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July 16, 2017 | Author: Rafael Carvalho | Category: Homo, Anno Domini, The United States, Science Fiction, Brazilians
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ISAAC ASIMOV MAGAZINE FICÇÃO CIENTÍFICA NÚMERO 4 Novela 178 O Ovo - Steven Popkes Noveletas 20 A Flor de Vidro - George R. R. Martin 134 A Mulher de Prata e o Quarentão - Megan Lindholm Contos 68 O Último a Saber - Deborah Wessell 78 Tríptico Lunar: Abraçando a Noite - Richard Paul Russo 100 O Problema do Avô - Andrew Weiner 106 Lógica É Lógica - Isaac Asimov 118 Superstições Comuns - Don Webb 126 Premonição - Pat Murphy 162 Eventos que Aconteceram um Dia Antes de Outros Eventos Avram Davidson 170 A Hora de Acordar - Esther M. Friesner Seções 5 Editorial: Pela Metade - Isaac Asimov 10 Cartas 13 Depoimento: Minha Experiência no Brasil - Orson S. Card 12 Títulos Originais

Copyright © by Davis Publications, Inc. Publicado mediante acordo com Scott Meredith Literary Agency. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. que se reserva a propriedade literária desta tradução 3

osebodigital.blogspot.com

EDITORA RECORD Diretor-presidente ALFREDO MACHADO Vice-presidente SERGIO MACHADO Diretor-gerente ALFREDO MACHADO JR. REDAÇÃO Editor Ronaldo Sergio de Biasi Supervisora Editorial Adelia Marques Ribeiro Coordenadora Sonia Regina Duarte Editor de Arte Dounê Spinola Ilustrações Lee Myoung Youn Chefe de Revisão Maria de Fatima Barbosa

ISAAC ASIMOV MAGAZINE é uma publicação mensal da Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A. Redação e Administração: Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro - RJ - Tel.: (021) 580-3668 - Caixa Postal 884 (CEP 20001, Rio/RJ). End. Telegráfico: RECORDIST, Telex (021) 30501 - Fax: (021) 580-4911 Impresso no Brasil pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOES DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina, 171 10901 - Rio de Janeiro/RJ Tel.: (021) 580-3668 4

EDITORIAL ISAAC ASIMOV

PELA METADE Considere a seguinte história. Em uma pequena cidade, nos velhos tempos, um pobre alfaiate tinha uma filha muito feia e bastante obtusa, para quem não conseguia encontrar marido. Por isso, decidiu recorrer a um agente matrimonial. O agente matrimonial sugeriu uma possibilidade e o alfaiate protestou: — Ele é filho do homem mais rico da cidade! — Tanto melhor. Dará um excelente companheiro para a sua filha. — Ele e a família são um bando de esnobes! Além disso, nunca freqüentaram a igreja. Como posso permitir que minha filhinha, que é tão simples e religiosa, venha a fazer parte de uma família assim? — Acontece que o rapaz é bonito, inteligente e muito rico. Isso não basta? Para lhe dizer a verdade, sua filha não é nenhuma beldade. Depois de muita discussão, o alfaiate concordou e o conselheiro matrimonial foi embora, dizendo para si mesmo enquanto se dirigia à casa do homem mais rico da cidade: — Muito bem. A família dela está de acordo. Metade do trabalho já está feita! A moral da história é a seguinte: às vezes, um trabalho feito pela metade mal começou. Por exemplo: o universo pode ter começado há 15 bilhões de anos atrás. Nesse caso, há 7,5 bilhões de anos, o universo tinha metade da idade atual. Qual era a situação? Ora, nosso sistema solar ainda não existia e não existiria por mais 3 bilhões de anos. Toda a história da Terra está contida na segunda metade da existência do universo. Podemos também considerar apenas o sistema solar. O sis5

tema solar, incluindo a Terra, naturalmente, foi formado há 4,6 bilhões de anos atrás. Assim, há 2,3 bilhões de anos, a Terra tinha metade da idade atual. Qual era a situação na Terra? Havia vida, mas as formas mais avançadas eram procariontes: bactérias e cianobactérias. Os eucariontes, o tipo de células encontradas em plantas e animais, das amebas aos seres humanos, só começariam a existir depois de mais um bilhão de anos. Assim, toda a história da vida vegetal e animal está contida na segunda metade da existência da Terra ou no último 1/11 da história do universo. Nesse caso, vamos nos concentrar apenas no desenvolvimento dos eucariontes. Os primeiros eucariontes podem ter aparecido há 1,4 bilhão de anos. Há 0,7 bilhão (isto é, 700.000.000) de anos atrás, os eucariontes tinham metade da idade atual. Qual era a situação naquela época? A vida multicelular havia começado, mas seus representantes mais complexos eram vermes primitivos, não havia organismos suficientemente avançados para criar conchas ou outras estruturas capazes de se transformar facilmente em fósseis, em particular, os cordados (grupo de animais a que pertencemos) só começariam a existir depois de mais 50.000.000 de anos. Assim, toda a história dos cordados está contida a segunda metade da existência da vida multicelular ou no último 1/28 a história do universo. Os primeiros cordados surgiram á cerca de 550.000.000 de anos. Os cordados, portanto, tinham metade da idade atual há 275.000.000 de anos. Houve progressos extraordinários. A vida cordada conquistara a Terra e os primeiros reptis surgiram nessa ocasião. Mas os mamíferos mais simples ainda não existiam e não surgiriam por mais 55.000.000 de anos. Toda a história dos mamíferos, do mais simples monotremado ao homem, está contida na segunda metade da existência da vida cordada e no último 1/68 da existência do universo. Vamos continuar. Os primeiros mamíferos apareceram há cerca de 220.000.000 de anos, de modo que tinham metade da idade atual há cerca de 110.000.000 de anos atrás. Naquela época não havia primatas (a ordem a que pertencemos), pois estes só viriam a aparecer depois de mais 40.000.000 de anos. Assim, 6

toda a história dos primatas, dos macaquinhos mais simples até o homem, está contida na segunda metade da existência dos mamíferos ou no último 1/375 da história do universo. Os primeiros primatas apareceram há 70.000.000 de anos atrás e portanto tinham metade da idade atual há 35.000.000 de anos. Nessa época, não havia símios, pois estes só viriam a aparecer depois de mais 5.000.000 de anos. Toda a história dos símios, do mono mais primitivo até o homem, está contida na segunda metade da existência dos primatas ou no último 1/500 da história do universo. Os primeiros símios apareceram há 30.000.000 de anos atrás; há 15.000.000 de anos tinham metade da idade atual. Nessa época, os primeiros antropóides (os ancestrais dos chimpanzés, gorilas etc.) já existiam, mas não havia nenhum hominídeo, pois estes só viriam a aparecer depois de mais 10.000.000 de anos. Toda a história dos hominídeos, do australopiteco mais primitivo até o homem moderno, está contida na segunda metade da existência dos símios ou no último 1/3.000 da existência do universo. Não vamos parar por aqui. Os primeiros hominídeos eram australopitecos, que apareceram há 5.000.000 de anos atrás. Os hominídeos tinham metade da sua idade atual há 2.500.000 anos. Nessa época, os únicos hominídeos ainda eram australopitecos e não havia nenhuma criatura pertencente ao gênero Homo (nosso próprio gênero), pois este só viria a aparecer depois de mais 500.000 anos. Assim, toda a história do gênero Homo está contida na segunda metade da existência dos hominídeos ou no último 1/7.500 da existência do universo. O gênero Homo apareceu há cerca de 2.000.000 de anos atrás, de modo que tinha metade da idade atual há cerca de 1.000.000 de anos. Naquela época, não existia nenhuma forma do Homo sapiens, nem mesmo a mais primitiva (o “homem de Neanderthal”), pois este só viria a aparecer depois de mais 700.000 anos. Assim, toda a história do Homo sapiens está contida na segunda metade da existência do gênero Homo ou no último 1/50.000 da existência do universo. O Homo sapiens apareceu há 300.000 anos atrás e portanto tinha metade da idade atual há 150.000 anos. Naquela época, 7

o “homem moderno” ainda não existia, pois só viria a aparecer depois de mais 100.000 anos. Assim, toda a história do homem moderno está contida na segunda metade da existência do Homo sapiens ou no último 1/300.000 da existência do universo. O homem moderno apareceu há cerca de 50.000 anos atrás e tinha metade da idade atual há 25.000 anos, época em que estava começando a popular a Austrália e a América, mas a civilização ainda não existia, pois só viria a aparecer depois de mais 15.000 anos. Assim, toda a história da civilização está contida na segunda metade da existência do homem moderno ou no último 1/1.500.000 da existência do universo. A civilização começou há cerca de 10.000 anos atrás (por volta de 8000 a.C), com a invenção da agricultura e a fundação das primeiras cidades. Assim, a civilização tinha metade da idade atual há cerca de 5.000 anos (ou por volta de 3000 a.C). Naquela época, a primeira “grande civilização”, a da Suméria, ainda não existia. A escrita acabava de ser inventada, marcando o início da era histórica. Assim, toda a era histórica está contida na segunda metade da existência da civilização ou no último 1/3.000.000 da existência do universo. A era histórica começou por volta de 3000 a.C. (há 5.000 anos atrás), de modo que tinha metade da idade atual há 2.500 anos ou por volta de 500 a.C. Nessa época, Cristo ainda não havia nascido, o que só iria ocorrer depois de mais 500 anos. Assim, toda a era cristã está contida na segunda metade da era histórica ou no último 1/7.500.000 da existência do universo. A era cristã começou com o nascimento de Jesus no ano 4 a.C, há 1993 anos, de modo que tinha metade da idade atual em 992 d.C. O mundo estava na Idade Média e Colombo ainda não havia descoberto a América (fato que marcou o início da “era moderna”), o que só iria ocorrer depois de mais 500 anos. Assim, toda a era moderna está contida na segunda metade da era cristã ou no último 1/30.000.000 da existência do universo. A era moderna começou em 1492, há 497 anos atrás, de modo que tinha metade da idade atual há 248 anos, em 1741. Nessa época, os Estados Unidos ainda não haviam conquistado sua independência, o que só iria ocorrer depois de mais 25 anos. Assim, toda a história dos Estados Unidos como nação 8

independente está contida na segunda metade da era moderna ou no último 1/70.000.000 da existência do universo. Vamos parar por aqui! A razão pela qual me dei ao trabalho de escrever toda essa ladainha foi mostrar ao leitor que cada passo no caminho para chegarmos ao que somos hoje cabe confortavelmente na segunda metade do passo anterior, isto é, que no passado do universo, todos os trabalhos feitos pela metade mal haviam começado. Pense a respeito e logo compreenderá que isso quer dizer que a velocidade das mudanças (pelo menos das mudanças que interessam ao homem moderno) tem aumentado constantemente durante toda a história do universo. Para as pessoas interessadas em ficção científica, esta constatação leva a duas reflexões: 1. Por quanto tempo essa tendência vai durar? Nenhuma grandeza física pode aumentar cada vez mais depressa por um tempo infinito; sempre existe um ponto de inflexão a partir do qual a taxa de aumento começa a diminuir. Afinal, a taxa de aumento se torna nula e, na maioria dos casos, a própria grandeza começa a diminuir. Como será a vida depois que for atingido o ponto de inflexão da velocidade das mudanças? 2. Muitas histórias de ficção científica se passam no futuro distante. Minhas histórias da Fundação, por exemplo, ocorrem daqui a 20.000 anos. Suponhamos, porém, que se passassem apenas 500 anos no futuro. Considerando o fato de que a velocidade das mudanças está aumentando constantemente, como alguém teria coragem de tentar prever como será a vida daqui a 500 anos? Eu tenho essa coragem, como muitos dos meus colegas, mas acho que é apenas a ousadia da ignorância.

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CARTAS As cartas para esta seção devem ser enviadas para o seguinte endereço:

ISAAC ASIMOV MAGAZINE Caixa Postal 884 20001 - Rio de Janeiro, RJ Sr Editor:

Fiquei muito satisfeito ao saber que a Record lançou uma revista de ficção científica, gênero que tem sido (injustamente) ignorado pela maioria das grandes editoras brasileiras. Espero que de agora em diante a ficção científica tenha em nosso país o reconhecimento que merece como o mais criativo de todos os gêneros literários. Rosane Caetano Rio de Janeiro, RJ Há alguns anos, a ficção científica era considerada como sub­ literatura. Hoje, porém, é tida como um instrumento de percepção social tão importante que existem cursos sobre ficção científica em universidades dos EUA e da França, entre outros países. Alguns cientistas políticos a encaram como uma forma de obter modelos de sociedades alternativas com base em projeções da realidade atual. Rosane, a justiça pode tardar mas não falha! Prezado Editor: Tenho uma curiosidade a respeito da literatura de ficção científica: gostaria de saber se a maioria dos autores tem formação científica. Leonardo Ribeiro Porto Alegre, RS 10

Hoje em dia, Leonardo, o conhecimento científico está ao alcan­ ce dos leigos, através de inúmeros livros e revistas de divulgação. Alguns autores, como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, dispõem de uma gama maior de informações, graças à sua formação téc­ nico-científica. Mas há outros, como Harry Harrison, que, apesar de não terem nenhum estudo formal na área científica, podem ser incluídos entre os mestres do gênero. Prezado Editor: Acabei de ler o primeiro número de Isaac Asimov Magazine e fiquei fascinada com o conto “Pesadelos da Mente Clássica” de Charles Sheffield. Gostaria que a revista publicasse outros contos do mesmo autor. Mônica Sampaio São Paulo, SP Mônica, seu desejo já foi atendido; os contos de Charles Sheffi­ eld “O Destruidor de Mundos” e “A Serpente do Velho Nilo” apare­ cem nos números 2 e 3 da IAM, respectivamente. Caro Editor: O índice do número 3 da IAM está bem diferente dos anteriores. Gostei da classificação dos contos em longos, médios e curtos (que são chamados, respectivamente, de novelas, noveletas e contos), porque fica mais fácil para o leitor escolher o que vai ler de acordo com o tempo de que dispõe. Fica uma dúvida, porém: qual o critério usado para enquadrar o conto em uma determinada categoria? Miguel Santana Recife, PE Miguel, estamos usando a mesma classificação do original em inglês. Consultamos nosso amigo Roberto de Sousa Causo, editor do Anuário Brasileiro de Ficção Científica, e ele nos informou que 11

o critério é o seguinte: conto (short story), até 7.500 palavras; no­ veleta (novelette, entre 7.500 e 17.500 palavras; novela (novella), entre 17.500 e 40.000 palavras. Existe ainda a categoria roman­ ce (novel), que não é usada na nossa revista, para histórias com mais de 40.000 palavras.

Títulos Originais Pela Metade/Half-Done (November 1989/149) A Flor de Vidro/The Glass Flower (September 1986/109) O Último a Saber/The Last One to Know (April 1989/142) Tríptico Lunar: Abraçando a Noite/Lunar Triptych: Embracing the Night/Mid-December 1989/151) O Problema do Avô/The Grandfather Problem (August 1988/133) Lógica É Lógica/Logic Is Logic (August 1985/94) Superstições Comuns/Common Superstitions (October 1988/135) Premonição/Prescience (January 1989/139) A Mulher de Prata e o Quarentão/Silver Lady and the Fortyish Man (January 1989/139) Eventos que Aconteceram um Dia Antes de Outros Eventos/Events Which Took Place a Day Before Other Events (September 1989/147) A Hora de Acordar/Wake-up Call (December 1988/137) O Ovo/The Egg (January 1989/139)

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DEPOIMENTO

MINHA EXPERIÊNCIA NO BRASIL Orson Scott Card “Se vocês que escrevem ficção científica no Brasil quiserem dar um grande presente ao público norte-americano, permitam-nos experimentar a cultura de vocês nas histórias que escreverem, mesmo que se passem em tempos e lugares muito distantes da Terra do final do século XX.” Trechos de uma entrevista concedida a Roberto de Sousa Causo, editor do Anuário Brasileiro de Ficção Científica, por Orson Scott Card, autor do livro O Segredo do Abismo (The Abyss), publicado pela Editora Record e inspirado no filme homônimo de James Cameron. Orson Scott Card é, no momento, um dos mais populares escritores de FC nos Estados Unidos. RSC — Sr. Card, muitos brasileiros não sabem que o senhor viveu dois anos no Brasil, de 1972 a 1973, antes de vender sua primeira história, o que viria a ocorrer em 1976. Um outro missionário, natural de Oregon, me disse que se aprende mais em dois anos de missão do que em igual tempo passado em qualquer universidade do mundo. Sem dúvida o contato com pessoas de todas as origens, classes e opiniões parece ser o laboratório ideal para um escritor. Que influência tiveram essa passagem pelo Brasil e esse contato com o povo brasileiro na sua formação específica como escritor de FC? OSC — Toda história de ficção científica se passa em um cenário diferente da realidade do momento. Entretanto, muitos autores de ficção científica nunca tiveram a oportunidade de ser “estranhos numa terra estranha”. O simples fato de viver em um país diferente daquele em que nasci me proporcionou uma dose dupla de educação: primeiro, porque me adaptei à língua, 13

costumes e modo de pensar de outro povo até me sentir tão à vontade no Brasil como em minha terra natal; segundo, porque ao voltar aos Estados Unidos foi meu próprio país que me pareceu estranho. Em outras palavras: viver em um país estrangeiro permite que um autor de ficção científica separe em sua mente os elementos que são características humanas dos que são apenas costumes locais. Os brasileiros fazem muitas coisas de forma diferente dos americanos, e alguns dos meus companheiros missionários jamais chegaram a compreender que isso não significava que os brasileiros estivessem errados, apenas que existem várias formas de fazer o que é certo. Muitos de nós nos apaixonamos pela maneira de viver dos brasileiros. Como os Estados Unidos, o Brasil tem problemas, e existem setores em que o povo brasileiro não é melhor que o povo norte-americano. Somos todos imperfeitos. Mas é exatamente por isso que precisamos de ficção... para mostrar nossas imperfeições e nos dar uma imagem clara do que podem ser a nobreza e a grandeza. Isso é o que aprendi no Brasil em termos gerais. Especificamente, é claro, usei a língua e os costumes do Brasil em muitas das minhas obras, como uma maneira de forçar meus leitores norte-americanos a perceber que o futuro não será povoado exclusivamente por nativos do Kansas. Um dos defeitos mais gritantes da ficção científica que se faz hoje em dia é o número incrível de histórias que parecem sugerir que toda a raça humana será composta por norte-americanos daqui a cinqüenta anos, Que bobagem! O futuro não pertencerá a países decadentes como os Estados Unidos, que chegaram ao apogeu em 1920, ou mesmo o Japão, que está passando pelo auge no momento presente. O futuro pertencerá, isso sim, a países em desenvolvimento, como o Brasil, o México, a Nigéria, a Polônia, a Hungria, e principalmente a China. De modo que é absurdo que os autores de ficção científica, que têm obrigação de imaginar todas as possibilidades para a raça humana no futuro, escrevam história após história nas quais todos os personagens do futuro agem, falam e pensam como norte-americanos. Meus anos no Brasil me ajudaram a evitar essa tendência em minhas obras, embora eu me apresse a admitir que minhas 14

histórias contêm uma certa dose de preconceito cultural. Afinal, sou norte-americano, e mesmo que possa evitar todos os preconceitos culturais que chegam à minha consciência, existem certamente mil outros preconceitos inconscientes, que aparecem no meu trabalho sem que eu me dê conta disso. É muito importante que os autores de ficção científica que não nasceram nos Estados Unidos situem muitas ou mesmo a maioria de suas histórias em um futuro criado por eles próprios, sem nenhuma influência da cultura norte-americana, exatamente porque, fazendo assim, estarão contribuindo para alargar os horizontes da ficção científica. Se vocês que escrevem ficção científica no Brasil quiserem dar um grande presente ao público norte-americano (que continua a ser o maior público deste planeta), permitam-nos experimentar a cultura de vocês nas histórias que escreverem, mesmo que se passem em tempos e lugares muito distantes da Terra do final do século XX. RSC — No Brasil, hoje, ocorre uma discussão em torno da idéia de que os autores nacionais deveriam tentar se aproximar mais da realidade brasileira, descobrindo a ficção científica pelo modo de ver do brasileiro e vice-versa; ver a nossa realidade pela ótica da ficção científica. A corrente opositora argumenta que o caráter universalista da FC não permite esse tipo de proposta. Como o senhor se posicionaria? Através de sua experiência aqui, acredita que a cultura brasileira tem algo a acrescentar à ficção científica como gênero? OSC — Já falei sobre o assunto em minha resposta anterior, mas gostaria de fazer mais algumas observações. A ficção científica é a maior revolução que ocorreu na literatura mundial desde a invenção do romance no século XVIII, mas até recentemente quase toda a ficção científica era escrita em inglês, e mais particularmente nos Estados Unidos. O resultado é que quando você lê ficção científica, a maior parte das vezes é ficção científica norte-americana e, se não tomar cuidado, acabará pensando que certos aspectos norte-americanos da FC são parte de qualquer obra desse gênero. Na verdade, é exatamente o oposto. Para a ficção científica amadurecer, ela precisa se libertar de suas raízes nos Estados Unidos e Inglaterra. Isso é muito difícil para os autores norte15

americanos e ingleses, mas deve ser fácil para vocês. De certo modo, vocês não podem deixar de se afastar de nós, porque, ao escreverem histórias de ficção científica, incluem necessariamente muitos aspectos da cultura brasileira, mesmo que não tenham consciência disso e que não situem deliberadamente a história em um ambiente brasileiro. Entretanto, acho importante que vocês localizem muitas, ou talvez mesmo a maioria, de suas histórias em um contexto brasileiro, por quatro motivos. Primeiro, porque isso será bom para a ficção científica como um todo, ajudando-a a ampliar seus horizontes. Segundo, porque é mais fácil escrever e ler histórias de ficção científica nas quais a sociedade do futuro difere da atual apenas em alguns aspectos; por que aumentar a dificuldade do leitor brasileiro apresentando-lhe um cenário em que tudo é diferente da realidade a que está acostumado? Terceiro, porque o uso de ambientes brasileiros, por estranho que possa parecer, facilitará a venda desses trabalhos nos Estados Unidos. No momento, o público norte-americano de FC está despertando para a idéia de que a ficção científica é uma literatura sem fronteiras. O fato de você ser um escritor estrangeiro ambientando as histórias em sua terra natal tornará essas histórias mais interessantes para o público norte-americano. Quarto, porque é vital para qualquer comunidade literária adquirir uma personalidade própria. Se vocês tentarem escrever FC ignorando as raízes nacionais, acabarão provavelmente imitando a FC norte-americana. Por outro lado, se incluírem abertamente a cultura local, o brasileirismo resultante será uma revolução dentro da ficção científica, da mesma forma como a ficção científica praticada por vocês será uma revolução dentro da literatura brasileira! Quando a FC começou a existir nos Estados Unidos, nas décadas de 1930 e 1940, ela era orgulhosamente, quase arrogantemente, norte-americana. Isso foi parte do que nos deu forças para lutar. Vocês também têm muito a ganhar injetando um forte sentimento nacionalista na FC que fizerem. Isso não quer dizer que a FC brasileira se dedique exclusivamente a louvar o Brasil. O trabalho de um contador de histórias é ajudar seu povo a crescer e a mudar. Em outras palavras, enquanto às vezes vocês usarão o cenário para mostrar que se 16

orgulham de ser brasileiros, outras vezes o usarão para satirizar os erros que observam no país. Charles Dickens não apenas fez os ingleses se orgulharem de sua pátria, mas também os deixou envergonhados por suas falhas; Mark Twain e Harriet Beecher Stowe fizeram o mesmo com o povo dos Estados Unidos. Como, porém, vocês podem propor mudanças no Brasil se as histórias que escrevem não estão claramente contidas na cultura brasileira, se vocês não propõem questões tipicamente brasileiras? O Brasil é um país que a qualquer momento terá um impacto cultural profundo no resto do mundo. A música brasileira está ficando cada vez mais popular nos Estados Unidos (pelo menos posso comprar vários CD brasileiros em qualquer cidade grande!); que isso seja acompanhado pela literatura de vocês... literatura de boa qualidade... que nos revele a cultura brasileira em toda a sua grandeza. Não estou exagerando quando afirmo que vocês têm a responsabilidade de ser os embaixadores do Brasil no resto do mundo, ao mesmo tempo que devem ser profetas dentro de sua pátria, apontando erros e clamando por mudanças. Depois de dizer isso, naturalmente, devo também dizer que um autor deve escrever apenas sobre as coisas de que gosta e em que acredita. Assim, se você escreve FC e não se interessa por histórias passadas no Brasil, não deve usar cenários brasileiros apenas porque um escritor norte-americano disse que devia fazê-lo. Escreva apenas sobre o que lhe agrada. Mesmo assim, é inegável que os autores brasileiros de FC com maior probabilidade de sucesso, tanto no país como no exterior, são os que escrevem histórias que se passam no contexto da cultura brasileira... seja na Terra (no futuro próximo ou no passado), seja em algum outro planeta, para onde os colonos brasileiros levaram o gosto pelo samba, feijoada e cafezinho! RSC —- Para terminar, gostaria que dissesse para nossos leitores quais os dez nomes mais importantes da FC norte-americana de hoje. OSC — Em minha opinião são: Bruce Sterling, Gene R. Wolfe, Lisa Goldstein, Charles de Lint, Karen Joy Fowler, John Kessel, Tim Powers, M.J. Engh, Lois Mc-Master Bujold e Lewis Shiner. Não há dúvida de que deixei de fora muita gente boa, 17

como não há dúvida de que, se fosse escrever esta lista na semana que vem, ela seria diferente. Mas entre os jovens autores cujo trabalho está tendo o maior impacto no campo no momento atual, estes são os dez que eu escolheria.

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A Flor de Vidro George R R Martin Tradução – Fabio Fernandes George R R Martin escreveu vários episódios da nova série Além da Imaginação e um conto seu, publicado em 1985, Portrait of his childrem, ganhou um dos prêmios Nebula daquele ano e concorreu ao “Oscar” da ficção científica, o troféu Hugo. Um dia, quando eu era apenas uma menina no primeiro auge de minha verdadeira juventude, um rapaz me deu uma flor de vidro como símbolo de seu amor. Ele era um rapaz raro e precioso, embora, confesso, há muito tenha esquecido seu nome. Rara e preciosa também era a flor que ele me deu. Nos mundos de plástico e aço onde passei minhas vidas, a antiga arte de soprar vidro se perdeu, mas o artesão desconhecido que fez a minha flor lembrava-se bem dela. Minha flor tem uma haste longa e delicada, curva e graciosa, toda de vidro fino de excelente qualidade, e daquele frágil suporte desabrocha o botão, grande como meu punho fechado, impossivelmente exato. Cada detalhe está captado ali, congelado em cristal por toda a eternidade; pétalas grandes e pequenas se aglomeram, explodindo para fora do centro da flor num lento e transparente turbilhão, cercadas por uma coroa de seis folhas largas, caídas, cada uma com seu traçado de veias intacto, cada uma única. Era como se um alquimista tivesse um dia passado por um jardim, e num momento de diversão ociosa tivesse transmutado uma flor especialmente grande e bonita em vidro. A única coisa que lhe falta é vida. Guardei essa flor comigo por quase duzentos anos, muito depois que deixei o rapaz que a deu para mim e o mundo onde isso aconteceu. Por todos os variados capítulos de minhas vidas, a flor de vidro sempre esteve ao alcance de minha mão. Eu gostava de deixá-la num vaso de madeira envernizada e colocá-la no alpendre de uma janela. Às vezes as folhas e as pétalas captavam 21

o sol e explodiam em brilho por um instante incandescente; em outros momentos elas filtravam e fragmentavam a luz, espalhando arco-íris borrados no piso. Com freqüência antes do crepúsculo, quando o mundo ficava mais pálido, a flor parecia desvanecer de vista inteiramente, e eu poderia ficar sentada olhando um vaso vazio. Mas, quando a manhã chegava, a flor estaria novamente lá. Ela nunca me faltou. A flor de vidro era terrivelmente frágil, mas jamais aconteceu algo com ela. Eu cuidava dela muito bem; melhor, talvez, do que jamais cuidei de qualquer coisa ou pessoa. Sobreviveu a vários amantes, mais de uma dúzia de profissões, e mais mundos e amigos do que posso me lembrar. Estava comigo na minha juventude em Ash e Erikan e Shamdizar, e depois em Esperança Errante e Vagabundo, e ainda depois quando envelheci em Dam Tullian e Lilith e Gulliver. E quando finalmente deixei de vez o espaço humano, coloquei todas as minhas vidas e todos os mundos dos homens atrás de mim, e novamente me tornei jovem, a flor de vidro ainda estava ao meu lado. E, por muito tempo, em meu castelo construído sobre pilares, em minha casa de dor e renascimento onde se joga o jogo da mente, entre os pântanos e fedores de Croan’dhenni, longe de toda a humanidade com exceção das poucas almas perdidas que nos procuram... também estava lá, a minha flor de vidro. No dia em que Kleronomas chegou. — Joachim Kleronomas —- eu disse. — Sim. Há ciborgues e ciborgues. Tantos mundos, tantas culturas diferentes, tantos conjuntos de valores e níveis de tecnologia. Alguns são metade orgânicos, uns mais, outros menos; alguns exibem apenas uma única mão metálica, o resto de seus cibercorpos inteligentemente ocultos por baixo da carne. Alguns ciborgues usam sintacarne, que é indistinguível da pele humana, embora isso não seja grande feito, devido à variedade de peles que se podem ver entre os mil mundos. Alguns escondem o metal e exibem a carne; com outros, a recíproca é verdadeira. O homem que se chamava Kleronomas não tinha carne para esconder ou exibir. Um ciborgue ele se dizia, mas, em pé à minha frente, parecia mais um robô, insuficientemente orgânico 22

para passar até mesmo por um andróide. Ele estava nu, se é que uma coisa de metal e plástico pode estar nua. Seu peito era pintado; alguma liga de metal ou plástico preto reluzente, eu não sabia dizer. Os braços e pernas eram de plastaço transparente. Por baixo daquela pele falsa, eu via o metal escuro de seus ossos de duralloy, as barras e flexores que eram os músculos e tendões, os micromotores e computadoressensores, o intrincado padrão de luzes que corria para cima e para baixo de seu neurossistema supercondutor. Seus dedos eram de aço. Na mão direita, longas garras de prata saltavam dos nós dos dedos quando os fechava num punho. Olhava para mim. Seus olhos eram lentes cristalinas embutidas em soquetes de metal, movendo-se para a frente e para trás em algum tipo de gel translúcido verde. Não havia pupilas visíveis; por trás de cada implacável íris rubra queimava uma fraca luz que dava ao seu olhar um brilho vermelho de algo maligno. — Sou assim tão fascinante? — perguntou ele. Sua voz era surpreendentemente natural; profunda e ressonante, sem ecos metálicos para corroer a humanidade de suas inflexões. — Kleronomas — falei. — Seu nome é fascinante, certamente. Há muito tempo, houve outro homem com esse nome, um ciborgue, uma lenda. É claro que você sabe disso. O da Pesquisa Kleronomas. O fundador da Academia do Conhecimento Humano, em Avalon. Seu ancestral? Talvez corra metal em sua família. — Não — respondeu o ciborgue. — Eu mesmo. Eu sou Joachim Kleronomas. Sorri. — E eu sou Jesus Cristo. Gostaria de conhecer meus apóstolos? — Você duvida de mim, Sábia? — Kleronomas morreu em Avalon há mil anos. — Não. Ele está aqui na sua frente. — Ciborgue, estamos em Croan’dhenni. Você não teria vindo aqui a não ser que procurasse renascimento, a não ser que procurasse ganhar vida nova no jogo da mente. Então esteja avisado. No jogo da mente, suas mentiras serão arrancadas de 23

você. Sua carne e seu metal e suas ilusões, nós tomaremos tudo, e no fim só haverá você, mais nu e sozinho do que jamais poderá imaginar. Portanto, não desperdice meu tempo. Tempo é a coisa mais preciosa que possuo. A coisa mais preciosa que qualquer um de nós tem. Quem é você, ciborgue? —- Kleronomas — respondeu ele. Com zombaria na voz? Não soube dizer. Seu rosto não foi feito para sorrir. — Você tem nome? — perguntou-me. — Vários. — Qual você usa? — Meus jogadores me chamam Sábia. — Isso é um título, não um nome. Sorri. — Você é viajado, então. Como o verdadeiro Kleronomas. Bom. Meu nome de nascimento era Cyrain. Suponho que esse, de todos os meus nomes, é o que estou mais acostumada a utilizar. Usei-o pelos primeiros cinqüenta anos de minha vida, até ir para Dam Tullian e estudar para ser uma sábia e assumir um novo nome com o título. — Cyrain — repetiu. — Só isso? — Só. — Em que mundo você nasceu? . — Ash. — Cyrain de Ash. Quantos anos você tem? — Em contagem padrão? — Claro. Dei de ombros. — Quase duzentos. Perdi a conta. — Você parece uma criança, uma menina perto da puberdade, não mais que isso. — Sou mais velha que meu corpo. — Assim como eu. A maldição do ciborgue, Sábia, é que as partes podem ser substituídas. — Então você é imortal? — desafiei. — Grosso modo, sim. — Interessante. Contraditório. Você vem aqui mim, para Croan’dhenni e seu Artefato, para o jogo da mente. Por quê? Este é um lugar para onde vêm os moribundos, ciborgue, na esperan24

ça de ganhar vida. Não recebemos muitos imortais. — Busco um prêmio diferente — respondeu o ciborgue. — Sim? — Morte. Vida. Morte. Vida. — Duas coisas diferentes — retruquei. — Opostas. Inimigas. — Não — respondeu o ciborgue. — Elas são a mesma coisa. Há seiscentos anos, uma criatura conhecida em lenda como o Branco desceu entre os Croan’dhennis na primeira nave espacial que jamais haviam visto. Se as descrições no folclore croan’dhique podem ser confiáveis, então o Branco não era de nenhuma raça que já encontrei, nem ouvi falar, embora eu seja muito viajada. Isso não me surpreende. O reino do homem e seus mil mundos (talvez haja o dobro desse número, talvez menos, mas quem pode contar?), os impérios espalhados de Fyndii e Damush e G’vhern e N’or Talush, e todos os outros sencientes que nos são conhecidos por contatos ou rumores, todos estes juntos, todas aquelas terras e estrelas e vidas coloridas pela paixão e sangue e história, vencendo orgulhosos os anos-luz, através dos golfos negros que só os volcryn conheceram de fato, tudo isso, todo o nosso pequeno universo... é apenas uma ilha de luz cercada por uma área muitíssimo mais vasta de sombra e mito que acaba caindo na escuridão da ignorância. E isto apenas em uma pequena galáxia, cujos limites verdadeiros não deveremos alcançar jamais, ainda que existamos por mais um bilhão de anos. No fim das contas, o simples tamanho das coisas nos vencerá, não importa se lutemos ou corramos de medo; estou consciente disso. Mas não me deixo vencer facilmente. Este é meu orgulho, meu último e único orgulho; não é muita coisa para se enfrentar as trevas, mas já é alguma coisa. Quando o fim chegar, eu o enfrentarei com luta. O Branco era parecido comigo nesse ponto. Ele era um sapo que vinha de uma lagoa além da nossa, um lugar perdido na neblina onde nossas pequenas luzes ainda não brilharam nas águas escuras. Seja qual for o tipo de criatura que possa ter sido, 25

seja qual for o fardo de história e evolução que carregava em seus genes, era sem dúvida do meu tipo. Nós dois éramos mariposas furiosas, voando sem descanso de estrela a estrela porque, sozinhos entre nossos companheiros, sabíamos como era curto o nosso dia. Nós dois encontramos nosso destino nestes pântanos de Croan’dhenni. O Branco veio totalmente só a este lugar, pousou sua pequena nave (vi os restos: um brinquedo aquela nave, mas com linhas profundamente alienígenas para mim, e deliciosamente arrepiante), e, explorando, descobriu uma coisa. Uma coisa mais velha do que ele, e mais estranha. O Artefato. Qualquer instrumento estranho que ele possuísse, qualquer conhecimento secreto alienígena que tivesse, qualquer instinto que o tivesse comandado; tudo está perdido agora, e nada disso importa. O Branco sabia, sabia alguma coisa que os sencientes nativos jamais haviam imaginado, ele sabia o propósito do Artefato, sabia como ativá-lo. Pela primeira vez em... mil anos? Um milhão? Pela primeira vez em muito tempo, o jogo da mente foi jogado. E o Branco mudou, emergiu do Artefato como outra coisa, como o primeiro. O primeiro senhor da mente. O primeiro senhor da vida e da morte. O primeiro mestre da dor. O primeiro senhor da vida. Os títulos nascem, se desgastam, são descartados e esquecidos, e nenhum deles importa. Independente do que eu seja, o Branco foi o primeiro. Tivesse o ciborgue pedido para conhecer meus Apóstolos, eu não o desapontaria. Quando ele foi embora, eu os reuni. — O novo jogador — disse-lhes — chama a si mesmo de Kleronomas. Quero saber quem é ele, o que é ele e o que espera ganhar. Descubram isso para mim. Eu podia sentir a fome e o medo deles. Os Apóstolos são uma ferramenta útil, mas lealdade não é para eles. Reuni ao meu lado doze Judas Iscariotes, cada um deles ansioso por aquele beijo. — Vou providenciar uma varredura completa — sugeriu o dr. Lyman, olhos pálidos me considerando, o sorriso bajulador tremendo na boca. 26

— Será que ele consente numa interface? — perguntou Verde Deidade-9, meu próprio cibernético. Sua mão direita, de carne vermelha e preta queimada de sol, estava fechada num punho; a esquerda era uma bola de prata com uma fenda por onde saía um ninho de tentáculos que se contorciam. Por baixo das sobrancelhas grossas, onde ele deveria ter os olhos, uma faixa lisa de vidro escuro espelhado estava embutida no crânio. Os dentes eram cromados. Seu sorriso era muito brilhante. — Vamos descobrir — respondi. Sebastian Cayle flutuava em seu tanque, um embrião distorcido com uma cabeça monstruosa, nadadeiras movendo-se devagar, grandes olhos cegos voltados em minha direção através de fluidos esverdeados, túrgidos, enquanto bolhas subiam por sua pele nua rosada. Ele mente, disse a voz na minha cabeça. Vou descobrir a verdade para você, Sábia. — Ótimo — respondi. Tr’k’nn’r, meu telepata Fyndii, cantou para mim numa voz agudíssima, nos limites da audição humana. Sobrepujava todos eles como um desses bonecos de desenho de criança, um boneco de três metros de altura, com articulações demais, dobras em todos os lugares errados, em todos os ângulos errados, juntado por ossos velhos acinzentados como se queimados por algum fogo antigo. Mas os olhos cristalinos sob as sobrancelhas protuberantes ferviam enquanto cantava, e fluidos negros cheirosos escorriam do fundo de sua boca vertical sem lábios. Sua canção era de dor e gritos e de nervos em chamas, de segredos revelados, da verdade arrancada fumegante e crua de todos os seus recantos ocultos. — Não — falei. — Ele é um ciborgue. Só sente dor se quiser. Fecharia seus receptores e deixaria você sozinho, e sua canção encontraria o silêncio. A neuroputa Shayalla Loethen sorria resignada. — Então não há nada para eu trabalhar também, Sábia? — Não estou certa — admiti. — Ele não possui genitália aparente, mas se ainda tiver algo de orgânico, seus centros de prazer deverão estar intactos. Ele afirma ter sido macho. Os instintos ainda podem estar passíveis de funcionamento. Descubra. Ela assentiu. Seu corpo era macio e branco como a neve, 27

e às vezes frio, quando ela queria frio, e às vezes incandescente, quando era seu desejo. Os lábios que agora mordiscava de antecipação eram vermelhos-vivos. Os trajes que dançavam ao seu redor mudavam de forma e cor a todo instante, e em seus dedos brincavam fagulhas, fazendo arcos entre suas longas unhas pintadas. — Drogas? — perguntou Braje, biomédica, genengenheira, envenenadora. Estava sentada pensando, mascando algum tranqüilizante elaborado por ela própria, o corpo inchado tão úmido e macio quanto os pântanos lá de fora. — Verdadex? Agonina? Esperon? — Duvido — retruquei. — Doenças — sugeriu ela. — Mantrax ou gangrena. A praga lenta, e nós oferecemos a cura? —- Ela riu. — Não — respondi seca. E o restante, um por vez. Todos tinham sua sugestão, suas formas de descobrir coisas que eu queria saber, de se mostrarem úteis para mim, de merecer minha gratidão. Assim são meus Apóstolos. Eu os ouvi, me deixei ser levada pelo burburinho de vozes, pesei, considerei, dei ordens e finalmente mandei todos embora, todos menos um. Khar Dorian será aquele que me beijará quando o dia finalmente chegar. Não preciso ser uma Sábia para estar ciente disso. O resto deles quer alguma coisa de mim. Quando conseguirem, irão embora. Khar conseguiu seu desejo há muito tempo, e mesmo assim ele volta e volta e volta, ao meu mundo e à minha cama. Não é amor por mim que o traz de volta, nem a beleza do corpo jovem que uso, nem nada tão simples quanto as riquezas que ele ganha. Tem coisas mais grandiosas em mente. — Ele veio com você — falei. —- Desde Lilith. Quem é ele? — Um jogador — respondeu Dorian, sorrindo torto para mim, me tentando. Ele é surpreendentemente bonito. Esbelto e rústico e bonito, com a arrogância e a sexualidade masculina fresca de um homem na casa dos trinta, cheio de saúde e poder e hormônios. Seu cabelo é louro e longo e solto. Seu maxilar é forte e o rosto liso, o nariz reto sem defeitos, os olhos um halo de azul vibrante. Mas existe algo de velho vivendo por trás daqueles 28

olhos, algo de velho e cínico e sinistro. — Dorian, não tente brincar comigo. Ele é mais do que um simples jogador. Quem é ele? Khar Dorian levantou-se, esticou-se preguiçoso, bocejou e sorriu. — Quem ele diz que é — retrucou meu feitor de escravos. — Kleronomas. Moralidade é uma roupa justa que, quando chega a apertar, aperta mesmo, mas a vastidão entre as estrelas logo a descostura, separando-a em muitos fios, cada um de colorido brilhante, mas sem formar padrão discernível. O vagabundo modernoso é um rústico espetacular em Cathaday, os imirianos derretem em Vess, os vessanos congelam em Imir, e as luzes móveis que os felaneis vestem em lugar da roupa provocam estupros, tumultos e assassinatos em alguns mundos. O mesmo ocorre com a moral. O Bem não é mais constante que o corte de uma lapela; a decisão de tomar uma vida senciente não pesa mais do que a decisão de deixar os seios de fora, ou escondê-los. Há mundos em que sou um monstro. Parei de me importar com isso há muito tempo. Vim para Croan’dhenni com meu próprio senso de moda, e nenhuma preocupação com os julgamentos estéticos dos outros. Khar Dorian se considera um feitor de escravos, e me diz que o que fazemos é realmente negociar a carne humana. Ele pode se chamar do que quiser. Não sou feitora; a acusação me ofende. Um feitor vende seus clientes em servidão, os priva de liberdade, mobilidade e tempo, preciosas comodidades. Eu não faço tal coisa. Sou apenas uma ladra. Khar e seus subordinados os trazem para mim das cidades superlotadas de Lilith, das montanhas difíceis e das vastidões geladas de Dam Tullian, de palafitas podres ao longo dos canais de Vess, de bares nos espaçoportos de Fellanora e Cymeranth e Shrike, de onde quer que possa encontrá-los, ele os apanha e os traz para mim, e eu roubo deles e os liberto. Muitos se recusam a ir. Eles se aglomeram do lado de fora das muralhas de meu castelo na cidade que construíram, atiram presentes para mim 29

quando passo, chamam meu nome, me pedem favores. Eu lhes dei liberdade, mobilidade e tempo, e eles desperdiçam isso tudo com futilidades, esperando ganhar de volta a única coisa que roubei. Roubo seus corpos, mas quem perde as almas são eles mesmos. E talvez eu seja muito dura comigo mesma me chamando de ladra. Essas vítimas que Khar me traz são jogadores involuntários do jogo da mente, mas jogadores mesmo assim. Outros pagam tanto e arriscam tanta coisa pelo mesmo privilégio. Alguns, nós chamamos de jogadores, e outros, chamamos de prêmios, mas quando a dor começa e o jogo da mente se inicia, somos todos a mesma coisa, todos nus e sozinhos, sem riquezas ou saúde ou status, armados apenas com a força que mora dentro de nós. Ganhar ou perder, viver ou morrer, nós decidimos, apenas nós. Eu lhes dou uma chance. Alguns até venceram. Muito poucos, na verdade, mas quantos ladrões dão qualquer chance às suas vítimas? Os Anjos de Aço, cujos mundos ficam longe de Croan’dhenni, do outro lado do espaço humano, ensinam a seus filhos que a única virtude é a força e a fraqueza, o único pecado, e pregam que a verdade de sua fé está escrita com todas as letras no próprio universo. Difícil argumentar esse ponto. Pelo seu credo, tenho todo direito moral sobre os corpos que tomo, porque sou mais forte e portanto melhor e mais sagrada do que os que nasceram com aquela carne. Infelizmente a garotinha nascida no meu presente corpo não era um Anjo de Aço. — Com o bebê são três, mesmo que o bebê seja feito de metal e plástico e se considere uma lenda — comentei. — Ahn? — Rannar olhou para mim sem entender. Ele não é tão viajado quanto eu, e a referência, algo que desenterrei de minha juventude esquecida em algum mundo por onde ele jamais andou, escapou-lhe inteiramente. Seu rosto longo e amargo tinha um ar de inquietação paciente. — Agora temos três jogadores — disse-lhe com cuidado. — Podemos jogar o jogo da mente. Isto Rannar entendeu. 30

— Ah, sim, claro. Vou providenciar imediatamente, Sábia. Craimur Delhune era o primeiro. Uma coisa antiga, quase tão velha quanto eu, embora tivesse vivido toda a vida no mesmo corpo miúdo. Por isso estava tão acabado. Não tinha cabelos e estava todo enrugado, uma caricatura arquejante meio cega, a carne cheia de liga de metal plástico e implantes de metal que trabalhavam dia e noite só para mantê-lo vivo. Não era algo que pudessem continuar a fazer por muito tempo, mas Craimur Delhune ainda não tinha vivido o bastante, e então viera a Croan’dhenni para pagar pela carne e começar tudo novamente. Estava esperando havia quase meio ano padrão. Rieseen Jay era um caso estranho. Tinha menos de cinqüenta e estava com uma saúde decente, embora a carne tivesse suas próprias cicatrizes. Rieseen estava entediada. Havia experimentado todos os prazeres que Lilith oferecia, e Lilith oferece muitos prazeres. Provara cada comida, viajara em cada droga, fizera sexo com homens, mulheres, alienígenas e animais, arriscou a vida esquiando nas geleiras, atiçando dragões-das-profundezas, lutando nas guerras aéreas para o deleite dos holofãs em toda parte. Achava que um novo corpo seria justamente o que acrescentaria gosto à vida. Talvez um corpo de homem, ela pensava, ou uma carne descorada alienígena. Temos poucos como ela. E com Joachim Kleronomas, eram três. No jogo da mente, há lugar para sete. Três jogadores, três prêmios, e eu. Rannar me ofereceu um porta-fólio grosso, cheio de fotografias e relatórios sobre os novos prêmios que chegaram nas naves de Khar Dorian, a Fênix Brilhante, a Segunda Chance, a New Deal e a Caldeirão de Carne (Khar sempre teve um certo senso de humor negro). O mordomo não saía de perto de mim, solícito e prestimoso, enquanto eu virava as páginas e fazia minhas escolhas. Ela é deliciosa, disse ele quando passei pela foto de uma vessana magra com olhos amarelos assustados que deixavam entrever uma mistura de genes híbridos. Muito forte e saudável este, disse depois, quando me detive considerando um rapaz bastante musculoso de olhos verdes e cabelos negros que batiam na cintura. Ignorei-o. Eu sempre o ignoro. 31

— Ele — escolhi, pegando a ficha de um rapaz magro como um estilete, a pele grossa coberta de tatuagens. Khar o adquirira das autoridades de Shrike, onde fora condenado por matar outro jovem de dezesseis anos. Em muitos mundos, Khar Dorian, o infame traficante, contrabandista, guerreiro e feitor, tinha um nome que era sinônimo do mal; os pais assustavam as crianças com ele. Em Shrike, ele era um cidadão correto que prestava grande serviço à comunidade comprando o lixo das prisões. — Ela — escolhi, pondo de lado uma segunda fotografia, de uma garota gordinha de mais ou menos trinta anos padrão cujos olhos verdes traíam uma certa alienação. De Cymeranth, dizia a ficha. Khar transformou uma de suas naves numa instalação criogênica para os mentalmente afetados e se servia de alguns corpos jovens, saudáveis e atraentes. Este era macio e gordo, mas isso mudaria assim que uma mente ativa usasse a carne novamente. A proprietária original havia consumido muito pó-do-sonho. — E este — terminei. A terceira ficha era a de um filhote g’vhern, um indivíduo de aspecto sombrio, de cavidades visuais magenta e enormes asas de morcego coriáceas que brilhavam com óleos iridescentes. Era para Rieseen Jay, que achava que poderia tentar um corpo não-humano. Se pudesse ganhá-lo. — Muito bem, Sábia — Rannar disse com aprovação. Ele sempre aprovava. Quando viera para Croan’dhenni, seu corpo era grotesco; ele havia sido apanhado na cama com a filha de seu empregador, um cavaleiro do sangue de Vlador, e a punição foi a de mutilação ritual extensa. Não tinha o preço de um jogo. Mas eu tinha dois jogadores esperando há quase um ano, um dos quais morrendo de mantrax, então quando Rannar me ofereceu dez anos de serviço fiel para compensar a diferença, aceitei. Às vezes eu me arrependia. Sentia seus olhos em meu corpo, sentia sua mente tirando a leve armadura de minhas roupas para agarrar, como uma sanguessuga, meus pequenos e crescentes seios. A garota com quem havia sido apanhado não era muito mais jovem do que a carne que agora visto. Meu castelo é feito de obsidiana. 32

Ao norte daqui, muito ao norte, nas vastidões geladas nebulosas onde fogos eternos queimam contra um céu púrpura, o vidro vulcânico preto se acumula no chão como pedras comuns. Foram necessários milhares de mineiros croan’dhiques e nove anos padrão para encontrar o bastante para meus propósitos e arrastar tudo até os pântanos, por todos aqueles quilômetros desolados. Foram necessárias centenas de artesãos e mais seis anos para cortar e polir e encaixar tudo no mosaico negro brilhante que é meu lar. Achei que o esforço valeu a pena. Meu castelo se ergue sobre quatro grandes pilares tortos, bem acima dos cheiros e da umidade dos pântanos croan’dhiques, fervilhando de luzes coloridas cujos fantasmas brilham dentro do vidro negro. Meu castelo brilha; uma coisa de beleza, austera e proibida, suprema e afastada da favela que cresceu ao seu redor, onde os perdedores e dispensados e despossuídos se aglomeram sem esperança em cabanas flutuantes, casas em árvores e buracos em árvores semi-apodrecidas. A obsidiana apela ao meu senso estético, e descubro que seu simbolismo é adequado a esta casa de dor e renascimento. A vida nasce no calor da paixão sexual assim como a obsidiana nasce no calor de um vulcão. A clara luz da verdade pode às vezes fluir pela sua escuridão, beleza vista muito mal através das trevas, e, como a vida, é terrivelmente frágil, com bordas que podem ser perigosamente afiadas. Dentro de meu castelo existem quartos e mais quartos, alguns revestidos com fragrantes madeiras nativas e cobertos com peles e tapetes espessos, alguns sem nada, negros, câmaras cerimoniais onde reflexos negros se movem pelas paredes de vidro e pegadas soam ruidosas contra pisos de vidro. No centro, no exato ápice, ergue-se uma torre de obsidiana em forma de cebola, sustentada por aço. Dentro da cúpula, uma única câmara. Ordenei a construção do castelo, substituindo uma estrutura mais antiga e muito modesta; e, para aquela câmara única na torre, mandei levarem o Artefato. É lá que se joga o jogo da mente. Minha própria suíte é na base da torre. As razões para isso também são simbólicas. Ninguém consegue renascer senão passando antes por mim. 33

Eu tomava meu desjejum na cama, frutas-manteiga e peixe cru e café preto forte, com Khar Dorian lânguido e insolente ao meu lado, quando meu Apóstolo sábio, Alta-k-Nahr, veio a mim com seu relatório. Ela ficou ao pé da cama, as costas curvadas como um grande ponto de interrogação pela doença, as feições compridas permanentemente marcadas numa careta de desagrado, a pele cheia de veias estofadas como grandes vermes azuis, e ela me contou de suas pesquisas sobre o Kleronomas histórico numa voz desnecessariamente suave. — Seu nome completo era Joachim Charle Kleronomas — ela começou — e era nativo da Nova Alexandria, uma colônia de primeira geração a menos de setenta anos-luz da velha Terra. Registros de sua data de nascimento, infância e adolescência são fragmentários e contraditórios. As lendas mais populares indicam que sua mãe era oficial de alto posto de uma nave de guerra da 13ª Frota Humana, sob o comando de Stephen Cobalt Northstar, e que Kleronomas só a viu duas vezes. Foi gestado numa mãe-hospedeira de aluguel e criado pelo pai, um estudioso menor de uma biblioteca em Nova Alexandria. Minha opinião é que esta história de sua origem explica, um pouco perfeitamente demais, como Kleronomas veio a combinar tanto a tradição escolástica quanto a militar; portanto, questiono sua confiabilidade. “Mais certo é o fato de que entrou para as forças militares em tenra idade, nos últimos dias da Guerra dos Mil Anos. Serviu inicialmente como técnico de sistemas num caça classe relâmpago da 17ª Frota Humana, distinguiu-se em ações no espaço profundo na área de El Dorado e Arturius e nos ataques em Hrag Druun, após o que foi promovido a cadete e recebeu treinamento de comando. Quando a 17ª foi transferida de sua base original em Fenris para a capital de um setor menor chamada Avalon, Kleronomas havia ganhado mais distinções, e era o terceiro-em-comando do bombardeiro Aníbal. Mas nos ataques em Hruun-Quatorze, o Aníbal sofreu pesados danos dos defensores hrangans, e foi finalmente abandonado. O caça em que Kleronomas fugia foi atingido pelo fogo inimigo e caiu no planeta, matando todos a bordo. Ele foi o único sobrevivente. Outro caça resgatou o que sobrou dele, mas estava tão perto da morte e tão 34

horrivelmente mutilado que o colocaram em criostocagem imediatamente. Foi levado de volta a Avalon, mas os recursos eram poucos e a procura muita, e não tinham tempo de se preocupar em revivê-lo. Mantiveram-no dormindo por anos. “Enquanto isso, o Colapso estava em pleno curso. Havia estado em pleno curso toda a sua vida, na verdade, mas as comunicações pela extensão do velho Império Federal eram tão lentas que ninguém sabia disso. Mas uma única década assistiu à revolta em Thor, a desintegração total da 15ª Frota Humana e a tentativa, da parte da Velha Terra, de remover Stephen Cobalt Northstar do comando da 13ª, o que levou inevitavelmente à secessão de Newholme e da maioria das outras colônias de primeira geração, à obliteração de Wellington por Northstar, à guerra civil, às colônias rebeldes, aos mundos perdidos, à quarta grande extensão, à lenda da frota do inferno, e por último ao fechamento da Velha Terra e o término efetivo do comércio estelar por uma geração. Mais do que isso, muito, muito mais, em alguns mundos mais remotos, muitos dos quais involuíram para a quase-selvageria ou desenvolveram estranhas culturas variantes. “No front, Avalon teve sua própria experiência pessoal com o Colapso quando Rajeen Tober, comandante da 17ª Frota, recusou-se a submeter-se às autoridades civis e levou suas naves para dentro do Véu da Tentação, para fundar seu próprio império, longe da retaliação hrangan e humana. A partida da 17ª deixou Avalon essencialmente indefesa. As únicas naves de guerra ainda no setor eram os antigos monstros da 5ª Frota Humana, que presenciara combate pela última vez havia quase sete séculos, quando Avalon era uma base de ataque muito distante contra os hrangans. Cerca de doze naves classe capital e trinta e tantas menores da 5ª permaneciam em órbita de Avalon, a maioria precisando de reparos extensos, todas funcionalmente obsoletas. Mas eram os únicos defensores de um mundo amedrontado, por isso Avalon determinou que fossem restauradas. Para tripular aquelas peças de museu, Avalon voltou-se para suas alas criogênicas, e começou a descongelar cada veterano de combate disponível, incluindo Joachim Kleronomas. Os danos que sofrera eram extensos, mas Avalon precisava de todo cor35

po possível. Kleronomas retornou mais máquina do que homem. Um ciborgue. Inclinei-me para a frente, a fim de interromper o recital de Alta. — Existe algum retrato dele como era então? — Sim. Antes e depois. Kleronomas era um homem grande, com pele negro-azulada, maxilar forte e protuberante, olhos cinzentos, cabelo longo, totalmente branco. Depois da operação, o maxilar e a metade inferior do rosto desapareceram completamente, substituídos por metal inteiriço. Nem nariz nem boca. Alimentava-se por via intravenosa. Perdeu um olho, que foi substituído por um sensor cristalino com alcance de espectros infravermelho/ultravioleta. Seu braço direito e toda a metade direita do torso foram mecanizados, placa de aço, fiação de duralloy, plástico. Um terço dos órgãos internos era sintético. E lhe deram um plugue, claro, e embutiram nele um pequeno computador. Desde o começo Kleronomas recusou cosméticos. Ele se parecia exatamente com o que era. Sorri. — Mas o que ele era, era ainda bem mais carnudo do que nosso novo convidado, não era? — É verdade — respondeu minha estudiosa. — O resto da história é mais bem conhecido. Não havia muitos oficiais entre os revividos. Kleronomas recebeu seu próprio comando, uma pequena nave classe portadora. Serviu por uma década, conseguindo os estudos em história e antropologia que eram suas paixões íntimas, e subindo cada vez mais alto em posto enquanto Avalon esperava por naves que nunca vinham e construía cada vez mais naves. Não havia comércio, não havia ataques; o interregno havia chegado. “Finalmente, uma liderança civil mais ousada decidiu arriscar algumas de suas naves e descobrir como estava o resto da civilização. Seis couraçados antigos da 5ª Frota foram remodelados como naves de pesquisa científica e enviados para fora. Kleronomas recebeu o comando de uma delas. Dessas naves de pesquisa, duas se perderam em suas missões e três outras retornaram em dois anos, trazendo informações mínimas sobre um punhado de sistemas mais próximos, animando os avalonianos 36

a reiniciar as viagens espaciais numa base local muito limitada. Julgava-se que Kleronomas estivesse perdido. “Ele não estava perdido. Quando os pequenos e limitados objetivos da pesquisa original estavam completos, ele decidiu continuar, em vez de voltar a Avalon. Ficou obcecado com a próxima estrela, e a próxima depois dela, e assim por diante. Levou sua nave cada vez para mais longe. Houve motins, deserções, perigos para serem enfrentados, e Kleronomas lidou com tudo isso. Como um ciborgue, tinha uma vida imensamente longa. Segundo as lendas, ele foi se tornando mais metálico à medida que a viagem prosseguia, e em Eris ele descobriu o cristal-matriz e expandiu suas habilidades intelectuais por ordens de magnitude através da adição do primeiro computador de cristal-matriz. Esta história particular se encaixa com seu caráter; ele era obcecado não apenas com a aquisição de conhecimentos, mas com sua retenção. Alterado assim, ele jamais esqueceria. “Quando finalmente retornou a Avalon, mais de cem anos padrão haviam-se passado. Dos homens e mulheres que deixaram Avalon com ele, apenas Kleronomas sobreviveu; sua nave era pilotada pelos descendentes de sua tripulação original, mais aqueles recrutas que juntou nos mundos que visitou. Mas havia pesquisado 449 planetas, e mais asteróides, cometas e satélites que qualquer um jamais teria imaginado possível. As informações que ele levou se tornaram a pedra fundamental sobre a qual a Academia do Conhecimento Humano foi construída, e as amostras de cristal, incorporadas nos sistemas existentes, se tornaram o meio no qual o conhecimento foi armazenado, eventualmente evoluindo para as vastas Inteligências Artificiais da academia e as lendárias torres de cristal de Avalon. A retomada das viagens estelares de larga escala logo depois foram o verdadeiro fim do interregno. O próprio Kleronomas serviu como o primeiro administrador da academia até a sua morte, que supostamente ocorreu em Avalon em ai-42, ou seja, 42 anos padrão após o dia de sua volta. Eu gargalhei. — Excelente. Então ele é uma fraude. Morto há pelo menos setecentos anos. — Olhei para Khar Dorian, cujo longo cabelo fino estava espalhado pelo travesseiro enquanto mordiscava 37

um canto de pão de hidromel. — Você está tropeçando, Khar. Ele tapeou você. Khar engoliu e sorriu. — Como quiser, Sábia — respondeu, num tom de voz que me dizia que ele podia estar tudo, menos contrito. — Devo matálo para você? — Não. Ele é um jogador. No jogo da mente, não há impostores. Deixe-o jogar. Deixe que jogue. Dias depois, quando o jogo havia sido marcado, chamei o ciborgue à minha presença. Encontrei-o em meu escritório, um grande salão com grossos carpetes escarlates, onde minha flor de vidro descansa à beira da grande janela que sobrepuja minhas ameias e os alagados abaixo. Seu rosto não tinha expressão. Claro, claro. — Você mandou me chamar, Cyrain de Ash. — O jogo está marcado. De hoje a quatro dias. — Estou satisfeito. — Gostaria de ver os prêmios? — indaguei, e ofereci-lhe as fichas; o rapaz, a moça, o filhote. Deu uma breve olhada, sem interesse. — Me disseram que você passa uma boa parte do tempo vagando nestes últimos dias. Dentro do castelo, e lá fora na cidade e nos pântanos. — É verdade. Eu não durmo. Conhecimento é minha diversão, meu vício. Estava curioso para saber que espécie de lugar era esse. — E que espécie de lugar é este, ciborgue? — retruquei, sorrindo. Ele não podia sorrir nem franzir a testa. Mas mesmo assim o tom de voz era educado. — Um lugar vil. Um lugar de desespero e degradação. — Um lugar de eterna, imorredoura esperança — retruquei. — Um lugar de doença, do corpo e da alma. — Um lugar onde os doentes se curam. — E onde os sãos adoecem — argumentou ele. — Um lugar de morte. 38

— Um lugar de vida. Não é para isso que você veio? Para a vida? — E morte. Já lhe disse que elas são a mesma coisa. Inclinei-me para a frente. — E já lhe disse que elas são muito diferentes. Você faz julgamentos severos. Espera-se rigidez de uma máquina, mas esta refinada e preciosa sensibilidade moral, não. — Só meu corpo é máquina — retorquiu ele. Apanhei sua ficha. — Não vejo assim. Onde fica sua moralidade com relação a mentiras? Especialmente uma mentira tão transparente? — Abri a ficha na minha mesa. — Consegui alguns relatórios interessantes de meus Apóstolos. Você tem sido extraordinariamente cooperativo. — Se se quer jogar o jogo da mente, não se pode ofender o mestre da dor. Sorri. — Não me ofendo tão facilmente quanto você poderia pensar. — Fiz uma pesquisa rápida nos relatórios. — O dr. Lyman fez uma varredura completa em você. Descobriu que você é uma máquina engenhosa. E feito inteiramente de plástico e metal. Não sobrou nada orgânico dentro de você, ciborgue. Ou deveria chamá-lo de robô? Será que computadores podem jogar o jogo da mente? Certamente descobriremos. Você possui três deles, pelo que vejo. Um pequeno, onde deveria ser sua caixa craniana, que comanda as funções motoras, entrada de dados sensoriais e monitoramento interno, uma unidade-biblioteca muito maior ocupando a maior parte do torso inferior e uma matriz de cristal no seu peito, — Levantei os olhos, — Seu coração, ciborgue? — Minha mente — respondeu. — Pergunte ao seu dr. Lyman, e ele contará outros casos como o meu. O que é uma mente humana? Memórias. Memórias são dados. Caráter, personalidade, vontade individual. Isso tudo é programável. É possível imprimir a totalidade de uma mente humana num computador de cristal-matriz. — E capturar a alma no cristal? Você acredita em almas? — indaguei. — Você acredita? 39

— Preciso acreditar. Sou a senhora do jogo da mente. Parece que isso seria essencial para mim. — Voltei-me para os outros relatórios que meus Apóstolos fizeram em torno deste constructo que se chama Kleronomas. — Verde-deidade 9 entrou em fase com você. Diz que você tem um sistema de incrível sofisticação, que a velocidade de seus circuitos excede em muito o pensamento humano, que a sua biblioteca contém muito mais informações acessíveis do que qualquer cérebro orgânico simples poderia reter, mesmo que fosse capaz de trabalhar com toda a capacidade, e que a mente e as memórias encerradas nesse cristal-matriz são de um certo Joachim Kleronomas. Isso ele jura. O ciborgue nada respondeu. Talvez tivesse sorrido nesse instante, se tivesse a capacidade. — Por outro lado, minha estudiosa Alta-k-Nahr me assegura que Kleronomas está morto há setecentos anos. Em quem vou acreditar? — Em quem você quiser — retrucou com indiferença. — Eu poderia deter você aqui e enviar pedido de confirmação a Avalon — sorri. — Uma viagem de trinta anos para ir, outros trinta para voltar. Digamos um ano para resolver a questão. Você pode esperar 61 anos para jogar, ciborgue? — Tanto quanto necessário. — Shayalla diz que você é completamente assexuado. — Esta capacidade foi perdida no dia em que me refizeram. Meu interesse no assunto permaneceu por mais alguns séculos, mas finalmente isso também acabou. Se quiser, tenho acesso a um espectro completo de memórias eróticas dos dias em que eu vestia carne orgânica. Elas permanecem tão frescas quanto no dia em que entraram no meu computador. Uma vez encerradas em cristal, as memórias não desaparecem, como ocorre num cérebro humano. Estão lá, esperando serem chamadas. Mas há séculos que não tenho inclinação para chamá-las. Fiquei intrigada. — Você não pode esquecer. — Posso apagar. Posso escolher não lembrar. — Se estiver entre os vencedores de nosso joguinho mental, irá recuperar a sexualidade, — Estou ciente disso. Será uma experiência interessante. 40

Talvez aí eu resolva invocar essas memórias antigas. — Sim — respondi deliciada. — Você vai começar a usálas, e precisamente no mesmo instante começará a esquecê-las. Há uma perda aqui, ciborgue, tão grande quanto o ganho. — Ganho e perda. Vida e morte. Eu lhe disse, Cyrain, que elas não podem ser separadas. — Isso eu não aceito — eu disse. Entrava em conflito com tudo em que acredito, tudo que sou; sua repetição da mentira me enojava. — Segundo Braje, você não pode ser afetado por drogas ou doenças. Óbvio. Mas poderia ser desmantelado. Vários de meus Apóstolos se ofereceram para dispor de você ao meu sinal. Meus alienígenas são especialmente sedentos de sangue, ao que parece. — Não tenho sangue — retrucou. Sardônico? Ou era tudo aquilo força da sugestão? — Seus lubrificantes bastariam — respondi secamente. — Tr’k’nn’r testaria sua capacidade de sentir dor. AanTerg caçadorda-lua, meu acrobata g’vhern, se ofereceu para jogar você de uma grande altura. — Isso seria um crime terrível para os padrões do ninho. — Sim e não. Um g’vhern do ninho ficaria horrorizado com a sugestão de que o vôo seria assim pervertido. Meu Apóstolo, por outro lado, ficaria mais horrorizado ainda com a sugestão do controle da natalidade. Batendo aquelas asas de couro oleosas você vai encontrar a mente de um aleijado semi-louco de Nova Roma. Aqui é Croan’dhenni. Não somos o que parecemos ser. — É o que parece. — Jonas também se ofereceu para destruir você, de uma forma menos dramática mas igualmente eficaz. É o meu maior Apóstolo. Deformado por glândulas hiperativas. O santo padroeiro da artilharia automática avançada, e meu chefe de segurança. — Obviamente você declinou essas ofertas — disse o ciborgue. Reclinei-me. — Obviamente. Embora eu sempre reserve o direito de mudar de idéia. — Eu sou um jogador. Paguei a Khar Dorian, subornei os guardas portuários croan’dhiques, paguei a seu mordomo e 41

a você. Em Lilith e Cymeranth e Shrike e outros mundos onde falam deste palácio negro e sua senhora meio mítica, dizem que seus jogadores são tratados com honestidade. — Errado. Nunca sou honesta, ciborgue. Às vezes sou justa. Quando me dá vontade. — Você ameaça todos os seus jogadores assim? — Não. Estou fazendo uma exceção especial no seu caso. — Por quê? — Porque você é perigoso — respondi, sorrindo. Finalmente havíamos chegado ao cerne da questão. Folheei as fichas que meus Apóstolos me deram e extraí a última, a mais importante. — Pelo menos um de meus Apóstolos você nunca encontrou, mas ele conhece você, ciborgue, conhece melhor do que você jamais sonharia. O ciborgue não disse nada. — Meu telepata de estimação. Sebastian Cayle. Ele é cego e deformado, e o guardo numa enorme jarra, mas tem sua utilidade. Pode sondar através das paredes. Ele tocou os cristais da sua mente, amigo, e viajou nas sinapses binárias de seu id. Seu relatório é um pouco críptico, mas admiravelmente verdadeiro. — Deslizei-o pela mesa para que o ciborgue pudesse ler. Um labirinto assombrado do pensamento. O fantasma de aço. A verdade dentro da mentira, vida em morte e morte em vida. Ele tomará tudo de você se puder. Mate-o agora.

— Você está ignorando o aviso dele — disse o ciborgue. — Estou. — Por quê? — Porque você é um mistério que pretendo resolver quando jogarmos o jogo da mente. Porque você é um desafio, e já faz muito tempo desde a última vez em que fui desafiada. Porque você ousa me julgar e sonha em me destruir, e já faz eras desde que alguém conseguiu coragem para fazer essas duas coisas. Obsidiana dá um espelho negro e distorcido, mas que me cai bem. Confiamos em nossos reflexos a vida inteira, até que chega a hora em que nossos olhos buscam os traços familiares e descobrem, em vez disso, a imagem de um estranho. Você não 42

pode saber o significado do horror ou do fascínio até receber aquele longo olhar de um estranho, e erguer uma mão que você não conhece para tocar a face do outro, e sentir aqueles dedos, suaves e frios e temerosos, encostarem em sua pele. Eu já era uma estranha quando vim para Croan’dhenni, há mais de um século. Conhecia meu rosto, pelo menos eu deveria, uma vez que o vestia há quase noventa anos. Era o rosto de uma mulher que era dura e forte, com linhas fundas ao redor dos olhos cinzentos de tanto olhar sóis alienígenas, uma boca larga que não deixava de ter sua generosidade, um nariz outrora quebrado que não se consertou direito, cabelo castanho curto em perpétuo desalinho. Um rosto confortável, pelo qual eu tinha um certo afeto. Mas o perdi em algum lugar, talvez durante meus anos em Gulliver, o perdi quando estava ocupada demais para perceber. Quando cheguei a Lilith, o primeiro estranho havia começado a assombrar meus espelhos. Ela era uma mulher velha, velha e enrugada. Seus olhos eram cinzentos e remelentos e começavam a falhar, o cabelo era branco e fino, com pedaços de crânio rosado começando a aparecer por baixo; os cantos da boca tremiam, havia capilares rompidos no nariz, e embaixo do queixo várias camadas de pele se acumulavam como a papada de uma galinha. Sua pele era macia e fraca, onde a minha fora sempre dura e corada de vida, e havia outra coisa, uma coisa que você não podia ver no espelho: um cheiro de doença que a envolvia como o perfume barato de uma cortesã velha, um feromônio de morte. Eu não conhecia essa coisa velha e doente, nem queria a sua companhia. Dizem que a idade e a doença aparecem lentamente em mundos como Avalon e Newholme e Prometeu; segundo as lendas, a morte não ronda mais a Velha Terra atrás de suas muralhas brilhantes. Mas Avalon e Newholme e Prometeu estavam muito longe, e a Velha Terra está fechada e perdida para nós, e eu estava sozinha em Lilith com uma estranha em meu espelho. E então me deixei levar para além do reino dos homens, além do alcance mais distante de braços humanos, para a escuridão molhada de Croan’dhenni, onde dizia-se em sussurros que uma nova vida podia ser encontrada. Eu queria olhar num espelho uma vez mais, e descobrir a velha amiga que eu perdera. 43

Em vez disso, encontrei mais estranhos. O primeiro foi o próprio mestre da dor; senhor da mente, senhor da vida, senhor da vida e da morte. Antes de minha chegada, ele havia governado aqui por quarenta e tantos anos padrão. Era croan’dhique, um nativo, uma grande coisa bulbosa com olhos estofados e pele verde-azulada pintalgada, paródia grotesca de um saco com braços finos e de articulação dupla e três longos estômagos verticais que apareciam na pele odorosa como feridas pretas molhadas. Quando olhei para isso, pude sentir sua fraqueza; era enormemente gordo, um mar de gordura espalhada com cheiro de ovos podres, enquanto os guardas e servos croan’dhiques são rígidos e musculosos. Mas para vencer o senhor da mente, você deve se tornar o senhor da mente. Quando jogamos o jogo da mente, eu tomei a sua vida, e acordei naquele corpo vil. Não é coisa fácil para uma mente humana vestir uma pele alienígena; por um dia e uma noite eu me perdi dentro daquela odiosa carne, passando através de visões e cheiros e sons que não faziam mais sentido do que as imagens num pesadelo, gritando, lutando pelo controle e pela sanidade. Sobrevivi. Um triunfo do espírito sobre a carne. Quando fiquei pronta, foi convocado outro jogo da mente, e desta vez emergi com o corpo de minha escolha. Ela era uma humana. Trinta e nove anos de idade pelo cálculo dela, saudável, rosto feio mas corpo forte, uma jogadora profissional que viera a Croan’dhenni para o último jogo. Tinha cabelo ruivo e olhos cuja cor verde-azulada me lembrava dos mares de Gulliver. Tinha alguma força, mas não muita. Naqueles dias distantes, antes da vinda de Khar Dorian e sua frota de feitores, poucos humanos vinham a Croan’dhenni. Minha escolha era limitada. Eu a peguei. Naquela noite tornei a me olhar no espelho. Ainda era o rosto de uma estranha, cabelo muito grande, olhos da cor errada, nariz tão reto quanto o fio de uma lâmina, boca muito preservada, que havia sorrido muito pouco na vida. Anos depois, quando esse corpo começou a escarrar sangue devido a alguma pestilência infernal adquirida nos pântanos croan’dhiques, construí uma sala de espelhos de obsidiana para 44

conhecer cada novo estranho. Os anos se passam com mais rapidez do que me importo de pensar enquanto essa sala permanece selada e inviolável, mas sempre, finalmente, chega o dia em que sei que a visitarei uma vez mais, e então meus servos sobem as escadas e polem os espelhos negros até obterem um bom brilho negro, e quando o jogo da mente termina eu subo sozinha e tiro minha roupa, fico em pé e giro sobre meu corpo solitária, dançando lentamente com as imagens dos outros: Maçãs do rosto altas e afiladas, e olhos escuros afundados em profundos ocos abaixo de sua testa. Um rosto em forma de coração, cercado por um nimbo de cabelos negros selvagens, grandes seios brancos com mamilos marrons. Músculos rijos e esguios movendo-se sob uma pele morena oleosa, unhas longas, afiadas como garras, queixo pontudo, cabelo castanho como arame farpado cortado numa tira fina sobre a cabeça e descendo até a cintura, o cheiro forte de cio entre suas coxas. Minhas coxas? Em mil mundos, a humanidade muda de mil maneiras diferentes. Uma cabeça ossuda maciça olhando para o mundo do alto de quase três metros de altura, barba e cabelo confundindo-se numa juba de leão brilhante como ouro derretido, a força escrita em letras grandes em cada osso e músculo, o peito achatado com seus mamilos vermelhos inúteis, a estranheza do longo e mole pênis entre minhas pernas. Muita estranheza para mim; o pênis permaneceu mole por todos os meses em que vesti aquele corpo, e naquele ano minha sala de espelhos foi aberta duas vezes. Um rosto muito parecido com aquele de que me lembro. Mas até que ponto me lembro dele? Um século já se tornou pó, e não mantenho imagens dos rostos que vesti. Desde minha primeira juventude, há muito tempo, somente a flor de vidro permaneceu. Mas ela tinha cabelo castanho curto, um sorriso, olhos verde-acinzentados. Seu pescoço era longo demais, os seios talvez muito pequenos. Mas ela chegou perto, perto, até que envelheceu, e chegou o dia em que vi outro estranho andando ao meu lado dentro das paredes do castelo. E agora a criança assombrada. Nos espelhos ela parece uma filha de sonhos, a filha que eu poderia ter tido se fosse bem mais amável do que sou. Khar foi quem a trouxe para mim, um 45

presente, disse ele, um belíssimo presente, para me retribuir em espécie depois que eu o descobrira velho e impotente, voz rouca e rosto coberto de cicatrizes, e o tornei jovem e belo. Ela tem talvez onze anos, talvez doze. Seu corpo é magro e estranho, mas a beleza está lá, talvez encerrada por dentro, apenas esperando para desabrochar. Seus peitos estão despontando agora, e seu primeiro sangue veio há menos de meio ano. Seu cabelo é de um louro prateado, longo e reto, uma cascata brilhante que cai quase até os calcanhares. Seus olhos são grandes para seu rosto pequeno, e são do mais profundo e puro violeta. Seu rosto é alguma coisa escultural. Foi gerada para ser assim, não há dúvida; engenharia genética tornou os lordes mercantes de Shrike e a nobreza de Lilith e Fellanora um povo extraordinariamente belo. Quando Khar a trouxe para mim, ela tinha apenas sete, a mente já morta, um animalzinho que gritava trancado num quarto escuro em seu crânio. Khar diz que ela era assim quando a comprou, a filha despossuída de um barão do crime fellanei preso e executado por crimes políticos, a família e os amigos e servos mortos com ele ou transformados em brinquedos sexuais sem mente para seus inimigos vitoriosos. Isto é o que Khar diz. Na maioria das vezes, até acredito nele. Ela é mais jovem e bonita do que eu jamais poderia me lembrar de ter sido, mesmo em minha primeira juventude já perdida de Ash, onde um rapaz sem nome me deu uma flor de vidro. Espero vestir esta carne macia por tantos anos quantos vesti o corpo com que nasci. Se eu continuar aqui por muito tempo, talvez chegue o dia em que possa olhar num espelho escuro e reencontrar meu próprio rosto. Um por um, eles ascenderam a mim; através da Sábia para o renascimento, ou assim esperavam que fosse. Muito acima dos pântanos, trancada dentro de minha torre, me preparei para eles na câmara de mudança, rígida em meu trono simples. O Artefato não é prepotente: uma taça irregular de liga metálica alienígena, cinza-grafite em cor e morna ao toque, com seis nichos circundando sua borda a intervalos iguais. São lugares de sentar; irregulares, duros e desconfortáveis, projeta46

dos obviamente para fisiognomias não-humanas, mas ainda assim feitos para sentar. Do piso da taça ergue-se uma coluna fina que desabrocha em outro banco, a cúpula estranha que entroniza... escolha o título que mais lhe agradar. Mestre da dor, senhor da mente, senhor da vida, aquele que dá e que toma, operador, gatilho, senhor. Todos estes sou eu. E outros antes de mim, a cadeia remontando ao Branco e talvez a antes, aos criadores, os desconhecidos que construíram esta máquina na obscuridade de eras distantes. Se a câmara tem seu drama, isto se deve a mim. As paredes e o teto são curvos, e trabalhados laboriosamente em mil pedaços individuais de obsidiana polida. Alguns fragmentos são cortados muito finos, de forma que a luz embaciada do sol croan’dhique possa forçar seu caminho através deles. Outros são tão grossos que chegam a ser opacos. A sala tem apenas uma cor, mas mil tons, e para aqueles que têm a capacidade de ver isso, eles formam um grande mosaico de vida e morte, sonhos e pesadelos, dor e êxtase, excesso e carência, tudo e nada, misturando-se um no outro, vezes e vezes sem fim, um círculo, um ciclo, o verme que devora a própria cauda para sempre, cada pedaço individual e frágil e afiado e cada um parte de um quadro maior que é vasto e negro e terrível. Despi-me e entreguei minhas roupas a Rannar, que dobrou cuidadosamente cada peça. A cúpula tem forma de ovo, e não tem topo. Subi para seu interior e dobrei minhas pernas abaixo de mim em posição de lótus, a melhor correspondência possível entre as linhas do Artefato e o físico humano. As paredes internas da máquina começaram a sangrar; fluidos vermelho-escuros brilhantes pingando no metal cinzento do ovo, cada glóbulo inchando até estourar. Torrentes desciam pelas paredes curvas lisas, e o líquido começou a se juntar no fundo. Minha pele nua queimava onde o fluido me tocava. O fluxo se tornou mais rápido e mais forte, o fogo subindo pelo meu corpo até imergir metade do meu corpo. — Mande-os entrar — ordenei a Rannar. Quantas vezes eu já disse estas palavras? Perdi a conta. Os prêmios entraram primeiro. Khar Dorian veio com o rapaz tatuado. Lá, disse Khar em tom impessoal, apontando para 47

um nicho enquanto me sorria lascivo, e o rapaz duro, aquele assassino, aquele selvagem sedento de sangue, soltou-se de sua escolta e tomou o lugar que lhe foi indicado. Braje, minha biomédica, trouxe a mulher. Elas também são parecidas, pálidas, gordas, macilentas. Braje dava risinhos enquanto apertava as presilhas sobre sua carga choramingona. O filhote alienígena lutava, seus músculos rijos se contorcendo, suas grandes asas batendo num trovão sonoro que era tão dramático como inútil; o brilhante Jonas e seus homens o forçaram a entrar em seu nicho. Quando terminaram de prendê-lo, Khar Dorian sorriu zombeteiro, e o g’vhern fez um som alto e estridente que doeu os ouvidos. Craimur Delhune teve de ser carregado por seus criados pessoais e de aluguel. Ali, eu disse, apontando, e eles o colocaram desajeitado em um dos nichos. Seu rosto enrugado e retorcido olhava para mim, olhos meio cegos percorrendo a câmara como pequenas bestas selvagens, a boca sugando com fome, como se seu renascimento estivesse terminado e ele procurasse um seio materno. Ele estava cego para o mosaico; para ele, era apenas uma sala escura com paredes de vidro negro. Rieseen Jay surgiu, entediada com minha câmara antes mesmo de entrar nela. Ela viu o mosaico, mas lhe deu apenas um olhar superficial, como se fosse alguma coisa além de sua atenção, cansativa demais para estudar. Em vez disso, fez um lento circuito dos nichos, inspecionando cada um dos prêmios como um açougueiro examinando carne. Parou por mais tempo em frente ao filhote alienígena, e parecia se deliciar com sua luta, seu medo óbvio, a maneira como ele sibilava e assobiava para ela e olhava daqueles olhos fortes e brilhantes. Ela estendeu a mão para tocar uma asa, e recuou rindo quando o filhote a mordeu. Finalmente se sentou, espreguiçando-se lânguida, esperando o jogo começar. Finalmente Kleronomas. Ele percebeu o mosaico imediatamente, olhou para ele, os olhos cristalinos perscrutando lentamente a sala, parando aqui e ali novamente para estudar algum detalhe sutil. Ficou tanto tempo parado que Rieseen Jay ficou impaciente, e estalou os dedos, para que procurasse seu lugar. O ciborgue a estudou, o 48

rosto de metal impossível de perscrutar. Ordenei silêncio. Ele terminou seu estudo do domo, levando o tempo que quis, e só então se sentou no último nicho vazio. A maneira como ele ocupou seu lugar foi como se todos os lugares estivessem vagos e aquela fosse a sua escolha, selecionada por ele e ninguém mais. — Evacuem a sala — ordenei. Rannar curvou-se e fez sinal para que todos saíssem, Jonas e Braje e os outros. Khar Dorian foi o último, e fez um gesto para mim quando se retirou. O que queria dizer? Boa sorte? Talvez. Ouvi Rannar fechar a porta. — E então? — perguntou Rieseen Jay. Lancei-lhe um olhar que a calou. — Vocês todos estão sentados no Cerco Perigoso — falei. Sempre começo com estas palavras. Ninguém jamais entendeu. Desta vez... Kleronomas, talvez. Observei a máscara que era seu rosto. Dentro do cristal de seus olhos, percebi um leve movimento, e tentei descobrir um sentido para isso. “Não há regras para o jogo da mente. Mas tenho regras para quando ele terminar, quando vocês retornarem ao meu domínio. “Aqueles de vocês que estão aqui contra a vontade, se forem fortes o bastante para segurar a carne que vestem, ela será sua para sempre. Dou-lhes de graça. Nenhum prêmio joga mais do que uma vez. Segurem firme sua carne de nascimento e, quando estiver terminado, Khar Dorian os levará de volta ao mundo em que encontrou vocês e os libertará com mil padrões e sua liberdade. “Os jogadores que encontrarem o renascimento neste dia, que acordarem em carne estranha quando este jogo estiver terminado, lembrem-se de que o ganharem ou perderem foi por conta de vocês próprios, e poupem-me de seus lamentos e recriminações. Se estiverem insatisfeitos com o resultado deste jogo, podem jogar de novo, é claro. Se tiverem o preço. “Um último aviso. Para todos vocês. Isto vai doer. Vai doer mais do que qualquer coisa que vocês jamais imaginaram. — Dito isso, iniciei o jogo da mente. Uma vez mais. 49

O que você pode dizer a respeito da dor? Palavras podem apenas descrever a sombra da coisa propriamente dita. A realidade da dor física dura e aguda não se compara a nada, e está além da linguagem. O mundo está cheio demais junto a nós, dia e noite, mas quando nos machucamos, quando realmente nos machucamos, o mundo se desvanece e se funde e se torna um fantasma, uma memória apagada, uma coisinha sem importância. Quaisquer ideais, sonhos, amores, medos e pensamentos que possamos ter se tornam totalmente insignificantes. Estamos com a nossa dor, ela é a única força no cosmo, a única coisa de substância, a única coisa que importa, e se a dor for grande o bastante e durar tempo suficiente, se for o tipo de agonia que permanece indefinidamente, então todas as coisas que são nossa humanidade se fundem à nossa frente e o computador orgulhoso e sofisticado que é o cérebro humano se torna capaz apenas de um único pensamento: Pare, pare, PARE! E se a dor parar no fim das contas, depois, com a passagem do tempo, até mesmo a mente que a experimentou se torna incapaz de compreendê-la, incapaz de recordar-se de como foi verdadeiramente ruim, incapaz de descrevê-la como também de sequer se aproximar da terrível verdade de como era no instante em que aconteceu. No jogo da mente, a agonia do campo de dor não tem igual, não se compara a nada que já experimentei. O campo de dor não faz mal ao corpo, não deixa marcas nem cicatrizes nem machucados, não deixa sinais de sua passagem. Toca a mente direto, com uma agonia além de meu poder de expressá-lo. Por quanto tempo dura? Uma questão para relativistas. Dura apenas a menor parte de um microssegundo, e dura para sempre. Os Sábios de Dam Tullian são mestres de cem diferentes disciplinas do corpo e da mente, e ensinam a seus acólitos uma técnica para isolar a dor, dissociar-se dela, afastar-se dela e assim a transcenderem. Eu havia sido uma Sábia por metade de minha vida quando participei do jogo da mente pela primeira vez. Usei tudo o que me ensinaram, todos os truques e verdades que 50

dominei e em que aprendi a confiar. Foram totalmente inúteis. Era uma dor que não tocava o corpo, uma dor que não corria pelos nervos, era uma dor que preenchia a mente tão completa e devastadoramente que nem mesmo a menor parte de você ficava livre para pensar ou planejar ou meditar. A dor era você, e você era a dor. Não havia de que se dissociar, nenhum frio santuário do pensamento para onde pudesse se recolher. O campo de dor era infinito e eterno, e dessa agonia incessante e inimaginável só havia um refúgio seguro. Era o velho, o verdadeiro, o mesmo bálsamo que serviu de socorro a bilhões de homens e mulheres, e até mesmo menor das bestas do campo desde o começo dos tempos. O senhor negro a dor. Meu inimigo, meu amante. Mais uma vez, mais uma vez, desejando apenas um fim para o sofrimento, corri de encontro a seu abraço negro. A morte me possuiu, e a dor terminou. Numa vasta e deserta planície num lugar além da vida, eu esperei pelos outros. Sombras difusas se formando das neblinas. Quatro, cinco, sim. Perdemos alguém? Não me surpreenderia. Em três jogos a cada quatro, um jogador encontra sua verdade na morte e não segue adiante. Desta vez? Não. Vejo a sexta forma saindo do fog tremulante, estamos todos aqui, olho ao meu redor uma vez mais, conto três, quatro, cinco, seis, sete e eu, comigo são oito. Oito? Está errado, muito errado. Estou confusa, desorientada. Alguém por perto está gritando. Uma garotinha, de rosto suave e inocente, vestida em tons pastel e usando bonitas jóias. Ela não sabe como chegou aqui, não entende, seus olhos estão perdidos e são infantis e nem um pouco confiantes, e a dor a acordou de um langor de pó-dos-sonhos para uma terra estranha cheia de terror. Eu levanto a mão pequena e forte, olho os dedos marrons esguios, o calo em meu polegar, as unhas largas cortadas até o sabugo. Faço um punho, um gesto familiar, e em minha mão um espelho se forja do aço de minha vontade e do mercúrio de meu desejo. Em suas profundezas brilhantes eu vejo um rosto. É o rosto de uma mulher que é dura e forte, com linhas profundas 51

ao redor dos olhos cinzentos de tanto olhar sóis alienígenas, uma boca larga que não deixava de ter sua generosidade, um nariz outrora quebrado que não se consertou direito, cabelo castanho curto em perpétuo desalinho. Um rosto confortável. Isso me dá conforto agora. O espelho se dissolve em fumaça. A terra, o céu, tudo é vacilante e incerto. A doce garotinha ainda grita por seu papai. Alguns dos demais estão olhando perdidos para mim. Há um jovem, de rosto neutro, o cabelo preto penteado para trás e enfeitado com plumas coloridas de um estilo que não é moda em Gulliver há mais de um século. Seu corpo parece macilento, mas em seus olhos eu vejo uma dureza que me lembra de Khar Dorian. Rieseen Jay parece atordoada, fraca, amedrontada, mas ainda se pode reconhecer Rieseen Jay; o que quer que digam a seu respeito, ela tem um senso muito forte de si mesma. Talvez isso até seja o bastante. O g’vhern voa próximo a ela, muito maior aqui do que parecia antes, seu corpo brilhando com óleos, enquanto espalha asas demoníacas e começa a afastar a neblina em grandes fitas cinzentas. No jogo da mente, ele não tem amarras; Rieseen Jay olha longamente, e foge disso. Da mesma forma outro jogador, uma forma cinzenta fugidia coberta por uma explosão de tatuagens, o rosto uma pálida mancha sem propósito nem definição. A garotinha grita sem parar. Eu dou as costas a ela, deixo-os por conta própria e encaro o último jogador. Um homem grande, a pele da cor do ébano polido com um tom sutil de azul-escuro onde os longos músculos se flexionam. Está nu. O maxilar é quadrado e pesado, e se projeta para a frente. Longos cabelos cercam seu rosto e caem pelos ombros, cabelos tão brancos e crespos quanto lençóis novos, brancos como a neve intocada de um mundo em que os homens nunca caminharam. Enquanto o observo, seu grande pênis negro se inquieta entre as pernas, incha, fica ereto. Ele sorri para mim. — Sábia — diz ele. De repente também estou nua. Minha testa se franze, e agora visto uma armadura enfeitada, placas superpostas de duralloy fundido, filigranadas com runas proibidas, e debaixo do braço um antigo capacete que completa o conjunto, enfeitado com uma pluma de penas 52

brilhantes. — Joachim Kleronomas — digo. Seu pênis cresce e endurece até se tornar uma coisa enorme absurda que pressiona forte seu estômago reto. Eu o cubro, e a ele, com um uniforme de um livro de história, todo preto e prata, com o globo verde-azulado da Velha Terra costurado em sua manga direita e duas galáxias prateadas gêmeas girando em seu colarinho. — Não — responde ele, divertido. — Jamais alcancei esse posto. — E as galáxias somem, substituídas por um círculo de seis estrelas prateadas. — E, a maior parte do meu tempo, Sábia, prestei obediência a Avalon, não à Terra. — Seu uniforme é menos marcial, mais funcional, um simples traje de infantaria verde-acinzentado com um cinto preto e um bolso cheio de canetas. Apenas o círculo prateado de estrelas permanece. — Pronto — diz ele. — Errado — digo-lhe. — Ainda está errado. — E quando termino de falar, apenas o uniforme permanece. Dentro da roupa a carne sumiu, substituída por um simulacro de metal, uma coisa brilhante vazia com uma torradeira na cabeça. Mas só por um instante. Então o homem está de volta, o rosto sério, infeliz. — Cruel — diz ele. A dureza de seu pênis força o material de sua roupa. Atrás dele, o oitavo homem, o fantasma que não deveria estar aqui, o espectro perdido, faz um sussurro suave, um som como o de folhas secas mortas farfalhando num vento gelado de outono. Ele é uma coisa fina e sombria, esse intruso. Preciso olhar muito firme para poder enxergá-lo. É muito menor do que Kleronomas, e dá á impressão de ser velho e frágil, embora sua carne seja tão etérea, tão insubstancial, que é difícil ter certeza. Ele é uma visão sugerida pelos movimentos randômicos da neblina, talvez, um eco vestido de branco, mas seus olhos brilham e tremem e estão presos e com medo. Ele tenta me alcançar. A carne de sua mão é translúcida, esticada sobre ossos antigos cinzentos. Recuo incerta. No jogo da mente, o menor toque pode ter uma terrível realidade. 53

Por trás de mim, ouço mais gritos, o terrível som selvagem de alguém num êxtase de medo. Eu me viro para ver. Agora começou de vez. Os jogadores estão buscando suas presas. Craimur Delhune, jovem, vigoroso e muito mais musculoso do que era há um momento atrás, segura nas mãos uma espada flamejante, brandindo-a com facilidade para o rapaz tatuado. O rapaz está de joelhos, gritando, tentando se encobrir com os braços levantados, mas a lâmina brilhante de Delhune passa pela carne cinzenta sem impedimentos e corta as tatuagens resplandecentes. Ele as remove cirurgicamente do rapaz, corte a corte, e elas flutuam no ar enevoado, brilhantes imagens de vida libertadas da pele cinzenta onde estavam aprisionadas. Delhune as agarra à medida que passam por ele e as engole todas. Suas narinas começam a exalar fumaça, e também sua boca aberta. O rapaz grita e range os dentes. Logo não haverá mais nada senão sombra. O filhote alienígena ocupa os ares. Circula ao nosso redor, nos observando com sua voz alta e estridente enquanto suas asas trovejam. Rieseen Jay teve suas segundas intenções, ao que parece. Ela está em frente à menininha que grita, que encolhe a cada instante que passa. Jay a está modificando. Agora ela está mais velha, mais gorda, os olhos igualmente aterrorizados mas muito mais vagos. Para onde quer que ela vire a cabeça, espelhos surgem e cantam tentadores para ela com lábios grandes e molhados. Sua carne incha e incha, rasgando sua roupa pobre e se libertando dela; linhas finas de baba escorrem pelo queixo. Ela a limpa, chorando, mas só para esta correr com mais rapidez, e agora se torna vermelha de sangue. Ela está enorme, feia, revoltante. — Isto é você — dizem os espelhos. — Não vire a cara. Olhe para você. Já não é uma menininha. Olhe, olhe, olhe. Você não é bonita? Não é uma graça? Olhe para você, olhe para você. Rieseen Jay cruza os braços, sorrindo com satisfação. Kleronomas olha para mim com um juízo frio no rosto. Uma tira de tecido preto se enrola em meus olhos. Eu pisco, ela desaparece, olho para ele novamente. — Não sou cega — respondo. — Eu os vejo. Não é minha 54

luta. A gorda está imensa como um caminhão, pálida e macilenta como uma larva. Está nua e imensa, e a cada piscadela dos olhos de Jay ela fica mais monstruosa. Seios brancos enormes explodem de seu rosto, mãos, coxas e os bicos marrons das mamas abrem bocas sedentas e começam a cantar. Um pênis verde grosso aparece sobre sua vagina, dobra-se e a penetra. Cânceres florescem em sua pele como um campo de flores escuras. E em toda parte os espelhos, surgindo e sumindo, refletindo e distorcendo e aumentando, mostrando impiedosos tudo o que ela é, documentando cada coisa grotesca que Jay inflige sobre ela. A mulher gorda não parece mais humana. De uma boca do tamanho de sua cabeça, sem dentes e sangrando, ela fabrica um som que lembra os gemidos dos danados. Sua carne começa a fumegar e tremer. O ciborgue aponta o dedo. Todos os espelhos explodem. A neblina está coberta de adagas, fragmentos de metal prateado voando em todas as direções. Um me alcança, e eu o faço desaparecer. Mas os outros, os outros... eles se curvam como mísseis inteligentes, tornam-se uma flotilha aérea, atacam. Rieseen Jay é rasgada em mil pedaços, e o sangue corre de seus olhos, seus seios, sua boca aberta. O monstro é novamente uma menininha que chora. — Moralista — digo para Kleronomas. Ele me ignora, volta-se para olhar Craimur Delhune e o rapaz-sombra. Tatuagens se inflamam redivivas na pele do jovem, e em sua mão surge uma espada e se inflama. Delhune dá um passo para trás, sem se abalar. O rapaz toca sua carne, murmura algum juramento silencioso e se levanta cambaleante. — Altruísta — digo. — Dando socorro aos fracos. Kleronomas se vira para mim. — Não sou partidário da carnificina. Rio em sua cara. — Talvez você esteja simplesmente os poupando para você, ciborgue. Senão, é melhor criar asas rápido, antes que seu prêmio escape. Seu rosto está frio. — Meu prêmio está à minha frente. — De alguma forma eu sabia — respondi, colocando meu 55

capacete emplumado. Minha armadura está viva com fogos de artifício dourados, minha espada é uma lança de luz. Minha armadura é negra como o abismo, e os desenhos trabalhados sobre ela, preto sobre preto, são de aranhas e serpentes e caveiras humanas e rostos deformados de dor. Minha longa espada prateada torna-se de obsidiana, e se contorce num espetáculo grotesco de arames farpados e ganchos e estacas rígidas. Ele tem um senso de drama, este maldito ciborgue. — Não — eu lhe digo. — Não serei rotulada como o mal. Torno-me dourada e prateada uma vez mais, brilhando, e minhas plumas são vermelhas e azuis. — Use a armadura você mesmo, se gosta tanto dela. Ela fica pendurada à minha frente, negra e sombria, o capacete aberto num sorriso de caveira. Kleronomas a despacha. — Não preciso de apoios. Seu fantasma cinza e branco flutua a seu lado, como se o sugasse. Quem é ele?, eu me pergunto. — Bom — respondo. — Então vamos dispensar os símbolos. Minha armadura desaparece. Estendo minha mão nua aberta. — Toque em mim — eu digo. — Toque em mim, ciborgue. Quando sua mão alcança a minha, o metal crispa seus longos dedos negros. No jogo da mente, mais até do que na vida, imagem e metáfora são tudo. O lugar além do tempo, a interminável planície cercada pela névoa, o céu frio e a terra incerta sob nós, até mesmo isso é ilusão. É meu, tudo isso, um cenário — ainda que extraterreno, ainda que surreal — contra o qual os jogadores podem interpretar seus espalhafatosos dramas de dominação e submissão, conquista e desespero, morte e renascimento, estupro do corpo e estupro da mente. Sem minha formação, minha visualização e as visões de todos os outros mestres da dor através das eras, eles não teriam chão abaixo deles, nem céu acima, nenhum lugar para colocar os pés, nem pés para colocar sobre algum lugar. A realidade não oferece nem mesmo o escasso conforto da pai56

sagem desolada que lhes dou. A realidade é caos, insuportável, fora do tempo e do espaço, despida de matéria ou energia, sem medidas e portanto assustadoramente infinita e sufocantemente claustrofóbica, terrivelmente eterna e dolorosamente breve. Nessa realidade, os jogadores são apanhados; sete mentes aprisionadas num gestalt telepático, num congresso tão íntimo que não pode ser suportado pela maioria. E portanto eles se recolhem, e as primeiras coisas que criamos, num lugar onde somos deuses (ou demônios, ou ambos), são os corpos que deixamos para trás. Dentro dessas paredes de carne encontramos refúgio e tentamos ordenar o caos. O sangue tem gosto de sal; mas não há sangue, somente ilusão. A xícara contém uma bebida preta e amarga; mas não há xícara, apenas uma imagem. As feridas estão abertas e frescas, pingando angústia; mas não há feridas, nenhum corpo para ser ferido, apenas metáforas, símbolos, conjurações. Nada é real, e tudo pode machucar, pode matar, pode evocar uma loucura permanente. Para sobreviver, os jogadores devem ser resilientes, disciplinados, estáveis e impiedosos; devem possuir uma imaginação vivida, um extenso vocabulário de símbolos, uma certa porção de insight psicológico. Eles devem encontrar a fraqueza de seu oponente, e ocultar completamente suas próprias fobias. As regras são simples. Acredite em tudo; não acredite em nada. Agarre-se firme a você e sua sanidade. Mesmo quando matam você, não tem importância, a não ser que você acredite que está morto. Sobre esta planície de ilusão, onde todos esses corpos mutantes demais giram e rodopiam numa sinistra pavana a que já assisti mil vezes antes, apanhando espadas e espelhos e monstros do ar para atirar ao outro como marionetes enlouquecidas, a coisa mais aterrorizante de todas é um simples toque. O simbolismo é direto, o significado claro. Carne sobre carne. Despida de metáforas, despida de proteção, despida de máscaras. Mente sobre mente. Quando nos tocamos, as paredes caem. Mesmo o tempo é ilusório no jogo da mente; ele corre tão rápido — ou tão lento — quanto desejarmos. 57

Eu sou Cyrain, digo a mim mesma, nascida em Ash, muito viajada, uma Sábia de Dam Tullian, mestre do jogo da mente, senhor do castelo de obsidiana, governante de Croan’dhenni, senhor da mente, mestre da dor, completa e imortal e invulnerável. Penetre-me. Seus dedos são frios e duros. Eu joguei o jogo da mente antes, dei as mãos a outros que se achavam fortes. Em suas mentes, em suas almas, nelas vi coisas. Em túneis escuros e cinzentos eu tracei as inscrições de suas antigas cicatrizes. A areia movediça de suas inseguranças prendeu-se em minhas botas. Senti o cheiro fétido de seus temores, grandes bestas gordas que rastejam numa escuridão viva e palpável. Queimei meus dedos na carne quente de desejos que não dirão um nome. Rasguei os mantos de seus segredos silenciosos e inertes. E então tomei tudo, fui eles, vivi suas vidas, bebi a bebida gelada de seu conhecimento, caminhei por suas memórias. Nasci uma dúzia de vezes, suguei uma dúzia de tetas, perdi uma dúzia de virgindades, de machos e fêmeas. Kleronomas era diferente. Eu estava numa grande caverna, toda iluminada. As paredes e o chão e o teto eram de cristal translúcido, e ao meu redor espirais e cones e fitas retorcidas se elevavam brilhantes, vermelhas e duras, frias ao toque porém vivas, as fagulhas das almas movendo-se por elas em toda parte. Uma cidade de fadas cristalina dentro de uma caverna. Toquei a formação rochosa mais próxima, e a memória fluiu para dentro de mim, o conhecimento tão claro e vívido e certo como no dia em que foi gravado lá. Virei-me e olhei ao meu redor com novos olhos, agora discernindo a ordem rígida onde inicialmente havia percebido apenas a beleza caótica. Estava limpa. Estava fria e eficiente e eterna e incrivelmente limpa. Perdi o fôlego. Olhei em toda parte procurando a vulnerabilidade, a porta de carne gangrenada, a poça de sangue, o lugar das lamentações, a coisa impura que deve viver dentro dele, e não encontrei nada, nada, nada, apenas perfeição, apenas o cristal limpo e perfeito, tão vermelho, brilhando de seu interior, crescendo, mudando, e ainda assim eterno. Eu o toquei uma vez embrulhando minha mão em uma formação que se 58

elevava à minha frente como uma estalagmite. O conhecimento era meu. Comecei a andar, tocando, tocando, bebendo em toda parte. Flores de vidro floresciam em toda parte, fantásticas sementes escarlates, frágeis e lindas. Colhi uma e a cheirei, mas não tinha perfume. A perfeição era estonteante. Onde estava sua fraqueza? Onde estava a falha oculta neste diamante que me tornaria capaz de quebrá-lo com um simples golpe seco? Aqui, dentro dele, não havia decadência. Aqui não era lugar para a morte. Aqui nada vivia. Eu me sentia em casa. E então, à minha frente, o fantasma tomou forma, cinzento e sombrio e instável. Seus pés descalços criavam finos cordões de fumaça, arrastando-se suavemente pelos cristais brilhantes no chão, e senti o cheiro de carne queimada. E sorri. O espectro assustava o labirinto de cristal, mas cada toque significava dor e destruição. Venha cá, falei. Ele olhou para mim. Eu podia ver as luzes no fundo da caverna através das névoas de sua carne incerta. Ele se moveu, e lhe abri meus braços, o penetrei, o possuí. Eu estava sentada num balcão na torre mais alta de meu castelo, e bebia de uma pequena xícara de café com conhaque. Os pântanos sumiram; em vez disso eu olhava montanhas, duras e frias e limpas. Erguiam-se azuis e brancas ao meu redor, e do pico mais alto erguia-se um penacho de cristais de neve apanhados num vento firme sem fim. O vento me cortava, mas eu quase não sentia. Estava sozinha e em paz, o café era gostoso, a morte estava muito longe. Ele caminhava sobre o parapeito do balcão, e sentou-se sobre um deles. Sua pose era casual, insolente, confiante. — Eu conheço você — ele disse. Era a ameaça definitiva. Eu não estava com medo. — Eu conheço você — retruquei. — Devo conjurar seu fantasma? — Ele logo estará aqui. Nunca está longe de mim. — Nunca — concordei. Tomei um gole de café, e deixei-o esperando. — Sou mais forte que você — respondi finalmente. — Posso ganhar o jogo, ciborgue. Você estava errado em me de59

safiar.

Ele não disse nada. Coloquei de lado minha xícara, seca e vazia, passei minha mão por ela, sorri quando minha flor de vidro cresceu e espalhou suas pétalas transparentes sem cor. Um arco-íris quebrado arrastou-se por sobre a mesa. Ele franziu a testa. Minha flor se coloriu. Ficou macia e caída, o arco-íris foi banido. — A outra não era real — comentou. — Uma flor de vidro não é viva. Segurei sua rosa, apontei o caule quebrado. — Esta flor está morrendo — eu disse. Em minhas mãos, voltou a virar vidro. — Uma flor de vidro dura para sempre. Ele transmutou o vidro de volta a tecido vivo. Era teimoso, isso tenho que reconhecer. — Mesmo morrendo, ela vive. — Olhe suas imperfeições — observei. Apontei-as uma por uma. — Aqui um inseto a mordeu. Aqui uma pétala cresceu malformada, aqui estas manchas pretas estão com praga, aqui o vento a curvou. E olhe o que posso fazer. — Peguei a pétala maior e mais bela entre o polegar e o indicador, rasguei-a, dei de comer ao vento. — Beleza não é proteção. A vida é terrivelmente vulnerável. E, no fim das contas, tudo termina assim. — Em minha mão, a flor ficou marrom e retorceu-se e começou a apodrecer. Vermes festejaram rapidamente sobre ela, e fluidos pretos de mau cheiro escorreram dela, e então virou pó. Catei tudo, soprei, e por trás de sua orelha tirei outra flor. De vidro. — Vidro é duro — ele disse — e frio. — Calor é produto da decadência, enteado da entropia — retruquei. Talvez ele tivesse respondido, mas não estávamos mais sozinhos. Sobre a borda irregular dos parapeitos o fantasma vinha se arrastando, se arrastando com frágeis dedos cinzentos e brancos que deixavam manchas de sangue sobre a pureza de minha pedra. Ele olhava para nós sem dizer nada, um sussurro semitransparente de branco. Kleronomas desviou o olhar. — Quem é ele? — perguntei. O ciborgue não conseguia responder. 60

— Você se lembra de seu nome? — perguntei-lhe. Respondeu com silêncio, e ri dos dois. — Ciborgue, você me julgou, achou meu moralismo suspeito, minhas ações injustas, mas o que quer que eu seja, não sou nada para você. Eu roubo os corpos deles. Você roubou a mente dele. Não foi? Não foi? — Eu não pretendia isso jamais — respondeu. — Joachim Kleronomas morreu em Avalon há setecentos anos, justamente como disseram que morreu, Podia vestir metal e plástico, mas por dentro ele ainda era de carne em decomposição, mesmo até o fim, e como toda carne chega um dia em que as células morrem. Uma fina linha reta na máquina, brilhando na escuridão, e uma casca vazia de metal. O fim de uma lenda. O que eles fizeram, então? Guardaram o cérebro e o enterraram sob algum monumento gigantesco? Sem dúvida. O café era doce e forte; aqui ele não esfriava porque minha vontade não permitia. — Mas não enterraram a máquina, enterraram? Aquele organismo cibernético caro e sofisticado, o computador-biblioteca com sua riqueza de conhecimento, a matriz-cristal com todas as suas memórias congeladas. Tudo isso era valioso demais para ser descartado. Os bons cientistas de Avalon o mantiveram numa interface com o sistema principal da Academia, correto? Quantos séculos se passaram até que um deles decidiu reviver novamente aquele ciborgue e evitar sua própria morte? — Menos que um — respondeu o ciborgue. — Menos de cinqüenta nos padrão. — Ele deveria ter apagado você — retruquei. — Mas por quê? Seu cérebro, afinal de contas, comandaria a máquina. Por que negar a si mesmo acesso a todo aquele maravilhoso conhecimento? Por que, quando poderia saboreá-lo em vez disso? Como seria muito melhor ter uma vida inteira à sua disposição em um segundo, ter acesso a uma sabedoria que nunca havia feito por merecer, relembrar-se de lugares em que jamais estivera e de pessoas que jamais conhecera. Dei de ombros e olhei para o fantasma. — Pobre estúpido. Se você tivesse jogado antes o jogo da mente, poderia ter entendido. Do que pode a mente ser feita senão de memórias? Quem 61

somos nós, final de contas? Apenas quem pensamos que somos, nem mais nem menos. Gravar suas memórias em diamante ou num bloco de carne rançosa, estas são as escolhas. Pouco a pouco a carne deve morrer, e dar passagem ao aço e ao metal. Somente as memórias de diamante sobrevivem para dirigir o corpo. No fim não resta carne, e os ecos de memórias perdidas são ranhões espectrais no cristal. — Ele se esqueceu de quem era — respondeu o ciborgue. — Ou melhor, eu me esqueci de quem era. Comecei a pensar... ele começou a pensar que era eu. Olhou para mim, seus olhos presos aos meus. Eram de cristal vermelho, aqueles olhos, e por trás deles eu podia ver um brilho. Sua pele estava adquirindo a cada instante um brilho polido, prateado. E desta vez ele estava fazendo isso por conta própria. — Você tem suas próprias fraquezas — observou. Na parte em que segurava a alça da xícara de café, minha mão começou a escurecer e se corromper. Senti o cheiro de decomposição. A carne começou a cair, e por baixo eu via o osso ensangüentado, deixando ver a brancura. A morte subia pelo meu braço inexoravelmente. Suponho que isso deveria me encher de horror. Só me encheu de repulsa. — Não — respondi. Meu braço estava inteiro e saudável. — Não — repeti, e agora eu era metal, prateada e imortal, olhos como opalas, flores de vidro entrançadas num cabelo de platina. Eu podia ver meu reflexo brilhando sobre a placa polida de seu peito; eu estava bonita. Talvez ele também pudesse se enxergar, espelhado no meu cromo, pois nesse momento ele virou a cabeça. Ele parecia tão forte, mas em Croan’dhenni, em meu castelo de obsidiana, nesta casa de dor e renascimento onde se joga o jogo da mente, as coisas não são sempre o que parecem. — Ciborgue, você perdeu — avisei. — Os outros jogadores... — começou ele a observar. — Não. Ele ficará entre você e qualquer vítima que você possa escolher. Seu fantasma. Sua culpa. Ele não permitirá isso, 62

Você não permitirá isso. O ciborgue não conseguia olhar para mim. — Sim — numa voz distorcida pelo metal e corroída pelo desespero. — Você viverá para sempre. — Não. Continuarei para sempre. É diferente, Sábia. Posso lhe dizer a temperatura exata de qualquer ambiente, mas não posso sentir calor ou frio. Posso ver até o infravermelho e o ultravioleta, posso magnificar meus sensores para contar cada poro de sua pele, mas sou cego ao que penso que deve ser sua beleza. Eu desejo vida, vida verdadeira, com a semente da morte crescendo inexoravelmente dentro dela, e portanto lhe dando sentido. — Bom — falei, satisfeita. Ele finalmente olhou para mim. Aprisionado naquele rosto de metal estavam dois pálidos e perdidos olhos humanos. —Bom? — Eu faço meu próprio sentido, ciborgue, e a vida é a inimiga da morte, não sua mãe. Parabéns. Você venceu. E eu também. Levantei-me e estendi a mão por sobre a mesa, enfiando minha mão dentro do peito negro e frio; arranquei o coração de cristal dele. Eu o segurava e ele brilhava, cada vez mais, seus raios escarlates dançando sobre as montanhas frias e escuras de minha mente. Abri os olhos. Não, incorreto; ativei os sensores mais uma vez, e o cenário da câmara da mudança surgiu com uma clareza e uma agudeza que eu jamais havia experimentado. Meu mosaico de obsidiana, preto sobre preto, agora tinha cem tonalidades diferentes, cada uma distinta das demais, o padrão exato e claro. Eu estava sentada num nicho ao longo da borda; na cúpula central, a criança-mulher moveu-se e piscou grandes olhos violeta. A porta se abriu e eles foram em sua direção, Rannar solícito, Khar Dorian indiferente, tentando esconder sua curiosidade, Braje com risinhos enquanto aplicava suas injeções. — Não — anunciei a eles. Minha voz era muito grave, 63

muito masculina. Ajustei-a. — Não, aqui — repeti, agora soando mais parecido comigo mesma. Seus olhares eram de choque. No jogo da mente, há vencedores e perdedores. A interferência do ciborgue teve seus efeitos, talvez. Ou talvez não, talvez antes do jogo terminar o padrão já estivesse traçado e fosse o mesmo. Craimur Delhune está morto; entregaram seu corpo aos pântanos na noite passada. Mas o vazio sumiu dos olhos da viciada gordinha, e ela está se submetendo a dieta e exercícios neste exato instante, e quando Khar Dorian partir, a levará de volta às propriedades de Delhune em Gulliver. Rieseen Jay reclama que foi tapeada. Acredito que ela vai ficar por aqui, do lado de fora, na cidade dos danados. Sem dúvida, isso vai curar seu tédio. O g’hvern luta para falar, e pintou símbolos elaborados nas asas. O rapaz tatuado pulou das torres do castelo poucas horas após seu retorno, e se empalou nas estacas de obsidiana lá embaixo, batendo os braços até o último instante. Asas e olhos firmes não se igualam a força. Um novo senhor da mente iniciou seu reinado. Ela ordenou que construíssem um novo castelo, uma estrutura feita de madeiras vivas, com fundações enraizadas profundamente nos pântanos, seu exterior coberto de videiras e flores e outras coisas vivas. — Você terá insetos — avisei —, parasitas e mosquitos, cupins na madeira, podridão nas fundações, umidade nas paredes. Você terá de dormir com redes sobre a cama. Você terá de matar, constantemente, dia e noite. Seu castelo de madeira mergulhará num miasma de pequenas mortes, e em poucos anos os fantasmas de um milhão de insetos assombrarão seus salões à noite. — Mesmo assim —- replicou ela —, minha casa será quente e viva, enquanto a sua era fria e insensível. Todos temos nossos símbolos, suponho. E nossos medos. — Apague-o — ela me avisou. — Limpe o cristal, ou com o passar do tempo ele consumirá você, e você se tornará outro fantasma na máquina. 64

— Apagá-lo? Eu poderia ter rido, se o mecanismo permitisse rir. Posso ver bem através dela. Sua alma está espalhada sobre aquele rosto macio e frágil. Posso contar seus poros e anotar cada sombra de dúvida nas pupilas daqueles olhos violeta. — Apagar-me, você quer dizer. O cristal é o lar de nós duas, criança. Além do mais, não tenho medo dele. Você não entende. Kleronomas era cristal, a carne orgânica fantasma, a saída inevitável. Meu caso é diferente. Sou tão cristalina quanto ele, e tão eterna quanto. — Sábia... — começou ela. — Errado. — Cyrain, se você prefere... — Errado mais uma vez. Chame-me de Kleronomas. Fui muitas coisas em minhas longas e variadas vidas, mas nunca uma lenda. Tem um certo status. A garotinha olhou para mim. — Eu sou Kleronomas — disse ela em voz alta e suave, os olhos arregalados. — Sim — respondi — e não. Hoje ambas somos Kleronomas. Vivemos as mesmas vidas, fizemos as mesmas coisas, armazenamos as mesmas memórias. Mas, deste dia em diante, percorreremos caminhos diferentes. Eu sou aço e cristal, e você é carne, e criança. Você queria vida. Abrace-a, é sua, e tudo o que vem com ela. Seu corpo é jovem e saudável, apenas começando à desabrochar, seus anos serão longos e cheios. Hoje você pensa que ainda é Kleronomas. E amanhã? “Amanhã você aprenderá novamente acerca do desejo, e abrirá suas pequenas pernas para Khar Dorian, e tremerá e gritará quando ele levar você ao orgasmo. Amanhã você terá filhos com sangue e dor, e os observará crescer e envelhecer e ter seus próprios filhos, e morrer. Amanhã você andará pelos pântanos e os despossuídos lhe jogarão presentes, e amaldiçoarão você, e elogiarão você, e rezarão para você. Amanhã novos jogadores chegarão, pedindo corpos, renascimento, outra chance, e amanhã as naves de Khar chegarão com uma nova carga de prêmios, e todas as suas certezas morais serão testadas e retestadas, e 65

sofrerão alterações em suas formas. Amanhã Khar ou Jonas ou Sebastian Cayle chegarão à conclusão de que já esperaram demais, e você sentirá o gosto doce do beijo da traição, e talvez você vença, talvez perca. Não há certeza. Mas há uma coisa que eu posso prometer. No dia seguinte a esse amanhã, muitos anos depois de agora, embora não parecerão muitos depois de vividos, a morte começará a crescer dentro de você. A semente já está plantada. Talvez seja alguma doença desabrochando num desses peitinhos que Rannar adoraria tanto sugar, talvez uma finíssima corda metálica a lhe apertar a garganta em seu sono, talvez uma repentina explosão solar que dizimará o planeta. Mas virá, e mais cedo do que pensa. —- Eu aceito isso — respondeu ela. Sorria enquanto falava; acho que era o que realmente queria dizer. — Tudo isso, todas as partes. Vida e morte. Há muito tempo não tenho isso, Sá... Kleronomas. — Você já está esquecendo as coisas — observei. — A cada dia você perderá mais. Hoje ambas nos lembramos. Lembramonos das cavernas de cristal de Eris, a primeira nave em que servimos, os traços do rosto de nosso pai. Lembramo-nos do que Tomas Chung disse quando decidimos não retornar a Avalon, e as outras palavras que ele disse na hora da morte. Lembramonos da última mulher com quem fizemos amor, as formas e o cheiro dela, os ruídos que ela fez quando a satisfizemos. Ela já morreu há oitocentos anos, mas vive em nossas memórias. Mas está morrendo na sua, não está? Hoje você é Kleronomas. E também eu o sou. E sou Cyrain de Ash, e uma pequena parte de mim é ainda o nosso fantasma, pobre homem triste. Mas quando o amanhã chegar, vou me segurar a tudo o que sou, e você, você será o senhor da mente, ou talvez apenas uma escrava sexual em algum bordel perfumado de Cymeranth, ou um sábio em Avalon, mas em qualquer caso uma pessoa diferente do que é agora. Ela entendia; ela aceitava. — Então você jogará o jogo da mente para sempre — falou —, e eu jamais morrerei. — Você morrerá — ressaltei. — Certamente que sim. Kleronomas é imortal. — E Cyrain de Ash. 66

— Ela também. — O que você vai fazer? — perguntou. Fui até a janela. A flor de vidro estava lá, em seu vaso simples de madeira, suas pétalas refletindo a luz. Olhei para a fonte daquela luz, o sol brilhante de Croan’dhenni queimando no céu claro do meio-dia. Agora eu podia olhar direto para ele, focalizar as manchas solares e as torres flamejantes de onde procediam. Fiz um pequeno ajuste consciente nas lentes de cristal de meus olhos, e o céu vazio ficou cheio de estrelas, mais estrelas do que jamais havia imaginado, mais estrelas do que eu jamais poderia imaginar. — Fazer? — perguntei, ainda olhando para aqueles campos secretos de estrelas, visíveis apenas para mim. Eles traziam à minha mente meu mosaico de obsidiana. — Existem mundos em que nunca estive — falei para minha irmã gêmea, pai, filha, inimiga, espelho, o que quer que ela fosse. — Existem coisas que ainda não conheço, estrelas que mesmo agora não posso ver. O que vou fazer? Tudo. Para começar, tudo. Enquanto eu falava, um inseto listrado grande entrou voando pela janela aberta movido por seis asas que batiam rápido demais para a visão humana, embora eu pudesse contar cada batida lânguida se assim o quisesse. Ele pousou despreocupado em minha flor de vidro, não encontrou nem perfume nem pólen, e voltou por onde veio. Observei-o partir, ficando cada vez menor, sumindo na distância, até que finalmente aumentei minha visão ao máximo, e o pequeno besouro moribundo se perdeu entre os pântanos e as estrelas.

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Sexta-feira à noite, tomando drinques na biblioteca pública, Eve e Natalie reuniram coragem para deixar a esposa delas. Eve sentia-se muito mal por causa disto. — Não é que eu não a ame — disse, pela quinta vez desde meia-noite. — Claro que não! — fez coro Natalie, com sua voz de prima-dona. — Eu também a amo. — Só que ela não entende... — Nem mesmo tenta. Dois anos de casamento e desistiu. Quer mais uma bebida? Natalie acenou teatralmente e Nick, o bibliotecário, levou sem pressa uma garrafa para o canto do balcão onde elas estavam. — Você é casado, não é, Nick? 69

— Há nove anos — disse o rapaz, enquanto enchia os copos. — Desde que a Direção da Biblioteca obteve uma licença para a venda de bebidas para ajudar no orçamento, ganhei um bom aumento. — Sua esposa está satisfeita? Quero dizer, ele não fala em deixar o sindicato e conseguir um emprego fora? Eve revirou os olhos. Assim que Natalie começava a beber era capaz de perguntar qualquer coisa a qualquer pessoa. Era muito constrangedor. Mas Nick apenas sorriu e puxou um bloco de pedidos do avental. O papel luminoso tinha um brilho esverdeado que contrastava com o balcão de pau-rosa. Era uma biblioteca de classe; não havia necessidade de aumentar a luz para poder tomar notas. — Talvez as senhoras queiram fazer um pouco de pesquisa. A voz de Nick era acolhedora. — Há um novo texto sobre dinâmica triáloga... Não adiantou. Elas não queriam textos, queriam ação. — Ação! — Natalie levantou o copo, admirando as gotas de âmbar que pulavam por sobre a borda na manga extravagantemente pregueada. — À ação, ao âmbar e ao divórcio! — Divórcio? Nick estava de volta com uma pilha de discos auto-explicativos e a conta. Cofiou os bigodes nervosamente. — Vamos parar por aqui, está bem? Alguns dos fregueses habituais são do sindicato e não quero confusão. Eve olhou por sobre o ombro para a sala de leitura obscurecida, cheia de música, fumaça e atraentes esculturas antigas de neon. Um grupo misto de esposas numa mesa próxima olhava irritado para os pratos de sushi de Natalie. O Sindicato das Esposas não tinha mais necessidade de confrontação, não com o Congresso do lado delas. Os maridos que puderam escutar apenas reprimiram o riso e voltaram para seus drinques, enxaguando a semana de trabalho com suco de jângal. Ou talvez se recompondo para irem para casa. Talvez os mais felizes já estivessem em casa a essa hora, ou nas filiais da biblioteca que eram pizzarias e atendiam famílias. Ou se divertindo com seus amantes. Eve suspirou, lembrando-se de Andy, que tinha ficado alto com espresso contrabandeado no último 70

Ano-Novo e dera uma cantada em Maureen. Flertar com a esposa de Eve em sua própria quadra de squash! Imagina-se que se possa confiar num colega contador, mas não... — Nós já temos muitos problemas, Nick — suspirou, examinando a conta. — Mas suponho que você ouça isto o tempo todo. — Não das minhas duas clientes favoritas. Enquanto se curvava sob o bar para aumentar o volume do ruído branco que assegurava a privacidade delas, Eve olhou além dele para o espelho adornado de dourado postado acima do arcaico catálogo de cartões. Mesmo num reflexo não muito bem definido, Natalie era devastadora, a imagem da atriz desempregada, usando seus quase metro e meio de cabelos platinados por hormônios como um cachecol com as pontas pendentes sobre um leve vestido de crepe, muito parisiense. A própria Eve parecia pequena e sem atrativos na sua indumentária de contadora, embora o permanente eletrostático estivesse se mantendo bem. Cada fio azul-violeta gentilmente repelia o outro, de modo que toda a massa ficava à deriva em volta da cabeça como uma alga marinha. Maureen não havia nem mesmo reparado no permanente, tal o ponto a que as coisas tinham chegado. — Em que ponto as coisas chegaram? — perguntou Nick, endireitando o corpo; mas Natalie o interrompeu, subitamente emotiva. — Nossa esposa não nos compreende! — declamou, representando para a esquerda do palco. — Diz que ficamos muito pouco em casa, mas de quem é a culpa? Mal se pode dizer que temos uma casa! Os bonsais estão morrendo, nunca mais nem mesmo vimos massa feita em casa, largou a construção do cravo pela metade. Pedaços em todo o lugar! Não e capaz de se vestir um pouco melhor quando um amante vai nos visitar, nem mesmo quando o próprio amante dela vai. Diz que está deprimida. — Ela está deprimida — insistiu Eve, por justiça e nostalgia. Ela sentiu falta dos banquetes de tortellini, durante os bons tempos em que elas tinham encontros. Não é culpa de Maureen, realmente. Mas Natalie e eu trabalhamos muito, somos muito boas provedoras... bem, Nat está desempregada no momento, mas ainda assim... 71

— Não precisa entrar em detalhes — disse Natalie, secamente. — Nick sabe que somos boas provedoras, ele viu nosso nível de crédito. O importante é que Maureen não está honrando o espírito do contrato e nós nos decidimos pelo divórcio. Eve perturbou-se com a palavra. Divórcio significava fofoca, escândalo, honorários para o arbitrador estatal. Maureen ficaria muito sentida independentemente do que ela dissesse agora. Embora ela houvesse falado muito ultimamente. Hoje mesmo no café da manhã havia chamado Eve de bobona por não ter ainda se tornado sócia da firma e censurado Natalie por se recusar a fazer comerciais. Eve mexeu-se com raiva na banqueta do bar. Elas podiam pagar um arbitrador, se chegasse a este ponto, e a carreira de Natalie sobreviveria a um pouco de fofoca. — Que mais podemos fazer? — estava dizendo Natalie. — Vocês podem seguir meu conselho. Nick pegou uma banqueta para ele mesmo, para que os outros bibliotecários soubessem que ele estava em conferência. Ele deixou seu bloco com a face para baixo no balcão entre as bebidas e desenhou uma figura familiar no verso. — O casamento é um triângulo — disse. — É forte e é estável. Empurre um lado e os outros dois o seguram. Funciona assim em domos geodésicos e funciona também na sociedade. Triângulos fazem lares fortes e estáveis. O velho sermão soava novo na voz grave e tranqüilizadora de Nick. Enquanto ele prosseguia, Eve sentiu lágrimas novamente vindo-lhe aos olhos. Talvez devessem isto a elas mesmas e à sociedade: salvar o casamento e ajudar Maureen a superar a fase difícil. Ela mesma poderia se empenhar com mais afinco em conseguir uma promoção e Natalie certamente conseguiria algo grande cedo ou tarde. Então poderiam candidatar-se a ter crianças. Elas podiam fazê-lo. Podiam ser fortes e estáveis. Pôs o braço em volta dos dois ombros de Natalie. — Lixo! — rosnou Natalie. — Compactado e tratado, mas ainda lixo! Levantou-se, esvaziou o copo de Eve, afastou-se do bar. As pessoas olhavam fixamente para elas. — E o indivíduo, e a busca da felicidade? — disse, desafiando Nick. — Eve e eu nos amamos e queremos um lar, nós 72

damos o que temos de melhor. Mas nós casamos muito cedo! Não somos as pessoas certas para Maureen e todo mundo sabe disto! Então deveríamos ficar juntas e vivermos miseravelmente pelo resto de nossas vidas? É esse o preço da estabilidade? — A voz tremia e ela ficou de perfil para eles. — Talvez não entenda o preço do divórcio, moça! Era o líder sindical na mesa de sushi, uma esposa de boa aparência, esguio e vestido de couro que havia continuado na mesa sozinho depois que os outros homens e mulheres haviam saído. Ele se dirigiu a Eve. — Você e sua parceira deveriam pensar duas vezes antes de tentarem o divórcio. O Bureau Nacional de Relações Maritais acaba de julgar um caso semelhante em Philly. Pequenos atritos não são justificativa. Quebra de contrato evidente ou então nada feito. Além disto, aumentaram de novo as taxas de arbitramento. Natalie recompôs-se em grande estilo. — Agora que você já deu seu conselho sem ser requisitado, por que não volta a ser educado e termina o peixe? Ele se levantou da mesa, apoiando os punhos na mesa, e inclinou-se na direção dela. — Agora que você já se fez de idiota em público — disse, lentamente — por que não vai embora para casa e vive de acordo com seu contrato? Natalie dirigiu-se a ele. Eve derrubou uma banqueta tentando impedir-lhe a passagem, todos se levantaram, houve gritaria e o som cortante de um tapa. Eve alcançou Natalie bem na hora em que Nick arremeteu-se através da multidão e confrontou a esposa. — Dê o fora, moço. — Tomando partido das destruidoras de lares? — O homem tocou a face no lugar onde as unhas de Natalie o haviam arranhado. — É melhor cuidar da sua licença. — Fora! Nick esperou que saísse e voltou-se para Natalie. O cabelo dela havia se soltado e estava soluçando, belíssima. Nick suspirou. — Por aquele corredor, senhoras. Enquanto passavam pelos curiosos, alguém aplaudiu, 73

mas Eve não olhou em volta. Estava tremendo de excitação com as novas possibilidades. Sua vida estava mudando agora, esta noite. Estavam a ponto de cruzar uma fronteira, mas de quê? Nick acomodou-as no seu pequeno escritório, trancou a porta e traçou algumas linhas sobre a tela da mesa com um dedo grosso. Natalie ainda enxugava os olhos quando a tela cintilou. — Bem que eu achava — murmurou Nick. Apagou a tela e voltou-se para elas. — Ainda existe uma cláusula de imaturidade neste estado. Vocês podem pedir a anulação. Que idade vocês têm? — Vinte e quatro — disse Eve. — Como descobriu tão rápido? — É para isso que Deus criou o sistema de indexação por computador, doçura. Natalie? Natalie limpou a garganta. — Legalmente, trinta e um. — O quê? — exclamou Eve. — Pensei que fosse da minha idade! — Bem, para a minha carreira, eu sou. Desculpe, Evie. Qual é a cláusula, Nick? Nós estamos qualificadas? — Eve, sim, por pouco. A cláusula permite a anulação com base em instabilidade emocional. Não é muito usada por causa das penalidades e é bem mais fácil ter sucesso se a esposa é quem inicia o processo. Alguma chance disso? — Claro que não há nenhuma chance disso — disse Natalie. — Ela é louca por nós! Teremos de explicar que isto é para o seu próprio bem. E as penalidades? — Novo casamento proibido por três anos — disse Nick, em tom neutro. — E vocês terão de manter a casa para demonstrar a seriedade das suas intenções. Maureen estaria livre para casar de novo ou viver numa casa de solteiros, mas vocês duas teriam que permanecer juntas. — Claro que queremos permanecer juntas! — protestou Natalie, tocando na mão de Eve. — Mas nenhuma esposa por três anos? Quem vai cozinhar, planejar tudo, nos animar e... — E fazer da casa um lar? — perguntou Nick, gentilmente. — Terão de fazê-lo vocês mesmas. — Mas nós duas trabalhamos fora! É impossível! 74

— Talvez. Nick virou-se para a mesa ao ouvir o chamado do intercomunicador. — Mas parece ser a melhor possibilidade. Apertou um botão e uma voz de mulher disse: — Estamos com pouca gente, Nick, como você deve saber... — Estou indo. Sorriu para elas. — Minha chefe. Por que não vão para casa agora, e discutem o assunto amanhã pela manhã? As coisas ficam mais claras quando o sol aparece. Ele as deixou olhando uma para a outra. — Não vejo como — disse Eve. Levantou-se, endireitou os ombros e começou novamente. — Nós poderíamos tentar, Nat. Você está certa, o preço da estabilidade é muito alto para nós. Eu amo Maureen, mas não está dando certo. Temos de mudar as coisas agora enquanto ainda podemos. — Mas sem esposa — lamentou Natalie. — Sabe como fico temperamental quando estou em testes para um novo trabalho. Quem irá tomar conta de mim? — Eu irei. E você tomará conta de mim. Venha, vamos para casa. Acenaram para Nick ao saírem. O rapaz estava preparando martínis para um casal de genealogistas, mas parou um instante para fazer-lhes um sinal com o polegar indicando que estava tudo bem. Elas estavam quase do lado de fora quando uma mulher corpulenta coberta de peles bloqueou-lhes a passagem. — Querida! — trombeteou a mulher, envolvendo Natalie num abraço de vison. — Querida! Você foi perfeita! Natalie recuperou-se quase instantaneamente. — Eve, esta é Martina Quinn, a produtora de holovisão. Eu, bem, não sabia que me conhecia. — Eu a vi naquela pequena peça no último outono, minha cara, você estava péssima. Desde os seis anos de idade que você não é mais ingênua. Mas esta noite! Você foi perfeita. Diga-me, você virá fazer um teste comigo? 75

— Claro! — Natalie jogou o cabelo para trás e corou. — Sem dúvida. Qual papel? — A PI no meu novo seriado, querida. Você não sabia que eu estava escolhendo os artistas? — PI? — repetiu Eve. Sua cabeça doía, ela queria respirar ar fresco e dormir. Passava das quatro. — Piranha intrigante — explicou Natalie reverentemente. — Você sabe, aquela mulher que está sempre armando intrigas e movimentando o enredo. Martina, você realmente acha... — Você tem presença, querida. Você me liga amanhã? — Certamente, obrigada. Muito obrigada! Apertaram-se as mãos, as peles foram embora, Eve puxou Natalie para a rua e chamou um jinquixá. Natalie subiu e mergulhou num monólogo que não cessou até que deixaram os desfiladeiros do centro da cidade e se dirigiram para os domos nas cercanias de onde moravam no lado leste. — Que sorte ela me ver esta noite, e justamente com a roupa apropriada... Eve prendeu um lenço sobre o cabelo e observou os puxadores de jinquixá suando e sorrindo um para o outro. — Presença — murmurou Natalie. — Ela disse que eu tenho presença... Eve imaginava se poderia ser uma puxadora de jinriquixá. Há anos que não fazia a maratona, mas ainda gostava de um trabalho de fundo. — Eu poderia mudar o meu cabelo, mas acho que já é suficientemente original sem ser exibido... Quem quer que houvesse primeiro pensado em combinar o vício da euforia da corrida com o espírito do capitalismo e o declínio do transporte publico tinha sido um gênio. Uma corredora solteira, aquela seria a vida. — Eu terei dias de trabalho longos, mas você pode fazer o trabalho das compras e da cozinha, não é, Evie? Vou precisar de auxílio com o meu guarda-roupa... Uma corredora solitária, pensou Eve, ou uma contadora casada, com uma esposa maravilhosa e sensata para conversar quando o marido atriz estivesse alucinada e exaltando-se a si mesma. E era tão fácil conversar com Maureen. Ela tinha estado 76

um tanto irritada ultimamente, mas quem não estaria com seus maridos fora a metade da noite? Eve pretendia de qualquer forma passar mais tempo em casa. — Você tratará com os advogados, não,é, Evie? Você é tão boa com papéis e coisas... — Natalie! — O quê? — Vamos a pé o resto do caminho. Eve pagou a corrida enquanto Natalie retirou o salto alto dos sapatos e reclamou. — Isto só vai nos atrasar. Meu Deus, já é quase de manhã! Estava amanhecendo. As luzes da rua se apagaram enquanto elas subiam a colina na direção de casa. Um vento morno agitava levemente os salgueiros. Eve olhou para eles enquanto explicava a Natalie que a anulação estava fora de questão. — Mas você mesma disse que o casamento não estava funcionando! — O cabelo de Natalie curvava-se ao vento. — Nós não estamos fazendo com que funcione. Vamos tentar com mais afinco, nós três. — Talvez você esteja certa. — Natalie já se parecia com uma grande estrela, procurando manter-se à altura da situação. — Tenho andado tão preocupada com a minha carreira que mal tenho podido pensar. Mas agora Maureen se sentirá orgulhosa de mim e nós três nos divertiremos muito... Marcharam adiante de braço dado, companheiras de ressaca. Ela se sentirá orgulhosa, Eve pensou. É uma boa esposa e tomaremos conta dela muito melhor de agora em diante. Tinham chegado à cerca de lilases de Maureen antes que Eve se desse conta de que algo estava errado. Todas as janelas do domo principal estavam abertas, mas nenhuma luz estava acesa. Alguém havia deixado o chafariz ligado. Havia um bilhete pregado na porta da frente. Natalie deteve-se subitamente. — Ela não iria... Eve empurrou-a e correu aos tropeções para a porta, mas parou no portal com as mãos abaixadas. O bilhete agitava-se com o último sopro do vento da noite mas ela não tinha forças para segurá-lo e ler o que estava escrito. 77

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Painel lateral — Você não deve abraçar a noite — disse Karyn. Carter não entendeu. Em parte, ela lhe dizia que ficasse na Terra, que ficasse fora dos ônibus espaciais; havia, entretanto, uma chance muito pequena de um vôo espacial para ele, ou para qualquer um, em um futuro próximo, e já tinham discutido 79

tudo isso. Desse modo, o que é que ela tentava dizer-lhe? Carter foi até a varanda do apartamento e olhou para cima, admirando o céu noturno. Deixou a porta de correr aberta para que Karyn pudesse segui-lo, mas sabia que ela ficaria lá dentro. Em sete semanas e meia Karyn não deixara o apartamento nem uma vez sem que o sol tivesse nascido e o céu estivesse limpo, azul e sem um traço de nuvens. Longe, a oeste, do outro lado da praça e pouco acima dos prédios mais baixos do conjunto residencial, Carter podia ver as luzes da plataforma de lançamento piscando no ar morno da noite, pulsando como as estrelas no céu acima. Sentou-se na cadeira mais próxima do parapeito, de onde podia ver, cinco andares abaixo, a menor das três piscinas da praça. Embora fosse quase meia-noite, uma figura solitária nadava continuamente de um lado para o outro, para dentro e para fora do cone iluminado por uma lâmpada existente sob a água. O nadador — uma mulher, ao que parecia — não diminuía o ritmo nem errava uma braçada, mesmo ao executar suaves viradas ao chegar às extremidades da piscina. Perfeitamente em casa dentro d’água, mesmo não tendo nascido para ela. Talvez fosse essa a analogia de que precisava para seu depoimento no Congresso, pensou Carter. Que havia pessoas, como a nadadora, que se sentiam à vontade na água, enquanto outras nunca o conseguiriam. O mesmo se aplicaria ao espaço sideral, acreditava ele, e não conseguia ver nenhum motivo para que se paralisasse a exploração tripulada do espaço por causa daqueles que não podiam ir ao espaço. A resposta era ir adiante com aqueles que pudessem. Carter levou a mão ao bolso vazio da camisa, um ato reflexo que permanecia mesmo depois de quatro anos. No momento, arrependia-se por haver deixado de fumar. Suas mãos precisavam de alguma coisa para fazer. — Você não vem para a cama? — perguntou Karyn. Carter voltou-se para olhar para ela através da porta aberta. Cabelos louros, pele clara, ela já estava entre os lençóis brancos, envolvida por uma espessa camisola de flanela e encostada na cabeceira da cama, a colcha branca puxada sobre os joelhos dobrados. Um dos dois abajures sobre a mesa-de-cabeceira ao 80

lado dela estava aceso e ela se esticou para ligar o outro. Karyn nem dormia mais no escuro. De noite sempre havia pelo menos uma luz acesa em cada cômodo do apartamento, iluminando seus passeios noturnos que ficavam cada vez mais freqüentes; raramente dormia uma noite inteira. Duas semanas antes, quando ela tinha apenas um abajur na mesa-de-cabeceira, a lâmpada havia queimado às três da manhã, mergulhando o quarto na escuridão. Karyn levantara-se com um salto e, instantaneamente acordada, começou a gritar. Os gritos continuaram até Carter conseguir trazer e ligar na tomada o abajur da sala, devolvendo a luz ao quarto. A partir de então, Karyn dormia com dois abajures e mantinha lâmpadas de reserva sempre ao alcance. Carter olhou de novo para a piscina, mas a nadadora tinha saído da água e agora sentava-se em uma espreguiçadeira, de onde olhava para ele, usando óculos escuros. Teve certeza de que era a mesma mulher que tinha visto ultimamente no conjunto com tanta freqüência que até parecia segui-lo. Com cabelos negros, e sempre usando os óculos escuros, ela apenas aparecia de noite. Talvez pensasse que a escuridão e os óculos lhe dariam algum tipo de proteção. Nunca falara com ele, mas quando a encontrava ela o observava continuamente, seguindo-o com a cabeça aonde quer que fosse, e ele desejava que ao menos uma vez pudesse ver-lhe os olhos. Observou a mulher por mais alguns momentos, o rosto ainda voltado para cima em sua direção, deu uma última olhada nas luzes da plataforma de lançamento a distância e depois levantou-se e entrou. — Você vai depor amanhã, não vai? — perguntou Karyn quando ele se deitou na cama a seu lado. — Vou. Ela suspirou profundamente e balançou a cabeça: — Não faz muita diferença — disse. — De qualquer modo, seu depoimento não vai ajudar. É tarde demais agora. O veredicto já está quase pronto. — Provavelmente. Houve um longo silêncio, e eles permaneceram deitados lado a lado sem se tocarem. Carter não conseguia se lembrar 81

da última vez que tinham feito amor. Tinha sido ainda na casa deles em Massachusetts, era tudo que sabia. Nem uma única vez depois de se mudarem de lá para aquele apartamento. — A noite eterna — sussurrou Karyn. — Não fomos feitos para nos juntarmos a ela. Carter virou-se de lado e olhou para ela. Isso era novo, assim como o que havia dito antes. Ela estava começando a soar como uma mística recém-convertida. — Você não percebe, Carter? Todos os problemas, os acidentes, as falhas mecânicas, os fracassos em meio ao nervosismo e agora o colapso da Expedição a Marte. Tudo isso vai continuar, ficando cada vez pior até pararmos de tentar, até percebermos que pertencemos a este lugar, apenas à Terra. Até pararmos de tentar deixá-la. Carter não soube o que dizer. Já tinha ouvido as mesmas idéias antes; todos já as tinham ouvido, em especial nas últimas semanas. Espalhadas pelo que a NASA gostava de chamar de “minoria de lunáticos”. Por algum tempo, tinha sido um tipo de piada. Com as audiências do Congresso quase concluídas e a morte efetiva da NASA praticamente decidida, entretanto, a piada perdera toda a graça. Ele virou-se e olhou através da porta de vidro, incapaz de ver muito da noite com os dois abajures brilhando intensamente atrás dele. Tentou dormir, mas seus olhos permaneceram abertos e começou a desejar ter também óculos escuros que protegessem seus olhos enquanto procurava pelo sono e por sinais do céu noturno. Painel central Duas noites após o término das audiências no Congresso, houve uma grande festa ao ar livre no conjunto residencial, celebrando o fim da NASA e da exploração tripulada do espaço. Apenas moradores e convidados podiam entrar, mas, mesmo assim, Carter calculou que havia umas seiscentas pessoas à volta da piscina, espalhadas pela praça luxuriante iluminada por uma centena de tochas acesas e dançando nos amplos pátios de cimento ao som da música a todo volume de uma banda local de 82

rock. A música era tecnopunk, completada por lasers multicoloridos que se irradiavam dos instrumentos. Carter apoiou-se no parapeito da varanda, observando, e perguntou-se como era possível que todas essas pessoas, muitas das quais logo perderiam os empregos, estivessem tão felizes. Ele virou-se e olhou, através da porta de tela, para dentro do quarto, onde estava Karyn, lendo em um canto, sentada em uma cadeira. — Você quer descer para a festa? — perguntou, sabendo que ela não desceria. — Esta deveria ser sua celebração de vitória. Karyn levantou os olhos para ele, mas não respondeu. Carter deu de ombros, abriu a porta de tela e entrou. — Vou descer — disse. Fechou a porta e dirigiu-se para o corredor. — Espere — disse ela. — Antes que você vá... Carter parou, virou-se e encostou-se na parede, observando-a. — Eu perdi você, Carter. Era verdade, pensou ele, ela o havia perdido há muito tempo embora não pudesse dizer exatamente, quando nem por quê. — Você ainda me quer? — perguntou. — Não mais. Nós nos tornamos muito... diferentes. Não, nós sempre fomos diferentes, apenas nunca tínhamos percebido isso, pensou Carter. Decidiu, porém, não dizer nada. — Preferi esperar até que as audiências terminassem — continuou ela. — Até que você tivesse terminado. Já falei com um advogado. Disse-lhe que acreditava que não haveria nenhum tipo de problema, de brigas. Que seria um divórcio amigável. Ele olhou para a esposa por um longo tempo sem dizer nada e, por fim, concordou com a cabeça: — Tudo bem — disse. — Eu quero a casa. Ele concordou novamente: — É sua. — Parou por um instante e então acrescentou: — As crianças também. Ela olhou para o outro lado, seus dedos tremendo por um 83

momento antes de juntar as mãos nervosamente. Eles não tinham filhos. — Desculpe — disse ele, sinceramente. Ela respirou fundo duas vezes. — Você pode ficar com o carro. — Outra pausa, outra respiração profunda. — Vou embora amanhã de manhã. Você me leva na estação de trem? — Claro. Ela olhou de volta para ele. — O que você vai fazer agora, Carter? Seu emprego não vai durar muito. Ele deu de ombros. — Eu realmente não sei. Karyn concordou com a cabeça, voltou a prestar atenção em seu livro e não disse mais nada. Tão simples, pensou Carter. Virou as costas para ela e saiu. Na borda da praça, Carter hesitou por um momento e depois entrou no meio da multidão. Recebeu de bom grado a pressão das pessoas, o sentimento de corpos em movimento e em contato íntimo, carne tocando carne. Respirou profundamente, inalando o aroma de suor e fumaça e maconha, álcool e perfume, o cheiro de óleo queimado das tochas. O ruído da multidão era quase tão alto quanto o da banda, e do barulho, também, ele gostou. Sentiu-se perdido e anônimo, e estava contente. Carter passou por um dos bares abertos e abriu caminho até o balcão, onde pediu um uísque com gelo. Com o drinque na mão, infiltrou-se de novo no meio da multidão. À medida que se aproximava do palco elevado, a música e o vocal da banda tornavam-se mais distintos. Surpreendentemente, era possível entender parte da letra, embora fosse gritada rapidamente, quase cuspida pelo cantor. Pegou as palavras “prata” e “luz” “sorvendo emoções”, assim como a palavra “noite” repetida várias vezes, mas mesmo assim não conseguiu ver muito sentido no que ouvia. Uma mão segurou-o pelo ombro e fez com que se virasse. Carter viu admirando um par de óculos escuros que refletiam a luz das tochas às suas costas. A mulher. 84

Ela sorriu, pegou o braço dele e guiou-o através da multidão. Ele não resistiu; estava muito curioso. A mulher vestia um blusão escuro, as pernas nuas, os pés em sapatilhas brancas de balé. Quando passaram por outro bar, Carter terminou rapidamente seu drinque e deixou o copo vazio no balcão. A mulher levou-o na direção da portaria do prédio mais ao sul do conjunto. O guarda de segurança, reconhecendo-os, deixou-os passar sem dizer nada. Quando a porta se fechou atrás deles, uma quietude opressiva encheu a portaria. Pararam em frente à porta do elevador, esperando. Os óculos da mulher eram tão escuros e espelhados que ele não conseguia ver-lhe os olhos, só uma versão distorcida e em duplicata dele mesmo refletindo-se de volta. — Eu me chamo Carter — disse. — Eu sei. Carter Strang. Sou Nicole. — Como você me conhece ? As portas do elevador se abriram, Nicole sorriu e os dois entraram. Nicole apertou o botão correspondente ao sexto andar, que se acendeu com uma fraca luz laranja. Inclinou-se para trás, encostando-se na parede do elevador, e ficou olhando para ele enquanto o elevador subia. — Eu conheço você — disse ela. — Já foi lá para cima. Para as estações, para Luna. Ela fez aquilo parecer uma “viagem”. Talvez fosse assim que ela visse. — Eu sigo todos os astronautas — continuou. — Todos que deixam esta prisão e navegam para dentro da noite. Carter fez menção de protestar, porém resolveu não dizer nada. Nunca havia pensado em si mesmo como um astronauta. Era um psicólogo-chefe da NASA, de modo que já havia feito sete viagens para fora da Terra — quatro circuitos pelas estações e três viagens a Luna. Pessoas como Nicole, entretanto, viam-nos todos como astronautas e não faria diferença o que ele dissesse a respeito. Pararam no sexto andar e as portas do elevador correram para os lados. Carter hesitou antes de sair do elevador; estava começando a perceber o que ela era. Algo, no entanto, talvez simples curiosidade, continuou a guiá-lo e ele a seguiu ao longo 85

do corredor. — Eu assisti aos depoimentos na TV — disse Nicole. — Vi quando você falou. Eles não escutaram você, mas eu sim, e eu entendi o que estava tentando dizer-lhes. Carter não estava muito certo de ter entendido a si mesmo, e quase pediu que ela lhe explicasse, mas não o fez. Na quinta porta à direita, Nicole parou e introduziu uma chave. Antes de girá-la, esticou a outra mão e pegou o braço dele. — Rápido, por favor — disse. Girou a chave e abriu somente uma fresta da porta. Carter pôde ver que o interior do apartamento estava fortemente iluminado, mas só por um momento. A mão de Nicole tocou um interruptor, o apartamento ficou escuro e ela puxou-o para dentro, fechando a porta atrás deles. Pontos de luz fluorescentes, milhares deles, como estrelas no céu noturno, estavam por toda a parte. Paredes, teto, mobília, mesmo o chão cintilava com os pequenos pontinhos prateados. Embora não reconhecesse nenhuma constelação, Carter não ficaria surpreso de ver uma. Havia luz suficiente emanando de todos os pontos fluorescentes para delinear vagamente a mobília e ver Nicole a apenas trinta centímetros de distância. Ela voltou-se para ele e, lentamente, tirou os óculos escuros. Ele esperava que seus olhos tivessem algo especial, brilhando com uma luz estranha, ofuscante, mas pareceram-lhe bem normais. Na escuridão, não conseguia descobrir a cor deles. — O que você dizia estava tão certo — disse ela. — Sobre algumas pessoas sentirem-se em casa na água enquanto outras ficam apavoradas com ela não importa quão bem saibam nadar, e como é assim que é com o espaço, que existem pessoas que não conseguem conviver com ele, mas que algumas conseguem, que algumas pessoas talvez até se sintam mais em casa no espaço que na Terra. Eu entendi. Eu acredito que você está certo, porque acho que é a esse lugar que eu pertenço, lá fora, no espaço profundo, junto com todas as estrelas. Segurou-lhe a mão e gentilmente guiou-o por um curto corredor até o quarto. Ele sabia que devia ir embora, talvez não devesse nem ter vindo, mas ainda estava curioso demais. 86

O quarto era como o resto do apartamento, escuro e cheio de estrelas. Carter teve dificuldade em manter o equilíbrio, seus pontos de referência tênues, quase invisíveis... sentiu-se como que à deriva, solto e sem amarras. Em frente da porta de correr de vidro que levava à varanda havia um telescópio. Estava apontando ligeiramente para baixo e para o leste. Carter deu alguns passos incertos até a ocular e espiou. Como esperava, o telescópio estava mostrando a varanda de seu apartamento. Podia ver o forte brilho que vinha do quarto e imaginou se Karyn ainda estava lendo, ou dormindo... ou arrumando as malas para ir embora na manhã seguinte. — Vem cá — sussurrou Nicole. Carter virou-se para ela, abanando a cabeça. Era hora de ir. Nicole aproximou-se, um vulto fantasmagórico, e ele recuou, esbarrando no telescópio. Afastou-se dela e, ainda desorientado, saiu do quarto aos tropeções. Seus pulmões pareciam apertar, cortando sua respiração, e ele foi de encontro à parede duas vezes ao atravessar o corredor. — Volta, Carter — chamou Nicole, a voz pouco mais que um sussurro. Ele atravessou desajeitadamente a sala, chocou-se com uma cadeira, finalmente encontrou a porta da frente e abriu-a. Saiu para a luz do hall, fechou rapidamente a porta atrás dele e encostou-se nela, respirando fortemente. O terrível de tudo isso é que ele realmente queria voltar para ela, apesar da tontura, apesar do medo. Mas não podia. Não ainda. Após um minuto ou dois sua respiração já estava quase de volta ao normal e o equilíbrio recuperado. Surpreso por Nicole não o ter seguido, mas aliviado, Carter desencostou-se da porta e começou a atravessar lentamente o hall. Ao sair do elevador para a portaria, Carter viu um homem vagamente familiar usando um terno escuro sentado em uma das cadeiras perto da entrada da rua. O homem levantou-se — era alto e corpulento com cabelos ruivos salpicados de mechas 87

grisalhas — e aproximou-se descontraidamente. Sua gravata estava frouxa e o botão superior da camisa desabotoado. — Carter Strang? Sou William Knopfler, do Departamento de Defesa. — Estendeu a mão. — Já nos encontramos antes, uma vez. — Acho que duas, para ser mais preciso — disse Carter. Apertaram-se as mãos. — E se não me engano, vi você nas audiências. — Eu estava muito interessado no que você tinha a dizer. — Ninguém mais estava. Knopfler sorriu. — Vamos dar uma caminhada. Gostaria de falar com você. — Sobre o quê? — Um emprego. Provavelmente vai precisar de um em breve. O sorriso não esmoreceu. Carter deu a Knopfler um sorriso amarelo em troca e concordou com a cabeça. Knopfler conduziu-o através da entrada para a rua, onde o ar estava morno e havia uma razoável tranqüilidade. Os sons da festa estavam abafados, distantes, e o tráfego era pouco, apenas um carro ou caminhão ocasional passando devagar. Começaram a andar ao longo da calçada que circundava o conjunto residencial, calados a princípio, até que, finalmente, Knopfler começou a falar. — O que me interessou foi a sua teoria sobre as pessoas terem uma profunda afinidade, estabelecida pela genética ou pela vida, por um ambiente específico. Também o contrário, que as pessoas têm enraizadas antipatias a diferentes ambientes. Particularmente interessante foi a idéia de que essas afinidades e antipatias, especialmente as variantes sutis e complexas que surgem — muito mais delicadas e específicas, por exemplo, que simples claustrofobia —, podem ser detectadas e identificadas através de procedimentos mais refinados, precisos e completos do que os que existem atualmente. Knopfler fez uma pausa e Carter sentiu que ele esperava por uma resposta. Olhou o céu acima, mas embora não houvesse nuvens, as estrelas eram obscurecidas pelo brilho ascendente das luzes da cidade. 88

— Como você diz, é apenas uma idéia — disse Carter, dando de ombros. — Eu nunca tive realmente uma oportunidade de desenvolver algo nessas linhas. E, como o presidente do comitê apontou tão enfaticamente, realmente não tenho nenhuma evidência empírica para apoiar minhas idéias. Uma idéia, talvez. Nada mais. — Só uma sensação interior? — sugeriu Knopfler. — Suponho que sim. Passaram em frente a um espaço entre os prédios, de onde um portão levava à praça, e por alguns momentos o barulho aumentou, gradualmente diminuindo em seguida. — Vários de meus colegas e eu damos muito crédito às suas idéias e gostaríamos que trabalhasse para nós. — Por quê? Os vôos espaciais tripulados estarão efetivamente extintos, pelo menos nos próximos anos. A menos que você esteja pensando a longo prazo... Knopfler balançou a cabeça. — Não estamos interessados em vôos espaciais. Não estamos de forma alguma interessados no espaço, pelo menos do ponto de vista humano. Parou para acender um cigarro, mas não ofereceu um a Carter. — Desenvolvemos recentemente um novo traje de combate de alta tecnologia para a nossa infantaria. Talvez tenha ouvido algo sobre isso. — É, algo. — São completamente herméticos, auto-suficientes, monitorados por computador, projetados para serem vestidos continuamente por vários dias ou mesmo semanas. Fizemos testes exaustivos em laboratórios, nas nossas bases e campos de treinamento, testando tanto os trajes como os soldados, e agora começamos os testes de campo nas selvas da Guatemala. — Knopfler fez uma pausa, tragou o cigarro. — Francamente, tivemos alguns problemas não muito diferentes dos encontrados pela Expedição a Marte. A síndrome de Rigger, como alguns começaram a chamar. Os homens que mandamos, nenhum tem claustrofobia, todos passaram pelo menos duas semanas durante o treinamento dentro dos trajes sem quebrar uma vez o lacre do corpo ou 89

do capacete, e sem nenhum efeito adverso, sem reações de pânico, nada como isso. Mesmo assim, alguns deles, horas depois de deixados na selva dentro de seus trajes, simplesmente... desmoronaram. Reações de pânico, alucinações auditivas e visuais, colapsos totais. A maioria não sofreu nada, foram apenas alguns aqui e ali. Porém um número significativo. Tenho certeza de que entende que não podemos correr esse tipo de risco em operações militares de verdade. Knopfler parou, tendo aparentemente terminado, e continuaram seu circuito do conjunto em silêncio por algum tempo. — E o que é que você quer de mim? — perguntou finalmente Carter — Queremos que desenvolva um programa de teste e avaliação nas linhas do que sugeriu para o programa espacial, capaz de identificar aqueles que vão ter sucesso com os trajes de combate sob várias condições — selva, deserto, montanhas, neve, centros urbanos — e aqueles que não vão. Oferecemos a você uma posição com completa liberdade, escolha de equipe, quaisquer facilidades que requisitar. Haverá grandes recursos técnicos e financeiros ao seu dispor. Será permitido que faça essencialmente o que quiser, explorar quaisquer linhas de pesquisa que desejar, dentro do razoável. — Knopfler sorriu. — Que mais você poderia pedir? — Por que você veio falar comigo? — perguntou Carter. — Por que esta noite? — Tentamos encontrá-lo no seu escritório, mas você não apareceu lá desde os depoimentos. Estamos sob uma certa pressão sobre os prazos, pressão para produzir sucessos. Os problemas nos testes de campo têm, às vezes, sido sérios. Tivemos... algumas mortes. Como você sabe, talvez melhor que a maioria, o dinheiro está ficando difícil para todo mundo e erros e fracassos não são muito tolerados. Nós, também, estamos correndo o perigo de perder o financiamento para esse programa e gostaríamos da sua ajuda tão cedo quanto possível. De fato, se aceitar, queremos que voe para a Guatemala imediatamente. Já tinham completado a volta e então pararam, novamente na entrada do prédio sul. Knopfler deixou cair o cigarro no cimento e esmagou-o com uma breve torção do pé. 90

— Vou precisar de tempo para pensar — disse Carter. — Claro. Não espero uma resposta esta noite. Mas amanhã seria ótimo. Carter concordou com a cabeça. A proposta inteira parecia absurda a ele, mas não podia dizer isso a Knopfler. Knopfler estendeu um cartão branco apenas com seu nome e dois números de telefone: — A qualquer hora, de dia ou de noite. Carter concordou de novo e colocou o cartão no bolso. Apertaram-se as mãos e Knopfler virou-se e foi embora sem mais nenhuma palavra. Carter continuou na frente do prédio e escutou os passos firmes e regulares sumirem na noite. Carter atravessou a quietude silenciosa da portaria e abriu a porta para o impacto do som da festa ainda crescendo. Continuou ao longo de uma curta extensão de paralelepípedos e abriu caminho de novo para dentro da multidão. ..... Havia ainda mais pessoas do que antes, e Carter dificilmente conseguiria mover-se de acordo com sua vontade. Em vez disso, deixou que o fluir e o vaivém da multidão o guiassem aleatoriamente pela praça e lembrou-se de algumas cenas que vira certa vez do carnaval no Rio. A banda havia aumentado os amplificadores um ponto ou dois, mas mesmo assim superava por muito pouco os gritos e gargalhadas da multidão. De algum modo ele acabou com um drinque na mão, uísque, por sorte, e foi tomando pequenos goles enquanto era esbarrado e sacudido. Perto da piscina principal, o aperto diminuía e depois terminava completamente deixando um perímetro de espaço relativamente vazio circundando a borda. As pessoas sentavam-se em cadeiras de piscina, deitavam-se em chaise-longues, falando, bebendo e rindo. Carter espremeu-se para fora da multidão, vagou entre as cadeiras até avistar uma vazia e sentou-se. Perto dele, duas pessoas remexiam-se dentro de um saco de dormir, apenas a ponta de suas cabeças visível. Carter ouviu um tumulto à direita e, quando virou-se para olhar, viu uma bola gigantesca, com uns quatro metros de diâmetro, quicando lentamente para cima e para baixo ao longo de uma selva de mãos levantadas. A bola era cinza, com desenhos 91

e palavras que ele ainda não conseguia distinguir. Parecia com o tipo de bola inflável gigante que tinha visto pela primeira vez quando criança em um Festival do Dia do Planeta Terra, uma festa hippie à qual sua mãe o tinha levado uma vez. Daquela vez, a grande bola de couro costurado cheia de ar tinha sido chamada de Bola Terra e tinha sido pintada com espirais e pinceladas de cores vivas. Mas à medida que essa Bola Terra cinza rolou e quicou para mais perto, Carter viu que tinha sido pintada com crateras e mares para parecer a Lua. Pichações tinham sido acrescentadas, slogans dos protestantes que tinham marchado do lado de fora dos portões dos campos de lançamento dia após dia nos últimos meses — CHEGA DE $$ PARA O ESPAÇO; IANQUE FIQUE EM CASA; NÃO PRECISAMOS DA LUA! As pessoas perderam o controle da bola e ela começou a rolar por cima delas na direção da piscina, gradualmente ganhando velocidade embora mãos se projetassem no ar tentando pará-la. Perto da orla da multidão algumas pessoas foram derrubadas pelo peso e pela inércia da bola quando ela acertou-as e caiu no chão. Passou por cima de várias cadeiras, batendo em pessoas e derramando drinques e continuou rolando. Uma salva de palmas emergiu da multidão quando a enorme bola cinza começou a flutuar serenamente pela piscina. Carter terminou seu drinque, colocou o copo debaixo da cadeira e estava a ponto de se levantar quando um tiro soou de algum lugar próximo. Alguns gritos cortaram o ar, mas gradualmente transformaram-se em risadas e mais salvas de palmas enquanto o ar assobiava por um furo que se abrira na bola. Carter permaneceu na cadeira e assistiu à Bola Lua esvaziar lentamente até se tornar apenas uma massa murcha e informe flutuando esquecida pela superfície da água. Carter levantou-se da cadeira e lentamente abriu caminho na direção de seu prédio, procurando nos rostos à sua volta por um par de óculos escuros. Por que queria encontrá-la de novo? Por que imagens do apartamento dela — o telescópio, a enorme quantidade de pontos brilhantes, a cama coberta de estrelas — continuavam vindo à tona em sua mente? Entrou no prédio, cumprimentou com a cabeça o guarda de segurança. Ao invés de ir para os elevadores, aproximou-se da 92

entrada para as escadas e abriu a porta. Passou por ela, deixou que se fechasse às suas costas e começou a subir. As escadas estavam quietas, o ar abafado e morno, as paredes de cimento ecoando cada um de seus passos. Por um momento sentiu-se como se estivesse andando pelos silenciosos corredores de uma das estações — Luther King, Lagrange, Challenger. Challenger. O programa espacial quase não havia sofrido com o desastre da Challenger e suas sete mortes; tinha continuado a progredir, e tinha, sob alguns aspectos, emergido mais forte que nunca. Carter era um adolescente na época e também não se deixara abalar; o desastre não tinha enfraquecido seu fascínio pelo espaço, seu sonho de um dia viajar às estrelas. Agora, contudo, o programa não ia sobreviver à Expedição a Marte. Nenhuma morte, mas a missão cancelada tinha coroado uma década de outros acidentes e mortes relacionados com o espaço, de contratempos e falhas mecânicas inexplicadas, colapso do equipamento, erros de julgamento, rumores de sabotagem deliberada, tudo isso parecendo crescer inexoravelmente a cada ano, levando a uma insatisfação crescente da população, dúvidas cada vez mais graves no Congresso e finalmente a intensos protestos e passeatas. Quando a Expedição a Marte foi cancelada, mais uma falha colossal, o programa não tinha mais onde se apoiar. Estava condenado no dia em que a Explorer fez a volta. No último andar, Carter descansou um minuto e depois continuou pelo lance final de escadas até o terraço. Destrancou a porta com a chave de seu apartamento e caminhou para fora. O ar estava morno e a Lua brilhava sobre ele, quase cheia. O ruído da festa erguia-se da praça e ultrapassava a borda do terraço, mas estava abafado, mais como o barulho das ondas em uma praia vazia. A não ser por algumas cadeiras da piscina, o terraço estava deserto. Carter andou até a cadeira mais próxima e sentou-se, sentindo-se repentinamente muito cansado. Ajustou os braços de modo a se deitar inclinado para trás, podendo olhar diretamente a Lua e as estrelas acima dele. Mais uma vez, sua mão moveu-se para o bolso vazio da camisa e remexeu nele antes de voltar para seu lado. 93

Luna. A última vez em que estivera lá fora para ajudar no debriefing da tripulação da Explorer. Ainda se lembrava vividamente da visão de Rigger emergindo da Explorer, quase catatônico, os olhos arregalados, fixos, mas sem ver nada, o corpo inteiro tremendo. E Carter nunca esqueceria aquele incrível suspiro de desespero que veio de Rigger logo antes dele desabar de joelhos, soluçando e balançando a cabeça. Luna. Estava rapidamente se movendo para fora de alcance, e agora Knopfler queria que ele fosse à Guatemala para ajudar a preparar homens não para a exploração do espaço, mas para a guerra na Terra. Carter respirou profundamente, sentou-se e finalmente ficou de pé. Atravessou o terraço, o cascalho fazendo ruído sob seus sapatos. Na beira do terraço inclinou-se contra o parapeito e observou a multidão movimentando-se na praça. A Bola Lua vazia ainda flutuava na piscina principal, imóvel em um canto, presa na canaleta. Não, Knopfler não o entendia de modo algum. Ele oferecera o que pensava que Carter queria e precisava, mas ficara evidente que o homem não tinha entendido. Carter não podia aceitar a oferta de Knopfler. Se o fizesse, se fosse à Guatemala para trabalhar com os militares, ajudando soldados a lutar em guerras, ficaria irremediavelmente preso à Terra. Tão preso que seria inútil para o programa espacial se algum dia ele revivesse, e isso era algo que não podia aceitar. Não, Knopfler não o entendia. Nem Karyn. Ninguém realmente o entendia, com a estranha, possível exceção de... Carter debruçou-se contra o parapeito e olhou para a pequena piscina que havia diretamente abaixo. Estava vazia, mas a trinta centímetros da borda, sentada em uma cadeira e olhando para cima, para ele, através de óculos escuros, estava Nicole. Eles se olharam por vários minutos sem se mover; então, Nicole levantou-se vagarosamente da cadeira. Ela manteve o olhar nele e, após outra pausa, começou a andar na direção do prédio. Carter não se moveu, e mesmo quando ela desapareceu na portaria continuou imóvel na borda do terraço, esperando que se juntasse a ele. 94

Carter ouviu a porta abrir atrás dele e virou-se para observar Nicole sair para o terraço. Suas sapatilhas quase não fizeram barulho no cascalho quando atravessou o terraço para ficar a seu lado. Novamente, viu sua reflexão em duplicata quando olhou nos óculos dela. Dessa vez, porém, viu também os olhos por um momento. — Você vai vir agora? — ela perguntou. Carter não disse nada por um longo tempo, embora já soubesse qual seria sua resposta. Olhou para a Lua, um sentimento de perda doendo em seu peito com o pensamento de que poderia nunca mais retornar a ela. Talvez algum dia, de algum modo, se pudesse evitar perder suas opções... Voltou-se para Nicole. — Sim, eu irei, agora. Atravessaram juntos o terraço em direção à porta, passaram por ela e começaram a descer. Nenhum dos dois falou, e Carter sentiu um aperto no peito enquanto ouvia os passos regulares dos dois ecoando no ar abafado, os dele firmes e precisos, os dela como sussurros. Ainda estava com um pouco de medo de Nicole, com medo de voltar ao apartamento dela, mas sabia que passaria por isso agora, que tinha se tornado tão importante para ele quanto era para ela. Emergiram das escadas na portaria, passaram por ela e saíram para a rua. Ainda em silêncio, deram a volta no prédio de Nicole e entraram. Assim como tinham descido do terraço pelas escadas, subiram escadas ecoantes até o sexto andar. Quando saíram para o hall, descansaram por alguns minutos, respirando fortemente. As dúvidas cresceram de novo e Carter pensou em recuar para as escadas e descer de novo, mas quando Nicole começou a andar na direção do apartamento dela, ele a seguiu. Entrar no apartamento dela foi como da vez anterior — Nicole destrancou a porta, abriu-a ligeiramente para alcançar o interior e desligar as luzes e então puxou-o rapidamente para dentro, fechando a porta e trancando-a atrás deles. Estrelas novamente. Embora já tivesse visto o apartamento, o enorme número de pontinhos prateados conseguiu mais uma vez enchê-lo com a 95

impressão de espaço vasto, aberto, de céus cheios de estrelas na noite mais escura. Como antes, Nicole guiou-o através da sala até o quarto, para uma nova e brilhante galáxia. Desta vez as cortinas tinham sido puxadas sobre as portas de correr de vidro de modo que agora tudo no quarto estava completamente coberto de estrelas. Sua desorientação voltou, junto com um leve pânico que ameaçava crescer, pânico com a sensação de estar desligado da Terra e flutuando à deriva através da interminável noite do espaço. Carter ficou de pé no centro do quarto, balançando, incapaz de se mover. Nicole ajoelhou-se ao pé da cama e esticou-se para alcançar algo no chão. Quatro enormes globos de estrelas nos cantos do quarto, e um sobre ele (como é que não os tinha notado antes?) começaram a girar lentamente. Mais inquietante, giravam em direções diferentes, alguns lateralmente, alguns verticalmente e todos em velocidades que variavam. O pânico aumentou e Carter tentou mover-se na direção da porta do quarto, procurando escapar, mas antes de completar o primeiro passo perdeu todo o senso de orientação. Foi tomado por uma forte vertigem. Todos os pontos de luz do quarto começaram a se mover, mesmo aqueles que eram fixos, e ele começou a cair. Sentiu mãos frescas apoiando-o, guiando-o, mas demorou um momento até que percebesse que eram de Nicole. Tentou olhar para o chão, concentrar-se na sensação de seus pés tocando o chão firme como uma âncora para endireitar-se, mas não havia meio. Ainda apoiado por Nicole, tropeçou, os joelhos não o agüentaram e sentiu-se arrastado para baixo e torcendo-se para o lado, sentiu a maciez de um colchão sob seu corpo. Carter sabia que estava de costas na cama, mas estava consciente de pouco mais que isso. As estrelas continuaram a girar à sua volta e sentiu-se como se a própria cama estivesse girando. Fechou os olhos, mas nada mudou. A vertigem apenas piorou, e o pânico atingiu-o com força total, inchando em seu peito e garganta. Mas Carter, em lugar de lutar, aceitou o pânico. Deixou-o desabrochar em medo, depois deixou o medo espalhar-se igual96

mente por todo o seu corpo, para fora ao longo de seus membros até as mãos e os pés de onde ele suavemente vazou e dissipou-se na noite, deixando-o vazio mas sem medo. Abriu os olhos de novo, as estrelas por todos os lugares ainda voando e dançando, mas a vertigem desaparecera, e ele começou a sentir os padrões regulares dos movimentos das estrelas, os ritmos de sua dança, e começou a sentir sua própria harmonia crescente com seus movimentos graciosos através do céu. Mas onde estava a Lua? Por alguma razão inexplicável sentiu que deveria estar vendo-a, que sua presença era de algum modo crucial. De repente, ficou tudo claro. Eu estou na Lua. Eu voltei. O rosto de Nicole brilhava acima dele. Nua agora, usando apenas os óculos escuros que refletiam as estrelas para ele, ela cobriu-o com seu corpo e suas mãos moveram para a camisa dele, delicadamente desabotoando-a, correndo os dedos frescos ao longo de seu peito e de sua barriga. Carter sentiu seu corpo responder ao toque dela e passou as pontas de seus dedos levemente pelas lentes escuras, o nariz suave, a boca firme. Sim, pensou, este é o meu lugar, aqui, entre as estrelas. Nicole inspirou profundamente e beijou-lhe as mãos, pressionou seus lábios contra os dele. Com o sangue agora correndo através de si, Carter estendeu as mãos para abraçá-la e para abraçar a noite enquanto as estrelas continuavam a girar e dançar em padrões delicados e brilhantes por todos os lados. Painel lateral Cedo na manhã seguinte, Carter levou Karyn de carro até a estação de trem, uma viagem realizada em silêncio. Eles não tinham nada mais a dizer um para o outro e ele não ficou para vê-la embarcar. Aquela parte de sua vida tinha terminado. No caminho de volta para o apartamento, encheu o tanque de combustível, verificou a água e o óleo, os fluidos de freio e de transmissão, calibrou os pneus. Limpou todas as janelas e comprou um mapa dos Estados Unidos. Em um impulso, parou em 97

uma livraria e comprou mapas do Canadá e do México também. Carter gastou o dia empacotando tudo o que tinha ficado no apartamento, enchendo caixas, bolsas e malas, fazendo uma seleção de tudo e decidindo o que levaria com ele e o que deixaria para trás. Knopfler telefonou duas vezes durante o dia e Carter finalmente prometeu a ele uma resposta na manhã seguinte. Então já se teria ido e Knopfler ficaria sem resposta nenhuma. Iria para as montanhas ou para o deserto, isso ele sabia. Algum lugar onde pudesse realmente ver as estrelas, a Lua, e os céus limpos, escuros da noite. Estaria pronto quando o programa espacial revivesse, pronto se não para ir ao espaço ele mesmo, pelo menos para preparar outros que iriam. A noite caiu, e Carter carregou o carro com tudo que planejara levar com ele. De volta ao apartamento, sentou-se uma vez mais na varanda. O apartamento, escuro pela primeira vez em meses. O ar da noite estava morno, a praça abaixo quase vazia, quieta. Alguém havia puxado a Bola Lua vazia para fora da piscina, colocando-a sobre uma chaise-longue. Carter fitou o céu noturno, mas embora estivesse livre de nuvens, as estrelas acima pareciam fracas e sem vida. As luzes da cidade produziam um brilho muito forte e havia muitas estrelas que ele sabia que deveriam estar visíveis mas que não conseguia ver. Mesmo a Lua, que estava nascendo, permanecia oculta, sua vista bloqueada pelos tijolos e cimento do prédio de apartamentos. Este não é um lugar para se estar, pensou, este não é um lugar para se viver. Ele olhou através da praça para o prédio mais ao sul. Em uma janela do sexto andar vislumbrou um reflexo de luz, provavelmente do telescópio. Quer dizer que ela ainda estava observando-o. Depois daquela noite, no entanto, não estaria mais lá, e ela olharia para uma varanda deserta, um quarto escuro e vazio. A meia-noite ele trancou a apartamento e caminhou para o estacionamento. Nicole estava em pé do lado de seu carro com uma única maleta e o telescópio. As luzes dos prédios refletiamse nele de seus óculos escuros. Carter inspirou profundamente. 98

Tudo bem, pensou. Por enquanto. Eles espremeram a maleta na mala do carro, depois empacotaram o telescópio no banco de trás. Ele prendeu bem a tampa da lente, e embalaram o telescópio cuidadosamente em grossos cobertores, colocando-o bem escorado no meio da bagagem para maior proteção. Partiram sob um céu límpido. Montanhas ou deserto, ele decidiria depois. Dirigiu para o norte, para longe da cidade e das fileiras de lâmpadas âmbar. Na auto-estrada, a Lua despejava seu brilho sobre eles, iluminando o caminho.

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1 Bom, aqui estou, no stetl, arma na mão. Escondido no beco, esperando para matar meu avô. Meu zeder. Não que eu tenha alguma coisa contra o velho, vocês entendem. Na verdade mal o conheci, eu só tinha seis ou sete anos quando ele morreu. Me recordo muito mal da casinha suja onde ele vivia com minha buba, a casa onde meu pai e seus irmãos e irmãs cresceram. Era realmente um cortiço, uma fileira de casas iguais espremidas, sem banheiro; a casinha ficava do lado de fora, no pequeno quintal onde criavam as galinhas. Agora não existe mais, foi demolida, e no seu lugar construíram casas populares, poucos anos antes da morte do meu avô, a morte real, ou pelo menos a primeira morte. Ele era alfaiate, meu avô, um alfaiate honesto e baixinho, primeiro no stetl e depois no novo país. Meu pai também era alfaiate, só que era mais alto, e costurava para uma clientela 101

melhor. E eu sou físico, tal é a natureza da assimilação cultural e da acomodação. Eu devia me apresentar. Meu nome é Harold Levett. O nome do meu avô era Avram Levi. E vou matá-lo. Nós íamos visitá-lo, o meu avô, na sua casinha do cortiço, fazendo a longa viagem desde a nossa casa no subúrbio. E ele sempre queria me levar ao barbeiro, um aspecto dessas visitas que eu não suportava. Nunca gostei de ir ao barbeiro, e detestava especialmente os barbeiros velhos da vizinhança do meu avô, com aquelas enormes navalhas degoladoras que eles afiavam numa tira de couro e usavam para raspar a parte de trás do pescoço. Mas, além disso, não tenho nada contra o velho, não há realmente nenhum rancor no que devo fazer agora, é tudo estritamente no espírito da investigação científica. Claro que ele não é um velho nesta época, mas um jovem, mais jovem até do que eu. Pequeno e vigoroso em seus movimentos descendo o beco em minha direção sem suspeitar de nada, não se parece em nada com meu pai, que ainda não é sequer um brilho em seus olhos e agora nem isso se tornará. Por que devo matá-lo? Claro que é evidente. Farei isso para resolver o problema do avô. 2 — Você está perdendo seu tempo — diziam meus colegas. — Viajar no tempo é impossível, filosoficamente impossível. Naturalmente você está familiarizado com esse argumento: se fosse possível para mim viajar no tempo, então eu poderia matar meu avô e como resultado eu jamais teria nascido para viajar no tempo e matar meu avô... — Mas por que eu iria querer matar meu avô? — Você poderia fazer isso por acidente — diziam meus colegas. — Se muitas pessoas viajassem no tempo, alguém faria isso mais cedo ou mais tarde, acidental ou deliberadamente. Isso seria um paradoxo, logo, impossível. E mesmo assim estavam errados, os meus colegas. Pois é possível viajar no tempo. Eu já provei isso. E agora resolverei 102

esse absurdo problema do avô. 3 Saio das sombras e levanto a arma. Atiro direto no peito do meu avô. O tiro faz um buraco enorme, que sangra em profusão. E ele continua de pé, olhando para mim. Atiro mais uma vez, e outra. — Idiota! — grita ele, num inglês claro embora cheio de sotaque; mas é um idioma que ele não aprenderia senão dali a quinze anos. — Burro! Schmuck! Eu devia ter mandado o barbeiro cortar o seu cacete! — Você não fala inglês — eu retruco. — Eu freqüentei o Berlitz em Varsóvia, o que você acha? — E passa a mão sobre os ferimentos de bala no peito, que se regeneram à medida que ele fala. — Idiota! Seu pai não valia um tostão furado, mas você... — Você está morto — respondo. — Eu matei você. Voltei no tempo e matei você. — Não, não matou não — retruca ele. — Idiota. Viajar no tempo é impossível. Será que você não mete isso na cabeça? E ainda por cima tentar matar seu próprio avô... — Não é nada pessoal. É estritamente científico... — É sempre com os avôs — reclama ele. — Sempre nós. Me diga, senhor Grande Cientista, o que é essa fixação de matar seu zeder? Por que não apenas seu pai? Por que não? O resultado é o mesmo, afinal de contas! — Eu não havia... — Não havia pensado nisso — debocha ele. — E sabe por que não? Por que você não pensa. Ó, Édipo, Édipo! Não aprendeu nada de Freud? Você quer é matar seu pai, não seu avô. Este é o motivo pra toda esta confusão de viagem no tempo, mas você não consegue encarar isso. Então transfere para o seu avô. — Agora escute. Tive problemas com meu pai, é verdade. Quem não tem? Mas nada disso me levaria a querer... Paro para pensar um momento. — Espere um instante. Você é um pequeno alfaiate de um stetl no ano de 1905. O que é que você sabe sobre Freud? — in103

daguei. — Eles ensinam isso lá no Berlitz. Agora saia da minha frente, tenho que fazer medidas para um terno. — Isto é uma armação. Você não é meu avô. Aposto que é um agente da patrulha do tempo, enviado para me convencer de que estou maluco. — Não — responde ele. — Maluco você está, isso não se discute. Agora sai da minha frente. 4 Atordoado, puxo a alavanca no meu cinto que reverte o campo de táquions. Sinto como se estivesse caindo, através dos anos, de volta ao meu laboratório. Só que quando paro de cair estou deitado numa cama numa sala pintada de branco, e um homem de jaleco branco está olhando para mim. — Ah, Sr. Levett — diz ele. — Vejo que o senhor está de volta. Como que foi? Gostou da conversa com seu avô? Balanço a cabeça, para clarear as lembranças. As memórias começam a voltar. — Tive um colapso. — Isso mesmo — responde o médico. — O senhor ficou obcecado com viagens no tempo. Negligenciou seu trabalho, a noiva, os amigos. Finalmente o senhor se afastou completamente do mundo. Mas agora o trouxemos de volta. — Como? Tudo parecia tão real. — Hipnose. Dando substância à sua obsessão, esperávamos fornecer lhe alguma pista acerca do seu comportamento. — Sim. O senhor está certo. Agora eu sei. Eu estava louco. Completamente louco. Viajar no tempo é impossível. — Bem, sugiro que o senhor descanse um pouco agora — diz o médico. 5 Fecho os olhos, mas o sono não vem. Procuro um copo de água na mesinha-de-cabeceira, mas 104

não chego a pegá-lo. Um rapaz vestindo uma roupa de pára-quedista roxa aparece de repente dentro do quarto. Está segurando um objeto estranho na mão direita, que aponta para mim como se fosse uma arma. — Desculpe ter de fazer isso, papai — diz ele. — Não é pessoal. — Qual é? — eu retruco. — É uma brincadeira engraçada, mas não precisa mais, tudo bem. Estou convencido. De qualquer maneira, por hoje já basta. — Estou aqui para matar o senhor, papai — retruca ele. — Vim de muito longe para fazer isso e nada vai me impedir. Mas, como estou dizendo, não é pessoal. Em algumas coisas o senhor foi um ótimo pai. — O cacete que não é pessoal — respondo irritado. O garoto é um completo babaca, ainda que seja filho de peixe. — Já que vamos fazer essa encenação, o que é que aconteceu com aquela história de matar o avô? Ele dá de ombros. — Assim é mais simples. — Punkzinho besta. Esquece. Viajar no tempo é impossível. — O senhor é que está dizendo. Aponta o aparelho para mim. — Espere um minuto. Não podemos conversar? — indago. E aí uma rajada de luz alaranjada explode na minha direção.

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George não era uma dessas almas tímidas que acham que ninguém tem o direito de criticar uma refeição pela qual não está pagando. Assim, informou-me que estava decepcionado com o almoço, com todo o tato de que foi capaz, ou por outra, com todo o tato que achava que eu merecia, o que, naturalmente, não é a mesma coisa. — Este smorgasbord está uma droga — declarou. — As almôndegas estão frias, falta sal no arenque, os camarões não estão bem fritos, o queijo está velho, os ovos sem tempero, os... 107

— George, é a terceira vez que você enche o prato — disse eu. — Daqui a pouco, vamos ter que operá-lo para aliviar a pressão nas paredes do estômago. Por que está se empanturrando com essa comida de terceira classe? — Acha que eu seria capaz de ofender meu anfitrião, recusando-me a comer sua comida? — disse George, com altivez. — A comida não é minha, e sim do restaurante. — É ao proprietário desta espelunca que estou me referindo. Diga-me, amigo velho, por que não entra para um clube de classe? — Eu? Pagar uma fortuna por privilégios duvidosos? — Estou falando de um clube de classe, no qual eu pudesse entrar como seu convidado para desfrutar de um jantar decente. Não, não... — acrescentou, em tom queixoso — é um sonho impossível. Qual o clube de classe que arriscaria a reputação aceitando você como sócio? — Qualquer clube que permitisse a sua entrada como convidado certamente me aceitaria... — comecei, mas George já estava perdido em reminiscências. — Lembro-me do tempo — disse, com os olhos brilhando — em que jantava pelo menos uma vez por mês em um clube que oferecia o buffet mais generoso e requintado que já enfeitou qualquer mesa desde o tempo de Luculo. — Aposto que você freqüentava o clube de graça, como convidado de alguém. — Não sei de onde tirou essa idéia, mas, por uma estranha coincidência, acertou em cheio. O sócio do clube a quem devo agradecer por tantas noites agradáveis se chamava Alistair Tobago Crump, VI. — George, esta vai ser outra história na qual você e Azazel se juntam para levar um pobre infeliz ao desespero enquanto tentam ajudá-lo da forma mais desajeitada possível? — Não sei o que quer dizer com isso. Fizemos com que o seu maior desejo se concretizasse, movidos pelos princípios mais elevados de bondade desinteressada e amor ao próximo... para não falar no fato de que eu realmente adorava aqueles jantares no clube. Mas deixe-me contar a história do começo. 108

Alistair Tobago Crump, VI, era membro do Clube Paraíso desde o dia em que nascera, porque o pai, Alistair Tobago Crump, V, colocara o nome do filho na lista assim que uma inspeção visual o assegurara de que a informação do médico a respeito do sexo da criança estava correta. Alistair Tobago Crump, V, tinha sido igualmente registrado no clube pelo pai, e as sim por diante, desde o dia em que Bill Crump, enquanto se recuperava de uma bebedeira, tinha sido alistado à força na marinha britânica bem a tempo de se ver como membro indignado da tripulação de um dos navios da frota que recuperara Nova Amsterdam dos holandeses em 1664. Acontece que o Paraíso é o clube mais seleto de toda a América do Norte. É tão fechado que os únicos que sabem que ele existe são os sócios e uns poucos convidados. Eu mesmo não sei onde fica; sempre me levaram para lá de olhos vendados, em um cabriolé de janelas opacas. Só posso lhe dizer que, quando chegávamos perto do nosso destino, os cascos do cavalo passavam por uma estrada de paralelepípedos. Ninguém era aceito no Paraíso a não ser que os ancestrais dos dois lados da família remontassem ao período colonial. E não era só a família que contava. A conduta do candidato devia ser irrepreensível. George Washington foi recusado por unanimidade porque havia faltado com o respeito para com as autoridades constituídas. Os convidados eram selecionados com o mesmo rigor, mas isso não me deixou de fora, naturalmente. Ao contrário de você, não sou um imigrante de primeira geração, nascido em Dobrudja, Herzegovina ou outro lugar igualmente improvável. Minha linhagem é impecável, já que meus antepassados vêm infestando o território desta nação desde o século XVII e já que todos, sem exceção, evitaram os pecados de rebelião, deslealdade e antiamericanismo durante a Guerra da Independência e a Guerra Civil, aplaudindo com imparcialidade os dois exércitos em confronto. Meu amigo, Alistair, tinha um orgulho especial em pertencer ao clube. Freqüentemente me dizia (porque era um chato daquele tipo que vive repetindo a mesma coisa): “George, o Paraíso é a essência do meu ser, o núcleo da minha existência. Se eu tivesse tudo que a riqueza e o poder pudessem me dar e não 109

tivesse o Paraíso, seria como se nada tivesse.” Naturalmente, Alistair tinha tudo que a riqueza e o poder podiam lhe dar, porque outra das exigências para pertencer ao Paraíso era ser muito rico. Quanto mais não fosse, a anuidade cobrada tornava isso essencial. Entretanto, mais uma vez, ser rico não era tudo. A riqueza tinha que ser herdada. Não podia ter sido ganha pelo pretendente. Qualquer suspeita de que o candidato tivesse trabalhado por dinheiro o tornaria imediatamente inelegível. No meu caso, a única coisa que me impediu de entrar para o clube foi o fato de meu pai ter se esquecido de me deixar alguns milhões de dólares de herança, já que, no que se refere ao trabalho... Não diga “isso eu já sei”, amigo velho. Não há maneira de você saber. Naturalmente, ninguém objetaria se um sócio resolvesse aumentar a sua renda através de um método inteligente, que não envolvesse o trabalho. Havia sempre artifícios como a especulação na bolsa, a sonegação de impostos, o tráfico de influência e outras coisas que nos ricos chegam a ser uma segunda natureza. Tudo isso era levado muito a sério pelos sócios do Paraíso. Falava-se de sócios que, depois de perderem tudo que possuíam por causa de um ataque inexplicável de honestidade, tinham preferido morrer de fome a arranjar um emprego e terem que renunciar ao clube. Os nomes desses heróis ainda são mencionados com respeito e placas em sua homenagem podem ser encontradas nas paredes da sede. Não, não podiam pedir dinheiro emprestado aos amigos, meu velho. Só você mesmo para ter essa idéia. Todos os sócios do Paraíso sabem que não se pede dinheiro emprestado a um homem rico quando existe um número enorme de pessoas pobres esperando ansiosamente na fila para serem espoliadas. A Bíblia nos lembra que “tendes sempre os pobres convosco” e os membros do Paraíso são muito religiosos. Entretanto, Alistair não se sentia inteiramente feliz, e por uma simples razão: os outros sócios do Clube Paraíso o evitavam sempre que possível. Já mencionei o fato de que ele era muito chato. Nunca tinha um caso interessante para contar, um dito espirituoso para acrescentar à conversa, ou uma opinião dig110

na de nota sobre qualquer assunto. Na verdade, mesmo em um ambiente que, em termos de perspicácia e originalidade, estava mais ou menos no nível de quarta série do primeiro grau, ele se destacava como o mais obtuso de todos. Pode imaginar a sua frustração, ali sentado, noite após noite, sozinho no meio da multidão. O oceano da vida social, por assim dizer, passava por ele mas não o molhava. Mesmo assim, toda noite ia ao clube. Mesmo no dia em que teve um violento ataque de disenteria, chegou carregado, mas não deixou de comparecer. Essa mostra de fidelidade foi admirada de forma abstrata pelos outros sócios, mas, por alguma razão, não despertou muita simpatia. Claro que às vezes ele tinha o privilégio de me receber como convidado no Paraíso. Minha linhagem era impecável, meu passado de não-trabalhador convicto granjeava o respeito de todos, e em troca de uma lauta refeição e de um ambiente refinado, tudo à custa de Crump, naturalmente, dava-me ao trabalho de conversar com ele e rir de suas piadas totalmente sem graça. Como tenho coração mole, comecei a sentir uma profunda compaixão daquele pobre-diabo. Devia haver alguma forma de torná-lo a vida da festa, a alma do Paraíso, um homem invejado por todos os outros sócios. Comecei a imaginar os sócios mais antigos e respeitados disputando a honra de se sentarem ao seu lado no jantar. Afinal de contas, Alistair era a própria imagem da respeitabilidade, de tudo que um sócio do clube ambicionava ser. Era alto, magro, seu rosto tinha a expressão de um cavalo ruminando, os cabelos eram louros e escorridos. Tinha olhos azuis e o ar de ortodoxia formal, conservadora, de um homem cujos ancestrais tinham a si mesmo em conta tão alta que jamais se casariam com uma pessoa de estirpe inferior, Tudo que lhe faltava era qualquer vestígio de alguma coisa interessante para dizer ou fazer. Mas isso não era difícil de corrigir. Era um caso perfeito para Azazel. Daquela vez, Azazel não ficou aborrecido comigo quando o chamei do seu planeta através da dobra espacial. Ao que parecia, tinha estado em alguma espécie de banquete, estava na sua vez 111

de pagar a conta e eu o havia tirado de lá cinco minutos antes de a conta chegar. Deu uma risadinha com voz de falsete, porque, como você sabe, tem apenas dois centímetros de altura. Disse para mim: — Vou voltar quinze minutos depois. Até lá, com certeza, alguém já terá pagado a conta. — Como vai explicar sua ausência? — perguntei. Ele se empertigou todo e balançou a cauda. — Direi a verdade; fui chamado por um monstro extragaláctico de inteligência subnormal, que necessitava desesperadamente dos meus conselhos. Que é que você quer desta vez? Contei a ele e, para minha surpresa, começou a chorar. Pelo menos, gotículas de um líquido vermelho jorraram dos seus olhos. Suponho que eram lágrimas. Uma delas caiu na minha boca e percebi que tinha um gosto horrível, parecido com o de vinho tinto barato, ou, pelo menos, como imagino que seria o gosto de vinho tinto barato, se eu um dia tivesse coragem de experimentar esse tipo de bebida. — É muito triste — declarou, afinal. — Conheço o caso de um ser muito inteligente e capaz que está sempre sendo esnobado por gente que nem lhe chega aos pés. Não conheço destino mais triste. — Quem poderia ser? Este ser infeliz, quero dizer. — Eu mesmo! — exclamou, batendo com força no pequeno peito. — Acho difícil de imaginar — disse eu. — Você? — Eu também acho. Mas garanto que é verdade. Que é que esse seu amigo sabe fazer que pode ser aperfeiçoado? — Bom, ele conta piadas. Ou pelo menos tenta. São horríveis. Ele arrasta interminavelmente, faz rodeios desnecessários e depois esquece desfecho. As piadas do meu amigo são de fazer chorar. Azazel sacudiu a cabeça. — Isso é mau. Muito mau. Acontece que, por coincidência, sou um excelente contador de piadas. Já lhe contei daquela vez em que um plóquio e um jiniramo estavam fazendo uma andesantoria e um deles disse... — Já me contou, sim — disse eu, mentindo com convic112

ção. — Vamos voltar ao caso de Crump. — Existe algum meio simples de melhorar a forma de contar uma piada? — perguntou Azazel. — Um certo desembaraço, é claro — disse eu. — É claro. Uma simples divalinação das cordas vocais resolverá o caso... supondo que vocês, bárbaros, tenham cordas vocais. — Temos sim. Além, naturalmente, da capacidade de imitar vários sotaques. — Sotaques? — Maneiras incorretas de falar. Os estrangeiros que não aprenderam uma língua quando crianças quase sempre pronunciam errado as vogais, trocam a ordem das palavras, cometem erros de gramática e assim por diante. Uma expressão de horror passou pelo pequeno rosto de Azazel, — Mas isto é uma ofensa mortal! — exclamou. — Não neste mundo — assegurei-lhe. — Deveria ser, mas não é. Azazel sacudiu tristemente a cabeça. — Seu amigo já teve oportunidade de ouvir essas atrocidades que você chama de sotaques? — Certamente. Qualquer pessoa que more em Nova York está constantemente exposta a todos os tipos de sotaques. Na verdade, o que é raro é ouvir uma pronúncia castiça, como a minha. — Muito bem — disse Azazel. — Então é apenas uma questão de escapular a memória. — Fazer o quê com a memória? — “Escapular”, isto é, tornar mais eficiente. A palavra é derivada de “escapos”, o dente de um dirigino zumbívoro. — E com isso ele será capaz de contar piadas com sotaque? — Apenas os sotaques a que tiver sido exposto. Afinal de contas, meus poderes não são ilimitados. — Pois trate de escapulá-lo. Uma semana depois, encontrei-me com Alistair Tobago 113

Crump, VI, na esquina da Quinta Avenida com a Rua 53, e procurei em vão no seu rosto por sinais de um triunfo recente. — Alistair — perguntei — tem contado muitas piadas ultimamente? — George, meu amigo, ninguém se interessa por elas. Há ocasiões em que chego a pensar que não tenho jeito para contar piadas. — Pois vou lhe fazer uma proposta. Venha comigo a um clube noturno que conheço. Eu lhe apresento, você se levanta e diz a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Posso lhe assegurar, amigo velho, que não foi fácil convencê-lo. Tive que fazer uso de toda a força da minha personalidade magnética. No final, porém, ele concordou. Levei-o a um inferninho de terceira, parecido com um desses lugares aonde às vezes você me leva para jantar. Eu conhecia o dono da espelunca, e convenci-o a concordar com a experiência. Ás 11 da noite, quando a folia estava no auge, levantei-me e silenciei a platéia com meu ar de dignidade. Só havia onze pessoas presentes, mas achei que era suficiente para a primeira vez. — Senhoras e senhores — disse eu —, temos hoje em nossa companhia um cavalheiro de grande intelecto, um mestre de nossa língua, que todos, certamente, terão prazer em conhecer. Trata-se de Alistair Tobago Crump, VI, professor de inglês da Universidade de Colúmbia e autor de “Como Falar um Inglês Perfeito”. Professor Crump, quer se levantar e dizer algumas palavras para nossa distinta platéia? Crump se levantou, com um ar meio assustado, e disse: — Mucho obrrigada parra todas vocêis. Olhe, meu velho, já ouvi você contar piadas no que pretende fazer passar por sotaque de judeu, mas poderia ser a pronúncia de um locutor de rádio em comparação com Crump. O caso é que Crump parecia um professor de inglês de uma grande universidade. Olhar para aquele rosto altivo, solene, e de repente ouvir uma frase num inglês todo estropiado, deixou as pessoas a princípio totalmente sem ação. Depois, as risadas chegaram às raias da histeria. Crump me dirigiu um olhar de surpresa e me disse, em 114

um sotaque sueco, levemente cantado, que não me atrevo a tentar reproduzir: — Não esperava uma reação tão imediata. — Esqueça — disse eu. — Continue falando. Crump esperou que os risos parassem, o que levou algum tempo, e começou a contar piadas com sotaque escocês, espanhol, grego, etc, etc. Sua especialidade, porém, era o sotaque de Brooklyn... a língua que você fala, amigo velho. Depois disso, toda noite eu o deixava passar algumas horas no Paraíso e depois o levava para aquela mesma casa noturna. A notícia logo se espalhou. Naquela primeira noite, como eu disse, a audiência era pequena, mas em pouco tempo havia gente na porta brigando para conseguir um lugar. Crump aceitou tudo com muita naturalidade. Na verdade, parecia um pouco deprimido. Disse para mim: — Escute, não há sentido em desperdiçar o meu talento com esses simplórios. Quero mostrar minhas habilidades aos meus companheiros do Paraíso. Eles não prestavam atenção às minhas piadas porque nunca me havia ocorrido contá-las com sotaque. Na verdade, eu mesmo desconhecia este meu talento, o que mostra até que ponto uma pessoa inteligente e sensível pode se subestimar. Só porque não sou do tipo que gosta de aparecer... Estava falando no seu melhor sotaque de Brooklyn, que constitui uma verdadeira agressão para meus ouvidos, se me perdoa a franqueza, amigo velho, de modo que apressei-me a assegurar-lhe que cuidaria de tudo. Falei ao dono do estabelecimento a respeito da riqueza dos sócios do Paraíso, sem mencionar, é claro, que seu pão-durismo estava à altura de suas fortunas. O homem, babando com a idéia de conquistar um público tão desejável, mandou convites para todos eles. Tinha sido idéia minha, pois eu sabia que nenhum sócio do clube resistiria à tentação de assistir a um espetáculo de graça, especialmente depois que lancei o boato de que seriam exibidos filmes pornográficos. Os sócios do Clube Paraíso compareceram em peso, o que deixou Crump radiante. 115

— Vai ser uma beleza. Tenho um sotaque coreano que vai acabar com eles. Ele também contava no seu repertório com um sotaque sulista que era preciso ouvir para crer. Por alguns minutos, os sócios do Paraíso ficaram sentados em um silêncio mortal e tive a horrível impressão de que não haviam compreendido o humor sutil de Crump. Entretanto, estavam apenas paralisados de espanto; quando se recuperaram, começaram a rir às gargalhadas. Barrigas imponentes balançaram, pincenês caíram no chão, suíças brancas tremularam ao vento. Todos os sons desagradáveis, do risinho em falsete de alguns ao gargalhar trovejante de outros, encheram subitamente o recinto. Crump ficou envaidecido com aquela demonstração de apreço. O gerente, certo de que aquilo era o início de um empreendimento extremamente lucrativo, aproximou-se de Crump no intervalo e disse: — Meu amigo, meu amigo, sei que pediu apenas uma oportunidade para mostrar sua arte e que está acima do lixo que as pessoas chamam de dinheiro, mas não posso resistir por mais tempo. Pode me chamar de tolo. Pode me chamar de sentimental. Mas tome, tome, meu amigo, tome este cheque. Você fez por merecê-lo, até o último centavo. Use-o como quiser. E com a generosidade do empresário típico, que espera milhões em troca, colocou na mão de Crump um cheque de vinte e cinco dólares. Isso foi apenas o começo. Crump ficou famoso, tornou-se o ídolo das casas noturnas, o cômico mais bem pago da cidade. Como já era milionário, graças às negociatas dos antepassados, não precisava da renda adicional, e repassou-a inteiramente para seu empresário... para mim, em outras palavras. Em menos de um ano, eu já havia ganhado uma fortuna. O que põe por terra sua teoria ridícula de que eu e Azazel só trazemos má sorte. Olhei ironicamente para George. — Como no momento você não tem um tostão furado, George, suponho que agora vai me dizer que tudo não passou de um sonho. 116

— Absolutamente! — protestou George. — A história é verdadeira, palavra por palavra, como todas as histórias que conto. E o final que acabei de relatar é precisamente o que teria acontecido se Alistair Tobago Crump, VI, não fosse um idiota. — Um idiota? — Isso mesmo. Avalie por você mesmo. Orgulhoso do cheque de vinte e cinco dólares que havia recebido, mandou emoldurá-lo, levou-o ao Clube Paraíso e mostrou-o a todos. Que escolha tinham os sócios? Ele havia ganhado dinheiro. Tinha sido pago por serviços prestados honestamente. Foram obrigados a expulsá-lo. E Crump, privado do seu clube, achou por bem morrer de tristeza. Com seu ataque cardíaco lá se foram meus milhões de dólares. Claro que eu e Azazel não tivemos culpa nenhuma. — Mas se ele mandou emoldurar o cheque, não chegou a descontá-lo e não ganhou dinheiro algum com seu trabalho! George levantou a mão direita em um gesto dogmático, enquanto empurrava a conta do jantar na minha direção com a mão esquerda. — É o princípio da coisa que conta. Já lhe disse que os sócios do Clube Paraíso são muito religiosos. Quando Adão foi expulso do Paraíso, Deus lhe disse que dali em diante teria que trabalhar para viver. Acho que as palavras exatas foram: “Comerás o pão com o suor do teu rosto.” Segue-se que, da mesma forma, se você trabalha para ganhar a vida, tem que ser expulso do Paraíso. Lógica é lógica.

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Ao completar trinta anos de idade, Mike Jaynes teve uma Visão. Passara um aniversário decepcionante. A mulher fora convocada para cuidar da casa de uma irmã doente. A secretária que organizava as festinhas no escritório tinha sido transferida para a publicidade na semana anterior, de modo que ninguém no trabalho o cumprimentara. O cartão de parabéns da mãe não estava na caixa do correio. A gota atacou o dedão do pé esquerdo. O refrigerador tossiu fumaça e morreu uma hora depois de chegar em casa. Mike jogou fora a maior parte da comida (e os recipientes de margarina que a guardavam). Foi manquejando até a lixeira, levantou o plástico e alguma coisa cinzenta e nojenta se espalhou. Saiu coxeando da cozinha, borrifou a camisa com Spray-NWash e enfiou-a num canto. Tirou do refrigerador, que esquentava, seis latas de cerveja e quatro pêssegos frescos. Ligou a tevê. As redes a cabo estavam fora do ar. Bolas. Tinha duas opções. A KAYS estava repassando um episódio de “Perdidos no Espaço” — aquele em que o Dr. Smith demonstra para Will uma máquina vendedora interestelar, a despeito das objeções do robô. Deu uma mordida no pêssego. A KACC oferecia uma mulher baixota de meia-idade explicando O Ser e o Nada, de Sartre. Diz ela: “Esse est percipi. Ser é ser visto. O que significa ser visto?” (Mike abriu uma cerveja, jogou um caroço de pêssego na lata de lixo, errou.) “Sartre oferece-nos um exemplo maravilhoso do voyeur” (Mike mudou para a KAYS) “Aviso! Aviso! Forma de vida alienígena aproximando-se!” (Mike mudou para a outra estação)”... que é subitamente visto enquanto espia através do buraco da fechadura. De repente, ele se torna assemelhado a uma coisa, pois o Outro agora tem idéias a respeito de seu comportamento. Ele é visto como um voyeur. Ele perdeu sua liberdade.” (Mike mudou novamente de estação.) “... com unhas de aplicação imediata Lee.” Desligou o aparelho. Lembrou-se do remédio para a gota e saiu manquejando para tomar duas vezes a dosagem habitual, para compensar pela cerveja. Bebeu outra cerveja, comeu outro pêssego e começou a cantarolar “Parabéns pra Você”. Mais duas cervejas. Ajeitou-se no sofá e dormiu. Por volta de meia-noite, a televisão ligou sozinha. 119

— MIKE. — O quê? Quem está aí? — SOU EU, O SENHOR. Mike abriu os olhos. Um rosto de beleza e santidade insuperáveis encheu a tela de 19 polegadas da Sony Trinitron. Era uma face humana mas que superava a todas em perfeição. Afinal de contas, ela era o modelo. Mike perguntou a si mesmo o que é que ela estava anunciando. — NÃO ESTOU ANUNCIANDO COISA NENHUMA. EU SOU O QUE SOU. ESTOU CONVOCANDO-O PARA SER MEU PROFETA E FALAR À CIDADE DE DALLAS. Mike pensava que tinham acabado com a convocação obrigatória para o serviço militar. — Dallas? A do Texas? — DALLAS E SEU COMPLEXO METROPOLITANO. GRAPEVINE, IRVING, PLANO, DUNCANVILLE. — Tudo bem, entendi. Por quê? — ELES ESTÃO LÁ NUMA GRANDE NECESSIDADE COMO TAMBÉM EM MUITAS DAS CIDADES DO HOMEM, MAS DALLAS FOI CONSIDERADA A MAIS DIGNA DE CRÉDITO POR MINHA EQUIPE DE PESQUISA. UMA MISSÃO INICIADA LÁ TEM A MAIOR CHANCE DE ESPALHAR-SE. — Por que eu? — VOCÊ TEM DUAS SEMANAS DE FÉRIAS PAGAS QUE PRECISA GOZAR ANTES DO FIM DO ANO FISCAL. SUA MULHER FICARÁ EM ORLANDO E ISTO O LIVRARÁ DE MUITO TÉDIO. Mike lembrou-se da dose dupla do remédio. Isso explicava a coisa. Relaxou. — Como é que eles devem se arrepender? — ISSO NÃO TEM IMPORTÂNCIA. ENVIEI MESTRES MUITAS E MUITAS VEZES. ELES ABRIRAM MUITOS CAMINHOS PARA MIM. SIMPLESMENTE DIGA A ELES QUE SE ARREPENDAM. — Oh, ah, você poderia me deixar um sinal de que esteve realmente aqui? A face tornou-se sombria. — CLARO. 120

A tevê desligou-se sozinha. Mike foi dormir. Dormiu até tarde. O dia seguinte era sábado. Dirigiu-se para a sala a fim de tomar o café da manhã. Parou. A tevê transformara-se em geléia de limão com forma de tevê. Tremia como geléia. Mike ficou observando-a durante muito tempo. Foi até o telefone. Reservou passagem em um vôo para Orlando. O vôo partiu de Phoenix às 3:45. Mike comprou um milhão de dólares em seguro contra acidentes na máquina de vender. Estava usando óculos escuros. Andou furtivamente por ali. Metade da força de segurança do aeroporto estava vigiando-o. Achou que estaria seguro se as câmaras de vídeo não o focalizassem. Entrou em um bar. A salada do dia era de banana com geléia de limão. Cada um dos globos verdes parecia olhá-lo fixamente. Saiu correndo, quase derrubando um punk de cabelos cor de limão. Esperou no portão de embarque, suando profusamente, a despeito do ar-condicionado. Se pudesse chegar a Orlando, à esposa, a fins de semana de arrumação de casa, estaria seguro. Acabaria com aquela loucura. Começou a relaxar quando o avião deixou a pista. Gostava de voar sobre as montanhas Rochosas. Em algum lugar por cima do Novo México, um motor pifou. A voz melosa do piloto disse a todo mundo que não se preocupasse. Tudo estava sob controle. O avião faria uma escala não programada no aeroporto de Dallas-Fort Worth e os passageiros desembarcariam durante os serviços de manutenção. No terminal, dirigiu-se para um telefone público. Alguém lhe colocou uma chave na mão. Uma chave de guarda-malas. Dirigiu-se para os armários. No nº 1.703 achou uma valise. Dentro dela, um hábito preto de frade, chaves de carro, registro, seguro e um recibo de estacionamento. Tudo em seu nome. Pensou que a ilusão de livre-arbítrio estava ficando um pouco gasta. Dirigiu-se para o estacionamento de alta rotatividade e encontrou o carro, um conversível vermelho de trinta anos atrás, mas novo em folha. Teve problemas com a transmissão 121

mecânica e foi aos solavancos até a saída do estacionamento, onde pagou 75 centavos. Dispensou o recibo e tomou a direção da estrada principal. Rodou por Dallas, Irving, Hurst e Duncanville. Parou em um Holiday Inn. Registrou-se, foi para o quarto, tomou um banho de chuveiro, vestiu o hábito de frade e tomou novamente o carro. Em um sinal luminoso não longe de Dealy Plaza, viu um grupo de ecologistas discutindo. Gritou: — Arrependam-se! As pessoas ergueram a vista, espantadas. O sinal abriu. Continuou a guiar. Passou por um bando de advogados que, nesse momento, deixava um alto prédio envidraçado. — Arrependam-se! Um jovem e elegante casal negro ia entrando em um restaurante chinês. — Arrependam-se! Um grupo de crianças montadas em bicicletas de dez marchas em University Park. — Arrependam-se! Um homem de terno xadrez em frente ao Eco-Taco. Gritou: — Arrependa-se! Dirigiu-se para o Texas State Fairgrounds, o cenário de Além da Barreira do Tempo, de Edward G. Ulmer, um dos seus filmes favoritos. Passou quatro vezes pela porta. “Arrependamse!” “Arrependam-se!” “Arrependam-se!” “Arrependam-se!” Estava ficando bom na coisa — caprichando nos erres e projetando a voz. O sol estava se pondo. Voltou ao Holiday Inn. Trocou o hábito por um traje comum e foi comer no Koko’s. Voltou ao quarto, ligou a tevê, tirou gelo da máquina e resolveu beber suco de laranja, já que estava no cumprimento de uma missão de Deus. Ligou no noticiário das dez da noite. Para surpresa sua, não foi considerado louco. O locutor assumiu um ar solene e perguntou: — Quem é esse homem? Qual é a sua mensagem? O que podemos aprender com ele? 122

A tevê mostrou um desenho do Monge Misterioso. Era alto, barbado, olhos azuis, autoritário. Mike era baixo, gordinho, estava ficando careca e tinha olhos castanhos. A coisa podia ser mais fácil do que pensava. Deixou ordem no serviço de quarto para ser acordado às sete da manhã. No dia seguinte, atacou as platéias das igrejas. Batistas, católicos, quacres, metodistas, luteranos, ortodoxos, reformados, primitivos, sulistas, cientistas cristãos, todos os sabores que havia na lista telefônica. A segunda-feira foi o dia dos prédios públicos: o tribunal do condado de Tarrant, o Centro Cívico de Dallas, a escola de Grapevine, o quartel dos bombeiros em West Lake, e as várias repartições federais e estaduais — FBI, DOE, DHR, EPA. Parava o conversível e berrava até que as janelas se abriam. Algumas pessoas pareciam espantadas, outras aborrecidas, algumas demonstravam medo, e umas poucas ficaram zangadas. Na terça-feira, escolheu os consultórios de ortodentistas. Usara aparelhos para corrigir os dentes e odiava-os. Talvez os ortodentistas, seus auxiliares e seus pacientes não precisassem se arrepender mais do que quaisquer outras pessoas — mas certamente não precisavam arrepender-se menos. Na quarta-feira, o Monge Misterioso ganhou a primeira página do Morning News, de Dallas. Dizia a reportagem que a polícia estava à sua procura. As vendas de bebidas e cigarros haviam alcançado baixas recordes. E previa que o comparecimento às igrejas na quarta-feira atingiria novas alturas. Mike atacou nas alamedas de compras. Pela primeira vez, seu “Arrependamse!’’ foi respondido por “Améns”. No noticiário das seis, entrou na rede nacional. Na quinta-feira, chegou a vez dos dois aeroportos, das estações de ônibus, das delegacias de polícia e das escolas secundárias. Na sexta-feira, cobriu quatro enterros, três casamentos, uma festa de aniversário ao ar livre e um piquenique de companhia. Voltou ao Holiday Inn para o almoço. Enquanto trocava de roupa, achou que devia mudar os hábitos alimentares por causa de sua missão. Já esquecera a tentativa de fugir para Orlando. Na verdade, esquecera a maior parte de sua antiga vida. O pas123

sado raramente deixava lugar para o presente, quanto mais para o futuro. Um dos benefícios de trabalhar para o Senhor era a capacidade de viver no presente. Dirigiu-se para o Ralph’s, um bar de comidas naturais. O pátio de estacionamento estava tão congestionado que teve que deixar o carro atrás de um prédio de tijolos amarelos. Comeu um sanduíche vegetariano e bebeu um suco de pêssego. Depois de pagar, soltou um dos arrotos mais satisfatórios dos últimos anos. As pessoas em volta olharam-no. Sorrindo nervoso, deixou o lugar. Encontrou um grupo de punks depenando o carro, arrancando as partes cromadas com um pé-de-cabra. Atacou-os, gritando. — Arrependam-se! — Arrependa-se você, seu estúpido! Um pé-de-cabra atingiu-lhe o ombro direito. Eles o atacaram por todos os lados, chutando-lhe a virilha, puxando-lhe as orelhas, cuspindo nele. Abriu a boca para gritar e alguém lhe enfiou goela abaixo um trapo vermelho sujo de óleo. A última coisa que viu foi um pé-de-cabra se aproximando do seu nariz. Não sabia que podia sentir tanta dor e continuar vivo. Estava anoitecendo. Encontrava-se em uma parte diferente da cidade. Carteira e chaves haviam desaparecido. Levantou-se devagar, com grande dificuldade. Ouviu sons de uma obra nas vizinhanças. Alguns operários estavam trabalhando em um novo prédio de apartamentos. Saiu cambaleando pelo beco, na direção deles. Sua voz não podia ser ouvida por causa do barulho das serras. Desmaiou novamente. Acordou à sombra do edifício pronto. Um edifício enorme. Ficou contente por causa da sombra, pelo menos. O sol do Texas não era fácil. Doía demais mover-se. Ficaria deitado ali até morrer. Chegou o domingo. Rastejou até a lixeira e encontrou meia garrafa de Gatorade e restos de sanduíches. Comeu e bebeu devagar, à sombra do edifício, e rezou a Deus para que o salvasse. Na segunda, o Senhor enviou uma equipe de demolição para derrubar o prédio. Mike gemeu por causa da sombra perdi124

da, tossiu por causa da poeira, reclamou do barulho. Um caminhão de lixo chegou e Mike gritou para os lixeiros, mas não foi ouvido. Esvaziaram a caçamba e foram embora. Ao anoitecer, gritou para o Senhor, dizendo: — Senhor, deixa-me morrer! — ESTOU COM UMA TREMENDA SENSAÇÃO DE QUE JÁ VI ESTE FILME ANTES. — Senhor, por que tirou a sombra do prédio? Senhor, por que tirou o alimento da caçamba de lixo? — POR QUE VOCÊ LAMENTA A DERRUBADA DO PRÉDIO? VOCÊ NEM INVESTIU NA CONSTRUÇÃO NEM TRABALHOU NELE. — Senhor, por que me abandonaste? — NÃO ABANDONEI. OLHE. A mente de Mike encheu-se com visões da grande cobertura dada pelos meios de comunicação de massa ao Movimento “Arrependa-se!”. — Mas a minha carne foi massacrada. — NESTE CASO, EU LHE DAREI NOVA CARNE. ESCOLHA AQUELA DE QUE QUER SER FEITO. Mike olhou em volta. Encontrou um caco de espelho, caído do teto do prédio derrubado. — Disto. — POIS ASSIM SEJA. Mike recebeu um corpo de espelho que não sentia fome, nem sede, nem dor. Voltou para o hotel e vestiu o hábito de frade. Dirigiu-se à estação de tevê e combinou uma entrevista coletiva. Todos os que olhavam para Mike viam seu próprio rosto. Por causa desse sinal, logo se providenciou a entrevista. O Monge Espelho falaria na Dealy Plaza, perto da Chama Eterna. No dia seguinte, o Monge Espelho aproximou-se da bateria de microfones e começou: — Meus irmãos e minhas irmãs... Foi atingido pela bala de um terrorista. Mike despedaçouse em milhares de fragmentos. Dois dias depois, um meteorito errante atingiu o centro de Dallas. Começavam os Sete Anos de Azar. 125

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Katherine conhecia o futuro. Lia-o nas cartas de tarô, nas linhas da palma da mão da pessoa, em folhas de chá, em horóscopos, na maneira como um homem se sentava numa cadeira, no jeito como uma mulher colocava o dinheiro no balcão quando pagava pela leitura da sorte. Mantinha um diário onde anotava seus sonhos e estes, com grande freqüência, se realizavam. Embora fossem exatas suas profecias, os consulentes ficavam em geral insatisfeitos. Os futuros que via nunca eram felizes. Em tons calmos e cadenciados, ela lhes falava de calamidades que se avizinhavam: casamentos desfeitos, empregos perdidos, férias frustradas, decepções no amor. As pessoas raramente voltavam para uma segunda consulta. Pouco depois do meio-dia, encontrava-se sentada em um banco alto, ao balcão da loja de artigos esotéricos onde trabalhava. As prateleiras às suas costas estavam cheias da parafernália da magia: vidros de terra de cemitério, garrafinhas de água benta, vasos com raiz de mandrágora, sementes de figueira-do-inferno, pó de ossos e incenso. O dono saíra para almoçar, e ela fazia também sua refeição, um potinho de iogurte de baixa caloria. A fieira de campainhas amarrada à maçaneta da porta tilintou nesse momento, e um homem entrou na loja. Lançandolhe um rápido olhar, ela voltou ao iogurte. De modo geral, os clientes não gostavam que se olhasse muito para eles. Este andou entre as prateleiras de livros durante alguns segundos e, finalmente, aproximou-se do balcão. — Olá — disse ele. — Eu gostaria que lesse minha sorte. Katherine ergueu a vista e encontrou-lhe os olhos. Claro que se lembrava daquele rosto. Na noite passada, sonhara exatamente com aquilo: ele entrava na loja, ela lia-lhe a mão e, em seguida, ele a convidava para saírem e tomarem um café. — Não dá — respondeu ela vivamente. — Nossa quiromante foi embora. Fugiu com um mafuá. — Você não lê a mão? — Não. Sinto muito. Não posso ajudá-lo em nada. Ele não parecia mau sujeito. Mas ela já sabia demais a seu respeito. Pela maneira como conservava os ombros e inclinava a cabeça, viu que ele era um solitário e que estava um pouco nervoso por se encontrar ali na loja. Possuía olhos bonitos, escuros 128

e envolventes. Mas ela sabia das coisas e recusou-se a ceder. Não precisava ler-lhe as linhas da mão para saber qual era o problema. Podia ver as nuvens e prever a tempestade prestes a desencadear-se. Sair com ele seria um desastre. — Sinto muito — repetiu. — É realmente uma pena. Olhou para o iogurte, não querendo saber de mais nada. — Sinto muito, mesmo — repetiu, e manteve os olhos baixos até ouvir as campainhas e ter certeza de que ele fora embora. Após o almoço, tomou uma xícara de chá de jasmim. Ao terminá-la, descuidadamente olhou para o fundo da xícara, onde haviam-se acumulado as folhas soltas. O rosto dele estava ali, bastante claro para quem soubesse como vê-lo. Seu patrão mais parecia um sapo, um húngaro atarracado que queimava incenso para exercer poder sobre as mulheres. Lia também mãos e, sempre que podia, agarrava a mão de Katherine e examinava-lhe as linhas. As mãos dele eram suadas, e ele sempre segurava a sua por tempo maior do que devia. — Você está com medo — disse ele. — Suas linhas do coração e da vida se cruzam... isso é um sinal de incerteza. Sem querer, ela olhou para a própria mão. Pareceu-lhe que, a cada dia, havia mais linhas, cruzando-se e entrecruzandose na palma como pegadas de aves na areia. As linhas deixavamna nervosa: decisões demais, opções demais, destinos demais. — Acho que você tem medo de homens — disse ele. Katherine puxou bruscamente a mão e foi arrumar os vidros de ervas. Notou que ele a fitava, do outro lado da loja, mas o ignorou. Era inofensivo. Nunca o vira em sonhos. Duas horas da manhã. Acordando, procurou, atabalhoada, acender luz, pegar uma caneta e o diário onde registrava os sonhos. Era importante anotar bem rápido os detalhes, antes que ficassem indistintos e perdessem a clareza. Escreveu: “Uma lanchonete na Haight Street. O homem moreno sentado à minha frente toma-me a mão e pergunta alguma coisa. Não posso ouvi-lo porque são altas demais as batidas de meu coração. Estou apavorada, toada de pânico.” Hesitou, procurando identificar mais detalhes. Com eles, 129

poderia defender-se. “Estou usando meu bracelete preferido de prata e uma blusa camponesa. Há uma xícara de café à mesa, à minha frente. Ele me acaricia ternamente a mão. Gosto de seu toque em minha pele.” Riscou a última linha e saiu da cama pelo tempo suficiente para colocar a blusa camponesa no chão, ao lado da porta. No dia seguinte, iria doá-la ao Exército da Salvação. Quanto ao bracelete, iria enviá-lo à irmã, o Texas, como presente. Ainda assim, ficou acordada durante muito tempo, antes de conseguir dormir. Katherine examinou as linhas da mão da cliente. Aquela mulher possuía lindas mãos, as unhas bem manicuradas. Comparada com a sua, a palma da mão dela era maravilhosamente clara: linhas belamente definidas, vias expressas com marcos indicadores e tabuletas de ruas para mostrar o caminho. Na sua, as linhas lembravam pegadas deixadas por coelhos no prado: marcas leves nos pontos onde a grama fora pisada, cruzando-se e voltando a cruzar-se de forma absurda. Seguiu a linha do amor da cliente e lhe disse que ela logo se apaixonaria. A mulher sorriu e Katherine tentou dissuadi-la de aceitar aquilo. — Odeio me apaixonar — disse. — É como se fosse uma doença. Pega a gente e transforma nossa mente em geléia. O amor sempre faz com que eu fique burra. Para ser franca, se fosse você, tentaria me livrar disso. Notou que o patrão a observava do outro lado da loja, amarrando a cara. A mulher pestanejou, surpresa com a veemência de Katherine. — Sua linha do coração é forte — disse Katherine, voltando à leitura e abstendo-se de mais comentários. Após o expediente, desceu a Haight Street, dirigindo-se à agência dos correios, a fim de enviar o bracelete para a irmã. Odiava desfazer-se daquela peça, mas sabia que não devia brincar com a sorte. 130

Ao passar por uma lanchonete, viu-o. Ele se encontrava sozinho a uma mesa, tomando café e lendo o jornal. Notou detalhes que não queria conhecer. Pela maneira como segurava a xícara, teve certeza de que era do tipo protetor e um pouco possessivo. O ângulo em que mantinha o jornal revelava-lhe a timidez, mas ele disfarçava isso com uma exibição de socialidade. Só lentamente manifestava suas emoções. Não se sentia bem com o corpo que tinha. Passou rápida por ali, levando o pequeno embrulho como se estivesse com uma bomba nas mãos. Como conhecia o futuro, freqüentemente começava a dizer adeus antes de dizer olá. Nas horas vagas antes de adormecer, ensaiava discursos de despedida. Era muito competente em dizer adeus. Podia dizer aquilo como se realmente não importasse. — Foi um prazer. Tchau. A gente se vê. Naquela noite, telefonou pedindo comida chinesa. Chegou acompanhada com dois biscoitos da sorte. O primeiro dizia: “Quem não arrisca, não petisca.” O segundo dizia: “Olhe, antes de pisar.” Queimou os dois pedaços de papel no incensório ao lado da cama. A fumaça tinha um vago cheiro de jasmim. Sonho: o homem moreno vinha na sua direção, e ela queria fugir. Virou-se e correu, mas estava correndo em câmara lenta, como se correndo sobre cola. Acordou molhada de suor e anotou o sonho, mas furiosa com a falta de detalhes. Estava trabalhando no balcão quando o patrão agarroulhe a mão e abriu-a à força. — Você está evitando alguma coisa — disse ele. — Mas não vai poder evitá-la por muito mais tempo. A energia tem que se encaminhar para algum lugar. Obscuramente, notou que ele lhe acariciava a mão e sorria. — O que devo fazer? — perguntou, meio para si mesma. Ele deu um sorriso, satisfeito, pois pensara que ela nunca perguntaria. 131

— Não resista — disse ele. — Sei o que fazer. Apertou o punho de Katherine com mais força. Ela puxou a mão e encarou-o com olhos frios. Todas as vezes que ficava nervosa, andava pela praia, tentando ler as mensagens que as ondas deixavam na areia. Mas não conseguia decifrá-las, e estava satisfeita por isso. Pessoas eram fáceis demais. O futuro estava estampado em seus rostos, ali onde todos poderiam ver. Não podia evitar lê-los, quisesse ou não. As tarambolas corriam à frente, deixando pegadas na areia. As ondas sempre as varriam, deixando a praia lisa outra vez. Embora concentrando-se nas ondas, ergueu o olhar e o viu caminhando em sua direção. Nesse momento ele olhava para o mar, onde o pôr-do-sol coloria as nuvens. Ela virou-se e correu, mas a areia frouxa retardou-lhe os movimentos. Sonhou: sentada com ele no banco verde de um parque, segurava-lhe a mão. Ele fitou-a e disse “Amo-a”, e beijou-a. E ela soube, teve certeza absoluta, que ele ia abandoná-la. Naquela noite, não conseguiu voltar a dormir. Sentou-se e arrumou as cartas de tarô, pensando nele. Nas cartas encontrou sofrimento profundo, traição e dor. Não é bom tirar cartas para si própria, lembrou-se. A exatidão torna-se suspeita. Embaralhou e fez nova leitura. Acuamento, confusão, destruição. Mais uma vez: felicidade, contentamento, paz. Inúmeros futuros. Voltou a embaralhar várias vezes, dispôs as cartas na mesa, procurando nas estampas brilhantes, coloridas, um padrão no qual pudesse acreditar. Ao amanhecer, saiu relutante para um passeio pelo Golden Gate Park, onde o sol matutino começava a afugentar o nevoeiro. Encontrou-o num banco verde do parque, dando pipoca aos pombos, que o cercavam por todos os lados e corriam para pegar os grãos que ele jogava. Suas pegadas na areia desenha132

vam um intricado motivo de linhas cruzadas. Era impossível distinguir onde terminavam as pegadas de um pombo e começavam as de outro. Observou-o durante algum tempo. Ele encarou-a — rápido e de relance — e voltou aos pombos antes que ela pudesse encontrar-lhe os olhos. Continuou calado. — O que me incomoda é a inevitabilidade de tudo isso — disse ela. — Será que minha vida está toda determinada? Conhecer o futuro não me liberta? Aparentemente, não. Confuso, ele ergueu os olhos. — O quê? Ele não parecia perigoso. Um pombo mais corajoso subiu no tênis e estendeu o bico para as pipocas que ele tinha na mão. O rapaz apertou um pouco a vista por causa do sol. — Bela manhã — disse ela. Ele inclinou a cabeça. — A respeito daquela leitura da sorte — começou ela e, contra seu melhor julgamento, tomou-lhe a mão. — Não fale — disse-lhe antes que ele pudesse abrir a boca. — Simplesmente, não fale. Furtivamente, lançou um olhar à palma de sua própria mão. Achou que a linha do coração estava um pouco mais nítida e que, talvez, a linha da vida não a cruzasse, absolutamente. — Ainda acho que você vai me abandonar — disse, baixinho. Ergueu a vista e encontrou os olhos dele. Notou-lhe a confusão. Mais uma vez, estava fazendo as coisas na ordem errada. Não era hora de dizer adeus. Ainda não. — Muito bem — disse. — Eu me arrisco. Depois, a despeito de tudo, beijou-o.

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Eram 20:15, e eu me encontrava perto da caixa registradora, em uma loja da Sears, situada em um shopping center de segunda, quando, pela primeira vez, entrou o quarentão. Tinha que agüentar mais 45 minutos antes que a loja fechasse e pudesse voltar para casa. A música funcional estava tocando e um Ronald McDonald de papelão acenava alegremente para mim do departamento infantil. Eu estava pensando em animais que roem e amputam as próprias pernas. Houve época em que não entendia aquele tipo de mecanismo de sobrevivência. Nesse momento, podia. E estava justamente desejando possuir dentes mais compridos e afiados quando o quarentão entrou. Na última hora, mais ou menos, os vendedores haviam superado em número os clientes. Uma noite morta. Eu era a única vendedora no departamento de moda e lingerie feminina e estivera, nas últimas duas horas, arrumando vestidos nos cabides, fechando zíperes, separando camisas de malha por tamanho e cor, prendendo sutiãs em suportes e certificando-me de que todos os jeans estavam virados da mesma maneira nas prateleiras. Nesse momento, arrumava as sacolas e papéis de embrulho sob o balcão da caixa registradora. Tédio, não dedicação. Só tédio pode levar uma pessoa a ser tão meticulosa assim, especialmente por um salário de quatro dólares a hora. Uma parte de tédio e duas de desespero. Por isso mesmo, um cliente, qualquer tipo de cliente, era uma distração caída do céu. Mesmo um quarentão muito comum. Ele veio em linha reta ao meu balcão, abrindo caminho pelos suportes sem sequer um olhar para os vestidos, suéteres e jeans. Postou-se bem em minha frente e disse: — Preciso de um cachecol de seda. Acreditem, a última coisa de que aquele homem necessitava era de um cachecol de seda. Era alto, pelo menos um metro e oitenta de altura, e chegara àquele estágio na vida em que afivelava o cinto abaixo da barriga. Os cabelos começavam a rarear e a maneira como os penteava em nada contribuía para disfarçar o fato. Usava roupas de quarentão, mas não vou descrevê-las porque, se o fizer, vocês poderão pensar que havia alguma coisa na maneira de ele vestir-se que me fez notá-lo. Não havia. Era comum no sentido mais comum da palavra e, se aquela noite 136

tivesse sido movimentada na loja, eu sequer o teria visto. De tão vulgar, ele seria invisível. A única coisa notável nele era o fato de ser um quarentão, em uma loja da Sears, em uma noite em que a loja havia permanecido aberta por mais tempo do que nossos clientes permaneceram acordados. E essa de dizer que precisava de um cachecol de seda! Homens como ele nunca compram cachecóis de seda, por nenhuma razão. Mas ele pedira um cachecol de seda. E isso era uma espécie de milagre duplo, o cliente sabendo o que queria e eu tendo, na verdade, o artigo procurado. Em vista disso, prendi nos lábios meu sorriso de vendas e perguntei: — Tem preferência por alguma cor, senhor? — Qualquer uma — respondeu ele, uma ponta de impaciência na voz. — Basta ser de seda. O cabide dos cachecóis ficava à direita da registradora, arrumado com compulsiva perfeição por mim um pouco antes. Cachecóis compridos na prateleira de baixo, curtos na de cima, seda à esquerda, acrílico à direita, cores únicas juntas em um espectro de arco-íris numa fileira, estampados em uma confusão colorida num gancho, todas as bordas graciosamente pregueadas. Cachecóis são compras de impulso, segundas vendas, do tipo “que tal um lindo cachecol azul para combinar com a suéter, senhorita?”. Ninguém entra em uma loja da Sears às 20:15 e pede um cachecol de seda. Pessoas que precisam de cachecóis de seda a essa hora vão comprá-los em butiques, pequenas lojas que cheiram a perfume ou especiarias e que não têm detetives disfarçados andando pelos corredores. Esse quarentão, porém, não saberia de uma coisa dessas. Então me estirei por cima do balcão e peguei alguns deles, encontrei com os dedos os de seda e puxei-os suavemente do cabide. Seda como luz tecida de luar em minhas mãos, cachecóis diáfanos em cores indefiníveis. Espalhei-os como se fossem um arco-íris sobre o balcão. — Um destes, talvez? — e sorri de forma persuasiva. — Qualquer um, não importa, preciso apenas de um cachecol de seda. — Mal olhou para as peças. Foi aí que falei uma dessas coisas que às vezes digo, as 137

palavras saindo seguras de meus lábios, vindas só Deus sabe de onde, pretendendo pôr o cliente à vontade, mas sempre entrando em confusão: — Para embrulhar suas cartas de tarô, sem dúvida. Na mosca, acertei. Ele ergueu a vista e me olhou fixamente, como se me visse de repente como pessoa e não apenas como uma vendedora da Sears à noite. Nada falou, apenas me fitou. Senti-me como se tivesse um alvo tatuado no meio da testa. Ao denunciá-lo, eu me denunciara. Coisa assim. Pigarreei e resolvi recuar e tornar-me um pouco mais formal. — Dinheiro ou cartão? — perguntei. Puxei um cachecol azul do escorregadio monte no balcão, ele me entregou uma nota de dez dólares e enfiou a mão no bolso para pegar os centavos. Coloquei a compra numa sacola, grampeei o recibo e pronto. Ele foi embora, e passei o resto do horário certificando-me de que todos os cabides de casacos nas prateleiras guardavam exatamente uma distância de um dedo entre si. Eu aceitara aquele emprego em novembro, fora contratada para o grande movimento de vendas de Natal, enganada pela esperança de que, após o Ano-Novo, eu me tornaria empregada permanente e conseguiria um salário melhor. Mas já estávamos em fevereiro, eu trabalhava menos de trinta horas por semana e só recebia quatro dólares por hora. Toda vez em que pensava nisso, sentia roedores destruindo o fundo de meu coração. Há um desespero doentio quando se precisa de dinheiro tão desesperadamente que não se pode deixar um emprego que não paga o suficiente para que a gente viva, o emprego que dá à pessoa o suficiente, em horas irregulares, para tornar impossível procurar coisa melhor. Pior que tudo era o pensamento que fora eu mesma quem projetara e construíra aquela gaiola. E saltara para dentro dela em nome do bom senso e da praticabilidade. Dois anos antes, eu deixara um emprego muito parecido com esse para viver de minha poupança, juntada com tanto esforço, e do sonho de me tornar escritora free-lancer. Seria escritora em tempo integral e adoraria isso. E quase consegui. Durante dois anos, fui levando, nunca muito acima do nível da pobreza, mas escrevendo e tirando fotos, fazendo um pouco de 138

jornalismo autônomo para garantir a ficção, escrevendo um conto aqui, uma matéria ali, e vendendo-as quase com freqüência suficiente para manter corpo e alma unidos. Quase. Como pode alguém viver de quase! Comprando roupas quase novas em brechós, pão quase fresco nos balcões de pontas das padarias, sapatos quase da moda nas liquidações de fim de estação? Mantendo o apartamento quase aquecido, o refrigerador gotejante, barulhento, conservando a comida quase fria, dizendo aos amigos que estava quase chegando lá. Quase escrevendo o conto realmente bom que me firmaria como escritora promissora. Ainda adorava isso, mas comecei a notar pequenas coisas. Que meus amigos sempre traziam comida quando vinham me visitar, que meus pais me mandavam dinheiro no aniversário, que minha irmã me dava “roupas de que enjoei” que eram exatamente meu manequim e, uma vez, trazia ainda a etiqueta. Tudo bem quando a pessoa tem apenas vinte e poucos anos e está justamente começando. Mas não tão bem quando tem 35 anos e está seguindo a carreira que escolheu. Certo dia, acordei e tive certeza de que o sonho não ia realizar-se. Minha Musa era uma prostituta infiel, que bebia todo meu vinho e me dava, como pagamento, meia página por dia. Exigi mais. Ela recusou. Discutimos, pedi, implorei, mostrei-lhe a pilha de contas que se amontoavam, mas ela se recusou a produzir. Apresentei-lhe um ultimato, e ela me ignorou. Deixou-me ali, muda, olhando para as laudas brancas, virgens, e uma pilha de contas me olhando do canto da escrivaninha. Algo, portanto, havia me acontecido. Mas jamais descobri. Alguns amigos me disseram que perdi a fé. Outros que eu me tornara mais prática. Fui à vida, à procura de emprego. Em novembro, reingressei no mundo maravilhoso da venda a varejo, a fim de cumprir uma rotina regular das 9:00 às 17:00 e levar uma vida comum, os cheques de salário na hora certa e contas pagas logo que chegavam. Voltara as vendas com entusiasmo e energia, lutando para fazer aquela segunda venda, convencendo mulheres a comprar roupas que pareciam horríveis nelas, sempre perguntando se não queriam solicitar nosso cartão opcional. Eu fora um ativo precioso para o departamento. 139

Toda a gerência me elogiava. Mas nada de aumento, e emprego em horário regular continuava a ser miragem no horizonte. Fui me arrastando, conseguindo quase dinheiro suficiente para ir levando. Aquilo tudo me parecia muito conhecido. Exceto que não gostava do que fazia. Estava entalada com aquilo, em nada melhor do que fora antes. E também não escrevia mais. Minha Musa sempre fora uma puta caprichosa, e no momento em que vesti minha meia-calça e preguei o crachá “EU SOU SEARS”, ela caiu fora com armas, bagagens, e inspiração. Se eu não acreditava na capacidade dela de me alimentar, então que o diabo me levasse, tal foi o sentimento que ela manifestou. Ou tudo ou nada, assim era ela, igual a minha geladeira, ou congelando ou enchendo de água a gaveta das verduras. Tudo ou nada, nada de soluções de compromisso. De modo que foi nada, e meus dias de folga eram passados não martelando as teclas da máquina de escrever, mas indo à lavanderia automática, onde se pode escolher entre ver nossa roupa de baixo cabriolar alegremente na janela do secador ou observar mulheres esqueléticas, enfiadas em roupas que não combinam, espinafrar os filhinhos. (“Basta, Bobby! Eu disse basta, e estou falando sério, seu merdinha! Agora, fique junto dessa cesta, segure-a com as duas mãos, e não se mexa até eu mandar. Dê um passo para longe da cesta e vou lhe dar uns tapas. Ouviu o que eu disse, Bobby? VOCÊ (tome pancada) SEGURE (tome pancada) ESSA CESTA (tome pancada)! Agora, cale a boca ou vai ter mesmo motivo para chorar.”) Eu geralmente observava minha roupa de baixo dando cambalhotas durante toda a fase de secagem. De modo que trabalhava na Sears, das 9:00 às 13:00 ou das 17:00 às 21:00, ganhando um dia de oito horas, mas raramente mais de 24 horas por semana, observando que o dinheiro ganho nunca era igual às despesas, pagando contas com alguns dólares e muitas promessas, adiando e, ocasionalmente, me perguntando o que fazer quando tudo aquilo se emparelhasse comigo. Passaram-se os dias. Não é uma maneira elegante de dizer isso, mas é exata. E ali estava eu, novamente, num dia de semana, depois das 20:00, espanando as peças expostas e esperando 140

pela hora de fechar, perguntando a mim mesma por que a loja ficava aberta quando o resto do shopping center fechava às 19:00. E o quarentão entrou novamente. Lembrei-me logo dele. Não parecia em nada diferente da primeira vez, exceto que, desta vez, achei-o um pouco mais real porque o vira antes. Fiquei ali no balcão, espanador de penas na mão, observando-o aproximar-se e especulando sobre o que ia querer dessa vez. Ele trazia uma pequena caixa plástica de pot-pourri de jasmim, do departamento de cama e banho. Colocou-a sobre o balcão e perguntou: — Posso pagar isto aqui? Eu era absolutamente correta como vendedora: — Claro, senhor. Na Sears, podemos pagar compras feitas em qualquer departamento em qualquer caixa. Fazemos o que é possível para facilitar a vida de nossos clientes. Dinheiro ou cartão? — Dinheiro — retrucou ele. Prontamente, acrescentei: — O senhor gostaria de preencher um pedido para receber nosso cartão opcional ou o cartão de cliente preferencial? Eles tornam as compras na Sears ainda mais convenientes e, além de a compra poder ser debitada, pode-se sacar dinheiro com eles. Enquanto eu falava, ele colocou no tampo plástico do balcão três dólares de prata, cunhagem 1923, com a efígie A Marcha da Liberdade. Depois, olhou-me do alto, como se eu fosse um rato e ele acabasse de colocar em volta de mim um labirinto préfabricado. — Tem certeza de que quer usar essas moedas, senhor? Ele inclinou a cabeça, sem falar. Em vista disso, registrei a venda do pot-pourri de jasmim e coloquei os três dólares de prata na gaveta, desejando poder guardá-los para mim. Mas não podíamos ter nem nossas bolsas nem qualquer dinheiro nosso no salão, de modo que não havia como eu trocá-los e levá-los para casa. Sabia que alguém ia pegá-los antes que chegassem ao banco, mas não ia ser eu, e não era exatamente assim que toda minha vida tinha sido ultimamente? O quarentão pegou o pot-pourri de jasmim, em sua sacola plástica Sears, com o recibo grampeado no lado de fora, e saiu. No momento em que ele se afastava, eu disse: 141

— Tenha uma boa-noite, senhor, e obrigada por ter vindo à nossa loja Sears. Ao que ele respondeu, solenemente: — Mulher de Prata, este emprego vai acabar com você. Exatamente assim, com maiúsculas, da maneira que falou. E foi embora. Bem, já fui chamada de muitas coisas pelos homens, mas nada parecido com Mulher de Prata. Patinho feio. Isso mesmo. Tons neutros, mimetismo protetor, nada de muita maquiagem, roupas em cores discretas, jóias comuns, se é que alguma. Camuflagem. Vestir-se igual a todo mundo para que ninguém a note, essa é a maneira mais segura. Na escola secundária, gostava de imaginar que era invisível. Se alguém olhava para mim, enfiava o dedo no nariz e examinava a meleca até que ele desviasse o olhar. Dificilmente, voltava a me olhar. Claro, eu superara esses truques há muito tempo, mas Mulher de Prata! Que coisa mais ridícula para alguém me chamar, a menos que ele estivesse fazendo troça de mim, o que eu não acreditava. Mas, de alguma maneira, aquilo me pareceu pior porque ele falara sério, e doía mais do que um insulto porque, aparentemente, ele vira em mim alguma coisa que eu não podia imaginar em mim mesma. E doía ainda mais porque ele era um quarentão comum, igual a muitos outros, o tipo que se encontra por aí a toda hora, barrigudo e com cabelo rareando, e não era justo que ele pudesse imaginar a meu respeito mais do que eu mesma podia imaginar. Sou a escritora, a pessoa com a imaginação ousada, os sonhos vividos, as visões nítidas, certo? Certo. Fui até o fim do turno, matando tempo até a hora de fechar e só depois que tranquei a registradora, grampeei as notas de venda e me preparei para ir ao vestuário é que notei a pequena caixa no canto do balcão. Era uma pequena caixa de jóias, de papelão, papel de tonalidade prateada por fora, nenhuma sacola, nem rótulo, nada, apenas as listras de prata e o nome Nordstrom em letras elegantes no lado de fora. Esquecida ali por algum cliente. Enfiei-a no bolso da saia, a fim de entregá-la na seção de achados e perdidos ao sair. Voltei para casa, subi as escadas para o apartamento, pisando, no caminho, no cocô do gato do vizinho, entrei, limpei os 142

sapatos, lavei as mãos umas cinco ou seis vezes, e botei a chaleira no fogo para preparar um pouco de chá. Arriei-me numa cadeira e recebi uma pontada da tal caixa. O sentimento “oh, merda, vai haver problemas” envolveu-me em uma grande e escura onda. Sabia o que ia acontecer. Alguma cliente viria à procura da caixa, ninguém saberia de coisa alguma a respeito. A segurança, porém, teria me visto em sua câmara de circuito fechado, instalada em suas pequenas bolhas plásticas no teto. Aquilo ia ser o fim de meu empreguinho ordinário e mal remunerado. O aluguel vencia em duas semanas e, desta vez, o senhorio queria tudo de vez. De modo que fiquei sentada ali, a pequena caixa prateada na mão, amaldiçoando o azar. Abri-a. Quer dizer, que diabo, quando não há outro lugar para ir, exceto para baixo, bem que podemos satisfazer um pouco a curiosidade, e abri-a. Dentro havia dois grandes brincos, cada um deles do comprimento de meu polegar. Mulheres de prata. Usavam vestidos compridos e seus cabelos e trajes eram jogados para trás por um vento invisível, que colava o tecido metálico aos seios firmes e transformavam-lhes os cabelos em espumantes cachos prateados. Os brincos não eram perfeitamente idênticos, e a intenção não fora essa. Sabia que podia ir a Nordstrom e procurar durante cem anos e que nunca encontraria nada igual a eles. Nos rostos prateados havia total serenidade e um convite. E pesavam em minha mão. Não tinha dúvida de que eram de prata autêntica e que alguém os modelara, um de cada vez, para serem os únicos de seu tipo. E sabia, como soubera a respeito das cartas de tarô, que o quarentão os confeccionara, trouxera, e deixara ali, e que eram para mim. Só que não tenho orelhas furadas. De modo que os recoloquei sobre o algodão da pequena caixa e a botei em cima da mesa, mas não a fechei. Olhava-os de vez em quando, enquanto preparava para o jantar um guisado de galinha, nutritivo e inteiramente adequado a uma família ocidental, comia-o na pequena panela de alumínio, seguido de aipo com manteiga de amendoim e passas. Naquela noite, fiz muita coisa útil: degelei o refrigerador, lavei a meia-calça, borrifei os sapatos com desinfetante e derra143

mei água sanitária no lado de fora da entrada do apartamento, na esperança de afugentar dali o gato do vizinho. Organizei também contas em ordem de vencimento, e agüei o toco de planta caseira que não via água desde a semana anterior. E depois, porque não estava escrevendo e a noite pode ficar muito comprida quando não se está escrevendo, fiz uma coisa que vira uma vez minha irmã e duas amigas dela fazerem, quando eu tinha treze anos e elas dezessete, e estavam muito bêbadas. Peguei quatro cubos de gelo, uma agulha de costura, entrei no banheiro e desembrulhei um sabonete. A idéia era pôr os lobos da orelha entre os cubos de gelo e mantê-los ali até ficarem dormentes. Depois, colocava o sabonete atrás dos lobos da orelha, segurando-o com firmeza, e empurrava a agulha. Apesar da dormência, sente-se uma sensação esquisita, porque se ouve o barulho que a agulha produz ao furar a carne. Na primeira orelha. Na segunda, doeu muito, e uma grande gota de sangue apareceu, escorreu pelo pescoço, e gritei. — Oh, MERDA! — Bati com o punho na bancada do banheiro e rompi um vaso da mão, que doeu ainda mais do que as orelhas. Mas estava feito e, quando o sangue parou, voltei à sala, peguei os brincos, coloquei-me diante do espelho e passei o arame pela carne viva. Os arames eram finos, machucavam os orifícios que eu havia aberto e não podia doer mais se eu tivesse pendurado pelos lobos um par de bigornas. Mas pareciam lindos. Fiquei olhando o que faziam com meu pescoço, o ângulo do queixo e como faziam com que o cabelo despenteado parecesse hábil e deliberadamente arranjado. Sorri, serena e convidativa, e quase pude ver a Mulher de Prata em meu próprio espelho. Mas como eu disse, doíam muito e pequeninas gotas de sangue estavam descendo pelo arame. Não conseguia imaginar dormir com aquelas coisas penduradas nas orelhas a noite toda. De modo que os tirei, coloquei-os na caixa e os arames tingiram de rosa o algodão. Lavei os lobos das orelhas com água oxigenada, arrepiando-me com a queimadura. Depois fui dormir, pensando se as orelhas não iam infeccionar. Não infeccionaram, sararam, os orifícios não fecharam, apesar de eu não ter usado nada para conservá-los abertos. Che144

gou uma sexta-feira em que havia um hálito de primavera no ar, e vesti uma blusa azul-clara, que não usava há tanto tempo que me senti como se ela fosse nova outra vez. Pouco antes de deixar o apartamento, voltei, peguei a caixa, fui até o banheiro e pendurei as mulheres de prata nas orelhas. E fui trabalhar. Felicia, minha chefe de departamento, elogiou-me, mas disse que os brincos não pareciam, bem, inteiramente profissionais, para usar no trabalho. Concordei em que tinha provavelmente toda razão e, quando inclinei a cabeça, senti o peso agradável dos brincos balançando nas orelhas. Não os tirei. Peguei o pacote de dinheiro trocado e fui abrir a registradora. Naquele dia, trabalhei até as 18:00; sorri para as pessoas, elas sorriram para mim, não dei realmente muita importância para quanto estava vendendo, mas vendi provavelmente duas vezes mais do que nos melhores dias, talvez porque não me importasse com isso. Ao fim do turno, peguei o casaco e a bolsa, recebi o cheque de salário e resolvi andar pelo shopping center, em vez de sair pela porta dos fundos. As lojas dali estavam patrocinando uma semana de autodesenvolvimento pessoal juvenil e infantil, e fiquei feliz ao ver crianças com seus animais, gatos entediados em gaiolas cheias de gatinhos de brinquedos, pequenos cartazes que diziam coisas como “Oi, meu nome é Peter Pan e eu sou um Coelho Saltador”, uma incubadeira cheia de pintinhos curiosos e, bem no meio da galeria, sobre um lençol de plástico preto coberto de palha, uma menina gordinha, de trancas escuras, que estava demonstrando como pentear um unicórnio. Olhei outra vez, e o unicórnio era um bode branco nada feliz em ser penteado. Sacudi a cabeça e senti as mulheres de prata balançando. No momento em que me virava para ir embora, o quarentão saía do Empório de Ervas e Chá, trazendo o braço cheio de pequenos sacos pardos. Ele começou a andar ao meu lado, cheirando a canela, laranja e trevo e disse: — Você precisa ver o galo. Ele joga o jogo-da-velha. De fato, alguma pessoa empreendedora armara um tabuleiro com luzes vermelhas e azuis, com as marcações convencionais do jogo e, em troca de um donativo de um quarto de dólar, aquele galo jogava uma partida de jogo-da-velha com o interessado. Era o galo mais velho e mais gordo que eu já havia visto 145

até aquele dia, a crista devassamente caída sobre um olho. Ele me venceu três vezes seguidas. Isso equivalia à metade do meu dinheiro para o café na semana, mas, que diabo, quantas vezes a pessoa tem oportunidade de jogar o jogo-da-velha com um galo? O quarentão jogou com ele e ganhou, o que fez o bicho vir até as grades da gaiola, batendo as asas e querendo bicar. Quando dei por mim, estava puxando o quarentão para longe do alcance daquele bico, enquanto o jovem dono do galo tentava acalmá-lo. Nós simplesmente rimos. Ele me segurou pelo cotovelo e me levou para um pequeno restaurante mexicano, que dá para a galeria, e arranjamos uma mesa. A primeira coisa que falei foi: — Mas isto é ridículo. Sequer o conheço e aqui estou, defendendo-o de gatos furiosos e jantando com você. — Permita que me apresente. Eu sou Merlin — retrucou ele. Quase fui embora ali mesmo e naquele lugar. A coisa é assim. Sou uma cética. Tenho uma amiga, uma mulher muito boa. Mas ela está sempre dizendo coisas como “Posso dizer pela sua aura que você está preocupada hoje” ou afirmando que atrofio o crescimento espiritual porque ignoro meus poderes psíquicos latentes. Certa vez, ela me telefonou às 23:00, interurbano, a cobrar, para me dizer que acabara de ter uma experiência psíquica. Estava tomando conta, para uma amiga, de um velho casarão na ilha Whidby. Vendo a televisão, ouvira claramente o som de passos subindo a escada. Do lugar onde estava sentada, podia (contou) ver com grande clareza a escada, e não havia ninguém ali. Diante disso, ficou estupefata e ouviu passos no corredor de cima, encaminhando-se para o banheiro, cuja porta foi fechada. Depois, disse, ouviu o esguicho e o chape inconfundível de um homem urinando. Alguém deu descarga e, depois, a casa caiu no silêncio. Quando reuniu coragem para ir conferir no banheiro do primeiro andar, não viu ninguém lá. Mas... O TAMPO TINHA SIDO LEVANTADO! De modo que me telefonara imediatamente para arrasar o meu ceticismo. Toda vez em que aparece, joga sempre suas letras rúnicas para mim e, por alguma razão, elas sempre falam de morte, catástrofe e azar horrendo a minha espera bem ali na esquina. O que pode 146

efetivamente provar que ela é uma autêntica psíquica, porque essa leitura de sorte nunca errou muito no meu caso. Mas isso não me impedia de troçar dela e de seu fantasmagórico mijão. Ela é uma amiga, perdoa o meu ceticismo, e eu perdôo a mistura psiquismo-magia-espiritualismo. Mas eu não conhecia absolutamente o quarentão — bem, pelo menos, não muito, e não ia agüentar aquilo dele. Isso era ir longe demais. Ali estava ele, quarentão, ficando careca e formando barriga, esperando que eu o escutasse falar também de coisas sobrenaturais. Quero dizer, tenho 35 anos, mas todos dizem que pareço mais jovem e, embora apenas um único homem me tenha chamado de Mulher de Prata, o resto não me chamou exatamente de Carne pra Cachorro. Talvez eu não seja atraente de acordo com o sentido padrão, popular, mas também, quando me vêem, as pessoas não se arrepiam nem desviam o olhar. Na maior parte das vezes, costumam simplesmente não me ver. Mas, de qualquer modo, eu de fato sabia que não estava tão desesperada para ter de agüentar como companhia um quarentão com idéias malucas. Exceto que, justamente na ocasião, a garçonete passou a caminho da mesa vizinha, levando duas bandejas, cheias de louça branca transbordando até as beiras de enchiladas, tacos e guacamole verde-claro, com azeitonas pretas dançando perigosamente perto da borda e, de repente, tive certeza de que era muito melhor ouvir qualquer pessoa falar sobre qualquer coisa do que voltar para casa e enfrentar o Banquete de Frango Frito, a pele parda soltando, coberta com grossa geada produzida por meu refrigerador defeituoso. Então o escutei. Pedimos os pratos, comemos, ele falou e eu escutei. Contou-me coisas. Não era o Merlin, mas, de fato, sabia que descendia dele. Apesar de a magia estar desgastada, ele ia levando. Lembro-me muito bem de uma das observações que ele fez: — A única magia que sobrou neste mundo é aquela que nós mesmos fazemos, deliberadamente. Você não vai, por acaso, topar com encantamentos. Deve ficar receptiva a eles, procurálos e, quando pensar que pode tê-los vislumbrado, precisa querer que entrem em sua vida, utilizando de toda maquinação possível. — Interrompeu-se. Inclinou-se para a frente e disse em um sussurro: — Mas a magia nunca é exatamente o que esperamos 147

que seja. Quase, mas nunca exatamente. — Depois recostou-se na cadeira, e eu soube o que ele ia dizer em seguida. Continuou falando sobre a magia que sentia haver em mim e como podia ajudar-me a me abrir para ela. Podia sentir que eu estava reprimindo um talento. Foi suave a maneira como fez isso. Acho que se fosse dez ou quinze anos mais moça, poderia ter relaxado e ido em frente com aquilo, talvez mesmo um pouco lisonjeada. Talvez, se ele fosse cinco ou dez anos mais jovem, eu poderia ter resolvido ser crédula, apenas pela companhia. Mas o jantar estava chegando ao fim, eu tinha um palpite do que ia acontecer depois, de modo que simplesmente sacudi a cabeça e disse que nada em minha vida jamais me fizera outra coisa que não uma cética a respeito de PES, fenômenos psíquicos e todo o resto desse troço. Então ele disse o que eu já esperava, que se quisesse acompanhá-lo até sua casa me mostraria algumas coisas capazes de, num estalo, mudar minhas idéias. Respondi que gostara, mesmo, de conversar com ele, que o jantar fora divertido, mas que não o conhecia o suficiente para ir até seu apartamento. Além do mais, lamentava porque tinha de ir logo para casa, lavar os cabelos, pois trabalharia outra vez no turno da manhã no dia seguinte. Ele encolheu os ombros, recostou-se na cadeira, disse que entendia perfeitamente e que eu tinha razão em ser cautelosa, que as mulheres não eram as únicas preocupadas com os chamados “estupros depois do encontro”. Disse ainda que, com o tempo, eu aprenderia a confiar nele e que, algum dia, nós dois provavelmente riríamos com minha primeira impressão dele. Concordei, rimos um pouco, a garçonete trouxe mais café e ele pediu licença para ir ao banheiro. Fiquei ali, mexendo o açúcar e o creme no café, perguntando a mim mesma se não seria mais prudente sair dali e deixar um pequeno bilhete, alegando já ser mais tarde do que eu pensara, e eu precisava correr para casa, mas que fora muito agradável, e obrigada. Mas achei que aquilo seria desonesto. Não que ele fosse repulsivo, ou coisa assim, na verdade era muito bonzinho, possuía belos olhos, castanhos, uma maneira tímida de olhar de lado quando ria e uma voz maravilhosa que me lembrava cordas de violoncelo. Talvez fosse o fato de ele ser quarentão, estar ficando calvo e criando 148

barriga. Se fosse um pouco mais jovem, provavelmente eu teria me interessado. Se eu tivesse sido um pouco mais moça, quem sabe, poderia mesmo ter ido a seu apartamento para perder o ceticismo. Mas ele não era, eu não era, e não iria. Contudo não seria grosseira. Ele não merecia isso. De modo que fiquei onde estava. Ele deixara os pacotes de chá na mesa. Peguei um e li o rótulo. Tive que sorrir. Chá Tapete Mágico. Pareceu-me chá com sabor de laranja. O chá Earl Grey fora rebatizado de Sonhos Mal Colocados. O aromado terceiro eu não conhecia, talvez fosse um desses chás verdes-claros, mas, segundo o rótulo, se chamava Chá Hálito de Dragão. O quarentão estava realmente metido nessa coisa de magia psíquica, concluí e, de certa maneira, senti um pouco de pena dele. Um homem feito, no lado escorregadio da casa dos quarenta, agarrando-se a contos de fada e magia, alimentando ainda a esperança de que alguma coisa aconteces­ se em sua vida, algum milagre mais maravilhoso do que arranjar financiamento para um carro novo ou descobrir que aquele aquecedor de água furado ainda estava na garantia. Aquilo não ia acontecer, não a ele, não a mim, e me senti um pouco mais tolerante, enquanto me recostava e esperava que voltasse. Não voltou. Vocês descobriram isso muito mais rápido do que eu. Fiquei ali, esperei, bebi o café e só quando a garçonete reencheu minha xícara é que me dei conta de quanto tempo se passara. O café dele já estava frio, e o mesmo acontecia com meu estômago. Sabia que ele me havia deixado entalada com a conta e, ora, podia quase ouvi-lo dizer a um dos amigos: “Ora, se a garota não vai topar, por que gastar a grana, homem?” O corpo massacrado pela humilhação de ter sido tão ingênua, perguntei a mim mesma se toda aquela conversa de magia era alguma coisa que ele usava para atrair mulheres. Provavelmente. E eu estivera me pavoneando, bem, apenas um pouco, durante todo o jantar, pensando que ele ainda via em mim possibilidade de magia e encantamento, que para ele eu tinha algum superexcitante brilho. Bem, meu limite de cartões de crédito estava esgotado, possuía menos de dois dólares na carteira e deixara em casa o talão de cheques. No fim, o gerente do restaurante, relutante, 149

descontou para mim o cheque de salário, provavelmente apenas porque ele sabia que a Sears não emitiria um cheque sem fundos e porque lhe mostrei meu crachá de empregada. Perto do fim da conversa, ele estava até sentindo pena de mim porque o quarentão me tratara tão mal, o que foi ainda pior, pois ele falava como se meu pobre coraçãozinho estivesse partido, em vez de eu estar simplesmente furiosa e embaraçada. Quando eu ia finalmente saindo, quero sair daqui!, a garçonete me entregou os três pequenos pacotes de chá com uma expressão “pobre moça” tão condescendente que tive vontade de escarrar nela. E voltei para casa. A parte estranha é que chorei realmente quando cheguei em casa, mais de frustração e raiva, porém, do que de qualquer mágoa. Gostaria de saber o verdadeiro nome dele, de modo que pudesse lhe telefonar e lhe dizer o que pensava de um golpe tão baixo. Fiquei em frente ao espelho do banheiro, olhando para os olhos vermelhos, nariz inchado e escorrendo. De repente, tive certeza de que o pessoal do restaurante me vira mais claramente do que eu ou o quarentão me vira. Não uma Mulher de Prata ou mesmo um patinho feio, mas uma mulher de meia-idade, comum, com um emprego humilde e absolutamente nenhuma perspectiva na vida. Durante um momento, aquilo me pegou, mas depois me espiguei e olhei zangada para o espelho. Olhei para as mulheres de prata, balançando em minhas orelhas e, enquanto as examinava, ocorreu-me que elas provavelmente valiam muito mais do que a refeição que eu acabara de pagar e que, de quebra, eu ficara também com o chá. De modo que talvez ele não houvesse tirado mais da situação do que eu, aqueles brincos não lhe haviam rendido uma transa, e, se ele fugira sem pagar o jantar, deixara também os pacotes de chá, e aquelas lojas especializadas em chá não são nada baratas. Pela primeira vez, ocorreu-me que as coisas não se equilibravam, inteiramente. Mas afastei isso dos pensamentos, preparei uma xícara de Sonhos Mal Colocados, li um pouco e depois fui dormir. Sonhei com ele. Nada surpreendente, considerando o que me fizera passar. Eu estava em um jardim, junto a um banco prateado, sombreado por um arco em treliça, pesado com lianas verdes-escuras cheias de perfumadas flores cor-de-rosa. O 150

quarentão estava à minha frente, eu podia vê-lo, mas tive a impressão de que estava desencarnado, não realmente ali, absolutamente. — Quero pedir desculpas — falou com toda seriedade. — Voluntariamente, eu nunca teria deixado você daquela maneira. Receio que, por um passe de mágica, tenha sido transportado dali por um de meus arquirivais. O mesmo que criou o mau encantamento que tanto a aflige. Ele me aprisionou no interior de uma bola de cristal, de modo que, sinto muito, não vou vê-la durante algum tempo. Nesse sonho, eu usava um vestido longo feito de penas de pavão e usava anéis de prata em todos os dedos. De uma fina corrente em torno de meus tornozelos pendiam pequeninas campainhas de prata. Tilintaram quando me aproximei dele. — Não há nada que eu possa fazer para ajudá-lo? — perguntou meu ser onírico. — Oh, acho que não — respondeu ele. — Eu simplesmente não queria que você pensasse mal de mim. — Depois, sorriu. — Mulher de Prata, você é uma das poucas que se preocuparia primeiro em quebrar o encantamento que me aprisiona, em vez de pensar em como remover sua própria maldição. Não posso deixar de acreditar que as forças que equilibram toda a magia encontrarão uma maneira de libertar a nós dois. — Que os fados o cubram de razão, meu amigo — respondi. Esse foi o fim do sonho, ou de tanto quanto posso me lembrar. Acordei pela manhã com vagas lembranças de um gato querendo pegar campainhas de prata tilintantes balançando em um vento perfumado. Estava com uma terrível dor de cabeça. Saltei da cama, vesti-me e fui trabalhar na Sears. Durante uns dois dias, fiquei à espera de que ele reaparecesse, mas isso não aconteceu. Continuei simplesmente na minha rotina. Disse a Felicia que não podia viver naquele expediente e com o salário que estava recebendo. Ela me disse que estava muito desapontada com o número de pedidos de crédito que eu estava encaminhando, e que o pessoal em tempo integral era escolhido apenas entre as mais dedicadas e entusiásticas que trabalhavam meio expediente. Retruquei que teria de começar a 151

procurar emprego, e ela disse que compreendia. Nós duas sabíamos que não havia tantos empregos à disposição e que eu podia ser substituída por uma entediada dona-de-casa ou uma estudante de faculdade em desespero, a qualquer momento. Aquilo não era nada tranqüilizador. Nas três semanas seguintes, distribuí 27 cópias de currículo entre entediadas pessoas em balcões de recepção. Fui entrevistada para dois empregos que pagavam tão mal como o que eu já tinha. Descobri um emprego fantástico, num lugar que adoraria me contratar, mas a entidade que financiava a obra exigia que ele fosse dado a uma chefe de família desempregada ou uma trabalhadora de grupos minoritários. Depois liguei para uma entrevista telefônica de um número dado em um anúncio no jornal. Gostaram de minha voz e pediram-me que comparecesse lá pessoalmente. Depois de muita conversa vaga e circunlóquios, descobri que se tratava de um emprego em que eram respondidos telefonemas pagos de tarados, com conversas animadas sobre suas fantasias sexuais. — É uma espécie de teatro erótico improvisado — explicou-me a entrevistadora. Tinha algumas fitas gravadas com exemplos dos telefonemas, escutei-as e, sim, parecia fácil. Melhor que tudo, disse a entrevistadora, eu podia trabalhar em casa, lavando os pratos e separando a roupa lavada, enquanto dizia a algum homem como gostaria de passar uma esponja morna por cima de seu corpo, ensaboando cada canto e reentrância de suas carnes até que ele brilhasse e, em seguida, quando ele estivesse duro, quente e úmido, eu abriria as pernas para ele e... Tinham mesmo panfletos contendo explicações de práticas sexuais que eu talvez não conhecesse e forneciam o jargão completo para usar quando conversasse sobre elas. Seis a sete dólares por hora. Eu disse à entrevistadora que precisava pensar, voltei para casa. Levantei-me no dia seguinte, degelei o refrigerador e, mais uma vez, varri o carpete da sala de estar porque haviam acabado os sacos do aspirador de pó. Em seguida, fiz todo o trabalho de conserto de roupas que estivera adiando durante semanas, esfreguei a parte externa da entrada do apartamento e borrifei-a com água sanitária, e pensei em falar ao telefone sobre sexo com 152

homens e que bem que poderia fazer isso enquanto estivesse passando a ferro uma saia, arrumando flores num vaso ou tirando cocô de gato do sapato. Depois, tomei um banho de chuveiro, troquei de roupa e fui trabalhar na Sears no turno das 17:00 às 21:00. Disse a mim mesma que o trabalho não era sujo nem difícil, que minhas colegas até que eram boas pessoas e que não havia razão para aquele emprego me deixar tão deprimida. Não adiantou. O shopping center estava promovendo a Semana do Artesanato e, para chegar à Sears, tive que passar por todas aquelas mesas e pessoas. Perguntei a mim mesma por que não me mexia, fazia coisas à noite, vendia-as nos fins de semana e, assim, dava um jeito para equilibrar receita e despesa. Passei por bonecas Barbie cujas saias de crochê rosa escondiam rolos de reserva de papel higiênico, e vi chaveiros de madeira com nomes, peças de cerâmica, uma barraca de carimbos variados e outra com grupos de pequenas esculturas em estanho e cristal exibidas em mesas feitas de velhas portas montadas em cima de cavaletes. Diminuí um pouco a marcha ao passar por aquela porque sempre tive uma queda por peças de estanho. Vi ali os dragões e feiticeiros costumeiros e alguns ovos de calcedônia, partidos ao meio, com figuras de feiticeiros em pé dentro deles. Havia aves, também, águias, falcões e corujas de estanho e um veado realmente belo, quase do tamanho de minha mão. Custava 52 dólares. Eu o estava olhando quando ouvi uma mulher, que estava atrás de mim, dizer: — Eu gostaria de comprar o cristal que está prendendo o feiticeiro, por favor. O dono da barraca sorriu para ela e disse: — A senhora quer dizer, o feiticeiro segurando a bola de cristal, certo? A mulher respondeu em uma voz realmente irritada: — Isso mesmo. Em vista disso, o dono embrulhou em várias folhas de papel de seda a pequena estatueta de um feiticeiro segurando uma bola de cristal e estendeu-a à mulher, dizendo: — Dezessete dólares e setenta e oito cents, por favor. A mulher enfiou a mão na bolsa e juro que tudo o que fiz 153

foi tentar sair da frente dela. Acho que meu casaco prendeu no canto da porta, ou foi em algum outro lugar, porque, no momento seguinte, tudo estava se inclinando e escorregando. Tentei segurar a borda da porta-mesa, mas caí em cima do pé da mulher, realmente com força, enquanto todo aquele cristal e peltre se despedaçava no chão e se espalhava sobre o linóleo como uma onda que se quebrava. A mulher gritou, levantou os braços, e o pequeno feiticeiro embrulhado voou pelos ares. Não tenho certeza se realmente vi aquilo. A bola de cristal saiu do embrulho e aterrou separadamente no chão. Não se partiu, rachou ou despedaçou-se; fez subir uma pequena baforada de fumaça. E o papel de seda amassado caiu vazio. — Sua puta estúpida — gritou a mulher para mim. O dono da barraca olhou-me furioso e disse: — Tomara mesmo que você tenha seguro contra danos a terceiros, sua idiota! Que coisa mais tola para dizer, realmente, e não consegui pensar numa resposta. Pessoas se viraram nesse momento para olhar, dirigiram-se para nós, a fim de ver que confusão era aquela. A mulher praticamente entrara em colapso e segurava nesse momento o pé, dizendo: — Deus do céu, está quebrado, está quebrado. Tive certeza, brusca e friamente, que ela não estava falando a respeito do pé. Nesse momento, o quarentão pegou-me pelo cotovelo e disse: — Temos que sair fora daqui! Deixei que ele me puxasse e o engraçado é que ninguém tentou nos deter, perseguir-nos ou fazer qualquer coisa. A multidão fechou em volta da mulher caída no chão, como uma ameba que encontra um gostoso bocado. Logo depois estávamos em uma caminhonete que cheirava a cachorro molhado, o piso cheio de jornais enlameados, xícaras de café de plástico, embalagens da Hostess Fruit Pies e aqueles botes de papel onde servem os burritos de proteína vegetal orgâ154

nica que vendem nas lojas Seven-Eleven. Uma parte de mim dizia que eu estava louca em seguir na caminhonete com aquele sujeito que mal conhecia, que me deixara entalada com uma conta de jantar, e outra parte me dizia que era melhor eu voltar para a Sears, que talvez pudesse explicar o atraso. E uma terceira parte simplesmente não dava a mínima, queria simplesmente fugir. E essa parte se sentia melhor do que há uma eternidade. Paramos no lado de fora de uma pequena casa branca. Ele virou-se e disse gravemente: — Obrigado por ter-me resgatado. — Isso é realmente estúpido — respondi. — Talvez seja, mas isso é tudo o que temos. Eu lhe disse que a magia está desgastada. Entramos na pequena casa, e ele pôs a chaleira no fogo. Era uma bela chaleira, cobre brilhante com um cabo de cerâmica branco e azul, e xícaras e pires, que tirou de um armário, combinando. — Você me deixou entalada com aquela conta no restaurante — acusei-o. — Meus inimigos caíram sobre mim no banheiro e me levaram dali por meios mágicos. Eu lhe contei. Nunca teria feito isso de propósito, Mulher de Prata. Não fosse sua intervenção hoje, e eu estaria ainda em poder deles. — Virou-se, com uma pequena lata de estanho em cada mão e perguntou: — O que é que vai querer? Sonhos Mal Colocados ou Doçura Esquecida? — Doçura Esquecida — resolvi. Pondo sobre a mesa as duas latas de chá, tomou-me nos braços e beijou-me. E, sim, senti-lhe o estômago pressionando um pouco o meu e, quando passei a mão por trás de sua cabeça para prender-lhe a boca na minha, senti que o cabelo estava rareando. Mas pensei também que podia ouvir harpas eólias e sentir um leve perfume na brisa quente. Não acredito em magia. A idéia de, pela força de vontade, trazer encantamento para minha vida é besteira. Besteira. Mas, como dissera o quarentão, aquilo era tudo o que tínhamos. Uma esperança estúpida de conseguir uma migalha de magia, por menor que fosse. O quarentão não gastou suas energias levando-me para o quarto. 155

Jamais conheci um homem com menos de 25 anos que valesse o esforço de chupá-lo até ele subir pelas paredes. Todos eles estão presos na terceira marcha. É preciso que um homem chegue aos trinta para compreender o que é suavidade e mais alguns anos para compreender que a mulher o toca como gostaria que ele a tocasse. Aos 35 anos, eles começam a compreender como é a fiação de um corpo de mulher. Deixam de tentar querer que a gente pegue fogo logo e aprendem a certificar-se de que a bateria está carregada antes de virar a chave de ignição. Uns poucos, ouvi dizer, aprendem como deixar uma mulher fazer amor com eles. Quarentões entendem de ritmo. Sabem que nem tudo tem que acontecer no mesmo momento, que, separando cada estímulo, podem intensificar cada toque. Sabem quando parar excita mais do que continuar e também quando continuar é mais importante do que uma chaleira chiando e secando num fogareiro elétrico. Depois, perguntei-lhe: — Já ouviu falar na “Regra das Dez de Lindholm”? Ele franziu as sobrancelhas por um momento. — Não é aquela teoria de que, nas primeiras dez vezes que duas pessoas fazem amor, uma fará alguma coisa que não está em sincronia com a outra? — Essa mesma — confirmei. — Ela foi refutada — disse ele solenemente. Levantou-se e foi ao banheiro, enquanto eu salvava do fogareiro a chaleira fumacenta. Fiquei na cozinha e, depois de algum tempo, comecei a tremer porque aquele lugar não era muito bem aquecido. Vestirme não me pareceu, de alguma maneira, bem-educado, de modo que gritei pela porta do banheiro: — Quer que bote mais água para o chá? Não tive resposta e não quis gritar novamente para a porta, de modo que peguei a blusa, pendurei-a em volta dos ombros e tremi durante algum tempo. Passeei pela cozinha e depois fui para a sala de estar. Quando dei por mim, estava lendo os títulos dos livros, que é uma das melhores maneiras de delicadamente espionar alguém. O Teorias de Termodinâmica estava ao lado do 156

O Silmarillion. Encontrei todos os livros de Carlos Castaneda em uma prateleira só deles. A coleção de Kipling era encadernada em couro vermelho. Minha bunda estava congelada e desconfiei que tinha uma marca do tapete nas costas. Que se danasse essa história de ser fina. Voltei à cozinha, peguei a roupa de baixo e a saia e vesti-as. — Merlin? — chamei, enquanto pegava a meia-calça. Estava perdida, um fio corrido de cima a baixo de uma das pernas. Fiz um bolo dela e enfiei-a na bolsa. Fui até a porta do banheiro, bati e disse: — Vou entrar, posso? Como ele não respondeu, abri a porta. Não havia ninguém ali. Mas eu tinha certeza de que fora ali que ele entrara e a única outra saída do banheiro era um pequeno basculante, com três potes de balsâmina-do-mato no peitoril. A única pista de que ele estivara ali era a camisinha flutuando pateticamente no vaso. Não há nada menos romântico do que uma camisinha usada. Fui até o quarto, abri a porta e olhei. Ele não fizera a cama naquela manhã. Recuei. Na verdade, esperei ainda um pouco, fingindo para mim mesma que ele voltaria. Quero dizer, as roupas dele continuavam amontoadas no chão. Como podia ele ter-se vestido de novo e saído da casa sem que eu notasse? Nem pensei nisso. Uma hora depois, porém, não importava mais como era que ele fizera qualquer coisa. Ele sumira. Não chorei. Fora estúpida demais antes em chorar. Nada daquilo fazia sentido, e o meu comportamento muito menos. Acabei de me vestir e fui dar uma olhada em mim mesma no espelho do banheiro. Um estouro! Maquiagem toda manchada e nada para retocá-la. De modo que achei melhor lavar o rosto e tirar tudo aquilo. Deixar as rugas em torno da boca e as olheiras sob os olhos. Quem se importava? Tinha os cabelos desgrenhados, as pernas lívidas e estava toda arrepiada com a falta da meiacalça. A sapatilha de lã que cobria as meias parecia grotesca sem elas. Eu tinha uma aparência de coisa amassada e usada. Esse estado combinava com o que sentia, uma aparência que, aliás, me complementava o estado de espírito. Peguei a bolsa e saí. 157

A velha caminhonete continuava do lado de fora. Aquilo também não fazia sentido, mas, na realidade, eu não dava mais a mínima para coisa nenhuma. Fui a pé para casa. Isso parece mais simples do que foi. O tempo estava frio, eu não usava meias, apenas as sapatilhas de lã dentro do sapato. A noite caía, e pessoas olhavam para mim. Levei uma hora para chegar e, quando cruzei a porta, tinha um enorme calo no calcanhar, e mancava também. Subi a escada, errando por pouco o montículo úmido pardo que o gato do vizinho deixara para mim, abri a porta e entrei. Continuei sem chorar. Tirei os sapatos com um pontapé, enfiei-me no velho colante de ginástica e fui até a cozinha. Preparei chocolate em um pequeno bule de porcelana decorado com miosotis, abri a lata do autêntico pudim de ameixa inglês Cross and Blackwell, que minha irmã me dera de presente no último Natal e que eu reservara para o caso de calamidades como aquelas. Abri toda a lata e coloquei o pudim sobre um prato de porcelana em uma pequena bandeja, junto com o bule de chocolate, a xícara e o pires. Arrumei a bandeja em cima da mesinha ao lado da velha espreguiçadeira, cobri-a com uma colcha e peguei na estante meu velho exemplar de Os Três Mosqueteiros, de Dumas. Depois, fui ao banheiro com intenção de tomar um rápido banho quente de chuveiro e pincelar um pouco de óleo de rosas nas partes machucadas, antes de me preparar para a noite. Era minha maneira de pedir desculpas a mim mesma por ter-me tratado assim tão mal. Abri a porta do banheiro e por ela saiu uma nuvem de malcheirosa fumaça verde sulfurosa. Engasgando e sufocando, olhei para dentro, e ali estava o quarentão, usando apenas toalha e sorrindo para mim com ar de desculpa. Parecia apreensivo. Tinha um grande arranhão num joelho e um grande galo na testa. — Mulher de Prata, eu nunca a teria deixado daquela maneira, mas... — Você foi transportado por telecinesia de lá por seu arquirival — terminei para ele. — Não. Não por telecinesia, exatamente. Isto envolveu um encantamento que exigiu uma pata de macaco e uma dúzia de 158

bagas de erva-moura. Mas eram bagas do ano passado e não suficientemente fortes para me prender. Eu tinha de reserva um encantamento próprio e... — E você o mandou para o futuro — sugeri. — Não. — Ele pareceu um pouco envergonhado. — Na verdade, foi o encantamento “Coceira Retal Incessante”, um pouco grosseiro, mas sempre eficaz e fácil de usar. Duvido que ele nos incomode tão cedo. — Após uma pequena pausa, acrescentou: — Como lhe falei, a magia está desgastada. — Fungou algumas vezes e disse: — Na verdade descobri que Pinho Sol é o que há de melhor para remover resíduos de encantamentos... Em vista disso, fizemos uma faxina no banheiro. Passei água oxigenada no joelho ralado dele, ele emitiu ruídos arquejantes e soltou palavrões em uma língua que eu nunca ouvira antes. Deixei-o ali fazendo isso e voltei à cozinha para reesquentar o chocolate. Pouco depois, ele saiu usando uma espécie de sarongue que improvisara com um de meus lençóis. A coisa parecia estranhamente elegante nele e o engraçado foi que nenhum de nós pareceu sentir embaraço quando nos sentamos, bebemos chocolate quente e dividimos o pudim de ameixa. Ele ficou com o último pedaço de pudim e, pegando um pouco de queijo fundido em minha geladeira, passou-o em forma de sinal cabalístico sobre o pudim. Depois, foi até a porta e chamou; — Aqui, gatinho, gatinho, gatinho. O gato do vizinho compareceu imediatamente. Deixou que o quarentão o levantasse do chão e o trouxesse para minha sala de estar, onde ele tirou dois carrapatos de trás das orelhas do bichano e deu-lhe o pudim em pequenos pedaços. Depois de fazer isso, levantou o gato, fitou-lhe longamente os olhos amarelados antes de entoar: — Com pão e creme eu te prendo. Nunca mais sujarás a entrada desta residência. — Colocou o gato suavemente porta afora e disse em voz alta: — Bem, isso resolve o feitiço que botaram em você. Olhei-o fixamente. — Eu pensava que meu feitiço tinha algo a ver com trabalhar na Sears. — Não. Isso é uma coisa especialmente cruel que está fa159

zendo consigo mesma, por razões que nunca compreenderei. — Deve ter notado a expressão em meu rosto porque, logo depois, acrescentou: — Eu já lhe disse, a magia nunca é exatamente aquilo que a gente pensa. — Sentou-se em seguida no chão ao lado da espreguiçadeira. Pôs o cotovelo em cima de meu joelho e descansou o queixo na mão. — E se eu lhe dissesse, Mulher de Prata, que eu mesmo não tenho nenhuma magia real? Que, na verdade, saí de meu banheiro, pela janela, andei furtivamente pelas ruas enrolado naquela toalha, a fim de encontrá-la aqui? Porque queria que você me considerasse uma pessoa especial. Fiquei calada. — E se lhe dissesse que, na realidade, trabalho para a Boeing, no departamento de pessoal? Simplesmente, olhei-o. Ele tirou o cotovelo de meu joelho, virou-se um pouco, olhou para os pés descalços, e depois para minha máquina de escrever. Passou a língua pelos lábios e falou baixinho: — Eu podia lhe arranjar um emprego lá. Como processadora de texto, com um salário de 11 dólares por hora. — Merlin — falei, em tom de aviso. — Bem, talvez não 11 dólares por hora, para começar... Estendi a mão e desmanchei-lhe o que lhe sobrava de cabelos. Ele levantou a cabeça e deu aquele sorriso de sempre, olhando-me de soslaio. Não dissemos nada, absolutamente. Tomei-lhe a mão e levei-o para meu quarto, onde mais uma vez provamos que a Regra das Dez de Lindholm estava errada. Dormi enrascada nele, minha mão descansando confortavelmente na curva de sua barriga. Ele era incrivelmente quente e cheirava a laranja, trevo e canela. Chá Sonhos Mal Colocados, era a isso que ele cheirava. Naquela noite, sonhei que usava um vestido comprido feito de penas de pavão e que passeava por um jardim enevoado. Encontrara alguma coisa que perdera, tinha-a na mão, mas, todas as vezes em que tentava ver o que era, o nevoeiro fazia remoinhos e escondia-me a mão. Pela manhã, quando acordei, o quarentão havia desaparecido. O fato não me incomodou, realmente. Sabia que ele voltaria ou não, mas que, de qualquer maneira, ninguém poderia 160

tomar de mim o que eu já possuía, isto era muito mais magia do que a maioria das pessoas consegue em toda sua vida. Vesti o velho roupão de banho, coloquei as mulheres de prata e passei à sala de estar. O lençol-sarongue estava dobrado em cima da espreguiçadeira da sala, o gato do vizinho dormindo em cima dele, as patas sob o queixo. E minha Musa estava ali, também, empoleirada num canto da escrivaninha, um joelho sob o queixo enquanto pintava as unhas dos pés. Levantou os olhos quando entrei e disse logo: — Se acabou com aquela crise de mau humor, vamos tratar de sua carreira agora. Sentei-me, liguei a máquina de escrever e coloquei os dedos em posição no teclado. Curioso, as teclas sequer estavam empoeiradas.

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O principal prisioneiro na prisão principal fez uma pausa em seu recital de reclamações para um pensamento particularmente interessante que somente agora, breve como um relâmpago cortando os céus, cruzava sua mente. No mesmo instante, caiu na gargalhada pela estranheza do pensamento. — Ah, sim, ah, sim — concordava ele, as palavras confirmando o pensamento. — Ah, certamente deve haver pessoas que me considerariam insano. Certamente há pessoas que me consideram um criminoso: senão, por que eu estaria aqui? — E tornou a rir. — Ora, ora — reprovou-se com brandura —, devese prosseguir o trabalho. O dever chama. — Uma vez mais ele levantou a voz. “Se vocês se consideram cidadãos — gritou ele, a boca próxima às barras da pequenina janela —, então considerem que a cidadania tem deveres, assim como privilégios. Levantem-se! Sublevem-se! Apaguem a infâmia! Quebrem os grilhões que uma sociedade, por si só mais cruel e corrupta do que qualquer de seus elementos possa um dia ser, com efeito colocou ao redor de minhas mãos e meus pés... E também ao redor dos seus! Não venho dizendo isso há anos? Mais uma vez seus pensamentos foram interrompidos. Sem perceber, estava em pé sobre o único verdadeiro ponto oco na cela. Certa vez, um cano que fazia parte das primitivas instalações sanitárias (que haviam sido substituídas alguns anos antes pelas instalações atuais, quase tão primitivas e certamente totalmente insatisfatórias — imagine!, para alguém de sua educação e linhagem... ah, enfim...) levava a algum lugar: desconhecido e distante. Os pedreiros, eles próprios prisioneiros levados para lá de uma prisão menos importante para prisioneiros menos importantes, haviam ficado satisfeitos (e o carcereiro também) em arrancar a parte do velho encanamento imediatamente próxima à superfície do piso da cela, e tapar o buraco com um azulejo. Debaixo deste azulejo agora vinha um ruído fraco mas logo percebido, parte som, parte tremor: familiar, e apenas naquele momento era indesejado. — Não vá embora — gritou o prisioneiro. — Vou voltar para continuar a lhe explicar a loucura, e mesmo, a futilidade de todas as noções de castigo da sociedade... — Ele se virou, com 163

apenas um suspiro fraco, e resmungou, enquanto abaixava e tentava retirar o azulejo: — Noblesse oblige. — Havia começado a mexer na argamassa antes que ela secasse; o porquê, ele não sabia com certeza, ou melhor, fingia para si mesmo que não. Mas é claro, na realidade, sua mente, tão infinitamente superior às mentes de outros homens, havia sempre considerado a possibilidade, na verdade, a probabilidade, de que o velho encanamento poderia também ter servido alguma outra cela, em outro nível da vasta estrutura da prisão. A estrutura vasta e cruel da prisão, como um tipo, poderse-ia dizer na verdade um arquétipo, do governo e da sociedade que a erigiram e ainda a mantinham: ainda!, numa época supostamente iluminada. — Sou eu! — gritou ele pelo buraco. — O que você quer, seu maldito filósofo? Só a longa prática havia treinado os dois, incapazes de falar um com o outro face a face, para entender suas vozes apesar das distorções provocadas pelo tamanho do lugar e pelo espaço que as vozes tinham de atravessar. — Meus ossos doloridos estão aos poucos doendo menos. — A voz do filósofo vinha ecoando pela passagem longa e estreita, do tamanho do braço de um homem. — Então deve ser meio-dia, com o sol a pino... Só posso ver a penumbra usual, mas meus ossos... Bem, como você normalmente é gentil o bastante para falar comigo ao meio-dia e desta vez não fez sinal, temi que estivesse doente: então fiz um barulho para chamar-lhe a atenção. Sua voz não está normal. Espero que não esteja doente, está? — Você faz bem em esperar — respondeu o principal prisioneiro e mais famoso. — Suponha que eu morra... Além da imensa perda para uma humanidade, que com a minha morte seria privada da mensagem implícita nos meus ensinamentos e em minha prática, a perda para você seria ainda maior. Se possí­ vel. Para quem falaria se esta cela aqui em cima estivesse vazia? O filósofo irritado, cujo conhecimento não foi o bastante para dotá-lo de sabedoria, perguntou: — Por que não fez sinal para mim ao meio-dia? O que você estava aprontando? Outro plano louco? — Se meus planos loucos fossem ao menos admitidos 164

como os paradigmas que são, estaria a humanidade em sua atual situação de infelicidade? A pergunta é retórica, e não requer resposta. O que estava eu fazendo? Me dirigindo à multidão. Às multidões, para ser exato. Um som como de tosse subiu encanamento acima. Depois de um momento, a voz perguntou: — Que multidões? — As multidões que agora mesmo estão cercando nossa prisão. E eu estava pregando para eles, com toda a minha voz, os importantes princípios de liberdade e libertação, que não possuem maior defensor que eu, e que “Faze o que quiseres será a lei.” O filósofo — o homem tinha um nome, mas isso não importava — o filósofo retrucou: — Não há multidão nenhuma. Claro que não há multidões. Você estava se esgoelando inutilmente, sem ser ouvido. Ninguém ouvirá, porque ninguém se detém para tentar; ninguém pode ver seu rosto de tão distante, e ninguém sequer poderia ouvir sua voz, de qualquer forma... Ele não disse exatamente as palavras Você é louco, mas elas estavam fervorosamente contidas no tom cético de sua voz. — Devo pedir-lhe que me desculpe se pareço diferir de suas próprias opiniões, indubitavelmente bem fundamentadas, mas estou em melhor posição de julgar do que você. — O principal prisioneiro falava apenas com o mais leve tom de sarcasmo (sendo, basicamente, o mais gentil dos homens: mas um que conhecia sua própria natureza. E quão poucos conhecem as suas próprias?). — Acontece que imensas massas estão reunidas ao redor da prisão para ouvir o que tenho a lhes dizer: como é absurdo chamar uma linha de conduta de crueldade, e puni-la. Como os seres humanos são o que são porque são dessa forma e não podem mudar, e que todo nosso pretenso sistema de justiça é, na melhor das hipóteses, uma imensa farsa. Que a natureza de um indivíduo é formada por forças que estão dentro e fora dele e são incomparavelmente mais fortes do que nós. E que a “restrição justificável” da sociedade, assim chamada, é uma atrocidade tão atroz quanto qualquer atrocidade assim designada pelas leis, sejam sociais ou criminais. E é por isso que estava me dirigindo 165

às massas. E é por isso que elas me ouvem. — E, naquele momento, como se dominado pela importância da tarefa, ele pôs-se de pé num salto e arrastou os pés até a pequena janela de grades. — Eu reconheço vocês todos como meus irmãos! — gritou. — Eu abraço a todos igualmente! Se eu fosse tão livre quanto vocês e vocês tão livres quanto eu! Mas como podem permanecer passivos, tão passivos? Por que vocês todos simplesmente ficam aí, ou andam e trabalham sem propósito? Vocês devem pegar em armas! Formem batalhões! Manchem os portões com o sangue impuro do inimigo! Liberdade! — Ele gritou. Gritou e acenou com a mão livre: — Liberdade! — Então caiu da janela, exausto. E depois, uma vez mais sobre as mãos e os joelhos, chamou pelo encanamento: — Você ouviu? Ouviu, amigo filósofo? — Parte do que você disse eu ouvi com certeza — declarou a voz fraca e gasta. — Que ironia que só a voz de um criminoso lunático sirva de consolo para me separar dos pensamentos, e que minha única esperança seja morrer nesta tumba viva antes de você. Qual! Você ainda pensa que multidões se reuniram e sofrem para se manter unidas, para ouvir você? Ouvir suas crendices, que seriam cômicas se não fossem tão grotescas... a idéia de que você pode fazer o que quiser com outras pessoas, mas que os outros nada podem fazer para impedi-lo? O prisioneiro mais famoso deu um sorriso pequeno e contraído, quase um esgar. — Você as chama de “grotescas”? Eu não as considero grotescas de forma alguma. Para mim elas parecem claras como as águas límpidas de um lago na floresta. E lhe digo mais, senhor... — O que ele disse, inclinando rapidamente a cabeça na direção da porta muito grossa da cela, foi: — Psiu! Quieto! Alguém está vindo... — Mal teve tempo de se levantar e colocar o azulejo no lugar antes do horrível som áspero dos gonzos. A porta se abriu com um gemido. Um pequeno grupo de pessoas entrou. Algumas ficaram no corredor, do lado de fora, a escuridão da prisão interna aliviada por lamparinas e tochas. E outras, lideradas pelo carcereiro, entraram rapidamente na cela. Ao lado dele estavam seu assistente, dois guardas e um lacaio. Na mão do carcereiro estava uma pistola. Apontada para ele. — Devo pedir-lhe, senhor — disse o carcereiro, contendo166

se com um esforço que lhe deixava o rosto, normalmente vermelho, quase branco —, que se prepare para partir já para outro lugar de confinamento. Não tente, eu lhe peço, oferecer resistência... Ah. Então — ele apontou para um artefato próximo à pequena janela (o lacaio havia começado a colocar, apressado, os poucos pertences do prisioneiro num portmanteau) —, é assim que você vem tornando a si e seus gritos inflamatórios audíveis para a multidão? — Ele ia dizer mais, mas apertou os lábios, e fez um gesto para a porta da cela. O principal prisioneiro inclinou educadamente a cabeça. — Sim, é dessa forma. Pode-se descrever isso como uma espécie de aparelho de audição que construí a partir de um funil e uma peça de encanamento de minhas muito insatisfatórias instalações sanitárias. Quanto a “oferecer resistência”, pfff! No­ blesse oblige. Vão. Eu os acompanharei. Eles o conduziram através de longos e quase intermináveis corredores e escadas, até um imenso jardim. Lá o veículo os aguardava. O assistente do carcereiro entrou primeiro, depois um dos guardas, o prisioneiro seguiu, o governador logo depois, o outro guarda por último. Os guardas sentaram-se e os encararam. Abriu-se um portão, o veículo saiu. Era um portão lateral, a massa não era tão grande ali, e parecia um daqueles estranhos momentos em que — o relógio talvez vinte minutos depois da hora — todos haviam ficado, por um segundo, em silêncio. A multidão abriu caminho para eles automaticamente. O prisioneiro então pulou e meteu a cabeça para fora das janelas parcialmente abertas do veículo, empurrando a cortina pesada para o lado. — Às armas! — gritou. — Levantem-se! Revoltem-se! Sal­ vem-me! Eu sou... Os guardas pularam, agarraram-no, lutaram com ele, puxaram-no, ainda lutando, de volta à sua poltrona. — Mais rápido! Mais rápido! — gritou o carcereiro. O postilhão chicoteou os cavalos, a carruagem deslizou rápida. O carcereiro colocou novamente a pistola na cabeça do prisioneiro famoso, a mão de seu assistente tentando cobrir-lhe a boca. Mas ele continuava gritando, virando o rosto furioso de um lado para o outro, fugindo da mão que procurava silenciá167

lo. E uma vez mais ele gritou, antes que o abafassem e tivessem passado pela massa ainda incerta: — Eu sou aquele que foi tão cruelmente, tão injustamente aprisionado! Liberdade! Igualdade! Fraternidade! Abaixo a Basti­ lha! Eu sou o marquês de Sade! NOTA HISTÓRICA É um fato histórico que o marquês de Sade foi, justamente pelas razões que vocês podem imaginar, preso na Bastilha numa época. Durante o fervor revolucionário, as massas se aglomeravam ao redor dessa fortaleza e prisão, e ele se dirigiu a eles, da forma descrita: embora suas palavras não sejam exatamente conhecidas. O carcereiro (ou “governador”) da Bastilha o removeu, sob a mira de uma pistola, para outra prisão. A data desta remoção foi 13 de julho de 1789. A Bastilha, como todos sabem, “caiu”, no dia seguinte, não só por causa do fervor patriótico ou revolucionário da massa, mas porque os guardas suíços que defendiam o lugar se renderam sob a promessa de segurança absoluta. Então foram desarmados, e mortos um por um.

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— Desta vez tenho certeza de que ouvi alguma coisa. — Vivian pousou as cartas e olhou de soslaio para a porta fechada do quarto de dormir que ficava ao lado da cozinha. Voltou-se para a mulher à sua esquerda. — Não é melhor você ir dar uma olhada, Fay? — Pffra quê? — A resposta de Fay foi abafada pelo cigarro que pendia dos lábios muito pintados. Vivian não se lembrava da última vez em que havia visto Fay sem uma ponta de cigarro balançando na boca enquanto falava. Gwen, que estava sentada em frente à Vivian, levou a mão à boca para disfarçar uma risadinha de escárnio. — Você está sempre ouvindo coisas, não é mesmo? — Ajeitou atrás da orelha uma mecha dos cabelos oxigenados e abriu as cartas em leque. — Da última vez, era uma persiana solta. Da vez anterior, alguns moleques brincando na rua. Antes disso, foi um camundongo. — É uma vergonha — observou Fay, mudando uma carta de lugar na mão. — Se o conselho ligasse para nós, já teria acabado com as pragas. — Uma cinza caiu do seu cigarro. Gwen inclinou-se para trás ostensivamente. — Você podia usar um pires, se um cinzeiro é pedir demais. — Passou a mão na saia de linho bege para limpar alguns restos invisíveis de cinza e fez uma cara feia quando o cós da saia apertou-lhe a cintura grossa. — Vá amolar outro — replicou Fay, sem perder a calma. — Eu ouvi alguma coisa — insistiu Vivian. — Ouvi, sim. — Um paus — disse Fay — Duas copas — disse Gwen. A água da pia em frente a Fay começou a borbulhar. Um braço, vestido com uma manga comprida de seda, surgiu das profundezas esmaltadas, brandindo uma mão de cartas. Colocou-as viradas para baixo no oleado da mesa da cozinha, mergulhou de volta na água e tornou a aparecer com anéis de ouro no polegar e indicador. — A Senhora está dizendo dois ouros — murmurou Fay. A mão magra e pálida que estava na ponta do braço fez o 171

velho sinal do polegar para cima. — Que asneira! — acrescentou Fay. A mão da Senhora fez um gesto diferente para mostrar que não tinha gostado do comentário da parceira. — Passo —- disse Vivian, sem pensar. O olhar indignado que Gwen lhe lançou ficou totalmente despercebido. Os olhos castanhos e lacrimejantes de Vivian não podiam se desviar da porta fechada do quarto de dormir. — Escutem, eu tenho que ver o que é! Simplesmente não posso jogar um bridge decente com essa dúvida na minha cabeça! — Nem em qualquer outra ocasião — sibilou Gwen, olhando para Fay. Fay deu um bocejo escandaloso e cocou a papada, concentrando-se nas cartas. Não prestou a menor atenção quando Vivian afastou a cadeira e se dirigiu para o quarto, arrastando no chão os chinelos velhos. Prestou muita atenção, porém, quando Vivian abriu a porta do quarto e gritou: — Ele se foi! Ele se foi! — Vivian se apoiou no batente da porta, apertando com força o vestido listrado. — Eu sabia! — gritou para as outras. — Eu disse a vocês que isso poderia acontecer a qualquer momento, com o país do jeito que está... crime, inflação, os irlandeses, todos esses estrangeiros esquisitos invadindo o país em hordas, muito piores que os saxões. Vocês me deram ouvidos? Alguma de vocês me deu ouvidos? “Oh, é só a Viv de novo”, diziam. “A pequena Viv com suas fantasias.” Pois quero que me digam se essa cama vazia é uma fantasia! — Aprumou o corpo e ficou parada, com ar de ofendida, uma das mãos no batente da porta, a outra segurando a gola do vestido. Fay se levantou e pousou devagar as cartas na mesa, viradas para baixo. — Se isto for mais um dos seus ataques histéricos, Vivian, vou pegar você e enfiá-la de cabeça na forquilha de um dos seus malditos carvalhos. Gwen deu uma risadinha maliciosa e esfregou um no outro os indicadores cuidadosamente manicurados. — Que vergonha! Uma rainha usando uma linguagem 172

dessas! — Não se meta, sua perua enfeitada! —- Fay estava tão irritada que deixou cair o cigarro dos lábios. Ele rolou pela mesa e teria queimado as cartas se a Senhora da Pia não tomasse a iniciativa de apagá-lo com um jato d’água. Gwen mordeu os lábios cuidadosamente delineados e pintados com um tom de castanho que estava na moda. Levantou as sobrancelhas ralas de tanto serem arrancadas. — Você está com inveja — declarou — porque sou a única aqui que não parou de viver enquanto estamos esperando! — Não, o que você faz é ir para a cama com qualquer rapazinho que sai de um bar bêbado demais para perceber a sua verdadeira idade à meia-luz! — Será que ninguém está interessado em saber para onde ele foi? — perguntou Vivian, olhando aflita de uma rainha para outra, os olhos míopes piscando sem parar. — Qual é a pressa? — exclamou Fay, pegando a cadeira e batendo com ela no chão, para reforçar o que dizia. — Se estiver na hora, logo saberemos. Se for mais um falso alarma... — Da última vez ele teve um ataque de sonambulismo — declarou Gwen, divertindo-se com o efeito que suas palavras provocaram na pequena Vivian. — Você se lembra, não é, querida? Foi durante a Batalha da Bretanha. Você não parava de dizer que tinha chegado a hora, que ele não podia continuar dormindo durante uma crise tão grande, que o país precisava dele, que a Nova Era estava chegando e que você iria comemorá-la fazendo uma permanente assim que a confusão passasse. — Sorriu sarcasticamente e prosseguiu: — Fui eu que o encontrei nas Profundezas... ainda adormecido, imagine... e o trouxe de volta à superfície. Foi melhor assim. Você ficaria horrível com uma permanente. — Deu um tapinha na cabeça. — Quando ele acordar, serei eu a primeira a saber. Uma esposa sempre sabe. — Uma esposa sempre sabe uma ova! — exclamou Fay, empurrando Vivian para o lado e entrando no quarto. Não havia ninguém na cama de solteiro, com cabeceira de ferro; a colcha de seda preta, incrustada de jóias, estava caída no chão, toda amarrotada. Fay sacudiu-a e estendeu-a novamente, escondendo a barcaça funerária que tinha sido guardada 173

aos pedaços debaixo do estrado. Depois, voltou para a cozinha e acendeu outro cigarro. — Isso é tudo? — As pestanas ruivas de Vivian pareciam patéticas quando ela piscava para expressar incredulidade, como estava fazendo no momento. Tinha o hábito infeliz de arrancá-las sempre que se sentia pouco à vontade. — Fay, isso é tudo que você vai fazer? — Não fale em um tom tão estridente, Viv. Isso me dá arrepios. Ora bolas, que é que você espera que eu faça? Vivian levantou os braços, impotente. — Não sei. Talvez uma... mágica? — Deus do Céu, mulher, se é mágica que você quer, por que não faz uma você mesma? Que merda de ninfa é você, afinal? — Fay ficou olhando de cara feia para Vivian, com a mão no queixo. A pequena Vivian se limitou a enrubescer ligeiramente por causa da linguagem grosseira da outra. — Escute, Fay... — disse Gwen, com voz melosa. — Sabe muito bem que Viv não consegue fazer nenhuma mágica desde que... você sabe. A cara de boazinha, cheia de compaixão e tolerância, parecia estar pedindo por um tapa. Fay sentiu cócegas nos dedos. — Ela não devia ter prendido o velho Merlin em cima de uma árvore, se era para depois se arrepender desse jeito. — Eu tentei — disse Vivian, em tom choroso, enrolando nos dedos as pontas do laço da gola do vestido. — Você sabe que eu tentei, Fay. Os psicólogos que consultei, os psiquiatras, os grupos de análise, os livros que mandei buscar nos Estados Unidos...! — E praticamente nada disso foi por conta do seu seguro de saúde. Não entendo então por que não o liberta. — Eu não consigo! Sinceramente! Já tentei várias vezes, mas não adianta. É como se todos os meus poderes estivessem presos naquela árvore com o velho. Não pode imaginar meu sentimento de culpa! — Dane-se — disse Fay. — Dane-se você e seu sentimento de culpa. — Levantou-se de novo e apanhou um prato de biscoitos na despensa. — Vou ver televisão. Esqueça a sua culpa, 174

Viv, e sirva-me uma xícara de chá. Talvez eu tente conjurar uma visão do nosso Arthur depois da novela. Até lá, fiquem calmas, todas vocês. — Deu uma dentada em um biscoito redondo, coberto de creme. — Isso não é maneira de falar conosco! — protestou Gwen, que parecia haver pego com Vivian a doença do orgulho ferido. Enquanto Vivian se afastava choramingando para colocar a chaleira no fogo, a antiga Rainha de Camelot continuou a recriminar a amiga. — Nem parece que somos todas rainhas. Você nunca usou palavras tão grosseiras em Cornwall. Tremo ao pensar no que a imprensa diria de você: o estilo de uma empregada doméstica e o vocabulário de um estivador. Ui! — Você é mais importante que Gwen e eu, Fay — observou Vivian timidamente de perto do fogão. — Nunca fui uma rainha de verdade, a menos que você considere as lisonjas do pobre Merlin, e Gwen só se tornou Rainha de Camelot pelo casamento, enquanto você... Para o inferno com você, Gwen, Camelot, Merlin e toda a imprensa! Rainha uma ova! Preferia jamais ter ouvido falar no maldito reino do Ar e das Trevas! — Morgan le Fay ficou vermelha com o rompante e começou a mastigar um biscoito de creme. Gwen se encarregou de conduzi-la até uma cadeira, a Senhora da Pia de estender a mão e dar-lhe um tapinha nas costas e a pequena Vivian de oferecer-lhe um copo de limonada gelada. Estavam tão preocupadas em acalmá-la que não perceberam quando a porta dos fundos foi aberta nem ouviram o ruído metálico da cota de malha roçando na armadura. Na verdade, só se deram conta de que Arthur estava de volta quando ele se sentou pesadamente em uma das cadeiras. Fay se recuperou rapidamente da surpresa. — Onde você esteve? Olhos frios, imperturbáveis, da cor de aço recém-forjado, encontraram os seus. Arthur respirou fundo, apalpou a bainha vazia que levava na cintura e resolveu não dizer nada. Em vez disso, pegou um biscoito e colocou-o inteiro na boca. Gwen foi a segunda a se recobrar do choque. — Querido! — exclamou, abrindo os braços para receber o 175

esposo, há tanto tempo adormecido. A água formou um redemoinho quando a Senhora estendeu entusiasticamente a Excalibur para fora da pia. Arthur não fez menção de se aproximar nem da mulher nem da espada. Ficou onde estava, mastigando o biscoito com ar pensativo. A Senhora manteve o gesto por algum tempo e depois inclinou a lâmina da direção do antigo amo, primeiro de forma interrogativa, depois de um jeito convidativo, depois com insistência. Foi inútil. — Nada feito, não é, Artie? — disse Fay, com um riso irônico. Levantou-se e uma aura de magia a envolveu. O eterno cigarro havia desaparecido, juntamente com o velho vestido caseiro que Gwen tanto criticava. Suas formas ainda atraentes eram realçadas por um vestido de seda escarlate enfeitado com pérolas. Quando desamarrou o lenço que lhe prendia os cabelos, uma cascata de negras madeixas despencou até os seus pés. O rosto não parecia mais cansado, mas resplandecia com o brilho suave de uma estrela. — Não — respondeu Arthur, com uma voz rouca pela falta de uso. — Qual é o problema desta vez? — Eu despertei, mas o sonho ainda dorme. — O Rei dos Bretões limpou a barba suja de migalhas de biscoito com as costas da mão. — Meu povo está surdo ao grande chamamento. Eles se recusam a me seguir. Eles nem me conhecem! Morgan le Fay fez um muxoxo. — A culpa deve ser da falta de aquecimento central e do excesso de comidas que engordam. Não ligue para isso, Artie. Um dia eles estarão preparados para você. Os olhos de Arthur brilharam. — Quando será esse dia? Cedo ou tarde? Tarde demais ou nunca? — Ora, benzinho, tenho certeza de que quando voltar, ainda haverá uma Inglaterra para você governar. Confie na velha Morgan. — Fay colocou o braço nos ombros de Arthur. Para isso, teve que ficar na ponta dos pés, o que pareceu deixá-la surpresa. — Ele cresceu — disse Vivian com sua voz de soprano. — É o que costuma acontecer com as lendas — observou 176

Fay, por cima do ombro, enquanto levava Arthur de volta para o quarto. Os dois entraram e ela fechou a porta. Vivian estava colocando mais uma chaleira de água para ferver quando Fay apareceu de novo, sozinha. O vestido estava amarrotado e o cabelo, despenteado. Gwen fez uma careta. — Que é que você andou fazendo com o meu Arthur? — Muito mais que você, provavelmente. Como você espe­ rava que eu pusesse de novo o pobre diabo para dormir? Leite quente? Nembutal? Outra ferida mortal? Cristo, eu preciso de um cigarro! — Morgan le Fay cruzou as mãos no peito e foi recompensada com o reaparecimento da roupa velha, incluindo o lenço na cabeça. Tirou do bolso um maço de cigarros John Player e acendeu um deles, com ar satisfeito. Deixou-se cair em uma das cadeiras da cozinha, e Vivian colocou uma xícara fresca de chá à sua frente. Bebeu um gole enquanto as companheiras a observavam gravemente. — Não sabiam quem ele era? — disse Vivian, a primeira a quebrar o silêncio. — Olharam para ele e não o reconheceram? — De repente, seus olhos míopes ficaram cheios de lágrimas. Fay deu de ombros. Um silêncio trágico, pesado, desceu sobre a cozinha. As outras tornaram a sentar-se. Gwen suspirou várias vezes. Vivian começou a arrancar distraidamente as pestanas. A Excalibur caiu da mão da Senhora e bateu no chão com um ruído metálico. Fay levantou a cabeça e observou que as unhas da Senhora estavam todas roídas até o sabugo e as cutículas precisavam urgentemente ser aparadas. — Não se preocupem, meninas — disse Fay, tentando animá-las. — Um dia vai chegar a hora e estaremos aqui para fazer a nossa parte. De cabeça erguida... — Olhou para a Senhora. — Menos ela, é claro. — Fay estalou os dedos e uma bola de fogo azul apareceu diante de Vivian, deixou cair um baralho novo e desapareceu. Vivian deu um sorriso amarelo e rasgou o invólucro. As molas da cama rangeram. Vivian ficou imóvel. — Eu ouvi alguma coisa. — Ora, cale a boca, Vivian... e comece a dar as cartas. 177

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O aço enferrujado, corroído, era mole mas afiado como uma faca. A coisa estava a uns dez metros da praia. Eu não queria realmente descer. Nem mesmo precisava olhar para me convencer. Sabia a que distância estava. Comecei a ensaiar o que diria a tia Sara: “Logo que cheguei naquela altura, tive de continuar. Era longe demais para descer e voltar”, ou “Eu estava querendo apenas subir um pouco, mas, depois, fiquei preso ali.” Sacudi a cabeça. Não ia dar certo. Ela nunca me dissera para não ir até ali, mas os destroços eram o tipo de coisa em que Meninos de 11 Anos Não Mexem. De qualquer modo, não era meu lar. Estiquei o pescoço, tentando ver por cima do casco o tombadilho superior. Eu vira umas duas semanas antes os restos do naufrágio com ajuda do binóculo de tia Sara. Bem, Cinzento o vira e o apontara para mim. Eu precisara de binóculo, ele não. Os olhos dele eram muito melhores do que os de gente. Eu precisara de umas duas semanas para descobrir como chegar até ali — passando por duas pontes condenadas e um trecho pantanoso e lamacento. Era uma grande barca, de uns quarenta metros, no mínimo. Seu nome fora Hesperus. Descobri isso com meu primo Jack, antes que ele chegasse à conclusão de que eu era jovem demais para merecer uma conversa. Examinei-a. Os pontões haviam naturalmente arriado e apodrecido — os restos estavam ali há uns cinco anos. Vi tubos partidos por toda parte, como se fossem serpentes. Eram as peças usadas para encher os pontões, acho. Resquícios de tinta azul e branca apareciam em partes da carcaça e, nos lugares onde ainda existiam as guarniçôes de bronze, não de todo corroídas e destruídas pelo sal, podia-se ver ainda um leve brilho amarelo. A barca devia ter sido uma beleza, transportando passageiros e carros de um lado a outro do porto, talvez apitando para alguns dos navios maiores que iam subir a costa até o Maine ou mesmo cruzar o oceano para a Europa ou África — o tipo de coisa que eu lera que acontecia na Terra, desde que fora bem pequeno. Ouvi uma espécie de sussurro vindo da praia e olhei para baixo. Era mamãe. Na areia, olhava para mim, olhos apertados e 179

formando rugas nos cantos, do jeito que as mães ficam quando começam a preocupar-se. Vocês sabem como é. Fizera isso mesmo quando em vida. — Você se preocupa demais, mamãe — falei para ela. Olhei para cima outra vez. Não era tão longe assim. Voltei os olhos de novo para o chão a fim de dizer-lhe, mas ela desaparecera. Desejei que ficasse parada em um lugar por algum tempo. Mantive o equilíbrio segurando-me à borda de uma chapa empenada do casco. A beira era estreita, e apodrecida como um tronco velho, mas me levou por cima das carcaças dos pontões. O vento soprou, vindo da terra. Atravessou minha jaqueta de um lado a outro. Frio. Arrepiei-me como se já estivesse morto — da maneira como os mineiros do pântano tremem quando voltam, tossindo, para casa. O lar, Isso era alguma coisa. Aquele devia ser agora o meu lar. Durante toda minha vida ouvira dizer como seria bom viver na Terra. Bem, no que me interessa, podiam ficar com a Terra. Para mim, não valia nada. O casco superior não estava se desmanchando como as carcaças, mas ficara escorregadio com a água graxenta do porto. Eu ouvira falar na Limpeza do Porto de Boston, mas não acreditava naquilo. A barca naufragada tinha duas pontes de comando, em torres separadas. Um dos portões da entrada de automóveis caíra para dentro e o outro estava preso por uma única enferrujada dobradiça Era tão pesada que nem se movia com o vento. Mas, às vezes, produzia aqueles estalos que ecoavam e pareciam tiros disparados muito longe. Podem acreditar. Eu sei o que é som de tiros. O interior da barca era uma caverna vazia que cheirava como o mar em maré baixa. Vocês conhecem o cheiro? Eu não conhecia, na ocasião. Parece com o de alguma coisa que morreu e foi conservada em salmoura de gasolina. Subi a escura escada que ia da área reservada aos automóveis até o tombadilho dos passageiros. Dali podia ver Boston, os domos parecendo cristais azuis esfumaçados como os que mamãe guardara em uma prateleira em casa. Não sei o que aconteceu com eles. Devem ter sido leiloados para pagar a minha passagem até ali. De qualquer 180

modo, arranha-céus lembravam apenas um feixe de gravetos. Dava para ver os barcos bem em frente de Revere. Fiz sombra para os olhos com a mão mas não consegui ver o de tia Sara. No lado dos destroços voltado para a terra, encontrei uma pequena e estreita escada que parecia subir até a ponte de comando. Balançou um pouco quando comecei a subir, mas pensei que agüentaria. A meio caminho, a escada mudou de posição. Parei. — Não faça isso comigo — falei baixinho. — Já tenho problemas demais. A escada rangeu novamente — Pedi que não fizesse! Os velhos rebites saltaram do casco. Agarrei-me com toda força que tinha. Lenta, como num sonho, a escada afastou-se do casco, e comecei a cair. Soltei um berro. A escada parou no meio do ar. Engoli o resto do berro e olhei para baixo. Vi Cinzento ali, dois braços segurando a escada, quatro segurando o casco e os dois restantes prontos para me receber. Sorri e relaxei. — Ei, você ai! — gritei para ele. Cinzento empurrou a escada de volta contra o casco. — Ira, desça. — Quero dar uma olhada na ponte de comando. — Não é seguro. — Você está aqui, não está? E não vai deixar que nada me aconteça. Cinzento pensou por um momento. Ele não se move absolutamente quando faz isso. Ficou simplesmente imóvel como uma grande pedra, cinzenta, coriácea. — É verdade. Suba até o alto da escada e fique na beira. Irei depois. Subi até o alto e me afastei da borda. Cinzento arrancou inteiramente a escada e jogou-a por cima da amurada. Em seguida, saltou os cerca de dez metros até o tombadilho superior, onde se sentou para não bater com a cabeça no teto. Quando ainda era vivo, papai descrevia Cinzento da seguinte maneira: — Bem, ele é enorme, com quase três metros de altura e 181

pesa um quarto de tonelada. A gente não pode pensar nele como num todo, mas apenas em peças. Por exemplo, ele tem corpo de urso, mas recoberto com as placas de couro de um rinoceronte. Seus membros são grossos como pernas de elefante, rombudos nas extremidades, mas talvez com uma dezena de pequenos dedos, tão duros e flexíveis como pernas de aranha. A cabeça é proporcional ao resto, com dois olhos muito separados e uma boca pequena no centro, como o focinho de um búfalo. Há caroços e excrescências em volta de seu rosto que não pertencem a nenhuma criatura da terra. “Não é feio... Na verdade, é até bonito... mas estranho. Não sei se ele é estranho ou não... Cresci com ele, e sempre me pareceu normal. Mas aquela parte sobre os animais está correta. Eu mesmo conferi. — Esta relíquia é perigosa — retrucou. — Gostaria que você tivesse me chamado. Desviei a vista e me senti um pouco culpado. — Eu queria vê-la sozinho. Cinzento ficou em silêncio durante um momento. — É isso. Esqueci que você está ficando mais velho. Tem que utilizar sua própria capacidade de julgamento, claro. Devo ir embora? Encostei-me nele. Durante um minuto, senti-lhe o corpo frio e rijo, mas, logo depois, ele se tornou quente e macio. Cinzento era todo o lar de que eu precisava. Isso era bom, pois eu não tinha mais lar. — Não, será mais divertido tendo alguém com quem conversar. — E tia Sara não poderia gritar comigo. — Vamos dar uma olhada na ponte. As janelas estavam quebradas e havia orifícios de diversos tamanhos nos painéis de instrumentos. Cinzento ficou calado, enquanto eu olhava tudo, mas me seguiu, descendo para o outro lado dos compartimentos de passageiros. Ali o teto desmoronara e o espaço aberto aparecia, ensolarado. Por todo o chão vi pedaços de metal, arame e louça. Velhos colchões e trapos estavam empilhados junto às paredes. — Parece uma explosão de dinamite em uma fábrica de colchões — comentei, e soltei uma pequena risada. 182

— Festinhas de adolescentes, talvez. — Cinzento apontou para uma das paredes. — Olhe para as pichações. Inclinei a cabeça, mas não estava muito interessado. Era horroroso o cheiro ali, azedo, como de amônia, ou de limão. Nunca sentira um cheiro igual àquele e fiquei curioso. Trapos cobriam um molho de correntes num canto, e o cheiro parecia vir dali. Estendi a mão para a pilha. Cinzento me deteve. — Espere um momento — disse ele. Parei. Ele nunca fazia nada sem razão. Ele é esquisito dessa maneira... Não como pessoas, entenda. Ele sempre sabe o que faz. Bem devagar, afastou os trapos. No centro deles havia um ovo, do tamanho de uma bola de basquetebol. — Ahn. — Olhei fixamente para o ovo. Era cinzento, enrugado, com manchas amarelas e vermelhas nos lados. — Que tipo de ovo é este? — perguntei, encostando-me no braço de Cinzento. — Não tenho a menor idéia. — Poderia ser de qualquer coisa? Cinzento assentiu com um movimento de cabeça. — Poderia ser de dragões. Ou de grifos. — Cinzento simplesmente me olhou. Sorri para ele. — Tudo bem. Poderia ser de alienígenas dos quais ninguém nunca ouviu falar. Poderia nos levar a qualquer lugar. Qualquer lugar diferente. Melhor. — O universo é um lugar muito grande. O ovo poderia ser de inúmeros lugares. — Podemos chocá-lo? Cinzento recolocou os trapos no lugar e depois voltou-se para mim. — Se você quiser. O sol estava baixando. Eu sentia frio no vento. O frio poderia ser ruim para o ovo. Dragões. Grifos. Cinzento nunca dissera que eles não existiam. Apenas que eram difíceis de encontrar. — A gente deve levá-lo para o barco de tia Sara? Vai ficar frio aqui. Cinzento ficou calado. — Foi posto aqui de propósito. Alguém pensa que este é o melhor lugar para ele. 183

Aquilo tinha lógica. — Amanhã volto aqui para dar uma olhada. Cinzento levantou-se. — Está ficando tarde. Devemos voltar. — Tudo bem. Ele me ajudou a descer pela amurada e seguiu ao meu lado. — Ira — falou de repente — Sim? — Deixe-me acompanhá-lo quando vier examinar o ovo. Encolhi os ombros. A gente pode confiar em Cinzento. Pode confiar nele em tudo. — Certo. — Andamos um pouco mais. Senti frio e cansaço. — Você me carrega? Cinzento não respondeu, levantou-me do chão e manteveme junto da barriga com o conjunto intermediário de braços. A barriga dele tornou-se quente, e fiquei sonolento. Durante um segundo, pensei que podia ouvir minha mãe, mas aquilo era apenas uma ave noturna. — Mamãe esteve me olhando enquanto eu subia pelos destroços. — Disse alguma coisa? Dei de ombros. — Não. Estava apenas preocupada, — Gosto da sensação do braço de Cinzento, dos músculos sob o couro grosso. Como de elefantes ou rinocerontes. Como disse antes, eu vira fotos deles. — Sinto falta deles. — Eu, também. Eu podia ver papai andando ao lado de Cinzento. Depois, escureceu demais, mas eu ainda podia ouvir o som de seus passos. Senti-me triste, sonolento, com vontade de chorar. — Papai? — Não acho que ele tenha me ouvido, mas, pouco depois, ele começou a cantar: Sonhei com Joe Hill noite passada, vivo como você e eu. Eu disse: Joe Hill, você está morto há dez anos. Eu nunca morri, respondeu ele. 184

Ele cantava isso para mim à noite, quando eu não conseguia dormir. Cinzento permaneceu calado. Aconcheguei-me mais em seus braços. Senti-me aquecido e seguro, e achei que não devia chorar ainda por algum tempo. Logo depois, adormeci. Droga. Sara Monahan odiava barcos. Barcos balançavam, jogavam, mexiam-se com os açoites do mar. Barcos eram sujos. Barcos fediam. Desligou o motor do pequeno barco de fundo chato e deixou-o deslizar os últimos cinco ou seis metros até a doca. Deu tempo suficiente para ela acender um cigarro, tossir, pegar o cabo, jogá-lo em volta do cunho na doca e atracar o barco. Nem pensou no que fazia. Sara Monahan estivera ligada a barcos durante toda sua vida; a princípio ao nascer, à véspera do craque da Bolsa em 2005, época em que seu pai gastara todas suas economias no barco, na esperança de que fosse mais barato de manter do que uma casa. Depois, crescera e se fizera moça na cidade inundada de Hull, no meio da esqualidez daquele lugar. Ainda estremecia quando se lembrava daquilo. Nunca culpou a polícia por tê-la bombardeado, mas apenas o pai porque se recusou a ir embora dali e a mãe por ter ficado ao lado dele. Eles nunca conseguiram sair daquela tempestade de fogo. Sara arrastara Roni, que chorava e se lamentava, até o barco e dera partida ao velho motor, rezando para que não parasse e as tirasse dali justamente à frente dos caças da polícia. Durante quase um ano, nos campos de refugiados, Sara e Roni haviam lido as listas de baixas, apenas para se certificar. Nada. Boston que se danasse. E a polícia que se danasse, também. Haviam conseguido chegar a Revere. Sara dera um jeito de sobreviver, fazer os exames, receber certificados de soldadora e começara a trabalhar na montagem de armações de aço na nova febre de construções. Roni estudara muito para entrar na marinha mercante e emigrara logo que passara nos exames. Mal haviam-se correspondido nos últimos 14 anos. 185

Meu Deus! Ela ergueu bruscamente a cabeça. Quase noite. Jamais chegaria a parte alguma se continuasse a pensar assim. Sentiu o cheiro de seu cabelo chamuscado e, na jaqueta, o de metal queimado. Um chuveiro. Pensou em Roni e no filho de Roni: Ira. E na babá de Ira: Cinzento. Gemeu e subiu para a doca. A doca balançou... Deus, como odiava coisas que balançavam! Subiu e entrou pesadamente no Hercules. Jogou a máscara numa cadeira, encostou-se no casco, e esperou um momento para a vista acostumar-se à escuridão. Ninguém ali. Sabia-se quando um barco estava vazio. Pela maneira como ele se mexia. Encontrou uma ensebada nota do filho, Jack, dizendo que fora passar a noite na casa de Kendall. Maravilhoso. Em primeiro lugar, um longo gole e, depois, um banho de chuveiro. Tossiu novamente. Uma fotografia na parede atraiu-lhe a atenção. De Roni e do marido, Gilbert, no dia do casamento. Abriu a garrafa e olhou durante um longo minuto para a foto. Gilbert era um pouco gordo e usava óculos. Ergueu a garrafa, tomou um longo gole e voltou a olhar para a foto. — Tenho um gosto melhor em matéria de homens do que você, queridinha — disse a Roni. — Olhe só para este tipo. Já vi caras melhores em portas de cozinha. Mas o meu ficou, pareceu que a irmã respondia. Não me deixou grávida com um filho. Onde é que está Mike agora? — Só Deus sabe, Roni. — Sara bebeu um pouco mais na garrafa. — Mas, quando ele tocava na gente, a gente se lembrava. Você poderia dizer o mesmo? Roni não respondeu. Ainda bem. Se Roni ainda pudesse falar, a primeira coisa que lhe perguntaria seria onde ela arranjara Cinzento. — Sara? — Não estou aqui. — Olhou para Roni. Como é que você pode parecer tão miseravelmente feliz? Você está morta. — Sou eu, Sam. Sam? — Sam! — Tampou a garrafa e olhou para o tombadilho. 186

Ali estava ele, pequenino, careca e barbado. — Diabos o levem, Sam. Não vi você nem uma vez em todo este verão. Sam sorriu alegre para ela. — Estive fora, no George’s Bank, pescando. Cheguei esta manhã. Vim aqui para ver como você está passando. — Nós estamos bem. — Agarrou-lhe a mão e puxou-o para dentro. — Você chegou justamente a tempo de evitar que eu bebesse sozinha. Ele arqueou uma sobrancelha. — Uma jovem mulher como você, bebendo sozinha? Que vergonha. Vou ter que ajudar. Sou um homem civilizado. Mas vou precisar de uma xícara para beber. — Deus o abençoe. — Sara soltou uma risada. Sentaramse à mesa da cozinha, a garrafa entre eles. Sam fez um gesto de cabeça na direção da doca. — Onde está todo mundo? Todos os embarcadouros estão vazios. Sara encolheu os ombros. — Procurando trabalho, a maioria. Tive sorte em arranjar um emprego na cidade. A maioria foi para Marblehead ou Quincy... surgiram novos prédios, algum trabalho nas docas. — Sara estava meio tonta com os goles que tomara. — É bom revêlo. Passei sozinha a maior parte deste verão. Eu e as crianças. Mais uma vez, aquela sobrancelha arqueada. — Crianças? Você andou fazendo traquinadas? Ela deu um largo sorriso. — Nem pretendo. — Depois, lembrou-se e o sorriso deixoua. — São más notícias, Sam. Aconteceu enquanto você estava viajando. Minha irmã e o marido dela... Bem, estiveram metidos em uma daquelas arruaças de sindicato, em Maxwell Station. — Sara sorriu sem querer e encolheu os ombros. — O filho deles e a... babá, acho... vieram morar comigo. Sam segurou-lhe as mãos. — Sara. Que pena. — É, mesmo. — Ela voltou à cozinha. — Isso acontece o tempo todo, certo? A outras pessoas. — Sacudiu a cabeça. — Não posso ainda acreditar nisso, sabia? Passaram-se meses, mas continuo a esperar que eles apareçam. — Ergueu a mão e 187

deixou-a cair, impotente. Deu de ombros novamente, olhou-o, segurou-lhe as mãos com força. — Que bom revê-lo, Sam. Voltaram à garrafa. Sam olhou em volta. — Onde estão eles? Sara cocou a cabeça. Que se danasse o banho de chuveiro. Conversar com Sam valia aquele banho. Acendeu um cigarro na guimba do outro. Sam observou-a, mas sem fazer comentário. — Jack foi passar a noite na casa de Kendall. Ira saiu com Cinzento. — A babá? Ela soltou uma risadinha. — Isso mesmo. Três metros de altura e parece um rinoceronte com oito pernas. Minha irmã arranjou uma babá alieníge­ na para Ira. — Meu Deus! Ele parecia uma coruja, a luz do anoitecer refletindo-se de seus grandes olhos. — Meu Deus! — repetiu ele. — Deve ter sido uma loucura em Maxwell Station. — Loucura suficiente para matar os dois. — Não fale assim. Ela pegou a garrafa e acabou com o resto de rum. — Você não sabe como é. Eu... Roni era minha irmã. Foi embora e a gente não teve muito contato, mas, ainda assim... Bem, foi embora e acabou sendo morta. Sam encolheu os ombros. — A situação ficou ruim por lá. Ouvi dizer que a polícia usou um gás que estourava os pulmões... Sara continuou como se não tivesse ouvido: — Bem, recebi aquele telex estúpido do pessoal de Maxwell Station, dizendo que Gilbert e Roni haviam morrido nos “distúrbios”. Tive que mandar buscar os corpos. Assinei o recibo deles como se fossem uma droga de encomenda, no correio. E também de Ira. E de Cinzento. E depois, o enterro. — Cinzento muito alto, acima dos pranteadores, parecendo o tempo todo que a estava censurando. Ira encostado nele, como se à procura de consolo. Lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. — Por mim, 188

eu o teria mandado embora. Mas ele está no testamento. Você compreende uma coisa dessas? Tenho de conservá-lo ou não recebo a herança de Roni e Gilbert. — Encolheu os ombros. — Não é grande coisa, afinal. Mas é alguma coisa. Sam segurou-lhe a mão por cima da mesa. Ela parou, como se tivesse levado uma bofetada. Do que é que estou falando? Sorriu, embaraçada, e sacudiu a cabeça. — Estou um pouco bêbada, Sam. — Psiu, Sara. Está tudo bem. De repente, ela percebeu que estava chorando e enxugou o rosto com as mãos. — Meu Deus, Sam. Desculpe. Sam, nesse momento, estava na escuridão. Ela só podia ver o leve brilho de seus olhos. — Está tudo bem. Ficaram calados durante um longo minuto. Sara puxou a mão. — Sabe alguma coisa sobre alienígenas, Sam? — Nem de longe. Ela levantou-se e encheu dois copos de soda. Já haviam bebido o suficiente, por ora. Sam não protestou. — Bem — começou ela, tomando um gole. As bolhas fizeram-lhe cócegas no nariz e teve que parar para não espirrar. — Cinzento é um alienígena. Não consegui descobrir muita coisa sobre sua raça. Dizem que são grandes trabalhadores, mas não há muitos deles por aqui. Não há trabalho suficiente, acho. Tudo que sei sobre Cinzento é que Roni e Gilbert o encontraram no espaço e que pertencia a eles. Sam deu de ombros. — Não sei nada sobre isso. Mas há muitos alienígenas em Boston. De qualquer modo, todos eles foram liberados pelas autoridades e considerados seguros. Cinzento deve ter sido também investigado e liberado. — Acho que sim. Mas eu gostaria de saber mais a respeito dele. Sam sorriu. — Roni confiou o filho a ele. Isso significa alguma coisa. Sara concordou com um aceno de cabeça. 189

Sam abriu a boca para falar, mas os dois ouviram passos pesados na doca. Logo depois, o Hercules estremeceu quando Cinzento subiu a bordo. Ele trazia Ira, adormecido. O camarote era tão baixo que precisou passar Ira para dois conjuntos de braços acima e entrar sobre os três inferiores. — Ele está dormindo — disse, baixinho. Sara inclinou a cabeça. A garrafa estava à vista, e se sentiu culpada, como sempre acontecia na frente de Cinzento. Quando ele levou Ira para o quarto das crianças, ela abriu a vigia e jogou a garrafa na água. Aquilo era estúpido, mas a fazia sentir-se melhor. Cinzento voltou à pequena cozinha. — Há alguma coisa que queira que eu faça? — perguntou ele em um ribombo baixo. — Não — murmurou Sarah. Ela estava sempre sussurrando. — Não — repetiu, a voz mais alta. — Onde estiveram o dia todo? — Examinando uns restos de naufrágio perto daqui. Destroços. — Meu Deus! Estiveram examinando o Hesperus? Aquela coisa tem mais de vinte anos. É perigosa. Eu não deixaria que meu filho fosse lá. Nem Ira. Afaste-se daquela coisa. Ouviu o que falei? — Ouvi o que você disse. — Cinzento inclinou lentamente a cabeça e saiu. Ouviram-no dirigir-se à proa e deitar-se. Sam e Sara entreolharam-se durante um minuto ou mais. — Ah, entendo — disse Sam. — Também não é diferente de qualquer coisa que Jack não fizesse. — Eu sei. Mas com os dois lá fora... É de assustar. Tem sido assim durante todo o verão. — Roni, pensou ela. Pobre Roni, embora não soubesse bem por que sentia pena de Roni, se porque estava morta ou porque vivera com Cinzento. — Escute — começou Sam —, minha doca está cheia de estrangeiros. Gente de Nova York e Jersey. Deixe eu vir para cá... Você não ficaria tão sozinha e eu não viveria cercado de estranhos. Ela fitou-o. Aquilo era como se fosse um hálito de lar. 190

— Sam, eu gostaria mesmo disso. — Ótimo. Venho amanhã. — Levantou-se. — Preciso ir... Amanhã começo num novo emprego. Ela baixou a cabeça sonolenta, levantou-se e seguiu-o até a doca. Disse-lhe adeus em voz alta. Ao voltar, a lua já nascera. Viu Cinzento, escuro e imóvel, encostado no tombadilho iluminado pela luz prateada, os raios de luz como se fossem uma teia de aranha. Passou, e ele não se mexeu. Quando acordei, mamãe estava sentada ao lado de minha cama. Tocou-me a testa e acordei completamente. — Oi — disse ela, baixinho. — Como você está se sentindo? — Sozinho. Saí para ver os restos do naufrágio por causa disso. Você ficou muito preocupada? — Não muito. Cinzento estava lá. — Isso mesmo. — Esfreguei os olhos. — Você vai voltar logo? — Não posso voltar. Você sabe disso. — Mas você está aqui, não está? Ela sorriu mas não respondeu. Sorri também, um pouco. Não podia evitar, quando ela fazia aquilo. — Tenho saudade de você. Achei que queria chorar novamente. — Também sinto saudade de você. Está sendo um bom menino, como lhe pedi? Como vai Cinzento? Eu não tinha muita certeza, de modo que apenas encolhi os ombros. — Você sabe como ele é. É difícil saber o que ele está pensando. — O que é que você acha que ele está pensando? — Não sei. — Dei de ombros novamente. — Acho que ele não gosta de tia Sara. Ela não gosta dele. — Oh. — Mamãe pareceu pensativa. — Não se esqueça de cuidar de Cinzento. — Mamãe — respondi, sorrindo —, Cinzento é que cuida de mim! Você é que precisa voltar para cuidar dele. 191

— Eu lhe disse. Não posso. Você cuida dele? Não parecia que essa fosse a maneira como deviam ser as coisas, mas eu estava disposto a aceitar: — Tudo bem. Ela desapareceu, e tia Sara bateu à porta. — Querido? — Abriu a porta e olhou para dentro. — Você estava conversando com alguém? — Tossiu igual à mamãe. Durante um momento, foi quase como se mamãe tivesse voltado para sempre. Mas, depois, senti o cheiro de fumaça de cigarro, em vez do agradável cheiro de pântano, e reconheci que era apenas tia Sara tossindo por causa daquilo, e não mamãe tossindo como fazia pouco antes de ir dormir, lá em casa. Não quis falar com ela naquele momento. Então fingi que estava dormindo. Notei que ela me observou durante muito tempo. Depois, fechou a porta e foi dormir. Jack chegou cedo na manhã seguinte, antes de ela sair. Era um garoto vivo, rápido de movimentos e que se safava de tudo com uma piscadela e um sorriso. Não se preocupava com nada. Observou quando ele entrou na doca, em direção ao Hercules, assoviando. Não pôde deixar de sorrir. Mike fora igualzinho a ele: o mesmo jeito de irlandês bonitão, um sorriso rápido sempre nos lábios. Quando ele a tocara... Sacudiu a cabeça. Mike fora embora há 14 anos. — Ei, mãe. — Ei, garoto. Como vai Kendall? — Numa boa. Alguma coisa por aí pra gente comer? Ela respondeu com um aceno. — Cinzento ainda está fora? — Não fui ver ainda. Jack mexeu no guarda-comida e achou uma maçã. — Quando é que a gente vai se livrar daquele monstro? — Não fale dele assim. Jack olhou para o teto, rolando os olhos. Sara riu e deu uma espiada no relógio. — Tenho que ir trabalhar. Cuide-se, sim? — Pegou o capacete de soldadora no gancho e desceu apressada a doca. Ao chegar ao barco, houve uma erupção de água nas proximidades. 192

Abafando um grito, recuou. Cinzento segurou-se à doca e a encarou. — Desculpe. — O que está fazendo aqui? — indagou ao entrar no barco. — Consertando a doca. Sara deu partida ao motor e dirigiu a toda velocidade para Boston. O prédio do Citibank não estava ainda nem pela metade. Havia mais trezentos andares para construir. O vento uivava pelas vigas duplo-tê como se fosse um lobo. Sara sorriu enquanto andava por cima das longarinas até o canto onde deixara o maçarico. Sobre eles, o guindaste agachava-se como se fosse uma aranha. A estrutura servia ao mesmo tempo como grua, lugar de descanso e espinha do prédio. Tão logo ficasse pronto o esqueleto do prédio, a parte superior do guindaste — cabine, polias e engrenagens — seria desmontada e levada para outro canteiro de obras. A estrutura do guindaste permaneceria para sempre parte do prédio. Sua parte na obra, prender e soldar nos seus respectivos lugares as vigas duplo-tê acabaria dentro de um mês: o aço só era usado até o 150º andar. Daí para cima seriam usados compostos. Ela sentia-se bem ali em cima, construindo o esqueleto do prédio. Construção e demolição vinham acontecendo em Boston desde sempre. Fitzpatrick, o chefão do sindicato, era o sétimo Fitzpatrick no sindicato dos metalúrgicos. Como é que uma pessoa deve se sentir assim?, pensou ela. O pai, o avô, todos os Fitzpatricks, recuando até a Guerra Civil. Talvez até mais longe. Era como uma grande corrente... Deus! Adoraria aquele sentimento, estar presa a uma família assim, ter irmãos, tios, irmãs... — Ei, Sara! Ficou tão espantada que quase perdeu o equilíbrio, coisa que não lhe acontecera nos últimos dez anos. Virou-se e viu Sam caminhando pelas longarinas em sua direção. — É este seu novo emprego?! — exclamou. — Pode apostar! — Mas que ótimo! Piscando, ele passou uma corda de segurança pelo canto mais distante. Fazendo o sinal de tudo bem com o polegar e o 193

indicador, Sam acenou e em seguida içou-se para a viga superior de apoio. Talvez a sorte estivesse mudando. Sara encostou-se num canto e olhou para Boston embaixo. Fazia um dia claro e ensolarado. A luz era quebrada, refratada e refletida por tantos prédios de vidro que se tornava difícil saber onde o sol estava, exatamente. Gostava daquela colcha maluca de espelhos em volta dela. Talvez Sam gostasse, também. Fitzpatrick berrou para eles e apontou para baixo. A primeira viga duplo-tê do turno estava sendo içada da rua. Homens armados com martelos pneumáticos estavam prontos para empurrá-la para dentro quando chegasse à altura deles. Sam dirigiu-se para a equipe do guindaste, onde ia trabalhar. Sara sorriu enquanto ele se afastava e bombeou o maçarico. Jack estava na cozinha quando acordei. Grunhiu qualquer coisa quando saí do quarto. Não gostava muito dele. Acho que ele sentia a mesma coisa a meu respeito. Ele me lembrava os filhos do diretor da escola, lá na minha cidade. Eles sempre davam a impressão de que podiam ter tudo que queriam. Andavam sempre limpos — ou se por acaso se sujavam, era com alguma coisa que saía com água. Nada como aquela coisa pegajosa e cinzenta que era o pântano em volta da estação. Era preciso álcool para tirar aquela coisa, mas ficava um cheiro que deixava a gente doente. Eles permaneciam nas calçadas de tábuas. Nós ficávamos no pântano. A coisa era assim. Só me lembro da Estação. Cinzento me disse que papai e mamãe estavam morando na Plataforma que gira na órbita de Maxwell Station até que cheguei aos dois ou três anos de idade, mas não conseguíamos trabalho suficiente. Foi nessa época que o pessoal da estação descobriu Cinzento. Ele e mamãe combinaram desde o começo — e papai, também. Não sei. Isso aconteceu antes de eu nascer. O negócio faliu quando eu nasci, e pouco tempo depois descemos da estação. Minhas primeiras lembranças são do pântano. Papai sempre dizia que aquilo era um lugar horroroso. E era, acho. A água o tempo todo, sanguessugas do tamanho da cabeça da gente e sempre prontas para nos dar uma mordida, se 194

descuidássemos. O ar também era diferente. Parecia que a gente nunca conseguia o suficiente para respirar — embora todo mundo dissesse que o ar era tolerável. Uma coisa a gente pode dizer sobre a terra: o ar é bom. Mas o lugar também era bom. No pântano, a gente podia se livrar das pessoas. Podia pescar e nadar. Era silencioso. Aqui há sempre aquele tipo de zumbido baixo que vem da cidade. De qualquer modo, Jack não me disse coisa alguma quando me levantei. Mal saiu do caminho quando passei ao tombadilho, à procura de Cinzento. Queria dizer a ele para nada contar sobre os restos do naufrágio. Cinzento é bom, mas não guarda segredo, a menos que a gente peça. Nesse sentido, é estúpido. Não o encontrei na doca, não o vi perto do Hercules, e então voltei para nosso alojamento. — Você viu Cinzento em algum lugar? — Esforcei-me para ser polido. Jack não respondeu. Abriu o refrigerador e tirou um pouco de leite. — Ouviu o que perguntei? — Ouvi. Não sou surdo. — Você o viu? Ele me fitou. — Não sei onde está aquele horror. Lá em casa, eu teria partido para cima dele, imediatamente. Mas, lá em casa, ninguém jamais pensou em chamar Cinzento de horror. Aquela não era minha casa. Nunca foi. Nunca será. Ele me olhou como se eu fosse um inseto. — Você é um horror, também. Por que não vai embora? Ahn? Merdinha. Quero minha droga de vida de volta. Vá embora... A gente vivia legal até vocês chegarem. Senti vontade de chorar. — Talvez eu vá — gritei, saí correndo do barco, cruzei a doca e entrei no pântano. Depois de algum tempo, comecei a andar mais devagar. Logo depois, não senti mais vontade de chorar. Aquilo, pelo menos, parecia mais com minha casa. Lembrei-me do ovo e comecei a andar na direção dos destroços do naufrágio. Já estava a meio caminho quando lembrei de minha promessa. Isto é, eu não dissera “Prometo”, mas continuava a ser 195

promessa. Era isso. Cinzento soubera o que quisera dizer quando me pedira, e eu soubera o que ele quisera dizer quando respondera. Parei no meio de um trecho de terreno fofo e sentei-me em uma pedra. Não tinha para onde ir. Sentia-me perdido e infeliz. Logo depois, papai chegou e sentou-se ao meu lado. Tive vontade de lhe dar um abraço, mas fiquei com medo de que ele desaparecesse. Ele não era tão sólido nisso como mamãe. — Acho que vou fugir — falei. Ele suspirou, inclinou-se sobre os joelhos e empurrou os óculos para cima, como sempre fazia quando estava pensando. Fez a mesma coisa naquela noite em que o chefe Skaldson disse que eles iam entrar em greve. — Você não pode abandonar sua família — falou. — Família! — Peguei um pedaço de pau e risquei o chão. — Eles não me querem. E eu não os conhecia antes deste verão. — Ainda assim, eles são sua família agora. A família tem de cuidar de você, agora que você não tem mais para onde ir. — Tossiu e desviou o rosto para cuspir alguma coisa no chão. Olhei para o chão. — Quero que você e mamãe voltem. — Levantei-me e afastei-me um pouco. — Por que você teve de ir e ser morto? — Aquilo precisava ser feito, Ira. Houve razões.. — Família! Você e mamãe fugiram e me deixaram com Cinzento. Família. — Ira... — Cinzento é toda a família que tenho. — Virei-me, e ele havia desaparecido. Não havia mais nada ali, apenas o vento — Sinto muito — falei, baixinho. — Não era isso o que eu queria dizer. — Esperei ali durante muito tempo, mas ele não voltou. Sam estava pintando o convés da frente quando ela atracou o barco na doca. — Ei! — gritou para ele. — Oi! — Sam debruçou-se sobre o corrimão. — Você vai ter um pequeno problema. Ela aproximou mais o barco para que ele pudesse falar em voz baixa. 196

— Com Cinzento? Ele sacudiu a cabeça. — Acho que não. Entre Jack e Ira. Ira saiu esta manhã, correndo como se o diabo estivesse atrás dele... zangado, entenda. Voltou há uma hora, o rabo entre as pernas. Garotinho triste. Não vi o grandão por aqui o dia todo. — Hummm. — Eu acho — olhou rápido para ela e de volta para a água, uma pequena careta embaraçada no rosto —, acho que Jack não gosta muito de Ira. Ela pensou nessas palavras. — Preciso ir para casa — disse Sara bruscamente. — E eu preciso pintar o convés da frente antes que fique frio demais para a tinta secar. — Deixou o corrimão. Sara ouviu-o assoviar baixinho uma música tranqüila e triste. Amarrou o barco e desceu a doca em direção à casa flutuante. Estava ainda a uma boa distância quando ouviu o som de uma bofetada e o choro de Ira. Jack gritava nesse momento alguma coisa ininteligível. Houve uma erupção de água perto do barco, e Cinzento subitamente apareceu em pé na doca. Ele se dirigiu para dentro da casa mais rápido do que ela jamais o vira mover-se. Sara começou a correr. Do convés, ouviu a voz de Cinzento: — Pare de falar assim. — Como assim, monstrengo? Ahn? — berrou Jack. Ela parou no lado de fora. Houve uma curta pausa. — Porque você está torturando alguém que ama — disse Cinzento. Não se ouviu som algum durante talvez um minuto. Em seguida, Jack começou a soluçar. Ela correu para dentro do barco. — O que está acontecendo? Jack correu para ela e enterrou a cabeça no corpo da mãe. — Ele o machucou? Jack! O que está acontecendo? Cinzento permaneceu imóvel. Ira olhou para Cinzento e, depois, novamente para Sara. Jack afastou-se da mãe. Ela viu a marca da bofetada em 197

um dos lados do rosto. — Foi Cinzento quem fez isso com você? — perguntou ela baixinho. Jack não respondeu. — Se você machucar meu filho — disse a Cinzento, a voz baixa e terrível —, se você tocar em meu filho... eu machuco você. — Fui eu — disse Ira, rosto branco mas calmo. Ela virou-se para Jack. — Isso é verdade? Jack confirmou com um movimento de cabeça. — Por quê? Ira enfiou as mãos nos bolsos e encurvou os ombros. — Ele chamou Cinzento de monstro. E não foi a primeira vez. Sara olhou para Ira, depois para Jack, e outra vez para Ira. Finalmente, virou-se para Cinzento: — Não se esqueça do que falei. — Eu sei — respondeu Cinzento. Cinzento e eu saímos no dia seguinte antes do amanhecer. Eu estava pronto para fugir de casa naquela mesma hora. Fiquei pronto para fugir logo depois do jantar, mas Cinzento disse que aquilo não era direito. Contei-lhe o que papai dissera, e ele disse que se lembrava dos três amores. Droga, disse eu, ele estivera me ensinando aquele troço alienígena desde que eu aprendera a falar. Você não deve abandonar sua família, dizia ele. Era esse tipo de conversa. Família. A caminho dos destroços do naufrágio, Cinzento não falou nada. Eu não sabia o que ele estava pensando, mas tinha certeza de que pensava seriamente a respeito de alguma coisa. Tive o palpite de que era sobre Sara e Jack. O ovo crescera quase o dobro do tamanho e as manchas haviam desaparecido. Independente do que fosse, tinha de ter dentro algo melhor do que aquilo. Comecei a pensar no que poderia ser. Cinzento não ajudou. Sequer quis dar um palpite sobre o que era. Sempre fico revoltado com esse jeito dele, de nunca querer opinar sobre coisa alguma. Só fala quando tem certeza, mas, nesse caso, onde está a graça? 198

O ovo estava ainda mais bonito nesse momento, com pintas douradas e prateadas, e o cinzento começara a passar para azul-claro. O que quer que estivesse ali dentro devia ser lindo, também. Eu continuava a pensar em grifos e dragões, mas não era nenhum deles; devia ser alguma coisa estranha e fora do comum. Comecei a pensar em vendê-lo. Com o dinheiro, quem sabe, a gente podia comprar uma passagem para algum lugar qualquer e ir embora dali. Até mesmo a Maxwell Station era melhor do que aquilo. Ajudei Cinzento a recolocar os trapos sobre o ovo. Em seguida, sentamo-nos à borda dos destroços e ficamos olhando para o oceano. — Ainda quero fugir — falei. — Você quer sua família de volta — observou ele. Quase chorei, de tão solitário. Ele sempre fazia isso comigo, exatamente quando eu pensava que tinha todas as coisas acertadas, ele dizia algo verdadeiro como aquilo e botava tudo a perder. — Você se lembra dos três amores? — perguntou ele tranqüilamente. Eu conhecia aquilo desde que começara a falar. — De novo? Amor à família, amor ao trabalho, amor ao dever. — Exatamente — murmurou ele. — E sempre nessa ordem. Encolhi os ombros, com a impressão de que não ia gostar do que se seguiria. Ele, porém, não disse mais nada e simplesmente olhou para o mar, durante muito tempo. — Precisarei ir ao Miller’s Hall na sexta-feira. Quer ir comigo? — indagou finalmente. Ir ao Centro dos Alienígenas? Estava falando sério? — Claro. Eu estava doido para ir. Cinzento inclinou a cabeça, — Feito, então. Sairemos perto do amanhecer. Consegue acordar tão cedo assim? Ele podia apostar. Sam estava no alto da viga, uma corda de segurança partindo dele para o cabo do guindaste em cima. Era tão baixinho, 199

pensou Sara. Mas não parecia problema para ele usar o martelo pneumático de sete quilos. Erguia-o alto no ar e descia-o sobre a borda da viga. Ela retinia como um grande sino de aço e avançava mais meio centímetro entre as duas longarinas-guia. Era muito mais forte do que parecia. De repente ele sorriu, e ela sobressaltou-se, dando-se conta de como o estivera observando atentamente. — Ei, moça — chamou ele baixinho. Inclinou-se para trás sobre a borda da longarina, olhando de uma extremidade para a outra. Voltou a subir na viga, foi até a outra ponta e mais uma vez levantou o martelo. Sinos tocaram entre as torres. Sara acendeu um cigarro, observando as gaivotas fugirem em revoada embaixo. — Muito bem, examine sua ponta aí. Sara inclinou a cabeça, subiu para a borda da longarinaguia e mediu-lhe o ângulo. — Tudo bem aqui. — Solde aqui. Ela baixou a máscara e acendeu o maçarico. Três pontos de solda para prender aquela extremidade, levantou a máscara e foi por cima da viga até o outro lado. Mais três pontos de solda. — Desça para que eu possa fazer o resto — disse ela, sorrindo e puxando um trago do cigarro. Ele sorriu e saltou, em um passo de dança, de cima da viga, como se fosse um duende. Mais tarde, ao meio-dia, Sam trouxe a marmita para junto dela e almoçaram juntos, observando a luz do sol refletir-se entre os prédios. — Sabe do que eu gosto nas sextas-feiras? — Não. O que é? Ele esfregou contente as mãos uma na outra. — Dia de pagamento. Posso comprar o mundo. Ela riu. — Duvido. Não com esse salário. Sam deu de ombros. — Bem, é o meu primeiro dia de pagamento. — Olhou na direção do porto. — Que tal jantarmos juntos? 200

— Jantar? — Aquilo foi como se um vento súbito a houvesse varado de um lado para o outro. O ar não ficou mais frio mas pareceu mais perto de sua pele. — O que quer dizer com isso? — Não sei. — Ele se serviu de uma xícara de café da garrafa térmica. — Este verão tem sido muito longo. Estive fora, no Bank, pescando, e você ficou aqui. Eu gostaria de companhia. Sabe o que significa falar sobre pesca durante três meses? Ela riu, sentiu-se aliviada e um pouco desapontada. — Preciso ir para casa hoje à noite. As crianças ficariam preocupadas com minha ausência. — Cinzento poderia cuidar delas. — Cinzento! — Começou a guardar os restos do almoço na marmita. — Não o quero com minhas crianças, se puder evitar isso. — O que houve? — Ele estendeu a mão e tocou-lhe o braço. Sara fitou-o. Ele sorria. — Isso foi uma brincadeira — disse ele suavemente. — Tudo bem. — Sara sorriu sem querer. — Mas não muito engraçada. — Estou com lesão cerebral. Três meses com a frota pesqueira faz isso com um cara. — Bem — respondeu ela lentamente —, ainda assim, não posso sair hoje à noite. Preciso ir para casa. Ele ficou calado durante um longo minuto, e Sara, de repente, quis acariciar-lhe o rosto, sentir a pele macia coberta com o começo de uma barba por fazer. Um rosto de homem. Fazia muito tempo desde que tocara pela última vez uma pele de homem. Ou de mulher. Apenas abraços e toques em Jack, ou Ira. Mas não o toque entre... — Você podia vir ao meu barco jantar, hoje à noite — disse ele, os olhos brilhantes e o rosto enrugado em um riso silencioso. Ela não conseguiu deixar de sorrir. — Vai preparar um jantar para mim? — Pode apostar que sim. — Esfregou as mãos. — Eu trouxe da pesca uma enchova e uma cioba. Conheço um cara no cais com quem posso trocar o peixe por uma lagosta. Se você não 201

gostar disso, posso arranjar... Ela tocou-lhe o braço, ele parou, olhou a mão de Sara e, em seguida, a encarou. — Isso quer dizer “sim”? — Por Deus. Você... — Ergueu as mãos para o alto. — Jantar. Agora, vamos trabalhar antes que Fitzpatrick nos demita. Miller’s Hall recebeu esse nome em homenagem ao primeiro cara que botou os olhos em cima dos alienígenas, quando eles desembarcaram em Provincetown. Bem, na verdade não desembarcaram nesse lugar. Alguns desceram da nave e perguntaram o caminho para Boston. Pelo menos essa é a história que circula por aí. Cinzento diz que é um pouco diferente. Segundo ele, os alienígenas não sabiam realmente o que estava acontecendo e o que quer que tenham perguntado pode ter parecido um pedido de informações sobre rumos, mas não foi isso, absolutamente. De qualquer modo, o nome do cara era Miller. Pegamos uma carona com Kendall até Wellington Station e de lá fomos de metrô até a cidade. Eu nunca estivera no centro. O Miller’s Hall fica do outro lado da rua na North End — onde se situa a igreja Old North. Cinzento me contou tudo sobre ela e sobre um cara chamado Paul Revere, que levou aquelas luzes por todas as cidades, distribuindo fogo entre as pessoas. Subindo a outra rua a partir daquele ponto chegamos à velha Alfândega. Segundo Cinzento, ela era também chamada de Portão para o Oeste. Nunca li nada a esse respeito, mas talvez ele tenha lido. O prédio foi projetado pelos alienígenas, de modo que não se parece em nada com aqueles onde vivem pessoas. Mas algumas fazem isso. Conheci umas poucas delas. Um dos lados parece derretido e o outro projeta-se para o alto acima dos outros prédios, formando uma torre de ponta aguçada. É um lugar grande, ocupando a maior parte de um quarteirão e tem talvez uns quarenta andares. Eles possuem um prédio diplomático maior, do outro lado do Long Wharf, no porto. É imenso, talvez com uns duzentos andares. Mas é usado para grandes reuniões e coisas parecidas. Miller’s Hall é o lugar onde os alienígenas descansam. 202

No metrô, tentei fazer com que Cinzento me contasse por que estávamos indo para aquele lugar. Não respondeu. Emitiu apenas aquele ruído de zumbido que significa que não quer responder a uma pergunta. — Bem — falei, exasperado —, é sobre o ovo? Pelo menos, diga isso. Ele parou, levantou-me do chão, de modo que pude olhálo diretamente no olho. Como ficou calado durante um minuto, comecei a ficar com medo. Cinzento nunca tinha feito isso antes. De repente, ele pareceu tão diferente de mim. Comecei a pensar que devia ter ficado no Hercules. — Ira. Você confia em mim? — perguntou em voz muito baixa. — Claro. — E encolhi os ombros. — Isto é muito importante. Não conte isto, hoje, a ninguém. Não nas ruas. Não neste prédio. Não no metrô. Não no barco, indo para casa. Em lugar nenhum. Não, até que eu lhe diga que pode. Entendeu o que falei? Papai estava atrás dele, confirmando com movimentos de cabeça. Isso me fez ficar revoltado, os dois se juntando contra mim daquela maneira. — Então por que você não me deixou em casa, se a coisa era esse segredo todo? Ele ficou calado durante um minuto inteiro. — Estamos à procura de informações. Algumas podem ter algo a ver com o ovo. Outras, talvez não. De nada adianta especular. Mas, uma vez que nós dois estamos chocando o ovo, isso interessa a você. Por isso tem o direito de estar aqui. — Tudo bem, tudo bem. — Dei um murro no ombro dele. — Tudo bem, eu já disse, nada de cerimônias comigo. — Você ainda não compreende. — Fez uma curta pausa. — É importante que você não fale aqui. Não sei como ameaçálo ou convencê-lo. Posso apenas pedir. Mais ainda: não revele qualquer conhecimento inconveniente. Você conhece meu idioma, você conhece Língua. Isso eu lhe ensinei. Esconda esse fato. Colocou-me no chão e entramos no prédio. No saguão, encontramos uns vinte alienígenas de tipos esquisitos. Nenhum deles nos deu a menor atenção. Acho que não 203

éramos em nada mais estranhos para eles do que eles para nós. Mas o lugar de fato me pareceu estranho. Quero dizer, era janela por toda parte, nos quatro lados, janelões, dando para o porto, talvez de uma altura de uns vinte metros. Olhei para a porta por onde havíamos entrado, era toda de vidro, e por ela víamos a rua. — O que são essas janelas, hologramas? Cinzento sacudiu a cabeça. — Não. São janelas. — Olhou-as durante um momento e, em seguida, virou a cabeça para mim. — Na construção de Miller’s Hall foi utilizado espaço-N. Um pequeno alienígena, menor do que eu, veio em passos silenciosos na minha direção. Postou-se à minha frente, todo encolhido e deformado, pele marrom enrugada e aqueles olhos azuis enormes, parecendo furioso. Finalmente, acalmou-se o suficiente para me olhar fixamente. — Para o que você está olhando? — perguntou, por fim. Comecei a ficar danado, mas depois me lembrei do que prometera a Cinzento. — Nada — respondi. Ele disse hummm e hesitou durante um momento. — Nada. Nada, é o que ele diz. Nada. — Encostou o rosto quase nariz com nariz comigo e tudo que consegui ver foram aqueles olhos azuis. — Nada. Diga-me uma coisa, nanico, você acredita em fadas? — Não — murmurei. — Ah! — gritou ele e deu um salto para trás, rindo e batendo palmas. — Um sabichão! Ah. — E foi embora, batendo palmas. Olhei para Cinzento e ele olhou para mim. — O que é aquilo? — perguntei. — Não se preocupe. Ele gosta de você. — Como pode saber? — Agarrei-lhe uma das pernas inferiores e não soltei mais. De repente, fiquei nervoso. — Ele não o comeu, comeu? Levantei os olhos e ele simplesmente me olhou de cima para baixo. Dei-lhe um murro, com força, na perna. Aquela era a sua idéia de piada. Como o nome dele. Todos os alienígenas são cinzentos. Nenhum alienígena teve nome humano até Cinzento. 204

Identificar-se com alguma coisa especial, com um nome que todos os alienígenas podiam usar, era a idéia de piada de Cinzento. Como aquela. Fiquei danado com aquela brincadeira naquele momento porque, dez minutos antes, havia-me dito para manter-me calado. Então, pensei que Cinzento estava se esforçando para que eu me sentisse melhor, depois do que me havia dito na rua. Talvez tivesse mesmo organizado aquele encontro. Dei-lhe outro murro na perna. Tomamos um elevador comprido para a parte pontuda do Hall. De lá de cima, podíamos ver todas as ilhas, os diferentes prédios no porto, todos os hovercrafts. Olhei para a cidade e vi todos os canais da baía Back, com todos aqueles pequenos barcos e canoas descendo, como se fossem pessoas na rua. Cinzento me observava. — Há cem anos eram ruas, não canais. — Meu Deus! — Sacudi a cabeça. — O que foi que aconteceu? — Boston afundou. Continua a afundar. Antes disso, também era água. Aterraram o rio e construíram a baía Back. Quando o Mayflower chegou aqui, Boston era quase uma ilha. — Apontou para a água na baía Back e para as muralhas em torno do círculo interno da cidade. — As muralhas seguem o contorno da Boston original. — Fez uma pausa. — As fronteiras estão sendo recicladas. — Olhou para mim. Enruguei o nariz na direção dele. — Ah, ah. Que piada. Cinzento encolheu os ombros, puxou-me da janela e levou-me por um longo corredor. Novamente, janelas de ambos os lados. Um dos lados mostrava o porto, o outro se abria para a cidade. O ângulo, porém, era diferente, abrindo-se para as ruas onde se erguiam os grandes prédios, a velha Alfândega, coisas assim. No cômodo seguinte, havia apenas duas paredes opostas com janelas, ambas viradas para a mesma seção do porto. Isso me fez ficar tonto. Vi algumas gaivotas voando nos lados opostos da sala. — Esses aí são hologramas? — perguntei, sem olhar para 205

nenhuma delas. — Não. Apenas janelas. A sala tinha teto alto, como se fosse um auditório. Um grosso carpete cobria o chão, e sobre grandes almofadas sentavam-se alienígenas de vários tipos — um número grande demais para guardar na memória. Era como um daqueles zoológicos de aves — aviários, é essa a palavra — onde há cerca de cinqüenta tipos de aves, elas se movem, são manchas de cor, algumas delas paradas, olhando em volta, outras se escondendo, um grupo inteiro voando por cima como se fossem balas. Mas não são tão separadas assim. A coisa é inteiramente indistinta. A única maneira de distinguir uma das outras é olhar com atenção para as que estão paradas, ler as curtas descrições, e esperar pelas outras que passam como fogo por cima da gente, esperando que tenha lembrado bem os nomes. A gente simplesmente esquece as que estão se escondendo. Bem, eu não tinha nenhuma descrição. Vi o pequeno cara que me abordara no vestíbulo, andando pelos lados, assim como se estivesse me vigiando da orla da multidão. Fomos até essa sala e nos sentamos. Ninguém nos prestou muita atenção e ficamos lá por uns dez minutos. Comecei a ficar inquieto. — O que fazemos agora? — Esperamos aqui. — Pelo quê? Talvez Cinzento tivesse planejado alguma coisa. — Não sei bem. Isso foi tudo que consegui arrancar dele. Ele não queria nem mesmo dar um palpite. Alienígenas são assim. Nunca falam a respeito de coisa nenhuma, a menos que esteja bem ali, na cara. Um saco! Uns dois minutos depois, Cinzento começou a me coçar as costas daquele jeito, relaxei e fiquei um pouco sonolento, de modo que me encostei nele, e ele estava muito quente. Caí no sono como se alguém tivesse me acertado com um porrete. Sonhei com papai. Ele estava querendo me dizer alguma coisa, mas não consegui ouvi-lo. Era como se ele estivesse muito 206

longe. Achei-o muito agitado, excitado e nervoso. Continuava a me chamar, e mesmo se encontrando apenas do outro lado da sala, não conseguia ouvi-lo. Acordei e havia uma espécie de zumbido na sala. Sentei-me, olhei em volta e vi inúmeros alienígenas virados para a outra porta — a porta que dava frente para aquela por onde Cinzento e eu havíamos entrado. Pela porta entrava naquele momento o centauro — é assim que são chamados. Não igual aos mitos gregos, entendam. Esse não era meio homem meio cavalo. Tinha mais o corpo de um tatuzinho e a parte dianteira de um louva-a-deus — como se fosse feito de pontas agudas. Tudo, menos os olhos. Os olhos eram grandes, com pupilas em frestas, como as de gato. Ele entrou na sala sacudindo-se — no início pensei que estivesse com algum problema. Depois, notei que era como se tivesse movimentos semelhantes aos de uma máquina de projetar slides. Não se deslocava uniformemente, mas em pequenos saltos, como em instantâneos de fotografia. Olhei com mais atenção e notei que mal podia acompanhá-lo, mexendo-se de uma pose para a outra. Ele parava, olhava do alto para alguém — devia ter uns três metros de altura —, alguém no outro lado lhe dizia alguma coisa, e de repente ele se virava naquela direção. Era tão rápido que fiquei quase enjoado só de olhá-lo. Ele deslizou ao longo da parede, conversando com as pessoas. Todo mundo ali o observava. Pensei, nessa ocasião, que ele se movia na nossa direção, aproximando-se de nós, disfarçadamente. Com aquelas mãos de aspecto cruel. Estremeci. Olhei para Cinzento. Ele observava o centauro. Nunca o vira observar coisa alguma com tanta atenção, nem mesmo a mim. Finalmente, o centauro aproximou-se de nós, levantou os olhos, viu-nos, mas deu a impressão de que só vira Cinzento. Espigou-se e veio para nosso lado. — Velho-ser-de-muitos-nomes — disse ele em Língua —, eu não sabia que estava aqui. Cinzento fez uma espécie de meia mesura, agachada, sem desviar os olhos do centauro. — Santíssimo, mal posso acreditar em minha boa sorte. O centauro inclinou-se para trás e por cima de sua metade inferior, como um velho que se senta numa poltrona. 207

— Faz muito tempo desde que o vi pela última vez. Não vejo um membro de sua família desde que destruímos aquele ninho... há meio ciclo? Talvez um ciclo inteiro? Você é o último? Mais uma vez, Cinzento repetiu aquela meia mesura. — Não acho que seja o último, sacratíssimo. Hibernei durante quase dois ciclos, antes de ser encontrado. Isso aconteceu por causa da destruição de meu ninho. — Ah. — O centauro ergueu a mão e deixou-a cair como quem encolhe os ombros. — Claro. Esse aí é seu bichinho de estimação? — perguntou, olhando-me pela primeira vez. Eu estava quase louco de nervosismo, esforçando-me para não demonstrar que entendia coisa alguma, louco ao descobrir que aquela coisa matara a família de Cinzento. Tive vontade de possuir um fuzil, um laser, alguma coisa. Mas de nada teria adiantado. Podia-se ver que ele passava a maior parte do tempo esperando que a gente se emparelhasse com ele. A atenção dele abrangia toda a sala. Mas aguda. Danada de aguda. Fiz o melhor possível para parecer estúpido. — Não é um bicho de estimação, sacratíssimo. É meu sobrinho. — Isso é verdade? — O centauro pôs um braço sobre o outro como um homem que cruza os seus, mas esse aí parecia estar se preparando para fazer alguma coisa. — Absoluta, sacratíssimo. Como vai sua prole? O centauro encarou-o. — Ótima. Trouxe duas pupas comigo e elas devem sair cedo da casca. Nenhum ovo ainda. É uma pena porque ando com muita vontade de saborear uma guloseima. Mas seria uma vergonha voltar para casa sem filhos, de modo que tenho me controlado. Antes de muito tempo, porém, sairão da casca e, claro, tornar-se-ão crianças. Diga-me uma coisa: seria uma vergonha grande demais voltar levando apenas um filho? — O senhor não tem ovos, sacratíssimo? — Nenhum, até agora. Tentei várias vezes, mas a carne não quer me obedecer. — O centauro virou a cabeça numa volta completa para trás, observando alguma coisa em um rápido momento e, em seguida, trouxe-a à posição anterior com um estalo seco. 208

Tive vontade de vomitar. — Dê-me essa pupa que você tem. Ela seria bem cozida. Olhe — e apontou para mim —, ela nem mesmo conhece a língua. — Não posso, sacratíssimo. — Ora, ora. Ofereça-me ela, como um presente. — Endureceu-se de alguma maneira e deu a impressão de um chicote no meio do ar. Ouvi um som baixo vindo de Cinzento e virei-me para ele, que estendera cada dedo de cada braço e em cada um deles aparecia uma navalha. — Não posso, sacratíssimo — disse baixinho. — Perdoeme. Os dois entreolharam-se durante alguns minutos. Em seguida, o centauro relaxou. — Isso é um pecado muito grande. Mas talvez a culpa seja minha. Estimulo meus apetites tanto quanto posso. Talvez isso nem sempre seja uma virtude. — O corpo estalou novamente para a frente e para trás. — Tenho que ir, meu amigo. Até a próxima vez. — Virou-se e afastou-se tão suavemente como se montado sobre rodas. — O que está acontecendo? — perguntei baixinho a Cinzento. — Psiu. — Ele retraiu todos os dedos e sentou-se novamente. — Quero ir para casa. Tire-me daqui. Ele me segurou e me manteve bem perto de seu corpo. — Tenha um pouco mais de paciência. Não podemos ir embora ainda. Não seria delicado. Ficamos lá por talvez mais meia hora. Em seguida, Cinzento levantou-se. — Podemos ir agora. Ao sair, descobrimos que o nevoeiro invadira a cidade. Puxei mais a jaqueta em volta do corpo. — Meu Deus! O que foi tudo aquilo? Ele não respondeu de imediato. Simplesmente olhou de um lado a outro da rua e deu a impressão de que estava à escuta de alguma coisa. 209

— A coisa saiu melhor do que eu esperava. Acho que podemos falar agora. Foi sobre o ovo. — Meu Deus! — Às vezes, Cinzento pode ser um saco. — Eu sei disso. Quem era o centauro? Por que tivemos que vir aqui? Ele realmente destruiu seu ninho... seu lar, ou o que quer que fosse? Diga alguma coisa! Cinzento pareceu remoer aquilo durante um minuto ou dois. — O centauro é um... bispo é a melhor palavra, acho. Tive breves encontros com ele, várias vezes. A família dele e a minha brigaram por uma extensão de território no sistema de Maxwell Station. Minha família foi destruída ou, se não inteiramente eliminada, obrigada a deixar o sistema. Não sei onde estão os outros. Sua gente me encontrou no cinturão de asteróides, uns mil anos depois. Antes de você nascer. Pensei que aquele ovo pudesse ser de um centauro, mas não podia descobrir diretamente. Os centauros não permitem que sejam publicadas informações sobre eles. Falarão sobre quase tudo, mas se recusarão a permitir que alguma coisa seja escrita. Tudo que consegui descobrir foi que havia apenas uma família de centauros na Terra, e que era a do bispo. Estremeci. — Ele teria realmente me comido? Cinzento anuiu com um movimento de cabeça. — Eles consideram os pré-sencientes como uma guloseima. — Pré-sencientes? — Os centauros seguem regras estranhas e rígidas sobre o que é ou não uma pessoa: a capacidade de comunicação defineas na maioria das circunstâncias. — Meu Deus! Eu poderia ter falado com ele! — Sei disso. Dei-lhe um pontapé na perna. — Por que me disse para manter isso em segredo? Eu poderia ter sido morto. Isso me parece simplesmente estúpido. Continuamos a andar. — Se você tivesse falado, ele poderia tê-lo desafiado para um duelo de comida. 210

— Posso comer igual ao melhor deles. — Um duelo de comida — respondeu vagarosamente Cinzento — é um duelo em que o perdedor é comido. Para os centauros, por definição, perdedores não são pessoas. — Oh — disse eu, sentindo-me muito pequeno. — Mas, de qualquer maneira, por que fui lá? — Eu me sentia inteiramente perdido e confuso. — Eu não queria que o bispo pensasse que fui lá em busca de vingança. Se levasse minha família, ele saberia com certeza que eu não fora para guerrear. Também não quero morrer, Ira. Andamos um pouco mais, levantei o braço e peguei a mão dele. — Sinto muito a respeito de sua família, Cinzento. Cinzento nada disse enquanto percorríamos a distância de uns dois quarteirões. — Ela acabou. Ao cair a noite, um nevoeiro veio das enseadas e canais da baía Back, e rolou pela cidade como se fosse um bêbado trôpego. Descendo no elevador em direção à névoa, Sara teve a impressão de mergulhar em água, em algodão, ou em alguma outra coisa em que pudesse se afogar. Devia estar no barco de Sam por volta das 20:00. Mas, naquele exato momento, precisava de um drinque. Deixou o prédio quase no mesmo instante em que tocou o térreo. Agora encontrava-se abaixo da luminosa luz solar que deixara no 90º andar. O nevoeiro emprestara à cidade um aspecto onírico, semi-real. As alfarrobeiras em frente à velha Alfândega queimavam amarelas através da névoa, desaparecida sua cor pastel do outono. A cidade alta estava toda invisível. Ali havia apenas aquela esquina, cheia de lojas para turistas, vendedores ambulantes e uma mulher oferecendo flores, todos bem juntos e íntimos no nevoeiro. Sara comprou, em uma carrocinha, um biscoito salgado e esperou enquanto o homem o aquecia em um daqueles fornos alienígenas operados a bateria. Um deles seria uma boa coisa no Hercules, pensou. Sentada sob as alfarrobeiras, comendo devagar e sentindo211

se culpada — afinal, Sam iria preparar-lhe um jantar dentro de umas duas horas —, lembrou-se subitamente de Hull, queimando. Durante um longo momento, sentiu o mau cheiro das explosões, que pareciam fogos de artifício, misturado com o cheiro de casas em chamas, e de mar. Lembrou-se de ter atingido no rosto, com um pé-de-cabra, um desconhecido — cabelos asiáticos escuros, barba por fazer, olhos alucinados, sangue espirrando da testa quando ele caiu na água — quando ele lhe tentara tomar o barco. Tentara chegar a casa — a única casa que jamais haviam possuído depois de todo aquele tempo vivendo em barcos, que o pai e a mãe não queriam abandonar e não acreditariam que teriam que sair dali até que fosse tarde demais — quando encontrara Roni, queimada, braço quebrado, tentando nadar na água que lhe batia pelos quadris. Arrastou-a para o pequeno barco. Dera novamente partida no motor, a fim de chegar a casa, quando os aviões da MDC chegaram voando baixo e deixaram cair alguma coisa — nunca soube o quê — que explodiu num lençol de chamas. A tempestade de fogo avançou para ela em uma onda fervente, gotejante. Virara o barco e acelerara. As chamas saltavam de casa em casa. Explosões baixas seguiram-na. Não deixe a hélice enredar! Não deixe a hélice enredar! O barco entrou a toda no porto. No alto da Telegraph Hill, as quadrilhas reagiam ao fogo. A ilha Hog disparava canhões antiaéreos contra os aviões da MDC. Dois aviões inclinaram-se, voaram naquela direção e dispararam dois mísseis... Agarrou Roni e mergulharam para o fundo do barco. Seguiu-se um relâmpago cegante e o mar rugiu em volta delas. Um vento quente sugou-lhe o ar dos pulmões. O som que veio depois foi alto demais para que se soubesse a sua origem. Depois, passou, e um silêncio total caiu sobre ela. Estou surda? Olhou para trás, e a ilha Hog fora arrasada. Os incêndios haviam sido transformados em fumaça pelo vento. Continuou sentada ali no banco da praça, controlando-se. Não conseguira descobrir onde havia estado sua casa, e muito menos o que acontecera aos pais. Levara horas apenas para encontrar o Hercules, que pelo menos estava intacto. Os saqueadores não haviam passado por ali. Talvez estivessem mortos. Talvez estivessem cegos devido ao relâmpago. Talvez estivesse 212

mergulhada em choque tão profundo que não pudesse vê-los. Deixou Hull, a fumaça escondendo e transformando o sol em um disco vermelho-escuro, pendurado de forma doentia no oeste, um vento sul frio empurrando-as na direção de Boston. Roni nem uma única vez despregara os olhos dela naquela noite. Observava cada movimento que fazia. Olhou para a alfarrobeira sobre a cabeça e estremeceu. Quase 19:00. Levantou-se devagar, procurando, com um estremecimento, afastar as recordações. Algum dia, não sabia quando, enterraria aquelas lembranças. O fato de Roni ter morrido agravava ainda mais as coisas. — Diabos a levem, Roni — disse baixinho. — Eu não a arrastei de lá apenas para que você morresse como um cão. O mesmo vento sul tangeu-a, enquanto ela cruzava o braço de mar a caminho de casa. Acendeu um cigarro e deu uma busca no pequeno porão do barco. Havia ali uma garrafa pela metade de uísque de centeio, escondida sob um rolo de cabos. Quer começar aqui? Quero, acho que queremos. É sempre melhor começar cedo. Você está numa fossa danada para jantar até com o próprio Jesus Cristo, quanto mais com Sam. É isso. Tome uma boa talagada. Sinta aquela queimadura quente, dolorosa, profunda, dentro do estômago. Jack esperava-a a bordo do Hercules. — Ei, querido — disse ela, ao amarrar o barco. — Cheguei. Jack inclinou rápido a cabeça. Encostado no casco, olhava pensativo pela janela. Droga. Ele está bancando novamente o adolescente. — Algum problema? — Não. — Sam me convidou para ir jantar no bote dele hoje à noite. — Nenhuma reação. — Sua mãe tem encontro com um homem. Jack nem a olhou. — Isso é bom — disse, distraído. Droga. Ele está ficando a cada dia mais parecido com o pai. Não pense em Mike. Não pense. Ele era nojento. Era lixo. E você há tanto tempo não o quer de volta? Sentou-se ao lado dele e observou-o à luz que morria. O 213

uísque e a luz do pôr-do-sol se encontraram e tornaram-na terna. Ah, Sara. Como você sente falta dele. — Ei, querido — disse suavemente. Jack fitou-a. Começou a estender as mãos para abraçá-lo, mas sentiu que ele se endurecia. — Qual é o problema, Jack? O garoto deu de ombros outra vez. — Não sei. Continuo pensando naquilo. — Olhou para ela, à procura, pareceu encontrar algo que o tranqüilizou e sorriu. — Vai ficar tudo bem comigo. Divirta-se com Sam. Vai me arranjar um pai? Era uma velha brincadeira, mas sem graça nesse momento. Bateu de leve no joelho dele. — Veja o que diz. Vou ter que tomar um banho de chuveiro. Mais tarde, deixou-o ali no Hercules e dirigiu-se nervosa para o Casey, o barco de Sam. Usava vestido — o que não fazia há anos. E até mesmo brincos. Sam vestira um paletó — e pela maneira como o usava, há anos que não botava um no corpo. Esse detalhe a fez sentir-se melhor. Ele nada disse quando a convidou a entrar com um gesto. Mas depois, disse, com ares conspiratórios: — Arranjei filé. — Conte outra — riu ela. — Não. Palavra. — Apontou para a cozinha. — Está lá dentro. Você mesma pode ir conferir. — Mas isso custa um dia de salário. — Filé —- repetiu ele. — Carne. Bife. Le boeuf. Grosso, suculento, grelhado, sangrento... Ela riu, tocou-lhe a boca para que ele se calasse. Sam se calou, e seus dedos formigaram. Recolheu-os e cruzou os braços, embaraçada. — De qualquer modo — disse ele subitamente, após um silêncio —, consegui-o. E vamos comê-lo. Você bem que poderia começar a ajustar-se à situação. — Estou ajustada. Vamos comê-lo agora mesmo. Ele sacudiu a cabeça e levantou as mãos, as palmas voltadas para ela. 214

— Não tão depressa assim. Precisamos fazer os preparativos. Não podemos insultar os deuses do gado. Sara sentou-se e começou a rir. Riso incontrolável, que acabou em soluços, segurando o estômago. — O que falei não foi tão engraçado assim — observou ele com um sorriso tímido. — Diabos o levem — respondeu ela com uma risadinha. —- Você também fez isso comigo na escola secundária. Eu tinha esquecido. — Minha querida, minha dignidade foi arruinada. — Como é bom revê-lo. Ele não respondeu. — O jantar está servido. O filé era malpassado. Em geral a carne era vendida dura como pedra, produzida nas grandes fazendas do meio oeste. O filé vinha de um animal. Da vaca? Não. Do novilho. Vinha do novilho. Filé era caro. Sam havia-o grelhado à perfeição. — Está gostando? Ela emitiu um som incoerente em volta de um pedaço sangrento e inclinou a cabeça. Meia hora depois, recostou-se e bateu de leve no estômago cheio. — Estou satisfeita. A vida é boa. Sam inclinou-se para ela. — Há mais. Ela encolheu os ombros. — Só poderia ser um anticlímax. Ele ergueu a mão e de um armário puxou uma garrafa. — Acho que não. —- E entregou-lhe a garrafa. Sara arregalou os olhos. — Glenfiddich! Há quanto tempo você guarda isto? Sam riu alegre e inclinou-se sobre a mesa. — Presente de meu pai. Trouxe-a da Escócia, há alguns anos. — Isso é demais. Guarde-a de novo, Sam. — Tarde demais. — Ele pegou dois copos. — Você não vai querer que eu beba sozinho. 215

O uísque escocês a fez sentir-se quente e sonolenta, como se o mundo não tivesse mais arestas afiadas. Sam ligou o rádio e ficaram escutando alguma estação popular romântica. Ela não gostou. — Mude para outra coisa. — Pegou a garrafa e ninou-a carinhosamente. — Tem um cigarro? — perguntou. — Não fumo. — Ele não fuma — disse ela para a garrafa. — Ele é um espanto, Sam é, mesmo. Sam encontrou uma estação que tocava Jazz, baixinho mas claro. — Isto é melhor. Ele cantarolou baixinho, acompanhando um clarinete. — Isto mesmo — disse ela, e encheu pela metade os dois copos. — Quer dançar? — perguntou Sam com uma pequena risada. — Claro. Levantaram-se e dançaram juntos. Ele pareceu tão certo ali em seus braços, juntinhos, movendo-se devagar ao som baixo do jazz. A última vez fora há tanto tempo que teve vontade de chorar. Simplesmente ser tocada. Simplesmente sentir-se carinhosa com alguém. Ouviu um grito no lado de fora. — Jack? — disse, e o uísque desapareceu-lhe da mente. Alguém estava berrando e alguém respondendo. — Jack! Saiu. Sam seguiu-a, mas não notou. No lado de fora do camarote, Cinzento mantinha Jack, que nesse momento esperneava, alto no ar. O interior do camarote era uma confusão total, as almofadas cortadas a faca. A mesa fora virada. — Solte-o! — gritou ela em voz aguda, pegando um pé-decabra. — Solte-o! Ira lançou-se contra ela e agarrou-lhe os braços. A unha de ferro subiu no ar, na direção da cara do menino. Os dedos de Cinzento fecharam-se em torno do pé-de-cabra como se ele tivesse se imobilizado dentro de concreto. Passou-se um longo momento, durante o qual Cinzento 216

segurou Jack com um conjunto de braços, o pé-de-cabra com outro e o corrimão do barco com o terceiro. — Jack está bem — disse ele, e tomou-lhe a alavanca. — Meu Deus! — exclamou Sam às suas costas. Jack permanecia inteiramente imóvel. — O que está acontecendo? — perguntou Sara. — O que está acontecendo? Jack olhou para ela, depois para Ira, para Cinzento, de volta para ela, novamente para Cinzento. — O que foi que aconteceu? — perguntou ela a Cinzento. Durante um longo minuto Cinzento permaneceu calado, observando Jack. — Não sei. Não sei absolutamente o que está acontecendo. — E o que aconteceu com essa droga de camarote? — perguntou Sara. — Eu fiz isso — respondeu lentamente Cinzento. — Foi um acidente. Não tive intenção. Julguei mal as coisas. Eu conserto. Conserto tudo amanhã. — Amanhã! — explodiu Ira. — Nós íamos... — a voz morreu na garganta. Olhou para Sara e, depois, olhou para o chão. — Iam para onde? — perguntou ela, desconfiada. Para onde ia Ira, que não queria dizer? — À barca. Vocês dois iam ao Hesperus amanhã? — Íamos — confirmou Cinzento, inclinando a cabeça. Sara olhou-o friamente. — Já lhe disse para não levá-lo para lá. Cinzento ficou calado. — Não faça isso novamente. Não vou permitir que fique mais aqui, se fizer isso de novo. Não vou mais querê-lo perto de mim. — Aproximou-se dele e olhou-o diretamente no rosto. Sentiu a proximidade desse corpo de rinoceronte, ouviu o chiado de couro quando ele respirou. — Ouviu o que eu disse? Entendeu, desta vez? Ela pareceu encolher-se um pouco. — Entendi. — Sara — disse baixinho uma voz às suas costas —, a coisa não foi tão grave assim. Sara girou sobre si mesma e encarou Sam. 217

— Saia de meu barco, Sam. Não me venha ensinar como criar minha família. Fora daqui. Sam sacudiu a cabeça, como se tivesse levado uma bofetada. Virou se, rijo, e dirigiu-se para seu próprio barco. — Muito bem — disse ela. — Muito bem. — Virou-se para Jack e Irá. — Entrem e vão dormir. Não vai haver mais nenhuma confusão esta noite. Eu me encontrava deitado no beliche, à distância de um braço de Jack. Ouvia-o respirando alto, resmungando algumas vezes, falando em voz baixa. Droga. Não sei o que ele andava fazendo quando voltamos, mas fora ele, não Cinzento, quem fizera aquela destruição toda no camarote. Ele. E Cinzento mentira para protegê-lo. Cinzento nunca mentiria para me proteger. Cinzento nunca mentira antes. Antes de me dar conta do que fazia, perguntei a mim mesmo: Como sei agora o que é mentira e o que é verdade? Durante toda minha vida, fora eu e Cinzento e, naquele momento, era como se alguma coisa tivesse sido puxada debaixo de meus pés. Ele não era mais meu. Virei-me de lado e sacudi a cabeça. — Ira? — disse Jack, baixinho. — O que você quer? Ele ficou calado durante um minuto. — Estou arrependido de ter chamado Cinzento de monstro. Arrependido. Sim, certo. Cinzento gostava do filho da puta. Cinzento protegia-o. — Ira? — Estou ouvindo. Um farfalhar no camarote e senti que ele se virará para meu lado. — Fui muito ruim com você. Continuei calado. Ele se recostou na parede e soltou um som, como de choro, talvez. Ou talvez estivesse tossindo. — Sinto muito. Como se isso melhorasse as coisas! 218

lo.

— Você sabe. O que eu queria era que ele se calasse. Não desejava ouvi-

— Você sabe — repetiu ele. — Não conheci meu pai. Ele se separou de minha mãe antes de eu nascer. E com a mamãe, do jeito que ela é, nós nunca tivemos uma família. Agora, com você e com Cinzento... é como se eu tivesse uma família de verdade. Sentei-me no beliche e fitei-o. — Não sou seu irmão. Cinzento pode ser, se quiser. Não quero nada com você. — Levantei-me. Ele não se moveu. Ficou simplesmente me olhando. — Não quero nada com aquela sua mãe ordinária. Nem com você. Nem com Cinzento. Quero simplesmente me livrar de todos vocês, ordinários. — Acabei de me vestir. — Se vocês todos, nojentos, morressem, eu mijaria na cova de vocês. — Saí, no maior silêncio, para não acordar ninguém. Olhei no lado de fora, mas não vi Cinzento em parte alguma. Eu estava por minha conta naquele momento. Eu, sozinho. Andei pelos pântanos, na direção do ovo. O dia estava justamente começando, a luz ainda uma espécie de violeta clara. Parei no pântano e olhei para a barca. Mamãe apareceu e ficou também olhando-a, ali a meu lado. — Você está julgando Cinzento muito mal — retrucou. Virei-me para ela. — Não quero que me diga o que devo ou não julgar. Você está morta. — Voltei-me para os destroços, comecei a andar e não esperei para ver se ela desaparecera ou não. A barca parecia a mesma. A luz do sol, dourada e rosada, estava se derramando sobre o casco quando cheguei. O ovo continuava no lugar onde o havíamos deixado — onde eu o havia deixado. Maior ainda, a pele distendida como se a ponto de romper. — Você e eu — disse ao ovo. Ele deu a impressão de que podia me ouvir. — Você e eu. Nós daremos uma volta pelo mundo. Não me importo se você for um grifo, um dragão ou qualquer outra coisa. — Lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto. Com um movimento de cabeça, sacudi-as. — Não me importo. Você e eu. Vamos sair desta droga de lugar. 219

O ovo não disse nada, e as lágrimas recomeçaram. Sara levantou-se também e ficou sentada no sanitário durante algum tempo. Fazia tempo desde que bebera tanto. Sentiu a cabeça quente e encostou-a à vigia para esfriá-la. Depois de algum tempo, melhorou. Entrou no camarote principal, mas não quis voltar para a cama. Por alguma razão, a cama fria e solitária assustava-a. Mike. Ainda quero que você volte. O pensamento chegou-lhe, vindo da escuridão clara do fundo de sua mente. Quatorze anos e não conseguira tirá-lo de sua vida. Sentou-se em uma das cadeiras da cozinha e acendeu um cigarro. E Sam... Sabia ele por acaso no que estava se metendo? Que ninho de cobras. Que pena que tivesse falado tão secamente com ele. Sam apenas tentara ser um bom rapaz. Muito bem. Certo. Tragou selvagemente o cigarro. Bons rapazes. Todos eles são. Sam não era diferente. — Mamãe? — Uma voz às suas costas. Sara virou-se. Jack, semidespido, olhando-a vagamente. Mike parecera tão jovem assim quando haviam estado juntos na escola? — O que é, querido? — Não foi Cinzento quem rasgou as almofadas. — Ao lado, olhos secos e calmos, ele fitou-a. Como se já houvesse esgotado as lágrimas, mas houvesse ainda uma coisa a fazer. — Quem foi que rasgou, querido? — Eu. Cinzento e Ira voltaram, fiquei danado, e rasguei tudo por ali. Eu simplesmente fiquei doido. Ela puxou-o e abraçou-o. Ele se deixou envolver, encostando-se nela. De modo que é assim que a coisa termina, Roni. Tenho que me livrar deles. De Cinzento, com certeza. E talvez também de Ira. Porque, Roni, no fim, ao cair a cortina, nada significa tanto para mim como meu filhinho. Não você. Nem Ira... e certamente não Cinzento. Nem Sam. Nem mesmo Mike, que há tanto tempo foi embora. No fim, sou eu e ele. — Está tudo bem, querido. — Sentiu-o endurecer-se. Sinto muito, Roni. Mas é assim que são as coisas. — Está tudo bem. 220

Depois de algum tempo, ele se soltou, olhou-a de lado, virou-se e foi arrastando os pés para a cama. Fechou a porta ao entrar. Sara permaneceu acordada, fumou outro cigarro e pensou no que diria a Cinzento, Ele seria o primeiro. Teria que ir embora no dia seguinte. E então... e então, veria a respeito de Ira. Deve ter permanecido sentada ali durante pelo menos uma hora, pensando, sonhando. O céu começou a clarear, e o sol surgiu. Houve uma erupção de água no lado de fora, e todo o barco tremeu quando Cinzento aterrou no tombadilho. Gotejante, ele foi em passos duros até o camarote, passou correndo por Sara e abriu violentamente a porta. — Jack! Onde está Ira? Do outro lado de Cinzento, Sara viu que a cama de Ira estava vazia. — Oh, meu Deus! Jack olhou para Cinzento. — Não sei. Ele foi embora há umas duas horas. — Por que não me disse, Jack? — exclamou Sara. Jack fitou-a com aqueles olhos azuis de Mike — mas diferentes nesse momento, mais frios, mais fortes. — Ele queria ir embora e não queria que eu o acompanhasse. Eu queria protegê-lo. Como Cinzento me protegeu. — Criança leal — disse Cinzento. — Mas tola. Não. Eu é que sou o tolo. — Virou-se e começou a sair do camarote. — Cinzento, espere! — Não tenho tempo! O menino está em perigo. Não o segui, pensando que ele estava perturbado demais. Era hora de ele ficar sozinho. Mas ele desapareceu, como se fosse um fantasma. Foi embora. — Para onde você vai? — perguntou ela em voz lamentosa, enquanto ele se afastava. — Para os destroços do naufrágio. O ovo está chocando. Tenho medo daquilo. — Espere... droga, espere! Podemos tomar o barco. Ele tem um bom motor. Chegaremos lá mais rápido do que você pode ir por terra. 221

Ele parou por um momento, inteiramente imóvel. Olhou para ela. — Você tem razão. Eu o levarei. — Você não vai levá-lo, seu filho da puta! O barco é meu, da mesma maneira que Jack é meu filho e Ira é meu sobrinho. Cinzento sacudiu a cabeçorra. — Você tem razão. Eu a seguirei. Subiram para o barco que, graças a Deus, pegou logo de primeira. Cinzento sentou-se a meia-nau, deixaram a doca e começaram a cruzar o porto à velocidade máxima. — Que ovo é esse, afinal? — gritou ela, abafando o vento. — Não sei. Encontramo-lo nos destroços e o menino quis chocá-lo. Pensei que não havia perigo... No começo, pensei que poderia ser um ovo de centauro. Sara ficou confusa. Centauros? — Um centauro? — Uma espécie que consideraria Ira uma iguaria. — Juntou as mãos e, mesmo nessa posição, Sara sentiu-lhe a angústia. — Mas perguntei ao bispo centauro e ele me disse que não havia ovos aqui. Assim, senti-me em segurança. Nenhuma outra espécie de ovo aqui é perigosa. — Nesse caso, não há perigo. — Há sempre perigo, mas pensei que poderia evitá-lo e ainda deixar que o menino se divertisse por algum tempo. Mas, agora, a coisa chocou até o fim e Ira está longe de mim. Não sei o que é aquela coisa. — Calou-se. — O pai e a mãe dele, porém, podem protegê-lo. — O quê? Cinzento virou-se para ela. — Ele, às vezes, vê o pai e a mãe. Falam com ele. Podem tê-lo desviado de lá. — Você está louco? — Não. — Ira vê fantasmas? Pobre criança. Inventando isso. O vento pegou-os de través e borrifos cobriram-nos quando Sara virou o barco para a terra. Já podiam ver o Hesperus, a sua silhueta escura contra o fundo da praia e o sol nascente. 222

sas.

— Não tenho certeza de que ele está inventando essas coi-

— Você o vem estimulando nisso? Não acredito nessas coisas. Elas não são reais. Como gostaria de ter um cigarro. Era isso. Cinzento tinha que ir embora. Cinzento fitou-a com aqueles olhos enormes. — Como sabe que não são? Deus do céu, o que ela poderia responder? O ovo estava se movendo um pouco nesse momento. Como se jogando de um lado para o outro. Olhei em volta e achei aquela velha barra de metal. Poderia ajudar a abrir o ovo, ajudar o dragão a sair. Aproximei-me — ele cheirava nesse momento como se estivesse bastante maduro —, mas não fiz nada. Não conseguia me decidir. Mesmo dragões podem ser frágeis quando ainda no ovo. Eu poderia machucá-lo. Mordi o lábio, soltei a barra no chão, sentei-me encostado na parede e fiquei observando-o. — Ira? Ira! — gritaram meus pais da borda da barca. Eu não ia vê-los. Eles eram simplesmente fantasmas. Chamaram novamente. Oh, bem. O ovo ia demorar ainda um pouco para abrir, pensei. Fui até a borda e olhei para baixo. Os dois estavam ali. — Desça até aqui — gritou papai. Mamãe apoiou-o inclinando a cabeça. — Desça — disse ela. Sentei-me à borda do casco e sacudi a cabeça. — Não quero mais prestar atenção a vocês. Os dois estão mortos. Cinzento ficou esquisito comigo. Não gosto de tia Sara nem de Jack. Deixem-me em paz. Eu tenho o ovo. Eles se entreolharam. — Filho? — disse meu pai baixinho. — Cinzento e Sara estão vindo buscá-lo. Vão levá-lo de volta. Você sabe que o levarão. Ouvi um som de motor no outro lado dos destroços. — Vocês estão querendo me enganar? Papai sacudiu a cabeça. — Absolutamente, não. Eles estão quase chegando. — E o ovo? 223

— O ovo pode cuidar de si mesmo. Vamos! — gritou minha mãe. Saltei os três metros para a praia e caí. Machuquei os pés. Mamãe e papai levaram-me para o pântano. Bem para dentro, apressando-me, insistindo em que eu andasse com tanta rapidez que nem podia ver para onde estava indo. Com aquela corrida toda mal conseguia respirar. O mato alto açoitava-me o rosto e a lama me batia nos joelhos. Onde estava eu? Finalmente, eles pararam. Sentei-me na água. Não conseguia respirar. Era como se nada houvesse tão importante no mundo como respirar. — Ele está em segurança agora — disse mamãe. — O quê? — perguntei, e levantei os olhos. Haviam desaparecido. Desaparecido e eu não sabia onde estava. Eles haviam-me enganado. — Diabos os levem! — gritei para eles. — Que o diabo os leve para o inferno. Cinzento moveu-se para a frente do barco, parecendo para todo mundo um grande cão pronto a saltar na água em busca das aves abatidas. — Recue um pouco, pelo amor de Deus — gritou Sara. — Não afunde o barco. — Não posso encontrá-lo. — Claro que não pode. Não chegamos lá ainda. — Você não compreende. Desde que ele nasceu, sempre soube onde ele estava. Agora, ele desapareceu. — Virou-se para Sara. — Ele não é mais criança. Talvez seja por isso que não posso achá-lo. Sara encolheu os ombros. Quando aquilo acabasse, Cinzento precisava ir embora, antes de deixá-la louca. — O ovo está aos destroços, certo? — Certo. — Neste caso, é lá que ele deve estar. Encalharam o barco na praia e andaram em volta da barca destroçada. — Onde está o ovo? — No centro dos destroços. Sara olhou para o casco enferrujado. 224

— Vamos ter que subir por aí? Cinzento sacudiu a cabeça. — Não há tempo — disse. Segurou-a com dois conjuntos de braços e, em seguida, saltou para o alto do casco. Soltou-a e dirigiu-se imediatamente para o interior. Ela seguiu-o. No centro dos destroços, a luz solar já esquentara a área. O ovo movia-se nesse momento. — Ira? — chamou Cinzento. Sara gritou também. — Aquela coisa vai se abrir logo. A coisa era imensa nesse momento, quase um metro de largura, e sua superfície rosa e verde se contorcia. — Ele não está aqui. — Cinzento voltou-se para ela. — É melhor nos afastarmos dessa coisa. O ovo explodiu. Um caco atingiu Sara no ombro e lançoua no chão. Alguma coisa brilhantemente colorida, que parecia ser feita principalmente de boca, dentes e cauda saltou para o ar e pairou sobre eles. Movia-se aos arrancos — a boca imensa, desproporcional, abrindo-se e fechando-se mecanicamente. A coisa estremeceu. Sacudiu-se no ar. Levou as patas aos dentes, puxando cacos da casca quebrada do ovo colados nas presas. Sara observava-a, imobilizada, incapaz de mover até mesmo o globo ocular para longe da coisa. Era um dragão, penas de um alaranjado brilhante, as asas batendo tão rápidas que nem eram vistas — mas ela podia sentir o ar que agitavam. A coisa olhou em volta, inclinou a cabeça para um e o outro lado, como se experimentando o ar. Nesse momento, viu-a. A coisa pareceu sorrir. Sara quis gritar, mas não teve tempo. Com a mesma subitaneidade com que a viu a coisa mergulhou — mais rápida do que qualquer coisa que ela jamais vira, mais rápida do que qualquer coisa tinha o direito de ser. Alguma coisa imensa e maciça, e igualmente rápida, passou por cima dela e interceptou o dragão. O dragão soltou um guincho agudo e suas garras e dentes moveram-se com tal rapidez que se tornaram uma mancha indistinta. Cinzento emitiu um ruído como se fosse um grito, jogou-o para longe com um golpe. O dragão rolou aos trambo225

lhões pelo ar, uivando. Controlou-se, voou por cima deles, viu Cinzento e mergulhou para pegá-lo. Desta vez, Cinzento estava mais preparado. Seguiu-se um movimento vertiginoso demais para ser visto, ambos acutilando, o dragão mordendo, mas que pareceu durar uma eternidade. Depois, o dragão foi lançado de um lado a outro do tombadilho e bateu com tanta força no casco da barca que o metal retiniu. Cinzento saltou sobre ele, facas por toda parte nesse momento. Cada braço projetava uma dúzia delas. Cortou, o dragão gritou e arrancou-lhe um dos braços. Cinzento pegou-o com outro braço e lançou-o contra o casco. O dragão tentou alcançar a mão que o segurava, mas não conseguiu. Cinzento lançou-o novamente contra o casco. E mais uma vez. Parecia um bate-estaca em ação. O dragão cortava-o com as garras, mas estava perdendo forças. Cinzento continuou a jogá-lo contra o casco da barca até que o adversário não mais se moveu. Mas continuou, metódica e mecanicamente. Sara aproximou-se. O dragão era uma massa sangrenta. — Cinzento? Cinzento não respondeu. Continuou a lançar o dragão contra o casco. — Cinzento? Acho que ele está morto. Cinzento olhou para ela e, em seguida, para o dragão. — Oh. — Só então olhou para si mesmo. — Oh. — Sentouse no chão e examinou o coto do braço. — Estou ferido. As placas da couraça, no peito e braços, estavam cheias de cortes. A mão na extremidade de outro braço fora quase inteiramente mastigada. Dos ferimentos escorria alguma coisa que parecia alcatrão. — O que posso fazer, Cinzento? — Fazer? Oh, sim. — Olhou para o lugar onde o ovo estivera antes. — Um daqueles velhos colchões. E a lona. Ela arrastou o colchão para junto dele. Cinzento rasgou o forro, tirou o recheio e com ele cobriu os cortes e o coto do braço. A hemorragia cessou. Olhou para Sara. — Eu vou sobreviver. Tenho cimento para conserto em casa, cobrirei isso e ficarei melhor. Sentada no chão, Sara sacudiu a cabeça e riu, tensa, bai226

xinho.., Claro. — Cimento para conserto. Cinzento fitou-a. — Alienígenas não saram. Têm que ser consertados — Você fala como se fosse um robô. — Não. — Ficou pensativo. — Não, exatamente Os alienígenas foram construídos há milhares de anos. Os que fizeram isso morreram ou desapareceram. Nós somos tudo o que restou. — Olhou novamente para Sara. — Pense em mim como um achado arqueológico que foi um pouco danificada Ela riu novamente. Ele moveu-se um pouco, e ela viu o dragão, todo agulhas e dentes. —- O que era isso? — Um objeto de minha estupidez. — Contraiu uma das mãos e. por um momento, Sara pensou que ele ia atingir novamente o dragão. Mas ele apenas apertou o recheio do colchão em torno dos ferimentos. — Estupidez. Pensei que apenas centauros seriam criaturas assim. Todas as coisas gostam de compartilhar sua herança. Este é um dos bichos de estimação do centauro. — Um bicho de estimação. Deus do céu. Um bicho de estimação. — Ergueu os joelhos para o queixo e sentiu um grande frio. Cinzento ergueu os olhos. — Aquela lona. Dê-me aquela lona. Ele está voltando. Sara lhe trouxe a lona e ele passou-a em volta do corpo como se fosse uma toga. — O que está fazendo? — É vergonhoso mostrar ferimentos que não foram tratados. Pelo menos, é vergonhoso mostrá-los a nossos filhos. Ela fitou-o. — Filhos? — Não sabia? Vocês todos, todos vocês, são minha família. Por que outro motivo eu o seguiria até aqui? Por que eu faria um esforço tão grande para compreendê-los? Por que eu arriscaria minha vida por vocês? Para mim, o que mais vocês poderiam ser? Corri de volta para os destroços do barco até ficar sem 227

fôlego. Sentia uma dor no lado como se alguém houvesse enfiado ali um ferro em brasa. E o rosto estava quente como se eu fosse chorar. Enganado. Pela minha própria gente. Pelos meus próprios pais. Sentei-me junto a uma moita de arroz silvestre, chorei e descansei até que consegui respirar novamente. Meu Deus. Meu Deus! Após um ou dois minutos, consegui me mover e voltei à barca. Estava em silêncio. Subi pelo casco e fui através dos obstáculos até o centro, a fim de ver se o ovo continuava direito. Aquilo parecia uma daquelas ilustrações que vemos em revistas, distantes, que não significam nada até que a gente nota um pequeno aspecto que nos atinge como se fosse um soco. Os dois estavam sentados juntos do casco, simplesmente me olhando. O ovo estava inteiramente quebrado, Cinzento enrolado em uma lona, e o dragão — fora um dragão, afinal — inteiramente estraçalhado junto à parede. Dei um passo na direção deles. Eles simplesmente me observavam, Cinzento enrolado de uma maneira que me lembrou o dia em que trouxeram papai para casa, todo coberto de ataduras e sangue, os mineiros cantando aquele triste hino. Eu nunca ouvira ninguém, exceto papai, cantar aquela música antes, e não podia esquecê-la naquele momento. Ela simplesmente se repetia dentro de minha cabeça: Sonhei com Joe Hill noite passada, vivo como você e eu. Eu disse: Joe Hill, você está morto há dez anos. Eu nunca morri, respondeu ele. E não conseguiram encontrar mamãe, apenas pedaços dela, porque os supervisores haviam atirado uma granada, ela pegou-a, e a granada explodira antes que pudesse jogá-la para longe. O rosto de papai estava tão imóvel. Eu sabia que ele estava morto, não existia mais, tudo que eu jamais quis dele parecia pequeno, e eu parecia pequeno. Diabos os levem, quis dizer naquela ocasião. O diabo os leve, por me deixarem. Eu nunca quis isso. Fodam-se os mineiros. Fodam-se os supervisores. E o dragão estava morto. Minha passagem para ir embora 228

dali. E Cinzento estava ali, enrolado, como se também morto. — Fodam-se! Foda-se, Cinzento! Os diabos a levem, Sara! Foda-se! Foda-se este barco! Foda-se o dragão! Fodam-se todos vocês! Fiquei ali, dizendo palavrões, com vontade de pegar coisas no chão e jogar neles, da mesma maneira que queria ferir os mineiros que trouxeram papai para casa, da maneira que queria magoá-lo por ter-me abandonado. Senti-me estrangulado, à morte. Olhei-os fixamente, calado nesse momento. Eles nada disseram. Deixei a barca, voltei para o pântano, e desmoronei. Bati no chão com os punhos e pés. Aquilo não era justo. Todo mundo me abandonava. Todo mundo fugia, e eu era simplesmente deixado ali, sozinho. — Meu Deus! — exclamou finalmente Sara, e começou a seguir Ira. — Espere. — Cinzento tocou-a suavemente, a voz dele mais cansada e derrotada do que qualquer outra que ela jamais ouvira. — Ele precisa... ficar sozinho. — Levantou-se com dificuldade, a lona abrindo-se parcialmente. Os cortes na pele fizeram Sara sentir-se enjoada. Ele vacilou. — Não sou um membro apto de sua família. Em todas as coisas que tentei fazer, fracassei. Eu... — Psiu — interrompeu-o ela, e tentou ampará-lo. — Vamos pra casa. Ira acabará voltando pra lá, também. — Não sei o que fazer — disse Cinzento, baixinho. Sara sentiu-lhe o cheiro, tão perto assim, capitoso e forte. Como de suor, ou de pão. Ajudou-o a ir até o lado do oceano dos destroços e ele subiu para o barquinho tão devagar e cauteloso como um velho. Não se moveu até que ela o levou para casa. Tropeçou enquanto andava ao lado dela na doca e ao entrar no barcoresidência. Jack ajudou a colocá-lo na cama de Sara. — Onde está o cimento do conserto? — perguntou Sara. Cinzento fitou-a, como se de uma grande distância. — No armário do equipamento. Junto do fluido de partida para o óleo. Sara encontrou a lata, coberta com símbolos que não con229

seguiu ler, escondida atrás de uma lata de óleo. O lugar daquilo era no armário dos remédios, resolveu. Já bastava de tanta discriminação. Jack não pronunciou uma palavra enquanto os dois tiravam a lona em frangalhos e os recheios de colchão de dentro dos ferimentos, limpavam-nos e enchiam-nos com cimento, usando uma faca de manteiga. Cinzento deu-lhes instruções em voz baixa, mas, depois de algum tempo, calou-se e Sara pensou que ele adormecera. Com um gesto disse a Jack que saísse e preparouse também para deixar o camarote. — Obrigado — agradeceu Cinzento, inesperadamente. Ela virou-se e deu-se conta de que ele não lhe parecia mais um alienígena. Diferente, sim. Mas ele parecia o que Sara esperava que parecesse. Coberto de cicatrizes. Cansado. Aquele era o lugar dele. — Fiz muito pouco por alguém que salvou minha vida. — Encolheu os ombros e pela vigia olhou para a proa. Ele estivera dormindo ali durante todo o inverno. — Vamos precisar construir um verdadeiro quarto para você. Lá não há espaço suficiente. — Não preciso de muita coisa. Ela sorriu. — Nenhum de nós. Mas ninguém na minha família dorme ao relento, como se fosse um animal. — Pensou que ouvira um segundo “obrigado” às suas costas, mas não teve certeza. E não se importaria, se tivesse. Jack olhava-a, nervoso. — Ele vai ficar bom? — Não sei. — Sara olhou novamente para o camarote. — Espero que sim. Jack fitou-a, depois olhou para o chão, e de novo para ela. — Vai mandá-lo embora? Sara sentou-se à mesa da cozinha. Acendeu um cigarro e desejou ter também um drinque. — Quer que eu o mande? Jack sacudiu a cabeça. Sara soprou a fumaça. — Tudo bem. Por que mudou de idéia? — Porque — ele parou, embaraçado — ...ele merece ficar 230

aqui.

— Concordo. Não vou mais mandá-lo embora. Jack pareceu aliviado. — Eu estava com medo. Por minha causa. — Os olhos se arregalaram. — Onde está Ira? — Fora. Mas volta logo. — Tomara. Pelo rosto de Jack, Sara viu que ele não acreditava nisso. Bem, ela também nunca conseguira dizer uma mentira a Mike. Mas Jack não era o pai. Era estúpido até mesmo pensar nisso. Mike já se foi há 14 anos, pelo amor de Deus. Estendeu a mão, segurou-o pelo ombro durante um minuto, ele se chegou e ficaram ali abraçados durante alguns minutos. Ouviu Ira chegar antes de vê-lo. Ele entrou mal-humorado, alucinação nos olhos. Por Deus, ele se parecia com Roni. Como nunca notei isso? E era um garoto tão pequeno, mal chegando à puberdade. — Vá, Jack — disse ela baixinho. — Vá para a casa de Kendall. Fique lá hoje à noite. Jack olhou primeiro para ela, em seguida para Ira, inclinou a cabeça para si mesmo e saiu. O silêncio entre Ira e Sara durou alguns minutos. — Vim buscar minhas coisas — disse ele. — Oh? — Sara tomou uma respiração e tentou pensar. O que poderia fazer? O que estaria se passando naquela pequena cabeça? — É, sim. Vou embora. Não tenho um lugar meu aqui. Os olhos dele eram iguais aos de Roni. Teimosos, também. Tão teimosos como os dela, quando fora embora. Sara apagou o cigarro. — Escute. Quero que fique. Você é meu sobrinho. De meu sangue. Quero Cinzento aqui. Por Deus. Mas se não quer ficar, não o obrigarei. — A expressão dele não mudou. Eu acho que também não ficaria convencida, pensou ela. Tentou ser fria: — Suas coisas estão no seu quarto. Cinzento está no meu quarto, descansando. Você devia dizer adeus a ele. — Não quero — resmungou Ira. — Vou cair fora daqui. Alguma coisa estalou dentro de Sara. Agarrou-o e empurrou-o 231

para uma cadeira. — Seu merdinha. O que pensa que está fazendo? Cinzento foi para lá a fim de salvar essa sua bundinha suja. — Cinzento matou meu dragão. Quero ir embora daqui. — Aquela coisa ia almoçar você! Cinzento salvou minha vida. Salvou a sua. E quase morreu por fazer isso. Quer ir embora? Ótimo. Vá. Pegue suas coisas e vá pro diabo que o carregue. Uma pessoa salva sua vida e você não dá a mínima? Ótimo. Tire essa cara ingrata e esse nariz melequento de minha frente. Mas vai agradecer a ele antes de ir embora ou lhe dou uma surra que nunca esquecerá. Entendeu bem? Ouviu o que eu disse? Ele olhou-a fixamente. Sara recaiu na cadeira, envergonhada. As coisas já não estão um horror, sem que você ainda tenha que gritar com o menino? Tato. É isso o que você tem, às toneladas, Sara. — Ele está lá dentro. Ira levantou-se, hesitante, olhou para a porta do camarote, e de novo para ela. Tocou a porta, olhou para dentro, entrou. Ela ouviu vozes baixas, sons ásperos. De repente, teve a impressão de que tudo ia acabar bem. Aquilo, e um calor e uma força, como nunca sentira antes. Era como uma espécie de canto em seu íntimo. Saiu para o tombadilho e aspirou o ar marinho de outubro. Frio. Cinzento e Ira não precisavam dela imediatamente. Foi até o barco de Sam e bateu na amurada. Após alguns minutos, Sam botou a cara de fora. — Oi — começou ele, cauteloso. — Oi, você aí — saudou-o Sara, alegre. — Que tal dançar? — Cinzento? Você está aí? — perguntei baixinho. — À sua frente — respondeu ele. Eu nunca o vira cansado antes. — Você está bem? Ele ficou calado durante alguns momentos. — Não. Liguei a luz. O peito dele estava todo lambuzado daquela lama de conserto, cobrindo os grandes cortes. Oh, Deus. E ele parecia tão cansado e encolhido, como se a pele estivesse so232

brando. — Oh, Cinzento. Ele estendeu um braço, puxou-me para seu lado, e comecei a chorar. Ele me abraçou e nunca me senti tão pequeno e impotente, como se fosse um bebê, ou se estivesse todo quebrado, ou morto. — Nunca falei sério, Cinzento. Nunca falei. Não vá embora. — Minha mãe estava naquele lugar, papai, também, todos tinham ido embora, e se Cinzento fosse também, não haveria mais ninguém. — Psiu — respondeu ele baixinho. — Psiu, Ira. Não vou para lugar nenhum. Eu amo você. Sara ama você. Ninguém vai deixar ninguém. — Devagarinho, Cinzento ficou quente, macio, e me prendeu em seus braços. Ele enchia quase a cama toda e tive que me imprensar contra o casco, mas não me importei. Depois de algum tempo, ele me olhou. — Quais são os três amores? — Amor à família, amor ao trabalho, e amor ao dever. — Sentei-me e olhei aqueles grandes olhos. —E sempre, sempre, nessa ordem.

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