Jack London - O Andarilho Das Estrelas

April 20, 2017 | Author: api-3858149 | Category: N/A
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Jack London

O Andarilho das Estrelas “The Star Rover”

Tradução de Merle Scoss Prefácio de Michel Sokoloff

Índices para catálogo sistemático: 1. Reencarnação: Ocultismo 2. Vidas passadas: Ocultismo

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© Jack London Título do original em inglês: The Star Rover Direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa autorização dos editores. Fotocomposição: Outras Palavras Produções Editoriais e Com. Ltda. Capa: Ilustração de um manuscrito representando as fases da evolução e dissolução do cosmos. Rajasthan, século XIX. Axis Mundi Editora Ltda. R. Dr. João Pinheiro, 133 - São Paulo - SP - 01429-00-1 S (011) 887-6669 - Fax (011) 852-5544

Índice

Prefácio de Michel Sokoloff Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22

Em 18 de dezembro de 1991, estávamos na Livraria Zipak assinando o contrato que faria nascer a editora Axis Mundi. Naquele exato momento, Michel Sokoloff percorria as prateleiras da livraria, enquanto um livro caía sobre nós, The Star Rover, de Jack London. A magia dessa estranha sincronicidade só iríamos desvendar mais tarde, numa praça de Marrakesh... OS EDITORES São Paulo, março/93

PREFÁCIO DE MICHEL SOKOLOFF Jack London, nascido em 1876, morto em 1916, atravessou a vida como um cometa. Marinheiro, correspondente de guerra, vagabundo, especialista em prospecção, agitador socialista, fazendeiro, ele foi o escritor americano mais conhecido na Europa. As reedições de seus livros se multiplicam, mesmo em nossos dias, na Itália, no Japão, na Rússia e na França, pois sua personalidade marcante toca os homens de nosso tempo nos seus questionamentos mais íntimos e revela esse conflito permanente entre a razão, o pensamento conceitual, de um lado, e o vivido, o sentido, do outro. O que significa essa representação do mundo das idéias criada pela ciência para o homem que vive na sua carne o sofrimento e o enigma de estar no mundo? Numa reação contra sua mãe, espírita e médium bem conhecida, Jack London toma-se decididamente materialista e se engaja, a título pessoal, na luta para melhorar a condição dos oprimidos pelo sistema capitalista. Inscrito no partido socialista, ele pede sua demissão no final de sua vida. E resume sua posição na dedicatória de seu último grande livro, O Andarilho das Estrelas, que endereça a sua mãe: “Minha querida mamãe, aqui está todo o argumento da tua postura segundo a qual apenas o espírito persiste enquanto a matéria perece. Sinto-me bastante culpado de tê-lo escrito, porque não acredito em nada disso. Acredito que o espírito e a matéria estão tão intimamente ligados que ambos desaparecem juntos quando a luz se apaga. Teu filho, afetuosamente, em 21 de outubro de 1915.” E, no entanto, toda a sua obra é habitada pelo mistério da vida que a transpassa. Ele prefigura esta humanidade do século vinte, dividida entre o homem de razão prisioneiro da armadura social e o ser humano que vive o drama de uma vida precária e limitada. Para entrar no mundo de Jack London é preciso vibrar na sua mesma amplitude de onda. É a abertura à vida que permite o encontro com o Outro, você, seu semelhante, e o maior dos estranhos... Essa estranheza de ser outro, Jack London a cultivou em sua obra, quando dizia: “Preferiria ser um soberbo meteoro, cada um de meus átomos irradiando um brilho magnífico a ser um planeta adormecido. A função do

homem é a de viver, e não a de existir. Não desperdiçarei meus dias na tentativa de prolongar minha vida, quero queimar todo o meu tempo.” Por qual misterioso jogo de circunstâncias encontrava-me em Marrakesh, no Marrocos, durante o Congresso Internacional sobre o Transe, em companhia de Luis Pellegrini? Estávamos num pequeno restaurante árabe dominante sobre a grande praça que fervilhava de vida intensa e tradicional. Memórias de infância retornam... no mercado iluminado por lampiões a gás, milhares de atores acendem a lâmpada de Aladim... o espírito desceu sobre a vida. Luis começa a falar: que surpreendente personagem saído da Renascença italiana e do sonho veneziano. Ele fala de um livro de Jack London que quer editar no Brasil. Sinto subir em mim o sentimento radiante da minha infância... olho para Luis e digo a ele: “Com certeza é O Andarilho das Estrelas.” “Sim” responde Luis, “como você adivinhou?” Não, não se trata de adivinhação, mas simplesmente do reencontro entre Um e o Outro, este ser conjunto no calor de um olhar que vê a invisível Presença daquilo que não se diz: a consciência me leva ao mais profundo de mim mesmo. Once upon a time... (era uma vez...) Saint-Jean-Cap-Ferrat, em pleno verão. Um bebê acorda, abre seus olhos e sente-se invadido por uma luz que o inunda. Ele vê o sol aparecer e fundir-se nele, sobre um fundo de céu azul. Pela primeira vez, ele tem consciência de ser ao mesmo tempo sol, luz, céu, numa alegre evidência de si mesmo. Foi assim que encontrei, pela primeira vez, a criança solar. Essa cena primitiva ficara impressa na minha realidade de ser, como o reconhecimento de uma segurança interior, vivida pela primeira vez de modo consciente. Eu tinha oito meses quando meus pais mudaram de casa, o que me permitiu situar esta experiência no tempo. Luis me observa. Saberá ele ou não que o espaço da criança solar, este achado essencial do meu ser no mundo, é a pequena morte descrita por Jack London, tal como a carrego preciosamente em mim? A lâmpada de Aladim iluminou-se entre nós; tenho de esclarecer isso através de algumas palavras, traços de um passado que pede para se incorporar lá, agora, diante da Grande Praça de Marrakesh, o verbo toma corpo... Acontece meu segundo encontro com a criança solar. Eu tinha sete anos, a idade da razão despontava! No meu foro íntimo inscreveu-se o meu encontro com aquele que chamo “o Antiquário”. Eu vivia em Menton, uma pequena cidade à beira do Mediterrâneo. Num canto da rua havia uma loja mágica que me fazia sonhar. O dono do

lugar era um homem velho, de barbas brancas, que portava um pequeno boné para dissimular a calvície. Essa loja se chamava “Antigüidades”. Quando eu não tinha aulas, gostava de parar diante dessa loja no caminho que descia para o mar, aquele mar onde, cada vez que mergulhava, reencontrava a criança solar como anos antes a vira no meu berço. Lançava olhares furtivos sobre todos aqueles objetos bizarros que parecia conhecer desde sempre, mas que eu não ousava ainda olhar de frente, como se uma certa timidez ainda me impedisse de as reencontrar. Era um lugar mágico do qual eu me tornava o mágico. Um dia, ao observar a vitrine, vi, entre outros livros, um livro. Foi bem depois que vi o título aparecer na minha tela mental — O Andarilho das Estrelas, de Jack London —, pois naquele momento, absorvido pela presença desse livro, mal pude ouvir uma voz ao mesmo tempo rude e carinhosa atrás de mim que me dizia: “'Então, garoto... o que é que tanto te atrai...?” Tomei o livro: ele era para mim, e apenas a mim dizia respeito. Mas o livro possuía tanta força que me caiu das mãos. Olhei para trás, um tanto inquieto com a minha falta de jeito, e percebi vagamente, como num nevoeiro, o velho antiquário barbudo, com seu boné, que me observava com muita simpatia: “É esse livro que te atrai, garoto...? Você sabe, os livros, quando a gente os encontra, não nos abandonam nunca mais. Fique com esse livro. Dou para você. É um presente. E cada vez que você sentir vontade, pode vir aqui no meu reino, onde você descobrirá todos os objetos que testemunham a tua presença no mundo.” Naquele instante um pacto se estabeleceu entre mim e aquele velho que chamei “o Antiquário”. E cada dia em que sentia o coração pesado, ia naquela loja e fazia meus todos aqueles objetos vindos de longe. Durante todo o tempo, quando eu me prolongava através daqueles objetos, como num ritual preestabelecido entre nós, o velho sentava-se numa poltrona de estilo colonial. O silêncio tomava-se mais e mais denso com as nossas presenças, e eu sentia crescer em mim uma sensação de bem-estar, de ressonância de um com o outro. Ao final de um tempo, eu estava pacificado, feliz, eu e o antiquário, ambos presentes numa mesma qualidade de silêncio. Ele jamais interferia com uma palavra qualquer que pudesse quebrar a magia do indizível. Lembro-me com precisão da cena que segue... O mar estava a 500 metros do antiquário. A margem da água havia uma gruta, iluminada do alto por uma fenda que deixava passar a luz. Eu me escondia lá para escutar o murmúrio das ondas. Naquele dia, o barulho do mar era muito forte... eu

começava a leitura do livro e, enquanto todo o meu ser se prolongava até o próprio espírito que animava esse livro, eu me identifiquei com seu herói aprisionado por toda a vida por um crime passional. Esse homem, vítima de um de seus companheiros de cativeiro, estava encerrado dentro de uma pequena cela. A cada dia, o diretor da prisão vinha vesti-lo com uma camisade-força cada vez mais apertada, para obrigar o protagonista da história a admitir um crime que ele teria cometido contra a instituição e que só tinha realidade no seu próprio delírio. Um dia, quando o diretor apertava mais e mais a camisa-de-força, esse homem sentiu seu corpo relaxar-se completamente. Ele estava livre da armadura da opressão, ele podia ver seu corpo aprisionado, e fazia isso com toda a serenidade porque tinha se desidentificado... Agora o prisioneiro podia desafiar o opressor e o provocar para que apertasse ainda mais a camisa-de-força que o aprisionava, como se essa constrição imposta à sua forma provocasse um movimento de expansão e de liberação do seu ser. No final da história, o herói se precipitava na morte pelas mãos do opressor. Mas, para ele, tratava-se de um retorno à sua liberdade de ser, o supremo desafio a todas as opressões. Eu fechei o livro... A gruta estava iluminada por uma luz muito suave; pela fenda, eu via o céu e tinha a sensação de crescer até tocar o firmamento dos deuses. Ao ascender ao indizível, eu aprendia as duas faces do mundo, sua sombra e sua luz. Meu herói e eu éramos os únicos a descobrir a chave. Existia, de um lado, a escola, a injustiça, a pressão social, a luta de classes, o conflito, e, do outro lado, o transe tranqüilo, o silêncio upon a time (acima... do tempo). Novamente eu sentia em mim essa sensação de ser a criança solar. Só percebi o poder dessa experiência muito mais tarde, quando tive de enfrentar a opressão nazista e suas conseqüências: a destruição sistemática do meu ser pela tortura física e psíquica. Mas, da mesma forma que o herói do meu livro, eu estava animado por uma energia vital que permitia que eu me prolongasse até os fundamentos do meu ser, para além de todos os discursos e todas as repressões. Ao retomar dos campos de concentração, e habitado por essa força vital, reentrei no campo social; fui tomado, então, por uma única pergunta: a de como os homens, quando perdem o contato com esse estado da criança solar, podem chegar ao holocausto organizado, pondo em ação a metáfora do medo, do horror e da solidão.

Como podemos viver sem essa presença interior sem nos tornarmos loucos ou desesperados? Você vê, LUÍS, um analista diria que eu me identifiquei com o andarilho das estrelas e simbolizei a indizível realidade da criança solar surgindo em mim a face da armadura social que me encerrava por todos os lados. Estaria eu bem consciente do jogo em questão, ou tudo não passaria de uma representação posterior de uma realidade nunca desaparecida? No entanto, a evidência interior de ter estabelecido uma comunicação telefônica com o meu futuro permanece completamente viva ainda hoje, quando entrei no meu septuagésimo ano de existência terrestre. Qual será essa mensagem vinda do meu futuro? “Viva os poucos anos que ainda te restam e fortifica em ti a criança solar. Teus únicos aliados: a floresta onde escutas o silêncio que te fala, o tremor de alegria com o qual te lanças ao mar nos dias de tempestade, esta gruta banhada de luz, o grande sicômoro do alto do qual podes assistir ao teatro em pleno verão, a divina liberdade de estar no mundo. Em breve deveras passar pela prisão social e física, e para dela te liberares só poderás contar com a criança solar ancorada no mais profundo de ti.” Qual é esse lugar misterioso em nós onde habita a força vital das origens aqui e agora? E como escrever sobre ela, já que toda escrita não passa de traços sobre uma página branca, do mesmo modo que todo pensamento? A vida precede sempre a palavra que a representa, salvo nos instantes de graça do poeta que todo ser carrega em si. Não é nossa imanência interior que fala e nos transporta na alegria e no entusiasmo da criança solar? Mas quem sou eu? As palavras às quais me identifico? Ou a criança solar sempre adiante das palavras e da história? Alguns meses mais tarde, Luis veio me visitar em Genebra e pediu-me para escrever um prefácio para a edição brasileira d' O Andarilho das Estrelas. Não gosto de escrever, preciso ter a presença real do outro para que apareça em mim o narrador. Não sei fazê-lo apenas com a presença de uma folha em branco. O telefonema para os leitores que ainda virão... Isso não funciona para mim. Luis, sentado no sofá à minha esquerda, olha intensa-mente para mim e aguarda minha resposta. Este é o nosso terceiro encontro: o primeiro aconteceu em Daramsala, na índia, quando esperávamos o Dalai Lama, e o segundo em Marrakesh, no Marrocos, entre dois filhos de Oxalufã que estão na terra para viver e não para existir.

Existem buscadores de vida como existem buscadores de ouro. Eu me pergunto: ousarei escrever? Súbito, o espaço ao nosso redor começa a vibrar, a face de Luis se transforma, uma grande suavidade, uma grande calma o circundam, o espírito dos seus ancestrais venezianos o anima. Cada vez que isso acontece, há a surpresa de estar lá e de flutuar no espaço do presente intemporal da criança solar. Aparentemente nada mudou; simplesmente escutamos juntos vibrar o silêncio da noite que murmura ao ouvido: “Ouse escrever livremente, deixe sua mão dançar e deixe aparecer, sobre a folha branca, as poucas pequenas coisas que dão um sentido à sua vida; ofereça-as àqueles que lerão sua mensagem e não abandone jamais o entusiasmo que anima você. Precisará de muito humor para viver plenamente o reencontro com o ser totalmente estranho àquilo que você pensava ser.” Jack, Luis e eu estamos em ressonância na mesma amplitude de ondas de um presente intemporal. É exatamente disso que ele me pede para falar; e o paradoxo está no fato de que “isso” é por natureza misterioso e inatingível. Trata-se exatamente de um prefácio que se tomará o posfácio do livro de minha vida. Continuo, portanto. Aos dez anos, novamente, o estranho cruzou meu caminho. Depois de um período em que por dois anos só cursei a escola da vagabundagem, pedi a meus pais para começara trabalhar. Chegara para mim o tempo de enfrentar a armadura social. Tempos mais tarde, minha mãe encontrou um novo companheiro, e eu, enfim, encontrei um pai, quer dizer, alguém que tinha autoridade para sê-lo. Por três anos pude desfrutar da sua presença, e então os fados o levaram para o Leto, o mundo do espírito. Deus meu! O quanto chorei! Como é estranha a presença da ausência! Três meses após a sua morte, eu desperto; são quatro horas da madrugada e seu fantasma está ali, a poucos metros do meu leito, vestido com uma longa camisola de dormir feita de nuvens, como um holograma vaporoso, imóvel, que lenta-mente se dissolve. Às oito horas da manhã, não percebo mais que três pequenos pontos brancos no lugar dos olhos e do coração. Mas onde eu estava durante todo esse tempo? Sou inca-paz de me recordar, salvo que escondia a cabeça sob os lençóis e depois olhava de novo, e ele estava sempre lá, indiscutivelmente real para mim. Foi depois dessa aparição que tive a convicção de que aquele a quem chamava “o tio Jean” iria me acompanhar na viagem iniciática da existência. Os umbandistas diriam que eu tinha encontrado o meu “preto-velho”.

Tudo a seguir correu muito depressa — meu pai continuou a beber para esquecer, minha mãe encontrou um outro protetor, e eu me perdi, arrastado pelo turbilhão da guerra. A lenta descida aos infernos começara: 1939, 40, 41, 42, minha prisão e condenação por um tribunal especial de guerra alemão a 12 anos de encarceramento quando eu tinha apenas 18 anos; e depois aconteceu minha fuga, e minha luta contra o nazismo na Alemanha. Uma noite, meus companheiros colocavam explosivos plásticos numa ferrovia enquanto eu estava de tocaia; ouvi alguém que engatilhava uma arma para atirar. Volto-me naquela direção e atiro num soldado alemão; corro e percebo que a arma dele estava emperrada. Tomara que eu não o tenha matado! Não, eu não sou um matador, eu não tenho nada a ver com esse pesadelo. E preciso sair desse turbilhão absurdo e insensato. Fujo. Fui preso na fronteira alemã, enviado a Berlim e torturado pela Gestapo. Foi nesse exato momento que vasculhei atrás do espelho, no intemporal. Eu era ao mesmo tempo a criança solar no seu berço, o andarilho das estrelas na sua gruta, o jovem adolescente vibrando com seu pai surreal... todos esses espaços-tempos estavam ao redor de mim como um gigantesco caleidoscópio. Segundo a velocidade com a qual eu me deslocava sobre esse eixo vertical ao centro da esfera, as imagens rodavam num turbilhão de velocidade maior ou menor. Em certos momentos, a velocidade era tão grande que simplesmente não mais existiam imagens. Na realidade, é impossível descrever; é como um perfume que vem de longe e, ao mesmo tempo, eu era esse longe, observando meu corpo torturado e ouvindo o oficial alemão dizer: “Das ist zweck loss, in diese zustand er wird nicht mehr sprechen” (No estado em que ele se encontra, não dirá mais nada). Era um paradoxo bem real. O andarilho das estrelas e a criança solar que eu havia imaginado estavam fora do alcance desse universo carcerário que outros homens haviam criado em seu delírio. Jack, um irmão no intemporal, tinha me oferecido o seu livro como prefácio à minha vida; o tio Jean me assinalara esse mesmo espaço imaginário e eu fora maravilhado sem nada compreender. E se esse mundo de antimatéria, surgindo às vezes na minha realidade material, fosse justamente aquilo que a ciência chama de acaso, essa misteriosa carícia que escapa às leis imutáveis da razão, então tudo se tomaria possível, mesmo o fantasma coerente, aquilo que a ciência chama de milagre sem nele acreditar. E se os homens, um dia, ousassem viver assim, passando da causalidade á finalidade de si próprios? Como no tempo dos gregos, essa mudança de paradigma passa pela descida aos infernos e a necessidade de cortar a cabeça de Górgona para

descobrir desse modo o caminho da liberdade. Por que o preço a pagar por esta liberdade é tão caro no mundo dos homens? Como o herói de Jack London, estou vivendo a pequena morte, observo meu corpo entregue à tortura e, subitamente, uma luz extraordinária me invade e desmaio numa claridade infinita. Novamente a criança solar dança com o mar e o céu da sua infância. 1943, 1944, como Perseu, a Górgona me agarra por todos os lados e, como refúgio, resta-me apenas o espelho da criança solar onde são projetados meus encontros com o futuro. Cada passagem do meu devir tinha o poder de aniquilar as trevas do grande encerramento nazista. Vinte e oito de abril de 1945. Estou paralisado sobre um colchão no salão dos moribundos do campo da morte. Os alemães me quebraram a coluna vertebral, enquanto lá fora tudo se move. Procuro me erguer na medida do possível e vejo através das grades, os soldados russos uniformizados, no meio de uma multidão de mãos estendidas para a vida que re-nasce. Meus companheiros de miséria desfilam, cuidam de mim, e, levada pela solidariedade humana, a criança solar desperta em mim. Sim, danço novamente; apesar do sofrimento e da paralisia das minhas pernas, eu sou a certeza viva de que tudo aquilo que existe pode ser transformado. Agora é a noite da liberação, sinto vibrar a presença da vida que renasce em toda a Europa. A criança solar está lá agora, e isso significa alguma coisa a mais. A esquerda do meu leito, uma freira está sentada, um véu branco cobre o seu rosto, eu lhe faço perguntas, ela responde e depois desaparece. Alucino? Não, ela está lá de novo, e depois novamente desaparece. Por um bom tempo jogamos esconde-esconde, não me lembro de nada e no entanto ela respondeu a todas as minhas perguntas. A única coisa de que me lembro é desta mensagem: “Agora tu és livre para dispor de ti mesmo; você ousou, você está livre para descobrir o universal”. Foi nesse momento que compreendi que tio Jean partira na direção do seu devir. Eu iria renascer e descobrir o mundo como no primeiro dia da criação... Neste 22 de fevereiro de 1993 completei 69 anos e sinto a mesma força que me impulsiona a descobrir a estranheza do Outro, meu semelhante. Retorna-me à memória a explosão de riso interior quando, por ocasião do meu retomo da deportação, em 1945, o médico-chefe me anunciou que eu ficaria para-lítico por toda a vida. E me vi projetado no meu futuro, respondendo-lhe: “Doutor, estamos juntos no momento da festa de Natal de 1949 e o senhor pode ver que eu

caminho e danço com o senhor.” Depois aparece na minha memória minha experiência em Lourdes, em 1947, ao retornar da peregrinação do rosário. Aquele despertar na estação ferroviária de Nice, quando minhas pernas estão direitas, todas as análises revelam-se normais, enquanto oito dias antes elas estavam dobradas a 90 graus e as análises clínicas eram catastróficas. No caminho da liberdade encontrei seres humanos que me acompanharam e que transformaram aquele deserto do Éden em Paraíso do desejo satisfeito. A criança solar ainda e sempre dança em mim, com meus companheiros de viagem e meus velhos amigos de outrora, o andarilho das estrelas, o Antiquário, o tio Jean, a gruta da minha infância, o mar e minha mãe no meio das árvores. Jack London, como eu, conheceu a miséria de uma infância solitária passada num mundo hostil, e um ponto nos reuniu: nós dois ousamos, com toda nossa força vital, assumir o risco de modificar a implacável realidade a partir da nossa subjetividade, a mais íntima e a mais secreta. Por que e como, através do meu reencontro com o Brasil, o Templo Guaracy de São Paulo e Luis Pellegrini, meti-me a vagabundear com vocês no coração da memória, traçando de novo aqueles instantes de fulgor onde passado e futuro fundem-se numa mesma luz? Viver e deixar viver é a expressão mais direta da liberdade face às trevas que nos escondem o dia e a noite do mundo. Estas poucas palavras surgem de algo distante que vocês me permitiram evocar, e por isso eu lhes agradeço da mesma forma que a meu companheiro de sempre, Jack London. Estava lá antes do teu nascimento, estava lá no teu berço, estava ainda lá a menos de um instante e estarei lá no instante que te atravessa, e estarei lá no instante da grande partida. Sou em ti o eco da tua presença no mundo, e lembro-me de todos aqueles instantes quando tu também percorrias aquele longo caminho para ir ao meu encontro e meu eco tinha o som dos teus gritos de recém-nascido, a música do balbuciar das tuas palavras, os som dos teus prantos e dos teus risos de criança, ou o timbre mais profundo da tua voz adulta em ressonância com a proximidade de um ser. Mas, de repente, pareces ter perdido o sentido que te abre a porta do mundo do qual eu sou a voz. Tu não podes alcançá-lo sem passar por mim.

O mundo que tocas com teu corpo e tua mente está separado de ti, tu o sabes e sofres por isso; consciência infeliz, retorne a esse jorrar da vida onde o universo inteiro revela-se teu prolongamento, teu ser lá, presença intemporal do indizível. O que verás será tua íris invertida, o que ouvirás será tua música interior afinada aos mil e um sons do universo. O que sentirás será o prolongamento do teu ser, tuas mãos tocarão com infinita ternura o invisível através de todas as faces da forma; e teu coração animará no mesmo ritmo o espírito do mundo. Então repartir ás o perfume de tua alma. Ter ás encarnado o intangível E liberado na eternidade do desejo este presente sempre renovado. Vem, descubramos juntos esse desejo do mundo que toma corpo através de ti e sentirás tuas asas, Lembra-te, no começo há sempre o verbo AMAR. Michel Sokoloff Trimurti, Saint Tropez, março/93

Michel Sokoloff, francês, filho de pai russo e mãe ucraniana, é psicoterapeuta, astrólogo, escritor, investigador de várias áreas do conhecimento tradicional esotérico e das modernas correntes da psicologia e do holismo. E fundador e atual diretor do Trimurti — Centro de Seminários e Congressos, na cidade de Saint Tropez, no sul da França, onde desenvolve cursos e projetos de pesquisa em várias áreas da chamada New Age.

CAPITULO 1 Toda a minha vida percebi outros tempos, outros lugares. Percebi outras pessoas em mim. E acredite-me, você também os percebia, você, meu futuro leitor. Lembre-se de seus dias de criança; esse senso de percepção de que estou falando lhe voltará como uma experiência da infância. Naquela época você não estava formado, não estava cristalizado. Você era plástico, uma alma fluida, uma consciência e uma identidade em processo de formação... ah, de formação e esquecimento. Você esqueceu muito, meu leitor; mas mesmo assim, ao ler estas linhas, você lembra vagamente cenários nebulosos de outros tempos e outros lugares que seus olhos de criança espreitaram. Hoje você afirma que foram apenas sonhos. Mas se foram apenas sonhos um dia sonhados, de onde veio sua substância? Nossos sonhos são feitos das coisas que conhecemos. A substância dos nossos sonhos é a substância das nossas experiências. Quando criança, pequenino, você sonhava que caía de grandes alturas; sonhava que voava pelos ares como os pássaros dos céus; você se assustava com as aranhas rastejantes e as viscosas centopéias; ouvia outras vozes e via rostos estranhamente familiares; via auroras e crepúsculos que hoje, ao olhar para o passado, você sabe jamais ter visto. Pois bem. Esses lampejos infantis têm uma qualidade de um outro mundo, de uma outra vida, de coisas que você jamais viu neste mundo específico desta sua vida de agora. Mas de onde? De outras vidas? De outros mundos? Talvez, depois de ler o que vou escrever, você receba respostas às indagações que estou lhe propondo; talvez você, antes até de ler meu livro, já tenha feito essas perguntas a si mesmo. Wordsworth sabia. Ele não era vidente nem profeta, apenas um homem comum, como você ou qualquer outro ser humano. O que ele sabia, você sabe, qualquer homem sabe. Mas ele o afirmou com perfeição naquela passagem que começa por Nem em nudez absoluta, nem em completo esquecimento... Ah, na verdade, as sombras da prisão fecham-se sobre nós, coisas recém-nascidas, e logo esquecemos. Mas mesmo quando éramos recémnascidos, lembrávamos outros tempos, outros lugares. Nós, indefesos bebês

de colo ou pequeninos seres engatinhando pelo chão, sonhávamos nossos sonhos de fugir pelos ares. Sim. E suportávamos o tormento e a tortura dos assustadores pesadelos com coisas vagas e monstruosas. Nós, bebês recémnascidos, sem experiência, nascemos com medo, com a memória do medo; e memória é experiência. Quanto a mim, mal comecei a falar — um período tão frágil da minha vida que eu ainda emitia os ruídos da fome e do sono — eu já sabia que tinha sido um andarilho das estrelas. Sim, eu, cujos lábios nunca haviam formado a palavra “rei”, eu lembrava ter sido uma vez o filho de um rei. E lembrava ter sido uma vez um escravo e um filho de escravo, com um anel de ferro em volta do pescoço. E ainda mais. Quanto eu tinha três, quatro, cinco anos de idade, eu ainda não era eu. Eu era um mero vir a ser, um fluxo de espírito ainda cristalizado no molde daquela carne, daquele tempo, daquele lugar. Naquela época, tudo o que eu tinha sido em dez mil vidas anteriores lutava dentro de mim e perturbava o fluxo do meu ser, no esforço de incorporar-se a mim e tomar-se eu. Parece tolo, não é? Mas lembre-se, leitor que espero ter ao meu lado na longa viagem pelo tempo e espaço, lembre-se, por favor, meu leitor, que eu pensei muito sobre essas coisas; que passei longas e sombrias noites de sofrimento, que duraram anos, a sós com meus muitos eus, consultando e contemplando meus muitos eus. Passei pelos infernos de todas as existências para trazer-lhe a mensagem que você compartilhará comigo, na página impressa, por um par de horas. Repito que quando eu tinha três, quatro, cinco anos, eu ainda não era eu. Eu estava apenas me tomando, enquanto tomava forma no molde do meu corpo e todo aquele passado poderoso e indestrutível se forjava na mistura do meu ser para determinar qual a forma que tomaria meu vir a ser. Não era minha a voz que gritava no meio da noite com medo de coisas conhecidas — que eu, na verdade, não conhecia e nem poderia conhecer. Não eram minhas as raivas infantis, os amores e as risadas. Outras vozes gritavam através da minha voz, as vozes de homens e mulheres de tempos passados, de todas as obscuras hostes de antepassados. E o rosnar da minha raiva se misturava ao rosnar de feras mais velhas que as montanhas; os gritos loucos da minha histeria infantil, com todo o sangue de sua fúria, harmonizavam-se com os gritos desumanos das bestas pré-adâmicas de eras pré-geológicas. E eis que revelei meu segredo: a fúria sanguinária! Ela me arruinou nesta vida, nesta minha vida presente. Por causa dela, daqui a poucas semanas

serei levado desta cela para um estrado com um alçapão e serei pendurado pelo pescoço até morrer. A fúria sanguinária foi a minha ruína em todas as minhas vidas; a fúria sanguinária é a herança desastrosa e fatídica que recebi dos tempos das coisas viscosas antes da aurora do mundo. Já é hora de eu me apresentar. Não sou um louco nem um lunático. Quero que você saiba disso para que acredite nas coisas que vou contar. Meu nome é Darrell Standing. Algum leitor talvez me identifique de imediato. Mas para a maioria que me desconhece, deixe-me contar um pouco sobre mim mesmo. Há oito anos, eu era professor de agronomia na Escola de Agricultura da Universidade da Califórnia. Há oito anos, a pacata cidadezinha universitária de Berkeley foi abalada pelo assassinato do Professor Haskell num dos laboratórios da Mineração. Darrell Standing foi o assassino. Eu sou Darrell Standing. Fui apanhado em flagrante. Não vou discutir aqui os detalhes desse caso com o Professor Haskell. Não passou, em absoluto, de um assunto particular. O fato é que, numa onda de raiva, obcecado pela fatídica fúria sanguinária que me amaldiçoa ao longo dos tempos, matei meu colega. Os registros do tribunal mostram que eu o matei; e eu concordo com os registros do tribunal. Não, não serei enforcado por esse assassinato; recebi como punição a sentença de prisão perpétua. Eu tinha trinta e seis anos na época; tenho, agora, quarenta e quatro. Passei esses oito anos na Prisão Estadual da Califórnia, San Quentin. Cinco desses anos, eu os passei na escuridão. Confinamento solitário, é como eles chamam. Os homens que o sofreram chamam-no de morte em vida. Mas, nesses cinco anos de morte em vida, eu consegui alcançar uma liberdade que poucos homens já conheceram. Mesmo sendo o mais confinado dos prisioneiros, eu não apenas percorri o mundo, eu também percorri o tempo. Os homens que me emparedaram por tantos anos me deram, contra sua vontade, a largueza dos séculos. Na verdade, graças a Ed Morrell, eu tive cinco anos de peregrinação pelas estrelas. Mas Ed Morrell é uma outra história; falarei dele mais tarde. Tenho tanto a dizer que mal sei por onde começar. Bem, pelo começo. Nasci na zona rural de Minnesota. Minha mãe era filha de um imigrante sueco. Seu nome era Hilda Tonnesson. Meu pai era Chauncey Standing, de velha estirpe americana. Ele descendia de Alfred Standing, um servo — ou escravo, tanto faz — degredado da Inglaterra para as plantações da Virgínia em dias que já pertenciam ao passado quando o jovem George Washington pôs-se a explorar as vastidões da Pensilvânia.

Um filho de Alfred Standing lutou na Guerra da Revolução; um neto, na guerra de 1812. Desde então, não houve uma guerra em que os Standing não estivessem representados. Eu, o último dos Standing, que logo vou morrer sem deixar descendência, lutei como soldado raso nas Filipinas; e para poder ir à guerra, abandonei minha promissora cátedra na Universidade de Nebraska. Santo Deus, quando me demiti eu estava para ser nomeado diretor da Escola de Agricultura daquela universidade — eu, o andarilho das estrelas, o aventureiro sanguinário, o Caim vagabundo dos séculos, o sacerdote guerreiro de tempos remotos, o poeta sonhador de eras esquecidas e não registradas na história humana do homem! E aqui estou, com as mãos tintas de sangue, no Corredor da Morte da Prisão Estadual de Folsom, esperando o dia decretado pela máquina do Estado para que os servidores do Estado me levem para aquilo que eles acreditam ser as trevas — as trevas que eles temem; as trevas que lhes despertam fantasias de medo e superstição; as trevas que os arrastam, balbuciantes e soluçantes, aos altares dos deuses antropomórficos criados pelo medo. Não, nunca serei diretor de nenhuma escola de agricultura. E eu conheço agricultura. Era a minha profissão. Nasci para ela, fui educado para ela, treinado nela; e era um mestre dela. Era o meu dom. Posso escolher a olho nu qual a vaca que tem a mais alta porcentagem de gordura no leite; os testes Babcock apenas confirmarão, no laboratório, a sabedoria do meu olho. Não preciso examinar o solo, basta-me olhar a paisagem para avaliar as virtudes e os defeitos do solo. Não preciso de papel tornassol para determinar a acidez ou alcalinidade de um solo. Repito, a administração agrícola em seus mais altos termos científicos era o meu dom... e é o meu dom. E no entanto o Estado, que inclui todos os cidadãos do Estado, acredita que pode lançar nas trevas finais toda essa minha sabedoria através de uma corda em volta do meu pescoço e do solavanco abrupto da gravidade — essa minha sabedoria que foi incubada ao longo de milênios e que já estava bem urdida antes mesmo que os campos de Tróia servissem de pastagem aos rebanhos de pastores nômades! Milho? Quem mais conhece milho? Veja minha demonstração em Wistar: através dela aumentei em meio milhão de dólares a produtividade anual do milho em cada condado de Iowa. Já faz parte da história. Muitos fazendeiros que hoje andam de carro sabem quem lhes possibilitou ter aquele carro. Muitas meninas em flor e muitos rapazinhos aplicados, debruçados sobre seus livros escolares, mal imaginam que fui eu, com minha

demonstração do milho em Wistar, quem lhes possibilitou acesso à educação superior. E a administração das fazendas! Eu conheço o desperdício do movimento supérfluo sem precisar estudar registros detalhados, seja de uma fazenda ou de um peão, seja de um projeto de construção ou da programação do trabalho agrícola. Veja meu manual, veja meus gráficos sobre o assunto. Não tenho a menor dúvida de que, neste exato momento, cem mil fazendeiros estão laboriosamente estudando o meu manual antes de darem a última cachimbada e irem para a cama. Mas eu fui muito além das minhas tabelas: bastava-me um simples olhar a um homem para conhecer sua predisposição, sua coordenação e seu índice de desperdício de movimentos. Agora preciso encerrar este primeiro capítulo da minha narrativa. Já são nove horas; no Corredor da Morte, isso significa luzes apagadas. Já ouço os passos do guarda, com suas macias solas de borracha, que vem me censurar por ainda manter acesa minha lamparina. Como se aqueles que apenas estão vivos pudessem censurar os condenados à morte!

CAPITULO 2 Eu sou Darrell Standing. Muito em breve, eles vão me levar e me enforcar. Nesse meio-tempo, digo o que tenho a dizer e escrevo nestas páginas sobre outros tempos e outros lugares. Depois da minha sentença, vim para passar o resto da minha “vida natural” na prisão de San Quentin. Mostrei ser incorrigível. Um incorrigível é um ser humano terrível — esta é, pelo menos, a conotação de “incorrigível” em psicologia carcerária. Tomei-me um incorrigível porque tenho horror ao desperdício de movimentos. A prisão, como todas as prisões, era uma afronta escandalosa de desperdício de movimentos. Colocaram-me na fiação de juta. O crime de desperdício me irritou. E por que não irritaria? Eliminar movimentos supérfluos era a minha especialidade. Antes da invenção do vapor ou do tear a vapor, três mil anos antes, eu já apodrecia numa prisão da velha Babilônia; e acredite em mim, eu falo a verdade quando digo que naqueles dias remotos nós, os prisioneiros da Babilônia, fiávamos com mais eficiência nos teares manuais do que os presidiários de San Quentin no tear a vapor. O crime de desperdício era odioso. Rebelei-me. Tentei mostrar aos guardas uma dezena de modos mais eficientes. Os guardas deram parte. Ganhei o calabouço e a ausência de luz e alimento. Saí e tentei trabalhar no caos de ineficiência das salas de fiação. Rebelei-me. Ganhei o calabouço mais a camisa-de-força. Fui amarrado com pernas e braços abertos em cruz, fui espancado, fui surrado nas partes íntimas por guardas estúpidos cuja inteligência era apenas suficiente para lhes mostrar que eu era diferente deles e não tão estúpido quanto eles. Suportei dois anos dessa perseguição insana. É terrível para um homem ser amarrado e roído por ratos. Os guardas animalescos eram ratos; eles roíam minha inteligência, roíam os filamentos nervosos dos meus sentimentos e da minha consciência. E eu, que no passado fui um bravo lutador, nesta vida presente não era um lutador. Era um fazendeiro, um especialista em agricultura, um professor, um escravo do laboratório, interessado apenas no solo e no aumento da produtividade do solo. Lutei nas Filipinas porque lutar era uma tradição dos Standing. Eu não tinha aptidão para a luta. Eu achava um absurdo introduzir substâncias explosivas no corpo daqueles homens de pele escura. Eu achava um absurdo a Ciência prostituir-se, a si mesma e aos seus cientistas, para inventar meios

violentos de introduzir substâncias estranhas no corpo daqueles homens de pele escura. Como eu disse, seguindo a tradição dos Standing, fui para a guerra e descobri que não tinha aptidão para a guerra. Assim também pensaram os oficiais, pois fizeram de mim um escrivão da Intendência e foi como escrivão, numa escrivaninha, que lutei a Guerra Hispano-Americana. Portanto, não foi por ser um lutador, mas por ser um pensador que me rebelei contra o desperdício de movimentos nas salas de fiação e fui pressionado pelos guardas a me tomar um “incorrigível”. Qualquer coisa que acontecia, o punido era eu. Como eu disse ao Diretor Atherton quando minha incorrigibilidade tornou-se tão notória que ele me chamou ao seu escritório para discutir o assunto comigo; como lhe disse, então: — Ora, meu caro Diretor, é um absurdo o senhor pensar que esses guardas esganadores de rato podem arrancar do meu cérebro as coisas que estão claras e definidas no meu cérebro. A organização desta prisão é estúpida. O senhor é um político. O senhor soube tramar intrigas com os cavalheiros de São Francisco, soube tecer uma rede de influências para chegar a esse cargo que ocupa... mas o senhor não sabe fiar juta. Suas salas de fiação estão 50 anos atrasadas... Mas por que continuar o sermão? Pois foi um sermão. Mostrei-lhe o tolo que ele era e, como resultado, ele decidiu que eu era um incorrigível irrecuperável. Dê má fama a um cachorro e... — você conhece o provérbio. Muito bem. O Diretor Atherton sancionou minha má fama. Ficou fácil jogar a culpa de tudo em cima de mim. Eu levava a culpa das faltas dos outros presidiários e pagava por elas no calabouço a pão e água ou sendo pendurado pelos polegares por longas horas — e cada uma dessas horas era mais longa do que a lembrança de qualquer vida que eu tivesse vivido. Homens inteligentes são cruéis. Homens estúpidos são monstruosamente cruéis. Os guardas e todos os homens acima de mim, incluindo o Diretor, eram monstros estúpidos. Ouça e você saberá o que eles me fizeram. Havia na prisão um poeta, um prisioneiro, um poeta degenerado de queixo fraco e cabeça chata. Era um falsário. Um covarde. Um alcagüete. Um dedo-duro — estranhas palavras para um professor de agronomia usar num livro, mas um professor de agronomia pode aprender estranhas palavras quando é confinado numa prisão pelo resto de sua vida natural. O nome do poeta-falsário era Cecil Winwood. Ele tivera condenações anteriores mas, por ser um covarde cachorro choramingão, sua última

sentença foi de apenas sete anos. Sua pena poderia ser reduzida por bom comportamento. Minha pena era perpétua. E mesmo assim esse miserável degenerado, para ganhar alguns míseros anos de liberdade, conseguiu acrescentar uma parcela de eternidade à minha pena de toda a vida. Vou contar o que aconteceu do fim para o começo, pois só fiquei sabendo de tudo bem mais tarde. Esse Cecil Winwood, para ganhar os favores do Capitão da Guarda — e, em decorrência, do Diretor, da Junta Diretora da Prisão, da Junta de Apelação e do Governador da Califórnia — tramou uma fuga da prisão. Repare agora em três pontos: a) Cecil Winwood era tão odiado pelos outros prisioneiros que eles não lhe permitiriam sequer apostar cem gramas de tabaco Bull Durham numa corrida de percevejos — e olhe que corrida de percevejos era um grande esporte entre os presos; b) eu era o cão que tinha má fama; c) para sua trama, Cecil precisava dos cães com má fama, os condenados à prisão perpétua, os desesperados, os incorrigíveis. Mas os condenados à prisão perpétua odiavam Cecil Winwood, e quando ele os abordou com seu plano de uma fuga em massa, riram dele e o repeliram amaldiçoando o dedo-duro que ele era. Mas no fim ele os enganou, quarenta dos mais empedernidos homens da penitenciária. Ele os abordou outra e outra vez. Falou do poder que tinha na prisão por gozar da confiança do Diretor e administrar a enfermaria. — Prova isso pra gente — disse Long Bill Hodge, um montanhês cumprindo prisão perpétua por assalto a trem e cujo único pensamento era escapar para matar o comparsa que o tinha traído. Cecil Winwood aceitou o teste. Ele afirmava que poderia drogar os guardas na noite da fuga. — Falar é fácil — disse Long Bill Hodge. — O que a gente quer é prova. Você dopa um guarda essa noite. O Barnum. Ele não presta. Ele bateu no coitado do Chink ontem no Hospício e nem estava de serviço. Ele vai estar de guarda essa noite. Você dopa ele hoje e faz ele perder o emprego. Prova pra gente, que daí a gente trata o negócio com você. Tudo isso Long Bill me contou mais tarde, no calabouço. Cecil Winwood hesitou diante da urgência da demonstração. Reclamou que precisava de tempo para roubar a droga da enfermaria. Eles lhe concederam tempo e, uma semana mais tarde, ele anunciou que estava pronto. Quarenta homens endurecidos, condenados à prisão perpétua, esperaram para ver se o guarda Barnum adormecia durante seu turno. E Barnum adormeceu. Foi flagrado dormindo e demitido por dormir em serviço.

Isso, é claro, convenceu os quarenta condenados. Mas ainda era preciso convencer o Capitão da Guarda. Cecil Winwood relatava-lhe, diariamente, o andamento do plano de fuga — um plano totalmente criado e montado na sua própria imaginação. O Capitão da Guarda exigiu provas. Winwood deulhe as provas; eu só vim a conhecer os detalhes um ano mais tarde, pois os segredos das intrigas da prisão vazam muito devagar. Winwood disse ao Capitão da Guarda que os quarenta homens envolvidos na fuga, que depositavam confiança nele, já detinham um tal poder dentro da prisão que haviam subornado um dos guardas para lhes contrabandear pistolas automáticas. — Quero provas — exigiu, certamente, o Capitão da Guarda. E o poeta-falsário deu-lhe a prova. Na padaria, o trabalho noturno era coisa normal. Um prisioneiro, padeiro de profissão, estava no primeiro turno da noite. Era um alcagüete do Capitão da Guarda; e Winwood sabia disso. — Essa noite — disse Winwood ao Capitão da Guarda — Summerface vai trazer uma dúzia de pistolas 44 automáticas. Na próxima folga ele traz a munição. Hoje ele vai me entregar as automáticas na padaria. O senhor tem um homem de confiança lá dentro, não tem? Ele conta tudo pro senhor amanhã. O guarda Summerface era um roceiro grandalhão, vindo do Condado de Humboldt. Não passava de um pobre-diabo de mente simples e natureza confiante, que gostava de ganhar um níquel honesto contrabandeando tabaco para os prisioneiros. Naquela noite, voltando da folga em São Francisco, ele trouxe sete quilos de tabaco de primeira qualidade. Ele já tinha isso feito antes e geralmente entregava o fumo a Cecil Winwood. E foi assim que naquela noite Summerface, sem saber de nada, entregou o tabaco a Winwood na padaria. Era um pacote grande e sólido, envolto em papel de embrulho, de inocente tabaco. O padeiro dedo-duro, escondido, viu o pacote ser entregue a Winwood; e foi isso que ele relatou ao Capitão da Guarda na manhã seguinte. Mas a imaginação demasiado viva do poeta-falsário foi longe demais. Ele cometeu um erro que me custou cinco anos de confinamento solitário e me colocou nessa cela da morte onde ora escrevo. E o tempo todo eu não sabia de nada. Eu nem sequer sabia da fuga que ele induziu os quarenta condenados a planejar. Eu não sabia de nada, absolutamente nada. E os outros, pouco sabiam. Os quarenta condenados não sabiam que ele os estava traindo. O Capitão da Guarda não sabia que estava tomando parte numa trama forjada. Summerface era o mais inocente de todos. Quando muito, sua

consciência poderia acusá-lo de ter contrabandeado um pouco de inocente tabaco. E o erro estúpido, o erro tolo e melodramático de Cecil Winwood. Na manhã seguinte, quando se encontrou com o Capitão da Guarda, ele estava triunfante. Sua imaginação fervilhava. — E, a muamba chegou, do jeito que você disse — observou o Capitão da Guarda. — E bastante que dá pra mandar pelos ares metade da prisão — confirmou Winwood. — Bastante o quê? — perguntou o Capitão da Guarda. — Ora, dinamite e detonadores — cacarejou o idiota do Winwood. — Quinze quilos de dinamite. O padeiro viu o Summerface me entregar. O Capitão da Guarda deve ter quase morrido de susto. Posso até compreender sua situação: 15 quilos de dinamite dentro da prisão! Contaramme que o Capitão Jamie (esse era o seu apelido) caiu sentado e enterrou a cabeça nas mãos. — E onde está essa dinamite toda? — gritou. — Eu quero essa dinamite. Me mostre agora mesmo onde que ela está. Foi aí que Cecil Winwood percebeu seu erro. — Eu escondi — mentiu. Ele não podia fazer outra coisa senão mentir: sendo apenas tabaco em pacotes pequenos, o contrabando já tinha sido distribuído entre os prisioneiros pelos canais costumeiros. — Muito bem — disse o Capitão Jamie, recobrando-se do susto — me leve até o lugar que você escondeu a dinamite. Mas não havia esconderijo de explosivos para onde levá-lo. A coisa não existia, nunca tinha existido, exceto na imaginação do miserável Winwood. Numa prisão grande como San Quentin, sempre há lugares para esconder coisas. E enquanto Cecil Winwood conduzia o Capitão Jamie, ele deve ter pensado rápido. Conforme testemunharam o Capitão Jamie e Cecil Winwood diante da Junta Diretora, durante a caminhada até o esconderijo Winwood afirmou que ele e eu tínhamos escondido a dinamite. E logo eu, acabado de sair de cinco dias no calabouço e de 80 horas na camisa-de-força; logo eu, que até mesmo os estúpidos guardas podiam ver que estava fraco demais para trabalhar na fiação de juta; logo eu, que tinha recebido um dia de folga para me recuperar de um castigo tão terrível — logo eu fui indicado como o homem que tinha ajudado a esconder os 15 quilos inexistentes de dinamite!

Winwood levou o Capitão Jamie até o pretenso esconderijo. E claro que não encontraram dinamite alguma. — Meu Deus! — mentiu Winwood. — Standing me traiu. Ele tirou a dinamite daqui e escondeu noutro lugar. O Capitão da Guarda disse algo um tanto mais enfático do que “Meu Deus!”. E no calor do momento, mas a sangue-frio, ele arrastou Winwood até seu escritório, trancou a porta e espancou-o sem dó nem piedade — tudo isso veio à tona diante da Junta Diretora. Mas isso foi mais tarde. Enquanto apanhava, Winwood jurava que tudo o que tinha dito era verdade. O que se esperava que o Capitão Jamie fizesse? Ele estava convencido de que havia 15 quilos de dinamite escondidos em algum lugar da prisão e que quarenta homens desesperados estavam prontos para tentar a fuga. Ah, sim, ele interrogou Summerface e, embora Summerface insistisse que o pacote continha tabaco, Winwood jurava que era dinamite; e Winwood foi acreditado. É nesse ponto que eu entro... ou melhor, é nesse ponto que eu saio. Pois eles me arrancaram da luz do sol e da luz do dia e me atiraram no calabouço. E lá no calabouço, na solitária, longe da luz do sol e da luz do dia, eu apodreci por cinco anos. Eu estava confuso. Tinha acabado de ser solto do calabouço e estava deitado, cheio de dores, na minha cela comum quando me arrastaram de volta para o calabouço. — Agora — disse Winwood ao Capitão Jamie — mesmo que a gente não saiba onde que está a dinamite, ela está segura. Standing é o único homem que sabe e ele não pode contar pra ninguém lá no calabouço. Os homens estão prontos pra tentar a fuga. A gente pode pegar eles em flagrante. Eu é que vou marcar a hora. Vou dizer pra eles que vai ser essa noite às duas horas e digo que depois de dopar os guardas eu abro as celas deles e dou as automáticas pra eles. Olha, Capitão, se às duas da manhã o senhor não encontrar esses quarenta homens que eu vou lhe dizer o nome deles, todo mundo vestido e bem acordado, então o senhor pode me botar na solitária o resto da minha sentença. E com o Standing e esses quarenta bem presos no calabouço, a gente vai ter todo o tempo do mundo para achar a dinamite. — Nem que eu precise revirar essa prisão pedra por pedra — acrescentou o Capitão Jamie com ferocidade. Isso aconteceu seis anos atrás. Eles nunca acharam a dinamite inexistente, apesar de terem revirado mil vezes a prisão à sua procura. E mesmo assim, até seu último dia no cargo, o Diretor Atherton acreditou na

existência daquela dinamite. O Capitão Jamie, que ainda é Capitão da Guarda, acredita até hoje que a dinamite está em algum lugar da prisão. Ainda ontem ele veio de San Quentin a Folsom para tentar, mais uma vez, fazer com que eu revelasse o esconderijo da dinamite. Eu sei que ele só dormirá tranqüilo quando me enforcarem.

CAPITULO 3 Passei todo aquele dia no calabouço espremendo meu cérebro em busca de uma razão para esse novo e inexplicável castigo. Tudo o que eu podia concluir era que algum dedo-duro tinha jogado em mim a culpa de alguma infração, para cair nas boas graças dos guardas. Enquanto isso, um nervoso Capitão Jamie preparava-se para a noite e Winwood avisava os quarenta condenados para ficarem prontos para a fuga. E duas horas depois da meia-noite todos os guardas da prisão estavam de prontidão, incluindo o pessoal do turno do dia (que deveria estar dormindo). Quando bateram as duas horas, eles invadiram as celas ocupadas pelos quarenta. A invasão foi simultânea. As celas foram escancaradas ao mesmo tempo e, sem exceção, os homens indicados por Winwood foram encontrados fora de seus beliches, completamente vestidos, acocorados atrás das portas. É claro que essa foi a comprovação absoluta da trama de mentiras que o poetafalsário tinha impingido ao Capitão Jamie. Os quarenta condenados foram pegos na mais flagrante prontidão para a fuga. E o que aconteceu quando eles todos confirmaram que a fuga tinha sido planejada por Winwood? A Junta Diretora da Prisão acreditou, por unanumdade, que os quarenta homens estavam mentindo para se salvar. A Junta de Apelação também acreditou: antes de se passarem três meses, Cecil Winwood, falsário e poeta, o mais desprezível dos homens, foi indultado. Ah, a prisão — ou “a gaiola”, na gíria dos condenados — é uma escola de treinamento filosófico. Nenhum prisioneiro consegue sobreviver a anos de prisão sem que suas mais caras ilusões e suas mais preciosas especulações metafísicas se esfacelem. A verdade sempre aparece, é o que nos ensinam; o crime não compensa. Bem, esta é uma demonstração de que não é sempre que o crime não compensa. O Capitão da Guarda, o Diretor Atherton, a Junta Diretora da Prisão, todos eles ainda acreditam até hoje na existência daquela dinamite que nunca existiu exceto no cérebro traiçoeiro e fantasioso do degenerado falsário e poeta Cecil Winwood. E Cecil Winwood ainda vive, enquanto eu, o mais inocente de todos os homens envolvidos naquele caso, vou para a forca dentro de poucas semanas. E agora vou contar como os quarenta condenados quebraram o silêncio dos calabouços. Eu estava dormindo quando a porta do corredor abriu-se com estrondo e me acordou. “Algum pobre-diabo”, foi o que pensei; e meu pensamento seguinte foi que o tal pobre-diabo deveria estar passando

por um mau momento, pois ouvi o arrastar de pés, o impacto surdo de golpes na carne, os gritos de dor, os palavrões e o som de corpos sendo arrastados. É claro que cada um daqueles homens foi arrastado à força por todo o caminho. Uma após outra abriam-se as portas dos calabouços e, um após outro, os corpos eram empurrados, jogados ou arrastados para dentro. E mais grupos de guardas continuavam a chegar com mais prisioneiros espancados que continuavam a ser espancados, e mais portas de calabouços se abriam para receber as carcaças ensangüentadas de homens culpados de ansiar pela liberdade. Sim, quando penso nisso, um homem precisa ser um grande filósofo para sobreviver por anos a fio ao impacto contínuo de tais experiências brutais. Eu sou um filósofo. Agüentei oito anos desse tormento e agora, por fim, não conseguindo livrar-se de mim por outros meios, eles invocaram a máquina do Estado para pôr uma corda em volta do meu pescoço e fazer o peso do meu corpo cortar minha respiração. Ah, eu sei que os especialistas sustentam a abalizada opinião de que a queda pelo alçapão quebra o pescoço da vítima. E as vítimas, como o viajante de Shakespeare, nunca voltam para afirmar o contrário. Mas nós que vivemos na prisão ouvimos falar de muitos casos, murmurados nas criptas da prisão, em que o pescoço da vítima não estava quebrado. É engraçado, isso de enforcar um homem. Eu nunca assisti a um enforcamento, mas algumas testemunhas oculares contaram-me os detalhes de uma dúzia de enforcamentos e eu sei, portanto, o que acontecerá comigo. De pé sobre o alçapão, pernas amarradas, braços amarrados, o nó no pescoço, o capuz preto na cabeça, eles me farão cair até que o ímpeto do meu peso em queda livre seja abruptamente detido pelo retesamento da corda. Então os médicos se agruparão à minha volta e farão rodízio sobre um banquinho, com seus braços passados ao redor do meu corpo para impedir que eu balance como um pêndulo e a orelha colada de encontro ao meu peito para contar as batidas do meu coração, as batidas que irão aos poucos se apagando. Às vezes passam-se 20 minutos, depois que o alçapão se abre, até que o coração pare de bater. Ah, acredite em mim, eles ficam cientificamente certos de que um homem está morto, depois que o penduram numa corda. Vou me desviar da minha narrativa para fazer uma ou duas perguntas à sociedade. Eu tenho o direito de me desviar e de perguntar, porque eles vão me levar e fazer isso comigo muito em breve. Se o pescoço da vítima quebra por causa do modo (pretensamente inteligente) como são feitos o nó e o laço; se o pescoço da vítima quebra por causa do cálculo (pretensamente

inteligente) entre o peso de seu corpo e o comprimento da corda — então por que eles amarram os braços da vítima? A sociedade, como um todo, é incapaz de dar uma resposta a essa pergunta. Mas eu conheço a resposta; e também a conhece qualquer carrasco amador que já tenha participado de um linchamento e visto a vítima levantar as mãos, agarrar a corda e afrouxar o laço em volta do pescoço para poder respirar. E quero fazer outra pergunta ao bom e pacato membro da sociedade, cuja alma nunca se desgarrou nos infernos sanguinários: por que eles cobrem a cabeça e o rosto da vítima com um capuz preto antes de fazê-la cair pelo alçapão? Lembre-se, por favor, de que muito em breve eles colocarão o capuz preto sobre a minha cabeça. Tenho, portanto, o direito de perguntar. Seus carrascos, meu bom cidadão, será que esses seus carrascos têm medo de olhar a face horrorosa do horror que eles perpetram por você, por ordem sua? Lembre-se, por favor, de que eu não estou fazendo essa pergunta no século doze depois de Cristo, nem na época de Cristo, nem milhares de anos antes de Cristo. Eu, que serei enforcado neste ano de 1913 — mil novecentos e treze anos depois de Cristo — faço essa pergunta a você, que se diz seguidor de Cristo, a você, cujos carrascos irão me levar e esconder meu rosto sob um pano negro porque não se atrevem a olhar o horror que fazem a mim enquanto ainda estou vivo. E agora, de volta à situação nos calabouços. Quando o último guarda saiu e a porta externa se fechou, todos os quarenta homens, espancados e frustrados, começaram a falar e a fazer perguntas. Mas de imediato, urrando como um touro para ser ouvido, Skysail Jack, um gigantesco marinheiro condenado à prisão perpétua, exigiu silêncio para poder fazer um recenseamento. Os calabouços estavam lotados e, uma por uma, na ordem, cada cela foi respondendo à chamada. Ficou confirmado que cada cela estava ocupada por homens de confiança e que não havia, portanto, nenhum dedoduro escondido à escuta. Os quarenta condenados só tinham dúvidas a meu respeito, pois fui o único que não participou da trama. Interrogaram-me. A única coisa que eu tinha a dizer era que mal acabara de sair do calabouço e da camisa-de-força naquela manhã quando, sem razão alguma que eu pudesse perceber, fui jogado de volta no calabouço após ficar fora dele umas poucas horas. Minha fama de incorrigível pesou a meu favor e logo eles começaram a falar. Enquanto eu lá estava deitado, escutando-os, ouvi mencionar pela primeira vez o plano de fugir. “Quem nos delatou?” era a única pergunta

daqueles homens e, ao longo da noite, eles a debateram. Cecil Winwood não estava ali; a suspeita contra ele era geral. — Só mais uma coisa, rapazes — disse finalmente Skysail Jack. — Logo é de manhã e eles vão tirar a gente daqui e vai ser o diabo. Eles pegaram a gente direitinho, todo mundo vestido. Winwood traiu a gente, foi ele que dedurou. Eles vão nos pegar, um por um, e vão bater pra valer. A gente é quarenta. Qualquer mentira eles descobrem logo. Por isso, cada um de nós, quando eles interrogarem, vai dizer a verdade, toda a verdade, com a bênção de Deus. E ali, naquele buraco sombrio da desumanidade humana, de cela em cela, com a boca colada às grades, os quarenta condenados à prisão perpétua juraram solenemente diante de Deus dizer a verdade. Pouco lhes adiantou dizer a verdade. Às nove horas, os guardas — mercenários pagos pelos bons cidadãos que constituem o Estado —, bem alimentados e depois de uma noite bem dormida, caíram sobre nós. Não só não tivemos o café da manhã, sequer tivemos água. E um homem espancado tem propensão à febre. Eu me pergunto, meu leitor, se você pode fazer uma idéia, imaginar o que seja um homem espancado. Mas não, não vou lhe contar. Basta dizer que esses homens espancados e febris ficaram sete horas sem um gole d'água. Às nove horas os guardas chegaram. Não eram muitos. Nem era preciso que fossem muitos, pois abriam uma cela de cada vez. Estavam armados com cabos de picareta — uma ferramenta bem conveniente para “disciplinar” um homem indefeso. Uma cela de cada vez, e cela após cela, eles entravam e batiam naqueles homens. Foram imparciais. Eu recebi um tratamento igual ao dos outros. E isso foi apenas o começo, as preliminares para o exame que cada homem iria enfrentar sozinho na presença dos brutos pagos pelo Estado. Para cada homem, foi uma antecipação daquilo que ele poderia esperar na sala de inquisição. Eu passei pela maioria dos infernos sanguinários da vida da prisão; mas o pior de tudo, muito pior do que aquilo que eles farão comigo em breve, foi o inferno dos calabouços nos dias que se seguiram. Long Bill Hodge, o endurecido montanhês, foi o primeiro a ser interrogado. Ele voltou — ou melhor, eles o arrastaram de volta duas horas depois e o atiraram sobre o chão de pedra da sua cela. E então levaram Luigi Polazzo; um bandido de São Francisco, primeira geração de ascendência italiana nascida em solo americano, que zombou deles e os desafiou a descarregar nele o que tinham de pior.

Passou-se algum tempo até que Long Bill Hodge pudesse dominar a dor e falar de modo coerente. — Que história é essa de dinamite? — perguntou. — Quem é que está sabendo de dinamite? E é claro que ninguém sabia coisa alguma, embora o assunto dinamite tivesse sido o refrão do interrogatório. Luigi Polazzo voltou em menos de duas horas; voltou numa ruína delirante, a balbuciar, incapaz de responder às perguntas feitas pelos homens que ainda estavam por receber o que ele recebeu e queriam saber o que lhe tinha sido feito e perguntado. Nas 48 horas seguintes, Luigi foi levado e interrogado ainda duas vezes. Depois disso, transformado num imbecil a balbuciar coisas sem nexo, foi transferido para o Hospício. Ele tinha uma constituição forte. Ombros largos, narinas amplas, peito forte, sangue puro. Ele continuará a balbuciar coisas sem nexo no Hospício muito depois que eu morrer e escapar ao tormento das penitenciárias da Califórnia. Os homens eram levados, um a um, um após outro — e ruínas de homens eram trazidas de volta, uma após outra, para delirar e uivar na escuridão. E enquanto eu lá estava, ouvindo os gemidos e os lamentos e as palavras incoerentes das mentes imbecilizadas pela dor... pareceu-me lembrar vagamente que em algum lugar, em algum tempo, eu, cruel e orgulhoso, postava-me num lugar elevado e ouvia um coro semelhante de gemidos e lamentos. Mais tarde, como você verá, identifiquei essa lembrança e fiquei sabendo que os gemidos e lamentos eram dos escravos a remar acorrentados a seus bancos; eu os ouvia lá de cima, na popa, um soldado a bordo de uma galera da antiga Roma. Isso foi quando eu navegava para Alexandria, um comandante de homens, a caminho de Jerusalém... mas essa é uma história que contarei mais tarde. Enquanto isso...

CAPITULO 4 Enquanto isso, eu sofria o horror dos calabouços depois da descoberta do plano de fuga. E em instante algum, durante aquelas eternas horas de espera, deixei de ter presente em minha consciência a certeza de que eu seguiria os outros prisioneiros, suportaria o inferno de interrogatório que eles suportaram e seria trazido de volta como uma ruína e atirado sobre o chão de pedra da minha cela com paredes de pedras e porta de ferro. Eles vieram me buscar. Empurrando-me com violência, com pancadas e palavrões, levaram-me diante do Capitão Jamie e do Diretor Atherton; a seu serviço, esses dois tinham a força de meia dúzia de brutos comprados pelo Estado e pagos com o dinheiro dos impostos, e que vagavam pela sala à espera de ordens. Mas eles não seriam necessários. — Sente-se — disse o Diretor Atherton, indicando-me uma cadeira. Eu, espancado e cheio de dores, sem água já há uma noite e um dia, quase a desmaiar de fome, enfraquecido pelas pancadas que foram acrescentadas aos cinco dias no calabouço e às 80 horas na camisa-de-força, oprimido pela calamidade do destino humano, temeroso do que estava para acontecer comigo depois do que tinha visto acontecer aos outros — eu, um trêmulo rebotalho de homem, um ex-professor de agronomia numa pacata universidade, eu hesitei em aceitar o convite para me sentar. O Diretor Atherton era um homem robusto e extremamente forte. Suas mãos agarraram meus ombros como um relâmpago. Eu era uma mísera palha diante de sua força. Ele me levantou do chão e me atirou sobre a cadeira. — Agora — disse ele, enquanto eu ofegava e engolia minha dor — conte tudo, Standing. Vomite tudo, absolutamente tudo, se sabe o que é bom para sua saúde. — Não sei de nada do que aconteceu... — comecei. Não passei disso. Com um rosnado, ele saltou em cima de mim. Levantou-me novamente no ar e me atirou sobre a cadeira. — Deixe de bobagem, Standing — avisou. — Confesse tudo. Onde está a dinamite? — Não sei nada de nenhuma dinamite... — protestei. Mais uma vez fui levantado no ar e esmagado contra a cadeira. Suportei torturas de vários tipos, mas hoje, quando penso nelas na quietude desses meus últimos dias, acho que nenhuma outra tortura foi igual à

tortura da cadeira. Aquela cadeira sólida foi batida contra o meu corpo até deixar de se parecer com uma cadeira. Trouxeram outra cadeira e, depois de algum tempo, ela também foi destruída. Mas trouxeram mais cadeiras enquanto continuavam as eternas perguntas sobre a dinamite. Quando o Diretor Atherton se cansou, o Capitão Jamie o substituiu; depois o guarda Monohan assumiu o lugar do Capitão Jamie para me atirar sobre a cadeira. E sempre a dinamite, a dinamite, “onde está a dinamite?” e não havia dinamite alguma. Ora, pelo final da sessão, eu teria vendido minha alma imortal por um pouco de dinamite que eu pudesse confessar. Não sei quantas cadeiras foram quebradas contra o meu corpo. Desmaiei diversas vezes e, pelo final da sessão, a coisa toda tomou-se um pesadelo. Fui meio carregado, meio empurrado, meio arrastado de volta à escuridão. Lá, quando recobrei os sentidos, encontrei um dedo-duro na minha cela. Um viciado, um homenzinho descorado com uma sentença de poucos anos, que faria qualquer coisa para obter a droga. Logo que o reconheci, arrastei-me até as grades e gritei para o corredor: — Ei, rapazes, tem um dedo-duro aqui na minha cela! É o Ignatius Irvine. Cuidado com o que vocês falam! A explosão de imprecações que se seguiu teria abalado até mesmo um homem mais valente que Ignatius Irvine. Dava pena ver seu terror enquanto à sua volta, urrando como feras, os prisioneiros arrebentados pela dor berravam as coisas horríveis que fariam com ele no futuro. Se houvesse algum segredo, a presença de um dedo-duro nos calabouços teria mantido os homens em silêncio. Como estavam as coisas, tendo todos jurado dizer a verdade, eles falaram abertamente diante de Ignatius Irvine. O único grande enigma era a dinamite; a esse respeito, eles sabiam tanto quanto eu. Apelaram para mim. Se eu soubesse qualquer coisa sobre a dinamite, pediram-me que confessasse e os salvasse de mais misérias. E tudo o que eu podia lhes dizer era a verdade: eu nada sabia sobre a dinamite. Uma coisa que o dedo-duro me disse antes que os guardas o tirassem dali mostrou como era sério esse assunto da dinamite. E claro que eu informei aos outros: nem uma roda tinha sido movida na prisão o dia todo. Os milhares de trabalhadores-prisioneiros ficaram trancados em suas celas; a previsão era de que nenhuma das várias fábricas da prisão voltaria a funcionar até que fosse descoberta alguma dinamite escondida por alguém em algum lugar da prisão.

E os interrogatórios continuaram. Sempre, um de cada vez, os prisioneiros eram arrancados da cela e arrastados ou carregados de volta. Eles contaram que o Diretor Atherton e o Capitão Jamie, exaustos pelo esforço, faziam turnos de duas horas cada um. Enquanto um dormia, o outro interrogava. E eles dormiam vestidos na própria sala onde, um depois do outro, homens fortes iam sendo quebrados. E hora após hora nas trevas dos calabouços, aumentava a loucura do nosso tormento. Ah, acredite em mim, pois eu sei, o enforcamento não é nada comparado ao modo como homens vivos podem ser feridos e ainda continuar a viver. Eu também sofri, como eles, de dor e sede; mas somava-se ao meu sofrimento o fato de que eu permanecia consciente do sofrimento dos outros. Eu já era um incorrigível havia dois anos e meus nervos e meu cérebro haviam se endurecido ao sofrimento. É terrível ver um homem forte ser quebrado. A minha volta, de uma única vez, quarenta homens fortes estavam sendo quebrados. Bastava elevar-se um grito por água e o lugar se transformava num hospício com os gritos, os soluços, os balbucios e a fúria dos homens delirantes. Você não vê? A nossa verdade, a própria verdade que contamos, foi a nossa danação. Quando quarenta homens contaram a mesma coisa com tanta unanumdade, o Diretor Atherton e o Capitão Jamie só puderam concluir que esse testemunho era uma mentira decorada que cada um dos quarenta repetia como um papagaio. Do ponto de vista das autoridades, sua própria situação era tão desesperadora quanto a nossa. Conforme vim a saber mais tarde, a Junta Diretora da Prisão foi convocada pelo telégrafo e duas companhias da Milícia Estadual foram mandadas às pressas para a prisão. Era inverno, e a geada pode ser cortante até mesmo no inverno da Califórnia. Não tínhamos cobertores nos calabouços. Você sabia que a pedra gelada é muito fria para que a carne humana machucada se estenda sobre ela? E eles, por fim, nos deram água. Zombando de nós e gritando palavrões, os guardas puxaram as mangueiras de incêndio e lançaram o jato forte sobre nós, cela após cela, hora após hora, até nossa carne machucada ser arrancada pela violência da água, até ficarmos com água pelos joelhos, a água pela qual tínhamos delirado e que agora delirávamos para que acabasse. Vou omitir o resto do que aconteceu nos calabouços. Só de passagem, quero dizer que nenhum daqueles quarenta condenados nunca foi mais o mesmo. Luigi Polazzo nunca recuperou a razão. Long Bill Hodge aos poucos perdeu a sanidade e, um ano depois, também foi removido para o Hospício.

Ah, e outros seguiram Hodge e Polazzo; e outros, cujo vigor físico foi abalado, foram vitimados pela tuberculose. Dez daqueles quarenta homens morreram nos seis anos seguintes. Depois dos meus cinco anos na solitária, quando me tiraram de San Quentin para o julgamento, eu vi Skysail Jack. Eu mal podia enxergar e piscava como um morcego à luz do sol, depois de cinco anos na escuridão; mas vi o suficiente de Skysail Jack para confranger meu coração. Foi quando cruzava o pátio da prisão que eu o vi. Seu cabelo estava branco. Ele estava prematuramente envelhecido. O peito afundado. As bochechas murchas. As mãos tremiam como se ele estivesse doente. Caminhava cambaleante. E seus olhos se encheram de lágrimas quando me viu, pois eu também era uma triste ruína do que um dia tinha sido um homem. Eu pesava 40 quilos. Meu cabelo, já grisalho, tinha um comprimento de cinco anos, assim como minha barba e meus bigodes. E eu também cambaleava ao andar e os guardas precisaram me ajudar a cruzar aquela faixa de pátio inundada pelo sol cegante. Skysail Jack e eu nos olhamos e nos reconhecemos sob as ruínas. Homens como ele são privilegiados, mesmo numa prisão, e por isso ele ousou infringir as regras falando comigo, numa voz fraca e trêmula. — Você é um cara legal, Standing — grasnou. — Nunca abriu o bico. — Mas eu nunca soube de nada, Jack — murmurei Eu era obrigado a murmurar, pois cinco anos de falta de uso me fizeram perder a voz. — Acho que nunca existiu essa dinamite. — Certo, certo — grasnou, balançando a cabeça como uma criança. — Fica firme na história. Nunca conte pra eles. Você é um cara legal. Tiro o chapéu pra você, Standing. Você nunca abriu o bico. E os guardas me levaram e foi a última vez que vi Skysail Jack. Estava evidente que até ele tinha passado a acreditar no mito da dinamite. Duas vezes fui levado diante da Junta Diretora. Eu era alternadamente maltratado e lisonjeado. A atitude deles resolveu-se em duas propostas. Se eu entregasse a dinamite, eles me dariam uma punição nominal de 30 dias no calabouço e depois o cargo de encarregado da biblioteca da prisão. Se eu persistisse na minha teimosia e não entregasse a dinamite, eles me colocariam na solitária pelo resto da minha sentença. No meu caso, sendo um condenado à prisão perpétua, seria o equivalente a me condenar ao confinamento solitário pelo resto da minha vida. Ah, mas não; a Califórnia é civilizada. Tal lei não consta nos livros penais. E uma punição cruel e incomum, e nenhum Estado moderno ousaria instituí-la. Apesar disso, na história da Califórnia, eu sou o terceiro homem a

ser condenado a passar o resto da vida em confinamento solitário. Os outros dois foram Jake Oppenheimer e Ed Morrell. Falarei deles muito em breve, pois apodreci com eles durante anos nas celas do silêncio. Ah, outra coisa. Eles vão me levar e me enforcar dentro de pouco tempo — não, não por ter matado o Professor Haskell. Por esse crime eu recebi a prisão perpétua. Eles vão me enforcar porque fui considerado culpado de assalto e agressão. E não se trata apenas do regulamento disciplinar da prisão. E a lei e, como lei, pode ser encontrada nos estatutos criminais. Acho que fiz sangrar o nariz de um homem. Não vi seu nariz sangrar, mas havia evidências. Thurston, era seu nome. Era um guarda de San Quentin. Ele pesava seus 80 quilos e gozava de boa saúde. Eu pesava menos de 40 quilos, estava cego como um morcego por causa da longa escuridão e tinha ficado tanto tempo preso entre paredes estreitas que os grandes espaços abertos me deixavam tonto. Na verdade, meu problema era um caso bem definido de agorafobia incipiente, como logo descobri naquele dia em que escapei da solitária e soquei o nariz do guarda Thurston. Bati no seu nariz e o fiz sangrar, quando ele avançou para mim e tentou me agarrar. E por isso eles vão me enforcar. A lei escrita do Estado da Califórnia diz que um condenado à prisão perpétua (como eu) é culpado de crime capital quando agride um guarda da prisão (como Thurston). É evidente que o sangramento no nariz não o incomodou por mais de meia hora; mesmo assim, vão me enforcar por sua causa. Mas veja! Essa lei, no meu caso, é retroativa. Não existia na época em que matei o Professor Haskell. Ela só foi aprovada depois que recebi minha sentença de prisão perpétua. E esse é exatamente o ponto: minha sentença de prisão perpétua coloca-me ao alcance de uma lei que ainda não existia nos livros quando fui condenado. E é por causa da minha condição de condenado à prisão perpétua que vou ser enforcado pela agressão cometida contra o guarda Thurston. É uma aplicação claramente retroativa da lei e, portanto, inconstitucional. Mas que importância tem a Constituição para advogados constitucionalistas quando eles querem tirar do caminho o notório Professor Darrell Standing? E nem sequer estou abrindo um precedente com minha execução. Há um ano, como devem lembrar os leitores de jornais, eles enforcaram Jake Oppenheimer aqui em Folsom por uma ofensa semelhante... só que sua agressão não foi por fazer sangrar o nariz de um guarda. Ele, sem

querer, feriu outro presidiário com uma faca de pão quando esse presidiário tentou lhe roubar essa faca. São estranhos os caminhos, as leis e os cruzamentos da vida e dos homens, estou escrevendo estas linhas na mesma cela do Corredor da Morte que foi ocupada por Jake Oppenheimer até que o levaram e fizeram com ele o que vão fazer comigo. Eu avisei que tinha muitas coisas sobre as quais escrever. Volto agora à minha narrativa. A Junta Diretora da Prisão ofereceu-me duas escolhas: um cargo de confiança na prisão e minha liberação da fiação de juta se eu entregasse a dinamite inexistente; confinamento solitário pelo resto da minha vida se eu me recusasse a entregar a dinamite inexistente. Deram-me 24 horas na camisa-de-força para pensar no caso. Depois fui levado pela segunda vez diante da Junta. O que podia eu fazer? Não podia levá-los a uma dinamite que não existia. Disse-lhes isso e disseram-me que eu era um mentiroso. Disseram-me que eu era um caso difícil, um homem perigoso, um degenerado moral, o criminoso do século. Disseram-me muitas outras coisas e então me levaram para a solitária. Fui encerrado na Cela 1. Na Cela 5 estava Ed Morrell. Na Cela 12, Jake Oppenheimer; e ele ali estava já faziam dez anos. Ed Morrell estava em sua cela havia apenas um ano; ele cumpria uma pena de 50 anos. Jake Oppenheimer era um condenado à prisão perpétua. Como eu. A previsão, portanto, era de que nós três fossemos ficar ali por um longo tempo. Mas apenas seis anos se passaram e nenhum de nós está na solitária. Jake Oppenheimer foi enforcado. Ed Morrell tomou-se o encarregado-chefe de San Quentin e foi indultado há poucos dias. E eu estou aqui em Folsom esperando o dia marcado pelo Juiz Morgan, que será meu último dia. Os tolos! Como se eles pudessem estrangular minha imortalidade com seus patéticos arranjos de cordas e cadafalsos! Eu ainda caminharei, ah, eu ainda caminharei vezes sem conta sobre esta bela terra. E caminharei feito carne, seja príncipe ou camponês, sábio ou louco, sentado num trono ou gemendo sob a roda.

CAPITULO 5 De início, era muito solitário no calabouço e as horas passavam vagarosas. O tempo era marcado pela troca regular da guarda e pela alternância entre o dia e a noite. O dia não passava de uma vaga luminosidade, mas era melhor que a escuridão total da noite. Na solitária, o dia se infiltrava, uma sutil infiltração da luz do luminoso mundo exterior. A luz nunca era forte o suficiente para que eu pudesse ler. Além disso, nada havia para ler. A única coisa a fazer era ficar deitado e pensar e pensar. E eu estava condenado à prisão perpétua; parecia certo que, a menos que eu operasse o milagre de fazer surgir do nada 15 quilos de dinamite, todos os anos do resto da minha vida seriam passados nessa silenciosa escuridão. Minha cama era uma braçada de palha desfiada e apodrecida, espalhada sobre o chão da cela. Um cobertor puído e sujo era minha coberta. Não havia cadeira, não havia mesa; não havia nada a não ser a braçada de palha e o velho cobertor puído. Eu sempre fui um homem de sono leve e cérebro ativo. Na solitária, um homem cansa de pensar em si mesmo e o único modo de escapar a si mesmo é dormindo. Durante anos, eu dormi uma média de cinco horas por noite. Agora, eu cultivava o sono. Transformei-o numa ciência. Tomei-me capaz de dormir dez horas, depois 12 horas e, mais tarde, 14 ou 15 horas por dia. Mas não conseguia passar disso e era obrigado a ficar acordado e pensar e pensar. Para um homem de cérebro ativo, esse é o caminho para a loucura. Procurei meios mecânicos que me permitissem suportar minhas horas de vigília. Elevei ao quadrado e ao cubo longas séries de números e, pela força da concentração e da vontade, elaborei as mais admiráveis progressões geométricas. Cheguei a flertar com a quadratura do círculo... até que me encontrei começando a acreditar que tal impossibilidade poderia ser alcançada. Quando percebi que esse caminho também levava à loucura, abandonei a quadratura do círculo; mas eu lhe asseguro que isso exigiu de mim um sacrifício considerável, pois o exercício mental envolvido era um esplêndido passatempo. Através de pura visualização sob as pálpebras entrecerradas, construí tabuleiros de xadrez e joguei longas partidas, com as brancas e as pretas, até o xeque-mate. Mas quando me tomei um especialista nesse jogo visualizado da memória, o exercício perdeu o interesse. Não passava de um exercício; pois que competição poderia haver com um único jogador jogando pelos dois lados? Tentei, mas tentei em vão, dividir minha personalidade em duas e

colocar uma em oposição à outra. Eu continuava a ser sempre um único jogador, e não havia armadilha ou estratégia num lado que o outro lado não percebesse de imediato. E o tempo pesava, se arrastava. Eu brincava com as moscas; as comuns moscas domésticas que, como a vaga luz cinzenta do dia, também se infiltravam na solitária. E descobri que elas tinham instinto de jogador. Por exemplo, deitado no chão da cela, tracei uma linha horizontal imaginária ao longo da parede a um metro do chão. Quando elas pousavam na parede acima dessa linha, eu as deixava em paz. No instante em que se animavam a cruzar essa linha, eu tentava pegá-las. Eu tinha o máximo cuidado em jamais machucá-las e, com o tempo, elas sabiam tão bem quanto eu por onde passava a linha imaginária. Quando queriam brincar, elas cruzavam a linha; muitas vezes, uma única mosca ficava brincando comigo por mais de uma hora. Quando ela se cansava, ia repousar no território seguro acima da linha. Dentre a dúzia de moscas que conviveu comigo naquela época, só uma não ligava para o jogo. Ela se recusava a brincar e, tendo aprendido a penalidade por cruzar a linha, evitava cuidadosamente o território perigoso. Essa mosca era uma criatura carrancuda e mal-humorada. Como diriam os presidiários, ela era “anti-social”. Ela tampouco brincava com as outras moscas. Era forte e saudável; eu a estudei por longo tempo. Sua falta de disposição para brincadeiras era temperamental, não física. Acredite-me, eu conhecia todas as minhas moscas. Era surpreendente a infinidade de diferenças que eu distinguia entre elas. Ah, cada uma era distintamente um ser individual; não apenas quanto ao tamanho e sinais característicos, força e velocidade de vôo, modo e jeito de voar e brincar, de fugir e avançar, de voar em círculos numa só direção ou de voar em círculos e inverter a direção, de tocar e caminhar sobre a zona proibida ou de fingir tocála e então ir pousar na zona de segurança. Elas também se diferenciavam profundamente nas menores particularidades de mentalidade e temperamento. Eu conhecia as nervosas, eu conhecia as fleumáticas. Havia uma pequenina que voava em acessos de fúria, às vezes contra mim, às vezes contra suas companheiras. Você já viu um potro ou um novilho escoicear e correr feito louco pelo pasto, de puro excesso de vitalidade e energia? Bem, havia aquela mosca — a melhor jogadora de todas, por falar nisso — que, depois de tocar a parede proibida três ou quatro vezes em rápida sucessão e sempre conseguindo escapar à concha aveludada e cuidadosa da minha mão, ficava tão excitada e jubilante que voava em círculos velozes sobre minha cabeça, girando, virando e voando no sentido oposto, mas sempre se

mantendo dentro dos limites do estreito círculo no qual celebrava seu triunfo sobre mim. Ora, eu até podia antecipar quando alguma das moscas tomava a decisão de começar a brincar. Há mil detalhes só desse único ponto, mas não vou aborrecê-lo com eles; esses detalhes evitavam, porém, que eu me aborrecesse demais durante aqueles primeiros tempos na solitária. Só quero contar um episódio. Foi, para mim, o mais memorável: aquela mosca “antisocial”, aquela que nunca brincava, num instante de distração pousou na zona proibida e foi imediatamente capturada pela minha mão. Depois que a soltei, ela ficou amuada por uma hora. E as horas se arrastavam na solitária; eu não podia dormir todas aquelas horas nem passá-las brincando com moscas, por mais inteligentes que fossem. Pois moscas são moscas e eu era um homem, com um cérebro humano; e meu cérebro era treinado e ativo, cheio de cultura e ciência, sempre engrenado na alta tensão do ímpeto de fazer alguma coisa. E ali não havia nada para fazer e meus pensamentos rodavam de modo abominável em vãs especulações. Eu lembrava meu trabalho sobre a determinação do nível de pentose e metilpentose nas videiras e nos vinhos, ao qual dediquei minhas últimas férias de verão na Vinícola Asti. Quase cheguei a completar a série de testes. E agora eu ficava especulando se alguém estaria dando continuidade aos testes. Que resultados estaria obtendo? Você vê, o mundo estava morto para mim. Nenhuma notícia do mundo chegava até mim. A história da ciência caminhava a passos rápidos e eu me interessava por um milhar de assuntos. Ora, eis minha teoria sobre a hidrólise da caseína pela tripsina, que o Professor Walters tinha desenvolvido em seu laboratório. E o Professor Schleimer colaborou comigo na detecção do fitoesterol em compostos graxos animais e vegetais; o trabalho certamente continuava, mas com quais resultados? Era enlouquecedor pensar em toda essa atividade além dos muros da prisão e saber que eu não podia participar dela nem jamais teria quaisquer notícias dela. Eu só podia deitar no chão da minha cela e brincar com as moscas. No entanto, nem tudo era silêncio na solitária. Já desde o início do meu confinamento eu costumava ouvir, a intervalos irregulares, umas vagas pancadinhas abafadas. E de algum ponto mais distante, eu ouvia pancadinhas ainda mais vagas, ainda mais abafadas. Essas batidas eram sempre interrompidas pelo rosnar do guarda. Uma vez, quando as batidas prosseguiram insistentes, outros guardas foram chamados; percebi, pelos sons, que homens estavam sendo amarrados dentro de camisas-de-força.

A explicação era fácil. Eu sabia, como todos os outros prisioneiros em San Quentin, que os dois homens na solitária eram Ed Morrell e Jake Oppenheimer. E fiquei sabendo que eles conversavam entre si através de um código de batidas com os nós dos dedos; e eram punidos por isso. Eu não tinha a menor dúvida de que o código que eles usavam devia ser simples, mas gastei muitas horas num vão esforço de compreendê-lo. Deus sabe que devia ser simples, mas eu não conseguia decifrá-lo. E como mostrou ser simples, depois que o aprendi; e o mais simples de tudo era o truque que eles usavam e que tanto tinha me frustrado. A cada dia, eles mudavam a letra do alfabeto que dava início ao código; eles também a mudavam em cada conversa e, às vezes, no meio de uma conversa. Mas chegou o dia em que captei o código na letra inicial certa e compreendi claramente duas frases; na conversa seguinte, só deixei de entender uma única palavra. Ah, aquela primeira vez! — Diga... Ed... o... que... você... dava... agora... por... um... pedaço... de... papel... e... um... punhado... de... Bull... Durham? — perguntou o homem das batidas mais distantes. Quase gritei de alegria. Eis a comunicação! Eis a companhia! Fiquei ansiosamente à escuta; as batidas seguintes, que imaginei serem de Ed Morrell, responderam: — Eu... dava... vinte... horas... na... camisa... de... força. .. por... um... punhadinho... E aí veio o rosnado de interrupção do guarda: — Pára já com isso, Morrell! O leigo poderia pensar que o pior já foi feito quando se condenou um homem à solitária pelo resto de sua vida e que, portanto, um simples guarda não teria como obrigar esse homem a parar com as batidas. Mas existe a camisa-de-força. Existe a suspensão do alimento. Existe a suspensão da água. Existe o espancamento. Na verdade, um homem preso numa cela estreita é bem indefeso. E assim as batidas cessaram. Quando recomeçaram, naquela noite, fiquei perdido. Eles tinham mudado a letra inicial do código. Mas eu já tinha entendido a chave e, dentro de poucos dias, ocorreu novamente aquela mesma inicial que eu tinha compreendido. Não esperei mais. — Alô — bati. — Alô, estranho — responderam as batidas de Morrell. — Bem-vindo à cidade — responderam as batidas de Oppenheimer.

Eles estavam curiosos para saber quem eu era, por quanto tempo estava condenado à solitária e por que tinha sido condenado. Mas deixei tudo isso de lado para aprender primeiro seu sistema de mudar a letra inicial do código. Depois que isso ficou claro, conversamos. Foi um grande dia, pois os dois condenados à prisão perpétua haviam se tomado três, embora eles só me aceitassem em caráter de experiência. Como me disseram mais tarde, temiam que eu fosse um dedo-duro colocado ali para montar uma armadilha para eles. Essa manobra já tinha sido aplicada antes a Oppenheimer, que pagou caro pela confiança que depositou num dos alcagüetes do Diretor Atherton. Para minha surpresa — sim, posso até dizer para minha alegria — meus dois companheiros conheciam minha fama de incorrigível. Minha fama — ou melhor, minha má fama — tinha penetrado até mesmo naquele túmulo em vida que Oppenheimer ocupava havia dez anos. Eu tinha muito a lhes contar dos acontecimentos da prisão e do mundo além dos calabouços. O plano de fuga dos quarenta condenados, a busca da dinamite inexistente, a armadilha traiçoeira de Cecil Winwood, tudo isso era novidade para eles. Conforme me contaram, as notícias às vezes chegavam à solitária pelos guardas, mas eles nada ouviam já havia um par de meses. Os guardas atualmente de serviço na solitária eram um grupo especialmente cruel e vingativo. Muitas e muitas vezes naquele dia fomos amaldiçoados pelo guarda de plantão por nossa conversa com os nós dos dedos. Mas não conseguíamos parar. Os dois homens da morte em vida tinham se tomado três e tínhamos muito a dizer uns aos outros — embora a forma de expressão fosse exasperadoramente lenta e eu ainda não tivesse a fluência deles no jogo das pancadinhas com os nós dos dedos. — Espere até o Pie-Face pegar o turno essa noite — bateu Morrell para mim. — Ele dorme quase o tempo todo e a gente pode conversar à vontade. Como conversamos aquela noite! O sono nunca esteve mais longe dos nossos olhos. Apesar de gordo, Pie-Face Jones era um homem mesquinho e amargo; mas abençoamos aquela gordura que o obrigava a tirar freqüentes sonecas. Mesmo assim, nossas batidas incessantes atrapalharam seu sono e o irritaram e ele nos advertiu várias vezes. E os outros guardas do plantão noturno também praguejaram contra nós. De manhã, todos deram parte de muitas batidas durante a noite e pagamos pelo nosso pequeno feriado: às nove horas, chegou o Capitão Jamie com seus guardas para nos amarrar no tormento da camisa-de-força. Até às nove da manhã seguinte, por 24 ininterruptas, amarrados e indefesos no chão, sem comida nem água, pagamos o preço da palavra.

Ah, nossos guardas eram brutos. E sob seu tratamento, precisávamos endurecer ao ponto da brutalidade para continuarmos vivos. O trabalho duro cria mãos calosas. Guardas duros criam prisioneiros duros. Continuamos a conversar e, volta e meia, a ser punidos com a camisa-de-força. A noite era o melhor momento; quando acontecia de haver guardas substitutos no plantão, conversávamos durante todo o turno. A noite e o dia eram uma coisa só para nós que vivíamos nas trevas. Podíamos dormir a qualquer hora; conversar, só de vez em quando. Cada um de nós contou aos outros grande parte da história de sua vida. Durante longas horas, Morrell e eu ficamos deitados em silêncio, ouvindo as vagas batidas distantes e incessantes de Oppenheimer a nos contar a história de sua vida, desde os primeiros anos numa favela de São Francisco até sua entrada numa gang, até sua iniciação no mundo das depravações aos 14 anos de idade quando trabalhou como mensageiro noturno na zona do meretrício, o bairro da luz vermelha, até sua primeira prisão e continuando, por roubos e assaltos, até a traição de um comparsa e os assassinatos sanguinários dentro dos muros da prisão. Eles chamavam Jake Oppenheimer o “Tigre Humano”. Um repórter cunhou essa expressão e ela sobreviverá ao homem ao qual se aplicava. Mas eu sempre vi em Jake Oppenheimer todos os traços essenciais da humanidade. Ele era leal, era confiável. Sei que ele, muitas vezes, preferiu ser punido a denunciar um companheiro. Era bravo. Era paciente. Ele era capaz de se sacrificar — eu poderia contar uma história a esse respeito, mas não o farei. E a justiça era, para ele, uma paixão. Os assassinatos que ele cometeu na prisão foram inteiramente devidos ao seu extremo senso de justiça. E ele tinha uma mente esplêndida. Uma vida toda na prisão, dez anos dela na solitária, não embaçou seu cérebro. Morrell, sempre um verdadeiro companheiro, também tinha um cérebro esplêndido. Na verdade — e eu, que vou morrer logo, tenho direito de fazer essa afirmação sem risco de falta modéstia —, as três melhores mentes de San Quentin, incluindo o Diretor, eram as três que apodreciam juntas ali na solitária. E agora, no fim dos meus dias, revendo tudo o que conheci da vida, sou obrigado a concluir que as mentes fortes jamais são dóceis. Os homens estúpidos, os homens medrosos, os homens desprovidos de um senso apaixonado de justiça e de impávido desafio: esses são os homens que se tornam prisioneiros-modelo. Agradeço a todos os deuses que Jake Oppenheimer, Ed Morrell e eu não fôssemos prisioneiros-modelo.

CAPITULO 6 Há mais do que um grão de verdade no erro contido na definição infantil de memória: memória é a coisa com a qual a gente esquece. Ser capaz de esquecer significa sanidade. Lembrar incessantemente significa obsessão e loucura. O problema que enfrentei na solitária (onde as lembranças incessantes lutavam para tomar conta de mim) foi o problema de esquecer. Quando brincava com as moscas, quando jogava xadrez comigo mesmo, quando conversava através de pancadinhas com os nós dos dedos, eu esquecia parcialmente. O que eu desejava era esquecer completamente. Havia as lembranças infantis de outros tempos e lugares — aquele “trilhar as nuvens da glória” de Wordsworth. Se um garoto teve essas lembranças, estarão elas irremediavelmente perdidas quando ele se toma um homem? Poderia esse conteúdo específico do seu cérebro de garoto ser totalmente eliminado? Ou haveria ainda resíduos dessas lembranças de outros tempos e lugares, adormecidas, emparedadas em confinamento solitário nas células do cérebro — do mesmo modo que eu estava emparedado numa cela em San Quentin? Sabemos de condenados a uma vida na solitária que ressuscitaram e viram novamente a luz do sol. Por que não poderiam também ressuscitar essas lembranças infantis de outros mundos? Mas como? Na minha opinião, ao alcançarmos o completo esquecimento do presente e do passado humanos. Mas, ainda assim, como? O hipnotismo poderia ser o caminho. Se o hipnotismo pudesse adormecer a mente consciente e despertar a mente subconsciente, então nós o conseguiríamos, então as portas dos calabouços do cérebro se escancarariam, então os prisioneiros emergeriam para a luz do sol. Assim pensava eu — e o resultado você logo verá. Antes preciso contar como eu, quando garoto, tinha essas lembranças de outros mundos. Eu flamejei nas nuvens de glória que trilhei em vidas anteriores. Como qualquer garoto, fui assombrado pelos outros seres que fui em outros tempos. Isso ocorreu durante o meu processo de vir a ser, antes que o fluxo de tudo aquilo que eu tinha sido se cristalizasse no molde dessa personalidade única que os homens conheceriam, durante alguns anos, como Darrell Standing. Vou contar apenas um incidente. Aconteceu na velha fazenda em Minnesota. Eu tinha uns seis anos. Um missionário que esteve na China

voltou aos Estados Unidos e foi enviado pela Ordem das Missões para coletar fundos entre os fazendeiros; ele passou a noite em nossa casa. O incidente aconteceu na cozinha, após o jantar, quando minha mãe me ajudava a vestir o pijama e o missionário mostrava fotografias da Terra Santa. Eu talvez já tivesse há muito esquecido o que vou lhe contar, se não ouvisse meu pai a contar e recontar o caso aos vizinhos tantas vezes durante na minha infância. Lancei um grito ao ver uma das fotografias e examinei-a, primeiro com ansiedade e depois com desapontamento. Me parecera de súbito muito familiar, tão familiar quanto me pareceria uma fotografia do celeiro do meu pai. E então me parecia totalmente estranha. Mas continuei a olhar e aquela sensação de assombrosa familiaridade voltou. — A Torre de Davi — disse o missionário para minha mãe. — Não! — gritei, com absoluta certeza. — Você quer dizer que o nome não é esse? — perguntou-me o missionário. Confirmei com um aceno de cabeça. — Então qual é o nome dela, meu filho? — O nome da torre é... — comecei, e conclui com um fio de voz — ... esqueci. Agora não parece mais com ela — continuei, depois de uma pausa — Andaram mexendo e ela ficou feia. O missionário selecionou outra fotografia e entregou-a a minha mãe. — E aqui sou eu, seis meses atrás, Sra Standing — ele apontou com o dedo. — Aqui é a Porta de Jaffa, eu passei por ela e fui caminhando até a Torre de Davi, aqui, no fundo da fotografia, bem aqui onde está o meu dedo. As autoridades estão de pleno acordo nesse assunto. El Kul’ah, como era conhecida pelos... Interrompi-o de novo, apontando a pilha de ruínas de pedras no canto esquerdo da fotografia. — Foi bem por aqui — exclamei. — Esse nome que o senhor acabou de falar era o nome que os judeus chamavam a torre. Mas a gente chamava diferente. A gente dizia... esqueci. — Ouçam só o garoto — brincou meu pai. — Até parece que andou por lá. Nesse exato instante, eu soube que tinha estado naquele lugar, embora tudo parecesse estranhamente diferente. Meu pai continuou a rir mas o missionário pensou que eu estava lhe pregando uma peça. Mostrou-me outra fotografia: uma paisagem deserta e desolada com algumas árvores e arbustos,

uma ravina rasa com suaves encostas cobertas de ruínas. A meia distância, havia um agrupamento de casebres miseráveis, de teto achatado. — E agora, meu filho, onde é isso aqui? — interrogou-me o missionário. E o nome veio à minha cabeça! — Samaria — exclamei de imediato. Meu pai bateu palmas de prazer, minha mãe estava espantada com meu comportamento e o missionário mostrava irritação. — O garoto está certo — disse ele. — E uma aldeia da Samaria. Eu passei por lá e foi por isso que comprei a fotografia. E isso prova que o garoto já viu essas fotografias antes. Meu pai e minha mãe negaram. — Mas está diferente na fotografia — pus-me a dizer enquanto minha memória se ocupava em reconstruir a fotografia. O contorno geral da paisagem e o recorte das colinas distantes eram os mesmos. Indiquei em voz alta as diferenças e fui mostrando com o dedo. — As casas eram mais aqui à direita e tinha mais árvore, muita árvore e muita grama e muita cabra. Eu estou vendo elas agora e dois meninos levando elas. E aqui à direita tinha um bando de gente seguindo um homem. E ali — apontei para o local onde disse ter estado a aldeia — tinha um bando de mendigos. Tudo vestido de trapo. E eles estavam tudo doente. A cara deles e as mãos e as pernas, estava tudo em ferida. — Ora, ele certamente ouviu a história na igreja. Vocês lembram, a cura dos leprosos, em Lucas — disse o missionário com uma risadinha de satisfação. — Quantos mendigos doentes havia, meu filho? Aos cinco anos de idade, eu já tinha aprendido a contar até cem e assim examinei o grupo cuidadosamente e anunciei: — Dez mendigos. Todos eles estão balançando os braços e gritando pros outros homens. — Mas não se aproximam deles? — foi a pergunta. Sacudi a cabeça. — Eles só estão parados lá e ficam gritando como se estivessem numa encrenca. — Continue — pressionou o missionário. — E depois? O que é que faz o homem na frente daquele grupo que você disse que vinha vindo pelo caminho?

— Eles todos pararam e ele está dizendo alguma coisa pros homens doentes. Os meninos com as cabras pararam pra olhar. Está todo mundo olhando. — E então? — Ah, é isso. Os homens doentes estão caminhando para as casas. Eles pararam de gritar e parece que não estão mais doentes. Eu estou montado no meu cavalo olhando pra eles. Com isso, os meus três ouvintes caíram na gargalhada. — E eu sou um homem bem grande! — gritei, furioso — E eu tenho uma espada bem grande! — Os dez leprosos que Cristo curou antes de entrar em Jericó a caminho de Jerusalém — explicou o missionário aos meus pais. — O garoto viu gravuras de quadros famosos em algum espetáculo de lanterna mágica. Mas nem o pai nem a mãe podiam lembrar-se de que eu algum dia tivesse visto um espetáculo de lanterna mágica. — Teste o garoto com outra fotografia — sugeriu o pai. — Está tudo diferente — reclamei enquanto estudava a fotografia que o missionário me passou. — Aqui não tem nada, só aquela colina e as outras colinas. Aqui devia ter uma estrada. E ali devia ter os jardins e as árvores e as casas por trás dos muros altos de pedras. E ali do outro lado tinha os buracos nas pedras onde eles enterravam a gente que morria. O senhor está vendo esse lugar aqui? Era aqui que eles jogavam pedras nas pessoas até matarem elas. Eu nunca vi eles fazendo isso, não. Só que me contaram que eles faziam. — E a colina? — perguntou o missionário, apontando para a parte central da fotografia, que parecia ser a razão pela qual a foto foi batida. — Você pode nos dizer o nome dessa colina? Sacudi a cabeça. — Nunca teve nome, não. Eles matavam gente ali. Eu vi eles matando gente ali muitas vezes. — Desta vez o garoto está de acordo com a maioria das autoridades — anunciou o missionário com enorme satisfação. — Esta colina é o Gólgota, o Monte das Caveiras, que ganhou esse nome porque parece com uma caveira. Notem a semelhança. Foi aqui que eles crucificaram... — ele parou e virou-se para mim. — Quem foi que eles crucificaram ali, hein, meu sábio jovenzinho? Conte pra nós tudo o que você sabe. Ah, eu vi... meu pai disse mais tarde que meus olhos estavam esbugalhados; mas sacudi a cabeça com teimosia e disse:

— Eu não vou dizer mais nada pro senhor porque o senhor está rindo de mim. Eu vi eles matarem uma pilha de gente ali. Eles pregavam as pessoas e demorava um tempão. Eu vi... mas não vou contar nada pro senhor, não. Eu não conto mentira. O senhor pergunte pro pai e pra mãe se eu conto mentira. O pai me tirava o couro se eu contasse mentira. Pergunte pra eles. E depois disso o missionário não conseguiu tirar de mim mais nenhuma palavra, embora continuasse a me lançar como isca mais fotografias — que fizeram minha cabeça girar numa explosão de lembranças e trouxeram à ponta da minha língua torrentes de palavras que eu, obstinado, segurei e engoli. — O garoto com certeza vai dar um bom estudioso da Bíblia — disse o missionário ao pai e à mãe depois que lhes dei o beijo de boa-noite e fui para a cama. — Ou talvez, com essa imaginação toda, ele vai ser um bom romancista. O que vem mostrar como as profecias podem dar errado. Estou aqui no Corredor da Morte, escrevendo estas linhas nos meus últimos dias — ou melhor, nos últimos dias de Darrell Standing, antes que eles o levem e tentem atirá-lo às trevas na ponta de uma corda — e sorrio para mim mesmo. Não me tomei um estudioso da Bíblia nem um romancista. Pelo contrário, até ser enterrado nas celas do silêncio por meia década, fui tudo aquilo que o missionário não previu: um especialista em agricultura, um professor de agronomia, um especialista na ciência da eliminação de movimentos supérfluos, um mestre de eficiência agrícola, um cientista de laboratório onde a precisão e fidelidade ao fato microscópico são exigências absolutas. E aqui estou, nesta tarde quente, no Corredor da Morte; deixo de escrever minhas memórias para ouvir o zumbido hipnótico das moscas no ar modorrento; ouço frases esparsas de uma discussão em voz baixa entre Josephus Jackson (o negro assassino à minha direita) e Bambeccio (o italiano assassino à minha esquerda) — de uma porta gradeada para outra porta gradeada, de lá para cá da minha porta gradeada — sobre as virtudes antisépticas e as excelências do fumo de mascar na cura de feridas. Minha mão está suspensa no ar, segurando a caneta; e ao lembrar que outras mãos minhas, em tempos há muito passados, seguraram o pincel, a pena e o estilo, também encontro um espaço imaginário no tempo para me perguntar se aquele missionário, quando criança, trilhou nuvens de glória e lançou um olhar ao brilho dos velhos dias de peregrinação pelas estrelas. Bem, de volta à solitária — depois de aprender o código da conversa com os nós dos dedos e continuar achando as horas de consciência

insuportavelmente longas. Por meio da auto-hipnose, que comecei a praticar com sucesso, fui capaz de adormecer minha mente consciente e despertar e libertar minha mente subconsciente. Mas minha mente subconsciente era indisciplinada e sem leis. Ela vagueava por uma loucura de pesadelo, sem coerência e sem continuidade de cenas, eventos ou pessoas. Meu método de hipnose mecânica era a essência da simplicidade. Sentado com as pernas cruzadas no meu colchão de palha, eu olhava fixamente um fragmento brilhante de palha que prendi à parede da cela perto da porta, onde havia mais luz. Eu olhava para o ponto brilhante com os olhos próximos dele e me inclinava até meus olhos ficarem tensos. Ao mesmo tempo, relaxava toda a minha vontade e me abandonava à tontura que sempre acabava por se apoderar de mim. E quando sentia estar perdendo o equilíbrio, eu fechava os olhos e me deixava cair de costas e inconsciente sobre o colchão. E então por dez minutos, meia hora, uma hora ou até mais, eu vagueava errática e loucamente pelas lembranças armazenadas da minha eterna recorrência à Terra. Mas os tempos e lugares mudavam depressa demais. Eu sabia mais tarde, ao despertar, que eu, Darrell Standing, era a personalidade que formava o elo de conexão entre o bizarro e o grotesco. Mas isso era tudo. Eu jamais conseguia reviver por completo uma experiência inteira, um ponto de consciência no tempo e espaço. Meus sonhos — se de sonhos podem ser chamados — não tinham nexo nem lógica. Como exemplo das minhas peregrinações: num único intervalo de quinze minutos de subconsciência, eu rastejei e rosnei no lodo do mundo primitivo e cortei os ares do século XX num monoplano ao lado de Haasfurther. Desperto, lembrei que eu, Darrell Standing, nesta carne, no ano anterior ao meu encarceramento em San Quentin, voei com Haasfurther sobre o Pacífico, em Santa Mônica. Desperto, eu não lembrava o rastejar e o rosnar no lodo antigo. No entanto, desperto, compreendi que, de certo modo, eu me lembrava daquela aventura imemorial no lodo e que ela era um fato real de uma experiência muito anterior, quando eu ainda não era Darrell Standing mas sim um outro alguém — ou algo — que rastejava e rosnava. Uma experiência era mais remota que a outra, nada mais. Ambas as experiências eram igualmente reais — caso contrário, como poderia eu lembrá-las? Ah, que alvoroço de imagens e ações luminosas! Nuns poucos minutos de liberação do subconsciente, freqüentei os salões dos reis, comandei marinheiros e fui comandado por marinheiros, fui o louco e o bobo da corte, o homem de armas, o escrivão e o monge. Fui o governante supremo à

cabeceira da mesa: poder temporal no meu braço que segura a espada, na espessura das muralhas do meu castelo e no meu exército de homens finshing 1; poder espiritual comprovado pelos padres encapuçados e os gordos abades sentados aos meus pés, bebendo meu vinho e se empanturrando da minha comida. Em regiões gélidas, usei o colar de ferro do escravo em volta do pescoço. Em perfumadas noites tropicais amei princesas de casas reais, com os escravos negros a abanar o ar sufocante com seus leques de penas de pavão, enquanto ao longe, através de palmeiras e fontes, ouvia-se o rugido do leão e o grito do chacal. Em gélidas noites do deserto, acocorei-me e aqueci minhas mãos no fogo aceso com estrume de camelo. Refugiei-me sob a magra sombra de arbustos torrados pelo sol ao lado de poços secos e, com a língua ressecada, suspirei por um gole d'água enquanto à minha volta, desmembrados e dispersos na areia, estavam os ossos de homens e bestas que também suspiraram e morreram. Fui marujo e mercenário, erudito e recluso. Estudei as páginas manuscritas de enormes volumes na quietude escolástica e na luz crepuscular de monastérios em topos de montanha, enquanto lá embaixo, nas encostas, os camponeses labutavam nos vinhedos e olivais ainda depois de findo o dia e traziam das pastagens as cabras a balir e as vacas a mugir. Sim, e liderei a populaça vociferante pelas ruas gastas, sulcadas pelas rodas das bigas, de esquecidas e antigas cidades. E com voz solene e grave como a morte, proclamei a lei, afirmei a gravidade do crime e impus a pena de morte a homens que — como Darrell Standing na Prisão de Folsom — haviam infringido a lei. Do alto de um mastro vertiginoso a oscilar sobre o convés do navio, observei as águas iluminadas pelo sol onde o coral brilhava nas profundezas azuis e pilotei o navio para a segurança de lagoas tranqüilas, onde a âncora mergulhava perto das praias de coral franjadas de palmeiras. E lutei em esquecidos campos de batalha de antigas eras, quando o sol se pôs sobre uma carnificina que continuou pela noite adentro sob o brilho das estrelas, e nem mesmo o vento gélido da noite, a soprar de distantes picos nevados, esfriou o calor da luta. E mais uma vez fui o pequeno Darrell Standing, descalço na grama úmida do orvalho da primavera na fazenda em Minnesota; a tremer de frio nas manhãs de geada, alimentando o gado nas baias embaçadas pelo vapor da respiração; mudo de medo e assombro diante do esplendor e da ira                                                              1

Finshing é uma palavra criada por Jack London; seu sentido em inglês não é conhecido.

de Deus quando ouvia, aos domingos, a arenga dos pregadores sobre a Nova Jerusalém e as agonias do fogo do inferno. O que mencionei acima foram os vislumbres e clarões que vinham até mim quando, na Cela 1 da solitária de San Quentin, eu fixava os olhos num pedacinho brilhante de palha que irradiava a luz, até cair inconsciente. Como essas coisas vieram até mim? Eu não poderia, com certeza, tê-las fabricado a partir do nada dentro das paredes da prisão — assim como não poderia ter fabricado a partir do nada os 15 quilos de dinamite tão barbaramente exigidos de mim pelo Capitão Jamie, pelo Diretor Atherton e pela Junta Diretora da Prisão. Eu sou Darrell Standing, nascido e criado num pedaço agreste de terra em Minnesota, ex-professor de agronomia, um incorrigível da prisão de San Quentin e atualmente um homem condenado à morte na prisão de Folsom. Eu não conheço, dentro da experiência de Darrell Standing, essas coisas sobre as quais escrevi e que foram desenterradas dos depósitos do meu subconsciente. Eu, Darrell Standing, nascido em Minnesota e logo a morrer pela corda na Califórnia, certamente nunca amei filhas de reis nas cortes dos reis; nem lutei, machado contra machado, no convés balouçante de um navio; nem me afoguei em vinho na adega de um navio, brindando aos gritos amotinados e aos cânticos de morte dos marinheiros, enquanto o navio era levantado pelas ondas e atirado sobre as pontiagudas rochas negras e as águas borbulhavam sobre nós. Tais coisas não fazem parte da experiência de Darrell Standing no mundo. Mesmo assim, eu, Darrell Standing, descobri essas coisas dentro de mim na solitária de San Quentin através de auto-hipnose mecânica. Essas experiências não pertenciam a Darrell Standing, assim como a palavra “Samaria” não pertencia a Darrell Standing quando lhe escapou dos lábios infantis à vista de uma fotografia. Não podemos fabricar algo a partir do nada. Na solitária, eu não poderia fabricar 15 quilos de dinamite. Tampouco, a partir de coisas estranhas à experiência de Darrell Standing, poderia eu fabricar essas amplas e longínquas visões de tempo e espaço. Essas coisas estavam no conteúdo da minha mente e, na minha mente, eu estava apenas começando a aprender meu caminho.

CAPITULO 7 Este era o meu dilema. Eu sabia que dentro de mim havia uma Golconda, uma mina de diamantes de lembranças de outras vidas, mas eu era incapaz de fazer mais do que esvoaçar como um louco através daquelas lembranças. Eu tinha a minha Golconda, mas não conseguia explorá-la. Lembrei o caso de Stainton Moses, o clérigo que foi possuído pelas personalidades de Santo Hipólito, Plotino, Atenodoro e do amigo de Erasmo, Grocyn. E quando considerei os experimentos do Coronel de Rochas (que li como mero passatempo em outros e mais ocupados dias), fiquei convencido de que Stainton Moses tinha sido, em vidas anteriores, aquelas personalidades que às vezes pareciam possuí-lo. Na verdade, elas eram ele, eram os elos da cadeia de recorrência. Dediquei-me com maior interesse aos experimentos do Coronel de Rochas. Através do condicionamento hipnótico adequado, ele afirmava ter regredido no tempo até os ancestrais de seus pacientes. Ele descreveu o caso de Josephine, moça de dezoito anos que vivia em Voiron, departamento de Isre. Sob hipnotismo, o Coronel de Rochas fez Josephine regredir aos dias da adolescência, à infância, à primeira infância, aos dias de bebê de colo e à escuridão silenciosa do útero materno; e regredir ainda mais, através do silêncio e das trevas do tempo em que ela ainda não tinha nascido, até a luz e a vida de uma existência anterior, na qual ela foi um velho rude, desconfiado e amargurado chamado Jean-Claude Bourdon, que serviu na Sétima Artilharia em Besançon e morreu entrevado aos setenta anos. Sim, e o Coronel de Rochas não hipnotizou, por sua vez, essa sombra de Jean-Claude Bourdon para que regredisse no tempo, através da infância e do nascimento e das trevas do não-nascido, até encontrar mais uma vez luz e vida quando ele foi Philoméne Carteron, uma velha perversa? Porém, por mais que tentasse com meu pedacinho brilhante de palha na luz filtrada da solitária, eu não conseguia alcançar qualquer definição de uma personalidade anterior. Convenci-me, com o fracasso dos meus experimentos, de que só através da morte eu poderia ressuscitar com clareza e coerência as lembranças dos meus eus anteriores. Mas a maré da vida corria forte dentro de mim. Eu, Darrell Standing, estava tão resolutamente decidido a não morrer que me recusava a deixar que o Diretor Atherton e o Capitão Jamie me matassem. A pressão para viver sempre foi tão inata em mim que às vezes acho que é por isso que ainda estou

aqui, comendo e dormindo, pensando e sonhando, escrevendo esta narrativa dos meus vários eus e esperando a corda incontestável que dará um fim transitório a um dos elos da minha longa existência. E então veio a morte em vida. Aprendi o segredo. Ed Morrell ensinouo para mim, como você vai ver. Tudo começou através do Diretor Atherton e do Capitão Jamie. Eles devem ter sentido o pânico crescer ao pensar na dinamite que acreditavam estar escondida. Vieram a mim na minha cela escura e me disseram, sem rodeios, que me poriam numa camisa-de-força até a morte se eu não confessasse o esconderijo da dinamite. E me garantiram que fariam tudo de modo oficial, sem qualquer risco para suas carreiras: minha morte seria registrada como devida a causas naturais. Ah, caro e pacato cidadão, por favor acredite em mim quando lhe digo que homens são mortos nas prisões, hoje — do mesmo modo como sempre foram mortos desde que as primeiras prisões foram construídas pelos homens. Eu conhecia bem o terror, a agonia e o perigo da camisa-de-força. Ah, os homens cujo espírito foi quebrado pela camisa-de-força! Eu os vi. Eu vi homens aleijados para o resto da vida pela camisa-de-força. Eu vi homens, homens fortes, homens tão fortes que seu vigor físico resistia a todos os ataques de tuberculose — depois de uma sessão prolongada na camisa-deforça, sua resistência se quebrava e se dissolvia e eles morriam de tuberculose em seis meses. Houve o Slant-Eyed Wilson, com seu fraco coração cheio de um medo insuspeitado, que morreu na primeira hora dentro da camisa-deforça enquanto aquele ineficiente e cético médico da prisão só olhava e ria. E eu vi um homem, depois de meia hora na camisa-de-força, confessar verdades e mentiras que lhe custaram muitos anos a mais na prisão. Eu tive as minhas próprias experiências. Mil cicatrizes hoje marcam o meu corpo. Elas me acompanharão ao cadafalso. E se eu vivesse cem anos, essas mesmas cicatrizes iriam comigo para o túmulo. Caro cidadão que permite e paga os carrascos que amarram a camisade-força, talvez você não conheça a camisa-de-força. Deixe-me descrevê-la para que você entenda o método pelo qual alcancei a morte em vida, tomeime um mestre temporário do tempo e espaço e saltei os muros da prisão para peregrinar entre as estrelas. Você já viu encerados de lona ou borracha, com ilhoses de metal por toda a borda? Pois imagine um pedaço de lona grossa, com cerca de um metro e meio de comprimento, com fortes ilhoses de metal em ambas as bordas. A largura da lona é sempre um pouco menor do que o diâmetro do corpo

humano que ela vai envolver. E essa largura é irregular: a lona é mais larga nos ombros, um pouco mais estreita nos quadris e bem mais estreita na cintura. A camisa-de-força é estendida no chão. Eles mandam o homem que vai ser punido — ou torturado para confessar alguma coisa — deitar-se de bruços sobre a lona. Se ele recusa, é espancado. Depois disso, ele se deita sob a força de uma vontade que é a vontade dos carrascos, que é a sua vontade, caro cidadão que alimenta e paga os carrascos para fazerem isso por você. O homem está deitado de bruços. As bordas da camisa-de-força são puxadas, juntando-se o máximo possível ao longo de sua coluna vertebral. E então uma corda, seguindo os mesmos princípios dos cadarços de sapatos, é passada pelos ilhoses e, do mesmo modo que se amarra o sapato, o homem é amarrado dentro da lona. Só que ele é amarrado com muito mais força do que qualquer pessoa amarraria os cadarços dos seus sapatos. Eles chamam isso uma “apertada”, na gíria da prisão. Às vezes, quando os guardas são cruéis e vingativos ou quando a ordem vem de cima, o guarda pressiona os pés contra as costas do homem enquanto vai apertando os nós, para garantir uma severa compressão. Você alguma vez já apertou demais os cadarços do sapato e, depois de uma meia hora, sentiu uma dor lancinante causada pelo corte da circulação no peito do pé? E você lembra que depois de alguns minutos dessa dor você simplesmente não conseguia dar mais um passo e precisou afrouxar os cadarços para aliviar a pressão? Pois bem. Então tente imaginar todo o seu corpo amarrado desse jeito, só que muito mais apertado; e o aperto, em vez de ser apenas no peito de um de seus pés, é em todo o seu tronco, comprimindo até quase a morte seu coração, seus pulmões e todos os seus órgãos vitais. Lembro a primeira vez que me amarraram na camisa-de-força, lá no calabouço. Foi no começo dos meus tempos de incorrigível, pouco depois que entrei na prisão, quando eu fiava minha quota diária de dez metros de juta nas salas de fiação e terminava duas horas antes do tempo médio. Sim, e minha produção de sacos de juta estava bem acima da média exigida. Fui mandado para a camisa-de-força aquela primeira vez, conforme mostram os registros da prisão, por causa de “pontos pulados” e “malhas perdidas” na minha tecelagem; em suma, porque meu trabalho era defeituoso. E claro que essa alegação era ridícula. Na verdade, fui mandado para a camisa-de-força porque eu, um preso recém-chegado, um mestre da eficiência, um especialista treinado na eliminação de movimentos supérfluos, resolvi ensinar ao estúpido tecelão-chefe algumas coisas que ele desconhecia sobre seu trabalho. E o tecelão-chefe, na presença do Capitão Jamie, chamou-me à mesa onde uma

tecelagem atroz, que nunca poderia ter saído do meu tear, foi exibida contra mim. Por três vezes fui chamado à mesa. O terceiro chamado significava punição, conforme as regras das salas de fiação. Minha punição foi 24 horas na camisa-de-força. Levaram-me para o calabouço. Mandaram-me deitar de bruços sobre a lona esticada no chão. Recusei. Um dos guardas, Morrison, apertou-me a garganta com os polegares. Mobins, o encarregado dos calabouços, ele próprio um presidiário, socou-me várias vezes. Deitei-me por fim, como me ordenavam. E eles, irritados com a minha resistência, me amarraram com força adicional. E então me rolaram, como um pedaço de pau, para que eu ficasse de costas. No começo não me pareceu tão ruim. Quando fecharam a porta com um estrondo de ferrolhos e me deixaram na profunda escuridão, eram 11 horas da manhã. Durante alguns minutos, tive consciência apenas de uma compressão desconfortável; eu achava que iria passar tão logo me acostumasse a ela. Mas, pelo contrário, meu coração começou a dar pancadas e meus pulmões pareciam incapazes de inalar ar suficiente para o meu sangue. Essa sensação de sufocação foi aterrorizante, e cada pancada do coração ameaçava explodir meus pulmões em fogo. Depois do que me pareceram horas — hoje, após minhas incontáveis experiências bem-sucedidas na camisa-de-força, posso concluir que não foi mais de meia hora — comecei a gritar, a berrar, a uivar, numa loucura mortal. O problema era a dor que eu sentia no coração. Era uma dor aguda e definida, como a da pleurisia, só que ela apunhalava diretamente o próprio coração. Morrer não é difícil; mas morrer desse modo lento e horrível é enlouquecedor. Como uma fera selvagem na armadilha, experimentei o êxtase do medo, gritei e uivei até perceber que esse exercício vocal só servia para apunhalar mais meu coração e para consumir grande parte do escasso ar dos meus pulmões. Parei e fiquei quieto por um longo tempo — pareceu-me uma eternidade, mas acredito, agora, que não durou mais do que uns 15 minutos. Fiquei tonto com a semi-asfixia e meu coração batia tão forte que eu tinha certeza de que ele iria arrebentar a lona que me prendia. Mais uma vez perdi o controle e me pus a berrar loucamente por socorro. No meio dos meus gritos, ouvi uma voz da cela vizinha. — Cala a boca — gritou essa voz, embora ela apenas se filtrasse vagamente até mim. — Cala a boca. Você está me cansando. — Eu estou morrendo — gritei.

— Vê se dorme e esquece — foi a resposta. — Mas eu estou morrendo — insisti. — Então para que se preocupar? — disse a voz. — Você morre logo e se livra dessa droga. Vai em frente e arrebenta logo, mas vê se não faz tanto barulho. Você está atrapalhando meu sono de beleza! Fiquei tão furioso com essa cruel indiferença que recobrei o autocontrole e apenas emiti mais alguns gemidos sufocados. Isso durou um tempo infinito — talvez dez minutos; e então um torpor formigante se apoderou do meu corpo. Era como picadas de alfinetes e agulhas; enquanto doía como picadas de alfinetes e agulhas, mantive a cabeça. Mas quando as picadas daquela infinidade de dardos pararam de doer e só permaneceu o torpor que foi se transformando numa dormência cada vez maior, fiquei novamente aterrorizado. — Mas como é que a gente pode tirar uma soneca aqui? — reclamou meu vizinho. — Eu não estou mais feliz que você, não. A minha camisa está tão apertada quanto a tua e eu quero dormir pra me esquecer dela. — Você está aqui há quanto tempo? — perguntei, pensando que ele tinha acabado de chegar, enquanto eu sofria há séculos. — Desde anteontem — foi a resposta. — Quero dizer na camisa — corrigi. — Desde anteontem, irmão. — Meu Deus! — gritei. — E isso aí, irmão, 50 horas direto e não estou fazendo nenhuma gritaria. Eles enfiaram os pés nas minhas costas pra me amarrar. Estou bem apertado, pode acreditar. Você não é o único que está encrencado, não. Não faz nem uma hora que você está aí. — Imagine, faz horas que eu estou aqui — protestei. — Irmão, talvez você ache que é mas não é, não. Estou lhe dizendo que não faz nem uma hora que você está aí. Eu ouvi eles te amarrando. Era inacreditável. Em menos de uma hora, eu já tinha morrido um milhar de mortes. E meu vizinho, calmo e equilibrado, com a voz tranqüila, quase bondoso apesar da rudeza de suas observações iniciais, estava na camisa-de-força havia 50 horas! — Quanto tempo eles ainda vão te deixar na camisa? — perguntei. — Sabe Deus! O Capitão Jamie não vai com a minha cara e não vai me soltar até eu estar quase morrendo. Agora, irmão, deixa eu te dar uma dica. O único jeito é dormir e esquecer. Gritar e chorar não resolve a vida de ninguém aqui nesse buraco. E o jeito de se esquecer é se esquecendo. Comece a se

lembrar de todas as garotas que você conheceu. Isso vai matar uma pilha de horas. Pode ser que você fique meio zonzo. Bom, fique zonzo. Não tem coisa melhor pra passar o tempo. E quando as garotas não funcionarem mais, comece a pensar nos caras que te botaram aqui dentro e em tudo que você ia fazer com eles se tivesse uma chance e em tudo que você vai fazer com eles quando tiver uma chance. Aquele homem era Philadelphia Red. Por ter uma condenação anterior, ele estava cumprindo pena de 50 anos por assalto à mão armada nas ruas de Alameda. Ele já tinha cumprido 12 desses anos na época em que falou comigo, ali na camisa-de-força, e isso foi há sete anos. Ele estava entre os quarenta condenados que, um pouco mais tarde, foram traídos por Cecil Winwood. Por causa daquela infração, Philadelphia Red perdeu os créditos de bom comportamento. Hoje ele é um homem de meia-idade e ainda está em San Quentin. Se ele sobreviver, será um velho quando o soltarem. Eu vivi as minhas 24 horas e nunca mais fui o mesmo homem. Ah, não quero dizer fisicamente; embora eu estivesse semiparalisado quando me desamarraram na manhã seguinte e em tal estado de prostração que os guardas tiveram de me chutar as costelas para me pôr de pé. Mas mentalmente, moralmente, eu era um homem mudado. A brutal tortura física era uma humilhação e uma afronta ao meu espírito e ao meu senso de justiça. Tal disciplina não amacia um homem. Eu saí daquela primeira sessão na camisa-de-força cheio de uma amargura e de um ódio apaixonado que só fizeram aumentar ao longo dos anos. Meu Deus! Quando penso nas coisas que os homens me fizeram! Vinte e quatro horas na camisa-de-força! Mal podia eu pensar, naquela manhã em que me chutaram para me pôr de pé, que chegaria um tempo em que 24 horas na camisa-de-força nada significariam; em que cem horas na camisa-de-força me deixariam sorrindo quando me desamarrassem; em que 240 horas na camisa-de-força deixariam o mesmo sorriso em meus lábios. Sim, duzentas e quarenta horas. Caro e pacato cidadão, você percebe o que isso significa? Significa dez dias e dez noites na camisa-de-força. Ah, claro, tais coisas não são feitas em parte alguma da Cristandade mil e novecentos anos depois de Cristo. Não lhe peço para acreditar em mim. Nem eu acredito em mim mesmo. Só sei que fizeram isso comigo em San Quentin e que eu vivi para rir deles e os obriguei a se livrarem de mim me enforcando porque fiz sangrar o nariz de um guarda.

Escrevo estas linhas hoje, no Ano de Nosso Senhor de 1913 e hoje, no Ano de Nosso Senhor de 1913, homens estão amarrados numa camisa-deforça nos calabouços de San Quentin. Nunca esquecerei, enquanto viver e enquanto outras vidas me forem concedidas, minha despedida de Philadelphia Red naquela manhã. Ele já estava havia 74 horas na camisa-de-força. — Bom, irmão, você continua vivo e de boa saúde — disse-me ele enquanto eu cambaleava da minha cela para o corredor. — Cala a boca, Red — rosnou o sargento para ele. — Vê se me esquece — foi a resposta. — Ainda te pego, Red — ameaçou o sargento. — Pega, é? — perguntou Philadelphia Red com doçura, e depois sua voz tomou-se selvagem. — Seu lixo, você não pega droga nenhuma. Você não pega nem comida de graça, quanto mais esse empreguinho aí se não é pela ajuda do teu irmão. E todo mundo sabe a fedentina do lugar onde o teu irmão arruma ajuda. Foi admirável; o espírito humano elevando-se além dos seus limites, sem temer os castigos que qualquer bruto do sistema poderia lhe infligir. — Bom, irmão, até a vista — continuou Philadelphia Red, dirigindo-se a mim — Até a vista. Seja bonzinho e ame o Diretor. E quando encontrar com eles, diga que você me viu mas que não me viu quebrado. O sargento estava vermelho de raiva e eu, recebendo vários pontapés e pancadas, paguei o gracejo de Red.

CAPITULO 8 Na solitária, na Cela 1, o Diretor Atherton e o Capitão Jamie continuaram a me interrogar. Como me disse o Diretor Atherton: — Standing, você vai me confessar onde está essa dinamite ou vou te matar na camisa-de-força. Já liquidei gente mais dura que você. Pode escolher: dinamite ou ponto final. — Se é assim, acho que é ponto final — respondi, — porque eu não sei nada de dinamite nenhuma. Irritado, o Diretor partiu para ação imediata. — Deita aí — ordenou-me. Obedeci, pois já tinha aprendido a loucura de lutar contra três ou quatro brutamontes. Amarraram-me bem apertado e me deram cem horas. Uma vez a cada 24 horas eu recebia um gole d'água. Eu não sentia vontade de comer, e tampouco me ofereceram qualquer alimento. Perto do final das cem horas, Jackson, o médico da prisão, examinou-me diversas vezes. Mas eu já tinha me acostumado à camisa-de-força, durante meus dias de incorrigível, para deixar que uma única sessão me afetasse. É claro que ela me enfraquecia e quase me tirava a vida; mas eu tinha aprendido algumas manobras musculares para ganhar certa folga enquanto me amarravam. Ao fim da primeira sessão de cem horas eu estava esgotado e cansado, mas isso era tudo. Depois de um dia e uma noite para me recuperar, deram-me outra sessão de cem horas. E então me deram 150 horas. A maior parte desse tempo eu estava fisicamente entorpecido e mentalmente delirante. Mas, por um esforço da vontade, consegui dormir longas horas. A seguir, o Diretor Atherton tentou uma variação. Recebi intervalos irregulares de camisa-de-força e recuperação. Eu nunca sabia quando iria para a camisa-de-força. Assim, teria dez horas de recuperação e 20 de camisa-deforça; ou apenas quatro horas de descanso. Nas horas mais inesperadas da noite minha porta se abria com estrondo e os guardas me amarravam. Às vezes instituíam um ritmo. Assim, por três dias e noites eu alternei oito horas na camisa-de-força e oito horas fora dela. E então, quando eu estava me acostumando a esse ritmo, ele foi subitamente alterado e recebi dois dias e duas noites direto. E sempre, sempre me faziam a eterna pergunta: Onde está a dinamite? Às vezes o Diretor Atherton ficava furioso comigo. Uma vez, quando suportei uma sessão extremamente severa na camisa-de-força, ele quase me

suplicou para confessar. Uma vez ele chegou a me prometer três meses no hospital, com repouso absoluto e boa comida, e o cargo de encarregado da biblioteca. O Dr. Jackson, aquele projeto de gente com alguns rudimentos de medicina, ficava cada vez mais cético. Ele insistia que as sessões na camisa-deforça, por mais prolongadas que fossem, nunca me matariam; e sua insistência era um desafio ao Diretor para continuar tentando. — Esses caras de faculdade enganam até o diabo — resmungava. — São mais rijos que couro curtido. Mas a gente acaba vencendo. Está me ouvindo, Standing? O que você está levando agora não é nem uma amostra do que você vai levar. Você bem que podia desistir agora e se safar. Eu sou um homem de palavra. Você me ouviu, é dinamite ou ponto final. Bem, a oferta está de pé. A escolha é sua. — O senhor não acha que estou nessa porque gosto, acha? — consegui murmurar, porque nesse momento Pie-Face Jones enfiava o pé nas minhas costas para me amarrar mais apertado e eu tentava, com os músculos, ganhar uma certa folga. — Não tem nada que eu possa confessar. Ora, eu cortava minha mão direita agora mesmo para poder levar o senhor até um punhado de dinamite. — Ah, conheço vocês, tipinhos educados — desdenhou ele. — Vocês têm umas engrenagens na cabeça e elas fazem vocês se agarrar numa idéia. Empacam feito um jumento. Mais apertado, Jones! Isso aí não está nem metade de uma boa “apertada”. Standing, se você não confessar é ponto final. Eu juro. Aprendi que existe uma compensação. Quanto mais fraco você fica, menos suscetível toma-se ao sofrimento. Há menos dor, porque há menos para doer. E um homem já bastante enfraquecido toma-se mais fraco com mais vagar. Todo mundo sabe que os homens extremamente fortes sofrem muito mais com as doenças comuns do que as mulheres ou os inválidos. Conforme as reservas de força são consumidas, há menos força a perder. Depois que toda a carne supérflua se vai, o que resta é fibroso e resistente. Na verdade, foi nisso que me transformei: um organismo feito de fibras, que insistia em viver. Morrell e Oppenheimer ficaram com pena de mim e me transmitiram batidas de simpatia e conselho. Oppenheimer disse-me que tinha passado por isso, e até pior, e ainda estava vivo.

— Não deixe eles te liquidarem — soletrou ele com os nós dos dedos. — Não deixe eles te matarem, isso ia ser bom pra eles. E não conta onde que é o esconderijo. — Mas não tem esconderijo nenhum — bati com o lado da sola do pé contra as grades; eu estava na camisa-de-força e só podia “falar” com os pés.—Não sei nada dessa maldita dinamite. — Certo, rapaz — elogiou Oppenheimer. — Ele é durão, hein, Ed? E isso mostra as chances que eu tinha de convencer o Diretor Atherton da minha ignorância no caso da dinamite. A persistência do Diretor na busca chegou a convencer voa homem como Jake Oppenheimer, que só podia me admirar pela resolução com que eu mantinha a boca fechada. Durante esse primeiro período de interrogatório na camisa-de-força consegui dormir bastante. Meus sonhos foram admiráveis. É claro que eram vividos e reais, como a maioria dos sonhos. O que os tomava admiráveis era sua coerência e continuidade. Era freqüente eu sonhar que estava discursando sobre assuntos complicados para grupos de cientistas e lendo em voz alta para eles documentos cuidadosamente elaborados sobre minhas próprias pesquisas ou minhas deduções a partir de pesquisas e experimentos alheios. Quando despertava, minha voz ainda parecia ecoar nos meus ouvidos e meus olhos ainda viam as sentenças e parágrafos datilografados sobre as folhas brancas, que eu lia e relia assombrado antes que a visão se desvanecesse. De passagem, chamo sua atenção para o fato de que, na época, notei que o processo de raciocínio empregado nesses discursos oníricos era sempre dedutivo. E depois aquela grande fazenda, estendendo-se para norte e sul por centenas de quilômetros, numa região temperada com clima, flora e fauna muito semelhantes aos da Califórnia. Não uma nem duas vezes, mas mil vezes diferentes, viajei por essa região de sonho. O ponto que quero enfatizar é que se tratava, sempre, da mesma região. Nenhuma característica essencial jamais mudou nos diferentes sonhos. Assim, havia sempre uma viagem de oito horas na carroça, desde os campos de alfafa (onde eu criava muitas vacas jersey) até a aldeia esparramada ao lado do riacho seco, onde eu embarcava no trem de bitola estreita. Naquela viagem de oito horas na carroça, cada marco do terreno, cada árvore, cada montanha, cada vau de rio, cada ponte, cada crista de monte esculpida pela erosão, eram sempre os mesmos. Nessa fazenda coerente e racional dos meus sonhos na camisa-de-força, os mais ínfimos detalhes mudavam conforme a estação e o trabalho dos homens. Assim, nas pastagens do planalto além dos meus campos de alfafa, desenvolvi uma nova fazenda com a ajuda de cabras angorá. Eu percebia as

mudanças a cada visita em sonhos, e essas mudanças estavam de acordo com o tempo que tinha se passado entre as visitas. Ah, aquelas encostas cobertas de arbustos! Ainda posso ver como elas eram quando introduzi as cabras. E lembro as mudanças que as cabras provocaram: os caminhos começando a se formar conforme elas iam comendo, literalmente, as trilhas através das moitas densas; o desaparecimento dos arbustos menores e mais jovens, que eram baixos o suficiente para serem totalmente devorados; os cenários que se abriam em todas as direções, através dos arbustos mais velhos e mais altos, conforme as cabras pastavam o mais alto que podiam, apoiando-se nas patas traseiras; o deslocamento dos pastos que se seguiu à limpeza feita pelas cabras. Sim, o encanto desse sonho era a sua continuidade. E chegou o dia em que homens com machados derrubaram a vegetação mais alta, para dar às cabras acesso às folhas e brotos e cascas. Chegou o dia de inverno em que os esqueletos nus e secos de todas essas árvores foram empilhados e queimados. Chegou o dia em que movi minhas cabras para outras encostas cheias de um matagal impenetrável, com meu gado seguindo-as e pastando, afundados até os joelhos na grama suculenta que crescia onde antes só havia o matagal. E chegou o dia em que movi meu gado para diante enquanto meus lavradores percorriam os contornos das encostas, arando a terra rica em húmus vivo na qual seriam lançadas as sementes das minhas futuras colheitas. Sim, e nos meus sonhos muitas vezes desembarquei do trem de bitola estreita na aldeia esparramada ao lado do riacho seco e subi na minha carroça puxada por cavalos da montanha e dirigi, hora após hora, passando pelos velhos marcos familiares, até os meus campos de alfafa e minhas pastagens, onde minhas plantações alternadas de milho, cevada e trevo estavam prontas para ser colhidas e onde vi meus homens ocupados com a colheita enquanto além, mais para cima, minhas cabras comiam o mato das encostas mais altas e as transformavam em campos limpos e aráveis. Mas esses eram sonhos, puros sonhos, aventuras fantasiosas da minha mente subconsciente dedutiva. Diferentes deles, como você verá, foram minhas outras aventuras quando ultrapassei os portais da morte em vida e mais uma vez vivi a realidade das outras vidas que foram minhas em outros tempos. Nas longas horas de vigília na camisa-de-força, descobri que eu pensava muito em Cecil Winwood, o poeta-falsário que, por capricho, fez desabar sobre mim todo esse tormento e que já estava de volta, em liberdade, ao mundo dos homens livres. Não, eu não o odiava. A palavra ódio é muito

fraca. Não existe, na nossa língua, nenhuma palavra suficientemente forte para descrever meus sentimentos. Só posso dizer que conheci o martírio de uma vontade de vingar-me dele que chegava a ser dolorosa e excedia todos os limites da linguagem. Não falarei das muitas horas que dediquei a planejar torturas para ele, nem dos meios e instrumentos diabólicos de tortura que inventei. Só um exemplo: fiquei fascinado pela antiga tortura de amarrar uma gaiola de ferro, contendo um rato, ao corpo de um homem; o único jeito do rato escapar era roendo o corpo do homem. Como eu disse, fiquei fascinado por essa tortura até que percebi que seria uma morte rápida demais; e então pus-me a pensar longamente sobre a tortura moura de... mas não, prometi não falar mais desse assunto. Basta dizer que muitas das minhas horas de vigília, enlouquecido pelas dores, foram devotadas a sonhos de vingança contra Cecil Winwood.

CAPITULO 9 Uma coisa de grande valor que aprendi nas longas e dolorosas horas de vigília foi o domínio do corpo pela mente. Aprendi a sofrer passivamente como, sem dúvida, aprenderam todos os homens que passaram pelo curso de pós-graduação da camisa-de-força. Ah, não é fácil manter o cérebro em sereno repouso, tão sereno que ele esquece os intensos e palpitantes queixumes dos nervos torturados. E foi exatamente esse domínio da carne pelo espírito que me permitiu praticar com tanta facilidade o segredo que Ed Morrell me ensinou. — Você acha que é ponto final? — perguntou-me Ed Morrell uma noite, por batidas. Eu acabava de ser libertado de cem horas na camisa-de-força e estava mais fraco do que nunca. Tão fraco que, embora todo o meu corpo fosse uma massa de ferimentos e miséria, eu mal percebia que tinha um corpo. — Parece que é — bati em resposta. — Eles me liquidam se continuarem assim por mais tempo. — Não deixe — aconselhou ele. — Tem um jeito. Eu aprendi aqui na cela uma vez que o Massie e eu entramos numa pior. Deu certo comigo. Mas o Massie estourou. Se eu não tivesse aprendido esse truque tinha estourado que nem ele. Você tem que estar bem fraco antes de tentar. Se você tentar quando ainda está forte, não dá certo e daí você fica com medo de tentar de novo. O meu erro foi que contei o truque para o Jake quando ele estava forte. É claro que não funcionou com ele e, depois, quando chegou a hora que ele precisou, já era tarde demais, o primeiro fracasso deu medo nele. Agora ele não acredita. Ele acha que estou brincando com ele... Não é verdade, Jake? Da Cela 13, Jake respondeu com suas batidas: — Não engula essa, Darrell. É um conto de fadas. — Vai, me conta — pedi a Morrell. — É por isso que eu esperei até você estar bem fraco de verdade — continuou ele. — Agora você está precisando e eu vou te contar. Fica por tua conta. Se você quiser, você consegue. Eu já fiz três vezes e sei como é. — Bom, e o que é, afinal? — perguntei ansioso. — O truque é morrer dentro da camisa-de-força, é querer morrer. Eu sei que você ainda não está me entendendo, mas espere. Você sabe como a gente fica entorpecido na camisa, o jeito que o braço ou a perna adormecem. Agora, você não pode evitar isso, mas dá para entender a idéia e ir

trabalhando nela. Você não espera até as pernas ou outra parte irem ficando adormecidas. Você se deita de costas, o mais confortável que der, e começa a usar a vontade. — E é nessa idéia que você precisa ficar pensando e você precisa acreditar nela o tempo todo. Se você não acreditar, não dá certo. O que você precisa pensar e acreditar é que o teu corpo é uma coisa e o teu espírito é outra .coisa. Você é você, e o teu corpo é uma outra coisa que não vale nada. O corpo não conta. Você é que manda. Você não precisa do corpo. E quando pensar e acreditar nisso, você vai em frente usando a vontade. Você faz o corpo morrer. — Você começa com os dedos do pés, um de cada vez. Você faz cada dedo morrer. Você quer que o dedo morra. E se você acreditar e quiser, os dedos vão morrer. Esse é o ponto mais importante: começar a morrer. Depois que você fizer o primeiro dedo morrer, o resto é fácil, aí você não precisa mais ficar acreditando. Aí você sabe. E aí você põe toda a vontade em fazer o resto do corpo morrer. Estou te dizendo, Darrell, eu sei. Já fiz três vezes. — Depois que você começa a morrer, tudo segue direto. E o engraçado é que você está aí, você está aí o tempo todo. Quando um dedo morre, não é como você estar morto. Vai indo devagar, a perna morre até o joelho e depois até a coxa e você é exatamente o mesmo que sempre foi. É o corpo que está saindo da jogada, um pedaço de cada vez. E você é exatamente você, o mesmo que você era antes de começar. — E daí o que acontece? — perguntei. — Bom, quando o corpo está todo morto, mas você ainda está todo aí, você simplesmente sai da pele e abandona o corpo. E quando você abandona o corpo, você abandona a cela. Parede de pedra e porta de ferro servem para prender o corpo. Elas não podem prender o espírito. Olha, isso já está provado. Você é espírito fora do teu corpo. Você pode olhar para o teu corpo de fora dele. Eu te digo, eu sei, porque eu já fiz três vezes: eu olhei para o meu corpo lá deitado e eu estava fora dele. — Há-há-há! — Jake Oppenheimer enviou sua gargalhada, de uma distância de trezes celas. — Olha, esse é o problema do Jake — continuou Morrell. — Ele não acredita. Aquela vez que ele tentou, ele ainda estava muito forte e não funcionou. E ele agora acha que eu estou brincando. — Quando você morre você está morto, e um morto fica morto — replicou Oppenheimer. — Estou te dizendo que eu já morri três vezes — argumentou Morrell.

— E viveu pra nos contar — zombou Oppenheimer. — Não esqueça uma coisa, Darrell — avisou-me Morrell — A coisa é difícil. O tempo todo você tem uma sensação de que está indo longe demais. Não dá pra explicar, mas sempre achei que se eu estivesse fora quando eles chegam e tiram o meu corpo da camisa-de-força, eu não ia conseguir voltar para o meu corpo. Quer dizer, o meu corpo ia estar morto de uma vez por todas. E eu não queria que o meu corpo morresse. Não queria dar essa satisfação para o Capitão Jamie e o resto da canalha. Mas estou te dizendo, Darrell, se você puder fazer o truque funcionar, você pode rir do diretor. Se você fizer o corpo morrer desse jeito, não interessa se eles te deixam na camisa-de-força um mês a fio. Você não sofre nada e o teu corpo não sofre nada. Sabe, já teve gente que dormiu um ano direto. E isso que vai acontecer com o teu corpo. Ele só fica ali na camisa-de-força, sem dor nem nada, só esperando você voltar. E concluiu: — Tente, Standing. Estou te dando uma dica a sério. — E se ele não voltar? — perguntou Oppenheimer. — Aí azar dele, Jake — respondeu Morrell. — Ou, sei lá, talvez azar nosso por continuar nesse buraco quando a gente podia escapar tão fácil. E nesse ponto a conversa terminou porque Pie-Face Jones, acordando rabugento de sua soneca, ameaçou dar parte de Morrell e Oppenheimer na manhã seguinte, o que significaria a camisa-de-força para eles. A mim ele não ameaçou; ele sabia que eu iria para a camisa-de-força de qualquer modo. Durante um longo tempo fiquei deitado no silêncio, esquecido da miséria do meu corpo enquanto pensava sobre a proposta de Morrell. Conforme expliquei, eu já tinha tentado pela auto-hipnose mecânica regredir no tempo até os meus eus de épocas passadas. Eu sabia que tinha conseguido um sucesso parcial; mas tudo o que experimentei foi vim alvoroço de aparições que emergiam de modo errático e sem nenhuma continuidade. Mas o método de Morrell era tão claramente o oposto do meu método de auto-hipnose que fiquei fascinado. Pelo meu método, a consciência era a primeira a morrer. Pelo método de Morrell, a consciência permanecia até o fim; e quando o corpo morria, ela se fundia em estágios tão sublimados que abandonava o corpo, abandonava a prisão de San Quentin e viajava para longe — mas continuava a ser consciência. Concluí que valia a pena tentar. E, apesar do ceticismo do cientista que eu era, acreditei. Não tive dúvidas de que poderia fazer aquilo que Morrell afirmava ter feito por três vezes. Talvez essa fé que se apoderou de mim com

tanta facilidade fosse devida à minha fraqueza extrema. Talvez eu não estivesse forte o suficiente para ser cético. Essa era a hipótese sugerida por Morrell. Era uma conclusão puramente empírica e também eu, como você verá, demonstrei-a empiricamente.

CAPITULO 10 E na manhã seguinte, o Diretor Atherton entrou na minha cela com intenções homicidas. Com ele vieram o Capitão Jamie, o Doutor Jackson, PieFace Jones e Al Hutchins. Al Hutchins cumpria uma pena de 40 anos e esperava ser indultado. Já fazia quatro anos que ele era o encarregado-chefe de San Quentin. Você entenderá o valor desse cargo se eu lhe disser que o rendimento dos subornos recebidos pelo encarregado-chefe era estimado em três mil dólares por ano. Portanto, Al Hutchins, com dez ou 12 mil dólares no bolso e uma promessa de indulto, podia ser confiado para cumprir cegamente as ordens do Diretor. Eu disse que o Diretor Atherton entrou na minha cela com intenções homicidas. Seu rosto o mostrava. Suas ações o provaram. — Examine-o — ordenou ao Doutor Jackson. Aquele arruinado projeto de gente arrancou-me a camisa incrustada de sujeira que eu usava desde minha entrada na solitária e expôs meu pobre corpo devastado, a pele estirada como um pergaminho pardacento sobre as costelas, coberta pelas feridas causadas nas muitas sessões na camisa-de-força. O exame foi desavergonhadamente superficial. — Ele agüenta? — quis saber o Diretor. — Sim — respondeu o Doutor Jackson. — E o coração? — Excelente. — O senhor acha que ele agüenta dez dias. Doe? — Claro. — Não acredito que agüente — anunciou o Diretor brutalmente — Mas vamos tentar assim mesmo. Deita aí, Standing. Obedeci, estirando-me de bruços sobre a lona aberta no chão. O Diretor pareceu pensar por um instante. — Vire de costas — ordenou-me. Fiz várias tentativas para virar-me, mas estava fraco demais e, na minha fraqueza, só conseguia me torcer e retorcer. — Fingindo — foi o comentário de Jackson. — Bom, ele não vai precisar fingir quando eu tiver acabado com ele — disse o Diretor. — Dá uma mão. Não posso perder mais tempo com ele. E assim eles me viraram de costas e olhei o rosto do Diretor Atherton.

— Standing — disse ele pausadamente —, já te dei toda a corda que era para te dar. Estou cansado e cheio da tua teimosia. Minha paciência acabou. O Doutor Jackson aqui diz que você pode agüentar dez dias na camisa-de-força. Você pode avaliar as tuas chances. Mas vou te dar uma última chance agora. Diga onde está a dinamite. Na hora que eu tiver a dinamite tiro você daqui. Você toma um banho e faz a barba e bota uma roupa limpa. Te deixo seis meses engordando com a comida do hospital e depois te faço encarregado da biblioteca. Você não podia pedir para eu ser mais justo. Além disso, você não vai estar denunciando ninguém. Você é a única pessoa em San Quentin que sabe onde está a dinamite. Você não vai fazer mal a ninguém se desistir e vai estar numa boa na hora que desistir. E se você não desistir... Ele fez uma pausa e encolheu os ombros significativamente. — Bem, se você não desistir, começa os dez dias agora mesmo. A perspectiva era aterrorizante. Eu estava tão fraco que cheguei a compartilhar da certeza do Diretor de que a morte me esperava na camisa-deforça. E então lembrei o truque de Morrell. Agora, mais do que nunca, ele seria necessário; agora, mais do que nunca, haveria o tempo de praticá-lo com fé. Sorri na cara do Diretor Atherton. E pus toda a minha fé naquele sorriso, pus toda a minha fé na proposta que lhe fiz. — Diretor — disse —, o senhor está vendo como estou sorrindo? Bom, se eu lhe sorrir assim quando me desamarrarem depois de dez dias, o senhor dá um pacote de Bull Durham e papel de cigarro para Morrell e Oppenheimer? — Pois não é que são todos uns malucos, esses caras de faculdade? — bufou o Capitão Jamie. O Diretor Atherton era um homem colérico e tomou minha proposta como puro braggadocio, pura bravata. — Por causa dessa você vai levar uma “apertada” extra — avisou-me. — Eu fiz uma proposta esportiva, Diretor — disse calmamente. — O senhor pode me amarrar o mais apertado que quiser, mas se eu sorrir daqui a dez dias o senhor dá o Bull Durham para o Morrell e o Oppenheimer? — Você está muito seguro de si — respondeu ele. — É por isso que fiz a proposta — respondi. — Virando religioso, é? — zombou ele. — Não — foi a minha resposta. — Só que acontece que a minha vida é mais longa do que o teu braço alcança. Faça cem dias se quiser e vou sorrir quando acabar.

— Acho que dez dias são o bastante para acabar com você, Standing. — Essa é a tua opinião — eu disse. — O senhor acredita mesmo nisso? Se acredita, por que é que não arrisca os cinco centavos de um pacote de tabaco? Tem medo do quê? — Por cinco centavos te chuto a cara agora mesmo — rosnou ele. — Não se acanhe por minha causa — minha voz estava insolentemente suave. — Chute quanto quiser e eu ainda vou ter cara suficiente para sorrir. E enquanto o senhor fica na dúvida, que tal aceitar a minha proposta? Em tais circunstâncias, um homem precisa estar terrivelmente fraco e profundamente desesperado para ser capaz de desafiar o Diretor. Talvez ele esteja fraco e desesperado e, além disso, talvez ele tenha fé. Hoje eu sei que tinha fé e que agi baseado nessa fé. Eu acreditava naquilo que Morrell tinha me dito. Eu acreditava no domínio da mente sobre o corpo. Eu acreditava que nem mesmo cem dias na camisa-de-força poderiam me matar. O Capitão Jamie deve ter sentido essa fé que me sustentava, pois disse: — Me lembra um sueco que ficou louco uns 20 anos atrás. Foi antes do seu tempo. Diretor. Ele matou um homem numa briga por causa de 25 centavos e pegou perpétua. Era um cozinheiro. Aí ele virou religioso. Disse que uma carruagem de ouro estava vindo para levar ele para o céu e sentou em cima do fogão aceso e ficou lá assando e cantando hinos e hosanas. Tiraram ele de lá, mas ele morreu no hospital dois dias depois. Estava assado até o osso. E jurava que não tinha sentido o calor do fogo. Não deu um guincho. — Nós vamos fazer o Standing dar uns guinchos — disse o Diretor. — Já que o senhor tem tanta certeza, por que não aceita a minha proposta? — desafiei. O Diretor ficou tão furioso que eu teria achado engraçado se não estivesse numa situação tão desesperada. Seu rosto ficou convulsionado. Ele cerrou os punhos e por um momento parecia estar prestes a se atirar sobre mim e me espancar. Então, com esforço, ele se controlou. — Tudo bem, Standing — rosnou —, trato feito. Mas pode apostar que você vai ter que dar um belo dum sorriso daqui a dez dias. Virem ele, rapazes, e apertem até ouvir as costelas estalando. Hutchins, mostre para ele que você conhece o ofício. E eles me viraram de bruços e me amarraram como eu nunca tinha sido amarrado antes. O encarregado-chefe certamente demonstrou suas habilidades. Tentei roubar um pouco de folga. E foi só um pouquinho, pois havia muito eu tinha perdido a carne e meus músculos estavam reduzidos a

meros cordéis. Eu não tinha nem a força nem a massa para roubar mais do que um pouquinho de espaço, e juro que o pouco que roubei foi conseguido por pura expansão das juntas dos meus ossos. Mas até esse pouquinho que roubei foi-me roubado por Hutchins que, nos velhos dias antes de se tomar encarregado-chefe, tinha aprendido dentro da camisa-de-força todos os truques da camisa-de-força. Você vê, ou o Hutchins era um patife por natureza ou então um dia foi um homem mas as engrenagens o quebraram. Ele possuía dez ou 12 mil dólares e sua liberdade estava à vista se ele obedecesse às ordens. Mais tarde, fiquei sabendo que havia uma moça que lhe permaneceu fiel e estava à sua espera. O fator mulher explica muitas coisas dos homens. Se algum homem já cometeu um assassinato deliberadamente, foi o que fez Al Hutchins naquela manhã na solitária sob as ordens do Diretor. Ele roubou de mim a pouca folga que eu tinha conseguido roubar. E após ser roubado desse pouco espaço, meu corpo ficou indefeso enquanto ele, com o pé nas minhas costas ao apertar as cordas, comprimia-me como nenhum outro homem jamais o fizera. Tão forte foi a compressão do meu frágil esqueleto sobre os meus órgãos vitais que senti de imediato, ali mesmo, a morte sobre mim. Mas eu ainda tinha o milagre da fé. Eu não acreditava que ia morrer. Eu sabia — eu disse sabia — que não ia morrer. Minha cabeça rodava e meu coração batia desde os dedos do pé até a raiz dos meus cabelos. — Está apertado demais — comentou o Capitão Jamie com relutância. — E é pra estar mesmo — disse o Doutor Jackson. — Já falei que nada machuca ele. Esse cara é um doido. Já devia ter morrido há muito tempo. O Diretor Atherton, com muita dificuldade, conseguiu passar um dedo entre as cordas e minhas costas. Pôs o pé em cima de mim, largou o peso do seu corpo em cima de mim e pressionou, mas não conseguiu perceber sequer uma fração de folga. — Tiro o chapéu pra você, Hutchins — disse. — Você conhece mesmo o ofício. Agora vira ele e vamos dar uma olhada. Eles me viraram de costas. Olhei-os com os olhos esbugalhados. Uma coisa eu sei: se tivessem me amarrado desse jeito a primeira vez que me puseram na camisa-de-força, eu certamente teria morrido nos primeiros dez minutos. Mas eu estava bem treinado. Tinha a experiência de milhares de horas na camisa-de-força e, além disso, tinha fé no truque de Morrell. — Ria agora, desgraçado, ria — disse-me o Diretor. — Comece a dar aquele sorriso que você estava se gabando.

E enquanto meus pulmões ofegavam por um pouco de ar, enquanto meu coração ameaçava explodir, enquanto minha mente girava, eu fui capaz de sorrir na cara do Diretor.

CAPITULO 11 A porta bateu e eliminou tudo, exceto uma réstia de luz, e fiquei sozinho, deitado de costas. Usando os truques havia muito aprendidos na camisa-de-força, consegui torcer-me pelo chão centímetro por centímetro até que a ponta do meu pé tocou a porta. Que imensa alegria! Eu não estava tão absolutamente só. Se fosse necessário, eu poderia pelo menos transmitir uma mensagem para Morrell. Mas o Diretor Atherton certamente deu ordens estritas aos guardas, pois, embora eu tenha conseguido chamar Morrell e dizer-lhe que eu pretendia tentar a experiência, os guardas o impediram de responder-me. A mim eles só podiam gritar palavrões, já que, amarrado na camisa-de-força para uma sessão de dez dias, eu estava além de qualquer ameaça de punição. Lembro-me de ter observado, naquele momento, a serenidade da minha mente. Meu corpo sentia a dor costumeira da camisa-de-força, mas minha mente estava tão passiva que eu não tinha mais consciência da dor do que do chão sob meu corpo ou das paredes ao meu redor. Nunca um homem esteve em melhores condições mentais e espirituais para uma tal experiência. É claro que isso se devia muito à minha extrema fraqueza. Mas havia algo mais. Eu já tinha aprendido a ser indiferente à dor. Eu não tinha dúvidas, não tinha medos. Todo o conteúdo da minha mente parecia ser uma fé absoluta na predominância da mente. Essa passividade era quase onírica, mas, a seu modo, era real até o ponto de quase transformar-se em exaltação. Comecei a concentrar minha vontade. Meu corpo já se entorpecia e eu sentia as agulhadas causadas pela falta de circulação. Concentrei minha vontade no dedinho do pé direito e desejei que ele deixasse de estar vivo na minha consciência. Quis que aquele dedo morresse — morresse no que se referia a mim, seu senhor e algo inteiramente diferente dele. Essa foi a batalha mais difícil. Morrell me avisou de que assim seria. Mas não havia sequer uma centelha de dúvida a perturbar minha fé. Eu sabia que aquele dedo morreria e eu soube quando ele morreu. Junta por junta, ele morreu sob a compulsão da minha vontade. O resto foi fácil; mas admito que foi vagaroso. Junta após junta, dedo após dedo, todos os dedos dos meus dois pés deixaram de existir. E junta após junta, o processo continuou. Chegou o momento em que minha carne,

dos tornozelos para baixo, se extinguiu. Chegou o momento em que tudo, dos joelhos para baixo, se extinguiu. Tal foi o grau da minha perfeita exaltação que não senti a mínima vontade de me alegrar com o meu sucesso. Eu nada sabia, exceto que estava fazendo meu corpo morrer. Tudo aquilo que era eu foi devotado àquela única tarefa. Desempenhei o trabalho com tanto rigor quanto um pedreiro a assentar tijolos e encarei o trabalho como algo rotineiro, assim como o pedreiro encara seu trabalho. Ao fim de uma hora meu corpo estava morto até a altura dos quadris e, dos quadris para cima, junta após junta, continuei a querer a morte. Foi quando cheguei à altura do coração que minha consciência começou a se enevoar e sentir vertigens. Com medo de perder a consciência, quis suspender a morte que já tinha alcançado e transferi minha concentração para os dedos. Meu cérebro clareou-se novamente e a morte, dos braços até os ombros, foi alcançada com extrema rapidez. Nesse estágio, no que se referia a mim o meu corpo todo estava morto, exceto minha cabeça e uma pequena região do meu peito. As batidas e o esmagamento do coração comprimido não mais ecoavam em meu cérebro. Meu coração batia, fraca mas firmemente. A alegria, se eu ousasse sentir alegria num tal momento, teria sido a extinção de toda sensação. Nesse ponto minha experiência difere da de Morrell. Continuando a impor minha vontade de modo automático, comecei a sentir-me sonhador — como acontece naquela terra fronteiriça entre o sono e o despertar. Também me parecia ocorrer uma prodigiosa ampliação do meu cérebro, dentro do próprio crânio que não se ampliava. Houve ocasionais cintilações e lampejos de luz como se eu, o mestre supremo, tivesse me extinguido por um momento e no momento seguinte fosse novamente eu mesmo, ainda o ocupante do receptáculo de carne que eu fazia morrer. O mais desconcertante era a aparente ampliação do cérebro. Mesmo sem ter ultrapassado as paredes do meu crânio, parecia-me que a periferia do meu cérebro já estava fora do meu crânio e continuava a se expandir. Junto com esta, ocorreu uma das mais admiráveis sensações ou experiências que já encontrei. Tempo e espaço, enquanto substância da minha consciência, passaram por um enorme alargamento. Assim, sem abrir os olhos para verificar, eu sabia que as paredes da minha cela estreita tinham recuado até que a cela se tomasse um imenso salão. Enquanto contemplava, eu sabia que as paredes continuavam a recuar. Por um momento, assaltou-me uma fantasia: se uma expansão semelhante estivesse ocorrendo com toda a prisão, então os

muros de San Quentin estariam distantes no Oceano Pacífico, por um lado, e no outro lado tocariam o deserto de Nevada. Uma outra fantasia: já que a matéria podia permear a matéria, então as paredes da minha cela poderiam perfeitamente permear os muros da prisão, ultrapassar os muros da prisão e assim colocar minha cela fora da prisão e colocar-me em liberdade. É claro que tudo isso não passava de fantasias da minha imaginação — e eu sabia, naquele instante, que assim era. O alargamento do tempo também era admirável. Meu coração só batia a longos intervalos. Outra fantasia me ocorreu e contei os segundos, lentos e certos, entre as batidas do meu coração. De início, como notei com clareza, mais de cem segundos se passavam entre cada batida. Mas, conforme continuei a contagem, os intervalos se alongaram tanto que me cansou contálos. E enquanto essa ilusão de alargamento do tempo e espaço persistia e aumentava, refleti sonhadoramente sobre um novo e profundo problema. Morrell me disse que se libertou de seu corpo matando seu corpo — ou eliminando-o de sua consciência; o que, é claro, é a mesma coisa. Meu corpo estava agora tão perto de estar inteiramente morto que eu soube, do modo mais absoluto, que a rápida concentração da vontade na região ainda viva do meu tronco faria com que ela também deixasse de existir. Mas aqui estava o problema... e Morrell não me alertou sobre ele: deveria eu também querer que minha cabeça morresse? Se eu o fizesse — não importa o que acontecesse ao espírito de Darrell Standing — não estaria o corpo de Darrell Standing morto para sempre? Tentei o peito, tentei o coração com suas batidas vagarosas. A rápida compulsão da minha vontade foi recompensada. Eu não tinha mais peito nem coração. Eu era apenas uma mente, uma alma, uma consciência — chame-a como quiser — incorporada a um cérebro nebuloso que, embora ainda centrado dentro do meu crânio, estava expandido e continuava a se expandir além do meu crânio. E então, com lampejos de luz, eu estava fora, eu estava longe. Num salto, pulei o teto da prisão e o céu da Califórnia e estava entre as estrelas. Digo “estrelas” deliberadamente. Caminhei entre as estrelas. Eu era uma criança Eu vestia uma túnica diáfana de algodão, de tons delicados, que tremeluzia à gélida luz estelar. Essa túnica, é claro, baseava-se nas minhas observações infantis dos atores circenses e na minha concepção infantil das roupas dos anjos.

Assim vestido pisei o espaço interestelar, exaltado pelo conhecimento de que meu destino era a aventura infinita e que, em seu final, eu encontraria todas as fórmulas cósmicas e esclareceria o segredo último do universo. Em minha mão, eu levava uma varinha de cristal. Eu sabia que, ao passar pelas estrelas, devia tocá-las com a ponta da varinha. E eu sabia, com absoluta certeza, que se deixasse escapar uma única estrela, eu seria precipitado num abismo insondável de punição e culpa eternas. Por longo tempo continuei minha busca estelar. Quando digo “longo”, você não deve esquecer o enorme alargamento do tempo que ocorreu no meu cérebro. Durante séculos eu pisei o espaço, mirando cuidadosamente com a ponta da varinha cada estrela pela qual passava. E o caminho tomava-se mais cada vez mais luminoso. E o inefável objetivo da infinita sabedoria aproximava-se cada vez mais. Mas não enganei a mim mesmo. Esse não era um outro “eu”. Essa não era uma experiência que um dia foi minha. Eu sabia o tempo todo que era eu, Darrell Standing, quem caminhava entre as estrelas e as tocava com uma varinha de cristal. Em suma, eu sabia que aqui nada era real, nada que já tivesse me acontecido ou que viesse a me acontecer. Eu sabia que essa experiência nada mais era do que uma delirante orgia da imaginação — como os delírios das drogas, da febre ou do sono. E então, quando tudo era alegria e felicidade na minha busca celestial, a ponta da minha varinha errou uma estrela e eu soube, de imediato, que era culpado de um grande crime. De imediato uma pancada me atingiu — vasta e compulsiva, inexorável e mandatória como a batida dos tacões de ferro da desgraça — e reverberou através do universo. Todo o sistema sideral coruscou, oscilou e tombou em chamas. Fui rasgado por uma intensa e lacerante agonia. E num instante, eu era Darrell Standing, o condenado à prisão perpétua, amarrado na camisa-deforça na solitária. E percebi a causa imediata daquele chamado. Eram as batidas dos dedos de Ed Morrell, na Cela 5, começando a soletrar uma mensagem. Eu gostaria de explicar o alargamento de tempo e espaço que eu experimentava. Muitos dias mais tarde, perguntei a Morrell o que ele tinha tentado me transmitir. Era uma simples mensagem: “Standing, você está aí?” Ele a bateu rapidamente, enquanto o guarda estava na outra extremidade do corredor. Como eu disse, ele bateu a mensagem com muita rapidez. E agora veja só! Entre a primeira e a segunda batida, eu estava viajando entre as estrelas, vestido com a singela túnica de algodão, tocando cada estrela ao passar em busca das fórmulas que explicariam o mistério último da vida. E

prossegui nessa busca por séculos. Então veio o chamado, a pancada dos tacões da desgraça, a intensa agonia lacerante... e eu estava novamente na minha cela em San Quentin. Era a segunda batida dos dedos de Ed Morrell. O intervalo entre ela e a primeira batida não poderia ter sido mais longo do que um quinto de segundo. No entanto, tão imponderavelmente vasto foi o alargamento do tempo para mim que, no decurso daquele quinto de segundo, peregrinei entre as estrelas por longas eras. Eu sei, meu leitor, que tudo o que relatei mais parece um amontoado de coisas sem nexo. Concordo com você. É um amontoado de coisas sem nexo. Mas foi experiência. Foi tão real para mim como a cobra que um homem vê no delirium tremens. E possível que Ed Morrell tenha levado dois minutos, no máximo, para transmitir sua pergunta. Mas muitas eras transcorreram para mim entre a primeira batida e a última das batidas dos seus dedos. E eu receava continuar a seguir meu caminho estelar com a inefável alegria da inocência; pois temia o chamado inevitável que iria me dilacerar quando me arrastasse de volta para o inferno da camisa-de-força. Assim, minhas eras de peregrinação nas estrelas foram eras de medo. E o tempo todo eu sabia que eram os dedos de Ed Morrell que me mantinham tão cruelmente amarrado à terra. Tentei comunicar-me com ele, pedir-lhe para parar. Mas eu tinha eliminado meu corpo da minha consciência de modo tão completo que agora era incapaz de fazê-lo ressuscitar. Meu corpo jazia morto na camisa-de-força, embora eu ainda habitasse o crânio. Lutei, em vão, para comandar meu pé a transmitir minha mensagem para Morrell. Eu sabia que tinha um pé. Mas conduzi a experiência de modo tão completo que não tinha mais um pé. Mas depois — e hoje sei que foi porque Morrell terminou de soletrar sua mensagem — continuei meu caminho entre as estrelas e não fui chamado de volta. No caminho e durante a peregrinação eu percebia, modorrento, que estava pegando no sono e que era um sono delicioso. De vez em quando, modorrento, eu me mexia — por favor, meu leitor, note o verbo que eu uso — EU ME MEXIA. Eu movia minhas pernas, meus braços. Estava consciente de lençóis limpos e macios a tocar minha pele. Estava consciente do bem-estar físico. Ah, era delicioso. Como o homem sedento no deserto sonha com uma fonte a jorrar água, assim eu sonhava com a libertação da compressão da camisa-de-força, com a limpeza no lugar da imundície, com uma pele saudável e macia no lugar do meu pobre couro encarquilhado. Mas meu sonho tinha uma diferença, como você vai ver.

Despertei. Ah, eu estava completamente desperto, embora não abrisse os olhos. E note, por favor, que em tudo o que vou narrar não houve surpresa alguma para mim. Tudo era natural, era o esperado. Eu era eu, fique certo disso. Mas eu não era Darrell Standing. Darrell Standing nada tinha a ver com o ser que eu era agora, assim como a pele encarquilhada de Darrell Standing nada tinha a ver com a pele fresca e macia que agora era minha. Tampouco tinha eu agora consciência de qualquer Darrell Standing — e nem poderia ter, já que Darrell Standing ainda não era nascido e nem nasceria por mais alguns séculos. Mas você verá. Estou deitado com os olhos fechados, ocioso, só ouvindo. De fora vem o som de muitos cascos movendo-se em ordem sobre as lajes. Pelo tinido metálico de armaduras e arreios, sei que alguma tropa está passando pela rua debaixo da minha janela. Pergunto-me, sem muito interesse, quem será. De algum lugar — e eu sei que é do pátio da estalagem — ouço a batida de cascos e o relincho impaciente que reconheço como sendo do meu cavalo. Ouço passos e movimentos; passos que fingem ser silenciosos mas são deliberadamente ruidosos, com a intenção secreta de me despertar se eu ainda estiver adormecido. Sorrio ante o truque do velho malandro. — Pons — ordeno, sem abrir os olhos —, quero água, água fria, depressa, um dilúvio d'água. Minha goela queima, bebi demais essa noite. — E dormistes demais essa manhã — repreende-me ele ao me estender a caneca d'água. Sento-me, abro os olhos e levo a caneca aos lábios com ambas as mãos. Enquanto bebo, olho para Pons. Note dois detalhes. Falei em francês; eu não tinha consciência de estar falando francês. Só mais tarde, de volta à solitária, quando lembrei o que estou narrando, foi que percebi que falava francês... e bom francês. Quanto a mim, Darrell Standing, neste momento escrevendo estas linhas no Corredor da Morte da Prisão de Folsom, bem, eu conhecia o francês de colégio, conhecia o suficiente para ler esse idioma. Mas falar francês seria impossível. Eu mal poderia pronunciar direito os nomes dos pratos de um menu. De volta. Pons era um velhote ressequido. Ele nasceu em nossa casa — eu sei porque isso foi casualmente mencionado no próprio dia que estou a descrever. Ele tinha seus sessenta anos. Era quase desdentado e, apesar de uma coxeadura que o fazia arrastar-se um pouco, era alerta e ágil de movimentos. E ele também era impudentemente informal. Isso porque estava em nossa casa há sessenta anos. Já era o valete de meu pai antes que eu

aprendesse a andar e depois da morte de meu pai (Pons e eu falamos disso nesse dia) tomou-se meu valete. Aquela coxeadura, ele a ganhou num campo de batalha da Itália, numa carga de cavalaria. Ele tinha acabado de salvar meu pai de ser pisoteado quando recebeu uma lança na coxa, foi cuspido da sela e atropelado. Meu pai, consciente mas enfraquecido pelos próprios ferimentos, testemunhou toda a cena. É assim, como eu disse, Pons adquiriu o direito de ser impudentemente informal e esse direito não poderia ser negado por um filho de meu pai. Pons sacudiu a cabeça quando esvaziei a caneca. — Ouvistes a água a ferver? — gracejei, devolvendo-lhe a caneca vazia. — Sois como vosso pai — disse ele, desanimado. — Mas vosso pai viveu e aprendeu e duvido que isso aconteça convosco. — Ele tinha um problema no estômago — disse eu, provocando-o — e qualquer trago de álcool o virava do avesso. É sinal de sabedoria não beber quando o tanque não isenta a bebida. Enquanto falávamos, Pons colocava aos pés da cama minhas roupas para o dia. — Bebei, meu mestre — respondeu-me. — Não vos fará mal. Morrereis com um estômago forte. — Quereis dizer que meu estômago é forrado de ferro? — provoqueio, fingindo não ter entendido. — Quero dizer... — começou ele rabugento, mas parou ao perceber que eu gracejava e com um muxoxo de sua boca murcha arrumou minha nova capa de marta sobre o encosto da cadeira. E desdenhou: — Oitocentos ducados. Mil cabras e cem bois gordos numa capa para manter-vos aquecido. Uma dúzia de ricas fazendas nas belas costas do meu senhor. — E nisto aqui, uma centena de belas fazendas, com um castelo ou dois de entremeio e até, quem sabe, um palácio — disse eu, estendendo a mão e tocando o florete que ele colocava sobre a cadeira. — Que vosso pai ganhou com seu poderoso braço direito —retrucou Pons. — Mas o que vosso pai ganhou, ele conservou. Pons fez uma pausa para levantar nas mãos e zombar do meu novo gibão de cetim escarlate; uma maravilha, uma das minhas extravagâncias. — Sessenta ducados por isto — acusou Pons. — Vosso pai teria feito todos os alfaiates e judeus da Cristandade assarem no fogo do inferno antes de pagar tal preço.

E enquanto nos vestíamos — ou melhor, enquanto Pons me ajudava a vestir-me — continuei a gracejar dele. — Está evidente, Pons, que ainda não soubestes das novas — disse eu com malícia. E ele, grande apreciador de boatos que era, apurou os ouvidos. — Novas? — perguntou. — Da Corte inglesa, por acaso? — Não — sacudi a cabeça. — Novas talvez para vós, embora já conhecidas há muito tempo. Então não ouvistes? Os filósofos da Grécia já comentavam essa notícia há uns dois mil anos. É por causa dessa notícia que visto o valor de vinte ricas fazendas sobre minhas costas, que vivo na Corte e me transformei num dândi. Vede, Pons, o mundo é van lugar muito mau, a vida é muito triste, todos os homens devem morrer e, uma vez mortos... bem, mortos estão. Portanto, para escapar ao mal e à tristeza, os homens de hoje, como eu, buscam o aturdimento, a insensibilidade e a loucura da frivolidade. — Mas e as novas, mestre? O que diziam os filósofos há tanto tempo? — Que Deus está morto, Pons — respondi com voz solene. — Não sabíeis? Deus está morto e logo eu estarei morto e, mesmo assim, visto o valor de vinte ricas fazendas sobre minhas costas. — Deus vive — afirmou Pons com fervor. — Deus vive e seu reino está ao nosso alcance. Digo-vos, mestre, está ao nosso alcance. O fim do mundo pode chegar amanhã. — Assim gritavam eles na velha Roma, Pons, quando Nero fazia deles archotes para iluminar os jogos do Circo. Pons olhou-me cheio de piedade. — Aprender demais é uma doença — queixou-se. — Eu sempre fui contra. Mas quereis fazer tudo a vosso modo e arrastais meu velho corpo convosco. Estudar astronomia e numerologia em Veneza, poesia e todas essas frivolidades italianas em Florença, astrologia em Pisa e sabe Deus o que naquelas terras doidas da Alemanha. Bolas para os filósofos. Digo-vos, mestre, eu, Pons, vosso servo, um pobre velho que não distingue uma carta de um bordão, eu vos digo que Deus vive e que se aproxima o momento de vos apresentardes diante dEle. — Ele fez uma pausa, com uma lembrança repentina e acrescentou: — Ele está aqui, o padre de que me falastes. Lembrei-me, de súbito, do meu compromisso. — Por que não me dissestes antes? — perguntei furioso. — E que diferença faria? — Pons encolheu os ombros. — Pois ele já não vos espera faz duas horas? — E por que não me acordastes?

Ele me olhou com um olhar pensativo e cheio de censura. — Ah, sim, depois que vos arrastastes para o leito a cantar como aquele galo da fábula: Canta o cuco, canta o cuco, cuco cuco cuco, canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco, canta o caco. E ele, num falsetto desafinado, me imitava a cantar esse refrão absurdo. Na véspera, sem dúvida, achei o caminho da minha cama a berrar essa tolice. — Tendes boa memória — comentei secamente, enquanto experimentava sobre os ombros as dobras da minha nova capa de marta, antes de atirá-la a Pons para que a guardasse. Ele sacudiu a cabeça com amargura. — Não é preciso memória quando o berrastes por tantas vezes que metade da hospedaria esteve a nos esmurrar a porta e a vos amaldiçoar por tirardes o sono a todos. E quando afinal consegui instalar-vos decentemente na cama, pois não é que me chamastes para me ordenar que se o diabo aparecesse lhe dissesse que minha senhora estava a dormir? E não me chamastes ainda outra e outra vez e agarrastes meu braço, vede, ainda está arroxeado, e não me ordenastes, por amor à vida, à carne gorda e ao fogo quente, para não vos acordar esta manhã exceto por um único motivo? — E qual seria esse motivo? — perguntei, incapaz de imaginar o que eu poderia ter dito. — O coração de um corvo negro, dissestes, de nome Martinelli, seja lá quem for, pelo coração desse Martinelli a fumegar numa bandeja de ouro. A bandeja há que ser de ouro, dissestes, e eu devia acordar-vos cantando Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco. E começastes a me ensinar a cantar Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco. E quando Pons mencionou o nome, eu soube de imediato que se tratava do padre, Martinelli, que estava a bater os calcanhares por duas longas horas no salão da hospedaria. Quando Martinelli recebeu permissão para entrar e me saudou por meu título e nome, fiquei sabendo quem eu era. Eu era o Conde Guillaume de Sainte-Maure. (Veja, naquele momento eu só podia saber — e lembrar mais tarde — o que estava na minha mente consciente.) O padre era italiano, baixo, de pele escura; sua magreza parecia causada pelo jejum ou por uma fome devastadora que não era deste mundo; suas mãos eram pequenas e finas como as de uma dama. Mas seus olhos! Seus olhos eram astutos e desconfiados, duas estreitas fendas sob as pálpebras pesadas; agudos como os olhos de um furão e indolentes como os de um lagarto a dormitar ao sol.

— Tem havido muita demora. Conde de Sainte-Maure — começou ele de imediato, assim que Pons deixou o aposento obedecendo a um olhar meu. — Aquele a quem sirvo fica mais e mais impaciente. — Mudai vosso tom, padre — interrompi furioso. — Lembrai-vos de que não estais em Roma. — Meu augusto mestre... — começou ele. — Reina augustamente em Roma, talvez — interrompi mais uma vez. — Aqui é França. Martinelli encolheu os ombros com paciência e mansidão, mas seus olhos, a brilhar como os olhos de um basilisco, desmentiam o movimento dos ombros. — Meu augusto mestre preocupa-se com as questões de França — disse ele com suavidade. — A dama não se destina a vós. Meu mestre tem outros planos... — Umedeceu os lábios finos com a língua — outros planos para a dama... e para vós. E claro que eu sabia que a dama a quem ele se referia era a Duquesa Philippa, viúva de Geoffroy, último Duque da Aquitânia. E, embora duquesa e viúva, Philippa era mulher, jovem e alegre, bela e, por minha fé, gostava de mim. — Quais são os planos de vosso mestre? — perguntei bruscamente. — São profundos e amplos. Conde de Sainte-Maure, demasiado profundos e amplos para que eu possa presumir imaginá-los, muito menos conhecê-los ou discuti-los convosco ou com qualquer outro homem. — Ah, eu sei que grandes coisas estão em andamento mas sei também que vermes pegajosos estão a se retorcer por debaixo delas — foi meu comentário. — Disseram-me que éreis obstinado. Mas, em todo caso, obedeci às ordens que me foram dadas. Martinelli levantou-se para partir e levantei-me com ele. — Eu disse a ele que seria inútil — continuou. — Mas a última chance para mudardes de idéia vos foi oferecida. Meu augusto mestre é justo em suas negociações. — Ah, bem, pensarei no assunto — comentei distraído, enquanto conduzia o padre à porta. Ele estacou abruptamente no patamar. — O tempo para pensar esgotou-se — disse. — Foi uma decisão que vim buscar.

— Pensarei no assunto — repeti, e então ocorreu-me acrescentar: — Se os planos da dama não condissessem com os meus, então talvez os planos de vosso mestre frutifiquem do modo que ele deseja. Pois lembrai-vos, padre, ele não é meu senhor. — Não conheceis meu mestre—disse ele com solenidade. — Nem desejo conhecê-lo — retruquei. E fiquei a ouvir os passos leves e ágeis do insidioso padre a descer os degraus rangedores. Se eu fosse entrar nas minúcias de tudo o que vi na metade do dia e metade da noite em que fui o Conde Guillaume de Sainte-Maure, nem dez livros do tamanho deste que estou escrevendo poderiam abranger o assunto. Devo omitir muita coisa; na verdade, vou omitir quase tudo; pois nunca ouvi dizer que a execução de um condenado à morte tivesse sido adiada para que ele completasse suas memórias — pelo menos, não na Califórnia. Quando cavalguei pelas portas de Paris naquele dia, foi à Paris de muitos séculos atrás que cheguei. As ruas estreitas eram um escândalo insalubre de sujeira e lodo — mas devo omitir. E omitirei todos os acontecimentos daquela tarde, a cavalgada fora dos muros da cidade, a grande festa oferecida por Hugh de Meung, o banquete e as libações de que pouco participei. Só escreverei sobre o final da aventura, que começa no momento em que estou a gracejar com Philippa — ah, meu bom Deus, ela era maravilhosamente bela. Uma grande dama... mas antes de tudo, depois de tudo, e sempre, mulher. Ríamos e gracejávamos e, à nossa volta, acotovelava-se a multidão alegre. Mas sob nossos gracejos sentíamos a seriedade profunda do homem e da mulher que ultrapassaram os portais do amor, embora ainda um tanto incertos um do outro. Não a descreverei. Ela era pequena, de uma esbelteza graciosa — mas, veja só, estou a descrevê-la. Em resumo, ela era a única mulher neste mundo para mim e eu sequer concebia que o longo braço daquele ancião em Roma pudesse interpor-se, através de metade da Europa, entre minha mulher e eu. E então o italiano, Fortini, inclinou-se sobre meu ombro e murmurou: — Eis que desejo falar-vos. — Eis que esperarás por meu bel-prazer—respondi bruscamente. — Não espero pelo bel-prazer de homem algum — foi sua resposta, igualmente brusca. E enquanto meu sangue fervia, lembrei-me do padre Martinelli e do ancião em Roma. A coisa estava clara. Era deliberada. Era o longo braço de

Roma. Fortini sorria para mim enquanto eu refletia, mas havia, em seu sorriso, o aroma da insolência. Este, entre todos, foi o momento em que eu deveria ter mantido o sangue-frio. Mas a antiga fúria sanguinária começou a se acender dentro de mim. Isso era obra do padre. Este era o Fortini, imbatível espadachim, reconhecido como o melhor florete da Itália nos últimos dez anos. Esta noite seria o Fortini. Se ele falhasse em cumprir as ordens do ancião, amanhã haveria um outro florete, depois de amanhã ainda outro. E se acaso todos falhassem, eu poderia esperar pelo punhal mercenário em minhas costas ou pelos filtros do envenenador em meu vinho, minha carne, meu pão. — Estou ocupado — disse eu. — Ide-vos! — Meu assunto convosco é urgente — foi sua resposta. Nossas vozes haviam se elevado e Philippa nos ouviu. — Ide-vos, cão italiano — disse eu. — Afastai vossos latidos de minha porta. Cuidarei de vós mais tarde. — A lua está alta no céu — respondeu-me Fortini. — A relva está úmida e excelente. Não há orvalho. Além do tanque dos peixes a um tiro de flecha à esquerda, há uma clareira secreta e silenciosa. — Mais tarde satisfarei vosso desejo — murmurei impaciente. Mas ele persistia em esperar junto ao meu ombro. — Mais tarde — repeti. — Mais tarde tratarei convosco. E então Philippa falou, com toda a audácia e a força de seu espírito. — Satisfazei o desejo do cavalheiro, Sainte-Maure. Tratai com ele agora. E que a sorte vos acompanhe. — Ela fez uma pausa para acenar a seu tio, Jean de Joinville, que passava; tio pelo lado materno, os Joinville de Anjou. — Que a sorte vos acompanhe — repetiu e, aproximando-se de mim, sussurrou: — Meu coração vos acompanhará, Sainte-Maure. Não vos demoreis. Espero-vos no salão. Senti-me no sétimo céu. Dancei nas nuvens. Era a primeira vez que ela admitia abertamente seu amor por mim. E tal benção fez-me tão forte que eu tinha certeza de poder matar uma dúzia de Fortinis e tratar com desprezo uma dúzia de anciãos em Roma. Jean de Joinville ofereceu o braço a Philippa e conduziu-a em meio à multidão, enquanto Fortini e eu completávamos nossos arranjos num instante. Separamo-nos; ele para buscar seus padrinhos e eu para buscar meus padrinhos, ficando de nos encontrar no local combinado além do tanque dos peixes.

Arregimentei Robert Lanfranc e Henry Bohemond. Mas antes de localizá-los, defrontei-me com uma biruta que me mostrou de que lado soprava o vento e prometia um furacão. Eu conhecia essa biruta dos ventos, Guy de Villehardouin, um provinciano rústico e recém-chegado à Corte mas que era, apesar de tudo, um fogoso galinho de briga. O cabelo ruivo; o azul dos olhos, pequenos e juntos, rodeado por um branco avermelhado; a pele, como sempre acontece com esse tipo, vermelha e sardenta: sua aparência lembrava, decididamente, carne crua. Quando eu passava a seu lado, ele, com um movimento súbito, me acotovelou. Ah, é claro, a coisa foi deliberada. E ele inflamou-se para cima de mim enquanto sua mão descia para o punho do florete. “Por minha fé”, pensei, “o ancião tem muitas e estranhas armas”, enquanto me inclinava diante do galo de briga e murmurava: — Peço-vos perdão por minha falta de jeito. A culpa foi toda minha. Peço-vos perdão, de Villehardouin. Mas ele não se satisfaria tão facilmente. E enquanto ele espumava e bravateava, vislumbrei Robert Lanfranc, acenei-lhe para que se aproximasse e expliquei-lhe o ocorrido. — Sainte-Maure reparou a ofensa — foi sua opinião. — Ele vos pediu desculpas. — Na verdade, sim — interrompi com a minha voz mais suave. — E peço-vos perdão mais uma vez, de Villehardouin, por minha imensa falta de jeito. Peço-vos mil perdões. A culpa foi minha, embora sem intenção. Em minha pressa para um compromisso fui desajeitado, terrivelmente desajeitado, mas sem intenção. O que mais poderia aquele tolo fazer exceto aceitar, embora de má vontade, as desculpas que eu lhe apresentava tão profusamente? Mas eu sabia, ao apressar-me em companhia de Lanfranc, que não se passariam muitos dias, ou muitas horas, até que o jovem de cabelos de fogo achasse um meio de medirmos o aço sobre a relva. A Lanfranc, disse apenas que precisava dele como padrinho; ele não estava interessado nos detalhes do assunto. Era um rapaz brilhante, não mais de vinte anos de idade mas treinado nas armas, lutou em Espanha e tinha um registro honroso na relva. Seus olhos negros luziram quando soube que ia haver um duelo, e tal era sua impetuosidade que ele próprio chamou Henry Bohemond para unir-se a nós. Quando nós três chegamos à clareira além do tanque dos peixes, Fortini e dois amigos já estavam à nossa espera. Um deles era Felix Pasquini,

sobrinho do Cardeal Pasquini e tão íntimo do tio quanto o tio era íntimo do ancião em Roma. O outro era Raoul de Grouncort ; sua presença me surpreendeu, pois ele era um homem digno e nobre demais para andar em tal companhia. Saudamo-nos conforme as regras e, conforme as regras, colocamo-nos em posição. Não era novidade para nenhum de nós. O solo estava bom, conforme prometido. Não havia orvalho. A lua brilhava. O florete de Fortini e o meu foram desembainhados e se entrechocaram. Eu sabia que, embora eu fosse reconhecido como um bom espadachim em França, Fortini estava entre os melhores. Mas eu também sabia que tinha comigo, esta noite, o coração da minha dama; e que esta noite, por minha causa, haveria um italiano a menos no mundo. Digo que eu sabia. Na minha mente, não havia dúvidas. E enquanto nossos floretes se entrecruzavam, pensei no modo como o mataria. Eu não pretendia manter uma luta prolongada. Rapidez e brilho: esse sempre foi meu estilo. E depois desses últimos meses passados em alegres deboches, cantando Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco em horas ímpias da madrugada, eu sabia que não tinha condições físicas para uma luta prolongada. Rapidez e brilho: foi minha decisão. Mas descobri que rapidez e brilho seriam difíceis, tendo como oponente um espachadim consumado como Fortini. E quis a sorte que Fortini — sempre, como reportam as crônicas, um duelista frio, de punho incansável e com preferência pelos duelos demorados — nessa noite também optasse por rapidez e brilho. Foi um duelo nervoso e enervante pois, tão certo quanto eu percebi sua intenção de ser rápido, ele também percebeu a minha. Duvido que eu pudesse ter executado minha manobra se o duelo fosse à luz do dia e não à luz do luar. A vaga luminosidade ajudou-me. E também me ajudou conseguir intuir, um instante antes, o que ele tinha em mente. Era o ataque sincronizado — uma manobra comum, mas perigosa, conhecida por todos os iniciantes e que já lançou por terra muitos bons duelistas que a tentaram; e que oferece tanto perigo para seu executante que os espadachins não a apreciam. Estávamos a duelar mal fazia um minuto quando percebi que, sob toda aquela ofensiva ousada e brilhante, Fortini planejava exatamente o ataque sincronizado. Ele esperava de mim uma estocada e um avanço; não para deter minha estocada, mas sim para apanhá-la no momento exato e desviá-la com uma torção do punho, mantendo a ponta de seu florete dirigida para a frente, para me encontrar quando meu corpo seguisse o impulso do meu avanço.

Uma manobra arriscada — ah, sim, uma manobra muito arriscada mesmo com a melhor das luzes. Se ele desviasse minha estocada uma fração de segundo cedo demais, eu seria avisado e me salvaria. Se ele desviasse minha estocada uma fração de segundo tarde demais, meu florete se alojaria em seu corpo. “Rapidez e brilho, não é?”, pensei. “Muito bem, meu amigo italiano, pois há de ser rápido e brilhante. E em especial, rápido há de ser.” De certo modo, era um ataque sincronizado contra outro, mas eu o enganaria na sincronização ao ser muito rápido. E fui rápido. Como eu disse, estávamos a duelar mal fazia um minuto quando aconteceu. Rápido? A minha estocada e o meu avanço foram uma coisa só. Foi um relâmpago de ação, foi uma explosão, foi uma instantaneidade. Juro que minha estocada e meu avanço foram uma fração de segundo mais rápidos do que se esperaria de qualquer espadachim. Eu ganhei uma fração de segundo. Nessa fração de segundo tarde demais, Fortini tentou desviar minha lâmina e trespassar-me com a sua. Mas foi a sua a lâmina que foi desviada. Ela passou raspando pelo meu peito e eu estava dentro — dentro de sua arma, que se estendia no ar vazio atrás de mim — e minha lâmina estava dentro dele, e através dele, na altura do coração, da direita para a esquerda e saindo por suas costas. Que coisa estranha de se fazer, espetar um homem vivo com uma lâmina de aço. Estou aqui na minha cela e deixo de escrever por um instante, pensando no assunto. Pensei com freqüência naquela noite enluarada na França de muito anos passados, quando ensinei rapidez e brilho ao cão italiano. Foi tão fácil, aquela perfuração de um tronco humano. Eu teria esperado mais resistência. Teria havido resistência se a ponta do meu florete tivesse encontrado o osso. Como aconteceu, encontrei apenas a maciez da carne. Mas, mesmo assim, ela foi tão fácil de perfurar. Tenho a sensação daquela perfuração agora, na minha mão, no meu cérebro, enquanto escrevo. Um alfinete não atravessaria um pudim com mais facilidade do que minha lâmina atravessou o italiano. Ah, não havia nisso nada de perturbador na época de Guillaume de Sainte-Maure; mas é perturbador para mim, Darrell Standing, quando relembro e penso no caso através dos séculos. É fácil, é espantosamente fácil matar um homem forte, vivo e cheia de energia com uma arma tão crua como uma lâmina de aço. Pois os homens não são como os caranguejos, tão tenros, tão frágeis, tão vulneráveis? De volta ao luar sobre a relva. Minha estocada penetrou em seu corpo, houve uma pausa perceptível. Fortini não caiu de imediato. Não retirei a lâmina de imediato. Durante todo um segundo ficamos numa pausa; eu, com

as pernas abertas, corpo arqueado e tenso lançado para a frente, braço direito esticado na horizontal; Fortini, sua lâmina tão distante atrás de mim que o punho de seu florete tocava o lado esquerdo do meu peito, seu corpo rígido, seus olhos esbugalhados. Tão estáticos ficamos, durante aquele segundo, que posso jurar que os homens à nossa volta não perceberam de imediato o que havia acontecido. Então Fortini arquejou e tossiu. A rigidez da sua postura se desfez. O punho do florete contra meu peito vacilou, depois seu braço tombou e a ponta do florete tocou a relva. Pasquini e de Grouncort correram para ele e o seguraram. Na verdade, foi mais difícil para mim arrancar o aço de seu corpo do que havia sido enfiá-lo. Sua carne se agarrava ao aço, como se ciumenta de deixá-lo partir. Ah, acredite em mim, precisei fazer um bom esforço para me livrar do que eu tinha feito. Mas a dor da retirada deve tê-lo chamado de volta à vida e ao seu objetivo, pois ele se desembaraçou dos amigos, endireitou-se e levantou seu florete em posição. Eu também tomei posição, imaginando como era possível que o tivesse atravessado na altura do coração e errado algum órgão vital. Mas, antes que seus amigos pudessem segurá-lo, suas pernas cederam e ele caiu pesadamente na relva. Eles o viraram de costas mas ele já estava morto, o rosto na imobilidade de cadáver ao luar, a mão direita ainda agarrada ao punho do florete. Sim, é espantosamente fácil matar um homem. Saudamos seus padrinhos e estávamos para partir quando Felix Pasquini me deteve. — Desculpai-me — disse eu. — Que seja amanhã. — Precisamos apenas nos afastar alguns passos — insistiu Pasquini — onde a relva ainda está seca. — Deixai-me umedecê-la por vós, Sainte-Maure — pediu-me Lanfranc, ansioso, ele também, por matar um italiano. Sacudi a cabeça. — Pasquini é meu — respondi. — Ele será o primeiro amanhã. — Há outros? — perguntou Lanfranc. —Perguntai a de Grouncort — sorri. — Imagino que ele já está exigindo a honra de ser o terceiro. De Grouncort assentiu, constrangido. Lanfranc lançou-lhe um olhar interrogativo e ele concordou com um aceno de cabeça. — E depois dele virá sem dúvida o galinho de briga — continuei.

No exato instante em que eu pronunciava essas palavras, o ruivo Guy de Villehardouin, sozinho, corria pela relva ao nosso encontro. — Pelo menos eu o terei — gritou Lanfranc com a voz a tremer de excitação. — Perguntai a ele próprio — ri e, voltando-me para Pasquini, disse-lhe. — Amanhã. Indicai local e hora e lá estarei. — A relva está excelente — provocou-me. — O local é excelente e pretendo que façais companhia a Fortini esta noite. — Melhor seria se ele tivesse a companhia de um amigo como vós. — gracejei — E agora perdoai-me, preciso ir-me. Mas ele me bloqueou o caminho. — Morra quem morrer — disse ele —, que morra agora. Pela primeira vez, com ele, minha raiva começou a crescer. — Servis bem a vosso mestre — desdenhei. — Sirvo apenas meu bel-prazer — foi sua resposta. — Mestre não tenho. — Perdoai-me se tomo a pretensão de dizer-vos a verdade — disse eu. — E qual seria ela? — perguntou-me ele com voz suave. — Que sois um mentiroso, Pasquini, um mentiroso como todos os italianos. Ele virou-se de imediato para Lanfranc e Bohemond. — Vós o ou vistes — disse. — E diante dessa ofensa não podeis negálo a mim. Eles hesitaram e me olharam em busca de orientação. Mas Pasquini não esperou. — E se ainda tendes escrúpulos — apressou-se a dizer-me —, então permiti que eu os remova... assim. E cuspiu na relva a meus pés. Então minha raiva transbordou e me dominou. A fúria sanguinária, assim eu a chamo: um desejo esmagador e dominador de matar e destruir. Esqueci que Philippa esperava por mim no salão. Tudo que eu sabia era que tinha sido ofendido: a imperdoável interferência em meus assuntos pelo ancião em Roma, o recado do padre, a insolência de Fortini, a impudência de Villehardouin e aqui Pasquini postando-se à minha frente e cuspindo a meus pés. Enxerguei sangue. Pensei sangue. Vi essas criaturas como ervas daninhas que precisavam ser arrancadas do meu caminho, arrancadas do mundo. Como o leão que, preso numa rede, avança enfurecido contra suas malhas, assim avancei enfurecido contras essas

criaturas. Elas me cercavam, me prendiam numa armadilha. O único meio de escapar era despedaçá-las, esmagá-las, pisoteá-las. — Muito bem — disse eu com certa calma, embora minha paixão fosse tamanha que meu corpo tremia. — Vós primeiro, Pasquini. E vós a seguir, de Grouncort ? E vós por último, de Villehardouin? Cada um deles concordou; Pasquini e eu nos preparamos para o duelo. — Já que tendes pressa — propôs-me Henry Bohemond — e são três deles e três de nós, por que não resolvemos o assunto a uma só vez? — Sim, sim — gritou o impetuoso Lanfranc. — Tomai de Grouncort . De Villehardouin para mim. Mas acenei a meus bons amigos para retrocederem. — Eles estão aqui cumprindo ordens — expliquei-lhes. — Sou eu que eles desejam... e com tanto empenho que, por minha fé, fui contagiado por esse desejo e agora eu os quero e eu os terei. Observei que Pasquini enervava-se com a demora de toda essa conversa e resolvi enervá-lo ainda mais. — Quanto a vós, Pasquini — anunciei —, resolverei rapidamente o assunto convosco. Não vos farei demorar, pois Fortini está à vossa espera. Quanto a vós, Raoul de Grouncort, eu vos punirei como mereceis por estardes em tão má companhia. Estais a engordar e respirais como um fole. Dedicarei alguns minutos a vós, enquanto vossa banha derrete e vossos pulmões ofegam e arquejam como foles furados. E vós, de Villehardouin, ainda não decidi de que modo vos matarei. E então saudei Pasquini e começamos. Ah, eu pretendia agir como um demônio extraordinário esta noite. Rapidez e brilho: assim haveria de ser. E eu estava consciente da enganadora luz do luar. Assim como fiz com Fortini, eu liquidaria Pasquini se ele ousasse o ataque sincronizado. Se ele não o tentasse, e depressa, eu o faria. Apesar do nervosismo que lhe provoquei, ele estava cauteloso. Mas forcei um duelo rápido e, naquela luz indefinida onde dependíamos mais do instinto que da visão, nossas lâminas entrechocavam-se continuamente. Mal se passou um minuto de duelo quando executei minha manobra. Fingi escorregar e, ao recuperar o equilíbrio, fingi ter perdido contato com a lâmina de Pasquini. Hesitante, ele deu uma estocada e dessa vez fingi abrir a guarda para deter sua lâmina. Meu corpo ficou totalmente exposto: essa foi a isca que lancei para atraí-lo. E ela o atraiu. Como um relâmpago, ele se aproveitou daquilo que lhe pareceu ser uma exposição involuntária. Sua estocada foi direta e certeira; sua vontade e seu corpo acompanharam de todo

coração o ímpeto do seu avanço. Mas eu estava apenas fingindo, eu estava pronto para ele. Sutil, meu aço encontrou seu florete quando nossas lâminas se entrechocaram. E com apenas a firmeza necessária e nada mais, torci o punho e desviei sua lâmina com o punho do meu florete. Ah, que sutil desvio, um par de centímetros, apenas o suficiente para fazer com que a ponta de seu florete passasse por mim perfurando as dobras da minha capa de cetim. Seu corpo, é claro, acompanhou o avanço do seu florete; e na altura do coração, pelo lado direito, a ponta do meu florete encontrou seu corpo. E meu braço esticado estava tão rijo quanto o aço no qual se prolongava e, por trás do braço e do aço, meu corpo estava firme e sólido. Na altura do coração, eu disse, meu florete encontrou o lado direito de Pasquim; mas não saiu pelo lado esquerdo, porque, bem, em algum lugar através do seu corpo, meu aço encontrou uma costela (ah, matar um homem é ofício de açougueiro!) com tal ímpeto que a violência do golpe o desequilibrou e ele caiu, meio de costas, meio de lado. E enquanto ele caía e antes que atingisse a relva, arranquei meu florete de seu corpo com um repelão. De Grouncort correu para ele, mas Pasquini lhe fez sinais para que viesse me enfrentar. Pasquini não morreu rápido, como Fortini. Ele tossiu e cuspiu e, ajudado por de Villehardouin, apoiou-se num cotovelo, descansou a cabeça na mão e continuou a tossir e a cuspir. — Desejo-vos uma boa viagem, Pasquini — gargalhei na minha fúria sanguinária. — Apressai-vos, pois a relva onde descansais ficou molhada assim de repente e se ficardes aí deitado pegareis uma pneumonia. Quando me aprestei a duelar com de Groncourt, Bohemond protestou que eu deveria descansar um pouco. — Não — respondi-lhe. — Mal comecei a me aquecer. E para de Groncourt: — Agora vamos fazer-vos dançar e ofegar. Salute! O coração de de Grouncort não estava nessa missão. Ficou evidente que ele lutava em obediência a uma ordem. Seu estilo era fora de moda, como há de ser o estilo de um homem de meia-idade, mas ele não era um espadachim a ser desprezado. Era frio, determinado, tenaz. Mas não era brilhante e estava oprimido pela previsão da derrota. Uma dúzia de vezes, por minha rapidez e brilho, ele foi meu. Mas me refreei. Eu disse que estava demoníaco. E realmente estava. Cansei-o. Obriguei-o a se afastar da luz do luar e ele mal podia me ver, pois eu lutava na minha própria sombra. E enquanto eu o cansava até ele começar a arquejar, como eu tinha predito,

Pasquini observava com a cabeça apoiada na mão, tossindo e cuspindo fora sua vida. — Agora, de Groncourt — anunciei finalmente. — Estais à minha mercê. Posso matar-vos de uma dúzia de maneiras. Aprontai-vos e firmai-vos, pois é assim que eu quero. E assim dizendo, passei de carte para tierce e enquanto ele se recuperava em desespero e abria a guarda, voltei a carte, aproveitei a abertura, atingi-o na altura do coração e atravessei-o de lado a lado. Diante desse resultado, Pasquini abandonou seu apego à vida, enterrou o rosto na relva, estremeceu por um instante e ficou imóvel. — Vosso mestre terá quatro servos a menos esta noite — assegurei a de Villehardouin, um instante antes de começarmos nosso encontro. E que encontro! O rapaz era ridículo. Impossível imaginar em que rústica escola de esgrima ele teria sido ensinado. Era um palhaço perfeito. “Trabalho rápido e simples”, pensei, enquanto seu cabelo ruivo encrespava-se com sua própria raiva e ele se lançava sobre mim como um louco. Ai de mim! Pois essa palhaçada foi minha ruína. Depois de alguns segundos de duelo, ridicularizando-o e rindo dele por não passar de um rústico desajeitado, ele estava tão enfurecido que esqueceu o quase nada de esgrima que conhecia. Com um giro amplo do braço, como se portasse um machado, ele fez seu florete assobiar no ar e abateu-o sobre o alto da minha cabeça. Fiquei estupefato. Nunca tinha me acontecido uma coisa tão absurda. Ele ficou com a guarda totalmente aberta e eu poderia tê-lo atravessado. Mas como eu disse, fiquei estupefato; a única coisa que percebi foi a dor do aço entrando em minha carne quando esse provinciano desajeitado me atravessou e se lançou para a frente, como um touro, até que o punho de seu florete bateu no meu peito e me atirou para trás. Ao cair, vi a preocupação no rosto de Lanfranc e Bohemond; e vi o brilho de satisfação no rosto de Villehardouin enquanto ele apertava sua lâmina contra mim. Eu estava caindo... mas jamais cheguei a atingir a relva. Atingiu-me uma névoa de luzes coruscantes, um estrondo em meus ouvidos, a escuridão, o vislumbre de uma luz fraca surgindo aos poucos, um repelão, uma dor torturante além de qualquer descrição e então ouvi a voz de uma pessoa que dizia: — Não estou sentindo nada. Eu conhecia a voz. Era a voz do Diretor Atherton. E reconheci a mim mesmo como Darrell Standing, acabando de retomar através dos séculos para

o inferno da camisa-de-força de San Quentin. E eu sabia que os dedos que tocavam meu pescoço eram os dedos do Diretor Atherton. E eu sabia que os dedos que afastaram os dedos do Diretor eram os dedos do Doutor Jackson. E era a voz do Doutor Jackson que dizia: — Parece que o senhor não sabe tomar o pulso de um homem pelo pescoço. Aqui, olhe, bem aqui, bote o dedo bem aqui. Sentiu? Ah, bem como eu pensei. O coração está fraco, mas está regular como um relógio. — Só faz 24 horas — disse o Capitão Jamie — e ele nunca ficou nesse estado antes. — Fingindo, ele está é fingindo, o senhor pode apostar — exclamou Al Hutchins, o encarregado-chefe. — Não sei, não — insistiu o Capitão Jamie. — Quando o pulso fica fraco desse jeito, é preciso um especialista para encontrar o pulso... — Ora, eu sou diplomado na camisa-de-força — zombou Al Hutchins. — Lembra que eu fiz o senhor me soltar, Capitão, quando o senhor pensou que eu estava morrendo e eu tive que me segurar para não rir na sua cara? — O que é que o senhor acha, Doe? — interrompeu o Diretor Atherton. — O funcionamento do coração está ótimo, já lhe disse — foi a resposta. — É claro que está fraco, isso a gente já esperava. Acho que o Hutchins está certo. O homem está fingindo. Ele levantou uma das minhas pálpebras com o polegar, e então abri o outro olho e encarei o grupo inclinado sobre mim. — O que foi que eu disse? — gritou, triunfante, o Doutor Jackson. E nesse instante, embora me parecesse que o esforço iria romper a pele do meu rosto, juntei toda a minha vontade e sorri. Eles trouxeram água aos meus lábios e bebi com avidez. Lembre-se, meu leitor, de que tudo isso ocorreu enquanto eu jazia de costas, indefeso, os braços amarrados ao longo do corpo dentro da camisa-de-força. Quando me ofereceram alimento — o pão seco da prisão — sacudi a cabeça. Fechei os olhos para mostrar que estava cansado da presença deles. A dor da minha ressurreição parcial era intolerável. Eu podia sentir meu corpo voltando à vida. Dores agudas desciam pela minha garganta e se alojavam em volta do meu coração. E meu cérebro latejava com a lembrança de que Philippa estava à minha espera no salão; eu queria escapar, queria voltar para aquela metade de dia e metade de noite que acabava de viver na velha França.

E foi assim que, mesmo com eles à minha volta, lutei para eliminar da minha consciência a porção viva do meu corpo. Eu tinha pressa em partir, mas a voz do Diretor Atherton me detinha. — Há qualquer coisa de que você queira se queixar? — perguntava-me ele. Agora eu só tinha um medo: que me desamarrassem. E por isso, entenda que não murmurei minha resposta num braggadocio, mas apenas para impedir uma possível libertação. — O senhor podia apertar um pouquinho mais a camisa-de-força — sussurrei. — Está muito frouxa. Fico perdido aqui dentro. Hutchins é estúpido. É um imbecil. Ele não sabe nada de amarrar uma camisa-de-força. Diretor, o senhor devia pôr o Hutchins de encarregado da sala de fiação. Ele é um mestre da incompetência muito maior que o homem que está lá, esse é só estúpido e não é um imbecil também. Agora caiam fora daqui, vocês todos, a não ser que estejam pensando numa coisa pior para fazer comigo. Se estiverem, fiquem. De todo coração eu convido vocês a ficarem, se vocês acreditam que as suas pobres cabeças maquinaram novas torturas para mim. — Ele é um louco, um legítimo e perfeito louco — entoou o Doutor Jackson, com o encanto que o médico encontra na novidade. — Standing, você é uma raridade — disse o Diretor. — Você tem uma vontade de ferro, mas eu vou te dobrar, tão certo quanto foi Deus que criou o mundo. — E o senhor tem um coração de coelho — retruquei. — Bastava um décimo da camisa-de-força que eu levei aqui em San Quentin para fazer teu coração de coelho sair pelas tuas orelhas compridas. Ah, que toque de classe! Pois as orelhas do Diretor eram, de feito, anormais. Elas teriam interessado a Lombroso, tenho certeza. — E eu — continuei — eu dou risada do senhor e não desejo um destino pior para a sala de fiação do que ser dirigida pelo senhor em pessoa. Ora veja só, o senhor me jogou no chão e fez comigo o pior que podia e eu ainda estou vivo e estou rindo na sua cara. Incompetente? O senhor não consegue nem me matar. Incompetente? O senhor não conseguia nem matar um rato numa ratoeira com uma banana de dinamite... dinamite de verdade, não do tipo que o senhor enfiou na cabeça que eu escondi por aí. — Alguma coisa mais? — rosnou ele, quando terminei meu discurso. E então lampejaram na minha mente as palavras que eu tinha dito a Fortini quando ele se mostrou insolente comigo.

— Ide-vos, cão carcereiro — disse eu. — Afastai vossos latidos de minha porta. Deve ter sido terrível para um homem na situação do Diretor Atherton, ser desafiado dessa forma por um prisioneiro indefeso. Seu rosto empalideceu de raiva e sua voz tremia quando me ameaçou: — Por Deus, Standing, eu ainda vou acabar com você. — Só tem uma coisa que o senhor pode fazer — eu disse. — O senhor podia apertar essa camisa-de-força, ela está desagradavelmente frouxa. Se não quiser apertar a corda, então saia. E não me incomodo nem um pouco se o senhor deixar de aparecer por uma semana ou por todos os dez dias. E que represália poderia o Diretor de uma grande prisão tomar contra um prisioneiro — se a maior de todas as represálias já foi descarregada sobre esse prisioneiro? Talvez o Diretor Atherton tenha pensado em alguma outra ameaça possível, pois começou a dizer alguma coisa. Mas minha voz tinha se fortalecido com o exercício e comecei a cantar Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco. E cantei até que a porta se fechou com estrondo e os ferrolhos rangeram.

CAPITULO 12 Uma vez aprendido o truque, o caminho foi fácil. E eu sabia que ele se tomaria cada vez mais fácil quanto mais eu o trilhasse. Uma vez estabelecida a linha de menor resistência, cada jornada subseqüente ao longo desse caminho encontraria ainda menos resistência. E assim, como você vai ver, com o passar do tempo minhas jornadas da vida de San Quentin para outras vidas foram alcançadas de um modo quase automático. Depois que o Diretor Atherton e seus asseclas me deixaram a sós, foi uma questão de minutos querer que a porção ressuscitada do meu corpo retomasse à pequena morte. Era morte em vida, mas era apenas uma pequena morte, semelhante à morte temporária causada por um anestésico. E assim, de tudo que era sórdido e vil, da solitária brutal e do inferno da camisa-de-força, das moscas amigas e dos suores das trevas e da conversa com os nós dos dedos dos mortos-vivos, eu saltei no tempo e no espaço. Um instante de escuridão... e cresce a lenta percepção de outras coisas e de um outro eu. Antes de tudo, nessa percepção, havia o pó. O pó nas minhas narinas, seco e irritante. O pó na minha boca. O pó que cobre meu rosto e minhas mãos, e eu o noto principalmente nas pontas dos dedos, quando as esfrego com o polegar. Depois percebo o movimento incessante. Tudo à minha volta balança e dá solavancos. Há vibrações, embates e ouço algo que reconheço, com naturalidade, como o ranger das rodas sobre o eixo e a fricção e impacto dos aros de ferro contra a areia e a pedra. E chegam até mim as vozes cansadas de homens a praguejar e a gritar com os animais exaustos que avançam vagarosos. Abro os olhos, inflamados pela poeira, e imediatamente eles se enchem de pó. Sobre os cobertores ásperos onde estou deitado, a camada de pó tem cinco centímetros. Acima da minha cabeça, através da teia de pó, vejo um toldo abaulado de lona a sacolejar e se balançar e milhares de partículas de poeira a pairar, pesadas, nos raios de sol que entram pelos buracos na lona. Eu era uma criança, um garoto de oito ou nove anos, e estava cansado; e cansada estava a mulher macilenta e empoeirada sentada ao meu lado, a ninar um bebê que chorava em seus braços. Ela era minha mãe; isso eu sabia naturalmente, assim como soube, quando olhei pelo túnel de lona do carroção, que os ombros do homem na boléia eram os ombros do meu pai.

Quando comecei a rastejar pelas trouxas e pacotes que atravancavam o carroção, minha mãe disse numa voz cansada e lamurienta: — O Jesse, por que você não fica quieto um pouco, menino? Esse era meu nome, Jesse. Eu não sabia meu sobrenome, mas ouvi minha mãe chamar meu pai de John. Eu tinha uma vaga lembrança de ter ouvido os outros homens tratarem meu pai por capitão. Eu sabia que ele era o chefe dessa caravana e que todos obedeciam às suas ordens. Rastejei pela abertura na lona e sentei na boléia ao lado do meu pai. O ar estava sufocante com o pó levantado pelos carroções e pelos muitos cascos de animais. Tão espessa era a nuvem de pó que mais parecia neblina ou nevoeiro, e o sol poente brilhava vagamente através dela com um halo avermelhado. Não só a luz desse crepúsculo era sinistra, mas tudo à minha volta me parecia sinistro — esse lugar, o rosto do meu pai, o choro do bebê nos braços de minha mãe que não conseguia acalmá-lo, os seis cavalos que meu pai conduzia e que tinham de ser continuamente chicoteados e que já não tinham cor alguma, tão espessa era a camada de pó sobre eles. O lugar era uma desolação dolorosa que feria os olhos. Colinas se estendiam sem fim em ambos os lados. Apenas aqui e ali, em suas encostas, crescia às vezes um matagal enfezado e ressecado pelo calor. A maior parte das colinas era seca e nua e feita de areia e rocha. Nosso caminho seguia o sopé arenoso das colinas. E os sopés arenosos eram áridos, exceto pelas manchas de matagal com, aqui e ali, pequenos tufos de grama seca e murcha. Água não havia nenhuma, nenhum sinal d'água, exceto por ravinas cavadas por antigas chuvas torrenciais. Meu pai era o único que tinha cavalos puxando o carroção. Os carroções seguiam em fila indiana e quando a caravana serpenteou e fez uma curva vi que os outros carroções eram puxados por bois. Três ou quatro parelhas de bois lutavam e puxavam cansadas cada carroção, e ao lado delas, na areia funda, caminhavam homens com aguilhões a incitar os animais relutantes. Numa curva contei os carroções à frente e atrás. Eu sabia que havia quarenta, incluindo o nosso; já tinha contado muitas vezes antes. E enquanto contava agora, num desejo infantil de espantar o tédio, lá estavam todos os quarenta, todos eles cobertos de lona, grandes e sólidos, toscos, rodando e vibrando, rangendo e gemendo sobre a areia, a artemísia e as pedras. A direita e à esquerda, espalhados ao longo da caravana, cavalgavam uns doze ou quinze homens e rapazes. Atravessados nos arções das selas, os rifles de cano longo. Sempre que algum deles se aproximava do nosso

carroção, eu podia ver que seu rosto sob a poeira estava tenso e ansioso como o do meu pai. E meu pai, como eles, dirigia com um rifle ao alcance da mão. E também a um lado se arrastavam uns vinte bois muito magros, machucados pela canga, com as patas feridas, que volta e meia paravam para pastar tufos de grama murcha e que eram sempre aguilhoados pelos meninos de rosto cansado que os guardavam. Às vezes um ou outro desses bois parava e mugia, e seu mugido parecia tão sinistro como todo o resto em volta de mim. Longe, muito longe, tenho uma lembrança de ter vivido, garotinho mais novo, às margens arborizadas de um riacho. E conforme o carroção vibra e sou sacudido na boléia com meu pai, volto continuamente e demoro a lembrança naquela água agradável a correr entre as árvores. Tenho a sensação de estar há um tempo interminável num carroção, viajando, viajando sempre, com essa caravana. Mas a impressão mais forte sobre mim é aquela que também atinge toda a caravana: a sensação de estar caminhando para a morte. Nossa marcha é como uma marcha fúnebre. Nunca uma gargalhada. Nunca uma voz alegre. A paz e a espontaneidade não viajavam conosco. O rosto dos homens e rapazes que cavalgavam ao lado dos carroções eram sombrios, fechados, desesperados. E enquanto abríamos caminho pela poeira sinistra do crepúsculo, muitas vezes esquadrinhei o rosto de meu pai buscando inutilmente alguma mensagem de alegria. Não vou dizer que o rosto de meu pai, com toda aquela tensão sob a poeira, era desesperado. Era um rosto perseverante, mas, ah, tão sombrio e principalmente tão ansioso. Uma comoção pareceu percorrer a caravana. A cabeça de meu pai se levantou. Também a minha. E nossos cavalos levantaram suas cabeças cansadas, cheiraram o ar com um resfolegar profundo e pela primeira vez puxaram com vontade. Os cavalos dos batedores apressaram o passo. E a manada de bois-espantalhos partiu num tropel vigoroso. Chegava a ser quase engraçado. Os coitados eram tão desajeitados na sua fraqueza e na sua pressa. Eram esqueletos galopantes envoltos em couro sarnento e se distanciaram dos meninos que os guardavam. Mas isso foi só no começo. Logo eles afrouxaram o passo, mas ainda um passo apressado e cheio de sede, arrastado e dolorido; e não se interessaram mais pelos magotes de grama ressecada. — O que foi?—perguntou minha mãe de dentro do carroção. — Água — foi a resposta de meu pai..— Deve ser Nephi. E minha mãe: — Graças a Deus! Tomara que eles vendam comida.

E em Nephi, através do pó vermelho-sangue, com rangidos e fricções e vibrações e embates, entraram nossos enormes carroções. Uma dúzia de casas ou cabanas espalhadas compunha o lugar. A paisagem era bem a mesma que atravessamos. Não tinha árvores, só arbustos e a aridez da areia. Mas aqui havia sinais de campos arados, com uma cerca aqui e ali. E também havia água. No rio não corria água, mas seu leito estava úmido, com um e outro olho-d'água onde os bois desatrelados e os cavalos de sela batiam os cascos e enfiavam os focinhos até os olhos. Aqui também crescia um e outro salgueiro mirrado. — Aquele deve ser o moinho do Bill Black de que falaram — disse meu pai, apontando uma construção para minha mãe, tão ansiosa que veio espiar sobre nossos ombros. Um velho com uma camisa de pele de gamo e cabelos longos, emaranhados e descorados pelo sol, cavalgou até nosso carroção e falou com papai. O sinal foi dado e os carroções da frente da caravana começaram a fazer a formação em círculo. O terreno favorecia a evolução e, pela longa prática, ela foi executada sem nenhuma dificuldade; assim, quando os quarenta carroções finalmente pararam, eles formavam um círculo. Tudo era uma febre de atividade e uma confusão organizada. Muitas mulheres, todas com o rosto cansado e empoeirado como minha mãe, saltavam dos carroções. E também se despejou um batalhão de crianças. Devia ter pelo menos umas cinqüenta e me parecia que eu conhecia todas elas há muito tempo; e pelo menos umas quarenta mulheres, que começaram a preparar o jantar. Enquanto alguns dos homens cortavam artemísia que as crianças carregavam para as fogueiras que estavam sendo acesas, outros homens desatrelaram os bois e os deixaram desabalar para a água. Depois os homens, em grupos grandes, moveram os carroções para a formação mais protegida. A lança de cada carroção ficava do lado de dentro do círculo e na frente e atrás cada carroção encostava-se firmemente nos carroções vizinhos. Os grandes freios foram engatados e, não contentes com isso, as rodas de todos os carroções foram unidas com correntes. Nada disso era novo para nós, crianças. Era o sinal de problemas num acampamento em terra hostil. Um carroção apenas foi deixado fora do círculo, formando um portão de entrada para o enclave. Mais tarde, como sempre, antes que o acampamento adormecesse, os animais seriam trazidos para dentro e aquele carroção acorrentado no lugar, como os outros. Enquanto isso, e durante horas, os

animais seriam guardados por homens e meninos, pastando qualquer grama escassa que pudessem encontrar. Enquanto a montagem do acampamento prosseguia, meu pai e vários outros dos homens, incluindo o velho de cabelos compridos e descorados pelo sol, foram a pé na direção do moinho. Lembro que todos nós, homens, mulheres e até mesmo as crianças, pararam para vê-los partir; e parecia que sua missão era da maior importância. Enquanto eles estavam fora, outros homens, estranhos, habitantes do deserto de Nephi, vieram ao acampamento, andando com arrogância. Eram homens brancos como nós, mas tinham rosto duro, rosto sério e sombrio, e pareciam furiosos com toda a nossa caravana. Havia hostilidade no ar e eles diziam coisas calculadas para fazer os nossos homens perderem a calma. Mas a advertência veio das mulheres e foi transmitida aos nossos homens e rapazes, de que não deveria ser dita palavra alguma. Um dos estranhos veio até nossa fogueira onde minha mãe estava sozinha cozinhando. Eu tinha acabado de chegar com uma braçada de artemísia e parei para ouvir e olhar fixa-mente o intruso que eu odiava porque odiar estava no ar, porque eu sabia que cada uma das pessoas na nossa caravana odiava esses estranhos que tinham a pele branca como nós e por causa deles fomos obrigados a formar nosso acampamento num círculo. Esse estranho ao lado da nossa fogueira tinha olhos azuis, duros e frios e penetrantes. Seu cabelo era cor de areia. O rosto era barbeado até o queixo, e, saindo de baixo do queixo e cobrindo o pescoço e indo até as orelhas, brotavam as suíças cor de areia salpicadas de fios cinzentos. Mamãe não o cumprimentou, nem ele a cumprimentou. Ele apenas ficou de pé e olhou ameaçador para ela por algum tempo. Então ele limpou a garganta e disse com um sorriso de desdém: — Aposto que o que a senhora queria era voltar pro Missouri, não é, dona? Vi mamãe apertar os lábios para se controlar e depois ela respondeu: — Somos do Arkansas. — Acho que a senhora tem um bom motivo para negar de onde vem, dona — disse ele a seguir —, vocês que expulsaram do Missouri o povo escolhido do Senhor. Mamãe não respondeu. — ... e agora — continuou ele, vendo que ela nada dizia — agora vocês aqui vêm choramingar e mendigar o pão da nossa mão que vocês perseguiram.

Diante disso, instantaneamente, criança que eu era, conheci a raiva, a velha e intolerante fúria sanguinária, sempre irreprimível e indomável. — O senhor está mentindo! — berrei. — A gente não é do Missouri. Não estamos choramingando nem mendigando. A gente tem dinheiro para comprar comida! — Cala a boca, Jesse! — gritou minha mãe, largando as costas da mão com força na minha boca. E então, para o estranho: —Vá embora daqui! Vá embora e deixe o menino em paz! — Vou te encher de chumbo, mórmon maldito! — gritei soluçando para ele, rápido demais para minha mãe dessa vez e pulando em volta da fogueira para fugir do golpe de sua mão. Quanto ao homem, minha conduta não o perturbou nem um pouco. Eu estava preparado para sei lá que violenta reação desse terrível estranho e observei-o com cautela enquanto ele me considerava com a maior gravidade. Afinal ele falou e falou com solenidade, com uma solene sacudida da cabeça como se estivesse pronunciando uma sentença. — Tal pai, tal filho — disse ele. — A nova geração é tão ruim como a velha. A raça toda é degenerada e amaldiçoada. Não há salvação, nem para os jovens, nem para os velhos. Não há expiação. Nem o sangue de Cristo pode lavar suas iniqüidades. — Maldito mórmon! — foi tudo que consegui soluçar para ele. — Maldito mórmon! Maldito mórmon! Maldito mórmon! E continuei a amaldiçoá-lo e a pular em volta do fogo, fugindo da mão punitiva de minha mãe, até que ele se foi a passos largos. Quando meu pai e os homens que o acompanhavam voltaram, o trabalho no acampamento parou e todos se reuniram ansiosos à sua volta. Ele sacudiu a cabeça. — Eles não vão vender? — perguntou uma mulher. Ele sacudiu de novo a cabeça. Um homem falou, um gigante de 30 anos, de olhos azuis e suíças louras, que abriu caminho abruptamente até o centro do grupo. — Eles dizem que têm farinha e provisões para três anos, Capitão — disse ele. — Antes eles sempre vendiam para os imigrantes. Mas agora não querem vender. O problema não é nós. A briga deles é com o governo e eles estão jogando a culpa em nós. Não está certo, Capitão. Não está certo, a gente aqui com as mulheres e crianças e a Califórnia a meses de viagem e o inverno chegando e nada a não ser deserto no meio. A gente não tem comida pra enfrentar o deserto.

Ele parou por um instante e se dirigiu ao grupo todo. — Amigos, vocês não sabem o que é o deserto. Isso aqui não é o deserto. Estou dizendo, isso aqui é o paraíso e os campos do céu e aqui corre leite e mel perto do que vocês vão ter de enfrentar. — Estou dizendo. Capitão, a gente precisa conseguir farinha primeiro. Se eles não quiserem vender, vamos lá tirar deles. Muitos dos homens e mulheres começaram a gritar em aprovação, mas meu pai os calou levantando a mão. — Concordo com tudo que você disse, Hamilton — começou ele. Mas os gritos abafavam sua voz e ele levantou novamente a mão. — Fora uma coisa que você se esqueceu de levar em conta, Hamilton, uma coisa que você e todos nós temos de levar em conta. Brigham Young declarou lei marcial aqui e Brigham Young tem um exército. A gente pode destruir Nephi enquanto uma cabra pisca um olho e pegar todas as provisões que der pra carregar. Mas a gente não vai carregar até muito longe, não. Os Santos de Brigham vão partir pra cima de nós e vão nos destruir enquanto a cabra pisca o outro olho. Eu sei. Eu sei e vocês todos sabem. Suas palavras traziam convicção a ouvintes já convencidos. O que ele dizia era coisa sabida. Só que esquecida num instante de excitação e no desespero da necessidade. — Ninguém ia mais rápido lutar pelo que é direito do que eu — continuou o pai. — Mas o que acontece é que a gente não pode se dar ao luxo de lutar agora. Se chegar a ter luta, não temos a menor chance. E todos tem de lembrar que tem as mulheres e as crianças. Temos de manter a paz a qualquer preço e agüentar o que der e vier. — Mas o que é que a gente vai fazer com esse deserto pela frente? — gritou uma mulher com um bebê no colo. — Tem muito povoado antes da gente chegar no deserto — respondeu papai. — Fillmore é cem quilômetros ao sul. Depois tem Corn Creek. E Beaver fica a outros 80 quilômetros. O seguinte é Parowan. Depois tem 30 quilômetros até Cedar City. Quando mais longe a gente estiver de Salt Lake, é mais provável que eles vendam provisões. — E se não venderem? — insistiu a mesma mulher. — Então a gente fica sem — disse meu pai. — Cedar City é o último povoado. O que a gente tem é que ir em frente e agradecer nossa boa estrela por estar indo pra longe deles. Dois dias de viagem adiante tem bom pasto e água. Eles chamam o lugar de Montes Meadows. Ali não vive ninguém, e nesse lugar a gente faz o gado descansar e deixa ele bem alimentado antes de

se meter no deserto. Talvez a gente consiga caçar alguma carne. E se a coisa piorar, a gente continua enquanto der, daí abandona os carroções, empilha o que puder nos animais e faz a última parte da viagem a pé. A gente pode comer o gado enquanto vai andando. E melhor chegar na Califórnia sem um trapo em cima do lombo do que deixar a ossada aqui. E é aqui que ela fica se a gente começar numa luta. Com novas advertências contra violência de palavra ou ato, a reunião improvisada se encerrou. Demorei para pegar no sono aquela noite. Minha raiva contra o mórmon tinha deixado meu cérebro em tal estado de agitação que eu ainda estava acordado quando meu pai rastejou para dentro do carroção depois de uma última inspeção dos vigias noturnos. Eles pensavam que eu dormia, mas ouvi mamãe lhe perguntar se ele achava que os mórmons nos deixariam partir em paz de suas terras. Ele estava de costas para ela, tirando as botas, e respondeu com voz confiante que tinha certeza de que os mórmons nos deixariam partir se ninguém da nossa caravana começasse a criar problema. Mas vi seu rosto naquele momento à luz da vela de sebo e nele nada havia da confiança que havia em sua voz. E foi assim que adormeci, oprimido pelo destino terrível que parecia estar suspenso sobre nós e pensando em Brigham Young, que crescia na minha imaginação infantil como um ser temível e mau, o próprio demônio com chifres e rabo e tudo. E despertei para a velha dor da camisa-de-força na solitária. A minha volta estavam os quatro de sempre: o Diretor Atherton, o Capitão Jamie, o Doutor Jackson e Al Hutchins. Rasguei o rosto com o sorriso da minha vontade e lutei para não perder o controle sob o agudo tormento da volta da circulação. Bebi a água que me trouxeram, abanei a cabeça diante do pão oferecido e me recusei a falar. Fechei os olhos e lutei para voltar ao círculo fechado dos carroções em Nephi. Mas enquanto meus visitantes ficavam ao meu redor e falavam, eu não podia escapar. Um fragmento de conversa não pude deixar de ouvir. — O mesmo que ontem — dizia o Doutor Jackson. — Nenhuma mudança, nem para melhor nem para pior. — Quer dizer que ele pode continuar? — perguntou o Diretor Atherton. — Sem se abalar. As próximas 24 horas tão fácil como as últimas. Ele é um louco, estou dizendo, um louco perfeito. Se eu não soubesse que era impossível, eu ia pensar que ele está dopado.

— Conheço a droga que ele toma — disse o Diretor. — É essa maldita vontade dele. Aposto que se ele quisesse, podia caminhar descalço em cima de pedras em brasa como aqueles sacerdotes kanaka dos Mares do Sul. Foi talvez a palavra “sacerdotes” que levei comigo pelas trevas de um outro vôo no tempo. Ela foi, talvez, a deixa. O mais provável é que tenha sido uma mera coincidência. De qualquer modo, despertei sobre um áspero chão de pedras, deitado de costas, meus braços cruzados de tal maneira que cada cotovelo repousava na palma da mão oposta. Enquanto ali estava, olhos fechados, semidesperto, esfreguei os cotovelos com as mãos e descobri que esfregava enormes calosidades. Não houve surpresa nisso. Aceitei os calos como coisas antigas e naturais. Abri os olhos. Meu abrigo era uma pequena caverna, não mais que um metro de altura e quatro de comprimento. Estava muito quente na caverna. Gotas de suor cobriam toda a superfície do meu corpo. De vez em quando, várias gotas se uniam e formavam pequenos regatos. Eu não vestia roupa alguma, exceto um trapo imundo em volta dos quadris. Minha pele estava queimada até um marrom de mogno. Eu era muito magro e contemplei minha magreza com uma estranho sensação de orgulho, como se fosse um feito heróico ser assim tão magro. Eu sentia um amor especial pelas minhas costelas dolorosamente salientes. A simples vista das cavidades entre elas dava-me um sentimento de solene exaltação — ou antes, para usar uma palavra melhor, de santificação. Meus joelhos eram calosos como meus cotovelos. Eu estava muito sujo. Minha barba, evidentemente um dia loura, mas agora de um marrom sujo e manchado, caía sobre meu ventre numa massa desgrenhada. Meus cabelos, longos e também manchados e emaranhados, cobriam meus ombros enquanto algumas mechas viviam a me atrapalhar a visão, e eu era às vezes obrigado a afastá-las para o lado com as mãos. A maior parte do tempo, no entanto, eu me contentava em espiar através delas, como um animal selvagem a espreitar por trás de uma moita. Na boca estreita da minha caverna escura, o dia levantou-se como um muro de luz ofuscante. Depois de algum tempo, rastejei até a entrada e, em nome de um sofrimento maior, deitei-me ao sol inclemente sobre uma estreita saliência de pedra. Ele realmente assava minha carne, aquele sol terrível, e quanto mais ele me feria mais eu me alegrava com ele — ou melhor, comigo mesmo, pois eu era assim o mestre da minha carne e superior às suas exigências e protestos. Quando encontrava debaixo de mim uma projeção rochosa particularmente afiada, mas não afiada demais, eu esmagava meu

corpo sobre ela e supliciava minha carne num verdadeiro êxtase de domínio e purificação. Era um dia de calor estagnante. Nem um sopro de ar se movia sobre o vale do rio, onde eu às vezes lançava o olhar. Centenas de metros abaixo de mim, o grande rio fluía vagaroso. A praia da outra margem era plana e arenosa e se estendia até o horizonte. Mais além, havia grupos esparsos de palmeiras. Do meu lado havia altos penhascos a se desintegrar e onde a erosão das águas cavou uma reentrância. Mais além, ao longo dessa curva, em plena vista da minha morada panorâmica, escavadas na rocha viva, havia quatro figuras colossais. A estatura de um homem chegava até a altura de seus tornozelos. Os quatro colossos estavam sentados, as mãos repousando nos joelhos, os braços já desmoronados, e lançavam o olhar sobre o rio. Isto é, três deles olhavam. Do quarto, tudo o que restava eram as pernas e as mãos gigantescas repousando sobre os joelhos. Aos pés desse colosso agachava-se uma esfinge, ridiculamente pequena mas que, mesmo assim, era mais alta do que eu. Olhei essas imagens esculpidas e cuspi com desprezo. Eu não sabia o que elas um dia foram, se deuses olvidados ou reis caídos no esquecimento. Para mim elas representavam a vaidade e a futilidade de homens mundanos e aspirações mundanas. E sobre toda essa curva do rio, sobre a vastidão das águas e a larga faixa de areia, arqueava-se um céu de bronze latejante sem sequer uma nuvem. As horas passavam enquanto eu me cozia ao sol. Muitas vezes, a intervalos decentes, eu esquecia o calor e a dor em sonhos e visões e em lembranças. Isso tudo, eu sabia — colossos se desintegrando, rio, areia, sol, céu metálico — iria passar num piscar de olho. A qualquer momento, as trombetas dos arcanjos soariam, as estrelas cairiam do firmamento, os céus se abririam como um pergaminho e o Senhor Deus de todos os homens viria com Suas hostes para o Julgamento Final. Ah, eu o sabia, tão bem eu o sabia que estava pronto para esse dia tão sublime. Era por isso que eu aqui estava, em trapos, na sujeira e na miséria. Eu fui manso e humilde; eu desprezei as fraquezas e as tentações da carne. E eu pensava com desprezo, e com certa satisfação, nas distantes cidades da planície que havia conhecido, todas elas desatentas, em sua pompa e luxúria, ao dia do Juízo tão próximo. Bem, elas logo veriam... mas seria tarde demais para elas. E eu também veria... mas eu estava pronto. E ao som de seus gritos e lamentações eu me levantaria, renascido e glorioso, e tomaria meu assento merecido e legítimo na Cidade do Senhor.

Às vezes, entre sonhos e visões nas quais eu estava, verdadeiramente e antes da minha hora, na Cidade do Senhor, eu repassava na mente antigas discussões e controvérsias. Sim, Novatus estava certo quando defendeu que apóstatas penitentes jamais deveriam ser recebidos novamente nas igrejas. Sim, e não havia dúvida de que o sabelianismo foi concebido pelo demônio. Como também o foi Constantino, o arquiinimigo, a mão direita do demônio. Continuamente eu voltava a meditar sobre a natureza da unidade de Deus e passava e repassava as afirmações de Noetus, o Sírio. No entanto, o que eu mais apreciava eram as afirmações do meu amado mestre, Arius. Na verdade, se a razão humana pudesse chegar a determinar alguma coisa, certamente houve um tempo, na própria natureza da filiação, em que o Filho não existia. Na natureza da filiação, deveria ter havido um tempo em que o Filho começou a existir. Um pai precisa ser mais velho que seu filho. Sustentar o contrário seria uma blasfêmia, seria diminuir Deus. E relembrei meus dias de juventude, quando sentava aos pés de Arius, que fora um presbítero da cidade de Alexandria e cujo bispado foi-lhe roubado pelo blasfemo e herético Alexandre. Alexandre, o sabeliano, isso é o que ele era, e seus pés se apoiavam no próprio inferno. Sim, estive no Concilio de Nicéia e vi o assunto ser evitado. E lembro quando o Imperador Constantino baniu Arius por sua retidão moral. E lembro quando Constantino arrependeu-se por razões de estado, por razões políticas, e ordenou a Alexandre — o outro Alexandre, três vezes maldito. Bispo de Constantinopla — receber Arius em comunhão no dia seguinte. E, naquela mesma noite, não morreu Arius nas ruas? Disseram que uma doença violenta o puniu em resposta às preces de Alexandre a Deus. Mas eu afirmei, e assim afirmaram todos os seguidores de Arius, que a doença violenta se devia a um veneno e que o veneno se devia ao próprio Alexandre, Bispo de Constantinopla e diabólico envenenador. E esmago meu corpo mais e mais contra as pedras agudas e murmuro, embriagado de convicção: — Deixai judeus e pagãos escarnecerem. Deixai-os triunfar, pois seu tempo é curto. E para eles não haverá um tempo depois do tempo. Eu falava bastante em voz alta comigo mesmo naquela plataforma rochosa sobranceira ao rio. Eu estava febril e, às vezes, bebia frugalmente a água de um fedorento odre de pele de cabra. Esse odre eu deixava pendurado ao sol, para que o fedor do couro aumentasse e não houvesse nenhum frescor na água. Comida havia, sobre a sujeira do chão da minha caverna: algumas

raízes e um pedaço mofado de bolo de cevada; e faminto eu estava, mas nada comia. Tudo que fiz durante todo aquele dia abençoado foi suar e arder de calor ao sol, mortificar minha carne magra sobre a pedra, olhar para a desolação, ressuscitar antigas lembranças, sonhar sonhos e murmurar minhas convicções. E quando o sol se pôs, na rápida luz do crepúsculo lancei um último olhar ao mundo que logo chegaria ao fim. Aos pés dos colossos, eu podia entrever as formas agachadas das bestas entocadas nos monumentos que foram, um dia, orgulho dos homens. E ao som dos rosnados das bestas rastejei para o meu buraco e, murmurando e dormitando, tendo visões de fantasias febris e rezando para que o dia do Juízo chegasse depressa, escorreguei para as trevas do sono. A consciência retomou a mim na solitária, com o quarteto de torturadores à minha volta. — Blasfemo e herético diretor de San Quentin, cujos pés se apóiam no próprio inferno — zombei, depois de tomar um longo gole da água trazida aos meus lábios. — Deixai carcereiros e encarregados triunfarem, pois seu tempo é curto. E para eles não haverá um tempo depois do tempo. — Perdeu o juízo — afirmou o Diretor Atherton. — Ele está é fingindo — foi o seguro julgamento do Doutor Jackson. — Mas ele recusa comida — protestou o Capitão Jamie. — Bolas, ele podia jejuar quarenta dias que não acontecia nada — respondeu o médico. — E quarenta dias jejuei — exclamei — e também quarenta noites. Querem fazer o favor de apertar a camisa-de-força e dar o fora daqui? O encarregado-chefe tentou enfiar o polegar por baixo das Cordas. — Não dá pra tirar nem um centímetro de folga, mas nem com um calço e uma alavanca — garantiu ele. — Você tem alguma queixa a fazer, Standing? — perguntou o Diretor. — Sim — respondi. — Duas. — E quais são? — Primeiro — eu disse — a camisa-de-força está abominavelmente frouxa. Hutchins é um idiota. Ele conseguiria tirar dois centímetros de folga se quisesse. — E a outra? — perguntou o Diretor Atherton. — Que o senhor foi concebido pelo demônio, Diretor.

O Capitão Jamie e o Doutor Jackson abafaram uma risadinha nervosa e o Diretor, bufando, liderou o caminho para fora da minha cela. Deixado sozinho, lutei para entrar nas trevas e voltar ao círculo de carroções em Nephi. Eu estava interessado em saber o resultado daquele avanço fatídico dos quarenta carroções através de uma terra desolada e hostil; e não estava nem um pouco interessado no que teria acontecido ao eremita sarnento com suas costelas arranhadas pelas pedras e seu odre fedorento. E voltei, não a Nephi nem ao Nilo, mas ao... Mas aqui preciso fazer uma pausa na narrativa, meu leitor, para explicar algumas coisas e tomar o assunto mais acessível à sua compreensão. Isso é necessário, porque meu tempo para completar minhas lembranças da camisade-força é curto. Muito em breve, muitíssimo em breve, eles vão me levar e me enforcar. Mesmo que eu tivesse todo o tempo de mil vidas, eu não poderia completar os últimos detalhes das minhas experiências na camisa-de-força. Preciso, portanto, abreviar minha narrativa. Primeiro, Bergson está certo. A vida não pode ser explicada em termos intelectuais. Como disse Confúcio há muito tempo: “Quando somos tão ignorantes da vida, podemos conhecer a morte?” E ignorantes da vida somos quando, na verdade, não podemos explicá-la em termos de compreensão. Conhecemos a vida apenas como fenômeno (do mesmo modo que um selvagem conhece um dínamo) e nada conhecemos da vida como número, nada conhecemos sobre a natureza da substância intrínseca da vida. Segundo, Marinetti está errado quando afirma que a matéria é o único mistério e a única realidade. Eu digo — e como você, meu leitor, percebe, eu falo com autoridade — eu digo que a matéria é a única ilusão. Comte queimou o mundo, que é equivalente à matéria, o grande fetiche; e concordo com Comte. E a vida que é a realidade e o mistério. A vida é totalmente diferente de mera matéria química a fluir em elevadas manifestações de movimento. A vida permanece. A vida é o fio de fogo que permanece através de todas as manifestações da matéria. Eu sei. Eu sou vida. Eu vivi dez mil gerações. Eu vivi milhões de anos. Eu habitei muitos corpos. Eu, o possuidor desses muitos corpos, permaneço. Eu sou vida. Eu sou a chama inextinguível sempre a brilhar e a assombrar a face do tempo, sempre a trabalhar minha vontade e a descarregar minha paixão nos agregados terrenos de matéria, chamados corpos, que transitoriamente habitei. Veja. Este dedo meu, tão rápido na sensação, tão sutil no tato, tão delicado em suas múltiplas habilidades, tão firme e forte para dobrar e curvar as coisas ou esticá-las com astuta destreza — esse dedo não é eu. Corte-o fora.

Eu vivo. O corpo é mutilado. Eu não sou mutilado. O espírito que sou eu está inteiro. Pois bem. Corte fora todos os meus dedos. Eu sou eu. O espírito está inteiro. Corte minhas mãos. Corte meus braços pelos ombros. Corte minhas pernas pelos quadris. E eu, o eu inconquistável e indestrutível, sobrevivo. Serei menor por causa dessas mutilações, dessas subtrações da carne? Certamente que não. Raspe meu cabelo. Com navalhas afiadas, corte fora meus lábios, meu nariz, minhas orelhas — ai de mim, e ar-ranque meus olhos das órbitas; e ali, confinado naquele crânio sem feições ligado a um tronco mutilado e injuriado, ali, naquela prisão da carne química, ainda estarei eu, não-mutilado, não-diminuído. Ah, mas o coração ainda bate. Pois bem. Arranque o coração; ou melhor, jogue esse resto de carne num moedor — e eu, eu, você entende?, todo o espírito e o mistério e o fogo vital e a vida de mim, estarei fora dali. Eu não pereci. Apenas o corpo pereceu, e o corpo não sou eu. Acredito que o Coronel de Rochas estava certo quando afirmou que, sob a compulsão de sua vontade, enviou Josephine, em transe hipnótico, de volta através dos 18 anos que ela tinha vivido, de volta através do silêncio e das trevas de antes de seu nascimento, de volta à luz de uma existência anterior onde ela foi um velho entrevado, o ex-artilheiro Jean-Claude Bourdon. E acredito que o Coronel de Rochas realmente hipnotizou essa sombra ressuscitada do velho Bourdon e, pela compulsão da vontade, enviouo de volta através dos 70 anos de sua vida, de volta às trevas e, através das trevas, à luz do dia em que ele foi a velha e perversa Philoméne Carteron. Já não lhe mostrei, meu leitor, que em tempos anteriores, habitando vários agregados terrenos de matéria, eu fui o Conde Guillaume de SainteMaure, fui um eremita sarnento e sem nome no Egito, fui o garoto Jesse, cujo pai liderava quarenta carroções na grande emigração para o Oeste? E também não sou agora, enquanto escrevo estas linhas, Darrell Standing, sob sentença de morte na Prisão de Folsom e antigo professor de agronomia na Escola de Agricultura da Universidade da Califórnia? A matéria é a grande ilusão. Isto é, a matéria se manifesta na forma e a forma é apenas uma aparição. Onde estão agora os penhascos a se desintegrar do velho Egito, onde uma vez me encavernei como uma besta selvagem, a delirar com a Cidade do Senhor? Onde está agora o corpo de Guillaume de Sainte-Maure, atravessado sobre a relva enluarada pelo florete do ruivo Guy de Villehardouin? Onde estão agora os quarenta carroções em Nephi, e todos os homens e mulheres e crianças e o gado esquelético que se abrigavam

dentro daquele círculo? Todas essas coisas não existem mais, pois foram apenas formas, manifestações da matéria a fluir, antes de se dissolverem mais uma vez no fluxo. Elas passaram, elas não mais existem. E agora meu argumento fica claro. O espírito é a realidade que permanece. Eu sou espírito, e eu permaneço. Eu, Darrell Standing, o inquilino de tantas habitações de carne, escreverei mais algumas poucas linhas dessas memórias e então seguirei meu caminho. A forma de mim que é meu corpo se desfará quando for suficientemente pendurada pelo pescoço e dela nada restará no mundo da matéria. No mundo do espírito, a memória dela permanecerá. A matéria não tem memória, pois suas formas são evanescentes, e aquilo que está gravado em suas formas com elas perece. Uma palavra mais, antes que eu volte à minha narrativa. Em todas as minhas jornadas através das trevas para outras vidas que foram minhas, nunca fui capaz de guiar qualquer jornada a um destino específico. Assim, revivi muitas novas experiências de antigas vidas antes de ter a chance de voltar ao garoto, Jesse, em Nephi. Ao todo, talvez revivi as experiências de Jesse umas vinte vezes, ora retomando sua carreira quando ele era pequenino nos povoados do Arkansas, ora passando além do ponto em que o deixei em Nephi. Seria desperdício de tempo detalhar todas elas; e assim, sem prejuízo da veracidade do meu relato, vou omitir muita coisa que é vaga e tortuosa e repetitiva e contar os fatos na ordem em que os coloquei, no todo e nos detalhes, depois de revivê-los.

CAPITULO 13 Bem antes do nascer do dia, já nosso acampamento em Nephi se movimentava. O gado foi levado para beber água e pastar. Enquanto os homens tiravam as correntes das rodas e separavam os carroções para armar as parelhas, as mulheres preparavam quarenta refeições sobre quarenta fogueiras. As crianças, no frio da madrugada, acocoravam-se ao redor do fogo, dividindo o lugar, aqui e ali, com o último turno do plantão noturno esperando sonolento pelo café. É preciso tempo para pôr em movimento uma caravana grande como a nossa, porque sua velocidade é a velocidade do mais vagaroso. Assim, já fazia uma hora que o sol tinha nascido e o calor já estava desagradável quando rodamos para fora de Nephi e para os areais tórridos. Nenhum habitante do lugar despediu-se de nós. Todos preferiram ficar dentro de suas casas, e assim tomaram nossa partida tão sinistra como tinham tomado nossa chegada no entardecer da véspera. Mais uma vez foram longas horas de calor abrasador, aquele pó penetrante, artemísia e areia, e uma terra amaldiçoada. Nenhuma habitação humana, nem gado nem cercas, nenhum sinal de humanidade, nada encontramos durante todo aquele dia; e à noite formamos nosso círculo de carroções ao lado de um riacho seco e na sua areia tímida cavamos muitos buracos que vagarosamente se encheram com infiltrações d'água. Nossa jornada subseqüente será sempre uma experiência fragmentária para mim. Armamos acampamento tantas vezes, sempre com os carroções em círculo, que, para a minha mente infantil, um tempo muito longo e cansativo se passou depois de Nephi. Mas sempre, pairando sobre todos nós, estava aquela sensação de caminhar para a morte iminente e certa. Nossa média era de 25 quilômetros por dia. Eu sei, por que meu pai disse, que eram cem quilômetros até Fillmore, o povoado mórmon seguinte, e armamos três acampamentos no caminho. Isso significava quatro dias de viagem. De Nephi até o último acampamento de que tenho qualquer lembrança, devemos ter levado duas semanas ou um pouco menos. Em Fillmore, os habitantes foram hostis, como todos tinham sido desde Salt Lake. Riram de nós quando tentamos comprar comida e não deixaram de escarnecer de nós dizendo que somos do Missouri. Quando entramos no lugar, amarrados diante da maior das doze casas que compunham o povoado estavam dois cavalos selados, empoeirados,

escorrendo suor e cansados. O velho que já mencionei, aquele com os cabelos compridos descorados pelo sol e a camisa de pele de gamo e que parecia uma espécie de ajudante ou lugar-tenente de papai, cavalgou até o nosso carroção e indicou os animais cansados com um aceno de cabeça. — Não estão economizando cavalo, Capitão — falou em voz baixa. — E se não for de nós, atrás de quem, em nome de Sam Hill, eles vão estar correndo tanto assim? Mas meu pai já tinha notado o estado dos dois cavalos, e meus olhos ávidos perceberam. E vi seus olhos flamejarem, seus lábios se apertarem e linhas de tensão se formarem por um instante sobre seu rosto empoeirado. Isso foi tudo. Mas eu somei dois com dois e entendi que os dois cavalos exaustos eram apenas mais um toque sinistro acrescentado à situação. — Acho que eles estão de olho em nós, Laban — foi o único comentário de meu pai. Foi em Fillmore que vi um homem que depois veria novamente. Era alto, de ombros largos, já na meia-idade, com toda a evidência de boa saúde e imensa força; força não só do corpo, mas de vontade. Ao contrário da maioria dos homens que eu estava acostumado a ver, ele não usava barba. O pêlo crescido de vários dias mostrava que ele já era bastante grisalho. Sua boca era muito larga e os lábios finos apertados para dentro como se ele tivesse perdido muitos dos dentes da frente. Nariz largo, quadrado e grosso. O rosto também era quadrado e largo, embaixo uma mandíbula forte e em cima uma testa ampla e inteligente. E os olhos, miúdos, pouco mais que a largura de um olho, eram do azul mais azul que eu já tinha visto. Foi no moinho de trigo em Fillmore que vi esse homem pela primeira vez. Papai, com muitos do nosso grupo, tinha ido até lá para tentar comprar farinha e eu, desobedecendo à minha mãe na minha curiosidade de ver mais de perto nossos inimigos, juntei-me a eles sem ser percebido. Esse homem era um dos quatro ou cinco que estavam com o moleiro durante a conversa. — Viu aquele sujeito de cara lisa? — perguntou Laban a papai, depois que saíram do moinho e estavam voltando ao acampamento. Papai disse que sim. — Bom, aquele é Lee — continuou Laban. — Vi ele em Salt Lake. Um bom filho da mãe. Tem dezenove esposas e cinqüenta filhos, é o que dizem. E é um fanático em religião. Agora, por que é que ele está seguindo a gente nessa terra esquecida por Deus? Nossa jornada, cansativa e fatídica, continuou. Os pequenos povoados, onde quer que a água e o solo permitiam, eram apartados por 30 a 80

quilômetros. Entre eles se estendia a aridez da areia, o álcali e a seca. E, em cada povoado, nossas pacíficas tentativas de comprar comida eram vãs. Eles se negavam a vender, com aspereza, e queriam saber quem de nós tinha vendido comida a eles quando os expulsamos do Missouri. Não adiantava dizer-lhes que somos do Arkansas. Do Arkansas realmente somos, mas eles insistiam que somos do Missouri. Em Beaver, a cinco dias de jornada de Fillmore para o sul, vimos Lee novamente. E também os cavalos exaustos atados diante das casas. Mas não vimos Lee em Parowan. Cedar City era o último povoado. Laban, que tinha galopado na frente, voltou e fez seu relatório a papai. Sua primeira notícia foi significativa. — Vi o Lee se afastando a galope quando entrei na cidade, Capitão. E tem mais homem e cavalo em Cedar City do que cabe morando lá. Mas não tivemos qualquer problema no povoado. Além de se recusar a nos vender comida, eles nos deixaram em paz. As mulheres e crianças ficaram dentro das casas, e embora alguns dos homens aparecessem de vez em quando, eles não entraram no nosso acampamento nem escarneceram de nós como nas ocasiões anteriores. Foi em Cedar City que o bebê dos Wainwright morreu. Lembro-me da Sra. Wainwright chorando e suplicando a Laban que tentasse conseguir um pouco de leite de vaca. — Pode salvar a vida do meu bebê — disse ela. — E eles têm leite de vaca. Eu vi vacas gordas com meus próprios olhos. Vá, Laban, por favor. Não custa tentar. O pior que eles fazem é recusar. Mas eles não vão recusar. Diga que é pra um bebê, um bebezinho. As mulheres mórmons têm coração de mãe. Elas não vão recusar uma caneca de leite para um bebezinho. E Laban tentou. Mas, como contou depois ao pai, ele não chegou a ver nenhuma mulher mórmon. Só viu os homens mórmons, que lhe viraram as costas. Esse era o último posto avançado mórmon. Depois dele só havia a desolação do deserto; no outro lado dele, a terra dos sonhos, pobres de nós, a terra lendária da Califórnia. Enquanto nossos carroções saíam do povoado no início da manhã, eu, sentado ao lado de meu pai, vi Laban dar expressão aos seus sentimentos. Rodamos talvez um quilômetro, e estávamos chegando ao topo de uma pequena elevação que esconderia Cedar City de vista quando Laban virou seu cavalo, parou-o e ficou de pé no estribo. Onde ele parou havia um túmulo recente e eu entendi que era o bebê dos Wainwright — não o primeiro dos nossos túmulos desde que cruzamos os Montes Wasatch.

Laban era uma figura estranha. Envelhecido e magro, de cara comprida e encovada, com o cabelo emaranhado e descorado pelo sol caindo sobre os ombros de sua camisa de pele de gamo, seu rosto estava distorcido pelo ódio e pela fúria impotente. Segurando o rifle no arção da sela, ele sacudiu o punho para Cedar City. — Que a maldição de Deus caia sobre todos vocês — gritou. — Sobre seus filhos e seus bebês que ainda não nasceram. Que a seca destrua suas plantações. Que vocês comam areia temperada com veneno de cascavel. Que a água doce de suas fontes se transforme em álcali amargo. Que... Suas palavras se tomaram indistintas quando nossos carroções se puseram em marcha; mas seus ombros levantados e o punho brandido mostravam que ele tinha apenas começado a lançar sua maldição. Ficou evidente que ele expressava o sentimento geral da nossa caravana quando muitas mulheres se inclinaram nos carroções, agitando os braços descarnados e sacudindo punhos ossudos e deformados pelo trabalho contra o último dos redutos mórmons. Um homem, que caminhava na areia e espicaçava os bois do carroção atrás do nosso, riu e sacudiu seu aguilhão. Foi incomum aquele riso porque fazia muito tempo que não havia uma risada na nossa caravana. — Manda eles pro inferno, Laban — encorajou. — É disso que precisa mesmo. E enquanto a caravana seguia em frente continuei a olhar para o Laban, de pé nos estribos, ao lado do túmulo do bebê. Na verdade, ele era uma estranha figura com seu cabelo comprido, seus mocassins e suas calças franjadas. Tão velha e batida era a sua camisa de pele de gamo que pontas esfiapadas mostravam aqui e ali onde franjas orgulhosas um dia estiveram. Ele era o homem dos fiapos esvoaçantes. Lembro que na sua cintura balançavamse tufos sujos de cabelo que, lá no começo da nossa jornada, depois de uma pancada de chuva, costumavam ser de um preto brilhante. Eu sabia que eram escalpos de índios, e olhar para eles sempre me deixava excitado. — Vai fazer bem pra ele — aprovou o pai, mais para si mesmo que para mim. — Faz dias que eu estava esperando ele explodir. — Eu queria é que ele voltasse e pegasse mais um par de escalpos — aventurei-me a dizer. Meu pai me lançou um olhar interrogativo. — Não gosta dos mórmons, hein, filho? Sacudi a cabeça e senti transbordar o ódio inarticulado que tomava conta de mim.

— Quando eu crescer — disse, depois de um instante — vou atrás deles e vou encher eles de chumbo. — Você aí, Jesse, cala já essa boca — veio a voz de minha mãe de dentro do carroção e, depois, para meu pai. — Você devia ter vergonha de deixar o menino falar desse jeito. Dois dias de viagem nos trouxeram aos Montes Meadows e aqui, bem longe do último povoado, pela primeira vez não formamos o círculo de carroções. Os carroções estavam mais ou menos num círculo, mas havia inúmeras brechas e as rodas não foram acorrentadas. Foram feitos preparativos para uma parada de uma semana. O gado precisava descansar para o verdadeiro deserto, embora isso aqui já fosse deserto suficiente em todos os sentidos. As mesmas colinas de areia estavam à nossa volta, mas agora eram cobertas por um matagal ralo. O chão ainda era arenoso, mas havia alguma grama; mais do que encontramos havia muito tempo. A uns 30 metros do acampamento tinha uma pequena nascente que mal satisfazia as necessidades humanas. Mas ao longo da ravina várias outras pequenas nascentes brotavam das encostas e era nelas que o gado bebia. Armamos acampamento ainda cedo e, por causa do programa de ficar uma semana, houve uma vistoria geral de roupas sujas pelas mulheres que planejavam começar a lavá-las no dia seguinte. Todo mundo trabalhou até o cair da noite. Enquanto alguns dos homens consertavam arreios, outros reparavam os caixilhos e ferragens dos carroções. Houve muito aquecer e martelar de ferro e apertar de roscas e parafusos. E lembro que me aproximei do Laban, sentado de pernas cruzadas à sombra de um carroção e costurando, até o cair da noite, um novo par de mocassins. Ele era o único homem no nosso comboio que usava mocassins e pele de gamo e eu tenho a impressão de que ele não pertencia ao nosso grupo quando deixamos o Arkansas. E ele também não tinha mulher nem família, nem um carroção dele mesmo. Tudo que ele possuía era o cavalo, o rifle, a roupa do corpo e um par de cobertores que eram guardados no carroção dos Mason. Foi na manhã seguinte que a desgraça caiu sobre nós. A dois dias de distância do último posto avançado mórmon, sabendo que não havia índios por ali e não tendo visto sinal algum de índios, pela primeira vez não acorrentamos nossos carroções num círculo fechado, não pusemos guarda no gado nem estabelecemos vigilância noturna. Meu despertar foi como um pesadelo. Chegou como uma repentina explosão de sons. No primeiro instante, só fiquei acordado como um bobo e não fiz nada a não ser tentar analisar e identificar os vários sons que

compunham aquela explosão ininterrupta. Eu ouvia os disparos de rifles, próximos e distantes, os brados e imprecações dos homens, os gritos das mulheres e os berros das crianças. Então percebi o impacto e o zunido das balas que atingiam a madeira e o ferro das rodas e da estrutura do carroção. Quem quer que estivesse atirando, estava mirando baixo. Quando comecei a me levantar, minha mãe, que estava se vestindo quando o ataque começou, apertou-me contra o chão com as mãos. Papai, já de pé lá fora, nessa altura irrompeu no carroção. — Saiam! — gritou. — Depressa! Pro chão! Ele não perdeu tempo. Com um agarrão feito anzol, que de tão rápido mais pareceu um murro, ele me atirou pela traseira do carroção. Mal tive tempo de me arrastar dali quando papai, mamãe e o bebê vieram numa confusão de ponta cabeça onde eu tinha estado. — Vem cá, Jesse! — papai gritou para mim e fui ajudá-lo a escavar a areia atrás da proteção de uma das rodas do carroção. Trabalhamos com as mãos nuas e depressa. Mamãe juntou-se a nós. — Continue e cave mais fundo, Jesse — ordenou papai. Ele se levantou e precipitou-se na luz acinzentada, gritando ordens enquanto corria. (Eu agora já sabia meu sobrenome. Eu era Jesse Fancher. Meu pai era o Capitão Fancher). — Fiquem deitados — ouvi meu pai gritar. — Vão pra trás das rodas e façam um buraco na areia! Os homens casados tirem as mulheres e crianças dos carroções! Suspendam o fogo! Parem de atirar! Suspendam o fogo e fiquem prontos pro ataque! Os homens solteiros vão pra junto do Laban à direita, do Cochrane à esquerda e comigo no centro! Não fiquem de pé! Vão rastejando! Mas não veio nenhum ataque. Durante um quarto de hora o tiroteio pesado e irregular continuou. Nossas perdas aconteceram nos primeiros momentos de surpresa, quando muitos dos homens que acordaram cedo foram pegos expostos à luz das fogueiras que estavam acendendo. Os índios — pois o Laban declarou que eram índios — tinham nos atacado no aberto e estavam agachados e atirando em nós. À luz crescente, papai aprontou-se para eles. A posição de papai era próxima do lugar onde eu estava, no buraco com a mãe, e ouvi quando ele gritou: — Agora! Todos juntos! Da esquerda, da direita e do centro, nossos rifles dispararam numa descarga. Levantei a cabeça para espiar e percebi mais de um índio atingido. O

fogo deles cessou de imediato e pude vê-los recuando pelo descampado, arrastando consigo seus mortos e feridos. Pusemo-nos ao trabalho no mesmo instante. Enquanto os carroções eram arrastados e acorrentados no círculo, com as lanças para dentro — vi mulheres e meninos e meninas fazendo força sobre os raios das rodas, para ajudar — fizemos um levantamento das nossas baixas. Primeiro e mais grave que tudo, nossos últimos animais tinham fugido. Depois, deitados ao lado das fogueiras que estiveram acendendo, sete dos nossos homens: quatro mortos e três moribundos. Outros homens, feridos, estavam sendo tratados pelas mulheres. O pequeno Rish Hardacre foi atingido no braço por uma bala. Ele não tinha mais que seis anos e lembro que fiquei olhando, de boca aberta, enquanto sua mãe o segurava no colo e seu pai fazia um curativo no ferimento. O pequeno Rish parou de chorar. Vi as lágrimas em seu rosto enquanto ele olhava espantado uma lasca de osso quebrado saindo de seu antebraço. A avó White foi encontrada morta no carroção dos Foxwell. Era uma velha gorda e inútil que não fazia nada, só sentava e fumava um cachimbo. Era a mãe de Abby Foxwell. E a Sra. Grant foi morta. O marido sentou ao lado de seu corpo. Ele estava muito quieto. Não havia lágrimas em seus olhos. Ele só ficou sentado ali, o rifle atravessado sobre os joelhos, e todos o deixaram em paz. Sob as ordens de papai, todo mundo trabalhou como castores. Os homens cavaram um buraco fundo no centro do enclave e fizeram um anteparo com a areia removida. Para esse abrigo as mulheres arrastaram cobertores, comida e todo tipo de coisas necessárias dos carroções. Todas as crianças ajudaram. Não havia choramingos, e só pouca ou nenhuma excitação. Havia trabalho para ser feito e nós somos gente nascida para trabalhar. O abrigo no centro era para as mulheres e crianças. Sob os carroções, ao redor do círculo todo, os homens cavaram uma trincheira rasa protegida por um anteparo de areia. Esse era o lugar dos combatentes. Laban voltou de um reconhecimento. Informou que os índios tinham recuado um quilômetro e estavam fazendo um pow-wow. Ele também viu os índios carregarem seis dos seus homens do campo de batalha; três deles, disse Laban, liquidados. De tempos em tempos, durante a manhã daquele primeiro dia, observamos nuvens de poeira que indicavam a movimentação de um número considerável de cavaleiros. Essas nuvens de poeira vinham na nossa direção e nos cobriam por todos os lados. Mas não vimos uma única criatura viva. Uma

única nuvem de poeira, apenas, movia-se para longe de nós. Era uma nuvem grande, e todos disseram que era o nosso gado sendo levado embora. E os nossos quarenta carroções, que tinham rodado sobre as Montanhas Rochosas e através de metade do continente, estavam parados num círculo impotente. Sem bois, eles não podiam seguir em frente. Ao anoitecer, o Laban chegou de outro reconhecimento. Ele tinha visto mais índios chegando do sul, mostrando que o cerco estava sendo fechado. Foi nesse momento que vimos uma dúzia de homens brancos galoparem sobre a crista de uma colina a leste, olhando para nós cá embaixo. — Isso explica tudo — disse Laban a papai. — Foram eles que incitaram os índios. — Eles são brancos como nós — ouvi Abby Foxwell queixar-se a mamãe. — Por que não vêm nos ajudar? — Eles não são brancos — meti o bedelho, com um olho atento ao ataque rápido da mão de mamãe. — São mórmons. Aquela noite, depois de escurecer, três dos nossos rapazes esgueiraramse do acampamento. Eu os vi sair. Eram Will Aden, Abel Milliken e Timothy Grant. — Eles vão até Cedar City buscar ajuda — disse papai a mamãe, enquanto comia apressado alguma coisa. Mamãe sacudiu a cabeça. — Está cheio de mórmons a distância de um grito daqui — disse. — Se eles não ajudam, e não deram nenhum sinal disso, então os de Cedar City também não vão ajudar. — Há bons mórmons e maus mórmons... — começou o pai. — Ainda não encontramos nenhum bom até agora — ela encerrou o assunto. Não foi senão na manhã seguinte que ouvi da volta de Abel Milliken e Timothy Grant, mas não demorei a ficar sabendo. Todo o acampamento ficou abatido com o relatório deles. Os três mal tinham andado uns poucos quilômetros quando foram detidos por homens brancos. Logo que Will Aden começou a falar, dizendo que eram da caravana Fancher, indo a Cedar City buscar ajuda, foi morto a tiros. Milliken e Grant escaparam e voltaram com a notícia, e a notícia liquidou a última esperança nos corações do nosso grupo. Os brancos estavam por trás dos índios e a morte tanto pressentida estava sobre nós. Nessa manhã do segundo dia, nossos homens, indo buscar água, levaram tiros. A nascente ficava apenas uns 30 metros fora do nosso círculo,

mas o caminho para ela estava dominado pelos índios, que agora ocupavam a colina a leste. Era quase à queima-roupa, porque a colina não podia estar a mais que uns 70 metros de distância. Mas os índios, evidentemente, não eram bons atiradores, porque os nossos homens trouxeram a água sem ser atingidos. Além de algum disparo ocasional sobre o acampamento, a manhã passou tranqüila. Tínhamos nos instalado no abrigo e, acostumados a uma vida dura, estávamos bem confortáveis. É claro que era ruim para as famílias daqueles que tinham sido mortos e era preciso cuidar dos feridos. Eu estava sempre escapando de mamãe na minha curiosidade insaciável de ver tudo que acontecia, e consegui ver bastante de tudo. Dentro do enclave, ao sul do abrigo, os homens cavaram um buraco e enterraram os sete homens e as duas mulheres, todos juntos. Apenas a Sra. Hastings, que tinha perdido o marido e o pai, causou problemas. Ela chorava e gritava e as outras mulheres levaram muito tempo para acalmá-la. Na colina a leste, os índios fizeram um tremendo pow-wow com muita gritaria. Mas, além de algum disparo ocasional sem conseqüências, nada mais fizeram. — Qual é o problemas desses selvagens malditos? — o Laban perguntava, impaciente. — Por que não resolvem logo o que vão fazer e fazem de uma vez? Estava quente no enclave nessa tarde. O sol ardia num céu sem nuvens e não havia vento. Os homens, deitados com seus rifles nas trincheiras sob os carroções, estavam parcial-mente à sombra; mas o abrigo onde se escondiam mais de cem mulheres e crianças estava totalmente exposto ao sol. Aqui estavam também os homens feridos, e sobre eles levantamos toldos de cobertores. Estava superlotado e sufocante no abrigo, e eu sempre a me esgueirar dali para a linha de fogo e fazendo uma grande encenação quando levava mensagens para papai. Nosso grande erro foi não ter formado o círculo de carroções de modo a incluir a nascente. Isso aconteceu por causa da excitação do primeiro ataque, quando não se sabia com que rapidez ele poderia ser seguido pelo segundo. E agora era tarde demais. A uma distância de 70 metros da posição dos índios na colina, não nos atrevíamos a desacorrentar nossos carroções. Dentro do enclave, ao sul dos túmulos, construímos uma latrina e, ao norte do abrigo central, papai mandou dois homens cavarem um poço em busca de água. No meio da tarde daquele dia, que era o segundo dia, vimos Lee novamente. Ele estava a pé, cruzando diagonalmente a planura para noroeste,

fora do alcance dos nossos rifles. Papai içou um dos lençóis de mamãe num par de aguilhões amarrados juntos. Essa era a nossa bandeira branca. Mas Lee não tomou conhecimento dela e continuou seu caminho. O Laban queria tentar um tiro longo nele, mas papai o deteve dizendo que era evidente que os brancos ainda não tinham decidido o que iriam fazer conosco e que um tiro em Lee poderia apressá-los a se decidir do modo errado. — Vem cá, Jesse — disse-me papai, rasgando uma tira do lençol e amarrando-a a um aguilhão. — Pegue isso e saia e tente falar com aquele homem. Não diga nada do que aconteceu com a gente. Só tente fazer ele vir ate aqui falar comigo. Quando comecei a obedecer, com o peito inchado de orgulho com a minha missão, Jed Dunham gritou que queria ir comigo. Jed era mais ou menos da minha idade. — O seu menino pode ir com o Jesse? — perguntou papai ao pai do Jed. — Dois é melhor que um. Um cuida do outro pra não fazerem bobagens. E assim, Jed e eu, dois meninos de nove anos, saímos com a bandeira branca para falar com o chefe dos nossos inimigos. Mas Lee não queria falar. Quando nos viu se aproximando, ele recuou. Não conseguimos chegar perto dele e, depois de um tempo, ele deve ter se escondido no meio dos arbustos, porque não o vimos mais e sabíamos que ele não poderia ter ido embora. Jed e eu batemos os arbustos por centenas de metros em todas as direções. Como não nos disseram até onde ir e já que os índios não atiraram em nós, continuamos. Ficamos fora por mais de duas horas; mas, se cada um de nós estivesse sozinho, teríamos voltado num quarto daquele tempo. Mas Jed estava decidido a ser mais corajoso do que eu e eu estava igualmente decidido a ser mais corajoso do que ele. Nossa temeridade não deixou de ser lucrativa. Caminhamos confiantes sob a nossa bandeira branca e descobrimos como o nosso acampamento estava totalmente sitiado. Ao sul da nossa caravana, não mais que um quilômetro de distância, vimos um grande acampamento indígena. Além, na planura, dava para ver garotos índios a cavalo guardando a manada. E havia a posição indígena sobre a colina a leste. Conseguimos escalar uma outra colina e examinar aquela posição. Jed e eu passamos meia hora tentando contá-los e concluímos, com muita especulação, que devia haver pelo menos duas centenas. E também vimos homens brancos com eles, falando muito.

A nordeste da nossa caravana, não mais que uns 400 metros, descobrimos um grande acampamento de brancos atrás de uma pequena elevação do terreno. E além podíamos ver cinqüenta ou sessenta cavalos pastando. E a um quilômetro ou dois ao norte, vimos uma pequena nuvem de poeira se aproximando. Jed e eu esperamos até vermos um único homem, cavalgando rápido, entrar a galope no acampamento dos brancos. Quando voltamos ao enclave, a primeira coisa que me aconteceu foi uma bofetada de mamãe por ter ficado fora tanto tempo; mas papai elogiou Jed e eu quando fizemos nosso relatório. — Agora acho que a gente pode esperar um ataque. Capitão — disse Aaron Cochrane a papai. — Aquele homem que os meninos viram veio com alguma finalidade. Os brancos estão segurando os índios até receberem ordens de cima. Pode ser que aquele homem trouxe essas ordens, seja lá o que for. Eles não estão economizando cavalo, isso é certo. Meia hora depois da nossa volta, Laban tentou um reconhecimento sob uma bandeira branca. Mas ele não tinha avançado nem seis metros fora do círculo quando os índios abriram fogo e o mandaram de volta correndo. Logo antes do pôr-do-sol eu estava no abrigo segurando o bebê, enquanto mamãe arrumava os cobertores para fazer uma cama. Havia tanta gente que estava todo mundo empilhado e apertado. Tinha tão pouco espaço que muitas das mulheres, a noite anterior, dormiram sentadas com a cabeça apoiada nos joelhos. Bem ao meu lado, tão próximo que batia no meu ombro quando ele agitava os braços. Silas Dunlap estava morrendo. Ele foi atingido na cabeça no primeiro ataque e durante todo o segundo dia esteve fora de si e delirando e cantando umas coisas sem pé nem cabeça. Uma das canções, que ele repetia e repetia até mamãe ficar quase louca, era: Um diabinho disse pr'outro diabinho, Dá um pouco de fumo da tua tabaqueira. O outro diabinho respondeu pro diabinho Te agarra no dinheiro e na pepita de ouro, que sempre tem na tua bolsa um tabaquinho. Eu estava sentado bem ao lado dele, segurando o bebê, quando o ataque começou. Era o pôr-do-sol e eu olhava de olho arregalado para o Silas Dunlap, que estava exatamente no ato final de morrer. Sua mulher Sarah tinha uma mão repousada sobre a testa dele. Tanto ela quanto sua tia Martha choravam baixinho. E então começou — disparos e balas de centenas de

rifles. Fazendo o cerco de leste a oeste, pelo norte, eles nos fecharam num semicírculo e despejavam chumbo sobre a nossa posição. Todo mundo no abrigo se achatou no chão. Muitas das crianças menores se puseram a berrar e isso manteve as mulheres ocupadas acalmando-as, No começo algumas mulheres gritaram, mas não muitas. Milhares de tiros devem ter chovido sobre nós nos poucos minutos seguintes. Ah, como eu queria rastejar até a trincheira debaixo dos carroções, onde nossos homens sustentavam um fogo firme, mas irregular! Cada um atirava por sua vez, sempre que via um homem sobre quem apertar o gatilho. Mas mamãe suspeitou de mim e me obrigou a me acocorar e continuar segurando o bebê. Eu estava olhando para Silas Dunlap, que ainda estremecia, quando o bebezinho dos Castleton foi morto. Dorothy Castleton, que só tinha dez anos, estava segurando o bebê e por isso ele foi morto em seus braços. Ela não ficou ferida. Eu ouvi as mulheres discutindo o caso e elas achavam que a bala deve ter atingido o alto de um dos carroções e ricocheteado para o abrigo. Foi só um acidente, disseram, e que exceto por tais acidentes a gente estava a salvo no abrigo. Quando olhei de novo Silas Dunlap já estava morto. Senti um desapontamento profundo por ter perdido a chance de testemunhar aquele acontecimento. Eu nunca tinha tido a sorte de ver um homem morrer realmente diante dos meus olhos. Dorothy Castleton ficou histérica com o que aconteceu e berrou e gritou por um longo tempo e isso fez a Sra. Hastings começar novamente a gritar. Ao todo, levantou-se tal baderna que o pai mandou Watt Cummings vir se arrastando até o abrigo para ver qual era o problema. Com o avanço da luz do crepúsculo o fogo pesado cessou, mas houve tiros esparsos durante a noite. Dois dos nossos homens foram feridos nesse segundo ataque e foram trazidos para o abrigo. Bill Tyler foi morto instantaneamente. No escuro, os homens enterraram Bill Tyler, Silas Dunlap e o bebê dos Castleton junto com os outros. Durante toda a noite, os homens fizeram rodízio cavando mais fundo o poço; mas o único sinal de água que atingiram foi areia úmida. Alguns dos homens trouxeram uns poucos baldes d'água da nascente, mas atiraram neles e eles desistiram quando a mão esquerda de Jeremy Hopkins foi arrancada por um tiro. Na manhã seguinte, o terceiro dia, estava mais quente e mais seco do que nunca. Acordamos sedentos e ninguém cozinhou. Tão secas estavam

nossas bocas que ninguém conseguia comer. Tentei um pedaço de pão duro que mamãe me deu mas tive que desistir. O tiroteio recomeçou e parou. As vezes havia centenas de tiros sobre o acampamento. Outras vezes, intervalos em que nem um tiro era disparado. Papai estava sempre alertando os nossos homens para não desperdiçarem balas porque a nossa munição estava quase no fim. E o tempo todo os homens continuaram a cavar o poço. Estava tão fundo que eles içavam a areia em baldes. Os homens que puxavam os baldes ficavam expostos e um deles foi ferido no ombro. Era Peter Bromley, que conduzia os bois no carroção dos Bloodgood e estava noivo de Jane Bloodgood. Ela pulou do abrigo e correu para ele sob uma chuva de balas e o trouxe para o abrigo. Por volta do meio-dia, o poço desmoronou e tiveram um trabalhão para resgatar os dois homens que ficaram soterrados na areia. Amos Wentworth levou uma hora para voltar a si. Depois disso eles escoraram o poço com as lanças e as tábuas do fiando dos carroções e a escavação continuou. Mas tudo que eles conseguiam, e já estavam a seis metros de profundidade, era areia úmida. Não havia jeito de a água se infiltrar. Nessa altura as condições no abrigo eram terríveis. As crianças queixavam-se pedindo água e os bebês, roucos de tanto chorar, continuavam a chorar. Robert Carr, outro homem ferido, estava a uns três metros de mamãe e eu. Ele estava fora de si e ficava a abanar os braços e pedir água. E algumas das mulheres estavam quase tão mal quanto ele, e ficavam a delirar contra os mórmons e os índios. Algumas das mulheres rezavam bastante, e as três moças Demdike e sua mãe cantavam hinos religiosos. Outras mulheres pegavam a areia úmida que era içada do fundo do poço e a comprimiam contra os corpos nus dos bebês para tentar esfriá-los e acalmá-los. Os dois irmãos Fairfax não conseguiram suportar isso por mais tempo e, com baldes nas mãos, rastejaram por debaixo de um carroção e correram para a nascente. Giles não estava nem na metade do caminho quando foi derrubado. Roger conseguiu chegar lá e voltar sem ser atingido. Ele trouxe dois baldes pela metade, pois muita água se derramou quando ele corria. Giles se arrastou de volta e quando o ajudaram a entrar no abrigo ele tossia e sangrava pela boca. Dois meios-baldes de água não podiam durar muito para uma centena de nós, sem contar os homens. Só os bebês e as crianças pequeninas e os homens feridos ganharam água. Eu não ganhei nenhuma gota, mas mamãe umedeceu um pano nas colheradas de água que ganhou para o bebê e passou

na minha boca. Para si mesma ela não fez nem isso e deixou o trapo úmido para eu mascar. Nem dá para descrever como a situação piorou à tarde. O sol parado ardia através do ar claro sem vento e transformava num forno o nosso buraco na areia. E à nossa volta havia os disparos dos rifles e os gritos dos índios. Só de vez em quando o pai permitia um tiro solitário da trincheira, e mesmo assim só pelos nossos melhores atiradores, como o Laban e Timothy Grant. Mas uma chuva constante de chumbo caía sobre a nossa posição o tempo todo. Ainda bem que não houve mais ricochetes desastrosos; e nossos homens na trincheira, não mais atirando, ficavam abaixados e escaparam de ser atingidos. Só quatro foram feridos e só um deles seriamente. Papai veio da trincheira durante um intervalo no tiroteio. Ele sentou-se por alguns minutos ao lado de mamãe e de mim, sem falar. Ele parecia estar ouvindo todas as lamentações e gritos por água que ali ocorriam. Uma vez ele saiu do abrigo e foi investigar o poço. Trouxe de volta apenas areia úmida, que aplicou, numa camada espessa, sobre o peito e ombros de Robert Carr. Então ele foi até onde estavam Jed Dunham e sua mãe e mandou pedir ao pai de Jed que viesse da trincheira. Estava tão apertado que, quando alguém se movia no abrigo, tinha de rastejar com cuidado sobre os corpos dos que estavam deitados. Depois de um tempo, papai veio rastejando até nós. — Jesse — perguntou-me —, você tem medo dos índios? Sacudi a cabeça com força, imaginando que seria mandado em alguma outra missão gloriosa. — Você tem medo dos malditos mórmons? — De nenhum maldito mórmon — respondi, aproveitando a oportunidade de praguejar contra nossos inimigos sem medo da mão punitiva de mamãe. Notei o leve sorriso que curvou seus lábios fatigados quando ele ouviu minha resposta. — Bem, Jesse, você era capaz de ir com o Jed buscar água na nascente? Eu era todo ansiedade. — Vamos botar roupa de menina em vocês dois — continuou o pai — aí talvez eles não atirem em vocês. Insisti em ir do jeito que eu era, um homem que usa calças; mas desisti logo que papai sugeriu que poderia encontrar um outro menino que concordasse em pôr um vestido e ir com o Jed.

Um baú foi trazido do carroção dos Chattox. As meninas Chattox eram gêmeas e mais ou menos do tamanho de Jed e eu. Muitas mulheres vieram ajudar. Eram os vestidos domingueiros das gêmeas Chattox e tinham vindo no baú todo o caminho desde o Arkansas. Em sua ansiedade, mamãe deixou o bebê com Sarah Dimlap e me acompanhou até a trincheira. Ali, debaixo de um carroção e por trás do pequeno anteparo de areia, Jed e eu recebemos nossas instruções finais. Então rastejamos para fora e saímos para o espaço aberto. Estávamos vestidos exatamente iguais: meias brancas, vestido branco com um grande laço azul e um chapeuzinho azul. E estávamos de mãos dadas como meninas, a mão direita de Jed apertando a minha mão esquerda. Na outra mão, cada um de nós carregava dois baldes pequenos. — Vão com calma — recomendou papai quando começamos a avançar. — Vão devagar. E caminhem como meninas. Nem um único tiro foi disparado. Chegamos sãos e salvos à nascente, enchemos nossos baldes e nos abaixamos para tomar uns bons goles d'água. Com um balde cheio em cada mão, fizemos a viagem de volta. E ainda assim, nem um tiro foi disparado. Não consigo lembrar quantas viagens fizemos — umas quinze ou vinte ao todo. Caminhamos devagar, sempre indo de mãos dadas, sempre voltando vagarosamente com quatro baldes d'água. Era surpreendente a nossa sede. Diversas vezes nos abaixamos para beber muitos goles. Mas aí já foi demais para os nossos inimigos. Não consigo imaginar que os índios tivessem suspendido o fogo por tanto tempo, meninas ou não meninas, se não estivessem obedecendo a instruções dos brancos que estavam com eles. De qualquer modo, quando Jed e eu estamos partindo para outra excursão um rifle disparou na colina índia e depois outro. — Voltem! — gritou mamãe. Olhei para Jed e vi que ele estava olhando para mim. Eu sabia que ele era teimoso e que tinha decidido ser o último a entrar. Por isso comecei a avançar e no mesmo instante ele avançou. — Jesse! Jesse! — gritou minha mãe. E havia mais do que uma bofetada no modo como ela gritou meu nome. Jed queria dar as mãos, mas eu sacudi a cabeça. — Vamos correndo — disse eu. E enquanto corríamos desabaladamente pela areia, parecia que todos os rifles na colina índia eram disparados sobre nós. Cheguei à nascente um pouco antes dele e assim Jed precisou esperar que eu enchesse meus baldes.

— Agora volte correndo — disse ele. Pelo modo displicente como ele começou a encher seus baldes, entendi que ele estava determinado a ser o último a entrar. Por isso me abaixei e, enquanto esperava, observei as pequenas nuvens de pó levantadas pelas balas. Começamos a voltar lado a lado e correndo. — Não tão depressa — recomendei —, senão você vira metade da água. Isso feriu seus brios e ele afrouxou o passo. A meio do caminho tropecei e caí estatelado. Uma bala atingiu o chão bem na minha frente e encheu meus olhos de areia. Na hora pensei que tinha sido atingido. — Você fez de propósito — acusou Jed, enquanto eu lutava para me pôr de pé. Ele tinha parado e esperava por mim. Entendi sua idéia. Ele pensou que eu tinha caído de propósito para derramar a água e ter uma desculpa para voltar à nascente. Essa rivalidade entre nós dois era um caso sério — tão sério, na verdade, que imediatamente aproveitei sua idéia e corri de volta à nascente. E Jed Dunham, desprezando as balas que levantavam poeira à sua volta, ficou ali de pé, a céu aberto, esperando por mim. Voltamos lado a lado, cobertos de glória mesmo na nossa maluquice de garotos. Mas quando entregamos a água, Jed tinha apenas um balde. Uma bala tinha furado o fundo do outro. Mamãe aproveitou para me passar um sermão sobre a desobediência. Ela devia saber que, depois do que eu tinha feito, papai não permitiria que ela me esbofeteasse; e enquanto ela me passava o sermão, papai piscou o olho para mim, por trás dela. Foi a primeira vez na minha vida que ele piscou o olho para mim. De volta ao abrigo, Jed e eu fomos os heróis. As mulheres choraram e nos abençoaram e nos beijaram e nos fizeram carinhos. E eu confesso que estava orgulhoso da demonstração, embora, como Jed, afirmasse que não gostava daquela bajulação toda. Mas Jeremy Hopkins, com um enorme curativo em volta do coto do punho esquerdo, disse que nós dois tínhamos a fibra de que são feitos os homens brancos — homens como Daniel Boone, como Kit Carson e Davy Crockett. Fiquei mais orgulhoso daquilo do que de todo o resto. Durante o restante daquele dia, o que me incomodou foi a dor no meu olho direito, machucado pela areia que a bala jogou dentro dele. O olho estava congestionado, disse mamãe; e aberto ou fechado, não importava, parecia que ele me incomodava do mesmo jeito.

As coisas ficaram mais sossegadas no abrigo porque todos ganharam água; mas continuava o problema de como ir buscar a próxima água. E também o fato de que a nossa munição estava quase no fim. Papai fez uma vistoria minuciosa nos carroções e encontrou dois quilos de pólvora. Um pouco mais era o que restava nas cartucheiras dos homens. Lembrei-me do ataque ao entardecer na noite anterior e dessa vez me antecipei e rastejei para a trincheira antes do pôr-do-sol. Arrastei-me até um lugar ao lado do Laban. Ele estava ocupado mascando fumo e não me percebeu. Por algum tempo eu o observei, temendo que me mandasse de volta quando me descobrisse. Ele lançava um longo olhar estrábico por entre as rodas dos carroções, mascava com força por um tempo e daí cuspia com cuidado numa pequena depressão que havia cavado na areia. — Que tal aí? — perguntei finalmente. Era assim que ele sempre falava comigo. — Tudo bem — respondeu-me. — Tudo maravilhosamente bem, Jesse, agora que posso mascar fumo de novo. Estava com a boca tão seca que nem conseguia mascar fumo, desde que o sol nasceu até você trazer a água. Nessa altura, um homem mostrou a cabeça e os ombros sobre o topo de uma pequena colina a nordeste ocupada pelos brancos. O Laban mirou seu rifle nele por um longo momento. Depois sacudiu a cabeça. — Quatrocentos metros. Negativo, não vou arriscar. Pode ser que acerte e pode ser que não e teu pai está nervoso como um potro por causa da pólvora. — Quais você acha que são as nossas chances? — perguntei como um homem, porque depois da minha proeza com a água eu estava me sentindo um homem de verdade. O Laban pareceu considerar cuidadosamente por um tempo antes de responder. — Olha, Jesse, não me importo de te dizer que estamos num aperto danado de ruim. Mas a gente vai sair dele, ah, se vai, pode apostar teu último dólar. — Uns de nós não vão sair — objetei. — Quem por exemplo? — perguntou ele. — Ora, o Bill Tyler e a Sra. Grant e Silas Dunlap e aqueles outros. — Ora bolas, Jesse, eles já estão debaixo da terra. Você não sabe que todo mundo tem que enterrar seus mortos conforme eles vão caindo? As pessoas fazem isso há milhares de anos, acho, e tem mais gente viva do que nunca teve antes. Olha, Jesse, nascer e morrer andam de mãos dadas. E nasce

gente tão depressa como morre... mais depressa até, acho, porque elas aumentam e se multiplicam. Você mesmo, você podia ter morrido hoje à tarde pegando água. Mas você está aqui, não está? Batendo um papo comigo e com cara de quem vai crescer e ser o pai de uma grande família bonita lá na Califórnia. Dizem que lá na Califórnia tudo é maior. Esse modo alegre de encarar as coisas me encorajou a ousar expressar uma antiga cobiça. — Diga, Laban, suponha que você morre aqui... — Quem, eu? — berrou ele. — Só estou dizendo suponha — expliquei. — Ah, bom, então está certo. Suponha que eu morro, e daí? — Daí que você me dá teus escalpos? — Tua mãe te enche de tapa se te pega usando eles — contemporizou ele. — Eu não preciso usar eles quando ela estiver por perto. Agora, Laban, se você morrer alguém tem que ficar com os teus escalpos, não é? Por que não eu? — Por que não? — repetiu ele. — Está certo, por que não você? Tudo bem, Jesse. Eu gosto de você e do teu pai. Na hora que eu morrer os escalpos são teus e também a faca de escalpelar. E está aí o Timothy Grant de testemunha... Você ouviu, Timothy? Timothy disse que tinha ouvido e ali fiquei, sem palavras, na trincheira sufocante, tão subjugado pela grandiosidade da minha boa sorte que fui incapaz de pronunciar uma palavra de gratidão. Fui recompensado pela minha previsão de ir para a trincheira. Um outro ataque em massa foi feito ao cair do sol e milhares de tiros foram disparados sobre nós. Ninguém do nosso lado foi sequer arranhado. Por outro lado, embora mal chegássemos a disparar trinta tiros, vi que o Laban e Timothy Grant pegaram, cada um, um índio. O Laban me disse que desde o começo só os índios é que atiravam. Ele tinha certeza de que nenhum branco disparou um tiro. E tudo isso o deixava extremamente perplexo. Os brancos não nos ajudavam nem nos atacavam e, o tempo todo, estavam em termos amistosos com os índios que nos atacavam. Na manhã seguinte, sentimos o sofrimento da sede. Levantei-me ao primeiro indício de luz. Tinha caído orvalho; e homens, mulheres e crianças estavam lambendo o orvalho das lanças dos carroções, dos blocos de freios e dos aros das rodas. Ouvi uma conversa de que Laban tinha voltado de um reconhecimento logo antes do nascer do sol; que ele

tinha se arrastado até perto da posição dos brancos; que eles já estavam de pé; e que, à luz das suas fogueiras, ele os tinha visto rezando num largo círculo. Ele também relatou que, pelas poucas palavras que ouviu, eles estavam rezando por nós e por aquilo que seria feito conosco. — Que Deus lhes mande a luz, então — ouvi uma das irmãs Demdike dizer a Abby Foxwell. — E logo — disse Abby Foxwell —, porque não sei o que vamos fazer um dia todo sem água e a nossa pólvora está quase no fim. Nada aconteceu toda a manhã. Nem um tiro sequer foi disparado. Só o sol ardia através do ar parado. Nossa sede aumentou e logo os bebês estavam chorando e as crianças menores choramingando e se queixando. Ao meio-dia, Will Hamilton pegou dois baldes grandes e saiu para a nascente. Mas antes que ele pudesse rastejar por debaixo do carroção, Ann Demdike correu e passou os braços em volta dele e tentou retê-lo. Mas ele falou com ela, beijoua e saiu. Nenhum tiro foi disparado, nem naquele instante nem durante todo o tempo que ele levou para ir e voltar com a água. — Graças ao Senhor! — gritou a velha Sra. Demdike — É um sinal. Eles se arrependeram. Essa era a opinião de muitas das mulheres. Por volta das duas horas, depois que comemos e nos sentimos melhor, um homem branco apareceu carregando uma bandeira branca. Will Hamilton saiu e falou com ele, voltou e falou com papai e o resto dos nossos homens e então saiu de novo para falar com o estranho. Bem mais distante, podíamos ver um homem de pé, olhando, que reconhecemos como Lee. Entre nós, tudo era excitação. As mulheres ficaram tão aliviadas que choravam e se beijavam, e a velha Sra. Demdike e umas outras estavam cantando aleluias e louvando Deus. A proposta, que nossos homens haviam aceitado, era de que nos poríamos sob a bandeira da trégua e seríamos protegidos dos índios. — A gente tinha de aceitar — ouvi papai dizer a mamãe. Ele estava sentado, com os ombros curvados, abatido, sobre a lança de um carroção. — Mas e se eles estiverem planejando uma traição? — perguntou mamãe. Ele encolheu os ombros. — Temos de arriscar que não estejam — disse ele. — Nossa munição acabou.

Alguns dos nossos homens estavam desacorrentando um dos nossos carroções e afastando-o do caminho. Corri para ver o que acontecia. Entrou o próprio Lee, seguido por duas carretas vazias, cada uma guiada por um único homem. Todos se reuniram ao redor de Lee. Ele disse que tinham tido dificuldades em manter os índios longe de nós e que o Major Higbee com cinqüenta milicianos mórmons estava pronto para nos tomar sob sua guarda. Mas o que fez papai e o Laban e alguns dos homens ficarem desconfiados foi quando Lee disse que devíamos pôr todos os nossos rifles numa das carretas para não despertar a animosidade dos índios. Assim ia parecer que a milícia mórmon nos tinha como prisioneiros. Papai agitou-se e estava a ponto de recusar quando olhou para Laban, que replicou num murmúrio: — Dá na mesma pra nós, já que a pólvora acabou. Dois dos nossos homens feridos, que não podiam caminhar, foram postos nas carretas e, junto com eles, colocadas todas as crianças pequenas. Lee parecia estar separando-as acima de oito e abaixo de oito. Jed e eu éramos grandes para a nossa idade e, além disso, tínhamos nove; assim Lee nos pôs no grupo dos mais velhos e nos disse que devíamos seguir a pé com as mulheres. Quando ele tirou o bebê de mamãe e o pôs na carreta, ela começou a protestar. Então vi seus lábios se apertarem e ela desistiu. Ela era uma mulher de meia-idade, de olhos cinzentos, traços fortes, ossos largos e bastante corpulenta. Mas a longa jornada e as dificuldades tiveram efeito sobre ela; ela estava descarnada e com o rosto encovado e, como todas as mulheres da nossa caravana, tinha uma expressão de perpétua ansiedade e preocupação. Foi quando Lee descreveu a ordem de marcha que o Laban veio até mim. Lee disse que as mulheres e as crianças a pé deveriam ir primeiro, em fila, seguindo atrás das duas carretas. Então os homens, em fila indiana, deveriam seguir as mulheres. Quando Laban ouviu isso, ele veio até mim, desamarrou os escalpos de seu cinturão e prendeu-os à minha cintura. — Mas você ainda não morreu — protestei. — Pode apostar que não — respondeu em tom de brincadeira. — Só que acabei de me aposentar. E esse negócio de usar escalpo pendurado é uma coisa inútil e pagã. Ele parou por um momento, como se tivesse esquecido algo e então, ao se virar abruptamente sobre os calcanhares para voltar aos homens do nosso grupo, disse por sobre o ombro: — Bom, até à vista, Jesse.

Eu estava me perguntando por que ele teria se despedido de mim, quando um homem branco entrou a cavalo no enclave. Disse-nos que o Major Higbee mandou que nos apressássemos porque os índios poderiam atacar a qualquer momento. E assim a marcha começou, as duas carretas primeiro. Lee manteve-se ao lado das mulheres e das crianças a pé. Atrás de nós, depois de esperar até estarmos uns cem metros adiante, vinham os nossos homens. Quando saímos do enclave, vimos a milícia mórmon a curta distância. Eles estavam apoiados nos rifles, formando uma longa fileira a dois metros um do outro. Quando passamos por eles, não pude deixar de notar como pareciam solenes. Pareciam homens num funeral. As mulheres também notaram e algumas começaram a chorar. Eu caminhava bem atrás da minha mãe. Escolhi essa posição para que ela não batesse os olhos nos meus escalpos. Atrás de mim vinham as três irmãs Demdike, duas delas ajudando a velha mãe. Ouvi Lee gritando o tempo todo para os homens que conduziam as carretas para não irem tão depressa. Um homem que uma das moças Demdike disse que devia ser o Major Higbee estava a cavalo, olhando-nos passar. Não havia um único índio à vista. No momento em que nossos homens estavam bem diante da milícia — eu tinha acabado de olhar para trás tentando ver onde estaria Jed Dunham — a coisa aconteceu. Ouvi o Major Higbee gritar: “Cumpram seu dever!” Todos os rifles da milícia pareceram disparar ao mesmo tempo e nossos homens caíram como moscas. As quatro mulheres Demdike caíram ao mesmo tempo. Virei-me rápido para ver mamãe e ela estava caída. A nossa direita, saindo do matagal, avançavam centenas de índios, todos atirando. Vi as duas irmãs Dunlap começarem a correr pela areia e corri atrás delas, pois brancos e índios estavam nos chacinando. E enquanto corria vi o cocheiro de uma das carretas atirar nos dois homens feridos lá dentro. Os cavalos da outra carreta relinchavam e empinavam e seu cocheiro tentava contê-los. Foi quando o garotinho que eu fui corria atrás das meninas Dunlap que a escuridão caiu sobre ele. Todas as lembranças ali cessam, pois Jesse Fancher ali deixou de existir e, como Jesse Fancher, deixou de existir para sempre. A forma que foi Jesse Fancher, o corpo que foi dele, sendo matéria e aparição, como uma aparição passou e não mais existe. Mas o espírito indestrutível não deixou de existir. Ele continuou a existir e, em sua próxima encarnação, tomou-se o espírito residente naquele corpo conhecido como Darrell Standing e que logo será levado e enforcado e lançado no nada para onde vão todas as aparições.

Existe aqui em Folsom um condenado à prisão perpétua, Matthew Davies, da velha estirpe dos pioneiros, que é encarregado do cadafalso e da câmara de execução. Ele já está velho e seu povo cruzou as planícies nos primeiros dias. Conversei com ele e ele comprovou o massacre no qual Jesse Fancher foi morto. Quando esse velho condenado era uma criança, houve muita conversa em sua família sobre o Massacre dos Montes Meadows. As criancinhas nos carroções, disse-me ele, salvaram-se porque eram pequenas demais para contar histórias. Tudo isso eu ofereço ao seu julgamento. Nunca, na minha vida de Darrell Standing, li uma linha ou ouvi uma palavra sobre a caravana Fancher que pereceu nos Montes Meadows. Ainda assim, na camisa-de-força da prisão de San Quentin, todo esse conhecimento chegou até mim. Eu não poderia criar esse conhecimento a partir do nada, não mais do que poderia criar dinamite a partir do nada. Esse conhecimento e esses fatos que relatei só têm uma única explicação. Eles saíram do conteúdo do meu espírito — o espírito que, ao contrário da matéria, não perece. Para encerrar este capítulo, quero dizer que Matthew Davies também me contou que, alguns anos depois do massacre, Lee foi levado aos Montes Meadows por oficiais do Governo dos Estados Unidos e ali executado, no local do nosso velho enclave.

CAPÍTULO 14 Quando, ao término da minha primeira sessão de dez dias na camisade-força, fui trazido de volta à consciência pelo polegar do Doutor Jackson a me levantar uma pálpebra, abri os olhos e sorri para o rosto do Diretor Atherton. — Canalha demais pra viver e mesquinho demais pra morrer — foi seu comentário. — Os dez dias se foram. Diretor — murmurei. — Bom, vamos desamarrar você — resmungou ele. — Não é isso — eu disse. — O senhor observou meu sorriso. Lembra que temos uma pequena aposta? Não se preocupe em me desamarrar primeiro. Só dê o Bull Durham e papel para cigarro ao Morrell e ao Oppenheimer. E para o senhor lhes dar bastante tabaco, eis outro sorriso. — Ah, conheço teu tipo, Standing — disse o Diretor em tom de sermão. — Mas isso não vai te levar a parte alguma. Se eu não te quebrar, você vai quebrar todos os recordes da camisa-de-força. — Ele já quebrou todos — disse o Doutor Jackson. — Quem que já ouviu falar de um homem sorrir depois de dez dias nela? — Força de vontade e blefe — respondeu o Diretor Atherton. — Desamarre ele, Hutchins. — Para que tanta pressa? — perguntei, num sussurro, é claro, pois a maré da vida tinha baixado tanto dentro de mim que precisei de toda a pouca força que possuía e de toda minha vontade apenas para sussurrar. — Para que tanta pressa? Eu não preciso pegar o trem e está tão danado de confortável aqui que prefiro não ser incomodado. Mas me desamarraram e me rolaram, uma coisa inerte e indefesa, da fétida camisa-de-força para o chão, — Não é de admirar que ele estivesse confortável — disse o Capitão Jamie. — Ele não sentia nada. Está paralisado. — Paralisado está tua avó — zombou o Diretor. — Ponha ele de pé e você vai ver que ele pára. Hutchins e o médico me arrastaram e me puseram de pé. — Agora soltem — ordenou o Diretor. Não é de repente que a vida pode voltar a um corpo que esteve praticamente morto por dez dias e, como resultado, ainda sem nenhum

controle sobre minha carne, meus joelhos cederam, vacilei, caí para o lado e cortei a testa contra a parede. — Viu? — disse o Capitão Jamie. — Boa representação — retrucou o diretor. — Esse homem tem o descaramento de fazer qualquer coisa. — O senhor está certo. Diretor — murmurei do chão. — Eu fiz de propósito. Foi uma queda teatral. Me levante de novo que eu repito. Prometo que o senhor vai se divertir bastante. Não vou relatar a agonia da volta da circulação. Ela iria se tomar uma velha história comigo; ela tem sua quota nos vincos profundos que trago no rosto e que levarei comigo ao cadafalso. Quando eles finalmente me deixaram, fiquei deitado o resto do dia, inanimado e semicomatoso. Existe algo como uma anestesia da dor, engendrada pela dor demasiado aguda para ser suportada. E eu conheci aquela anestesia. A noite, fui capaz de rastejar pela minha cela, mas ainda não conseguia ficar de pé. Bebi muita água e limpei-me o melhor que podia; mas não foi senão no dia seguinte que pude me forçar a comer e, mesmo então, pela força deliberada da minha vontade. O programa, conforme me foi informado pelo Diretor Atherton, era que eu descansaria e me recuperaria por alguns dias e então, se nesse meiotempo não tivesse confessado o esconderijo da dinamite, eu receberia outros dez dias na camisa-de-força. — Sinto muito por lhe causar tantos transtornos, Diretor — disse em resposta — É uma pena que eu não morra na camisa-de-força e o liberte dessa agonia. Nessa época, duvido que eu pesasse um grama além de 40 quilos. E no entanto, dois anos antes, quando as portas de San Quentin se fecharam sobre mim, eu pesava 75 quilos. Parece incrível que houvesse um outro grama que eu pudesse perder e ainda continuar vivo. Mesmo assim, nos meses que se seguiriam, grama por grama fui reduzido, e sei que meu peso deve ter chegado mais perto de 35 do que de 40 quilos. Eu sei que, depois que consegui escapar da solitária e golpear o nariz do guarda Thurston, antes de me levarem a San Rafael para julgamento, enquanto estava sendo lavado e barbeado, eu pesava 40 quilos. Existem pessoas que se admiram de como os homens podem se endurecer. O Diretor Atherton era um homem duro. Ele me fez duro e minha própria dureza reagiu sobre ele e o tomou ainda mais duro. E, ainda assim, ele

nunca conseguiu me matar. Foi preciso a lei do Estado da Califórnia, um juiz carrasco e um governador inclemente para me mandar para o cadafalso por golpear um guarda da prisão com meu punho. E eu sempre sustentarei que aquele guarda tinha um nariz que sangrava com demasiada facilidade e que eu era, naquele momento, um esqueleto trôpego e cego como um morcego. Às vezes me pergunto se o nariz dele realmente sangrou. É claro que ele jurou, no banco das testemunhas, que seu nariz sangrou. Mas eu sei de guardas de prisão que, sob juramento, cometeram perjúrios ainda piores. Ed Morrell estava ansioso por saber se a experiência tinha sido bemsucedida; mas quando tentou comunicar-se comigo, foi silenciado por Smith, o guarda que estava de plantão na solitária. — Tudo bem, Ed — transmiti-lhe com os nós dos dedos. — Você e o Jake fiquem quietos que eu vou contando. O Smith não pode impedir que vocês escutem e não pode me impedir de falar. Eles já fizeram o pior que podiam e eu ainda estou aqui. — Pára com isso, Standing! — Smith gritou para mim, do corredor no qual se abriam todas as celas. Smith era uma criatura peculiarmente saturnina, de longe o mais cruel e vingativo dos nossos guardas. Costumávamos especular se sua mulher o tiranizava ou se ele sofria de indigestão crônica. Continuei dando pancadinhas com os nós dos dedos e ele veio até a portinhola e me lançou olhares furiosos. — Já mandei você parar com isso — rugiu. — Desculpe — respondi, com suavidade. — Mas tenho uma espécie de pressentimento de que vou continuar a bater. E, hum, desculpe por fazer uma pergunta pessoal, mas o que é que você pretende fazer a respeito? — Eu vou... — ele começou de modo explosivo mas acabou provando, por sua incapacidade de concluir a frase, que pensava por henids 2. — Sim? — encorajei-o. — Vai o quê, hein? — Vou chamar o Diretor — disse ele, sem graça. — Sim, faça isso, por favor. Um cavalheiro muito encantador, com certeza. Um brilhante exemplo das influências refinadas com as quais entramos em contato nas nossas prisões. Traga-o aqui, logo, logo. Quero dar parte de você para ele. — De mim?                                                              2

Henids é mais uma palavra criada por Jack London; seu sentido exato, em inglês, não é conhecido.

— Sim, exatamente de você — continuei. — Você insiste, de um modo rude e extremamente desajeitado, em interromper meu diálogo com os outros hóspedes dessa estalagem. E o Diretor Atherton veio. A porta foi aberta e ele entrou vociferando na minha cela. Mas, ah, eu estava tão seguro. Ele já tinha feito o pior que podia. Eu estava fora de seu alcance. — Eu vou suspender sua comida — ameaçou. — Como quiser — respondi. — Já estou acostumado. Não comi nada por dez dias e, para falar a verdade, tentar começar a comer de novo é uma chatice danada. — Ora, ora, você está me ameaçando, é? Greve de fome, é? — Mil perdões — disse eu, a voz sedosa de polidez. — A proposta foi sua, não minha. Por favor, tente ser lógico de vez em quando. Penso que o senhor me acreditará se eu lhe disser que sua falta de lógica é muito mais difícil de suportar do que todas as suas torturas. — Você vai parar com essa conversa por batidas? — exigiu ele. — Não. Perdoe-me por aborrecê-lo, mas sinto uma compulsão tão forte de conversar com os meus dedos que... — Te boto de volta na camisa-de-força! — atalhou ele. — Bote-me, por favor. Eu amo loucamente a camisa-de-força. Eu sou o namorado da camisa-de-força. Eu engordo na camisa-de-força. Olhe só esses músculos — levantei a manga da camisa e mostrei-lhe um bíceps tão emaciado que quando o flexionei parecia um barbante. — Um verdadeiro bíceps de ferreiro, não é, Diretor? E dê só uma olhada neste peito estufado. O Sandow devia era se cuidar com seu cinturão de campeão. E esse abdômen, olha só, homem, estou ficando tão gorducho que vou virar um caso escandaloso de excesso de comida na prisão. Cuidado, Diretor, ou os contribuintes ainda vão lhe cair em cima. — Você vai parar com essa conversa por batidas ou não? — rugiu ele. — Não, mas agradeço sua gentil solicitude. Depois de amadurecida reflexão, decidi que vou continuar com a conversa por batidas. Ele me encarou sem ter o que dizer por um momento e então, desarmado, virou-se para sair. — Uma pergunta, por favor. — O que é? — ele perguntou por sobre o ombro. — O que é que o senhor vai fazer a respeito? Pela exibição colérica que ele deu naquele instante, pergunto-me até hoje como foi que ele não morreu de apoplexia há muito tempo.

Hora após hora, depois da partida derrotada do Diretor, transmiti por batidas as histórias das minhas aventuras. Só à noite, quando Pie-Face Jones entrou em serviço e começou a tirar suas sonecas de costume, foi que Morrell e Oppenheimer puderam responder. — Sonhos, sonhos fantasiosos — Oppenheimer bateu seu veredicto. Sim, era o que eu pensava; nossas experiências são a substância dos nossos sonhos. — Quando eu era mensageiro noturno, uma vez eu fumei ópio — Oppenheimer continuou. — E olha, vocês não levam a melhor sobre mim nisso de ver coisas, não. E eu acho que é isso que todos esses escritores fazem, eles fumam ópio pra jogar a imaginação bem lá em cima. Mas Ed Morrell, que tinha viajado na mesma estrada que eu, embora com resultados diferentes, acreditou na minha história. Ele disse que quando seu corpo morria na camisa-de-força e ele saía da prisão, ele nunca era ninguém mais senão Ed Morrell. Ele nunca experimentou existências anteriores. Quando seu espírito vagava livre, sempre vagava no presente. Conforme nos contou, assim como era capaz de deixar seu corpo e olhá-lo deitado dentro da camisa-de-força no chão da cela, ele também podia deixar a prisão e, no presente, revisitar San Francisco e ver o que estava acontecendo. Desse modo tinha visitado sua mãe duas vezes, sempre encontrando-a adormecida. Em sua peregrinação do espírito, ele disse que não tinha nenhum poder sobre as coisas materiais. Não podia abrir ou fechar uma porta, mover qualquer objeto, fazer um ruído nem manifestar sua presença. Por outro lado, as coisas materiais não tinham nenhum poder sobre ele. Paredes e portas não eram obstáculos. A entidade, ou a coisa real que ele era, era pensamento, espírito. — A mercearia da esquina, a meia quadra de onde a mãe morava, mudou de dono — contou-nos ele. — Eu soube disso pela placa diferente na fachada. Tive de esperar seis meses até poder escrever minha primeira carta, mas quando escrevi perguntei pra mãe a respeito. E ela disse que sim, que tinha mudado de dono. — Você leu a placa da mercearia? — perguntou Jake Oppenheimer. — Claro que li — foi a resposta de Morrell. — Senão como é que eu ia saber? — Está certo — respondeu Oppenheimer, incrédulo. — E fácil de provar. Qualquer dia desses, quando tiver algum guarda decente no turno que deixe a gente dar uma espiada no jornal, você dá um jeito de ir pra camisa-deforça, dá o fora do teu corpo e se manda pra boa e velha Frisco. Desliza pela

Três e pela Market lá pelas duas ou três da madrugada, quando eles estão rodando os jornais da manhã. Lê as últimas notícias. Aí volta depressa pra San Quentin, chega aqui antes que o furgão do jornal cruze a baía e me conta o que você leu. Aí a gente espera e pega o jornal da manhã, quando ele chegar, de um guarda. Daí, se aquilo que você me disse estiver naquele jornal, estou contigo pra uma viagem. Era um bom teste. Eu não podia deixar de concordar com Oppenheimer que tal prova seria absoluta. Morrell disse que tentaria qualquer dia desses, mas que ele detestava tanto o processo de deixar seu corpo que não faria a tentativa senão quando seu sofrimento na camisa-de-força se tomasse insuportável. — E sempre assim com todos eles, nunca entregam o ouro — foi a crítica de Oppenheimer. — Minha mãe acreditava nos espíritos. Quando eu era garoto, ela estava sempre vendo eles e falando com eles e recebendo conselhos deles. Mas eles nunca entregaram o ouro pra ela. Os espíritos nunca disseram pra ela onde que o velho podia arrumar um emprego ou achar uma mina de ouro ou cravar um oito na loteria chinesa. Nunca, jamais. As asneiras que eles contavam pra ela eram que o tio do velho estava com bócio ou que o avô do velho tinha morrido de tuberculose galopante ou que a gente ia se mudar em quatro meses, e isso qualquer um via, porque a gente se mudava pelo menos seis vezes por ano. Acho que se Oppenheimer tivesse tido a oportunidade de uma boa educação, ele teria se tomado um Marinetti ou um Haeckel. Ele era um homem com os pés na terra em sua devoção ao fato irrefutável e sua lógica era admirável, embora gélida. “Você tem que provar pra mim”, era a regra básica pela qual ele considerava todas as coisas. Faltava-lhe a mínima porção de fé. Isso era o que Morrell tinha apontado. A falta de fé tinha impedido Oppenheimer de alcançar com sucesso a pequena morte na camisa-de-força. Você verá, meu leitor, que nem tudo era desesperadoramente ruim na solitária. Dadas três mentes como as nossas, havia muito com que passar o tempo. Pode ser que um tenha salvo o outro da insanidade; embora eu precise admitir que Oppenheimer apodreceu cinco anos sozinho na solitária antes que Morrell se juntasse a ele e, ainda assim, permaneceu são. Por outro lado, não cometa o erro de pensar que a vida na solitária era uma orgia selvagem de alegre comunhão e de estimulante pesquisa psicológica. Sofremos muita, e terrível, dor. Nossos guardas eram uns animais — seus carrascos, cidadão. Nosso ambiente era infame. Nossa comida era imunda, monótona, não-nutritiva. Só seres humanos, pela força da vontade,

poderiam viver com uma ração tão pouco balanceada. Eu sei que nosso gado de primeira, nossos porcos e ovelhas da Fazenda Experimental da Universidade em Davis, teriam minguado e morrido se tivessem recebido uma ração tão pouco cientificamente balanceada como a que nós recebíamos. Não tínhamos livros para ler. Nossa própria conversa com os nós dos dedos era uma violação das regras. O mundo, no que nos dizia respeito, praticamente não existia. Era mais um mundo fantasma. Oppenheimer, por exemplo, nunca tinha visto um automóvel ou uma motocicleta. As notícias se infiltravam ocasionalmente — mas notícias vagas, ultrapassadas, irreais. Oppenheimer disse-me que só ficou sabendo da guerra russo-japonesa dois anos depois de seu término. Éramos os enterrados-vivos, os mortos-vivos. A solitária era o nosso túmulo, onde às vezes conversávamos com os nós dos dedos, como espíritos a se manifestar por batidas numa sessão espírita. Notícias? Notícias para nós eram tais pequenas coisas. Uma mudança de padeiros — podíamos dizer pelo nosso pão. O que fez Pie-Face faltar por uma semana? férias ou doença? Por que o Wilson, depois de apenas dez dias no turno da noite, foi transferido? Onde o Smith ganhou aquele olho roxo? Ficávamos a especular por uma semana sobre coisas tão triviais como aquele olho roxo. Algum prisioneiro que recebesse um mês na solitária era um acontecimento para nós. E, ainda assim, pouco aprendíamos com esses Dantes transitórios e geralmente estúpidos que permaneciam no nosso inferno um tempo .curto demais para aprender a conversar com os nós dos dedos antes de voltarem para o vasto mundo luminoso dos vivos. Mesmo assim, nem tudo era tão trivial na nossa morada de sombras. Por exemplo, ensinei Oppenheimer a jogar xadrez. Pense como foi tremenda essa conquista: ensinar um homem, a treze celas de distância, por meio de batidas com os nós dos dedos; ensiná-lo a visualizar o tabuleiro, a visualizar todas as peças, peões e posições, a conhecer os vários movimentos; e ensinálo tão bem que ele e eu, por pura visualização, pudemos afinal jogar partidas inteiras de xadrez em nossas mentes. Afinal, disse eu? Outro tributo à grandeza da mente de Oppenheimer: afinal ele se tornou meu mestre no jogo — ele, que nunca tinha visto uma peça de xadrez em toda sua vida. Que imagem de um bispo, por exemplo, poderia talvez se formar em sua mente quando eu batia nosso sinal codificado para bispo? Em vão, e com freqüência, fiz-lhe essa pergunta. Em vão ele tentou descrever em palavras a imagem mental de algo que nunca tinha visto; mas que, mesmo assim, era

capaz de manusear com tal mestria que me deixava confuso inúmeras vezes durante uma partida. Posso apenas meditar sobre tais exibições de vontade e de espírito e concluir, como tantas vezes concluí, que precisamente ali reside a realidade. Apenas o espírito é real. A carne é fantasma, é aparição. Eu lhe pergunto como — repito, como a matéria ou a carne, sob qualquer forma, poderiam jogar xadrez sobre um tabuleiro imaginário, com peças imaginárias, através de um vácuo de treze celas coberto apenas pelas batidas dos nós dos dedos?

CAPITULO 15 Fui um dia Adam Strang, um inglês. O período em que vivi, tanto quanto posso imaginar, foi algo entre 1550 e 1650 e cheguei até uma idade bem avançada, como você há de ver. Arrependo-me bastante, desde que Ed Morrell me ensinou o caminho da pequena morte, de não ter sido um estudante mais aplicado da História. Eu teria sido capaz de identificar e localizar muitas das coisas que são obscuras para mim. O fato é que sou obrigado a andar às apalpadelas e a imaginar meu caminho aos tempos e lugares das minhas existências anteriores. Uma coisa peculiar sobre minha existência de Adam Strang é como me lembro pouco de seus primeiros 30 anos. Muitas vezes, na camisa-de-força. Adam Strang irrompeu, mas ele sempre emergia já adulto, músculos fortemente desenvolvidos, um homem de seus 30 anos. Eu, Adam Strang, invariavelmente assumo minha consciência num grupo de ilhas planas e arenosas em algum lugar abaixo do Equador, naquilo que deve ser a banda ocidental do Oceano Pacífico. Ali me sinto sempre em casa e parece que ali estou já há algum tempo. Existem milhares de habitantes nestas ilhas, mas sou o único homem branco. Os nativos são uma raça magnífica, musculosos, ombros largos, altos. Um homem de um metro e oitenta e cinco é comum. O rei, Raa Kook, tem pelo menos 15 centímetros além do metro e oitenta e cinco e embora pese lá seus 140 quilos, é tão bem proporcionado que ninguém poderia chamá-lo de gordo. Muitos dos seus chefes são tão grandes quanto ele e as mulheres não são muito menores que os homens. Existem inúmeras ilhas no arquipélago e sobre todas elas reina Raa Kook, embora o grupo de ilhas ao sul seja insubmisso e ocasionalmente se revolte. Esses nativos com quem vivo são polinésios, sei disso porque seus cabelos são lisos e negros. Sua pele tem um cálido tom marrom-dourado. Sua língua, que falo com admirável facilidade, é redonda, rica e musical; possui uma exigüidade de consoantes e é composta principalmente por vogais. Eles amam as flores, a música, a dança e os jogos e são infantilmente simples e felizes em suas brincadeiras, mas cruelmente selvagens em suas raivas e suas guerras. Eu, Adam Strang, conheço meu passado mas pareço não pensar muito sobre ele. Eu vivo no presente. Não me preocupo com o passado nem com o futuro. Sou descuidado, negligente, imprevidente, feliz com o puro bem-estar

e a plenitude da força física. Peixes, frutas, legumes e algas — uma barriga cheia, e estou contente. Minha posição é tão elevada quanto a de Raa Kook, de quem ninguém é mais elevado, nem mesmo Abba Taak, que é o mais supremo entre os sacerdotes. Nenhum homem ousa levantar mão ou arma contra mim. Sou tabu — sou sagrado como a sagrada casa da canoa, sob cujo assoalho repousam os ossos sabem os céus de quantos antigos reis da linhagem de Raa Kook. Sei muito bem como aconteceu de eu naufragar e estar aqui, o único de toda a tripulação do meu navio — foi um grande naufrágio e um grande vendaval; mas não fico a lembrar essa catástrofe. Quando chego a pensar no passado, prefiro pensar mais lá atrás na minha infância às saias da minha bela mãe inglesa de pele leitosa e cabelos cor de Unho. E numa pequena aldeia com uma dúzia de cabanas cobertas de palha que eu vivia. Ouço ainda o melro e o tordo nas sebes e vejo ainda as campânulas azuis se derramando dos bosques de carvalho sobre a turfa aveludada, como espuma de águas azuis. E sobretudo lembro-me de um grande garanhão de patas peludas, sempre levado a correr, escoicear e relinchar pela rua estreita. Eu tinha medo do imenso animal e sempre corria aos berros para minha mãe, onde quer que a encontrasse, agarrando suas saias e nelas me escondendo. Mas chega. A infância de Adam Strang não é o que me propus escrever. Vivi muitos anos nessas ilhas que para mim não têm nome e onde estou certo de que fui o primeiro homem branco. Casei com Lei-Lei, a irmã do rei, que tinha alguns centímetros acima de um metro e oitenta e cinco e só por aqueles centímetros me ultrapassava. Eu era uma figura esplêndida de homem, ombros largos e peito forte, bem constituído. As mulheres de qualquer raça, como você verá, olhavam para mim com interesse. Nas minhas axilas, protegida do sol, minha pele era leitosa como a da minha mãe. Meus olhos eram azuis. Meu bigode, minha barba e meus cabelos eram daquele amareloouro que se vê nas pinturas dos reis nórdicos dos mares. Ai de mim! Devo ter saído daquela velha cepa há muito estabelecida na Inglaterra e, embora nascido numa cabana no campo, o mar ainda corria tão salgado em meu sangue que cedo abri meu caminho até os navios e tomei-me um marujo. E isso é o que eu fui — não oficial nem cavalheiro, mas marujo, treinado, valente, resistente. Eu era valioso para Raa Kook, daí sua proteção real. Eu podia trabalhar o ferro, e nosso navio naufragado trouxe o primeiro ferro à terra de Raa Kook. Às vezes, dez léguas a noroeste, íamos em canoas buscar ferro dos destroços. O casco tinha se afastado dos recifes e se encontrava a uma

profundidade de 15 braças. E da profundidade de 15 braças trouxemos o ferro. Maravilhosos mergulhadores e trabalhadores submarinos eram esses nativos. Aprendi a mergulhar minhas 15 braças, mas jamais consegui igualálos, peixes eles, em suas proezas. Em terra firme, devido ao meu treinamento inglês e minha força, eu podia vencer qualquer um deles. Também lhes ensinei a lutar com bastões até que o jogo tomou-se uma epidemia e cabeças rachadas deixaram de ser novidade. Recolhido dos destroços havia um diário, tão rasgado, deformado e empastado pela água do mar e com a tinta tão manchada que mal se decifrava alguma coisa. No entanto, na esperança de que algum estudioso de coisas antigas possa ser capaz de localizar mais definidamente a data dos eventos que vou descrever, reproduzo aqui um trecho. A ortografia peculiar talvez dê a pista. Repare que, embora a letra s seja usada, ela é freqüentemente substituída pela letra f.

Com os ventos eflando favoráveis, deu-nos uma oportunidade de examinar e secar algumas de nossas profisões, particularmente, alguns prefuntos chinefes e peixe seco, que coftituiam parte de nossos viveres. O serviço divino também foi realizado no convés. À tarde o vento era do sul, com novas rajadas de vento, porém sem chuvas, de modo que fomos capazes na manhã feguinte de limpar entre os confeses e também de fumigar a embarcação com pólvora. Mas preciso me apressar, pois minha narrativa não é do Adam Strang marujo naufragado numa ilha de coral, mas do Adam Strang mais tarde chamado Yi Yong-ik, o Poderoso, que foi um dia favorito do poderoso Yunsan, que foi o amante e marido de Lady Om da casa real de Min e que foi, por longo tempo, mendigo e pária em todas as aldeias de toda a costa e de todas as estradas de Cho-Sen. (Ah, aí está: Cho-Sen. Significa a terra da calma matinal. Em linguagem moderna, é chamada Coréia.) Lembre-se de que foi há três ou quatro séculos que eu vivi, o primeiro homem branco nas ilhas de coral de Raa Kook. Naquelas águas, naquela época, quilhas de navios eram raras. Eu bem poderia lá ter terminado meus dias, em paz e fartura, sob o sol onde o frio não existia, se não fosse pelo Sparwehr. O Sparwehr era um navio mercante holandês a se aventurar por mares inavegados em busca das índias além das índias. Em vez delas, ele encontrou a mim, e eu fui tudo que ele encontrou.

Pois já não disse que eu era um gigante de coração alegre e barba dourada, um menino irresponsável que jamais cresceu? Com mal uma ponta de saudade, quando as barricas de água do Sparwehr se encheram deixei Raa Kook e sua terra aprazível, deixei Lei-Lei e suas irmãs com guirlandas de flores e, com uma gargalhada em meus lábios e os cheiros familiares do navio a adoçar minhas narinas, fiz-me ao mar, marujo uma vez mais, sob o Capitão Johannes Maartens. Um vagamundear maravilhoso, aquele que se seguiu no velho Sparwehr. Estávamos em busca de novas terras de sedas e especiarias. Na realidade, encontramos as febres, a morte violenta e paraísos pestilentos onde a beleza e a morte juntas guardavam seus ossários. Aquele velho Johannes Maartens, sem um indício de romantismo na cara impassível e na grisalha cabeça quadrada, buscava as ilhas de Salomão, as minas de Golconda — ai de mim! Ele buscava a antiga Atlântida perdida que esperava encontrar ainda a flutuar à tona d'água. Em vez dela, encontrou simiescos antropófagos caçadores de cabeças. Aportamos em ilhas estranhas, com o mar a banhar suas praias e rolos de fumaça a sair de seus picos, onde animalescos pigmeus de cabelo pixaim davam urros grotescos na selva, cobriam os atalhos das matas com espinhos e covas cheias de estacas e sopravam dardos envenenados sobre nós de dentro do silêncio da selva crepuscular. E qualquer um de nós que fosse mordido por um daqueles dardos sofria uma morte horrível, a uivar. E encontramos outros homens, mais ferozes, maiores, que nos enfrentaram nas suas praias em combate aberto, fazendo chover sobre nós lanças e flechas enquanto os grandes tambores e os pequenos tom-toms ressoavam e rufavam a guerra através dos vales arborizados e em todas as colinas víamos colunas de fumaça. Hendrik Hamel era oficial comercial e co-proprietário da aventura do Sparwehr, o que não era dele pertencia ao Capitão Johannes Maartens. O capitão mal falava inglês, Hendrik Hamel apenas um pouco mais. Os marujos, aos quais me juntei, falavam apenas holandês. Mas confie num marujo para aprender holandês — e, ai de mim! Também coreano, como você verá. Finalmente chegamos ao país do Japão, como mostravam nossas cartas náuticas. Mas o povo não quis negociar conosco e dois oficiais com espadas, envoltos em quimonos de seda que fizeram salivar a boca do Capitão Johannes Maartens, vieram a bordo e polidamente pediram que nos fôssemos. Sob suas maneiras suaves havia o ferro de uma raça guerreira; percebemos e seguimos nosso caminho.

Cruzamos o Estreito do Japão e estávamos entrando no Mar Amarelo a caminho da China quando o Sparwehr foi lançado sobre as rochas. Era uma pobre banheira, o velho Sparwehr, tão desajeitado e com tantas barbas de vida marinha em seu casco que não conseguiu sair por conta própria. Mudamos o curso para deixá-lo a favor do vento, mas o máximo que ele girou foi 67 graus; e então ficou a se balouçar sem rumo, como um nabo abandonado em alto-mar. Uma galeota era ágil comparada com o Sparwehr. Aproá-lo era impensável; virá-lo com a popa a favor do vento exigiu todas as mãos e metade da noite. Assim estávamos quando fomos lançados a sotavento sobre a costa por uma mudança de 90 graus do vento no olho de um furacão que nos atormentava a alma havia dois dias. Fomos atirados na costa à luz gélida de uma aurora tempestuosa no dorso de cruéis vagalhões da altura de montanhas. Era o auge do inverno e, na obscuridade da violenta nevasca, podíamos vislumbrar a costa aterrorizante, se costa podia ser chamada, tão quebrada era. Havia sombrias ilhas e ilhotas rochosas além da conta, vagos espaços cobertos de neve além; por toda parte, rochedos a prumo, íngremes demais para a neve, e de súbito surgiam promontórios e pináculos e estilhaços de rocha jogados para o alto pelo mar em fúria. Não havia nenhum nome para esse país ao qual chegamos, nenhum registro de que tivesse sido jamais visitado por navegadores. Sua linha costeira estava apenas sugerida nas nossas cartas náuticas. E daquilo tudo, só podíamos ter razões para esperar que os habitantes fossem tão inospitaleiros quanto o pouco de sua terra que podíamos ver. O Sparwehr bateu de proa num rochedo. Havia água funda no pé do tombadilho e nosso gurupés inclinado para cima rachou com o impacto e se partiu. O mastro do traquete saiu pela amurada, com um grande estardalhaço de enxárcias e estais, e caiu para a frente contra o rochedo. Sempre admirei o velho Johannes Maartens. Varridos e arrancados do castelo de popa por um súbito vagalhão, fomos atirados no meio do navio, de onde lutamos para abrir caminho até o sólido castelo de proa. Outros uniramse a nós. Amarramo-nos com firmeza e contamos as cabeças. Éramos dezoito. O resto tinha perecido. Johannes Maartens cutucou-me e apontou para cima através da cachoeira de água salgada da arrebentação no rochedo. Percebi o que ele queria. Seis metros abaixo do cesto da gávea, o mastro do traquete apoiava-se e se esmagava contra uma saliência do rochedo. Acima dessa saliência havia uma fenda. Ele queria saber se eu ousaria pular do topo do mastro na fenda.

Às vezes a distância era de apenas dois metros. Às vezes era de seis metros, pois o mastro andava à roda como um bêbado com os balanços e pancadas violentas no casco onde repousava sua base rachada. Comecei a escalada. Mas eles não esperaram. Um a um, se desamarraram e me seguiram pelo perigoso mastro acima. Havia razão para a pressa, pois a qualquer momento o Sparwehr podia escorregar para águas profundas. Sincronizei meu salto e saltei, aterrissando de quatro na fenda e pronto para dar uma mão àqueles que pulariam depois. Foi um trabalho vagaroso. Estávamos molhados e semicongelados na força do vento. Além disso, o salto tinha de ser sincronizado com os movimentos do casco e o balanço do mastro. O cozinheiro foi o primeiro a ir. Ele foi arrancado do mastro e seu corpo deu uma cambalhota no ar ao cair. A arrebentação apanhou-o e esmagou-o contra o rochedo. O taifeiro, um homem barbado de uns vinte anos, perdeu a mão, escorregou, rodou em volta do mastro e foi esmagado contra a saliência do rochedo. Esmagado? A vida foi espremida dele num instante. Dois outros seguiram o caminho do cozinheiro. O Capitão Johannes Maartens foi o último a pular, completando os quatorze de nós que se agarravam na fenda. Uma hora mais tarde, o Sparwehr escorregou e afundou em águas profundas. Dois dias e duas noites nos viram próximos de perecer naquele rochedo, pois não havia caminho nem para cima nem para baixo. Na terceira manhã, um barco de pesca nos achou. Os homens estavam vestidos inteiramente num branco sujo, com os longos cabelos amarrados num nó curioso no alto da cabeça — o nó matrimonial, como vim a saber mais tarde, e também, como vim a saber, uma coisa prática para ser agarrada com uma mão enquanto você batia com a outra, quando uma briga degenerava além das palavras. O barco voltou à aldeia para buscar ajuda, e a maior parte dos aldeãos, a maior parte de seus petrechos e a maior parte do dia foram necessários para nos trazer para baixo. Era um povo pobre e miserável, sua comida difícil até mesmo para o estômago de um marujo tolerar. Seu arroz era marrom como chocolate. Metade da casca permanecia nele, junto com pedaços de palha, lascas e sujeira inidentificável que nos fazia freqüentemente parar de mastigar para enfiar o polegar e o indicador na boca e apanhar a substância intrusa. Eles também comiam uma espécie de painço e uma assombrosa variedade de picles impiamente apimentados.

Suas casas tinham paredes de barro e tetos de palha. Sob o assoalho corriam os canos da chaminé pelos quais escapava a fumaça da cozinha que, de passagem, aquecia o dormitório. Aqui deitamos e descansamos vários dias, acalmando-nos com seu tabaco suave e sem gosto, que fumávamos em pequenas tigelas com tubos de um metro de comprimento. Também havia uma bebida quente, amarga e leitosa, que só subia à cabeça quando tomada em doses enormes. Depois de me empanturrar com, juro, litros dela eu ficava bêbado a ponto de cantar, que é o que fazem os marujos no mundo inteiro. Encorajados pelo meu sucesso, os outros continuavam a beber e logo estávamos todos aos berros, pouco ligando para a nova rajada de neve a zumbir lá fora e pouco nos preocupando por estarmos perdidos numa terra fora dos mapas e esquecida por Deus. O velho Johannes Maartens ria e trombeteava e dava palmadas na coxa como todos nós. Hendrik Hamel, frio e formal holandês moreno com pequenos olhos negros, fazia tantas estripulias quanto o resto do grupo e desovava prata como qualquer marinheiro bêbado para comprar mais da beberagem leitosa. Nosso comportamento era um escândalo; mas as mulheres traziam a bebida enquanto toda a aldeia se espremia na casa para contemplar nossas extravagâncias. O homem branco dominou o mundo, acredito, por causa de sua estúpida despreocupação. Essa tem sido a maneira como ele age, embora, é claro, ele seja guiado pela sua inquietação e sua sede de pilhagem. E assim foi que o Capitão Johannes Maartens, Hendrik Hamel e os doze marujos fazíamos algazarra e berrávamos na aldeia dos pescadores enquanto as rajadas do inverno assobiavam através do Mar Amarelo. Do pouco que tínhamos visto da terra e do povo, não estávamos impressionados por Cho-Sen. Se esses pescadores miseráveis eram uma boa amostra dos nativos, podíamos entender por que sua terra não era visitada por navegadores. Mas veríamos que não era assim. A aldeia ficava numa ilha interior e seu chefe deve ter enviado uma mensagem para o continente; pois uma manhã, três grandes juncos de dois mastros com velas triangulares de cetim-de-arroz ancoraram ao largo. Quando as sampanas chegaram à terra, o Capitão Johannes Maartens interessou-se todo, pois aqui havia sedas novamente. Um coreano robusto, vestido em sedas pálidas de várias cores, rodeava-se por meia dúzia de fâmulos obsequiosos também envoltos em seda. Kwan Yung-jin, como vim a saber seu nome, era um yang-ban, ou nobre; era também o que se poderia chamar magistrado ou governador do distrito ou província. Isso significa que seu cargo era de nomeação e que ele extorquia dízimos ou arrendava terras.

Uns cem soldados também desembarcaram e marcharam para a aldeia. Estavam armados com chuços de três choupas, reforçados e de gume afiado; e vimos aqui e ali um mosquete de tipo tão antigo que havia dois soldados para cada mosquete: um para carregar e instalar a forquilha sobre a qual repousava a boca, o outro para carregar e disparar a arma. Como eu ficaria sabendo, às vezes a arma disparava e às vezes não, tudo dependendo do ajuste da estopilha e do estado da pólvora na câmara de disparo. Era assim então que Kwan Yung-jin viajava. Os chefes da aldeia encolhiam-se de medo dele, e por boas razões, como não demoramos muito a descobrir. Dei um passo à frente como intérprete, pois já tinha uma idéia de várias vintenas de palavras coreanas. Ele fez uma carranca e me afastou com um gesto da mão. Mas e eu lá fiz caso dele? Eu era tão alto quanto ele, pesava bem uns 15 quilos a mais e minha pele era branca, meus cabelos dourados. Ele virou as costas e dirigiu-se ao chefe da aldeia enquanto seus seis satélites em seda formavam uma barreira entre nós. Enquanto ele falava, os soldados trouxeram do navio várias tábuas grandes. Essas tábuas tinham cerca de um metro e oitenta de comprimento e meio metro de largura, e eram curiosamente partidas no meio no sentido do comprimento. Mais ou menos no meio havia um buraco redondo, maior que o pescoço de um homem. Kwan Yung-jin deu uma ordem. Vários soldados se aproximaram de Tromp, que estava sentado no chão tratando de uma ferida no dedo do pé. Tromp era um marujo bastante estúpido, de pensamento e movimentos vagarosos, e antes que ele soubesse o que estava acontecendo, uma das pranchas, abrindo e fechando como uma tesoura, foi passada em volta de seu pescoço e presa com braçadeiras. Ao ver-se nesse apuro, ele se pôs a rugir e pular como um touro e tivemos de recuar para abrir espaço às pontas voadoras de sua ganga. E então a confusão começou, pois ficou claro que a intenção de Kwan Yung-jin era pôr gangas em todos nós. Ah, lutamos com as mãos nuas contra uma centena de soldados e outros tantos aldeãos, enquanto Kwan Yung-jin mantinha-se apartado em suas sedas e seu desdém senhoril. Foi aqui que ganhei meu nome: Yi Yong-ik, o Poderoso. Muito depois que meus companheiros foram subjugados e postos em gangas, eu continuava a lutar. Meus punhos tinham a dureza de martelos de demolição e eu tinha músculos e a vontade para usá-los. Para minha alegria, logo descobri que os coreanos nada conheciam de pugilato e não tinham a mais remota noção de fechar a guarda. Eles se iam

por terra como balizas de boliche, caíam uns sobre os outros em montões. Mas Kwan Yung-jin era quem eu queria e o que o salvou quando me precipitei sobre ele foi a intervenção de seus satélites. Mas eles não passavam de poltrões. Derrubei-os em desordem e amarrotei suas sedas antes que a multidão pudesse pular de novo sobre mim. Havia tantos, tantos deles! Entravavam meus socos pela pura superioridade numérica, os de trás empurrando os da frente para cima de mim. E como eu os derrubei! No fim eles se retorciam em pilhas de três aos meus pés. Mas quando a tripulação dos três juncos e a maior parte da aldeia estavam em cima de mim, fiquei sufocado. Pôr a ganga foi fácil. — Deus do céu, e agora? — perguntou Vandervoot, um dos marujos, quando fomos amontoados a bordo de um dos juncos. Estávamos sentados no convés superior como galinhas atadas quando Vandervoot fez essa pergunta e, no momento seguinte, o junco se inclinou a favor do vento e fomos atirados pelo convés, gangas e tudo, e batemos contra a amurada a sotavento com o pescoço todo esfolado. E do castelo de popa Kwran Yung-jin olhava para nós como se não nos visse. Durante os muitos anos vindouros, Vandervoot ficou conhecido entre nós como “Vandervoot-eagora?”. Pobre-diabo! Ele morreu congelado uma noite nas ruas de Kei-jo, com todas as portas fechadas para ele. No continente fomos levados e atirados numa prisão fedorenta e infestada de piolhos. Assim foi nossa apresentação à classe dominante de Cho-Sen. Mas eu vingaria todos nós de Kwan Yung-jin, como você verá, nos dias em que Lady Om foi minha dama e o poder estava em minhas mãos. Na prisão ficamos por muitos dias. Soubemos mais tarde o motivo. Kwan Yung-jin havia mandado uma mensagem para Kei-jo, a capital, indagando as disposições reais a nosso respeito. Enquanto isso, estávamos numa vitrine. Da manhã à noite nossas janelas gradeadas eram assediadas pelos nativos, pois nenhum membro de nossa raça tinham eles visto antes. Nem era nossa platéia apenas a ralé. Damas, conduzidas em palanquins aos ombros dos cules, vinham ver os estranhos demônios trazidos pelo mar e, enquanto seus servos faziam recuar a gentalha com chicotes, elas olhavam demorada e timidamente para nós. Delas pouco víamos, pois seus rostos estavam cobertos de acordo com o costume do país. Só dançarinas, mulheres das classes baixas e avozinhas eram vistas em público com o rosto descoberto. Imaginei com freqüência que Kwan Yung-jin sofria de indigestão e que, quando os ataques eram agudos, ele jogava a culpa em nós. De qualquer modo, sem razão nem motivo, sempre que lhe vinha o capricho, éramos

todos levados para a rua diante da prisão e espancados com bastões, diante dos gritos alegres da multidão. O asiático é uma fera cruel e se delicia com o espetáculo do sofrimento humano. De qualquer modo, ficamos felizes quando chegaram ao fim nossos espancamentos. Isso foi causado pela chegada de Kim. Kim? Tudo que posso dizer, e o melhor que posso dizer, é que ele era o homem de pele mais clara que encontrei em Cho-Sen. Ele comandava cinqüenta homens quando o conheci. E fazê-lo comandante dos guardas do palácio, antes do meu fim, foi o melhor que fiz por ele. E finalmente ele morreu por Lady Om e por mim. Kim... bem, Kim era Kim. Após sua chegada, as gangas foram tiradas dos nossos pescoços e fomos alojados na melhor estalagem que o lugar ostentava. Ainda éramos prisioneiros, mas prisioneiros honoráveis com uma guarda de cinqüenta cavaleiros. No dia seguinte estávamos a caminho na estrada real, quatorze marinheiros montados nos cavalos anões de Cho-Sen, rumo à capital Kei-jo. O Imperador, assim me disse Kim, havia expressado o desejo de mirar a estranheza dos demônios do mar. Foi uma jornada de muitos dias, metade da extensão de Cho-Sen de norte a sul. Aconteceu, na primeira parada, que dei uma caminhada e vi os cavalos anões sendo alimentados. E o que vi me fez berrar “Vandervoot-eagora?” até que toda a nossa tripulação veio correndo. Juro por minha vida que os cavalos estavam comendo sopa de feijão, sopa quente de feijão, e nada mais comeram durante toda a viagem do que sopa quente de feijão. Era o costume do país. Eram, de fato, cavalos anões. Numa aposta com Kim, levantei um deles, apesar dos seus relinchos e esperneios, e coloquei-o em volta dos ombros. E os homens de Kim, que já tinham ouvido meu novo nome, me chamaram Yi Yong-ik, o Poderoso. Kim era um homem grande para um coreano — e os coreanos são uma raça alta e musculosa — e tinha orgulho de si mesmo. Mas, cotovelo contra cotovelo, palma contra palma, derrubei-o à vontade no braço-de-ferro. E os soldados e aldeãos olhavam embasbacados e murmuravam: “Yi Yong-ik”. De certo modo, éramos uma vitrine ambulante. A notícia corria na frente e todo o pessoal dos campos se apinhava à beira da estrada para nos ver passar. Era uma infindável procissão circense. Nas cidades, à noite, nossa estalagem era assediada por multidões, de modo que não tínhamos paz até que os soldados os afastassem com picadas de lanças e golpes. Mas antes, Kim

chamava os brutamontes e lutadores locais pelo prazer de me ver amassá-los e jogá-los na poeira. Pão não havia, mas comíamos arroz branco (que não dá muito vigor aos músculos), uma carne que descobrimos ser de cachorro (animal que é regularmente abatido para os açougues de Cho-Sen) e os picles impiamente apimentados que se acaba por apreciar. E havia bebida, bebida verdadeira, não aquela beberagem leitosa; uma coisa branca e corrosiva destilada do arroz; meio litro dela mataria um fraco e tomaria um forte louco e feliz. Na cidade murada de Chong-ho, pus Kim e os notáveis da cidade debaixo da mesa com essa coisa — ou melhor, sobre a mesa, pois a mesa era o chão, onde nos acocorávamos até minhas pernas ficarem com cãibras. E todos murmuravam “Yi Yong-ik” e a notícia do meu valor chegou à nossa frente até mesmo a Kei-jo e à Corte do Imperador. Eu era mais um hóspede honrado que um prisioneiro e invariavelmente cavalgava ao lado de Kim, minhas longas pernas quase tocando o solo e, onde o passo era fundo, meus pés roçando o pó da estrada. Kim era jovem. Kim era humano. Kim era universal. Ele era um homem em qualquer lugar em qualquer país. Ele e eu conversávamos e ríamos e brincávamos o dia todo e metade da noite. E eu certamente aprendi a língua. Eu tinha esse dom, de todo modo. Até mesmo Kim se maravilhava com o modo como dominei o idioma. E eu aprendi os pontos de vista coreanos, o humor coreano, as amabilidades, os pontos fracos e os melindres coreanos. Kim me ensinou canções de flores, canções de amor, canções de bebedeira. Uma dessas era de sua autoria e tentarei fazer uma tradução tosca de seu último verso: Kim e Pak, na juventude, fizeram um pacto de se abster de bebida, mas esse pacto foi rapidamente quebrado; na velhice, Kim e Pak cantam: “Não, não, fora! A alegre caneca de novo terá minh'alma em seu seio! Bom homem, espera aí, diz-me onde vendem o vinho. Mais além do pessegueiro? Aquele logo ali? Boa sorte para ti, para lá já estou a ir!” Hendrik Hamel, calculista e astuto, sempre me encorajava e me incitava a prosseguir nessa conduta extravagante que ganhou as boas graças de Kim não apenas para mim, mas, através de mim, para o próprio Hendrik e todo o nosso grupo. Menciono aqui Hendrik Hamel como meu conselheiro, pois isso

tem conexão com muito do que se seguiu em Kei-jo para ganhar as boas graças de Yunsan, o coração de Lady Om e a tolerância do Imperador. Eu tinha a vontade e a coragem para o jogo que joguei, e um pouco da sagacidade; mas admito sem pejo que a maior parte da sagacidade foi-me fornecida por Hendrik Hamel. E assim viajamos até Kei-jo, de cidade murada para cidade murada através de montanhas nevadas fendidas em inúmeros vales com ricas fazendas. E cada noite, ao cair do dia, fogueiras surgiam de pico em pico e percorriam o país. Kim sempre observava esse espetáculo noturno. De todas as costas de Cho-Sen, disse-me Kim, esse encadeamento de sinais de fogo corria até Kei-jo para levar sua mensagem ao Imperador, Uma fogueira significava que o país estava em paz. Duas fogueiras significavam revolta ou invasão. Nunca vimos senão uma fogueira. E sempre, durante nossa cavalgada, Vandervoot levantava a questão “Deus do céu, e agora?”. Em Kei-jo encontramos uma enorme cidade onde toda a população, com exceção dos nobres, ou yang-bans, vestia-se com o eterno branco. Essa, explicou-me Kim, era uma direta determinação e proclamação da casta. Assim, a um simples olhar podia-se dizer a posição social de alguém pelo grau de limpeza ou de sujeira de suas roupas. Fazia sentido que um cule, possuindo apenas a roupa do corpo, fosse extremamente sujo. E sentido fazia que a pessoa num branco imaculado devesse possuir muitas peças para mudar e ter lavadeiras para manter suas roupas imaculadas. Quanto aos yang-bans que usavam as sedas multicoloridas em tons pastéis, eles estavam além desses padrões comuns de posição social. Após descansar numa estalagem por vários dias, durante os quais lavamos nossas vestes e reparamos os estragos do naufrágio e da viagem, fomos levados à presença do Imperador. No grande espaço aberto diante dos muros do palácios, havia colossais cães de pedra que mais pareciam tartarugas. Eles estavam agachados sobre maciços pedestais de pedra, duas vezes a estatura de um homem alto. Os muros do palácio eram imensos e de pedra lavrada. Tão grossas eram essas paredes que poderiam desafiar o mais poderoso dos canhões num cerco de um ano. O portal, em si, era do tamanho de um palácio e se elevava como um pagode, com muitos andares em recuo, cada andar com sua franja de telhas. Um disciplinado destacamento de soldados guardava o portal. Esses, disse-me Kim, eram os Caçadores de Tigres de Pyong-Yang, os mais ferozes e terríveis combatentes de que ChoSen podia orgulhar-se.

Mas chega. Só com a simples descrição do palácio do Imperador umas mil páginas da minha narrativa poderiam ser preenchidas. Basta dizer que ali vimos o poder em toda a sua expressão material. Somente uma civilização profunda, inteligente, antiga e forte poderia produzir esse pontiagudo e murado teto de reis. Para nenhum salão de audiências fomos nós marujos levados, mas, como vimos, para um salão de banquetes. O festim estava acabando e todo o grupo mostrava um humor alegre. E que grupo! Altos dignitários, príncipes de sangue, nobres com espadas, pálidos monges, bronzeados oficiais de alto comando, damas da corte com o rosto descoberto, dançarinas ou ki-sang pintadas a descansar dos bailados, mais as damas de companhia, criadas, eunucos, lacaios e escravos do palácio, uma infinidade deles. Todos se afastaram de nós, no entanto, quando o Imperador, com um séquito de seus íntimos, adiantou-se para nos lançar um olhar. Ele era um monarca alegre, especialmente para um asiático. Não mais de 40 anos, com uma pele clara e pálida que jamais viu o sol, ele era pançudo e tinha as pernas bambas. Ainda assim, ele certamente foi um dia um belo homem. A testa nobre o atestava. Mas os olhos eram turvos, as pálpebras caídas, os lábios a se contrair e tremer por causa dos vários excessos a que se entregava; excessos que, como vim a saber, eram na sua maioria maquinados e inculcados por Yimsan, o monge budista, de quem logo saberemos mais. Em nossos trajes de marinheiros, formávamos um grupo heterogêneo e heterogênea foi a disposição com que fomos recebidos. As exclamações de espanto diante da nossa estranheza deram lugar às gargalhadas. As ki-sang nos cercaram, cutucaram e envolveram, duas ou três delas para cada um de nós, nos levaram em roda como ursos dançarinos exibindo nossa extravagância. Era ofensivo, é verdade, mas o que poderiam pobres marujos fazer? O que poderia o velho Johannes Maartens fazer, com um grupo de moças a gargalhar à sua volta, apertando seu nariz, beliscando seus braços, fazendo cócegas em suas costelas até ele corcovear? Para escapar a tal tormento, Hans Amden abriu espaço e deu uma devastadora demonstração de desajeitados pés holandeses que fez a Corte estourar em gargalhadas. Era ofensivo para mim, que tinha sido igual e íntimo de Kim por tantos dias. Resisti às risonhas ki-sang. Retesei as pernas e postei-me aprumado com os braços cruzados; nenhum beliscão ou cócega me fazia estremecer. Assim, elas me abandonaram por presas mais fáceis.

— Pelo amor de Deus, homem, faça alguma coisa para impressionar — murmurou Hendrik Hamel, que abriu caminho até mim com três ki-sang à sua volta. E bem fez ele em murmurar, pois, cada vez que abria a boca para falar, elas a enchiam de doces. — Livre-nos dessa loucura — insistiu ele, virando a cabeça para o lado para evitar as mãos cheias de doces. — Precisamos ter dignidade, entendeu? Dignidade. Isso vai nos arruinar. Elas estão brincando conosco como animais domesticados. Quando se cansarem, vão nos jogar fora. Você é que está fazendo a coisa certa. Agüente. Mantenha-as longe. Exija respeito, respeito para todos nós... O fim foi quase inaudível, pois nesse instante uma ki-sang encheu sua boca e ele não pôde mais falar. Como eu disse, eu tinha a vontade e a coragem e espremi meu cérebro de marujo em busca da sagacidade. Um eunuco do palácio, fazendo cócegas na minha nuca com uma pena, deu-me a idéia. Eu já estava chamando atenção pela minha altivez e pela minha indiferença aos ataques das ki-sang, de modo que muitos estavam observando o eunuco a me provocar. Não dei nenhum sinal, não fiz nenhum movimento, até que o localizei às minhas costas e calculei a distância. Então, como um tiro, sem virar cabeça nem tronco, só movendo o braço, desfechei uma bofetada estalada com as costas da mão. Os nós dos meus dedos bateram em cheio na sua bochecha e mandíbula. Houve um estalo, como um mastro a se partir num vendaval. Ele foi atirado no ar e caiu amontoado a uns quatro metros de distância. Não houve nenhuma risada, só gritos de surpresa e murmúrios e sussurros de “Yi Yong-ik”. Mais uma vez cruzei os braços e me aprumei com uma bela pose de arrogância. Acredito que, entre outras coisas, eu. Adam Strang, tinha em mim a alma de um ator. Pois veja o que se seguiu. Eu era agora o mais importante do nosso grupo. Com um olhar cheio de orgulho e desdém, enfrentei sem pestanejar os olhares postos sobre mim e os fiz se baixarem ou se desviarem — todos os olhares, exceto um. Esses eram os olhos de uma jovem que julguei, pela riqueza do traje e pela meia-dúzia de mulheres a se alvoroçar às suas costas, ser uma dama de distinção na corte. Na verdade, era Lady Om, princesa da casa de Min. Eu disse jovem? Ela tinha bem a minha idade, uns 30, e mesmo assim e em sua maturidade e beleza, uma princesa ainda solteira, como eu viria a saber. Ela, e só ela, olhou-me nos olhos sem pestanejar, até que fui eu que desviei os olhos. Ela não escarnecia de mim, pois não havia desafio nem

antagonismo em seus olhos — apenas fascinação. Odiei ter de admitir essa derrota para uma mulher; e meus olhos, voltando-se para os lados, lampejaram diante da inglória debandada de meus companheiros com as kisang em seu encalço, e isso me fez agir. Bati as mãos à moda asiática de quem dá ordens. — Chega! — trovejei na própria língua deles e da maneira como um nobre se dirige a subordinados. Ah, que peito eu tinha, que garganta! Eu podia rugir como um touro, de ferir os tímpanos. Garanto que nunca antes uma ordem tão estrondeante vibrou no ar sagrado do palácio do Imperador. O salão ficou horrorizado. As mulheres se assustaram e se apertaram umas às outras para proteção. As ki-sang soltaram os marujos e recuaram, com gritinhos de apreensão. Apenas Lady Om não fez nenhum sinal, nenhum movimento, mas continuou a me fitar diretamente nos olhos, que tinham voltado aos dela. Então caiu um grande silêncio, como se todos esperassem alguma calamidade. Uma multidão de olhos passava timidamente do Imperador para mim e de mim para o Imperador. E eu tive a sagacidade de me manter em silêncio e ficar ali parado, braços cruzados, arrogante e alheio. — Ele fala nossa língua — disse o Imperador por fim; e juro que houve um tal soltar de respirações suspensas que toda a sala foi um único e vasto suspiro. — Nasci com essa língua — respondi, minha sagacidade de marujo se aproveitando temerariamente da primeira loucura que me ocorreu — Eu falo essa língua desde o colo da minha mãe. Fui o assombro da minha terra. Homens sábios vinham de longe para me ver e me ouvir. Mas nenhum homem conhecia as palavras que eu pronunciava. Nesses muitos anos muito esqueci, mas agora, em Cho-Sen, as palavras voltam a mim como amigos há muito perdidos. Uma impressão eu certamente causei. O Imperador engoliu saliva e seus lábios tremeram antes de me perguntar: — Como explicas isso? — Sou um acidente — respondi, seguindo o filão caprichoso aberto pela minha sagacidade. — Os deuses do nascimento foram descuidados e fui entregue numa terra distante e criado por um povo estrangeiro. Eu sou coreano e agora, por fim, cheguei ao meu lar.

Quantos murmúrios excitados, quantos cochichos! O próprio Imperador interrogou Kim. — Ele sempre foi assim, nossa língua em sua boca, desde o momento que saiu do mar — mentiu Kim, como o bom companheiro que era. — Tragam-me os trajes de yang-han que me convém — interrompi — e vocês verão. Quando estava saindo para vestir meus novos trajes, voltei-me para as ki-sang. — E deixem meus escravos em paz. Eles viajaram muito e estão cansados. São meus escravos fiéis. Numa sala ao lado, Kim dispensou os lacaios e me ajudou a trocar de roupa; e com rapidez e exatidão ensinou-me como usar as roupas que eu agora vestia. Ele não sabia o que eu pretendia, não mais do que eu mesmo, mas era um bom companheiro. De volta ao salão e falando um coreano que eu afirmava estar enferrujado pela longa falta de uso, achei engraçado perceber que Hendrik Hamel e o resto do nosso grupo, com suas línguas duras para novos idiomas, não tinham entendido uma só palavra de tudo aquilo. — Eu tenho o sangue da casa de Koryu! — afirmei ao Imperador — que reinou em Song-do há muitos e muitos anos, quando minha casa levantou-se sobre as ruínas de Silla. História antiga, tudo isso, contada a mim por Kim durante a longa viagem, e ele lutava para segurar o riso enquanto me ouvia repetir como um papagaio seus ensinamentos. — Esses são meus escravos, todos eles — expliquei quando o Imperador me perguntou sobre meus companheiros e, apontando para Johannes Maartens —, exceto aquele velho campônio ali, que é filho de um homem liberto. Fiz sinal a Hendrik Hamel para se aproximar e continuei na minha veia caprichosa. — Este aqui nasceu na casa de meu pai de uma raça de escravos lá nascida antes dele. Ele é muito apegado a mim. Somos da mesma idade, nascidos no mesmo dia, e meu pai deu-o para mim naquele dia. Mais tarde, quando Hendrik Hamel estava ansioso para saber tudo que eu tinha dito, e quando lhe contei, ele me censurou e foi tomado de fúria. — Agora já está feito, Hendrik — expliquei. — O que eu fiz foi por pura falta de uma idéia melhor e pela necessidade de dizer alguma coisa. Mas

já está dito. Nem você nem eu podemos desmanchar o que está feito. O jeito é representar os nossos papéis e fazer o melhor que podemos. Taiwun, o irmão do Imperador, era o beberrão dos beberrões e quando a noite caiu desafiou-me para uma bebedeira. O Imperador ficou encantado e ordenou que uma dúzia dos mais nobres beberrões tomasse parte na competição. As mulheres foram dispensadas e começamos a beber, copo a copo, trago a trago. Conservei Kim ao meu lado e no meio da noitada, apesar das carrancas de aviso de Hendrik Hamel, dispensei o nosso grupo todo, mas antes solicitei, e obtive, alojamentos no palácio em vez da estalagem. No dia seguinte o palácio estava em polvorosa com o meu feito, pois deixei Taiwun e todos os seus campeões a roncar sobre as esteiras e caminhei sem auxílio para a minha cama. Nunca, mesmo nos dias trágicos que vieram mais tarde, Taiwun duvidou da minha afirmação de nascimento coreano. Só um coreano, insistia ele, poderia ter uma cabeça tão forte. O palácio era uma cidade em si mesmo e fomos alojados numa espécie de residência de verão que ficava apartada. Os alojamentos principescos eram meus, é claro; Hamel, Maartens e o resto dos marujos tiveram de se contentar, resmungando, com o que sobrou. Fui chamado à presença de Yunsan, o monge budista que mencionei. Era a primeira vez que ele me via e a primeira vez que eu o via. Até mesmo Kim ele dispensou, e sentamos sozinhos sobre esteiras grossas numa sala crepuscular. Senhor, Senhor, que homem era Yunsan, que mente! Ele se pôs a sondar minha alma. Ele conhecia coisas de outras terras e lugares que ninguém em Cho-Sen sonhava conhecer. Teria ele acreditado na fábula do meu nascimento? Eu não fazia idéia, pois seu rosto era menos expressivo que uma tigela de bronze. Quais seriam os pensamentos de Yunsan, só Yunsan sabia. Mas nele, nesse monge magro e pobremente vestido, senti o poder por trás do trono em todo o palácio e em toda Cho-Sen. Senti também, através da máscara das palavras, que ele tinha um uso para mim. Agora, teria esse uso sido sugerido por Lady Om? — uma noz que dei para Hendrik Hamel descascar. Eu pouco sabia, e menos ainda me importava, pois vivia sempre no momento presente e deixava para os outros a previsão, a prevenção e a agonia das ansiedades. Atendi, também, ao chamado de Lady Om e segui um eunuco de rosto macio e pés de gato através dos silenciosos labirintos secretos do palácio até seus apartamentos. Ela estava instalada como uma princesa de sangue deve se instalar. Também tinha um palácio para si, entre lagos de lótus onde cresciam florestas com três séculos de idade mas tão ananzadas que não chegavam à

altura do meu umbigo. Pontes de bronze, tão delicadas e raras que pareciam obra de um joalheiro, atravessavam seus lagos de lírios, e uma alameda de bambus escondia seus alojamentos do resto do palácio. Minha cabeça girava. Marujo que era, eu não era nenhum tolo com as mulheres e pressentia mais do que mera curiosidade no fato de ela mandar me chamar. Eu tinha ouvido histórias de amor entre homens comuns e rainhas e estava imaginando se agora a minha sorte iria provar que tais histórias eram verdadeiras. Lady Om não perdeu muito tempo. Havia mulheres à sua volta, mas ela encarava sua presença como o carreteiro a seus cavalos. Sentei-me a seu lado nas grossas esteiras que transformavam a sala toda num sofá e foram-me oferecidos vinhos e doces para mordiscar, servidos sobre mesinhas de pé alto incrustadas de pérolas. Senhor, Senhor! Eu só tinha que olhar em seus olhos... mas espere. Não faça uma idéia errada. Lady Om não era nenhuma tola. Eu disse que ela era da minha idade. E todos os 30 ela tinha, com todo o desembaraço dessa idade. Ela sabia o que queria. Ela sabia o que não queria. Foi por isso que nunca se casou, embora toda a pressão que uma corte asiática pode exercer sobre uma mulher tenha sido inutilmente exercida sobre ela para obrigá-la a desposar Chong Mong-ju. Ele era um primo menor da grande família Min, ele próprio nenhum tolo, e tão ávido de poder a ponto de perturbar Yunsan, que lutou para conservar o poder ele próprio e manter o palácio e Cho-Sen em equilíbrio. Yunsan foi quem se aliou secretamente a Lady Om, salvou-a de se casar com o primo e usou-a para aparar as asas do primo. Mas chega de intrigas. Muito tempo se passou até que eu chegasse a imaginar uma décima parte disso tudo e, mesmo então, grande parte eu soube pelas confidencias de Lady Om e pelas conclusões de Hendrik Hamel. Lady Om era uma flor de mulher. Mulheres como ela nascem raramente, mal e mal duas vezes num século no mundo todo. Ela era livre de normas e convenções. A religião, para ela, era uma série de abstrações, em parte aprendidas de Yunsan e em parte elaboradas por ela mesma. A religião vulgar, a religião pública, sustentava ela, era um estratagema para manter os milhões de trabalhadores no seu trabalho. Ela tinha vontade própria e um coração todo feminino. Ela era bela... sim, bela por quaisquer padrões de beleza do mundo. Seus grandes olhos negros não eram rasgados nem oblíquos à moda asiática. Eram alongados, é verdade, mas arredondados e com apenas um leve toque de obliqüidade que os tomava mais sedutores.

Eu disse que ela não era nenhuma tola. Veja só. Enquanto meu coração palpitava diante da situação, princesa e marujo e um grande amor que ameaçava tomar-se imenso, espremi meu cérebro de marujo pela sagacidade de conduzir as coisas com mérito masculino. Aconteceu-me mencionar, no começo desse primeiro encontro, aquilo que tinha dito a toda a Corte, que eu era um coreano do sangue da antiga casa de Koryu. — Basta — disse ela, batendo em meus lábios com seu leque de penas de pavão. — Nada de contos de fadas aqui. Saiba que para mim você é melhor e maior do que qualquer casa de Koryu. Você é... Ela fez uma pausa e eu esperei, vendo a audácia crescer em seus olhos. — ... você é um homem — ela completou. — Nem mesmo em sonhos jamais sonhei que houvesse um homem como você a pisar este mundo. Senhor, Senhor! E que poderia um pobre marujo fazer? Este marujo aqui, admito, tanto enrubesceu por baixo de seu bronzeado que os olhos de Lady Om tomaram-se duas piscinas gêmeas de malícia e tentação e eu não sabia onde pôr as mãos senão em volta dela. E ela riu de modo provocante e sedutor e bateu palmas para suas mulheres e entendi que, por hoje, a audiência estava terminada. Mas eu sabia que haveria outras audiências, era preciso que houvesse outras audiências. De volta a Hamel, minha cabeça girava. — Mulheres — disse ele, depois de profundas cogitações. Ele olhou para mim e suspirou com uma inveja que não pude deixar de perceber: — São esses teus músculos, Adam Strang, essa garganta de touro, esses cabelos loiros. Bem, é o jogo, homem. Faça o jogo dela e tudo ficará bem conosco. Faça o jogo dela, deixe que eu te ensino o que fazer. Encrespei-me. Marujo eu era, mas eu era um homem e a nenhum homem iria dever favores na conquista de uma mulher. Hendrik Hamel pode ter sido uma vez co-proprietário do velho Sparwehr, com um conhecimento de navegador sobre as estrelas e bem versado nos livros, mas com as mulheres, não, ali eu não o considerava melhor do que eu. Ele sorriu aquele seu sorriso de lábios finos e perguntou: — Você gosta dessa Lady Om? — Quando se trata de mulher, um marujo não é nada exigente — desconversei. — Você gosta dela? — repetiu ele com seus olhos miúdos fixos em mim. — Até que gosto, ai de mim! E mais que gosto, se você quer mesmo saber.

— Então conquiste-a — ordenou ele — e algum dia conseguiremos um navio para escapar dessa terra amaldiçoada. Eu daria metade das sedas das índias por um bom prato de comida cristã. Ele me lançou um olhar cheio de dúvidas. — Você acha que pode mesmo conquistá-la?—perguntou-me. Fiquei indignado com o desafio. E ele sorriu satisfeito. — Mas não vá depressa demais — aconselhou-me. — Ao que vem fácil não se dá valor. Torne-se um prêmio. Seja avarento com os carinhos. Valorize essa tua garganta de touro e esses teus cabelos loiros e agradeça a Deus que os deu, porque eles têm mais valor aos olhos de uma mulher do que o cérebro de uma dúzia de filósofos. Estranhos e excitantes dias os que se seguiram, com as minhas audiências com o Imperador, minhas competições de bebedeira com Taiwun, minhas conferências com Yunsan e minhas horas com Lady Om. Além disso, eu ficava acordado metade da noite, por ordem de Hamel, aprendendo com Kim todas as minúcias da etiqueta e modos da corte, a história da Coréia e dos deuses antigos e recentes e as formas de conversação polida, conversação nobre e conversação de cules. Nunca foi um marujo tão duramente cinzelado. Eu era um boneco — um boneco para Yunsan, que tinha necessidade de mim; um boneco para Hamel, que sagazmente armava van plano tão complicado que, sozinho, eu teria afundado nele. Só com Lady Om eu era um homem, não um boneco... e ainda assim, ainda assim, quando olho para esses dias e fico pensando através do tempo, tenho minhas dúvidas. Acho que Lady Om também me manipulou, ela me queria pelo desejo de seu coração. Mas nisso ela foi correspondida, pois não se passou muito tempo até que ela se tomasse o desejo do meu coração, e tal era a urgência do meu desejo que nem a vontade dela, nem a de Hendrik Hamel, nem a de Yunsan, poderiam manter meus braços longe dela. No entanto, nesse meio-tempo fui envolvido numa intriga palaciana que nem sequer entendi. Percebi apenas que essa intriga era contra Chong Mong-ju, o real primo de Lady Om. Além da minha compreensão, havia mil facções e dissidências de facções que faziam do palácio um labirinto e se estendiam por todas as Sete Costas. Mas eu não me preocupava. Deixei aquilo para Hendrik Hamel. A ele eu relatava cada detalhe que ocorria quando ele não estava comigo; e ele, com o cenho franzido, sentado no escuro durante horas, como uma aranha paciente, desemaranhava o nó e estendia a teia feito nova. Como meu escravo, ele insistia em me acompanhar a toda parte; sendo apenas barrado às vezes por Yunsan. E é claro que eu o barrava dos meus

encontros com Lady Om, mas lhe contava em geral o que se passava, com exceção dos detalhes mais íntimos que não eram da sua conta. Acho que Hamel se contentava em ficar à sombra e desempenhar um papel secreto. Ele tinha demasiado sangue-frio para não calcular que o risco era meu. Se eu prosperasse, ele prosperava. Se eu caísse em desgraça, ele podia escapulir como um furão. Estou convencido de que ele assim pensava, e no entanto isso não o salvou no fim, como você há de ver. — Fique ao meu lado — disse eu a Kim — e tudo que você quiser será teu. Você tem um desejo? — Eu gostaria de comandar os Caçadores de Tigres de Pyong-Yang e assim comandar os guardas do palácio — respondeu-me. — Espere — disse eu — e é isso que você fará. Prometo. Como conseguir tal coisa estava além do meu entendimento. Mas aquele que nada tem pode doar o mundo à larga; e eu, que nada tinha, dei a Kim o comando dos guardas do palácio. O lado bom é que cumpri minha promessa. Kim veio a comandar os Caçadores de Tigres, embora isso o tenha levado a um triste fim. As conjuras e intrigas eu deixava para Hamel e Yimsan, que eram os políticos. Eu era apenas homem e amante, e mais alegres que os deles foram os momentos que eu vivi. Imagine você mesmo: um marujo valente e alegre, irresponsável, sem ligar para o passado nem para o futuro, bebendo e comendo com reis, o amante aceito de uma princesa e dispondo de cérebros como Hamel e Yunsan para fazerem todo o planejamento e a execução por mim. Mais de uma vez, Yunsan quase adivinhou a mente por trás da minha mente; mas quando sondou Hamel, Hamel provou ser um escravo estúpido, mil vezes menos interessado nos assuntos de estado e na política do que na minha saúde, conforto e competições de bebedeira com Taiwun. Acho que Lady Om imaginou a verdade e guardou-a para si mesma; sagacidade não era o seu desejo, e sim, como disse Hamel, a garganta de touro e os cabelos loiros de um homem. Muito do que se passou entre nós não relatarei, embora Lady Om não seja hoje mais que pó. Mas ela não podia viver sem mim nem eu sem ela; e quando um homem e uma mulher querem unir seus corações, cabeças podem rolar e reinos desmoronar que, ainda assim, eles não renunciam um ao outro. Chegou o tempo em que nosso casamento foi discutido — ah, em surdina a princípio, muito em surdina, como meros boatos palacianos em cantos escuros entre eunucos e servas. Mas num palácio os boatos dos

ajudantes de cozinha acabam rastejando até o trono. Logo havia um bom falatório. O palácio era o pulso de Cho-Sen, e quando o palácio se agitava Cho-Sen tremia. E havia bons motivos para agitação. Nosso casamento seria um golpe certeiro entre os olhos de Chong Mong-ju. Ele lutou, com uma exibição de força para a qual Yunsan estava preparado. Chong Mong-ju indispôs contra nós metade do clero provincial, que peregrinou até os portões do palácio em longas procissões que levaram o Imperador ao pânico. Mas Yunsan manteve-se firme como uma rocha. A ou-tra metade do clero provincial estava com ele, além de todo o clero das grandes cidades como Kei-jo, Pusan, Songdo, Pyong-Yang, Chenampo e Chemulpo. Yunsan e Lady Om, por sua vez, torceram o Imperador à vontade. Conforme ela me confessou mais tarde, ela o infernizou com lágrimas, crises de histeria e ameaças de um escândalo que abalaria o trono. E para coroar tudo isso, no momento psicológico, Yunsan induziu o Imperador a experimentar novos excessos, há muito preparados. — Você deve deixar crescer o cabelo para o nó matrimonial — avisoume Yunsan certo dia, com a sombra de um sorriso em seus olhos austeros, mais zombeteiro e humano do que eu jamais o tinha visto. Agora, é incomum que uma princesa despose um marujo ou mesmo um pretendente do antigo sangue de Koryu, que não tenha poder nem palácios ou símbolos visíveis de posição. Assim, foi promulgado por um decreto imperial que eu era um príncipe de Koryu. A seguir, após quebrarem os ossos e decapitarem o então governador de cinco províncias, um partidário de Chong Mong-ju, fui feito governador das sete províncias natais da antiga Koryu. Em Cho-Sen sete é o número mágico. Para completar esse número, outras duas províncias foram tomadas das mãos de dois outros partidários de Chong Mong-ju. Senhor, Senhor! Um simples marujo... e enviado para o norte pela Estrada dos Mandarins com quinhentos soldados e um séquito às minhas costas! Eu era o governador de sete províncias, onde cinqüenta mil soldados me esperavam. Vida, morte e tortura eu tinha à minha disposição. Eu tinha um tesouro e um tesoureiro, para não falar de um regimento de escribas. A minha espera estavam também mil coletores de impostos que espremeriam os últimos cobres dos contribuintes. As sete províncias constituíam as fronteiras do norte. Além ficava o que é hoje a Manchúria, mas que era conhecida por nós como o país dos Hongdu, ou “Cabeças Vermelhas”. Eram invasores selvagens que às vezes cruzavam o Yalu em grandes massas e cobriam o norte de Cho-Sen como

gafanhotos. Dizia-se que eram dados a práticas canibalescas. Sei, por experiência, que eram lutadores terríveis e muito difíceis de derrotar. Um ano de turbilhão foi aquele. Enquanto Yimsan e Lady Om, em Keijo, completavam a desgraça de Chong Mong-ju, dediquei-me a construir uma reputação por mim mesmo. E claro que era na realidade Hendrik Hamel às minhas costas, mas eu era a bela figura de proa nas vitórias. Através de mim, Hamel ensinou aos nossos soldados exercícios, táticas e a estratégia dos Cabeças Vermelhas. A batalha foi grandiosa e, embora durasse um ano, o fim desse ano viu a paz na fronteira do norte e nenhum Cabeça Vermelha... só os Cabeças Vermelhas mortos no nosso lado do Yalu. Não sei se essa invasão dos Cabeças Vermelhas está registrada na história ocidental, mas, se estiver, ela dará uma pista para a data dos tempos de que escrevo. Uma outra pista: quando foi Hideyoshi o Shogun do Japão? Em meu tempo ouvi comentários de duas invasões, uma geração antes, conduzidas por Hideyoshi através do coração de Cho-Sen, desde Pu-san ao sul até tão ao norte quanto Pyong-Yang. Foi esse Hideyoshi que mandou de volta ao Japão uma infinidade de frascos com as orelhas e narizes em conserva de coreanos mortos em combate. Conversei com muitos dos velhos e velhas que viram a batalha e escaparam à mutilação. De volta a Kei-jo e a Lady Om. Senhor, Senhor! Ela era uma mulher. Durante quarenta anos ela foi a minha mulher. Eu sei. Nenhuma voz discordante elevou-se contra o casamento. Chong Mong-ju, alijado do poder, em desgraça, retirou-se para trançar os polegares em algum canto da remota costa nordeste. Yunsan era absoluto. Toda noite, fogueiras isoladas enviavam sua mensagem de paz através do país. O Imperador ficava cada dia com as pernas mais bambas e os olhos mais turvos com as engenhosas bruxarias inventadas para ele por Yimsan. Lady Om e eu havíamos conquistado o desejo dos nossos corações. Kim estava no comando dos guardas do palácio. Kwan Yung-jin, o governador provincial que nos pôs na ganga e nos espancou quando naufragamos, privei de poder e bani para sempre dos muros de Kei-jo. Ah, e Johannes Maartens. A disciplina está bem forjará dentro de um marujo e, apesar da minha nova grandeza, eu não podia esquecer que ele foi o meu capitão nos dias em que buscávamos as novas índias no Sparwehr. De acordo com aquela história que contei na corte no primeiro dia, ele era o único homem livre no meu séquito. O resto dos marujos, sendo considerados meus escravos, não podiam aspirar a nenhum cargo sob a coroa. Mas Johannes podia, e conseguiu. A velha raposa matreira! Eu mal imaginei suas

intenções quando ele me pediu para fazê-lo governador da pequena e insignificante província de Kyong-ju. Kyong-ju não tinha nenhuma riqueza agrícola ou pesqueira. Os impostos mal pagavam as despesas da coleta e o governo pouco mais era que uma honra vazia. O lugar era, na verdade, um túmulo... mas um túmulo sagrado, pois nos Montes Tabong estavam os altares e as sepulturas dos antigos reis de Silla. Antes governador de Kyong-ju que criado de Adam Strang, foi o que pensei que ele pensava; e imaginei que fosse por medo da solidão que ele levou consigo quatro dos marujos. Esplêndidos foram os dois anos que se seguiram. Minhas sete províncias governei principalmente através de yang-bans necessitados, selecionados para mim por Yunsan. Uma inspeção ocasional, feita em grande pompa e acompanhado por Lady Om, era tudo o que se exigia de mim. Ela possuía um palácio de verão na costa sul, que freqüentávamos muito. E ainda havia as diversões de homem. Tomei-me o patrono da luta livre e revivi o arco e flecha entre os yang-bans. E havia também a caça ao tigre nas montanhas do norte. Uma coisa admirável eram as marés de Cho-Sen. Na nossa costa a nordeste, preamar e baixa-mar mal atingiam meio metro. Já na costa oeste, mesmo a maré vazante tinha uma altura de dois metros. Cho-Sen não tinha comércio nem comerciantes estrangeiros. Não havia viagens além de suas costas nem estrangeiros aportavam às suas costas. Isso era devido à sua política imemorial de isolamento. Uma vez a cada década ou duas chegavam os embaixadores chineses, mas eles vinham por terra circundando o Mar Amarelo, atravessando o país dos Hong-du e descendo a Estrada dos Mandarins até Kei-jo. A viagem de ida e volta era uma jornada de um ano. Sua missão era exigir do nosso Imperador o cerimonial vazio de reconhecimento da antiga soberania da China. Mas Hamel, depois de muito meditar, amadurecia para a ação. Seu plano tomava corpo. Cho-Sen era índias bastante para ele se seu plano desse certo. Pouco me confidenciou, mas quando ele começou a conspirar para fazer de mim o almirante da marinha de juncos de Cho-Sen e a fazer mais perguntas do que devia sobre a câmara secreta do tesouro imperial, somei dois mais dois. Eu não me incomodaria de partir de Cho-Sen desde que junto com Lady Om. Quando aventei essa possibilidade ela me disse, cálida em meus braços, que eu era seu rei e que onde quer que eu fosse ela me seguiria. Como você verá, ela disse a verdade, a mais pura verdade.

O erro de Yimsan foi ter deixado Chong Mong-ju vivo. Mas não foi por culpa de Yunsan. Ele não ousou agir de outro modo. Mesmo caído em desgraça na Corte, Chong Mong-ju era muito popular junto ao clero provincial. Yunsan foi obrigado a deixá-lo vivo; e Chong Mong-ju, aparentemente trançando os polegares na costa nordeste, fez de tudo exceto ficar ocioso. Seus emissários, principalmente monges budistas, estavam em toda parte, iam a toda parte, conclamando até mesmo o menor dos magistrados provinciais para jurar fidelidade a ele. É preciso a fria paciência do asiático para a concepção e execução de grandes e complicadas conspirações. O poder da facção palaciana a favor de Chong Mong-ju ultrapassou os piores pesadelos de Yunsan. Chong Mong-ju corrompeu até os guardas do palácio, os Caçadores de Tigres de Pyong-Yang que Kim comandava. E enquanto Yunsan meditava, enquanto eu me devotava aos esportes e a Lady Om, enquanto Hendrik Hamel aperfeiçoava seu plano para saquear o tesouro imperial e enquanto Johannes Maartens fazia seus próprios planos entre os túmulos dos Montes Tabong, o vulcão dos projetos de Chong Mong-ju não dava sinal algum sob nossos pés. Senhor, Senhor! Quando a tormenta desabou! Ela nos atingiu de sotavento, tirou-nos da rota: todos ao convés e salvem a pele! Mas houve peles que não foram salvas. O nascimento da conspiração foi prematuro. Johannes Maartens na verdade precipitou a catástrofe; Chong Mong-ju não poderia deixar de tirar partido do que ele fez. Pois veja. Os habitantes de Cho-Sen são fanáticos adoradores dos ancestrais e aquele velho pirata holandês caçador de tesouros, com seus quatro marujos na distante Kyong-ju, não fez nada menos do que saquear as tumbas dos reis da antiga Silla há muito enterrados em caixões de ouro. O trabalho foi feito à noite e durante o resto daquela noite eles seguiram para a costa, onde os esperava um junco secretamente aparelhado por Johannes Maartens. Mas um nevoeiro denso caiu sobre a região e eles se perderam. Foram cercados por Yi Sim-sin, o magistrado local, partidário de Chong Mong-ju. Só Herman Tromp conseguiu escapar no nevoeiro e foi capaz, muito mais tarde, de me contar a aventura. Naquela noite, embora a notícia do sacrilégio estivesse se espalhando por toda Cho-Sen e metade dos oficiais das províncias do norte já tivesse se sublevado, Kei-jo e a Corte dormiam na ignorância. Por ordem de Chong Mong-ju, as fogueiras transmitiram sua mensagem noturna de paz. E noite após noite as fogueiras da paz brilharam, enquanto dia e noite os

mensageiros de Chong Mong-ju estouravam cavalos pelas estradas de Cho-Sen. Foi minha sorte ver seu mensageiro chegar a Kei-jo. Ao crepúsculo, quando eu saía a cavalo pelo grande portão da capital, vi o cavalo cair exausto e o exausto cavaleiro entrar cambaleando a pé; e nem imaginei que aquele homem entrava em Kei-jo levando consigo meu destino Sua mensagem detonou a revolução no palácio. Eu não deveria retomar senão à meia-noite e à meia-noite já estava tudo acabado. Às nove horas os conspiradores dominaram o Imperador em seus próprios aposentos. Obrigaram-no a ordenar a vinda imediata dos cabeças de todos os departamentos, e conforme eles se apresentavam, um a um, eram abatidos diante de seus olhos. Enqvianto isso, os Caçadores de Tigres se sublevaram e ficaram fora de controle. Yimsan e Hendrik Hamel foram impiedosamente espancados por eles e feitos prisioneiros. Os outros sete marujos escaparam do palácio juntamente com Lady Om. Eles conseguiram escapar graças a Kim, que barrou o caminho, espada na mão, contra seus próprios Caçadores de Tigres. Eles o derrubaram e passaram sobre seu corpo. Infelizmente, ele não morreu desses ferimentos. Como um pé de vento em noite de verão, a revolução — uma revolução palaciana, é claro — soprou e passou. Chong Mong-ju estava na sela. O Imperador ratificou tudo o que Chong Mong-ju ordenou. Além de ficar boquiaberta com o sacrilégio das tumbas reais e de aplaudir Chong Mong-ju, Cho-Sen não se abalou. Cabeças de oficiais caíam por toda parte, sendo substituídas por indicados de Chong Mong-ju; mas não houve nenhum levante contra a dinastia. E agora ao que nos aconteceu. Johannes Maartens e seus três marujos, após serem exibidos para serem cuspidos pela ralé de metade das aldeias e cidades muradas de Cho-Sen, foram enterrados até o pescoço no pátio diante do portão do palácio. Davam-lhes água para que pudessem viver mais tempo e poder suspirar pela comida, quente e cheirosa e trocada de hora em hora, que era colocada tentadoramente diante deles. Dizem que o velho Johannes Maartens foi o último a ir, levando bem uns quinze dias para morrer. Kim foi vagarosamente esmagado até a morte pelos torturadores, osso por osso, junta por junta, e demorou muito a morrer. Hamel, que Chong Mong-ju adivinhou ser o meu cérebro, foi executado pelo remo, isto é, foi pronta e eficientemente batido até a morte diante dos gritos delirantes da populaça de Kei-jo. Yimsan recebeu uma bela morte. Ele estava jogando uma partida de xadrez com o carcereiro quando o mensageiro do Imperador, ou melhor, o mensageiro de Chong Mong-ju chegou com a taça de veneno.

“Espere um momento”, disse Yunsan, “você devia ter boas maneiras e não interromper um homem no meio de uma partida de xadrez. Beberei assim que acabar a partida.” E enquanto o mensageiro esperava, Yunsan terminou o jogo, ganhando, e então esvaziou a taça. É preciso um asiático para temperar o rancor com uma vingança firme e persistente que dura a vida toda. Isso Chong Mong-ju fez com Lady Om e comigo. Ele não nos destruiu. Nem sequer fomos aprisionados. Lady Om foi degradada de sua posição social e despojada de todos os seus bens. Um decreto imperial foi promulgado e afixado até nas menores e mais insignificantes aldeotas de Cho-Sen informando que eu era da casa de Koryu e que nenhum homem poderia matar-me. Declarava ainda que os oito marujos sobreviventes não deveriam ser mortos. E nem poderíamos receber favores. Seríamos proscritos, mendigos nas estradas. E foi nisso que Lady Om e eu nos tomamos, mendigos nas estradas. Quarenta longos anos de perseguição se seguiram, pois o ódio de Chong Mong-ju por Lady Om e por mim era imortal. Pior sorte, ele foi favorecido com uma longa vida enquanto nós fomos amaldiçoados com ela. Eu disse que Lady Om era uma maravilha de mulher. Além de repetir infindavelmente essa frase, faltam-me palavras para lhe fazer justiça. Uma vez ouvi em algum lugar que uma grande dama disse a seu amado: “Uma tenda e uma côdea de pão ao teu lado.” Na verdade, foi isso que Lady Om disse para mim. Mais do que dizê-la, ela viveu até a última palavra dessa frase, quando era mais freqüente que as côdeas fossem escassas e nossa tenda o próprio céu. Cada esforço que eu fazia para escapar à mendicância acabava sendo frustrado por Chong Mong-ju. Em Song-do, tornei-me carregador de carvão e Lady Om e eu compartilhamos uma cabana que era infinitamente mais confortável que a estrada aberta no inverno rigoroso. Mas Chong Mong-ju me descobriu e fui espancado e posto na ganga e jogado na estrada. Aquele foi um inverno terrível, o inverno em que o pobre “Vandervoot-e-agora?” morreu congelado nas ruas de Kei-jo. Em Pyong-Yang tomei-me carregador de água pois aquela velha cidade, cujos muros já eram antigos mesmo nos tempos de Davi, era considerada pelo povo como sendo uma canoa e, portanto, cavar um poço dentro dos muros significaria fazer a cidade afundar. Assim, durante o dia todo, milhares de cules com as jarras d'água atreladas aos ombros palmilhavam ida e volta o portão do rio. Tomei-me um deles até que Chong Mong-ju me descobriu e fui espancado, posto na ganga e jogado na estrada.

Sempre a mesma coisa. Na distante Wiju tomei-me açougueiro e abati os cães diante da minha barraca aberta, cortando e pendurando as carcaças para venda; curti os couros sob a sujeira dos pés dos transeuntes estendendo os couros, com o lado cru para cima, no estrume da rua. Mas Chong Mong-ju me encontrou. Fui ajudante de tintureiro em Pyonhan, minerador de ouro nos depósitos aluviais de Kang-wun, fazedor de cordas e torcedor de cordéis em Choksan. Trancei chapévis de palha em Padok, jimtei grama em Whang-hai e em Masanpo vendi-me para um cultivador de arroz para trabalhar dobrado em dois nos tabuleiros alagados por menos do que a paga de um cule. Mas nunca houve tempo nem lugar onde o braço longo de Chong Mong-ju não se estendesse para me punir e me atirar na estrada com os mendigos. Lady Om e eu procuramos durante duas estações a raiz do ginseng bravo da montanha, que é considerado tão raro e precioso pelos médicos que Lady Om e eu poderíamos ter vivido um ano em conforto com a venda da nossa única raiz. Mas ao vendê-la fui preso, a raiz confiscada e me espancaram mais e me puseram na ganga mais tempo do que de costume. Por toda parte, os membros da grande Liga dos Mercadores levavam notícias de mim e de minhas andanças e atividades a Chong Mong-ju em Keijo. Apenas duas vezes, em todos os dias depois da minha queda, encontrei Chong Mong-ju face a face. A primeira foi numa tempestuosa noite de inverno nas altas montanhas de Kang-wun. Uns poucos cobres economizados tinham comprado para Lady Om e eu um lugar para dormir no canto mais sujo e frio do salão de uma estalagem. Estávamos a ponto de começar nossa magra ceia — os feijões dos cavalos refogados com alho e uma sobra de boi que deve ter morrido de velho — quando tiniram as campainhas de bronze dos pôneis e cascos bateram lá fora. As portas se abriram e entrou Chong Mong-ju, a personificação do bem-estar, da prosperidade e do poder, sacudindo a neve de suas caríssimas peles mongóis. Abriram lugar para ele e seus doze companheiros e todos se acomodaram confortavelmente quando seus olhos pousaram sobre Lady Om e eu. — Os piolhos lá no canto... botem-nos para fora — ordenou. E seus cavalariços nos açoitaram com seus chicotes e nos jogaram na tempestade. Mas haveria um outro encontro, muitos longos anos mais tarde, como você há de ver. Não havia escapatória. Jamais me permitiram cruzar a fronteira norte. Jamais me permitiram pôr os pés numa sampana ao mar. A Liga dos Mercadores transmitia as ordens de Chong Mong-ju a todas as aldeias e a todas, as almas de toda Cho-Sen. Eu era um homem marcado.

Senhor, Senhor! Cho-Sen, conheço cada uma de tuas estradas e atalhos de montanha, conheço todas as tuas cidades muradas e a menor das tuas aldeias! Por quarenta anos vagueei e senti fome sobre teu solo e Lady Om vagueou e sentiu fome ao meu lado. O que chegamos aos extremos de comer! Restos de carne de cachorro, podres, que ninguém compraria, eram atirados a nós por açougueiros zombeteiros; minari, uma mostarda d'água, que juntamos de poças estagnadas; kimchi apodrecido que revoltaria o estômago de um camponês e que fedia a distância. Ai de mim! Roubei ossos de cães, colhi grãos de arroz perdidos na estrada, roubei pôneis de sua fumegante sopa de feijão nas noites de geada. Não é estranho que eu não morresse. Eu sabia e era sustentado por duas coisas: a primeira, Lady Om ao meu lado; a segunda, a fé certa de que chegaria o tempo em que meus polegares e meus dedos se fechariam em volta da garganta de Chong Mong-ju. Sempre escorraçados dos muros de Kei-jo, onde eu procurava Chong Mong-ju, continuávamos a vaguear, através de estações e décadas de estações, por Cho-Sen, e cada centímetro de suas estradas era uma velha história para nossas sandálias. Nossa história e identidade eram conhecidas por todo o país. Não existia pessoa que não soubesse de nós e de nossa punição. Às vezes cules e mercadores gritavam insultos a Lady Om e logo sentiam a fúria das minhas mãos agarrando o nó de seus cabelos e a fúria dos nós dos meus dedos em seu rosto. As velhas das distantes aldeias de montanha às vezes olhavam a mendiga ao meu lado, a perdida Lady Om, e suspiravam e balançavam a cabeça enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. E as faces das moças às vezes se aqueciam de compaixão quando olhavam o tamanho dos meus ombros, o azul dos meus olhos e os meus longos cabelos loiros; eu, que um dia fui um príncipe de Koryu e governador de províncias! E havia os bandos de crianças que seguiam em nossos calcanhares, zombando e gritando, atirando-nos palavras sujas e a sujeira das ruas. Além do Yalu, com 60 quilômetros de extensão, estava a faixa de nada que constituía a fronteira norte e que corria de mar a mar. Não era, na verdade, uma terra devastada, mas terra deliberadamente abandonada para cumprir a política de isolamento de Cho-Sen. Nessa faixa de 60 quilômetros todas as fazendas, aldeias e cidades foram destruídas. Era uma terra de ninguém, infestada de animais selvagens e patrulhada pelos Caçadores de Tigres, cuja atribuição era matar qualquer homem que ali encontrassem. Por aquele lado não havia escapatória para nós, nem havia qualquer escapatória para nós por mar.

Conforme os anos passaram, meus sete companheiros marujos passaram a vir com mais freqüência a Pusan. Pusan ficava na costa sudeste, onde o clima era mais ameno. Mas mais que o clima, em toda Cho-Sen, Pusan era o ponto mais próximo do Japão. Através dos estreitos braços de mar, apenas um pouco mais longe do que o olho alcança, estava a única esperança de escapar, o Japão, onde sem dúvida chegavam ocasionalmente navios da Europa. Guardo ainda em mim a visão daqueles sete homens envelhecendo sobre os rochedos de Pusan e suspirando com toda a sua alma através do mar que nunca voltariam a navegar. Ás vezes avistávamos juncos japoneses, mas nunca levantou-se sobre a borda do mar um familiar pavilhão da velha Europa. Os anos chegaram e passaram e os sete marujos e eu e Lady Om, passando pela meia-idade e chegando à velhice, mais e mais dirigíamos nossos passos para Pusan. E conforme os anos chegavam e passavam, ora um, ora outro, deixava de se reunir no lugar de costume. Hans Amden foi o primeiro a morrer. Jacob Brinker, que era seu companheiro de estrada, trouxe a notícia. Jacob Brinker foi o último dos sete e tinha quase 90 quando morreu, sobrevivendo a Tromp por uns dois anos. Lembro-me bem deles dois, no fim, acabados e esgotados, nos andrajos de mendigo, com as tigelas de mendigo, aquecendo-se ao sol lado a lado nos rochedos, contando velhas histórias e tagarelando em vozes agudas como crianças. E Tromp contava e recontava como foi que Johannes Maartens e os marujos saquearam os reis nos Montes Tabong; cada rei embalsamado em seu caixão de ouro com uma serva embalsamada de cada lado; e como aqueles orgulhosos ancestrais se desfizeram em pó enquanto os marujos praguejavam e suavam destroçando os caixões. Tão certo quanto saque é saque, o velho Johannes Maartens teria escapado e fugido pelo Mar Amarelo com seu botim não fosse pelo nevoeiro que o perdeu. Aquele amaldiçoado nevoeiro! Fizeram uma canção sobre ele, que ouvi e odiei por toda Cho-Sen até o dia da minha morte. Aqui estão duas estrofes dela: Yanggukeni chajin anga Wheanpong tora deunda. O nevoeiro espesso dos ocidentais paira sobre o Pico Whean. Durante quarenta anos fui um mendigo de Cho-Sen. Dos quatorze de nós que naufragamos, apenas eu sobrevivi. Lady Om era da mesma fibra indomável e envelhecemos juntos. Ela se transformou numa velhinha enrugada e desdentada; mas sempre foi a mulher maravilhosa e levou meu

coração no seu até o fim. Para um velho, três vintenas mais dez, eu ainda conservava uma força enorme. Meu rosto se encovou, meus cabelos loiros embranqueceram, meus ombros largos se curvaram; mas muito da força dos meus dias de marujo se conservou nos músculos que me sobraram. Por isso fui capaz de fazer aquilo que irei agora relatar. Foi numa manhã de primavera nos rochedos de Pusan, perto da estrada, que Lady Om e eu nos sentamos para nos aquecer ao sol. Vestíamos nossos trapos de mendigos, nosso orgulho perdido na poeira e, ainda assim, eu gargalhava com algum dito espirituoso murmurado por Lady Om, quando uma sombra caiu sobre nós. Era a grande liteira de Chong Mong-ju, carregada por oito cules, com batedores adiante e atrás e flâmulas esvoaçando em ambos os lados. Dois imperadores, uma guerra civil, a fome e uma dúzia de revoluções palacianas tinham vindo e passado e Chong Mong-ju permanecia, ainda o grande poder em Kei-jo. Ele devia estar por volta dos 80 anos naquela manhã de primavera nos rochedos de Pusan quando fez sinal com a mão trêmula para que a liteira fosse abaixada para que ele pudesse mirar os dois que ele tinha punido por tão longo tempo. — Agora, ó meu rei — murmurou Lady Om baixinho para mim, e então voltou-se para choramingar uma esmola a Chong Mong-ju, que ela fingiu não reconhecer. E eu entendi qual foi seu pensamento. Pois não o compartilhamos por 40 anos? E o momento de sua consumação chegava por fim. Por isso também fingi não reconhecer meu inimigo e, aparentando uma senilidade imbecil, também rastejei no pó em direção à liteira, choramingando por piedade e caridade. Os fâmulos teriam me feito retroceder mas, com uma voz que a idade tomava trêmula, Chong Mong-ju os deteve. Ele levantou-se sobre um cotovelo trêmulo e com mão trêmula afastou os cortinados de seda. Seu velho rosto encovado transfigurou-se de prazer quando seu olhar caiu sobre nossa miséria. — Ô meu rei — suplicou-me Lady Om em sua cantilena de mendiga. E eu sabia que todo o seu amor, tão posto à prova, e toda sua fé em mim estavam naquela cantilena. E a fúria sanguinária cresceu dentro de mim, rasgando e dilacerando na ânsia de ser libertada. Não é de admirar que eu tremesse com o esforço para me controlar. Felizmente eles tomaram meus tremores pela fraqueza da idade. Levantei minha tigela de mendigo e choraminguei com voz ainda mais lastimosa e

enchi meus olhos de lágrimas para esconder o fogo azul que eu sabia haver neles e calculei a distância e o impulso para o salto. E então fui arrastado pelas labaredas de sangue. Houve um estrépito de varais e cortinados e os gritos e berros dos fâmulos quando minhas mãos se fecharam sobre a garganta de Chong Mong-ju. A liteira virou e nossos corpos se emaranharam, mas meus dedos não soltaram a presa. Na confusão de almofadas e cortinados, os golpes dos fâmulos mal me atingiram. Mas logo os cavaleiros acorreram e os cabos pesados de seus chicotes começaram a cair sobre minha cabeça, enquanto uma multidão de mãos me laceravam e me cortavam. Fiquei atordoado mas não perdi a consciência, e senti a bênção de ter meus velhos dedos enterrados naquele velho pescoço magro e enrugado que eu buscava havia tanto tempo. Os golpes continuaram a chover sobre minha cabeça e pensei, confuso, que eu era um buldogue com os caninos firmemente enterrados na presa. Chong Mong-ju não me escaparia. Eu sabia que ele estava morto antes que a escuridão descesse sobre mim nos rochedos de Pusan à beira do Mar Amarelo.

CAPÍTULO 16 O Diretor Atherton, quando pensa em mim, deve sentir tudo menos orgulho. Ensinei-lhe o que é espírito, humilhei-o com o meu próprio espírito que se elevou invulnerável, triunfante, sobre todas as suas torturas. Estou aqui em Folsom, no Corredor da Morte, esperando minha execução; o Diretor Atherton ainda mantém seu cargo político e reina sobre San Quentin e todos os desesperados dentro de seus muros; mas mesmo assim, no fundo do seu coração ele sabe que sou maior que ele. Em vão tentou o Diretor Atherton quebrar meu espírito. E houve momentos, além de qualquer sombra de dúvida, em que ele teria ficado satisfeito se eu tivesse morrido na camisa-deforça. Assim a longa inquisição continuou. Como ele havia me dito, e como me dizia repetidamente, era dinamite ou ponto final. O Capitão Jamie era um veterano dos horrores do calabouço e, ainda assim, chegou uma hora em que ele se vergou sob a tensão que eu impunha sobre ele e os outros dos meus torturadores. Tão desesperado ficou que ousou discutir com o Diretor e lavou suas mãos sobre o caso. Daquele dia até o fim da minha tortura, ele não voltou a pôr os pés na solitária. Sim, e chegou a hora em que o Diretor Atherton começou a ter medo, embora ainda insistisse em tentar arrancar de mim o esconderijo da dinamite inexistente. Ele acabou ficando bastante abalado com Jake Oppenheimer. Oppenheimer era destemido e descarado. Passou intacto por todos os infernos da prisão e, pela força de uma vontade superior, podia desafiá-los abertamente. Morrell transmitiu-me um relato completo do que aconteceu. Eu estava inconsciente na camisa-de-força naquele dia. — Diretor — foi o que disse Oppenheimer —, o senhor está abocanhando mais do que pode engolir. Não é o caso de matar o Standing. É o caso de matar nós três, porque se o senhor liquida o Standing, pode ficar certo de que mais cedo ou mais tarde o Morrell e eu damos um jeito de espalhar a notícia e isso que o senhor fez todo mundo vai ficar sabendo de uma ponta da Califórnia até a outra. O senhor tem uma escolha. Ou o senhor larga o Standing ou mata nós três. O Standing irritou o senhor. Eu também. O Morrell também. O senhor é um maldito covarde e não tem peito nem tripa pra fazer o trabalho sujo de açougueiro que queria fazer. Oppenheimer pegou cem horas na camisa-de-força por causa disso e, quando o desamarraram, cuspiu na cara do Diretor e recebeu uma segunda sessão de cem horas. Quando o desamarraram dessa segunda vez, o Diretor

teve o cuidado de não estar presente na solitária. Não há dúvida de que ele ficou abalado com as palavras de Oppenheimer. Mas o arquiinimigo era o Doutor Jackson. Para ele, eu era uma novidade e ele estava ansioso por ver quanto mais eu poderia agüentar antes de quebrar. — Ele pode agüentar vinte dias seguidos — gabou-se ele ao Diretor, na minha presença. — O senhor é conservador — atalhei. — Posso agüentar quarenta dias. Droga, posso agüentar até cem quando vêm de um tipo como o senhor. E lembrando minha paciência de marujo que esperei quarenta anos até cravar minhas mãos na goela de Chong Mong-ju, acrescentei: — Seus cães de cadeia, vocês não sabem o que é um homem. Vocês pensam que um homem é feito à imagem da própria covardia de vocês. Pois olhem, eu sou um homem. Vocês são poltrões. Eu sou seu mestre. Vocês não conseguem me fazer confessar coisa nenhuma. E acham isso admirável, porque vocês sabem como iria ser fácil fazer vocês dedurarem a própria mãe. Ah, insultei-os, chamei-os de filhos de sapos, lacaios do inferno, escória das sarjetas. Pois eu estava acima deles, além deles. Eles eram escravos. Eu era espírito livre. Minha carne, e só ela, estava aprisionada ali na solitária. Eu não estava aprisionado. Eu tinha dominado a carne; e a vastidão do tempo era minha para nela peregrinar enquanto minha pobre carne, deixando de sofrer, repousava na pequena morte na camisa-de-força. Transmiti grande parte das minhas aventuras aos meus dois companheiros. Morrell acreditou, porque já tinha, ele próprio, sentido o gosto da pequena morte. Mas Oppenheimer, embora encantado com as minhas histórias, continuou cético até o fim. Ele lamentava, ingênuo e às vezes até patético, que eu tivesse dedicado minha vida à agricultura em vez de escrever romances. — Mas, homem — tentei fazê-lo raciocinar —, o que é que eu sei, por mim mesmo, dessa Cho-Sen? Sou capaz de identificar Cho-Sen com esse país que a gente chama de Coréia, e é só. Tudo que eu vi na vida só vai até aí. Por exemplo, com a experiência desta minha vida atual como que eu poderia saber alguma coisa sobre kimchi? E no entanto eu sei o que é kimchi. E um tipo de chucrute. Quando estraga, fede como o diabo. Te digo, quando eu era Adam Strang, comi kimchi milhares de vezes. Conheço o kimchi bom, o kimchi ruim, o kimchi estragado. Sei que o melhor kimchi é feito pelas mulheres de Wosan. Agora, como é que eu sei disso? Não está no conteúdo da minha mente, da mente de Darrell Standing. Está no conteúdo da mente de Adam Strang e ele,

através de vários nascimentos e mortes, legou essas experiências para mim, Darrell Standing, junto com todas as outras experiências de todas as outras vidas que vieram depois. Você não vê, Jake? É assim que os homens se formam, é assim que eles crescem, é assim que o espírito se desenvolve. — Bah! Deixa disso — ele rebateu, com aquelas rápidas pancadas autoritárias que eu conhecia tão bem. — Escuta o titio agora. Eu sou Jake Oppenheimer. Eu sempre fui Jake Oppenheimer. Nenhum outro cara entrou pra fazer eu ser eu. O que eu sei, eu sei como Jake Oppenheimer. Agora, o que é que eu sei? Te digo uma coisa. Eu sei o que é kimchi. Kimchi é um tipo de chucrute feito num país que costumava se chamar Cho-Sen. As mulheres de Wosan fazem o melhor kimchi e quando o kimchi estraga, ele fede como o diabo... Você fica de fora, Ed. Espere até eu acabar com o professor. — Agora, professor, como é que eu sei toda essa história de kimchi. Não está no conteúdo da minha mente. — Está sim — exultei. — Eu botei aí. — Perfeito, burro velho. E quem botou na tua cabeça? — Adam Strang. — Mas nem por fotografia! Adam Strang é um sonho maluco. Você leu isso em algum lugar. — Nunca — assegurei. — O pouco que eu li da Coréia foram as manchetes dos correspondentes de guerra na época da Guerra RussoJaponesa. — Você se lembra de tudo que lê?—perguntou Oppenheimer. — Não. — Tem coisa que você esquece? — Tem, mas... — Isso é tudo, muito obrigado — interrompeu ele, à moda de um advogado concluindo abruptamente o interrogatório depois de ter arrancado a confissão fatal da testemunha. Foi impossível convencer Oppenheimer da minha sinceridade. Ele insistia que eu inventava conforme ia narrando, embora aplaudisse aquilo que chamava de “continua no próximo capítulo” e, nos momentos em que descansávamos da camisa-de-força, ele vivia a me pedir e me estimular a contar mais alguns capítulos. — Agora, professor, corta esse papo de intelectual — ele interrompia minhas discussões metafísicas com Ed Morrell — e conta mais um pouco sobre as ki-sang e os marujos. Anda aí, conta pra gente o que aconteceu com

Lady Om quando aquele marido cabeça-dura dela esganou o bode velho e bateu as botas. Tenho afirmado com freqüência que a forma perece. Deixe-me repetir: a forma perece. A matéria não tem memória. Só o espírito relembra; como aqui, nas celas da prisão, depois de séculos, o conhecimento de Lady Om e Chong Mong-ju persistia em minha mente, foi transmitido por mim à mente de Jake Oppenheimer e foi, por ele, retransmitido à minha mente na língua e na gíria do Ocidente. E agora eu o transmiti à sua mente, meu leitor. Tente eliminá-lo de sua mente. Você não pode. Enquanto você viver, aquilo que eu disse habitará sua mente. Mente? Não há nada perene exceto a mente. A matéria flui, se cristaliza e flui novamente e as formas nunca são repetidas. As formas se desintegram no nada eterno do qual não há retomo. A forma é aparição e passa, como passaram as formas físicas de Lady Om e Chong Mong-ju. Mas a memória delas permanece, permanecerá sempre enquanto o espírito perdurar, e o espírito é indestrutível. — Uma coisa salta aos olhos — foi a crítica final de Oppenheimer à minha aventura de Adam Strang. — Foi que você andou se metendo pelas espeluncas e bocas de ópio de Chinatown mais do que devia um respeitável professor universitário. Más companhias, você sabe. Acho que foi por isso que você veio parar aqui. Antes de voltar às minhas aventuras, sou obrigado a contar um incidente admirável que ocorreu na solitária. Admirável em dois sentidos. Mostra o assombroso poder mental daquele filho das sarjetas, Jake Oppenheimer; e é, em si, prova convincente da veracidade das minhas experiências no coma da camisa-de-força. — Diga, professor — Oppenheimer bateu suas pancadinhas um dia. — Quando você estava desfiando aquelas lorotas do Adam Strang, lembro que você disse que jogou xadrez com aquele beberrão real do irmão do imperador. Agora, aquele xadrez deles era igual ao nosso? Fui obrigado a responder que não sabia, que não lembrava os detalhes depois que voltava ao meu estado normal, e ele, é claro, riu bem-humorado diante do que chamava minhas invenções. Mas eu me lembrava claramente de ter jogado xadrez muitas vezes na minha aventura de Adam Strang. O problema era que, quando eu voltava à consciência na solitária, os detalhes não-essenciais e intrincados se apagavam da minha memória. Lembre-se de que, por conveniência, organizei minhas intermitentes e repetitivas experiências na camisa-de-força em narrativas coerentes e consecutivas. Eu nunca sabia de antemão para onde minhas viagens no tempo

iriam me levar. Por exemplo, umas vinte vezes em tempos diferentes voltei a Jesse Fancher no círculo de carroções nos Montes Meadows. Numa única sessão de dez dias na camisa-de-força, recuei de vida em vida — pulando séries completas de vidas que havia revivido em outras sessões — até os tempos pré-históricos e continuei a recuar até os dias que antecederam os primórdios da civilização. Resolvi que na próxima vez que voltasse às experiências de Adam Strang — onde quer que pudessem ser — eu iria, logo que recuperasse a consciência, me concentrar sobre quaisquer visões e lembranças que tivesse trazido comigo do jogo de xadrez. Quis a sorte que eu precisasse suportar as zombarias de Oppenheimer durante todo um mês até que isso acontecesse. E tão logo me vi fora da camisa-de-força e com a circulação restaurada, comecei a bater com os nós dos dedos a informação. Além disso, ensinei a Oppenheimer o xadrez que Adam Strang jogou em Cho-Sen há séculos. Era diferente do xadrez ocidental, embora não pudesse deixar de ser fundamentalmente o mesmo, já que ambos remontam a uma origem comum, provavelmente a Índia. Em vez das nossas 64 casas, eles têm 81. Temos 8 peões de cada lado, eles têm 9 e, embora suas limitações sejam semelhantes, o princípio de seu movimento é diferente. No jogo de Cho-Sen há 20 peças e peões contra as nossas 16 e elas são colocadas em três filas em vez de duas. Os 9 peões ficam na fila dianteira; na fila do meio, ficam duas peças que se parecem às nossas torres; e ao fundo, no meio, fica o rei, flanqueado de cada lado por “moeda de ouro”, “moeda de prata”, “cavalo voador” e “lança”, nessa ordem. Repare que no xadrez do Cho-Sen não existe a dama. Outra variação ainda mais radical é que uma peça ou peão capturado não é removido do tabuleiro. Ela se toma propriedade do captor e é, dali em diante, jogada por ele. Bem, ensinei esse jogo a Oppenheimer — uma façanha bem mais difícil do que ensinar-lhe o nosso próprio jogo, como você pode imaginar quando considera a captura, recaptura e movimentação contínua de peças e peões. A solitária não é aquecida. Seria uma maldade livrar um convicto das agruras dos elementos. E muitos dias tristes de frio cortante Oppenheimer e eu esquecemos, naquele inverno e no inverno seguinte, absortos no xadrez de Cho-Sen. Mas não houve meio de convencê-lo de que eu tinha realmente trazido esse jogo a San Quentin através dos séculos. Ele insistia que eu tinha lido a respeito dele em algum lugar e que, embora tivesse esquecido a leitura, a substância dela permanecia no conteúdo da minha mente, pronta para ser

trazida à tona em qualquer sonho fantasioso. Assim, ele voltou contra mim os dogmas e o jargão da psicologia. — E o que impede que você tenha inventado esse jogo bem aqui na solitária? — foi sua próxima hipótese. — O Ed não inventou a conversa com os nós dos dedos? E a gente não está aqui, você e eu, aprimorando esse jogo? Te peguei, velhinho. Você inventou o jogo. Puxa vida, homem, patenteia ele. Lembro quando eu era mensageiro, um cara inventou uma coisa idiota chamada Porcos no Trevo e ganhou uma fortuna com ela. — Não tem como patentear — respondi. — Os asiáticos vem jogando esse xadrez há milhares de anos, tenho certeza Por que você não me acredita quando te digo que não fui eu que inventei? — Então você leu em algum lugar ou viu os chinas jogando em alguma boca de ópio que você andava sempre rondando — foi sua última palavra. Mas a última palavra é minha. Há um assassino japonês aqui em Folsom — ou havia, porque foi executado na semana passada. Discuti o assunto com ele; e o xadrez que Adam Strang jogava e que ensinei a Oppenheimer é muito parecido com o xadrez japonês. Eles têm mais semelhanças entre si do que qualquer um deles com o xadrez ocidental.

CAPITULO 17 Você, meu leitor, lembrará que no começo desta narrativa, eu — garotinho numa fazenda de Minnesota — olhei as fotografias da Terra Santa e reconheci lugares e apontei mudanças naqueles lugares. E lembrará também que, ao descrever a cura dos leprosos, afirmei ao missionário que eu era um homem grande, Eumado com uma grande espada e montado num cavalo, a observar aquela cena. Aquele incidente da infância foi apenas um trilhar nas nuvens de glória, como diz Wordsworth. Não em completo esquecimento vim eu, o pequeno Darrell Standing, a este mundo. Mas aquelas lembranças de outros tempos e lugares que me afloraram à consciência infantil logo se desvaneceram e apagaram. Na verdade, assim como acontece com todas as crianças, as sombras aprisionadoras fecharam-se sobre mim e deixei de lembrar meu extraordinário passado. Todo homem nascido de mulher tem um passado tão extraordinário quanto o meu. Poucos homens nascidos de mulher foram afortunados o suficiente para sofrer anos de solitária e o tormento da camisa-de-força. Essa foi minha bênção. Foi-me permitido voltar a lembrar; e a lembrar, entre outras coisas, a época em que, montado em meu cavalo, testemunhei a cura dos leprosos. Meu nome era Ragnar Lodbrog. Eu era, isso é verdade, um homem imenso. Uma cabeça mais alto que os romanos da minha legião. Mas foi mais tarde, foi depois da minha viagem de Alexandria a Jerusalém que vim a comandar uma legião. Foi uma vida movimentada, aquela. Livros e mais livros e anos a escrever não poderiam registrá-la toda. Devo, assim, resumi-la e não mais que sugerir como ela começou. Tudo é claro e nítido, exceto o começo. Não cheguei a conhecer minha mãe. Disseram-me que nasci em meio à tempestade, num navio pontudo no Mar do Norte, de uma mulher capturada, depois de um combate naval e do saque a uma fortaleza litorânea. Nunca soube o nome de minha mãe. Ela morreu no auge da tempestade. Era uma danesa, disse-me o velho Lingaard. Ele me contou muitas coisas que eu era jovem demais para lembrar e, ainda assim, pouco tinha ele a me contar. Um combate naval e um saque, batalha e pilhagem e chamas, uma fuga para o alto-mar nos navios pontudos para escapar à destruição nos rochedos, uma índole assassina e a luta contra os perigosos mares gelados — quem, nessa situação, iria se importar ou notar uma mulher estrangeira em sua hora de dar à luz e com os pés já no caminho

da morte? Muitas morreram. Os homens notavam as mulheres vivas, não as mortas. Gravados a ferro na minha memória de criança estão os incidentes logo após meu nascimento, como me foram contados pelo velho Lingaard. Lingaard, velho demais para trabalhar nos remos, foi médico, coveiro e parteiro das cativas amontoadas nos conveses abertos. Assim vim à luz na tempestade, com o sal dos mares encapelados sobre mim. Poucas horas de vida eu tinha quando Tostig Lodbrog bateu os olhos sobre mim. Dele era este navio pontudo; dele, os sete outros navios pontudos que fizeram a incursão, fugiram com a rapina e venceram a tempestade. Tostig Lodbrog também era chamado Muspell, que significa “o homem de fogo” — pois estava sempre incendiado pela fúria. Bravo ele era, cruel ele era, sem misericórdia alguma no coração que batia dentro daquele seu peito largo. Antes que o suor da batalha em Hasfarth secasse em seu corpo, ele, apoiado em seu machado, comeu o coração de Ngrun. Ele, enlouquecido pela raiva, vendeu seu próprio filho Garulf como escravo aos jutos. Lembro que ele, sob as vigas enfumaçadas de Brunanbuhr, exigia o crânio de Guthlaf como caneca. A calva, o vinho apimentado, ele não tomaria de outro copo que não o crânio de Guthlaf. E a ele, no convés balouçante depois que a tempestade passou, o velho Lingaard me trouxe. Eu tinha poucas horas de vida, estava nu, enrolado numa pele de lobo curtida pelo sal. E, nascido prematuro, eu era muito pequeno. — Olhem! Um anão! — berrou Tostig e, para me olhar, afastou dos lábios um canecão de hidromel, bebido até a metade. O frio era cortante, mas dizem que ele me arrancou da pele de lobo e, segurando-me por um pé com o polegar e o indicador, balançou-me à fúria dos ventos. — Uma carpa! — gargalhou. — Um camarão! Uma pulga-do-mar! — e fez o gesto de me esmagar entre seus dedos imensos, cada um dos quais, assegurou-me Lingaard, era mais grosso que minha perna ou minha coxa. Mas outro capricho lhe ocorreu. — A cria tem sede. Que beba! E me enfiou de cabeça no canecão de hidromel. E eu teria me afogado naquela bebida de homens — eu, que não conhecera o leite da mãe naquelas poucas horas de vida — se não fosse por Lingaard. E quando Lingaard me puxou para fora da bebida, Tostig Lodbrog derrubou-o com raiva. Rolamos pelo convés e os grandes cães caçadores de ursos, capturados na recente batalha contra os daneses, pularam sobre nós.

— Olhem! Olhem! — rugia Tostig Lodbrog enquanto o velho, eu e a pele de lobo éramos mordidos e caçados pelos cães. Mas Lingaard conseguiu pôr-se de pé e me salvou, embora perdesse a pele de lobo para os cães. Tostig Lodbrog terminou o hidromel e me olhou, enquanto Lingaard já sabia que não adiantava pedir clemência onde clemência não havia. — Menor que o meu polegar — resmungou Tostig. — Por Odin, as danesas são uma raça desprezível. Elas parem anões e não homens. Para que serve essa coisa? Nunca vai virar um homem. Ouça, Lingaard, crie esse anão para ser meu criado-de-copo em Brunanbuhr. E fique de olho nos cães para não comerem o anão por engano, pensando que é carne que sobrou da mesa. Não conheci colo de mulher. O velho Lingaard foi parteira e nutriz e, como berço, tive os conveses balouçantes e o estrondo e o atropelo de homens na luta ou na tempestade. Sabe Deus como sobrevivi ao desamparo da primeira infância. Devo ter nascido de ferro num dia de ferro, pois sobrevivi e desmenti a profecia de Tostig de que seria um anão. Ultrapassei todos os copos e canecões e logo ele não mais podia me mergulhar em seu canecão de hidromel. Era sua façanha favorita. Era seu senso de humor bárbaro, um gracejo que ele considerava muito espirituoso. Minhas primeiras lembranças são dos navios pontudos e dos guerreiros de Tostig Lodbrog e do salão de festim em Brunanbuhr quando nossos barcos ancoravam ao lado do fiorde congelado. Pois fizeram de mim um criado-de-copo e entre minhas mais antigas lembranças estou a andar vacilante levando o crânio de Guthlaf cheio de calva até a cabeceira da mesa onde Tostig fazia tremer com seus urros as vigas do teto. Eles eram loucos, todos completamente loucos, mas parecia o modo normal de vida para mim que não conhecia nada mais. Eram homens de fúrias rápidas e batalhas rápidas. Seus pensamentos eram ferozes; assim como eram ferozes seu comer e seu beber. E cresci como eles. De que outro modo poderia eu crescer, quando servia a bebida ouvindo os urros dos homens embriagados e os bardos cantando as façanhas de Hialli, do intrépido Hogni, do ouro dos Nibelungos e a vingança de Gudrun contra o rei Atli, quando ela lhe deu de comer os corações dos filhos enquanto a chacina corria o castelo, rasgava as tapeçarias roubadas das praias do sul e cobria a mesa do festim com cadáveres? Ah, mas eu também tinha raiva — e bem aprendida em tal escola. Eu tinha apenas oito anos quando mostrei os dentes numa bebedeira entre os homens de Brunanbuhr e os jutos que vieram como amigos com o Jarl Agard, o nobre, em seus três navios pontudos. Eu estava ao pé de Tostig Lodbrog,

segurando o crânio de Guthlaf que fumegava e fedia com a calva fervente. E eu esperava Tostig terminar seus insultos contra os homens daneses. Mas ele continuava com seus insultos e eu continuava esperando, até que ele se pôs, cheio de fúria, a insultar as mulheres danesas. E então lembrei-me de minha mãe danesa e a fúria sanguinária me subiu aos olhos e golpeei-o com o crânio de Guthlaf. Ele ficou encharcado de calva e a calva fervente o cegou e queimou. E enquanto ele girava os braços sem enxergar, lançando seus enormes punhos às cegas pelo ar, esgueirei-me e apunhalei-o três vezes, na barriga, na coxa e nas nádegas, pois eu não alcançava mais alto que isso naquele seu corpo imenso. E a tempera de aço do Jarl Agard surgiu e seus jutos se uniram a ele gritando: — Um filhote de urso! Por Odin, que lute o filhote de urso! E ali, ante os urros dos homens sob o teto de Brunanbuhr, o enraivecido criado-de-copo danês lutou contra o poderoso Lodbrog. E quando um golpe me fez voar, atordoado e sem fôlego, por metade daquela enorme mesa, destroçando jarras e canecões, Lodbrog ordenou aos berros: — Fora com ele! Joguem-no aos cães! Mas o Jarl não aceitou esse desfecho e, com uma palmada no ombro de Lodbrog, pediu que eu lhe fosse dado como penhor de amizade. E segui para o Sul, quando o gelo derreteu sobre o fiorde, nos navios do Jarl Agard. Fui seu criado-de-copo e carregador de espada e, em lugar de outro nome, fui chamado Ragnar Lodbrog. O país de Agard era vizinho aos frísios e era uma terra triste e baixa de nevoeiro e pântanos. Fiquei com ele por três anos, até sua morte, sempre às suas costas, seja caçando raposas nos pântanos ou bebendo no grande salão onde Elgiva, sua jovem esposa, sentava-se muitas vezes entre suas damas. Acompanhei Agard em sua incursão ao sul com seus navios, ao longo do que seria hoje a costa da França, e lá aprendi que mais ao sul havia estações mais quentes e climas e mulheres mais suaves. Mas trouxemos Agard de volta, mortalmente ferido e numa lenta agonia. E queimamos seu corpo numa grande pira, com Elgiva, em seu corselete de ouro, cantando a seu lado. E muitos servos em argolas douradas ali queimaram com Elgiva, e também as nove cativas e os oito escravos anglos, de nascimento nobre e capturados em combate. E havia os falcões a serem queimados vivos e os dois meninos falcoeiros com suas aves. Mas eu, o criado-de-copo, Ragnar Lodbrog, não fui queimado. Eu tinha 11 anos, era destemido e nunca tinha usado uma roupa de tecido sobre meu

corpo, só peles. E quando as chamas se elevaram e Elgiva cantava a canção da morte e as cativas e os escravos gritavam, sem vontade de morrer, soltei minhas amarras, pulei da pira e ganhei os pântanos com o colar de ouro da minha escravidão ainda a balançar em volta do meu pescoço e com os cães lançados em meu encalço para me destroçar. Nos pântanos viviam homens selvagens, homens sem dono, escravos fugidos e foras-da-lei, que eram caçados por esporte, como as raposas. Durante três anos não conheci teto nem fogo, cresci duro como o gelo e teria roubado uma mulher dos jutos mas, por azar, os frísios, numa caçada de dois dias, me capturaram. Roubaram-me meu colar de ouro e me trocaram por duas raposas com Edwy, o saxão, que pôs em mim um colar de ferro e mais tarde fez de mim e de cinco outros escravos um presente para Athel, o anglo do leste. Fui escravo e lutador até que, perdido numa infeliz incursão a leste de nossas fronteiras, fui vendido aos visigodos e guardei porcos até escapar para o sul pelas grandes florestas e fui recebido como homem livre pelos teutos, que eram numerosos mas viviam em pequenas tribos e migravam para o sul ante o avanço dos visigodos. E subindo do sul para as grandes florestas vinham os romanos, bravos lutadores, que nos empurraram de volta sobre os visigodos. Os povos se esmagavam por falta de espaço. E ensinamos aos romanos o que era luta, embora na verdade também muito tenhamos aprendido com eles. Mas eu lembrava sempre o sol das terras do sul que vislumbrara nos navios de Agard e foi meu destino, preso nessa migração dos teutos para o sul, ser capturado pelos romanos e levado de volta ao mar que eu não via desde que me perdi dos anglos do leste. Tornei-me um remador, um escravo nas galés, e foi nas galés que finalmente cheguei a Roma. É muito longa a história de como me tomei um homem livre, um cidadão e um soldado e como, aos 30 anos, viajei para Alexandria e, de Alexandria, para Jerusalém. Mas o que contei desde o dia em que fui batizado no canecão de hidromel de Tostig Lodbrog fui obrigado a contar para que você pudesse entender que tipo de homem cavalgou pela Porta de Jaffa e atraiu sobre si todos os olhares. E forçoso era que me olhassem. São raças pequenas, de ossos mais leves e músculos menos desenvolvidos, esses romanos e judeus, e um gigante loiro como eu eles nunca tinham visto antes. Ao longo das ruas estreitas, eles abriam caminho para mim mas paravam para olhar com os olhos esbugalhados esse homem dourado do norte, ou sabe Deus de onde, pelo que eles conhecem do assunto.

Praticamente todas as tropas de Pilatos eram auxiliares, exceto um punhado de romanos no palácio e os vinte romanos que cavalgavam comigo. Descobri que as tropas auxiliares são, com freqüência, bons soldados; mas nunca são tão confiáveis quanto os romanos. Na verdade, o romano é, a qualquer momento, um bom e confiável soldado; enquanto nós, homens do Norte, ora lutamos cheios de entusiasmo, ora afundamos em crises de melancolia. Havia uma mulher da corte de Herodes Ântipas que era amiga da mulher de Pilatos e que conheci no palácio de Pilatos na noite da minha chegada. Vou chamá-la Miriam, pois Miriam foi o nome pelo qual eu a amei. Se fosse apenas difícil descrever o encanto feminino, eu descreveria Miriam. Mas como descrever a emoção com palavras? O encanto da mulher não tem palavras. E diferente da percepção que culmina na razão, pois surge na sensação e culmina na emoção; a qual, admita-se, nada mais é que suprasensação. Em geral, qualquer mulher tem encanto fundamental para qualquer homem. Quando esse encanto se individualiza, nós o chamamos amor. Miriam tinha esse encanto particular para mim. Na verdade, eu era co-autor de seu encanto. Metade desse encanto era a própria vida do homem em mim que saltava a seu encontro de braços abertos e a tomava desejável para mim, mais todo o meu desejo por ela. Miriam era uma mulher magnífica. Uso essa expressão deliberadamente. Corpo esbelto, autoritária, acima da média da mulher judia em estatura e porte. Uma aristocrata pela casta social; uma aristocrata por natureza. Suas maneiras eram grandiosas, generosas. Ela tinha cérebro, tinha sagacidade e, acima de tudo, tinha feminilidade. Como você verá, foi sua feminilidade que acabou traindo a ela e a mim. Morena, de pele azeitonada, rosto oval, seu cabelo era azulado de tão negro e seus olhos eram escuros poços. Nunca se encontraram tipos mais pronunciados de loiro e moreno em homem e mulher do que em nós dois. E encontramo-nos instantaneamente. Não houve discussão interior, não houve espera nem indecisão para termos certeza Ela foi minha no momento em que a vi. E, do mesmo modo, ela soube que eu, acima de todos os homens, lhe pertencia. Caminhei a passos largos para ela. Ela se soergueu do diva como que atraída para mim. E nos fitamos no fundo dos nossos olhos, olhos azuis e olhos negros, até que a esposa de Pilatos, uma mulher magra, tensa e agitada, riu com nervosismo. E enquanto eu me inclinava para a esposa e a cumprimentava, pensei ver Pilatos lançar a Miriam um olhar

significativo, como a dizer: “Ele não é o que prometi?” Pois ele soube de minha chegada por Sulpicius Quirinius, o legado da Síria. Além disso, Pilatos e eu nos conhecíamos desde antes que ele viesse a ser o procurador romano sobre o vulcão semítico de Jerusalém. Muito conversamos aquela noite, especialmente Pilatos, que falou em detalhes sobre a situação local; ele parecia solitário e desejoso de compartilhar suas ansiedades com alguém e mesmo pedir conselho. Pilatos era do tipo sólido de romano, com imaginação suficiente para fazer valer com inteligência a política férrea de Roma, e não era um homem facilmente excitável sob tensão. Mas naquela noite era evidente que ele estava preocupado. Os judeus o enervavam. Eram demasiado vulcânicos, excitáveis, explosivos. E, além disso, eram ardilosos. Os romanos têm uma maneira direta e objetiva de resolver as coisas. Os judeus nunca se aproximam de nada diretamente, exceto quando empurrados para trás. Deixados a si mesmos, sempre se aproximam por vias indiretas. A irritação de Pilatos se devia, como ele explicou, ao fato de que os judeus viviam a conspirar para fazer dele — e, através dele, de Roma — um instrumento a serviço de suas dissensões religiosas. Como eu bem sabia, Roma não interferia com as crenças religiosas dos povos por ela conquistados; mas os judeus viviam a complicar as coisas e a dar coloração política a eventos totalmente apolíticos. Pilatos discorreu com eloqüência sobre as diversas seitas e o fanatismo dos levantes e agitações que ocorriam continuamente. — Lodbrog — disse ele —, com eles nunca se sabe se uma pequena nuvem de verão não irá se transformar numa tempestade a urrar e assobiar em nossos ouvidos. Estou aqui para manter a ordem e a tranqüilidade. Apesar de mim, eles fazem do lugar um ninho de vespas. Eu bem preferia governar os citas ou os selvagens bretões a esse povo que nunca está em paz a respeito de Deus. Ainda agora há um homem ao norte, um pescador que virou pregador e fazedor de milagres, que logo pode ter todo o país a lhe dar ouvidos e Roma a me convocar para dar explicações. Essa foi a primeira vez que ouvi falar no homem chamado Jesus, e pouco prestei atenção nessa época. Só mais tarde me lembrei dele, quando a pequena nuvem de verão já se tornara uma tempestade a urrar e assobiar em nossos ouvidos. — Recebi relatórios sobre ele — continuou Pilatos. — Ele não é político. Não há dúvida alguma disso. Mas pode se confiar em Caifás, e em

Anás por trás de Caifás, para fazer desse pescador um espinho político com o qual cutucar Roma e me arruinar. — Esse Caifás, ouvi dizer que ele é o sumo-sacerdote. Quem é então esse Anás? — perguntei. — O verdadeiro sumo-sacerdote, uma astuta raposa — explicou Pilatos. — Caifás foi nomeado por Gratus, mas Caifás é apenas a sombra e a boca de Anás. — Eles nunca te perdoaram aquele pequeno incidente dos escudos votivos — provocou Miriam. Com isso, como faz um homem quando sua ferida é tocada, Pilatos pôs-se a falar sobre o incidente, que foi um incidente e nada mais no começo, mas que quase o destruiu. Em toda inocência, ele mandara afixar diante de seu palácio dois escudos com inscrições votivas. Antes que a tempestade que explodiu sobre sua cabeça amainasse, os judeus enviaram suas queixas a Tibério, que lhes deu razão e repreendeu Pilatos. Fiquei feliz, um pouco mais tarde, quando pude conversar com Miriam. A mulher de Pilatos achara uma oportunidade de falar-me sobre ela. Miriam pertencia a uma antiga raça de reis. Sua irmã era mulher de Filipe, tetrarca da Ituréia e Betânia. Esse Filipe era irmão de Ântipas, tetrarca da Galiléia e Peréia, e ambos eram filhos de Herodes, chamado “o Grande” pelos judeus. Miriam, conforme entendi, era recebida nas cortes dos dois tetrarcas, sendo ela própria do sangue. Quando menina fora prometida a Arquelaus, então monarca de Jerusalém, mas como ela possuía imensa fortuna própria aquele casamento não foi obrigatório. Além disso, ela tinha vontade própria e era, sem dúvida, difícil de agradar num assunto tão importante como maridos. A coisa devia estar no próprio ar que respirávamos, pois, num instante, Miriam e eu estávamos a falar de religião. Na verdade, os judeus daquela época devotavam-se à religião com tanta avidez quanto nós às lutas e à mesa. Durante toda minha estada naquele país, nunca houve um momento em que minha cabeça não fosse atormentada pelas infindáveis discussões sobre vida e morte, lei e Deus. Pilatos não acreditava em deuses nem em demônios nem em coisa alguma. A morte, para ele, era a escuridão do sono ininterrupto; e mesmo assim, durante seus anos em Jerusalém ele foi sempre atormentado pela inescapável exaltação das coisas da religião. Ora, tive um cavalariço em minha viagem a Iduméia, uma criatura miserável que não conseguia aprender a montar, mas que falava com toda erudição e sem parar para respirar, desde o cair da noite até o nascer do sol, sobre as mais ínfimas diferenças entre os ensinamentos de cada rabi, de Seméias a Gamaliel. Mas voltando a Miriam.

— Acreditas ser imortal — ela logo estava me desafiando. — Então por que tens medo de falar a respeito? — Por que sobrecarregar minha mente com pensamentos sobre certezas? — revidei. — Mas, tens certeza? — insistiu ela. — Conta-me a respeito. Como é ela, tua imortalidade? E depois que lhe contei sobre as trevas do Nuflheim e o fogo do Muspelsheim, sobre o nascimento do gigante Ymir nos flocos de neve, a vaca Audumla, o lobo Fenrir, o descarado Loki e os Gigantes de Gelo; depois que lhe falei sobre tudo isso e sobre Tor e Odin e o nosso Valhalla, ela bateu palmas e exclamou, com os olhos a brilhar: — Ah, bárbaro! Criança grande! Gigante dourado do gelo! Crês em velhas lendas e na satisfação do estômago! Mas teu espírito, esse que não morre, para onde ele irá quando teu corpo morrer? — Como eu disse, para o Valhalla — respondi. — E meu corpo lá estará também. — Comendo? Bebendo? Lutando? — E amando — acrescentei. — Precisamos ter mulheres no paraíso... senão, para que serve o paraíso? — Não gosto do teu paraíso — disse ela. — É um lugar louco, um lugar bestial, um lugar de gelo, de tempestade e de fúria. — E o teu paraíso? — perguntei. — Ah, é sempre um verão sem fim, sempre a estação em que os frutos e flores amadurecem e as coisas crescem. Sacudi a cabeça e murmurei: — Não gosto do teu paraíso. É um lugar triste, um lugar suave demais, um lugar para poltrões e eunucos, para sombras chorosas de homens gorduchos. Minhas observações devem tê-la excitado, pois seus olhos continuaram a reluzir e percebi que ela estava a me provocar. — O meu paraíso—ela disse — é a morada dos abençoados. — O Valhalla é a morada dos abençoados — afirmei. — E quem liga para flores quando as flores estão sempre ali? Na minha terra, quando o rigor do inverno se desfaz e o sol dissipa a longa noite, os primeiros botões que desabrocham nas bordas do gelo a se derreter são coisas de alegria e os olhamos e olhamos. E o fogo! — exclamei. — O grande e glorioso fogo! Beleza de paraíso esse teu, onde um homem não pode acender uma grande fogueira sob um teto sólido, com o vento e a neve a zumbir lá fora.

— Gente simples, a tua — ela voltou a me provocar. — Vocês fazem um teto e uma fogueira num banco de neve e chamam a isso paraíso. No meu paraíso não precisamos fugir do vento e da neve. — Não — objetei. — Nós fazemos o teto e a fogueira para sair deles para o gelo e a neve, e para voltar a eles do gelo e da neve. A vida do homem foi feita para batalhar o vento e a tempestade. Seu próprio fogo e seu próprio teto ele constrói com sua luta. Eu sei. Uma vez, durante três anos, eu não conheci nem teto nem fogo. Eu tinha 16 anos e já era um homem quando usei pela primeira vez roupas de tecido sobre o meu corpo. Nasci na tempestade, depois de uma batalha, e meus cueiros foram uma pele de lobo. Olhe para mim, é esse o tipo de homem que vive no Valhalla. E ela olhou, encantada e sedutora, e exclamou: — Ah, homem gigantesco e dourado! — e então acrescentou, pensativa: — Quase me entristece que não possa haver homens assim no meu paraíso. — O mundo é bom — consolei-a. — O plano do mundo é bom e amplo. Há lugar para muitos paraísos. Parece que a cada um é dado o paraíso que seu coração deseja. Uma boa terra, na verdade, aquela para lá do túmulo. Não duvido que vou deixar nossos festins e saquear as costas ensolaradas e floridas do teu paraíso, e roubar-te de lá. Como minha mãe foi roubada. Calei-me e olhei para ela e ela olhou para mim. E como ela ousou olhar! Meu sangue correu em fogo. Por Odin, eis uma mulher! O que poderia ter acontecido eu não sei, pois Pilatos, que encerrara a conversa com Ambivius e por algum tempo estivera a sorrir, quebrou o silêncio. — Um rabi, um rabi das terras germânicas! — ele riu. — Um novo pregador e uma nova doutrina chegam a Jerusalém. Agora haverá mais dissensões, mais distúrbios, e mais profetas serão apedrejados. Salvem-nos os deuses, é uma casa de loucos. Lodbrog, não esperava isso de ti. Pois aí estás a gritar e esbravejar sobre o que te acontecerá quando morreres, de modo tão selvagem quanto qualquer louco do deserto. Uma vida de cada vez, Lodbrog. Evita-nos problemas. Evita-nos problemas. — Continue, Miriam, continue — exclamou sua esposa. A mulher de Pilatos ficara em transe durante a conversa, com as mãos fortemente entrelaçadas, e me ocorreu o pensamento de que ela já fora corrompida pela loucura religiosa de Jerusalém. De todo modo, como vim a saber nos dias que se seguiram, ela tinha uma profunda inclinação para tais assuntos. Era uma mulher magra, como que consumida pela febre. Sua pele se

esticava sobre os ossos. Parecia que se poderia olhar através de suas mãos se ela as levantasse contra a luz. Era uma boa mulher, mas muito nervosa e, às vezes, dada a vôos de fantasia sobre sombras e sinais e presságios. E ela também tinha visões e ouvia vozes. Quanto a mim, eu não tinha paciência com tais fraquezas. Mesmo assim, ela era uma boa mulher, sem maldade no coração. Eu estava em missão para Tibério e tive o azar de ver pouco de Miriam. Quando voltei da corte de Antipas, ela fora para a corte de Filipe na Betânia, onde estava sua irmã. Uma vez mais eu estava de volta a Jerusalém e, embora meus negócios não exigissem que eu me encontrasse com Filipe — que, apesar de fraco, era fiel à vontade de Roma — viajei para Betânia na vã esperança de encontrar Miriam. E houve a viagem à Idimiéia. Também viajei para a Síria em obediência às ordens de Sulpicius Quirinius que, como legado imperial, estava curioso para ouvir meu relatório de primeira-mão sobre os assuntos de Jerusalém. Assim, viajando bastante e por vários lugares, tive oportunidade de observar a estranheza desses judeus que se interessavam tão loucamente por Deus. Essa era sua peculiaridade. Não lhes bastava deixar tais assuntos para seus sacerdotes; eles próprios se transformavam em sacerdotes e se punham a pregar sempre que encontravam um ouvinte. E ouvintes eles encontravam em abundância. Eles abandonavam suas ocupações para vaguear pelo país como mendigos, discutindo e se altercando com os rabinos e talmudistas nas sinagogas e nos pórticos dos Templos. Foi na Galiléia, distrito de pouca importância, cujos habitantes eram tidos como néscios, que cruzei com a pista daquele homem Jesus. Parece que ele fora um carpinteiro e depois um pescador, e que seus companheiros pescadores deixaram de puxar suas redes e o seguiram em sua vida de andanças. Alguns poucos o encaravam como um profeta, mas a maioria achava que era um louco. Aquele meu mísero cavalariço, ele próprio clamando possuir um insuperável conhecimento talmúdico, zombou de Jesus, chamando-o rei dos mendigos, chamando sua doutrina ebionismo; o ebionita, como ele me explicou, afirmava que só os pobres podem conquistar o paraíso, enquanto os ricos e poderosos hão de queimar para sempre em algum lago de fogo. Percebi que era costume daquele país que todo homem chamasse todos os outros homens de loucos. Na verdade, na minha opinião, eles eram todos loucos. Havia uma epidemia de loucos. Espantavam demônios com amuletos mágicos, curavam doenças com a imposição das mãos, incólumes bebiam

poções venenosas e incólumes brincavam com cobras venenosas — ou assim afirmavam, pelo menos. Retiravam-se para passar fome nos desertos. Voltavam berrando uma nova doutrina, reunindo multidões ao seu redor, formando novas seitas que dividiam a doutrina e formavam ainda mais seitas. — Por Odin — afirmei a Pilatos. — um pouco do nosso gelo do norte iria esfriar suas cabeças. Este clima é ameno demais. Em vez de construir tetos e caçar carne, eles estão sempre a construir doutrinas. — E a alterar a natureza de Deus — Pilatos concordou com amargura. — Maldita seja a doutrina. — O mesmo digo eu — concordei. — Se eu sair com a cabeça inteira desta terra de loucos, corto ao meio qualquer homem que ousar me dizer o que pode me acontecer depois da morte. Nunca houve intrigantes como eles. Tudo sob o sol era sagrado ou herético para eles. Eles, que eram tão inteligentes na discussão dos mais ínfimos detalhes da doutrina, pareciam incapazes de apreender a idéia romana de Estado. Todas as coisas políticas eram religiosas; todas as coisas religiosas eram políticas. Assim, as mãos do procurador estavam cheias. As águias romanas, as estátuas romanas, até mesmo os escudos votivos de Pilatos, eram insultos deliberados à sua religião. A tomada do recenseamento pelos romanos foi uma abominação. Mas tinha de ser feita, pois era a base da taxação. E lá estavam eles de novo. Taxação pelo Estado era um crime contra sua Lei e seu Deus. Ah, aquela Lei! Não era a lei romana. Era a Lei deles, aquilo que chamavam a Lei de Deus. Havia os zelotes, que matavam qualquer um que quebrasse essa Lei. E um procurador punir um zelote apanhado em flagrante significaria começar um distúrbio ou uma insurreição. Tudo, com esse estranho povo, era feito em nome de Deus. Havia aqueles que nós romanos chamávamos de thaumaturgi. Eles faziam milagres para provar a doutrina. Sempre me pareceu néscio provar as tábuas de multiplicação transformando um bastão numa serpente, ou mesmo em duas serpentes. Mas eram essas as coisas que os thaumaturgi faziam e sempre excitavam a populaça. Céus, quantas seitas e mais seitas! Fariseus, essênios, saduceus — uma legião deles! Mal surgia um novo desvio, ele já se tomava político. Coponius, quarto procurador antes de Pilatos, teve um trabalho considerável para esmagar a sedição que começou como uma dissensão religiosa em Gamala e se espalhou pelo país todo.

Em Jerusalém, aquela última vez que entrei a cavalo, foi fácil notar a crescente excitação dos judeus. Eles circulavam em grupos, conversando e gritando. Alguns proclamavam o fim do mundo. Outros se contentavam com a iminente destruição do Templo. E havia os militantes revolucionários que anunciavam o fim do domínio romano e o início do novo reino judaico. Pilatos, notei, também mostrava muita ansiedade. Estava patente que eles o faziam passar um momento difícil. Mas afirmo que ele, como você verá, correspondia à sutileza dos judeus com igual sutileza; e pelo que dele vi, não duvido que ele teria confundido muitos dos doutores nas sinagogas. — Meia legião de romanos apenas — lamentou-se ele para mim — e eu tomaria Jerusalém pela garganta... e seria chamado de volta a Roma como punição, suponho. Como eu, ele não tinha muita fé nas tropas auxiliares e de soldados romanos tínhamos apenas um punhado. De volta, alojei-me no palácio e para minha grande alegria lá encontrei Miriam. Mas pequena foi minha satisfação, pois a conversa girou sobre a situação. Havia razão para isso, porque a cidade zumbia como o vespeiro furioso que era. A festa chamada Páscoa — um assunto religioso, é claro — estava próxima e milhares vinham do país todo, conforme o costume, para celebrar a festa em Jerusalém. Esses recém-chegados eram, naturalmente, pessoas excitáveis, caso contrário não teriam se lançado em tal peregrinação. A cidade estava apinhada deles e muitos acampavam fora de seus muros. Quanto a mim, eu não conseguia distinguir quanto da agitação devia-se aos ensinamentos do pescador errante e quanto devia-se ao ódio dos judeus por Roma. — Um décimo, não mais, e talvez nem tanto assim, deve-se a esse Jesus — Pilatos respondeu à minha indagação. — Procure em Caifás e Anás a principal causa da excitação. Eles sabem o que fazem. Estão provocando os distúrbios, sabe-se lá com que finalidade, exceto causar-me problemas. — Sim, é certo que Caifás e Anás são os responsáveis — disse Miriam —, mas tu, Pôncio Pilatos, és apenas um romano e não compreendes. Se fosses um judeu, perceberias que o assunto envolve mais do que meras divergências sectárias ou vontade de causar problemas a ti e a Roma. Os sacerdotes e os fariseus, todos os judeus de posição ou riqueza, Filipe, Ântipas, eu mesma, estamos todos lutando por nossas próprias vidas... Esse pescador pode ser apenas um louco. Se assim é, existe astúcia em sua loucura. Ele prega a doutrina dos pobres. Ele ameaça nossa Lei e nossa Lei é nossa vida, como já aprendeste antes. Somos ciumentos de nossa Lei, como serias

ciumento do ar negado a teu corpo por uma mão a te apertar a garganta. Há de ser Caifás e Anás e tudo o que eles representam... ou o pescador. Eles precisam destruí-lo, senão ele os destruirá. — Não é estranho, um homem tão simples, um pescador? — a mulher de Pilatos arquejou. — Que tipo de homem pode ser para possuir tal poder? Eu gostaria de vê-lo. Gostaria de ver com meus próprios olhos um homem tão admirável. A fronte de Pilatos enrugou-se diante dessas palavras e ficou claro que, à carga imposta aos seus nervos, somava-se o estado de agitação nervosa de sua mulher. — Se queres vê-lo, procura-o nos antros da cidade — Miriam riu com escárnio. — Tu o encontrarás a se encher de vinho ou então na companhia de mulheres de má vida. Nunca tão estranho profeta entrou em Jerusalém. — E o que há de tão estranho nisso? — perguntei, forçado contra minha vontade a tomar o partido do pescador. — Eu por acaso também não me enchi de vinho e não passei estranhas noites nas províncias? Homem é homem e age como homem... ou então eu sou um louco, e isso sei que não sou. Miriam sacudiu a cabeça ao falar. — Ele não é louco. Pior, ele é perigoso. Todo ebionismo é perigoso. Ele destruiria todas as coisas que estão estabelecidas. Ele é um revolucionário. Ele destruiria o pouco que nos foi deixado do estado judaico e do Templo. Pilatos sacudiu a cabeça. — Ele não é político. Tive relatórios sobre ele. Ele é um visionário. Não há sedição nele. Ele afirma até mesmo os tributos romanos. — Continuas a não entender — Miriam insistiu. — Não é o que ele planeja... é o efeito de seus planos, se esses planos forem alcançados, que faz dele um revolucionário. Duvido que ele preveja esse efeito. Mas ainda assim ele é uma praga e, como qualquer praga, precisa ser exterminado. — Pelo que ouvi, ele é um homem simples e de bom coração, sem nenhuma maldade — comentei. E então contei a cura dos dez leprosos que testemunhei na Samaria, na minha passagem por Jerico. A mulher de Pilatos ouvia em transe o que eu relatava. Chegavam aos nossos ouvidos os gritos distantes de alguma multidão e sabíamos que os soldados mantinham as ruas limpas.

— E acreditas nesse milagre, Lodbrog? — perguntou Pilatos. — Acreditas que no piscar de um olho as feridas ulceradas deixaram o corpo dos leprosos? — Eu os vi curados — respondi. — Eu os segui para ter certeza. Não havia nenhuma lepra neles. — Mas chegaste a vê-los cheios de úlceras... antes da cura? — insistiu Pilatos. Meneei a cabeça. — Só o que me contaram — admiti. — Quando eu os vi depois, eles todos tinham a aparência de homens que antes foram leprosos. Estavam atordoados. Um deles ficou sentado ao sol examinando seu corpo e olhando e olhando para sua carne limpa como se fosse incapaz de acreditar em seus olhos. Ele não falou nem olhou para nada mais, senão sua carne, quando o interroguei. Ele estava assombrado. Ele ficou sentado ao sol e olhava e olhava. Pilatos sorriu com desprezo e notei que o sorriso tranqüilo no rosto de Miriam também era de desprezo. E a mulher de Pilatos estava como se fosse um cadáver, mal respirando, seus olhos muito abertos e nada vendo. Falou Ambivius: — Caifás sustenta, ele me disse ainda ontem, que o pescador afirma que trará Deus à terra e construirá aqui um novo reino sobre o qual Deus reinará... — O que significaria o fim do domínio romano — atalhei. — E nisso que Caifás e Anás conspiram para confundir Roma — Miriam explicou. — Não é verdade. É uma mentira que eles inventaram. Pilatos confirmou com a cabeça e perguntou: — Não existe em algum lugar em seus antigos livros uma profecia que esses sacerdotes distorceram para alterar as intenções desse pescador? Ela concordou e deu-lhe a citação. Relato o incidente para evidenciar a profundidade do estudo de Pilatos sobre esse povo que ele lutava tão arduamente para manter em ordem. — O que ouvi — continuou Miriam — é que esse Jesus prega o fim do mundo e o começo do reino de Deus, não aqui, mas no céu. — Tive relatórios a esse respeito — disse Pilatos. — É verdade. Esse Jesus sustenta a justiça da taxação romana. Ele sustenta que Roma governará até que todos os governos deixem de existir com o fim do mundo. Vejo muito claramente o estratagema que Anás está a armar para mim.

— Alguns de seus seguidores chegaram a afirmar — acrescentou Ambivius — que ele é o próprio Deus. — Não tenho nenhum relatório de que ele tenha dito isso — respondeu Pilatos. — Por que não? — arquejou sua mulher. — Por que não? Os deuses já desceram à terra antes. — Li em relatórios dignos de toda confiança — disse Pilatos — que depois que esse Jesus operou um milagre de alimentar uma multidão com alguns poucos pães e peixes, os loucos galileus quiseram fazê-lo rei. Contra sua vontade, queriam fazê-lo rei. Para escapar deles, ele fugiu para as montanhas. Nenhuma loucura aí. Ele era sábio demais para aceitar o destino que eles teriam forçado sobre ele. — Ainda assim, esse é exatamente o estratagema que Anás forçaria sobre ti — Miriam repetiu. — Os sacerdotes afirmam, pelo pescador, que o pescador quer ser o rei dos judeus... uma ofensa contra a lei romana e, portanto, é Roma que deve cuidar dele. Pilatos encolheu os ombros. — Um rei dos mendigos, não mais; ou um rei dos sonhadores. Ele não é nenhum tolo. Ele é um visionário mas suas visões não são do poder deste mundo. Que toda a sorte o acompanhe no outro mundo, que está além da jurisdição de Roma. — Ele sustenta que a propriedade é um pecado e é isso que atinge os fariseus — falou Ambivius. Pilatos deu uma gargalhada. — Esse rei dos mendigos e seus companheiros mendigos ainda respeitam a propriedade — explicou. — Pois veja, não faz muito tempo eles tinham até um tesoureiro guardando suas riquezas. Judas era seu nome e dizse que ele roubou da bolsa que guardava. — Jesus, ele roubou? — perguntou a mulher de Pilatos. — Não — respondeu Pilatos. — quem roubou foi Judas, o tesoureiro. — E quem era esse João? — perguntei. — Esse que causou problemas lá em Tiberíades e que Antipas executou. — Outro deles — respondeu Miriam. — Nascido perto de Hebron. Era um fanático, um habitante do deserto. Ou foi ele mesmo ou então seus seguidores que afirmaram que ele era Elias renascido dos mortos. Elias, sabes, foi um dos nossos antigos profetas. — Ele pregava a sedição? — perguntei. Pilatos sorriu e sacudiu a cabeça, dizendo:

— Ele se desentendeu com Antipas por causa de Herodíades. João era um moralista. É uma história muito longa, mas ele pagou com a cabeça. Não, não tinha nada de político no assunto. — Alguns também afirmam que Jesus é o Filho de Davi — disse Miriam. — Mas isso é absurdo. Ninguém em Nazaré acredita. Tu vês, toda sua família, incluindo suas irmãs casadas, vivem lá e todo mundo os conhece. São gente simples, apenas pessoas comuns. — Eu gostaria que fosse assim tão simples, o relatório de toda essa complexidade que preciso enviar para Tibério — grunhiu Pilatos. — E agora esse pescador vem para Jerusalém, o lugar está apinhado de peregrinos prontos para tudo e Anás mexe e remexe o caldo. — E antes de terminar, Anás fará do jeito que quer — previu Miriam. — Ele preparou uma tarefa para ti e tu a desempenharás. — E qual seria? — perguntou Pilatos. — A execução desse pescador. Pilatos sacudiu a cabeça com teimosia e sua mulher gritou: — Não! Não! Seria um erro vergonhoso. O homem não fez mal algum. Ele não cometeu ofensa contra Roma. Ela olhou suplicante para Pilatos, que continuava a abanar a cabeça. — Que eles façam suas próprias decapitações, como fez Antipas — grunhiu ele. — O pescador nada vale, mas não serei o instrumento de suas intrigas. Se precisam destruí-lo, que o destruam eles mesmos. É assunto deles. — Mas não o permitirás — gritou a mulher de Pilatos. — Um belo momento eu passaria me explicando a Tibério, se interferisse — foi sua resposta. — Não importa o que acontecer—disse Miriam —, já posso ver-te a escrever tuas explicações, e muito em breve, pois Jesus já veio para Jerusalém e alguns de seus pescadores com ele. Pilatos demonstrou a irritação que essa informação lhe causava. — Não tenho interesse algum em seus movimentos — afirmou. — Espero jamais vê-lo. — Confia em Anás para encontrá-lo para ti — Miriam respondeu — e para trazê-lo até tuas portas. Pilatos sacudiu os ombros e aí a conversa terminou. A mulher de Pilatos, nervosa e agitada, tinha de exigir Miriam em seus aposentos; e assim, nada me restava senão ir para a cama e dormir com o zumbido e murmúrio dessa cidade de loucos.

Os acontecimentos se atropelaram. Da noite para o dia, a cidade queimava sob a intensa tensão. Por volta do meio-dia, quando cavalguei com meia dúzia dos meus homens, as ruas estavam apinhadas e o povo mostravase mais relutante do que nunca em abrir-nos caminho. Se olhares matassem, eu seria um homem morto aquele dia. Eles cuspiam abertamente à minha passagem e por toda parte ouviam-se rosnados e gritos. Hoje eu não causava assombro, hoje eu era a coisa odiada porque vestia a odiada armadura de Roma. Fosse qualquer outra cidade, eu teria dado ordens aos meus homens para espalmar suas lâminas sobre esses fanáticos rosnadores. Mas esta era Jerusalém, no calor da febre; e este era um povo incapaz, em seu pensamento, de divorciar a idéia do Estado da idéia de Deus. Anás, o saduceu, fizera bem o seu trabalho. Não importa o que ele e o Sinédrio pensassem sobre a verdadeira essência da situação, estava claro que essa gentalha fora manipulada para acreditar que por trás de tudo estava a mão de Roma. Encontrei Miriam no meio da multidão. Ela estava a pé, acompanhada apenas por uma serva. Não era momento, em tal turbulência, para que ela saísse às ruas vestida como convinha à sua posição. Afinal, ela era, por parte da irmã, cunhada de Ântipas, por quem poucos tinham amor. Assim, ela estava discretamente vestida e com o rosto encoberto e podia passar por qualquer mulher judia de uma classe mais baixa. Mas não aos meus olhos poderia ela esconder aquela sua estatura, aquele seu porte, aquele seu andar, tão diferentes dos das outras mulheres e com os quais eu já sonhara mais que uma vez. Poucas e rápidas foram as palavras que pudemos trocar, porque a rua ficava cada vez mais apinhada e logo meus homens e cavalos estavam sendo empurrados e acotovelados. Miriam abrigava-se num ângulo de parede. — Eles já pegaram o pescador? — perguntei. — Não. Mas ele está ali fora dos muros. Ele chegou a Jerusalém montado num jumentinho e com uma multidão a rodeá-lo, e quando ele passou alguns, pobres tolos, saudaram-no como o Rei de Israel. Esse será o pretexto com que Anás forçará Pilatos. Em verdade, embora ainda não tomada, a sentença já está escrita. Esse pescador é um homem morto. — Mas Pilatos não o prenderá — aleguei. Miriam meneou a cabeça. — Anás cuidará disso. Eles o trarão ante o Sinédrio. A sentença será a morte. Podem apedrejá-lo. — Mas o Sinédrio não tem o poder de executar—argumentei.

— Jesus não é um romano — ela respondeu. — Ele é um judeu. Pela lei do Talmude ele é culpado de morte, porque blasfemou contra a Lei. Continuei a menear a cabeça. — O Sinédrio não tem o direito. — Pilatos está preferindo que tenha. — Mas é uma questão de legalidade — insisti. — Sabes como são os romanos nesse ponto. — Então Anás evitará a questão — ela sorriu — obrigando Pilatos a crucificá-lo. Para ele, de todo modo, tudo estará bem. As marés da multidão quase arrastavam nossos cavalos e apertavam nossos joelhos. Algum fanático caiu e senti meu cavalo escoicear e erguer a traseira ao pisoteá-lo, e ouvi o homem gritar e os rosnados ameaçadores que nos envolviam tornarem-se um bramido. Mas minha cabeça estava firme quando gritei para Miriam: — És dura com um homem que disseste não ter maldade. — Sou dura com a maldade que virá dele se ele viver — ela respondeu. Mal entendi suas palavras porque um homem pulou, agarrou minhas rédeas e minha perna e tentou arrancar-me da sela. Com a mão espalmada, inclinei-me e golpeei-o em cheio na face e no queixo. Minha mão cobriu sua cara e o golpe trazia o peso vigoroso da minha vontade. Os habitantes de Jerusalém não estão acostumados a uma bofetada de homem. Muitas vezes fiquei me perguntando se não quebrei o pescoço daquele homem. A próxima vez que vi Miriam foi no dia seguinte. Encontrei-a no átrio do palácio de Pilatos. Ela parecia em transe. Seus olhos não me viam. Sua mente não percebia minha presença. Tão estranha estava ela, tão entorpecida e assombrada, tão distantes estavam seus olhos, que me lembrei dos leprosos que vi curados em Samaria. Ela se tomou ela mesma com esforço, mas apenas seu ser exterior. Em seus olhos havia uma mensagem ilegível. Nunca antes eu tinha visto olhos de mulher assim. Ela teria passado por mim sem me cumprimentar se eu não tivesse bloqueado seu caminho. Ela parou e murmurou algumas palavras mecanicamente, mas todo o tempo seus olhos sonhavam, através de mim e além de mim, com a imensidão da visão que os preenchia. — Eu O vi, Lodbrog — murmurou — Eu O vi. — Queiram os deuses que ele também não esteja assim tão afetado por te ver, quem quer que seja ele — gracejei.

Ela não tomou conhecimento do meu pobre gracejo e seus olhos permaneciam plenos daquela visão, e ela teria passado por mim se eu não tivesse, mais uma vez, bloqueado seu caminho. — Quem é esse ele? — perguntei. — Algum homem renascido dos mortos para pôr tão estranha luz em teus olhos? — Um homem que fez outros renascerem dos mortos — respondeu ela. — Em verdade, acredito que Ele, esse Jesus, ressuscitou os mortos. Ele é o Príncipe da Luz, o Filho de Deus. Eu O vi. Em verdade, acredito que Ele é o Filho de Deus. Pouco fui capaz de ajuntar de suas palavras, exceto que ela encontrara esse pescador errante e fora arrastada por sua insensatez. Pois certamente esta Miriam não era a Miriam que o chamara de praga e exigira que ele fosse exterminado como qualquer outra praga. — Ele te encantou — gritei furioso. Seus olhos pareceram umedecer-se e ficar mais profundos enquanto ela confirmava. — Ah, Lodbrog, Seu encanto está além de todo pensamento, além de qualquer descrição. Olhar para Ele é saber que ali está a essência da bondade e da compaixão. Eu O vi. Eu O ouvi. Darei tudo que tenho aos pobres e O seguirei. Tamanha era sua certeza que a aceitei por completo, tal como aceitara o assombro dos leprosos de Samaria olhando para suas carnes limpas; e irritoume que uma mulher tão brilhante pudesse ser tão facilmente enredada por um vadio fazedor de milagres. — Segui-lo — zombei. — Sem dúvida usarás uma coroa quando ele conquistar seu reino. Ela acenou a cabeça confirmando e eu poderia tê-la esbofeteado por sua insensatez. Cedi-lhe passagem e, enquanto se adiantava vagarosamente, ela murmurou: — Seu reino não é deste mundo. Ele é o Filho de Davi. Ele é o Filho de Deus. Ele é tudo, bom e grande, que disse ser ou que tenha sido dito d'Ele. — Um sábio do Oriente — encontrei Pilatos a murmurar. — Ele é um filósofo, esse pescador iletrado. Busquei mais fundo dentro dele. Tenho relatórios recentes. Ele não precisa fazer milagres. Ele é mais sofisticado que os mais sofisticados doutores da lei. Eles lhe armaram ciladas e ele riu de suas ciladas. Olhe. Olhe para isto. E ele me contou como Jesus confundiu aqueles que quiseram confundilo trazendo-lhe, para que ele a julgasse, uma mulher encontrada em adultério.

— E os tributos — Pilatos exultava. — “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi sua resposta a eles. Essa era uma cilada de Anás e Anás está confuso. Eis que surge, afinal, um judeu que entende a nossa concepção romana de Estado. A seguir, vi a mulher de Pilatos. Ao olhar seus olhos entendi num instante, depois de ter visto os olhos de Miriam, que esta mulher tensa e perturbada também vira o pescador. — O Divino está n'Ele — murmurou-me ela. — Há dentro d'Ele uma percepção pessoal da existência de Deus. — Ele é Deus? — perguntei com suavidade, porque era preciso que eu dissesse alguma coisa. Ela meneou a cabeça. — Não sei. Ele não disse. Mas uma coisa eu sei: é dessa substância que são feitos os deuses. “Um encantador de mulheres”, foi o que pensei, quando deixei a mulher de Pilatos com seus sonhos e visões. Os últimos dias são conhecidos de todos vocês que lêem estas linhas e foi naqueles últimos dias que descobri que esse Jesus também era um encantador de homens. Ele encantou Pilatos. Ele encantou a mim. Depois que Anás enviou Jesus a Caifás e depois que o Sinédrio, reunido na casa de Caifás, condenou-o à morte, Jesus, escoltado por uma multidão vociferante, foi enviado a Pilatos para execução. Por respeito a si mesmo e por respeito a Roma, Pilatos não queria executá-lo. Pilatos estava pouco interessado no pescador e muito interessado na paz e na ordem. O que importava a Pilatos a vida de um homem? A vida de muitos homens? A escola de Roma era o ferro, e os homens enviados por Roma para governar os povos conquistados eram, do mesmo modo, homens de ferro. Pilatos pensava e agia em abstrações governamentais. Mas... quando Pilatos saiu, carrancudo, ao encontro da multidão que trouxera o pescador, ele foi imediatamente conquistado pelo encanto do homem. Eu estava presente. Eu sei. Era a primeira vez que Pilatos o via. Pilatos saiu furioso. Nossos soldados estavam de prontidão para limpar o átrio daqueles vermes barulhentos. E logo que pôs os olhos no pescador, Pilatos foi conquistado — não, não só conquistado, Pilatos foi tomado de apreensão. Ele negou ter jurisdição sobre o caso, exigiu que eles julgassem o pescador por sua Lei e o tratassem pela sua Lei, já que o pescador era um judeu e não um romano. Ah, mas nunca se viram judeus tão submissos à autoridade romana! Eles gritaram que seria ilegal que eles, sob o domínio de Roma, executassem

qualquer homem. No entanto, Antipas decapitou João e não se arruinou por isso. E Pilatos deixou-os no átrio a céu aberto e levou Jesus, sozinho, à sala de julgamento. O que aconteceu lá dentro eu não sei, mas, quando Pilatos saiu, ele estava mudado. Antes, ele não queria a execução para não se tomar um instrumento das intrigas de Anás; agora, ele não queria a execução por respeito ao pescador. Seus esforços, agora, visavam salvar o pescador. E o tempo todo a multidão gritava: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Você, meu leitor, conhece a sinceridade dos esforços de Pilatos. Você sabe como ele tentou, primeiro, enganar a multidão dizendo que Jesus era um louco inofensivo; e depois oferecendo-se para libertá-lo conforme o costume de libertar um prisioneiro na época da Páscoa. E você sabe como os rápidos murmúrios dos sacerdotes instigaram a multidão a gritar pela libertação do assassino Barrabás. Em vão Pilatos lutou contra o destino que era lançado sobre ele pelos sacerdotes. Com zombarias e galhofas, ele esperava transformar tudo aquilo numa farsa. Rindo, ele chamou Jesus de Rei dos Judeus e ordenou que fosse flagelado. Sua esperança era que tudo acabasse em gargalhadas e em gargalhadas fosse esquecido. Tenho a satisfação de dizer que nenhum soldado romano tomou parte no que se seguiu. Foram os soldados das tropas auxiliares que coroaram Jesus e lhe vestiram o manto e lhe puseram na mão a vara da realeza e, ajoelhandose, saudaram-no como Rei dos Judeus. Embora tenha falhado, foi um jogo de conciliação. E eu, assistindo, conheci o encanto de Jesus. Apesar da cruel zombaria de sua situação, ele era um rei. E eu olhava em silêncio. Era sua própria quietude que me invadia. A paz estava comigo, a plenitude, eu não me sentia confuso. Isso tinha de ser. Assim tinha de ser. A serenidade de Jesus no coração do tumulto e da dor tomou-se a minha serenidade. Mal fui movido por qualquer pensamento de salvá-lo. Por outro lado, eu vira demasiados milagres do ser humano em minha vida selvagem e variada para ser induzido a alguma loucura por este milagre em particular. Eu estava sereno. Eu não tinha palavras a dizer. Eu não tinha julgamentos a fazer. Eu sabia que as coisas estavam ocorrendo além da minha compreensão e que elas precisavam ocorrer. E Pilatos ainda lutava. O tumulto aumentava. O brado por sangue circundava o átrio e todos gritavam por crucificação. Mais uma vez Pilatos voltou à sala de julgamento. Tendo falhado sua tentativa de transformar tudo

numa farsa, ele tentou negar jurisdição. Jesus não era de Jerusalém. Nascera súdito de Antipas e para Antipas Pilatos queria enviá-lo. Mas o tumulto já se espalhava à cidade. Nossas tropas fora do palácio eram arrastadas pela multidão. Começavam distúrbios que num piscar de olhos poderiam se transformar em guerra civil e revolução. Meus vinte legionários estavam à mão e de prontidão. Eles amavam os fanáticos judeus tanto quanto eu e teriam recebido alegremente uma ordem minha para limpar o átrio a fio de espada. Quando Pilatos saiu novamente, suas palavras alegando a jurisdição de Antipas não foram ouvidas, pois toda a multidão gritava que Pilatos era um traidor, que se soltasse o pescador ele não era amigo de Tibério. Eu estava apoiado ao muro e à minha frente um fanático sarnento de longos cabelos e barbas pulava sem cessar e gritava sem cessar: “Tibério é imperador, não existe rei! Tibério é imperador, não existe rei!” Perdi a paciência. O barulho do homem perto de mim era uma ofensa. Inclinando-me, como que por acidente, esmaguei seu pé sob meus tacões. O louco pareceu nem notar. Estava demasiado enlouquecido para sentir a dor e continuou a gritar: “Tibério é imperador, não existe rei!” Vi Pilatos hesitar. Pilatos, o governador romano, naquele momento era Pilatos, o homem, com uma raiva de homem contra as miseráveis criaturas a bradar pelo sangue de um espírito tão doce e simples, tão corajoso e bom como esse Jesus. Vi Pilatos hesitar. Seu olhar vagueou na minha direção, como se ele estivesse a ponto de me fazer sinal para o ataque; e meio que avancei, libertando o pé esmagado sob o meu. Preparei-me para saltar e concluir aquele desejo semi formulado de Pilatos e lavar em sangue e limpar o átrio da escória imunda que nele gritava. Não foi a indecisão de Pilatos que me decidiu. Foi esse Jesus que decidiu a Pilatos e a mim. Esse Jesus olhou para mim. Ele me ordenou. Eu lhe digo, esse pescador vadio, esse pregador errante, esse rebotalho da Galiléia, ordenou-me. Nenhuma palavra ele pronunciou. E ainda assim sua ordem ali estava, inequívoca como um toque de trombeta. E sustive meu pé e detive minha mão, pois quem era eu para contrariar a vontade e o caminho de um homem tão imensamente sereno e tão docemente seguro como esse? E enquanto eu me detinha, conheci todo o encanto dele — tudo aquilo nele que encantara Miriam e a mulher de Pilatos, que encantara o próprio Pilatos. Você conhece o resto. Pilatos lavou suas mãos do sangue de Jesus. Seu sangue caiu sobre a cabeça daquele povo. Pilatos deu ordens para a

crucificação. A turba estava contente; e contentes, por trás da turba, estavam Caifás, Anás e o Sinédrio. Não Pilatos, não Tibério, não soldados romanos, crucificaram Jesus. E sim os sacerdotes governantes e os sacerdotes políticos de Jerusalém. Eu vi. Eu sei. E contra seus próprios interesses Pilatos teria salvo Jesus, como eu teria, se não fosse pelo próprio Jesus que não quis ser salvo. Sim, e Pilatos fez uma última afronta a esse povo que ele detestava. Em hebraico, grego e latim ele fez afixar uma inscrição à cruz de Jesus, que dizia: “O Rei dos Judeus”. Em vão os sacerdotes protestaram. Foi com esse pretexto que eles forçaram a participação de Pilatos; e foi por esse pretexto, um escárnio e um insulto à raça judaica, que Pilatos tomou a responsabilidade. Pilatos materializou uma abstração que nunca existiu na realidade. Essa abstração era uma fraude e uma mentira engendrada na mente dos sacerdotes. Nem os sacerdotes nem Pilatos nela acreditaram. Jesus negou-a. Essa abstração era “O Rei dos Judeus”. No átrio, a tempestade passou. A excitação cedeu. A revolução foi evitada. Os sacerdotes estavam contentes, a multidão satisfeita, e Pilatos e eu profundamente enojados e cansados com o caso todo. Mas para ele e para mim ainda havia tempestade, e mais imediata. Antes que Jesus fosse levado, uma das servas de Miriam chamou-me para ir até ela. E vi Pilatos, chamado por uma das servas de sua mulher, também obedecer. — Ah, Lodbrog, eu ouvi — disse Miriam ao me encontrar. Estávamos a sós e ela se aproximou de mim, buscando abrigo e força em meus braços. — Pilatos fraquejou. Ele vai crucificá-Lo. Mas ainda há tempo. Teus homens estão de prontidão. Cavalga com eles. Apenas um centurião e um punhado de soldados O acompanham. Eles ainda não partiram, E logo que partirem, segue-os. Eles não devem chegar ao Gólgota. Mas espera até que estejam fora dos muros da cidade. Então revogas a ordem. Leva um cavalo a mais para Ele montar. O resto é fácil. Foge com Ele para a Síria ou Idiunéia, ou qualquer outro lugar desde que Ele se salve. Ela concluiu com os braços em volta do meu pescoço, o rosto voltado para mim, tentadoramente próximo, os olhos solenes e cheios de promessas. Não é de admirar que eu estivesse lento de palavras. Nesse instante só havia um pensamento em meu cérebro. Depois de todo o estranho jogo que eu vira se desenrolar, ser atingido por uma coisa dessas! Entendi muito bem. A coisa estava clara. Uma grande mulher seria minha se... se eu traísse Roma. Pois Pilatos era o governador; sua ordem fora publicada; e sua voz era a voz de Roma.

Como eu disse, foi a mulher em Miriam, sua própria feminilidade, que acabou traindo a ela e a mim. Ela sempre fora tão clara, tão racional, tão segura de si mesma e de mim, que eu esquecera — ou melhor, eu ali aprendi novamente a eterna lição aprendida em todas as vidas: a mulher é sempre mulher; nos grandes momentos de decisão, a mulher não raciocina, ela sente; o santuário supremo, a mais íntima força motivadora, está no coração da mulher e não em sua cabeça. Miriam entendeu mal meu silêncio, pois seu corpo apertou-se docemente contra o meu enquanto ela acrescentava, como se a idéia acabasse de lhe ocorrer: — Leva dois cavalos a mais, Lodbrog. Eu cavalgarei o outro... contigo... contigo, pelo mundo afora, para onde quer que vás. Era um suborno de reis; era uma comédia, mesquinha e desprezível, que se exigia de mim em retribuição. E continuei mudo. Não que eu estivesse confuso ou em dúvida. Eu estava apenas triste, profunda e subitamente triste, pois sabia que tinha em meu braços alguém que nunca voltaria a abraçar. — Existe apenas um homem em Jerusalém que pode salvá-Lo hoje — ela me estimulava — e tu és esse homem, Lodbrog. Como não respondi de imediato, ela me sacudiu, como se tentasse aclarar uma mente que julgava turva. Ela me sacudiu até que minha armadura ressoou. — Fala, Lodbrog, fala — ordenou, — És forte e destemido. És um homem de verdade. Sei que desprezas os vermes que querem destruí-Lo. Tu, e só tu, podes salvá-Lo. Tens apenas que dizer uma só palavra e a coisa será feita. E muito te amarei e sempre te amarei pelo que fizeste. — Sou um romano — disse com vagar, sabendo muito bem que com essas palavras abandonava qualquer esperança de tê-la. — És um escravo de Tibério, um cão de Roma — ela inflamou-se —, mas nada deves a Roma, pois não és romano. Os gigantes louros do Norte não são romanos. — Para nós, filhos do norte, os romanos são nossos irmãos mais velhos — respondi. — E eu uso a armadura de Roma, eu como o pão de Roma. E acrescentei, gentilmente: — Mas por que toda essa exaltação pela simples vida de um homem? Todos os homens devem morrer. Morrer é simples e fácil. Hoje ou daqui a cem anos, pouco importa. Estamos certos, todos nós, de que o mesmo fim nos espera.

Ela vibrava com a paixão de salvar o pescador e tremia em meus braços. — Não entendes, Lodbrog. Ele não é um simples homem. Digo-te que Ele é um homem além dos homens... um Deus vivo, não de homens, mas acima dos homens. Apertei-a em meus braços e, sabendo que com isso renunciava a toda sua doçura de mulher, murmurei-lhe: — Somos um homem e uma mulher, tu e eu. Nossa vida é deste mundo. Os outros mundos são loucura. Deixa os loucos sonhadores seguirem o caminho de seus sonhos. Não negues a eles o que desejam acima de todas as coisas, acima da carne e do vinho, acima da música e da batalha, acima até do amor de uma mulher. Não negues a eles o que seus corações desejam, isso que os atrai através da escuridão do túmulo até seus sonhos de vidas além deste mundo. Deixa-os morrer. Mas tu e eu vivemos aqui toda a doçura que descobrimos um no outro. Muito depressa chegará a escuridão e partirás para teu paraíso ensolarado e florido e eu partirei para o ruidoso festim do Valhalla. — Não! Não! — ela gritou, quase arrancando-se dos meus braços. — Não entendes. Toda a grandiosidade, toda a bondade, todo o divino estão nesse homem que é mais que um homem. E é uma morte vergonhosa a que Ele morrerá. Só escravos e ladrões morrem assim. Ele não é escravo nem ladrão. Ele é um imortal. Ele é Deus. Em verdade, digo-te que Ele é Deus. — Ele é imortal, dizes — argumentei. — Então morrer hoje no Gólgota em nada encurtará sua imortalidade na extensão do tempo. Ele é um deus, dizes. Deuses não morrem. Por tudo que deles ouvi, é certo que os deuses não podem morrer. — Ah! — gritou ela. — Não queres entender. És apenas um gigante de carne. — Pois não é dito que esse acontecimento foi há muito profetizado? — perguntei, pois aprendera com os judeus aquilo que eu considerava suas sutilezas de pensamento. — Sim, sim — ela concordou —, as profecias messiânicas. Esse é o Messias. — E quem sou eu — perguntei — para fazer dos profetas mentirosos? Para fazer do Messias um falso Messias? Serão assim tão frágeis as profecias do teu povo que eu, um estrangeiro estúpido, um guerreiro nórdico numa armadura romana, posso falsear uma profecia e obrigar a que não se cumpra uma coisa desejada pelos deuses e prevista pelos sábios? — Não entendes — ela repetiu.

— Entendo até demais — respondi. — Serei eu maior que os deuses para contrariar a vontade dos deuses? Então os deuses seriam coisas vãs, brinquedos dos homens. Eu sou um homem. Eu também me prostro diante dos deuses, de todos os deuses, pois acredito em todos os deuses. Senão, como teriam surgido todos os deuses? Ela afastou-se de mim e meus braços famintos ficaram vazios de seu corpo. Ficamos separados, a ouvir o tumulto na rua quando Jesus e os soldados saíram e se puseram a caminho. E meu coração se amargurava; como podia uma mulher tão brilhante ser assim tão tola? Ela queria salvar Deus. Ela queria ser maior que Deus. — Não me amas — disse ela devagar. E devagar cresceu em seus olhos uma promessa de si mesma, mais profunda e ampla que quaisquer palavras. — Amo-te além do teu entendimento, parece — foi minha resposta. — Tenho orgulho de te amar, pois sei que sou digno de te amar e sou digno de todo o amor que me possas dar. Mas Roma é minha mãe adotiva e, se eu lhe for infiel, de pouco orgulho e de pouco valor seria meu amor por ti. O tumulto que envolvia Jesus e os soldados dissipou-se ao longo da rua. E quando não restou nenhum som, Miriam virou-se para partir, sem uma palavra, sem um olhar para mim. Senti um último ímpeto de louco desejo por ela. Num salto, agarrei-a. Eu queria jogá-la sobre um cavalo e fugir com ela e meus homens para a Síria, para longe dessa amaldiçoada cidade de loucos. Ela resistiu. Apertei-a. Ela me esbofeteou, mas continuei a agarrá-la e apertá-la, pois seus golpes eram doces. E então ela deixou de lutar. Ficou fria e imóvel; e entendi que não havia amor de mulher no corpo que meus braços apertavam. Para mim ela estava morta. Vagarosamente soltei-a. Vagarosamente ela recuou. Como se não me visse, ela voltou-se, atravessou a sala silenciosa e, sem olhar para trás, passou pelos cortinados e se foi. Eu, Ragnar Lodbrog, nunca aprendi a ler ou a escrever. Mas, em meus dias, ouvi muitas histórias. Vejo agora que nunca aprendi os grandes discursos; os discursos dos judeus, versados na sua Lei, ou dos romanos, versados na sua filosofia e na filosofia dos gregos. Por isso, falei com a simplicidade e a objetividade com que pode falar um homem que começou a vida nos navios de Tostig Lodbrog e sob o teto de Brunanbuhr e que correu o mundo ate Jerusalém e voltou. E foi um discurso direto e simples que fiz a Sulpicius Quirinius quando fui relatar-lhe os incidentes ocorridos em Jerusalém.

CAPITULO 18 A animação suspensa não é nada novo, não só no mundo vegetal e nas formas inferiores de vida animal como também no organismo altamente evoluído e complexo do próprio homem. Um transe cataléptico é um transe cataléptico, não importa como seja induzido. Desde tempos imemoriais, o faquir da Índia tem sido capaz de induzir voluntariamente tais estados a si mesmo. Um dos velhos truques dos faquires é ser enterrados vivos. Outros homens, em transes similares, enganaram os médicos, que os declararam mortos e deram as ordens que os puseram vivos sob a terra. Conforme prosseguiam minhas experiências com a camisa-de-força em San Quentin, dediquei-me bastante a esse problema da animação suspensa. Lembrei ter lido que os camponeses do extremo norte da Sibéria costumavam hibernar durante os longos invernos, assim como fazem os ursos e outros animais selvagens. Alguns cientistas estudaram esses camponeses e descobriram que, durante esses períodos do “longo sono”, a respiração e a digestão praticamente cessavam e o coração pulsava tão fraco que desafiava a detecção pelo exame comum do leigo. Num tal transe, os processos corporais estão tão próximos da suspensão absoluta que o ar e o alimento consumidos são praticamente insignificantes. Nesse raciocínio baseava-se, em parte, meu desafio ao Diretor Atherton e ao Doutor Jackson. Foi assim que ousei desafiá-los a me darem cem dias na camisa-de-força. E eles não ousaram aceitar meu desafio. Em todo caso, eu conseguia passar sem água, e também sem alimento, durante minhas sessões de dez dias. Eu achava um aborrecimento intolerável ser arrancado das profundezas de minhas peregrinações pelo espaço e tempo e ser trazido de volta ao sórdido presente por um desprezível médico de prisão a enfiar água em minha boca. Assim, primeiro avisei ao Doutor Jackson que eu pretendia ficar sem água enquanto estivesse na camisa-de-força; e depois, que eu resistiria a quaisquer esforços para me obrigar a beber. É claro que tivemos nossa pequena batalha; mas, depois de diversas tentativas, o Doutor Jackson desistiu. Dali em diante, o espaço ocupado na vida de Darrell Standing por uma sessão na camisa-de-força era pouco mais que alguns tique-taques do relógio. Logo que me amarravam, eu me dedicava a induzir a pequena morte. Com a prática, tornou-se simples e fácil. Eu suspendia a animação e a consciência tão depressa que escapava ao terrível sofrimento causado pela suspensão da circulação. E muito depressa vinham as

trevas. E o que eu, Darrell Standing, via a seguir era novamente a luz e os rostos inclinados sobre mim enquanto me desamarravam; e o conhecimento de que dez dias haviam se passado num piscar de olhos. Mas, ah, a maravilha e a glória daqueles dez dias passados por mim em algum outro lugar! As jornadas através da longa cadeia de existências! As longas trevas, o surgimento de luzes nebulosas e a alvoroçada aparição dos eus que irrompiam através da luz crescente! Muito pensei sobre a relação desses outros eus comigo mesmo — e sobre a relação dessa experiência, como um todo, com a moderna doutrina da evolução. Posso dizer, na verdade, que minha experiência está de pleno acordo com nossas conclusões sobre a evolução. Eu, como qualquer homem, sou um produto em crescimento. Não comecei quando nasci, nem quando fui concebido. Tenho estado a crescer, a me desenvolver, através de um número incalculável de milênios. Todas essas experiências de todas essas vidas, e de incontáveis outras vidas, entraram na composição da alma ou do espírito que é eu. Você entende? Elas são minha substância. A matéria não lembra, pois o espírito é a memória. Eu sou esse espírito composto pelas memórias das minhas infindáveis encarnações. De que fonte veio a mim, Darrell Standing, a sanguinária pulsão de fúria que arruinou minha vida e me lançou às celas dos condenados? Ele certamente não surgiu, nem foi criado, quando o bebê que viria a ser Darrell Standing foi concebido. Aquela antiga fúria sanguinária é muito mais antiga que minha mãe, muito mais antiga que a primeira e mais antiga mãe dos homens. Minha mãe, ao me conceber, não criou aquela apaixonada ausência de medo que é minha. Nem todas as mães de toda a evolução do homem fabricaram o medo ou o destemor nos homens. Muito antes, além dos primeiros homens, existiam o medo e o destemor, o amor, o ódio, a raiva, todas as emoções — a crescer, a se desenvolver, a se tomar a substância que se tomaria o homem. Eu sou todo o meu passado, como qualquer defensor da Lei de Mendel há de concordar. Todos os meus eus anteriores têm suas vozes, seus ecos, seus apelos, em mim. Todo o meu modo de agir, calor de paixão, lampejo de pensamento, é matizado e tonalizado — infinitesimalmente matizado e tonalizado — pelo vasto rol de outros eus que me precederam e que entraram na minha composição. A substância da vida é plástica. Ao mesmo tempo, essa substância nunca esquece. Molde-a como quiser... as velhas lembranças persistem. Todos os tipos de cavalos, do enorme reprodutor ao pequeno pônei, foram

desenvolvidos a partir daqueles primeiros potros selvagens domesticados pelo homem primitivo. E, no entanto, até hoje o homem não eliminou o coice do cavalo. E eu, que sou composto por aqueles primeiros domadores de cavalos, não eliminei de mim sua fúria sanguinária. Eu sou homem nascido de mulher. Meus dias são poucos, mas minha substância é indestrutível. Fui mulher nascida de mulher. Fui mulher e fiz nascer meus filhos. E nascerei novamente. Ah, incontáveis vezes ainda nascerei; mas os pobres tolos à minha volta acreditam que ao esticar meu pescoço com uma corda me farão deixar de existir. Sim, eu serei enforcado... em breve. Estamos no fim de junho. Muito em breve eles tentarão me enganar. Serei levado desta cela para o banho semanal, de acordo com o costume da prisão. Mas não serei trazido de volta a esta cela. Serei vestido em roupas novas e levado para a cela da morte. Lá estabelecerão a vigilância da morte sobre mim. Noite ou dia, desperto ou adormecido, serei vigiado. Não me será permitido pôr a cabeça sob os cobertores, por medo que eu possa antecipar o Estado sufocando a mim mesmo. Haverá sempre uma luz brilhante sobre mim. E então, quando me tiverem deixado bem cansado, eles me levarão uma manhã numa camisa sem colarinho e me lançarão pelo alçapão. Ah, eu sei. A corda que eles usarão está bem esticada. Já há muitos meses, o carrasco de Folsom tem estado a esticá-la com fardos pesados, para tirar sua elasticidade. Sim, cairei fundo. Eles possuem engenhosas tábuas de cálculos, como as tábuas de juros, que mostram a distância da queda em relação ao peso da vítima. Estou tão emaciado que eles precisarão me fazer cair muito fundo para poder quebrar meu pescoço. E então os circunstantes tirarão o chapéu e, enquanto meu corpo balança, os médicos apertarão o ouvido contra o meu peito para contar as batidas definhantes do meu coração e declararão, por fim, que estou morto. É grotesco. É a ridícula insolência de homens-vermes que pensam que podem me matar. Eu não morro. Eu sou imortal, assim como eles são imortais; a diferença é que eu sei disso e eles não sabem. Bolas! Eu já fui, uma vez, um carrasco — ou melhor, um executor. Lembro-me muito bem. Eu usava a espada, não a corda. A espada é o modo mais corajoso, embora todos os modos sejam igualmente ineficazes. Qual! Como se o espírito pudesse ser decepado pelo aço ou esganado pela corda!

CAPITULO 19 Depois de Oppenheimer e Morrell, que apodreceram comigo pelos anos de escuridão, fui considerado o prisioneiro mais perigoso de San Quentin. Por outro lado, fui considerado o mais duro; mais duro até que Oppenheimer e Morrell. É claro que por “duro” quero dizer resistente. Por terríveis que tenham sido as tentativas de quebrar Oppenheimer e Morrell no corpo e no espírito, mais terríveis ainda foram as tentativas de quebrar-me. E eu resisti. “Dinamite ou ponto final” foi o ultimato do Diretor Atherton. E, no fim, não foi nem dinamite nem ponto final. Eu não podia produzir a dinamite e o Diretor Atherton não conseguia induzir o ponto final. Não foi porque meu corpo resistisse, mas sim porque meu espírito resistia. E foi porque, em existências anteriores, meu espírito tinha sido temperado até à dureza do aço por experiências duras como o aço. Havia uma experiência que foi para mim, por longo tempo, uma espécie de pesadelo. Ela não tinha começo nem fim. Eu sempre me encontrava numa ilhota rochosa e batida pelas ondas, uma ilhota tão baixa que, nas tempestades, os vagalhões de espuma salgada cobriam seu topo. Chovia muito. Eu vivia numa cova e sofria, sem ter fogo e só comendo carne crua. Eu sofria sempre. Era o meio de alguma experiência da qual eu não achava pista alguma. E já que quando entrava na pequena morte eu não tinha o poder de dirigir minhas jornadas, muitas vezes me encontrei revivendo essa experiência particularmente detestável. Meus únicos momentos felizes eram quando o sol brilhava e eu me aquecia nas rochas e me livrava do tremor quase perpétuo de que sofria. Minha única diversão era um remo e um canivete. Sobre esse remo passei muito tempo, entalhando letras miúdas e fazendo uma chanfradura para cada semana que passava. Havia muitas chanfraduras. Eu afiava o canivete numa pedra achatada e nenhum barbeiro jamais teve tantos cuidados com sua navalha favorita do que eu com aquele canivete. Jamais um avarento amou seu tesouro como eu amava aquele canivete. Ele era tão precioso quanto minha vida. Na verdade, ele era a minha vida. Através de muitas repetições, consegui recuperar da memória da camisa-de-força a inscrição entalhada no remo. De início, eu só lembrava algumas palavras. Depois ficou mais fácil, foi uma questão de ir juntando as partes. E finalmente eu a tive completa. Aqui está:

Serve esta para informar à pessoa em cujas mãos este remo vier a cair que DANIEL FOSS, natural de Elkton, Maryland, um dos Estados Unidos da América do Norte, e que zarpou do porto de Filadélfia em 1809 a bordo do brigue NEGOCIATOR rumo às Ilhas da Amizade, foi lançado nesta ilha desolada em fevereiro do ano seguinte e ali erigiu uma cabana e viveu inúmeros anos, subsistindo com carne de foca — sendo ele o último sobrevivente da tripulação do dito brigue, que colidiu com uma ilha de gelo e naufragou aos 25 de novembro de 1809. Ali estava a inscrição, bastante clara. Por meio dela, descobri muito a respeito de mim mesmo. Um ponto humilhante, no entanto, jamais consegui esclarecer. Estava essa ilha situada nos confins do Pacífico Sul ou nos confins do Atlântico Sul? Não conheço o bastante das rotas de navegação para estar certo se o brigue Negociator velejaria para as Ilhas da Amizade pelo Cabo Horn ou pelo Cabo da Boa Esperança. Para confessar minha própria ignorância, não foi senão até ser transferido para Folsom que soube em qual oceano estão as Ilhas da Amizade. O japonês assassino, que já mencionei antes, serviu como marinheiro a bordo dos navios de Arthur Sewall e me disse que o curso de navegação mais provável seria pelo Cabo da Boa Esperança. Se assim era, então a data da partida de Filadélfia e a data do naufrágio determinariam com facilidade em qual oceano estaria minha ilhota. Infelizmente, a data da partida é apenas 1809. O naufrágio tanto poderia ter ocorrido num oceano como no outro. Uma única vez consegui, em meus transes, obter uma pista do período anterior ao tempo que passei na ilha. Começa no momento da colisão do brigue com o iceberg e vou narrá-lo, quando mais não seja para explicar minha conduta curiosamente fria e deliberada. Essa conduta em tal momento foi, como você verá, o que me permitiu ser o único sobrevivente de toda a tripulação do navio. Fui despertado em meu beliche na cabine de proa por um terrível impacto. Na verdade, como também ocorreu com os outros seis homens adormecidos na cabine, despertar e pular do beliche para o chão foi simultâneo. Sabíamos o que havia acontecido. Os outros não esperaram e correram seminus para o convés. Mas eu sabia o que esperar e fiquei para trás. Eu sabia que, se chegássemos a escapar, seria no bote salva-vidas. Nenhum homem poderia nadar em mar tão gelado. E nenhum homem, com poucas roupas, viveria muito tempo no bote aberto. E eu também sabia quanto tempo levaria para que o bote fosse lançado ao mar.

Assim, à luz do lampião que balançava violentamente e ouvindo o tumulto no convés e os gritos de “Estamos afundando!”, comecei a vasculhar meu baú em busca das roupas adequadas. E, já que eles nunca mais voltariam a usá-las, também saqueei os baús dos meus companheiros. Trabalhando com rapidez, mas com critério, peguei apenas as roupas mais quentes e reforçadas. Vesti as quatro melhores camisas de lã que a cabine tinha a oferecer, três pares de calças e três pares de grossas meias de lã. Tão grandes ficaram meus pés, assim envolvidos, que não consegui calçar minhas melhores botas. Em seu lugar, enfiei as botas novas de Nicholas Wilton, que eram maiores e até mesmo mais reforçadas que as minhas. Vesti a japona grossa de Jeremy Nalor sobre a minha e, por cima delas, o resistente oleado de Seth Richard, que eu lembrava ter sido impermeabilizado pouco tempo antes. Dois pares de luvas grossas, o cachecol de John Robert, tricotado por sua mãe, e o gorro de castor de Joseph Dawes sobre o meu próprio gorro, ambos com proteção para as orelhas e o queixo, completaram meu vestuário. Os gritos de que o brigue estava afundando redobraram, mas ainda me demorei um minuto para encher os bolsos com todo o fumo de rolo de que pude lançar mão. Então subi para o convés e já não era sem tempo. A lua, irrompendo por uma fresta nas nuvens, mostrou um quadro selvagem e desolador. Por toda parte havia equipamento destroçado, por toda parte havia gelo. As velas, cabos e botalós do mastro principal, que se agüentava de pé, estavam cobertos por pingentes de gelo; e assaltou-me uma sensação quase de alívio por saber que eu nunca mais teria de mourejar nas estralheiras endurecidas ou martelar gelo para que cabos congelados pudessem correr por roldanas congeladas. O vento, soprando forte, cortava com aquela aspereza que indica a proximidade de icebergs; e a vastidão do oceano era de um frio cortante ao luar. O bote salva-vidas estava sendo baixado a bombordo e vi homens, lutando com barris de provisões no convés coberto de gelo, abandonar a comida em sua pressa de fugir. Em vão o Capitão Nicholl tentava detê-los. Uma onda, irrompendo debarlavento, resolveu a questão e lançou-os aos trambolhões pela amurada. Cheguei-me ao capitão e, agarrando-me a ele, gritei em seu ouvido que se ele embarcasse no bote salva-vidas e evitasse que os homens se fizessem ao largo, eu cuidaria das provisões. Pouco tempo foi-me dado, no entanto. Mal tinha conseguido, ajudado pelo segundo-contramestre, Aaron Northrup, baixar meia dúzia de barris e barricas quando gritaram do bote que estavam largando. Boa razão tinham eles para isso. Avançando de barlavento vinha sobre nós uma imensa

montanha de gelo, enquanto a sotavento, diante de nós, havia outra montanha de gelo para a qual estávamos sendo arrastados. Aaron Northrup foi rápido em seu salto. Demorei-me um instante, mesmo com o bote começando a se afastar, para escolher um ponto entre a proa e a popa onde os homens estivessem mais agrupados, para que seus corpos amortecessem minha queda. Eu não pretendia embarcar com um membro fraturado na arriscada viagem no bote salva-vidas. Para que os homens tivessem espaço nos remos, abri caminho rapidamente para a cordoalha da popa. Por certo que tive outras, e boas razões. Seria mais confortável na popa do que na proa estreita. E, além disso, seria bom estar perto do capitão nos momentos de dificuldades que, sob tais circunstâncias, certamente surgiriam nos dias vindouros. Na popa estavam o contramestre, Walter Drake, o cirurgião de bordo, Arnold Bentham, Aaron Northrup e o Capitão Nicholl, que comandava o leme. O cirurgião inclinava-se sobre Northrup, que estava deitado no fundo do bote a gemer. Ele não foi feliz em seu salto irrefletido e quebrou a perna direita na articulação do quadril. Mas não havia tempo para ele, pois remávamos num mar violento exatamente entre as duas ilhas de gelo que se aproximavam uma da outra. Nicholas Wilton, no remo de ginga, não tinha espaço; assim, ajeitei melhor os barris e, ajoelhando-me diante dele, pude acrescentar meu peso ao remo. À frente, eu podia ver John Roberts gemendo sob o remo de proa. Empurrando por trás de seus ombros, Arthur Haskins e o menino, Benny Hardwater, acrescentavam seu peso ao dele. Na verdade, tão ansiosos estávamos todos em ajudar que acabamos nos estorvando uns aos outros e atrapalhando os movimentos dos remadores. Foi por pouco, salvamo-nos por questão de uns dez metros e consegui virar a cabeça e ver o fim prematuro do Negociator. Ele foi pego em cheio e esmagado entre os blocos de gelo — como um cubo de açúcar esmigalhado entre os dedos de um garoto. Com o zunir do vento e o troar das águas nada ouvimos, mas o barulho do esmagamento das costelas reforçadas do brigue e das vigas do convés deve ter sido suficiente para acordar um vilarejo numa noite tranqüila. Em silêncio, com facilidade, os lados do brigue foram esmagados e o convés dobrou-se para cima. Os destroços afundaram e desapareceram; o lugar onde esteve o navio foi ocupado pelas ilhas de gelo a se triturar. Senti pesar pela destruição daquele abrigo contra os elementos mas, ao mesmo

tempo, fiquei bastante satisfeito ao pensar no meu conforto dentro das minhas quatro camisas e três casacos. Foi um noite cruel, mesmo para mim. Eu era o mais agasalhado a bordo. Não me preocupei muito em pensar no que os outros devem ter sofrido. Por medo de nos defrontarmos com mais gelo na escuridão, viramos a direção do bote e o mantivemos de proa para o alto-mar. E continuamente, ora com uma luva, ora com a outra, eu esfregava meu nariz para que não se congelasse. E também, com as lembranças do círculo familiar em Elkton vividas em mim, rezei a Deus. De manhã examinamos a situação. Para começar, todos, exceto dois ou três, sofreram geladuras. Aaron Northrup, incapaz de mover-se devido ao quadril fraturado, estava muito mal. O cirurgião era de opinião de que ambos os pés de Northrup estavam irremediavelmente congelados. O bote salva-vidas afundava-se na água, carregado que estava com todos os vinte e um homens da tripulação do navio. Dois deles eram meninos. Benny Hardwater tinha apenas 13 anos; Lish Dickery, cuja família era vizinha da minha em Elkton, acabara de fazer dezesseis. Nossas provisões consistiam de 150 quilos de carne bovina e cem quilos de carne de porco. A meia dúzia de pães trazida pelo cozinheiro não contava, encharcada que estava de salmoura. E havia três pequenos barris de água e uma barriquinha de cerveja. O Capitão Nicholl admitiu com franqueza que, nesse oceano desconhecido, ele não tinha conhecimento de qualquer terra próxima. A única coisa a fazer era buscar um clima mais clemente; e foi o que fizemos, içando nossa pequena vela e seguindo, com a popa ao vento forte, para nordeste. O problema da comida era simples aritmética. Não contamos Aaron Northrup pois sabíamos que ele logo se iria. Com uma ração de meio quilo por dia, nossos 250 quilos durariam vinte e cinco dias; com uma ração de um quarto de quilo, cinqüenta dias. Assim, um quarto de quilo por dia havia de ser. Eu repartia e distribuía a carne sob o olhar atento do capitão e Deus é testemunha de que eu conseguia fazê-lo razoavelmente bem, embora alguns dos homens reclamassem desde o início. E, de tempos em tempos, eu fazia uma divisão justa do fumo de rolo estocado em meus muitos bolsos — uma coisa que eu só tinha a lamentar, especialmente quando percebia que o fumo estava sendo desperdiçado neste ou naquele homem que, eu estava certo, não viveria mais que um dia ou, quando muito, dois ou três dias. Pois logo começamos a morrer no bote aberto. Não à fome, mas à exposição ao frio cortante deveram-se aquelas primeiras mortes. Era uma questão da sobrevivência dos mais rijos e dos mais afortunados. Eu era rijo

por constituição e afortunado por estar bem agasalhado e não ter quebrado minha perna como Aaron Northrup. E mesmo assim ele era tão forte que, apesar de ser o primeiro a sofrer severas geladuras, demorou dias para morrer. Vance Hathaway foi o primeiro. Nós o encontramos no lusco-fusco da madrugada, dobrado de cócoras na proa e totalmente congelado. O menino, Lish Dickery, foi o segundo a ir. O outro menino, Benny Hardwater, durou dez ou doze dias. Estava tão frio no barco que a água e a cerveja se solidificaram e era uma tarefa difícil repartir com justeza os pedaços que eu quebrava com o canivete de Northrup. Púnhamos esses pedaços na boca e ficávamos a chupálos até se derreterem. E quando nevava, tínhamos toda a neve que podíamos desejar. Mas essas coisas não nos faziam bem; provocavam uma febre inflamatória que atacava toda a boca e, assim, as mucosas da boca estavam sempre secas e irritadas. E não havia como saciar a sede que essa febre provocava. Chupar mais gelo ou neve significaria apenas agravar a inflamação. Mais do que qualquer outra coisa, acho que foi isso que causou a morte de Lish Dickery. Ele esteve fora de si e delirante por 24 horas antes de morrer. E morreu pedindo água, embora não tenha morrido por falta de água. Resisti, tanto quanto possível, à tentação de chupar gelo; contentei-me com um pedaço de fumo na bochecha e me saí razoavelmente bem. Despíamos todas as roupas dos nossos mortos. Nus eles vieram ao mundo e nus passaram pela amurada do bote salva-vidas e mergulharam no escuro oceano gelado. Tirávamos a sorte pelas roupas. Isso por ordem do Capitão Nicholl, para evitar brigas. Não era momento para tolices sentimentais. Não havia nenhum de nós que não sentisse uma secreta satisfação com a ocorrência de cada morte. O mais afortunado de todos ao tirar a sorte era Israel Stickney e quando ele por fim morreu, foi como encontrar um verdadeiro tesouro, de roupas. Ele emprestou vida nova aos sobreviventes. Continuamos a rumar para nordeste adiante dos ventos fortes do oeste, mas nossa busca por um clima mais quente parecia vã. A espuma continuava a congelar no fundo do bote e eu ainda cortava a cerveja e a água potável com o canivete de Northrup. Meu próprio canivete eu preservava. Era de bom aço, com uma lâmina afiada e de modelo sólido, e eu não queria arriscá-lo de tal maneira. Pela época em que metade da tripulação já havia se ido, o bote ficou com o costado razoavelmente mais acima da linha-d'água e menos traiçoeiro de manejar nas tempestades. E também havia mais espaço para um homem se esticar com conforto.

Uma fonte de reclamação constante era a comida. O capitão, o contramestre, o cirurgião e eu discutimos o assunto e resolvemos não aumentar a ração diária de um quarto de quilo de carne por pessoa. Os seis marinheiros, dos quais Tobias Snow proclamou-se porta-voz, argumentavam que a morte de metade de nós equivalia a dobrar nossas provisões e que, portanto, a ração deveria ser aumentada para meio quilo. Em resposta, explicamos que o que havia sobrado era nossa chance de viver e que continuaríamos com a ração de um quarto de quilo. É verdade que 250 gramas de carne salgada por dia mal nos permitiam viver e resistir ao frio intenso. Estávamos muito enfraquecidos e, devido à nossa fraqueza, congelávamos facilmente. Narizes e bochechas estavam negros com a geladura. Era impossível manter-nos aquecidos, embora tivéssemos agora o dobro das roupas com que partimos. Cinco semanas após a perda do Negociator, o conflito por causa da comida atingiu seu ápice. Eu dormia naquele instante — era noite — em que o Capitão Nicholl apanhou Jud Hetchkins roubando carne de porco do barril. Que ele estava acumpliciado com os outros cinco homens ficou provado por suas ações. Logo que Jud Hetchkins foi descoberto, todos os seis atiraram-se sobre nós com suas facas. Travamos uma luta corpo-a-corpo à pálida luz das estrelas e foi uma bênção o bote não ter virado. Tive motivos para agradecer minhas muitas camisas e japonas, que me serviram de armadura. Os golpes de faca pouco mais fizeram que me arranhar através de tamanha espessura de roupas, embora eu tenha sangrado em uma dúzia de lugares. Os outros também estavam protegidos pelas roupas e a luta teria terminado em não mais que um espancamento generalizado se não fosse pelo contramestre, Walter Drake, um homem muito forte, ter a idéia de encerrar o assunto jogando os amotinados pela amurada. Nisso ele foi acompanhado pelo Capitão Nicholl, pelo cirurgião e por mim e, num instante, cinco dos seis estavam dentro d'água e se agarrando à amurada. O Capitão Nicholl e o cirurgião tentavam atirar na água o sexto deles, Jeremy Nalor, enquanto o contramestre batia com um remo nos dedos que se agarravam à amurada. Por um instante eu nada tive a fazer e assim pude testemunhar o trágico fim do contramestre. Quando ele levantou o remo para bater nos dedos de Seth Richard, Seth Richard mergulhou de repente e jogou o corpo para cima, quase saltando dentro do bote, agarrou o contramestre e, quando caiu para trás, puxou o contramestre consigo. Acho que ele nunca soltou sua presa e ambos se afogaram juntos.

Portanto, sobreviventes de toda a tripulação do Negociator estávamos nós três: o Capitão Nicholl, o cirurgião Arnold Bentham e eu. Sete homens tinham se ido num piscar de olhos, como conseqüência da tentativa de Jud Hetchkins de roubar provisões. E a mim parecia uma pena que tantas e tão boas roupas quentes fossem desperdiçadas no fundo do oceano. Nenhum de nós as teria desprezado. O Capitão Nicholl e o cirurgião eram homens bons e honestos. Com bastante freqüência, quando dois de nós dormíamos, o terceiro, acordado no leme, poderia ter roubado alguma carne. Mas isso nunca aconteceu. Confiávamos plenamente uns nos outros e teríamos preferido morrer a trair aquela confiança. Continuamos a nos contentar com um quarto de quilo de carne cada um por dia e nos aproveitamos de cada vento favorável para seguir para o norte. Não foi senão aos quatorze de janeiro, sete semanas depois do naufrágio, que chegamos a uma latitude mais quente. Mesmo então não era realmente quente. Apenas não era tão dolorosamente frio. Aqui os ventos fortes do oeste nos abandonaram e ficamos a balouçar na calmaria por muitos dias. Na maior parte do tempo havia apenas leves ventos contrários, mas às vezes uma rajada de vento, como que saída do nada, durava algumas horas. Em nosso estado de fraqueza e com um bote tão grande, remar estava fora de questão. Podíamos apenas proteger nossa comida e esperar que Deus mostrasse uma face mais amistosa. Nós três éramos cristãos praticantes e adotamos a prática de rezar todos os dias antes de distribuir a comida. Sim, e cada um de nós rezava em particular, com freqüência e longamente. Pelo fim de Janeiro, nossa comida estava quase no fim. A carne de porco acabou e usamos o barril para coletar e estocar água de chuva. Não restavam muitos quilos de carne bovina. E, em todas aquelas nove semanas no bote, não vimos uma vela nem vislumbramos terra. O Capitão Nicholl admitia francamente que, depois de sessenta e três dias a navegar às cegas, ele não sabia onde estávamos. O dia 20 de fevereiro viu o último bocado de comida ser devorado. Prefiro omitir os detalhes de muitas coisas que aconteceram nos oito dias seguintes. Mencionarei apenas os incidentes que servem para mostrar que tipo de homens eram os meus companheiros. Passávamos fome havia tanto tempo que não tínhamos reservas de forças a explorar quando a comida se acabou definitivamente e ficamos cada vez mais fracos com muita rapidez.

Em 24 de fevereiro discutimos calmamente a situação. Éramos três homens de espírito forte, cheios de vida e dureza, e não queríamos morrer. Nenhum de nós se sacrificaria voluntariamente pelos outros dois. Mas concordamos com três coisas: precisamos de comida; vamos decidir o assunto tirando a sorte; e vamos tirar a sorte na manhã seguinte se não houver vento. Na manhã seguinte houve vento, não muito mas razoável, e fomos capazes de avançar uns indolentes dois nós em nosso curso para o norte. As manhãs de 26 e 27 trouxeram vento semelhante. Estávamos terrivelmente fracos mas mantivemos nossa decisão e continuamos a navegar. Mas, na manhã do dia 28 soubemos que o momento tinha chegado. O bote salva-vidas balouçava-se monotonamente num mar vazio e sem ventos, e o céu parado e nublado não dava promessa de qualquer brisa. Cortei três pedacinhos de tecido, do mesmo tamanho, da minha japona. Na trama de um deles havia uma pontinha de fio marrom. Quem o tirasse, perdia. Coloquei os três pedaços dentro do meu gorro, cobrindo-o com o gorro do Capitão Nicholl. Tudo estava pronto, mas ficamos a rezar em silêncio por um longo tempo, pois sabíamos que estávamos deixando a decisão nas mãos de Deus. Eu não desconhecia minha própria honestidade e meu valor, mas estava igualmente consciente da honestidade e do valor dos meus companheiros; e assim, o que me deixava perplexo era como Deus poderia decidir um assunto tão equilibrado e delicado. O capitão, como era seu direito e dever, foi o primeiro. Com a mão dentro do gorro, ele ficou algum tempo de olhos fechados, seus lábios movendo-se numa última prece. E ele tirou um pedaço limpo. Estava certo — uma decisão correta, não pude deixar de admitir comigo mesmo; pois a vida do Capitão Nicholl era-me bem conhecida e eu o sabia honesto, íntegro e temente a Deus. Restavam o cirurgião e eu. Seria um ou o outro; e, de acordo com a hierarquia naval, era seu dever ser o próximo. Mais uma vez rezamos. Enquanto rezava, esforcei-me por passar a limpo minha vida pregressa e fazer um balanço dos meus méritos e deméritos. Eu segurava o gorro sobre os joelhos, com o gorro do Capitão Nicholl sobre ele. O cirurgião enfiou a mão no gorro e apalpou por algum tempo, enquanto eu me perguntava se o tato poderia distinguir aquele fio marrom na trama do tecido. Finalmente ele retirou a mão. O fio marrom estava em seu pedaço de tecido. Senti-me, de imediato, cheio de humildade e gratidão pela bênção

divina que me era concedida; e tomei a resolução de obedecer, com mais fé do que nunca, a todos os Seus mandamentos. No instante seguinte não pude deixar de sentir que o cirurgião e o capitão estavam mais ligados um ao outro por laços de posição e relacionamento do que comigo e que eles estavam, até certo ponto, desapontados com o resultado. Mas, junto com aquele pensamento, vinha-me a convicção de que eles eram homens tão honestos que o resultado não iria interferir com nosso plano. Eu estava certo. O cirurgião desnudou o braço, pegou a lâmina e preparou-se para abrir uma veia. Mas antes pronunciou algumas palavras. — Sou natural de Norfolk, Virgínia — disse ele —, onde espero ter agora uma esposa e três filhos vivos. O único favor que tenho a lhes pedir é que se pela graça de Deus qualquer um de vocês se salvar desta terrível situação e tiver a sorte de voltar a alcançar nossa terra natal, que informem minha infeliz família do meu destino cruel. A seguir ele nos pediu a cortesia de alguns minutos para acertar seus assuntos com Deus. Nem o Capitão Nicholl nem eu conseguíamos pronunciar uma palavra, mas, com os olhos marejados, acenamos nosso consentimento. Não há dúvida de que Arnold Bentham era o mais tranqüilo de nós três. Minha angústia era imensa e estou certo de que o Capitão Nicholl sofria como eu. Mas o que se poderia fazer? A coisa era justa e adequada e tinha sido decidida por Deus. Mas quando Arnold Bentham completou seus últimos arranjos e se aprontou para realizar o ato, não consegui mais me conter e gritei: — Espere! Nós que já agüentamos tanto podemos certamente agüentar mais um pouco. Estamos no meio da manhã. Vamos esperar até o crepúsculo. Aí, se nada acontecer para alterar nosso terrível destino, o senhor, Arnold Bentham, fará conforme combinamos. Ele olhou para o Capitão Nicholl buscando confirmação da minha sugestão e o Capitão Nicholl concordou com um aceno. Ele não conseguia pronunciar uma palavra, mas em seus olhos azuis, úmidos e frios, havia tanta gratidão que não pude deixar de entender. Eu não considerava, não podia considerar um crime — tendo sido determinado por sorteio justo — que o Capitão Nicholl e eu tirássemos proveito da morte de Arnold Bentham. Eu não acreditava que o amor à vida que nos impelia tivesse sido implantado em nossos peitos por outro que não Deus. Era a vontade de Deus, e nós, Suas pobres criaturas, podíamos apenas

obedecer e cumprir Sua vontade. Mas Deus é bom. Em Sua bondade, Ele nos salvou daquele ato tão terrível, embora tão certo. Mal tinha se passado um quarto de hora quando uma lufada de vento do oeste, com vestígios de geada e umidade, encrespou-se em nossas faces. Mais cinco minutos e tínhamos lançado toda a vela e Arnold Bentham estava nos remos. — Economizem a pouca energia que lhes resta — disse-nos. — Deixem-me consumir a pouca energia que me ficou para poder aumentar suas chances de sobrevivência. E assim ele remou a favor do vento frio enquanto o Capitão Nicholl e eu nos deitávamos no fundo do bote e, em nossa fraqueza, sonhávamos sonhos e tínhamos visões das coisas queridas da vida, longe de nós, do outro lado do mundo. A rajada de vento frio foi ficando cada vez mais forte e violenta. As nuvens correndo no céu prenunciavam um temporal. Pelo meio-dia, Arnold Bentham desmaiou sobre o remo e antes que o bote virasse de direção no mar já encapelado, o Capitão Nicholl e eu nos agarramos ao remo da ginga com nossas quatro mãos enfraquecidas. Concordamos em fazer turnos e, assim como o Capitão Nicholl foi o primeiro a tirar o pedaço de tecido em virtude de seu cargo, ele agora tomou o primeiro turno nos remos. Dali em diante, nós três nos revezamos a cada 15 minutos. Estávamos muito fracos e não conseguíamos fazer turnos mais longos. Pelo meio da tarde o mar tornou-se perigoso. Se nossa situação não fosse tão desesperada, teríamos virado o bote a favor do vento e o deixado flutuar de proa com uma âncora improvisada feita com o mastro e a vela. Mas se perdêssemos o controle naquelas ondas imensas que se elevavam acima de nós, o bote entraria a girar em círculos. Muitas vezes durante aquela tarde, Arnold Bentham suplicou-nos, para o nosso próprio bem, que lançássemos âncora. Ele sabia que continuaríamos a correr apenas na esperança de que o decreto da sorte não tivesse de se cumprir. Ele era um homem nobre. Também era nobre o Capitão Nicholl, cujos olhos frios se transformaram em agulhas de aço. E, em tão nobre companhia, como podia eu ser menos nobre? Agradeci a Deus repetidas vezes, durante aquela longa tarde de perigos, pelo privilégio de ter conhecido dois homens assim. Deus e a retidão habitavam dentro deles e, não importa qual pudesse ser meu pobre destino, eu não podia deixar de me sentir recompensado por tal companhia. Como eles, eu não queria morrer; mas, mesmo assim, não tinha medo da morte. A rápida dúvida inicial que tive sobre

esses dois homens havia muito se dissipara. Dura é a escola, duros os homens; mas eles eram homens nobres, homens de Deus. Fui o primeiro a vê-la. Arnold Bentham, na aceitação de sua própria morte, e o Capitão Nicholl, quase aceitando a morte, rolavam como cadáveres no fundo do bote e eu remava — quando a vi. O bote, espumando e correndo com a pressa do vento em sua cauda, foi levantado numa crista e, bem à minha frente, vi a ilhota rochosa batida pelo mar. Não estava a mais de um quilômetro de distância. Gritei e eles, ajoelhando-se e cambaleando e buscando um apoio, olharam e viram aquilo que eu vi. — Direto para ela, Daniel — o Capitão Nicholl murmurou a ordem. — Deve haver uma enseada. Deve haver uma enseada. É a nossa única chance. E ele repetiu essas palavras quando estávamos sobre aquela terrível costa sem nenhuma enseada. — Direto para ela, Daniel. Não podemos passar direto, pois estamos fracos demais para lutar contra o mar e o vento e voltar. Ele estava certo. Obedeci. Ele tirou o relógio, olhou-o e lhe perguntei as horas. Eram cinco horas. Ele estendeu a mão para Arnold Bentham, que a pegou e apertou fracamente; e ambos olharam para mim, seus olhos estendendo até mim aquele aperto de mão. Era o adeus, eu sabia; pois que chances teriam criaturas tão enfraquecidas como nós para lutar contra aquelas rochas batidas pelas ondas e chegar vivos às rochas mais altas além delas? A seis metros da costa perdi o controle do bote. Num átimo, ele emborcou e eu estava lutando na água salgada. Nunca mais vi meus companheiros. Por sorte fui mantido à tona pelo remo que ainda agarrava e, por sorte, uma onda — no instante exato, no lugar exato — atirou-me sobre o declive suave da única rocha achatada em toda aquela costa terrível. Não me feri. Não me machuquei. E com o cérebro rodando de fraqueza, consegui engatinhar e me afastar para longe do repuxo das ondas. Fiquei de pé, tremendo, sabendo que estava salvo e agradecendo a Deus. O bote foi reduzido a mil fragmentos. E embora não visse seus corpos, eu podia imaginar a crueldade com que o Capitão Nicholl e Arnold Bentham foram destroçados. Vi um remo na arrebentação e, com certo risco, resgatei-o. Então caí de joelhos, sabendo que ia desmaiar. E mesmo assim, antes de desmaiar, com o instinto do marinheiro, arrastei meu corpo até o alto das rochas escarpadas para, finalmente, desmaiar fora do alcance do mar. Eu estava praticamente morto e passei a maior parte daquela noite em estupor, apenas vagamente consciente dos extremos de frio e umidade que sofria. A manhã me trouxe o assombro e o terror. Nenhuma planta, nem uma

folha de grama, crescia naquele mísero rochedo que se projetava do fundo do oceano. Quatrocentos metros de largura e oitocentos metros de comprimento, não era mais que uma pilha de pedras. Nada descobri que atendesse as exigências da natureza exausta. Eu estava consumido pela sede e ali não havia água fresca. Em vão testei, até ficar com a boca ferida, cada cavidade, cada depressão nas pedras. A espuma lançada pelo temporal tinha envolvido de tal modo a ilha que todas as depressões estavam tão cheias de água salgada quanto o próprio mar. Do bote nada restou — nem mesmo uma lasca para mostrar que um bote existiu. Conservei minhas roupas, meu sólido canivete e aquele remo que resgatei da arrebentação. O temporal passou. Aquele dia todo, cambaleando e caindo, engatinhando até que as mãos e os joelhos sangrassem, em vão busquei água. Naquela noite, mais perto da morte do que nunca, abriguei-me do vento atrás de uma rocha. Um aguaceiro pesado fez com que me sentisse miserável. Despi minhas japonas e estendi-as para que se encharcassem na chuva; mas quando espremi o tecido na boca fiquei desapontado, porque o tecido estava totalmente impregnado com o sal do oceano no qual eu afundara. Deitei de costas, com a boca aberta para recolher as gotas de chuva que caíssem diretamente dentro dela. Era tantalizante, mas manteve minha boca úmida e a mim, longe da loucura. No segundo dia eu estava muito doente. Eu, que já não comia havia tanto tempo, comecei a inchar e a ficar de uma gordura monstruosa — minhas pernas, meu braço, todo meu corpo. Com a mais leve pressão meus dedos afundavam dois ou três centímetros na minha carne, e essas depressões demoravam muito a desaparecer. Mesmo assim, trabalhei duro para cumprir a vontade de Deus de que eu vivesse. Cuidadosamente, com as mãos, limpei da água salgada as cavidades nas pedras, até os menores buracos, na esperança de que as próximas pancadas de chuva as enchessem com água que eu pudesse beber. Minha triste sina e a lembrança dos entes queridos em Elkton deixaram-me melancólico e eu perdia a consciência por horas a fio. Isso foi uma bênção, pois afastou-me dos meus sofrimentos; caso contrário, eles teriam me matado. Durante a noite fui despertado pela batida da chuva e engatinhei de buraco em buraco, apanhando a chuva ou lambendo-a das pedras. Era salobra, mas potável. Foi isso que me salvou, pois, pela manhã, despertei para me encontrar transpirando em profusão e totalmente livre do delírio.

E então veio o sol, pela primeira vez durante minha permanência na ilha, e estendi minhas roupas para secar. Tomei minha dose de água com cautela e calculei que havia um suprimento para dez dias, se eu o controlasse cuidadosamente. Era surpreendente como eu me sentia rico com essa fortuna de água salobra. E nenhum grande mercador, com seus navios a voltar de prósperas viagens, seus depósitos cheios até o teto e seus cofres transbordando, jamais teria se sentido tão rico como eu quando descobri, lançado sobre as pedras, o corpo de uma foca morta havia muitos dias. Mas não deixei, primeiro, de cair de joelhos e agradecer a Deus por essa manifestação de Sua sempre infalível bondade. Estava claro para mim que Deus não queria que eu morresse. Desde o início, Ele não queria que eu morresse. Eu conhecia o estado debilitado do meu estômago e comi com moderação, sabendo que minha voracidade natural teria certamente me matado se eu me rendesse a ela. Nunca bocados mais doces passaram pelos meus lábios, e tomo a liberdade de confessar que derramei lágrimas de alegria ao contemplar aquela carcaça putrefata. A esperança voltou a bater forte dentro do meu coração. Cuidadosamente, guardei o restante da carcaça. Cuidadosamente, cobri minhas cisternas com pedras achatadas para que os raios do sol não evaporassem o precioso líquido e também como precaução contra alguma ventania durante a noite e uma súbita golfada de espuma. Colhi fragmentos de algas e sequei-os ao sol, para forrar as rochas ásperas sobre as quais dormia e dar um pouco de alívio ao meu pobre corpo. E minhas roupas secaram — a primeira vez, em dias, que dormi o sono pesado da exaustão e da volta da saúde. Quando despertei para um novo dia, eu era outro homem. A ausência de sol não me deprimiu e depressa percebi que Deus, não esquecendo de mim enquanto eu dormia, tinha preparado outras e maravilhosas bênçãos para mim. Esfreguei os olhos e olhei de novo — e, tão longe quanto meus olhos alcançavam, as rochas beirando o oceano estavam cobertas de focas. Havia milhares delas nas rochas e outros milhares brincavam na água, e o som que saía de suas gargantas era prodigioso e ensurdecedor. E eu sabia que aquela carne estava ali para ser apanhada, carne suficiente para a tripulação de uma vintena de navios. De imediato agarrei meu remo — não havia, além dele, nenhum outro pedaço de madeira na ilha — e avancei com cautela sobre toda aquela imensidão de comida. Logo percebi que aquelas criaturas do mar não

conheciam o homem. Não mostraram nenhum sinal de medo à minha aproximação, e descobri que era um brinquedo de criança bater em suas cabeças com o remo. E depois de ter matado a terceira e a quarta, fui tomado por uma loucura que me era estranha. Na verdade, foi privado do meu juízo que massacrei e massacrei e continuei a massacrar. Durante duas horas afadigueime sem cessar com o remo até estar a ponto de desfalecer. Não sei de que excessos de massacre eu poderia ter sido culpado, mas, ao cabo daquelas duas horas, como que por sinal, todas as focas ainda vivas atiraram-se à água e rapidamente desapareceram. Vi que o número de focas abatidas excedia duzentas e fiquei chocado e assustado por causa da loucura assassina que me possuiu. Eu pequei pela devassidão do desperdício e, depois de estar bem alimentado com aquela boa carne saudável, pus-me na medida do possível a reparar meu pecado. Mas primeiro, antes de começar a trabalhar, rendi graças àquele Ser por cuja bondade fui tão milagrosamente preservado. Depois trabalhei até à noite e, noite adentro, tirando a pele das focas, cortando a carne em fatias e colocando-as no topo das rochas para secarem ao sol. Também encontrei pequenos depósitos de sal nas frestas e cavidades das pedras no lado ventoso da ilha. O sal, esfreguei-o na carne como preservante. Quatro dias trabalhei e no fim enchi-me de orgulho diante de Deus por nenhum pedaço de todo aquele suprimento de carne ter sido desperdiçado. O trabalho árduo foi bom para o meu corpo, que se recuperou rapidamente com essa dieta saudável que eu não precisava racionar. Outra evidência da mercê de Deus: nunca, nos oito anos que passei naquela ilha estéril, houve um período tão longo de tempo limpo e sol firme como no período imediatamente seguinte ao massacre das focas. Meses se passariam até que as focas voltassem a visitar minha ilha. Mas, enquanto isso, o que eu não estava era ocioso. Construí uma cabana de pedras e, ao lado, um depósito para meu estoque de carne curada. Fiz um teto com peles de foca para minha cabana, de modo que ela ficou razoavelmente à prova d'água. E eu nunca deixava de me maravilhar, quando a chuva batia naquele teto, que nada menos que o resgate de um rei no mercado peleteiro de Londres protegia dos elementos um marinheiro naufragado. Logo me conscientizei da importância de manter algum tipo de acompanhamento do tempo, sem o qual eu sentia que logo perderia qualquer controle dos dias da semana e seria in-capaz de distinguir um dia do outro e não saberia qual era o Dia do Senhor.

Relembrei cuidadosamente o registro cronológico mantido no bote salva-vidas pelo Capitão Nicholl; e cuidadosamente, dia a dia, para ter certeza além de qualquer sombra de dúvida, repassei os dias e noites que vivi na ilha. Então, através de sete pedras diante da minha cabana, mantive meu calendário semanal. Numa ponta do remo eu entalhava uma pequena chanfradura para cada semana; na outra, eu marcava os meses. E ainda tinha a cautela de contar, além das quatro semanas, os dias adicionais de cada mês. E foi assim que fiquei capacitado a render o devido tributo ao domingo. Como única forma de culto que eu poderia adotar, entalhei no remo um hino curto, apropriado à minha situação, e nunca deixei de cantá-lo aos domingos. Deus, em sua infinita bondade, não esqueceu de mim; nem eu, naqueles oito anos, deixei de lembrar de Deus em todos os momentos apropriados. Era espantoso o trabalho exigido sob tais circunstâncias para suprir as simples necessidades de alimento e abrigo de uma pessoa. Na verdade, raramente estive ocioso naquele primeiro ano. A cabana, uma mera toca de pedras, mesmo assim levou seis semanas do meu tempo. A vagarosa cura e a infindável raspagem das peles de foca, para torná-las macias e adequadas para vestimentas, ocuparam meus momentos livres por meses a fio. E havia a questão do meu suprimento de água. Depois de qualquer temporal, meus estoques de água da chuva se perdiam com os jorros de espuma salgada e, muitas vezes, fui obrigado a sobreviver sem água até que novas chuvas chegassem sem ser acompanhadas por ventos fortes. Sabendo que o gotejar contínuo acaba por furar uma pedra, selecionei uma pedra grande, de textura delicada e firme, e, usando pedras menores, comecei a escavá-la. Em cinco semanas do mais árduo trabalho, consegui escavar um recipiente que eu estimava poder conter de cinco a seis litros. Mais tarde, pelo mesmo método, escavei um recipiente de 15 litros. Levou-me nove semanas. Eu fazia recipientes de todos os tamanhos. Um deles, que teria contido 30 litros, apresentou uma rachadura depois que trabalhei sete semanas nele. Mas não foi senão no meu quarto ano na ilha, quando eu já tinha me reconciliado com a possibilidade de que poderia continuar a viver ali até o fim da minha vida natural, que criei minha obra-prima. Levou-me oito meses, mas era sólida e com capacidade para mais de cem litros. Esses recipientes de pedra eram, para mim, uma imensa gratificação — tanto que às vezes eu esquecia minha humildade e me enchia de orgulho. Na verdade, eles eram mais elegantes para mim do que a mais custosa peça de mobiliário para qualquer rainha. Também fiz um pequeno copo de pedra, com capacidade não

superior a um litro, para transportar a água dos diversos locais de coleta até meus recipientes maiores. Se eu lhe disser que esse copo de um litro pesava bem uns 12 quilos, você perceberá que a simples coleta da água da chuva não era nenhuma tarefa leve. Portanto, tomei minha situação solitária tão confortável quanto possível. Completei para mim um abrigo confortável e seguro. Quanto às provisões, mantive sempre um suprimento de seis meses, preservado por salgadura e secagem. Por essas coisas — tão essenciais para a manutenção da vida e que mal se esperaria obter numa ilha deserta — eu sentia que jamais poderia ser suficientemente grato. Embora negado do privilégio de desfrutar da companhia de qualquer criatura humana, nem sequer de um cão ou um gato, eu estava muito mais reconciliado com minha sina do que milhares de homens provavelmente estariam. Sobre o lugar desolado onde meu destino me lançou, eu me julgava mais feliz do que muitos homens que, por seus crimes hediondos, são condenados a arrastar suas vidas em confinamento solitário, com a consciência sempre a mordê-los como um câncer corrosivo. Por mais terríveis que fossem minhas perspectivas, não perdi a esperança de que a Providência — que, no momento em que a fome me ameaçava no bote salva-vidas e eu poderia ter sido engolido pelas entranhas do mar, lançou-me sobre estas rochas nuas—iria finalmente enviar alguém em meu socorro. Mesmo privado da companhia de criaturas irmãs e dos confortos da vida, eu não podia deixar de refletir que minha situação de abandono apresentaria, ainda assim, algumas vantagens. De toda a ilha, embora pequena, eu tinha a posse pacífica. Não era provável que alguém um dia surgisse para disputar meus direitos sobre ela, a menos que fossem os animais anfíbios do oceano. Já que a ilha era quase inacessível, à noite meu repouso não era perturbado pelo medo da aproximação de canibais ou de feras selvagens. Eu agradecia sempre a Deus, de joelhos, por essas muitas bênçãos. Mas o homem é uma criatura estranha e inexplicável. Eu — que não tinha pedido à bondade de Deus mais do que carne podre para comer e água salobra para beber — tão logo fui abençoado com uma abundância de carne curada e água doce, comecei a me sentir descontente com minha sina. Comecei a querer o fogo e o sabor da carne cozida em minha boca. E continuamente me descobria ansiando por certas delicadezas do paladar, como aquelas que compunham o cotidiano da mesa familiar em Elkton. Por mais que eu lutasse, minha fantasia sempre iludia minha vontade e ousava

sonhar com as coisas boas que eu já comera e com as coisas boas que eu voltaria a comer se fosse resgatado do meu isolamento. Era o Adão imemorial em mim, suponho — a mácula daquele primeiro pai que foi o primeiro a se rebelar contra os mandamentos de Deus. Muito estranho é o homem, sempre insaciável, sempre insatisfeito, nunca em paz com Deus ou consigo mesmo, seus dias cheios de inquietude e esforços inúteis, suas noites uma fartura de sonhos vãos cheios de ambição e pecado. Sim, e eu também me preocupava com meu anseio pelo fumo. Minhas horas de sono eram um tormento para mim, pois meus desejos se manifestavam — mil vezes sonhei que possuía barris de fumo; ai de mim, depósitos cheios de fumo, navios carregados de fumo e enormes plantações de tabaco. Mas eu me vingava de mim. Eu rezava a Deus sem cessar pedindo um coração humilde; eu castigava minha carne com trabalho árduo. Incapaz de melhorar minha mente, determinei-me a melhorar minha ilha nua. Trabalhei quatro meses para construir um muro de pedras com nove metros de comprimento, incluindo as asas laterais, e quatro metros de altura. Esse muro protegia a cabana durante os fortes temporais, quando minha ilha parecia um pequeno albatroz nas mandíbulas do furacão. E não foi tempo mal empregado. Dali em diante, fiquei abrigado no coração da calma enquanto tudo ao meu redor e acima de mim era uma única torrente turbilhonante de água. No terceiro ano comecei a construir um pilar de rocha. Ou melhor, uma pirâmide, quadrada, larga na base e subindo numa inclinação até o topo. Fui forçado a construí-la desse modo, pois na ilha não havia nenhum instrumento nem madeira para a construção de andaimes. A pirâmide só ficou pronta no fim do quinto ano. Construí-a no topo da ilha. Agora, se eu lhe disser que o topo da ilha ficava apenas 12 metros acima do mar e que o topo da minha pirâmide ficava 12 metros acima do topo da ilha, você compreenderá que eu, sem ferramentas, dupliquei a altura da ilha. Algumas pessoas, mais precipitadas, poderão pensar que interferi com o plano de Deus na criação do mundo. Mas não, sustento. Pois não era eu também uma parte do plano de Deus, juntamente com essa projeção rochosa na solidão do oceano? Os braços que usei para trabalhar, as costas que usei para me inclinar e levantar as pedras, as mãos aptas a segurar e prender as coisas — não eram essas partes de mim também uma parte do plano de Deus? Pensei muito sobre o assunto. E sei que eu estava certo. No sexto ano aumentei a base da minha pirâmide, e foi assim que nos 18 meses seguintes a altura do meu monumento chegou a 15 metros acima da

altura da ilha. Não era uma Torre de Babel. Ela servia a dois justos propósitos. Dava-me um mirante de onde escrutar o horizonte em busca de um navio; e aumentava as probabilidades de que minha ilha fosse avistada pelo olhar descuidado de algum homem do mar. E mantinha meu corpo e minha mente saudáveis. Com mãos jamais ociosas, havia poucas oportunidades para Satã naquela ilha. Apenas em meus sonhos ele me atormentava, principalmente com visões de comidas variadas e entregando-me, na minha imaginação, à pérfida erva daninha chamada tabaco. No oitavo dia do mês de junho, no sexto ano da minha permanência na ilha, vi uma vela. Mas ela passou longe a estibordo, distante demais para me descobrir. Ao invés de ficar desapontado, a própria aparição daquela vela causou-me a mais viva satisfação. Convenceu-me de um fato de que eu, até certo ponto, duvidava: esses mares eram ocasionalmente visitados por navegadores. Entre outras coisas, no local onde as focas saíram do mar, construí com pedras uma vasta estrutura de muros baixos que se estreitavam num cul-de-sac onde eu poderia matá-las sem excitar suas companheiras lá fora e sem permitir que qualquer foca ferida ou assustada escapasse e espalhasse o alarme. Sete meses foram devotados apenas a essa estrutura. Conforme o tempo passava, eu aceitava mais e mais minha sina e o demônio vinha menos e menos, no meu sono, atormentar o velho Adão em mim com visões incontroláveis de tabaco e comidas saborosas. E continuei a comer minha carne de foca e dar-lhe o devido valor, a beber a doce água da chuva de que sempre tinha o bastante e a ser grato a Deus. E Deus me ouvia, eu sei, porque durante toda a sentença que cumpri naquela ilha jamais conheci um momento de doença — exceto dois, ambos causados pela minha gula, como relatarei mais tarde. No quinto ano, antes que eu me convencesse de que quilhas de navios sulcavam ocasionalmente esses mares, comecei a entalhar no meu remo um relato dos incidentes mais notáveis que me ocorreram desde que deixei as tranqüilas praias da América. Sendo as letras tão pequenas, tomei esses relatos tão inteligíveis e duráveis quanto possível. Seis letras, ou mesmo cinco, constituíam um dia de trabalho para mim, tão minucioso eu era. E, a menos que meu destino cruel fosse o de jamais ter a oportunidade, havia muito almejada, de voltar aos meus amigos e à minha família em Elkton, entalhei, ou melhor, escavaquei na ponta larga do remo o relato da minha triste sina — que já reproduzi no início desta narrativa.

Eu fazia de tudo para preservar esse remo, que se mostrou tão útil para mim em minha situação de desamparo e que agora continha um registro do meu destino e do destino dos meus companheiros. Não mais o arriscava batendo com ele na cabeça das focas. Ao invés disso, equipei-me com um porrete de pedra, com cerca de um metro de comprimento e um diâmetro adequado, que levou todo um mês para ser feito. E para proteger o remo da ação do tempo (pois, quando havia uma brisa suave, eu o usava como mastro no alto da minha pirâmide, nele fazendo revoar uma bandeira que fiz com uma das minhas preciosas camisas), elaborei para ele uma capa de peles de foca bem curadas. No mês de março do sexto ano do meu confinamento, enfrentei uma das mais tremendas tempestades talvez jamais testemunhadas pelo homem. Ela começou por volta das nove horas da noite, com a aproximação de nuvens negras e um vento gélido do sudoeste que se transformou, lá pelas onze horas, num furacão acompanhado pelo estrépito incessante do trovão e o mais forte relampejar que vi em toda minha vida. Fiquei apreensivo quanto à segurança da ilha. Por toda parte arrebentavam os vagalhões, exceto no topo da minha pirâmide. Lá, a vida quase foi arrancada do meu corpo pela força do vento e das ondas. Não pude deixar de perceber que minha existência foi salva apenas por causa da minha diligência em erigir a pirâmide e assim duplicar a altura da ilha. Apesar de tudo, na manhã seguinte ainda tive motivos para render graças. Todo o meu estoque de água da chuva perdeu-se, exceto o do recipiente maior, que estava ao abrigo do vento num lado da pirâmide. Fazendo cuidadosa economia, eu sabia que tinha água suficiente até as próximas chuvas, mesmo que elas demorassem. Minha cabana foi lavada pelas ondas; do meu grande estoque de carne de foca restava apenas uma pequena porção reduzida a polpa. No entanto, fiquei agradavelmente surpreendido ao encontrar as rochas cobertas de peixes — um peixe mais parecido com a carpa do que qualquer outro que eu tivesse observado. Apanhei não menos que mil duzentos e dezenove peixes, que fatiei e curei ao sol, como se faz com o bacalhau. Essa bem-vinda mudança de dieta não deixou de ter suas conseqüências. Pequei por gula e durante toda a noite seguinte estive às portas da morte. No sétimo ano da minha permanência na ilha, também no mês de março, ocorreu uma tempestade semelhante, de grande violência. Depois dela, para meu assombro encontrei uma enorme baleia morta, bem fresca, que foi lançada sobre as rochas pelas ondas. Imagine minha felicidade ao encontrar,

profundamente encravado nas vísceras da baleia, um arpão de tipo comum preso a algumas braças de linha ainda nova. Com isso renasceu minha esperança de que eu finalmente encontraria uma oportunidade de abandonar a ilha desolada. Não havia dúvida de que esses mares eram freqüentados por baleeiros e, desde que eu mantivesse a força do coração, mais cedo ou mais tarde seria salvo. Durante sete anos comi apenas carne de foca e por isso, à vista daquela enorme abundância de uma carne diferente e suculenta, fui vítima da minha fraqueza e comi tais quantidades que, uma vez mais, estive quase a morrer. E afinal de contas, esse caso e o dos peixes foram apenas indisposições causadas pela estranheza dessas carnes no meu estômago, que tinha aprendido a se sustentar com carne de foca e nada mais que carne de foca. Daquela baleia, preservei um suprimento de provisões para um ano. E também, sob os raios do sol, nas cavidades das rochas, extraí uma boa quantidade de óleo no qual embeber minhas fatias de carne de foca ao jantar. Dos preciosos andrajos das minhas camisas consegui fazer um pavio para, com o arpão como aço e uma pedra como pederneira, poder ter luz à noite. Mas isso era uma futilidade e logo abandonei tais idéias. Eu não precisava de luz quando a escuridão de Deus descia, pois tinha me educado para dormir desde o pôr-do-sol até o nascer do sol, inverno e verão. Eu, Darrell Standing, não posso deixar de interromper essa narrativa de uma existência anterior para anotar uma conclusão a que cheguei por mim mesmo. Já que a personalidade humana é um produto em crescimento, já que ela é o somatório de todas as existências anteriores, que possibilidades tinha o Diretor Atherton de quebrar meu espírito na inquisição da solitária? Eu sou vida que sobreviveu, eu sou uma estrutura construída através de eras do passado — e que passado! O que eram dez dias e dez noites na camisa-deforça para mim? — para mim, que fui uma vez Daniel Foss e que durante oito anos aprendi a paciência naquela escola rochosa nos confins dos mares? Ao final do meu oitavo ano na ilha, no mês de setembro, quando eu acabava de esboçar o plano ambicioso de elevar minha pirâmide a dezoito metros acima do topo da ilha, despertei uma manhã para ver um navio com todas as velas abertas e quase ao alcance dos meus gritos. Para que se apercebessem da minha presença, agitei meu remo no ar, pulei de pedra em pedra e pequei por todas as formas de atividade desenfreada até que consegui ver os oficiais no convés, olhando para mim com seus óculos de alcance. Eles responderam apontando para a extremidade ocidental da ilha, para onde me apressei e descobri o bote tripulado por meia dúzia de homens. Parece, como

vim a saber mais tarde, que o navio foi atraído pela minha pirâmide e alterou seu curso para examinar mais de perto aquela estrutura tão estranha que era mais alta que a ilha selvagem na qual se levantava. Mas a ressaca era forte demais para permitir que o bote ancorasse na minha praia inóspita. Depois de diversas tentativas frustradas, eles me fizeram sinais de que precisavam voltar ao navio. Imagine meu desespero ao me ver incapacitado de abandonar a ilha desolada. Agarrei meu remo (que eu decidira, havia muito, presentear ao Museu de Filadélfia se fosse salvo) e com ele mergulhei de cabeça nas ondas espumantes. Tal foi minha sorte, e minha força e agilidade, que alcancei o bote. Não posso deixar de contar aqui um curioso incidente. O navio, por essa altura, tinha sido arrastado para tão longe que levamos uma hora para chegar a bordo. Durante esse tempo cedi às minhas propensões que me foram negadas por oito longos anos e supliquei ao segundo-contramestre, que comandava o bote, um pedaço de fumo para mascar. O segundo-contramestre deu-me o fumo e também me estendeu seu cachimbo, cheio de excelente fumo da Virgínia. Mal se passaram dez minutos quando fiquei violentamente enjoado. A razão para isso era clara. Meu organismo estava inteiramente purgado do tabaco e o que eu agora sofria era o envenenamento do fumo, como o que aflige qualquer menino por ocasião de seu primeiro cigarro. Mais uma vez tive razões para agradecer a Deus e, desse dia até o dia da minha morte, não usei nem desejei aquela pérfida erva daninha. Eu, Darrell Standing, preciso agora completar os detalhes espantosos dessa existência que revivi enquanto inconsciente na camisa-de-força na prisão de San Quentin. Muitas vezes me perguntei se Daniel Foss tinha sido fiel à sua resolução e entregado o remo ao Museu de Filadélfia. É difícil para um prisioneiro na solitária comunicar-se com o mundo exterior. Uma vez a um guarda, outra a um hóspede temporário da solitária, eu confiei, por memorização, uma carta endereçada ao curador do Museu indagando sobre esse assunto. Embora sob as mais solenes promessas, ambos esses homens me falharam. Não foi senão depois que Ed Morrell — por uma estranha volta do destino — foi libertado da solitária e nomeado encarregadochefe de toda a prisão, que fui capaz de ter a carta enviada. Reproduzo agora a resposta, enviada a mim pelo curador do Museu de Filadélfia e contrabandeada até mim por Ed Morrell: É verdade que existe aqui um remo como V.Sa. descreveu. Mas poucas pessoas sabem de sua existência pois ele não está em exibição ao público. Na

verdade, e ocupo este cargo já há dezoito anos, eu próprio não sabia de sua existência. Mas, consultando nossos antigos registros, descobri que tal remo foi-nos doado por um certo Daniel Foss, de Elkton, Maryland, no ano de 1821. Não foi senão depois de longa busca que encontramos o remo, numa sala de madeirames diversos num sótão em desuso. As chanfraduras e o relato estão entalhados no remo, exatamente do modo descrito por V.Sa. Está também em nossos arquivos um livreto, doado na mesma época, escrito pelo dito Daniel Foss e impresso em Boston pela firma N. Coverly, Jr. Esse livreto descreve oito anos da vida de um náufrago numa ilha deserta. É evidente que esse marinheiro, em sua velhice e passando necessidades, fez circular o dito livreto entre as almas caridosas. Tenho muita curiosidade em saber como V.Sa. tomou conhecimento desse remo, cuja existência nós, do Museu, ignorávamos. Estarei correto em assumir que V.Sa. teria lido esse relato em algum documento posteriormente publicado por esse Daniel Foss? Terei a maior satisfação em receber quaisquer informações sobre o assunto e comunico a V.Sa. que estou tomando providências imediatas para recolocar o remo e o livreto em exibição. Sem mais, firmo-me mui atenciosamente, Hosea Salsburty 3.

                                                             3

Logo após a execução do Professor Darrel Standing, época em que o manuscrito de suas memórias nos chegou as mãos escrevemos ao Sr. Hosea Salsburty, Curador do Museu da Filadélfia, e, em resposta, obtivemos confirmação da existência do remo e do livreto — OS EDITORES.  

CAPITULO 20 Chegou o momento em que humilhei o Diretor Atherton forçando-o à rendição incondicional e esvaziando seu ultimato de “dinamite ou ponto final”. Ele desistiu de mim, como um homem que não poderia ser morto numa camisa-de-força. Ele havia feito homens morrerem depois de algumas horas na camisa-de-força. Ele havia feito homens morrerem depois de alguns dias na camisa-de-força; embora, invariavelmente, fossem desamarrados e levados ao hospital antes de exalarem seu último suspiro... e recebessem, do médico, um atestado de óbito de pneumonia, doença de Bright ou ataque cardíaco. Mas a mim o Diretor Atherton não conseguia matar. Minha carcaça maltratada e deteriorada nunca precisou ser levada às pressas para o hospital. Ainda assim, afirmo que o Diretor Atherton fez o possível e ousou fazer o pior possível. Houve uma vez em que ele me prendeu com duas camisas-deforça. Esse incidente foi tão marcante que preciso contá-lo. Aconteceu de um dos jornais de San Francisco (buscando, como buscam todos os jornais e empresas comerciais, um mercado que lhes permita realizar lucros) tentar interessar a camada radical da classe trabalhadora na reforma das prisões. Como resultado, tendo os sindicatos uma importante significação política na época, os políticos no poder em Sacramento indicaram um comitê parlamentar para a investigação das prisões estaduais. Esse comitê parlamentar estadual investigou (desculpe-me pela zombaria em itálico) San Quentin. Ah, nunca se viu uma instituição penitenciária tão modelar! Os próprios prisioneiros assim depuseram. Ninguém pode censurálos. Eles já tinham passado por investigações semelhantes no passado. Eles sabiam de que lado do pão se passava a manteiga. E sabiam que suas costas e costelas iriam doer logo depois que prestassem depoimento... se tais depoimentos fossem contrários à administração da prisão. Ah, acredite em mim, meu leitor, é uma história muito antiga. Já era antiga na velha Babilônia, há muitos milhares de anos, como bem recordo aqueles dias remotos em que apodreci na prisão enquanto intrigas palacianas abalavam a corte. Como eu disse, todos os prisioneiros confirmaram a humanidade da administração do Diretor Atherton. De fato, tão tocantes foram os seus testemunhos quanto à gentileza do Diretor, à boa qualidade e esmerado preparo da comida, à gentileza dos guardas, à decência, ao bem-estar e conforto da prisão, que os jornais de oposição de San Francisco lançaram um

clamor indignado pedindo mais rigor na administração das nossas prisões... caso contrário, cidadãos honestos mas preguiçosos seriam seduzidos a engrossar as fileiras dos hóspedes do Estado. Os membros do Comitê chegaram a invadir as solitárias, onde nós três pouco tínhamos a perder e nada a ganhar. Jake Oppenheimer cuspiu na cara deles e disse-lhes, com todas as letras, para irem para o inferno. Ed Morrell disse-lhes que tipo de prostíbulo revoltante era San Quentin, insultou o Diretor em pessoa e recebeu a recomendação do Comitê para que sentisse o gosto das punições antiquadas e obsoletas que, afinal de contas, devem ter sido inventadas pelos diretores anteriores pela necessidade de tratar de modo adequado personalidades difíceis como ele. Eu tive o cuidado de não insultar o Diretor. Prestei meu depoimento com habilidade e, sendo um cientista, comecei com pequenos detalhes e construí artisticamente minha exposição, passo a passo, em pequenos passos, envolvendo meus ouvintes parlamentares na vontade e curiosidade de ouvir o próximo passo; tecendo a trama de tal modo que não lhes dava espaço para me interromperem ou intercalarem uma pergunta... foi assim que contei minha história. Ah! Mas nem uma vírgula daquilo tudo que contei jamais saiu dos muros da prisão. O Comitê Parlamentar pôs uma bela pá de cal sobre os desmandos do Diretor Atherton e de San Quentin. O combativo jornal de San Francisco assegurou aos seus leitores da classe trabalhadora que San Quentin era mais pura que cristais de neve e que, embora a camisa-de-força ainda fosse um método legal de punição para os refratários, estava claro que, no momento presente, sob aquele Diretor humanitário e espiritualmente bem orientado, a camisa-de-força não era usada sob nenhuma circunstância. E enquanto os ingênuos trabalhadores liam e acreditavam, enquanto o Comitê Parlamentar jantava e bebia com o Diretor às custas do Estado e dos contribuintes, Ed Morrell, Jake Oppenheimer e eu estávamos amarrados na camisa-de-força, com os nós um pouco mais apertados do que antes, numa vingança maior do que antes. — Só mesmo rindo — Ed Morrell bateu com a sola do pé. — E, é de morrer de rir — bateu Jake. Eu também transmiti por batidas meu amargo desprezo e minha zombaria e, lembrando as prisões da antiga Babilônia, sorri para mim mesmo um imenso sorriso cósmico e mergulhei na imensidão da pequena morte que fazia de mim o herdeiro de todas as eras e o cavaleiro de reluzente armadura a cavalgar o tempo.

Sim, meu querido irmão do mundo exterior, enquanto a pá de cal seguia para a imprensa, enquanto os augustos senadores comiam e bebiam, nós três, os mortos-vivos, enterrados vivos nas solitárias, destilávamos nossa dor na tortura da camisa-de-força. E após o jantar, aquecido pelo vinho, o Diretor Atherton veio em pessoa ver como estavam as coisas. Eu, como sempre, eles encontraram em coma. O Doutor Jackson pela primeira vez ficou alarmado. Fui trazido através das trevas para a consciência pelo ardor da amônia em minhas narinas. Sorri para os rostos inclinados sobre mim. — Uma vergonha — zombou o Diretor e percebi, pelo rubor de suas faces e pela língua engrolada, que ele estivera a beber. Passei a língua pelos lábios pedindo água, porque eu queria falar. — O senhor é um idiota — consegui finalmente pronunciar com fria clareza. — O senhor é um idiota, um covarde, um cachorro, uma coisa tão mesquinha e desprezível que cuspir na tua cara é desperdiçar o cuspe. O Jake Oppenheimer até que foi generoso, te cuspindo na cara. Mas eu te digo sem nenhuma vergonha que só não cuspo na tua cara porque não quero me rebaixar nem degradar o meu cuspe. — Já cheguei no limite da minha paciência! — berrou ele. — Eu vou te matar, Standing! — O senhor está bêbado — respondi. — E olha, se o senhor quer dizer coisas desse tipo, não diga na frente de tantos desses teus cães de cadeia. Eles ainda vão te trair um dia desses e o senhor vai perder o emprego. Mas o álcool o dominava, era seu mestre. — Ponham outra camisa-de-força nele — ordenou. — Você é um homem morto, Standing. Mas você não vai morrer na camisa-de-força, não. Teu enterro vai sair do hospital. Dessa vez, sobre a camisa-de-força anterior, a segunda camisa-de-força foi posta sobre mim pelas costas e amarrada na frente. — Meu bom Deus! Como o tempo está frio, senhor Diretor! — zombei. — Como a geada está cortante! Por isso eu fico profundamente grato ao senhor por me dar essas duas camisas-de-força. Acho que vou me sentir bem mais confortável. — Mais apertado! — ordenou o Diretor a Al Hutchins, que estava puxando as cordas. — Enfia os pés no calhorda! Quebra as costelas dele! Devo admitir que Hutchins fez o melhor que podia.

— Você vai dizer mentiras sobre mim — rugiu o Diretor, com o álcool e a ira avermelhando seu rosto. — Agora veja o que você ganha por isso. Teu número foi sorteado, Standing. Você está acabado, ouviu? Você está acabado. — Um favor. Diretor — murmurei com voz fraca. Eu estava desmaiando. Forçosamente, por causa da terrível constrição, eu já estava quase inconsciente. — Faça uma camisa-de-força tripla — consegui continuar, enquanto as paredes da cela rodavam e giravam à minha volta e eu lutava com toda a minha vontade para manter a consciência que estava sendo arrancada de mim pelas duas camisas-de-força. — Mais uma camisa-de-força... a terceira... Diretor... Ficará... bem... mais... quentinho... E meu murmúrio se desvaneceu enquanto eu afundava na pequena morte. Nunca mais fui o mesmo homem depois daquela camisa-de-força dupla. Nunca mais, até o dia de hoje, não importa qual pudesse ser minha comida, consegui me alimentar direito. Sofri tantas injúrias internas que nem me preocupei em examiná-las. Essa velha dor nas costelas e no estômago está comigo agora, enquanto escrevo estas linhas. Mas a pobre e maltratada máquina serviu a seu propósito. Ela me permitiu viver até agora e me permitirá viver um pouco mais, até o dia em que me levem muna camisa sem colarinho e apertem meu pescoço com aquela corda bem esticada. Mas a camisa-de-força dupla foi a gota d'água. Ela quebrou o Diretor Atherton. Ele rendeu-se à demonstração de que eu não morria. Como eu lhe disse, uma vez: — O único jeito que o senhor pode me pegar. Diretor, é se esgueirando aqui uma noite dessas com uma machadinha. Jake Oppenheimer inventou uma tirada excelente, que preciso relatar: — Eu acho. Diretor, que deve ser o diabo o senhor ter de acordar todo santo dia com o senhor no travesseiro. E Ed Morrell para o Diretor: — Tua mãe devia ser louca por criança para ter te criado. Foi realmente uma ofensa para mim quando as sessões na camisa-deforça terminaram. Eu sentia uma falta imensa daquele meu mundo de sonhos. Mas não por muito tempo. Descobri que podia suspender a animação através da minha vontade, ajudada mecanicamente pela constrição do peito e abdômen com o cobertor. Assim, induzi estados fisiológicos e psicológicos similares àqueles causados pela camisa-de-força. Dessa maneira, à minha

vontade e sem o velho tormento, eu estava livre para peregrinar através do tempo. Ed Morrell acreditava em todas as minhas aventuras, mas Jake Oppenheimer continuou cético até o fim. Foi durante meu terceiro ano na solitária que fiz uma visita a Oppenheimer. Só fui capaz de fazer isso aquela única vez, e aquela única vez foi totalmente casual e inesperada. Foi logo depois que cheguei à inconsciência que me encontrei na cela de Oppenheimer. Meu corpo, eu sabia, estava na camisa-de-força lá na minha própria cela. Embora nunca o tivesse visto antes, eu sabia que aquele homem era Jake Oppenheimer. Era verão e ele estava despido sobre o cobertor. Fiquei chocado com seu rosto cadavérico e seu corpo esquelético. Ele não era sequer a armação de um homem. Era apenas a estrutura de um homem, os ossos de um homem, ainda ligados, roubados de praticamente toda carne e cobertos por uma pele pergaminosa. Não foi senão quando voltei à minha cela e à consciência que consegui refletir sobre o assunto e perceber que assim como estava Jake Oppenheimer, assim também estava Ed Morrell e assim estava eu mesmo. E estremeci ao vislumbrar a vastidão do espírito que habitava as frágeis e deterioradas carcaças dos três incorrigíveis da solitária. A carne é ordinária, é ilusória. O capim é carne e a carne toma-se capim; mas o espírito permanece, o espírito sobrevive. Não tenho paciência com os adoradores da carne. Uma amostra da solitária de San Quentin iria rapidamente convertê-los à devida apreciação e adoração do espírito. Mas voltemos à minha experiência na cela de Oppenheimer. Seu corpo era o corpo de um homem morto havia muito tempo e calcinado pelo calor do deserto. A pele que o recobria tinha a cor do barro seco. Seus penetrantes olhos amarelo-cinzentos pareciam a única parte dele que estava viva. Eles nunca descansavam. Oppenheimer estava deitado de costas e seus olhos moviam-se de um lado para o outro, acompanhando o vôo das moscas que brincavam na obscuridade da cela. Também notei uma cicatriz logo acima do cotovelo direito e outra no tornozelo direito. Depois ele bocejou, rolou de lado e inspecionou uma ferida, que parecia dolorida, logo acima do quadril. Pôs-se a limpá-la e tratá-la com os métodos toscos que os homens na solitária precisam empregar. Reconheci a ferida como sendo do tipo causado pela camisa-de-força. Sobre meu próprio corpo, neste momento em que escrevo, há centenas de cicatrizes da camisade-força.

Depois Oppenheimer rolou de costas, pegou cautelosamente com o polegar e o indicador um dos dentes superiores — um canino — e, com cuidado, moveu-o para a frente e para trás. Bocejou de novo, esticou os braços, rolou de bruços e bateu a chamada para Ed Morrell. Eu entendi a mensagem, com naturalidade. — Imaginei que você estava acordado — bateu Oppenheimer. — Como é que vão as coisas com o Professor? Vagas e distantes, ouvi as batidas de Morrell explicando que tinham me amarrado na camisa-de-força havia uma hora e que, como sempre, eu já estava surdo a qualquer conversa com os nós dos dedos. — Bom sujeito, ele — continuou Oppenheimer. — Sempre suspeitei de bandido com diploma, mas ele não se estragou nem um pouco por causa de ir pra faculdade. É um amigo de confiança. Tem toda a fibra desse mundo e ninguém consegue fazer ele dedurar nem trair um companheiro, nem em um milhão de anos. E Ed Morrell concordou com todos esses elogios e ainda os ampliou. E quero afirmar agora, antes de escrever mais uma palavra que seja, que vivi muitos anos e muitas vidas e que, em todas aquelas muitas vidas, conheci momentos de orgulho; mas o momento de maior orgulho que já conheci foi quando meus dois companheiros de solitária fizeram essa avaliação de mim. Ed Morrell e Jake Oppenheimer eram grandes espíritos e em tempo algum jamais me foi concedida honra maior do que ser admitido em seu companheirismo. Reis me fizeram cavaleiro, imperadores me enobreceram e, um rei eu mesmo, conheci momentos supremos. E nada disso eu considero tão esplêndido como esse elogio que me foi feito pelos dois condenados à prisão perpétua na solitária de San Quentin, considerados pelo mundo como a mais baixa escória das sarjetas humanas. Mais tarde, recuperando-me daquela sessão na camisa-de-força, usei minha visita à cela de Jake como prova de que meu espírito realmente deixara meu corpo. Mas Jake mostrou-se inabalável. — É suposição, é mais do que suposição, é imaginação — foi sua resposta, quando lhe descrevi todos os seus gestos no momento em que meu espírito visitou sua cela. — Foi imaginação. Você já está há uns três anos na solitária, Professor, e pode imaginar muito bem o que um sujeito faz pra matar o tempo. Não tem uma coisa no que você me disse que você mesmo e o Ed não tenham feito milhares de vezes, desde se esticar pelado no verão até ficar olhando as moscas, cuidando das feridas e conversando com batida de dedo.

Morrell tomou meu partido, mas foi inútil. — Agora, não leva tão a sério. Professor — bateu Jake. — Não estou dizendo que você mentiu. Só estou dizendo que na camisa-de-força você começa a sonhar e a imaginar sem saber o que está fazendo. Eu sei que você acredita nisso e pensa que isso aconteceu de verdade. Mas eu não engulo essa, não. Você imagina, mas não sabe que está imaginando. É tudo coisa que você sempre sabia o tempo todo, mas você não sabe que sabia até elas entrarem nesses teus sonhos delirantes. — Espera aí, Jake — bati. — Você sabe que eu nunca te vi com os meus próprios olhos, certo? — Tenho de aceitar tua palavra, Professor. Pode ser que você tenha me visto sem saber que era eu. — O que eu quero dizer — continuei — é que nunca te vi pelado na vida, mas, mesmo assim, eu sei que você tem uma cicatriz acima do cotovelo direito e outra no tornozelo direito. — Ora bolas — foi sua resposta. — Você encontra tudo isso escrito na minha ficha de cadeia e junto com o meu retrato na galeria dos bandidos. Tem mais de mil delegados e detetives que conhecem essa história toda. — Eu nunca ouvi falar disso — assegurei-lhe. — Você não lembra que ouviu — corrigiu Jake. — Mas claro que ouviu. Mesmo que você tenha esquecido, a informação está direitinha aí no teu cérebro, armazenada para referência, só que você esqueceu onde ela está armazenada. Você tem de entrar num delírio pra poder se lembrar. — Já não te aconteceu esquecer o nome de um sujeito — continuou ele — e você conhecia o nome dele tão bem como o nome do teu irmão? Comigo já. Teve um jurado, um sujeitinho de nada, que me condenou lá em Oakland na vez que peguei meus cinqüenta anos. E um dia eu descobri que tinha esquecido o nome dele. Puxa, velho, fiquei semanas aqui batalhando pra me lembrar. Agora, só porque eu não conseguia puxar o nome dele da gaveta da minha memória, não quer dizer que ele não estava lá. Estava fora de lugar, só isso. E pra provar, um dia que eu não estava nem pensando no sujeitinho, ele saltou do meu cérebro e me caiu na ponta da língua. “Stacy”, eu falei em voz alta. “Joseph Stacy”. Era o nome dele. Entendeu o que eu quero dizer? — Você só sabe me falar dessas cicatrizes que mil sujeitos conhecem: Eu não sei como foi que você teve essa informação, acho que nem você mesmo sabe. E isso não é da minha conta. Mas a informação está aí. Me dizer uma coisa que muita gente sabe não me faz engolir a tua história. Você tem que me dizer muito mais pra me fazer engolir o resto das tuas patranhas.

Ah, a Lei da Parcimônia de Hamilton ao pesar as evidências! Esse prisioneiro criado nos cortiços tinha tanto do cientista em sua natureza que desenvolveu a Lei de Hamilton e aplicava-a com o maior rigor científico. Mas - e o incidente é delicioso - Jake Oppenheimer era intelectualmente honesto. Naquela noite, quando eu estava quase pegando no sono, ele me chamou com o sinal costumeiro — Professor, você disse que me viu mexendo no dente que está frouxo. Essa história está me incomodando, sabe? É a única coisa que eu não consigo imaginar como é que você podia saber. O dente só afrouxou faz três dias e eu não disse nada pra ninguém.

CAPITULO 21 Foi Pascal quem disse: “Ao considerar a marcha da evolução humana, a mente filosófica deve ver a humanidade como um único homem e não como um aglomerado de seres individuais.” Estou aqui no Corredor da Morte em Folsom, com o zumbido tedioso das moscas em meus ouvidos e reflito sobre esse pensamento de Pascal. Como é verdadeiro! Assim come o embrião humano em seus dez breves meses lunares, com espantosa rapidez e numa infinidade de formas e imagens multiplicadas infinitas vezes, repete toda a história da vida orgânica desde o vegetal até o homem; assim como o jovem ser humano, em seus breves anos de adolescência, repete a história do homem primitivo em atos de crueldade e selvageria, desde a maldade de infligir dor a criaturas menores até a consciência tribal expressa pelo desejo de andar em grupo; assim eu, Darrell Standing, repeti e revivi tudo aquilo que o homem primitivo foi, fez e se tomou, até transformar-se em você, em mim e no restante da nossa espécie numa civilização do século vinte. Na verdade carregamos em nós, cada ser humano hoje vivo no planeta, a história espiritual da vida desde o início da vida. Essa história está escrita em nossos tecidos e nossos ossos, em nossas funções e nossos órgãos, nas nossas células cerebrais, no nosso espírito e em todos os tipos de impulsos e compulsões atávicas, físicas e psíquicas. Fomos uma vez peixes, você e eu, meu leitor, e nos arrastamos do mar para explorar a grande aventura na terra firme e hoje nos encontramos no topo dessa aventura. As marcas do mar ainda estão em nós, assim como as marcas da serpente ainda estão em nós, antes que a serpente se tomasse serpente e nós nos tomássemos nós, quando pré-serpente e pré-nós era uma só coisa. Uma vez voamos nos ares, uma vez moramos na copa das árvores e tivemos medo da escuridão. Os vestígios permanecem, gravados em você e em mim, e gravados na nossa semente que virá depois de nós até o fim dos nossos tempos sobre a Terra. Aquilo que Pascal vislumbrou com a visão do visionário, eu vivi. Eu vi aquele único homem contemplado pelo olhar filosófico de Pascal. Ah, tenho uma história que é a mais verdadeira, mais maravilhosa e mais real para mim; mas duvido ter a capacidade de contá-la e duvido que você, meu leitor, possa entendê-la quando eu a contar. Afirmo que vi, eu mesmo, aquele único homem suspeitado por Pascal. Vivi os longos transes da camisa-de-força e vislumbrei, eu mesmo, milhares de homens vivos vivendo as milhares de vidas

que são, elas próprias, a história do ser humano ascendendo através dos tempos. Ah, como são ricas as minhas memórias quando flutuo através das eras remotas! Nos transes da camisa-de-força, vi-vi as muitas vidas envolvidas nas odisséias milenares das primeiras migrações humanas. Céus, antes que eu fosse o loiro aesir que habitava o Asgard, antes que eu fosse o ruivo vanir que habitava o Vanaheim, desde muito antes desses tempos eu guardo lembranças (lembranças vivas) de migrações ainda mais primitivas, quando, como cardos ao vento, fomos afugentados pelo deslizamento da calota polar. Morri de frio e de fome, de luta e inundação. Colhi frutos na gélida espinha dorsal do mundo e escavei raízes em férteis pântanos e campinas. Entalhei a imagem da rena e a imagem do mamute peludo em presas de marfim ganhas em caçadas; entalhei-as nas paredes rochosas das cavernas onde me abrigava enquanto as tempestades hibernais rugiam lá fora. Quebrei ossos para chupar o tutano, em locais onde cidades de reis pereceram séculos antes de mim ou seriam construídas séculos depois da minha passagem. E deixei os ossos das minhas carcaças transitórias em fundos de lagos, em calcários glaciais, em poços de betume. Vivi nas eras hoje conhecidas pelos cientistas como o Paleolítico, o Neolítico e a Idade do Bronze. Lembro-me de nós, com nossas raposas domesticadas, a pastorear nosso rebanho de renas em pastagens na costa norte do Mediterrâneo, onde hoje é a França, a Itália e a Espanha. Isso foi antes que a calota de gelo se derretesse e retrocedesse para o pólo. Por muitas sucessões de equinócios eu vivi, meu leitor, e nelas morri... só que eu lembro, e você não. Fui um Filho do Arado, um Filho do Peixe, um Filho da Árvore. Todas as religiões, desde o início dos tempos religiosos do homem, habitam em mim. E quando o Pastor, na capela aos domingos aqui em Folsom, adora a Deus à sua própria maneira moderna, eu sei que nele, no Pastor, ainda vive o culto do Arado, do Peixe, da Árvore — ai de mim, e todos os cultos de Astarté e da Noite. Fui um governante ariano no antigo Egito e meus soldados rabiscaram obscenidades nas tumbas esculpidas de reis mortos e idos e há muito esquecidos. E eu, o governante ariano no antigo Egito, fiz construir para mim duas sepulturas — uma falsa, a enorme pirâmide de que foi testemunha toda uma geração de escravos; a outra, humilde, modesta, secreta, escavada na rocha de um vale deserto por escravos que foram mortos tão logo seu trabalho se completou... E eu me pergunto, aqui em Folsom, enquanto a

democracia sonha cativar o mundo do século vinte, se lá, na cripta escavada na rocha daquele vale secreto e desértico, ainda estarão os ossos que um dia foram meus e que sustentaram meu corpo vivo quando fui um governante ariano nascido para exercer a tirania. E na grande migração para sul e leste sob a fornalha do sol que destruiu todos os descendentes das casas de Asgard e Vanaheim que nela tomaram parte, fui um rei no Ceilão, um construtor de monumentos arianos sob reis arianos na antiga Java e na velha Sumatra. E morri uma centena de mortes na grande migração para o Mar do Sul antes que o renascimento dos homens viesse a erigir monumentos, que apenas os arianos erigiram, em ilhas vulcânicas de trópicos que eu, Darrell Standing, não consigo nomear apesar de hoje conhecer bem a geografia daqueles mares longínquos. Ah, se eu ao menos fosse capaz de pintar, com o frágil meio de expressão das palavras, aquilo que vejo e conheço e possuo incorporado à minha consciência sobre a grande migração dos povos em tempos anteriores ao início da nossa atual história escrita! Sim, porque tínhamos nossa História mesmo então. Nossos anciãos, nossos sacerdotes, nossos sábios, contavam nossa História em fábulas e escreviam aquelas fábulas nas estrelas para que nossa semente, depois de nós, não as esquecesse. Do céu vinha a chuva doadora da vida e a luz do sol. E estudamos o céu, aprendemos com as estrelas a calcular o tempo e a separar as estações; e demos às estrelas os nomes dos nossos heróis, dos nossos alimentos e dos utensílios que inventamos para obter o alimento; os nomes das nossas peregrinações, migrações e aventuras; os nomes das nossas ocupações e das nossas fúrias de impulso e desejo. Ah, desgraça suprema! Acreditávamos imutáveis os céus onde escrevíamos nossos humildes anseios e as humildes coisas que fazíamos ou sonhávamos fazer. Quando fui um Filho do Touro, lembro uma vida que passei a fitar as estrelas. E mais tarde, e mais cedo, houve outras vidas nas quais cantei com os sacerdotes e os bardos as canções proibidas das estrelas, nas quais acreditávamos estar escrita nossa história indestrutível. E aqui, depois de tudo isso, debruço-me sobre os livros de astronomia da biblioteca da prisão (aqueles que eles permitem que os condenados leiam) e descubro que até mesmo os céus são fluxos passageiros, tão perturbados pelas andanças das estrelas quanto a terra é perturbada pelas andanças dos homens. Equipado com esse conhecimento moderno, ao retomar através da pequena morte de minhas vidas anteriores, fui capaz de comparar os céus daquelas épocas com o céu de hoje. E as estrelas mudam! Vi estrelas polares e

estrelas polares e dinastias de estrelas polares. A estrela polar hoje está na Ursa Menor. No entanto, naqueles dias remotos eu vi a estrela polar em Draco, em Hércules, em Vega, em Cygnus e em Cepheus. Não, nem mesmo as estrelas permanecem; mas a memória e o conhecimento delas permanece em mim, no espírito em mim que é memória e que é eterno. Só o espírito permanece. Tudo o mais, sendo mera matéria, passa... e precisa passar. Ah, eu vejo hoje aquele único homem que surgiu naquele mundo mais remoto, louro, selvagem, matador e amante, comedor de carne e catador de raízes, um cigano e um ladrão, que, com o porrete nas mãos, atravessou os milênios vagando pelo mundo em busca de carne para comer e ninhos seguros para suas crias e filhotes. Eu sou aquele homem, a soma dele, o todo dele, o bípede sem pêlos que lutou para se elevar do lodo, e que criou o amor e a lei a partir da fértil anarquia que gritava e grunhia nas selvas. Eu sou tudo que aquele homem foi, tudo que ele se tomou. Vejo a mim mesmo através de dolorosas gerações, perseguindo e matando a caça e o peixe; limpando as primeiras clareiras na floresta; fabricando rudes ferramentas de pedra e osso; construindo casas de madeira e cobrindo seu teto com folhas e palhas; domando o capim selvagem e as raízes do prado e desenvolvendo-as para que se tomassem os ancestrais do arroz, do painço, do trigo, da cevada e de todos comestíveis nutritivos; aprendendo a rasgar o solo, a semear, a ceifar e a armazenar o grão; desfiando as fibras das plantas para trançar o fio e tramar o tecido; imaginando sistemas de irrigação; forjando os metais; abrindo mercados e rotas comerciais; construindo barcos e criando a navegação — e, ai de mim, organizando a vida na aldeia, ligando aldeias a aldeias até se tomarem tribos, ligando as tribos até se tomarem nações, sempre buscando as leis das coisas, sempre fazendo as leis do ser humano para que os seres humanos pudessem conviver em harmonia e, pela união de seus esforços, pudessem derrotar e destruir todas as coisas que rastejam, que andam de quatro e que urram, senão elas os destruiriam. Eu fui aquele homem em todos os seus nascimentos e esforços. Eu sou aquele homem hoje, esperando minha morte pela lei que ajudei a construir há muitos milhares de anos e pela qual morri muitas vezes antes desta, muitas vezes. E enquanto contemplo essa minha vasta história passada, encontro muitas grandes e esplêndidas influências e, a principal entre elas, o amor da mulher, o amor do homem pela mulher de sua espécie. Vejo a mim mesmo, o único homem, o amante, sempre o amante. Sim, fui também o grande guerreiro, mas, de algum modo, enquanto estou aqui na prisão tentando

avaliar com precisão isso tudo, acho que fui, mais do que qualquer outra coisa, o amante. Foi porque muito amei que me tomei o grande lutador. Penso, às vezes, que a história do homem é a história do amor da mulher. Essa lembrança de todo o meu passado, que agora escrevo, é a lembrança do meu amor pela mulher. Sempre, nos dez milhares de vidas e formas, eu a amei. Eu a amo agora. Meu sono é repleto dela; minhas fantasias na vigília, não importa onde comecem, levam-me sempre para ela. Não há como fugir dela, aquela figura eterna, esplêndida, sempre resplandecente, da mulher. Ah, não me entenda mal. Não sou nenhum rapaz imaturo e apaixonado. Sou um homem envelhecido, quebrado na saúde e no corpo, e logo devo morrer. Sou um cientista e um filósofo. Eu, como todas as gerações de filósofos antes de mim, conheço a mulher pelo que ela é — suas fraquezas, suas mesquinharias, sua presunção, sua abjeção, seus pés presos à terra e seus olhos que jamais olharam as estrelas. Mas... a verdade duradoura e irrefutável permanece: Seus pés são belos, belos são seus olhos, seus braços e seu seio são o paraíso, seu encanto tem poder além de todo o encanto que jamais ofuscou o homem; e, assim como o alvo forçosamente atrai o dardo, ela forçosamente atrai o homem. A mulher me fez rir da morte e da distância, zombar da fadiga e do sono. Massacrei homens, muitos homens, pelo amor da mulher; em sangue batizei nossas núpcias e com sangue lavei a nódoa de seus favores a outro homem. Desci aos abismos da morte e da desonra, traí os companheiros e as estrelas do céu, por amor à mulher — ou melhor, por amor a mim mesmo, que tanto a desejava. E escondi-me entre as espigas de cevada, doente de desejo por ela, apenas para vê-la passar e encher os olhos com sua ondulante formosura, com seus cabelos negros como a noite ou castanhos ou cor de linho ou com todo o ouro do sol. Pois a mulher é bela... para o homem. Ela é doce ao paladar do homem, ela é perfume em suas narinas. Ela é fogo em seu sangue, é o toque das trombetas. Sua voz é a mais pura música em seus ouvidos. E ela pode abalar a alma do homem, que, de outro modo, mantém-se inabalável diante da terrível presença dos Titãs da Luz e das Trevas. E além de suas estrelas, nos distantes paraísos de sua imaginação, valkíria ou houri, o homem faz, de bom grado, um lugar para a mulher; pois ele não poderia ver um paraíso sem ela. E a espada cantando na batalha não canta canção tão doce como aquela que a mulher canta ao homem só com seu riso ao luar, seu gemido de amor na escuridão ou seu andar ondulante ao sol, enquanto ele cai, tonto de desejo, na grama.

Morri de amor. Morri por amor, como você vai ver. Dentro em breve eles vão me levar, a mim, Darrell Standing, e me fazer morrer. E essa morte será por amor. Ah, não era pequena minha perturbação quando matei o Professor Haskell no laboratório da Universidade da Califórnia. Ele era um homem. Eu era um homem. E havia uma bela mulher. Entendeu? Ela era uma mulher e eu era um homem, e vim amante, e toda a hereditariedade do amor era minha desde os urros no coração da selva escura, antes que o amor fosse amor e o homem fosse homem. Ah, mas isso não é novidade para mim! Muitas, muitas vezes, naquele longo passado, entreguei a vida e a honra, o posto e o poder, por amor. O homem é diferente da mulher. Ela está próxima do imediato e conhece apenas a necessidade das coisas do momento. Nós conhecemos a honra acima da honra da mulher e o orgulho além das mais remotas noções de orgulho da mulher. Nossos olhos enxergam longe, para poder olhar as estrelas; os olhos da mulher não enxergam mais que a terra sólida sob seus pés, o peito do amante sobre seu seio e o bebê viçoso no côncavo de seu braço. No entanto, tal é a alquimia formada ao longo dos tempos que a mulher opera a magia em nossos sonhos e nossas veias; e por isso, a mulher é para nós mais do que os sonhos, as visões distantes e o sangue da própria vida; ela, como dizem os amantes com toda sinceridade, é mais que o mundo todo. E está certo, porque, caso contrário, o homem não seria o homem, o lutador e conquistador que trilha seu caminho de sangue sobre todas as outras e inferiores formas de vida — pois, se o homem não tivesse sido o amante, o nobre amante, ele nunca teria se tomado o rei lutador. Lutamos melhor, morremos melhor e vivemos melhor por aquilo que amamos. Eu sou aquele homem. Vejo a mim mesmo nos muitos eus que entraram na formação do meu ser. E sempre vejo a mulher, as muitas mulheres, que me fizeram, que me arruinaram, que me amaram e que eu amei. Lembro, há tanto, tanto tempo, quando a espécie humana ainda era muito jovem, lembro que fiz uma armadilha e uma cova com uma estaca pontuda fincada no meio dela, para apanhar Dente-de-Sabre. Dente-de-Sabre, de longos caninos e pêlo longo, é o maior perigo para nós que vivemos nestas grutas rasas e passamos as noites acocorados ao lado do fogo e passamos o dia aumentando a pilha de conchas debaixo dos nossos pés com as ostras que catamos no palude salgado e devoramos. E quando o bramido e o urro de Dente-de-Sabre nos acordou nas grutas onde estamos agachados ao lado das brasas mortiças e me excito com a

visão distante da experiência da cova e da estaca, é a mulher com os braços e as pernas enroscados em mim que luta comigo e me impede de sair pela escuridão atrás do meu desejo. Ela está parcialmente vestida, só para se aquecer, em peles de animais, chamuscadas e cheias de sarna, que eu cacei; ela está suja, coberta com uma fumaça que não é lavada desde as chuvas da primavera, as unhas rachadas e quebradas, mãos calosas como a sola do pé e que mais parecem garras do que mãos; mas seus olhos são azuis como o céu do verão ou como o mar profundo, e existe algo em seus olhos e nas mãos agarradas em mim e no coração que bate contra o meu, que me detém... e toda a noite até a aurora, enquanto Dente-de-Sabre urra sua fúria e sua agonia, escuto meus companheiros rindo e dizendo às suas mulheres que não tenho fé na minha invenção para me aventurar pela noite até a cova e a estaca que imaginei para matar Dente-de-Sabre. Mas minha mulher, minha selvagem companheira, segurou-me, selvagem que eu era, e seus olhos me atraíram e seus braços me acorrentaram e suas pernas enroscadas em mim e seu coração batendo contra o meu me seduziram a ficar longe das coisas do meu sonho, minha conquista de homem, o objetivo além dos objetivos, a prisão e a morte de Dente-de-Sabre na estaca da cova. Uma vez fui Ushu, o arqueiro. Lembro-me bem. Perdi-me do meu povo e atravessei a grande floresta e saí nas terras baixas das pastagens e fui acolhido por um povo estrangeiro, mas familiar por ter a pele branca, o cabelo dourado e uma fala não muito diferente da minha. E ela era Igar. Eu a atraí quando cantei ao crepúsculo, pois ela estava destinada a ser a mãe de uma raça e era robusta e forte e não podia deixar de ser atraída para o homem musculoso, de peito forte, que cantava suas proezas na matança de homens e na obtenção da carne; essa era a maneira daquele homem prometer comida e proteção para ela naquelas fases indefesas, quando ela gerava a semente que iria caçar a carne e viver depois dela. Esse povo não tinha a sabedoria do meu povo: eles faziam armadilhas e fossos para pegar a caça; na batalha usavam porretes e atiradeiras; e não conheciam o valor das flechas voadoras, chanfradas na cauda para se adaptar à tira de couro de cervo bem torcida e que saltavam velozes e diretas quando lançadas pela curvatura do arco de freixo. E enquanto eu cantava ao crepúsculo, os homens estrangeiros riam. Apenas ela, Igar, acreditava e tinha fé em mim. Levei-a à caçada onde o cervo buscava o manancial. E meu arco zuniu e cantou na clareira e o cervo caiu e a carne quente foi doce para nós e ela foi minha, ali, ao lado do manancial.

E por causa de Igar eu permaneci com os homens estrangeiros. Eu os ensinei a fazer arcos da madeira vermelha e perfumada como o cedro. Eu os ensinei a manter os dois olhos abertos e a mirar com o olho esquerdo; a fazer flechas arredondadas para a caça de pequeno porte e flechas pontiagudas de osso para o peixe na água clara; a lascar a obsidiana para fazer as pontas das flechas para o cervo, o cavalo selvagem, o alce e o velho Dente-de-Sabre. Mas eles riram da idéia de lascar a pedra, até que atravessei um alce de lado a lado e a ponta de pedra lascada saiu pelo outro lado e o corpo emplumado da flecha enterrou-se em seus órgãos vitais; e então a tribo aplaudiu. Fui Ushu, o Arqueiro, e Igar foi minha mulher e companheira. Rimos sob o sol da manhã, quando nosso fílho-homem e nossa filha-mulher, dourados como o mel das abelhas, davam cambalhotas e rolavam no campo de mostarda; e à noite ela se aninhava em meus braços e me amava e tentava me convencer, por causa da minha habilidade em tratar a madeira e lascar as cabeças de flechas, a ficar na aldeia e deixar os outros homens correrem os perigos da caçada e me trazerem a carne. E eu seguia seu conselho e engordava e perdia o fôlego; no entanto, nas longas noites, insone, eu me preocupava porque os homens da tribo estrangeira me traziam a carne por causa da minha sabedoria e da minha honra mas riam da minha gordura e do meu desinteresse pela caça e pela luta. E na minha velhice, quando nossos filhos eram homens e nossas filhas eram mães, das terras do sul os homens escuros de testa pequena e cabelo crespo avançaram sobre nós como as ondas do oceano e fugimos para as encostas dos morros. Igar, como minhas outras companheiras muito antes e muito depois, cega a visões distantes, enroscou-se a mim com as pernas e os braços e lutou para manter-me longe da batalha. Mas libertei-me dela, gordo e sem fôlego, enquanto ela soluçava que eu não mais a amava, e saí para a batalha na noite e até o nascer do sol, onde, ao canto dos arcos e zunido das flechas emplumadas e pontiagudas, mostramos a eles, aos homens de cabelo crespo, a habilidade de matar e ensinamos a eles a destreza e a disposição de matar. E quando eu ali morri, no fim da batalha, houve os cantos da morte e canções sobre mim; e as canções pareciam soar como as palavras que escrevi quando fui Ushu, o Arqueiro, e Igar, minha mulher-companheira, pernas enroscadas e braços envolventes, quis me manter longe da batalha. Uma vez — e sabem os céus quando, exceto que foi há muito tempo, quando o homem era jovem — vivemos ao lado do grande pântano e os montes eram próximos do grande rio de águas vagarosas e nossas mulheres

colhiam frutos e raízes e havia manadas de cervos, cavalos selvagens, antílopes e alces, que nós, homens, caçávamos com flechas ou pegávamos em covas ou nas gargantas da montanha. Do rio pegávamos peixes em redes tramadas pelas mulheres com a casca de árvores novas. Fui um homem, impaciente e curioso como o antílope, quando o atraímos agitando moitas de capim, escondidos no cerrado. O arroz selvagem crescia no pântano, elevando suas hastes delgadas sobre a água às margens dos canais. De manhã os melros nos acordavam com sua chilreada quando deixavam seus filhotes para voar até o pântano. E no longo crepúsculo o ar se enchia com sua algazarra quando eles voltavam para seus filhotes. Era a estação em que o arroz amadurecia. E também havia os patos; e patos e melros comiam e engordavam com o arroz maduro, meio descascado pelo sol. Sendo um homem, sempre inquieto, sempre a investigar, sempre a me perguntar o que haveria além dos montes e além do pântano e na lama do fundo do rio, observei os patos selvagens e os melros e pensei até que meus pensamentos me deram a visão e então eu vi. E foi isso que vi, foi assim que pensei: Carne é boa de comer. No fim — ou melhor, no começo — toda carne vem do capim. A carne do pato e do melro vem da semente do arroz do pântano. Matar um pato com uma flechada não compensa o trabalho da longa tocaia. Os melros são pequenos demais para matar com flechadas; só servem para os meninos que estão aprendendo e se preparando para a caça maior. Mas na estação do arroz os melros e os patos ficam gordos e cheios de saúde. Sua gordura vem do arroz. Por que eu e os meus também não podemos engordar com o arroz? E eu ficava na aldeia pensando, quieto e carrancudo, nem notava as crianças gritando em volta de mim. E Arunga, minha mulher-companheira, em vão me censurava e exigia que eu fosse caçar mais carne para as nossas muitas bocas. Arunga foi a mulher que eu roubei das tribos da montanha. Levamos umas doze luas para aprender uma linguagem comum, depois que eu a capturei. Ah, aquele dia em que saltei sobre ela do galho de uma árvore quando ela fugia cheia de medo pela trilha! Caí sobre seus ombros com o peso do meu corpo e meus braços a agarraram. Ela berrou como um gato selvagem. Lutou e me mordeu. Suas unhas pareciam as garras da pantera quando ela me arranhou. Mas eu a dominei e durante dois dias espanquei-a e obriguei-a a descer comigo pelos desfiladeiros dos Homens da Montanha até

as pastagens onde o rio atravessava os pântanos de arroz e onde os patos e melros engordavam. Vi minha visão quando o arroz estava maduro. Fiz Arunga sentar na proa do tronco de árvore escavado pelo fogo que era nossa tosca canoa. Mandei que ela remasse. Sobre a popa estendi uma pele de gamo que ela havia curtido. Com dois pedaços de pau fiz as hastes se dobrarem sobre a pele de gamo e recolhi os grãos que, senão, os melros teriam comido. E depois que percebi qual a melhor maneira, passei os dois pedaços de pau para Arunga e fui me sentar na proa, remando e ensinando. No passado comemos o arroz cru e não gostamos. Mas agora nós o tostamos sobre nosso fogo e os grãos cresceram e explodiram em flocos brancos e toda a tribo veio correndo experimentar. Depois disso ficamos conhecidos entre os homens como os Comedores de Arroz, ou os Filhos do Arroz. E muito, muito tempo depois, quando os Filhos do Rio nos expulsaram do pântano para as terras altas, levamos conosco a semente do arroz e a plantamos. Aprendemos a reservar os grãos maiores para a semeadura, e por isso todo o arroz que comemos dali em diante tinha grãos maiores e crescia mais na tostagem e no cozimento. Arunga. Eu disse que ela berrou e arranhou como um gato quando a roubei. Mas lembro o dia em que seu povo, os Homens das Montanhas, me capturou e me arrastou para as montanhas. Eles eram o pai, o irmão do pai e os dois irmãos de Arunga. Mas ela era minha, era a mulher que vivia comigo. E à noite, quando eu estava amarrado como um javali para o matadouro e eles dormiam cansados ao lado do fogo, ela se inclinou sobre cada um deles e esmagou suas cabeças com o porrete de guerra que fiz com minhas próprias mãos. E ela chorou e me soltou e fugiu comigo de volta para o grande rio de águas vagarosas onde os melros e os patos selvagens co-miam o arroz dos pântanos — pois isso aconteceu antes da chegada dos Filhos do Rio. Pois ela era Arunga, a única mulher, a mulher eterna. Ela viveu em todos os tempos e lugares. Ela sempre viverá. Ela é imortal. Uma vez, numa terra distante, seu nome foi Ruth. E seu nome também foi Isolda e Helena, Pocahontas e Unga. E nenhum homem estrangeiro, de tribos estrangeiras, jamais deixou de encontrá-la e sempre a encontrará nas tribos de toda a Terra. Lembro tantas mulheres que formaram o vir-a-ser daquela única mulher. Houve o tempo em que Har, meu irmão, e eu perseguimos o garanhão selvagem por dias e noites. Enquanto um dormia, o outro perseguia o garanhão fazendo um grande círculo que se fechava no lugar onde o outro estava acordando. E levamos o garanhão, pelo cansaço, pela fome e pela sede,

aos extremos da fraqueza, e afinal ele tremia e mal se agüentava em pé e nós o prendemos com cordas torcidas de couro de cervo. Usando apenas nossas pernas, e sem dificuldade, só com a ajuda da astúcia — o plano foi meu —, meu irmão e eu nos apoderamos daquela criatura de pés alados. E quando tudo estava pronto para que eu subisse em seu lombo — pois essa era a minha visão, desde o início — Selpa, minha mulher, me agarrou e levantou a voz e insistiu que Har, e não eu, devia cavalgar, pois Har não tinha mulher nem filhos pequenos e não faria falta se morresse. E ela acabou chorando e assim fui roubado de minha visão; e era Har, em pêlo e agarrado à crina, quem montava o garanhão quando ele fugiu a corcovear. Foi no pôr-do-sol que os homens trouxeram Har das rochas distantes onde o encontraram e foi uma hora de grandes lamentações. Sua cabeça estava partida e, como o mel de uma colméia caída da árvore, seus miolos gotejavam no chão. Sua mãe cobriu a cabeça de cinzas e escureceu o rosto. Seu pai decepou a metade dos dedos da mão em sinal de pesar. E todas as mulheres, especialmente as jovens e solteiras, gritaram insultos para mim; e os anciãos sacudiram suas sábias cabeças e murmuraram que ninguém, nem seus pais nem os pais de seus pais, tinha mostrado tanta loucura. Carne de cavalo é boa para comer; potros jovens são bons para dentes velhos; e só um louco se aproximaria de um cavalo selvagem, a não ser depois que ele estivesse atravessado por uma flecha ou pela estaca no meio da cova. E Selpa me fez dormir ouvindo suas censuras e me acordou de manhã com suas queixas, sempre reclamando da minha loucura, sempre proclamando seus direitos sobre mim e os direitos dos nossos filhos, até que acabei me cansando e esqueci minha visão distante e jurei que nunca mais sonharia em domesticar o cavalo selvagem para voar rápido como suas patas, rápido como o vento, pelos areais e pelas planícies. E ano após ano a história da minha loucura foi contada em volta da fogueira. Mas o próprio fato de ser contada foi a minha vingança; pois o sonho não morreu e os jovens, ouvindo as risadas e as zombarias, sonharam o sonho mais uma vez. E foi Othar, meu filho mais velho, um adolescente, o primeiro a domar o garanhão selvagem, a saltar em seu lombo e voar diante de nós com a velocidade do vento. Depois disso, para não ficarem para trás, todos os homens aprisionaram e domesticaram cavalos selvagens. Muitos cavalos foram domados e alguns homens machucados. Mas eu vivi para ver o dia em que, com a mudança de acampamento conforme as estações de caça, até os nossos bebês eram transportados em cestas de tramas de salgueiro no dorso dos cavalos que carregavam nossas bagagens.

Eu, quando jovem, tive minha visão, sonhei meu sonho; Selpa, a mulher, manteve-me longe daquele desejo distante. Mas Othar, a semente de nós dois a viver depois de nós, vislumbrou minha visão e conquistou-a, e assim nossa tribo enriqueceu com as caçadas. Houve uma mulher na grande migração da Europa — uma exaustiva migração de muitas gerações, quando trouxemos para a Índia o gado de chifre curto e o plantio da cevada. Mas essa mulher existiu muito antes de chegarmos à índia. Estávamos ainda em meio àquela migração de muitos séculos e nenhum conhecimento de geografia pode agora localizar pa-ra mim aquele antigo vale. A mulher era Nuhila. O vale era estreito e curto; seu solo inclinado e as paredes íngremes que o ladeavam foram cortados em patamares para o cultivo do arroz e do painço — o primeiro arroz e painço que nós, os Filhos das Montanhas, conhecemos. Os habitantes daquele vale eram um povo pacato. Eles se amansaram com o cultivo da terra fértil tomada ainda mais fértil pela água. Foi deles a primeira irrigação que conhecemos, embora pouco tempo tivéssemos para notar os diques e canais que faziam a água da montanha fluir para os campos que eles construíram. Pouco tempo tivemos para notar essas coisas porque nós, os Filhos das Montanhas, que éramos poucos, fugíamos dos Filhos do Nariz Chato, que eram muitos. Nós os chamávamos Filhos do Nariz Chato e eles chamavam a si mesmos Filhos da Águia. Mas eles eram muitos e fugimos deles com nosso gado de chifre curto, nossas cabras, nossas sementes de cevada e nossas mulheres e crianças. Enquanto os Filhos do Nariz Chato massacravam os nossos jovens à nossa retaguarda, massacramos à nossa frente o povo do vale que se opunha a nós e que era fraco. A aldeia era construída de barro e coberta de palha; o muro que a rodeava era de barro, mas bem alto. E quando massacramos o povo que havia construído o muro e abrigamos dentro dele nossos rebanhos e nossas mulheres e criança subimos no muro e gritamos insultos aos Filhos do Nariz Chato. Pois tínhamos encontrado as cisternas de barro cheias de arroz e painço. Nosso gado podia comer as palhas. E como a estação das chuvas estava próxima, não teríamos falta de água. Foi um cerco longo. Para começar, arrebanhamos as mulheres, velhos e crianças que não tínhamos massacrado e os empurramos para fora do muro que eles um dia construíram. Mas os Filhos do Nariz Chato os massacraram todos; sobrou mais comida na aldeia para nós e mais comida no vale para os Filhos do Nariz Chato.

Foi um cerco longo e cansativo. As doenças nos atacavam e morríamos com a peste que subia da cova dos nossos mortos. Acabamos com o arroz e o painço das cisternas de barro. Nossas cabras e nossos bois comeram a palha do teto das casas; e nós, antes do fim, comemos as cabras e os bois. Onde antes havia cinco homens no muro, chegou o tempo em que havia apenas um; onde antes havia meio milhar de bebês e crianças, não havia mais nenhuma. Foi Nuhila, minha mulher, que cortou seu cabelo e o enrolou para que eu tivesse uma corda forte para o meu arco; as outras mulheres a imitaram. E quando o muro era atacado, nossas mulheres lutavam ombro a ombro conosco, no meio de nossas lanças e flechas, jogando peuras e cacos de louça na cabeça dos Filhos do Nariz Chato. Até os pacientes Filhos do Nariz Chato já estavam impacientes. Chegou uma hora em que, de dez homens nossos, só havia um vivo no muro e de nossas mulheres restavam muito poucas, e os Filhos do Nariz Chato pediram trégua. Disseram-nos que éramos uma raça forte e que nossas mulheres geravam homens e que, se os deixássemos ficar com nossas mulheres, eles nos deixariam em paz no vale e nós poderíamos conseguir mulheres no vale mais ao sul. E Nuhila disse não. E as outras mulheres disseram não. E zombamos dos Filhos do Nariz Chato e lhes perguntamos se estavam cansados de lutar. E enquanto zombávamos dos nossos inimigos, já estávamos quase mortos e tão fracos que pouca combatividade nos restava. Mais um ataque ao muro acabaria conosco. Sabíamos disso. Nossas mulheres sabiam disso. E Nuhila disse que podíamos adiantar o fim e enganar os Filhos do Nariz Chato. E todas as nossas mulheres concordaram. E enquanto os Filhos do Nariz Chato se preparavam para o ataque que seria o último, matamos nossas mulheres. Nuhila me amava e inclinou-se para receber o golpe da minha espada, ali no muro. E nós, homens, com amor tribal, matamos uns aos outros até que só Horda e eu ficamos vivos no meio do sangue do massacre. Horda era mais velho e inclinei-me diante de sua espada. Mas não morri de imediato. Eu fui o último dos Filhos das Montanhas, pois vi Horda atirar-se sobre sua espada e morrer rapidamente. E morrendo, com o clamor do ataque dos Filhos do Nariz Chato cada vez mais vagos em meus ouvidos, fiquei feliz em saber que os Filhos do Nariz Chato não teriam filhos gerados por nossas mulheres. Não sei quando foi esse tempo em que fui um Filho das Montanhas e morri no vale estreito onde tínhamos massacrado os Filhos do Arroz e do Painço. Não sei, só sei que foi séculos antes que a grande migração de todos nós. Filhos das Montanhas, chegasse à Índia; só sei que foi muito antes que eu

fosse um governante ariano no antigo Egito, construindo minhas duas sepulturas e profanando as tumbas de reis que governaram antes de mim. Eu gostaria de falar mais daqueles dias distantes, mas o tempo nos dias presentes é curto. Logo morrerei. Mas fico triste por não poder contar mais sobre aquelas migrações primitivas, quando os povos se combatiam pelo domínio das terras, calotas polares deslizavam e a caça fugia. E eu também gostaria de falar do Mistério. Pois sempre tivemos curiosidade de descobrir os segredos da vida, da morte e da decomposição. Ao contrário dos outros animais, o homem sempre olhou para as estrelas. Criou muitos deuses à sua própria imagem e à imagem das suas fantasias. Naqueles tempos remotos, eu adorei o sol e as trevas. Adorei o grão debulhado, como o doador da vida. Adorei Sar, a Deusa do Milho. E adorei os deuses do mar, do rio e dos peixes. Sim, e lembro Ishtar antes que ela fosse roubada de nós pelos babilônios; Ea também era nossa, a senhora suprema dos Infernos que permitiu a Ishtar conquistar a morte. Também Mitra foi um bom e velho deus ariano, antes de ser roubado de nós ou ser por nós esquecido. E lembro uma vez, muito depois daquela migração em que trouxemos a cevada para a índia, em que cheguei à Índia como um mercador de cavalos com muitos servos e uma longa caravana às minhas costas e eles, naquela época, cultuavam Bodhisattva. Na verdade, os cultos do Mistério acompanhavam as andanças dos homens e, entre furtos e empréstimos, os deuses peregrinaram tanto quanto nós. Assim como os sumérios tomaram de nós Shamashnapishtin, nós, os Filhos de Sem, tomamos Sem dos sumérios e o chamamos Noé. Eu, Darrell Standing, hoje sorrio para mim mesmo no Corredor da Morte por ter sido considerado culpado e condenado à morte por doze jurados respeitáveis e honestos. Doze sempre foi um número mágico do Mistério. Mas esse número não se originou nas doze tribos de Israel. Antes delas, já os contempladores de estrelas colocaram nos céus os doze signos do Zodíaco. E lembro que, quando fui um aesir e depois um vanir, Odin sentavase para julgar os homens numa assembléia de doze deuses e seus nomes eram Tor, Baldur, Njrd, Freya, Tyr, Brogi, Heimdall, Hdr, Vidar, Ull, Forseti e Loki. Até mesmo nossas valquírias nos foram roubadas e transformadas em anjos e as asas dos cavalos das valquírias se prenderam aos ombros dos anjos. E o nosso Helheim daquela época de gelo e frio tomou-se o inferno de hoje, que é uma morada tão quente que o sangue ferve em nossas veias; enquanto o nosso Helheim era tão frio que o tutano se congelava dentro dos nossos

ossos. E o próprio céu, que sonhávamos permanente e eterno, girou e se alterou; hoje encontramos o Escorpião no lugar onde antigamente tínhamos a Cabra, e o Arqueiro no lugar do Caranguejo. Cultos e cultos! Sempre a busca do Mistério! Lembro o deus coxo dos gregos, o mestre-ferreiro. Mas Vulcano era o germânico Wieland, o ferreiro capturado e ferido na perna por Nidung, o rei dos Nids. E antes ele foi o nosso mestre-ferreiro, o nosso mestre da forja e do martelo, a quem chamávamos Il-marinen. E ele foi gerado pela nossa fantasia que lhe deu o barbudo deus-sol como pai e o fez ser educado pelas estrelas da Ursa. Pois ele, Vulcano ou Hefestos ou Wieland ou Il-marinen, nasceu sob o Pinheiro, do pêlo do Lobo, e foi chamado Pai do Urso antes mesmo que os germânicos e os gregos o roubassem e o cultuassem. Naqueles dias, chamávamos a nós mesmos Filhos do Urso e Filhos do Lobo, e o Urso e o Lobo eram nossos totens. Isso foi antes da nossa fuga para o sul, quando nos unimos aos Filhos do Bosque e lhes ensinamos nossos totens e nossas lendas. Sim, e quem foi Kashyapa, quem foi Puru-ravas, senão nosso mestreferreiro coxo, nosso mestre do ferro, levado por nós em nossas andanças e rebatizado e adorado pelos habitantes do sul e do leste, os Filhos da Estaca, os Filhos da Chama e os Filhos do Archote? Mas a lenda é demasiado longa, embora eu quisesse falar sobre a Planta da Vida, de três folhas, com a qual Sigmund fez Sinfioti viver novamente. Pois ela é a Soma da Índia, o Santo Graal do Rei Arthur, o... mas chega, chega! E enquanto penso tranqüilamente nisso tudo, chego à conclusão de que a maior coisa na vida, em todas as vidas, para mim e para todos os homens, foi a mulher, é a mulher e será a mulher, enquanto as estrelas vagarem pelos céus e os céus fluírem em eterna mutação. Maior que nosso trabalho e esforço, maior que o jogo da invenção e da fantasia, maior que as batalhas, que as estrelas e o Mistério — maior que tudo é a mulher. Embora ela tenha cantado falsa música para mim e mantido meus pés atados ao chão e afastado meus olhos das estrelas para voltar a fitá-la, ela, a preservadora da vida, a mãe-terra, deu-me meus grandes dias e noites e a plenitude dos anos. Até ao Mistério dei a imagem da mulher e, ao cartografar as estrelas, coloquei a figura da mulher nos céus. Todos os meus trabalhos e ferramentas me conduziam a ela; todas as minhas visões distantes acabavam por mostrá-la. Foi para ela que fiz a chama e o archote. Foi por ela, embora eu não o soubesse, que enterrei a estaca na cova para pegar o velho Dente-de-Sabre, que domei o cavalo, que matei o

mamute e levei meu rebanho de renas para o sul fugindo do lençol de gelo. Por ela cultivei o arroz selvagem e domei a cevada, o trigo e o milho. Por ela e pela semente que viria depois e cuja imagem ela trazia, morri no topo de árvores e sustentei longos cercos em bocas de cavernas e em muros de barro. Por ela, escrevi os doze signos nos céus. Era ela que eu cultuava quando me prostrei diante das dez pedras de jade e as adorei como as luas da gestação. Sempre a mulher se inclinou para a terra, como uma perdiz cuidando de seus pintinhos; sempre minha alma andarilha me fez fugir para os caminhos luminosos; e sempre minhas trilhas de estrelas me fizeram voltar a ela, a figura permanente, a mulher, a única mulher, de cujos braços eu tinha tanta necessidade que, aninhado neles, esqueci as estrelas. Por ela realizei odisséias, escalei montanhas, cruzei desertos; por ela liderei a caçada e fui à frente na batalha; e por ela e para ela, transformei em canções minhas façanhas. Todos os êxtases da vida e as rapsódias do prazer foram meus por causa dela. E aqui, no fim, posso dizer que não conheci na vida loucura mais doce e mais profunda do que mergulhar na glória perfumada e no esquecimento de seus cabelos. Uma palavra mais. Lembro-me de Dorothy; parece que foi ontem, quando eu ainda ensinava agronomia para os garotos das fazendas. Ela tinha 11 anos. Seu pai era o diretor da escola. Ela era uma mulher-criança, e uma mulher, e imaginou que me amava. E eu sorria para mim mesmo, pois meu coração estava intocado e distante. Mas havia a ternura do sorriso, pois nos olhos da criança eu via a mulher eterna, a mulher de todos os tempos e aparências. Em seus olhos eu via os olhos da minha companheira da selva, do topo das árvores, da caverna e da gruta rasa. Em seus olhos eu via os olhos de Igar quando eu era Ushu, o Arqueiro; os olhos de Arunga quando eu era o cultivador de arroz; os olhos de Selpa quando eu sonhava domar o garanhão; e os olhos de Nuhila, que se inclinou para o golpe da minha espada. Sim, havia algo em seus olhos que os tomavam os olhos de Lei-Lei quando parti das ilhas de Raa Kook com voa sorriso nos lábios; os olhos de Lady Om, por quarenta anos minha companheira de mendicância nas estradas e atalhos de Chosen; o sim de Philippa, por quem morri sobre a relva na velha França, e os olhos de minha mãe quando eu era o pequeno Jesse num círculo de quarenta carroções nos Montes Meadows. Ela era uma mulher-criança, mas era filha de todas as mulheres, como sua mãe antes dela, e era a mãe de todas as mulheres que viriam depois. Era

Sar, a Deusa do Milho. Era Ishtar, que venceu a morte. Era a Rainha de Sabá e Cleópatra; Ester e Herodíades. Era Maria mãe de Deus, Maria Madalena e Maria irmã de Marta. E também era Marta. E ela era Brunhilde e Guinevere, Isolda e Julieta, Heloísa e Nicolete. Sim, e Eva, Lilith, Astarté. Ela tinha 11 anos e era todas as mulheres que já existiram, todas as mulheres que existirão. Estou agora em minha cela, enquanto as moscas zumbem na modorrenta tarde de verão, e sei que meu tempo é escasso. Logo eles irão me vestir a camisa sem colarinho... Mas, aquieta-te, coração meu! O espírito é imortal. Depois das trevas viverei novamente e haverá a mulher. O futuro contém a semente da mulher para mim nas vidas que ainda viverei. E embora as estrelas vagueiem e os céus enganem, permanece sempre a mulher, resplendente, eterna, a única mulher, como eu, sob todas as minhas máscaras e desventuras, sou o único homem, seu companheiro.

CAPITULO 22 Meu tempo é muito curto. Todo o manuscrito que escrevi foi contrabandeado em segurança para fora da prisão. Há um homem em quem confio que conseguirá que ele seja publicado. Não estou mais no Corredor da Morte. Estou escrevendo estas linhas na cela da morte e a ronda da morte foi estabelecida sobre mim. Noite e dia, sempre a ronda da morte sobre mim; e sua função paradoxal é cuidar para que eu não morra. Preciso ser mantido vivo para a forca; caso contrário, o público seria traído, a lei enodoada e demérito lançado sobre o homem que hoje dirige esta prisão, pois um de seus deveres é garantir que os condenados sejam devidamente enforcados. Muitas vezes me espanto com o modo estranho como alguns homens ganham a vida. Esta é a última vez que escrevo. Amanhã de manhã; a hora já está marcada. O Governador recusou perdão ou suspensão temporária, embora a Liga contra a Pena Capital tenha levantado um clamor na Califórnia. Os repórteres estão reunidos, como abutres. Eu os vi, todos eles. São jovens estranhos, a maioria deles, e o mais estranho é que eles vão ganhar o pão e a manteiga, a bebida e o tabaco, o dinheiro do aluguel e, se forem casados, os sapatos e os livros escolares de seus filhos, testemunhando a execução do Professor Darrell Standing e descrevendo para o público como o Professor Darrell Standing morreu na ponta de uma corda. Ah, bem, eles vão se sentir mais nauseados do que eu quando tudo terminar. Enquanto estou aqui pensando nisso tudo, com os passos do vigia da morte para lá e para cá do lado de fora da minha gaiola e seus olhos suspeitosos sempre a me espionar, quase me canso da eterna recorrência. Eu vivi tantas vidas. Estou cansado da infindável batalha, da dor e da tragédia que caem sobre aqueles que ficam nas alturas, trilham os caminhos luminosos e vagueiam entre as estrelas. Quase espero, quando habitar novamente a forma, habitar a forma de um pacato fazendeiro. Lembro a fazenda daquele meu sonho. Eu gostaria de me dedicar a ela, por uma vida inteira. Ah, a minha fazenda sonhada! Meus campos de alfafa, meu produtivo gado jersey, minhas pastagens no planalto, minhas encostas cobertas de mato fundindo-se aos campos arados e, mais ao alto, minhas cabras angorá comendo o mato para a lavoura! Lá existe uma vertente, uma bacia natural bem no alto da encosta, com uma generosa queda d'água em três lados. Eu gostaria de construir uma barragem no quarto lado, que é bastante estreito. Com um custo irrisório de

mão-de-obra, . eu poderia represar oitenta milhões de litros de água. Vejamos: um sério problema para a agricultura na Califórnia é o longo verão sem chuvas. Isso impede o crescimento de colheitas de cobertura, e o solo sensível, nu, uma mera camada de pó, tem seu húmus ressecado pelo sol. Agora, com aquela represa, eu poderia plantar três colheitas por ano, observando a rotação adequada, e faria o solo produzir uma abundância de adubo verde... Acabei de suportar uma visita do diretor. Digo “suportar” deliberadamente. Ele é bastante diferente do Diretor de San Quentin. É muito nervoso e fui obrigado a distraí-lo. Esse é o seu primeiro enforcamento. Foi o que ele me disse. E eu, numa desajeitada tentativa de fazer graça, não melhorei as coisas quando observei que também era o meu primeiro enforcamento. Ele não conseguiu rir. Ele tem uma filha no colégio e seu filho é calouro em Stanford. Ele não tem rendimentos além do salário, a mulher é inválida e ele está preocupado porque foi rejeitado pelos médicos da companhia de seguros como risco indesejável. Realmente, o homem me contou quase todos os seus problemas. Se eu não tivesse encerrado diplomaticamente a conversa, ele ainda estaria aqui me contando o resto dos seus problemas. Meus dois últimos anos em San Quentin foram tristes e deprimentes. Ed Morrell, por um dos mais incríveis golpes da sorte, foi tirado da solitária e nomeado encarregado-chefe de toda a prisão. Esse era o antigo cargo de Al Hutchins, que garantia um suborno de três mil dólares por ano. Para minha desgraça, Jake Oppenheimer, depois de apodrecer na solitária por tantos anos, ficou amargo com o mundo, com tudo. Durante oito meses ele se recusou a falar até mesmo comigo. Na prisão, as notícias viajam. Dê o devido tempo e elas chegarão ao calabouço e à solitária. Chegou-me a notícia, finalmente, de que Cecil Winwood, o poeta-falsário, o alcagüete, o covarde, o dedo-duro, estava de volta por uma nova falsificação. Você há de lembrar que foi Cecil Winwood quem inventou a história fantástica de que eu tinha mudado o esconderijo da dinamite inexistente e foi o responsável pelos cinco anos que passei na solitária. Decidi matar Cecil Winwood. Veja, Morrell saiu e Oppenheimer, até a explosão que acabou com ele, permanecia em silêncio. A solitária tomou-se monótona para mim. Eu tinha de fazer alguma coisa. E então voltei no tempo e relembrei a época em que fui Adam Strang e pacientemente nutri minha vingança durante quarenta anos. Aquilo que ele fez, eu poderia fazer se conseguisse fechar minhas mãos na garganta de Cecil Winwood.

Ninguém há de esperar que eu revele como consegui quatro limas, as quatro pequenas limas. Mesmo emaciado como eu estava, tive de serrar quatro barras, cada uma em dois lugares, para fazer uma abertura por onde me esgueirar. Foi o que eu fiz. Gastei uma lima em cada barra. Isso significa dois cortes em cada barra, e levei um mês para cada corte. Levei, portanto, oito meses abrindo meu caminho. Infelizmente quebrei minha última lima na última barra e tive de esperar três meses até poder conseguir outra. Mas consegui, e saí. Lamento muito não ter apanhado Cecil Winwood. Calculei tudo muito bem, exceto uma coisa. A chance certa de encontrar Winwood seria no refeitório na hora do almoço. Assim, esperei até que Pie-Face Jones, o guarda dorminhoco, estivesse no turno do meio-dia. Naquela época eu era o único inquilino da solitária e Pie-Face Jones logo estava roncando. Removi as barras, esgueirei-me para fora, passei por ele ao longo do corredor, abri a porta e me vi livre... para o pátio da prisão. E aqui estava a única coisa que eu não tinha calculado — eu mesmo. Passei cinco anos na solitária. Estava incrivelmente fraco. Pesava 40 quilos. Estava quase cego. E fui imediatamente atacado de agorafobia. Fiquei amedrontado com o espaço aberto. Cinco anos dentro de paredes estreitas me tornaram incapaz de enfrentar a enorme escadaria e a amplitude do pátio da prisão. Considero a descida daquela escada a façanha mais heróica que já realizei. O pátio estava deserto. O sol forte brilhava sobre ele. Três vezes tentei cruzá-lo. Mas meus sentidos vacilaram e me encolhi contra a parede em busca de proteção. Tentei de novo, reunindo toda a minha coragem. Mas meus pobres olhos lacrimejantes, como os olhos de um morcego, me assustaram com a minha sombra sobre as pedras. Tentei evitar minha própria sombra, tropecei, caí sobre ela e, como um homem que se afoga luta para chegar à praia, engatinhei sobre as mãos e os joelhos até o muro. Encostei-me ao muro e chorei. Era a primeira vez em muitos anos que eu chorava. Lembro de ter notado, mesmo em minha situação crítica, o calor das lágrimas em meu rosto e o gosto salgado quando elas chegaram aos meus lábios. E então senti calafrios e tremi como se tivesse malária. Abandonando a vastidão do meio do pátio como uma façanha impossível para alguém no meu estado, ainda tremendo e me apoiando com as mãos à parede protetora, comecei a contornar o pátio. Foi então que, de algum lugar, o guarda Thurston me viu. Eu o vi, distorcido pelas lágrimas, um monstro imenso e forte a avançar sobre mim,

com incrível velocidade, de uma distância remota. Talvez, naquele momento, ele estivesse a uns seis metros de distância. Ele pesava 80 quilos. E fácil imaginar a luta que travamos, mas foi alegado que, em algum momento daquela breve luta, eu o golpeei no nariz e fiz seu nariz sangrar. Enfim, sendo um condenado à prisão perpétua e como a lei da Califórnia dizia que a penalidade para uma agressão cometida por um condenado à prisão perpétua era a morte, fui julgado culpado por um júri que não poderia ignorar o testemunho do guarda Thurston e dos outros carrascos da prisão e sentenciado por um juiz que não poderia ignorar a lei expressa com tanta clareza nos livros de leis. Por todo o percurso de volta à cela, subindo aquela imensa escadaria, fui espancado, chutado, socado e esmurrado pelo guarda Thurston e por uma multidão de encarregados e guardas que se atropelavam na ânsia de ajudá-lo. Céus, se é que seu nariz sangrou, o mais provável é que alguém de sua própria laia o tenha golpeado no meio daquela confusão! Eu não ligaria se o responsável fosse eu, só que é um motivo tão deprimente para se enforcar um homem... Acabei de conversar com o homem no turno da minha ronda da morte. Há pouco menos de um ano Jake Oppenheimer ocupou esta mesma cela da morte no caminho do cadafalso que eu trilharei amanhã. Este homem foi um dos vigias da morte de Jake. Ele é um velho soldado. Vive mascando tabaco com desleixo e os fios grisalhos de sua barba e bigode estão manchados de amarelo. Ele é um viúvo, com quatorze filhos vivos, todos casados, e é avô de trinta e um netos vivos e bisavô de quatro bebês do sexo feminino. Extrair essas informações dele foi como arrancar um dente. Ele é um velho excêntrico, esquisitão, com um baixo nível de inteligência. Imagino que é por isso que viveu tanto tempo e teve uma prole tão numerosa. Sua mente deve ter-se cristalizado há uns trinta anos. Nenhuma de suas idéias é posterior àquela época. É raro que ele me diga mais que “sim” e “não”. Não por ser grosseiro. É que ele não tem idéias a expressar. Não sei, mas quando eu viver novamente talvez uma encarnação como a dele pudesse ser uma tranqüila existência vegetativa onde eu descansaria antes de voltar a peregrinar entre as estrelas... Mas, de volta. Preciso de umas linhas para falar do infinito alívio da minha cela estreita — depois de ser espancado, empurrado, chutado e arrastado todo o percurso por Thurston e os outros cães da prisão — quando me encontrei de volta à solitária. Minha cela era tão segura, tão protetora. Senti-me como a criança perdida que volta para casa. Amei aquelas paredes

que eu tanto tinha odiado por cinco anos. Aquelas boas e sólidas paredes, tão próximas das minhas mãos, impediam que a vastidão do espaço se lançasse sobre mim, como um monstro. A agorafobia é uma doença terrível. Tive pouca chance de experimentá-la, mas, pelo pouco que vi, só posso concluir que ser enforcado é bem mais fácil... Acabei de dar uma boa gargalhada. O médico da prisão, um senhor simpático, esteve aqui conversando comigo e, como quem não quer nada, ofereceu-me seus préstimos com as drogas. É claro que recusei sua oferta de “encher-me” de morfina durante a noite para que, de manhã, quando marchasse para o cadafalso, eu não soubesse se estava “indo ou vindo”. Mas, a risada. Foi típico do Jake Oppenheimer. Posso até ver sua sutil ironia ao lançar aos repórteres aquele disparate deliberado, que eles imaginaram involuntário. Consta que em sua última manhã, café tomado e já com a camisa sem colarinho, os repórteres, reunidos em sua cela para suas últimas palavras, perguntaram sua opinião sobre a pena capital. Céus, quem me diz que temos mais do que um tênue verniz de civilização pincelado sobre nossa crua selvageria, se um grupo de homens vivos é capaz de fazer tal pergunta a um homem que está para morrer e que eles vão ver morrer?! Mas Jake sempre foi um espírito firme. — Senhores — disse ele. — Espero viver pra ver o dia em que a pena capital seja abolida. Eu vivi muitas vidas através de longas eras. O homem, o indivíduo, não fez nenhum progresso moral nos últimos dez mil anos. Eu o afirmo com absoluta certeza. A diferença entre o potro selvagem e o paciente cavalo de carga é apenas uma diferença de treinamento. O treinamento é a única diferença moral entre o homem de hoje e o homem de dez mil anos atrás. Sob a fina casca de moralidade que poliu sobre si, ele é o mesmo selvagem que era há dez mil anos. A moralidade é um capital social que se ampliou gradualmente através de longas e dolorosas eras. A criança recém-nascida se tomará um selvagem a menos que seja treinada e polida pela moralidade abstrata que foi se acumulando por tão longo tempo. “Não matarás” — bolas! Eles vão me matar amanhã de manhã. “Não matarás” — bolas! Os estaleiros de todos os países civilizados estão hoje lançando ao mar as quilhas de encouraçados e super-encouraçados. Querido amigo, eu que vou morrer vos saúdo... com um “bolas!” Eu lhe pergunto: a moralidade pregada hoje é superior à moralidade pregada por Cristo, Buda, Sócrates e Platão, Confúcio e quem quer que seja o

autor do “Mahabharata”? Meu bom Deus, há cinqüenta mil anos, em nossas famílias totêmicas, nossas mulheres eram mais limpas e nossas relações familiares e grupais muito mais corretas! Preciso dizer que a moralidade que praticávamos naqueles dias remotos era uma moralidade superior àquela praticada hoje. Não, não afaste essa idéia assim tão depressa. Pense no nosso trabalho infantil, no suborno da nossa polícia e na nossa corrupção política, na nossa adulteração dos ali-mentos e na nossa escravização das filhas dos pobres. Quando fui um Filho das Montanhas e um Filho do Touro, a prostituição não tinha qualquer significado. Éramos limpos, eu lhe garanto. Nem sonhávamos com tais abismos de depravação. Sim, e todos os animais inferiores também são limpos. Foi preciso o homem, com sua imaginação, ajudada por seu domínio da matéria, para inventar os pecados mortais. Os animais inferiores, os outros animais, são incapazes de pecar. Lanço um olhar apressado pelas muitas vidas nos muitos tempos e lugares. Nunca conheci crueldade mais terrível, nem tão terrível, como a crueldade do nosso sistema penal de hoje. Eu lhe contei o que suportei na camisa-de-força e na solitária na primeira década deste vigésimo século depois de Cristo. Naqueles tempos remotos, puníamos drasticamente e matávamos rapidamente. Assim fazíamos porque esse era o nosso desejo — ou o nosso capricho, se você preferir. Mas não éramos hipócritas. Não convocávamos a imprensa, o púlpito e a universidade para sancionar nossa sede de selvageria. Aquilo que queríamos fazer, fazíamos de pé, como homens, e de pé, como homens, enfrentávamos a reprovação e censura; não nos escondíamos por trás das saias de economistas clássicos e filósofos burgueses, nem por trás das saias de pregadores, professores e editores subvencionados pelo dinheiro público. Ora, pelo amor de Deus! Há cem anos, há cinqüenta anos, há cinco anos, nestes Estados Unidos da América, ataque e agressão não eram um crime capital. Mas neste ano, no Ano de Nosso Senhor de 1913, no Estado da Califórnia, eles enforcaram Jake Oppenheimer por esse crime e, amanhã, pelo crime capital de bater no nariz de um homem, eles vão me levar e me enforcar. Pergunta: quanto tempo eles levariam para fazer morrer o macaco e o tigre se tal lei fosse decretada pelos livros da lei da Califórnia no ano de 1913 da Era Cristã? Senhor, Senhor! Cristo eles apenas crucificaram! Fizeram muito pior para Jake Oppenheimer e para mim... Ed Morrell uma vez me disse com as batidas dos nós de seus dedos: “O pior uso possível que se pode fazer de um homem é enforcá-lo.” Eu, eu

não tenho respeito pela pena capital. Ela não é apenas um jogo sujo e degradante para os carrascos que a executam pessoalmente por dinheiro; ela é degradante para a comunidade que a tolera, que vota por ela e que paga os impostos para sua manutenção. A pena capital é tão tola, tão estúpida, tão horrivelmente não-científica. “Ser pendurado pelo pescoço até morrer” é a bela fraseologia da sociedade... A manhã chegou—minha última manhã. Dormi como um bebê a noite toda. Dormi em tanta paz que o vigia da morte se assustou. Ele pensou que eu tinha me sufocado nos cobertores. O susto do pobre homem me causou pena. Seu pão e manteiga estavam em jogo. Se tivesse realmente acontecido, teria significado uma nódoa em sua ficha, talvez a demissão — e as perspectivas de um homem desempregado são amargas hoje em dia. Contaram-me que a Europa começou a falir há dois anos e, agora, os Estados Unidos. Isso pode significar uma crise nos negócios ou um pânico silencioso, e que os exércitos dos desempregados serão maiores no próximo inverno e as filas do pão mais longas... Tomei meu café da manhã. Parecia tolice, mas tomei-o com apetite. O diretor apareceu com uma garrafa de uísque. Enviei-a para o Corredor da Morte, com meus cumprimentos. O diretor, coitado, receia que se eu não estiver bêbado posso arruinar o espetáculo e desmoralizar sua administração... Vestiram-me a camisa sem colarinho... Parece que sou um homem muito importante hoje. Muitas pessoas parecem repentinamente interessadas em mim... O médico acabou de sair. Ele me tomou o pulso. Perguntei-lhe como estava. Normal... Escrevo esses pensamentos aleatórios e, uma de cada vez, as folhas partem em sua rota secreta para além dos muros... Sou o homem mais calmo na prisão. Sou como uma criança que está para partir numa viagem. Estou ansioso para partir, curioso pelos novos lugares que verei. Esse medo da morte menor é ridículo para quem já esteve tantas vezes nas trevas e viveu novamente... O diretor com uma garrafa de champanhe. Despachei-a para o Corredor da Morte. Estranho, não é? Como recebo tanta consideração neste último dia. Deve ser porque esses homens que vão me matar estão com medo da morte. Para citar Jake Oppenheimer: eu, que vou morrer, devo parecer-lhes algo “terrível”... Ed Morrell acabou de me mandar uma mensagem. Disseram-me que ele passou toda a noite caminhando para cima e para baixo, do lado de fora

dos muros da prisão. Sendo um ex-presidiário, eles o proibiram de me ver para dizer adeus. Selvagens? Não sei. Talvez apenas crianças. Posso apostar que muitos deles terão medo de ficar sozinhos no escuro esta noite depois de esticarem meu pescoço. Mas, a mensagem de Ed Morrell: “Minha mão na tua mão, amigo. Sei que você vai partir com o espírito firme”... Os repórteres acabaram de sair. Eu os verei de novo, e pela última vez, do cadafalso, antes que o carrasco esconda meu rosto no capuz negro. Eles parecerão curiosamente nauseados. Estranhos jovens. Alguns deram mostra de que estiveram a beber. Dois ou três pareciam nauseados com a expectativa daquilo que terão de testemunhar. Parece mais fácil ser enforcado do que assistir... Minhas últimas linhas. Parece que estou atrasando a procissão. Minha cela está repleta de oficiais e dignitários. Eles estão nervosos. Querem que a coisa acabe. Sem dúvida, alguns têm compromissos para o jantar. Estou realmente à ofendê-los ao escrever estas poucas palavras. O Pastor pediu mais uma vez para estar ao meu lado no fim. Coitado — por que iria eu recusar-lhe tal conforto? Consenti e ele agora parece contente. Tais coisinhas tomam felizes alguns homens! Eu até poderia parar e gargalhar por cinco minutos, se eles não estivessem com tanta pressa. Aqui encerro. Posso apenas me repetir. Não existe morte. A vida é espírito e o espírito não morre. Só a carne morre e passa, sempre seguindo a alquimia das paixões que a tornam realidade, sempre plástica, sempre a se cristalizar apenas para se diluir no fluxo e se cristalizar em formas novas e diferentes, que são efêmeras e se diluirão no fluxo. Só o espírito permanece e continua a se construir através de sucessivas e infinitas encarnações enquanto caminha na direção da luz. O que serei quando viver novamente? Eu gostaria de saber. Eu gostaria de saber...

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