IVAN BYSTRINA - Tópicos de Semiótica Da Cultura

June 15, 2019 | Author: Ariana Nascimento | Category: Rapid Eye Movement Sleep, Information, Semiotics, Sleep, Ciência
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IVAN BYSTRINA - Tópicos de Semiótica Da Cultura...

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CISC- CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA D A MÍDIA

Tópicos de Semiótica da Cultura Aulas do Professor Ivan Bystrina – Maio de 1995 – PUC/SP Tradução: Prof. Dr. Norval Baitello Jr. e Sônia B. Castino

2009

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TÓPICOS DE SEMIÓTICA DA CULTURA1 Prof. Ivan Bystrina AULA Nº 01 - 03/05/95

APRESENTAÇÃO O prof. Ivan I van Bystrina nasceu na Tchecolosváquia, Tchecolosváquia, onde  formou-se em Ciências Políticas. Fez doutorado em  Moscou nesta mesma disciplina. Retornando à Tchecolosváquia, assumiu a direção de um dos institutos da Academia de Ciências daquele país.  Engajou-se no processo político de liberação e exerceu  práticas políticas visando a um socialismo democrático. Isso veio a custar-lhe, em 1968,  perseguição e exílio na República Federal Alemã, onde  permaneceu por vinte anos. durante este período,  Bystrina deu continuidade aos estudos de Cibernética, Teoria da Informação, Teoria dos Sistemas e Lógica, que havia iniciado em Moscou. Tudo isso vai resultar no desenvolvimento de um sistema próprio de semiótica da cultura, que toma corpo em meados dos anos 70 na Universidade Livre de Berlim, onde ele é hoje Professor Emérito. Seu livro sobre semiótica da cultura, editado em 1989, encontra-se esgotado e é uma das raras bibliografias fundamentadora sistematizadora desta disciplina. Uma segunda edição será relançada na Alemanha e aqui no Brasil teremos em breve o lançamento de uma edição especial em  português.

 Neste curso, que ora iniciamos, falaremos sobre o tema “códigos” e em especial sobre códigos culturais ou códigos terciários, começando pelos conceitos básicos de signo e semiose.

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 Texto digitado e formatado por Aline Rodrigues da Silva a partir do pré-print editado em 1995 pelo CISC. Finalizado em 23/02/2009. Revisão feita a partir do original

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SOBRE O SIGNO E O TEXTO

Em nossa escola de Semiótica da Cultura, entendemos por um signo um objeto material que é produzido por um produtor de signos (isso é importante: não existe um signo que não seja  produzido por um ser vivo), que seja recebido por um receptor, e interpretado por esse receptor. receptor. Esta é a chamada dimensão pragmática   da semiose (produtor do signo/emissor, signo e receptor de signo). A dimensão mais importante é a dimensão semântica entre signo e o significado. Existe também da dimensão sintática entre os diferentes signos. Assim nascem os textos como complexos significativos, com sentido; compostos de signos. Estes signos pertencem a linguagens que se compõem de diversos sistemas de signos. Mas isso não  basta. Existe ainda o universo do código, que é um sistema de regras, de vinculações entre os signos. O signo tem de ser capaz de ser percebido pelos sentidos, tem de ser produzido por seres vivos – animais ou homens – recebido e interpretado por receptores igualmente vivos. Cada objeto conhecido por nós contém em si uma informação latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos. Neste momento aquela informação latente modifica-se e se transforma numa informação atualizada. Por isso tudo o que percebemos já é uma informação atualizada do objeto. Os signos são objetos especiais porque não contem apenas informações sobre si próprios, mas também informações sobre aquilo que está imanente dentro dele. Dizemos que textos são complexos de signos com sentido. Os textos e signos em si  preenchem uma função comunicativa, uma função de participar, de informar – no sentido amplo da  palavra. Mas eles preenchem também outras funções como por exemplo a função estética, ou emotiva e expressiva, ou ainda outras funções sociais.  Nós já encontramos vestígios muito antigos de textos humanos, em épocas mais remotas ainda do processo de hominização. Alguns desses textos foram preservados até a nossa época e outros perderam-se. Nós não sabemos, por exemplo, como era a mímica e a gestualidade das  pessoas em épocas remotas, como eles começaram a falar, ou mesmo como se dava o dialogo entre ritmo, melodia e dança.

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Os mais distantes vestígios dos textos culturais aparecem nos restos e nos ritos de sepultamento. Sabemos, por exemplo, que o homem de Neanderthal depositava flores em seus túmulos, pois ainda encontramos pólen dessas flores, como acontecido na Turquia. Mais tarde, foram comprovados três tipos de textos pré-históricos: a  pintura no paleolítico, feitas especialmente nas cavernas utilizadas como templo e não como moradia, as técnicas de gravura na pedra e as  pequenas estatuetas feitas de chifres,

ossos, etc.

De acordo com a função predominante no texto, podemos dividi-lo nas seguintes categorias: 

Textos instrumentais, cuja função primordial é atingir um objetivo instrumental, técnico e cotidiano, pragmático



Textos racionais, que são textos lógicos, textos matemáticos, textos das ciências naturais



Textos criativos e imaginativos, como os mitos, os rituais, obras de arte, utopias, ideologias, as ficções, etc.

A existência de textos instrumentais, evidentemente, pode ser atestada no mundo animal e  pressupõe-se que já esteja presente nos estágios elementares do desenvolvimento do homem. Esses textos formam o conjunto das atividades fundamentais para a sobrevivência do homem como espécie. O predomínio dos textos racionais só vai dar em períodos posteriores, muito mais recentes nas chamadas culturas civilizadas como por exemplo, na antiga Grécia e na antiga China. Os textos exercem sempre mais de uma função, muitas vezes simultaneamente. Mas no centro da cultura humana situam-se, naturalmente, os textos imaginativos e criativos . São esses os textos de que o homem necessita não apenas para a sua sobrevivência física e material – que pode também ser garantida pela técnica – mas para a sua sobrevivência psíquica. Desde o princípio, o homem sempre foi um ser muito sensitivo, frágil e manteve essas características até mesmo nas chamadas culturas civilizadas. Isso pode ser percebido mais claramente no comportamento comportamento dos aborígenes e é fácil constatar a fragilidade dessas dessas culturas no contraste com as demais. Entendemos por cultura todo aquele conjunto de atividades que ultrapassa a mera finalidade de preservar a sobrevivência material. Ela é constituída de coisas aparentemente supérfluas, inúteis. Se vocês leram Leroi-Gourhan viram que ele trabalha nessa perspectiva. O que podemos dizer de novo sobre a cultura é que, no seu cerne pulsante, ela existe para si mesma, ou seja, a cultura é pela 4

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cultura. Apenas na sua periferia, nas suas margens é que ela se torna algo que serve para outras finalidades. A única telenomia, portanto, seria a superação de medo existencial. E esse medo tem a ver com as variações do biótipo a partir das modificações ocorridas com a transferência da vida nas matas para a vida nas savanas, onde o perigo vem de todas as direções vislumbradas do horizonte.

OS CÓDIGOS E OS TEXTOS 2 Primeiramente são ativados os códigos primários.   São códigos que regulam toda a informação presente no organismo, e, portanto, na vida biológica. O código genético é um deles; ele atualiza o homem, seus talentos especiais, seus dons ou seus defeitos. Todas as atividades têm seus códigos primários; não só a percepção, o pensamento, as emoções, a vontade. Os códigos primários são suficientes para a transmissão de informações, mas não para a produção de signos. Já os textos são elementos produzidos de acordo com padrões estruturais adequados, de acordo com as regras, tais como são construídos os “types”. As regras para composição dos textos provém de códigos secundários, os códigos da linguagem. A gramática de uma linguagem natural, por exemplo, ainda não é cultura, pois tem a ver apenas com a técnica. Os códigos secundários (a gramática das línguas chamadas naturais) assim como os códigos primários, não são ainda a cultura. Somente a partir dos códigos terciários, ou culturais, é que surgem os textos da cultura. O que para os códigos primários é uma necessidade – por exemplo, a oposição entre claro e escuro – só é realizado pela atuação de um código secundário – a construção gramatical da frase,  por exemplo. Na esfera dos códigos códigos terciários, a informação informação binária dos códigos códigos secundários secundários significa muito mais.

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O professor não utilizou as expressões hipolíngüistico, lingüístico e hiperlíngüistico. Ao invés, usa as variantes  primário, línguas. Tanto no inglês como no português a a Linguistica. O pensamento da Semiótica da Cultura, como sabemos, não privilegia a lingüística enquanto base epistemológica. (N.T>)

secundário e terciário, que são mais úteis e menos ambíguas para o uso em outras  palavra language ou língua e o adjetivo referente a ela tem um forte vinculo com

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As oposições que mencionamos como, dia/noite ou claro/escuro, são mais que uma necessidade técnica de comunicação ou expressão lingüística adequada. Vistas pelo eixo cultural, vão até a estrutura mais profunda do texto. Por exemplo: têm a ver com os bons aos maus espíritos, com o céu e o inferno, com uma visão luminosa como teve Jesus, até o medo primordial do reino das trevas. Os códigos terciários, segundo sua estrutura, origem e desenvolvimento, tornam-se, assim, a questão primordial, a questão cardinal da Semiótica da Cultura. Um dos problemas mais importantes quando o homem tenta dar conta da sua existência é saber como ele chegou a sua materialidade atual, como ele foi no passado e como conseguiu mostrar-se a altura das exigências que lhe foram impostas nesse percurso. É por isso que os estudos de Arqueologia, Antropologia e Semiótica da Cultura constituem algumas das maiores e mais importantes contribuições para se pensar o futuro da humanidade. Os códigos primários – código genético e códigos metabólicos, por exemplo – são  portadores de informações que estão dentro do corpo. Os códigos primários não processam signos, mas informações. Os códigos primários também regulamentam as informações. A cor de uma flor transmite uma informação segundo a qual os pássaros e os insetos se orientam. Mas essa informação ainda não é signo, é um pré-signo. O que falta para que ela se torne um signo é a intenção: a planta não tem a intenção de ter uma cor; essa informação está contida no seu código genético. Precisamos entender de forma ampla o termo intenção; não apenas na esfera das vontades conscientes, mas também nas esferas das vontades inconscientes. Um trabalhador, por exemplo, coloca-se numa posição subalterna em relação ao seu chefe e produz, conscientemente, diversos signos de cortesia e respeito na relação com ele. Mas a expressão corporal, os signos corporais de submissão já são da esfera da intenção do inconsciente. A informação que vem do inconsciente, como já disse Freud, é uma informação básica,  primeira, e também é intenção, também é intencional. Algo na psique produz essa intenção. Talvez, para diferenciar a informação sígnica – para diferenciar a informação e o signo – devemos esclarecer que o signo é portador da informação, mas nem toda a informação é um signo . O signo porta informações não apenas sobre aquilo que designa ou representa, mas também sobre si  próprio. Isso é importante para o artista, no caso da função estética do signo. 6

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Existe um princípio de estruturação que da conta de como a informação se estrutura. Não se trata de uma simples percepção diante de uma casa ou de um objeto qualquer, mas de uma  percepção de como esses objetos se organizam. Um bom romance, por exemplo, não é aquele que atende critérios de verdade social, mas é aquele que se estrutura de tal forma que as estruturas se evidenciam como informação. O texto artístico precisa, portanto, dizer alguma coisa sobre si próprio.

SOBRE A INTENÇÃO

É claro que o receptor tem também uma intenção consciente ou inconsciente, mas ele também deve estar aberto aos estímulos que chegam até ele. Eu posso, por exemplo, conversar que absolutamente não me ouve porque simplesmente não tem a intenção de me ouvir, consciente ou inconscientemente. O processo de informação unilateral e o processo de comunicação são coisas diferentes. Apenas sob a influência de um receptor é que o produtor pode se tornar produtor. No caso de um best seller , por exemplo, tanto o autor como o editor vão sofrer as influências do público. Eles já conhecem antecipadamente o que o público está esperando, a partir daí existe um condicionamento da resposta do autor e do editor.  Na dinâmica do processo sígnico existem elementos-chaves nos quais se estabelecem as relações. Nas teorias semióticas clássicas são sempre três elementos: o interpretante, o signo e o objeto acerca do qual a informação se refere. Existe, porem, uma diferença entre o produtor do signo e o receptor do signo. Numa  primeira etapa a informação parte do emissor para o receptor; na outra se dá ao contrário.

ESTRUTURA BÁSICA DOS CÓDIGOS TERCIÁRIOS

A estrutura básica dos códigos terciários se baseia em experiências, mas também em hipóteses. Partimos de conceitos desenvolvidos especialmente pelos russos e pelos estruturalistas do 7

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Círculo de Praga. Em relação a esta questão especifica, refiro-me a Lotman e Roman Jakobson. Apresentaremos agora alguns pontos dessa estrutura básica.

I – BINARIEDADE

A estrutura básica dos códigos terciários é, em geral, binária ou dual. Esta concepção fundamenta-se na troca, no intercambio que acontece no mundo material. Baseia-se, portanto, na observação do mundo físico, a primeira realidade. Esta binariedade existe em consonância com os códigos também binários. Isso significa que tanto no mundo da informação, regulamentado pelos códigos primários, quanto no mundo da linguagem, da língua (códigos secundários), a construção destes códigos se dá em oposições  binárias.  No início da cultura humana a oposição mais importante era vida-morte. E toda a estrutura dos códigos terciários ou culturais se desenvolveu a partir dessa oposição básica: saúde/doença,  prazer/desprazer, céu/terra, espírito/matéria, movimento/repouso, homem/mulher, amigo/inimigo, direita/esquerda, sagrado/profano, paz/guerra, revolução/contra-revolução, liberdade/prisão, igualdade/desigualdade, justiça/injustiça (justo/injusto) e dominação/ausência de dominação – que em última análise significa anarquia, conceito conotado como negativo: muito embora possa ser revertido. Tais oposições binárias dominam com enorme força o pensamento da nossa cultura  particular e o desenvolvimento da cultura em geral.

II – POLARIDADE

A estrutura binária dos códigos culturais terciários é como vimos, organizada em  polaridades. Desde seu princípio o binarismo é valorado polarmente. A necessidade de dar valor vem em primeiro lugar para, logo a seguir, subsidiar a decisão. A polaridade existe, portanto, para facilitar a decisão, a atitude, o comportamento, a ação. E elas surgiram, evidentemente, de situações  práticas da vida. Assim cada pólo recebe um valor. 8

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Um bebê, no momento do nascimento, grita. Por que ele grita? Porque percebe a mudança de um ambiente entre o interior do útero materno e o ambiente externo, aéreo. Ele sente a perda do  prazer de estar num ambiente interno e o desprazer de um ambiente externo. Depois vem os sofrimentos da fome e o prazer de ser amamentado. As polaridades também podem ficar evidentes nas situações do começo e de fim, como nos mostra a oposição vida e morte. A vida é, ela própria, uma resposta para essa polaridade. Todo o ser vivo possui uma tendência potencializada para a preservação e a permanência, enfrentando as adversidades que ameaçam esse objetivo. O homem, portanto, começa a demarcar os pólos binários desde o início de sua existência. E ele o inicia nas situações de desprazer, como por exemplo, quando há uma pedra no caminho, uma situação de perigo. Onde não existe perigo não há sinal, não há desafio. Isso significa que os conceitos, idéias ou objetos que não possuem seu correspondente pólo negativo não podem ser sinalizados, não podem ser demarcados. Esta é segunda característica dos códigos terciários.

III – ASSIMETRIA

A estrutura binária e polar é claramente assimétrica. O pólo marcado ou sinalizado negativamente é percebido ou sentido muito mais fortemente do que o pólo positivo. Portanto, do  ponto de vista da preservação da vida, é sempre o pólo negativo (a morte) que comemora a vitória. Esta é a assimetria: a morte é mais forte que a vida, na percepção comum. Por isso, em todas as culturas o homem aspira sempre a uma imortalidade, ou seja, a vida após a morte. As estruturas binárias funcionam como diretrizes, indicações, instruções para a ação. Isso  pode ser atingido no mundo físico com forças físicas – como é o caso dos remédios para atingir a cura – e por meio de comportamentos “irracionais”, onde opera uma segunda realidade, a realidade imaginária, que se utiliza da magia, como fazem os xamãs e os pajés. Os estruturalistas, especialmente Levi-Strauss, nos mostraram que a solução para as oposições assimétricas são concebidas na esfera nítida e ideológica, realizadas em rituais sociais, cotidianos, rituais sagrados e profanos. Os textos culturais permitem a eliminação das oposições através de algumas possibilidades de solução.

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A primeira possibilidade é a de que as oposições binárias são eliminadas através da identificação. Num provérbio do antigo Egito temos um exemplo: o que está acima também está abaixo. Daí nasce uma ligação necessária entre o céu e a terra, e da terra com o

mundo inferior.

A segunda possibilidade é a supressão da negação. As oposições são conectadas em sistemas pluricompostos, não apenas binários. Isso possibilita que os pólos possam ser caracterizados ora positivamente, ora negativamente. A primeira ligação das oposições binárias se dá, naturalmente, na tríade. Por exemplo: na tríade Céu, Terra, Inferno. Quando fazemos uma associação binária, o céu é marcado como positivo (o mundo dos deuses imortais) e a terra como negativo (o mundo dos mortais). Quando tomamos o conjunto  binário terra e inferno, temos novamente uma oposição, onde a terra, onde anteriormente negativa, torna-se o elemento positivo à vista do inferno, o pólo negativo. Assim na tríade, o componente intermediário (terra) recebe ambos os sinais (positivo e negativo), e com isso a negação é suprimida. Isso que aqui acabei de mostrar é chamado de Árvore do Mundo ou Árvore da Vida. Em todas as culturas nós encontramos uma árvore do mundo ou da vida. A terceira tentativa, muita radical, de suprimir a polaridade é a inversão. A inversão é uma troca dos pólos opostos. Por meio da inversão, a força do negativo deve ser superada, ou então “engajada” e isso acontece nas situações em que o negativo se torna insuportável ou insuperável. Vejamos um exemplo disso: um caçador indígena em sua relação com a caça situa-se no pólo  positivo superior e para ele isso é vantagem. O mesmo ocorre em relação à pesca: o caçador está acima e o animal abaixo. Mas em relação à uma águia – que para os mitos indígenas é extremamente importante – a posição do animal é factual e miticamente superior, ou seja, ela sempre estará acima. Assim, o caçador indígena precisa realizar uma inversão das posições. Ele se deita sobre a terra e coloca sobre si uma presa (para atrair a águia) numa posição superior à sua  própria; assim, a águia precisa descer da sua posição para alcançar a presa. No momento em que a águia está abaixo, o que seria uma desvantagem para ela, pode ser capturada e morrer,  provavelmente, com o pescoço torcido. É importante notar que nessa operação não pode haver sangue, elemento associado ao pólo negativo. Originalmente o sangue é negativo, mas em algumas situações, como a que acabamos de descrever, as duas faces do objeto ficam claramente expostas: o sangue como expressão da vida e o sangue como expressão da morte. Primordialmente as línguas apresentavam duas palavras para 10

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designar sangue: o sangue “vivo” (sangue) e o sangue “morto” (cruel). Assim também acontece nas situações de transição da vida para a morte, principalmente naquelas que passam pelo esgotamento do sangue. O mesmo ocorre com a palavra amanhecer. Originalmente havia duas expressões para ela, uma negativa e outra positiva. Estas séries positivas e negativas constroem paradigmas, sintagmas, através dos quais pode-se associar sangue, desprazer, morte, e assim por diante. Bem, o exemplo do caçador seria um exemplo de inversão. Também em nossos dias vivenciamos tais inversões. Um exemplo: nas ditaduras o povo percebe o autoritarismo como negativo; no entanto na ideologia marxista a ditadura do proletariado é conotada positivamente e entendida como parteira da sociedade do futuro. Há, portanto, uma patente inversão. Outras soluções para a polaridade são os artifícios da união dos pólos opostos e da mediação dos opostos por um elemento intermediário. Assim, no exemplo da construção triádica do mundo (céu, terra, inferno), a terra seria o elemento de união entre céu e inferno. E assim são construídas transições simbólicas entre céu e o inferno. Nossa opinião é a de que os primórdios da religião são xamanistas, e que para o xamã são muito importantes o vôo para o alto e a viagem para baixo. Assim fechamos nossas considerações sobre as questões básicas dos códigos terciários, sua estrutura e as operações de superação.

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AULA Nº 02 - 10/05/95 PARTE I – SOLUÇÕES SIMBÓLICAS PARA A ASSIMETRIA  Na última aula falamos sobre os códigos culturais e a sua estrutura. Vimos que essa estrutura desenvolveu dentro de um princípio invariante para todas as culturas. Vimos também que, pelo fato dessa estrutura ser necessariamente assimétrica, apresentando um pólo negativo mais forte do que  positivo, os seres humanos procuraram soluções para essa assimetria. Assim, foram criados padrões de solução que se desenvolveram paralelamente ao desenvolvimento dos próprios códigos culturais. Vamos retomar agora alguns exemplos desses padrões de solução. A primeira possibilidade, a mais simples, é a identificação dos pólos. Como exemplo, podemos mencionar uma solução encontrada já no antigo Egito: “O que existe acima, também existe abaixo”. A segunda possibilidade é o encadeamento de oposições binárias em oposições  pluriarticuladas através de tríades a partir de duas oposições binárias. Da oposição céu/terra e da oposição terra/inferno nasce a chamada árvore da vida. Dentro das oposições, o céu recebe sinal  positivo em relação à terra, que recebe o sinal negativo; mas a terra, em relação ao inferno passa a receber o sinal positivo diante do sinal negativo do inferno. Assim nasce a ambivalência de certos conceitos. A terra, no exemplo dado, passa ser ambivalente, recebendo o sinal positivo e o sinal negativo em relação aos seus dois pares – céu e inferno. A tríade, em geral, passa a ter um uso praticamente universal enquanto modelo, inclusive na  própria filosofia, como podemos observar em Hegel, Marx, Pierce e Popper. A próxima possibilidade de solução da assimetria, a solução mais radical, é a inversão, a inversão dos pólos opostos: aquilo que estava acima é colocado abaixo e aquilo que estava abaixo é colocado acima. Na última aula vimos o exemplo do caçador de Levi-Strauss: na caça à águia, que simboliza a altura, o caçador cava um buraco e se coloca abaixo da superfície da terra, depositando uma isca sobre seu próprio corpo. Quando a águia desce para apanhar a isca, o caçador a apanha e torce o seu pescoço, para que não haja sangue. Essa operação não pode estar ligada ao sangue 12

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morto, por isso quando os índios dela participam não podem ter contato com o sangue de nenhuma espécie, inclusive com sangue da menstruação, sendo impedidos de manter relações sexuais. Existe, ainda, um padrão de solução da assimetria onde os pólos são unidos por elementos intermediários ou mediadores. A árvore da vida vincula regiões separadas, distantes umas das outras. Com isso ela possibilita transições simbólicas de um estágio para outro, em especial a viagem ao céu ou ao inferno, como é apresentada incondicionalmente pelos xamãs, ou mesmo no  Novo Testamento na figura de Jesus Cristo. Também os ritos sacrificiais fazem parte do universo da mediação. Quais são os pólos opostos neste rito? Os dois pólos podem ser representados por aquele que se oferece ao sacrifício e a divindade. O objeto do sacrifício – a vítima – deve vincular-se a quem oferece o sacrifício a divindade. É por isso que a mediação se faz pela presença tanto do sacerdote quanto do animal sacrificado. Eles ficam entre quem oferece o sacrifício e a divindade. Há, portanto, dois mediadores nesta situação: o sacerdote e o animal (ou em alguns casos, o sacrifício humano). Como invariantes, os velhos e arcaicos mitos e rituais são reanimados pelas culturas contemporâneas nas seitas, ou mesmo simbolicamente sob outras formas. As oposições ou pares opostos apresentam grandes complexos estruturados. Entre os pólos existem, na maior parte das vezes, amplas zonas intermediárias onde imperam a indecisão – ou a incerteza – e a  plurisignificação, a plurivalência. Isso provoca conflitos e temores. O amanhecer pode ser visto como ameaçador, por exemplo, entre os berberes do norte da África. Quando um berbere levanta de manhã para ir ao trabalho, ele fica atento para passar pela  porta com o pé direito. Depois de ter isso, e de estar consciente do que fez, volta atrás e passa uma outra vez com o pé esquerdo. Este é um exemplo de ritualização das zonas intermediárias, e também tem a ver com a  porta enquanto zona intermediária. Todos esses detalhes referentes aos mitos são sacralizados e ritualizados. O caso que acabamos de ver não fica restrito apenas às portas: eles têm a vê com todas as entradas de uma casa, às janelas e às chaminés. Vejamos esse exemplo: o diabo entra sempre pela chaminé 3. O diabo também aparece sob a forma de um cão preto, como em Fausto. Gogol apresenta caras assustadoras 3

 O dia 1 de Janeiro na Europa é o dia do limpador de chaminés, uma pessoa com macacão todo preto que é símbolo de sorte.

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que olham para dentro através da janela. Nesse simbolismo da janela não é apenas a luz que entra, mas também as figuras assustadoras. Para separar as áreas opostas uma das condições é o estabelecimento de fronteiras nesta zona intermediária e perigosa. Tais fronteiras são declaradamente sagradas e se constituem em obstáculos entre as pessoas que se situam em ambos os lados. No nosso século o homem tenta libertar-se dessas fronteiras, eliminando-as. Mas é pela existência delas que podemos separar um  pólo do outro e entendermos o que é o sagrado e o profano, o público e o privado, as classes sociais, os povos, os diversos segmentos da sociedade, etc. A força simbólica da fronteira pode ser confirmada na antiguidade pelo derramamento de sangue. A transposição de fronteiras, passando pela região sagrada e ameaçadora, é regulamentada  por rituais de passagens. Estes ritos tinham sintomaticamente um caráter triádico mágico-rirual. Os ritos de separação, ritos de marginalidade e ritos de agregação , que fazem parte dos mais antigos e

conhecidos ritos, sobrevivem ainda hoje, ainda que sob outras formas, como, por exemplo, sob forma de ritos de iniciação: o batismo, o casamento, o sepultamento, uma defesa de mestrado e doutorado, etc. Todas as operações de que falamos são por nós conhecidas e já foram estudadas, mas podem existir outras ainda não investigadas semioticamente. Um desses casos é aquela que se constitui na construção de uma continuidade progressiva entre os dois pólos – tal como observamos no  yin/yang ocidental. Esta é uma operação eminentemente semiótica que começa a ser investigado pela Semiótica da Cultura.

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QUESTÕES * Sobre a existência de sociedades orais e escrita A escrita ou a gramática da linguagem verbal ainda são uma questão de técnica. A existência de códigos primários e secundários não são indícios de cultura. Somente a partir dos códigos terciários é que surgem textos culturais. Aquele binarismo que para os códigos primários foi essencial – a oposição entre e escuro, dia e noite, por exemplo – só foi possível de ser realizado graças a transformação contínua das sociedades orais para as sociedades escritas. Porém, nas sociedades orais as regras e regulamentos eram mais rígidos e não admitiam mudanças, o advento da escrita incorporou o critério da elasticidade e da provisoriedade nas sociedades humanas 4.

* Sobre a ambivalência do mediador É claro que todo o mediador é ambivalente porque sua função é conduzir, simbolicamente, algo ou alguém de um pólo a outro. Na 1ª realidade esses pólos não poderiam ser unidos porque não haveria um mediador. Os membros intermediários, nos encadeamentos binários, funcionam como elementos de ligação dos elos da corrente. Eles podem ser entendidos como mediador muito embora não possuam essa intenção ou determinação. Também aqui vemos uma semelhança entre a filogênese e a ontogênese. Nos primórdios da evolução humana, o homem não conhecia a ambivalência: algo era ou não era. A ambivalência só vai surgir mais tardiamente. O mesmo acontece com a criança, que diferencia claramente o prazer do desprazer. Só passando pela experiência diária durante muitos anos é que ela vai compreender que uma mesma coisa, pessoa ou atividade podem ser ao mesmo tempo – ou alternativamente – boa ou má.

* Sobre a superação da morte

A vida de um organismo pluricelular sempre com a morte. O fato de que a morte é mais forte que a vida constitui uma assimetria. Apenas com a criação da 2ª realidade, ou seja, de que 4

 Nas sociedades escritas pode-se rasgar o que se escreve e escrever novamente.

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existe uma forma de vida qualquer após a morte. Somente em alguns casos podemos dizer de sobrevivência na 1ª realidade: quando na biologia se afirma, por exemplo, que não são os indivíduos, mas os gens que vencem a morte.

* Linguagem, cultura e texto cultural

Uma linguagem compõem-se necessariamente de dois aspectos: o lexical, que no caso da linguagem verbal é o repertorio de palavras – e de uma gramática, isto é, um sistema de regras de combinação. Os paradigmas são, portanto, fornecidos de antemão. Na linguagem verbal, as palavras são retiradas dos paradigmas e arquitetadas em frases, segundo os regulamentos dos códigos secundários. Os códigos terciários ou culturais participam do processo superpostos aos códigos secundários. Todas as ligações e vinculações entre componentes da cultura supõe uma regulamentação cultural. A cultura para nós é um conjunto, uma totalidade de textos. Todas as obras de artes, rituais, mitos, são textos. Eles são regulamentados gramaticalmente e, alem disso, também culturalmente. É  por isso que existem três tipos de códigos; somente os códigos biológicos, bio-corporais ou  primários não são suficientes para a constituição de signos. Os signos precisam ser regulamentados num outro nível, por exemplo, na língua. Por isso temos os códigos hipolinguais e hiperlinguais. Todo o texto é um sintagma: a roupa que vestimos é determinada culturalmente e sua natureza e combinações obedecem a um conjunto de elementos que fazem parte, culturalmente, da vestimenta masculina ou feminina.

* Sobre os tipos de textos

Hoje em dia não encontramos tão freqüentemente os textos puros. Apenas em textos muito simples, sem grande complexidade, encontramos o que podemos chamar de texto puro: a lista telefônica é um exemplo disso, assim como uma tabela de horários de trens e o manual de instruções de uso de eletrodomésticos. São textos claramente instrumentais que dispensam aspectos imaginativo-criativos. No que diz respeito aos textos racionais, que surgiram, mais tarde na história do homem, eles podem ser diferenciados facilmente dos textos imaginativos. A matemática é um 16

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clássico exemplo de texto racional, temos também as monografias, dissertações e teses. Quando investigamos, entretanto, a teoria da relatividade, com certeza podemos afirmar que ali existe muito de imaginativo e criativo.

* Linguagem, cultura e texto cultural

O espaço da cultura é o campo da sobrevivência psíquica, mas isso não quer dizer que a estrutura psíquica necessariamente interfere no físico. Ao desenvolver seu biótipo, o homem solucionou deficiências: tomou postura vertical, liberou o uso das mãos, etc. por outro lado, passou a ter um medo existencial, algo que não conhecia, quando vivia protegido pela floresta. A migração  para as savanas trouxe, portanto, a necessidade de solucionar o medo através de suas próprias capacidades psíquicas de engendrar soluções. Aí o homem cria a segunda realidade, como uma cura  para o mal existencial. A segunda realidade foi, portanto, uma invenção tardia, construída após o nascimento da linguagem. Os animais têm suas linguagens, mas não possuem cultura. A segunda realidade é, pois, nitidamente um fenômeno psíquico. Não se pode entrar em comunicação com esse nível de realidade sem o suporte físico da produção de signos. Sem o aparelho fonador, sem as mãos, não é possível criar segundas realidades. Mas temos também que considerar que todos os processos psíquicos são produzidos materialmente no corpo.

PARTE II – AS RAÍZES DA CULTURA Tentamos mostrar, até aqui, como se estrutura a cultura. Na sua origem, duas esferas são subumanas: o sonho e o jogo ou brincadeira. As demais esferas surgiram no âmbito mesmo da cultura.

O SONHO

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Os primeiros textos imaginativos e criativos que o ser humano produziu e que todas as  pessoas vivenciam são os sonhos. Já foi comprovado que o recém-nascido sonha muito, mas não temos acesso ao conteúdo destes sonhos. O sonho do ser humano acontece na fase denominada R.E.M. 5 do sono, mas não fica limitado apenas nesta fase. Isso não é privilégio do homem, uma vez que foi constatado que também outros mamíferos sonham na fase R.E.M.. E entre os mamíferos já é possível, até certo  ponto, constatar qual o conteúdo desses sonhos: o cão que dorme mostra no sonho comportamentos como correr, alimentar, morder, mas estas funções elementares aparecem enfraquecidas, suavizadas; o som é mais fraco; o latido, por exemplo, é bem suave. Os mitos nos mostram a grande influência que o sonho tem sobre a cultura. Existe um mito compartilhado pelos aborígenes australianos que evidencia a força criativa do sonho. Nele, o sonho exerce o papel de criador, é o próprio momento da criação de tudo o que existe. Os primórdios da criação, quando todos os seres surgiram, são designados por esses aborígenes como o “Tempo dos Sonhos”. Na sua narrativa, os primeiros seres sonhavam as plantas, o animais, depois desenhavam seus sonhos em rochas e lhes davam alma. A partir dos desenhos na rocha, os seres adquiriram corpo, materialidade. Em muitos outros mitos da criação a atividade artística desempenha um papel muito importante, Javé, por exemplo, é apresentado como um escultor que dá forma à matéria-prima retirada da terra e com seu sopro injeta alma (espírito) nessa matéria. A essência de todos esses mitos é sempre a mesma, é invariante. Entre os povos primitivos  já era conhecida a relação entre sonho, sono e morte. Na mitologia grega, Hipnos, o deus do sono, era irmão gêmeo de Tanatus, o deus da Morte. Xenofonte acreditava que a alma estaria mais livre no sono e podemos supor que, para ele, a psique ficaria mais livre ainda com a morte. Xenofonte acreditava que, em vida, o sono é o momento mais próximo da morte. Em qualquer xamanismo existem as viagens para outros mundos. Na ontogênese, a criança aprendeu pouco a pouco a diferenciar o sonho da realidade. Mas especialmente quando acontece um 5

 O sono R.E.M., ou Rapid Eye Movement (Movimento rápido dos olhos), é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos. Durante esta fase, os olhos movem-se rapidamente e a atividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado. Durante uma noite de sono, uma pessoa normalmente tem cerca de 4 ou 5 períodos de REM, que são bem curtos no começo da noite e mais longos no final. É comum acordar por um curto período de tempo no fim de um acesso de REM. O tempo total de sono em REM ronda os 90 a 120 minutos por noite para adultos. Entretanto a quantidade relativa de sono REM diminui acentuadamente com a idade. Um bebê recém-nascido dorme mais de 80% do tempo total de sono em sono REM; enquanto uma pessoa de 70 anos dorme menos de 10% em sono REM. A média para adultos jovens é 20% do tempo total de sono ser em sono REM.

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sonho assustador, ela não consegue separá-lo da realidade. Para o pequeno, a realidade interior está ligada à realidade exterior. Esse mundo de fantasia é real para a criança. Provavelmente, o mesmo ocorreu na filogênese da humanidade: só tardiamente o homem passou a distinguir as duas realidades. As estruturas básicas do sonho se repetem, ao menos em parte, nos devaneios, nas fantasias da vigília.

O JOGO

O comportamento lúdico pode ser encontrado também entre animais; mas o jogo entre eles, tem uma função especial: o aprendizado. Entre os seres humanos o jogo e as brincadeiras não se limitam apenas à infância; ao contrário, o ser humano aprecia jogos e brincadeiras até o fim de sua vida, até a morte. Os jogos têm a finalidade de nos ajudar na adaptação à realidade, além de facilitar sobremaneira o aprendizado, o comportamento cognitivo. Entre os animais podemos distinguir dois tipos de jogos de movimento: os jogos de luta e os  jogos de fuga. Há também os jogos de representação, quando a mãe cuida do filhote. Porem nas situações de importância vital, nos momentos em que se exige prontidão para a ação, o jogo se interrompe abruptamente. Isso significa que já entre os animais o jogo possui um status diferente da realidade. O comportamento de jogo tem alvo próprio. Como uma das molas propulsoras da atividade do ser humano o exercício lúdico faz parte da procura pelo novo. A criança e o membro de uma sociedade primitiva sentem-se atraídos pelo seu caráter mágico do jogo. Essa curiosidade, ligada à mimesis, à imitação leva, por um lado, para a descoberta de áreas desconhecidas ou ao brinquedo. O jogo se situa no lado de fora do processo da libertação direta; não requer mediação, e supre necessidades. Por possuir características tão peculiares, ele interrompe o processo normal da vida.  Numa situação de jogo, o jogador, diferencia os vários planos da realidade, porque ele sabe até onde vai a realidade lúdica e onde começa a realidade cotidiana. Se não pudesse delimitar tais fronteiras, não poderia sequer jogar. Porem, o comportamento lúdico é restrito a um tempo e um 19

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espaço, limitados um palco, um ringue, um campo de futebol, etc... E somente dentro desses espaços é que o jogo goza de seu pleno significado.  Naturalmente, pode-se também jogar ou brincar no “ilimitado” tanto quanto se consegue. Uma tourada pode sair dos limites da arena e ganhar as vias públicas mas, de certa froma esse exagero já é previsível nas regras daquele jogo especifico, numa época especial do calendário. A delimitação entre jogo e realidade diária tem raízes profundas na cultura. Para a convivência diária, delimitam-se espaços nos quais passam a vigorar regras extremamente rígidas, e que devem ser observadas pelos participantes, os jogadores. Mas também existe liberdade para atuação livre. As seqüências das ações num jogo não são previstas em detalhes, mas são combináveis com relativa liberdade. Isso exige do jogador uma performance engenhosa e criativa. Vemos, assim, que o jogo e a atividade lúdica se formam a partir da necessidade de encontrar, ou inventar, uma resposta livre dentro de determinadas regras e obedecendo a certas fronteiras. O cineasta de um documentário, por exemplo, precisa fazer descobertas a partir de um objeto de regras fixas, o que faz em improvisação livre. As regras, porém, nem sempre são formuladas explicitamente em todos os jogos. A criança que brinca de mãe com a boneca o faz sem regras previamente definidas. A criança se entrega à situação lúdica, e o faz improvisadamente, livremente. Ela se coloca em um papel, cuja característica essencial é o afeto. Nos jogos em que as regras são explícitas, os papéis não são desempenhados apenas de forma ficcional, mas também com prazer, prazer de jogar. O jogador sabe perfeitamente que a realidade do dia-a-dia não contém tais regras. O jogo promove uma transição voluntária para a segunda realidade. Jogo e seriedade não se excluem decididamente, mas se condicionam. Quando se joga, o mundo em torno é concebido de maneira diferente. Objetos da primeira realidade são colocados na segunda, sob influência da imaginação. Porém, como esses objetos possuem certas propriedades para responder ao novo estatuto, elas lhes são atribuídas ficcionalmente pelos jogadores. Assim é possível compreender isto quando vemos que as crianças dão qualidades imaginativas aos objetos inanimados. A boneca, por exemplo, nem precisa ter a conformação de uma boneca ... pode ser até mesmo um pedaço de pano. As crianças fazem desses materiais portadores de desejos e fantasias.

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O mais destacado autor que escreveu sobre a atividade lúdica, junto com Caillois 6, é o Huizinga7. Ele vê a cultura intrinsecamente ligada ao jogo. Depois que a cultura se constituiu, o  jogo se tornou um de seus mais influentes fatores. Huizinga acha que as grandes atividades originais da espécie humana são todas entremeadas com o lúdico. Ao lado do sonho, o jogo é aquela atividade na qual a vida cultural já está presente em germe. A quantidade das atividades de tipo lúdico não é dificilmente mensurável: esportes, jogos de luta, torneios, jogos de erudição, circo, carnaval, mascaradas, dança, balé, pantomima, teatro, etc.

QUESTÕES

* Sobre a cultura e o jogo

A segunda realidade é um jogo, mas também é um sonho ou uma visão. A pluralidade, a diversidade da segunda realidade é maior ainda do que a da primeira. Na verdade, ela é um acréscimo à primeira realidade.

* Sobre razão e cultura A cultura não é tanto uma questão de razão, embora a razão também participe ativamente. A cultura é condicionada essencialmente pelo inconsciente.

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 CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens - A máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.  HUIZINGA, Johan Homo Ludens - O Jogo Como Elemento da Cultura.

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AULA Nº 03 – 17/05/95 PARTE I – INCONSCIENTE E CULTURA

Em Berlim, durante os anos 70, ocupando-nos primeiramente em reconstruir as categorias centrais e os conceitos fundamentais da Semiótica. A terminologia já existia, mas era parcialmente inconseqüente e contraditória. Assim, eram múltiplos os conceitos de signos e de sistema de signos. Palavras, imagens, obras de arte, movimentos sígnicos, atitudes sígnicas, tudo isto era agrupado em sistemas de classificação e sistemas de signos que designávamos, com razão, de linguagem. Tratava-se desde então da concepção semiótica da linguagem, e não apenas de lingüística. Era um tipo de “langue” semiótica. Diante de nós se estendia um amplo e colorido espaço que compreendia por um lado o estudo da comunicação entre os animais e, por outro lado, as investigações sobre a cultura humana. Ao léxico, ou repertorio de signos de cada linguagem, correspondem sistemas de regras. Para tais sistemas reservamos a terminologia “código”. E sob a atuação das regras dos códigos surgiam os textos, complexos significativos de elementos sígnicos que constituem, conjuntamente, a assim chamada “parole” de Saussure. Cada signo possui seu significado, sua referencia, intensidade extensibilidade ou extensão.  Nós podemos dizer que “intensidade” (ou intenção, sinn) corresponde a “sentido” e a “extensão” (bedeutung) corresponde ao “significado”, utilizando a terminologia de G. Frege. Da mesma forma, os textos têm seu significado e conduzem, levam, portam mensagem 8. Assim, como cada texto pode ter diversos significados, sentidos múltiplos, num texto complexo surgem também diversas mensagens. Elas se armazenam a maneira de camadas superpostas umas às outras, partindo das mais simples e superficiais às estruturas mais profundas e complexas. 8

Para um melhor entendimento dos conceitos de “intensão” (com s) e “extensão”, ver esses verbetes em Encyclopedic Dictionary of

Semiotics, de Thomas Sebeok.

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A análise em profundidade de textos culturais, a descoberta de mensagens ocultas e a interpretação dos textos são atividades que constituem o que há de mais importante no trabalho da semiótica da cultura. Ao lado dos textos instrumentais com finalidades utilitárias, distinguimos textos racionais, matemáticos e lógicos e, por fim, textos imaginativos e criativos como mitos, rituais, obras de arte, utopias, ideologias, ou seja, os textos culturais propriamente ditos, que formam sincronicamente a cultura humana. De acordo com Juri Lotman, concebemos a cultura como o conjunto sincrônico dos textos imaginativos e criativos. Por arte entendemos o conjunto de textos cuja função dominante é a função estética. Isso significa que são textos cuja função primeira é a informação sobre si mesmos, sobre a sua própria estrutura, deixando em pleno secundário a informação sobre o significado. Por isso, a questão central, no caso dos textos estéticos, artísticos, não é a questão da verdade, mas a questão da sua própria estrutura. A arte situa-se no centro da cultura e as criações artísticas são elementos centrais no conceito de cultura que podemos enunciar como: manifestação sígnica da segunda realidade, armazenada em textos e transferida para fora, que foi criada pela imaginação,  pela criatividade e pela fantasia humanas.

Esta é a definição mais genérica que já formulamos. O mundo dos objetos se decompõe segundo a natureza, a técnica e a cultura. A antiga oposição natureza/cultura foi ampliada para uma tríade, como é comum na árvore da vida (céu, terra, inferno), em Hegel e outros filósofos, ou nos 03 mundos de Popper.  No mundo das atividades humanas, evidencia-se a diferença entre os textos culturais e os artefatos técnicos civilizatórios como máquinas, ferramentas, armas, objetos e utensílios. Já na transição dos caçadores e coletores (estes principalmente mulheres) até as altas civilizações, e especialmente hoje, a técnica não é ambivalente para a natureza 9 e, principalmente, para o homem. Mas ela, a técnica se torna ameaçadora, assustadora mesmo. Os fantasmas da hipertecnização e da catástrofe ecológica confirmam a nossa decisão de não classificar a técnica como conceito maior da cultura. Diante de nós colocava-se uma tarefa teleonômica. Havia necessidade de explicar a evolução e a emergência da cultura humana. A partir da analise das condições pré-culturais, em 9

 A técnica é ambivalente porque oscila entre ser um bem ou um mal para a natureza

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especial da mudança violenta do biótipo, nasceu a base para uma sustentável hipótese de desenvolvimento. Já no ano de 1915, em sua obra Considerações contemporâneas sobre guerra e morte, Sigmund Freud elaborou uma forte hipótese sobre o papel da consciência da morte no surgimento da cultura. Isso ocorreu, portanto, muito antes de outros observarem o fato. Freud escreveu: “ A própria morte era para o homem primitivo, certamente tão inimaginável e irreal como  para cada um de nós ainda hoje. Resultou para ele, no entanto, num caso que se tornou extremamente significativo e rico em conseqüências que agem à distância. Esse caso ocorria quando o homem quando o homem arcaico via um de seus familiares morrerem: a sua mulher, a sua criança, o seu amigo, que ele com certeza amava como nós amávamos os nossos. Assim ele teve que tomar conhecimento na prática, dentro de sua dor, de que ele também poderia morrer. E todo o seu ser rebelou-se contra esse fato. Cada um destes seres amados era, assim um pedaço do seu próprio e amado “eu”. O homem não conseguiu afastar a morte de si próprio, pois ele tinha experimentado a dor pelos seus mortos, mas não queria aceitar uma vez que ele não podia imaginar a si próprio morto. Assim, fez acordos, aceitou a morte também para si próprio, mas contestou o significado da destruição da vida. Ao cadáver da pessoa amada ele atribuiu o sentido de espíritos, juntamente com o seu, a sua consciência de culpa ou de satisfação que estava mesclada com o luto. Isso teve como conseqüência o fato de que estes espíritos então criados tornaram-se maus demônios diante dos quais se teria que temer. As modificações físicas da morte aproximavam dele a decomposição, no sentido de separação do individuo em um corpo e uma alma (ou então originariamente, mais de uma alma). Desta maneira, o fluxo do seu pensamento caminhava  paralelamente ao processo de separação ou classificação introduzido pela morte. A recordação duradoura dos mortos tornou-se o fundamento da suposição de outras formas de existência, e deu a ele a idéia de uma continuidade depois da morte aparente.”

 Nos anos 60, o biólogo Theodosius Dobzhansky associou a evolução da autoconsciência do homem à consciência da morte. Diferentemente dos animais, o homem espera a morte dos seus  próximos e de si próprio. A inexorabilidade da morte, que ameaça de todos os lados, o tortura e ele têm de se reconciliar (ou se conciliar), durante a sua vida, com seu o fim.

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A defesa contra a morte não é possível dentro do espaço da segurança material, por meio de técnicas curativas. A técnica que pode fazer a vida mais agradável ou mais segura consegue apenas  prolongar a própria vida, enquanto a morte desafia sem tréguas, a consciência. A narrativa dos processos psíquicos originários, para tornar-se culturalmente ativa e eficiente, deve ser transmitida na forma sígnica, como textos e mitos e transportada de geração a geração. Investigando esses textos e mitos, constatamos que as estruturas da segunda realidade,  primariamente armazenadas no inconsciente, surgem através de um processo expressamente criativo. A cultura surge como uma segunda realidade já inscrita na primeira (física). Surge de forma operativa para resolver impasses e problemas incontornáveis decorrentes da natureza do mundo físico. Em 1919 – e mais tarde em 1930 – em sua obra O mal estar na cultura 10 , Freud afirma que a valoração estética de uma obra de arte, assim como a interpretação e a análise do talento artístico dependem do tipo de cultura em que a arte se realiza. Afirma, também, que a ciência da estética investiga as condições nas quais o belo é percebido, ou é sentido. Sobre a natureza e a origem da  beleza, entretanto, Freud não diz nada. Como é de costume, a falta de resultados efetivos na investigação desse conceito é ocultada por palavras vazias, mas tonitroantes... Infelizmente, Freud pensa que a psicanálise sabe muito pouco a respeito da estética. Apenas a derivação da área da percepção ou do sentir sexual aparecem assegurados em sua teoria. Este seria um exemplo modelar de movimento inibidor. A beleza e a atração são segundo Freud, originariamente qualidades do objeto sexual. Elas estão aparentemente associadas a características e marcas sexuais secundarias. Depois de Freud, os psicanalistas seguiram o caminho do impulso inconsciente, para explicar a realização dos desejos ou dos anseios na obra de arte. Eles aprenderam o efeito afetivo da obra de arte sobre o fruidor, e naquilo que diz respeito ao próprio artista, tendiam a explicar como neurose. Apontaram também para as disposições do artista, suas experiências casuais e a sua ligação com a atividade artística. Freud observava freqüentemente em si próprio que o conteúdo de uma obra de arte, para ele,  possuía mais força de atração do que suas qualidades formais ou a técnica empregada na sua realização. Em oportunidades excepcionais, ele se detinha por longo tempo na proximidade de 10

O título da obra O mal estar na cultura está traduzido, em português, como O mal estar na civilização. Existe uma velha polemica entre “cultura” e “civilização”; os alemães defendiam o conceito de cultura, os ingleses e franceses o de civilização. Dentro dessa  polêmica, a Semiótica da Cultura tem uma contribuição fundamental a da r. (N.T.)

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obras artísticas para entendê-las melhor e para poder explicar como elas atuavam sobre o fruidor. Já na música ele não era capaz de agir dessa forma, achava que não tinha capacidade de vivenciá-la, de  percebê-la e senti-la.  Na estética tradicional, a forma artística ocupa posição de destaque. Porém para Freud, a forma não era outra coisa senão um meio transitório de veiculação de algo que transcende a própria materialidade. Em sua opinião, aquilo que nos afeta ou prende com tal energia e força, não pode ser outra coisa senão a intenção do artista. E isso ocorre em tal dimensão ou em tal extensão, que o artista só consegue atingir-nos quando é bem sucedido na expressão de suas intenções. Segundo Freud, os escritores nos conduzem para o prazer intelectual e estético, esforçandose por agir emocionalmente. Por essa razão, não podem reproduzir a realidade sem modificações. Precisam refinar tudo e preencher as lacunas que se apresentam, completar aquilo que falta. Quando, ao contrário, nós ampliamos o procedimento estritamente científico até o âmbito do amor humano, o sentimento do prazer abranda-se, reduz-se. Portanto, é certo que a ciência não é outra senão a renúncia ao sentimento do prazer.

QUESTÕES

* Sobre rituais animais

Os textos imaginativos e criativos são exclusivos do homem. A dança das aves, por exemplo, faz parte dos textos instrumentais que são regulamentados por instintos fixos. Com uma determinada “intenção” produzem movimentos quase rituais, mas estes movimentos são dados geneticamente.

* Sobre Semiótica da Cultura e Estética

Segundo a Semiótica da Cultura, as obras de arte são estruturas especiais que falam sobre si  próprias. Já falamos que a representação da realidade externa não é o fator mais importante na valoração de uma obra de arte; o importante é a estrutura estética, ela própria. Não existem 26

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valorações absolutas. As valorações surgem no processo do desenvolvimento e ninguém teria a ousadia de afirmar, por exemplo, que a obra de Shakespeare não tem nenhum valor ou que um kitsch seria uma máxima obra de arte. Isso se desenvolveu no curso histórico (evolutivo) da própria cultura e também da crítica da interpretação. Nenhum valor é eterno, temporalmente falando. Ele  pode se inverter. Por exemplo, antigas obras kitsch podem hoje ser consideradas de alto valor artístico, ou o oposto.

* Freud e a valorização do conteúdo

Em termos de arte, Freud era um conservador. Toda a sua contribuição resumiu-se ao conhecimento cientifico.

* A forma e a intenção do artista na obra de arte

A Semiótica da Cultura não endossa a posição de Freud sobre as obras de arte. Aliás, nós recebemos toda a obra de Freud sobre a cultura de maneira muito crítica, assim como agimos com a obra de Jung. Nós pretendemos resgatar o cerne das contribuições das diversas teorias sem as suas  partes indesejáveis, sem seus equívocos, de maneira limpa.

* Sobre a tríade natureza/técnica/cultura

Um texto produzido tecnicamente pode ser entendido como texto cultural. Isso vai depender do próprio texto. Porém, não obstante ele ser visto pelo prisma da cultura, é preciso lembrar que existem pouquíssimos textos que só possuem um único aspecto. Mesmo uma lista, que tem quase nada de imaginativo-criativo, pode ser lido de forma plural nas suas soluções gráficas, por exemplo.

* Sobre a valoração da arte

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A Semiótica da Cultura não tem como função atribuir valor e julgar o que é ou não é arte. A Semiótica da Cultura pretende conhecer os processos de codificação da cultura e, para isso, recebe contribuições da estética sobre os processos da obra da arte; mas não enquanto escola e época. A Semiótica da Cultura não investiga o que é arte hoje para nós, ou que não é arte; mas sim o que extrapola a função utilitária do objeto, ou seja, o que constitui o princípio codificador do texto imaginativo-criativo. Procuramos investigar quais são os princípios codificadores dos textos imaginativo-criativos no decorrer da história humana conhecida, mas não o que são esses textos  para uma determinada época. Cada época vai atribuir a eles um valor diferenciado. Então, é a cultura que define sua própria cultura. Não é, portanto, a Semiótica da Cultura que atribui valor.

* Sobre a valoração da arte

Todo texto é informativo. No caso da obra artística, assim como no sonho e no próprio jogo, a informação é sobre si própria. Mas essa é apenas uma função dominante, não exclusiva. Uma obra de arte pode informações sobre a sua própria estrutura, depois sobre o artista (o autor), sobre o objeto (quando ele existir), sobre o contexto ou sobre toda a situação sócio-cultural de sua época.  Na cabeça do receptor, evidentemente nasce outra imagem, diferente daquela que o artista tinha quando produziu a obra.

* Sobre função dominante e função estética

Ao observarmos um texto da cultura, podemos decidir qual é a função dominante e qual é a função secundária. Vejamos o caso dos mitos: eles são também obras de arte, mas sua função dominante é a explicação do mundo; entretanto, precisam atuar sobre as pessoas, não podem  prescindir da função estética. A função estética aparece, pois como secundária porque, pela sua competência de atuar sobre o receptor, serve de apoio à função dominante. Caso contrário ela não teria nenhum papel. A função estética está, em maior ou menor grau, presente em todos os textos, até mesmo em uma lista telefônica ou num batedor de claras de ovos. Volto a dizer que o papel da Semiótica da 28

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Cultura não é o de dar valor, mas o de reconhecer como os valores operam na cultura humana em determinada época.

* Sobre Semiótica da Cultura e Arte

A Semiótica da Cultura não é uma ciência da estética, não é uma história da arte. Ela  pretende investigar como os processos naturais, como o cerne germinador da cultural – que é em essência artístico – opera em todas as épocas culturais. Nesse sentido é uma contribuição original, um enfoque diferente. Não é estética, não é história da arte. Mas procura investigar o que é, por exemplo, a comunicação animal, os rituais animais, etc. Um ritual de acasalamento é o quê? É um texto. Mas é um texto artístico? Não... é um texto utilitário. Por que ele tem uma função estética? Por que a função estética serve para chamar atenção do receptor. Esta é uma ampliação do conceito de função poética – que nós em Jakobson e também em Lotman – para “horizontes nunca dantes navegados”.

* Sobre a técnica e o amor

Prof. Norval: Essa questão da técnica é realmente fundamental e podemos dizer que é uma novidade proporcionada pela contribuição da Semiótica da Cultura: mostrar que existe um teor utilitário, diferente do teor imaginativo e criativo que, na verdade, estimula os processos de aproximação comunicativa. Esse teor utilitário, em última instância, é aquele ponto que vem sendo  por nós recentemente desenvolvido, que é o conceito de amor para a Semiótica da Cultura. Qual a matéria prima da comunicação? É o amor! E qual a matéria prima do amor? É a função poética. A parte: Prof. Bystrina me parece um pouco kantiano. Da forma como ele fala da função dominante com relação aos mitos, parece que a questão é pacífica. Mas quem determina da função dominante? (Norval: É cada época) Leroi-Gourhan, por exemplo, não trabalha com a explicação do mundo como função dominante no mito. Também Lacan não trabalha nessa perspectiva: ele coloca isso no imaginário, que não tem função explicativa nenhuma. Penso que algo não está certo, não é verdadeiro. Senão, os homens primordiais teriam feito simplesmente obras de arte e não mitos, para 29

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satisfazer a sua própria curiosidade, sua própria capacidade de compreensão do mundo. Teriam feito simplesmente coisas que não tem relação com a primeira realidade. Prof. Norval: Fica claro aí uma diversidade de opiniões em relação a Leroi- Gourhan e Lacan. Mas não é meramente explicativa, já é uma conseqüência da tríade natureza/técnica/cultura. A confusão da técnica com a cultura é que gera este equívoco, na minha opinião. Prof. Bystrina: Segundo Leroi- Gourhan, a arte é aquilo que é supérfluo, mas os mitos não são supérfluos. Nós podemos viver sem a arte, mas não sem os mitos, considerando do ponto de vista da sobrevivência física. Porém, a sobrevivência psíquica necessita do estético e da arte.

PARTE II – A OBRA DE ARTE E A SEMIÓTICA DA CULTURA

O artista cria a partir do tesouro dos mitos populares, das lendas dos contos de fadas. Os mitos são, para Freud, provavelmente restos deformados dos desejos e anseios comuns a todos os  povos. Para ele, na verdade, os mitos são sonhos arcaicos da jovem humanidade. Já no ano de 1900, Freud afirmava que um poema é a transformação de um sonho cujo caminho nós podemos percorrer também na direção inversa e, com isso, devolver ao sonho cujo caminho nós podemos percorrer também e encontrar o conteúdo latente no conteúdo manifesto. Uma obra de arte é a confissão de seu autor; contudo, apenas para aquele que consegue lê-la. Tanto o sonho quanto a obra de arte possuem as mesmas fontes, uma estrutura analógica geral, uma relação idêntica com o passado do sonhador ou do artista.  No caso da arte, os aspectos intelectuais e procedimentos formais que originalmente eram comuns a ambos, sonhador e artista, juntam-se ao esforço geral de expressar e comunicar aquilo que no sonho, conserva um caráter puramente individual. Já numa criança é possível observar os primeiros vestígios da atividade artística. A sua atividade preferida é o jogo, algo que ela leva muito a serio. Tanto na criança quanto no poeta e no artista podemos constar uma reconstrução de seus próprios mundos. O artista brinca como uma criança quando constrói um mundo imaginário que ele (tal como uma criança) leva a serio. Contudo o artista é capaz de diferenciar esse mundo daquele outro da primeira realidade.

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O artista não renuncia ao prazer, à satisfação que teve a partir do jogo infantil. Mesmo quando adulto, entrega-se à fantasia, uma criação substitutiva que é conseqüência dos seus sonhos diurnos permanentes, contínuos. A criança brinca de adulto e não tem porque esconder esse anseio. O adulto, contudo, envergonha-se de sua fantasia, considera-a infantil ou proibida, e por isso a esconde. Esses sonhos são, na verdade, manifestação de anseios eróticos e de ambição que não foram realizadas na realidade. O homem feliz não se entrega aos devaneios, aos sonhos diurnos. Somente o homem não satisfeito o faz. Assim, o criador pode ser considerado um homem que sonha à luz do dia, e a arte pode ser considerada um sonho diurno. A vivência simultânea e intensiva evoca no artista vivências antigas. As mais antigas são as recordações da infância. Desta primeira vivência parte um anseio que pode realizar-se numa obra literária ou artística. Quando o criador relata-nos os seus sonhos diurnos, todos nós sentimos um certo prazer. Como pode o artista provocar em nós o sentimento de prazer? A psicanálise encontra duas fontes básicas que se entrelaçam com aquilo que subjaz à magia da arte. A primeira fonte é a técnica do criador, a ars  poética, que significa o seu próprio segredo e tem a ver com a forma. Graças a forma, os sonhos do artista são comunicáveis. Este anseio pelo prazer não é provocado  pelo esforço de satisfação das necessidades básicas. Enquanto não estamos usando o nosso aparato  psíquico para a satisfação de nossas necessidades básicas, deixamo-lo livre para encontrar em si mesmo o prazer de aproveitar todos os impulsos e de atingir esse estado de felicidade. Talvez seja essa uma condição sine qua non  para toda obra estética atuante. O criador refina os traços de caráter narcísicos do sonho diurno e nos encanta com um prazer puro através da vivência estética. Isso ele nos oferece pela apresentação de seus próprios sonhos. Essa primeira mágica, esse prazer primário libera as formas de prazer mais elevadas que brotam das forças  psíquicas profundas. A segunda fonte é igualmente muito importante. A vivência artística real, verdadeira resulta da libertação de nossa psique de certas pressões indesejáveis. O artista possibilita-nos vivenciar nossos próprios sonhos sem escrúpulos e sem sentimentos de vergonha. Como se pode explicar esse encantamento mágico da arte? Por um lado existem artistas que criam suas obras a partir da reelaboração de temas prontos, já dados da câmara de tesouros, do 31

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folclore, dos mitos, das lendas, dos contos de fadas e os demais que processam e os transformam em tragédias ou em outras obras grandiosas. A criação desse outro grupo de artistas parece ser bastante espontânea. No fundo são crianças que possibilitam a outros reencontrarem o paraíso da infância. Quando o fruidor vivência a obra de arte de maneira adequada, ele pode identificar-se com o herói da obra. Tal identificação atua como a catarse, porque ela nos possibilita viver, vivenciar, aquilo que não foi possível experimentar na vida real. Devemos procurar encontrar no mundo ficcional, na literatura ou no teatro, um substitutivo para aquilo que perdemos na vida real, uma vez que no âmbito da ficção encontramos a pluralidade da vida que nos é necessária. Sabemos hoje, que no inconsciente estão contidas muito mais informações do que aquela dos desejos recalcados, como acreditava Freud. Mas precisamos ficar atentos à “pseudo-categoria” do “inconsciente coletivo”, formulada por Carl Gustav Jung. Na verdade, Jung não entendia os seus arquétipos como imagens, símbolos e imaginações herdadas, mas como disponibilidades, disposições, possibilidades igualmente herdadas como propensões instintivas de formulações e de fenômenos. Para Jung existiam tendências expressamente inatas para a produção de imagens. Nós,  porém, conhecemos apenas dois caminhos para a transmissão de informações entre as gerações: a herança genética – que significa um caminho da informação natural extremamente lento e que não  pode transmitir símbolos culturais ou textos – e a transmissão, a tradição (no sentido etimológico)  pelo caminho sígnico por meio de textos sensorialmente perceptíveis. Os textos e motivos culturais não podem ser inatos e herdados. Eles são transportados e adquiridos através da tradição. A informação adquirida no período de vida de um indivíduo não  pode ser transmitida para os seus descendentes pelo caminho genético, pela via genética. Jung encontra, com razão, sempre e em toda parte, no mundo da cultura, da humanidade, todas as mesmas e típicas estruturas de motivos. E estas estruturas estão presentes, como ele mesmo formulava, nas fantasias, nos sonhos, nos sonhos, nos delírios e nas alucinações. E, portanto, necessário solucionar o problema de onde, como e por qual via estas estruturas arcaicas psíquicas de toda a humanidade chegam a todos os homens de todas as culturas em todos os tempos. E esta é a questão que a Semiótica da Cultura busca solucionar.

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QUESTÕES

* Sobre o mito e suas frustrações do inconsciente

Freud se perguntou sobre o que ocorre dentro da psique antes de surgir um mito ou uma obra de arte. Mas nós podemos ver de um outro lado, a partir das funções sócio-culturais. É claro que a resposta são desejos que não podem realizar-se. Freud tem razão nesse sentido.

* Sobre Jung e os arquétipos

Jung desenvolveu o conceito do inconsciente coletivo e não sabemos “onde” este inconsciente coletivo existe. Nós só encontramos o consciente individual e o inconsciente, que estão no cérebro de diferentes pessoas. Mas o inconsciente coletivo, não sabemos onde se encontra. Quanto aos arquétipos ele está certo. São estruturas que são muito importantes para toda a cultura, como por exemplo o feminino no homem ( anima) e masculino na mulher ( animus). Isso não é colocado para a criança pela natureza, mas pela tradição. Deve ser percebido e evidenciado, através dos signos para as crianças.

* Sobre computador e criação

O artista que trabalha com o computador coloca, insere o programa em seu computador. Ele  precisa constar com o fato de que esse trabalho conjunto com o aparelho em si carrega muito mais coisas que se manifestam com o acaso. Quando digo que a informação se transmite pela herança genética e pelo caminho sígnico, localizo a teoria evolucionista através dos processos que Darwin descreveu. É extremamente complexa a questão da herança biológica. Os novos estudos do denominado neo-darwinismo mostram que existem muitos complexos da causas.

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Prof. Norval: Quando o Prof. Bystrina fala do caminho genético, há uma frase que apresenta uma informação implícita, que eu acho importante: “a herança genética que significa um caminho, uma via da informação natural extremamente lenta”. Então, a lentidão significa aí um vetor de mudança muito lento, mas significa mudança. A informação que o prof. Bystrina chamou de hipolingual, ou seja, a informação contida no código genético, nos códigos biológicos, não está completamente separada do cultural. É claro que estes códigos dialogam entre si. Acontece que na  passagem, o teor da informação do cultural – que tem um vetor de mudança extremamente veloz – quantidade de informação que passa para o hipolingual (o biológico) é microscópica diante da quantidade de informação existente no cultural. É nesse sentido que o Prof. Bystrina diz que o texto não pode ser jamais registrado no hipolingual. O texto não pode ser nunca trazido: a informação textual, cultural é muito veloz para o vetor de mudança evolucionaria do biológico. Assim, nós não podemos gravar no biológico, por exemplo, a estrutura de uma língua ou a estrutura de uma obra artística. E claro que existem elementos dela que permanecem como disponibilidades. Isso é possível. Disso o Prof. Bystrina não discorda. Existem predisposições. E aí entra toda essa polemica muito atual a respeito de informação sobre sexualidade gravada nos genomas. Entra toda essa polêmica que é bastante ousada ainda. Eu acho que é bastante arriscado nós estarmos que isso está no código genético. Podemos saber que existem disponibilidades. Quando o Prof. Bystrina falou em predisposições que  podem estar registradas no código genético, ele falou sem dúvida de informações e, talvez, de uma  parcela mínima dos códigos terciários que se registram nos códigos primários: uma parcela microscópica.

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AULA N° 4 – 24/05/95 A HERANÇA DO XAMANISMO NA ANTIGA PALESTINA

A imagem de mundo que era familiar a Jesus Cristo e aos seus contemporâneos palestinos e  judeus durante o século I nos é conhecida através de muitos documentos judeus e cristãos que foram  preservados. Vou tentar caracterizá-los generalizadamente. O que temos é uma imagem mitológica de mundo. Sobre a terra existia o céu, que era habitado por demônios, espíritos de diversos tipos. Paulo, o apostolo, também confessava a existência de diversos deuses no céu. O céu era organizado em forma de camadas e no nível mais elevado da hierarquia reinava Deus Javé. Este era o Deus por excelência responsável pela criação do cosmos e o único capacitado a transformá-lo ou a substituí-lo. Sob a terra existia o inferno, um mundo inferior ao qual a maioria dos mortos deveria descer. No inferno havia demônios. Entre a terra e os reinos inferiores imperava um permanente trânsito de seres sobrenaturais. Estes seres interferiam nos assuntos humanos de muitas formas como, por exemplo, através de doenças, loucuras, epidemias, fomes, catástrofes, guerras, terremotos e crises variadas. Por isso, todos esses fenômenos são considerados obra dos demônios. Os camponeses da Palestina conviviam com esses demônios em permanente. O governo romano tinha os seus agentes judeus, como por exemplo Herodes, que representava localmente a dominação romanos. Mas existiam também os demônios que, com seus agentes humanos, causavam – criavam – muitos milagres. Agora vamos tocar no problema do xamanismo. O xamanismo faz parte das mais antigas instituições que reuniam caçadores e coletoras (as coletoras eram sempre mulheres). A expansão do xamanismo compreendeu as seguintes regiões: Ásia do Norte e Central, especialmente a Sibéria: África, Oceania, Austrália, América do Norte e do Sul, e também o nordeste da Europa. Assim, o xamanismo era encontrado em toda a parte onde havia povos caçadores e coletores ou onde se manteve a antiga tradição. 35

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Os xamãs atuavam tanto na primeira quanto na segunda realidade. Na primeira, os xamãs eram seres humanos; na segunda realidade eles aparecem como deuses. Como exemplo, podemos citar o deus germânico Odin ou o deus Greco-macedônico Dionísio. Os xamãs aparecem ainda como semi-deuses e heróis, como acompanhantes dos mortos, ou então como dominadores dos espíritos. A partir da visão da Semiótica da Cultura pode-se entender os xamãs como especialistas que se movem entre o “lado de lá” e o reino dos animais e dos homens; entre o mundo dos animais, dos espíritos e dos homens, intermediando a segunda realidade. A sua atuação tem por meta coibir as forças que se voltam contra o bem estar dos homens em geral. Depois que o xamanismo clássico foi pesquisado dentre os caçadores e pescadores na Sibéria, no Alasca e na Austrália, buscaram-se as raízes de um xamanismo arcaico na pré-história e na antiguidade. Os objetos de uso diário – objetos utilitários – que foram preservados não nos transmitem vestígios de uma vida interior. São os monumentos artísticos que o fazem, conforme escreveu George Bataille. Quando entramos na caverna de Lascaux, somos dominados por um sentimento que supera os sentimentos aflorados diante dos ossos e das ferramentas do homem fóssil. As obras de arte préhistóricas testemunham não só a força do visionário e o prazer de jogar com o possível, mas o também a confrontação com estados desviantes (variantes). Um esquimó formulou isso da seguinte maneira: “Eu não sou nenhum xamã, pois nem tive sonhos e nem fiquei doente”. A doença psíquica ocorre, na verdade, na verdade, com relativa freqüência, mas não é uma condição necessária para o chamamento do xamã. Este chamado pode vir também através de um outro sofrimento profundo, como por exemplo e o sofrimento de Cristo. O sofrimento é condição  para a formação do xamã, mas nem todo aquele que sofre se torna um xamã. Do ponto de vista da Semiótica da Cultura, encontramos os seguintes acontecimentos significativos na vida de Jesus: •

O batismo, que é igual à iniciação;



A estadia no deserto, acompanhado do jejum e da tentação do demônio;



A crucificação;



A morte; 36

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A ressurreição;



A viagem ao inferno e ao céu;



A aparição no topo da montanha (esta é a última aparição de Jesus).

Se observarmos os ritos de passagem, poderemos constatar que eles têm em geral três fases: os ritos de separação, os ritos de marginalidade e os ritos de agregação. Vamos falar sobre a primeira fase: o rito de separação. Jesus dirigiu-se ao Jordão, depositou no chão as suas roupas e foi batizado por João Batista, uma espécie de xamã-mestre. Através da lavagem ritual, o iniciante foi purificado de suas impurezas. Em geral estes ritos de separação atuam suspendendo a existência normal do iniciante e transformando-o em uma pessoa “fora da norma”, que existe em um tempo também fora do normal. Vejamos agora a segunda fase: o rito de marginalidade. Jesus dirigiu-se ao deserto e jejuou durante 40 dias; ao fim desse período ele teve fome e foi tentado três vezes, as quais resistiu. Estes ritos de marginalidade são um intervalo de atemporalidade social: sua característica geral consiste na interrupção física do transito – relacionamento – com as pessoas, por meio do afastamento do iniciante de seu ambiente natural. Já os ritos de agregação, a terceira fase, novamente o iniciante à sociedade normal. Ele assume seu novo papel – no caso de Jesus o papel de mago, pregador errante, e de anunciador do reino de Deus.  No ritual da iniciação, o xamã adquire, no centro da experiência mística, a capacidade de  perceber extra-sensorialmente. Segundo as fontes, tanto Jesus quanto João, durante a cerimônia do  batismo, viram um raio, um relâmpago. Isso conferiu a Jesus a capacidade de vislumbrar, mesmo com os olhos fechados, obscuridades e acontecimentos futuros que estavam ocultos aos homens comuns. Creio que nós podemos tomar este fato como histórico. Depois de se ter submetido ao batismo, Jesus começou a pregar e batizar. Assumiu,  portanto, a técnica do batismo como um rito de iniciação com a finalidade de arrebanhar discípulos e seguidores. No entanto, cessou a sua atividade de batismo muito cedo.  No batismo, a pomba funciona como símbolo do Espírito Santo. Tanto Jesus quanto João Batista tiveram a visão não apenas do raio de luz, mas também da pomba. Ambos se encontravam,  portanto conjuntamente, num estado de êxtase. 37

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A descrição da pomba contém elementos da iniciação dos xamãs. Jesus surge, após o  batismo, como um novo Adão que vivia entre animais selvagens e era alimentado pelos anjos. O Espírito Santo lançou Jesus no deserto, que ali permaneceu durante 40 dias, atarantado pelas tentações de Satã. Nesse período, viveu entre os animais selvagens e foi servido pelos anjos. A  peregrinação ordinária dos israelitas no deserto está ligada a muitas provas e tentações: 40 anos durou sua passagem pelo deserto e 40 dias durou a permanência de Jesus no deserto; por 40 dias o  jejum é prescrito pela Igreja Católica (Quaresma). Em muitas culturas, como na região norte-asiática e no ártico americano, a águia desempenha um papel múltiplo: ela é a portadora da cultura, protetora e guia dos xamãs. Ela atua como doadora de força vital, como símbolo de poder sagrado e da iniciação. Um mito buriático mostra o significado abrangente da águia:  Depois que Deus deu à águia a força vital e a sabedoria, mandou-a para a terra para  proteger os humanos terrestres, para manter a ordem, para estender todo o tipo de bem-estar e  proteger os homens dos maus espíritos. Quando a águia, após um longo vôo, chegou à terra,  pousou próxima à tenda de um tungusa. Mas os homens da terra não reconheceram o seu protetor e tentaram matá-la. Então a águia voltou para Deus. Mas Deus ordenou-lhe que retornasse à terra e que transmitisse tanto a força da vida quanto a sabedoria ao primeiro homem que encontrasse, não importando qual fosse o seu sexo. Isso foi feito, e a primeira pessoa que a águia encontrou foi uma mulher. A ela transmitiu a força da vida e também a sabedoria. Assim, essa mulher tornou-se uma xamã. A atuação da águia levou a resolução de um conflito dentro do casamento e a mulher investida da sabedoria e o seu marido tiveram um filho. Esse filho tornou-se o primeiro xamã do sexo masculino e que tem a sua disposição a força da vida.

 No Antigo Testamento, freqüentemente as pessoas são tomadas pelo Espírito Santo tornando-se capazes de feitos extraordinários. Isso significa um crescimento muito grande da força vital destas pessoas. Vamos falar agora sobre a pomba. A pomba é a ave mais citada na bíblia. Nos sacrifícios normalmente eram oferecidos novilhos, vacas e bois para imolação, mas entre as pessoas mais  pobres os animais oferecidos eram muitas vezes as cabras e as pombas. A ambivalência da pomba consiste no seguinte: ela é o símbolo da não agressividade e da ingenuidade, da inocência e da religiosidade. Jesus recomenda aos seus discípulos: “sejam espertos como serpente e puros como a  pomba”. Ela também é o símbolo do Espírito Santo. 38

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Entre egípcios e fenícios a pomba era mensageira, aquela que transmitia noticias. Os gregos e os romanos levavam pombas nos seus navios para mandar comunicados. Noé também enviou um corvo e três pombas para se informar a respeito do baixamento das águas. A pomba faz a mediação entre o céu e a terra. Todos os quatro evangelistas se referem a esta ave no feminino. Agora vamos falar sobre o retiro espiritual. Sob este nome – retiro – entende-se um período restrito de isolamento durante o qual o indivíduo se retira da sua rotina, em geral por razões sagradas. Este é um requisito indispensável para se buscar adquirir as “visões” no processo iniciatório. Entre quase todos os povos o retiro faz parte das atividades de iniciação. Pode-se observar sua presença nos seguintes casos: preparação para a iniciação na vida adulta, admissão num grupo sectário ou religioso, no processo da conversão, como parte da busca de uma vocação sagrada (o que significa a vocação para xamã ou para fundador de uma religião) ou então como busca de uma renovação periódica da vida espiritual. Durante o período de isolamento, as pessoas interrompem a sua vida rotineira. Isso pode ser feito de forma absoluta – como, por exemplo, no deserto, onde se fica absolutamente sozinho – ou apenas parcialmente – como exemplo nos mosteiros, onde se fica absolutamente sozinho – ou apenas parcialmente – como, por exemplo, nos mosteiros, onde se tem contato apenas com os confrades. Já nas sociedades primordiais existiam edificações específicas para tal finalidade. Assim as  pessoas poderiam mergulhar em si próprias e obter, pelo silêncio do isolamento, contato com as divindades e espíritos. O retiro compreende diversas medidas assépticas: jejum, abstinência sexual, orações, meditação e sonhos reveladores, transe e êxtase. O fenômeno do retiro ocorre raramente na vida, ou uma única vez na vida. No Velho e no Novo Testamento, o retiro ocorre na montanha ou no deserto é mencionado inúmeras vezes.  No Velho Testamento encontramos inúmeras provas de práticas mágicas, de origem arcaica,  primordial e que foram preservadas por milênios. Fala-se da magia, da predição, da necromancia e artes mágicas especiais. O período arcaico estava cheio de magos e fazedores de milagres, profetas e profetisas verdadeiros e falsos, videntes e pessoas que conversavam com os mortos, intérpretes de sonhos e sinais. No Genesis, fala-se da magia, da fertilidade dos criadores de gado, da capacidade mágica das mulheres e dos pastores. 39

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Também o Êxodo contém narrativas diversas sobre ações mágicas, como por exemplo, quando Moisés e Arão obtêm água batendo o cajado em uma rocha. Essa ação mágica era realizada em nome de Javé, e com isso autenticavam-se mitologicamente. A maior parte destes milagres foi realizada com ajuda de um condão mágico. Na época em que os israelitas estavam no Egito e queriam ir para terra prometida. Arão atirou o seu cajado diante do faraó, mas os sábios do faraó fizeram a mesma coisa. Cada um jogou o seu cajado e os cajados tornaram-se serpentes. Contudo, o cajado de Arão devorou as outras serpentes. Ou ainda, com o seu cajado Arão transformou toda a água do Egito em sangue. O cajado mágico é um símbolo muito antigo de poder e de capacitação para as forças sobrenaturais. Ele se tornou atributo não apenas de todos os xamãs, mas também um requisito dos magos e dos curadores. Vamos falar agora a respeito do fenômeno da ceia. Esta é uma das aparições mais fundamentais do cristianismo que se repete diariamente na missa. A ceia faz parte das idéias mais importantes do xamanismo. Ela significa o despedaçamento e a incorporação do deus. O escritor  polonês Ian Kopft escreveu um livro sobre a devoração dos deuses, uma interpretação de tragédias de tragédias gregas. Dionísio, por exemplo, é despedaçado, partido, e depois comido. A ceia é interpretada, no cristianismo, como uma participação no próprio caráter da divindade. Todo o complexo da postura liberal de Jesus em relação à lei partiu de sua prática mágica.Possivelmente Jesus teve um comportamento anômalo em relação a sua família. Ele era uma criança transgressora: saiu de sua casa e equilibrou o seu isolamento com histórias de espíritos e com ilusões, e por isso foi declarado louco pela própria família. Existem algumas diferenças entre as práticas de Jesus e a magia antiga. Por exemplo: Jesus não utilizava fórmulas mágicas, típica da magia. A anunciação de uma teoria supera as fronteiras do xamanismo propriamente dito. As atividades da cura e do ensinamento são características do futuro  profeta. Jesus pertencia, aparentemente, à tipologia do filho transgressor, fora de ordem, porque não seguiu a profissão do pai, não se tornou carpinteiro. Nas sociedades antigas, o filho não poderia fugir do caminho traçado pelo pai. Quem desobedece, ou está marcado por um dom especial de contato com outro mundo e, portanto, inspirada por Deus ou, como aos olhos da vizinhança, são  pessoas possuídas por demônios.

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 Norton Schmidt, que investigou estes fatos, afirmou que assim como conhecemos hoje os tipos histéricos , paranóicos ou maníaco depressivos, naquela época muitos psiquiatras e curandeiros saiam do meio de pessoas com tais patologias: havia os possuídos por demônios de diversos tipos, as pessoas divinas, os profetas e os magos. Por fim, quero indicar – para que vocês pensem nelas – algumas semelhanças entre a vida de Jesus e o xamanismo: o retiro para as montanhas e para o deserto, depois o batismo como  purificação do iniciante, o êxtase no batismo, a pomba como pássaro adjuvante do xamã, a atividade curadora, o sofrimento antes da morte, a ressurreição e a ida aos céus e aos infernos.

QUESTÕES

* Sobre o papel do vinho A presença do vinho está contida inteiramente na bíblia. Era, provavelmente, a principal fonte do transe e êxtase para as pessoas que o consumiam. Mas o vinho tem apenas uma pequena relação com a vida de Jesus. Está sem dúvida presente na ceia: a ceia é uma transformação mágica de pão e vinho em corpo e sangue de Cristo. Neste sentido é um fenômeno cristão de grande importância.

* Sobre a transmissão xamânica

A vocação para o xamanismo é diferente, diversa. A pessoa sente-se como candidato a xamã; ela sente isso interiormente e nesta situação é importante o papel das drogas para o êxtase e o transe. Há um chamamento que parece vir de dentro do sujeito. Mas para se tornar xamã é geralmente necessário ser formado por um mestre xamã. Assim acontece em praticamente todas as religiões.

* O xamanismo e as religiões 41

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O xamanismo contribuiu com diversos elementos para a formação de muitas religiões. Judaísmo, Cristianismo, budismo e até o Islamismo têm elementos importantes do xamanismo. A figura dos espíritos na ideologia religiosa é apreensível em todas as religiões primordiais. As catástrofes e os perigos foram antropomorfizados em espíritos. Mas aqui existem em uma ambivalência, já que tanto os xamãs quanto os espíritos – sejam adjuvantes ou opositores – foram um estágio necessário do desenvolvimento das religiões.

* Sobre a identificação entre Jesus e Deus

Esta é uma característica das religiões desenvolvidas e supera as fronteiras normais do xamanismo. Nenhum xamã se torna Deus e não tem esta aspiração. Este já é um estágio superior ao  próprio xamã, o estágio do homem-Deus. Prof. Norval: Trata-se de um mecanismo semiótico de simbolização mais desenvolvido, onde o símbolo, em sistemas religiosos muito fortes – assim como em sistemas ideológicos e  políticos muito fortes – é confundido ou tomado como próprio objeto. Por exemplo: durante o Tropicalismo, vestir-se com a bandeira nacional era tomado como atentado a segurança nacional – o símbolo era tido como próprio objeto. Aliás, este é um traço de primitivismo na evolução filogenética e na ontogênese. A confusão entre a primeira e a segunda realidade acontece na infância filogenética, na infância ontogenética e nos sistemas autoritários.

* Sobre glossolalia

 No surgimento da língua, o elemento intelectual sem dúvida desempenhou um papel muito importante. No xamanismo, o elemento racional também desempenha um papel importante  juntamente com o elemento extásico. O elemento racional é o primeiro degrau da intelectualidade. A glossolalia traz a ambigüidade da racionalidade e da incompreensibilidade. Ela é uma língua que ninguém entende, e que seria, pretensamente, uma língua de Deus. 42

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* A função política do xamã

O xamã é um funcionário, não apenas religioso, mas também político. Ele tem a tarefa de cuidar do bem estar de toda a comunidade. Este é, pelo menos, um postulado político, se não for a realidade.

* O xamanismo hoje

Temos os mesmos problemas que os antigos israelitas: os “possuídos” pelas ideologias, os que aspiram ou já possuem o poder. Temos curadores – psiquiatras, psicólogos... mas os médicos são mais xamãs que políticos. Prof. Norval: Esta é uma ponte que a Semiótica da Cultura possibilita, porque estamos vendo mecanismos semióticos nos médicos, nos políticos, nos partidos políticos. E estes mecanismos e relações semióticas são análogos aqueles existentes nas sociedades mais primevas, como por exemplo os xamãs. Prof. Bystrina: Nós alimentamos nossos médicos e políticos, assim como os xamãs foram alimentados pelas suas comunidades. A única diferença é que o xamã era plurifuncional e hoje temos xamãs especializados: saúde, política, ensino, etc.

* Sobre o sagrado hoje

O xamã é o especialista do sagrado. Não se pode dizer que “tudo” seja xamanismo, mas as raízes da divisão do trabalho, inclusive, estão lá. Isso é uma herança que permaneceu e que assumiu diversas formas. Prof. Norval: a raiz do não-sagrado. Isso é visível, na nossa sociedade, no respeito que se tem pelo médico, pelo professor, pelo escritor; e nas relações ambivalentes que têm os outros

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detentores de poder com estas funções. Por exemplo: o governo, que procura acaçapar professores e artistas porque são incômodos ou porque não temem ou reconhecem seu poder. Prof. Bystrina: O sagrado também assumiu novas formas: ciência, racionalismo, técnica, mídia. Estes são os novos deuses, as novas formas do sagrado, distanciadas sempre mais e mais da vida profana. É uma ilusão, mas funciona.

* Psiquismo, experiência mística e diversidade de religiões

O místico sobe da alma para a consciência (não há uma grande diferença). Nós somos muito mais motivados pelo inconsciente do que pelo consciente, porque temos um superego que censura os processos conscientes. Das profundezas vêm os autênticos motivos, mas vêm velados. Eu vejo primordialmente os traços gerais, presentes em todas as religiões. É claro que existem diferenças: elas são naturais, mas não dissolvemos problemas básicos, fundamentais. Estes  problemas básicos constituem tarefa da Semiótica da Cultura. Evidentemente as diversidades são traços externos, o “esqueleto” é que é a unidade.

* Sobre premonições

Faz parte dos elementos típicos do processo religioso. Acontece quando a predição é feita em uma dimensão delimitada e posteriormente se realiza. Quando o sujeito tem uma visão profunda sobre as relações complexas, então ele tem a chance de fazer a previsão ou uma predição verdadeira. Através disso é que ele ganha autoridade sobre o público, porque a sua predição verdadeira se fundamenta, tem o pé na verdade. Ele consegue isso simplesmente através de um conhecimento complexo. Evidentemente, o transe permite a percepção de dimensões da realidade que o estado consciente não permite. As previsões normalmente são obscuras. Já era assim em Delfos e em Nostradamus. São tão complexos que podem acontecer de diferentes formas. Prof. Norval: este é um caso complicado. A Semiótica da Cultura deve investigar aquilo que eu chamaria de Limiares Semióticos. Até hoje, a Semiótica e as Ciências da Comunicação 44

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 preocuparam-se em estudar as leis da comunicação estabelecidas. E ninguém se preocupou em estudar quais são as fronteiras entre as leis estabelecidas e aquilo que nós chamamos de “não cultura”. A Semiótica da Cultura está caminhando para compreender estas fronteiras. Mas a verdade é que estes são fatos semióticos e nenhum semioticista pode negar que eles existiam. Mas, como isso ocorre semioticamente, torna-se objeto de investigação, um problema que deve ser estudado e investigado.

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AULA Nº 05 – 31/05/95 OS FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DA SEMIÓTICA DA CULTURA

Como esse é o último encontro desse ciclo, talvez seja o momento apropriado para que eu  possa dizer alguma coisa sobre os fundamentos ontológicos e fenomenológicos da teoria que eu defendo. As linhas filosóficas que estão associadas mais proximamente a nossa investigação seriam, em primeiro lugar, o realismo hipotético – tal qual nós conhecemos a partir de Konrad Loranz e Franz Wuketics – e, em segundo lugar, a face fenomenológica, com Husserl e Heidegger,  juntamente com outros filósofos, especialmente da França e Alemanha. Da Teoria dos Sistemas nós tomamos o conceito de “sistema” como um dos mais fundamentais e também assumimos o conceito de “estrutura”, a partir de uma ampla relação dos estruturalistas. Por “sistema” compreendemos um objeto que se compõe de um conjunto de elementos ou complexos subsistemas e um conjunto das relações entre esses elementos ou subsistemas. Como hipótese de trabalho, supomos que os objetos do nosso conhecimento, objetos do mundo a conhecer, possuem um caráter sistêmico. Na verdade, não podemos aprender objetos não estruturados embora tenhamos a capacidade lingüística de falar sobre eles. O conceito de sistema tem, pois, um significado. Não podemos, então, seguir alguns estruturalistas, como por exemplo Jan Mukarovsky ou Claude Levi-Strauss que utilizam o conceito de estrutura para um todo estruturado, já pronto, já finalizado. Nós concebemos a estrutura muito mais como um conjunto (dinâmico) de relações. Estes conceitos básicos como “estrutura”, “sistema” e “elemento” são evidentemente conceitos relativos, que só podem ser usados univocamente quando aplicados a um único nível de significado. São relativos porque aquilo que é visto, em um certo nível, como um elemento, em um outro nível passa a ser visto como um sistema. 46

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A posição do realismo hipotético nos leva à suposição da existência de um mundo real, complexo e estruturado. Estas estruturas são basicamente cognoscíveis e são, pelo menos,  parcialmente conhecidas. Isso contradiz a concepção de alguns autores, como Claude Levi-Strauss, que não quer ver o conceito de estrutura ligado à realidade empírica, mas sim aplicado ao modelo de realidade construído por nós. O conceito de modelo só tem uma aplicação quando existem, de um de lado, um original e, do outro lado, um modelo desse original. Esses dois objetos (modelo e original) são homomorfos em sua estrutura. Isso significa que apresentam, pelo menos  parcialmente, a mesma estrutura. Esse homomorfismo traz o conceito de estrutura à realidade empírica. Uma vez que a relação entre elementos de sistemas dinâmicos reais tem o caráter de reciprocidade que se realiza através deslocamentos espaços-temporais, isto significa transformações através do comportamento do sistema. Às séries de mudanças, ou de transformações temporais, nós denominamos – “processos” ou “transcursos”. E assim, o mundo por nós conhecido se apresenta como uma hierarquia desses sistemas e suas estruturas. Gostaria de acrescentar, ainda, que o conceito de estrutura por um lado diz de uma estrutura interna e, por outro, trata de uma estrutura externa. Isso nós acrescentamos à Teoria dos Sistemas. Um objeto sempre possui uma estrutura interna, pois se isso pudesse não acontecer nós não seriamos capazes de conhecê-lo. Apenas pela estrutura podemos reconhecer que tipo de objeto é ele. Além disso, todo o objeto está contido em uma estrutura externa no mundo. Para conhecer o objeto em sua completude temos de investigar ambas as estruturas.

A INFORMAÇÃO

Como foi colocado esquematicamente, concluímos que as estruturas interna e externa constituem a informação latente, potencial do objeto. Mais do que isso não temos para todo e qualquer objeto. Por que dissemos que essa informação é latente ou potencial? Quando não existe um receptor, a informação latente não se pode transformar em uma informação atual, não pode se atualizar. A informação atual, a partir da qual podemos agir, tem de ser recebida por um organismo.  Nenhum outro tipo de objeto pode funcionar como receptor da informação, porque outros objetos 47

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que não sejam organismos não possuem aparatos receptores. Quando o sol ilumina uma pedra, a  pedra pode partir-se devido à temperatura elevada. Apenas os organismos possuem os receptores que lhes possibilitam escapar à influência destas forças externas. Alguns objetos elementares  possuem a disposição, por exemplo, de fugir a luz. Alguns outros objetos têm a disposição de reunir-se massivamente nos lugares iluminados. Essas disposições são qualidades inatas dos organismos. As informações são armazenadas ora em memórias internas, como por exemplo a memória individual humana, ora em memórias externas, que o homem constrói a partir de sua técnica, como  por exemplo a imagem, a escrita, as gravações sobre suportes – como a fita K-7 – ou ainda as grandes memórias dos computadores.

O CONCEITO DE INVARIANTE

Cada informação atual funda-se numa diferença de estrutura. Na dimensão estática, nenhuma estrutura pode ser captada como estrutura informacional se não se permitir contrastar, diferenciando-se das demais estruturas que lhe sejam próximas ou que se coloquem como pano de fundo.  Na dimensão dinâmica, as estruturas diferenciam-se por modificações. Isso quer dizer, diferenças no decorrer do tempo. Vamos tomar como exemplo a reação simples de um organismo unicelular, a cinese, que é uma desaceleração do seu movimento não direcional. Esta desaceleração segue-se à recepção de uma informação sobre uma modificação da estrutura ambiental favorável  para o organismo. Podemos citar como exemplo uma concentração modificada de CO2. O caráter adaptativo da recepção da informação confirma a hipótese de uma mutabilidade geral do mundo real estruturado. Por outro lado, mesmo o organismo mais elementar reconhece, dentre a enorme quantidade de estímulos que o atingem, os estímulos que são idênticos ou semelhantes, aos quais respondem de uma reação também de maneira idêntica ou semelhante. Tal reação dos seres vivos precisa ocorrer sempre da mesma forma. Para sobreviver os organismos tem de reagir de maneira semelhante aos estímulos semelhantes. Alternativas autênticas de comportamento, quando se pode escolher entre

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diversas reações, constituem-se apenas aos poucos na evolução. A evolução abranda estereótipos rígidos e os substitui por padrões de comportamento aprendidos. Temos, portanto, que ampliar a aceitação geral de um mundo mutável com o acréscimo de estruturas constantes, ou o acréscimo de estruturas relativamente mutáveis. A estas estruturas, no mundo interno e externo, nós chamamos de

invariantes.

 Na natureza sub-orgânica surgem sistemas com amplas estruturas invariantes, em grandes séries, como os átomos, as moléculas, os cristais, as estrelas, as galáxias. Também os sistemas orgânicos e reprodutivos são reproduzidos em série. No caso do homem temos os artefatos, as ferramentas, os bens de consumo, as instituições, mas também temos os textos. O reconhecimento das invariantes possibilita uma classificação, uma taxonomia, quando estes objetos são compreendidos como exemplares de uma única espécie de gênero ou tipo como classe de abstração. Muitos processos ocorrem segundo padrões invariantes de desenvolvimento, que se repetem no tempo como acontecimentos e situações. As estruturas processuais invariantes são percebidas como regularidades. Não podemos, na verdade, afirmar que estas invariantes já eram vigoravam ao longo de toda a história do universo. Contudo, elas vigoram naquilo que nós conhecemos e no tempo que conhecemos. Nós conseguimos, assim, ler estruturas invariantes a partir de um mundo mutável; a isso denominamos “pattern recognition”. Oposições como semelhança e diferença, igualdade e diferença, constância e inconstância, invariância e variabilidade, regularidade e irregularidade, são elas mesmas contraditórias, mas comprovam a existência da estruturação binária tanto das fontes de informação como das estruturas informacionais derivadas dessas fontes. A interação da informação armazenada e da informação registrada possibilita a regulamentação dos comportamentos dos sistemas vivos.  Nas memórias internas e externas são retidos, em primeiro lugar, engramas simples de objetos concretos, individuais ou de acontecimentos, alem dos padrões ou modelos abstratos simplificados e generalistas. Outros processamentos dessas informações possibilitam, em maior ou menor grau, a existência de modos estereotipados de comportamento dos sistemas vivos. Esses modos de comportamento, para que tenham sucesso, necessitam ter determinadas estruturas invariantes, precisam transcorrer de acordo com padrões regulares. As estruturas informacionais

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atualizáveis e resgatáveis que regulam o comportamento dos sistemas orgânicos tem o caráter de uma informação – deve. Existe uma informação – deve e uma informação é.

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As invariantes, ou invariantes relativas, de processos regulares em sistemas sub-orgânicos transcorrem sem qualquer influência da informação atual com base em correlações e interações  puramente energéticas, correlações e inter-atuações. Em sistemas orgânicos vivos, todos os  processos vitais são regulados por informações, porque a sua complexidade supera o nível do suborgânico. As regularidades necessárias para a vida e seu processo não dependem mais de simples correlações, mas de informações ativas armazenadas e resgatáveis. Todo o comportamento orgânico é dirigido desse modo. Esse é o primeiro comportamento utilitário global dos seres vivos que está  presente em tudo o mais como na biossíntese, no metabolismo na circulação do sangue, na respiração, nos movimentos das mãos, dos pés, das asas, nos tipos de andar, no comportamento para obtenção de alimento e de tranqüilidade, no descanso, no sono, no comportamento de reprodução ou territorial, etc. Por outro lado, também o seu comportamento informacional é assim regulamentado. São  processos de informação ao nível molecular e genético, percepções, condução de impulsos de estimulação e o surgimento e a atualização de engramas, informações já registradas do aprendizado, do esquecimento, do pensamento e, naturalmente, dos processos sígnicos. Isso resulta para nós na seguinte divisão de invariantes: as invariantes que não estão ligadas à informação, como por exemplo, “cair. Quem cai, cai porque não recebe a informação sobre o chão, ou se há algum obstáculo e com isso não reage à gravidade; por outro lado estão as invariantes ligadas à informação, que são as estruturas das informações associadas. Quando não existe uma informação, também não existem processos regulamentados, por isso essas invariantes são associadas a informações. Sem informação não haveria esse tipo comportamento. Vamos repetir os processos associados e dissociados da informação. Quando cai uma pedra na cabeça de uma pessoa nós temos uma informação dissociada, desvinculada. Quando a pessoa recebe a informação da pedra que está caindo, a estrutura do seu comportamento é diferente. Ela  pode desviar ou se defender da pedra ou ainda atirar na pedra. Há um conjunto de variantes do comportamento, mas todos estão vinculados à informação. Mas se a pessoa não vê, ou não ouve, não tem nenhuma escolha: o seu comportamento não se vinculará à informação.

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 A informação deve é a informação potencial, que pode ser atualizada em informação (N.T.)

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QUESTÕES

* Sobre informação deve e informação é

A informação nos alcança de diferentes formas sintáticas, ou modais. Quando alguém afirma que isto é assim, ou que isto está, temos uma informação do tipo é. Quando alguém diz: aqui dentro deste copo tem água, temos uma informação do tipo é. Ela pode ser verdadeira ou falsa. E quando alguém pergunta: “o que é que tem dentro do copo?” Esta é uma informação interrogativa que busca uma resposta a uma pergunta. Quando, porém, alguém diz que a água que está no copo deve estar limpa, esta é uma informação deve, ou seja, como ela deveria ser na opinião do falante. Esse deve  pode assumir diversas formas: ou eu quero que seja assim, ou um sistema de regras diz que as coisas devem ser assim (como no sistema jurídico, por exemplo, que informa como as coisas devem ser); pode ser uma informação deve quando se fala em nome de um grande grupo ou de uma sociedade toda, ou é uma informação deve de acordo com outros valores. A informação deve não pode ser verdadeira ou falsa; para isso teríamos a seguinte formulação: “segundo a norma deveria ser assim”, e aí já estaríamos operando com verdadeiro e falso. Podemos nos apropriar de diferentes teorias do verdadeiro. Eu sou adepto da teoria do Tarski, lógico polonês, de que a verdade de uma afirmação consiste em uma identidade entre conteúdo da afirmação e o processo designado. Existem outras definições de verdade, como por exemplo a que consagra o consenso como parâmetro para eleição do que venha a ser verdadeiro. E a opinium docturus, a opinião dos

especialistas.

* Sobre a contribuição da Semiótica da Cultura

A Semiótica nos oferece a possibilidade de verificar nossos valores e ideais culturais; o que nos é necessário para decidir melhor aquilo que pode ser feito da melhor forma nom melhor tempo. A semiótica nos permite ver relação entre valores, ideais e nos fornece indicativos para intervir no  processo. A Semiótica da Cultura nos mostra o desenvolvimento real da cultura até agora. Se conhecemos as tendências da cultura, podemos decidir o que devemos fazer num momento difícil. Sem o conhecimento destas tendências nós não podemos fazer nada, nós nos encontramos num 51

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estado crônico de indefinição. As tendências são, portanto, objetivas. Elas, na verdade, são dadas  pela nossa psique, mas é preciso considerar que a psique é também influenciada pelas situações.

* Sobre informação desvinculada e comunicação

A informação desvinculada é a informação que ocorre livremente e que não se vincula a regras. Naturalmente não existe nenhuma informação absolutamente desvinculada. Costuma-se dizer que a comunicação é uma troca de informações, mas isso é errado. A comunicação é uma “acumulação” de informações. Ambos os lados dão informações que se acumulam. Não é como uma troca de mercadorias como, por exemplo, quando alguém oferece um bem e recebe outro em troca. Na comunicação a troca leva à acumulação e à ampliação do entendimento de ambos os lados. Ora a informação é corrigida, ora é confirmada, ora é acrescentada e modificada. Evidentemente, o receptor pode ser simplesmente o próprio autor da informação, mas não seria muito razoável nós chamarmos de comunicação a troca de informações consigo mesmo.

* Sobre a impossibilidade de não comunicar (Watzlawick)

Sim, é possível não comunicar, e Watzlawick não tem razão nesta questão. Por exemplo: um homem que entra num elevador e está lendo um jornal pode estar tão absorvido na leitura que não  percebe qualquer estimulo ao seu redor; mas se ele está consciente do seu meio circundante e não responde aos estímulos externos, então emite sinais de que não quer comunicar-se ou de que uma comunicação naquele momento seria inconveniente. Percebendo isso, os outros devem reagir adequadamente através de atitudes corporais. Prof. Norval: é um conceito mais preciso de comunicação. Paul Watzlawick, na verdade, coloca de uma maneira promíscua o que é comunicação e pouco define o conceito do ponto de vista lógico. De acordo com a Teoria da Informação e da Semiotica, o conceito de comunicação de Watzlawick é muito amplo. É como o conceito de cultura da antropologia tradicional, que nos diz que tudo é cultura. Watzlawick diz que tudo é comunicação. Estamos diante de uma questão terminológica, a meu ver 52

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