Isaac Asimov Magazine 03

July 16, 2017 | Author: Rafael Carvalho | Category: Robot, Technology, Gases, Science, Homo Sapiens
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ISAAC ASIMOV MAGAZINE FICÇÃO CIENTÍFICA NÚMERO 3 Novela 20 Esperando os Olimpianos - Frederik Pohl Noveletas 78 A Serpente do Velho Nilo - Charles Sheffield 206 O Preço das Laranjas - Nancy Kress Contos 72 Tempo Real - Lawrence Watt-Evans 116 Muito Barulho por Nada - Connie Willis 128 Toda a Cerveja de Marte - Gregory Benford 152 Iridescência - Dean Whitlock 174 Minha Mulher - Steven Utley 188 Vinte e Dois Passos para o Apocalipse - Terence M. Green e Andrew Weiner Seções 5 Editorial: Psico-história - Isaac Asimov 10 Cartas 14 Depoimento: A Isaac Asimov Magazine - Ronaldo S. de Biasi 13 Títulos Originais

Copyright © by Davis Publications, Inc. Publicado mediante acordo com Scott Meredith Literary Agency. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. que se reserva a propriedade literária desta tradução 3

osebodigital.blogspot.com

EDITORA RECORD Diretor-presidente ALFREDO MACHADO Vice-presidente SERGIO MACHADO Diretor-gerente ALFREDO MACHADO JR. REDAÇÃO Editor Ronaldo Sergio de Biasi Supervisora Editorial Adelia Marques Ribeiro Coordenadora Sonia Regina Duarte Editor de Arte Dounê Spinola Ilustrações Lee Myoung Youn Chefe de Revisão Maria de Fatima Barbosa

ISAAC ASIMOV MAGAZINE é uma publicação mensal da Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A. Redação e Administração: Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro - RJ - Tel.: (021) 580-3668 - Caixa Postal 884 (CEP 20001, Rio/RJ). End. Telegráfico: RECORDIST, Telex (021) 30501 - Fax: (021) 580-4911 Impresso no Brasil pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOES DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina, 171 10901 - Rio de Janeiro/RJ Tel.: (021) 580-3668 4

EDITORIAL ISAAC ASIMOV

PSICO-HISTÓRIA “Psico-história” é uma das três palavras inventadas por mim que aparecem no The Oxford English Dictionary. As outras duas são “positrônico” e “robótica”. Isto não deve ser considerado como um fato incomum. Todo escritor de ficção científica inventa novas palavras e uma vez ou outra um desses termos se torna de uso corrente (ajudado pelo fato de o inglês ser notoriamente hospitaleiro a neologismos, o que, em minha opinião, constitui uma das virtudes da língua). Quanto mais simples e inevitável é uma palavra, maior a probabilidade de que seja adotada; não sou uma pessoa dada a criar termos imaginosos e pitorescos. Assim, depois que o pósitron foi descoberto e batizado em 1935, e depois que a palavra “robô” passou a designar um autômato de forma humana, na década de 1920, o aparecimento das palavras “positrônico” e “robótica” na linguagem escrita era apenas uma questão de tempo. O fato de ter sido eu o primeiro a utilizálas pode ser considerado como um simples acidente. Na verdade, quando usei pela primeira vez a palavra “positrônico” (no conto “Reason” [Razão], publicado no número de abril de 1941 da revista Astounding Science Fiction, em uma analogia natural com o termo “eletrônico”, pensei que a palavra já existisse. O mesmo aconteceu quando usei a palavra “robótica” no conto “Runaround” (Brincadeira de Pegar), que apareceu no número de março de 1942 de Astounding Science Fiction. No caso de “psico-história”, porém, desconfio que a palavra talvez não viesse a ser conhecida se não fosse por minha causa. Usei-a pela primeira vez no conto “Foundation” (Fundação), que apareceu no número de maio de 1942 de Astounding Science Fiction. A palavra surgiu quando eu e John Campbell estávamos dis5

cutindo o rumo que eu daria à série Fundação, depois que o procurei com uma idéia geral a respeito do assunto. Confesseilhe com muita franqueza que pretendia usar o livro Ascensão e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, como modelo da série, mas precisava de algum elemento novo para transformála em uma história de ficção científica. Não podia simplesmente criar um Império Galáctico e depois tratá-lo como um Império Romano hipertrofiado. Assim, sugeri que acrescentássemos o fato de que existiria um tratamento matemático capaz de tornar o futuro previsível do ponto de vista estatístico. Foi esse tratamento matemático que batizei com o nome de “psico-história”. Na verdade, foi uma palavra mal escolhida, que não representava o que eu realmente queria dizer. Seria melhor que tivesse usado o termo “psicossociologia” (uma palavra que, de acordo com The Oxford English Dictionary, foi usada pela primeira vez em 1928). Entretanto, estava tão preocupado com a história, graças a Gibbon, que não consegui pensar em mais nada a não ser psico-história. Acontece que Campbell gostou da idéia e decidimos ir em frente. O modelo para o meu conceito de psico-história foi a teoria cinética dos gases, que havia estudado exaustivamente na universidade. As moléculas de que um gás é feito se movem de forma totalmente aleatória, com velocidades as mais variadas. Mesmo assim, podemos descrever de forma bastante satisfatória como vão ser esses movimentos em média e, a partir deles, deduzir leis que permitem prever o comportamento dos gases com uma precisão admirável. Em outras palavras, embora seja impossível prever o comportamento de uma molécula isolada, é perfeitamente possível prever o comportamento coletivo de trilhões e trilhões de moléculas. Procurei aplicar a mesma idéia aos seres humanos. Um ser humano, considerado isoladamente, pode ter “livre arbítrio”, mas uma multidão deve se comportar de forma até certo ponto previsível; a análise do “comportamento de multidões” constitui o que chamei de psico-história. Para que meu modelo funcionasse, tive que impor duas condições, que não foram escolhidas gratuitamente; ambas eram 6

necessárias para que a psico-história se parecesse com a teoria cinética. Em primeiro lugar, da mesma forma que a teoria cinética dos gases lidava com um grande número de moléculas, eu teria que lidar com um grande número de pessoas. Foi por isso que o meu Império Galáctico era constituído por vinte e cinco milhões de planetas, cada um com uma população média de quatro bilhões de habitantes, ou seja, a população total do Império era da ordem de cem quatrilhões de pessoas. (Para ser franco, sempre considerei esse número insuficiente, mas não queria forçar demais a imaginação dos meus leitores.) Em segundo lugar, o comportamento das “partículas” tinha que ser o mais aleatório possível. Não podia esperar que seres humanos se portassem de forma tão randômica quanto as moléculas de um gás, mas talvez se aproximassem desse ideal se não tivessem idéia do que se esperava deles. Era necessário supor que os seres humanos em geral não conhecessem as previsões da psico-história, para que esse conhecimento não afetasse suas atividades. Muito mais tarde, cheguei a uma terceira condição que não havia me ocorrido antes simplesmente porque parecia óbvia. A teoria cinética dos gases supõe que os gases são feitos apenas de moléculas; a psico-história só pode funcionar se os seres inteligentes do universo forem exclusivamente os seres humanos. Em outras palavras, a presença de alienígenas inteligentes poderia muito bem pôr por terra todas as previsões da nova disciplina. Esta situação pode muito bem vir a se concretizar em livros futuros da série Fundação, mas até o momento tenho evitado introduzir inteligências alienígenas no meu Império Galáctico (em parte porque Campbell e eu tínhamos opiniões radicalmente opostas quanto ao papel que essas inteligências poderiam desempenhar, caso existissem, e nenhum de nós estava disposto a ceder...). Houve uma época em que cheguei a temer que a minha psicohistória caísse em desuso e a palavra passasse a ser adotada pelos psiquiatras para designar o estudo da psicologia de indivíduos (como Shakespeare, Sigmund Freud ou Adolf Hitler) que tiveram uma grande influência na história da humanidade. Naturalmente, como eu me considerava o inventor do termo psico7

história, não gostaria de ver a palavra sendo usada com outro significado. Com o passar do tempo, tornei-me mais tolerante. Afinal de contas, talvez não houvesse nenhuma analogia possível entre moléculas e seres humanos, nenhuma forma de prever o comportamento humano. Quando os matemáticos começaram a se aprofundar nos mistérios do que hoje chamamos de “caos”, ocorreu-me que talvez um dia ficasse provado que a história humana era essencialmente “caótica”, caso em que uma disciplina como a psico-história seria impossível. Na verdade, a questão da viabilidade da ciência de psico-história é o assunto central de um livro que escrevi recentemente, Prelúdio da Fundação, no qual Hari Seldon (o fundador da psico-história) é retratado como um jovem que se encontra no processo de criar a nova ciência. Imagine, portanto, a satisfação que senti ao saber que os cientistas estão cada vez mais interessados na minha psico-história, embora talvez não façam idéia de que esse é o nome da disciplina que estão estudando. Pode ser que também não tenham lido nenhum dos meus romances a respeito da Fundação, caso em que desconhecerão totalmente minha contribuição. (Quem se importa? A idéia é mais importante que o seu modesto autor.) Há alguns meses atrás, um leitor, Tom Wilsdon, de Arden, Carolina do Norte, enviou-me um recorte do número de 23 de abril de 1987 da revista Machine Design. O texto era o seguinte: “Um programa de computador usado originariamente para simular o fenômeno da turbulência em líquidos está agora sendo empregado como um modelo para o comportamento de grupos. Os pesquisadores do Laboratório Nacional de Los Alamos descobriram que existe uma semelhança entre o comportamento de grupos e certos fenômenos físicos. Para fazer a análise, atribuíram características humanas, como o grau de interesse, de medo etc. aos parâmetros do modelo. A interação do grupo foi representada adequadamente pelas equações de um fluxo turbulento. De acordo com os mesmos cientistas, embora a análise não possa prever com exatidão o que um grupo irá fazer, permite calcular as conseqüências mais prováveis de um dado evento.” Além disso, Roger N. Shepard, professor de psicologia da Universidade de Stanford, publicou um artigo no número de 11 de 8

setembro de 1987 da revista Science com o título “Contribuição para uma Lei Universal de Generalização para a Ciência Psicológica”. Infelizmente, embora eu tenha feito um esforço heróico para ler o artigo, a matemática era muito complexa e mesmo as partes não matemáticas estavam além da minha capacidade, de modo que tudo que restou foi uma idéia bastante vaga do que o autor pretendia transmitir. Mesmo assim, aqui vai o resumo, da forma como foi publicado no início do artigo: “Um espaço psicológico é definido para cada conjunto de estímulos determinando-se distâncias métricas entre os estímulos tais que a probabilidade de que uma resposta aprendida para um dado estímulo seja generalizada para outro qualquer seja uma função invariante monotônica da distância entre eles. Com uma boa aproximação, esta probabilidade de generalização (i) diminui exponencialmente com a distância e (ii) diminui de acordo com uma de duas métricas, dependendo da relação entre as dimensões ao longo das quais os estímulos variam. Essas regularidades empíricas podem ser calculadas matematicamente a partir de princípios universais de tipos naturais e geometria probabilística que, através da internalização evolutiva, talvez controlem o comportamento de todos os organismos inteligentes.” Como disse, não sei exatamente o que o autor quis dizer com isso, mas tenho a impressão de que Hari Seldon não teria dificuldade alguma para compreender. Também me veio de repente à cabeça o medo de que a psico-história se torne uma disciplina madura no próximo século. De acordo com os meus livros, ela só deveria ser inventada daqui a 20.000 anos. Será mais um daqueles casos em que a realidade excede de longe as expectativas da ficção científica?

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CARTAS As cartas para esta seção devem ser enviadas para o seguinte endereço:

ISAAC ASIMOV MAGAZINE Caixa Postal 884 20001 - Rio de Janeiro, RJ

Prezado Editor: Como fã da ficção científica desde cedo é com muito agrado que recebo a revista Isaac Asimov e acho excelente a iniciativa desta respeitável editora em lançar a mesma em bancas de jornais facilitando sua aquisição por parte daqueles que gostam do gênero. Sempre gostei de ficção científica, especialmente dos grandes mestres como Asimov (embora suas histórias a respeito de robôs às vezes se tornem cansativas), Arthur C. Clarke, autor que admiro bastante mas que infelizmente caiu em matéria de qualidade em seus últimos livros, Frank Herbert em sua saga Duna e L. Ron Hubbard com seus excelentes livros publicados por vocês. Comentando a revista, eu sinceramente achei ótima a qualidade dos contos publicados na mesma, provando a seriedade na escolha do material. Os contos que mais me agradaram foram “O Mundo Flutuante”, de Victor Milán; “Pesadelos da Mente Clássica”, de Charles Sheffield; “Um Salto de Fé”, de Jack McDevitt; e, como não podia faltar, o conto bem humorado do mestre Asimov, “À Sua Saúde”. Eu sempre gostei das obras de Asimov, especialmente a saga da Fundação (não vejo a hora de comprar o terceiro volume que vocês prometeram lançar), com a idéia interessante de uma galáxia puramente habitada por seres humanos que valeu um prêmio Nebula e Hugo, o “Oscar” da ficção científica. Eu pessoalmente não concordo com esse tipo de pensamento, pois acredito na multiplicidade de formas de vida alienígenas talvez mais avançadas que nós. Sei que Asimov como cientista, se não me engano, não descarta essa hipótese mas sempre considera o fenômeno OVNI como besteira, e nisso peca em um ponto fundamental: 10

acha que se nós não podemos viajar à velocidade da luz ou no hiperespaço eles também não podem. Comparar nosso nível tecnológico com o de uma civilização talvez mais antiga que a nossa é uma grande falta de tato científico além de ser um grande erro da ciência. Outro ponto que gostaria de comentar são as histórias no campo em que Asimov mais se destaca: a robótica. Seus livros são excelentes, isso sou obrigado a reconhecer, só que acho estranho que as três leis da robótica sejam aplicadas a todo tipo de robôs onde há sempre um que comete infração contra uma das leis e acaba sendo destruído pelas mesmas. Eu (favor não considerem esta crítica como ofensa) pessoalmente acho meio difícil embora venha a ser aplicada em robôs domésticos ou trabalhadores, mas não em robôs militares ou que cumpram funções policiais onde a violência é às vezes necessária. Um robô para fins bélicos ou policiais não poderia jamais estar condicionado a tais leis, a não ser que fosse dotado de um sistema que anularia tais leis em caso de necessidade. E para terminar, um robô para tais fins poupa a vida de vários soldados de carne e osso, diminuindo assim as perdas humanas no campo de batalha. Quanto ao gênero da ficção científica, existem ainda aqueles que consideram o gênero leitura marginal, não merecendo o seu devido respeito. Isto é uma blasfêmia. A ficção científica deve ser encarada de maneira séria, pois muitas vezes nela encontramos as respostas para o futuro ou para o passado (de onde viemos e para onde iremos: eis a questão). Um exemplo: na década de 40, durante a Idade Dourada do gênero, já apareciam elementos que hoje se tornaram realidade, como os microcomputadores, os satélites artificiais, as viagens espaciais, os órgãos artificiais etc. Naquela época, afirmar que o homem pisaria na Lua neste século seria considerado pura tolice, pois só acreditavam que isto viria a acontecer no século XXI. Em 1969 ocorre o inevitável: o homem chega finalmente ao satélite natural, deixando sua marca, e talvez um dia retorne para lá criar a primeira colônia humana fora da Terra. A ficção científica é a resposta para o futuro, por mais improvável que seja, e a revista Isaac Asimov Magazine ajudará mais ainda trazendo novos escritores estrangeiros e nacionais 11

que um dia entrem no Olimpo dos Grandes Mestres da Ficção Científica. Roberto da Silva Souza Osasco, SP Obrigado pelo apoio, Roberto. Concordo com muita coisa que você diz. mas não acha que seria arriscado permitir que os robôs do Asimov recorressem a Medidas Provisórias? Prezados Senhores: Venho por meio desta parabenizá-los pela revista Isaac Asimov Magazine, que entrará certamente para o rol das melhores publicações, no gênero lançadas no Brasil. Como interessado, colecionador e bibliógrafo do gênero de FC, gostaria de lhes pedir, se possível, informações sobre como proceder para conseguir o número da dita revista que foi lançado, provavelmente, com o número “zero”. Como bibliógrafo, pediria que me informassem o título original dos contos publicados, pois isso facilitaria em muito os trabalhos de classificação e atualização, na área bibliográfica, meus e de outros amigos que fazem o mesmo tipo de trabalho. Laerte F. Lemmi Ubatuba, SP Laerte, recebemos muitas cartas de leitores que, como você, se mostraram interessados em conseguir uma cópia do número experimental da IAM. Na verdade, o número experimental foi apenas a primeira prova de alguns contos publicados no número 1, distribuída para um círculo restrito de amigos. Não se preocupe, portanto. Você não perdeu nada. Quanto aos títulos originais dos contos e os números da revista americana em que foram publicados, decidimos incluir essa informação a partir deste número da revista no seguinte formato: nome em português/nome original em inglês (mês de publicação nos Estados Unidos/ número da revista americana). Excepcionalmente, foram incluídas este mês as informações relativas aos três primeiros números da revista. 12

Títulos Originais NÚMERO 1 Os Bons Tempos de Outrora/The Good Old Days (April 1989/142) O Mundo Flutuante/The Floating World (April 1989/142) O Matagal/The Tall Grass (June 1989/144) Vício de Matar/The Kill Fix (May 1989/143) À Sua Saúde/To Your Health (August 1989/146) Pesadelos da Mente Clássica/Nightmares of the Classical Mind (August 1989/146) Um Salto de Fé/Leap of Faith (May 1989/143) Faith/Faith (June 1989/144) Patamar/Flatline (August 1988/133) Carta Registrada/Special Delivery (August 1989/146) O Anel/The Ring of Memory (January 1989/139) NÚMERO 2 Cosmopolita/Cosmopolitan (May 1989/143) Muitas Mansões/Many Mansions (May 1988/130) Que Pena!/Too Bad! (Mid-December 1989/151) Dilema/Dilemma (Mid-December 1989/151) Estados do Vácuo/Vacuum States (July 1988/132) Dori Bangs/Dori Bangs (September 1989/147) Aos Olhos de um Alienígena/Through Alien Eyes (July 1988/132) Renascimento/Renaissance (Mid-December 1989/151) As Energias do Amor/The Energies of Love (Mid-December 1989/151) O Céu É uma Estrada Aberta/The Sky Is an Open Highway (July 1988/132) O Destruidor de Mundos/Destroyer of Worlds (February 1989/140) NÚMERO 3 Psico-história/Psicohistory (July 1988/132) Esperando os Olimpianos/ Waiting for the Olympians (August 1988/133) A Serpente do Velho Nilo/The Serpent of Old Nile (May 1989/143) O Preço das Laranjas/The Price of Oranges (April 1989/142) Tempo Real/Real Time (January 1989/139) Muito Barulho por Nada/Ado (January 1988/126) Toda a Cerveja de Mane/All the Beer on Mars (January 1989/139) Iridescência/Iridescence (January 1989/139) Minha Mulher/My Wife (February 1989/140) Vinte e Dois Passos para o Apocalipse/Twenty-Two Steps to the Apocalypse (January 1988/126) 13

DEPOIMENTO

RONALDO SERGIO DE BIASI

A ISAAC ASIMOV MAGAZINE Baseado na entrevista do Editor da Isaac Asimov Magazine, Ronaldo Sérgio de Biasi, no Programa Sem Censura, da TVE, em 24 de maio de 1990. Entrevistadores: Lúcia Leme, jornalista; Marcos Gomes, professor; Jonas Rezende, pastor; Elizabeth Camarão, jornalista. LL: Os brasileiros já podem fazer viagens pelo espaço. Acaba de ser lançada no Brasil a revista Isaac Asimov Magazine, uma das melhores publicações de contos do gênero nos Estados Unidos. O editor responsável, Ronaldo Sérgio de Biasi, vai nos falar dessa nova revista. Ronaldo, qual é a proposta dessa revista? RSB: Essa revista existe nos Estados Unidos. Lá também é chamada de Isaac Asimov Magazine. A Editora Record comprou os direitos de publicá-la no Brasil. Os primeiros números contêm apenas contos traduzidos, mas temos a intenção de incluir o mais cedo possível uma parte nacional. Estaremos lançando, muito em breve, um concurso para autores brasileiros com a idéia de aproveitar os melhores contos. LL: E qual foi a repercussão desse primeiro número? RSB: Foi excelente. Ela foi lançada sábado passado e já vendeu bastante. Acho que existe um público ávido por histórias de ficção científica aqui no Brasil. JR: Ronaldo, que público é esse? É um público novo? Quem faz parte desse público? RSB: Olha, eu acho que há gente de todas as idades e 14

de todas as classes sociais. É um público muito variado; quem conhece ficção científica gosta de ficção científica. Quem já foi exposto à ficção científica, teve uma chance de provar o gostinho da ficção científica, não quer largar mais. JR: Ronaldo, o mundo de hoje já parece ficção. A ciência chegou a um desenvolvimento tal que de repente a ciência é a própria ficção. Para escrever, por exemplo, um livro como “O Enigma de Andrômeda”, é preciso ter muito conhecimento científico, não? RSB: Sim. Bem, existem várias correntes na ficção científica. Uma delas, que é chamada pelos americanos de “hard science fiction”, é uma classe muito especial e muito restrita. É a que eu gosto mais, talvez porque eu tenha formação científica. É aquela em que o autor só se permite uma hipótese arbitrária em toda a história; ele inventa uma coisa que não existe e extrai todas as conseqüências lógicas da idéia nova que lançou. MG: É quase uma previsão. RSB: Pode ser, pode ser uma previsão, mas pode ser uma especulação, vamos dizer, de um universo paralelo, de uma realidade diferente da nossa. Não necessariamente que o homem vá evoluir naquela direção, mas se imaginarmos que aquilo pudesse existir, se a realidade fosse aquela, como seria o resto? Esse resto seriam as conseqüências lógicas da premissa inicial. Mas o resto teria que ser absolutamente lógico, respeitar as leis de causa e efeito, as leis da física... LL: Quer dizer, então, que a ficção é tão melhor quanto mais próxima da realidade estiver? É isso? RSB: Olha, eu estou me referindo à parte mais restrita, que é a que eu gosto mais, mas a proposta dessa revista é muitíssimo mais ampla. Isso é apenas uma pequena faceta. A ficção científica se confunde, se mistura com fantasia, com terror, com romantismo, com muita coisa. Eu acho que o critério da ficção 15

científica é apenas ser uma boa literatura. É até difícil de se definir o que é ficção científica. Essa revista nos Estados Unidos de vez em quando recebe cartas de protesto dos leitores. Eles dizem: “Isso não é ficção científica!” Escrevem para o próprio Isaac Asimoy: “Como o senhor se atreve a publicar um conto desses! Isso é pura fantasia!” Ele responde: “Olhe, eu gostei tanto deste conto que não resisti à tentação de publicá-lo, embora concorde...” MG: Ronaldo, a ficção científica tem muito de uma viagem, de uma fantasia, e de uns anos para cá cresceu muito o público. A gente sente muito isso, não é? Paralelamente a esse crescimento houve um crescimento de várias ciências alternativas, da própria filosofia oriental, da astrologia...você vê uma relação nisso tudo? RSB: Vejo, sim. Acho que o homem está ficando cada vez mais desencantado com a realidade e por isso está procurando outros valores. Ele não está satisfeito com o mundo de hoje. É como se o homem estivesse chegando a uma encruzilhada... A ficção científica aponta possíveis soluções, até para problemas ecológicos. A ficção científica foi uma das primeiras a se preocupar com o problema ecológico; antes de chegar aos jornais, já estava na ficção científica. Os problemas de regimes de governo problemas de como se vai administrar o mundo quando o mundo for realmente uma aldeia global, que tipo de... JR: “Admirável Mundo Novo” “1984’ “The Day After” RSB: Exatamente. A ficção científica já tem essas preocupações sociológicas há muitos anos. Acho que no momento, isso faz parte de um contexto de insatisfação com o mundo de hoje, da maneira como ele está, e isso se nota nitidamente na ficção científica, com a falta de comemoração das conquistas tecnológicas. Na década de 50, a ficção científica era muito baseada em “olha que brinquedinho novo que pode ser inventado daqui a alguns anos”, “que máquinas maravilhosas vão existir no futuro”... Hoje em dia, a ficção científica está mais preocupada com a felicidade do homem do que com as belezas da tecnologia, até 16

porque as belezas da tecnologia estão surgindo tão rapidamente que os escritores de ficção científica têm dificuldade para superar a realidade da ciência. LL: E dá para prever alguma coisa via ficção científica’? cas.

RSB: Ah, dá! Há muitas obras verdadeiramente proféti-

LL: Como você acha que vai ser mundo no ano 2000, no que se refere à felicidade do homem? RSB: Pessoalmente, acho que, sob esse aspecto, o mundo ainda vai piorar antes de melhorar. Acho que estamos na descendente, em termos de felicidade. JR: Mas, Ronaldo, parece que o homem já chegou ao fundo do poço. Não falo apenas do homem brasileiro, mas do homem que vive o drama da corrida armamentista (agora um pouco atenuada, é verdade), essa loucura de caminharmos sobre bombas, em um mundo que pode ser destruído 60 vezes se o arsenal nuclear for detonado. Que mais terrível poderia ser do que isso que já é? A não ser agora bater no fundo do poço e voltar à tona? RSB: Falou-se do ano 2000. O ano 2000 está muito perto. Imagino que essa virada ocorra em meados do próximo século. Estou apenas adiando um pouco mais esse fundo do poço. EC: Ronaldo, você falou que tem uma formação científica. Qual é esse tipo de formação? RSB: Sou engenheiro eletrônico, formado pela PUC. Na própria PUC fiz o mestrado em telecomunicações e em seguida fui para os Estados Unidos, onde fiz o doutorado em semicondutores. Desde 1971, sou professor de pós-graduação no Instituto Militar de Engenharia, onde executo pesquisas na área de supercondutores. 17

EC: A gente imagina normalmente que um engenheiro eletrônico é tão pé no chão que não está voltado para nada disso. Como é que você descobriu a ficção científica? Como foi para você essa descoberta? RSB: Foi totalmente casual. Eu sempre gostei muito de ler. Era fã do romance policial, até que um dia comprei um livro de ficção científica. Gostei tanto que comecei a trocar os romances policiais por ficção científica e depois só lia ficção científica. Fiquei fã, porque acho que é muito mais variada que os romances policiais. Abriu-me um universo, principalmente na parte científica. Gosto de ciência desde pequeno. JR: Você está tão envolvido nesta tarefa. Sobra tempo para ser professor de pós-graduação? Dá para combinar as duas coisas ou você fez a opção de ser editor de ficção científica? RSB: Não, minha profissão principal ainda é a de professor e pesquisador. Estou tentando conciliar as duas coisas. Até agora, tenho conseguido. ga.

LL: Parabéns pela revista e espero que ela tenha vida lonRSB: Eu também espero. Obrigado.

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Capítulo 1 “O Dia das Duas Rejeições” Se eu estivesse escrevendo um romance sobre minha vida, teria dado ao capítulo a respeito daquele último dia em Londres um nome como “O Dia das Duas Rejeições”. Era um dia desagradável de dezembro, pouco antes das festas de fim de ano. O tempo estava frio, úmido e miserável (eu disse que estava em Londres, não disse?), mas todo mundo estava com um humor de expectativa de feriado; haviam acabado de anunciar que os olimpianos chegariam no mais tardar em agosto do ano seguinte, e todos estavam animados com isso. Todos os motoristas de táxi estavam ocupados, e por isso me atrasei para o almoço com Lidia. — Como estava Manahattan? — perguntei, entrando ao lado dela na cabina e dando-lhe um beijo rápido. — Manahattan estava muito bonita — ela respondeu, servindo-me um drinque. Lidia também era escritora... bem, eles se consideram escritores, esses que seguem pessoas famosas para todo lado e transcrevem todas as suas fofocas e piadinhas e as transformam em livros para a diversão dos ociosos. Claro que isso não é realmente escrever. Não há nada de criativo nisso. Mas paga bem, e a pesquisa (Lidia sempre me disse) era muito divertida. Ela passava um bocado de tempo viajando pelo circuito das celebridades, o que não era muito bom para o nosso romance. Ficou me olhando beber o primeiro copo, e só depois se lembrou de perguntar educadamente: — Terminou o livro? — Não o chame de ‘o livro’. Ele tem nome, Olimpiano em Pele de Asno. Vou ver Marcus sobre isso esta tarde. — Não é o que eu chamaria de um grande título — ela comentou. Lidia era sempre muito prestativa a me dar sua opinião sobre qualquer coisa que não fosse de seu agrado. — Mas você não acha que é muito tarde para escrever outro romance científico sobre os olimpianos? Depois, sorriu animada e disse: — Tenho que te contar uma coisa, Julius. Beba outro 22

drinque primeiro. Logo percebi o que estava para acontecer, e essa foi a primeira rejeição. Eu já tinha visto essa cena em fase de preparação. Mesmo antes de Lidia partir naquela última viagem de “pesquisa” para o Ocidente, eu havia começado a suspeitar de que um pouco daquele antigo ardor havia esfriado, e não fiquei realmente surpreso quando me disse: — Conheci outra pessoa, Julius. — Sei — disse eu. E realmente sabia, portanto me servi um terceiro drinque enquanto ela me contava a respeito. — Ele é um ex-piloto espacial, Julius. Esteve em Marte, na Lua e em toda parte, e, ah, é um homem tão doce. Também é campeão de luta livre, você acredita? Claro, ainda é casado, isso é natural. Mas vai conversar com a esposa sobre o divórcio assim que os filhos estiverem um pouco mais crescidos. Ela me olhou com ar de desafio, esperando que eu lhe dissesse que era uma idiota. Eu não tinha intenção de dizer nada, para falar a verdade, mas em todo caso ela acrescentou: — Não diga o que está pensando. — Não estava pensando em nada — protestei. Ela suspirou. — Você está aceitando isto muito bem. Parecia que isso tinha sido um desapontamento para ela. — Escute, Julius, não planejei isso. Sério, você sempre será muito especial para mim de uma certa maneira. Espero que possamos sempre ser amigos... A partir daí, eu parei de ouvi-la. Ela falou muito mais, mas apenas os detalhes foram surpresa. Quando me disse que nosso pequeno caso havia acabado, aceitei isso com bastante calma. Sempre soube que Lidia tinha um fraco pelo tipo mais atlético. E o que é pior, nunca respeitou o tipo de literatura que eu faço. Ela sentia o costumeiro desprezo do sistema por romances científicos passados no futuro e aventuras em planetas exóticos, e a que espécie de relacionamento isso poderia levar no fim de contas? Por isso, despedi-me dela com um beijo e um sorriso, ne23

nhum dos quais muito sincero, e me dirigi para o escritório do meu editor. Foi lá que tive minha segunda rejeição. A que realmente doeu. O escritório de Marcus ficava na parte velha de Londres, à margem do rio. É uma velha companhia, num velho edifício, e a maioria da equipe também é velha. Quando a companhia necessita de auxiliares ou editoradores tem um hábito de selecionar preceptores cujos alunos tenham crescido e não precisem mais deles e os treina novamente. Claro que isso é apenas para as pessoas das classes mais baixas. Os privilegiados, como o próprio Marcus, são executivos livres e assalariados, com o privilégio executivo de intermináveis almoços regados a vinho entre autor e editor, que não terminam antes do meio da tarde. Tive de esperar meia hora para vê-lo; obviamente ele havia estado num daqueles almoços. Não me importei. Tinha plena confiança de que nossa entrevista seria curta, agradável e lucrativa. Sabia muito bem que Olimpiano em Pele de Asno era um dos melhores romances científicos que já havia escrito. Até mesmo o título era inteligente. O livro era uma sátira, com tons clássicos, de O Asno de Ouro, do antigo escritor Lucius Apuleius de mais ou menos dois mil anos atrás; recriei o clássico numa história cômica e cheia de aventuras sobre a vinda dos verdadeiros olimpianos. Sempre sei quando um livro vai ser bom e sabia que os fãs iriam devorar aquele... Quando finalmente entrei para falar com Marcus, ele tinha no rosto um olhar vidrado de depois-de-almoço, e vi meu original em sua mesa. Também vi que, anexado a ele, havia um certificado com bordas vermelhas, e que aquele era o primeiro sinal de más notícias. O certificado era o veredicto do censor, e a moldura vermelha significava um obstat. Marcus não me deixou no suspense. — Não podemos publicar — disse, pousando a mão no original. — Os censores vetaram. — Eles não podem fazer isso! — exclamei, o que fez sua velha secretária levantar a cabeça de sua mesa no canto da sala para me olhar. — Mas fizeram — declarou Marcus. — Vou ler para você 24

o que diz o obstat: “...de uma natureza tal que ofende a delegação do Consórcio Galáctico, normalmente chamados de olimpianos...” e “...portanto colocando em risco a tranqüilidade e a segurança do Império...” e, bem, basicamente quer dizer não. Não foi sugerida nenhuma revisão. Apenas um veto completo; é papel velho agora, Julius. Esqueça. — Mas todo mundo está escrevendo sobre os olimpianos! — protestei. — Todo mundo estava — corrigiu ele. — Agora eles estão quase chegando e os censores não querem arriscar nada. Inclinou-se para trás, para esfregar os olhos, obviamente querendo poder tirar um cochilo em vez de partir meu coração. E aí acrescentou, cansado: — Então, o que você quer fazer, Julius? Escrever um substituto para nós? Teria de ser rápido, você entende; o escritório central não gosta de contratos cuja validade se prolongue por mais de trinta dias após a data de vencimento. E teria de ser bom. Você não vai escapar arranjando algum velho refugo de seus guardados; já vi todos eles, de qualquer forma. — Como diabos você espera que eu escreva um livro novo inteiro em trinta dias? — perguntei. Ele deu de ombros, parecendo cada vez mais sonolento e menos interessado no meu problema. — Se não pode, não pode. Então tudo o que você tem a fazer é me devolver o adiantamento. Acalmei-me rápido. — Não — disse para ele. — Não posso fazer isso. Só que não sei se vou terminar o livro em trinta dias... — Sei que vai — declarou Marcus, sem emoção na voz. Percebeu que dei de ombros. — Você tem alguma idéia para o novo livro? — Marcus — disse com paciência —, eu sempre tenho idéias para novos livros. É para isso que serve um escritor profissional. Ele é uma máquina de ter idéias. Sempre tenho mais idéias do que consigo escrever... — Tem mesmo? — ele insistiu. Então eu me rendi, porque se dissesse que sim, a próxima coisa que ele faria era me perguntar qual era essa idéia. 25

— Não exatamente — admiti. — Então — retrucou — é melhor você ir aonde quer que costume ir para ter idéias, porque, seja para nos entregar o novo livro ou devolver o adiantamento, trinta dias é tudo o que você vai ter. Um editor é assim. São todos a mesma coisa. No primeiro momento são todos doces e cheios de conversa agradável, com aqueles longos almoços regados a álcool e papo otimista sobre edições de um milhão de exemplares enquanto convencem você a assinar o contrato. Aí eles mostram a verdadeira face. Querem o livro real entregue. Quando não o conseguem, ou quando os censores dizem que não podem publicá-lo, aí não há mais conversa agradável, e o único assunto é como os edis vão escoltar você à prisão dos devedores. Por isso, resolvi seguir o seu conselho. Eu sabia aonde ir para ter idéias, e não era em Londres. Nenhum homem sensato fica em Londres no inverno de qualquer forma, por causa do tempo e porque fica muito cheia de estrangeiros. Ainda não me acostumei a ver aqueles grandes e rudes nórdicos e os hindus de pele escura e as mulheres árabes no coração da cidade, confesso que posso ser fisgado por aquela marquinha vermelha na testa ou por um par de olhos negros brilhantes através de todos aqueles vestidos e véus; suponho que o que se imagina é sempre mais excitante do que o que se pode ver, especialmente quando o que se pode ver são as pequenas e atarracadas mulheres britânicas como Lidia. Assim, fiz uma reserva no trem noturno para Roma, com transferência de lá para Alexandria por aerobarco. Fiz as malas de bom humor, sem esquecer de levar um chapéu de sol de abas largas, um vidro de repelente de insetos e, é claro, estiletes e tabuinhas em branco suficientes para durar a viagem inteira, apenas no caso de surgir alguma idéia para o livro. Egito! Onde a conferência sobre os olimpianos estava iniciando sua sessão de inverno... onde eu estaria entre os cientistas e astronautas que sempre forneciam idéias para novos romances científicos de aventura... onde estaria fazendo calor... Onde os edis de meu editor teriam problemas para me 26

encontrar, caso não surgisse nenhuma idéia para um novo romance. Capítulo 2 “A Caminho do Lugar das Idéias” Nenhuma idéia surgiu. Isso era desapontador. Escrevo minhas melhores coisas em trens, aviões e navios, porque não há interrupções e você não pode decidir sair para uma voltinha porque não há lugar para se dar uma voltinha. Não funcionou dessa vez. Durante todo o tempo em que o trem deslizou através da paisagem molhada e nua do campo inglês de inverno em direção ao Canal, eu estava sentado com a tabuinha na minha frente e o estilete pronto para escrever, mas na hora em que mergulhamos no túnel, a tabuinha ainda estava intocada. Não podia me iludir. Estava empacado. Empacado mesmo. Não acontecia nada na minha cabeça que pudesse se transformar numa cena de abertura para um novo romance científico. Não era a primeira vez na minha carreira de escritor que eu ficava empacado. É uma espécie de doença ocupacional que acontece com qualquer escritor. Mas esta vez foi a pior. Eu realmente contava com Olimpiano em Pele de Asno. Tinha até calculado que a data de publicação podia coincidir com aquele dia maravilhoso em que os olimpianos chegassem ao nosso sistema solar, com todos os tipos de maravilhosa publicidade para o meu livro resultando desse grande evento, e as vendas seriam imensas... pior do que isso: eu já havia gasto o adiantamento. Tudo o que eu tinha era crédito, e mesmo assim era pouco. Não pela primeira vez, imaginei o que teria acontecido se eu tivesse seguido alguma outra carreira. Se tivesse ficado no Serviço Civil, por exemplo, como meu pai queria. Realmente eu não tive muita escolha. Nasci no ano do Tricentenário das Viagens Espaciais e minha mãe me contou que a primeira palavra que eu disse foi “Marte”. Ela disse que houve uma pequena confusão, porque primeiro pensaram que eu estava falando do deus, não do planeta, e ela e meu pai conversaram muito sobre se deviam me treinar para o sacerdócio, mas quando 27

cheguei à idade de ler ela percebeu que eu era louco pelo espaço. Como muitos da minha geração (os que lêem meus livros), cresci à sombra das viagens espaciais. Eu era adolescente quando chegaram as primeiras fotos que a sonda espacial enviara do planeta Julia, de Alfa do Centauro, com seus cristais e árvores de folhas prateadas. Quando criança, me correspondi com outro rapaz que vivia nas colônias das cavernas da Lua, e lia maravilhado as histórias de ação sobre bandidos e edis caçando uns aos outros pelos satélites de Júpiter. Eu não era o único garoto que cresceu doido pelo espaço, mas nunca superei isso. Naturalmente me tornei um escritor de romances científicos de aventura; que mais eu conhecia? Assim que comecei a ganhar dinheiro de verdade pelas minhas fantasias, larguei meu emprego de secretário de um dos embaixadores imperiais nos continentes ocidentais e me tornei escritor em tempo integral. Também prosperei com isso, tinha uma renda razoável, embora irregular. Para ser mais exato, com os dois romances científicos que eu conseguia escrever por ano, o suficiente para me sustentar e ainda financiar o hábito de sair com mulheres bonitas como Lidia, devido ao bônus ocasional quando um dos livros era adaptado para a televisão ou o teatro. Então vieram as mensagens dos olimpianos e toda a natureza dos romances científicos de aventura mudou para sempre. Foi a notícia mais excitante da história do mundo, é claro. Realmente existiam outras raças inteligentes lá fora, entre as estrelas da Galáxia! Nunca me ocorreu que isso me afetaria pessoalmente, além da sensação de alegria. No começo senti alegria. Consegui, através de algumas conversas, com as pessoas certas, ir até o rádio-observatório nos Alpes que havia gravado aquela primeira mensagem, e ouvi essa gravação com meus próprios ouvidos:

dit.

Dit Dit Dit Dit Dit

squá dit. squi dit squá dit dit. squi dit squi dit squá dit dit dit. squi dit squi dit squi dit squá wuuuuuu. squi dit squi dit squi dit squi dit squá dit dit dit dit 28

Tudo parece muito simples agora, mas demorou um pouco até que alguém conseguisse descobrir o que queria dizer essa primeira mensagem dos olimpianos. (Naturalmente ainda não os chamávamos de “olimpianos”. Não os estaríamos chamando assim agora se dependesse dos sacerdotes, porque eles acham que isso é quase um sacrilégio, mas de que outra forma você chamaria seres que vêm dos céus, como deuses? O nome pegou na hora, e os sacerdotes simplesmente tiveram que aprender a conviver com isso.) Foi, na verdade, meu bom amigo Flavius Samuelus ben Samuelus quem primeiro a decifrou e produziu a resposta correta para transmitir de volta aos remetentes... a mesma que, quatro anos depois, fez os olimpianos saberem que nós os havíamos ouvido. Enquanto isso, todos nós descobrimos essa nova e maravilhosa verdade: não estávamos sozinhos no universo! Houve uma explosão de alegria. O mercado para romances científicos explodiu. Meu livro seguinte foi Os Deuses do Rádio, cuja tiragem se esgotou em pouco tempo. Pensei que isso ia continuar para sempre. E poderia... se não fosse pelos censores medrosos. Dormi durante a travessia do túnel.., de todos os túneis, mesmo os que atravessam os Alpes... e quando acordei já estávamos a meio caminho de Roma. Apesar do fato de que as tabuinhas permaneciam obstinadamente intocadas, eu me sentia mais animado. Lidia era apenas uma lembrança distante. Eu ainda tinha vinte e nove dias para entregar um novo romance científico e Roma, apesar de tudo, ainda é Roma! O centro do universo... Bem, sem contar o que de novo em astronomia geográfica os olimpianos poderiam nos ensinar. Pelo menos, é a maior cidade do mundo. É o lugar onde está toda a ação. Quando mandei o cabineiro trazer meu café e coloquei uma túnica limpa, já estávamos lá, e desci na grande e barulhenta estação ferroviária. Há anos eu não ia àquela cidade, mas Roma não muda muito. O Tibre ainda fedia. Os grandes e novos edifícios de apartamentos ainda escondiam as velhas ruínas até que você estives29

se quase em cima delas, as moscas ainda eram intoleráveis e os jovens romanos ainda se acotovelavam ao redor da estação para vender excursões com guias à Casa Dourada (como se algum deles pudesse sequer passar por um dos legionários!), amuletos sagrados ou suas irmãs. Como fui secretário da equipe do Procônsul da Nação Cherokee, eu tinha amigos em Roma. Como não tive o bom senso de ligar para eles com antecedência, nenhum deles estava em casa. Não tive escolha. Tive de alugar um quarto num hotel de luxo no Palatino. Era absurdamente caro, naturalmente. Tudo em Roma é caro; é por isso que pessoas como eu vivem em povoados remotos e melancólicos como Londres. Entretanto, achei que na hora em que a conta chegasse, ou eu teria algo para satisfazer Marcus e conseguir o resto do adiantamento, ou estaria com tantos problemas que mais algumas dívidas não iam fazer diferença. Decisão tomada, decidi arranjar um servo. Escolhi um siciliano forte e sorridente no balcão de aluguel do saguão, dei-lhe as chaves para retirar minha bagagem e o instruí para que a levasse ao meu quarto e me fizesse uma reserva para a viagem de hovercraft no dia seguinte para Alexandria. Foi quando minha sorte começou a melhorar. Quando o siciliano foi à loja de vinhos pedir novas ordens, anunciou: — Outro cidadão fez uma reserva para a mesma viagem, cidadão Julius. O senhor gostaria de dividir um compartimento com ele? É bom quando você aluga um servo que tenta economizar seu dinheiro. Perguntei, com aprovação: — Que tipo de pessoa é ele? Não quero passar a viagem preso com um chato. — Poderá ver por si mesmo, Julius. Ele está nos banhos neste momento. É um judeu. Seu nome é Flavius Samuelus. Cinco minutos depois eu havia tirado as roupas, enrolado um lençol no corpo e estava no tepidarium, dando uma olhada nos corpos por lá. Localizei Sam de primeira. Estava esparramado sobre uma laje, com os olhos fechados, enquanto um massagista so30

cava sua carne velha e gorda. Deitei-me na laje a seu lado sem falar nada. Quando ele, resmungando, se virou, e abriu os olhos, eu disse: — Oi, Sam. Levou um momento para me reconhecer; estava sem óculos. Mas quando apertou os olhos, seu rosto se abriu num sorriso. — Julius! — exclamou. — Que mundo pequeno! É bom ver você novamente! Esticou o braço para o cumprimento das mãos nos cotovelos, realmente hospitaleiro, como eu esperava; pois uma das coisas de que eu mais gosto em Flavius Samuelus é que ele gosta de mim. Uma das outras coisas de que eu mais gosto em Sam é que, embora ele seja um competidor, é também uma fonte inesgotável de recursos. Ele também escreve romances científicos. Faz mais do que isso. Ele me ajudou com a parte científica de meus próprios romances científicos um sem-número de vezes, e passou pela minha cabeça, assim que ouvi o siciliano dizer seu nome, que ele poderia ser justamente o que eu procurava na presente emergência. Sam tem pelo menos setenta anos de idade. É careca. Tem uma grande mancha marrom, de velhice, no topo da cabeça. Sua papada é flácida e tem as pálpebras caídas. Mas você nunca pensaria assim falando com ele ao telefone. Tem a voz rápida e firme de um jovem de vinte anos e a cabeça de um jovem também... de um rapaz de vinte anos extraordinariamente brilhante. Ele é muito animado. Isso complica as coisas, porque o cérebro de Sam trabalha mais rápido do que deveria. Às vezes isso dificulta a sua fala, porque ele está normalmente três ou quatro passos à frente da maioria das pessoas. De modo que a próxima coisa que disser será provavelmente a resposta a alguma pergunta que você inevitavelmente iria fazer, mas ainda não havia pensado. É um fato desagradável da vida o de que os romances científicos de Sam vendem mais do que os meus. Não o odeio por isso, o que constitui um tributo à sua personalidade. Ele tem uma desvantagem injusta sobre os demais escritores, porque é 31

astrônomo profissional. Só escreve romances científicos por prazer, nas horas vagas que não são muitas. A maior parte das horas de trabalho ele as passa controlando sua própria sonda espacial, a que circula o planeta Dione, de Epsilon Eridani. Eu consigo suportar o seu sucesso (e, admito, seu talento), porque ele é generoso com suas idéias. Assim que concordamos em dividir o compartimento do hovercraft, coloquei o problema para ele diretamente. Bem, quase diretamente. Eu disse: — Sam, andei pensando numa coisa. Quando os olimpianos chegarem aqui, o que é que isso vai significar para nós? Naturalmente, ele era a pessoa correta para se perguntar isso; Sam sabia mais sobre os olimpianos do que qualquer humano. Mas era a pessoa errada de quem se esperar uma resposta direta. Ele se levantou, enrolando a túnica no corpo. Dispensou o massagista e me olhou divertido com aqueles olhos negros e vivos sob as sobrancelhas largas e as pálpebras caídas. — Por quê? Você está precisando de uma história para um novo romance científico? — perguntou. — Diabos! — exclamei, em tom jocoso, e decidi abrir o jogo. — Não seria a primeira vez que lhe peço isso, Sam. Só que desta vez eu realmente estou precisando. Contei-lhe a história do romance que os censores haviam proibido e do editor que estava atrás de uma reposição rápida... Ou do meu sangue, o que viesse primeiro. Mordiscou distraidamente a junta do polegar. — Sobre o que era esse seu romance? — perguntou, curioso. — Era uma sátira, Sam. Olimpiano em Pele de Asno. Sobre os olimpianos vindo para a Terra num transportador de matéria, só que acontece um problema na transmissão e um deles acidentalmente se transforma num asno. Tem algumas partes engraçadas. — Claro que tem, Julius. Tem tido por uns dois mil anos. — Bem, eu não disse que era totalmente original, só que... Ele estava balançando a cabeça. — Pensei que você fosse mais inteligente, Julius. O que esperava que os censores fizessem, estragar o evento mais im32

portante da história humana por causa de um romance científico idiota? — Não é idiota! — É idiota arriscar ofendê-los — retrucou, com convicção. — Melhor se prevenir e não escrever nada sobre eles. — Mas todo mundo está fazendo isso! — Ninguém os está transformando em asnos — observou. — Julius, existe um limite para a especulação em romances científicos. Quando você escreve sobre os olimpianos, está bem nesse limite. Qualquer especulação a respeito deles pode ser suficiente para que desistam completamente do encontro, e podemos nunca mais ter uma chance dessas. — Eles não fariam... — Ah, Julius — ele disse, aborrecido. — Você não tem nenhuma idéia do que eles fariam ou não fariam. Os censores tomaram a decisão certa. Quem sabe o que os olimpianos podem ser? — Você sabe. Ele riu, mas de maneira estranha. — Gostaria de saber. A única coisa que sabemos é que eles não se mostram a qualquer raça inteligente; possuem padrões morais. Entretanto, não temos a menor idéia de que padrões são esses. Não sei o que seu livro diz, mas talvez você tivesse especulado que os olimpianos estavam nos trazendo toda espécie de coisas novas: uma cura para o câncer, novas drogas psicodélicas, até mesmo a vida eterna... — Que tipo de drogas psicodélicas eles poderiam trazer, exatamente? — perguntei. — Calma, rapaz! Estou lhe dizendo para não pensar nesse tipo de idéia. A questão é que o que quer que você tenha imaginado poderia facilmente se tornar a coisa mais repulsiva e imoral em que os olimpianos podem pensar. Os riscos são muito grandes. Esta é uma chance única. Não podemos estragá-la. — Mas eu preciso de uma história — reclamei. — Está bem — ele admitiu. — Suponho que precisa. Deixe-me pensar a respeito. Vamos nos lavar e sair daqui. Enquanto estávamos no banho quente, enquanto nos vestíamos, enquanto comíamos um almoço leve, Sam falava sobre 33

a conferência que iria acontecer em Alexandria. Eu estava gostando de ouvir. Além do fato de que tudo o que ele dizia era interessante, comecei a sentir esperanças quanto a poder realmente escrever um livro para Marcus. Se alguém podia me ajudar, era Sam; ele era viciado em problemas. Não resistia a um desafio. Foi por isso, sem dúvida, que foi o primeiro a resolver o enigma composto pelos interminavelmente repetidos squis e squás dos olimpianos. Se você simplesmente considerar o “dit” como o número 1, o squi como o sinal de “ + “ e o squá como “ = “, então Dit squi dit squá dit dit significa simplesmente 1 + 1=2 Isso era fácil. Não era preciso ter um supercérebro como o de Sam para substituir nossos termos pelos deles e revelar a mensagem como simples aritmética... exceto pelo misterioso “wuuuuu”: dit squi dit squi dit squi dit squá wuuuuu. O que o “wuuuuu” significava? Uma convenção especial para representar o número 4? Sam descobriu imediatamente, é claro. Assim que ouviu a mensagem ele telegrafou a solução de sua biblioteca em Pádua: — A mensagem pede uma resposta. “Wuuuuu” quer dizer um ponto de interrogação. A resposta é quatro. Por isso, a resposta para as estrelas foi transmitida assim: dit squi dit squi dit squi dit squá dit dit dit dit. A raça humana havia passado no exame de admissão e o lento processo de estabelecer comunicações começava. Quatro anos se passaram até a resposta dos olimpianos. Obviamente, não estavam por perto. Também obviamente não eram pessoas simples como nós, enviando mensagens de rádio de um planeta na órbita de uma estrela a dois anos-luz de distância, porque não havia nenhuma estrela ali; a resposta veio de um ponto no espaço onde nenhum de nossos telescópios e sondas espaciais havia descoberto coisa alguma. A essa altura Sam estava profundamente envolvido. Ele fora o primeiro a observar que os alienígenas haviam sem dúvida escolhido enviar um sinal fraco, pois queriam estar certos de que nossa tecnologia estava razoavelmente bem desenvolvida antes 34

que tentássemos responder. Ele havia sido um dos impacientes que convenceram as autoridades do Colégio a começarem a transmissão de todos os tipos de fórmulas matemáticas, e mais tarde de simples relações entre palavras, para começar a enviar alguma coisa para os olimpianos enquanto esperávamos as ondas de rádio chegarem aonde quer que fosse e retornarem com uma resposta. Sam não era o único, naturalmente. Ele não era nem o principal investigador quando começamos o trabalho duro de desenvolver um vocabulário comum. Havia melhores especialistas que Sam em lingüística e análise criptográfica. Mas foi ele o primeiro a observar que estavam levando cada vez menos tempo para responder a nossas mensagens. O que significava que os olimpianos estavam vindo em nossa direção. A essa altura eles haviam começado a enviar mosaicos de imagens. Eles vinham em seqüências de ‘dits’ e ‘dás’ de 550.564 bits de comprimento. Alguém logo percebeu que aquela era a raiz quadrada de 742, e quando exibiram a seqüência como uma matriz quadrada, usando pontos pretos para os dits e brancos para os dás, a imagem do primeiro olimpiano apareceu. Todos se lembram daquela imagem. Todas as pessoas da Terra a viram, menos os totalmente cegos, pois foi exibida em todas as telas de TV e jornais do mundo. Na verdade até mesmo os cegos ouviram as descrições anatômicas que os comentaristas faziam. Duas caudas. Uma coisa carnuda, que pendia do queixo como uma barba. Quatro pernas. Uma fileira de espinhos descendo o que parecia ser a coluna vertebral. Olhos afastados e esbugalhados. Aquele primeiro olimpiano não era nem um pouco bonito, mas era definitivamente alienígena. Quando a seqüência seguinte apareceu, quase igual à anterior, foi Sam quem descobriu imediatamente que era apenas uma imagem do mesmo ser visto de outro ângulo. Os olimpianos precisaram de 41 imagens para nos fornecer descrição completa daquele primeiro alienígena... Depois, começaram a enviar imagens dos outros. Nunca havia ocorrido a ninguém, nem mesmo a Sam, que estaríamos lidando não com uma super-raça, mas com pelo me35

nos vinte e duas. Havia todas essas formas separadas de seres alienígenas, cada uma mais feia e mais estranha que a precedente Esse foi um dos motivos pelos quais os sacerdotes não gostaram que os chamássemos de “olimpianos”. Nós somos muito ecumênicos com relação aos nossos deuses, mas nenhum deles se parece com qualquer um deles e alguns dos sacerdotes mais velhos nunca pararam de reclamar da blasfêmia. Na metade do terceiro prato de nosso almoço e da segunda garrafa de vinho, Sam interrompeu sua descrição do último comunicado dos olimpianos (eles estavam acusando o recebimento de nossas transmissões sobre história da Terra) para levantar a cabeça e sorrir para mim. — Descobri — disse. Virei-me e olhei para ele, surpreso. Na verdade, não estava prestando muita atenção ao seu monólogo, porque estava com os olhos na nossa bela garçonete kievana. Ela atraiu minha atenção porque... bem, quero dizer, depois de ter atraído minha atenção pela sua figura extremamente bem desenvolvida e a escassez de roupas que a cobriam... porque usava um amuleto dourado de cidadã no pescoço. Não era uma escrava. Isso a tornava ainda mais misteriosa. Não consigo realmente me interessar por escravas, porque não tem graça, mas me interessei bastante por aquela. — Você está me ouvindo? — Sam perguntou, irritado. — Claro que sim. O que você descobriu? — A resposta ao seu problema — disse, radiante. — Não só um argumento para um romance científico. Um tipo totalmente novo de romance científico! Por que é que você não escreve um livro sobre o que poderá acontecer se os olimpianos não vierem? Adoro a maneira como metade do cérebro de Sam trabalha em cima de questões enquanto a outra metade está fazendo alguma coisa completamente diferente, mas nem sempre consigo acompanhar o seu raciocínio. — Não entendi o que você quer dizer. Se eu escrever sobre os olimpianos não vindo, não será tão ruim quanto se eu escrever sobre eles vindo? — Não, não — protestou. — Escute o que estou dizendo! 36

Deixe os olimpianos totalmente de fora. Escreva simplesmente sobre um futuro que poderia acontecer, mas não aconteceu. A garçonete estava sobre nós, recolhendo os pratos usados. Eu estava consciente de que ela ouvia enquanto eu respondia com dignidade: — Sam, esse não é o meu estilo. Meus romances científicos podem não vender tão bem quanto os seus, mas também tenho integridade. Jamais escrevo algo em que não acredite ser no mínimo possível. — Julius, pare de pensar com a cabeça de baixo — então ele havia percebido a atenção que eu dava à garota — e use esse seu cérebro lamentavelmente pequeno. Estou falando de algo que poderia ser possível, em algum futuro alternativo, se você entende o que quero dizer Não entendi — O que é um “futuro alternativo”? — É um futuro que poderia acontecer, mas não aconteceu — explicou. — Como se os olimpianos não viessem nos ver. Balancei a cabeça, intrigado. — Mas nós já sabemos que eles vêm! — Suponha que não viessem! Suponha que eles não tivessem entrado em contato conosco há anos atrás. — Mas entraram — eu disse, tentando compreender seu ponto de vista. Ele apenas suspirou. — Vejo que não consigo fazê-lo entender — disse, enrolando a túnica em torno do corpo e se levantando. — Vá em frente com sua garçonete. Tenho algumas mensagens a enviar. Vejo você a bordo. Bem, por um motivo ou outro não fui a lugar algum com a garçonete kievana. Ela disse que era casada, feliz e monógama. Não entendo por que um marido legítimo e livre deixaria a mulher trabalhar num lugar daqueles, mas fiquei surpreso por ela não ter demonstrado mais interesse por alguém da minha linhagem... É melhor explicar isso. Sabem, minha família é famosa. Os genealogistas dizem que descendemos da linha do próprio Julius Caesar. 37

Às vezes menciono esse fato pessoalmente, embora na maioria das vezes só depois de beber. (Suponho que essa foi uma das razões pelas quais Lidia, sempre esnobe, ficou comigo em primeiro lugar.) Não é uma questão séria. Afinal de contas, Julius Caesar morreu há mais de dois mil anos atrás. Sessenta ou setenta gerações se sucederam desde então, sem contar com o fato de que, embora o ancestral Julius certamente tenha deixado muitas crianças atrás de si, nenhuma delas foi com qualquer mulher que tivesse desposado. Nem sequer pareço muito romano. Deve ter havido um nórdico ou dois na linhagem, porque sou alto e tenho cabelos fartos, um tipo físico que nenhum romano respeitável jamais teve. Mesmo assim, ainda que eu não seja exatamente o herdeiro legal do divino Julius, pelo menos venho de uma linhagem muito antiga e distinta. Era de se esperar que uma simples garçonete levasse isso em consideração antes de me recusar. Mas me recusou. Quando acordei na manhã seguinte (sozinho), Sam já tinha saído do hotel, embora o hovercraft para Alexandria não fosse partir antes da noite. Não o vi durante todo o dia. Não procurei muito por ele, pois acordei me sentindo um pouco envergonhado. Por que um homem crescido, e autor consagrado de mais de quarenta romances científicos que venderam muito bem (bem, talvez razoavelmente) deveria depender de mais alguém para suas idéias? Por isso, entreguei minha bagagem ao servo, paguei a conta do hotel e tomei o subterrâneo para a Biblioteca de Roma. Roma não é apenas a capital imperial do mundo, também é a capital científica. Os grandes telescópios antigos nas colinas não são mais de muito uso, pois as luzes da cidade prejudicam a observação dos céus, e de qualquer forma os grandes telescópios óticos estão hoje em dia todos no espaço. Mesmo assim, eles estão onde Galileu detectou o primeiro planeta extra-solar e Tycho fez suas famosas espectrografias da última grande supernova em nossa galáxia. A tradição científica sobreviveu. Roma ainda é a sede do Colégio das Ciências. É por isso que a Biblioteca de Roma é tão grande para uma pessoa como eu. Eles possuem acesso direto ao banco de dados do Colégio, e você não precisa sequer pagar tarifas de transmis38

são. Inscrevi-me, coloquei meus estiletes e tabuinhas sobre a mesa que me deram e comecei a acessar os arquivos. Em algum lugar tinha de haver uma idéia para um romance científico de aventura que ninguém tivesse escrito... Disso não havia dúvida, eu só não conseguia achar esse lugar. Normalmente você pode conseguir muita ajuda de um bibliotecário pesquisador inteligente, mas parecia haver muita gente nova na Biblioteca de Roma, ibéricos na maioria; reduzidos a status de escravos porque haviam tomado parte no levante lusitano do ano anterior. Houve tantos ibéricos no mercado numa certa época que provocaram uma baixa nos preços. Eu teria comprado alguns para especulação, sabendo que o preço voltaria a subir; afinal de contas, não há tantos levantes assim, e a demanda para escravos nunca acaba. Mas eu estava temporariamente curto de capital, e além do mais você tem de alimentálos. Se os da Biblioteca de Roma fossem uma amostra boa, não haveria barganhas de qualquer espécie. Desisti. O tempo havia melhorado o bastante para tornar atraente uma volta pela cidade, e por isso me dirigi ao monotrilho de Ostia. Roma estava muito movimentada, como sempre. Havia uma tourada no Coliseu e corridas no Circo Máximo. Ônibus de turismo engarrafavam as ruas estreitas. Uma longa procissão religiosa circulava o Panteão, mas não me aproximei o bastante para ver que deuses estavam sendo homenageados. Não gosto de multidões. Especialmente multidões romanas, porque há mais estrangeiros em Roma do que em Londres; africanos, hindus, chineses e nórdicos... todas as raças na face da Terra mandam seus turistas para visitarem a Cidade Imperial. E Roma retribui com espetáculos. Parei em um deles, a troca da guarda da Casa Dourada. Naturalmente, o César e sua esposa não eram vistos em parte alguma. Estavam em alguma de suas intermináveis excursões pelos domínios, sem dúvida, ou pelo menos abrindo um novo supermercado em algum lugar. Mas a família algonquina à minha frente se emocionou quando as legiões de honra marcharam e contramarcharam com seus estandartes em volta do palácio. Meu conhecimento da língua cherokee era suficiente para perguntar ao algonquin de onde eles eram, mas os idiomas 39

não são realmente muito próximos e o cherokee do homem conseguia ser pior do que o meu. Ficamos apenas sorrindo um para o outro. Assim que as legiões saíram do caminho, eu me dirigi para o trem. No fundo, no fundo, eu sabia que deveria estar me preocupando com minha situação financeira. O relógio estava correndo e meus trinta dias de graça acabando. Mas eu não estava preocupado. Estava confiante. Acreditava no meu bom amigo Flavius Samuelus, que, eu sabia, (não importava o que fizesse com a maior parte do cérebro) ainda estava cogitando uma idéia para mim com alguma parte dele. Não me ocorreu que até mesmo Sam tivesse limitações. Ou que algo muito mais importante que meus próprios problemas estivesse tomando sua atenção. Não vi Sam entrar no hovercraft e não o vi em nosso compartimento. Mesmo quando as pás começaram a girar e deslizamos em direção ao mar Tirreno, ele não estava lá. Adormeci, começando a achar que ele tinha ficado para trás; mas muito mais tarde, acordei sonolento, apenas o suficiente para ouvi-lo entrar. — Estava na ponte — explicou, quando murmurei alguma coisa. — Durma de novo. Vejo você amanhã. Quando acordei, pensei que havia sido um sonho, pois ele não estava lá. Mas sua cama estava desarrumada, embora não muito, e o comissário de bordo me assegurou disso quando veio me trazer meu vinho matinal. Sim, o cidadão Flavius Samuelus certamente estava a bordo. Estava nos aposentos do próprio capitão, na verdade, embora o comissário não soubesse dizer o que fazia lá. Passei a manhã relaxando no convés, coarando ao sol. No momento a embarcação não era exatamente um hovercraft. Havíamos passado pelos estreitos da Sicília durante a noite, e agora, no Mediterrâneo aberto, o capitão havia baixado as pernas, levantado as saias e estendido as hélices, transformando o veículo em um aerobarco. Deslizávamos pelo mar a uns duzentos quilômetros por hora. Era uma viagem suave e relaxante; as palhetas que nos suportavam estavam a uns vinte metros abaixo 40

da superfície da água, e portanto não havia ação das ondas para nos sacudir. Deitado de costas com os olhos semicerrados por causa do sol quente do sul, pude ver um avião de três asas erguer-se do horizonte atrás de nós e gradualmente nos ultrapassar, para desaparecer à nossa frente. O avião não estava indo muito mais rápido que nós... e tínhamos todo o conforto, enquanto eles pagavam o dobro. Abri totalmente os olhos quando percebi de relance que havia alguém em pé ao meu lado. Na verdade, sentei-me rápido, porque era Sam. Parecia não ter dormido muito e estava segurando o chapéu de sol para evitar que o vento o levasse. — Onde é que você estava? — perguntei — Não ouviu as notícias? Balancei a cabeça. — As transmissões dos olimpianos pararam. Foi aí que realmente arregalei os olhos, porque era uma surpresa desagradável. Mesmo assim, Sam não parecia muito perturbado. Aborrecido, sim. Talvez até um pouco preocupado, mas não tão abalado quanto eu estava preparado para me sentir. — Provavelmente não é nada — disse. — Pode ser apenas interferência do sol. Ele está em Sagitário agora, quase entre nós e eles. Há uns dois dias que temos tido problemas de estática. Perguntei: — Então as,transmissões recomeçarão logo? Ele deu de ombros e pediu ao comissário de convés um daqueles pratos quentes de que os judeus gostam. Quando voltou a falar foi sobre outro assunto. — Acho que ontem não consegui fazer você entender o que eu queria dizer. Deixe ver se consigo explicar o que entendo por mundo alternativo. Lembra-se de sua história? De como Fornius Vello conquistou os Maias e romanizou os Continentes Ocidentais há seiscentos ou setecentos anos atrás? Bem, suponha que ele não o tivesse feito. — Mas fez, Sam. — Eu sei — concordou Sam, pacientemente. — Estou dizendo suponha. Suponha que as legiões tivessem sido derrotadas na batalha de Tehultapec. 41

Caí na gargalhada. Tinha certeza de que ele estava brincando. — As legiões? Derrotadas? As legiões jamais foram derrotadas! — Isso não é verdade — disse Sam, em tom de reprovação. Ele odeia quando as pessoas não entendem exatamente o que ele quer dizer. — Lembre-se de Varus. — Ah, que diabo, Sam, isso é história antiga! Quando foi há dois mil anos atrás? No tempo de César Augusto? Seja como for foi apenas uma derrota temporária. O imperador Druso tomou as águias de volta. E tomou toda a Gália para o Império, também. Essa foi uma das primeiras grandes conquistas transalpinas. Os gauleses hoje em dia são tão romanos quanto qualquer um, especialmente em matéria de beber vinho. Ele sacudiu a cabeça. — Suponha que Fornius Vello tivesse tido uma derrota ‘temporária’, então. Tentei acompanhar seu raciocínio, mas não era fácil. — Que diferença isso teria feito? Mais cedo ou mais tarde as legiões teriam conquistado. Elas sempre conquistam, você sabe. — Isso é verdade — concordou. — Mas se essa conquista em particular não tivesse acontecido naquela época, todo o curso da história teria sido diferente. Não teríamos tido as grandes migrações rumo ao ocidente para preencher aqueles continentes vazios. Os chineses e os hindus não teriam sido cercados por todos os lados, de maneira que ainda poderiam ser nações independentes. Teria sido um mundo diferente. Você vê aonde estou querendo chegar? É isso que entendo como um “mundo alternativo”: um mundo que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Tentei ser educado com ele. — Sam — disse —, você acabou de descrever a diferença entre romance científico e fantasia. Não escrevo fantasia. Além do mais — continuei, sem querer ferir seus sentimentos — não 42

vejo como as coisas poderiam ter sido diferentes. Não posso crer que o mundo mudasse a ponto de se poder escrever um romance científico a respeito. Ele me olhou sem expressão no rosto por um momento, depois virou-se e olhou para o mar. Depois, sem transição, disse: — Há uma coisa engraçada. As colônias marcianas também não estão recebendo transmissões. E não estão bloqueadas pelo sol. Franzi a testa. — O que isso quer dizer, Sam? Ele balançou a cabeça. — Gostaria de saber — respondeu. Capítulo 3 “Na Velha Alexandria” O Faros estava bem visível na meia-luz do crepúsculo quando chegamos ao porto de Alexandria. Nosso veículo estava funcionando de novo como um hovercraft, em velocidade reduzida, e jogava bastante. Assim que entramos no porto, porém, a água ficou calma. Sam havia passado a tarde no camarote do capitão, mantendo contato com o Colégio das Ciências, mas apareceu quando atracamos. Ele me viu olhando para o balcão de aluguel no cais, mas balançou a cabeça. — Não se preocupe em alugar servos, Julius — ordenou. — Deixe os servos de minha sobrinha levarem a sua bagagem. Vamos ficar na casa dela. Isso era uma boa notícia. Os quartos de hotel em Alexandria eram quase tão caros quanto em Roma. Agradeci a ele, mas ele nem me ouviu. Entregou nossas malas a um carregador do domicílio da sobrinha, um pequeno árabe que era bem mais forte do que parecia, e desapareceu em direção à Câmara do Senado Inferior Egípcio, onde teria lugar a conferência. Chamei um triciclo e dei ao piloto o endereço da sobrinha de Sam. Não importa o que os egípcios pensem, Alexandria é uma cidadezinha suja. Os choctaws têm uma capital maior e a dos 43

kievanos é mais limpa. A famosa biblioteca de Alexandria também é uma piada. Depois que o meu (gostaria de acreditar) ancestral Júlio César queimou-a totalmente, os egípcios a reconstruíram. Mas é tão antiga que não tem nada além de livros. A casa da sobrinha de Sam ficava em uma parte particularmente decadente daquela cidade decadente, a apenas alguns quarteirões do porto. Podia-se ouvir o barulho dos guindastes nas docas, mas não muito bem por causa do barulho das próprias ruas, repletas de furgões de artigos diversos e pilotos se xingando enquanto se esgueiravam pelas curvas estreitas. A casa era maior do que eu esperava, mas, pelo menos do lado de fora, isso era tudo o que se podia dizer. A fachada era de estuque egípcio barato em vez de mármore e ao lado ficava uma central de aluguel de escravos. Pelo menos, lembrei-me, era de graça. Bati à porta e gritei pelo mordomo. Não foi o mordomo que abriu a porta para mim. Foi a sobrinha de Sam em pessoa, e foi uma surpresa agradável. Era quase da minha altura e tão loura quanto eu. Além disso, era jovem e de muito boa aparência. — Você deve ser Julius — disse. — Sou Rachel, sobrinha do cidadão Flavius Samuelus ben Samuelus, e você é bem-vindo em minha casa. Beijei-lhe a mão. É um costume kievano que eu gosto, especialmente com garotas bonitas que ainda não conheço bem mas espero conhecer. — Você não parece judia — observei. — Você não parece um escritor de romances científicos — ela retrucou. Sua voz era menos fria do que as palavras, mas não muito. — Tio Sam não está e no momento, infelizmente, estou muito ocupada. Basilius lhe mostrará seus aposentos e oferecerá algo para beber. Costumo provocar uma primeira impressão melhor nas mulheres jovens. Em geral, me esforço para isso, mas ela me apanhou de surpresa. Eu tinha mais ou menos esperado que a sobrinha de Sam se parecesse mais ou menos com ele, com a 44

provável exceção da careca e do rosto enrugado. Não podia estar mais enganado. Também estava enganado com a casa. Era grande. Devia haver bem uns doze quartos, sem contar com os aposentos dos servos. O átrio estava coberto com uma daquelas películas parcialmente refletoras, que mantêm a maior parte do calor do lado de fora. O famoso sol egípcio estava bem acima de nossas cabeças quando Basilius, o mordomo de Rachel, me mostrou meus aposentos. Eram agradáveis, bem iluminados e arejados, mas Basilius sugeriu que eu poderia gostar de ficar no lado de fora. Estava certo. Levou-me vinho e frutas no átrio, num confortável banco à beira de uma fonte. Através da película o sol parecia apenas pálido e agradável ao invés de mortalmente quente. Os frutos também estavam frescos: abacaxis do Líbano, laranjas da Judéia, maçãs que devem ter vindo de algum lugar na Gália. A única coisa errada que eu podia ver era que a própria Rachel tinha ficado em seus aposentos, o que não me deu a oportunidade de lhe passar uma melhor impressão. Entretanto, ela havia deixado instruções para meu conforto. Basilius bateu palmas e apareceu outro servo, levando estiletes e tabuinhas para o caso de eu decidir trabalhar. Fiquei surpreso em ver que tanto Basilius quanto o outro eram africanos; normalmente eles não se envolvem em conflitos políticos ou problemas de qualquer espécie com os edis e portanto não há muitos escravos entre eles. A fonte era uma estátua de Cupido. Em outras circunstâncias, eu teria considerado isso um bom augúrio, mas ali aquilo não parecia significar nada. O nariz de Cupido estava quebrado e a fonte era obviamente mais velha que Rachel. Pensei em simplesmente ficar ali até que Rachel aparecesse, mas quando perguntei a Basilius quando isso aconteceria ele me olhou com indulgência. — A cidadã Rachel trabalha durante toda a tarde, cidadão Julius — informou-me. — Ah? E em quê trabalha? — A cidadã Rachel é uma famosa historiadora — ele respondeu. — Muitas vezes, trabalha até a hora de dormir. 45

Quando ele se virou para se retirar, perguntei: — Você não parece um criminoso muito perigoso. Se não estou sendo indiscreto, como foi que se tornou escravo? — Ah, não foi por nenhum ato violento, cidadão Julius — assegurou-me. — Simplesmente por algumas dívidas. Descobri facilmente o caminho para a Câmara do Senado Inferior Egípcio. Havia muito tráfego por aqueles lados, porque ela é, afinal de contas, um dos pontos turísticos de Alexandria. O Senado Inferior não estava reunido na ocasião. Não havia motivo por que devesse estar, é claro, pois para quê os egípcios necessitavam de um senado de qualquer espécie? O tempo em que tomavam qualquer decisão importante por conta própria estava há muitos séculos no passado. Mas eles haviam se mobilizado para a conferência. O Templo do Senado tinha nichos para pelo menos cinqüenta deuses. Havia as costumeiras imagens de Amon-Rá, Júpiter e todas as outras figuras principais do panteão, é claro, mas para os visitantes eles instalaram Ahura-Mazda, Javé, Freya, Quetzalcoatl e pelo menos uma dúzia que não consegui identificar. Estavam todos decorados com oferendas frescas de flores e frutas, mostrando que os turistas, se não os astrônomos (e provavelmente os astrônomos também), estavam dispostos a tudo para ver restauradas as comunicações com os olimpianos. Os cientistas são uma raça agnóstica, é claro... a maioria das pessoas instruídas é, não é? Mas até mesmo um agnóstico arrisca um pedaço de fruta para aplacar um deus, na remota possibilidade de que esteja enganado. Do lado de fora da câmara os mascates já estavam montando suas barracas, embora a primeira sessão só fosse começar no dia seguinte. Comprei algumas tâmaras de um deles e comecei a caminhar, comendo tâmaras e estudando o friso de mármore na parede do Senado. Ele mostrava os campos ondulantes de milho, trigo e batatas que haviam tornado o Egito o celeiro do Império por dois mil anos. Não mostrava nada sobre os olimpianos, é claro. O espaço sideral não é um assunto que interesse muito aos egípcios. Preferem olhar para trás, para seu passado glorioso (eles dizem que é glorioso); na verdade, não haveria motivo para se fazer ali a conferência sobre os olimpianos, mas quem quer ir 46

a alguma cidade do norte em dezembro? Lá dentro, o grande salão estava vazio, exceto por escravos acomodando almofadas e escarradeiras para os participantes. Os salões de exibição fervilhavam de trabalhadores montando telões, mas eles não queriam pessoas por ali para atrapalhar e as cabines dos participantes estavam às escuras. Por sorte, encontrei a sala de imprensa aberta. Um copo de vinho de graça era sempre bom, e além do mais eu queria saber onde estava todo mundo. O escravo de plantão não sabia me dizer. — Deve haver uma reunião privada em algum lugar, é tudo o que sei... e existem todos esses jornalistas procurando alguém para entrevistar. Depois, olhando por sobre meu ombro enquanto eu me inscrevia, disse: — Ah, você é o sujeito que escreve aqueles romances científicos, não é? Talvez um dos jornalistas queira entrevistar você. Não foi o convite mais lisonjeiro que já recebi. Mesmo assim, não recusei. Marcus está sempre me aconselhando a fazer propaganda toda vez que tiver a oportunidade, porque ele acha que isso vende livros. Decidi tentar agradá-lo naquele momento. Entretanto, o jornalista não estava muito satisfeito. Eles haviam instalado dois estúdios no porão do Senado; quando encontrei o que me havia sido destinado, o entrevistador estava ajeitando o cabelo na frente do espelho. Uma dupla de técnicos estava sentada na frente de um aparelho de televisão assistindo a um programa humorístico. Quando me apresentei, o entrevistador tirou os olhos da própria imagem no espelho o tempo suficiente para lançar um olhar duvidoso em minha direção. — Você não é astrônomo de verdade — disse. Dei de ombros. Não podia negar. — Mesmo assim — resmungou — tenho que arrumar alguma espécie de matéria para a edição da noite. Tudo bem. Sente ali e tente parecer que sabe do que está falando. Começou a dar ordens à equipe técnica. Aquilo era estranho. Já havia reparado que os técnicos usavam o símbolo dos cidadãos. O entrevistador, não. Entretanto, era ele que dava as ordens. 47

Não gostei. Não gosto dessas grandes organizações comerciais que colocam escravos em posição de autoridade sobre cidadãos livres. É uma prática ruim. Empregos de preceptores, professores de faculdade, médicos e coisa parecida são bons; os escravos podem fazer isso tão bem quanto um cidadão, e normalmente bem mais barato. Mas existia naquele caso uma questão moral. Um escravo deve ter um senhor. Senão, como é que você pode chamá-lo de escravo? E quando você deixa o escravo ser o mestre mesmo em algo tão trivial quanto um estúdio de televisão, você abala os alicerces da sociedade. A outra coisa é que isso não é competição justa. Há cidadãos livres que precisam desses empregos. Uma coisa parecida aconteceu na minha própria linha de trabalho há alguns anos atrás. Havia dois ou três autores escravos escrevendo romances de aventura, mas o resto de nós se uniu e pôs um fim a isso, especialmente depois que Marcus comprou um deles para usar como subeditor. Nenhum cidadão escritor queria trabalhar com ela. Marcus finalmente teve de colocá-la no departamento de publicidade, em uma posição inofensiva. Assim, comecei a entrevista com a pulga atrás da orelha, e sua primeira pergunta me deixou ainda mais desconfiado. Foi direto ao assunto: — Quando está escrevendo seus romances científicos, você faz algum esforço para se manter em dia com a realidade científica? Sabe, por exemplo, que os olimpianos pararam de transmitir? Fiz uma careta para ele, sem ligar para as câmeras. — Romances científicos de aventura são sobre a realidade científica. E os olimpianos não “pararam”, como você afirmou. Houve apenas uma falha técnica de alguma espécie, provavelmente causada por interferência de rádio do nosso próprio sol. Como escrevi em meu romance anterior, Os Deuses do Rádio, impulsos eletromagnéticos são suscetíveis a... Ele me interrompeu. — Já se passaram — consultou o relógio de pulso — vinte e nove horas desde que eles pararam. Isso não parece apenas uma falha técnica. — Claro que é. Não há motivo para eles “pararem”. Nós já 48

demonstramos a eles que somos realmente civilizados. Primeiro, porque temos a tecnologia; segundo, porque não fazemos mais guerras. Isso ficou bem claro no primeiro ano de transmissão. Conforme eu disse no meu romance, Os Deuses do Rádio... Ele me olhou aborrecido, depois virou-se e piscou para a câmera. — Não se pode impedir um escritor de fazer propaganda dos seus livros, não é? — observou, em tom sarcástico. — Mas parece que ele não quer usar essa sua fantástica imaginação a não ser por dinheiro. Tudo o que estou pedindo é uma suposição sobre o motivo de os olimpianos não quererem mais falar conosco e tudo o que ele me oferece são comerciais. Como se houvesse alguma outra razão para se conceder entrevistas! — Escute aqui — interrompi asperamente. — Se você não pode ser educado quando fala com um cidadão, não estou disposto a continuar esta conversa. — Que assim seja, amigo — retrucou, com frieza. Virou-se para a equipe técnica. — Parem as câmeras — ordenou. — Vamos voltar para o estúdio. Isto é uma perda de tempo. Nós nos separamos aborrecidos um com o outro. Mais uma vez eu havia feito uma coisa pela qual meu editor teria prazer em me matar. Naquela noite, no jantar, Sam não me deu razão. — Ele é um homem desagradável, tenho certeza — disseme —, mas o problema é que receio que esteja certo. — Eles realmente pararam? Sam deu de ombros. — Não estamos mais alinhados com o sol, de modo que essa definitivamente não é a razão. Droga. Eu esperava que fosse. — Lamento muito, tio Sam — disse Rachel, em tom afetuoso. Ela estava usando um vestido branco simples, provavelmente de seda chinesa, sem enfeites. Ficava realmente muito bem nela. Acho que não havia nada por baixo, a não ser um corpo muito bem-feito de mulher. — Também lamento — ele grunhiu. 49

Suas preocupações não afetavam o apetite. Estava se deliciando com o primeiro prato (uma canja de galinha, com pedaços de massa) e, para ser sincero, eu também. Quaisquer que fossem os defeitos de Rachel, tinha um excelente cozinheiro. Era comida caseira, nada como um javali montês recheado com coelho, mas bem preparada e servida impecavelmente pelo mordomo, Basilius. — De qualquer maneira — disse Sam, acabando o que restava do prato — já cheguei a uma conclusão. — Por que os olimpianos pararam? — perguntei, para encorajá-lo a continuar com a revelação. — Não, não! Estou falando do seu romance, Julius. Minha idéia de mundo alternativo. Se você não quer escrever sobre um futuro diferente, que tal um presente diferente? Não tive a oportunidade de perguntar a ele do que estava falando, porque Rachel me passou a frente. — Só existe presente, Sam querido — observou. Eu não poderia ter dito melhor. Sam resmungou. — Até você, querida? — reclamou. — Estou falando de um novo tipo de romance científico. — Não leio muitos romances científicos — ela se desculpou, num tom que não tinha nada de desculpas. Ele ignorou isso. — Você é historiadora, não é? Ela não se deu ao trabalho de confirmar; obviamente, era a coisa mais importante de sua vida. — E se a história tivesse seguido um caminho diferente? Sorriu para nós, como se tivesse dito alguma coisa que fizesse sentido. Não retribuímos o sorriso. Rachel apontou uma falha em sua observação. — Não seguiu! — Eu disse suponha! Este não é o único “presente” possível, é apenas o único que calhou de ocorrer! Poderia haver milhões de outros presentes. Pense em todos os acontecimentos passados que poderiam ter ocorrido de forma diferente. Suponha que Annius Publius não tivesse descoberto os Continentes Ocidentais em 1820. Suponha que Caesar Publius Terminus não 50

tivesse decretado o início de um programa espacial em 2122. Não percebe o que estou querendo dizer? Em que espécie de mundo estaríamos vivendo agora se essas coisas não tivessem acontecido? Rachel abriu a boca para falar, mas foi salva pelo mordomo. Ele apareceu à porta com um olhar de apelo silencioso. Quando ela se desculpou para ver o que era necessário na cozinha, isso deixou a resposta para mim. — Nunca escrevi nada parecido, Sam — disse a ele. — E também não conheço ninguém que tenha escrito. — É exatamente o que estou querendo dizer! Seria algo completamente novo em romances científicos. Você não quer ser um pioneiro num tipo totalmente novo de história? Com a sabedoria que a experiência me deu, respondi: — Pioneiros não ganham dinheiro, Sam. Ele fez uma careta para mim. — Você mesmo podia escrever — sugeri. Isso simplesmente fez com que o aborrecimento se tornasse tristeza. — Queria poder. Mas até que esse negócio com os olimpianos se esclareça não vou ter muito tempo para romances científicos. Não, isso é com você, Julius Então Rachel voltou, parecendo satisfeita consigo mesma, seguida por Basilius, levando uma enorme bandeja de prata, que continha o prato principal. Sam ficou animadíssimo. E eu também. O prato principal era um cabrito assado inteiro, e percebi que Rachel havia sido chamada à cozinha para que pudesse enrolar uma guirlanda de flores ao redor dos chifres. Outra serva apareceu com um jarro de vinho, para reencher nossos cálices. No fim de contas, ficamos ocupados demais para qualquer conversa, com a exceção dos elogios à comida. Afinal, Sam deu uma olhada no relógio. — Excelente jantar, Rachel — disse à sobrinha. — Mas tenho que voltar. O que você acha? — O que eu acho de quê? — ela perguntou. — De ajudar o pobre Julius com algumas encruzilhadas históricas que ele possa usar numa história. 51

Ele não tinha ouvido uma palavra do que eu havia dito. Não tive de dizer isso, pois Rachel parecia preocupada. Ela disse, se desculpando: — Não sei nada sobre esses períodos que você citou — Publius Terminus e tudo o mais. Minha especialidade é o período imediatamente depois de Augustus, quando o Senado recuperou seu poder. — Ótimo — ele disse, satisfeito consigo mesmo e demonstrando isso. — É um período tão bom quanto qualquer outro. Pense em como as coisas poderiam ser diferentes se algum pequeno evento tivesse acontecido de forma diferente. Digamos, se Augustus não tivesse desposado lady Lívia e adotado seu filho Drusus para sucedê-lo. Virou-se para mim, encorajando-me a alimentar sua fagulha de inspiração. — Tenho certeza de que você vê as possibilidades, Julius! Vou dizer o que deve fazer. A noite é uma criança; leve Rachel para dançar ou coisa parecida; beba um pouco; ouça ela falar. O que há de errado nisso? Vocês dois são jovens e jovens devem se divertir! Aquela foi definitivamente a coisa mais inteligente que o inteligente Sam dissera em dias. Foi o que pensei, de qualquer forma, e Rachel era uma sobrinha boa o bastante para cumprir o conselho do tio. Como eu era um estranho na cidade, tive de deixá-la escolher o local. Depois dos primeiros dois lugares que ela mencionou, percebi que estava habilmente tentando poupar minha carteira. Não podia permitir isso. Afinal de contas, uma noite na cidade com Rachel era provavelmente mais barata, e de qualquer forma muito mais interessante do que o preço de um hotel e refeições. Escolhemos um lugar no porto, perto do quebra-mar. Era uma casa noturna rotativa, no último andar de um hotel construído no estilo de uma das antigas pirâmides. A medida que a sala girava lentamente, podíamos ver as luzes de Alexandria, os navios no porto e o próprio mar, com suas ondas suaves refletindo as estrelas. Estava preparado para esquecer toda aquela idéia de “mundos alternativos”, mas Rachel era mais responsável que eu. 52

Depois da primeira dança, ela lembrou: — Acho que posso ajudar você. Houve uma coisa que aconteceu no reinado de Drusus... — Temos que falar disso? — perguntei, enchendo novamente seu copo. — Tio Sam disse que sim. Pensei que você quisesse tentar um novo tipo de romance científico. — Não, quem quer isso é o seu tio. Olhe, há um probleminha aqui. É verdade que os editores estão sempre implorando algo novo e diferente, mas se você for tolo o bastante para dar isso a eles não serão capazes de reconhecer. Quando pedem algo “diferente”, na verdade o que querem é alguma coisa velha, em uma nova roupagem. — Eu acho — ela me disse, com a certeza de um oráculo e uma precisão semântica bem maior — que quando meu tio tem uma idéia, ela é geralmente boa. Não queria discutir com ela; nem sequer discordei. Deixei que falasse. — Sabe — comentou —, minha especialidade é a transferência de poder através da história dos primórdios de Roma. O que estou estudando neste exato momento é a Diáspora dos judeus, após o reinado de Drusus. Acho que você sabe o que aconteceu naquela época, não sabe? Na verdade, eu sabia... vagamente. — Não foi o ano da rebelião judaica? Ela fez que sim com a cabeça. Ficava muito bonita quando fazia esse gesto. O cabelo farto balançava graciosamente e os olhos faiscavam. — Você sabe, foi uma grande tragédia para os judeus, e, como meu tio disse, não precisava ter acontecido. Se o Procurador Tiberius estivesse vivo na época, não aconteceria. Limpei a garganta com um pigarro. — Acho que não sei bem quem foi Tiberius — respondi, em tom de quem pede desculpas. — Foi o Procurador da Judéia, aliás um procurador muito bom. Era justo e bondoso. Era irmão do imperador Drusus — aquele de quem meu tio estava falando, o filho de Livia, herdeiro por adoção de Caesar Augustus. O que restaurou o poder do Se53

nado depois que Augustus se apropriou da maior parte dele para si. De qualquer maneira, Tiberius foi o melhor governador que os judeus já tiveram, assim como Drusus foi o melhor imperador. Tiberius morreu apenas um ano antes da rebelião... comeu figos estragados, dizem, embora haja suspeitas de que tenha sido envenenado pela mulher, Julia, a filha de Augustus com sua primeira esposa... Interrompi a explicação com um gesto. — Estou ficando um pouco confuso com todos esses nomes — confessei. — Bem, o mais importante é Tiberius, e ele você sabe quem foi. Se estivesse vivo, a rebelião provavelmente não teria acontecido. Nesse caso, não teria uma diáspora. — Sei. Quer dançar? Ela franziu a testa para mim e sorriu. — Talvez esse não seja um assunto interessante... a não ser que você seja judeu, claro. Está bem, vamos dançar. Foi a melhor idéia que tive. Proporcionou-me a oportunidade de confirmar com os dedos o que os olhos, os ouvidos e o nariz já haviam me dito; ela era uma mulher jovem e muito atraente. Tinha insistido em se trocar, mas felizmente o novo vestido era tão leve e insinuante quanto o anterior, e as palmas de minhas mãos rejubilaram nos prazeres táteis de suas costas e braços. Sussurrei: — Desculpe se pareço estúpido. Eu realmente não sei muita coisa sobre história antiga... Você sabe, os primeiros mil anos após a Fundação da Cidade. Ela não se deu ao trabalho de observar que o mesmo não ocorria com ela. Limitou-se a acompanhar meus passos, de maneira muito agradável, até que de repente endireitou o corpo e disse: — Tive uma idéia diferente. Vamos voltar para nossos lugares. E ela já estava me contando enquanto deixávamos a pista de dança: — Vamos falar sobre seu próprio ancestral, Julius Caesar. Ele conquistou o Egito, bem aqui em Alexandria. Mas suponha que, ao invés disso, os egípcios o tivessem derrotado, como qua54

se o fizeram? Agora eu estava prestando muita atenção. Obviamente, ela havia se interessado em mim o bastante para fazer algumas perguntas a Sam! — Não poderiam — expliquei. — Julius jamais perdeu uma guerra. De qualquer forma... Descobri, para minha surpresa, que estava começando a levar a sério a idéia maluca de Sam. — ...isso seria realmente difícil de escrever, não seria? Se as legiões tivessem sido derrotadas, isso teria mudado o mundo inteiro. Você pode imaginar um mundo que não seja romano? Ela respondeu com delicadeza: — Não, mas isso é mais trabalho seu do que meu, não é? Balancei a cabeça. — É fantástico demais — observei. — Não conseguiria fazer os leitores acreditarem nisso. — Você podia tentar, Julius. Veja só, há uma possibilidade interessante. Drusus quase não sobreviveu para se tornar imperador. Ele foi ferido gravemente numa guerra na Gália, enquanto Augustus ainda estava vivo, Tiberius... você se lembra de Tiberius... — Sim, sim, o irmão dele. Aquele de quem você gosta. O que ele tornou Procurador da Judéia. — Esse mesmo. Bem, Tiberius cavalgou dia e noite para levar a Drusus os melhores médicos de Roma. Quase não conseguiu. Salvaram Drusus por muito pouco. — Sim? — insisti para encorajá-la. — E depois? Ela pareceu não ter certeza. — Bem, e depois eu não sei. Servi-lhe um pouco mais de vinho. — Acho que eu poderia imaginar algum tipo de idéia especulativa — disse, pensativo. — Especialmente se você me ajudasse com alguns dos detalhes. Suponho que Tiberius tivesse se tornado imperador em vez de Drusus. Você diz que ele era um bom homem; então, provavelmente, teria feito mais ou menos o que Drusus fez: restaurar o poder do Senado, depois que Augustus e meu honorável tátaratátara não sei das quantas Julius quase o colocaram fora de serviço... 55

Parei aí, surpreso com minhas próprias palavras. Parecia que eu estava começando a levar a idéia maluca de Sam a sério! Por outro lado, não era assim tão ruim. Também parecia que Rachel estava começando a me levar a sério. Esse era um bom pensamento. Ele me manteve alegre por uma meia dúzia de músicas e pelo menos mais uma hora de lições de história de seus belos lábios... bem até o momento em que, depois de retornarmos à sua casa, andei na ponta dos pés do meu quarto ao dela, para encontrar seu mordomo, Basilius, dormindo sobre um tapete à frente da porta de Rachel, com um enorme porrete ao lado. Não dormi direito naquela noite, Um dos motivos era glandular. Minha cabeça sabia que Rachel não queria que eu entrasse de mansinho no seu quarto, ou então não teria colocado o mordomo na entrada. Mas minhas glândulas não estavam contentes com essa notícia. Tinham se deliciado com o seu perfume, a sua imagem, o seu toque, e agora estavam reclamando que haviam sido enganadas. A pior parte era acordar toda hora para contemplar minha ruína financeira. Ficar pobre não era tão ruim. Todo escritor tem que aprender a ser pobre de tempos em tempos, entre os pagamentos. É um aborrecimento, mas não uma catástrofe. Você não se torna escravo só por ser pobre. Mas eu havia contraído umas dívidas bem grandes. E as dívidas podem tornar você um escravo. Capítulo 4 “O Fim do Sonho” Na manhã seguinte, acordei tarde e caindo pelas tabelas; e tinha de pegar um triciclo para a Câmara do Senado Inferior. Foi uma viagem demorada. À medida que nos aproximávamos, o tráfego ficava mais difícil. Pude ver a legião entrando em forma para a guarda cerimonial quando a procissão da Faraó se aproximava para abrir as cerimônias. O piloto só me levou até a praça externa e tive de esperar lá com todos os turistas, enquanto a Faraó desmontava de sua liteira real. 56

A multidão fazia um murmúrio suave e agradável, algo entre um riso e um suspiro. Esse era o espetáculo que os turistas queriam ver. Eles se aglomeravam, empurrando uns aos outros contra as espadas embainhadas dos legionários enquanto a Faraó, cabeça raspada, manto arrastando no chão, se dirigia para os santuários do lado de fora do prédio do Senado. Fez sacrifícios para os deuses, com reverência e sem pressa, enquanto os turistas tiravam fotos dela, e comecei a me preocupar com o tempo. E se ela, por uma questão ecumênica, decidisse visitar todos os cinqüenta santuários? Mas, depois de Ísis, Amon-Rá e da Mãe Nilo, ela entrou para declarar o Congresso aberto. Os legionários relaxaram. Os turistas começaram a voltar para os ônibus, agora tirando fotos uns dos outros, e acompanhei a Faraó ao interior da Câmara. Ela fez um bom discurso de abertura, com o que quero dizer que foi curto. A única coisa errada é que ela falava para uma maioria de assentos vazios. A Câmara do Senado Inferior de Alexandria tem uma capacidade para duas mil pessoas. Não havia mais que cento e cinqüenta. A maioria se juntava em pequenos grupos nos corredores e no fundo da câmara, e ninguém prestava atenção nenhuma à Faraó. Acho que ela percebeu isso e encurtou o discurso. Em um momento ela estava nos contando que a investigação científica do espaço sideral estava completamente de acordo com as antigas tradições do Egito (com quase ninguém ouvindo) e no seguinte sua voz parou sem aviso e ela entregou manto e cetro às suas servas. Atravessou majestosamente o palco e retirou-se para os bastidores. O ruído de conversa não diminuiu. Estavam falando, naturalmente, dos olimpianos. Mesmo quando o Presidente do Colégio deu um passo à frente e fez a chamada para o início da primeira sessão, a sala continuou quase vazia. Pelo menos a maior parte dos grupos espalhados no recinto se sentou, embora ainda em grupos, e ainda cochichando muito uns para os outros. Nem mesmo os palestrantes pareciam muito interessados no que diziam. O primeiro foi um Presidente Emérito Honorário das terras altas ao sul do Egito, e ele nos deu um resumo de tudo o que sabíamos a respeito dos olimpianos. 57

Leu seu ensaio tão rápido como se estivesse ditando a um escriba. Não era muito interessante. O problema, naturalmente, era que o texto havia sido preparado dias antes, quando as transmissões olimpianas ainda chegavam a nós e ninguém sequer imaginava que poderiam ser interrompidas. Simplesmente não parecia mais relevante. O que eu gosto em congressos científicos não são tanto os trabalhos que os palestrantes apresentam: posso obter melhores informações na biblioteca. Não é nem sequer o debate que segue cada trabalho, embora isso às vezes produza algumas coisas úteis. O que eu mais aprendo é o que chamo de “O som da ciência”: o tipo de jargão que os cientistas utilizam quando falam entre si sobre suas próprias especialidades. Normalmente, sento-me em algum lugar no fundo da sala, com tanto espaço ao meu redor quanto possível, tabuinha no colo e estilete na mão, escrevendo partes de diálogo e imaginando como colocá-las em meu próximo romance científico. Não houve muito disso hoje. Não houve muita discussão. Um a um os palestrantes se levantaram e leram seus textos, responderam a uma ou duas questões rápidas com respostas apressadas e saíram rápido; e quando cada um terminava, se retirava e a audiência ficava menor, porque, como finalmente percebi, só estava lá quem era obrigado. Quando o tédio me fez decidir que precisava de um copo de vinho e um lanche rápido mais do que ficar sentado ali com minha tabuinha ainda em branco, percebi que quase não havia ninguém nem mesmo no saguão. Nenhum rosto familiar. Ninguém parecia saber onde estava Sam. E, na parte da tarde, o presidente, curvando-se ao inevitável, anunciou que as sessões restantes seriam adiadas indefinidamente. O dia foi uma completa perda de tempo. Eu tinha muito mais esperanças para a noite. Rachel me cumprimentou com a notícia de que Sam havia mandado uma mensagem dizendo que estava ocupado e não poderia jantar conosco. — Ele disse onde estava? Ela balançou a cabeça. — Saiu com algumas pessoas do alto escalão — sugeri. Contei a ela sobre o fracasso da convenção. E então tive 58

uma ótima idéia. — Vamos sair para jantar, ao menos — propus. Rachel recusou firmemente a idéia. Foi sutil o bastante para não mencionar dinheiro, embora eu tivesse certeza de que Sam a havia informado de minha precária situação financeira. — Gosto muito mais da comida de meu cozinheiro do que a de qualquer restaurante. Vamos comer aqui. Nada de muito extravagante esta noite... Apenas uma refeição simples para nós dois. A melhor parte foi o “nós dois”. Basilius havia arrumado os divãs em forma de V, de modo que nossas cabeças ficaram muito próximas, com as mesas baixas no meio, ao nosso alcance. Assim que se acomodou, Rachel confessou: — Não produzi muito hoje. Não pude tirar aquela sua idéia da cabeça. A idéia era de Sam, na verdade, mas não vi qualquer motivo para corrigi-la. — Estou lisonjeado. Lamento ter prejudicado seu trabalho. Ela deu de ombros e continuou: — Li um pouco sobre esse período, especialmente acerca de uma interessante figura de menor importância que viveu naquela época, um pregador judeu chamado Jeshua de Nazaré. Já ouviu falar? Bem, a maioria das pessoas não, mas ele teve muitos seguidores na época. Eles se chamavam crestãos e eram um bando muito indisciplinado. — Receio não saber muito de história judaica — respondi. O que era verdade; mas então acrescentei: — Mas realmente gostaria de saber mais. O que não era verdade; ou pelo menos não era até então. — Claro — disse Rachel. Sem dúvida, para ela era bastante natural que todas as pessoas do mundo quisessem conhecer mais acerca do período depois de Augustus. — De qualquer maneira, esse Jeshua foi levado a julgamento por sedição. Foi condenado à morte. Fiquei surpreso. — Não apenas à escravidão? Ela balançou a cabeça. — Naquela época eles não faziam só escravizar criminosos, 59

faziam coisas físicas a eles. Chegavam a executá-los, às vezes de formas muito bárbaras. Mas Tiberius, como procônsul, decidiu que a pena era exagerada. Por isso, ele comutou a sentença de morte de Jeshua: mandou chicoteá-lo e o libertou. Acho que foi uma decisão muito boa. Caso contrário teria feito do homem um mártir, e sabem os deuses o que teria acontecido depois. Após isso, os crestãos simplesmente foram sumindo aos poucos... Basilius? Pode trazer o próximo prato. Observei com interesse Basilius obedecer. Eram cotovias com azeitonas! Aprovei, não apenas pelo fato de gostar do prato. A “refeição simples” era na verdade bem mais elaborada do que a que ela nos providenciara na noite anterior. As coisas estavam melhorando. — Pode me dizer uma coisa, Rachel? — perguntei. — Eu acho que você é judia, não é? — Claro que sim. — Bem, eu estou um pouco confuso. Acho que os judeus acreditavam no deus Jeová. — Claro, Julius. Nós acreditamos. — Sim, mas... Hesitei. Não queria estragar o jeito que as coisas estavam tomando, mas estava curioso. — Mas você diz “deuses”. Isso não é, bem, uma contradição? — De jeito nenhum — respondeu, com muita educação. — Os mandamentos de Jeová foram trazidos do alto de uma montanha pelo nosso grande profeta Moisés, e eles são muito claros a esse respeito. Um deles diz: “Não terás outros deuses antes de mim.” Bem, nós não temos, você vê? Jeová é nosso primeiro deus. Não há nenhum antes dele. Está tudo explicado nos escritos rabínicos. — E é isso que vocês seguem, os escritos rabínicos? Ela pareceu pensativa. — De certa forma. Somos um povo muito tradicional, Julius. Tradição é o que seguimos; os escritos rabínicos simplesmente explicam as tradições. Ela havia parado de comer. Também parei. Calmamente, estendi a mão para acariciar-lhe o rosto. 60

Ela não se afastou. Mas também não retribuiu. Depois de um momento, disse, sem olhar para mim: — Por exemplo, há uma tradição judaica segundo a qual uma mulher deve permanecer virgem até o dia do casamento. Minha mão se afastou de seu rosto sozinha, sem qualquer comando consciente da minha parte. — Hein? — E os escritos rabínicos definem mais ou menos a tradição, você vê. Eles dizem que o chefe da casa deve montar guarda ao quarto de uma filha solteira desde a primeira hora de cada noite; se não houver chefe homem, um escravo de confiança é designado para o trabalho. — Sei — eu disse. — Você já foi casada? — Ainda não — respondeu Rachel, voltando a comer. Eu também nunca havia me casado, embora, para falar a verdade, não fosse exatamente virgem. Não que eu tivesse alguma coisa contra o casamento. Era apenas que a vida de um escritor de romances científicos não era o que se poderia chamar exatamente de financeiramente estável. E também havia o fato de que eu não tinha encontrado a mulher com quem quisesse passar o resto de minha vida... ou, parafraseando Rachel, “ainda não”. Tentei afastar minha mente daquele assunto. Era certo que, se minhas finanças estavam precárias antes, agora estavam quase catastróficas. Na manhã seguinte fiquei pensando o que fazer com meu dia, mas Rachel resolveu isso para mim. Estava me esperando no átrio. — Sente-se aqui comigo, Julius — pediu, a mão no banco ao seu lado. — Acordei tarde, pensando, e acho que tenho algo para você. Suponho que aquele homem, Jeshua, tivesse sido executado, afinal de contas. Não era exatamente o cumprimento que eu estava esperando, nem algo a que eu tivesse dedicado um minuto sequer de pensamento. Mas era muito agradável estar sentado junto dela naquele bonito jardim, com o doce sol da manhã brilhando sobre nós através dos protetores translúcidos. — Sim? — disse como quem não quer nada, beijando-lhe 61

a mão em cumprimento. Ela esperou um momento antes de retirar a mão. — Aquela idéia abriu algumas possibilidades interessantes, Julius. Jeshua teria sido um mártir. Pode-se facilmente imaginar que, nessas circunstâncias, seus seguidores crestãos teriam tido muito mais poder de permanência. Poderiam ter crescido e se tornado realmente importantes. A Judéia sempre esteve numa espécie ou outra de revolta naquela época, de qualquer forma: havia toda sorte de profecias e rumores a respeito de messias e mudanças na sociedade. Os crestãos poderiam até vir a dominar toda a Judéia. Tentei ser diplomático. — Não há nada de errado em sentir orgulho de seus ancestrais, Rachel. Mas, realmente, que diferença isso teria feito? Eu obviamente não havia sido suficientemente diplomático. Ela estava começando a franzir a testa. Pensei rápido e tentei me corrigir: — Por outro lado — continuei —, suponha que você expandisse essa idéia além da Judéia. Ela franziu realmente a testa, mas mais de espanto do que de raiva. — O que você quer dizer com além da Judéia? — Bem, suponha que essa espécie de... Como é que você chamaria isso? Filosofia? Religião? — Acho que um pouco de cada. — Filosofia religiosa, então. Suponha que essa filosofia religiosa judaico-crestã de Jeshua se espalhasse pela maior parte do mundo, e não apenas na Judéia. Isso poderia ser interessante. — Mas isso realmente não acontec... — Rachel, Rachel — eu disse, cobrindo afetuosamente sua boca com meu dedo —, estamos falando sobre o que poderia acontecer se, lembra? Todo escritor de romances científicos está amarrado a uma grande mentira. Vamos dizer que essa é a minha. Vamos dizer que o judaico crestianismo se tornou uma religião mundial. Até mesmo Roma sucumbe. Talvez a Cidade se torne, o que você diria, o lugar para o Sinédrio dos judeuscrestãos. E então, o que acontece? 62

fiada.

— Me diga você — ela retorquiu entre divertida e descon-

— Ora, então — disse, exercitando a imaginação de escritor treinado de romances científicos — isso poderia desenvolver o tipo de condições de que você estava falando acerca dos velhos tempos na Judéia. Talvez o mundo inteiro se dividisse em facções e seitas, e elas lutassem entre si. — Guerras! — ela perguntou incrédula. — Grandes guerras. Por que não? Aconteceu na Judéia, não aconteceu? Eles poderiam continuar fazendo guerras através da história. Afinal de contas, a única coisa que manteve o mundo unido nos últimos dois mil anos tem sido a Pax Romana. Sem isso... Ora, sem isso — continuei, falando cada vez mais depressa e tomando notas mentais à medida que falava —, vamos dizer que todas as tribos da Europa se tornassem cidades-estado independentes. Como as gregas, só que maiores. E mais poderosas. E elas lutavam, os francos contra os nórdicos viks contra os belgas contra os celtas. Ela balançava a cabeça. Reclamou: — As pessoas não seriam tão tolas, Julius. — Como é que você sabe? De qualquer maneira, isto é um romance científico, querida. Não parei para ver como ela reagia ao “querida”. Continuei, mas sem deixar de notar que não tinha objeções. — As pessoas serão tão tolas quanto eu quiser que sejam... Tanto quanto eu conseguir tornar isso plausível o bastante para os fãs. Mas você não ouviu a melhor parte. Vamos dizer que os judeus-crestãos levem sua religião a sério. Não fazem nada contra a vontade de seu deus. O que Jeová diz ainda procede, não importa o resto. Isso significa, por exemplo, que eles não estão nem um pouco interessados em descobertas científicas... — Não, alto lá! — ela gritou, indignada de repente. — Você está tentando dizer que nós, judeus, não nos interessamos por ciência? Que eu não me interesso? Ou meu tio Sam? E nós certamente somos judeus. — Mas você não é uma judia crestã, amorzinho. Há uma grande diferença. Por quê? Porque eu digo que há, Rachel, e sou eu quem está escrevendo a história. Então, vamos ver... — parei 63

para pensar — ...Tudo bem, vamos dizer que os crestãos passem por um longo período de estagnação intelectual, e depois... — parei, não porque não soubesse o que vinha em seguida, mas para fazer um efeito. — E então surgem os olimpianos! Ela me olhou sem expressão. — Sim? — perguntou, tentando me encorajar mas sem convicção. — Você não está vendo? E então esse mundo judaico-crestão, mergulhado no meio de uma idade das trevas pré-científica, sem aviões, sem transmissão de vídeo eletrônica, sem nem mesmo uma impressora ou um flutuador... E é subitamente posto em contato com uma civilização supertecnológica do espaço! — Ela me olhava com a testa franzida, esquecendo a comida e tentando entender aonde eu estava querendo chegar. — É um terrível choque cultural — expliquei. — E não só para o povo da Terra. Talvez os olimpianos venham nos ver e descubram que somos tecnologicamente atrasados e divididos por nações em guerra e tudo o mais... e o que eles fazem? Ora, nos dão as costas e vão embora! E... e é o fim do livro! Ela franziu os lábios. — Mas talvez seja o que eles estão fazendo agora — ela disse com cautela. — Mas não por essa razão, com certeza. Veja, eu não estou falando do nosso mundo. É um mundo do e se. — Parece um pouco inverossímil. Eu disse feliz: — É onde entram minhas habilidades. Você não entende de romances científicos, coração. O trabalho do escritor de romances científicos é levar uma idéia tão longe quanto puder, até o limite absoluto da credibilidade, até o ponto onde, se der mais um passo, a coisa toda cai no absurdo. Confie em mim, Rachel. Vou fazer com que acreditem. Ela ainda estava franzindo seus belos lábios, mas desta vez não esperei que respondesse. Agarrei o pássaro da oportunidade pelas asas. Inclinei-me em sua direção e beijei aqueles lábios, como queria fazer já há algum tempo. Depois, disse: — Tenho de ir a um escriba, quero reunir tudo isso antes que eu esqueça. Volto quando puder, e... e até lá... 64

Beijei-a novamente, por muito tempo, com doçura e firmeza. Ficou bem claro, ao longo do processo, que ela estava retribuindo o beijo. Estar perto de uma casa de aluguel tem suas vantagens. Achei um escriba para alugar a um preço decente e o gerente da loja chegou a me emprestar uma de suas salas para ditar o trabalho aquela noite. Ao amanhecer eu já tinha os primeiros dois capítulos e uma sinopse de Visão de um Mundo Crestão. Quando chego a esse ponto num livro, o resto é apenas rotina. A idéia geral está montada, as personagens já se revelaram a mim; é só uma questão de fechar meus olhos por um momento para ver o que está acontecendo e então começar a ditar ao escriba. Nesse caso, os escribas, porque o primeiro se cansou em mais algumas horas e tive de empregar um segundo e depois um terceiro. Não dormi até acabar tudo. Acho que foram cinqüenta e duas horas direto, o tempo mais longo que trabalhei de uma vez só em anos. Quando estava tudo terminado, deixei o rascunho lá para ser passado a limpo. O agente de aluguéis concordou em levá-lo aos escritórios de embarque no porto e despachá-lo de avião para Marcus em Londres. Então voltei finalmente, cambaleando, para dormir na casa de Rachel. Fiquei surpreso ao constatar que ainda estava escuro, faltava uma hora ou duas para o amanhecer. Basilius me deixou entrar, e pareceu surpreso ao ver meus olhos inchados e a barba por fazer. — Deixe-me dormir até acordar — ordenei. Havia um jornal dobrado ao lado de minha cama, mas nem olhei. Deitei-me, virei na cama uma vez, e desmaiei. Quando acordei, pelo menos doze horas haviam se passado. Basilius me trouxe algo para comer e me barbeou, e quando finalmente saí para o átrio o sol estava quase se pondo e Rachel me esperava. Contei o que havia feito, e ela me contou sobre a última mensagem dos olimpianos. — Última? — objetei. — Como é que você pode estar certa de que é a última? — Porque eles disseram — respondeu com tristeza. — Disseram que estavam encerrando as comunicações. 65

— Oh! — exclamei, pensando a respeito. — Pobre Sam — comentei, pensando em Flavius Samuelus. E ela parecia tão desolada que não pude evitar, e tomei-a em meus braços. O consolo se tornou um beijo, e quando acabamos ela se reclinou, sorrindo para mim. Também não pude evitar o que disse em seguida. Fiquei surpreso ao ouvir as palavras saírem de minha boca enquanto dizia: — Rachel, eu gostaria de me casar com você. Ela recuou, me olhando com afeto e um pouco divertida. — Você está me pedindo? Tinha sido cuidadoso com a gramática. — Usei o verbo no subjuntivo, querida. Eu disse que gostaria que nos casássemos. — Isso eu entendi. O que eu quero saber é se você está me pedindo para garantir seu desejo. — Não... Bem... Diabos, é isso mesmo! Mas o que eu quero primeiro é ter o direito de pedir você. Escritores de romances científicos não têm lá uma situação financeira muito sólida, você sabe. A maneira como você vive aqui... — A maneira como vivo aqui — ela disse — é sustentada pelo que herdei de meu pai. Casar não acabará com a herança. — Mas é a sua herança, minha querida. Sou pobre mas não sou parasita. — Você não será parasita — ela disse suavemente, e percebi que ela também estava sendo cuidadosa com a gramática. O que exigiu uma boa dose de força de vontade de minha parte. — Rachel — eu disse —, devo receber uma mensagem de meu editor a qualquer momento. Se este novo tipo de romance científico der certo... Se for tão popular como parece... — Sim? — ela respondeu de pronto. — Ora — respondi —, então talvez eu possa realmente pedir você. Mas não sei. Marcus provavelmente está com ele em suas mãos, mas não sei se já leu. E não saberei sua decisão até que ele se comunique comigo. E agora, com toda a confusão a respeito dos olimpianos, que pode levar semanas... — Julius — ela interrompeu, colocando o dedo sobre meus 66

lábios—, ligue para ele. Os circuitos estavam todos ocupados, mas finalmente consegui — e, como já havia passado muito do almoço, Marcus estava em seu escritório. Mais do que isso, estava bem sóbrio. — Julius, seu sem-vergonha — gritou, parecendo realmente furioso —, onde diabos você está se escondendo? Eu devia ter mandado te chicotear. Mas não disse nada sobre mandar os edis atrás de mim. — Você teve uma chance de ler o Visão de um Mundo Crestão? — perguntei. — O quê? Ah, aquilo! Não, nem olhei. Claro que vou comprar, mas estou falando é do Olimpiano em Pele de Asno. Agora, censores não podem mais fazer nada, você sabe. Na verdade, tudo o que eu quero de você agora é fazer o olimpiano um pouco mais burro, um pouco mais antipático.. . Você tem um grande sucesso, Julius! Acho que podemos conseguir um especial de televisão. Então, quando é que você volta para corrigir o livro? — Bom... Assim que possível, eu acho. Só que eu ainda não verifiquei o horário do hovercraft... — Que hovercraft que nada! Você vem de avião. Nós pagamos a passagem. E, ah, a propósito, estamos dobrando seu adiantamento. O dinheiro estará na sua conta esta tarde. Dez minutos depois, quando fiz uma proposta sem subjuntivo a Rachel, ela rapidamente aceitou (também sem usar o subjuntivo); o vôo rápido para Londres dura nove horas, mas fui sorrindo a viagem inteira. Capítulo 5 “O Jeito Que É Quando Você É Um Sucesso” Ser escritor autônomo é viver num certo tipo de conforto. Não é muito confortável financeiramente, talvez, mas é em uma série de outras coisas. Você não tem de ir a um escritório todo dia, e obtém um bocado de satisfação ao ler suas próprias palavras sendo lidas em flutuadores e trens por completos estranhos. Ser um escritor potencialmente bem-sucedido, de best-sellers, está em uma ordem de magnitude totalmente diferente. Marcus me colocou num hotel bem próximo aos escritórios da editora e 67

ficou no meu pé enquanto eu transformava meu pobre olimpiano imaginário na criatura mais burra, desajeitada e feia que o universo já havia conhecido. Quanto mais eu tornava o olimpiano tristemente cômico, mais Marcus adorava. E todos no escritório; e também seus afiliados em Kiev e Manahattan e Calicut e em meia dúzia de outras cidades ao redor do mundo, e ele informou orgulhosamente que estavam publicando meu livro ao mesmo tempo em todas elas. — Seremos os primeiros, Julius — ele exultou. — Vai ser um estouro! Dinheiro? Bem, é claro que você pode ter mais dinheiro: agora você está por cima! E, sim, os estúdios de televisão estavam interessados — interessados o bastante para assinar um contrato mesmo antes que eu terminasse a revisão; e também os jornais, que apareciam para entrevistas sempre que Marcus me livrava de corrigir as provas e posar para as fotos das orelhas e falar com a equipe de vendas; e, no fim das contas, eu mal tive uma oportunidade de respirar até voltar no avião expresso para Alexandria e minha noiva. Sam havia concordado em conceder a mão da noiva, e me encontrou no aeroporto. Parecia mais velho e cansado, mas conformado. Enquanto nos dirigíamos à casa de Rachel, onde os convidados para a cerimônia já estavam começando a se reunir, tentei alegrá-lo. Eu estava muito alegre e queria repartir essa alegria. Comentei: — Pelo menos, agora você pode voltar ao seu verdadeiro trabalho. Ele me olhou com estranheza. — Escrever romances científicos? — Não, é claro que não! Isso é bom para mim, mas você ainda tem a sua sonda extra-solar para se distrair. — Julius — ele disse com tristeza. — Onde você andou por esses dias? Não ouviu a última mensagem dos olimpianos? — Ora, claro — respondi, ofendido. — Todo mundo ouviu, não ouviu? E aí parei para pensar que, na verdade, tinha sido Rachel quem me contara a respeito. Eu nunca a lera em nenhum jornal 68

ou transmissão. — Acho que eu estava muito ocupado — observei, humildemente. Ele parecia mais triste do que nunca. — Então talvez você não saiba que eles disseram que não estavam apenas acabando com as transmissões para nós, mas também com nossas próprias sondas. — Oh, não, Sam! Eu teria sabido se elas tivessem parado de transmitir! Ele respondeu paciente: — Não, não teria, porque os dados que elas estavam enviando ainda estão a caminho. Ainda temos alguns anos de informações. Mas é isso. Estamos fora do espaço interestelar, Julius. Eles não nos querem por lá. E se interrompeu, para olhar pela janela. — E é isso — continuou. — Mas estamos aqui, e é melhor você entrar. Rachel vai se cansar de ficar sentada sob aquele dossel sem você por perto. A melhor coisa de ser um autor bem-sucedido, se você gosta de viajar, é que, quando você voa ao redor do mundo, outros pagam as passagens. O departamento de publicidade de Marcus arrumou tudo. Aparições em público, autógrafos em livrarias, palestras em colégios, transmissões, encontros com editores, recepções... Ficamos ocupados por um mês inteiro, e foi uma ótima lua-de-mel. É claro que qualquer lua-de-mel teria sido maravilhosa com Rachel como noiva, mas sem os editores nos bancando, não poderíamos ter visitado seis dos sete continentes na viagem. (Não nos preocupamos com Polaris Australis: lá só tem pingüins.) E aproveitamos nosso tempo ao longo do caminho, em praias na Hindia e nas ilhas da China, nas maravilhosas lojas de Manahattan e em uma dúzia de outras cidades nos Continentes Ocidentais — fizemos de tudo. Quando retornamos a Alexandria, os contratantes haviam terminado a remodelação da vila de Rachel — que, havíamos decidido, seria agora nossa casa de inverno, embora nossa próxima prioridade fosse encontrar um lugar em Londres onde pudéssemos passar a maior parte do ano. Sam havia retornado, e, com Basilius, nos saudou formalmente quando chegamos à porta. 69

— Pensei que estivesse em Roma — comentei, depois que estávamos instalados e Rachel foi inspecionar o que havia sido feito com seu quarto de banhos. — Não enquanto estiver tentando entender o que houve de errado — retrucou. — A pesquisa está acontecendo bem aqui; foi daqui que transmitimos. Dei de ombros e provei um gole do vinho falerniano que Basilius havia nos deixado. Contemplei o cálice com olho crítico: um pouco turvo, talvez, ficou muito tempo no barril. E então sorri para mim mesmo, pois algumas semanas antes eu teria ficado maravilhado com algo tão caro. — Mas nós sabemos o que houve de errado — respondi. — Eles decidiram contra nós. — Claro que sim — ele disse. — Mas por quê? Estive tentando descobrir quais as mensagens recebidas quando eles interromperam as comunicações. — Você acha que nós fizemos alguma coisa que os ofendeu? Ele coçou a mancha na sua careca, olhando para mim, e suspirou. — O que é que você acha, Julius? — Bem, talvez sim — admiti. — Quais foram as mensagens? — Não tenho certeza. Levou muito tempo de pesquisa. Os olimpianos, você sabe, confirmavam o recebimento de cada mensagem repetindo os últimos cento e quarenta grupos... — Não sabia. — Eles faziam isso. A última mensagem que acusaram foi uma história de Roma. Infelizmente, ela tinha seiscentas e cinqüenta mil palavras. — Então vocês tiveram que ler a história inteira? — Não apenas isso, Julius; tivemos de tentar descobrir o que poderia estar contido ali que não estivesse em nenhuma mensagem anterior. Duzentos ou trezentos pesquisadores fizeram uma repescagem de cada mensagem anterior, e a única coisa nova eram alguns dados sociais. Estávamos transmitindo cifras do censo: tantos cavalos, tantos cidadãos, tantos homens livres, tantos escravos... Ele hesitou, e depois disse, pensativo: — Paulus Mag70

nus, não sei se você o conhece, é algonquim, apontou o fato de que era a primeira vez que mencionávamos escravidão. Esperei que continuasse. — Sim? — perguntei. Deu de ombros. — Nada. Paulus também é escravo, então naturalmente ficou com isso na cabeça. — Não vejo o que isso tem a ver com qualquer coisa. Algo mais? — Ah — continuou —, há milhares de teorias. Também havia alguns dados da área de saúde, e algumas pessoas acham que o olimpianos podem ter subitamente se preocupado com algum novo microorganismo que possa lhes ser fatal. Ou não fomos educados o bastante. Ou talvez, quem sabe, houve alguma luta pelo poder entre eles, e o lado vencedor simplesmente não quer mais raças em sua comunidade. — E ainda não sabemos qual delas foi? — Pior que isso, Julius — ele me disse sombrio. — Acho que jamais descobriremos o que os fez decidir que não queriam mais nada conosco. E nesse ponto, também, Flavius Samuelus ben Samuelus era um homem muito inteligente, porque jamais descobrimos.

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Alguém estava mexendo novamente com o tempo. Eu podia sentir na cabeça e nas entranhas aquela sensação doentia, esquisita, de irrealidade. Baixei a cabeça e engoli um bocado de ar, na esperança de que o mal-estar passasse, mas isso apenas piorou a situação. Desta vez a situação era grave. Alguém andava mexendo com uma coisa séria. Não se tratava simplesmente de alguém lendo os jornais do dia seguinte e jogando na Bolsa de Valores; isto era grave. Alguém estava tentando mudar a História. Eu não podia permitir uma coisa dessas. Não só essa manipulação poderia interferir em meu próprio passado, mudar toda a minha vida, possivelmente até mesmo riscar-me da existência, mas eu estaria deixando de cumprir o meu dever. Não podia fazer isso. Não que alguém fosse saber. Devem pensar que morri. Faz anos que ninguém entra em contato comigo, ninguém, mesmo, desde que fiquei encalhado neste século. Devem ter me dado por perdido quando minha máquina e meu parceiro desapareceram no fluxo. Mas eu não estava morto e tinha um trabalho a fazer. Com ou sem ajuda do quartel-general, com ou sem parceiro, com ou sem minha máquina, tinha uma missão a cumprir, uma realidade a preservar, um mundo inteiro a defender. Sabia qual era o meu dever. Sei qual é o meu dever. O passado não admite manipulação. 73

Eles poderiam mandar mais alguém, mas talvez não possam. Talvez a mexida já tenha mudado demais as coisas. Quem sabe não a perceberam a tempo. Ou talvez simplesmente não disponham de ninguém no momento. A técnica das viagens espaciais permite que se use eficientemente a força do trabalho, com cem por cento de eficiência, colocando-a instantaneamente na época necessária, mas isso não é suficiente quando se tem que vigiar todo o passado, desde o alvorecer dos tempos até o presente (não este presente, mas o presente real). Para vigiá-lo por inteiro, seria preciso um milhão de pessoas e eles sempre tiveram problemas para recrutar gente. As tentações são grandes demais. Os perigos são excessivos. Vejam o meu caso, encalhado aqui no passado. Quanto às tentações, vejam o que tenho de fazer. Há pessoas tentando mudar tudo, tentando se beneficiar à custa da própria realidade. Eles precisam de homens em quem possam confiar, homens como eu. Nunca haverá um número suficiente de pessoas como nós. Endireitei o corpo, olhei para o espelho atrás do bar e soube o que tinha de fazer. Tinha de parar com aquela manipulação. Exatamente como a interrompera nas últimas três... não, nas últimas quatro vezes. Eles poderiam mandar mais alguém, mas talvez não mandassem, e eu não podia arriscar. Eu mesmo tinha que encontrar o manipulador e neutralizá-lo. Se não pudesse encontrá-lo pessoalmente, se ele não estivesse neste período temporal, mas em um posterior, então eu mesmo poderia ter de mexer no tempo, mudar o passado dele sem prejudicar o meu. Isso é difícil, mas pode ser feito. Deslizei do banco, fiquei de pé, engoli de um trago o resto do drinque e coloquei uma nota sobre o tampo do bar: cinco dólares na moeda da época. Encolhi os ombros, ajeitando o casaco, e saí para o frescor de uma noite de verão. Insetos cantavam em algum lugar, insetos estranhos, extintos antes que eu nascesse; os postes de luz abriam poças claras nas calçadas escuras. Virei devagar a cabeça, sentindo o fluxo, sentindo a forma da corrente do tempo, da minha realidade. O centro da cidade era firme, sólido, ainda enraizado no 74

passado e no presente, seguro no futuro. Voltando-me para a direção oposta, senti um nó nas entranhas. Atravessei a rua vazia e entrei no carro. Guiei pelas avenidas, ignorando as vias expressas. Minha recepção piora nas vias expressas, elas ficam longe demais do fluxo vital da cidade. Segui para o norte e depois para leste; a náusea aumentava a cada quarteirão. Tornou-se uma dor lancinante na barriga, enquanto o mundo tremeluzia e mudava em torno de mim, uma realidade instável. Parei o carro junto ao meio-fio e controlei a dor, forcei minha percepção do mundo a estabilizar-se. Quando estava pronto para prosseguir, inclinei-me e verifiquei o porta-luvas. Nada de luvas; o nome do compartimento já era um anacronismo mesmo neste período temporal. Mas minha pistola estava ali. Não minha pistola de serviço. É avançada demais. Não ouso usá-la. O conhecimento de sua existência poderia ser perigoso. Não, eu havia comprado uma pistola aqui, nesta era. Tirei-a do porta-luvas e guardei-a no bolso do casaco. O peso da arma, do metal duro de encontro ao corpo, pareceu-me estranhamente confortante. Eu possuía também uma faca. Estava lidando com primitivos, com selvagens, não com pessoas civilizadas. Essas décadas finais do século XX, com suas guerras localizadas e corridas de armas nucleares, eram como uma selva, mesmo nas grandes cidades da América do Norte. Eu tinha uma faca, uma boa faca, com uma lâmina de quinze centímetros. Eu mesmo a afiara. Armado, segui em frente. Dois quarteirões adiante, tive que deixar a avenida, entrando nas ruas laterais, arborizadas e pacíficas. Em algum lugar, naquela paz, alguém estava trabalhando para destruir meu lar, minha vida, meu ser. Dobrei outra esquina e senti a estranheza e a dor tomarem conta de mim. Tive certeza de que estava muito perto. Parei o carro e desci, com a mão direita segurando a pistola no bolso, a outra mão empunhando a faca. Uma das casas estava iluminada. As casas vizinhas estavam às escuras. Examinei-a e tive certeza de que aquela luz era a 75

coisa, o centro da irrealidade; talvez não o próprio manipulador, mas alguma coisa, um foco de perturbação do fluxo da História. Talvez fosse um ancestral do manipulador. Eu encontrara isso antes. Atravessei o jardim e toquei a campainha. Prepareime, a faca em uma das mãos, a pistola na outra. A luz da entrada foi acesa e a porta começou a se abrir. Lancei-me contra ela. A porta cedeu, entrei e me vi em um vestíbulo. Um homem de uns quarenta anos de idade fitou-me, segurando o pulso no lugar onde a porta o atingira ao escapar de sua empunhadura. A porta não tinha corrente; talvez eu tivesse usado mais violência que o necessário. Entretanto, eu não podia correr riscos. Apontei a pistola para o rosto do homem e apertei o gatilho. A arma produziu um estrondo que parecia o fim do mundo e o homem caiu, enquanto a parede atrás dele ficava suja de sangue e pedaços de carne. Uma mulher gritou de dentro da casa e eu apontei a arma para ela, indeciso. A dor continuava. Vinha da mulher. Puxei novamente o gatilho. A mulher caiu, com a blusa manchada de sangue vermelho. Olhei para ela no chão, enquanto a dor desaparecia e a estabilidade voltava. Eu era real, novamente. Se o homem era seu marido, ela talvez estivesse destinada a se casar novamente, ou a ser infiel; ela teria sido a ancestral do manipulador, mas não ele. A distorção do tempo parará apenas quando a mulher caíra. Lamentei ter atirado nele, mas não tinha opção. Qualquer demora poderia ter sido fatal. A vida de uma pessoa é preciosa, mas não tão preciosa como a própria História. Senti uma pontada no estômago. Talvez fosse apenas um efeito retardado, mas eu precisava ter certeza. Ajoelhei-me e comecei a trabalhar rapidamente com a faca. Quando terminei, não podia haver dúvida de que os dois estavam mortos e de que jamais poderiam ter filhos. Acabado o trabalho, fugi dali, antes que a polícia trapalhona desta era pudesse interferir. Eu sabia que os jornais noticiariam no dia seguinte que 76

aquilo fora obra de um lunático, de um ladrão desequilibrado mental, que entrara em pânico antes de poder levar alguma coisa, ou de alguém que matava por prazer pervertido. Isso não me preocupava. Eu salvara novamente a História. Entretanto, preferia que houvesse outra maneira. Às vezes, tenho pesadelos sobre o que faço. Às vezes, sonho que cometi um erro, que matei a pessoa errada, que eu mesmo me encalhei aqui. E se não foi uma falha mecânica que lançou a máquina no fluxo, se fui eu mesmo que mudei meu passado? Eu tenho esses pesadelos, às vezes. Os piores pesadelos, porém, são aqueles em que sonho que nunca mudei o passado, que nunca vivi em qualquer outra época, mas apenas nesta. Que cresci aqui, sozinho, tive uma infância infeliz, uma adolescência desgraçada e uma triste vida de adulto. Que nunca viajei no tempo, que tudo isso está em minha mente, que matei aquelas pessoas por nada. Esses são os piores de todos; acordo desses pesadelos banhado de suor, com vontade de gritar. Agradeço a Deus por não ser verdade.

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“O Egito é uma dádiva do Nilo.” — Heródoto (cerca de 450 a.C.) O rio Nilo atravessa o Egito de ponta a ponta, desde a fronteira com o Sudão até o mar Mediterrâneo. O rio divide o país em dois. Mais do que isso, ele caracteriza o país. Para Geoff Barlow, debruçado sobre a carta geográfica naquele escritório quente e abafado, o Egito inteiro acabara por se reduzir à condição de hinterlândia do Nilo. Os desertos orientais e ocidentais tinham sido apropriadamente coloridos de um tom castanho desbotado e salpicados com alguns nomes de oásis e minúsculas vilas. Contrastando com esse fundo, os acampamentos e projetos de irrigação, representados em tons vivos de vermelho e de verde, floresciam em vários pontos ao longo do rio, desde a represa de Assuã ao sul até o Cairo e o fértil triângulo do delta. Os trechos verdes coloridos à mão aumentavam a cada mês. Como um organismo vivo, o grande rio estendia novos finos tentáculos de agricultura para leste e oeste. Uma trégua de dez mil anos chegava ao fim à medida que a faixa irrigada do vale do Nilo, tradicionalmente estreita, ia se alargando e conquistando do deserto terras para o plantio. Entretanto, essa conquista só se tornava possível à custa de muita luta, e não era o deserto o principal adversário. O intercomunicador soou impertinente, com um desagradável zumbido de vespa zangada. Barlow deu um suspiro fundo, pousou a caneta hidrográfica com que estivera delineando os novos contornos da frente de irrigação de El Sabakhaya e se levantou. A distância que separava um trailer do outro era de apenas alguns metros, mas o impacto do sol de meio-dia daquele verão abrasador o fez titubear. Permaneceu parado nos degraus do trailer, com os olhos apertados, fitando os próprios pés. Não se via nenhuma sombra, apesar da intensa claridade e de não haver uma única nuvem no céu. O acampamento estava situado quase sobre o Trópico de Câncer e, no mês de julho, àquela hora do dia, o sol ficava praticamente a pino. Protegendo os olhos com a mão em concha, ele olhou para o sul. A faixa cinzenta de quilômetros de extensão da represa de 80

Assuã lá estava, com seus quarenta metros de altura, tremeluzindo sob o forte calor. Por detrás dela, o Lago Nasser, artificialmente aumentado e transformado em um imenso reservatório, se estendia para além da fronteira do Sudão; e mais além, o Nilo, o Pai das Águas, serpenteando por mais cinco mil quilômetros rio acima até a nascente, nas cabeceiras do rio Louvironza. Mesmo que Geoff ficasse ali em pé durante uma hora, não sentiria nenhum sinal de transpiração. O ar era tão seco que o suor evaporava instantaneamente. Entretanto, podia sentir o calor, que era sufocante, e ouvir o barulho do motor a gasolina responsável pelo fornecimento de energia aos dois trailers, que era positivamente enervante. Depois de uma rápida olhada para o rio, na direção norte, Geoff saiu andando por entre a confusão de cabos que interligavam os dois trailers e entrou na unidade maior. O ar condicionado ali estava funcionando muito melhor e estava ligado no máximo. Novamente seu corpo se ressentiu com a mudança brusca de temperatura. Os três visitantes tinham recebido xícaras de chá quente, sem leite, e com cubos de açúcar branco nos pires de vidro. Estavam sentados e assim permaneceram quando Geoff entrou. Aquele estava longe de ser o primeiro encontro, mas poderia ser o último. Geoff cumprimentou-os com um gesto de cabeça e sentou-se do outro lado da mesa. — Olá, Kerry — disse, dirigindo-se ao homem à sua esquerda, falando alto o suficiente para se fazer ouvir apesar do barulho do ar condicionado e do ventilador do teto. — Estou surpreso de vê-los de volta aqui. Pensei que tínhamos resolvido tudo da última vez. Falta apenas uma semana para a abertura das comportas. — Uma semana e meia, no momento, e continuo trabalhando... — Kerry Adams era magro e lânguido, tinha feições angulosas, cabelos castanhos levemente despenteados e um ar confiante. Tinha nas mãos um maço de papéis. — Consegui um adiamento de quatro dias e o Ministério tornou a mudar sua decisão. Concedeu aos meus clientes livre acesso ao local. Você não pode nos botar para fora. Parecia moderadamente satisfeito. Os outros dois homens, que tinham motivos para estarem delirantemente felizes, eram 81

um estudo de extremos. Tom Shelton, com um ar de triunfo, sorria de orelha a orelha. Girard Saint, trinta anos mais velho, não demonstrava nenhuma emoção. Na verdade, Geoff não se lembrava de jamais ter visto Saint se dar ao luxo de algum sentimento humano. O velho, mais alto e mais magro do que Kerry Adams, estava sóbrio e elegante com uma camisa branca e um terno cinza-pérola. Uma longa cicatriz em forma de crescente ia da sua têmpora esquerda ao canto da boca, repuxando a pele daquele lado, o que resultava num perpétuo sorriso cético. Com sua alta estatura e um suave ar de permanente autocontrole, dava a impressão de estar acima de todas as questões mundanas. Talvez fosse verdade. Por quase meio século, estivera vivendo a cinco mil anos no passado. No momento, gozava de uma excelente reputação no campo da arqueologia. Até onde ia o conhecimento de Geoff, Girard Saint era a pessoa que mais tinha a ganhar, ou a perder, com o encerramento das escavações. No entanto, o único sinal semelhante à emoção que Saint deixava transparecer era um ressentimento reprimido com relação a Thomas Shelton. Geoff mal olhou os papéis que lhe haviam sido entregues. Teria sido inútil. Apesar de suas maneiras descontraídas, Kerry Adams tinha bastante experiência e era competente demais para apresentar qualquer documento com alguma brecha legal. Depois da última reunião certamente tinha ido ao Cairo onde através de adulação, pressão, suborno ou intimidação, convencera os ilustres funcionários do governo a conceder uma permissão para que o americano e o francês prosseguissem com as escavações, apesar disso implicar um transtorno sério para o projeto de irrigação. Não importava quais fossem as razoes, acabariam responsabilizando Geoff pelo atraso. — Alguma nova descoberta para justificar esta mudança? Geoff dirigiu a pergunta aos três, de um modo geral. Como era de se prever, Tom Shelton foi o primeiro a responder. — Você sabe muito bem. Shelton tinha mais músculos que Saint e Adams juntos e um invejável bronzeado decorrente do tempo que passava sem camisa nas escavações. Para Geoff Barlow, um ruivo amaldiço82

ado por uma pele delicada que ficava vermelha, empolava e descascava sem jamais pegar uma cor, Shelton mais parecia um salva-vidas Bondi ou um extra em um filme classe B sobre garotas, surfistas e praias da Flórida. — Vamos lá, Geoff — acrescentou Kerry Adams. — Você sabe que não devia ter perguntado. Não é da sua conta, é? O que vale são esses papéis e eles estão em ordem. — Estou certo de que estão. Jamais me passaria pela cabeça discutir com o Ministério. Mais alguma coisa? — Não se você reconhecer a validade desses documentos. O Dr. Shelton e o Professor Saint queriam estar presentes no caso de você se recusar a aceitar a decisão. — Claro que me recuso intelectualmente. Mas não tenho tempo de ir ao Cairo e tentar cancelá-la. Portanto, se isso é tudo — disse Geoff, levantando-se novamente — vocês vão ter que me dar licença. Isso vai alterar toda a nossa seqüência de inundação. Preciso mandar um telex a Farouk El Darwish para alertá-lo e tenho que avisar as equipes de trabalho. Evitou olhar para Tom Shelton e Girard Saint ao sair apressado, dirigindo-se para a parte traseira do trailer. O jipe estava lá, com as portas e janelas abertas, sob uma cobertura de lona branca; apesar da proteção, a temperatura no seu interior devia beirar os cinqüenta graus. Geoff encharcou uma esponja num latão d’água e passou-a no banco dianteiro. A água evaporaria em um ou dois minutos esfriando a imitação de couro no processo. Estava se instalando no assento do motorista quando Kerry Adams apareceu. — Você está indo para o campo de pouso? — É o jeito. É o serviço de telex mais próximo daqui. — Você se incomoda de me dar uma carona? Tenho de voar de volta para Helwan e disputar uma boa briga sobre um contrato com uma fábrica de cimento. — Pode subir. Adams exercia uma profissão que Geoff abominava, a de mediador internacional, cobrando cinco ou dez por cento de comissão por contatos ou apresentações efetuados, licenças concedidas, e outras negociatas. No entanto Geoff achava impossível 83

não gostar dele. Para começo de conversa, Adams jamais tentara suborná-lo, mesmo sob a forma disfarçada de presenteá-lo, embora Geoff admitisse que se tratava quase que de uma necessidade ao se lidar com o governo egípcio. Além disso, recusava-se a desempenhar o papel de intermediário em qualquer negócio que envolvesse venda de armas. — É exatamente aí que rola dinheiro de verdade — disse, enquanto bebericava o uísque escocês de Geoff. — Veja o Khashoggi: o velho gordo ganhou centenas de milhões naquela transação com os sauditas. Com Mahvi ocorreu o mesmo no Irã. Quanto a mim, estou fadado a morrer pobre. — Nem tão pobre assim. — Não de acordo com os seus padrões. De acordo com os deles, certamente. De acordo com os meus, também. Tudo é relativo. Devia largar esse negócio de engenharia, Geoff. Vou arranjar um emprego para você. Lembra-se de por que Willy Sutton dizia que assaltava bancos? “É lá que está o dinheiro.” Isso continua tão verdadeiro agora quanto quando ele o disse pela primeira vez, mas roubar bancos é uma maneira muito dura de se ficar rico. Enquanto lutava para engatar uma primeira no jipe — a transmissão andava meio emperrada, precisando de uma revisão — ele se surpreendeu pensando que não podia discordar inteiramente da filosofia de Adams. Há muito tempo que vinha trabalhando como engenheiro agrônomo no Egito, mas às vezes tinha a sensação de que estavam constantemente perdendo terreno. A produção de alimentos não conseguia acompanhar o aumento da população. Essa dificuldade, no entanto, não tornaria seus esforços ainda mais importantes? Os dois homens permaneceram calados até os limites do acampamento. Já na poeirenta estrada que levava ao campo de pouso na margem oeste, Adams subitamente falou. — Ouça o que vou lhe dizer. Andei escutando a conversa dos dois sabichões antes de você chegar. Se eles encontrarem alguma coisa, pode sair confusão da grossa. Não se complique tomando partido. — Obrigado. Eu já tinha chegado a essa conclusão há muito tempo. Shelton é um presunçoso de marca maior. Embora 84

o professor nunca diga o que está pensando, é impossível que isto não o irrite profundamente. É difícil de acreditar que alguém crie tanto caso por causa de um buraco no chão. — Chão para você e para mim. Shelton está empenhadíssimo nessa competição. Ele espera que aquele buraco o torne famoso e ao mesmo tempo balance um pouco a reputação de Saint. Não fique pensando que não há nada de importante em jogo. Nestes últimos quinze anos assisti a verdadeiras brigas de foice entre homens de negócios, mas o mais ganancioso dos homens não ficaria tão excitado por dinheiro quanto ficam os cientistas diante de teorias rivais. Estavam nas vizinhanças do campo de aviação, passando por uma fila de aviões estacionados. Parecia um verdadeiro museu. A África só se dispõe a aposentar seus aviões em último caso e, perto de Assuã, não era apenas debaixo da terra que se podiam encontrar relíquias antigas. Formas inusitadas, anacrônicas, surgiam nos céus roncando estranhamente, vindas do interior do continente e desciam em Assuã para abastecer ou, quem sabe, por terem dado sinais de estarem se desmantelando em pleno ar. Geoff tinha reconhecido alguns DC-3 da Douglas, Constellations da Lockheed, um velho bimotor Beech-18 e até mesmo um Avro de carga adaptado, de linhagem e procedência ignoradas. Não se surpreenderia se algum dia os céus oferecessem a visão fantasmagórica dos contornos de um Dragon Rapide ou de um De Havilland Comet. A atração do dia era um Viscount V6-30 Vickers-Armstrong com um estranho emblema preto e dourado. — É da Mauritânia — disse Adams. — Está bem longe de casa. Estacionaram o jipe. Dali seguiriam caminhos diferentes: Geoff Barlow ia para o centro de comunicações e Adams para o prédio de embarque e desembarque de passageiros. Apertavamse as mãos quando quatro egípcios descalços, trajando camisas cinzentas e calças de um tecido grosso, irromperam do terminal. Carregavam uma arca excepcionalmente grande e pesada, sobretudo em se tratando de bagagem aérea. Caminhando rapidamente atrás deles vinha uma mulher loura usando um leve vestido de algodão azul-claro, curto e sem mangas. Estava falando com os egípcios em inglês, mas eles não prestavam a mínima 85

atenção. A moça apertou o passo para ultrapassá-los e postou-se diante deles. — Não andem tão depressa, que droga! Ao perceber que os homens faziam menção de se desviarem, dirigiu-se a Kerry Adams. — Você pode me ajudar? Não consigo fazê-los atender a um único pedido meu. Adams fez um gesto com a mão na direção de Geoff. — Eis o homem certo, minha cara. Fala árabe como um nativo e, se alguma coisa puder ser feita por aqui, saberá exatamente como proceder. Até logo. Saiu caminhando calmamente na direção da área de embarque, enquanto a mulher se voltava para Geoff. — Ficaram de me esperar aqui no aeroporto, mas deve ter havido algum imprevisto. Aí apareceram aqueles homens, pegaram minha bagagem e simplesmente saíram carregando. Acho que pretendiam roubá-la. — Não. Estavam levando você para um táxi de um amigo deles que sabe falar inglês. Para onde deseja ir? — Para El Shallah. — Eles a levariam até lá... mas por um preço dez vezes maior que o normal. Espere aqui um instante. Geoff encaminhou-se na direção dos quatro homens, que tinham pousado a arca no chão de terra cinzenta e descansavam encostados nela. Falou com eles em árabe, enquanto pensava que Kerry Adams conhecia aquela língua no mínimo tão bem quanto ele. O líder assentiu aborrecido, e a arca foi erguida e içada para a parte de trás do jipe. — Quanto devo dar a eles? Barlow balançou a cabeça enquanto distribuía moedas que havia tirado do bolso da camisa. — Não se deve encorajá-los. Estou dando a eles uma gorjeta menor do que a que se costuma dar a um carregador por aqui. Suba, e levarei você a El Shallah. Deu a volta e tomou o assento do motorista. — Só não tenho idéia é de onde você vai se hospedar. — Não pretendo permanecer lá. Vão passar de carro para 86

me apanhar. Agora que toda a agitação havia terminado, a voz dela se tornara cheia e suave, com um sotaque difícil de identificar. Estendeu a mão ao subir no banco da frente. — Meu nome é Marie, e quero lhe dizer que estou muito agradecida. Meio sem jeito, Geoff Barlow apertou-lhe a mão por uma fração de segundo e examinou-a de relance enquanto ligava a ignição. Era alguns anos mais moça que ele, teria uns trinta e cinco, talvez, e era muito pálida, quase anêmica. Seu tipo de beleza ficava inteiramente deslocado ali no meio do Egito. A impressão de palidez não era causada propriamente pelo tom da pele avivado por um pouco de ruge que ressaltava as maçãs do rosto salientes, mas principalmente pelos olhos. Eram de um azul acinzentado, emoldurados por cílios e sobrancelhas tão claros que só seriam visíveis num dia de sol forte. Uma rede fina de pés-de-galinha começava a se formar nos cantos externos. A boca era generosa, com marcas de expressão, os lábios bem desenhados e o formato do rosto de uma beleza clássica inglesa, exceto pelo queixo um pouco grande demais. Geoff engrenou o carro, deu mais uma olhada no rosto da moça e depois baixou os olhos passando da alavanca de mudança para as canelas, tornozelos e pés. Reconsiderou a estimativa anterior; devia ter praticamente quarenta anos, ainda mais atraente após a segunda inspeção. — Onde, em El Shallah? — perguntou. — Quem irá pegála? Antes mesmo de ouvir a resposta, já tinha um palpite. Tom Shelton vivia arranjando namoradas nas escavações, a maioria com vinte e poucos anos. No entanto, a julgar pelos comentários dele a respeito de mulheres mais maduras, isso ocorria mais por uma questão de disponibilidade do que de preferência. — O Professor Saint. Enquanto Geoff ainda estava se refazendo da surpresa, ela acrescentou: — Meu... pai. Havia pronunciado aquela última palavra com uma curiosa hesitação e evidente embaraço. Geoff fez as contas. De acordo com as notas distribuídas à imprensa e que circularam no Cairo antes do início da escavação, Girard Saint estaria com sessenta e 87

um anos de idade. Se a filha tinha quarenta, deveria ter sido pai ainda rapazinho. Aparentemente, não fora sempre aquele professor austero e pedante. — Você fala inglês muito bem. Foi a vez de a moça olhar para ele. — Não é vantagem nenhuma. Nasci e fui criada na Filadélfia. Você também fala bem. É inglês, não é? Estava sorrindo e o tom de voz era amigável, mas Geoff se sentiu um perfeito idiota. — Me desculpe... — disse. — Seu nome sendo Marie, e o Professor Saint sendo tão... quero dizer... —Tão francês? Sim, ele é mesmo, não é? Mas sou uma atriz, e a maior parte do meu trabalho foi feita em inglês, de modo que geralmente uso Mary em vez de Marie, com o sobrenome da minha mãe. Meu nome é Mary Lambeth e o seu... — olhou para ele com nítida aprovação, enquanto Geoff conservava os olhos na estrada. — Você é completamente diferente do que eu tinha imaginado, mas não me diga que é o terrível Tom Shelton! Geoff se deu conta de que tinha esquecido de se apresentar. — Não. Meu nome é Geoff Barlow. — Trabalha na escavação? — Não. Decidiu colocar logo Mary/Marie a par da situação antes que alguém mais o fizesse. — Não trabalho nela e seu pai poderia dizer que trabalho contra ela. Trabalho em um novo projeto de irrigação. Quando as comportas forem abertas a escavação desaparecerá debaixo d’água. — Mas a escavação ainda não está completa... ainda vai demorar alguns meses! — Já devia ter acabado há muito tempo. O Dr. Shelton e seu pai — disfarçadamente, observou mais uma vez o rosto dela, buscando algum traço familiar, alguma semelhança; não havia nenhuma — garantiram ao Ministério que estaria tudo terminado na última primavera. Você sabe o que eles estão procurando, não sabe? — Sei o que Girard está procurando. O templo de Merse88

gret, a deusa serpente. Mas ele e o Dr. Shelton — estou morrendo de vontade de conhecê-lo — aparentemente tiveram uma grande discussão sobre a localização da dinastia Ninth no Egito superior e Shelton afirma que o que vão encontrar é o templo de Bubastis, não o de Mersegret. Ambos têm certeza de que estão no lugar certo, mas este é o único ponto sobre o qual concordam. — Ainda vai demorar muito até que um dos dois consiga provar ao outro que tem razão. Até agora não encontraram nada, absolutamente nada. Olhe. Geoff sentiu necessidade de explicar sua própria posição. — Não é que eu seja contra o que estão fazendo. É importante que a gente não ignore o Egito antigo enquanto constrói o novo Egito. Se seu pai e Shelton tivessem qualquer coisa para mostrar — mesmo um pequeno fragmento de um vaso de oferendas, ou o mais leve sinal de uma mastaba — ficaria do lado deles nessa questão. Uma vez que não têm rigorosamente nada, preciso prosseguir com o projeto de irrigação. As sementes estão para chegar e já encomendamos os fertilizantes químicos. Há atualmente mais dois milhões de bocas para alimentar do que havia quando cheguei a este país. Temos que dar um jeito de aumentar a produção de comida o mais rapidamente possível. Mary deu-lhe um tapinha no ombro. — Ei, Geoff Barlow, você não precisa ficar aí se justificando! Está fazendo o seu trabalho. Eu sei disso. Túmulos e urnas funerárias e deusas com cabeça de gato ou cabeça de vaca também não têm nada a ver comigo e você sabe muito bem que dois minutos desse sol têm um efeito tão devastador sobre a minha pele quanto sobre a sua. Abra logo essas comportas e vamos todos dar o fora daqui! Tocou o ombro de Geoff novamente e ele sentiu um arrepio se espalhar por todo o corpo. Aquelas palavras não eram exatamente as de uma filha dedicada ou de uma apaixonada por arqueologia. Ficou imaginando por que razão neste mundo ela teria vindo. O jipe estava se aproximando da barafunda de tendas e trailers que provisoriamente formavam El Shallah e não havia nenhum outro veículo à vista. Relutantemente, Geoff parou o carro na entrada do povoado. Queria conversar um pouco mais. 89

— Em que ponto de El Shallah você vai ficar? Não vejo nem sinal do professor. Mary balançou a cabeça. — Ele me mandou um telegrama mencionando El Shallah. Respondi dizendo que estava bem, mas que se eu conseguisse lugar num vôo, sairia de Atenas um dia antes. Acha que ele não recebeu meu telegrama? — Isso é fácil de descobrir — disse Geoff engrenando o carro outra vez. — Podemos ir direto para o acampamento e perguntar pelo Professor Saint. De qualquer maneira, você não pode ficar aqui. O acampamento não é nenhuma maravilha, mas é bem melhor do que qualquer coisa em El Shallah. Enquanto fazia uma curva de noventa graus para rumar para leste, um pensamento desconcertante ocorreu subitamente a Geoff. Tinha ido ao campo de pouso com o único objetivo de enviar um telex a Farouk El Darwish avisando que o projeto seria adiado por meia semana por ordem do Ministério e acabara não enviando o telex. Pior ainda, desde o momento em que pousara os olhos em Mary Lambeth/Marie Saint, não pensara mais uma única vez no assunto Na semana que precedera a chegada de Mary Lambeth, o ambiente nas escavações tinha começado a mudar. Geoff, que aparecia por lá quase que dia sim dia não, tinha observado que o modo compassado, quase que pachorrento, com que eram conduzidas as obras, fora substituído por um ritmo frenético, de cobrança urgente. O procedimento clássico para o desenvolvimento de trabalho arqueológico havia sido estabelecido por Rhind e Flinders Petrie um século antes. A escavação tinha de ser necessariamente lenta e extremamente cuidadosa. Cada achado, não importava quão aparentemente insignificante, tinha de ser rigorosamente catalogado. O pecado maior e a derradeira ironia seria a destruição acidental, pela própria ansiedade da descoberta, de um artefato que sobrevivera intacto por cinco mil anos e cuja existência milenar era a razão principal das escavações. Já que as fronteiras do passado tinham sido estendidas a épocas tão remotas, não menos longínquas estariam as do futuro. Tenha calma; seja cuidadoso; seja sistemático. Agora, porém, o futuro estava reduzido a uns poucos dias. 90

Em menos de duas semanas, o árido vádi onde se realizara a escavação desapareceria sob as águas desviadas do Nilo. A escavação propriamente dita ficava no lado sul do vale, acima da área sujeita a cheias periódicas. O acampamento estava situado ao norte e consistia em dois trailers espaçosos e três tendas de bom tamanho, dispostos em forma de triângulo. Thomas Shelton ocupava um dos trailers e Girard Saint o outro, onde guardavam os equipamentos mais valiosos a sete chaves. Os vinte operários egípcios podiam dormir em duas das tendas, embora alguns preferissem, no fim do dia, ir a pé até El Shallah para passarem a noite. Às quatro horas, quando Geoff Barlow e Mary Lambeth chegaram ao acampamento, o trabalho tinha acabado de recomeçar após o intervalo do meio do dia. A época do consim, o vento quente que diariamente soprava do Sul, levantando nuvens de poeira, tinha passado; o generoso pagamento de horas extras agora tornava possível uma semana de seis dias de trabalho. Shelton estava lá embaixo, na escavação. Atraído pelo som do motor do jipe, subiu a encosta para averiguar quem chegara. Por alguma razão, masoquismo ou pura fanfarronice, costumava trabalhar de peito nu, mesmo sob o sol mais inclemente. Tinha trocado a camisa e calça esporte que usara no encontro com Geoff por uma camiseta branca sem mangas, calças brancas de brim e um chapéu tirolês com um lenço preso atrás para proteger a cabeça e o pescoço do sol. O suor escorria-lhe do rosto formando filetes na camada amarelo-acinzentada de poeira que o cobria da cabeça aos pés. Olhou para Mary Lambeth com óbvio interesse. — Alô. Quem é ela? Se querem fotos de ação, é melhor andarem depressa. Vamos parar por hoje daqui a menos de uma hora. — Você se enganou — disse Geoff, calmamente. — Ela não é da imprensa. É Marie Saint. A filha do professor. Marie — ou Mary, se você preferir — este é Thomas Shelton. A fisionomia de Shelton exibia seus sentimentos de modo tão evidente quanto a de Girard Saint conseguia ocultá-los. — Ei! Nunca soube que ele tinha uma filha! — exclamou, estendendo as mãos efusivamente para cumprimentá-la. — Onde 91

escondeu você por todos esses anos? — Acabei de chegar num vôo de Atenas. Mas antecipei minha vinda de um dia e acho que Girard não recebeu meu telegrama. Onde está ele? Pensei que o encontraria aqui. — Deve chegar a qualquer momento. Teve que dar um pulinho a Kom Ombo e Idfu esta manhã, ao norte daqui. Graças a ele — disse, fazendo um movimento com o polegar na direção de Geoff — temos que arranjar mais operários com prática nesse negócio para a próxima semana. É uma péssima época do ano para isso. — Ele não lhe contou que eu ia chegar? — Não, não contou. Shelton riu e empurrou o chapéu para trás, deixando à mostra os cabelos encaracolados, descorados pelo sol do deserto. — Não fique surpresa. Seu pai não costuma me fazer confidencias. Andamos brigando muito ultimamente. Posso dizer que estamos de acordo em apenas dois pontos: existe alguma coisa única e importantíssima neste vale e inundá-lo, que é o que esse filho da mãe pretende fazer em cerca de dez dias a não ser que consigamos impedi-lo, será um pecado capital. Mary Lambeth lançou a Geoff um olhar de simpatia com o canto do olho. — Doutor Shelton... — Pode me chamar de Tom. — Tom, acho que não devia censurar o Sr. Barlow. É o trabalho dele. Aliás, me parece um trabalho importante. — De que lado você está, afinal? Com todos os diabos, eu não o estou censurando. A gente se entende. Shelton dirigiu aos dois um largo sorriso. — Geoff até que é legal, para um engenheiro agrônomo. — Ele vive me dizendo que sou um tecnocrata sem alma — disse Geoff — sem nenhuma noção da importância da arte e da história. Costumo responder que ele é um historiador desalmado que não se importa a mínima se as pessoas terão que sofrer e passar fome hoje contanto que ele possa estudar como as pessoas sofreram e passaram fome há quatro mil anos atrás. — Acho que ambos temos razão. 92

Shelton puxou o chapéu para frente, encobrindo a testa. — Onde é que você vai ficar? — Ainda não pensei no assunto. Aqui mesmo, acho. — Os trailers podem facilmente acomodar duas pessoas. — (E se você não quiser ficar com o professor, pareciam acrescentar os olhos cobiçosos de Shelton, terei imenso prazer em tê-la comigo.) — Trouxe muita bagagem? — Uma arca. — Que é do tamanho da pirâmide de Khufu — disse Geoff, apontando para a traseira do jipe. — Quanto tempo pretende ficar? — Não sei. Girard quer que eu faça um trabalho e a maior parte do que estou trazendo na minha arca são fantasias. — Trabalho? perguntou Shelton. — Sou uma atriz. Vamos fazer umas gravações aqui comigo vestindo trajes egípcios. — Continuou, com uma certa hesitação. — Vestida como Mersegret, você sabe, a deusa serpente. — Conheço as teorias do seu pai, mas ele está redondamente enganado. — Shelton segurou-a pelo braço. — Venha, Marie Saint, vamos colocar sua arca no trailer. Depois, vou levála para um giro pelas escavações, contar-lhe o que estamos fazendo e convencê-la de que Mersegret é a escolha errada. Você devia usar era uma fantasia assim meio leoa, meio gata... como Bubastis. Este é o templo que acharemos aqui. Conduziu-a até o trailer. Tinha assumido o comando. Geoff, alguns passos atrás, se entretinha pensando que não importava a qualidade do trabalho que Shelton desenvolvesse, sempre teria problemas para ser aceito como porta-voz da sua classe profissional. Falava alto demais, era excessivamente extrovertido, totalmente diferente da imagem convencional de um arqueólogo, tanto na aparência como na maneira de falar e agir. Em contrapartida Girard Saint era perfeito. Habilidoso quando se tratava do eterno problema de conseguir fundos para as pesquisas, Saint compreendia muito bem o valor da publicidade. Mary, a bonita atriz-filha, era exatamente o que um arqueólogo bem-sucedido estava precisando; isso para não mencionar um esforçado engenheiro agrônomo. Girard Saint ainda não tinha voltado quando Geoff foi em93

bora, os quatro dias seguintes foram muito agitados não permitindo uma nova visita às escavações. A decisão de adiar a inundação daquele vale afetava os níveis de água em vários pontos para o norte. Haveria repercussão em Luxor, em Asyut, em EI Minya, em Helwan, no Cairo e na barragem do Nilo e até mesmo nos braços do rio Damietta e Rosetta que chegavam até o distante Mediterrâneo. Água fresca era de importância vital para todos. As queixas choviam pelo telex; naturalmente, todas endereçadas a Geoff Barlow. No quarto dia, ao anoitecer, Tom Shelton enviou um operário com um bilhete rabiscado à mão para o trailer de Geoff próximo à sala de controle da comporta principal: Drinques hoje à noite após o jantar, às oito horas, na escavação. Compareçam, compareçam todos. Preparem-se para ver os olhos de Barlow saltarem fora das órbitas. A mensagem não sugeria que havia ocorrido uma descoberta. Shelton teria sido bem mais explícito e exultante se tivessem encontrado alguma coisa que realmente valesse a pena. Mais curioso que excitado, Geoff comeu um prato de carneiro ao caril e pegou o jipe, atravessando a poeira rumo a nordeste, para a escavação. Quando chegou ao acampamento, já tinha escurecido. Por alguma razão, as luzes dos trailers e das tendas ainda não estavam acesas. Estacionou o jipe e desligou o motor. O silêncio da noite era total. Não se viam as pequenas fogueiras que os trabalhadores costumavam fazer para cozinhar e não se ouvia murmúrio algum de conversa vindo das tendas. Uma fatia de lua no céu fornecia luz suficiente para que pudesse ver os contornos dos trailers. Após bater na porta de cada um deles sem obter resposta, começou a desconfiar que se tratava de uma brincadeira; se bem que a mensagem dizia explicitamente escavação, e não acampamento. Caminhou para o lado nordeste do vale, perscrutando à frente a intrincada rede de valas e muros de arrimo que demarcavam os limites da obra. Havia apenas uma luz, um brilho esverdeado que parecia muito fraco para iluminar qualquer tipo de festa. Geoff deslizou com cuidado pela encosta arenosa até encontrar chão firme mais abaixo. O raios de luar não atingiam aquele pedaço e o único pon94

to de referência era aquela luz verde bruxuleante. Dispôs-se a segui-la, mas parecia se mover à medida que ele avançava, mantendo-se sempre à mesma distância. O calor do dia ainda estava armazenado nas pedras e o ar acima delas parecia tremeluzir num estranho efeito ótico, semelhante à visão distorcida debaixo d’água. Era fácil imaginar as comportas abertas, o vale silencioso submerso. Esta terra podia ser um deserto ressequido desde o tempo que o homo sapiens começou a andar sobre dois pés, mas apenas mais uma semana e essa sede terminaria. As rochas crestadas beberiam sofregamente e depois repousariam saciadas e tranqüilas sob cinco metros de água fresca. Geoff olhou em torno, subitamente cônscio de que no seu devaneio perdera todo o senso de direção. A escavação continha cavernas com o teto escorado e túneis profundos escavados nas encostas do vale. Encontrava-se agora numa trilha longa e reta cujas paredes chegavam-lhe a altura dos ombros. Na outra ponta dessa vala, imóvel, pareceu perceber um vulto. Enquanto o observava, começou a andar na sua direção com um movimento ágil e ondulante que era gracioso e vagamente familiar. Soltou a respiração com força pelo nariz, sentindo um calafrio. O vulto era o de um corpo esbelto de mulher, mas havia alguma coisa errada com o contorno da cabeça. Era muito comprida e pontuda e os olhos brilhavam com uma luz verde amarelada. — Mary? — perguntou, hesitante. Depois, sentindo-se meio tolo: — Mary Lambeth? É você, não é? A escuridão o envolveu por um segundo, enquanto a forma de mulher continuava a deslizar na sua direção. A boca se entreabriu, revelando uma língua bifurcada que oscilava rapidamente. Geoff ficou paralisado, incapaz de mover um único músculo. — Bem que eu disse! — exclamou a voz forte de Tom Shelton. As luzes elétricas se acenderam com um brilho ofuscante. — Vamos lá, Geoff, confesse. Não teve a sensação de que estava diante de alguma coisa sobrenatural? — Com todos os diabos, o que está acontecendo aqui? Agora que seus olhos estavam se acostumando à luz, veri95

ficou pelo corpo da mulher que estava à sua frente que se tratava realmente de Mary Lambeth. Vestia uma malha colante que ia dos pés ao pescoço, pintada com uma rede de losangos marrons e verdes; a máscara bem ajustada que lhe cobria o rosto tinha sido desenhada para dar à cabeça a aparência de uma cobra. Do lado direito, ostentava uma ombreira no formato de uma serpente. — A idéia foi minha. — disse Shelton. Pelo tom de voz, não tinha esperado o jantar para começar a beber. — Saint está se preparando para as primeiras tomadas com Mary, e ela queria saber se a fantasia estava convincente. Disse a ela que você seria o teste definitivo. Que tal? Sentiu que havia algo de sobrenatural quando a viu? Mary não disse uma só palavra, e agora, enquanto tornava a andar na sua direção, Geoff se deu conta de que os movimentos bem mais que a fantasia, é que pareciam os de uma serpente. Ela havia dominado a maneira lenta e coleante de uma cobra se aproximar quando a presa já está hipnotizada e indefesa. — Onde está Girard Saint? — perguntou. Realmente tinha sentido a presença de alguma coisa que não era humana, mas jamais admitiria isso. — Foi até Syene — Assuã, se você preferir o nome atual. Estará de volta em alguns minutos. Venha, vamos subir Shelton se aproximou de Mary Lambeth e pegou-a pelo braço. Ela se desvencilhou e foi para perto de Geoff, dando-lhe o braço. — Desculpe — murmurou. — Foi uma brincadeira tola, não foi? Mas a idéia me pareceu divertida quando acabei de vestir a fantasia hoje à tarde. — Tudo bem. É uma fantasia e tanto e fiquei impressionado com a perfeição dos seus movimentos. Ela ainda estava segurando no seu braço e Geoff gostava da sensação. Finalmente, sentiu-se obrigado a se mexer, precedendo-a no caminho de volta ao acampamento. Quando chegaram ao topo da encosta e se dispunham a caminhar para os trailers, Girard Saint chegou num jipe. — As luzes — disse, enquanto descia do carro, dispensan96

do a Geoff e Mary um olhar frio. — Por que as luzes não estão acesas? — Estávamos lá embaixo na escavação. Shelton foi o primeiro a entrar em um dos trailers e usou as luzes elétricas do seu interior pelo tempo suficiente para acender um lampião de querosene e colocá-lo numa boa posição. — Mary queria ver como a fantasia se ajustava ao ambiente e tudo mais. Resolvemos usar o Barlow como cobaia, para ver qual seria sua reação. — Bobagem — resmungou Saint, com franca desaprovação. — Mary, você e eu precisamos ter uma conversinha. Ela soltou o braço de Geoff, mas o velho continuou olhando para os dois. Geoff sentiu uma tensão inexplicável, até que finalmente Saint aceitou um copo de vinho gelado de Shelton, sentou-se num banquinho do acampamento perto do lampião e prosseguiu: — A fantasia é muito bonita, sem dúvida. Monsieur Barlow pode estar tendo a impressão errada da minha profissão. Os financiamentos são sempre insuficientes, e é aí que entram a publicidade e os espetáculos exóticos. Entretanto a arqueologia é — e sempre será — essencialmente um trabalho paciente e árduo. Dias, semanas de esforço contínuo longe dos olhos do público. Se o pequeno discurso soara pomposo demais como desculpa pelo que acabara de acontecer, era mais do que Shelton tinha oferecido. Aliás, em se tratando de Girard Saint, correspondia a uma explosão de emoções. Geoff pegou uma garrafa de cerveja e acomodou-se num tamborete. Mary retirou a máscara e uma espécie de touca e foi sentar-se perto do pai. Abraçou-o com alguma cerimônia. Shelton, que permanecera de pé, de modo que o rosto, acima da luz do lampião só era iluminado de baixo para cima, manifestou suas objeções. — Existe o trabalho duro, o trabalho de enxada, é verdade — disse. — Trabalhar duro é indispensável para se tornar um bom arqueólogo, mas não é o suficiente. Trabalhar numa escavação é apenas conseqüência natural, o meio que você tem para provar o que já sabe de antemão. Admita, Girard, quando você fez aquela grande descoberta das relíquias de Mersegret em Kalabsha, tinha certeza de que estavam lá antes mesmo de tocar 97

o solo com uma pá. Você sente, fareja a coisa. Então se põe em campo para desvendá-la e provar sua convicção. Parecia bastante bêbado. Entretanto, para surpresa de Geoff, Saint acenou com a cabeça concordando relutantemente. — Ele está certo, Monsieur Barlow. — A cicatriz em forma de crescente estava mais vivida sob aquela luz. Remexendo-se no tamborete, perscrutou a escuridão que os rodeava. — Os melhores arqueólogos têm um poder que é difícil de definir. Conseguem captar uma emanação da própria terra. A verdadeira aura da antigüidade. Quando você sente isso, o cabelo da sua nuca se arrepia e sua alma alerta: Aqui! Se Dr. Shelton e eu temos alguma coisa em comum, é este sexto sentido. E se há algum ponto sobre o qual concordamos é que este sexto sentido nos diz que este vale está prenhe de promessas de descobertas. Bubastis ou Mersegret, apenas uma exploração cuidadosa poderá nos dizer, mas grandes descobertas. Todos se voltaram para olhar para o vale sombrio. Após alguns segundos de silêncio, Saint acrescentou suavemente: — É preciso lembrar mais uma coisa, Monsieur Barlow. O sentimento pode vir logo, mas a prova quase sempre demora meses ou anos. Na escavação de Kalabsha foram necessários três anos até que as relíquias de Mersegret fossem descobertas. Atualmente, Kalabsha faz parte do lago Nasser, desapareceu sob águas profundas. Não importa que outros tesouros repousem lá, estão perdidos para sempre. Pense, Monsieur Barlow. Que impressão isso pode causar sobre as civilizações de hoje? Havia um repentina paixão nas suas palavras. Geoff Barlow se deu conta que tinha feito uma idéia errada daquele homem. Embora os sentimentos de Girard Saint fossem sempre reprimidos, eram muito fortes. Olhando agora os olhos brilhantes que fitavam Tom Shelton e que então se moveram rapidamente para Mary e para o próprio Geoff, vislumbrou emoções que iam muito além da arqueologia. Um bilhão de galões de água pesam quatro milhões de toneladas. Os planos para definir o curso desse imenso volume eram extremamente complexos. O último adiamento, que tinha sido decretado apenas uma semana antes da data fixada para o início do projeto de irrigação, tinha causado enormes problemas. 98

As inúmeras solicitações de tratamento especial continuavam a chegar. Geoff suava em bicas sobre os pedidos, examinando a possibilidade de promover alguma mudança — qualquer mudança — e chegou à conclusão de que o problema estava além da sua competência, talvez além da de qualquer outro. O projeto tinha atingido o próprio limite, e ele também. A cabeça rodava, sua garganta estava seca e os olhos já não conseguiam focalizar. Foi até a pia, pegou um termômetro descartável do pacote e enfiou-o debaixo da língua. Trinta e oito e meio. Era só o que estava faltando num dia que deveria ser um dos mais caóticos e ocupados da sua vida. Gripe, febre do deserto, malária, seja lá o que fosse, tinha que dar um jeito naquilo imediatamente. Pegou o jipe e dirigiu-se para o aeroporto, indo direto ao consultório de Lou Marino. — Preciso de trinta e seis horas. A eclusa abre amanhã à meia-noite. Depois disso, pode me deixar morrer. — Espero que não. Marino tomou a temperatura de Geoff por mera formalidade, pois um toque com as costas da mão na testa dele já havia fornecido ao médico a informação de que precisava. — Você é como eu, está aqui há tempo demais. O Egito tomou conta de você e não consegue parar de trabalhar. Suas vacinas estão em dia? — Acho que sim. — Então espere aí. Marino foi até o armário de remédios e selecionou três seringas já cheias e um frasco com pílulas. — Você vai se sentir meio tonto, talvez tenha alguma dificuldade de visão. Mas sua cabeça vai funcionar legal. Assim que ocorrer a inundação e as coisas estiverem sob controle, deite-se e permaneça na cama. Tome um desses comprimidos de seis em seis horas. Não... Geoff tinha começado a arregaçar a manga da camisa. — É muita coisa. É melhor eu aplicar no bumbum. Dez centímetros cúbicos de gamaglobulina. Vai doer um pouco quando você se sentar. 99

— Fico lhe devendo essa, Lou. — Pode crer. Se Harley Street tivesse conhecimento do que estou fazendo, seria expulso da ordem e teria meu registro cassado. Sabe o que mais gosto neste lugar? Só tem emergências. Não tenho tempo para pensar ou me preocupar — disse, injetando a última seringa. — Isso vai resolver. Nada de birita e devagar com o café. Vai se sentir pior antes de se sentir melhor. Marino não quis aceitar nenhum pagamento pela consulta. — Fica por conta de tudo que eles nos devem e que nunca vão pagar de qualquer maneira. Acompanhou Geoff até o jipe. — Boa sorte amanhã. Ponha aquele projeto de irrigação para funcionar. Estou tão farto quanto você de ver gente desnutrida por todo o canto, daqui até Luxor. Geoff não estava conseguindo enxergar direito. Dirigiu o carro devagar na volta e chegou ao trailer bem a tempo de atender a um telefonema de Kerry Adams do Cairo. Pegou o telefone com a premonição de desastre. — Geoff? A voz do outro lado da linha soava intrigada. — Meu caro rapaz, conte-me direitinho o que anda acontecendo por aí. — Estamos dando uma última revisão nos procedimentos finais. Pelo amor de Deus, não me diga que desencavou um outro adiamento. Estou com tudo pronto para amanhã à meia-noite. Se houver mais alguma mudança, pode jogar o que restar de mim aos abutres. Não vou agüentar. — Vá com calma! Não haverá nenhum adiamento. É exatamente por isso que liguei. Estava quase conseguindo suspender a execução do seu projeto, por tempo indeterminado, quando, no fim da tarde, recebi uma mensagem de Girard Saint. Seu velho amigo professor me disse para parar tudo, empacotar e mandar a conta pelos meus serviços. Meu caro, o que é que você tem a dizer para esse seu amigo? Geoff? Você ainda está aí? — Estou. Geoff olhava para o receptor com perplexidade. 100

— Olhe, não é pelo dinheiro. É uma questão de princípio. Estou morrendo de curiosidade. Descubra o que está acontecendo, por favor, e depois me conte. Ficarei eternamente grato. — Vou ver o que está havendo, Kerry. Não se encontrava mesmo em condições de realizar qualquer trabalho de planejamento. Tomou o jipe e rumou para a escavação. Estava tão intrigado quanto Kerry Adams. Tinha feito três visitas rápidas ao local na semana anterior. Todas as vezes o trabalho lhe parecera frenético porém improdutivo. Houve algum alvoroço quando os operários atingiram uma série de câmaras enterradas bem fundo em uma encosta, mas tanto Shelton quanto Saint descartaram o achado por se tratar de coisa recente, com menos de mil anos de existência. Tudo era relativo. Nos Estados Unidos, mesmo na Inglaterra, a descoberta de algo com mil anos de idade viraria manchete de jornal. Aqui, não representava nada. Shelton e Saint tinham em mente um passado quatro vezes mais longínquo. A caminho do acampamento, parou na represa, no ponto culminante do vale, a trezentos metros da escavação. O nível da água estava subindo vagarosamente, deixando à mostra uma faixa cada vez menor da muralha que bloqueava a entrada para aquela depressão longa e estreita. O cálculo do tempo tinha de ser preciso. O próprio Nilo estava crescendo para as cheias de verão. Se as comportas não fossem abertas em trinta horas, a água começaria a transbordar por cima delas. No momento, a represa estava hermeticamente selada, segurando dez metros de água sem que nem mesmo uma gota escorresse para o árido vale. O local onde tinha tomado a injeção estava começando a incomodar e sentiu vontade de mexer os músculos doloridos. Saiu do jipe e, mancando um pouco, afastou-se da represa que ladeava o vale. Não viu sinal dos arqueólogos. Estariam trabalhando ainda? Estava prestes a escurecer, mas talvez fizessem um último esforço desesperado para encontrar alguma coisa. Começou a andar para a escavação, detendo-se num declive. Estava se aproximando por um caminho que não era o habitual e, do ponto onde estava, podia olhar diretamente dentro de um dos cortes. De pé, no chão arenoso daquela vala, duzentos metros abaixo, ocultas de todos os ângulos, exceto o seu, estavam duas 101

pessoas. A princípio, pensou que se abraçavam. Então percebeu que estavam lutando, em total silêncio. Eram Tom Shelton e Mary Lambeth, corpo a corpo, no suave lusco-fusco de um morno entardecer egípcio. Ele a segurava pelos braços e a estava puxando para si. — Vamos, Mary. A voz de Shelton era apenas um murmúrio premente, mas chegou até Geoff com clareza no ar quieto da noite. — Deixa! Vá! Eu sei que você quer’ — Não, não, Tom! Ela desviou o rosto do dele. Geoff podia ouvir sua respiração ofegante — Tom, deixe-me ir! Você não compreende! Não posso deixar você fazer isso! Eu não quero, e de qualquer maneira é tudo muito mais complicado do que você imagina. Tom, você está me machucando! Por favor não tente me obrigar! Por favor! Geoff não estava disposto a ficar ali parado e assistir a um estupro. Estava se preparando para descer quando Shelton grunhiu e soltou sua presa. — Você é uma feiticeira miserável, Mary! — disse numa voz trêmula. — Não sabe o que está fazendo comigo! Preciso de você! — Sinto muito, Tom! Não posso ceder. Vou voltar para o acampamento agora. Deu um passo atrás, depois virou-se e saiu andando. Shelton não a seguiu. Ajoelhou-se e acendeu um lampião de querosene. Após ter involuntariamente testemunhado o que acabara de ocorreu seria muito embaraçoso revelar sua presença. Procurando evitar qualquer ruído, Geoff chegou para a esquerda, ocultando-se nas sombras até que Mary tivesse desaparecido. Então novamente espiou para baixo, para dentro da comprida vala. Tom Shelton não se movera. Ainda estava de joelhos, mas sua expressão, naquela luz mortiça, não era mais apaixonada ou suplicante. Era homicida. Geoff observou o outro homem pegar o lampião e dirigir-se para a encosta do outro lado do vale. Então, andando lentamente, voltou para o jipe. 102

As drogas que Marino tinha dado a ele o nocautearam por completo Dormiu onze horas seguidas e acordou às oito e meia levantando-se imediatamente, com plena consciência de que aquele era o dia. Válvulas tinham de ser abertas e fechadas numa seqüência precisa, desde a represa do Alto Assuã até Asyut. O Nilo atualmente era um rio controlado, do lago Nasser ao Mediterrâneo, e nenhuma extensão de água podia ser alterada sem afetar todas as outras. Deu uma olhada no céu pela janela do trailer e depois no termômetro de parede. Já marcava trinta e três graus, e o serviço de meteorologia tinha previsto temperaturas recordes acima de quarenta e cinco. Bebeu quatro copos de suco de laranja (sentia a língua saburrosa, a boca estranha, ressecada) antes de sair do trailer. Como um augúrio fatídico, um lagarto de metro e meio estava parado a uma pequena distância da porta, tomando sol. Continuou imóvel quando ele apareceu. Protegendo os olhos do sol forte, olhou para leste, para o próprio Nilo. O rio passava a meio quilômetro dali, lento e escuro. Bandos de aves aquáticas pareciam minúsculas manchas cinzentas brincando por sobre suas águas serenas. Havia campos irrigados de ambos os lados. O corpo verde acinzentado da Ilha de Philae era visível ao norte, coberta de pés de acácias. Tudo era paz naquele mundo tranqüilo, inebriado pelo calor, tornado preguiçoso pela abundância de água fresca, entorpecido pelo sol de verão do Egito meridional. As margens do rio permaneciam assim há dez mil anos, sem nunca jamais mudar, perdidas em devaneios seculares, povoadas pelas almas de operários e sacerdotes, escribas e faraós. De repente, o motor a gasolina que alimentava de energia os aparelhos de ar-condicionado começou a matraquear quebrando o encanto. Um nativo uniformizado montado numa lambreta barulhenta vinha chegando com uma sacola cheia de mensagens. Geoff suspirou. Estava começando. Deu um passo à frente e estendeu a mão para o mensageiro. Ficou ocupado até o pôr-do-sol, sob a pressão ininterrupta de dezenas de hidrólogos, operadores de usinas e consultores agrícolas, cada qual com um problema rotulado de altamente 103

prioritário. Durante o dia inteiro chegaram pilhas de telegramas, os visitantes se sucederam num contínuo vaivém e o telefone não parou um só momento. Geoff nem tocou no “kebab” que lhe foi servido de almoço ao meio-dia. Não estava se sentindo mal, apenas meio aéreo. Os olhos doíam e estava sem apetite. Sabia perfeitamente que aquele dia seria pago no dia seguinte, com juros e correção monetária. Às sete horas, quando já estava quase anoitecendo, mandou um mensageiro para se certificar de que o trabalho na escavação estava encerrado e que o local havia sido evacuado. Mandou também uma mensagem convidando Girard Saint, Tom Shelton e Mary Lambeth a ir para a área de controle testemunhar a abertura das comportas. Podia dar a impressão de que ele estava espetando um faca nas suas feridas abertas, mas a visão das águas correndo livres seria um espetáculo difícil de resistir. Provavelmente os arqueólogos aceitariam o convite de bom grado. Pela primeira vez, em vinte horas, Geoff pensou na conversa que tivera por telefone com Kerry Adams e na decisão de Girard Saint de aceitar a inundação do vale sem mais uma tentativa de obter um novo adiamento. Aquilo não fazia sentido. Se Saint ainda não tinha encontrado nada, devia estar ansioso por um prazo maior; se por acaso tivesse encontrado alguma coisa, alguma descoberta que resolvera não revelar, então um prazo maior se tornaria essencial. O mensageiro voltou com a confirmação de que a escavação tinha sido abandonada. As tendas tinham sido desmontadas, os trailers estavam prontos para serem rebocados. No entanto, não conseguira entregar a mensagem, pois nem a mulher estrangeira nem os dois homens estavam por lá. Tinha procurado nos trailers, mas estavam trancados e não havia ninguém por perto. Geoff dispensou-o e ocupou-se de outros assuntos. Os trailers não precisavam ser removidos ainda. Estavam no acampamento, bem acima do nível da água que irromperia no fundo do vale. Às nove horas, a torrente de mensagens subitamente cessou. Já era tarde demais para pleitear qualquer alteração e todos rio abaixo tinham conhecimento disso. A operação prosseguiria agora no automático. A não ser que o próprio Geoff puxasse a 104

alavanca de emergência, as comportas seriam abertas exatamente à meia-noite. Girard Saint chegou um pouquinho antes das onze horas. Estava sozinho e parecia zangado. Aceitou o copo de vinho que lhe foi oferecido e sentou-se no trailer refrigerado pelos condicionadores de ar, olhando perdidamente para a noite do deserto. — Mary é uma tola — disse de repente, esvaziando o copo de vinho. Geoff olhou para ele espantado. — Eu a avisei — prosseguiu —, Shelton pode ser um arqueólogo competente, mas é certamente um... um... mulherengo. Eu disse a ela. Acha que ela me ouviu, que deu crédito às minhas palavras? Não! Havia raiva e magoa em sua expressão ao pegar a garrafa e encher novamente seu copo. — Que aconteceu? — Eles foram embora. — Foram? Para onde? Saint sentou-se ereto na cadeira e fez um gesto na direção da noite escura além da janela do trailer. — Para onde? Quem sabe? Quando cheguei ao acampamento ela tinha desaparecido. Suas roupas, seus pertences, tudo se foi. Fui até o trailer de Shelton, para perguntar se sabia de alguma coisa — e estava vazio. Ele também se fora. — Nenhuma mensagem? Nada? — Nada. O perfil severo e o rosto marcado pela cicatriz pareciam ter saído de uma frisa egípcia. Com um grande gole, esvaziou o copo e depois o encheu pela terceira vez. A cabeça de Geoff estava estalando por causa do cansaço e das drogas. Como é que Mary Lambeth e Tom Shelton fugiriam juntos se na noite anterior ela o havia rejeitado tão claramente? Ridículo. Um mero espaço de vinte e quatro horas poderia determinar uma mudança tão grande de sentimentos? Geoff achava mais provável que tivesse acontecido... outra coisa. Sentiu vontade de contar a Girard Saint a cena que havia presenciado. Entretanto, sua posição de bisbilhoteiro, mesmo que acidental, fê-lo hesitar. De qualquer modo, como conseguiria descrever a fúria assassina no rosto de Shelton após Mary ter 105

se afastado? Olhou para o relógio. Onze e dez. Mais cinqüenta minutos e as chaves mudariam de posição. As engrenagens seriam acionadas e o lago represado se deslocaria para engolfar o vale. Um filete, apenas, a princípio, e depois, um verdadeiro Niágara, uma avalanche de água que nada no mundo conseguiria deter. E tudo que estivesse naquele vale jamais seria visto outra vez por um ser humano. Talvez fosse algum efeito colateral dos remédios que andara tomando, mas Geoff sentia dores no estômago e uma desagradável pressão nas têmporas. Não conseguia esquecer a fisionomia transtornada de Shelton, quando o vira da última vez. Embora não mais que um minuto tivesse passado, tornou a consultar o relógio de pulso. Onze minutos. Quarenta e nove minutos. Ficou de pé, e sem dirigir uma única palavra para Saint, saiu do trailer. Levaria uns dez ou quinze minutos para fazer uma averiguação e poderia eliminar pelo menos uma preocupação da sua cabeça, que latejava sem parar. Dirigiu o jipe em alta velocidade, usando os faróis altos; não havia necessidade, pois a lua, quase cheia, alta no céu, brilhava o suficiente para iluminar cada pedra, cada seixo do caminho. Ao descer quase correndo a encosta para o vale, observou que, sob aquela luz, as escavações formavam um desenho de linhas escuras que pareciam gravadas com água-forte sobre prata. As valas seguiam pelo chão em declive da ravina e continuavam se aprofundando no seio da terra. Se alguma coisa estivesse escondida, teria que ser naqueles túneis escuros, longe da fria luz do luar. Mas onde? Havia pelo menos dez túneis, sem contar os atalhos e interligações. Ligou a lanterna e entrou rápido pela primeira abertura. Descera uns seis ou sete metros e a temperatura caiu quase dez graus; deu-se conta das suas roupas, manchadas de suor e grudadas no corpo, e do seu estado febril. Em menos de um minuto estava tremendo. Desviou o facho da lanterna do chão para o teto e se obrigou a seguir firmemente em frente. A escavação tinha sido evacuada e os operários nativos tinham feito 106

uma limpeza antes de sair. Não restara um pedacinho de pano ou de metal. Grandes pilhas de pedras soltas projetavam sombras na escuridão, sugerindo a existência de passagens escuras no corredor, que desapareciam à medida que ele se aproximava. Quando percorria o quarto corredor, começou a amaldiçoar a própria estupidez. Fadiga e remédios. Essa combinação o levara a ter os mais ridículos pensamentos. A imagem de Mary, estuprada, estrangulada e abandonada por Tom Shelton em algum canto escuro e subterrâneo, tinha explodido em sua mente lá no trailer. Nenhuma lógica conseguiu apagá-la. Mas a insanidade da idéia era óbvia. Mary estava apenas bancando a difícil até que finalmente decidira entregar-se a Shelton e fugir com ele. Aquele pensamento revoltou seu estômago. Virou a lanterna para olhar o relógio. Ainda eram onze e vinte. Surpreso, constatou que estivera ali por apenas alguns minutos. Além do seu pulso, uma coisa esbranquiçada apareceu iluminada pelo meio cone de luz emitido pela lanterna. Uma aranha graúda. Ali, na pedra, três metros à frente, sob a saliência da rocha onde os trabalhadores tinham cavado apenas até a linha da cintura. Aproximou-se. Não era uma aranha. Uma mão, uma mão humana, crispada sobre o chão arenoso. Mary, num último espasmo de agonia, tentando se agarrar ao mundo que se desvanecia. A mão, o braço, depois todo o corpo se tornou visível, com o rosto voltado para baixo. Não era Mary. Não era preciso virar o corpo. Não era Mary Lambeth. Era Tom Shelton, imóvel e sem vida, com um buraco sangrento no crânio, acima da orelha direita. A ferida aberta, de bordos arredondados, ainda exsudava massa encefálica. Atrás do corpo de Shelton, metidas na reentrância da rocha, estavam três maletas de viagem, ao lado de uma grande arca. Geoff engatinhou até lá, destrancou-a e levantou a tampa. Dentro havia roupas, maquilagem, aparelho e loção de barba, sapatos, espelhos de mão, cachimbos, jóias, livros, pílulas, pasta de dentes — uma confusão de artigos de uso pessoal, tanto masculinos quanto femininos, amontoados sem nenhum critério. 107

Geoff arrastou-se para fora, ficou de pé e, inclinando-se para frente, apoiou a testa na saliência da pedra. Se seus pensamentos anteriores tinham sido estúpidos, pelo menos eram lógicos. Agora, não havia lógica alguma. Mas o que tinha que fazer estava claro. Estendeu a mão sob a saliência da rocha e segurou firme os pés de Shelton, mas não conseguiu puxar o corpo, pois a lanterna que carregava estava atrapalhando. Enfiou-a no bolso e começou a andar de costas ao longo do túnel, arrastando o cadáver pelos tornozelos. A parte mais difícil ainda não tinha chegado. Uma vez fora da escavação, teria que levar corpo encosta acima, além do nível onde as águas da inundação deveriam alcançar. Nem mesmo um resquício de luar poderia penetrar até aquele ponto, de modo que o túnel estava totalmente escuro. A cada passada, tocava as paredes de pedra com o cotovelo, para conservar-se na direção certa. Após vinte passos alcançou uma bifurcação do corredor. Já estava exausto. Parou e virou a cabeça. Esquerda. O caminho por onde viera. No entanto, à direita, pensou ter visto um fraco lampejo. Seria um atalho para o ar livre? Ainda estava indeciso quando a luz se moveu. Era uma forma longilínea, sinuosa, com manchas em forma de losango que se tornaram mais nítidas quanto mais óbvia se tornava a silhueta humana. — Mary? — A garganta produziu apenas um som gutural. — Mary? Quando Geoff se moveu, a forma sumiu. Devia ter sido ilusão de ótica, a refração de raios da lua em superfícies de pedra de contornos diversos. Mas devia ser o caminho mais curto para fora. Começou a arrastar o corpo de Shelton naquela direção ouvindo o sangue pulsar nas suas têmporas e o arfar da própria respiração penosa. Estava à beira de um colapso. Sabia que precisava consultar o relógio, mas sabia também que não iria fazer nenhuma diferença. Qualquer que fosse a hora, continuaria tentando levar o corpo de Shelton para cima, não o abandonaria. Terminariam juntos, com a inundação ou livres dela. Na intersecção seguinte o vulto tornou a aparecer, fracamente visível em uma das ramificações, sumindo quando ele 108

olhava mais detidamente, transformando-se apenas num jogo de luzes e sombras. — Mary? — chamou seu nome roucamente e imaginou ter ouvido seu próprio nome como resposta, ecoando ao longo do corredor. Já não acreditava ter encontrado um atalho para sair dali — pelo contrário — mas agora sentia uma compulsão de seguir a luz que vagava. De alguma forma, ela deveria acabar conduzindo-o para fora. O que finalmente aconteceu. Emergiu no vale num ponto muito mais alto do que aquele que servira de entrada, situado a uns quarenta metros dali. Olhou na direção da linha da represa, que não era visível de onde se encontrava, e tentou avaliar a que altura estava com relação ao nível da inundação. Estava quase fora da zona perigosa, praticamente a salvo. Finalmente permitiu-se olhar o relógio. Onze e cinqüenta e nove. Tinha conseguido, e com um minuto inteirinho de folga. Fez um derradeiro esforço e, pegando o corpo de Shelton, carregou-o encosta acima por mais alguns metros. Então, virouse, sentou-se na rocha morna e, apoiando a cabeça nas mãos trêmulas, contemplou toda a extensão do vaie, de uma ponta a outra. A noite estava límpida e o luar mais forte do que nunca; reinava a paz. Uma paz que estava prestes a terminar. Já nesse momento as comportas estavam se abrindo, uma a uma. Um bilhão de galões, ainda contidos, se concentravam para ocupar o novo espaço ao longo do vale. Ouviu um som distante, o suspiro das águas despertas, preparadas para a ação. Nesse instante, seus olhos detectaram um movimento lá embaixo. Girard Saint estava na escavação, agachado na abertura do túnel pela qual, pouco antes, Geoff havia entrado. O arqueólogo se ergueu, apoiando uma picareta no ombro. Também ouvira o ruído longínquo da eclusa que se abria e se pôs de pé para olhar naquela direção. Não conseguiria ver nada de onde estava, embora para Geoff, do plano mais alto que se encontrava, a muralha de água já fosse visível, deslizando sobre o vale. — Cuidado! — gritou Geoff. — Suba! Seu grito de alerta não passou de um som abortado; sua voz estava tão fraca quanto quando chamara por Mary dentro da 109

rede de túneis. Em vez de ajudar Saint, tinha acabado distraindo sua atenção. O homem deu as costas para a cabeceira do vale, virando-se, intrigado, para olhar para cima, na direção de Geoff. Quando percebeu a aproximação da massa d’água e fez menção de se mover, era tarde demais. A primeira crista tinha mais ou menos um metro de altura. Parecia suave e inofensiva, uma pequena ondulação numa banheira de criança. No momento que Saint gritou e tentou correr, ela levantou-o sem dificuldade, o fez girar sobre si mesmo e depositou-o gentilmente no chão. Atabalhoadamente, pôs-se de pé e tentou subir a encosta. Tinha dado quatro passos quando a segunda onda, com uns quatro metros de altura, o atingiu. Seu corpo desapareceu sem um único som, num remoinho de águas que se tornavam rapidamente mais turbulentas. A crista principal estava a caminho, uma massa escura e sibilante. Desordenadamente, Geoff precipitou-se morro acima de repente acometido de pânico, temendo por sua própria segurança. A onda tinha passado bem abaixo de onde ele estava, mas ao encontrar a curva principal do vale, galgara a níveis mais elevados, explodindo contra a parte mais alta da escarpa. Embora nunca tivessem feito nenhuma escavação naquela área, partes da encosta se esfacelaram sob o forte impacto. Geoff viu blocos inteiros de rocha serem erguidos como biscoitos e arrastados pela enxurrada. Quando as águas se acalmaram e desceram um pouco, expuseram uma série de câmaras profundas e escuras na superfície rochosa. Observou o vale em toda a sua extensão. A primeira onda errante da enchente tinha se acomodado e a água chegava agora num fluxo suave e constante. Dois quilômetros à frente, ela venceria o desfiladeiro estreito para se espalhar através dos canais de irrigação; primeiro apenas umedecendo a terra; e a seguir, num fluxo ordenado e contínuo, essencial para o plantio no final do verão. O movimento da água produzia um efeito hipnótico. Geoff ficou parado, olhando por alguns minutos. Sentia-se mal e estava cansado demais para se mexer. De acordo com os conselhos médicos de Lou Marino, essa era a hora que devia ir para a cama e desmaiar. Havia, entretanto, mais uma coisa que ele tinha que 110

fazer, uma coisa que ele tinha que saber, antes de se dar a esse luxo. Deixou o corpo de Shelton ali mesmo; era um lugar seguro. Penosa e lentamente, caminhou até os trailers anteriormente ocupados pelos arqueólogos. O fácil trajeto, de apenas uns vinte metros, foi transposto com enorme dificuldade. Estava no limite de suas forças. A porta do trailer de Girard Saint estava trancada. Geoff praguejou, cambaleou até o jipe e achou uma barra de ferro. A porta de metal entortou, cedeu, e depois abriu com um som de um homem em agonia. O trailer tinha duas camas, lado a lado. Uma forma pálida jazia na cama da esquerda. Geoff precipitou-se sobre ela acendendo a lanterna, mal ousando olhar. Era Mary Lambeth. Mary apenas de sutiã e calcinhas. Mary, com nítidas marcas roxas nos braços, corpo e pernas; firmemente amarrada, amordaçada e presa nos cantos da cama. Todavia, Mary, viva e consciente. Os olhos da moça o seguiram enquanto ia até a gaveta do armário da cozinha, pegava uma faca de serra e livrava-a da mordaça e das cordas. Gemeu ao levantar as mãos. As cordas apertadas tinham cortado seus pulsos profundamente. — Geoff — disse. — Tom Shelton? Geoff tentou balançar a cabeça ao mesmo tempo que procurava infundir-lhe confiança com um sorriso. — Morto. Assassinado. O terror estava estampado no seu rosto. — Girard Saint, se ele vier... — Não, ele não virá. Está morto também. — Tentou sorrir novamente, estendendo as mãos para ela, para confortá-la. Foi nesse ponto, entretanto, que alguma coisa profundamente errada ocorreu dentro da sua cabeça. Pretendia contar a ela tudo o que tinha acontecido e ele próprio queria fazer umas perguntas. Em vez disso, deitou-se na outra cama, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Ao seu lado podia ouvir Mary Lambeth que também chorava. Depois, não escutou mais nada. 111

— Meu caro rapaz, ao inundar o vale pensei que íamos nos livrar dos arqueólogos. Entretanto, você desencadeou uma verdadeira epidemia deles sobre nós. O mundo de Geoff Barlow se situava no limiar entre o sonho e a realidade. Alguns dos seus visitantes eram concretos e substanciais. Espetavam agulhas nos seus braços, mudavam os lençóis, trocavam a garrafa de soro. Outros, como Tom Shelton e Girard Saint, vinham se sentar aos pés da cama ou à cabeceira por algum tempo, pingando sangue e água pelo chão do quarto e ignorando seus apelos para que fossem embora. De vez em quando, uma serpente com cabeça de mulher entrava pela parede. Não permanecia por muito tempo. Vagava pelo quarto, em volta da cama, dizia a ele coisas ininteligíveis, sorrindo com a boca entreaberta de onde se projetava uma língua bifurcada. Na última visita, inclinou-se sobre ele e acariciou-lhe a fronte com uma boca fria e exploratória, sugando dele sua febre. Finalmente, tocou-lhe a testa com a mão, fez um sinal de aprovação com a cabeça e silenciosamente se foi, para não mais voltar. O novo visitante parecia suficientemente real. Geoff não tinha certeza. Kerry Adams carregava sua pasta de documentos, mas também tinha na mão uma grande folha de papel coberta de hieróglifos, com um texto em inglês na parte inferior. — Isto estava gravado no primeiro pedaço de pedra com inscrições que foi encontrado — disse. — Foi arrancado pelas águas do interior de uma das câmaras abertas pela enxurrada. Corky Rosenberg veio de Heliópolis de avião e fez uma tradução preliminar. Achei que gostaria de vê-la. Girard Saint estava com a razão. Havia realmente um templo no vale e era de Mersegret. Geoff não disse nada. Era capaz de sorrir para as pessoas, mas não conseguia falar com elas. Passado algum tempo, o outro homem apoiou a folha de papel na cômoda perto da janela, numa posição quase vertical, e saiu do quarto. Geoff ficou olhando para os hieróglifos e leu a tradução em inglês uma, duas, diversas vezes. Finalmente, fechou os olhos. Quando os abriu de novo, já era noite e Mary estava lá. Olhou para ela desconfiado. Estava praticamente certo de que estava viva, porém ela mantinha os olhos cerrados. Esperou, mas ela não abria os olhos. Não falava, também. 112

Resolveu experimentar: — Mary. Parecia mais um gemido que uma palavra, mas deu certo. Ela estava olhando para ele, agora. Com os grandes olhos azulacinzentados, os longos cílios e sobrancelhas louras. Um olhar preocupado. — Mary — tinha que falar muito devagar e com muito cuidado. — Sinto muito sobre seu pai. Está morto. Afogado. Ela deu um suspiro profundo. — Eu sei. Encontraram o corpo, a um quilômetro da represa. Você me salvou, Geoff. — Ele matou Shelton — disse Geoff, fazendo força para se sentar. — Seguiu-me. Teria me matado para que eu não revelasse o que descobri. — Eu sei, eu sei. Fique deitado. — Estendeu a mão para contê-lo e ele viu as marcas onde as cordas haviam cortado seus pulsos, vermelhas e inflamadas. — Ele ia me assassinar, também, Geoff. Disse que voltaria mais tarde para me matar. Você salvou minha vida. — Sua própria filha! Ele ficou louco, Mary! — Não. — Não ficou? — Ele estava louco, mas eu não sou filha dele — declarou Mary, com os olhos azul-acinzentados fixos nos seus. — Você não percebeu? Eu era sua amante. Ele me sustentava. Já fazia dois anos. Tinha a certeza de que você sabia da verdade e morria de vergonha. Ele era estranho... insistiu que quando eu viesse para cá, me identificasse como sua filha. Estava querendo arranjar problemas. O cérebro de Geoff parecia estar meio emperrado. Tinha que fazer um esforço enorme para compreender as coisas mais simples — Você o amava? — perguntou, finalmente. Mary balançou a cabeça — Acho que nunca o amei. Mas era fiel a ele. Ele tinha ciúmes loucos, tanto de você como de Tom Shelton. Tinha fortes razões para ter ciúmes de Shelton... Tom me achava atraente e era um amargo rival também profissionalmente. Quando Shel113

ton começou a me assediar com propostas, ele não agüentou. Mas odiava você, também — Ele me odiava? Mas por quê? Nunca fiz nada a ele. Os olhos azul-acinzentados desviaram-se de Geoff — Porque percebeu que eu gostava de você. E simpatizava com o trabalho que você vinha desenvolvendo aqui. Isso era intolerável para ele. Imaginava uma batalha entre o velho Egito e o novo Egito e você e todos os demais engenheiros eram o inimigo. — Mas ele estava enganado! O velho Egito está do meu lado — disse Geoff, apontando com esforço para o papel sobre a cômoda. — Leia isso, Mary. A tradução tinha sido desenhada em grandes letras maiúsculas. “TOME AS ÁGUAS DO HAPI, O AMADO RIO CRIADO POR RA USE AS ÁGUAS NA SUA PLENITUDE, PARA QUE AS TERRAS POSSAM SACIAR A SUA SEDE. SEJA O PROVEDOR DO ALIMENTO, FAÇA O MILHO TRANSBORDAR DOS CELEIROS, PROTEJA A VIDA DAS AVES E DOS ANIMAIS, CUIDE DOS POBRES E NECESSITADOS. SE ASSIM O FIZER, SERÁ AMADO POR MERSEGRET QUANDO VOCÊ ESTÁ AQUI, A TERRA INTEIRA SE REJUBILA VOCÊ SERÁ GUARDADO E PROTEGIDO. Enquanto ela estava lendo, Geoff fechou os olhos e se deixou levar para bem longe, para uma terra de chuva e sol gentil, bosques frescos e campos verdes. Ansiava por isso tudo. Quando despertou, Mary segurava sua mão nas dela, e Kerry Adams estava de pé ao lado da sua cama. Olhavam silenciosos para o papel. — Estou aqui, Geoff — disse Mary ao notar que seus olhos estavam novamente abertos. — Acabei de ler, mas qual o significado? — Não tenho certeza Sentindo-se mais forte, sentou-se e prosseguiu — ...mas gostaria de acreditar que é uma mensagem de estímulo, um voto de confiança. O trabalho que realizo aqui não é errado. Tenho respeito pelo passado, claro que tenho, mas não podemos nos tornar obcecados por ele. Há um milhão de coisas para fazer. Precisamos construir o novo Egito sobre o velho Egito. Ela concordava com a cabeça. 114

— Máximo Gorki. — O que é que tem ele? — Disse isso em uma de suas obras, O baixo mundo. “Nas carruagens do passado você não é totalmente livre para escolher o seu destino.” É mais ou menos o que você acabou de dizer. — É, mas não tenho certeza de onde estamos indo nas nossas carruagens. Talvez estejamos andando em círculos. Seja lá qual for a nossa missão aqui, é temporária. Nada, nem mesmo a própria Represa do Alto Assuã, permanecerá tanto tempo quanto as Pirâmides e a Esfinge. — Então você está tomando juízo, Geoff? — disse Kerry Adams. — Você tem de ir embora daqui. Vou lhe arranjar um emprego decente, onde você não se arrebente de tanto tentar empurrar a mesma pedra ladeira acima todos os dias; trate de se casar, criar filhos; aproveite a vida. — Parece ótimo — respondeu a Adams, embora seus olhos estivessem fixos nos de Mary. — Um dia desses farei isso mesmo. Prometo que farei. Mas não por enquanto. Deixe eu me arrebentar um pouco mais, então serei todo seu. Ela apertou sua mão. Ele entendeu. Não agora, mas algum dia, num futuro próximo. Ouviu um estalido vindo da janela. Geoff deu uma olhada naquela direção. O som tinha provavelmente sido produzido pela esquadria de metal, esfriando sob a brisa da noite. Mas também poderiam ser os deuses e deusas do antigo Egito, Ra e Horus, Bubastis, Anubis e Mersegret, com todos os seus irmãos e irmãs, juntos, em algum ponto ali fora, enviando um sinal da sua aprovação; enquanto bem além, no calor da noite, Hapi, o Rio Nilo, o Pai das águas, a Seiva da Civilização, silenciosamente espalhava suas bênçãos pelas novas terras.

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Na segunda-feira que precedeu o início da primavera, disse a minha turma de literatura inglesa que iríamos estudar Shakespeare. Nesta época do ano, costuma fazer um tempo horroroso no Colorado. Cai toda a neve que os lugares de esquiação haviam rezado para cair em dezembro; a gente perde vários dias de aula e acaba tendo que avançar nas férias de verão. De acordo com a última previsão do tempo, não deveria nevar até sábado, mas com sorte talvez a neve chegasse antes. A notícia mexeu com os estudantes. Paula pegou o gravador e re-bobinou a fita, para ter certeza de que não perderia uma só palavra. Edwin Sumner fez cara de nojo. Dalila recolheu os livros e saiu da sala, batendo a porta com tanta força que acordou Rick. Distribuí as fichas de protesto e avisei à turma que deveriam devolvê-las até quarta-feira. Pedi a Sharon para entregar a ficha de Dalila. — Shakespeare é considerado um dos nossos maiores escritores, possivelmente o maior — disse, para o gravador de 117

Paula. — Na quarta-feira vou falar da vida de Shakespeare e na quinta e na sexta discutiremos sua obra. Wendy levantou a mão. — Vamos ler todas as peças de Shakespeare? Às vezes me pergunto por onde Wendy tem andado nos últimos anos... certamente não nesta escola, possivelmente nem mesmo neste universo. — Ainda não está decidido o que vamos ler — disse eu. — Amanhã eu e a diretora vamos ter uma reunião. — É melhor que seja uma das tragédias — disse Edwin, em tom sombrio. Na hora do almoço, toda a escola já sabia. — Boa sorte — disse Greg Jefferson, o professor de biologia, na sala dos professores. — Hoje terminei o capítulo sobre evolução. — Já chegamos de novo nesta época do ano? — perguntou Karen Miller, que ensina literatura americana do outro lado do corredor. — Ainda nem comecei a Guerra Civil... — Já chegamos nesta época do ano — disse eu. — Pode tomar conta da minha turma amanhã, na sua hora de folga? Tenho uma entrevista com Harrows. — Posso ficar com eles a manhã inteira. Mande-os para minha sala. Vamos estudar “Thanatopsis”. Mais trinta crianças não vai fazer a menor diferença. — “Thanatopsis”? — repeti, impressionada. — Inteirinho? — Menos as linhas dez e sessenta e oito. É uma poesia e tanto, você sabe. Não creio que alguém a compreenda o suficiente para protestar. E não vou explicar a ninguém o significado do título. — Anime-se — disse Greg. — Talvez a gente tenha uma nevasca. Na terça-feira, o tempo estava excelente. A máxima prevista era de 15 graus. Quando cheguei à escola, Dalila estava do lado de fora, de shorts e camisa de meia, usando no peito um emblema vermelho da Liga Contra os Adoradores de Satã. Carregava um cartaz que dizia: “Shakespeare é um Demônio em 118

Figura de Homem”.. Shakespeare e Demônio estavam escritos errado. — Só vamos começar a estudar Shakespeare amanhã — disse para ela. — Hoje não há razão para você não assistir à aula. A Sra. Miller vai discutir “Thanatopsis”. — Menos as linhas dez e sessenta e oito. Além disso, Bryant era um teísta, que é a mesma coisa que um satanista. Passou-me a ficha de recusa e um envelope de papel pardo. — Nossos protestos estão aí dentro. — Baixou a voz. — Que quer dizer mesmo “thanatopsis”? — É uma palavra índia. Significa “aquela que usa suas convicções religiosas para matar aula e pegar um bronzeado”. Entrei, peguei o disco sobre Shakespeare na biblioteca e fui para o escritório. A Sra. Harrows já estava lá, com o arquivo de Shakespeare e uma caixa de lenços de papel. — Você tem que fazer isso? — perguntou, assoando o nariz. — Enquanto Edwin Summer estiver na minha classe, tenho, sim. A mãe dele é presidente da Força-Tarefa Contra a Falta de Familiaridade com os Clássicos da Literatura. Acrescentei à pilha a lista de protestos de Dalila e senteime diante do computador. — Pode ser mais fácil do que pensamos — disse ela. — Houve várias queixas desde o ano passado, o que deixa de fora Macbeth, A Tempestade, Sonho de uma Noite de Verão, Conto do Inverno e Ricardo III. — Dalila tem trabalhado bastante — disse eu. Carreguei no computador os dados do disco e o programa para suprimir partes do texto. — Não me lembro de nenhum ato de bruxaria em Ricardo III. Ela espirrou e pegou outro lenço de papel. — Não há nenhum. A acusação foi de calúnia. Assinada por um ta-tataraneto do rei. Afirma que não há provas de que Ricardo III tenha assassinado os pequenos príncipes. Não faz diferença. De qualquer maneira, a Real Sociedade para a Restauração do Divino Direito dos Reis conseguiu uma liminar contra todas as peças históricas. Qual é a previsão do tempo? 119

— A pior possível — disse eu. — Quente e ensolarado. — Chamei o programa e apaguei Henrique IV, Partes I e II, e o resto das peças históricas. — A Megera Domada? — Liga de Defesa dos Direitos da Mulher. Tire também As Alegres Comadres de Windsor, Romeu e Julieta e Trabalhos de Amor Perdidos. — Otelo? Deixe para lá. Já sei por quê. O Mercador de Veneza? Liga Antidifamação? — Não. Ordem dos Advogados. E também a Associação dos Agentes Funerários. Eles não gostaram da forma como a palavra “esquife” foi usada no terceiro ato — explicou a Sra. Harrows, assoando o nariz. Levamos o primeiro e o segundo tempos para rever todas as peças e a maior parte do terceiro tempo para terminar os sonetos. — Tenho uma aula no quarto tempo — disse eu. — Vamos ter que terminar isto depois do almoço. — Sobrou alguma coisa? — perguntou a Sra. Harrows. — Como Gostais e Hamlet — respondi. — Nossa, como eles foram se esquecer de Hamlet? — Tem certeza de que Como Gostais não está na lista? — perguntou a Sra. Harrows, folheando os papéis. — Lembro-me de que alguém apresentou uma queixa contra a peça... — Provavelmente foi a União das Mães contra os Travestis — disse eu. — Afinal, Rosalind se veste de homem no segundo ato. — Não, aqui está. Partido Verde. “Atitudes destrutivas em relação ao ambiente.” — Olhou para mim. — Que atitudes destrutivas? — Orlando grava o nome de Rosalind na casca de uma árvore — respondi. Recostei-me na cadeira e olhei pela janela. O sol ainda estava à mostra, infelizmente. — Acho que vamos ter que nos contentar com Hamlet. Será o suficiente para deixar feliz a mãe de Edwin, — Ainda temos que examinar o texto linha por linha — disse a Sra. Harrows. — Estou ficando com dor de garganta. 120

Pedi a Karen para me substituir na aula da tarde. Era um curso de literatura para o segundo ano e estávamos estudando Beatrix Potter. Tudo que tinha a fazer era distribuir uma ficha a respeito de Squirrel Nutkin. Saí para almoçar. Estava fazendo tanto calor que tive que tirar o casaco. Os Estudantes de Cristo marchavam em frente à escola, com cartazes onde estava escrito: “Shakespeare era um Humanista Secular.” Dalila estava deitada nos degraus da entrada principal, com o corpo besuntado de óleo. Acenou languidamente para mim com o cartaz “Shakespeare é um Demônio em Figura de Homem.” — “Vós cometestes um grande pecado” — recitou. — “Risca-me, peço-te, do livro que escreveste.” Êxodo, Capítulo 32, Versículo 30. — Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, 13:3 — repliquei. — “E ainda que entregue meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará.” — Liguei para o médico — disse a Sra. Harrows. Estava de pé, olhando pela janela para o sol abrasador. — Ele acha que posso estar com pneumonia. Sentei-me em frente ao computador e chamei o Hamlet. — Procure ver as coisas pelo lado positivo. Pelo menos, temos os programas de computador. Antigamente, tínhamos que fazer tudo isso à mão. Ela se sentou atrás da pilha. — Como vamos fazer isso? Por parágrafo ou por linha? — É melhor fazermos por linha. — Linha um. “Quem está aí?”. Movimento Nacional Contra as Frases Interrogativas. — Vamos fazer por parágrafo — disse eu. — Muito bem. É melhor nos livrarmos primeiro dos casos mais importantes. A Comissão para Prevenção de Envenenamentos acha que “a descrição do envenenamento do pai de Hamlet pode induzir pessoas desequilibradas a cometerem um crime semelhante”. Citam um caso que ocorreu em Nova Jersey, onde um rapaz de dezesseis anos despejou Diabo Verde no ouvido do 121

pai depois de ler a peça. Espere um momento. Preciso de um lenço de papel. A Frente de Liberação da Mulher é contra as frases “Fragilidade, teu nome é mulher”, “Oh, mulher perniciosa”, toda a fala que começa com “Que pedaço de trabalho”, e a rainha. — A rainha inteira? A Sra. Harrows consultou suas anotações. — Isso mesmo. Todas as falas, citações e alusões à rainha. Apalpou o maxilar, primeiro de um lado, depois do outro. — Acho que meus gânglios estão inchados. Isso é sintoma de pneumonia? Greg Jefferson entrou com uma sacola de supermercado. — Achei que vocês iriam precisar de rações de combate. Como estão indo as coisas? — Perdemos a rainha — disse eu. — Que mais? — O Conselho Nacional de Cutelaria protesta contra a descrição de espadas como armas mortais. “As espadas não matam pessoas. São as pessoas que matam pessoas.” A Câmara de Comércio de Copenhague não concorda com a frase “Há algo de podre no reino da Dinamarca.” A União dos Estudantes Contra o Suicídio, a Federação Internacional de Floristas e a Cruz Vermelha pedem que a morte de Ofélia seja suprimida. Greg estava arrumando na mesa os vidros de xarope para a tosse e comprimidos de aspirina. Passou-me um vidro de valium. — A Federação Internacional de Floristas? — repetiu. — Ofélia caiu na água quando estava colhendo flores — expliquei. — Como está o tempo lá fora? — Parece verão. Dalila está usando um refletor de alumínio para bronzear por igual. — Aba — disse a Sra. Harrows. — O quê? — perguntou Greg. — A ABA, Associação de Banhistas Anônimos, quer ver de fora a frase “Passei tempo demais no sol” — disse a Sra. Harrows, bebendo um gole de xarope. Quando chegou a hora da saída, ainda estávamos na metade. A Irmandade das Freiras objetava à frase “Ide para um convento”, a Associação dos Gordos Convictos exigia que toda a passagem que começava com “Oh, se esta carne sólida, tão sóli122

da se desfizesse” fosse suprimida, e não havíamos nem chegado ainda à lista de Dalila, que tinha oito páginas. — Qual a peça que vamos estudar? — perguntou-me Wendy, na saída. — Hamlet — respondi. — Hamlet? Não é aquela peça em que o tio do mocinho mata o rei e se casa com a rainha? — Não é mais — respondi. Dalila estava à minha espera do lado de fora. — “Muitos, reunindo os seus livros, os queimaram diante de todos” — recitou. — Atos, 19:19. — Não repareis em minha tez escura; foi o sol que me queimou — disse eu. Na quarta-feira, o tempo estava nublado, mas ainda fazia calor. Os Veteranos por uma América Limpa e os Sentinelas da Sedução Subliminar haviam organizado um piquenique no jardim da escola. Dalila estava usando uma frente-única. — Aquilo que a senhora disse ontem sobre a tez escura... de onde tirou? — Da Bíblia — respondi. — Cântico dos Cânticos. Capítulo um, versículo seis. — Oh! — exclamou, aliviada. — Isso não está mais na Bíblia. Nós tiramos. A Sra. Harrows tinha deixado um recado para mim. Tinha ido ao médico. Eu deveria procurá-la no terceiro tempo. — Vamos começar hoje? — perguntou Wendy. — Se vocês todos se lembraram de trazer as fichas. A aula de hoje será sobre a vida de Shakespeare — disse eu. — Você por acaso ouviu a previsão do tempo? — Ouvi. Tempo bom, claro e firme. Pedi a ela para recolher as fichas de protesto. No ano anterior, Jezebel, irmã de Dalila, havia me acusado por escrito de “tentar ensinar promiscuidade, controle de natalidade e aborto dizendo que Anne Hathaway ficou grávida antes de se casar”. Havia cometido erros de ortografia ao escrever “promiscuidade”, “aborto”, “grávida” e “antes”. Ninguém tinha se esquecido de levar as fichas. Guardei-as 123

para mais tarde enviá-las à biblioteca e comecei a aula. — Shakespeare... Ouvi Paula ligar o gravador. — William Shakespeare nasceu no dia 23 de abril de 1564, em Stratford-on-Avon. Rick, que não havia levantado a mão o ano inteiro ou mesmo dado qualquer indicação de que estava vivo, levantou a mão. — A senhora pretende dedicar um tempo equivalente à teoria baconiana? — perguntou. — Bacon não nasceu em 23 de abril de 1564, e sim em 22 de janeiro de 1561. Quando chegou o terceiro tempo, a Sra. Harrows ainda não havia voltado do médico, de modo que comecei a examinar sozinha a lista de Dalila. Ela objetava a quarenta e três referências a espíritos, fantasmas e assuntos correlatos, vinte e uma palavras obscenas (“obscenas” estava escrito errado) e setenta e oito outras que achava que talvez fossem obscenas, como “canhenho” e “gonzos”. Quando eu estava acabando de ler a lista, a Sra. Harrows entrou e colocou a maleta em cima da mesa. — Provocados por tensão! — exclamou. — Estou com pneumonia e ele diz que meus sintomas são provocados por tensão! — Ainda está nublado lá fora? — Lá fora está fazendo vinte e dois graus. Onde estamos? — Associação dos Agentes Funerários. De novo “A morte é apresentada como universal e inevitável”. — Olhei para a ficha. — Alguma coisa está errada... A Sra. Harrows tirou o papel da minha mão. — Este é um protesto contra “Thanatopsis”. A semana passada foi o congresso anual dos agentes funerários e eles aproveitaram para preencher todas as fichas de uma vez. Ainda não tive tempo de separá-las. — Remexeu na pilha que estava sobre a mesa. — Aqui está a ficha que escreveram a respeito do Hamlet. “Uma imagem negativa dos funcionários responsáveis pela inumação...” — Os coveiros. 124

— “...e a descrição de um sepultamento que não obedece às normas de segurança. A cena não mostra nem um caixão hermeticamente fechado nem uma câmara mortuária.” Trabalhamos até as cinco da tarde. A Sociedade para o Progresso da Filosofia achava que a frase “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe a nossa vã filosofia” era ofensiva à sua profissão. O Sindicato dos Atores acusava Hamlet de contratar atores não sindicalizados e a Liga de Defesa das Cortinas objetava ao fato de Polônio ter sido morto com um golpe de espada quando estava escondido atrás de uma cortina. “O autor insinua que as cortinas são perigosas”, tinham escrito na ficha. “As cortinas não matam pessoas. São as pessoas que matam pessoas.” A Sra. Harrows colocou a ficha em cima da pilha e bebeu um gole de xarope. — É isso aí. Mais alguma coisa? — Acho que sim — disse eu, entrando com o comando reformatar e examinando a tela. — Sim, falta alguma coisa. Que tal “Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada”? — Essa “ribeira” vai ter que sair — disse a Sra. Harrows. Na quinta-feira, cheguei à escola às sete e meia da manhã para imprimir trinta cópias de Hamlet para os meus alunos. O céu estava nublado e fazia frio. Dalila usava luvas e um casaco de lã. O rosto estava vermelho como um tomate e o nariz começava a descascar. — “Gosta Javé de holocaustos e sacrifícios como da obediência à voz de Javé?” — perguntei. — Primeiro Livro de Samuel, 15:22 — acrescentei, dando-lhe um tapinha no ombro. — Ai! — exclamou Dalila. Distribuí as cópias do Hamlet e pedi que Wendy e Rick lessem as linhas de Hamlet e Horácio. — “Que vento forte! O frio é insuportável” — leu Wendy. — Onde estamos? — perguntou Rick. Mostrei-lhe o lugar. — Ah. “E o ar cortante e agitado.” 125

— “Que horas são?” — leu Wendy. — “Penso que falta pouco para as doze”. Wendy olhou nas costas do papel. — É só isso? — perguntou. — Hamlet é só isso? Pensei que o tio matasse o pai dele e o fantasma contasse que a mãe tinha culpa no cartório e ele dissesse “ser ou não ser” e Ofélia se matasse e tudo o mais! — Revirou o papel nas mãos. — Esta não pode ser a peça completa! — E melhor que não seja — disse Dalila, entrando na sala com seu cartaz na mão. — Espero que todos os fantasmas estejam de fora. E também todos os canhenhos! — Quer um pouco de Solarcaine, Dalila? — perguntei. — Estou precisando é de uma caneta Pilot — disse, em tom ofendido. Peguei uma caneta para ela na gaveta da escrivaninha. Saiu da sala, andando meio dura, como se o movimento lhe causasse dor. — Não pode tirar pedaços da peça só porque alguém não gosta deles — disse Wendy. — A peça acaba ficando sem sentido. Aposto que se Shakespeare estivesse aqui, não concordaria com o que a senhora... — Isso se Shakespeare foi mesmo o autor — interveio Rick. — Porque se você tomar a primeira letra da quarta linha do texto e a segunda, quarta, quinta e sexta letras da segunda linha, terá a palavra “porco”, que obviamente é um nome de código para Bacon. — Está nevando! — disse a Sra. Harrows pelo intercomunicador. Todos correram para as janelas. — As aulas serão encerradas às 9:30. Olhei para o relógio. Eram 9 e 28. — A Organização dos Pais Superprotetores nos enviou o seguinte documento: “Está nevando, e como o serviço de meteorologia prevê que vai continuar a nevar, e como a neve pode resultar em ruas escorregadias, má visibilidade, acidentes de ônibus, queimaduras de frio e avalanches, exigimos que a escola seja fechada hoje e amanhã, para que nossos filhos não corram perigo.” Os ônibus vão sair às 9:35. Tenham um bom feriado! — Tudo por causa de um pouquinho de neve? — queixou126

se Wendy. —- Agora não vamos mais aprender Shakespeare! Dalila estava no corredor, ajoelhada ao lado do seu cartaz, riscando a palavra “Homem”. — O Movimento das Feministas por uma Língua Imparcial esteve aqui — declarou, aborrecida. — Trouxeram um mandado de segurança. Escreveu “Pessoa” acima de “Homem”. — Um mandado de segurança! Dá para acreditar? Quero dizer: que fim levou a liberdade de expressão? — Você escreveu “Pessoa” errado — observei.

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Bradley Reynolds subiu para a cabine do tanque de exploração. Sempre tinha problemas para fechar a porta estanque, mas conseguiu finalmente e passou as luvas sobre a borda do anel de vedação para certificar-se de que estava no lugar. Em seguida, dirigiu-se para a bancada de trabalho e sentou-se, sem pronunciar palavra. O tanque rugiu e começou a mover-se. — Cerveja? — perguntou Lev Stelonski. — É um pouco cedo — respondeu Bradley. — Já servi. Entregou-lhe o copo de boca larga, cheio do líquido âmbar, sem nenhuma espuma. Bradley riu. — Parece que é toda minha ração. — Hoje há um extra. Bradley pegou o copo e colocou-o com cuidado na bancada. O tanque balançou e um pouco de cerveja derramou. Caiu devagar na baixa gravidade, mas não conseguiu pegá-la. Wellen, que estava dirigindo o tanque, disse sem virar a cabeça: — Comece. — Você pára, a gente trabalha — retrucou tranqüilamente Lev. — Você pode arrumar a aparelhagem enquanto a gente roda — disse o motorista. 129

— E podemos derramar a cerveja, também. Por favor, reduza a marcha. Lev ergueu a sobrancelha na direção de Bradley. — Espere até a gente cruzar este leito seco. Bradley pegou a bebida com todo cuidado e apanhou no ar um pouco da cerveja no momento em que o tanque arrancou. O diabo o levasse se ia deixar que derramasse mais alguma coisa. Isso faria Wellen sorrir, talvez dizer alguma coisa e eles iniciariam mais uma discussão. A si mesmo prometera que isso não voltaria a acontecer. Era o mais graduado ali e ia ficar fora de pequenas brigas. A hierarquia da expedição afrouxara um bocado, mas não devia permitir que acabasse inteiramente. Através do largo pára-brisa do tanque viu o desfiladeiro abrir-se diante deles quando saíram da pequena barranca lateral. Manchas rosadas e pardas no solo arenoso perdiam-se na distância. Essa parte do grande complexo Valles Marineris exibia abundantes sinais do que parecia ser erosão pela água. Mas nada de água. Wellen parou e desligou o motor. O segundo tanque parara em uma ravina à frente, à espera deles. — Muito bem, aprontou? — Em tempo — respondeu Lev, tenso. Recebendo de Bradley o recipiente cilíndrico de amostras, Lev colocou-o no compartimento de diagnóstico biológico que se estendia a meio comprimento ao longo de um dos lados do tanque. Em frente ao compartimento, ficava o principal armário do equipamento. Nos fundos, situavam-se os beliches, o sanitário e a cozinha. Tudo aquilo estava coberto por uma fina camada de poeira, mas ninguém mais se preocupava com isso. Lev preparou-se com todo cuidado para o teste. Pouco importando quantas vezes fazia isso, o biólogo cumpria religiosamente cada etapa. Um atalho naquele procedimento poderia botar tudo a perder. A parte interna do compartimento biológico estava à pressão marciana, de cerca de um por cento da atmosfera da Terra. Isso fazia com que as luvas fixas no lado do compartimento se esticassem, retas, como se um homem invisível estivesse tentan130

do alcançar a prateleira de garrafas e vidros. Usando as luvas, Lev abriu o acondicionador de amostras. — Parece que é a mesma consistência que antes — disse. — Argila, com um pouco de areia — confirmou Bradley. — Foi difícil perfurar? Lev espalhou um pouco do solo floculento em uma vigia de recebimento. — O primeiro metro foi fácil. — Como antes. A camada superior foi levada daqui. — Pela água — observou Wellen. — Ou por fluxos de lama — disse automaticamente Lev. — Ou carregada pelo vento — acrescentou Bradley. Era a velha discussão. Alguns sítios pareciam a Wellen, o geólogo, como clássicos vales de rios. Mas a terra esburacada fora escavada há bilhões de anos e, nesse tempo, a atmosfera fora mais densa. Estudos realizados na Terra indicavam que um curto Éden poderia ter florescido ali durante algum tempo. Um Marte de correntes, lagos e moléculas tentando, às cegas, se encontrarem e construírem alguma coisa maior. Certamente não havia nesse momento muita água de sobra e a atmosfera externa era puro dióxido de carbono. A maioria dos membros da expedição, contudo, preferia a explicação da água, mesmo que não houvesse nem mesmo muito solo permanentemente congelado naqueles abismos profundos e secos. — Boa cerveja. Bradley bebericou um pouco mais, sem pressa. — Eu aprendo — disse orgulhoso Lev. — Devagar, mas aprendo. Fabricar cerveja usando as reservas de alimentos fora idéia sua. Contrabandeara levedo na expedição e fizera experimentos com o produto durante a viagem de oito meses. Reciclavam a água e a fermentação disfarçava os sabores do processamento. A cerveja era o melhor estímulo possível ao moral em um mundo de aridez cruel. Lev manipulou a amostra com destreza, sem pressa. Dividiu-a, colocou cinco montículos do solo quebradiço em pequenos vidros. Em seguida, introduziu-os em um dos volumosos cromatógrafos a gás. 131

Pelo pára-brisa, Bradley olhou para os penhascos a pino que se erguiam a distância. Terra rosada, céu rosado. Uma fímbria azul-preta escurecia o rosado um pouco mais no alto. O ponto branco de Deimos pairava perto do horizonte. Enquanto observava Lev trabalhar, o rosto anguloso de Wellen contraiu-se de irritação. Bradley não vira nenhuma outra expressão nele durante dias. — Orgânico, mais uma vez — disse Lev. — Quanto? — perguntou tenso Wellen. — Duzentas e quarenta e três partes por bilhão — respondeu Lev lendo o mostrador digital. — Hummm — disse Wellen. — Menos do que na última vez. — Mas dentro das margens de erro de diagnóstico — observou calmo Bradley. — Menos, porém — insistiu Wellen. Durante semanas, vinham acompanhando a concentração de moléculas orgânicas. À medida que desciam para o grande vale entre duas falhas tectônicas, aumentava lentamente a concentração de matéria orgânica. — O que é que você está vendo? — perguntou Bradley. Lev encolheu os ombros e leu na tela: — Formiato. Aminoácidos. O mesmo que antes. Bradley fez que sim com a cabeça, Esses elementos poderiam ter surgido facilmente da violenta química de peróxido do solo. Tal como os resultados da sonda não-tripulada, eles sugeriam que matéria orgânica mais complexa poderia formar-se. Mas onde? — Escute — disse Wellen, secamente. — Estamos perdendo tempo aqui. Devíamos seguir diretamente para o piso do vale. Bradley ignorou-o deliberadamente. — A que profundidade estava a matéria orgânica? — A poucos centímetros. — Nada mais profundo? — Não. — Como na última vez — comentou Bradley. — Estamos seguindo uma pista que está acabando — in132

sistiu Wellen. — Estamos sendo sistemáticos — corrigiu Bradley. — Sugiro que, sistematicamente, a gente se dirija para a Herbes Chasma — disse Wellen, com sarcasmo. — Nós já discutimos esse assunto — retrucou Bradley. Tranqüilamente olhou para Wellen durante um longo momento. Wellen fungou e sacudiu a cabeça. A longa expedição estava chegando ao fim e era pouco o que eles tinham para mostrar. — Neste caso, droga, então vamos embora daqui — disse Wellen, ligando o motor. Acelerou rapidamente por cima do trecho seco. Os grandes pneumáticos ejetavam poeira, transformando-a em uma cortina transparente à retaguarda que, em seguida, caía e assentava lentamente. Bradley bebeu um pouco mais de cerveja, dizendo a si mesmo que estava apenas evitando que ela derramasse. Queria esvaziar o copo. Fazer tudo para tirar da boca aquele gosto alcalino. Sabia que o gosto voltaria, tão logo inalasse qualquer pitada do pó, que se insinuava por toda parte. Lev tirou as mãos de dentro da luva e pegou seu próprio frasco de cerveja na prateleira de arame. — Acha melhor dessa maneira? — perguntou Lev. — Gosto. Fica mais escuro. Bradley espanou um pouco da poeira de seu trajo pressurizado preto. — É uma cultura diferente de levedo. Experimentei uma coisa parecida no Instituto, no meu tempo de estudante. Comprei-a na Áustria. — E vendeu-a, também, aposto. — Claro. Essa foi a primeira boa coisa que tirei da glasnost. — Você usou o dinheiro para comprar outro pôster de Lenine? — Não, discos de rock. Do tipo metal heavy. — Heavy metal. — Muito alto, não gostei. — Você teria ficado mais feliz com Lenine. — Não, com os discos. Comprei-os em Moscou e vendi-os pelo dobro do preço em Kharkov. 133

— Admirável. Bradley protegeu com cuidado o copo quando passaram por cima de um calombo e desceram para uma larga ravina. — Parece bom por aqui — observou Lev com ar distante. — O mesmo que ontem. Reuniram-se ao outro tanque e os dois seguiram lado a lado pelo largo vale. Taludes de pedra erguiam-se nos horizontes norte e sul. Estavam descendo lentamente um tributário que, finalmente, penetraria nas partes mais profundas do grande vale de falha marciano. Wellen queria tomar um atalho para chegar a Herbes Chasma. Esse era o último grande sítio de exploração que poderiam visitar no tempo que lhes restava. Possuía um platô central que, visto de órbita, parecia terreno ondulado deixado quando um lago secara. Os biólogos, porém, queriam cobrir uma área mais larga. — É engraçado — disse Bradley em voz baixa. — Gastamos trinta bilhões de dólares, viajamos esta distância toda e não conseguimos mais do que a sonda não-tripulada. Moléculas orgânicas e areia. — Não tem nada de engraçado — respondeu Lev. O ponto seguinte para recolher amostras era um leito seco de riacho que partia de um barranco lateral e se abria entrando no vale principal. Os estratos geológicos negros que aí havia projetavam-se contra um brilhante céu cor-de-rosa. Poeira amarela fina movia-se a grande altitude, como se fosse renda. Bradley, mais uma vez, tirou uma amostra profunda. O trabalho de virar a manivela da perfuradora fazia-o suar. Era melhor assim, porque o trabalho combatia o frio de rachar que penetrava em suas pernas e braços. Usava um trajo preto justo, muito parecido com os usados em pesca submarina que, juntamente com a máscara que lhe permitia respirar, tornava-o parecido com o monstro da Lagoa Negra. Gostava dessa imagem. Marte, dissera em uma das transmissões de longa distância para Terra, era um lugar apropriado para monstros — de modo que bem que podia parecer-se com um deles. Na verdade, apenas formas de vida resistentes, como liquens e seres humanos, tinham alguma chance ali. Mas certamente não havia liquens e provavelmente nunca haviam existi134

do.

Ao levar para dentro a amostra, Lev realizou a habitual análise cuidadosa. Wellen deu partida novamente e o zumbido regular do motor deixou Bradley sonolento. Ficou sentado durante algum tempo, ninado pelo trator e sonhou, não com mulheres, mas com nadar nas grandes ondas ao largo da costa da Austrália. Pestanejou e acordou de todo ao ouvir a espantada explosão de Lev. — Você quebrou a vedação! — exclamou Lev. — O quê? Não, não fiz nada disso. Pela capota transparente do compartimento, olhou para as amostras, organizadas com todo cuidado. — Qual é o problema? — Ela está contaminada. — Com o quê? — Pequenos peptídeos. E alguns aglutinantes de ferro, ao que parece. — Hummm. Bradley fez força para lembrar-se se cometera algum deslize. Essas duas moléculas orgânicas complexas estavam presentes mesmo em pequenos flocos de pele ou em uma gota de cuspo. — Vou examinar com mais atenção — disse Lev. Transferiu a cápsula de trabalho para o microscópio eletrônico de varredura e digitou comandos, estudando a tela. Bradley trouxera consigo mais poeira para dentro do tanque e o cheiro pungente atingiu-lhe as narinas. Pensou em cerveja. — Células! Há células nisto. — Hummmm? Que nível? — perguntou Bradley. — Os primeiros centímetros abaixo da camada superficial. Entreolharam-se. Bradley disse: — Tente em profundidades maiores. Sentou-se pensativo, enquanto Lev metodicamente testava o conteúdo de outros pequenos frascos. Todos passaram pelo microscópio e, em seguida, pelo cromatógrafo a gás. Um mostrador digital forneceu a concentração de compostos orgânicos: 236, 248, 197, 214. — Nenhum dos outros mostra presença de qualquer célu135

la — afirmou Lev, em tom acusador. — Elas aparecem apenas na camada superficial? — Isso mesmo. — Não fiz nada de diferente desta vez. — Tente novamente. — Muito bem. Pare, John. John Wellen ficou irritado porque ia perder tempo. Praguejou em voz baixa e fez uma careta. Bradley tomou mais cuidado e tirou uma segunda amostra de um local baixo e arenoso. Andou em volta da área, procurando sinais inusitados, mas nada viu de especial. Ao voltar para o tanque, disse Lev: — Fiz mais alguns exames com o microscópio eletrônico. Elas ainda parecem células. Meio consumidas pelos peróxidos, mas ainda células, quanto a isso não há dúvida. Os danos são grandes, mas algumas podem ser corpos refrateis. — O que quer dizer isso? — perguntou Wellen. — Esporos, talvez — explicou cauteloso, Bradley. Desta vez, Lev examinou com atenção máxima a vedação do cilindro translúcido das amostras. Passou um longo tempo fazendo medições e, em seguida, passou as amostras pelo microscópio. — Elas continuam — disse em voz sem expressão — Não é culpa minha — retrucou Bradley. Wellen interveio secamente. — Ora, vamos, Reynolds. Você bota a perder duas amostras seguidas.. — Que tipos de células? — perguntou Bradley a Lev, ignorando Wellen. — Têm alguns aspectos bacterianos comuns — explicou Lev. — Eu peguei aquele recipiente na prateleira no lado de fora. Estava lá há dias. — Nesse caso, devia estar limpo — observou Lev. — A radiação ultravioleta lá fora acabaria com qualquer bactéria comum que estivesse em nós, certo? — perguntou Bradley. Ele era técnico auxiliar de biologia, mas sua verdadeira 136

área de competência era astronomia, e se sentia um tanto inseguro. — Claro. Vamos tentar novamente. — Ei! — exclamou Wellen — você agora tira essa, Lev! Adiantaram-se por mais algumas centenas de metros. Lev tomou rigorosas precauções. Wellen ficou tamborilando com os dedos no painel de instrumentos do tanque, observando o céu escurecer à medida que caía a noite. Um longo silêncio desceu sobre o tanque. Lev tirou a vista da tela do microscópio. — Elas ainda estão aqui. Células. Não são nossas. Disso tenho certeza agora. A equipe do outro tanque chegou para a comemoração naquela noite Lev abriu mais garrafas de cerveja e todos beberam, acompanhando as rações de alimento. — Bebo à vida em Marte — disse Wellen, brindando os outros cinco colegas. — Além de nós — completou Lutya Karpov. Ela era a comandante do outro tanque e tinha um ar solene mesmo quando se divertia. — A nós, também — concordou Wellen. — A nós, as formas de vida mais adiantadas de Marte — acrescentou Bradley. — Talvez. — Essas células vivem em solos de peróxido — observou Lutya. — Lutam para pegar pequenas gotas de água misturadas com grãos de areia. Nós não podemos fazer isso. — Nem quero — disse Bradley. — É isso o que nos transforma em formas de vida mais adiantadas. Capacidade de formar juízos. — Há quanto tempo você acha que essas células estão mortas? — perguntou Wellen. Lev cocou o longo nariz — Talvez há muitos, muitos anos. O que está morto está morto. Não muda muito. — O que é que o pessoal da Terra diz? — perguntou Wellen. — Pensa que meu teste de coloração das células é... como é que vocês diriam? “Sugestivo”. Estão muito cautelosos. 137

— Com o quê? — perguntou Bradley. — Com os ácidos nucléicos — explicou Lev. — Mas serão eles os mesmos que em nosso DNA? Não podemos saber. — E por quê? — perguntou Lutya, bebendo sua cerveja e coçando-se, distraída. Não houvera tempo naquele dia nem para banhos de esponja. — Os peróxidos no solo degradaram a estrutura molecular. Turvaram as águas, como diriam os americanos. — Apenas, não há água aqui — observou Bradley. — Levei o tubo de perfuração até o máximo que ele podia ir. — As células devem vir de outra origem — sugeriu Lutya — Certamente — asseverou Lev Lev transmitira pelo rádio seus resultados aos cinco outros membros da expedição. Eles estavam aquecendo rocha em Fobos a fim de extrair água, como massa de reação, para a viagem de volta. Mas haviam abandonado tudo e feito análises dos dados obtidos com o microscópio eletrônico de Lev. Havia ainda outros testes que Lev podia realizar e todos precisavam de tempo para pensar. Melhores amostras, porém, eram mais importantes que qualquer volume de teoria. Os dados, enviados à Terra por um transmissor a laser, nesse momento transformavam todos os biólogos vivos em intrometidos em potencial. Bradley percebeu com grande clareza que tudo isso estava fazendo com que Lev tivesse o máximo cuidado. — Cautela — disse, tocando seu copo no de Lev. Lev concordou. — Cautela. Muita cautela. Que bom se tivéssemos vodca aqui. Um brinde de verdade exige vodca. — A cerveja disfarça melhor o gosto de Marte — opinou Wellen. — Resíduos de peróxido — disse Lutya. — Eu gostaria de encontrar uma maneira de tirá-lo de nossa água. — A que temperatura você levou sua última fornada? — perguntou Wellen. — Quatrocentos e vinte graus centígrados — respondeu ela, com precisão. — Droga! Devia ter dado resultado — observou Wellen. Bradley ficou escutando a conversa sobre a aparelhagem de ex138

tração de água inventada por Lutya. O emaranhado de tubos e painéis solares na capota do outro tanque aquecia o solo e retirava cerca de um por cento de água. Os poucos litros extras diários eram um acréscimo precioso às escassas rações do grupo. Davam-lhes também motivo de conversa, além do problema eterno do cheiro do sanitário. Todos os demais tópicos de discussão haviam sido há muito tempo esgotados. — Outro brinde — propôs Wellen. — Encham seus copos. Isso demorou um pouco. Finalmente, ele disse: — Às Vikings. — Viking, 1976 — concordou Lev, em tom solene. — Sondazinhas sabidas. Interpretaram certo a química do lugar, mas disseram que não havia matéria orgânica aqui. Merecem meio crédito. — Proponho também um brinde a Marte-1 — disse Lev. — Marte-1 o quê? — perguntou Wellen. — O primeiro artefato humano a chegar a Marte. Em 1971 — explicou Lev, com um sorriso. — Não conta — protestou Wellen. — Caiu e se espatifou, não? — Isso mesmo. Ainda assim, chegou aqui — lembrou Lev. — Tem razão — observou Bradley. Automaticamente ele se colocava ao lado de Lev contra Wellen. — Não fez nada — disse Wellen, irritado. Lutya ergueu o copo. —- Nesse caso, proponho um brinde a Marte-3. — Outro choque e destruição? — perguntou Wellen sarcasticamente. — Pousou muito bem — esclareceu Lutya. — E enviou dados durante vinte segundos. — Formidável — disse Wellen. — O que é que você me diz de Marte-2? — perguntou Bradley. — Perdeu-se — explicou Lev. — Provavelmente, não conseguiu entrar em órbita. — Quantas sondas vocês mandaram para este planeta? — 139

quis saber Wellen. — Sete — disse Lutya. — Mas foi o Viking que triunfou. Ela era a diplomata do grupo e sabia como amansar Wellen. Todos ali estavam ficando de pavio curto, à medida que os suprimentos diminuíam e nada mais encontravam que os materiais orgânicos que já sabiam que ali existiam antes de terem chegado. E as vozes, cada vez mais preocupadas, enviadas por laser a partir da Terra e retransmitidas de Fobos, irritavam-nos ainda mais. O trabalho dela, e o de Bradley, era providenciar para que nada disso se agravasse e se transformasse em conflito aberto. Bradley permitiu-se um momento de especulação divertida. Falara-se que ela devia tranqüilizar a metade soviética também de outras formas, mas nunca houvera nenhuma maneira plausível de fazer isso. Nunca houvera momento em que ela ou Faye Nguyen, a americana que nesse momento se encontrava em Fobos, estivessem sozinhas com qualquer um dos homens. Ainda assim, era assunto que merecia algum pensamento. Bradley passara pelas fantasias previsíveis, mas, no fim, descobrira que preferia pensar em algumas mulheres lá na Terra. Os espaços reduzidos do módulo principal e daquele tanque haviam anulado inteiramente seus instintos animais. Ou talvez fossem os peróxidos. — Quantas vezes vocês acertaram? — quis saber Wellen. — Três. Marte-6 teve um enguiço nos retrofoguetes — confessou Lutya com um tímido sorriso. Um pequeno gemido ecoou pela cabine. — O chefão de Marte — disse Lev. Ali nos desfiladeiros, os ventos aumentavam ao anoitecer. Chegavam a centenas de quilômetros por hora, mas dada a baixa densidade atmosférica, não havia perigo de derrubarem ninguém. Faziam, porém, um ruído grave, sobrenatural, melancólico. — Talvez o chefão tenha comido suas sondas — sugeriu Wellen. — Não comeu a Aero — lembrou Lev. Wellen assentiu. — À Aero — brindou. 140

— Sem a qual... — concordou Bradley, juntando-se a ele. Não queria que começassem antagonismos nacionais nem mesmo na forma mais branda. Ele e Lutya estavam nominalmente no comando, mas todos sabiam que a expedição dependia de um fino equilíbrio de cooperação. Os soviéticos haviam pago a maior parte da conta para que chegassem ali. Só eles possuíam os grandes foguetes necessários para colocar grandes massas em uma órbita marciana. E haviam enviado a sonda Aero para sobrevoar as areias de Marte na década de 1990. O projeto fora engenhoso: um balão de hélio selado, com um montgolfiere maior embaixo. O montgolfiere era um balão preto de ar quente, aberto para a atmosfera marciana. Pela manhã, ele absorvia radiação solar infravermelha e subia, levantando do chão a carga de instrumentos. Os dois balões eram levados pelos ventos até o anoitecer, ocasião em que o montgolfiere esvaziava, descendo os instrumentos até a superfície, onde podiam processar mais amostras do solo. A Aero fizera sete descidas antes que uma tempestade de areia a furasse em um penhasco. Encontrara moléculas orgânicas em dois locais. A química do solo indicara que estavam em operação intrigantes processos bioquímicos. Os resultados eram ambíguos, mas, ainda assim, muito mais promissores do que os resultados da Viking na década de 1970. E isso fora o suficiente para inspirar uma expedição tripulada. Apropriadamente, a Aero fora projetada pelos franceses, os pioneiros de vôos de balão um século antes. Os soviéticos ajudaram a construí-la e levaram-na a Marte, iniciando explorações nacionais conjuntas. Nesse momento, tinha lugar o grande jogo, a expedição tripulada. Um jogo que não estava se desenvolvendo bem. — O passado condiciona o presente — declarou Lev em tom solene. — Que nossos grandes países cheguem ao fim de seus conflitos nas areias de um mundo batizado em homenagem ao deus da guerra, Todos ali inclinaram a cabeça, concordando. Periodicamente, os soviéticos invocavam a mir, a paz, como razão básica 141

daquela expedição. Bradley sabia que tinha que prestar as suas próprias e corretas homenagens. Passara duas décadas ajudando a NASA a sair de um longo período de decadência e aquele era o fato mais importante de sua geração. Sem os soviéticos, não poderia ter acontecido. Ainda assim, não dava a mínima bola para política. Ou para as relações internacionais ou a paz, ou para fornecer o simbolismo certo ao apetite das comunicações por laser. Queria encontrar vida ali. Ponto final. — Mir e svoboda — disse. Lev sorriu ao ouvir a pequena piada. — Svoboda significa liberdade. Bradley sorriu largamente e abriu bem as mãos. — Aqui, camaradas, temos liberdade de achar o que pudermos. — E achar logo — lembrou Wellen. — Algum dia isto aqui será o Monumento Nacional dos Arcos Marcianos — disse Bradley. — Para os turistas? Lev parou ao lado de Bradley e voltou a examinar o espetáculo deslumbrante. — Claro. A vida corrompe tudo. De um lado a outro do leito do vasto riacho estendiam-se oito delgados arcos de pedra. Eram tubos vulcânicos, disse Wellen, pretos e incrustados. Tinham cem metros de comprimento e eram inacreditavelmente finos, como o esboço de uma ponte ainda em projeto. As linhas pretas altaneiras alteavam-se nuas contra a paisagem avermelhada. A mesma leve gravidade que permitira esse estiramento de teia em pedra permitiu que Bradley deslizasse facilmente encosta abaixo. Saltou, mas não conseguiu alcançar o arco preto mais baixo. — Suba por ele — gritou Lev. — Como numa ponte. Bradley sacudiu a cabeça. — Eu não devia ter tentado. E se meu peso o quebrar? — Eles têm quase quatro bilhões de anos de idade — lembrou Lev. — Já agüentaram mais do que o peso de uma bota. — Quatro bilhões? 142

— É o que Wellen diz. Bradley alongou a vista pelos rosados suaves e cinzentos pintalgados do largo vale. Não podiam ver nesse momento os contrafortes do desfiladeiro. O vale tinha centenas de quilômetros de largura, era um refúgio baixo na aridez seca geral. O grande corte que envolvia um terço do planeta possuía secções três vezes mais profundas do que o Grand Canyon norte-americano. Ainda assim, era imensamente antigo e permanecia assim por tempo quase tão longo como aquele desde que a vida começara a rastejar na Terra. — Mais razão ainda para não quebrá-lo — disse Bradley. — Mais razão, ainda, para descobrir o que viveu aqui — sugeriu Lev. — O que me diz daqueles micrômatos que encontrou? Lev encolheu os ombros. — Fósseis microbianos, foi o que pensei. Agora, não tenho mais tanta certeza. — Recolha mais amostras. — O problema não é esse. É difícil dizer se os micrômatos são indícios de vida fóssil. Poderiam ser simplesmente inclusões naturais das rochas. Um número grande demais de eventos químicos podem imitar os biológicos. — Mas se eles são... — Sim. Vida antiga. Mas os micrômatos são difíceis de identificar mesmo na Terra, onde nós sabemos que houve vida. Esses estudos levam tempo. — Temos apenas mais dois dias até sermos recolhidos. Lev suspirou. — Todas as células que encontramos estão mortas. Talvez tenham vindo de uma zona molhada. — Dos pólos? — Tomara que não. Estavam todos cansados com a movimentação incessante. Bradley dirigira o trator durante a noite inteira. A densidade das pequenas células aumentava lentamente à medida que se aproximavam da Hebes Chasma. A maioria trazida pelo vento, haviam Lev e Lutya chegado à conclusão. Vindas de onde? — Continua a não haver muito subsolo permanentemente 143

congelado por aqui — observou Bradley. — Talvez haja mais em Chasma. — Um oásis? Lev levantou a vista para a concavidade escura do céu, orlado de cor-de-rosa. — As células, de qualquer maneira, não poderiam viver aqui, você mesmo disse. — De fato. É alto demais o conteúdo de peróxido destes solos. E é difícil verificar qual a sua idade. Mas eles não podem ser tão antigos como estes arcos. — Mesmo assim... — Sim. Mesmo assim, vida em Marte. Hurra. Mas quando? No último dia desceram do largo trecho seco e penetraram na Hebes Chasma. A missão fora planejada com alguma folga, mas todo o tempo já tinha sido usado. O foguete de resgate teria que pousar ali em questão de horas. Não era um mau local. Os paredões do grande Valles Marineris ficavam a centenas de quilômetros de distância e não constituíam perigo para a navegação da nave. As dunas de areia apresentavam pequenas ondulações. A geada matutina emprestava um leve toque de branco às rochas avermelhadas. Mas se evaporaria dentro de uma hora. O teor de umidade do solo era mais alto ali, embora continuasse a ser mais árido do que o local mais seco da Terra, os vales da Antártica. Bradley lembrou-se de que alguns dos primeiros detectores da Viking não haviam registrado qualquer coisa viva quando os americanos os experimentaram na Antártica. Só anos depois os biólogos encontraram bactérias e algas vivendo nos espaços úmidos, minúsculos, entre grãos de minerais, bem dentro das rochas. — É quase igual à Sibéria — disse Lev ao seu lado. Estavam viajando em cima do tanque, sentados nas cadeiras do convés. Iam enfrentar uma viagem de oito meses em uma cápsula e, naquele momento, queriam espaço aberto. — Mais frio. — De fato, mas mesmo na Sibéria, acredite ou não, temos seres humanos. 144

O tanque jogava de um lado para o outro, enquanto Wellen guiava à velocidade máxima. — Mas muitos não queriam estar lá — disse Bradley. Lev riu. — Aquela era a velha União Soviética. — O que foi que você disse há uns dois dias? “O passado condiciona o presente”, acho. — Posso lhe dizer, com certeza, que não vamos transformar Marte em uma colônia penal. — Eu gostaria de poder prometer que não deixaremos turistas gravar suas iniciais naqueles arcos. — Ainda assim, vocês vão tentar. — Vamos. — Temos um tratado, então. — De acordo. Nada de turistas, nada de prisões. Lev fechou melhor o casaco por cima do trajo pressurizado. A velocidade do tanque provocava um frio cortante. — Um tratado muito solene. — Merece uma cerveja. — Realmente. Sugiro que a gente beba nossa reserva bem antes de chegar o foguete de resgate. — Boa idéia. — Outro acordo histórico? — Isso mesmo. Os Primeiros Protocolos da Cerveja Marciana. — Nós estamos sendo diplomaticamente tolos. — Claro. Todos os diplomatas são assim. Bradley sabia como reconhecer a tensão de Lev nas pequenas piadas, na voz estrangulada. A contagem de células subia rapidamente, à medida que cruzavam as planícies onduladas. A cada parada obtinham uma contagem mais alta. Mas as células continuavam mortas. Restos de algum Éden primordial. Se houvesse algum oásis, onde a vida marciana primordial se agarrasse a um último vestígio de riqueza úmida, tinha que ser perto dali. Os ventos haviam-na espalhado pelas profundezas dos grandes vales. A radiação ultravioleta e o frio haviam matado as células, à medida que eram transportadas pelas tempestades rarefeitas, mas violentas. 145

Fobos surgiu rápida no oeste. A cabeça de alfinete de seu disco passou pela borda rosada e entrou no centro escuro. Parecia estar correndo a toda pressa. Na sua passagem seguinte, o veículo de aterragem se soltaria. Seus tanques estariam cheios de água colhida mediante cocção da rocha granulada de Fobos. Estavam agarrados à terra ali, roubando as escassas reservas de umidade de Marte. A vida tinha que fazer isso, fosse ela células ou seres humanos. Em tom distante Lev disse: — Fobos significa medo, não? — Acho que sim. — E Deimos? Com um gesto indicou um ponto estelar, mais brilhante que Vênus. — Demônio? Não, terror. — Acólitos do deus da guerra. — Nomes pavorosos — comentou Bradley. — Um lugar pavoroso e mortal. — Talvez devêssemos dar um novo nome a Marte. — Em homenagem a quê? — O que é que você me diz de Mir? Lev deu uma risadinha. Bradley continuou a examinar a paisagem que passava aos solavancos. Poderiam descobrir alguma coisa dali de cima. Algas, solo descolorido. Continuou suas observações e deu tempo a Lev para responder. — Chegou a última comunicação por laser — disse Lev. — Hummmm. Bradley observava o horizonte. — A estrutura celular está de acordo com a teoria evolutiva. — O que significa? — Estrutura simples. Os mesmos princípios da função morfológica. — Parece razoável. — Sem as amostras, eles não podem dizer muita coisa, claro. — Que bom se tivéssemos uma leitora de DNA. Haviam levado uma delas quando do desembarque no pólo 146

sul. Havia mais subsolo congelado ali, mas nenhum composto orgânico. A fim de dar maior raio de ação aos tanques, haviam reduzido o peso e deixado para trás a volumosa leitora de DNA. Havia outra de reserva em Fobos. — Acho que a estrutura subjacente será muito diferente — comentou Lev. — Estou ansioso para aprofundar o exame. — Gostaria que tivéssemos mais equipamento. E tempo. — Aquelas células, elas devem ter-se adaptado a solos áridos e ricos em peróxido. Devem ter sido obrigadas a usar caminhos metabólicos muito diferentes e serem muito resistentes à radiação ultravioleta. — Vamos esperar que haja ainda algumas vivas, mais para a frente. — Há ligeiras semelhanças, acredito, com o Bacilus subtilis. Uma bactéria que forma esporos, encontrada em solos. — Não seria de surpreender. A evolução força adaptações semelhantes. — De certa maneira, é uma boa notícia. — Como assim? — Essas células implicam desenvolvimento importante em, pelo menos, uma biosfera rudimentar. São muito mais avançadas do que a teoria supõe que a primeira forma de vida seria. — Essa é a teoria da argila, certo? — perguntou Bradley, protegendo os olhos contra o duro fulgor do sol. Um montículo azul-acinzentado à direita parecia diferente. Algas? Prendeu a respiração durante um longo momento. Quando se aproximaram, porém, descobriu que aquilo fora um truque de iluminação. Não tendo camada de ozônio, Marte deixava passar toda radiação ultravioleta e os azuis fortes jogavam com as cores. As máscaras pressurizadas possuíam filtros para essa radiação, a fim de proteger os olhos. As células mortas, bem que poderiam ter usado uma proteção daquelas. Talvez, lá para frente, houvesse cavernas com aqüíferos naturais que as protegessem. Lev encolheu os ombros. — Cristais elementares auto-replicantes podem ter começado em argilas, sim. Uma teoria bem apropriada para Marte, talvez. 147

Foram interrompidos pela voz de Wellen no rádio: — Aterragem em sete horas, pessoal. Vou acelerar mais esta joça. — Vá em frente — respondeu Bradley. Wellen nunca recebera bem ordens suas, mas, naquele momento, todos concordavam. O objetivo final do grupo era a parte mais profunda do Hebes Chasma, cem quilômetros adiante. O subsolo congelado permanentemente estaria ali, com toda probabilidade, mais próximo da superfície. A pressão atmosférica era mais alta. O veículo aterraria ali, bem no meio do que todos tinham esperança que fosse um oásis. — Há alguma coisa ali — disse Lev, apontando. O que quer que fosse estava ainda muito longe. Solo mais escuro e uma pequena corcova. — Vire à esquerda — disse Bradley a Wellen pelo rádio. — Está vendo? — Não. O tanque guinou para a esquerda. — Mais para a esquerda. — Vi agora. — Vá com cuidado. Atravessaram uma ravina e cruzaram um trecho plano de cascalho. O montículo à frente tinha alguns metros de altura e o solo próximo apresentava uma cor marrom-clara. Aproximaramse rapidamente. Lev desceu primeiro e acercou-se do terreno manchado. O trecho tinha mais ou menos as dimensões de um campo de futebol. Lev abaixou-se para pegar uma amostra. Bradley continuou a andar. Suas botas desciam sobre o material e imprimiam pegadas profundas na areia parda. — Não! Pare! — gritou Lev. Bradley continuou a andar sem nenhuma clara idéia do motivo por que fazia isso. Queria vê-la, tocá-la. Vida. Alienígena. Estava respirando com dificuldade. — Vai contaminar tudo! — berrou Lev. Dirigiu-se para o lado de Bradley, mas parou na borda da mancha. — Volte! 148

— Não... não. A garganta apertada, Bradley não conseguiu dizer mais nada. O montículo ficava a mais ou menos um terço da distância dentro da área manchada. A cor marrom era mais escura ali, a mais escura de todas. — Aqui é com toda probabilidade o aqüífero — disse Lev pelo rádio. — É mesmo — balbuciou Bradley. — Uma fonte d’água. Era isso o que estávamos procurando. — Talvez. Bradley chegou ao montículo e deu-lhe um pontapé. — Pelo amor de Deus, Bradley! Não toque nele! — Nós não temos tempo. — Não! Não perturbe as camadas! A bota atingiu alguma coisa dura. Chutou novamente e ouviu um tinido metálico. — Bradley — gritou Wellen —, que diabo você está... Bradley caiu de joelhos e começou a afastar a areia. Encontrou um corpo cilíndrico amassado, com várias longarinas e parafusos em volta. Oxidantes no solo haviam enferrujado o metal delgado. Encontrou uma data em numerais romanos: 1971. Bradley levantou a vista para o céu escuro e viu um único farrapo de nuvem. Suspirou e olhou para o jardim do Éden, enferrujando na areia. Lev chegou e parou ao seu lado. Wellen nesse momento berrava alguma coisa. Bradley, porém, não respondeu. Haveria tempo de sobra mais tarde para conversas. Oito meses de conversa. Saltou sobre a coisa. Lev afastara mais areia para os lados e Bradley chutou com força as longarinas. O metal partiu e as pequenas pernas do módulo de aterragem se encurvaram. Ninguém disse coisa alguma. Bradley chutou-a pela última vez e recuou, respirando forte. — O que é que dizem as letras em cirílico? — perguntou finalmente. — Marte-1. — Bacillus subtilis, ahn? 149

— Nos primeiros tempos de nosso programa... — Sim? — Havia uma suposição lógica. De que a passagem pelo meio interplanetário ajudaria a esterilizar a sonda. O rosto de Lev estava pálido e cortado de rugas profundas. — Caso a esterilização no laboratório de vocês não eliminasse tudo? — Isso mesmo. Na operação de carregamento, na plataforma de lançamento, há uma pequena probabilidade de que haja contaminação. — Hummmm. Bradley obrigou-se a respirar normalmente. — E estávamos com pressa. — De chegar aqui. — Isso mesmo. — E chegaram, não há dúvida. — Um erro. — A maldita falta de cuidado de vocês! — exclamou Wellen. — Isso aconteceu... numa época diferente. Wellen empurrou Lev para um lado. — Que desperdício! Viemos de tão longe, e vocês botaram tudo a perder antes mesmo que tivéssemos uma oportunidade... Bradley agarrou-o pelos ombros e empurrou-o suavemente para longe de Lev. — Ele tem razão. Foi em uma época diferente. Os olhos de Wellen estavam arregalados — Mas, mas eles... — Escute aqui — interrompeu Bradley. — Foi um erro compreensível. Isso... — Isso mesmo, a droga de erro deles. Empurrou novamente Lev. — Nós devíamos... Wellen colocou-se entre ambos. — E humanos cometeram o erro. A humanidade cometeu-o. Isso é tudo que importa agora. 150

Wellen, durante um longo tempo, olhou fixamente para Bradley e Lev, respirando com dificuldade, os lábios contraídos. — Droga! Chutou a sonda com raiva. — Droga! Olhou-os novamente, girou sobre si mesmo e afastou-se em passos duros, as mãos enluvadas cruzadas. Silêncio. Apenas o vento passando por eles com sua baixa voz morta. — Bem, vocês certamente foram os primeiros — disse Bradley. — Foram os primeiros. Lev não conseguia despregar os olhos do metal amassado. Estava atordoado. — Vamos embora — disse Bradley. — O quê? — Vamos subir no tanque. Podemos pegar amostras mais tarde. — Bem, eu... — Não, não, meu amigo. Vamos lá pra dentro. — Para fazer... o quê? — Um brinde. Vamos levantar um brinde a Marte-1. Lentamente, Lev respondeu: — Tudo bem. — Você disse antes: “O passado condiciona o presente.” — Temos que ter certeza... Este incidente... — O passado não é tudo. É apenas o prólogo. — Tomara que... — Claro, claro. — Bradley... — Vamos. — Agora nós nunca saberemos. Não, com certeza. — É verdade. — Os outros. Marte 3, talvez outras. Todo o planeta pode estar contaminado. — Pode ser. Mesmo que haja fósseis de verdade, isso os mascararia. — Meu Deus... eu... — Vamos. Vamos beber toda a cerveja de Marte. 151

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Era simplesmente uma bolha de sabão. Pairou por um minuto acima das cabeças da multidão, subiu, e, em seguida, estourou numa pequena chuva de gotas luzidias. Alguém riu, um som inesperado, feliz. Aproximei-me. Outra bolha subiu acima das cabeças. Observei cores rodopiarem sobre a superfície da bolha, principalmente verde, iridescente, no brilho de fundo do teto. Ela estourou, também. Ouvi um chapinhar de água na calçada. E mais risos. Eu passara o dia andando ao léu, de um nível para o outro, subindo e descendo nos elevadores e nas calçadas da cidade, sem mais objetivo do que um vago senso de procura. Pouco vi e ainda menos guardei. Apenas as bolhas chegaram até mim. Olhei por entre as cabeças reunidas em busca do mágico que transformava sabão e água em risos. Vi um liriano, um espetáculo mais do que estranho em uma rua congestionada, e ainda mais estranho por fazer mágicas no meio de uma multidão. Era delgado e gracioso, esticado, em sua bela pelagem branca. Mergulhou a extremidade de um tubo transparente num líquido, levou-o aos lábios grossos e soprou outra bolha, tão grande quanto meu punho. Equilibrou-a na palma da outra mão. Em seguida, rapidamente, suavemente, pôs de lado o tubo, mergulhou a ponta de um longo dedo em um pires de tinta e transferiu a tinta para a bola. Um leve toque aqui e ali e o azul espalhou-se pela bolha. Retirou a mão que estava embaixo e a bolha subiu. Linhas de azul contornaram a esfera, delineando as linhas convolutas da película que a formava. Fazendo me perder o fôlego. O padrão mudou, alterou-se. A bolha estourou. Pequenas gotas molharam-me a testa. Ri juntamente com os outros. A multidão era composta principalmente de humanos, a maioria jovens, empregados burocráticos e técnicos a caminho de casa ao fim do turno de trabalho. Formavam um apertado círculo na borda externa da calçada, com três indivíduos de espessura, com o liriano no centro. Um pequeno grupo de darniers postava-se à sua esquerda, tagarelando baixinho enquanto ele pegava o canudo e mergulhava-o numa panela de água de sabão. Ontem, eu teria sido obrigado a dissolver aquele ajuntamento. Hoje, espichei o pescoço para ver melhor. 153

Transeuntes se atropelavam às minhas costas, forçados a contornar o corrimão central. No poço, passavam elevadores locais, cheios de rostos cansados. Expressos deslizavam pelo teto. Pessoas entravam e saíam das lojas e escritórios da parede externa. O túnel ecoava com passadas, estalos de garras e vozes abafadas. Só o nosso círculo continuava imóvel. Ele soprou o canudo e pegou-a na... não, acima da palma da mão. Ela ficou ali, girando lentamente. Pegou um pouco mais de tinta e aplicou-a à superfície. Verde e azul. As cores giraram e se fundiram. Afastou a mão e a bolha ficou no ar diante de seu rosto. Observei-lhe os olhos, enquanto ele observava as cores girarem. Ele sorriu para o que havia criado, um largo sorriso. Eu nunca havia visto um liriano sorrir. Em seguida, seus olhos se iluminaram. Olhei para as bolhas quando os rodopios pararam. Um momento de equilíbrio. Perfeição? Não. Mas era o melhor que eu vira naquele dia e em muito tempo. A multidão ficou em silêncio, admirada, o liriano com ela. Foi essa a primeira vez em que o considerei um artista. Quando compartilhamos nossa admiração. Logo em seguida, a bolha estourou e a metade das pessoas abriu a boca de espanto. Os darniers soltaram estalidos de desalento. O liriano, porém, riu, riu com a pura alegria daquele momento, e eu ri com ele. Eu havia ficado um pouco maluco naquela manhã. Havia uma nota forçada em meu riso. O liriano olhou para além dos outros e encontrou meus olhos. Sorriu novamente e fez uma pequena mesura. Talvez ele fosse maluco, também. Retribuí a reverência. Ele pintou a bolha seguinte com pontos vermelhos e azuis e enviou-a por cima de minha cabeça. A multidão mudava à medida que pessoas entravam e saíam do círculo. Bolhas pintadas subiam e estouravam sobre elas. Permaneci ali enquanto a luz diminuía de intensidade, movendome lentamente para dentro, até ficar frente a frente com o liriano. Pontos de cor pintalgavam-lhe a pelagem macia. As seis pontas dos dedos da mão direita estavam manchadas, cada uma delas de uma cor diferente. Os pelos longos haviam sido cuidadosamente reunidos e afilados a fim de formar finos pincéis. A outra mão permanecia seca e branca. Observei-o enquanto man154

tinha as bolhas em um pequeno espaço acima da palma da mão e me maravilhei. Ele estudava cada bolha à medida que ela saía do canudo, os olhos grandes e belos, constituídos inteiramente de pupilas, pretos retintos contra a pelagem. O liriano franzia as sobrancelhas, fazia caretas, sorria aquele largo sorriso e ria de prazer enquanto escolhia as cores e seus pontos na bolha. Nada dizia. Nada perguntava. Pessoas jogavam moedas à sua frente na calçada, mas, aparentemente, ele não as notava. Houve um movimento à minha esquerda, mas ignorei-o, absorvido como estava pela habilidade daquele ser. O liriano nesse momento estava erguendo o dedo para pintar e eu o observava atentamente. A ponta do dedo tocou de leve a esfera. De repente, a bolha estourou. Tinta vermelha riscou-lhe a palma da mão. Durante um momento, pensei que aquilo fosse sangue. Depois, lembrei-me do estalo e da serpentina que passara por cima da palma de sua mão no momento em que tocava a bolha. O liriano encontrou novamente meus olhos e, em seguida, desviouos rápido para a esquerda. Olhei também. Vi um shivita na borda interna do círculo, os braços-ferramentas cruzados sobre o largo tórax. Os braços-chicotes formavam uma espiral para trás, acima da cabeça, e curvando-se para acompanhar as lustrosas placas pretas de carapaça. Parecia à vontade, a cabeça inclinada para um lado, os braços-pernas separados em uma postura de equilíbrio, alteando-se acima dos espectadores, os olhos externos sem nenhuma expressão, as pinças imóveis. Apenas o terceiro olho parecia atento. A multidão afastou-se dele. O liriano cumprimentou-o com a cabeça, levantou o canudo e soprou outra bolha. Crac! Um braço-chicote atravessou o círculo. As pessoas que estavam perto do liriano ficaram molhadas, Elas recuaram. Os pequenos darniers desapareceram na multidão. O liriano permaneceu imóvel por um momento, o sorriso imobilizado nos lábios grossos. Em seguida, mergulhou o canudo na água e soprou outra bolha. O chicote direito atacou novamente. A bolha desintegrouse. O liriano soprou outra. O shivita estourou-a. Outra vez. Mais uma vez. Mais outra. 155

O ajuntamento diminuiu. O círculo se deslocou, pois as pessoas se afastaram do shivita e de seu chicote. O liriano soprou outra bolha. O chicote do shivita espalhou chuva no seu rosto. Ninguém pareceu mover-se, mas o círculo ficou de repente mais largo. Só três pessoas se conservaram nos seus lugares — o liriano, o shivita, e eu. O liriano era rápido e flexível. Estava armado com uma faca, dentro de uma bainha presa à coxa direita. Mas ele era um liriano, a despeito de toda sua arte e magia. Sorriu com paciência e soprou outra bolha. O shivita também era paciente. Estourou-a no momento em que deixava o canudo. Eu havia perdido minha paciência há muito tempo. Coloquei-me entre os dois e virei-me para o shivita. Nesse momento, lembrei-me de quem era. Ou de quem não era mais. Não usava uniforme. Não tinha nem escudo, nem arma, nem autoridade. Não mais. Enfrentei o shivita e senti-me nu. — Humano — disse o liriano às minhas costas —, por favor... O shivita, porém, virou para mim os olhos laterais. As facetas curvavam os raios de luz e brilhavam com mil cores vivas. O terceiro olho pendia entre eles, vermelho, inquisitivo, iridescente. — Humano... — disse novamente o liriano. Nesse momento, o shivita atacou. É possível enfrentá-los com as mãos nuas. Vi uma vez como se faz. Mas eu havia treinado com um pedaço de pau. Um cassetete, um rebenque, mesmo uma bengala serviria. Alguma coisa que aparasse a ponta enrascada do chicote da esquerda. Alguma coisa para desviar o ferrão. Aparei o chicote direito, rombudo, com a borda da mão e virei-me de lado. O chicote esquerdo açoitou o ar no lugar onde estivera meu ombro. Vi de relance a ponta oca do ferrão, sendo recolhido na bainha que ficava logo atrás da ponta do chicote. Em seguida, os braços se enrascaram para trás, pairando no ar como asas escuras sobre a cabeça da criatura. Ela permaneceu em silêncio, equilibrou-se. Em seguida, atacou outra vez. Desviei-me para a direita, 156

passando por baixo do ferrão, mas o outro chicote atingiu-me o braço. Cambaleei, agachando-me. Os chicotes se enrascaram e atacaram novamente. Rolei para trás e levantei-me, lançando os braços à frente. O chicote direito passou de raspão. O outro subiu ao longo da manga da minha camisa, cortando as costuras, e, em seguida, recolheu-se. Mudei de posição, firmando o corpo. Nesse momento, senti a queimadura e vi o minúsculo vergão nas costas da mão. A dor subiu pelo braço à medida que o veneno se espalhou. As juntas ficaram rígidas e depois inertes. Tropecei. Tudo ficou turvo. O shivita alteou-se à minha frente, os chicotes enroscados, os olhos brilhando, enquanto a luz desaparecia dos meus. Meu corpo todo começou a queimar. Caí para a frente, mas algumas mãos me seguraram por trás. A última coisa que ouvi foi: — Humano... Acordei em um lugar escuro. Dois olhos brilhavam acima de mim e eu lutei. Mas eles eram pretos, não verdes. Lisos, não facetados. Uma voz que eu conhecia disse: — Está acordando. Outra voz falou e alguma coisa dura pressionou meus lábios. — Beba — disse a segunda voz. Bebi, e me engasguei. A garganta estava apertada e ardendo. Mas voltei a beber e caí no sono. Quando acordei na vez seguinte, vi luz. Luz mortiça em um cômodo pequeno, de teto baixo. Eu me encontrava em um banco acolchoado, sob uma coberta fina. Olhei em volta e distingui duas cadeiras e uma mesa, uma cama, e uma soleira de porta. O liriano estava de pé ao lado de um balcão, fatiando legumes com a longa faca. Ele notou meus movimentos e ergueu a vista. — Está acordando — disse, e reconheci a voz. Ninguém lhe respondeu desta vez. Estávamos sozinhos. Ele lavou a faca, secou-a com todo cuidado e colocou-a na bainha da coxa. Depois, levou-me uma xícara na cama. — Beba — disse. — O que é isso? Eu mal conseguia falar. 157

— Tônico — respondeu. — De um médico humano. Bebi. O primeiro gole queimou-me outra vez a garganta, mas o segundo desceu macio e o terceiro e o quarto deram conta da xícara. — Mais? — perguntou. Fiz que sim com a cabeça. Ele foi até o balcão e tornou a encher a xícara. Voltou, com fatias finas de legumes e um pedaço de queijo. — Isto está bem? — perguntou. Eu não sabia. Bebi mais tônico e experimentei os legumes. Eles desceram e ficaram dentro de mim. O liriano sorriu. Sacou a faca e habilmente fatiou o queijo. Voltou a embainhar a faca. Alguma coisa nos seus movimentos pareceu-me estranha. Era um instrumento poderoso demais para usar na cozinha. A maioria dos lirianos usam facas, mas eu nunca vira uma delas fora da bainha. Também nunca vira antes um liriano sorrir. Ri debilmente, um som baixo, dado o estado de minha garganta e cabeça. O liriano pareceu surpreso e depois riu também. — Ele está melhor — disse. — O riso cura, sim? — Sim — concordei. Recostei-me, pondo a xícara, ao mesmo tempo, em cima do peito, — O riso cura. Sorri novamente para mostrar que falava com sinceridade, mesmo que o quarto estivesse naquele momento girando em torno de mim. — Que lugar é este? — perguntei. Fechei os olhos e o quarto parou de mover-se. Depois, fui eu que comecei a me mover nele. — Este é o lar — respondeu ele. Isso mesmo, pensei. O lar. Onde é que fica o lar? Tentei dizer isso em voz alta... onde é que eu...? Mas o rodopio levou-me para longe. Acordei várias vezes, bebi mais tônico, comi o suficiente para continuar vivo. Descobri que o lar ficava no Subnível 9, Anel 12 Leste, Rua Donner, 40. Baixo aluguel, subsidiado, um quarto, uma porta. Meu velho lar tivera dois quartos e uma cla158

rabóia. Mas meu velho lar ficava no Sub 3. No momento presente, este era bastante razoável. No dia em que acordei com fome, pensei em lhe perguntar o nome. Ele estava sentado à mesa, misturando corantes em pequenos potes, mas parou o trabalho para me levar mais tônico e oferecer comida. Devorei cada fatia com a rapidez com que ele podia cortá-la, até que nós dois rimos de meu apetite. — Espere — disse, levantando-se. Remexeu no armário de comida e achou uma faca de descascar autêntica. Entregou-me a faca e o queijo e depois ajudoume a sentar no banco. Sentou-se ao meu lado, enquanto eu enchia a boca de queijo, segurando a xícara em uma altura em que eu podia pegá-la facilmente. Passado o pior da fome, pensei no nome dele. Ele curvou-se em um cumprimento formal. Era um gesto liriano. embora, mais uma vez, seu movimento me surpreendesse. Ele me alimentara como se eu fosse um bebê, enxugara meu rosto, secara minha urina. De repente, quando a questão passava a nomes, ele se tornava formal. — Este aqui é Ayer — disse em tom solene. — Ayer — repeti, tentando pronunciar o y e o r como ele o fizera. Ele repetiu a mesura e esperou. — Jensin Lord — disse eu. Percebi que, para ele, aquilo era uma cerimônia, aquela troca de nomes. — Mantive grave o tom de voz e fiz uma mesura. — Jensin Lord — repetiu. — O j estava um pouco fraco, mas não tinha importância. — Este é Jensin Lord. — Sorriu novamente e voltou a ser o que era. — É um nome muito comprido. Retribuí o sorriso. — Jensin basta — sugeri. Ele fez que sim com a cabeça. — Jensin. Jensin. — Ayer. De repente, ele tocou-me a mão direita, um toque suave, com apenas as pontas manchadas de tinta dos dedos. Mas o vergão continuava ali, ainda doloroso. Retirei a mão. Ele franziu 159

as sobrancelhas. — Este Jensin é tolo — disse. A maneira como ele disse isso fez-me corar. — Este Jensin é estúpido — concordei. — Por quê? — Por que estúpido? — perguntei. — Por que brigou? — Hábito, acho. Estou acostumado a lutar pelos desprotegidos. — Ele parecia confuso. — Você — expliquei, apontando. — Esse aí. Ayer. Ele não pode lutar com um shivita. — Esse Jensin pode? Não consegui interpretar-lhe a expressão, mas acho que ele sabia o que era sarcasmo. Encolhi os ombros. — Seis horas antes eu podia — repliquei. — Esqueci que havia deixado a força. — Esse aqui é um policial. Ayer assentiu, como se isso respondesse a alguma pergunta. — Era — corrigi-o. — Era. Deixei a força esta manhã. Para que não pudessem me despedir. — Despedir? — Mandar embora. Obrigar-me a sair. — Por que fariam isso? Os lirianos costumavam ir direto ao assunto. Pensei um pouco. Por quê, realmente? Porque eu tentara usar a razão quando devia ter usado a força. Porque eu sacara minha arma quando devia ter tentado a razão. Permitira que pessoas se ferissem. Atirara primeiro, pensara depois. De repente, depois de quinze anos, tudo se resumia em matar ou ser morto. Ou as duas coisas. — Capacidade de julgamento defeituosa — respondi, finalmente. — Perda de perspectiva. Dariam à coisa uma explicação assim. Eu a chamaria de apodrecimento cerebral. Insanidade ocupacional. Alguma coisa pequenina rastejou para dentro de meu ouvido e roeu meu senso de equilíbrio. Tomei uma profunda respiração. O quarto voltara a girar. Recostei-me novamente no travesseiro. — O que é que eu posso dizer?— Olhei para o liriano, des160

viei a vista. Não podia interpretar seus finos olhos negros. — Esqueci como fazer meu trabalho. — De modo que ele luta com um shivita. — Riu novamente, mas não sem bondade. — Isso é, sim, perda de equilíbrio. — Você teria discutido as coisas com ele, acho. — Discutir com um shivita? Quem pode pensar como um shivita? Não. Ele teria ido embora, talvez. — E se não fosse? — Ayer iria embora. Aquele era o liriano. — O que era que você estava fazendo ali? — perguntei. — Pintando. Ele não se explicou mais. — Eu nunca tinha visto aquilo feito daquela maneira — comentei. — Isso é alguma coisa que vocês fazem, seu povo? Os olhos dele se estreitaram. — Não. Aquilo é de Ayer, sua pintura. — Como foi que você veio para aqui? Por que deixou Lira? Ele pensou por um momento e depois sorriu. — Perda de equilíbrio — disse. — Mais comida? Comida diferente? Não tenho certeza de que entendi, ou pelo menos não mais do que entendia o shivita. Ele, pelo menos, tinha razão a esse respeito: não se pode conversar com um shivita. Ou confiar em que ele seguirá qualquer lógica humana. Às vezes, a gente pode vencê-lo. Ou, quem sabe, ele simplesmente resolve fazer alguma outra coisa. Quem pode saber? Os lirianos são pelo menos previsíveis. Até mesmo Ayer. Eles simplesmente fazem uma mesura e vão embora. Passei duas semanas para ficar bom e considerei-me um felizardo. Ayer nunca sugeriu que eu fosse procurar um hospital e eu nunca toquei no assunto. Não duvidava de sua bondade e não queria perde-la. Eu estivera vivendo por um tempo longo demais em um estado constante de perigo. Seu quarto era um oásis, desorientador em sua tranqüilidade, mas seguro. Logo que consegui me alimentar sozinho, ele voltou a sair, umas poucas horas por dia. Acondicionava suas tintas e canudos, uma garrafa de água de sabão, uma panela, tudo isso pen161

durado no ombro em uma pequena caixa com pernas de tesoura, que se abriam para formar uma mesinha. Voltava todo manchado de tinta, com um pote cheio de moedas e algumas notas de pequeno valor. No primeiro dia em que consegui andar sem cambalear, saí com ele. A Rua Donner, um túnel escuro e estreito, flanqueado por portas e nunca iluminado mais do que em penumbra, só permitia tráfego de pedestres. Duvidava que muitos seres humanos morassem ali. Certamente, não lirianos. Ayer levou-me para o Norte e para Leste e em volta da bússola por um labirinto de escuros becos estreitos e, finalmente, mais uma vez para o Norte até uma pista radial, onde a iluminação era a de trabalho e onde havia um elevador. Subimos para o Sub 6 e pegamos um trem local que chegava, a caminho do Anel 3. Era um distrito de lojas e escritórios semelhantes ao local onde eu o encontrara, mas, a meio caminho do anel, senti-me fraco e suava quando chegamos lá. Ayer arranjou um lugar entre duas portas e montou sua mesinha. Sentei-me no chão, costas contra a parede, ao lado dele, e observei alguns compradores curiosos pararem para verificar o que ele estava vendendo. Quando a primeira bolha subiu de sua mão, o grupo aumentou. Ele manteve aquelas pessoas ali durante uma hora, acho, pintando suas efêmeras criações, fazendo as pessoas rirem ou suspirarem a cada globo brilhante que construía. Ri com elas para as que eram engraçadas, suspirei com as belas, cada uma delas única. Observei-as pairar sobre a palma da mão de Ayer, observei-lhe os dedos pintá-las sem romper a película, e maravilhei-me novamente. Em seguida, um movimento escuro à borda da multidão chamou-me a atenção. O círculo se separou e um shivita adiantou-se. Seus olhos brilhantes prenderam-se nos meus durante um momento e, em seguida, voltaram-se novamente para Ayer. O shivita esperou, braços-ferramentas cruzados, chicotes enrodilhados. O suor esfriou-me o rosto. Ayer tirou o canudo dos lábios, muito sério. Virou-se para me olhar, como se para ver o que eu faria se ele soprasse outra bolha. Acho que nenhum de nós duvidava do que o shivita faria. Encolhi os ombros. Não havia nada que eu pudesse fazer, exceto 162

ficar sentado ali, encostado na parede, suando. Eu continuava fraco, mas não era mais tolo. Mas senti a velha raiva ferver dentro de mim, a loucura. Ayer deve ter percebido isso. Pôs o canudo de lado e tapou seus potes de tintas. A multidão dispersou-se, como se contente porque nada mais havia para se ver. As pessoas evitaram por boa distância o shivita. Ele permaneceu ali, os três olhos vigilantes, enquanto Ayer fechava a mesinha e me ajudava a levantar. Senti-os brilhando nas minhas costas quando nos voltamos e nos afastamos dali. A viagem de volta pareceu interminável. Minhas pernas tremiam, de fraqueza e reação. O sangue zumbia em meus ouvidos. Minha visão estreitou-se ao pequeno espaço entre os pés. Depois, começamos a andar, a luz diminuiu e entramos na coelheira que ele chamava de lar. Finalmente, entramos na Pista Donner e eu parei, especulando se Ayer teria que me carregar. Estávamos a dois degraus de sua porta, quando alguém falou: — Tem aí algum trocado? Levantei a cabeça e me obriguei a ver. O rapaz era magro, de cabelo escorrido, com alguns fios esparsos de barba. Possuía olhos escuros e úmidos e voz grossa. Conservava as mãos nos bolsos e nos olhava de baixo de ombros encurvados. Parecia digno de lástima demais para ser perigoso. Como eu. — Tem uns trocados aí? — repetiu, quando paramos. Encostei-me na parede do túnel e desejei que ele fosse para o inferno. Ayer, porém, arriara a caixa e procurava dentro dela o pote de moedas. Nesse momento, ouvi passos às nossas costas. Virei e vi que o rapaz magro tinha amigos. — Eu fico com isso, Peludo — disse um deles. Eram apenas dois, mais isso fazia com que fossem três contra nós. Eram ambos homens, machos os dois. Seus olhos brilhavam como os do rapaz magro, como se houvesse luz demais ali. Eram olhos escuros e famintos. O que falara olhou-me uma única vez e chegou à conclusão de que eu era sopa. Estendeu a mão. — O pote, Peludo — disse. — Fico com ele. Ayer empertigou-se lentamente e fez uma mesura. Esten163

deu o pote e colocou-o suavemente na mão do rapaz. O rapaz magro veio reunir-se aos amigos. O líder sacudiu o jarro e sorriu. — Obrigado, Peludo — disse. — Isso foi realmente uma grande bondade sua. Observei-os, enquanto eles se viravam, furioso com minhas pernas trêmulas. Sem pensar, projetei-me da parede e dei um passo vacilante atrás deles, estendendo as mãos. Ayer, porém, segurou-me o ombro e me conteve. Tentei soltar-me, mas, depois, compreendi minha fraqueza e deixei que me arrastasse para sua porta. Despenquei no banco, os punhos contraídos. Ele pôs a maleta sobre a mesa, abriu-a e dela tirou as tintas e a água. — Você poderia ter resistido — disse eu. Ele reabasteceu de tinta os potes e reencheu a garrafa com a solução de sabão. — Eles estavam blefando — continuei, enfaticamente. — Você poderia ter acabado com eles. — Não — respondeu ele. Mas não aceitei isso como resposta. — Eles eram subvida, semimortos de fome — continuei, furioso. — Desarmados. Você podia ter sacado aquela droga de faca e botado os três para correr. Diabo, você podia ter simplesmente tocado no cabo da faca. Ayer levantou a vista para mim, os olhos em frestas, transformados m linhas pretas. — Este aqui não pode usar a faca — disse ele. — Por que então, diabo, não a deixa aqui na cozinha? Para que serve ela, se não pode usá-la? A mão direita desceu em um relâmpago para a coxa. A faca faiscou na minha direção e cravou-se na parede ao lado de minha orelha. E ali ficou, vibrando. — Esse Jensin não compreende — disse Ayer. — Pode, mas não quer. Arranquei a faca da parede. A lâmina era afiada, o equilíbrio, perfeito. — Neste caso, por que a leva? — perguntei. Eu não estava gritando mais. Ele aproximou-se, a mão estendida, e eu lhe entreguei a 164

faca pelo cabo. Ele recolocou a faca na bainha e voltou à mesa. — Para lembrar — disse ele. — Está aí para não ser sacada. Fechei os olhos e me deixei cair no banco. Ele fazia a coisa parecer fácil. Fácil demais. Lembrei-me dos dias em que portava minha própria arma e tentava não usá-la. E dos dias em que não dava a mínima bola para isso. — Jensin. Abri os olhos. Uma bolha flutuava diante deles, aninhada na palma da mão de Ayer. Ele cobriu-a de cores, duas, em seguida três. Seu leve toque fazia depressões na película. A bolha saltava ligeiramente, oval, depois redonda, novamente oval. Não pude deixar de sorrir. Depois, estourou-a molhando-me o rosto. — Como é que você faz isso? — perguntei. — Como é que você faz para que ela fique parada e não estoure? — É a umidade — disse. — Olhe, Jensin. Soprou uma bolha grande, tão grande como minha cabeça. Em seguida, enfiou toda a mão na solução de sabão. Pressionou-a contra a bolha e a mão atravessou a película. Exibiu a bolha como se fosse uma luva. — Nada de magia — disse ele. — Física. Puxou a mão para fora. — Mas isso aí — disse eu, apontando. — Ela flutua acima de sua mão. Como é que você faz isso? — Ah — disse ele, assentindo. Levantou suavemente a mão e enviou a bolha flutuando até o outro lado da sala. A película tremeu um pouco antes de arrebentar. Depois, soprou outra, menor, e pegou-a habilmente no ar acima da palma da mão. — Isto é diferente — concordou. — A esta poderíamos chamar de magia. Durante um momento, acreditei nele. Lirianos não sabem o que é humor. Mas este era Ayer. — Como é que você faz isso? — voltei a perguntar. — É levitação? O quê? — Levitação. Ele pensou um pouco. — A bolha é feita de uma película de água — disse. — Em torno da bolha há uma película de pensamento. A bolha é joga165

da, o pensamento é formado. O pensamento repousa na mão. A bolha em uma bolha. Isso é levitação? Recolheu a mão e deixou a bolha descer até o chão. Ela brilhou por um momento, um domo. Em seguida, estourou. — Isso é levitação — disse eu. Tão simples assim. Sopre um pensamento em torno de uma bolha. As forças armadas de duas dezenas de mundos matariam para ter Ayer em suas mãos. — Você pode fazer isso com outras coisas? — perguntei, — Pessoas? Naves estelares? — Ele riu. — Esse Jensin, ele pode erguer uma montanha? Bom. Senti-me aliviado. — Ayer — continuei —, se alguém jamais lhe perguntar, diga que é um truque. Diga que tudo isso é feito com espelhos. Ele sorriu e fez uma reverência. — Este aqui sabe, Amigo. Sua confiança me fez sentir uma dúzia de anos mais sadio. — Agora — pedi — você pode me ensinar? Sim e não, conforme descobri. Ele podia me mostrar. Podia me deixar soprar as bolhas e usar as tintas com minúsculos pincéis feitos com seus próprios pêlos. Mas ele segurava as bolhas. Inicialmente, coloquei minha mão embaixo da sua, tentando sentir... o quê? Algo da força que ele moldara em torno da bolha. Depois, coloquei a mão sobre a sua, as bolhas subindo uma fração de centímetro acima da palma da minha mão. Depois de algum tempo, desisti. Deixei de tentar agarrar cada bolha com uma espécie de punho mental, parei de tentar fazê-las flutuar em um colchão de pensamento. Isto porque as bolhas reais me distraíam. A película brilhante prendia minha atenção, subjugava meus olhos. Tornei-me consciente de desenhos na película e de como as tintas podiam flutuar nesses desenhos para torná-los visíveis. Ou não. Muitas que fiz apresentaram defeitos, mesmo quando eram belas. Ayer fazia sugestões, elogiava as que davam certo. Estudava cada uma delas quando ele retirava a mão e ela flutuava livre nos momentos que antecediam o estouro. E tentava fazer a seguinte mais perfeita. Às vezes, conseguia. 166

Uma vez, porém, segurei a mão de Ayer quando ele começou a retirá-la. — Não — disse eu. — Mais um segundo. Procurei um pincel diferente. Mas ele moveu de qualquer maneira a mão e a bolha subiu. Fui atrás dela, em vão tentei acrescentar-lhe mais uma gota de cor, Ela se quebrou contra a parede. — Droga! — berrei. — Ela não estava terminada. Ele me fitou, as pupilas dilatadas, ao máximo. Depois, soprou outra bolha e conservou-a pacientemente na mão. Observei a película, vi o desenho, apliquei cor, de leve, aqui e ali. Depois, novamente, enquanto o desenho mudava. E mais uma vez enquanto Ayer mantinha a mão, imóvel como uma rocha, sob ela. Parei com o pincel em posição. Ayer continuou a manter a bolha sobre a mão. Mas as cores tornaram-se cinzentas. A película ficou manchada e baça, tal como um olho aberto na morte. Recuei um passo. Ayer moveu a mão e deixou a bolha estourar. A película dobrou-se sobre si mesma e caiu no chão a meus pés. Observei-a cair e olhei depois para Ayer. — Todas têm uma vida — disse ele — nem mais curta nem mais longa. Aí é que está a maior parte da magia. Franzi a testa, sentindo-me estúpido. — Esse Jensin, ele conhece o shivita, sim? A lembrança fez minha mão doer. — Sim — concordei. — Lembre-se do shivita. Agora, este aqui tem que comer. Juntos, limpamos as garrafas e os potes de tintas e em seguida preparamos uma refeição. Desta vez, Ayer preparou um ensopado, cortando habilmente os ingredientes com a faca. Falou sobre as tintas que usava, os melhores lugares onde armar a mesinha, que platéias davam mais dinheiro, quais as que riam mais. Escutei e ajudei, meus olhos cheios de iridescência. Saímos novamente no dia seguinte e chegamos a um lugar perto de um parque, onde as pessoas podiam demorar-se e apreciar-lhe a arte. Eu observava avidamente, notando como ele escolhia as pontas, que cores usava. O shivita, porém, chegou, nós guardamos as tintas e fomos embora. Aquela noite, pintei novamente, enquanto, paciente, Ayer 167

segurava as bolhas. Insistiu para que eu as soprasse e pusesse a mão sobre a sua, de modo que as bolhas pareciam flutuar sobre a palma de minha mão. — Isso virá — disse ele. — Por ora, finja. Assim, fingi, até que os olhos ficaram cansados e a respiração tornou-se ofegante. No dia seguinte, mais uma vez, fomos para as ruas e Ayer deixou que eu pintasse diante da multidão. Duas vezes apenas, mas foram boas. Eu teria feito mais, não fosse o shivita, que nos reencontrou. Olhei para trás, enquanto nos afastávamos, e senti a velha raiva. Meus punhos se contraíram, contra vontade. Ayer, porém, andava tranqüilo ao meu lado e acompanhei-lhe os passos. Pensei em bolhas flutuando no ar acima de minha mão e continuei a me afastar dali. Não foi fácil. Foi mais difícil no dia seguinte, quando o shivita chegou e a multidão dispersou-se, e no outro dia, quando nem tivemos tempo de armar a mesinha. — O que é que ele quer conosco? — perguntei a Ayer. — Quem é que pode pensar como um shivita? — retrucou ele. — Quem pode dizer que esse seja o mesmo? Era o mesmo, disso eu tinha certeza. Mas ele estava certo a respeito de pensar. Tentei afastar a coisa da mente, adotar a calma de Ayer. Pensei em bolhas. Em bolhas dentro de bolhas. No dia seguinte, o shivita estava à nossa espera na estação dos elevadores. Seguiu-nos no elevador e no transporte de subúrbio, acompanhou-nos pela rua e ficou a nos observar quando chegamos ao local que Ayer escolhera. Conservou-se a uma distância de turista e esperou. Ayer começou a afastar-se dali, mas eu o detive. Ele me fitou, curioso. — Esse Jensin, ele ficaria? Olhei para o shivita, senti seu terceiro olho em mim. Controlei a raiva. Eu me sentia forte novamente, mas, ainda mais do que uma briga, o que eu queria era pintar. — Ficaria — respondi. — Ficaria. Vamos tentar. Ele soprou uma bolha e a multidão começou a se reunir. O shivita permaneceu em um bolsão de espaço vazio, imóvel. Sentei-me ao lado de Ayer e observei-o, enquanto ele trabalhava. 168

Após um momento, esqueci o shivita. Comecei a perceber o motivo de cada movimento de Ayer, de cada cor que ele escolhia. As bolhas subiam, flutuando, de sua mão, faziam seu número para a platéia, e estouravam. Eu flutuava com elas, mais uma vez mais do que um pouco louco. Em seguida, Ayer entregou-me o canudo. Levantei-me e soprei uma bolha, coloquei minha mão sob ela, em cima da dele. Pintei-a e soltei-a. Soprei outra e pintei-a. E mais outra. Esqueci a multidão e o shivita. Esqueci Ayer. Fiquei ali, pintei, e esqueci a mão de Ayer. Até que, de repente, não o vi mais ao meu lado. Fiquei imóvel, a bolha flutuando acima da palma de minha mão, as cores girando sobre sua superfície. Sobre a palma de minha mão. A mão dele desaparecera, mas a bolha flutuava ali, de qualquer maneira, iridescente. Uma bolha dentro da outra. Quase a perdi nessa ocasião, mas mandei-a para o alto, por cima da multidão, que aplaudiu. Minha mão tremia, mas soprei outra. E conservei-a parada no ar. Molhei de tinta o pincel. Nesse momento o shivita atacou. O chicote estava ali num momento, desaparecido no outro. A bolha estourou no meu rosto, cobrindo-me de gotas, antes que eu compreendesse o que havia acontecido. Olhei estupidamente para a palma vazia da mão, e depois para o shivita. Ele permanecia ali, alto, parado, vazio. Vi a mim mesmo refletido em sua escura carapaça e a mancha branca de Ayer ao meu lado. — Jensin — disse, segurando-me pelo ombro e tentando virar-me. Finalmente, cedi. Enxuguei o rosto e a palma da mão e peguei as coisas que Ayer me entregava para guardar. Fechei a mesinha e pendurei-a no ombro. A multidão já se dissolvera. Tempo de pegar nosso dinheiro e cair fora dali. Ignorei tanto quanto podia o shivita. Mas ele nos seguiu até o transporte suburbano e o elevador. E mais além, até os túneis escuros onde nós morávamos. Abrimos caminho pelos pequenos grupos até os becos baixos e estreitos e ele continuou a nos seguir, o rosto flutuando pouco abaixo do teto, brilhando levemente à luz mortiça. Puxei Ayer para uma rua que cruzava aquela onde estávamos e que levava para longe de nossa casa. 169

— Não o quero à espera do lado de fora de nossa porta — disse-lhe. — Ele nos segue até onde quiser. A voz dele continuava tão calma como sempre. — Podemos nos livrar dele. Comecei a andar rapidamente, puxando Ayer. Ele nada disse, apenas acompanhou meus passos, nunca resistindo. Virei para uma pista lateral, passei a outra, saltei para uma terceira. Todos os escuros corredores pareciam iguais: portas fechadas, tetos baixos, características perdidas na eterna penumbra. Eu já estava perdido, mas não me importava. Ouvi o shivita às nossas costas, garras arranhando o pavimento e estuguei o passo. Ayer ficou para trás, depois pegou meu braço e puxou-me para um beco. Foi à frente, virando em todas as esquinas. Seguimos à direita, à esquerda, à esquerda novamente, mergulhamos em becos estreitos, evitamos vagabundos apenas entrevistos, encontrados nas paredes. A mesinha batia em meus quadris, a correia me cortava o ombro. O barulho de garras nos seguia, mantinha o ritmo, sem pressa, atrás de nós. Parei finalmente em um tê, pistas escuras irradiando-se para a esquerda e a direita, o coração disparado. Ayer começou a tomar a esquerda, mas parou quando viu que eu não o seguia. Olhou para mim, à espera que eu lhe desse a direção. Eu não tinha nenhuma para dar. Esmurrei a parede com o punho, desejando que fosse a cara de alguém. Depois, virei-me, à escuta. O ruído de garras aumentou, virou a esquina. O shivita parou no centro da pista, braços-ferramentas cruzados, chicotes enrolados acima dos olhos brilhantes. À espera. Soltei a mesinha do ombro, segurei as pernas dobradas com as mãos e avancei. Ayer disse alguma coisa. Acho que foi “Amigo”. Não escutei, não vi. Dei outro passo à frente. O shivita atacou nesse momento, primeiro com o chicote direito e depois com o esquerdo. Aparei-os na mesinha, que segurava com as duas mãos. O shivita aproximou-se mais. Permaneci onde estava. Nesse momento, Ayer agarrou-me. Pôs os braços em volta 170

de mim, à altura do peito, e tentou puxar-me para trás. Falou novamente, mas empurrei-o, gritando. Torci-me, girei sobre mim mesmo, tentando desalojá-lo. Dei as costas ao shivita, Ayer ainda colado a mim. Senti o golpe através dele. Em seguida, o outro, e mais um. Eu sabia que chicote era. Ele endureceu-se e gritou. Depois, entrou em espasmo, quase me sufocando, quando seus músculos se contraíram. E me soltaram quando amoleceram. Girei, tentando segurá-lo, mas a mesinha continuava nas minhas mãos, em vez disso, atingi-o involuntariamente. Ele tombou, a boca se movendo. Caí sobre um joelho ao lado dele, enquanto um chicote estalava acima de minha cabeça. Rolei para um lado, levantei-me de frente para o shivita, aparei o golpe seguinte na mesinha. Ele parou por um segundo, o terceiro olho brilhando. Depois, atacou novamente. Aproximei-me mais, batendo para longe os chicotes. O shivita deu um passo para trás, mas eu estava sobre ele, brandindo a mesinha com as duas mãos. Um golpe acima dos olhos atordoou-o. Esquivei-me para um lado e atingi-o novamente na base do crânio. A mesinha despedaçou-se. Tintas estouraram sobre a carapaça preta e desceram por cima dos ombros da criatura. Atingi-o novamente com as pernas da mesinha e ele cambaleou. E mais uma e repetidas vezes até que ele caiu lentamente para a frente, contorcendo-se e, finalmente, imobilizou-se torto no chão. Fiquei ali durante um momento, as mãos apertadas em torno das pernas quebradas da mesinha. A coisa não se moveu. Voltei para junto de Ayer. Mas ele já estava morto, olhos abertos e opacos, a pelagem branca tornando-se acinzentada, suja de tinta. Segurei-lhe as mãos manchadas e fiquei com elas entre as minhas, tremendo. Depois, fechei-lhe os olhos, tirei-lhe a faca e voltei ao shivita. Parei a seu lado, olhando a luz mortiça tirar reflexos da tinta que escorria pelo seu crânio. A criatura possuía vários cérebros e mais de um coração. Eu sabia onde todos eles ficavam. A faca era suficientemente longa e afiada. Peguei, em vez disso, o chicote esquerdo e amputei o ferrão, o conduto, e a glândula 171

em sua base que produzia o veneno. Limpei a faca e levei Ayer para casa. O shivita ainda me segue. Sabe qual é a minha porta e quase com certeza está sempre do lado de fora quando saio pela manhã. Se não, ao meio-dia ao mais tardar, ele me encontra. Fica à borda da multidão enquanto eu sopro minhas bolhas e as envio por cima de sua cabeça. Ele me segue à noite até em casa. Em geral, ele me deixa pintar, meu anjo negro. Se não, vou embora. Não levo a faca. Não sou Ayer. Tenho uma visão diferente das coisas. Seria fácil demais. Mas levo adiante seu ofício, E, nos melhores dias, acho que não o desmereço.

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O mar era de um azul muito claro, e Windom, de pé à beira da água com a espuma fria entre os dedos dos pés num momento e à altura dos tornozelos no outro, podia ver a sombra da mulher se movendo sob as ondas. Ela veio à tona a vinte metros da praia e nadou com suavidade; com graça deliberada virou de lado, de costas, dobrou os joelhos e mergulhou novamente. Depois de um instante, ele começou a contar: mil e um, mil e dois, mil e três. Contou, ma175

ravilhado, até mil e oitenta e oito antes que ela retornasse à superfície. A mulher ergueu-se com a água à altura dos joelhos e começou a caminhar na direção da areia. Era pequena, esbelta, e tinha a pele morena como madeira escurecida. O rosto, os ombros e os seios pareciam incandescentes, com gotículas de água na sua pele refletindo a luz. Levou até a meia-noite para chegar à praia. O sol descreveu um arco perfeito na metade ocidental do céu. Cresceu, o céu ficou vermelho, depois púrpura, depois azul quase negro. Crescentes prateadas rolavam desde o horizonte para se quebrarem na areia branca e luminescente. Uma lua cor de sangue apareceu sobre o Golfo do México. Era o Golfo, pelo menos isso agora ele sabia. Aquela era a sua praia em sua ilha de recifes e a casa cem metros à sua esquerda era a sua casa de praia na ilha. A mulher que se banhava em seu Golfo do México era sua esposa e a visão que teve dela primeiro encheu-o de êxtase e depois fez seu coração parecer uma pedra incandescente dentro do peito. Nunca imaginei que você pudesse me ferir, pensou. Nunca imaginei que você, de todas as pessoas do mundo, pudesse me ferir tão fundo. Ou me deixar tão louco. A temperatura havia caído. Windom percebeu que estava vestido com um roupão branco ou de alguma cor clara e tinha outro dobrado cuidadosamente sobre o ombro. Jogou-o para ela e disse: — Está muito frio para você correr por aí pelada. Ela apanhou-o no ar e observou-o com cautela. — É só um roupão — disse ele. — Você olha como se eu tivesse jogado um gambá. — Quem é que pode ter certeza com você, Win? — Vista isso antes que você morra de frio — disse ele, sentindo a pedra crescer no seu peito, machucando-o, estrangulando-o. Ela desdobrou o roupão e jogou-o sobre os ombros. Depois, sentou-se na areia a uns três metros dele e começou a enxugar o cabelo com uma das mangas. Uma música suave de clarineta vinha da casa. — Música antiga, sua esposa disse, sorrindo finalmente. 176

Encorajado pelo sorriso, ele se aproximou e ofereceu-lhe a mão. Ela aceitou-a, séria, e deixou que ele a levantasse. — Está mais carinhosa de repente — disse ele — ou é só o frio? — A música tem charme — disse ela. O amor conquista tudo. Por falta de um cravo. Um tolo e seu dinheiro. Quem cedo madruga. Ela apertou rapidamente a mão dele. — Que música gostosa, Win! Smoke Rings. — Provavelmente é sua. Daqueles discos antigos que eu te dei nas nossas bodas de papel. — Possuir não é a mesma coisa que simplesmente escutar e apreciar. — Bom, eu sabia o quanto você gosta dessas coisas antigas. Smoke Rings transformou-se em outra coisa. Ela cantarolou a música por algum tempo, suavemente: — Deve ter sido o brilho do luar que te trouxe para mim. Parou com uma gargalhada. — Ou será “Me trouxe para ti”? — Tanto faz. Faz sentido das duas maneiras. Ela se aproximou dele, deslizou as mãos e os braços para dentro de seu roupão e o abraçou com força. Ela estava quente sob a sua pele. Ele sentiu os seios dela se achatando contra seu peito e sentiu uma pontada de desejo lá embaixo que o desagradou profundamente. — Que há de errado? — ela perguntou, enquanto ele tentava se desvencilhar. — Pensei que você me queria. — Sim. Não. Não. Não era isto que eu tinha em mente. A mão dela desceu e o tocou. — Isto aqui? — Seu toque se tornou um aperto. — Não sabe se usa ou ignora? — Suas unhas começaram a afundar na sua carne. Ele tentou empurrá-la, mas ela parecia aparafusada nele e enraizada ao solo. — Pensei que você me queria, Win. Não é por isso que você disse que nunca me deixaria partir? — Eu te amei. — Não, Win. — Você é a única coisa que eu já amei. — Não — disse, apertando mais ainda. 177

— A única coisa. — Esse é o problema. Eu não era uma coisa. — Você é minha mulher. — Não, Win. Era. Era. Windom gritou quando as unhas dela lhe cortaram a carne. Então ela começou a girar, o céu, o mar e a praia começaram a girar. Tudo se dobrou para dentro e se atomizou em fina poeira cinzenta. O grito havia saído na forma de um gemido alto o bastante para acordá-lo. Ele estava no centro úmido da cama, odiando, como sempre, a desorientação breve porém real, o estar fora de contato e fora de controle, o estar puramente indefeso, que seguia o despertar. Esse despertar foi pior do que o de costume. Havia um monólito de tristeza e raiva esfriando dentro de seu peito e quando ele se lembrou de que hoje era o dia, não sentiu alívio, mas uma profunda dúvida que era sua conhecida. Sai dessa, Win. Deixa ela. Deixa a natureza seguir seu caminho. O velho sonho está apenas na sua cabeça, disse a si mesmo após vários segundos. Como é que era mesmo aquele ditado na parede de Kawanishi? Alguma coisa que algum outro japa disse, ou talvez um coreano, com um nome que não era totalmente oriental. Younghill Kane Kang? Khan? Bom, seja quem for, é alguma coisa sobre natureza, pecado e a mentalidade do ocidente, embora, sabe Deus por quê, Kawanishi só tenha a mentalidade do ocidente, do lado materno da família. Tendo dado a ele tempo suficiente para se virar na cama e voltar a dormir, o relógio falou suavemente: — São cinco e doze da manhã, senhor. O senhor deseja se levantar agora? — Não — murmurou. — Deseja a equipe acordada? — Não. — Deseja a luz acesa? — Não. Cala essa boca. — Muito bem, senhor. — Babaca. 178

Finalmente havia se lembrado da citação de Kawanishi, ou pelo menos de sua essência: Perder o controle da natureza é, na mentalidade do ocidente, um pecado. É isso aí, pensou Windom. Silencioso, com tanta dignidade quanto potência, o RollsRoyce seguiu sua escolta sombria pelo portão, na direção da rua. Como um leão saindo do covil, Windom refletiu com profunda satisfação. É. Com uma pantera negra servindo de batedora. Deixou-se relaxar aos poucos no banco, soltou um suspiro de prazer, olhou furtivo para o homem sentado ao seu lado. Max nem notou o suspiro; a expressão do homem era de exasperação misturada com resignação. O helicóptero, pensou Windom, é ainda o maldito helicóptero, e murmurou: — Regra número um, Max. Max inclinou-se muito de leve em sua direção. — Perdão, Sr. Windom? — Regra número um. Nunca deixe ninguém perceber que você está impaciente como o diabo. Jamais. Max piscou, distraído, e pareceu se recompor justamente a ponto de balançar a cabeça. Windom teve de sorrir. Esticou o braço e deu uma palmadinha amigável no braço do homem. — Ah, senta e descansa! Aproveite a viagem. Você tem que aprender a relaxar. Max se sentou. Ele não parecia mais descansado ou estar aproveitando a viagem. Ah, Max, meu camarada, Windom pensou, você nunca vai ser mais do que um criado de alto nível. Sempre anotando o que alguém dita ou cumprindo as tarefas que alguém ordena. Merda, você não é nem um bom puxa-saco. Não tem graça. Não tem estilo. Você está sempre sério demais, e também não tem talento para apresentar uma boa idéia de modo que eu pense que foi minha. E às vezes você se esquece de quem você é e de quem eu sou. Não, realmente! Insistir para que use o helicóptero! Vamos chegar lá mais rápido, senhor. O tráfego na estrada está ruim hoje, senhor. Sem classe, Max. Um Rolls-Royce é uma das coisas boas da vida. sempre foi mas agora mais do que nunca, com 179

todo mundo por aí andando nessas coisas de plásticos com três rodas. Eu quis um Rolls-Royce a vida toda, e agora eu tenho uma frota inteirinha deles, incluindo o último que eles fabricaram, o último mesmo. E agora eu vou usá-los de qualquer maneira. Também, helicópteros são nojentos, e fazem minha cabeça doer. E me embrulham o estômago. Não dá pra pensar com todo aquele barulho. Merda, Max, me dá um tempo hoje... Um pouquinho rabugento hoje, hein, Win? Nervosinho? Acordou com o pé esquerdo, foi? Coisinhas miúdas conspirando para acabar com toda a graça deste seu dia dos dias? Calma, Win. Aproveite. Comemore. E tenha mais consideração com quem merece. Max está sempre com a cabeça no lugar. Não tem classe nem graça, mas tem uma memória de elefante e uns reflexos dos diabos. Você pode irritar Max, mas não consegue fazê-lo se encolher na linha de fogo. Ele a encontrou, não foi? Encontrou-a a tempo de Kawanishi trabalhar nela enquanto você estava como se tivesse levado um chute no saco. O que é uma verdade, de certa forma. Eu fiz você, Max, e vou manter você. Você é o mais leal e confiável filho da puta que eu tenho. Você é o único filho da puta que eu tenho de quem eu gosto. Você sempre vai ser o meu criado. Ouviu o zumbido do telefone do carro e ouviu a resposta de Max. mas não se moveu até que o outro disse: — É Pete Clements, senhor. Windom colocou o fone sob o queixo. — Fala, Pete. — Problemas com Fisackerly, senhor. Um silêncio embaraçoso tomou conta do receptor. Windom, olhando as luzes vermelhas que piscavam no indicador entre os botões do telefone, deduziu que Pete estava provavelmente mordendo o bigode. Lenta e friamente, Windom respondeu: — Ele está ameaçando parar o negócio do Brasil se não for do jeito que ele quer? — Ele está fazendo realmente um escândalo nesse sentido, senhor. — Pete, é seu trabalho fazer com que ele não faça mais 180

escândalos. — Sei disso, senhor. Mas ele é muito teimoso. Diz que só quer falar com o senhor. — Porra, que diabo, Pete, trata de tirar essa teimosia dele. Windom zangou-se com o próprio tom de voz e sentiu o olhar de Max. Regra número um, aconselhou a si mesmo. — Não posso... Não quero falar com ele agora, portanto, você vai afastá-lo pelo resto do dia. Como você vai fazer isso é problema seu. Apenas mantenha esse fominha filho da puta ocupado pra ele não jogar pela privada dois anos de trabalho, nem que você tenha de sentar em cima dele. O Brasil fica pra parte da tarde. Até eu cuidar da mocinha, disse para si mesmo. Com o pensamento veio uma rápida e pequena pontada de dor no peito. Ele se curvou ligeiramente, forçou-se a não engasgar e torceu para que Max não tivesse visto e Peter não tivesse ouvido. Não o meu coração, rapazes. Apenas meu coração. — Escuta, mantenha Fisackerly ocupado. Não me interessa como. Olhe na ficha dele. Na parte de sexo. Ache alguma coisa de que ele goste e dê para ele. Ou então faça uma chantagem, não me importa. Pelamordedeus, Pete, segura essa peteca. — Sim senhor, senhor Windom. Windom devolveu o telefone a Max e soltou a respiração de um só fôlego. Os músculos do pescoço e dos ombros doíam com a tensão. Sentia-se como se estivesse tentando se equilibrar em cima de uma enorme bola. Mover-se em qualquer direção era um convite ao desastre. Esse negócio do Brasil vai me matar, pensou. Estou ficando muito velho para esse tipo de coisa. Rangeu os dentes, aborrecido. Não, não. Pense assim, seu velho idiota, que é melhor você rastejar pra tua cova e nem se incomodar em mandar a Kawanishi o endereço. Estou trabalhando nesse negócio há dois anos, e alguém vai te agarrar pelas bolas se o caldo entornar agora. Você está velho demais para a cadeia. Isso é que iria te matar. É, é isso aí, mas primeiro eu mesmo trataria de agarrar algumas bolas. De Fisackerly, de Pete Clements, não interessa de quem. Mas cedo ou mais tarde, eu vou cortar a garganta daquele filho da puta do Fisackerly de qualquer jeito. Corolário à 181

regra número um: o impaciente, o apressado, o indiscriminadamente rude, o, ah, o desesperado sempre pode ser apanhado. É como no judô. Mantenha-os fora de equilíbrio e você pode fazer com eles tudo o que quiser. Engane-os, compre-os, o que for. Construa obstáculos para detê-los, se for preciso. Olhou a gloriosa paisagem de Houston através do vidro espelhado. Foi assim que eu peguei vocês, otários. Todos esses produtores de petróleo, todo o resto daqueles babacas, eles simplesmente se encolheram todos quando você começou, lá pelos anos oitenta. E eu afastei você deles, um pouquinho aqui, outro pouquinho ali, depois pedaços enormes, peguei você e tudo e todos em você, e eu fiz de você a maior cidade do mundo. E você é toda minha, baby. A jóia da minha coroa. Pra fazer o que quiser. E você sempre foi fiel a mim, sempre foi boa pra mim. Você nunca me magoou. Seus olhos doíam. Além da janela, tudo estava turvo. Virou a cabeça para que Max não visse seu rosto e esperou até os olhos clarearem, e quando melhoraram, lá, confortavelmente, estava sua cidade mais uma vez. E o que eu fiz aqui, ele pensou agressivo, posso fazer em qualquer lugar do planeta. Fazer o que quiser. Para sempre. Já estive em cada continente da terra. Também já estive na lua. Possuo terras aqui e lá. Tenho mais ou menos um zilhão de quilômetros quadrados de plataforma continental. Pra mim não é problema ter Rolls-Royces. Tenho um pouco de tudo o que vale a pena possuir. Presidentes me chamavam de Win. Um deles até me quis em seu gabinete. Me teve. Eu o tive. Nada mal para um garoto de estacionamento de trailers numa cidadezinha como Garland, Texas. Nada mal, e quanto mais, melhor, mais é sempre melhor. Tai o exemplo do negócio do Brasil. Mas, meu adorado Jesus, vê se me dá um tempo agora. Agora eu tenho que ver um homem a respeito de um zumbi. Kawanishi perecia cansado esta manhã, e não estava em seu humor habitual. Em circunstâncias diferentes, Windom teria sido grato: o espírito alegre do médico era sempre um enorme pé-no-saco. Entretanto, o dia estava rápida e irrevogavelmente amargando na boca de Windom. Primeiro parecia que o prêmio estava à vista, quase ao alcance das mãos. Então Kawanishi co182

meçou a falar, falar e falar sobre glicerol e o sistema límbico e outros arcanos, procedendo com um propósito que fez com que Windom tivesse vontade de agarrá-lo pela gola do jaleco e gritar: fala logo o que é que há, pelamordedeus, até que percebeu que Kawanishi gradualmente estava chegando ao ponto. Apenas as expectativas mais realistas de Windom haviam sido realizadas, e não as esperanças mais viscerais. Barnes também estava presente, e isso fez as coisas ficarem piores. Barnes sempre irritava Windom. Tinha uns cinqüenta e poucos anos, a pele bronzeada, um corpo esbelto e brilhantes cabelos prateados. Podia imaginá-la fazendo jogging, jogando tênis, praticando natação. Era aquela maldita expressão de simpatia em seu rosto que ele não gostava; ela havia trabalhado tanto e tão duramente, sentia ele, aperfeiçoando essa expressão que agora era permanente; olhar para ela fazia os músculos de seu rosto cansarem. Usava uma aliança de ouro, simples, de casamento. Ele a imaginava deitada embaixo ou sentada em cima do Sr. Barnes, com aquela carinha de simpatia. Para evitar olhá-la, para se afastar o quanto pudesse da conversa soporífica de Kawanishi, Windom desviou o olhar para as fileiras de monitores instalados na parede oposta da sala. Eles não ofereciam muita coisa em termos de distração. Uma linha reta amarela atravessava a parte de baixo das telas, parecendo saltar os espaços entre os monitores. A cada cinco minutos, aproximadamente, um bip abafado porém alegre soava quando um pequeno pico corria ao longo da linha amarela que aparecia da tela mais à direita. Havia telas de televisão montadas acima. Uma oferecia uma vista da câmara criogênica, outra, um closeup do casulo de cromo que era a principal atração da câmara. Não dava para ver a pessoa que dormia no casulo, mas ele sabia que era ela que estava deitada ali, dormindo sem sonhar, mais paciente do que uma pedra. Agora, como antes, Windom achou, de algum modo, desconcertante que uma sala tão fria não parecesse fria. Para ele, deveria haver uma finíssima camada de gelo no casulo e nas paredes da câmara, como açúcar cristal, e que, apesar de seus trajes térmicos pressurizados, os dois técnicos que controlavam o casulo deveriam exalar vapor. O fato de que isso não acontecia acrescentava um pouco de irritação irracional 183

a um desapontamento já agudo. Finalmente, não conseguiu mais suportar o monólogo de Kawanishi e disparou: — Você disse que ela estaria viva! — Sim. É claro que ela está viva. — Ela ainda está congelada. Dura como pedra. Kawanishi parecia realmente surpreso com a reclamação. Olhou para Barnes, que parecia apoiá-lo. — Já expliquei. Apenas o cérebro está funcionando. Os demais órgãos ainda estão sendo recuperados, e a circulação periférica ainda está desativada. Estamos simulando ação cardíaca para manter o cérebro... — Viva, Kawanishi, você me disse que ela estaria viva. — E eu pensei que o senhor tivesse entendido, Sr. Windom. — Eu pensei que você tivesse entendido. Eu disse que quero ela viva. Isso significa andar e falar, não essa merda de “apenas o cérebro está funcionando”. Eu não vim para uma droga de palestra sobre criogenia! — Nós explicamos tudo isto para o senhor desde o começo, Sr. Windom. Não estamos apenas reanimando um cadáver. Os tecidos foram danificados. Cérebro, coração, pulmões, fígado, baço. Gânglios linfáticos. Tudo isso. Toda a maquinaria complicada quebrou. Alguns desses órgãos sofreram danos irreversíveis. Não é só chutar o aparelho para que ele volte a funcionar. — Kawanishi apontou para os monitores, que agradeceram a menção com um bip. — Tivemos de consertar tudo. Salvamos o que pudemos, transplantamos o que tinha de ser transplantado, fizemos o melhor possível para encorajar uma alta porcentagem de transferência de funções. Só podemos fazer isso com culturas. Não estamos só recuperando-a. Temos de religá-la. — Vocês parecem uns empreiteiros da construção civil, que eu conheço. Sempre precisam de mais tempo, de mais pessoas. Sempre mais dinheiro. Kawanishi endireitou-se. Uma mancha vermelha de raiva brilhava em cada face magra. — O dinheiro é suficiente. E minha equipe é bastante adequada. 184

— Então quanto tempo isso tudo vai demorar? Do seu canto, Barnes disse: — Bem, nossa estimativa original... — Um pensamento pareceu perpassar por trás da expressão de simpatia. — O que o senhor quer dizer com quanto tempo, Sr. Windom? — Desde este exato instante até o momento em que ela puder me olhar e saber quem eu sou. — A estimativa original não foi alterada — disse Kawanishi. Sentou se de volta na cadeira, entrecruzou os longos e magros dedos e pareceu pressioná-los com força no abdômen por um momento. Uma junta estalou — Tanto quanto levou com qualquer um dos outros pacientes humanos. Cerca de um ano somente para o corpo dela se adaptar fora dos sistemas de suporte de vida. Quanto a ficar em pé sozinha, falar... — Mais um ano? — disse Barnes. — Dois? De seis a oito meses no mínimo. Pense bem no que a pobre mulher vai ter de se ajustar. Windom engoliu em seco e deixou-se cair numa cadeira. — O mínimo indispensável. Barnes balançou a cabeça. — Não posso garantir. — Vocês garantiram tudo antes. — Não da maneira que eu acho que o senhor pensou. — Ela está viva, certo? O processo funciona? — Melhor que vodu. Windom olhou para ela, os olhos arregalados. — O quê? — Vodu. A velha maneira de ressuscitar os mortos. Com sangue de galinha e velas. — Merda, Barnes! — A veemência fez com que ela desse um pulo de susto. — Vodu não! Devíamos estar falando de pesquisa científica altamente desenvolvida. Devíamos estar falando de novas fronteiras da ciência e da medicina, e de algumas das mentes mais brilhantes da nossa era! — Nós garantimos que ela será capaz de olhar para você e ver você. Não garantimos que o reconheça. Você pode esperar um ano ou consideravelmente mais do que isso, gastar mais do que apenas alguns milhões de dólares, e ainda acabar com um... 185

— Um vegetal? — Windom disse. — Não. Estou pagando para obter sucesso. Quero minha mulher de volta. E ela tem de ser a minha mulher. Barnes limpou a garganta baixinho e disse: — E se ela for sua mulher, Sr. Windom? — Bom, é para isso que estamos aqui, não é? — Nós, sim. Nós recuperamos a vida de um ser humano morto. Mas ponha-se no lugar dela. — Barnes estudou as unhas imaculadas por um instante. Windom lembrou-se de seu sonho e involuntariamente virou-se, pouco à vontade, na cadeira. — Ter se suicidado e de repente voltar à vida... Windom sentiu o calor e a cor subirem à face. — Minha esposa não tinha motivo para tirar a própria vida! Barnes começou a responder, mas ele calou-a com um gesto agressivo e uma espécie de grito inarticulado. Ela e Kawanishi trocaram olhares assustados. Os monitores quebraram o silêncio com um bip. — Eu financiei este projeto — disse Windom. — Vamos entender, bem. Eu comprei isso, e vocês e tudo o que vocês fazem. Agora preciso que vocês façam isto pra mim. Vocês acham que podem simplesmente ir para outro lugar e se oferecerem para outras pessoas? Kawanishi ainda estaria conservando cachorros mortos em congeladores lá na Califórnia. E você, Barnes... — Devemos ser francos — disse Barnes, gentilmente. — Sei o quanto isso deve ser doloroso para o senhor, Sr. Windom, mas... — Cala a boca! Merda, controle-se! Windom afundou as unhas no encosto da cadeira. Regra número um, Win. Não agora. Ainda não. Depois. Aos poucos. Daqui a um ano e meio ou dois, daqui a quanto tempo tiver de ser, agüente essas pessoas o quanto tiver de agüentar e fique de olho e espere e pense nisso depois. Regra número dois: a) Recompense a lealdade; b) Castigue a ingratidão, a incompetência, a insolência. Corolário para b): Leve o tempo que for preciso. — Eu quero um retorno do meu investimento, doutores. Um retorno particular para cada um. Minha mulher restaurada em corpo, Kawanishi. Minha mulher restaurada em mente, Bar186

nes. Nada mais, entenderam? Não quero franqueza. Não quero avisos. Vocês receberão seu dinheiro, e provavelmente até mesmo ganharão seus malditos prêmios Nobel no fim das contas. (Se eu não mandar vocês para a prisão pelo resto de suas vidas. Se eu não embrulhar vocês em celofane.) — Enquanto isso, simplesmente assistam a minha esposa. Vocês vão trazê-la de volta para mim, viva e inteira. Kawanishi comprimiu os lábios num esfíncter apertado por um segundo, e depois disse: — Como quiser. — Hesitou, e acrescentou: — Senhor. Windom jurava ter visto ele pronunciar as palavras e que Deus tenha piedade de você. O rosto de Barnes estava vazio, e ainda assim tinha alguma simpatia. Não. Não simpatia. Pena. O celofane, Windom decidiu. Definitivamente o celofane. Levantaram-se e Kawanishi foi abrir a porta para Windom, que lhe endereçou um leve sorriso e murmurou um seco “Muito obrigado, meu camarada.” Meu camarada, seu filho de uma puta de olhos puxados, você vai fazer o que eu mandar, você e Barnes também, vocês vão me devolver a minha esposa e então... Parou ainda do lado de dentro da porta e deu uma última olhada nos monitores. Um deles emitiu um bip e seu sorriso aumentou. E então, mocinha, pensou. Espera só, sua piranha ingrata.

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1 O Monotrilho da Quinta Avenida passou pela janela do escritório, tão próximo que dava a impressão de que os ocupantes do edifício poderiam tocá-lo. Era um trem especial para as horas de maior movimento; no interior, os passageiros estavam empilhados como sardinhas em lata. Leeman contou, distraidamente, os vagões pintados de amarelo-canário. Sete. Oito. — Nove — falou, em voz alta. — Que disse? — perguntou Stern. — Nove — repetiu. — Nove vagões. — Entendo. Que é que você entende?, pensou Leeman. Afastou-se da janela com relutância. Stern esperou, sem apressá-lo, o rosto iluminado pelo sol da manhã. — Quer que eu fale? — perguntou Leeman. — Você é que sabe. Leeman começou a andar de um lado para outro. Às vezes isso o ajudava a pensar, mas fazia algum tempo que a tática deixara de dar certo. Estava cansado e confuso demais para pensar claramente; teria que encarar esse fato. Já se haviam passado vinte minutos daquela hora extremamente dispendiosa, sem nenhum resultado concreto. Na verdade, há três meses que não havia nenhum resultado concreto. Desde que os sonhos haviam começado. Estava começando a perder o juízo. — O caso é o seguinte: eles vêm me pegar. Stern piscou os olhos. — Eles vêm me pegar — repetiu Leeman. — Quem? — perguntou Stern, de novo. Leeman pensou mais uma vez nas espaçonaves, pontinhos pretos no céu, ocupando o céu inteiro, descendo cada vez mais, aumentando de tamanho a cada revolução. — Já contei para você. Stern fez que sim com a cabeça. — Sonho com eles — disse Leeman, — Toda noite — Um pesadelo recorrente... 190

— Uma visão — disse Leeman. — Do futuro. Stern franziu a testa. — Você acha que os sonhos são uma visão do futuro. Leeman deu de ombros. — Eu sei que são. Stern hesitou por um momento e depois tentou outra abordagem: — Como qualquer pessoa, você deve ter sonhos que não passam de sonhos, sonhos que não significam coisa alguma, pelo menos em termos literais, embora possam ter um significado mais profundo. Leeman assentiu. — Também tenho esse tipo de sonhos, mas sei muito bem a diferença. — Você é o único que vê essas espaçonaves? — Pelo que sei, sou. — Fascinante. Um símbolo fascinante de transformação do sentido junguiano.. — Símbolo? Transformação? Virou a cabeça devagar para olhar para Stern. O outro encarou-o. — É verdade! Eles vêm me pegar! Stern remexeu nos papéis que estavam em cima da mesa. — Você trabalha como detetive particular. Nessa profissão, está constantemente exposto ao perigo, à tensão... Leeman começou a ficar assustado. Ninguém iria acreditar nele. Isso estava ficando cada vez mais claro. A sua hora se arrastou, pontuada a intervalos regulares pelo Monotrilho da Quinta Avenida. 2 Isaac Matthias, Primeiro Procurador dos Santos do Último Alvorecer, passou os olhos pela turma. Estava cheia de novos recrutas, rostos ansiosos. Cada vez melhor, pensou. Quando ele entrara, a turma havia feito um silêncio respeitoso. 191

— Continue — disse para a professora, uma mulher esbelta, de meia-idade. — Não há segurança abaixo do terceiro nível — disse ela. — Sendo assim, ainda não estão salvos. Aceitar a verdade é apenas o começo. Precisam trabalhar com diligência para aprofundá-la, aproximar-se da grande luz que brilhará quando despertarmos o Deus. — Quando despertarmos o Deus — repetiu a turma, em uníssono. Matthias correu os olhos pelos alunos, futuros acólitos. Seu olhar se deteve em um rapaz que estava no canto mais distante da sala. Notando a atenção do Procurador, o rapaz desviou os olhos, pouco à vontade. É tão jovem, pensou Matthias. Eles estão ficando cada vez mais jovens. Vou deixar vir a mim as criancinhas, como Jesus. Mas ao contrário Jesus, vou triunfar. Aí está a diferença. Alguma coisa, pensou. Há alguma coisa familiar neste rapaz. Que seria? Matthias apontou. — Aquele rapaz ali no canto. Silêncio. Voltou-se para a professora. — Como é o nome dele? — Tucker Williamson. — Que renascerá quando despertarmos o Deus, e será rebatizado. — Quando acordarmos o Deus — repetiu a turma. Williamson, ele pensou. — Você tem família? O rapaz não disse nada. — Tucker, responda ao Primeiro Procurador — disse a professora. — Uma irmã. Louise. Uma incrédula. Matthias voltou-se para a professora. — Mande buscá-la — disse. 3 Kim Singh MacDonald, Diretor Geral do Governo das Nações Unidas, olhou fixamente para o Chefe de Segurança. 192

— E que mais? — Nada mais. Isso é tudo que sabemos. Irving Greenfield, o Chefe de Segurança, estava molhado de suor. — Espaçonaves — disse MacDonald, abanando a cabeça. — Vindas do espaço sideral. Não acredito no que estou ouvindo. — Podem não ser espaçonaves. Se não forem, logo saberemos. Daqui a quatro horas estaremos em condições de fazer uma inspeção visual detalhada. A chegada está prevista para daqui a oito horas. MacDonald sacudiu a cabeça. — Isto é inacreditável. Olhou para Greenfield. — Tem que haver uma ligação. — Com Plutão? — Com Plutão. Greenfield ficou calado. — Não concorda? — Não sei. — Não sabe! MacDonald estava perdendo a paciência. — É possível. — Faz seis meses que descobrimos a primeira forma de vida alienígena. Uma lesma gigante ou coisa parecida. Uma nova religião surge do nada. E agora isto. E você acha que é coincidência? — Não disse isso. Disse que não sabia. — Não teve nenhuma visão? — Não. MacDonald passou a mão pelos cabelos, que começavam a rarear. — Nem eu. Às vezes, quando leio o jornal ou vejo o noticiário na TV, fico com a impressão de que sou o único que não tem essas malditas visões! Caminhou até a janela e olhou para cima. — O pessoal do Último Alvorecer diz que é Deus ou coisa parecida, preparando-se para aparecer aos humanos. Dizem que fala com eles quando estão dormindo. 193

Voltou-se para Greenfield. — E agora temos naves espaciais no nosso céu! O Chefe de Segurança baixou os olhos. Ele não sabia o que dizer. 4 Antes de entrar no edifício onde ficava o seu escritório, Leeman tinha olhado involuntariamente para o céu. Não vai demorar muito, pensou. Havia uma jovem sentada na ante-sala do escritório. — Sinto muito — disse Leeman — mas não estou aceitando novos clientes. Imediatamente, a jovem começou a chorar. — Posso indicar-lhe um colega — disse Leeman. A jovem procurou controlar-se. — A visão disse que tinha de ser você. Leeman ficou sem fala por um momento. Depois, perguntou: — Que visão? Estava se sentindo como Stern, e odiou-se por ser tão cético. — Você sabe. Ele sabia. — É o meu irmão. Ele sofreu uma lavagem cerebral do pessoal do Último Alvorecer. Uma opção válida, pensou Leeman. Uma espécie de seguro contra o apocalipse. — Ele tem apenas treze anos — disse a jovem. — É apenas uma criança. — Tem idade suficiente para escolher sua religião. A moça entregou-lhe um pedaço de papel, muito amassado. — Isaac Matthias quer falar comigo. Leeman leu o bilhete. — Que deseja de mim? — Quero que vá comigo. Para proteger-me. — A Nave Seis ainda não respondeu — disse o acólito en194

carregado do rádio. Nem vai responder, pensou Harmon. A Nave Seis já era; é melhor a gente se esquecer de que ela um dia existiu. — Tente de novo — disse Max Harmon, que seria rebatizado quando o Deus acordasse e era ao mesmo tempo Subprocurador dos Santos do Último Alvorecer e Comandante da missão a Plutão. — Mais uma vez. Faça-os responder. Por favor, faça-os responder. Faça com que estejam vivos. O acólito encarregado do rádio olhou para o superior mas obedeceu, tentando novamente restabelecer contato com a sexta nave da frota dos Santos. Dois a menos, pensou Harmon. Oh, meu Deus. Acorde. Por favor! O medo queimava como fogo no seu estômago. Vamos todos morrer, pensou. Vamos todos morrer aqui no espaço interplanetário, sem chegarmos a ver a face de Deus. Acorde!, pensou. Acorde, maldito! A nave continuava na sua trajetória, aproximando-se cada vez mais de Plutão. 5 Os Santos do Último Alvorecer tinham comprado um quarteirão inteiro da Park Avenue. — Ele virá — disse a gigantesca imagem de Isaac Matthias, com quase dez metros de altura, projetada na tela que ficava acima da entrada do edifício principal. — O último alvorecer. Quando acordarmos o Deus. — Quando acordarmos o Deus — repetiram os fiéis. — E quando a Grande Luz se acender — disse Matthias — só nós sobreviveremos. Nós, os Santos escolhidos. Em que estou me metendo?, perguntou Leeman para si mesmo. Subiu em silêncio no elevador de alta velocidade, que levava diretamente ao suntuoso escritório de Isaac Matthias.

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6 Isaac Matthias estava sentado atrás de uma imensa escrivaninha, ouvindo com atenção as palavras do secretário. Os relatórios regionais estavam chegando. Eram todos favoráveis. O número de seguidores estava aumentando em toda parte. Na América, na Europa, na Ásia. Em toda parte. — Fale-me sobre a frota de Plutão — disse. — Entraram em órbita em torno de Plutão. O secretário fez uma pausa. — Perdemos três naves. Matthias também fez uma pausa antes de prosseguir. — Mande uma mensagem para Mark Harmon. A mensagem é a seguinte: Tenha fé. Isaac. Suspirou e recostou na cadeira, com uma expressão preocupada no olhar. 7 Max Harmon recebeu notícias estranhas e preocupantes da sala de observação. Foi até lá imediatamente, para confirmar com os próprios olhos. Voltou para a ponte como se estivesse em transe. — Que significa isso? — perguntou para o acólito encarregado das comunicações. — Trata-se de um sinal? De quê? O acólito deu de ombros. — Chame Isaac. Peça instruções. 8 Louise Williamson entrou no escritório com Leeman a seu lado. A secretária saiu e fechou a porta sem ruído. Matthias olhou para Louise, desconfiado. — Quem é essa pessoa? — perguntou. — Meu guarda-costas — respondeu Louise. — Você está cometendo um erro — disse Matthias. — Não precisa de proteção. É aqui que será salva. Mande-o embora. 196

— Quero meu irmão de volta. Leeman ficou onde estava, imóvel. Isaac Matthias pensou um pouco, depois pegou o telefone. — Mande Tucker Williamson para cá. Colocou o aparelho no gancho. Porque fui chamar essa mulher aqui? — pensou. — E porque esse homem está com ela? Porque — refletiu — eu não tinha escolha. Não tinha escolha. Nenhum de nós tinha escolha. Nenhum de nós. Foi uma coisa além do nosso alcance. Visões. 9 — Não podemos continuar a manter o segredo. Alguém falou. As redes de televisão estão telefonando — disse Irving Greenfield, em tom desanimado. — O que é que eles sabem? — perguntou MacDonald. — Sabem das naves. Das que estão chegando. E da frota que foi para Plutão. Sabem de tudo. — E os Santos do Último Alvorecer? — Sabem. MacDonald não disse nada. — Eles afirmam que estão em contato com Deus, ou, como dizem, com o Deus. Afirmam que Deus já julgou os homens e enviou as naves para puni-los. Para punir todos nós. — Exceto eles. Exceto os escolhidos. Os Santos. — É o que dizem. — E o que é que os nossos dizem? Greenfield deu de ombros. — Nada. Não sabem o que está acontecendo. — Que é que você acha? — Não sei. — E se eles estiverem certos? Greenfield ficou calado. — E se tudo que dizem for verdade? Sobre o último alvorecer? Sobre o fim? Sobre o ajuste final de contas? — É uma idéia extravagante, você tem que admitir. 197

— Você teve alguma dessas visões? — Não. — Nem eu. Quem sabe se é porque não estamos entre os escolhidos? — concluiu MacDonald, com um sorriso triste e um olhar distante. 10 Pontinhos pretos escureciam o céu, como uma nuvem de gafanhotos. Naves. Milhares de naves. — Não! — gritou Leeman. — Afastem-se! Afastem-se de mim! Quando a visão terminou, sua cabeça doía. Ainda estava no escritório de Matthias, com a garota e o irmão dela. Matthias o observava com curiosidade. Tentou levantar-se, mas ainda estava tonto. Sentou-se de novo. — Você viu alguma coisa — disse Matthias. Leeman assentiu. Matthias esperou. — Eles conseguiram — declarou Leeman. — Conseguiram o quê? Os dois irmãos observavam a cena em silêncio. Leeman olhou para Matthias. — Max Harmon e a frota de Plutão. Eles conseguiram. Ninguém disse nada. — Eles acordaram Deus — informou Leeman. — Eles acordaram Deus. 11 Deus havia se movido. Era essa a notícia que Harmon recebera. Era por isso que estava ali, do lado de fora da cratera, no lusco-fusco gelado que envolvia permanentemente a superfície de Plutão. Não posso fazer isso, pensou. Não posso olhar para o Deus. Vou ficar cego. Ele, como milhares de outros, tinha visto a forma adormecida, nas imagens transmitidas pela Sonda Espacial. Entretanto, 198

aquilo era diferente. Dali a pouco, poderia estender a mão e tocar o criador, se quisesse. Tenha fé, dissera Isaac. Apenas tenha fé. Isaac tinha fé. Fé em que eles seriam bem-sucedidos. Fé em que acordariam o Deus. E vamos acordá-lo, pensou. Porque não há outra alternativa. Para o bem de todos os habitantes da Terra. Não apenas para nós, os Santos, mas para todos. Sei o que Isaac pensa, mas não acredito que o Deus vá realmente exterminar todos abaixo do terceiro nível. O Deus vai acordar, pensou, quando nós acordarmos. E é isso que Isaac tem feito: acordar-nos. E conseguiu. Nossa vinda para cá prova que agora estamos acordados e que o Deus certamente compreenderá isso. As naves. Qual o papel das naves em tudo isto? Temos que andar depressa, pensou, enquanto escalava a encosta da cratera onde estava Deus. 12 — As naves! — exclamou Leeman. — As naves estão vindo me buscar! Sentia-se surpreendentemente calmo. Estava tudo decidido; não podia mais reagir. Estavam chegando para buscá-lo, e pronto. — Você está enganado — protestou Tucker. — O Deus mandou as naves para nos salvar. — Não sei de nenhum Deus — disse Leeman. Isaac Matthias ficou observando os três. Eram parte de um grande plano, percebeu. Um grande plano que começava a tomar forma. Podia vê-lo enquanto se delineava. É assim que é. É assim que tem de ser. Homem, mulher e criança. E visões. 13 Harmon olhou para dentro da cratera. O Deus era cinza, um cinza pulverulento. E imenso. De 199

acordo com os exobiólogos, tinha uns oitenta quilômetros de comprimento por vinte de circunferência. Embora pudesse ver apenas uma pequena fração daquele corpo monstruoso, não tinha razões para duvidar da estimativa. O Deus era a maior criatura conhecida pelo homem... a maior que ele próprio já havia visto. Poderia ser outra coisa? Uma espécie de minhoca cósmica? Nesse caso, como explicar as visões? Como explicar as naves? Tenha fé, disse para si mesmo, mordendo a língua com força para sufocar essa linha de pensamento. Tenha fé. 14 Louise seguiu Leeman até o terraço e o encontrou sentado com as costas apoiadas no tubo do sistema de ventilação, olhando para o céu. — Que vai fazer? — perguntou. — Entregar-me. Facilitar as coisas para todos. Afinal, é de mim que estão atrás. — Você realmente acredita — disse a moça. — Você realmente acredita que estão chegando apenas para buscá-lo. Leeman continuou a olhar para o céu. — Por que você não se esconde? Olhou para ela e depois para o rapaz que acabava de aparecer na porta do terraço. — Você não pode se esconder dos sonhos — declarou. — De uma forma ou de outra, eles sempre acabam pegando você. 15 — Tragam os lasers — ordenou Harmon. Está na hora, pensou. Hora de você acordar e nos encarar. De encarar as suas criaturas. Olhou para Deus. Não pode continuar dormindo e nos ignorando. Não admitimos isso. 200

Olhou para os companheiros. A atmosfera estava carregada de medo, a substância mais palpável que cercava todos eles, ali em Plutão, nos confins do sistema solar. Estamos todos com medo, pensou. Com muito medo. Medo de que ele acorde e nos mate a todos. Medo de que não acorde e mesmo assim a gente morra. Medo de tudo. Na sua presença. O raio do laser tocou a pele do Deus, queimando a massa acinzentada do seu corpo. Não devemos desistir, pensou. Visões. 16 — Telefone para ele — disse MacDonald. Greenfield sentou-se em frente ao chefe. — Diga a ele que queremos conversar. Diga que queremos saber o que está acontecendo. Diga qualquer coisa, pelo amor de Deus! Mas faça-o contar se há alguma coisa que a gente possa fazer. Greenfield remexeu-se na cadeira. — Nós somos os líderes, mas não sabemos que diabo esta acontecendo. Isto não é política. Estou fora do meu campo. Totalmente. E você? Greenfield pegou o videofone para ligar para Isaac Matthias. 17 — Temos de parar — disse o acólito. Sua voz tinha um som metálico no alto-falante do traje de Harmon. — Acho que estamos machucando ele. — Pelo contrário — disse Harmon, calmamente, enquanto a pele incrivelmente espessa do Deus começava a escurecer e se enrugar sob o assalto do feixe do laser. — É ele que está nos machucando. Como sempre nos machucou. Sua minhoca, pensou, irritado. Acorde, sua maldita mi201

nhoca. Acorde e nos tire daqui. Acabe imediatamente com toda essa bobagem. Será que é pedir muito? 18 Os pontinhos pretos estavam em toda parte. Ocupavam o céu inteiro, descendo cada vez mais, tapando a luz do sol, aumentando de tamanho a cada revolução. — Vá para dentro — disse Leeman. — Saia do terraço, depressa. — Não — disse Louise. Tucker permaneceu imóvel ao lado da irmã. Parecia haver milhares de naves. Vieram para me buscar, pensou Leeman. — Para nos buscar. Olhou para Louise e Tucker, surpreso. — Para buscar nós três — disse a moça. O rosto do rapaz tinha uma expressão de inocência, de aceitação. — Isaac sabia. Não sei como, mas sabia. É por isso que estamos aqui. Nós três. — Como poderia saber? — Visões — explicou Louise. Leeman olhou para os dois. — Só nós? Só nós três? — Não sei. Que importa? Cada um pensa que é o único. Uma luz intensa banhou o terraço. 19 MacDonald observou a cena com as naves sobrevoando a Park Avenue e os três no terraço na tela do seu receptor de televisão, enquanto ao mesmo tempo conversava com Isaac Matthias pelo videofone. Matthias também estava vendo o que se passava pela televisão. — Eles foram escolhidos — estava dizendo Matthias. MacDonald continuou a olhar com um silêncio reverente. Isto é incrível, pensou. Escolhidos para quê? Que está acontecendo? 202

No meio do espetáculo irreal, o Diretor Geral do Governo das Nações Unidas estava elaborando sua própria teoria, que se afastava estranhamente da lógica. Mas a lógica o havia abandonado. A lógica havia abandonado a todos. Enquanto observava a luz iluminar os três no terraço, convenceu-se de que tinha sido Leeman, e apenas Leeman, que havia criado as espaçonaves, conjurando-as a partir das profundezas do inconsciente ancestral. Para isso, utilizara uma força psíquica diferente de todas as forças conhecidas. Leeman não havia visto o futuro, como tentara convencer Matthias. Ele havia moldado o futuro. Estavam agora imersos em sua visão paranóica... uma ilusão hipnótica de dimensões planetárias. Era a única explicação, pensou MacDonald. Sempre vimos o mundo através dos olhos daqueles que possuem os maiores poderes de observação. Este é o passo seguinte. Isto é uma evolução. Uma epifania global. As necessidades de muitos apontadas com força inacreditável nas pessoas que ele estava observando. Salvação. O que todos nós buscamos. O trio brilhava com uma luz difusa. 20 — As pessoas querem uma explicação para tudo — disse Matthias para MacDonald, através do videofone. — Tudo esclarecido. Como se isso fosse possível. A vida é complicada. Ela resiste às formas. Juntos, porém, conseguimos dar-lhe forma. Finalmente. Voltou-se para observar as naves que se afastavam, como uma revoada imensa de estorninhos deixando um carvalho ao pôr-do-sol. Haviam partido depois de visitarem, depois de tocarem, as três pessoas no terraço, as três pessoas que eram toda a humanidade. — O problema é que estamos sempre lidando com forças totalmente além da nossa compreensão. Sempre. MacDonald escutava, observava. — Aquela coisa em Plutão — disse. — É Deus? — Está adormecida. Temos estado adormecidos, nós to203

dos. A mente de Leeman despertou. Nossas mentes estão despertando. Ela também vai despertar. — Fomos nós que a criamos? Foi você que a criou? — É um círculo vicioso. Tudo cria tudo. — Por que um verme? — Deveria ser um cavaleiro alado? A figura de um tio? Existem muitos conceitos, muitos conceitos raciais e culturais, todos interligados. A forma indefinida de um verme gigantesco pode conter todos eles. Pode aceitar todas as interpretações possíveis. É nossa criação. É cada um de nós. — Cenário — murmurou MacDonald. — Como? — Cenário — repetiu MacDonald. — Cenário de um drama metafísico. — Nesta situação crítica, você deve olhar para dentro, e não para fora — disse Isaac Matthias, dos Santos do Último Alvorecer. — Este é sempre o caminho. Seja qual for o tamanho ou o poder do Deus. 21 O chão agora estava estremecendo, começando a ondular ligeiramente sob seus pés. Fissuras gigantescas começaram a se abrir nas encostas da cratera. Max Harmon, que seria rebatizado, lutou para manter o equilíbrio. — Terremoto! — gritou um acólito. — Corra! Correr para onde? — pensou Harmon. Atrás dele, as naves da frota estavam desabando uma após outra, rachando como cascas de ovo. — Vamos morrer! — exclamou o acólito. — Vamos todos morrer! — Não necessariamente — disse Harmon. Ficou observando enquanto Deus continuava a se contorcer e a se debater, agitando o corpo imenso e informe no fundo da cratera, enquanto continuava o longo e espantoso processo de despertar, ali na superfície congelada de Plutão. — Não necessariamente — repetiu. 204

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— Estou preocupado com a minha neta — disse Harry Kramer, passando metade do sanduíche para Manny Feldman. Manny pegou-o avidamente. O sanduíche era grande, fatias grossas de carne cobertas de molho entre dois pedaços de pão francês. Os pombos olharam esperançosos para o banco do parque. — Jackie. A neta que escreve livros — disse Manny. Harry observou para ter certeza de que Manny estava comendo. Não podia acreditar que Manny comesse o suficiente. Era tão magro! Pelo menos, na opinião de Harry. Manny, Jackie... o mundo. Harry às vezes pensava, tornara-se de repente muito magro, quando ninguém estava olhando. Avarento. Preguiçoso. Harry meneou a cabeça em sinal de aprovação ao ver o molho escorrer pela barba desgrenhada de Manny. — Jackie. Sim. — Disse Harry. — Que há de errado com ela? Está doente? Manny olhou cobiçosamente a torta de cereja que Harry estava comendo. Harry passou-a a ele. — Toda, Harry? Não posso aceitar. — Pegue, pegue, eu não quero. Você deve comer. Não, ela não está doente. Está infeliz. Quando Manny, com a boca cheia de torta, não respondeu, Harry colocou a mão no braço de Manny. — Muito infeliz. Manny engoliu rapidamente. — Como é que você sabe? Esteve com ela esta semana? — Não. Próxima terça. Vai me trazer um livro escrito por uma amiga dela. Eu sei por isto. Tirou uma revista de um bolso interno do casaco. O casaco era de tweed, quase novo, com botões de madeira. Na capa lustrosa da revista, uma mulher sorria desdenhosamente. Uma mulher de rosto encovado, aparência faminta, que obviamente também não tinha o suficiente para comer. — Isto não é um livro — comentou Manny. — Ela também escreve contos. Escute isso. Escute só. “Eu estava no quintal, rodeada pelo falso brilho do verde alimentado por toxinas, e percebi que a terra estava morta. Que mais poderia ser, se nós seres humanos nos aglomeramos sobre ela, como 207

larvas de insetos no lixo, fazendo crescer nossos efêmeros mofos, deixando nossas trilhas viscosas na superfície insensível?” Isso lhe parece uma mulher feliz? — Nossa, cara! — exclamou Manny. — É tudo desse jeito. “Não leia minhas coisas, vovô!”, ela diz. “Você não faz parte do meu público.” Depois ela sorri sem mostrar os dentes. — Harry abriu os braços. — Por que o próprio avô não faria parte de seu público? Manny engoliu o último pedaço de torta. Os pombos estavam batendo as asas, aborrecidos. — Ela nunca mostra os dentes quando sorri? Nunca? — Nunca. — Nossa! — exclamou Manny. — Você quer toda essa laranja? — Não. Comprei-a para você, para levar para casa. Mas já acabou com toda aquela metade de sanduíche? — Pensei em levá-la para casa — disse Manny, humildemente. Mostrou a Harry a ponta do sanduíche, embrulhado em papel de açougue, grosso e marrom, fazendo volume no bolso do casaco velho. Harry inclinou a cabeça aprovadoramente. — Bom, bom. Leve a laranja também. Comprei-a para você. Manny pegou a laranja. Três adolescentes carregando enormes rádios aos berros passaram por eles. Manny ameaçou levar as mãos aos ouvidos, recebeu um olhar perigoso de desprezo do jovem de cabelo verde e colocou as mãos no colo. O garoto jogou uma garrafa vazia de cerveja na calçada bem em frente aos pés deles. Ela espatifou-se. Harry fez cara feia, mas Manny continuou impassível. Depois que o som desagradável passou, Manny disse: — Obrigado pela laranja. As frutas custam tão caro nesta época do ano... Harry ainda estava de cara feia. — Não em 1937. — Não comece novamente, Harry. Harry disse com tristeza: — Por que você nunca me acredita? Acha que poderia trazer toda essa comida se a comprasse a preços de 1988? Poderia 208

ter este casaco? Já viu botões como estes em 1988, num casaco novo? Já viu sanduíches embrulhados nesse tipo de papel desde que éramos jovens? Já viu? Por que não acredita em mim? Manny descascou a laranja devagar. A casca era pálida e a laranja tinha sementes. — Harry, não comece. — Mas por que você simplesmente não vem ao meu quarto e vê? Manny cortou a laranja ao meio. — Seu quarto. Um quarto de mobília barata num hotel para aposentados. Por que deveria ir? Eu sei o que estará lá. Exatamente o mesmo que em meu quarto. Uma cama, uma cadeira, uma mesa, um fogareiro, algumas latas de comida. Melhor encontrá-lo aqui no parque. Pelo menos tomo um pouco de ar fresco. Olhou para Harry timidamente, com a laranja em uma das mãos — Não entenda mal. Não é por falta de amizade que lhe digo isso Você é bom para mim. É o meu melhor amigo. Você me traz coisas gostosas, conversa comigo, divide comigo a família que eu não tenho. É suficiente, Harry. É mais que suficiente. Não preciso ver onde você mora do mesmo jeito que eu moro. Harry desistiu. Havia ocasiões em que era simplesmente impossível argumentar com Manny. — Coma sua laranja. — É uma boa laranja gostosa. Conte-me mais sobre Jackie. — Jackie. Harry sacudiu a cabeça. Dois garotos de bicicletas apareceram na trilha. Um deles deu uma guinada na direção de Manny e tomou a laranja de suas mãos. Harry olhou furioso para a criança. Tinha sido uma garota. Manny simplesmente limpou os dedos sujos de caldo de laranja nos joelhos das calças. — Tudo o que ela escreve é tão deprimente? — Tudo. — disse Harry. — Escute só isso. Tirou outra revista menor, de papel barato, com um desenho estilizado das partes íntimas de uma mulher na capa. Na 209

capa! Harry segurou a revista com a palma sobre o desenho, o que tornou difícil manter as páginas abertas enquanto lia: — “Ela olhou para a mãe da única maneira possível: com desprezo. Desprezo por todas as traições e concessões que havia sido a vida da mãe, pelas linhas tristes e suaves de derrota ao redor de sua boca e até pela bolsa de couro. Gucci, é claro, cheia de dinheiro de sangue, por ter vendido sua vida a um homem que há muito deixara de querê-la.” — Nossa, cara! — exclamou Manny. — Escreveu isso a respeito da mãe? — A respeito de todos. O tempo todo. — E onde está Bárbara? — Em Reno, novamente. Outro divórcio. Quantos tinham sido? Depois de dois, alguém havia contado? Harry, não. Imaginava a vida de Bárbara como uma grande roleta, como aquelas da TV, com pequenos homens prateados pulando para dentro e fora das casas vermelhas e pretas. Como é que ela não ficava tonta? Manny disse vagarosamente. — Sempre pensei que havia bastante amor dentro dela. — Realmente há — disse Harry, secamente. — Não estou falando de Bárbara e sim de Jackie. Um bocado de... Eu não sei. Suavidade. Apesar do seu jeito de ser. — O seu jeito de ser — disse Harry, melancolicamente. — Espinhosa. Um cacto. Mas você está certo, Manny. Sei o que quer dizer. Ela só precisa de alguém para suavizá-la. Amá-la, talvez. Se bem que eu a ame. Os dois velhos entreolharam-se. Manny disse: — Harry... — Eu sei, eu sei. Sou só um avô. Meu amor não conta, eu simplesmente estou aqui. Como o ar. “Você é maravilhoso, vovô”, ela diz. Sempre sorrindo sem mostrar os dentes. Mas sabe, Manny, você está certo! Harry levantou-se do banco. — O que ela precisa é de um homem jovem para amá-la! Manny parecia alarmado. — Eu não disse... — Não sei por que não pensei nisso antes! 210

— Harry... — E as histórias dela, também! Cheias de assassinatos desagradáveis, lugares horríveis, finais infelizes. O que ela precisa é algo que lhe mostre que também se pode escrever sobre coisas doces. Manny olhava duro para ele, surpreso. Harry sentiu um ímpeto de afeição. Logo Manny tinha que ter a resposta! O magro, maravilhoso Manny! Manny disse vagarosamente: — Jackie me disse: “Escrevo sobre a realidade.” Foi isso que ela disse, Harry. — Então não há doçura na realidade? Coloque doçura em sua vida e seus escritos tornar-se-ão doces. Ela precisa disso, Manny. Um cara realmente legal! Dois homens com roupa de jogging passaram correndo por eles. Um dos tênis Reebok pousou num caco de garrafa de cerveja. — Droga! — exclamou curvando-se para examinar o calçado. — Maldito parque! — O quê você espera? — disse o outro, com voz arrastada, olhando para Manny e Harry. — Apesar de que, se pudermos limpar o Lago Erie... — Malditos detritos! — rosnou o outro. E se foram. — É claro — disse Harry — que não vai ser fácil achar o tipo de cara para convencer Jackie. — Harry, acho que você deve pensar em outra... — Não aqui — disse Harry, de repente. — Não aqui. Lá. Em 1937. — Harry... — Sim — disse Harry, balançando a cabeça várias vezes. A excitação encheu-o de luz, como eletricidade. Que idéia! — Era diferente naquela época. Manny nada falou. Quando se levantou, a manga do casaco deixou à mostra o número tatuado em seu pulso. Disse baixinho: — Também não era um paraíso em 1937, Harry. Harry segurou a mão de Manny. — Eu vou fazer isso, Manny. Achar alguém para ela lá. 211

Trazê-lo aqui. Manny suspirou. — Amanhã no clube de xadrez, Harry? À uma da tarde? É terça-feira. — Vou lhe contar então como vou fazer. — Está bem, Harry, está bem. Estou do seu lado. Você sabe disso. Harry ficou de pé também, ainda segurando a mão de Manny. Um homem de meia-idade cambaleou em direção ao banco e despencou nele. O cheiro de uísque vinha em ondas. Olhou para Manny e Harry com desprezo. — Malditos viados! — Boa noite, Harry. — Manny, se você pudesse vir... O dinheiro rende muito mais lá. — Amanhã à uma. No clube de xadrez. Harry olhou seu amigo se afastar. Manny estava arrastando um pouco o pé. Devia ser o joelho, de novo. Harry gostaria de que Manny fosse ao médico. Talvez um médico pudesse dizer por que Manny era tão magro. Harry caminhou de volta para seu hotel. No saguão, velhos afundavam-se em sofás gastos pelo uso, queimados de cigarros, os assentos brilhosos de tanto se sentar. Sentar e sentar, Harry pensou: a vida medida pelos fundilhos das calças. E agora estava ficando escuro. Ninguém mais sairia dali até o dia seguinte. Harry sacudiu a cabeça. O elevador estava novamente enguiçado. Subiu as escadas até o terceiro andar. No meio do caminho, parou, apalpou o bolso, contou cinco quarters, seis dimes, dois nickels e oito pennies. Voltou ao saguão. — Poderia por favor trocar essas moedas por duas notas de um dólar? Poderiam ser notas velhas? A empregada olhou para ele, desconfiada — Seu aluguel está pago? — Claro — disse Harry. A mulher deu-lhe o dinheiro com má vontade. — Obrigado. A senhora está muito bonita hoje, Sra. Raduski. A Sra. Raduski resmungou alguma coisa. 212

Chegando ao quarto, Harry procurou o chapéu. Finalmente encontrou-o debaixo da cama... como tinha ido parar debaixo da cama? Tirou a poeira e colocou-o na cabeça. Tinha-lhe custado US$3,25. Abriu a porta do closet, dividiu as roupas penduradas no cabideiro de metal (como Moisés dividindo o mar, ele sempre pensava, um novo Moisés) e andou até o fundo do closet, lembrando-se com o corpo e não com a mente da virada brusca para a direita logo que passasse pela manga cinza do terno de lã. Foi sair no canto vazio de um armazém. O chapéu ficou sujo de teias de aranha. Tinha dado um passo a mais para a direita. Harry cruzou o espaço vazio de concreto até o ponto em que as estacas de madeira começavam e ziguezagueou por entre elas. A madeira também estava coberta de teias de aranha; não estavam fazendo muitas construções. No caminho para fora do armazém, Harry passou pelo vigia noturno que entrava em serviço — Tudo tranqüilo o dia todo, Harry? — Como uma igreja, Rudy — disse Harry Rudy riu. Ele ria um bocado. Também não gostava de fazer perguntas. A primeira vez que viu Harry saindo do armazém, quase em estado de choque, deve ter suposto que Harry havia sido contratado para trabalhar lá. Olhando para o rosto redondo e vazio de Rudy, Harry percebeu que ele deveria ter aquele emprego por ser tio de alguém, primo de alguém, algo de alguém. Harry sentiu um pequeno rubor de aprovação. As famílias devem cuidar dos seus! Tinha dito a Rudy que perdera sua chave e pediu-lhe outra. Lá fora era fim de tarde. Harry começou a caminhar. Pouco depois, algumas pessoas passavam por ele, cruzavam com ele, passavam do outro lado da rua. Todos estavam com a cabeça coberta. As mulheres usavam peças de veludo ou lã com véus cobrindo o rosto e vestidos longos e graciosos de estampado miúdo. Os homens usavam chapéus e ternos tão folgados quanto os de Harry. Quando chegou ao parque havia crianças, garotas usando calças pretas, longas e justas e tamancos, garotos com camisas com botões. Todos pareciam como se estivessem numa manhã de domingo. Carroças de vendedores ambulantes e lojas se alinhavam 213

às calçadas Harry comprou um par de meias de lã grossa e cinza por 89 centavos Quando o homem pegou o seu dólar, Harry prendeu a respiração: sempre sentia uma pequena pontada no estômago. Mas ninguém nunca olhava as datas das velhas notas. Comprou duas laranjas por cinco centavos cada e depois, pensando em Manny, comprou uma terceira. Numa loja de doces ele comprou “G-8 e Seus Ases do Combate” por quinze centavos. No “Canto do Colecionador”, no futuro, eles lhe pagariam de bom grado mais de trinta dólares por ele. Finalmente, comprou uma Coca-Cola sabor cereja por cinco centavos e se dirigiu para o parque. — Oh, desculpe-me — disse um jovem que esbarrou em Harry na calçada. — Sinto muito! Harry olhou para ele interessado, mas não... Muito novo. Jackie tinha vinte e oito anos. Algumas crianças passaram correndo, em direção ao cinema. Spencer Tracy em “Capitão Coragem”. Harry sentou-se num banco de madeira pintado de verde, sob um par de magníficos olmos holandeses. No banco estava uma revista. Harry olhou-a para ver em que dia de setembro ele estava: dia 28. A capa trazia um jovem e louro soldado nazista numa continência inflexível. Harry pensou novamente em Manny, franziu as sobrancelhas e virou a capa da revista para baixo. Durante a hora seguinte, pessoas passavam. Harry estudava-as com cuidado. Quando ficou muito escuro para enxergar, caminhou de volta ao armazém, comprou uma torta de maçã numa padaria, que tinha por trás do balcão uma cortina aberta, revelando um homem em mangas de camisa comendo um prato de cozido numa mesa banhada pela suave luz amarela de um lampião. A torta custou trinta e dois centavos. No armazém, Harry entrou usando sua chave, passou rapidamente por Rudy, que lia sonolentamente um número de “Noites de Paris” e andou até o canto cheio de teias de aranha. Emergiu no closet do seu quarto. Do lado de fora da janela, sirenas tocavam sem parar. — Então, como está indo? — perguntou Manny. Ele deixou cair farelos da torta no tabuleiro de xadrez; Harry afastou-os 214

com a mão. Manny comeu-lhe um cavalo. — Vou levar algum tempo para achar o rapaz certo — disse Harry. — Gostaria de ter alguém na próxima terça quando vou jantar fora com Jackie, mas não sei. Não é fácil. Há prérequisitos. Ele tem que ser jovem o bastante para atraí-la, mas suficientemente velho para compreendê-la. Ele tem que ter uma natureza suave para fazer bem a ela, mas deve ser forte para não entrar em pânico quando descobrir que está cinqüenta e dois anos no futuro. Alguém instruído. Um homem culto... ele poderia ficar mais curioso do que aflito ao se ver no interior de meu closet. Não acha? — Melhor tomar cuidado com a sua dama — disse Manny, movendo uma das torres. — Como vai encontrá-lo? — Vai levar algum tempo — disse Harry. — Estou trabalhando nisso. Manny balançou a cabeça. — Você tem que trazer alguém aqui, convencê-lo de que está aqui, impedi-lo de sair correndo de volta para o passado... Não sei, Harry. Não sei. Estive pensando. A coisa não é simples. O que aconteceria se você fizesse algo errado? Tirasse alguém importante de 1937? — Não vou escolher ninguém importante. — Que aconteceria se você cometesse um engano e trouxesse seu próprio avô? E se algo acontecesse a ele aqui? — Meu avô já tinha morrido em 1937. — E se você me trouxesse? Eu já estou aqui. — Você não vivia aqui em 1937 — E se você se trouxesse? — Eu também não vivia aqui. — E se você... — Manny — atalhou Harry —, não vou trazer ninguém importante. Não vou trazer ninguém que nós conhecemos. Não vou trazer ninguém para ficar aqui para sempre. Só quero trazer um cara legal para Jackie conhecer, dançar, ver um tipo de pessoa diferente. Uma visão diferente das possibilidades. Uma inocência. Tenho certeza de que há muitos sujeitos naquela época que serviriam, mas não conheço nenhum e eu não sei como trazer um para ela. Daí em diante, sei o que fazer. Será tão complicado? 215

Será tão imprevisível? — Sim — afirmou Manny. Estava usando de novo seu olhar de obstinação. Como é que alguém tão simples podia parecer tão obstinado? Harry suspirou e moveu o seu único cavalo. — Comprei-lhe umas meias. — Obrigado. Aquele cavalo não vai ajudá-lo muito. — Conferências. É claro que havia lá e não há aqui. Todos iam às conferências. Não havia TV, cinemas custavam caro, iam assistir a conferências de graça. — Eu me lembro — disse Manny. — Eu mesmo era um rapaz. Harry, isto não é simples. — É, sim — disse Harry, teimosamente. — 1937 não era simples. — Vai dar certo, Manny. — Xeque — disse Manny. Naquela tarde, Harry voltou lá. Daquela vez era 16 de setembro. Nas bancas de jornal o New York Times anunciava que o presidente Roosevelt e John L. Lewis haviam conversado cordialmente na Casa Branca. Os cigarros custavam treze centavos o maço. As mulheres usavam meias de algodão e sapatos de salto alto. Os melhores chocolates Schrafft custavam sessenta centavos a libra. Garotos pequenos chamavam Harry de “senhor”. Ele assistiu a seis conferências em dois dias. Uma certa Madame Trefania deu uma conferência sobre teosofia para uma sala cheia de mulheres mal-vestidas de lábios finos e franzidos. Um líder sindical levou a platéia a um delírio que fez Harry sair depois dos primeiros trinta minutos. Um religioso muito magro e nervoso mostrou transparências de missões na China. Um arqueólogo retornando de uma escavação no México deu uma palestra seca e impaciente sobre os templos para uma platéia de três pessoas. Um democrata do New Deal falou apaixonadamente sobre a ajuda aos pobres, mas logo após dirigiu-se a todas as mulheres presentes como “irmãs”. Finalmente, quando Harry já começava a se sentir desencorajado, encontrou o que procurava. Um museu oferecia uma série de conferências sobre “A Ciência de Hoje... e de Amanhã”. Harry ouviu um jovem esbelto, de barba ruiva, falar com paixão idealista a respeito de viajar para a 216

lua, os planetas, as estrelas. Parecia à Harry que, comparado às estrelas, 1989 poderia parecer razoavelmente próximo. O jovem tinha olhos castanhos e mornos e um certo senso de humor. Quando falava sobre a vida numa nave espacial, ele mencionou de passagem que as mulheres se livrariam de muitos dos trabalhos domésticos que no momento tinham de enfrentar. Durante a conferência ele fumou, acendendo os cigarros com um piscar de olhos bem masculino. Disse que a imaginação era a qualidade do homem que mais ajudaria as pessoas a se ajustarem ao futuro. Seus sapatos estavam bem engraxados. O melhor de tudo, pensou Harry, era que ele tinha um brilho. Um brilho dourado de escoteiro que fez Harry pensar em capas antigas do Saturday Evening Post, que ali custava cinco centavos. Depois da conferência, Harry permaneceu sentado na primeira fila esperando, enquanto uma garota de batom vermelhovivo conversava com o conferencista, que se chamava Robert Gernshon. De tempos em tempos, Gernshon olhava para Harry com curiosidade. Finalmente, a garota se retirou, fazendo beicinho com os lábios vermelhos — Olá — disse Harry. — Meu nome é Harry Kramer. Gostei de sua palestra. Tenho algo para lhe mostrar que vai interessar-lhe muito. Os olhos marrons tornaram-se cautelosos. — Ah, não, não — disse Harry. — Algo científico. Olhe para isto aqui. Passou a Gernshon um cigarro com filtro. — Como é comprido! — admirou-se Gernshon. — De que é feito? — O filtro? É feito de... um novo material filtrante. Suaviza o sabor e reduz a nicotina. Bem melhor para a saúde. Olhe para isso. Deu a Gernshon um copo de isopor do MacDonad’s. — É feito de um material novo também. Muito barato. Descartável. Gernshon examinou o copo. — Quem é você? — perguntou. — Um cientista. Estou interessado na ciência do futuro. Como você. Gostaria de convidá-lo para ver meu laboratório, que 217

fica em minha casa. — Em sua casa? — Sim. Coisa modesta. Sou apenas um amador, entende? Harry podia perceber que ele estava ficando confuso. Os olhos castanhos do jovem olhavam fixamente para ele. Jackie, pensou. Terras Mortas. Larvas e lixo. Desprezo pelas mães. Que diria Gernshon? Quando Gernshon diria alguma coisa? — Obrigado — disse finalmente Gernshon. — Quando seria conveniente? — Agora? — propôs Harry. Tentou lembrar-se de que hora do dia era naquele momento. Tudo o que lhe vinha à mente eram salas de conferências. Gernshon acompanhou-o. Eram nove e trinta da noite de sexta-feira, 17 de setembro. Harry caminhou com Gernshon pelas ruas, tentando conversar animadamente, procurando entretê-lo. Disse que ele próprio era muito interessado em viajar para as estrelas. Disse que sempre tinha sido seu sonho pisar num outro planeta e respirar grandes golfadas de ar não poluído. Disse que seus grandes heróis eram aqueles biólogos que desenvolveram o modelo da hélice de DNA. Disse que a ciência tinha sido a sua vida. Gernshon caminhava em silêncio. — É claro — apressou-se a dizer Harry — que, como quase todos os cientistas, estou mais familiarizado com o meu próprio campo de pesquisa. Sabe como é. — Qual é o seu campo, Dr. Kramer? — perguntou Gernshon. — Eletricidade — disse Harry, batendo-lhe na cabeça com um pesado candelabro de bronze que tirou do bolso do casaco. O candelabro lhe havia custado três dólares numa loja de penhores. Eles tinham passado pelas lojas e carroças até o ponto onde os escritórios comerciais e armazéns começavam. Não havia outros pedestres, nem assaltantes, nem camelôs, nem Anjos da Guarda, nem quadrilhas de punks. Somente ele, batendo em um homem desarmado com um candelabro. Não era nada melhor que os punks. Mas o que mais poderia fazer? Que mais poderia fazer! Nada, exceto bater nele com pouca força, com tão pouca força que mal teve tempo de amarrar-lhe as mãos e os pés 218

e colocar-lhe uma venda e uma mordaça antes que Gernshon começasse a se debater de novo. — Sinto muito, sinto muito — repetia para Gernshon. Gernshon não parecia disposto a desculpá-lo. Harry arrastou-o para dentro do armazém. Rudy dormia sobre a revista Histórias Picantes. Ofegante, Harry puxou o jovem (não mais que 70 quilos, ainda bem que tinha escolhido um magro) para o canto mais afastado, passou pela porta temporal e entrou no seu closet. — Escute — disse a Gernshon, depois de tirar a mordaça. — Escute. Eu posso chamar o Pronto-socorro se a sua cabeça estiver quebrada. Está tonto? Acha que pode entrar em choque? Gernshon estava deitado no tapete de Harry, olhando fixamente para ele sem dizer nada. — Escute, eu sei que isso pode ser um pouco chocante para você. Mas eu não sou um pervertido, nem um policial, nem nada mais que um avô com um problema. Minha neta. Preciso de sua ajuda para resolvê-lo, mas não vou tomar muito do seu tempo. Você agora está em um lugar diferente de onde você deu sua conferência. Um lugar bem distante. Mas não terá que ficar aqui muito tempo, prometo. Apenas duas semanas, no máximo, e mandarei você de volta. Juro pela memória de minha mãe. E farei com que valha a pena. Prometo. — Desamarre-me. — Sim, é claro. Imediatamente. Só que você não deve me atacar, porque sou o único que pode tirá-lo daqui. Ele teve uma inspiração repentina. — Sou como um cônsul estrangeiro. Já viajou ao exterior? Gernshon olhou em volta. — Desamarre-me. — Sim. Em dois minutos. Cinco, no máximo. Só quero explicar-lhe algo antes. — Onde estou? — Em 1989. Gernshon não disse nada. Harry explicou-lhe aos arrancos, falando o mais rápido que podia, dizendo que podia ir de 1989 para setembro de 1937 sempre que quisesse. Poderia levar Gernshon de volta também sem problemas. Explicou que fazia 219

a viagem com freqüência e era perfeitamente segura. Comentou que um pequeno cheque de aposentadoria rendia muito mais aos preços de 1937. Mencionou a torta de Manny. Só por alto tocou no problema de Jackie, imaginando que haveria uma hora melhor para falar sobre os problemas familiares, e simplesmente não mencionou o closet. Era difícil manter os olhos afastados da porta do closet. Não mencionou o quão amargas as pessoas poderiam ser em 1989, o quão perdidas, o quão acostumadas a esperar tanto que nada mais era prazer, nada mais era uma agradável surpresa. Ele estava se preparando para falar a respeito da inocência quando Gernshon disse de novo em um tom diferente: — Desamarre-me. — É claro — disse Harry rapidamente. — Não espero que me acredite. Por que deveria pensar que está em 1989? Vá e veja você mesmo. Olhe para a luz. Ainda é de manhã cedo. Só tenha cuidado lá fora. Só isso. Desamarrou Gernshon e ficou parado, de olhos fechados, esperando. Quando nada o atingiu, Harry abriu os olhos. Gernshon estava à porta. — Espere! — gritou Harry. — Vai precisar de mais dinheiro! Colocou a mão no bolso e tirou uma nota de vinte dólares, cuidadosamente economizada para isso, e todos os trocados que tinha. Gernshon examinou as moedas com atenção e depois olhou para Harry. Não disse nada. Abriu a porta e Harry, ainda trêmulo, sentou-se em uma cadeira para esperar. Gernshon voltou três horas mais tarde, pálido e suando. — Meu Deus! — Sei como se sente — disse Harry. — Lá fora é um zoológico. Tome um drinque. Gernshon pegou o coquetel que Harry havia preparado no seu copo de guardar a escova de dentes e bebeu-o de um só trago. Olhou para a garrafa, que Harry havia deixado sobre a cômoda: V.O. da Seagram, com rótulo cheio de letras miúdas. Jogou o copo longe e cobriu o rosto com as mãos. — Sinto muito — desculpou-se Harry. — Mas afinal, ele custa apenas 3 dólares e 37 centavos, o quinto de galão. Gernshon não se moveu. 220

— Eu realmente sinto muito — disse Harry. Ele levantou as mãos, com as palmas para cima e deixouas cair desconsolado. — Gostaria de... gostaria de, quem sabe, chupar uma laranja? Gernshon recuperou-se mais depressa do que Harry havia imaginado. Dentro de uma hora estava sentado na cadeira gasta de Harry, fazendo perguntas sobre o ônibus espacial; em duas horas tomava notas; em três tornou-se novamente o homem inteligente e cativante da sala de conferências. Harry, respondendo a todas as perguntas com a maior paciência, estava impressionado com a adaptabilidade do rapaz. Não podia ser fácil, Que aconteceria se ele, Harry, de repente tivesse que pular cinqüenta e dois anos? Que aconteceria se ele se visse em 2041? Harry estremeceu. — Você sabia que o cinema agora custa 6 dólares? Gernshon piscou. — Estávamos falando sobre o pouso na Lua. — Não, não estávamos mais. Agora quero que você responda a algumas perguntas. Acha que a terra está morta, com pessoas rastejando nela como larvas no lixo? Isso é uma idéia que passa em sua mente? — Eu... não. Harry assentiu satisfeito. — Bom, bom. Você olha para sua mãe com desprezo? — É claro que não. Harry... — Não, ainda estou na minha vez. Acha que uma mulher que se casa com um homem, e talvez esse casamento não seja perfeito, mas qual o casamento que é? E têm pelo menos um filho sadio... uma menina, digamos... Você diria que a vida desta mulher foi uma derrota, um fracasso? — Não. Eu... — Que pensaria se visse o desenho das partes íntimas de uma mulher na capa de uma revista? Gernshon corou. Pareceu envergonhar-se disso, mas ao mesmo tempo ele não podia evitar. — Cada vez melhor — disse Harry. — Agora pense com 221

cuidado na próxima. Calma. Não tenha pressa. Você acha que a realidade tem tanto de doçura quanto tem de feiúra? Pode pensar à vontade. Gernshon olhou para ele. Harry percebeu que já tinha passado a hora do almoço. — Mas não vá levar o dia inteiro, Robert, — Sim — disse Gernshon. — Acho que a realidade tem mais doçura que feiúra. E mais esquisitices que qualquer outra coisa. Muito, muito mais. De repente, parecia tonto... — Desculpe, eu só... tudo isso aconteceu tão... — Coloque a cabeça entre os joelhos — sugeriu Harry. — Assim... sente-se melhor agora? Bom. Quero que conheça alguém. Manny estava sentado no parque, no banco de fim de tarde. Quando os viu chegando, uma ruga de tristeza apareceu-lhe no rosto. — Harry, onde você esteve nesses dois dias? Fiquei preocupado. Estive em seu hotel... — Manny — disse Harry —, este é Robert, — Estou vendo — disse Manny, sem estender a mão. — Ele — explicou Harry. — Harry! Oh, Harry! — Como vai, senhor...? — disse Gernshon, estendendo a mão. — Acho que não entendi seu nome completo. Meu nome é Robert Gernshon. Manny olhou para ele: para a mão estendida, para o terno folgado, a gravata larga, para o sorriso respeitoso, para o brilho dourado à Baden-Powell. Os lábios de Manny articularam uma palavra em silêncio: senhor? — Eu tenho muita coisa para lhe contar — disse Harry. — Pode contar a todos nós, então — disse Manny. — Aí vem a Jackie. Harry levantou os olhos. Do outro lado do parque, uma mulher de jeans vinha a passos largos na direção deles. — Manny, hoje ainda é segunda-feira! — Eu a chamei — explicou Manny. — Você sumiu do seu quarto por dois dias, Harry. Ninguém no hotel sabia dizer onde... — Mas Manny... — disse Harry, enquanto Gernshon olhava intrigado, de um para o outro e Jackie os via e acenava para 222

eles.

Tinha perdido mais peso, observou Harry. Só duas semanas e seu rosto estava mais encovado e pequenas linhas haviam surgido ao redor de seus olhos. Linhas finas. Elas os enchiam de tristeza. Jackie usava uma camiseta azul que dizia “A vida é uma merda — e depois você morre”. Ela segurava uma revista e uma lata pequena de gás lacrimogêneo, disfarçada de spray de cabelo. — Vovô! Você está aqui! Manny disse... — Manny estava enganado — disse Harry. — Jackie, querida, você parece... é bom ver você. Jackie, gostaria que conhecesse alguém. Este é Robert. Meu amigo. Meu amigo Robert. Jackie Snyder. — Olá — disse Jackie. Deu um abraço em Harry e outro em Manny, Harry viu Gernshon olhar fixamente para os jeans apertados de Jackie. — Robert é um... um cientista — disse Harry. Não foi a coisa certa a ser dita. Harry percebeu, no momento que disse aquilo, que era a coisa errada. Ciências — todas as ciências — eram, por algum motivo não muito claro para ele, um assunto delicado para Jackie. Ela tirou os cabelos longos da frente dos olhos. — Ah, é? Não é químico, espero. — Não sou um cientista de verdade — explicou Gernshon. — Apenas um curioso. Divulgo novos conceitos científicos, escrevo a respeito deles para torná-los inteligíveis. — Como o quê? — perguntou Jackie. Gernshon abriu a boca e tornou a fechá-la. De repente passou por eles um garoto andando de skate, com um rádio portátil na mão. O som de uma banda de rock encheu o ar. Acima deles, um jato roncou. Gernshon sorriu. — É difícil explicar. — Eu sou capaz de entender — disse Jackie friamente. — Mulheres podem entender ciência, sabe? — Jackie, coração — disse Harry —, o que você tem aí? Seu novo livro? — Não — disse Jackie. — Este é o que eu disse que lhe traria. Foi escrito por um amigo. É brilhante. É sobre um homem cujo sócio nos negócios o trai, vendendo-se ao crime organizado 223

e jogando a culpa no amigo. Na prisão, ele conhece um rapaz que fundou sua própria religião, a Casa do Divino Desespero. Quando os dois saem da prisão, começam um negócio novo, Suicídio S.A., que ajuda as pessoas a se matarem em troca de uma taxa. Tudo não passa de uma denúncia brilhante da América contemporânea. Gernshon gemeu baixinho. — É uma comédia — acrescentou Jackie. — Parece... parece um pouco deprimente — disse Gernshon. Jackie olhou para ele e disse, destacando as palavras: — É a realidade. Harry viu Gernshon olhar em volta. Um homem cochilava em um banco, com as mãos apoiadas nos joelhos. Jornais e embalagens do Mac-Donald’s se misturavam na sujeira. Uma lata de lixo havia sido derrubada. Do lado de uma árvore raquítica cercada por uma grade de ferro, uma criança observava-os com olhos de velho. — Também trouxe-lhe algo, vovô — disse Jackie. Harry esperava que Gernshon percebesse que a voz da moça se tornava mais suave quando falava com o avô. — Um cachecol. Veja, é lã de lhama. Bem quente. Gernshon disse: —- Minha mãe tem um cachecol igual a este. Não, eu acho que o dela é de alguma espécie de pele. O rosto de Jackie mudou. — De que tipo? — Não... Não sei ao certo. — Não de uma espécie em extinção, espero. — Não, isso não. Eu tenho certeza que isso... não. Jackie fitou-o um pouco mais demoradamente. A criança que os estava observando caminhou em direção a eles. Harry viu Gernshon olhar para o garoto aliviado. Mais ou menos onze anos de idade, usava um terno muito bem talhado e sapatos italianos. Manny procurou colocar-se entre o garoto e Gernshon. — Jackie, querida, é tão bom te ver... O garoto aproximou-se de Gernshon pelo outro lado. Não olhou para cima e sua voz permaneceu infantil e baixa, quase um sussurro. — Crack... 224

— Pise em um e dá um susto na sua mãe — disse animadamente Gernshon. Sorriu para Harry, um sorriso conspiratório para sugerir que as crianças, pelo menos não haviam mudado em cinqüenta anos. O menino levantou a cabeça para olhar para Gernshon. — Está falando de minha mãe? Jackie fez um muxoxo de impaciência, rosnou: — Não — disse ao garoto. — Ele não quis dizer nada. Dê o fora. — Não vou me esquecer — disse o garoto, afastando-se devagar. Gernshon disse, franzindo a testa: — Sinto muito. Não tenho muita certeza do que aconteceu, mas sinto muito. — Você é de verdade? — disse Jackie, com raiva. — Que merda está tentando fazer? Não percebe que este parque é o único lugar onde Manny e meu avô conseguem tomar um pouco de ar fresco? — Eu não... — Aquele punk estava falando sério quando disse que não ia esquecer. — Não gosto do seu tom — disse Gernshon. — Nem da sua linguagem. — Minha linguagem! Os cantos da boca de Jackie se retesaram. Manny olhou para Harry e tapou os olhos com as mãos. O garoto, a alguns metros de distância, de repente emitiu um barulho, como o de um animal estrangulado, tão penetrante que os quatro se viraram para olhar. Dois adolescentes corpulentos corriam na direção dele. O rosto da criança se enrugou; de repente ele parecia muito mais novo. Deu meia-volta, tropeçou, fez o barulho novamente e saiu correndo, com terror animal, na direção da rua. — Não! — gritou Gernshon. Harry virou-se na direção do grito, mas Gernshon já não estava lá. Harry viu um caminhão aproximar-se, ouviu Jackie gritar, viu o corpo magro de Gernshon chocar-se com o do garoto. O caminhão passou zunindo, com os freios a ar produzindo um ruído ensurdecedor. Gernshon e o garoto levantaram-se no meio da rua. 225

Os carros começaram a buzinar. O garoto gritou. — Largue meu terno! Você rasgou meu terno! Uma luz vermelha piscou e um carro da polícia se aproximou. Os dois adolescentes corpulentos desapareceram e pouco depois o garoto desapareceu também. — Nunca vamos achá-lo — disse o policial desapontado, olhando para a prancheta na qual ainda não havia escrito nada. — Talvez seja melhor assim. Foi embora. — Está machucado? — perguntou Manny. Era a primeira vez que falava. Seu rosto estava cinza. Harry colocou a mão sobre seus ombros. — Não — disse Gernshon. Deu um sorriso suave para Manny. — Só um pouco sujo. — Foi preciso coragem — disse Jackie. Estava olhando para Gernshon com a testa franzida. — Por que você fez aquilo? — Como? — Por quê? Quero dizer: sabendo que é aquele garoto, sabendo... ah, tudo... — Abrangeu todo o parque com um gesto, um movimento de desânimo das mãos jovens e fortes que partiu o coração de Harry. — Por que se importar? — Aquele garoto é apenas um garoto — disse Gernshon, sem levantar a voz. Manny parecia cético. Harry moveu-se para esconder dos outros a expressão de Manny antes que alguém quisesse discutila. — Ouça, eu tenho uma idéia ótima. Vocês dois parecem ter tanto para conversar... preocupações e... tudo. Por que não jantam juntos? Vai ser por minha conta. — Puxou outra nota de vinte dólares do bolso. Atrás dele ele podia sentir o susto de Manny. — Ah, não, eu não poderia — disse Gernshon, na mesma hora em que Jackie começou a desculpar-se: — Vovô... Harry colocou suas palmas sobre os dois lados do rosto da neta. 226

— Por favor. Faça isso por mim, Jackie. Sem perguntas, sem protestos. Apenas esta vez. Por mim. Jackie ficou calada por um longo tempo. Depois, fez uma careta, balançou a cabeça e virou-se de maneira meio irônica para Gernshon. Gernshon pigarreou. — Bem, na verdade, certamente seria melhor se fôssemos nós quatro. Fico envergonhado de dizer que os preços são mais altos nesta cidade do que... quero dizer, eu não posso... mas se fôssemos a um lugar menos caro, o Automático, por exemplo, tenho certeza de que nós quatro poderíamos comer juntos. — Não, não — protestou Harry. — Nós já comemos. Manny olhou para ele. Jackie falou, em tom indignado. — Eu com certeza não quero... o que acha que está acontecendo, rapaz? Isto é só para agradar meu avô. Está com medo que eu possa tentar me aproveitar de você? Harry viu a olhada rápida e involuntária de Gernshon para o jeans apertado de Jackie. Viu também que Gernshon arrependeu-se instantaneamente de ter olhado. Viu que Manny viu, que Jackie viu, e que Gernshon viu que eles viram. Manny resmungou alguma coisa. O rosto de Jackie começou a ficar tão roxo que Harry ficou perplexo quando Gernshon interrompeu-a com uma dignidade que ninguém esperava. — Não, é claro que não — disse, calmamente. — Mas eu preferia que todos nós jantássemos juntos por um motivo bem diferente. Gosto muito da minha mulher, Srta. Snyder, e eu não faria nada que pudesse aborrecê-la. Isto provavelmente é irracional, mas é assim que é. Harry ficou atônito, de boca aberta. Manny começou a balançar com o que Harry esperava não ser uma risada. E Jackie, após olhar fixamente para Gernshon por um longo tempo, abriuse no sorriso mais espontâneo que Harry havia visto em vários meses. — Ei —- disse, em tom cordial. — Isso é bonito. Isso é bonito pra caralho! De repente, o tempo esfriou. Ameaçou nevar, mas não ne227

vou. Todas as tardes, Harry e Manny davam uma rápida caminhada pelo parque e depois entravam no clube de xadrez, na cafeteria, na estação de ônibus ou na biblioteca, onde havia uma mesa bem no meio das estantes, na qual podiam comer sem serem percebidos. Harry levou para Manny um pequeno sanduíche com maionese, de sessenta e três centavos, e um par importado de luvas de lã, que havia custado um dólar na liquidação préestação. — Então, onde estão eles hoje? — perguntou Manny no sábado, tirando as luvas para espiar dentro do sanduíche. —- No museu, eu acho — disse Harry, com ar infeliz. — Que museu? — Como vou saber? Ele diz: “Hoje vamos ao museu, Harry.” E se vai às oito da manhã, sem explicar mais nada, Manny parou de mastigar. — Que museu abre às oito da manhã? Harry pousou seu sanduíche, pastrami em pão de centeio, trinta e nove centavos. Tinha emagrecido na última semana. — Provavelmente — disse Manny rapidamente — eles apenas conversam. Você sabe como os jovens fazem, apenas conversam. Harry olhou para ele de cara feia. — Você quer dizer como você e Lia faziam quando eram jovens e estavam sozinhos. — É melhor falar com ele logo, Harry. Não, com ela. Pensou em Jackie e pareceu mudar de idéia. — Não, com ele. — Conversar não vai resolver — disse Harry. Parecia decidido. — Gernshon tem que ser mandado embora. — Ser mandado? — Ele é casado, Manny! Eu queria ajudar Jackie, mostrar a ela que a vida pode ter alguma doçura. Que tipo de doçura ela vai encontrar se se apaixonar por um homem casado? Sabe o que vai acontecer! — lamentou-se Harry. — Não, ele tem de voltar, Manny. — Como? — disse Manny, com objetividade. — Não pode bater nele de novo, Harry. Da última vez você teve sorte de não 228

machucá-lo. Você não quer isto na sua consciência. E se mostrar a ele o seu, eh... seu... — Meu closet. Manny, se pelo menos você fosse ver... por um dólar você pode comprar... — ... então ele poderá simplesmente voltar na hora que quiser. Como é que você vai fazer, então? Um barulho repentino assustou a ambos. Alguém estava vindo por entre as estantes. — As bibliotecárias! — disse Manny baixinho. Os dois guardaram rapidamente os sanduíches, a cerveja (quinze centavos) e as tortas nas sacolas de compras. Manny, assustado, colocou também as luvas de lã. Harry varreu da mesa as migalhas de pão. Quando o intruso se aproximou, Harry estava debruçado sobre Como Fazer Flores de Papel e Manny sobre Porcelana da Dinastia Yung Cheng. Era Robert Gernshon. O jovem rapaz desabou em uma cadeira. Seu rosto estava cor de cinza. Em uma das mãos segurava um maço de papéis. Dava para ver que a última página estava coberta de garranchos. Após um momento de silêncio, Manny perguntou diplomaticamente. — De onde está vindo, Robert? — Onde está Jackie? — quis saber Harry. — Jackie? — repetiu Gernshon. Estava rouco. Harry percebeu com um choque repentino que tinha estado chorando. — Faz alguns dias que não a vejo. — Alguns dias? — disse Harry. — Não. Eu estive... estive... Manny sentou-se ereto. Olhou para Gernshon por cima de Porcelana da Dinastia Yung Cheng e depois pousou o livro na mesa. Passou para a cadeira ao lado de Gernshon e tirou-lhe os papéis das mãos. Gernshon debruçou-sé sobre a mesa e enterrou a cabeça entre os braços. — Sinto muito. Tenho me comportado como uma criança. Seus ombros tremiam. Manny separou os papéis e espalhou-os na mesa da biblioteca. Entre as anotações manuscritas estavam dois livros finos, um com uma encadernação preta e 229

outro um panfleto: Uma Memória de Auschwitz. Contagem Regressiva para Hiroshima. Por um momento ninguém falou. Depois Harry disse, para ninguém em particular: — Eu pensei que ele estava freqüentando museus científicos. Manny pousou o braço, quase casualmente, nos ombros de Gernshon. — Então agora você sabe que não deve ir a nenhum desses dois lugares. Outras pessoas deveriam ter sabido. Harry não reconheceu a expressão no rosto de seu amigo, nem a voz com a qual Manny disse a Harry. — Você está certo. Ele tem de voltar. — Mas Jackie... — Pode viver sem esta “doçura” — disse Manny asperamente. — O que há de tão terrível na vida dela que a faz precisar de tanta ajuda? Está morrendo? É pobre? É feia? Tem alguém batendo à sua porta no meio da noite? Deixe Jackie encontrar sua própria doçura. Ela vai sobreviver. Harry fez um gesto impotente. O rosto teimoso de Manny, madeira entalhada sob a luz fluorescente, não mudou. — Mandá-lo de volta? Manny, as coisas que ele sabe agora... — Você devia ter pensado nisso antes. Gernshon levantou os olhos. — Não, eu... eu sinto muito. Só agora estou começando a entender. Nunca pensei que os seres humanos... — Não — disse Manny — mas eles podem. Você tem estado aqui na biblioteca todo dia, lendo isso tudo? — Sim. Aqui e nos museus. Quando vocês chegaram, eu estava lendo. Queria saber... — Agora já sabe — disse Manny, no mesmo tom surpreendentemente casual e cínico. — Você vai sobreviver. Harry disse: — A Jackie sabe o que está acontecendo? Sabe que você tem... estudado tanto? — Não. — E você, o que vai fazer com o que sabe agora? Harry prendeu a respiração. E se Gernshon simplesmente 230

se recusasse a voltar? Gernshon disse vagarosamente: — A princípio eu simplesmente não queria voltar. Como é que eu posso assistir à Segunda Guerra Mundial, ver os campos de concentração... Tenho parentes na Polônia. Mais tarde, a bomba atômica, a Coréia, os Gulags, o Vietnam, o Camboja, os terroristas, a AIDS... — Não deixou escapar nada. — murmurou Harry. — ... não se pode fazer nada, nem mesmo ter esperança, sabendo que tudo que vai acontecer está escrito na história... como eu poderei ver tudo isso sem nenhuma esperança de que tudo não seja tão ruim quanto parece no momento? — Tudo depende do ponto de vista — disse Manny, mas Gernshon não pareceu escutá-lo. — Mas também não posso ficar. Tenho a Susan e estamos esperando um bebê... Preciso pensar. — Não, não precisa. — disse Harry. — Você precisa voltar. Isso tudo foi um erro meu. Sinto muito. Você precisa voltar, Gernshon. — Líbano — disse Gernshon. — DDT. Revolução Cultural. Nicarágua. Desflorestamento. Irã... — Penicilina — disse Manny de repente. — Direitos Civis, Mahatma Gandhi. Vacinas antipólio. Máquinas de lavar. Harry olhou para ele, chocado. Será que Manny já havia trabalhado alguma vez numa lavanderia manual? — Ou — disse Manny, mais calmo — Hitler. Auschwitz. Hoovervilles. O Cinturão da Seca. Depende de ponto de vista, Robert... — Não sei — disse Gernshon. — Preciso pensar. Há tantas coisas... e também aquela garota. Harry se retesou. — Jackie? — Não, não. Alguém que ela e eu encontramos dias atrás, numa cafeteria. Ela simplesmente apareceu. Eu não pude acreditar. Eu olhei para ela e levei um choque... e pelo que sei ela teve um choque, também. A garota era exatamente igual a mim. E ela se sentia como... não sei. É difícil explicar. Ela se sentia como eu. Eu disse olá mas não disse o meu nome. Não me atrevi. 231

Sua voz caiu para um sussurro. — Acho que ela é minha neta. — Uau, cara! — exclamou Manny. Gernshon ficou de pé. Fez um movimento para juntar seus livros e papéis, parou, deixou-os onde estavam. Harry também ficou de pé, tão bruscamente que Gernshon lançou-lhe um olhar sobressaltado por sobre a mesa da biblioteca. — Vai me bater novamente, Harry? Vai me matar? — Nós? — perguntou Manny. — Nós, Robert? Seu tom era amistoso. — De certa forma você já fez. Não sou mais quem eu era, com certeza. Manny deu de ombros. — Então seja alguém melhor. — Droga, eu não acho que você entenda... — Acho que você é que não entende. Fique calmo. As coisas são como são. O que quer que você tivesse lá, ainda tem. Diga-me, em todas essas leituras, encontrou alguma coisa a respeito de você mesmo, algo pessoal? Você está nos livros de histórias, nos papéis da biblioteca? — O Departamento de Documentos Públicos leva duas semanas para fazer um levantamento das certidões de nascimento e óbito — disse Gernshon, com voz ofendida. — Então você não perdeu nada, por que você na verdade não sabe nada — disse Manny. — Só história. A história custa barato. Todos conseguem um pouco. Você pode ter a história que quiser. E o que você faz dela é o que vale. Gernshon não concordou. Olhou para Manny por um longo tempo e alguma coisa se mexeu por detrás dos olhos castanhos e infelizes, algo que fez Harry finalmente soltar a respiração que não percebeu que tinha prendido. De repente parecia que Gernshon era mais velho que os dois. E realmente era com os cinqüenta e dois anos ganhos desde a semana passada, era mais velho do que Harry havia sido no 1937 do Capitão Coragem, dos chapéus de abas largas e dos parques limpos. Mas aquele era o tempo bom, aquele o qual Gernshon iria voltar, aquele que o próprio Harry escolheria, não fosse por Jackie e Manny... mesmo assim, não pôde olhar enquanto Gernshon se internava no meio das estantes, cortando o ar bolorento como se fosse água. 232

Gernshon parou, olhou para trás e disse: — Vou voltar. Hoje à noite. Prometo. Depois que ele saiu, Harry disse: — É tudo minha culpa. — Você vai ao meu quarto quando ele for embora? Para. para ajudar? — Está bem, Harry. De certa forma, aquilo só tornou as coisas piores. Gernshon concordou com a venda nos olhos. Harry atravessou com ele o closet, o armazém, a rua. Nenhum dos dois parecia muito bom nisso; esbarravam um no outro, hesitavam, tropeçavam à toa. No armazém, Gernshon quase atropelou uma pilha de tábuas, e no puxão violento que Harry deu em Gernshon para desviá-lo, alguma coisa saiu do lugar nas costas de Harry. Ele esperou, agachado, em um canto do prédio, enquanto Gernshon retirava a venda, piscava, ofuscado pela luz da manhã, e se afastava, caminhando devagar. Apesar das costas, Harry percebeu que não poderia voltar imediatamente. Por que não? Simplesmente não podia. Ele esperou até que Gernshon estivesse bem longe e caminhou com dificuldade em direção ao parque. Um carrossel girava, tocando uma animada música de realejo: 24 de setembro. Duas crianças que ele não havia notado antes estavam em pé perto do carrossel, olhando-o com olhos cobiçosos e infelizes. Flores cresciam em canteiros imaculados. Um homem negro andava por ali, com os olhos fixos na calçada, a cabeça baixa. Duas garotinhas pulando corda eram observadas por uma mulher sorridente, vestida com um uniforme azul e branco. Na calçada, alguém desenhara a cruz suástica. O homem negro apagou-a com os pés. Um carro Lincoln Zephyr V-12 passou por ele. US$ 1090. Não havia como passá-lo por um closet. Quando Harry voltou, Manny estava enrolado na colcha de chenille branca que ele havia comprado por US$ 3,28. Estava ferrado no sono. — O que eu consegui, Manny? O quê? — perguntou Harry, com amargura. 233

O dia tinha escurecido glorioso e quente, um inesperado veranico. As árvores do parque mostravam galhos nus contra um céu azul brilhante. Manny usava um velho suéter vermelho e Harry uma camisa de flanela. Harry virou-se devagar no banco do parque, fazendo uma careta. Transeuntes dominicais deixavam cair embalagens de sorvete, cigarros, jornais, latas de Diet Pepsi, lenços de papel usados, pipoca. Pombos arrulhavam e crianças gritavam. — Jackie vai estar tão pessimista como sempre... e por que não? — continuou Harry. — Ela finalmente encontra um cara legal, ele nunca a chama novamente. Eu, deixo um jovem infeliz numa calçada. Antes de deixá-lo, arruíno sua vida. Enquanto o deixo, arruíno minhas costas. Após deixá-lo, eu me sento aqui, sentindo-me culpado. Não há solução, Manny. Manny não respondeu. Ele olhava para o caminho em curva. — Não sei, Manny. Eu simplesmente não sei. Manny disse de repente! — Aí vem a Jackie Harry levantou os olhos, piscou, tentou levantar-se. As costas protestaram. Ficou onde estava, de olhos esbugalhados. — Vovô! — gritou Jackie. — Eu estava procurando você! Parecia radiante. Todas as linhas ao redor dos olhos haviam desaparecido, levando com elas toda a aspereza de sua expressão. As próprias clavículas, pensou Harry pasmado, pareciam mais suaves. A felicidade iluminava-a como uma luz. Segurava a mão de uma mulher magra, de cabelos ruivos, de feições fortes e olhos castanhos. — Esta é Ann — disse Jackie. — Tenho procurado por você, vovô, porque... bem eu precisava lhe contar algo. Escorregou para o banco próximo ao de Harry, do outro lado de Manny, e colocou um braço em volta dos ombros de Harry. A outra mão continuou segurando a de Ann, que sorria, encorajando-a. Manny ficou olhando fixamente para Ann, como se fosse um fantasma. — Sabe, vovô, tenho estado às voltas com algo realmente importante. Sei que eu tenho sido cínica e difícil, mas não é 234

minha culpa... todo mundo precisa de alguém para amar. Você sempre me falou isso, e eu sei como você e a vovó foram felizes todos aqueles anos. Pensei que nunca haveria nada assim para mim. Certas pessoas estavam tornando tudo tão difícil... Mas agora... bem, agora tenho a Ann. E queria que você soubesse. O braço de Jackie enrijeceu. Seus olhos suplicaram. Ann observava Harry atentamente. Ele se sentiu como se estivesse se afogando. — Sei que isso deve ser um choque para você — continuou Jackie — mas também sei que você sempre quis que eu fosse feliz. De modo que espero que você venha a amá-la do mesmo jeito que eu a amo. Harry olhou para a mulher ruiva. Sabia o que estavam pedindo a ele, mas não queria acreditar, não era real, da mesma forma que o tempo que está fazendo em outros países não é real. Furacões. Secas. Dias ensolarados. Quando tudo o que você está vendo é uma garoa fria. — Acho que de todas as pessoas que eu já conheci, Ann é a mais companheira. A mais compreensiva. E a mais moral. — Hummm... — fez Harry. — Vovô? Jackie estava olhando direto para ele. Quanto mais tempo ficava calado, mais o sorriso dela esmaecia. Ocorreu a ele que o sorriso mostrava os dentes dela. Eles eram muito brancos, muito regulares. Também muito pontudos. — Eu...., eu...., olá, Ann. — Olá — disse Ann. — Viu, eu lhe disse que ele entenderia! — disse Jackie para Ann. Largou Harry e levantou-se de um salto, cheia de energia e radiância. — Você é maravilhoso, vovô! Você também, Manny! Oh, Ann, este é o melhor amigo do vovô, Manny Feldman. Manny, Ann Davies. — Prazer em conhecê-lo — disse Ann Tinha uma voz grave e um sorriso simpático. Harry sentiu furacões, secas, dias ensolarados. Jackie falou: — Sei que isso é provavelmente um pouco inesperado... Inesperado. 235

— Bem... — começou Harry. Não conseguiu dizer mais nada. — Achei que já era hora de sair do closet. Harry abriu a boca. Manny conseguiu dizer: — Então você mora lá, Ann? — Ah, sim. Toda a minha vida! Minha família também, desde sempre. — A Jackie... Jackie já encontrou algum deles? — Ainda não — disse Jackie. — Pode ser um pouco... complicado, no caso dos pais dela. — Sorriu para Ann. — Mas daremos um jeito. — Eu queria — disse Ann para ela — que você tivesse conhecido o meu avô. Ele teria sido tão legal quanto o seu vovô aqui. Ele sempre foi. — Foi? — perguntou Harry timidamente. — Ele morreu há um ano atrás. Era simplesmente um homem maravilhoso. Compreensivo e inteligente. — O quê... o quê ele fazia? — Ensinava história na universidade. Também era ativista em muitas organizações: Anistia Internacional, a ACLU, coisas assim. Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou para as ligas de resgate de judeus, tirando pessoas da Alemanha. Manny balançou a cabeça. Harry olhava os dentes de Jackie. — Gostaríamos que vocês dois viessem jantar logo mais — disse Ann. Ela sorriu. — Sou uma boa cozinheira. Os olhos de Manny brilharam. Jackie falou: — Sei que isso deve ser duro para você... Mas Harry viu que ela não queria dizer isso. Ela não achava que fosse duro. Para ela isso era tão real que era o tempo que estava realmente fazendo, talvez inesperado, mas não estranho, não fora de lugar. Em frente ao banco, a luz do sol fazia listras na calçada, como barras. De repente, Jackie falou: — Ah, vovô, contei a você que foi o seu amigo Robert quem nos apresentou? Contei? — Sim, querida — disse Harry —, você contou. 236

— Ele é meio quadrado, mas uma boa pessoa. Depois que Jackie e Ann partiram, os dois velhos sentaram-se em silêncio por um longo tempo. Afinal, Manny disse diplomaticamente: — Vamos comer alguma coisa, Harry? — Ela está feliz, Manny. — É verdade. Quer, talvez fazer um lanche, Harry? — Ela nem o reconheceu. — Não. Não está com fome? — Tome. Peguei para você esta manhã. Harry passou-lhe uma laranja, uma laranja seleta de primeira qualidade, sem sementes, grande, suculenta, perfeita. — Aproveite — disse Harry —, custou-me noventa e dois cents.

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