor, o princípio do prazer atinge uma extensão supra-sensível, ideal. Eros se junta a Mnemósina, uma vez que a libido é energia ligada, inscrição que se repete, representação investida, repercussão indefinida do Mesmo. O que, para Freud, punha em movimento o psiquismo, senão a busca de uma identidade de percepção, ou seja, a tendência a repetir uma satisfação primária? Este movimento supõe, em Platão, o esquecimento da idéia originalmente vista e o processo de sua reconquista. Assim, o tempo é o da reminiscência, é definido e determinado por ela. Haverá sempre uma identidade de origem, A = A, e a exigência de uma recitação mítica; sempre o perfilar de todos os graus de semelhanças representados no (e representativos do) grande ciclo da Representação. Agora a diferença (que é o tempo em estado puro), salva de sua redução à ordem pessoal do organismo, se ressente de sua sujeição à ordem mítica, arquetípica e rememorativa. Por isso o tempo tem uma terceira e última versão, como que destacada das duas primeiras (como que extraída do passado puro...). Em Diferença e repetição, essa nova ordem do tempo é introduzida pela pulsão de morte. Esta ainda dormitava sob o sistema do princípio do prazer, oculta pela forma do hábito, pelas tessituras da Representação e a ordem do Mesmo (Eros ou Mnemósina). Era ainda recoberta pela forma circular de um passado puro que corresponde, em Platão, ao ideal do Amor. A dessexualização de Eros (ou a pulsão de morte) comporta o investimento de um eu narcísico, porém rachado, separado, dissonante em relação aos conjuntos organizados, à ordem gregária promovida por Eros, ao sistema do Mesmo e dos semelhantes. Uma energia neutra, dessexualizada, responderá pela gênese do pensamento, como queria Freud, e explicará tanto o processo da apatia sadiana como o procedimento masoquista, ambas as perversões dissociadas do móvel imediato do prazer. Aqui, no entanto, surgem novos problemas, que mais tarde tornarão a noção de pulsão de morte equívoca e inoperante. É que ela não detém em si o poder de afirmar a diferença como tal. Ao eu contemplativo do presente vivo sucede o eu ideal, idealizado, do passado puro. Esse passado introduz uma exigência de temporalização, ou seja, de um processo sob o empuxo do ideal de eu, não importa se em sentido regressivo ou progressivo, platônico ou hegeliano. É o grande ciclo da reminiscência ou da evolução, do movimento que perfaz um retorno à origem ou daquele que alcança o fim da história. Até esse ponto encontrar-se-ia em vigor o princípio do prazer. O além desse princípio envolveria a dessexualização do pensamento, a pulsão de morte e um eu rachado, sem dúvida perverso, mas sobretudo trágico. A partir, porém, de O anti-Édipo, e mais decisivamente de Mil platôs, livros em que a colaboração com o clínico Guattari foi certamente decisiva, Deleuze deixará de utilizar a noção de pulsão de morte em favor do conceito de imanência, invocando a perspectiva de um pensamento prático, corporal. “O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar, e força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do pensamento, lograr-se-á o pensamento nas categorias da vida” (Cinema II – imagem-tempo, op. cit., p. 227). Esse retorno (insistente, repetitivo) do pensamento à vida e da vida ao pensamento é o que chamamos de ressexualização do pensamento ou, simplesmente, de arco pulsional. Pois bem, Deleuze vinculará ainda ao conceito de imanência a idéia de uma vida inorgânica, originária, passível de se tornar uma prática constante – pulsão de vida (ou o tempo em estado puro). Não se sofre mais da diferença, ela se tornou interna: para além da dor trágica, o riso beatífico. O que os psicanalistas, de modo geral, não parecem conceber, é que o além do

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o futuro de Édipo senão a desgraça, a peregrinação nas trevas? Mas Édipo se torna um vidente, um Tirésias, e entrará vivo no Hades. É preciso mais uma volta e uma nova espécie de círculo para que todo acaso, isto é, toda a vida seja afirmada. As potências do acaso, introduzindo o fator indesejável em todo acontecimento, eram acolhidas, na melhor das hipóteses, como prova de resignação estóica. O tempo não fora tocado ainda em seu estado puro, de puro desejo, e portanto não havia adquirido a feição real e soberana de uma dupla afirmação – todo acaso querido, afirmado todo tempo, o que Nietzsche chamava de amor fati. Sabedoria da análise, destinada a reverter o acaso em querer, o tempo selvagem em tempo de criação. Como se propõem, então, as relações da vida com a arte no domínio do tempo? É somente na altura do tempo redescoberto que iremos encontrar, sempre de novo, em alta repetição, uma nova vitalidade. Daí que o artista, enquanto artista, é aquele que não envelhece 272. Pode-se dizer o mesmo da pulsão e seu saber intempestivo.

princípio do prazer não se esgota com a pulsão de morte – ele inclui muito especialmente a pulsão de vida, em sua consistência ética ainda inadvertida. 272

Cf. Proust e os signos, op. cit. p. 49.

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SABER DA CURA (CONCLUSÃO) Quando se viu rodeado de cegos e paralíticos, e incitado por um corcunda a curá-los, sob o argumento de que acreditariam mais facilmente em sua doutrina, Zaratustra se desvencilhou de todos eles dizendo não se preocupar nem um pouco se faltava um olho a este, uma orelha àquele, a língua ou a cabeça àquele outro. Tinha visto males piores, homens que eram apenas uma grande goela, um grande olho ou uma grande pança. De fato, ao retornar de sua solidão deparou-se, um dia, com uma orelha tão grande quanto um homem. Aproximou-se. Sob a orelha se erguia um ser lastimavelmente pequeno e débil, um caule fininho e curto com o aspecto de um homem; através de uma lente era possível ver, na extremidade do caule, um minúsculo rosto invejoso e uma alma empolada. Asseguraram-lhe que aquela orelha não só era um homem, como era um grande homem, um gênio. Pareceu-lhe, no entanto, apenas um enfermo às avessas, com muito pouco de tudo e demasiado de uma coisa só. Em toda parte, concluía Zaratustra, só se encontram restos, pedaços, acasos horríveis – e em lado algum, homens 273. Com esta passagem de Assim falava Zaratustra, convidamos a pensar, entre outras coisas, e a propósito da grande orelha, na figura do psicanalista, e em que medida ele não se tornou, ao longo do tempo, um especialista presunçoso, julgando ter ouvido tudo ou ser capaz de ouvir tudo. É de se esperar que tenha ainda um corpo, que sinta, intervenha, fale, que esteja, de preferência, vivo, ativo, que seja íntegro... Mas o que é ser ativo e íntegro do ponto de vista analítico? Que não seja apenas uma orelha, ciente, por antecipação, de tudo o que pode ser ouvido, já é um dos aspectos da integridade. Essa pretensão de saber tudo de antemão, tão avessa ao savoir-faire analítico, não é de forma alguma rara. Eis um exemplo: é comum nos meios psicanalíticos o entendimento de que todas as vicissitudes humanas se resolvem em algumas estruturas clínicas – neurose, perversão ou psicose. O humor dissolvente de Lacan, elevando o psicanalista à condição de psicótico, não alterou o gosto pela norma. Todas as variações se fazem em torno de três invariantes estruturais, e assim, de um modo ou de outro, tudo será ouvido dentro de limites dados. A linha do horizonte subjetivo está previamente desenhada. E no entanto, as linhas de desejo que atravessam as estruturas clínicas, que não se deixam captar nesta ou naquela estrutura, são as linhas da 273

Transcrição livre de uma passagem que aparece na Segunda Parte de Assim falava Zaratustra, op. cit., capítulo Da redenção, p. 147.

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cura. Mas se eu julgar que o desejo é histérico por natureza, ele já terá seu destino analítico traçado antes mesmo de iniciar a jornada 274. A análise deve restaurar uma integridade, e para tanto se dirige às condições originárias do homem, este ser, como dizia Nietzsche, que não está determinado. “Condições originárias” não dizem respeito, portanto, a uma essência do homem que o determinaria a ser o que ele deve ser. Não é este o sentido profundo do wo Es war... Antes pensaríamos nas condições polimórfico-perversas da criança e, para dar a isso um tom místico, em seu reino dos céus. Parece um paradoxo, restaurar a integridade de um ser indeterminado. Mas é precisamente esse destino que define a cura psicanalítica. O saber daquelas condições, nas quais se inclui, muito especialmente, a indeterminação, é o nódulo da cura. O que se quer dizer com indeterminação, se uma noção como a de sobre-determinação é imprescindível ao pensamento psicanalítico, tendo em vista que um sujeito humano, de acordo com essa noção, é um ser multiplamente determinado? Não determinado pode soar, porém, de diversas maneiras: em aberto, ou que permanece obscuro, ou ainda que se autodetermina. Mas que natureza poderá ter uma auto-determinação, depois de toda a crítica psicanalítica à idéia de consciência autônoma? Uma primeira resposta é que ela será de natureza ética e, portanto, não-natural. Com isso a “indeterminação” adquire todo o seu valor clìnico. Há quem diga que o nódulo da cura é o “gozo” – a ser desimpedido, recusado, temperado, circundado ou circunscrito. O que não se costuma dizer é que saber e gozo são o mesmo. É claro que, para vê-lo coincidir com o gozo, entendemos o saber como avaliação, estimativa, apreciação. O saber é erótico, e como tal o praticaram e desenvolveram as mais antigas civilizações. Nesse sentido, o Banquete é apenas um epígono. Eros é um deus avaliador. Existem, sem dúvida, diversas alturas para este poder que avalia e discerne. Nunca é demais lembrar a passagem em que Nietzsche, num texto sobre a “filosofia na época trágica dos gregos”, e a propósito de Tales, distingue o cientista do filósofo, o primeiro interessando-se por tudo e cada coisa, 274

Sugerindo a possibilidade de se fazer uma clínica estética, Deleuze aproxima a pintura da histeria, na medida em que essa arte afeta diretamente o sistema nervoso. Uma leitura ligeira, porém, faria crer que Deleuze tende a assimilar a experiência do corpo histérico ao corpo sem órgãos que a pintura dá a ver (“Mas a realidade viva desse corpo poderá ser chamada de „histeria‟?”). Lógica da sensação, op. cit. p. 53. Na verdade, a histeria compreende o transito e a oscilação de um plano a outro, do organismo ao corpo sem órgãos, mas também uma espécie de capitulação constante frente ao organismo. “A pintura é histeria, ou converte a histeria, pois faz ver a presença, diretamente”. Por isso Deleuze é mais preciso quando diz que “o que o histérico é incapaz de fazer, um pouco de arte, a pintura faz” (p. 58). Preferimos o termo “reversão” para descrever o procedimento pelo qual a pintura torna visìvel “a presença do corpo sem órgãos sob o organismo” (p. 56), pois se trata de reconstituir as condições originárias do corpo vivo.

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evoluindo por passos, circunspecto, prudente, contando com apoios fixos e sucessivos para avançar, enquanto o segundo percorre de uma única vez, em sobrevôo perigoso, todo o percurso. É este, diz Nietzsche, o homem do gosto mais apurado, ao qual interessam as coisas mais importantes. O filósofo “busca fazer ressoar em si mesmo o clangor total do mundo”, para em seguida exprimi-lo em conceitos. A ele interessa o originário, denominado, no caso de Tales, de “água”. Ao associarmos satisfação, gozo, ao saber analìtico, não estamos, certamente, nos referindo ao Bem, o que não autoriza de modo algum a pensar que se trate, então, do Mal. Não pensamos em uma boa finalidade para o gozo. Por isso vale repetir a sentença de Aristóteles sobre os primeiros filósofos, mencionada naquele texto: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, divino, mas inútil, pois não se importavam com os bens humanos” 275. O saber ou o gozo pulsional tem esse traço de não servir, a princípio, a nenhum bem, o que, apesar de tudo o que já foi dito, deve desconcertar, tendo em vista o título do presente escrito: “pragmatismo pulsional”. Se o saber em questão é uma avaliação, uma apreciação, operando em diversos graus de profundidade e de agudeza, não seria o mais útil dos saberes? Repetimos, ele não serve a nenhum bem, não serve a nada, mas isto porque é dele que decorrem todos os bens possíveis e todas as utilidades. É o não sujeitável. A princípio “tudo é bom e nada presta”, não fosse a eminência desse saber inatual e inútil. Portanto, não estaríamos errados em afirmar, em aparente contradição com o que dissemos acima, que ele serve a tudo, na medida em que, situando-se além do bem e do mal, discerne o bom e o mau em todos os acontecimentos, bem como aquilo de que não se deve abrir mão em momento algum, não importa o que mais possa estar em jogo. A pulsão é a phisis freudiana, indica a presença do originário no homem. Não se deve esquecer, em nome de uma justa apreciação do saber analítico, que a pulsão é uma autoridade no que diz respeito ao vivo, ao desejo. Ela só precisa ser exercida, e cura é o nome que damos a esse exercício. Neste capítulo, colocaremos em discussão algumas vicissitudes do saber analítico – ou pulsional – e suas implicações na direção da cura. O originário e o conceito de pulsão: a medida da cura Sempre é possível perguntar, a propósito da finalidade da análise, o mesmo que se perguntaria sobre o seu fim, enquanto término: quando estamos 275

Citado em Obras incompletas, op. cit., p. 41

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à sua altura? Quando se alcançou o fim, o alvo? Quando estamos certos de que a concepção de alvo não decorre de uma medida neurótica, menor, de uma vida menor, de um fragmento de vida? Quem está em condições de decidir pela medida, pela envergadura da cura? Para que não se confundisse com um ideal de eu e nem se conformasse a um discurso de mestre, preferiu-se subverter a noção de cura, ressaltando a idéia de processo. Mas se este tem uma direção, mantém-se a referência a um alvo. É para fazer face a uma interrogação sempre renovada sobre esse alvo que existe em psicanálise a noção de pulsão, conceito extemporâneo, destinado a cobrir muitos tempos, pouquíssimo explorado, conforme dissemos no início, apesar das pretensões expressas aqui e ali, de modo implícito ou explícito, de havê-lo exaurido. Temos, de modo geral, uma noção de pulsão mutilada, um pedaço de pulsão, um ponto de vista menor, freqüentemente não contextualizado e, por isto, insuficiente e equivocado: parcial, de morte, sexual, de vida, etc., são maneiras de ser da pulsão segundo diferentes pontos de vista, diferentes planos de visão, e se ordenam e se esclarecem de acordo com esses mesmos planos. Já assinalamos que em algumas vertentes do pensamento psicanalítico essa noção é considerada inócua, metafísica, inútil a uma clínica, pois até quando se concede à pulsão uma existência obscura, ela só se fará apreender na experiência analítica como representação. Remeter às pulsões de vida e de morte os acontecimentos psíquicos, subjetivos, seria assim reificar o psiquismo com uma teoria especulativa, insinuar na práxis e na sua inteligência o que não é mais que o horizonte teórico da psicanálise. Uma decisão desta natureza, em que se destitui o conceito de sua pertinência clínica, acaba por deixá-lo inexplorado 276. Nem bem a pulsão despontou no horizonte com sua face estranha, tanto na clínica como no pensamento, e já nos desviamos dela? A psicanálise morre aos poucos à medida que se distancia da pulsão. A insistência das pequenas línguas, porém, parece renovála a cada vez, restituindo-lhe a obstinada vitalidade. Por isso Miller chega a dizer, a propósito de Lacan & Joyce, que a psicanálise é salva pela literatura. Em razão do abandono precoce do conceito de pulsão e de sua utilização, inclusive com argumentos que o colocam definitivamente à margem de qualquer uso, como aqueles que asseveram seu caráter metafísico – quando é a persistência de uma visão metafísica ou transcendente da vida humana que impede de conceber sua virtude prática –, há uma forte tendência, ali onde ainda se pensa, a abandonar a psicanálise, às vezes com uma crítica profunda e contundente como a realizada por Deleuze e Guattari em O antiÉdipo e em Mil platôs. Ora, a pulsão e os devires deleuzianos são a mesma 276

“Libido ou Tanatos e qualquer outro fundamento do desejo não fazem parte do consultório, sendo reificações do psiquismo”. Introdução à teoria dos campos, op. cit., p. 45.

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coisa, medidas e critérios de experimentação que não coincidem mais com as medidas e os juízos do Homem enquanto ser já determinado. E, por isso mesmo, evocam condições e afetos originários. Um devir animal é um trajeto de involução analítica às condições originárias do homem. A noção de pulsão é afetada de um teor crítico e polêmico; reabre, à maneira do lapso, pela via da suspeita e do desconcerto, novos campos de interrogação no domínio clínico e teórico, inclusive renovando a cada vez a pergunta pelo sentido da própria psicanálise. É ao mesmo tempo elemento de inquietação teórica e de precisão clínica. Definindo-se como prática de exame constante – pois ela não é simplesmente uma força obscura, mas a força do que não se conhece, ou seja, do conhecimento –, a pulsão exerce função curativa de primeira ordem. Trata-se de noção essencialmente clínica. Portanto, além de ser uma energia (libido) e uma tendência, é uma medida e um critério. A pulsão é a boa nova psicanalítica. Por seu intermédio se entenderá a arte da interpretação – espécie de adivinhação das linhas de um destino, como a definiu Lacan. É notável, escreve ele, como na experiência freudiana a “tendência” (Trieb), coisa muito diferente do velho instinto com o qual foi logo confundida, já compreendia em si mesma a potência do significante 277. Este parece esclarecê-la num primeiro momento, é o que explica que ela seja decifrável; mas sobrevém a exigência de uma exploração mais minuciosa do seu campo, uma vez que esse campo orienta, em última instância, a trama significante. Há mais coisas do lado da pulsão do que se imaginava. A pesquisa freudiana tinha se colocado à altura do tesouro do significante, da linguagem viva dos processos inconscientes, de suas leis de composição, bem antes de fixar esse novo conceito. Reverte-se o sentido da proposição de Lacan: ao que antecede se chega por último, e o significante, que parecia elucidar o campo pulsional, agora prepara e anuncia seu entendimento mais avançado. Em que a pulsão é exigível além do significante? Não basta dizer que ela demarca a diferença cujo significante, na teoria e na experiência, a títulos diversos, é o falo; há mais coisas a serem ditas acerca dessa diferença que a noção de significante não recobre. Por exemplo, que a pulsão seja em essência atividade, o que fez Lacan situar, como primeira operação analítica, uma retificação das relações do sujeito com o real, ou seja, com sua vertente ativa, mediante a qual constrói a realidade de que sofre e de que eventualmente se queixa. Acrescente-se outro componente essencial da pulsão que é seu alvo invariável – a satisfação. Claro que um bom número de satisfações são efeitos 277

Escritos, op. cit., A direção do tratamento e os princípios de seu poder, p. 603.

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de significante, compreendendo – para usar uma expressão lacaniana – o que o real sofre do significante, mas isto não é tudo. É apenas a face passiva do gozo. Pois existem satisfações a-significantes, originárias, que estão, por assim dizer, na gênese da linguagem, ou melhor, na origem de sua efetuação, numa altura em que a vida não pode mais ser ferida. Vislumbra-se, aqui, a mais alta virtude pulsional, aquela que abre a perspectiva de um tempo de criação. A pulsão é uma perspectiva, como não cessamos de repetir, um plano de visão, uma altura do tempo. Se é essencial à interpretação analítica, fornecendo os elementos que irão propiciar a decifração das linhas de um destino – sendo ela mesma a decifração, o saber –, é porque freqüenta diferentes alturas do tempo, inclusive aquela que reúne todas as outras. É o originário que preside a todo o processo. Duas conseqüências decorrem do esclarecimento pulsional de um destino – destino, entenda-se, da pulsão. Primeiro, a experiência do originário pode transformar um destino impedido e, desde então, inibidor, em destino desenvolto, maior; segundo, essa experiência irá aprofundar e iluminar tal destino, de modo que a construção de uma vida, neste caso, passa a coincidir com um processo de reconstituição e de restituição. “Sempre sei, realmente”. Que ao exercer a escuta flutuante Freud já intuísse a pulsão – cuja elaboração conceitual se dará somente em 1915 – e por isso chegasse antes dos lingüistas ao significante (não certamente antes dos poetas) – isto se deve a quê? Deve-se justamente ao fato de possuir uma visão voltada para a saúde e a doença, voltada primeiramente à vida e à sublimação, e não exatamente às leis da linguagem e aos sistemas lingüísticos. Questão de privilégio, de ordem, na consideração dos fenômenos da vida humana. Alcança a linguagem desde baixo, desde antes, lógica e eticamente, alcança-a na sua criação contínua. A boa nova é o ponto de vista do inconsciente. Toda investigação em análise, para ser consistente, orienta-se por este ponto de vista. Ativo, integrativo, superativo 278, deve-se a ele o movimento real do sujeito. Pulsão designa assim um poder de avaliação, de apreciação, uma estimativa de valor (o que vem antes? o que vem depois?), um saber. É uma ciência, uma filosofia, uma ética, uma ontologia em estado nascente. Algo assim como o pensar-nato que Antonin Artaud teria encontrado no México, junto aos tarahumara, denominados por ele de “raça-princìpio”. “Os tarahumara estão obcecados por sua filosofia; e o estão até uma espécie de embruxamento psicológico; para eles não há gesto perdido, não há gesto que não tenha um sentido de filosofia direta. Os tarahumaras vão se fazendo filósofos da mesma 278

Ao integrar linhas de sobre-determinação, a pulsão supera os sentidos em curso em favor de avaliações mais precisas, amplia o campo experimental e freqüenta outras alturas do tempo. Cf. O caminho do campo analítico, op. cit., p. 117.

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maneira que uma criança vai se fazendo maior e chega a ser homem; são filósofos ao nascer” 279. É em relação ao saber do inconsciente, lugar da cura, que destacarei alguns equívocos no entendimento teórico e clínico da psicanálise. E é mesmo notável que sejam equívocos sobre o saber! Como é de se esperar, eles são convergentes na concepção do início e do fim de uma análise. Um primeiro equívoco sobre o saber: afetos secundários passam por primários (ou de como se começa depois do começo e se termina antes do fim) Afetos freqüentemente reconhecidos como originários nas pesquisas psicanalíticas são ainda derivados, secundários. Uma prova disso é que raramente se liga o afeto ao saber, e no entanto a análise deve conduzir a ambos, ao afeto (= sujeito, segundo um Lacan mais secreto) e ao saber. É comum que se chegue a um saber sobre tal ou qual afeto, mas não a um saber próprio do afeto, a um saber que é ele próprio afeto, um afeto lúcido, esclarecido. Daí o lugar de saber que reservamos à pulsão, não obviamente o do saber intelectual, mas o do gozo, ao qual, bem entendido, não falta intelecção. Não faríamos mal em associar saber, no infinitivo, com saborear, de maneira a sugerir uma aprendizagem, uma pesquisa e uma experimentação. Deve surpreender a proposição de que um afeto originário seja ele mesmo um saber, pois, justamente, é comum se ter do originário uma idéia inadequada. Um saber acerca da pulsão, o saber sendo uma coisa e a pulsão outra, é um equívoco completo do ponto de vista clínico, pois a pulsão é saber – ativo, prático, ético. Leia-se o que se tem escrito sobre psicanálise: na maioria das elaborações teóricas e descrições do processo clínico há uma forte tendência a se começar depois do começo e terminar antes do fim. O que é originalmente recalcado? Quando estamos na altura dos afetos originários? Um exemplo: em mais de um autor encontra-se a idéia de uma ficção original com a qual o sujeito se defende da angústia e, ao mesmo tempo, se prende a ela e a preserva; ficção de um todo, de um eu fálico, ideal, narcisista, às vezes concebido como a criança magnífica, e da qual o sujeito terá de se separar ao longo e a certa altura precisa da análise – o que poderíamos chamar de seu clímax. Nas digressões teóricas, ora a perda desta ilusão aparece no início da experiência de vida do sujeito – a perda de seu “bastar-se a si mesmo” geraria uma experiência primordial de luto, graças à qual a criança desenvolveria estratégias de vida, recursos simbólicos, etc.; ora essa perda, esse corte, são 279

Los tarahumara, op. cit., p. 76.

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tratados como uma conseqüência da análise, como um fim buscado por ela e até mesmo sua razão de ser. Nos dois casos há uma dor e um luto que resultam da separação ou auto-separação do sujeito – um luto, portanto, pela perda do que não poderia de maneira alguma ser mantido. É evidente que se registram experiências importantes desse gênero no decurso de uma análise. As pessoas de fato sofrem com a perda de uma ilusão de poder, a falência de uma ficção, a morte da “criança maravilhosa do inconsciente dos pais”, assim como sofrem a perda de um bem, de um ente querido ou do usufruto de uma circunstância de vida, de acordo, inclusive, com a percepção mais penetrante de que a dor decorre não diretamente da perda, da separação do objeto, mas do superinvestimento de sua representação quando ele se encontra, no entanto, irremediavelmente perdido 280. Seja como for, em tais digressões o saber aparece sob a forma da perda e da dor – a realidade da morte, a ilusão querida e cultivada porém insustentável. É enfatizada, inclusive, a dor de um luto que se infinitiza, pois se trata, sempre de novo, de reencontrar e perder a tal criança 281. Fala-se numa serenidade (“tristeza serena” 282) finalmente alcançada face a uma perda que seria impossível evitar, mas não se fala em alegria. Por quê? O saber, neste caso, está associado à perda e ao corte, não à potência. É preciso haver, de fato, uma propensão spinozista ao saber para ver nele ocasião de contentamento, gozo, e só não diremos de beatitude em razão de seu traço bélico. É certo que o saber inconsciente corta, mas ele também une, o que se esquece freqüentemente de dizer – por não ser pensado? não ser vivido? Pois cortar pode consistir em unir o sujeito à sua potência, à pulsão; é inclusive o que convém chamar de exercício da pulsão (do qual o lapso é o mais simples e cabal exemplo), sua justiça 283. Isso não compreende em princípio a experiência de uma perda, mas de uma distinção e o gozo desta distinção. Qual é o objeto desta distinção? A condição ativa, pulsional – é dela que se goza e é nela que consiste o saber. Essa distinção, Lacan a formulou como uma retificação das relações do sujeito com o real, entendendo-a como um primeiro passo da intervenção analítica, seguido da transferência e da 280

Conf. Nasio, J.-D., A histeria – teoria e clínica psicanalítica, Zahar, RJ, 1995. “Longe de ficar quites com sua perda, ele a reencontrará inúmeras vezes no curso de sua existência, agora compreendida como um longo e sereno trabalho de luto”. Idem, p. 100 e 101. 282 “A dor agudiza a percepção endopsìquica, leva a perceber a verdade e dá acesso a uma tristeza serena”. Idem, p. 104. 283 Quando Guattari fala em ruptura de sentido, em corte, em separação de um conteúdo semiótico de uma significação dominante, reinveste ainda o corte analìtico, opera com as noções de “extração” e de “separação”, mas precisará ainda acrescentar que os operadores existenciais que procedem à extração ou à separação, ou seja, que desencadeiam o processo existencial, devem adquirir, por sua vez, consistência e persistência (Caosmose, op. cit, p. 31). É aqui, precisamente, que cortar deve ser também unir, unir a subjetividade à pulsão que é, ela própria, a prática constante, o saber-fazer e o seu exercício. 281

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interpretação 284. Não disse, porém, que essa retificação preside a todo o processo e seu término, sendo por isso o derradeiro passo – graus do real revisitados. Separare, diz Lacan em algum lugar, se conclui em se parere, engendrar-se a si próprio. Mas o “engendrar-se” é originário, é ele que fomenta a separação no nível e na modalidade em que ela irá se verificar. Assim, aquele outro saber, o da separação e da perda, não deixa de ter uma feição pulsional, se é a pulsão que, em última instância, denuncia a ficção de completude e procede à separação (o exemplo definitivo: o lapso, que rompe a unidade narcisista do discurso); mas é um saber que apenas denuncia a presunção, a ilusão de unidade, a divisão. Sem o giro inteiro, ele se reduz à desilusão, ao não-senso, ao nada, à morte. É preciso alcançar o saber prático e positivo da saúde. É este, afinal, que está na origem de todo o saber. Mas cabe perguntar se mais uma vez não deixamos equívoco o problema do alvo da análise, ora dizendo que não se busca com ela nenhum bem, nenhuma finalidade prescritível, ora definindo o alvo, muito simplesmente, como a prática da saúde. As duas formulações não se contradizem, se considerarmos o que se deve entender por prática da saúde. Até aqui não fizemos outra coisa que procurar esclarecê-la, identificando-a ao exercício da pulsão de vida cujos traços não paramos de estabelecer. Não alcançando, portanto, o saber prático da saúde, se terá dado somente meia volta e não a volta inteira pela qual o sujeito retorna às suas condições originárias. A volta inteira é o derradeiro ritornelo, destino abstrato ou cósmico. Parando a meio caminho, a psicanálise ganha ares niilistas – a perda, a falta-a-ser, a falência do sentido, a redução do campo pulsional à pulsão de morte (que é apenas outro nome para o narcisismo e seu destino) e o indefectìvel “saldo cìnico” ao final da análise. Em franca deserção ética elevada a dito espirituoso, Charles Melman chega a afirmar que a “máxima” freudiana, o Wo Es war soll Ich werden, “é otimista mas irrealizável” 285. Muito antes de fazer o giro inteiro 286 – que é rigorosamente ético, pois consiste na reconstrução de uma integridade – pode-se parar a qualquer altura, em qualquer estação, porque é irrealizável, já se ouviu tudo... Como na visão de Zaratustra, a realidade humana apresentaria apenas pedaços, restos de processos, acasos horríveis que, a crer nesse tipo de realismo esclarecido, dispensariam, no limite, a própria psicanálise.

284

Escritos, op. cit., A direção do tratamento e os princípios de seu poder, p. 602. Melman, C. Estrutura lacaniana das psicoses. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991. 286 Não fosse o entendimento que Magno tem do alvo da pulsão, que ele designa de Não-Haver, e em razão do qual se opera o “revirão”, usarìamos de bom grado essa expressão para indicar o giro inteiro. Pois o giro inteiro é, ele próprio, o alvo da pulsão, a dupla afirmação. 285

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Será preciso dizer que o íntegro – não sendo fragmento ou parcialidade e nem se definindo como terminado ou completo – se refere ao aberto, isto é, ao processo de reconstituição incessante das condições de potência e desprendimento? O reencontro do objeto de que falava Freud, baseado numa identidade de percepção que inclui – é preciso não esquecer – componentes cinéticos do sujeito, pode muito bem indicar o retorno da pulsão; deste modo, o reencontro não se refere exatamente a um objeto, mas ao poder de constituir objetos libidinais. É o retorno do Afeto. O objeto e a perda do objeto são secundários em relação a este poder. Assim, no já citado Mar Paraguayo, de Wilson Bueno, assiste-se à criação de um cão infinitesimal, feito de afeto e linguagem – o minúsculo foxito-terriê cujo nome, Brinks, se distende, interminável, com os diminutivos do guarani: Brinks’i, Brinks’imi, Brinksmichi, Brinksmichimi, Brinksmichimíra’ymi, Brinksmichimíra’ytotekemi...287 A questão analítica se centra na tendência (Trieb) e não no objeto – sim, irremediavelmente perdido, mítico ou o que se queira, porque nunca se tratou dele, mas da tendência, do poder de constituir (conservar, substituir, reencontrar) objetos libidinais. É na reconstrução desta tendência, deste poder de afetar e ser afetado (definição deleuziana de força), e não na perda do objeto, na falta ou na castração, que reside em última instância o saber. O objeto é o valor que ele tem, e este depende da altura em que se exerce a pulsão. Dessa altura derivam as realidades e os próprios objetos. A sublimação é o caminho, o veículo e o norte, e não a castração que, no melhor dos casos, vai de roldão. Um segundo equívoco sobre o saber: o afeto originário desligado da idéia é um absurdo Afetos obscuros, deslocados, ligados a idéias substitutivas, não são mais originários. Eles têm a feição dada aos afetos pelo recalcamento. Uma maneira já habitual de conceber o destino do afeto na mecânica do recalque nos dá uma idéia das resistências relativamente sutis à análise ou, o que vem a ser o mesmo, à experiência da pulsão, advindas, é claro, dos próprios analistas. Ao contrário do que se está inclinado a pensar nos meios psicanalíticos, a análise depende do analista, a resistência é dele, como soube ver Lacan. No caso do entendimento sobre o afeto a questão atinge, muito depressa, seu clímax. Não há inocência.

287

Mar paraguayo, op. cit., p. 62 e 63. .

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Tendo como ponto de partida o conjunto idéia-afeto, costuma-se pensar que o recalque incide sobre o significante ou a representação, não sobre o afeto, e que este deriva, desligado de sua representação, para outros circuitos ideativos, às vezes muito distantes da situação de origem, ali insinuando sua carga de investimento. Pode-se dizer, inversamente, que no interesse das instâncias recalcantes, esses novos circuitos ideativos captam a energia afetiva liberada, separada da idéia original. Sem dúvida a descoberta psicanalítica dos processos inconscientes inclui muito especialmente a derivação do afeto (seu deslocamento, sua metonímia) e suas diversas traduções ideacionais, sobrepondo-se umas às outras como tantas metáforas de metáforas e constituindo, ao longo do tempo, cadeias significantes inconscientes cada vez mais profundas. O que interessa aqui, no entanto, é a concepção de que se recalca apenas o significante ou a representação originária do afeto, mesmo quando se admite ser o elemento afetivo o alvo final do recalque. Lacan dá provas de uma visão assim em seu seminário sobre a angústia. A certa altura, e especialmente a propósito do afeto, que o autor, contra as interpretações ligeiras de seu discurso, afirma estar no centro de suas preocupações, há a seguinte observação: “Ao contrário (de desatendê-lo), o que eu disse sobre o afeto foi que ele não é recalcado. Isso, Freud o diz como eu. Ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram” 288. Freud, se seguirmos a trama de sua investigação ultraflexível, nem sempre sustentou essa idéia, e oferece claros indícios de um entendimento diferente em textos-chaves de sua obra, como o conciso artigo sobre A negativa (Die Verneinung), onde se lê que a aceitação intelectual do recalcado não significa ainda o levantamento do recalque. Se a pressão afetiva, Dräng, sinaliza, seja pela angústia ou outro sinal, que o afeto insiste e se desloca sob as representações, isso não impede de pensar que aí se trate, precisamente, do retorno do recalcado nas condições do recalque. O afeto insiste, mas enquanto ele é também sua idéia; não haveria insistência se ele não fosse, por assim dizer, quem é. A idéia, não menos que o afeto, pode ser enlouquecida, invertida, metabolizada. Seja como for, o recalque incidindo apenas sobre a representação e deixando o afeto à deriva tornou-se um bê-a-bá doutrinário pouco questionado. Até hoje esta concepção não foi submetida a uma revisão crítica e menos ainda a uma denúncia. Segundo o entendimento de uma tal mecânica tudo se passa como se, com a derivação do afeto, vivêssemos ainda no mesmo nível afetivo, a questão analítica se colocando a propósito de significantes, de 288

O seminário, Livro 10 – a angústia, op. cit., p. 23.

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idéias, de representações mais ou menos inadequadas, incluindo aí as ficções de completude e as fantasias de castração. A psicanálise deixa de ser assim um expediente inovador da vida para se converter em mero instrumento de reforço e refinamento dos modelos culturais em curso, de legitimação de sua racionalidade e de suas formações discursivas. Mas não é certo dizer, por exemplo, que a tensão da sexualidade excessiva, a tensão do desejo, passe tal e qual, com igual quantidade, para a fantasia de castração sob a forma da angústia e, em seguida, conforme o caso, derive para a conversão propriamente histérica, para o pensamento obsessivo ou para o objeto fóbico, sob a forma do sofrimento neurótico. A carga não é mais a mesma, não é mais a mesma tensão, nem a mesma disposição; pois não é apenas uma questão energética, é também ética e prática: da condição originária para a secundária houve uma queda considerável do exercício pulsional. Ora, é claro que o afeto foi recalcado, ele não aparece mais como na origem, a vida sofreu uma diminuição. Se foi desfigurado a ponto de se tornar irreconhecível, o afeto tornou-se outro afeto. Desapareceu a sua experiência naquele grau, e aquele grau era simultaneamente intensidade e sentido, força e entendimento. Como não se viu logo que o afeto originário é, sem mediação alguma, sua idéia? Que visão temos do afeto para que, uma vez separado de sua idéia, persista como tal? Claro, foi transformado, metabolizado, mas é como se ainda fosse ele, efetuando-se na mesma medida, com outra face. Ao deixar, no entanto, de ser exercido, experimentado, já não se distingue do recalcado – aliás, é o recalcado por excelência. A partir daí, também ele, não menos que a idéia, insinua uma ausência em todo acontecimento subjetivo. Por que esta questão é importante e vale uma denúncia? Concomitante à inversão ou ao deslocamento do afeto, há um distanciamento do saber e, notese bem, uma diminuição de vida. A concepção de que um afeto possa ser desligado da idéia e continuar a ser ele próprio – o que, já dissemos, é um absurdo, ao menos ao nível dos afetos originários – deve-se à noção precária, reduzida, que se tem desses últimos, como se fossem matéria bruta a ser moldada pelas representações, cargas primitivas de atração e repulsão, quantidades nuas, forças cegas que receberiam das idéias sua qualidade, sua luz. De fato, nesse nível a idéia é luz, mas isso é o afeto; sem dúvida ele já é o entendimento de si próprio. Está longe, portanto, de ser rudimentar ou primitivo 289. 289

“O conceito de afeto ou o de relação pática indica a possibilidade de apreender globalmente uma situação relacional complexa, tal como a melancolia, ou a relação com a subjetividade esquizofrênica. Mas temos a tendência a pensar que esse modo de conhecimento por afeto não-discursivo permanece rude, primitivo, espontaneísta. Essa abordagem não discursiva é igualmente a da hipercomplexidade, tal como é estudada atualmente em diversos domìnios cientìficos”. Caosmose, op. cit., p. 77. Aqui se reúnem o afeto e seu saber intrínseco, o aumento de vida e seu enriquecimento, sua complexidade (o simples e o refinado), e tudo isto

260

Ao se pensar desde Freud num quantum de afeto, reconhecendo aí algo de paradoxal, pois se trataria de uma quantidade que não é mensurável, tendese a situar o afeto como algo diferente de uma mera quantidade – o que é inteiramente justo – sem achar, contudo, uma saída que não seja paradoxo e mistério. O paradoxo é falso, pois um afeto é um grau de avaliação das condições subjetivas, é uma apreciação, envolve uma medida, uma mensuração de valor e intensidade. É um grau de avaliação e uma avaliação de graus. Por que, então, se atribuiu ao afeto esta imagem menor, reduzida e opaca, senão para melhor desconhecê-lo, de modo que as noções sobre seus destinos validem uma vida menor como se fosse a única, a vida neurótica e seu mundo como o melhor dos mundos possíveis? O afeto despojado de sua idéia, ligado a outras idéias substitutivas, não é mais o mesmo, já se perdeu de vista quem se é, quem se terá sido e quem se pode ser ainda. Sofre-se, na verdade, da supressão do afeto naquele grau, sofre-se de uma diminuição de vida. Disso é possível resultar, de fato, uma dor real, ao se adquirir a noção desse esquecimento, a clareza de não ter estado à altura da pulsão quando ainda era tempo, isto é, á altura do que se pode, do que se sabe, do que se sente. Neste caso não se trata mais de uma tristeza serena, mas de uma dor trágica. É uma razão para se preconizar, como inerente ao trabalho analítico, o cuidado heideggeriano – que a palavra latina caritas poderia expressar adequadamente –, ou seja, uma atenção com aquilo que é mais caro, com aquilo que é mais importante do ponto de vista das condições originárias. O que é mais importante, porém, nada tem a ver com uma essência redescoberta, no sentido do que seria idêntico a si, e sim com a condição de saber e seu exercício. É da ordem do acontecimento, não da coisa em si 290. Talvez se argumente que não é possível eliminar o mundo neurótico, que cada qual deve se arranjar com as condições de vida de que for capaz, etc., e que cabe ao sujeito se responsabilizar pelo seu destino, decidindo pelo que é mais importante para ele. A questão, porém, não é esta, e sim de se pretender

aquém ou além da representação ou, como diz Guattari, aquém ou além das coordenadas discursivas. Mais uma vez, isso não significa ausência de verbo, muito pelo contrário. 290 “O problema do pensamento não está ligado à essência , mas à avaliação do que tem importância e do que não tem; está ligado á repartição do singular e do regular, do relevante e do ordinário...” Diferença e repetição, op. cit., p. 307. Nesse livro, Deleuze distingue o saber, que depende da representação da consciência, do aprender, que concerne à apresentação do inconsciente, isto é, dos problemas subrepresentativos que são, como tais, os verdadeiros atos do inconsciente. A noção de saber que propomos se esclarece, contudo, quando o saber diz respeito à diferença e envolve o afeto. Já dissemos que, primeiro, a diferença é indissociável de uma atividade, sendo ela própria ativa; segundo, que é uma avaliação, pela qual suas próprias condições e as do entorno são avaliadas; e, terceiro, que ela é diretamente ética, ou seja, diretamente posição de desejo – em nome dela própria.

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que uma vida diminuída enuncie, em nome da psicanálise, as últimas palavras sobre a vida, a lucidez ou a saúde. É verdade que um afeto invertido conta hoje a história obscura de sua origem e de sua inversão. Não deixa, portanto, de exprimir o tempo de transformação e de esquecimento de suas condições originárias, evocando-as por meio das chamadas formações do inconsciente. Pode-se dizer que um fio histórico – ou ainda, uma cadeia de significantes – reconduz o afeto secundário às suas origens, de tal modo que esse fio é sua identidade, seu ser de afeto, independente das vicissitudes pelas quais esteve passando. Presumese, aliás, que é o que sucede ao sujeito, de sorte que se manteria válida a idéia de que o afeto não é recalcado, simplesmente sofre transformações. Acontece que os afetos originários são ativos, são verdadeiros atos e, como os atos falhos, procedem diretamente do inconsciente, onde eles ex-sistem, como diria Lacan, “sem o abrigo do amanhã” 291. Ora, o recalque originário incide sobre o ato do inconsciente do mesmo modo que incide sobre o sujeito do inconsciente. É a mesma coisa. O saber do ato e o ato são igualmente a mesma coisa. A emergência do ato e a do desejo se decidem no levantamento do recalque, como uma espécie de desimpedimento do sujeito. A separação entre saber e sujeito, por permitir a postulação de um inconsciente, isto é, de um saber sem sujeito, “lá onde isso era”, não exclui que esse saber interesse a alguém, precisamente na altura da destituição subjetiva promovida pela análise. Não é ao sujeito do cogito que isso interessa, pois isso o subverte, na mesma medida em que a subjetividade se esclarece como desidero. O domínio ético toma a dianteira, mas em termos tais que a ética não remete mais a uma aplicação da razão aos impulsos e inclinações, dando origem aos bons costumes, como em Aristóteles, mas ao que garante não só o uso da razão como também uma espécie de firmeza no pensamento e uma visão do futuro. Quando se fala de significantes em psicanálise, ao menos em Lacan, trata-se do saber que reside neles, tanto mais próximo da experiência subjetiva quanto menos esta se guiar pelos trilhos da ignorância douta, ou seja, pelos discursos de mestre. Eis a razão da livre associação. É por isto que não se ensina este saber e o analista se autoriza a si mesmo. Mas como os significantes (implicados, por exemplo, num lapso de linguagem) são precipitações de saber, e o saber do ato é o mesmo que o ato – de tal modo que este porta em si o saber de si e só age na vigência desse saber que ele é –, recalcar significantes é recalcar, em última instância, essa condição ativa que, por seu teor de vida ou de real, é também afeto originário. 291

O sinthoma, op. cit.

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Coincidência do virtual e do atual, acontecimento “temporalmente eterno” 292, o desrecalque originário é a grande aventura da memória e do tempo. É o caso em que o saber vem ocupar o lugar da verdade, para empregar a fórmula do discurso analítico proposta por Lacan. A verdade do sujeito do inconsciente – ou da pulsão – é o saber em ato. Pois bem, é este conjunto, que se compõe de uma única coisa, a coisa íntegra por excelência, já que saber e ato são as duas faces do sujeito do inconsciente – é este conjunto que se encontra originariamente recalcado. Daí Lacan ter dito que “o saber passa em ato”. É o gozo do ato = o saber do ato = a subjetividade do ato. Entende-se assim porque o afeto originário é ativo? O ato é tão mais presente quanto mais ele porta em si o saber da mais profunda memória; traça a transversal que reúne os cumes ou os pontos luminosos dos vários estratos do tempo, segundo uma linha que não se faria mal em chamar de linha de retidão. Note-se bem, essa linha do tempo não se constitui senão como um ethos, ou seja, como morada do espírito, não no âmbito da tradição e dos costumes, nem, portanto, da religião, mas no contínuo de suas escolhas e atos, no seio da duração. Eis o que distingue o saber do inconsciente dos demais saberes: é um saber ético das escolhas e, sobretudo, da condição de escolha. É o fora do pensamento, o impensável que o pensamento se esforça, no entanto, em pensar. Deleuze chamará a este ponto de fora de acaso ou graça, definindo assim uma região para além do saber, à qual só tem acesso o homem “da escolha ou da crença” 293 . Seria o caso de dizer – o homem do desejo? Neste ponto, porém, convém remanejar a noção de saber inconsciente. Não mais entendê-lo como relativo a algo que até então não se sabia ou que sempre se soube, ou os dois ao mesmo tempo, de acordo com uma primeira idéia acerca do inconsciente e com a divisão do sujeito que essa idéia implica, mas assimilá-lo a um exercício ético e a uma prova do desejo. É a segunda idéia acerca do inconsciente, concebido agora eticamente, e de seu correlato, o sujeito íntegro. O saber já não se distingue de uma confiança, não em algo, mas num caminhar, num proceder, que pode ser inclusive de desconfiança, reserva, exame: desejo-luz, desejo-caminho, garantia de que a condição de escolha não se distingue de quem se é. É, portanto, mais que uma crença, é uma convicção. Mas esta convicção parece, de fato, uma fé, uma crença, por não ter apoio senão em si mesma. Daí um dos modos de conceber a pulsão – como sendo (mais que tendo) seu próprio critério de verdade. 292

“No cruzamento das duas linhas travava-se o „temporalmente eterno‟ – o liame da Idéia e do atual, o pavio de pólvora – e se decidia nosso maior domínio, nossa maior potência, a que concerne aos próprios problemas...” Diferença e repetição, op.cit., p. 306. Deleuze fala da concepção de acontecimento em Péguy e suas duas linhas, a horizontal e a vertical. 293 Cinema II – Imagem-tempo, op. cit., p. 214.

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O afeto invertido, deslocado ou metabolizado conta a história do afeto originário, mas o faz de modo obscuro. Ao ser revertido às condições originárias, vê-se bem que este afeto desfigurado fazia parte do sistema de recalcamento e, assim, impedia o surgimento do originário; se mantivéssemos que o afeto é ainda o mesmo, porém modificado, e que o significante ou a representação é que desaparecem sob o recalcamento, deveríamos sustentar que tudo prossegue no mesmo nível afetivo, quando apontamos, pelo contrário, um desnível entre o recalcado e o recalcamento e, com isto, uma diminuição de vida. Antes era o nível do afeto, agora é o do recalcamento, com seu cortejo de afetos derivados. O afeto originário, porém, persiste inconsciente, como rastro de ausência em todos os níveis da experiência, por não alcançarem o seu grau. Um terceiro equívoco sobre o saber: o saber dissociado do gozo ou o gozo dissociado do saber. A propósito do final da análise Que o saber apareça dissociado do gozo percebe-se facilmente nas considerações usuais sobre um final de análise. Esclarecido, de posse do saber, o sujeito pode escolher tal ou qual satisfação, ou mesmo recusá-las; o analista, em exercício ético, deixa ao sujeito a questão de se permitir ou não a satisfação da vertente pulsional agora elucidada. O saber se situa num ponto e a satisfação em outro. Tome-se, mais uma vez, a título de exemplo, o texto de Collete Soler, Variáveis do fim da análise. A autora evoca três destinos pulsionais para um final de análise: um consentimento à satisfação pulsional, uma sublimação das pulsões (“consentimento indireto”) e um “recalque bemsucedido”. Privilegia o terceiro, “que nos dá”, diz ela, “a finalidade do tratamento analítico, segundo Freud, que é corrigir, rever (...) o processo de recalque” 294. Esse privilégio determinará, no texto, o gênero de argumentos com os quais serão em seguida tratados os temas do sentido, do gozo, do fim da análise e da posição ética do analista. Para irmos logo a este último tema, resumindo o que pretendemos dizer, basta apreciarmos o quanto se incorre num equívoco enorme ao se afirmar, sem uma reflexão mais rigorosa, que uma coisa é o saber sobre o gozo, outra a aceitação do mesmo. Freud, é verdade, esclarece seu procedimento nestes termos: depois que a análise decifrou o sintoma e revelou a exigência pulsional, com a espécie de satisfação que esta implica, cabe ao sujeito a decisão de aceitá-la e passar ao ato ou de rejeitá-la, numa nova modulação do recalque. Soler observa, acertadamente, que essa atitude ética de reserva sustentada por Freud se 294

Variáveis do fim da análise, op. cit., p. 54.

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distingue inteiramente da atitude do mestre. Assim, assevera ela, “o fim de análise não proclama que o gozo antes recusado tenha de passar para a prática, contrariamente a certos ecos, que algumas vezes escutamos...”. Com tais formulações dá-se prova, sem dúvida, de um esteio ético, mas também de que se está apenas no meio do caminho, pois a exigência pulsional decifrada ao fim do processo analítico é a exigência do saber, e é nele que consiste a satisfação – entenda-se: na medida em que é praticado. Muitas são as modalidades de gozo, o originário, porém, é o do saber. Se assim é ao final, pode-se dizer que terá sido assim todo o tempo. Quando, por exemplo, uma mulher, depois de reconhecer o quanto se precipita fantasiando uma relação futura, maravilhosa, com um homem que esteve longe de encorajá-la a tal, deixa escapar que não desiste de “fazer um casal” – a que se deve o deslize, a revelação? Que ela, sozinha, não desiste de “fazer um casal” poderia ser uma expressão direta da pulsão ou do desejo. Mas se entendermos que a pulsão acaba por trazer à luz, empurrando à fala, o que precisa ser compreendido, ouvido, teremos da força pulsional uma idéia mais profunda e apropriada. Teremos a noção de que ela é, além de ativa, integrativa, pois, no deslize, na revelação, ela dá a ver a imagem que se fez dela e o entendimento de que era apenas uma imagem, uma ficção e mesmo um desconhecimento. Lembremo-nos da advertência de Freud: um sonho não é o inconsciente. Saber pulsional versus paixão da ignorância. Se esta fosse própria da pulsão, não haveria análise e nem inconsciente. Assim, contrariamente à advertência de Soler, o gozo, isto é, o saber antes recusado, deve passar imediatamente à prática, ou melhor, deve ser imediatamente prático, ou a análise não encontrou ainda seu termo. E ela só é interminável por se tratar, desde então, de uma prática constante do saber. Vale acrescentar que este se resolve, em última instância, como saber das condições de saber 295. O homem, diz Heidegger, sabe pensar porque tem a possibilidade de pensar, mas isto não significa ainda que seja capaz de pensar. É claro que o analista não deve forçar o sujeito a ir adiante e, na verdade, nem poderia, mas isto se impõe desde o início do processo. Ora, ir adiante em análise significa, necessariamente, respeitar (= praticar) o saber 295

O saber das condições de saber remete à natureza do inconsciente. Que este seja o lugar das questões e dos problemas, como sustenta Deleuze em Diferença e repetição, traduz em boa medida o que entendemos por originário no caso do saber. “As questões e os problemas não são atos especulativos que, por esta razão, permaneceriam totalmente provisórios e marcariam a ignorância momentânea de um sujeito empírico. São atos vivos, investindo as objetividades especiais do inconsciente, destinados a sobreviver ao estado provisório e parcial que, ao contrário, afeta as respostas e as soluções”. Op.cit, p. 180. Ao falar de uma prática constante do saber, aludindo ao mesmo tempo à força constante que caracteriza a pulsão, situamos o campo próprio do inconsciente e seu vetor: “A potência das questões vem sempre de outra parte que não das respostas e desfruta de um livre fundo que não se deixa resolver”. Idem, p. 183.

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que nela se obtém. Não há resistências senão ao saber, e este não se distingue de sua prática. Os equívocos sobre o saber destacados acima não se verificam apenas no domínio analítico; eles certamente fazem parte da experiência humana, e a psicanálise, que não deixa de pertencer ao campo desta experiência, traz consigo seus vestígios. E contudo se exerce, à maneira de uma indagação constante, com um pé fora daquela experiência, no seu exterior indeterminado, como é próprio do inconsciente, que pertence e já não pertence ao sujeito. Os equívocos sobre o saber são, por isso, um de seus temas privilegiados. Que o afeto possa ser despojado de sua idéia, que o saber se resolva apenas como corte, separação, perda ou morte, e que no final da análise o saber e a satisfação pulsional não coincidam, e sejam ainda considerados distintos na prática, são equívocos, como é possível verificar de um só golpe, perfeitamente articulados. Exprimem todo um plano de entendimento e de experiência e, decididamente, um limite. Usamos o conceito de pulsão para indicar a transposição incessante dessa espécie de limite. Assim, a maior precisão no uso do conceito tende a revelar as imprecisões relativas ao saber no âmbito da experiência analítica. A própria análise, enquanto processo real, enquanto prática, se esclarece por seu avanço em precisão nos modos de conceber e de explorar o campo pulsional (ou campo do saber inconsciente). É nisso, aliás, que consiste a cura.

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