Introdução Ao Tractatus
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MATHIEU, Marion...
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MATHIEU MARION
LUDWIG WITTGENSTEIN INTRODUÇÃO AO TRACTATUS TRACTA TUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
LUDWIG WITTGENSTEIN INTRODUÇÃO AO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
COLEÇÃO FILOSOFIA E LINGUAGEM Direção: Marcelo Carvalho, Bento Prado Neto e João Vergílio G. Cuter Conselho Editorial: André Porto, Arley Moreno, Danilo Marcondes, David Stern, João Carlos Salles, Luiz Carlos Pereira, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Mathieu Marion, Mauro Engelmann, Philippe Narboux, Silvia Altmann A Coleção Filosofia e Linguagem publica publica textos contemporâneos situados em meio ao debate sobre flosofa e linguagem, em particular no âmbito da flosofa analítica e de sua crítica, mas, também, se estendendo para a relação entre as tradições analítica e continental , em meio às quais se dividia a flosofa ao longo de boa parte do século XX. Nesse contexto se situam obras de L. Wittgenstein, B. Russell, G. Frege, P. F. Strawson, S. Cavell, M. Dummett, R. Rorty, entre outros. Em diálogo com essa tradição, são também consideradas na coleção diversas ramifcações do debate sobre linguagem, dentre as quais os trabalhos de M. Heidegger, M. Merleau-Ponty, E. Husserl. Conheça os títulos desta coleção no fnal do livro.
MATHIEU MARION
LUDWIG WITTGENSTEIN INTRODUÇÃO AO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
M571
Marion, Mathieu. Ludwig Wittgenstein: introdução ao Tractatus logico-philosophicus . / Mathieu Marion. Tradução de Bento Prado Neto. – São Paulo, 2012. (Coleção Filosofia e Linguagem). 130 p. ; 16 x 23 cm.
Título Original: Ludwig Wittgenstein. Introduction au «Tractatus logico philosophicus», Paris: Presses Universitaires de France, 2004, 128 pages, (Collection Philosophies) ISBN 978-85-391-0462-8 1. Filosofia. 2. Lógica. 3. Linguagem. 4. Ontologia. 5. Tractatus LogicoPhilosophicus. 6. Wittgenstein, Ludwig (1889 – 1951). I. Título. II. Série. III. Prado Neto, Bento, Tradutor. CDU 101 CDD 100 Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino LUDWIG WITTGENSTEIN: INTRODUÇÃO AO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
Projeto, Produção e Capa Coletivo Gráfico Annablume Tradução Bento Prado Neto Conselho Editorial Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara 1ª edição: novembro de 2012 © Mathieu Marion ANNABLUME editora . comunicação Rua M.M.D.C., 217 . Butantã 05510-021 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (5511) 3539-0226 – Televendas 3539-0225 www.annablume.com.br
Para François e Céline Gostaria de agradecer Ali Benmakhlouf, David Hyder, François Latraverse, Jimmy Plourde e Paul Rusnock por seus comentários de uma versão preliminar deste texto.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
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O CAMPO DE PROBLEMAS: DA ANÁLISE LÓGICA DA LINGUAGEM AOS “PROBLEMAS DA VIDA ”
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SIGNIFICAÇÃO, FIGURAÇÃO E JUÍZO
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LINGUAGEM, MUNDO E PENSAMENTO
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A ANÁLISE DA PROPOSIÇÃO
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PROBLEMAS ONTOLÓGICOS
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A OPERAÇÃO: LÓGICA E ARITMÉTICA
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O MUNDO SUB SPECIE AETERNITATIS
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BIBLIOGRAFIA
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Ao lado de coisas boas e originais, meu livro, o trat. log.-phil., tem também seu lado kitsch. L. Wittgenstein
INTRODUÇÃO
E
STE ESTUDO TEM A AMBIÇÃO DE INTRODUZIR O LEITOR AO T RAC -
Wittgen Logico-Philosophicus 1, único livro que Ludwig Wittgenstein tenha publicado em vida. Engenheiro de formação, WittWittgenstein inscreveu-se em Cambridge em 1912 para estudar filosofia sob a orientação de Bertrand Russell. Em 1913, ele se isola às margens de um fiorde norueguês para ali dar continuidade a suas reflexões. G. E. Moore irá visitá-lo na primavera de 1914; Wittgenstein então lhe dita notas destinadas a Russell (NL). Quando a guerra é declarada, em 1914, Wittgenstein alista-se no exército austríaco. Durante o período que vai de sua estadia na Noruega até o final da guerra, Wittgenstein preenche seis cadernos de notas, dos quais três foram conservados (NB ). Uma versão preliminar de seu livro, o Prototractatus (PT ), será TATUS
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L. Wittgenstein, Logisch-Philosophische Abhandlung / Tractatus LogicoPhilosophicus. Kritische Edition, B. F. McGuinness e J. Schulte, Francoforte, Suhrkamp, 1989; trad. inglesa, Tractatus Logico-Philosophicus , trad. de D. F. Pears e B. F. McGuinness, Londres, Routledge & Kegan Paul, 2 ed., 1971. Há em francês duas traduções, a de Pierre Klossowski (Paris, Gallimard, 1961) e aquela, que recomendamos, de Gilles-Gaston Granger (Paris, Gallimard, 1993). (As citações em português são extraídas da tradução de L. H. Lopes dos Santos, Tractatus Logico-Philosophicus , São Paulo, EDUSP, 2 ed., 1994 – nota do trad.)
publicada em 19712. Seu Logisch-Philosophische Abhandlung é publicado em 1921 no último número da revista Annalen der Naturphilosophie . Uma tradução inglesa é publicada no ano seguinte sob o título de Tractatus Logico-Philosophicus . Wittgenstein então se desinteressa da filosofia: só voltará a ela em 1928-1929, quando encontra os membros do Círculo de Viena. O conteúdo de alguns textos dessa época (SRLF, LE, WWK, D ) permanece próximo ao do Tractatus , mas Wittgenstein rapidamente repudia seu livro. O que acontece depois escapa ao âmbito desta obra introdutória. O Tractatus soma menos de cem páginas e pode ser lido de uma tirada, sob a condição de resignar-se a não compreender quase nada dessa obra. O próprio Wittgenstein, aliás, não traria quase nenhum socorro ao leitor desamparado, ele que escrevia a um possível editor: “Você não irá compreendê-lo” ( PT, p. 15), e que também confessava a Frank Ramsey, apenas alguns anos após a publicação do livro, “ter esquecido o que ele tinha em vista” ao escrever certos trechos ( M , p. 47-48). O Tractatus é uma obra selada com sete selos e nem é preciso dizer que levanta inúmeros problemas de interpretação, dos quais não poderei tratar nesta obra introdutória, na medida em que para tanto eu precisaria o mais das vezes resolver outros tantos tacitamente. Contentar-meei, pois, em apresentar, numa atitude livre de preconceitos, o que me parece ser a trama da obra, concentrando-me em seu núcleo duro e, ao mesmo tempo, cobrindo o maior número possível de aspectos, com o máximo de coerência possível. Para não tornar meu texto excessivamente pesado, optei por não fazer nenhuma referência às críticas ao Tractatus que encontramos na “segunda” filosofia de Wittgenstein. Isso também permite evitar uma leitura enviesada. De fato, Anthony Kenny mostrou, em “The Ghost of the Tractatus ”, que Wittgenstein tendia a exagerar as diferenças entre sua “segunda” filosofia e a
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Esse texto é retomado em L. Wittgenstein, Logisch-Philosophische Abhandlung / Tractatus Logico-Philosophicus. Kritische Edition, op. cit., p. 181-255.
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do Tractatus , e, portanto, a apresentar uma imagem deformada de sua primeira filosofia 3. Procurarei expor as ideias centrais do Tractatus nos termos mais claros possíveis e também pressupor o mínimo possível por parte do leitor. No entanto, a obra de Wittgenstein participa da renovação que as questões e conceitos fundamentais da filosofia receberam sob o impacto da lógica moderna – esquece-se com excessiva frequência que a tradição metafísica desdobrou seu discurso sobre a base da silogística, concebida como propedêutica; não é, portanto, possível expor suas ideias a um leitor que não se armou previamente de algumas noções elementares de lógica formal 4. Segundo a única nota de rodapé da obra, que acompanha a primeira proposição, os números decimais associados a cada proposição indicam seu “peso lógico”, isto é, sua importância na exposição. Wittgenstein escreveu mais tarde que “a clareza e a nitidez do livro em seu conjunto” repousam sobre essa numeração, sem a qual “ele só poderia aparecer como uma barafunda ininteligível” 5. Infelizmente, Wittgenstein não a respeita: de que proposições, por exemplo, o 2.01 ou ainda o 3.001 podem ser o comentário, uma vez que o 2.0 e o 3.00 não existem? Além disso, o “peso lógico” de certas proposições não parece de modo algum ser refletido por sua posição. Para nos atermos a um só exemplo, aquilo que Wittgenstein chama seu “pensamento fundamental” vem enunciado no 4.0312 ! Embora não devamos conceder muita atenção a essa numeração, é preciso guardar no espírito a regra que quer que as proposições 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 ocupem uma posição privilegiada. 3 4
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A. Kenny, “The Ghost of the Tractatus ”, in The Legacy of Wittgenstein, Oxford, Blackwell, 1984, p. 10-23. Wittgenstein usava, em seus escritos, a notação dos Principia Mathematica de Whitehead e Russell; quando necessário, modifiquei sua notação sem mencioná-lo, para aproximá-la de uma notação mais usual, a saber: “&” para a conjunção, “V” para a disjunção, “¬” para a negação, “ →” ou “⊃” para a implicação, “≡” para a equivalência, “ ∃xFx” para o quantificador existencial e “∀xFx” para o quantificador universal. C. G. Luckhardt (org.), Wittgenstein. Sources and Perspectives , Hassock, The Harvester Press, 1979, p. 118.
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O CAMPO DE PROBLEMAS: DA ANÁLISE LÓGICA DA LINGUAGEM AOS “PROBLEMAS DA VIDA”
N
O PREFÁCIO DO T RACTATUS , W ITTGENSTEIN ANUNCIA DE MANEIRA
aparentemente imodesta ter “resolvido” os problemas da filosofia “de vez”. Segundo ele, a formulação destes “repousa sobre uma má compreensão da lógica de nossa linguagem”. Essa ideia será retomada no texto em 4.003: “A maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de nossa linguagem”. Ainda no prefácio, Wittgenstein resume seu livro nos seguintes termos: “Tudo o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou melhor – não para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos”. Com efeito, traçar um limite implica a existência de um além desse limite, mas isso não pode se dar no caso do “pensável”, uma vez que “deveríamos poder pensar os dois lados desse limite (deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado)”. Em 4.114, Wittgenstein diz também que a filosofia “deve limitar o pensável e, com isso, o impensável” e que ela “deve limitar o impensável de dentro, através do pensável”. Em suma, uma vez que não se pode pensar o impensável, não se poderá traçar o limite senão no interior da linguagem, delimitando o que pode ser dito (claramente, com sentido); conseguir-se-á assim, portanto, delimitar o impensável a
partir de dentro, isto é, a partir do pensável, ou, o que dá no mesmo, por meio do que pode ser expresso. O objetivo principal da obra é, portanto, o de traçar um “limite” para a “expressão dos pensamentos”, e o traçado desse limite só poderá ser realizado quando a lógica de nossa linguagem tiver sido bem compreendida. É então que os problemas da filosofia se revelarão não ser mais que o fruto de uma “incompreensão da lógica da linguagem”. Essas observações encerram duas ideias fundamentais. A primeira encontra sua origem nos trabalhos de Frege e de Russell. É a ideia segundo a qual uma boa compreensão da “lógica de nossa linguagem” nos permite abordar de modo palpável os problemas filosóficos, e também resolvê-los. Frege foi o primeiro a adotar essa abordagem, que se costuma chamar de “virada linguística”, nos Fundamentos da aritmética (1884). Após ter criticado, entre outras coisas, o uso da noção de intuição a priori na análise da aritmética por Kant e a tentativa de Mill de fundar as verdades aritméticas sobre generalizações empíricas, Frege recorre a seu “princípio do contexto”: “Como nos pode pois ser dado um número, se não podemos ter dele nenhuma representação ou intuição? Apenas no contexto de uma proposição as palavras significam algo. Importará portanto definir o sentido de uma proposição onde ocorra um termo numérico” 1. Uma vez que a significação de uma expressão não pode ser determinada senão por intermédio da significação dos enunciados nos quais ela comparece, é da determinação da significação destes que provirá o esclarecimento filosófico. Uma curta explicação do uso que Frege faz de sua máxima mostrará seu interesse. Segundo Frege, um enunciado do tipo “Júpiter tem quatro luas”, no qual intervém um termo numérico, versa sobre um conceito, o de “lua de Júpiter”, ao qual se atribui o número quatro. Frege, no entanto, teve a preocupação de mostrar que, na verdade, os termos numéricos agem no interior dos enunciados não como uma espécie de predicado de predicado, mas como
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G. Frege, Os fundamentos da aritmética , in col. Os Pensadores, vol. XXXVI, Peirce/Frege, São Paulo, Abril, 1974, p. 253-254.
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termos singulares da forma “o número que pertence ao conceito ‘lua de Júpiter’”. Uma vez que, na linguagem ordinária, os termos singulares (entre os quais os nomes próprios) denotam objetos, Frege rejeita a ideia, sustentada por inúmeros filósofos antes dele, segundo a qual os números são propriedades; trata-se antes de objetos abstratos. Não é necessário discutir mais profundamente essa tese controversa 2, o que cabe guardar desse exemplo é a ideia de que um “excurso” semântico pode fazer progredir a reflexão filosófica sobre um dado problema. Embora não concordasse em muitos pontos com Frege, Wittgenstein inseriu-se na esteira de sua “virada linguística”, dizendo no prefácio que o limite será traçado “na linguagem” e, no 4.0031, que “Toda filosofia é ‘crítica da linguagem’”. Nesse trecho, ele precisa o sentido de sua “crítica” negando todo parentesco entre seu projeto e o do vienense Fritz Mauthner 3 e fazendo, ao contrário, alusão à teoria das descrições definidas de Russell: “O mérito de Russell é ter mostrado que a forma lógica aparente da proposição pode não ser sua forma lógica real” (4.0031). O próprio Russell irá adotar sensivelmente a mesma atitude que Frege, mas irá rejeitar, assim como Wittgenstein, seu platonismo da significação e irá procurar conciliar essa “virada” com uma epistemologia empirista, no que ele não será seguido por Wittgenstein. Voltarei a essa importante questão. Por enquanto, cabe assinalar a teoria das descrições definidas (desenvolvida por Russell precisamente por ocasião de sua crítica de Frege, no importante artigo “On denoting ”4) como um exemplo marcante do que Wittgenstein entende por uma melhor “compreensão da lógica de nossa linguagem”. Para Wittgenstein, essa teoria é o que há de “mais importante
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Sobre Frege, cf. A. Benmakhlouf, Gottlob Frege, Logicien philosophe , Paris, PUF, 1997; M. Marion e A. Voizard (org.), Frege. Logique et philosophie , Paris, L’Harmattan, 1997. Sobre a influência de Mauthner, cf. G. Weiler, Mauthner’s Critique of Language , Cambridge, Cambridge University Press, 1970, p. 298-306. B. Russell, “On denoting”, in Logic and Knowledge , Londres e Nova Iorque, Routledge, 1988, p. 39-56.
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na obra de Russell”5. Mais uma vez, uma curta explicação se impõe. O ponto de partida de Russell é outra tese de Frege, que diz respeito aos enunciados como “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” 6. Segundo um princípio semântico sustentado por Frege, se uma expressão contém outra que não tem denotação, então ela é, ela própria, desprovida de denotação 7. Portanto, se a expressão “Ulisses” não tem denotação, então o enunciado “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” não tem denotação. Além disso, Frege sustentava a tese, à primeira vista estranha, de que os enunciados, a exemplo dos nomes, têm uma denotação, e que esta não é um estado de coisas, mas o valor de verdade mesmo do enunciado; em outros termos, os enunciados denotam um objeto (necessariamente “abstrato”): ou o Verdadeiro ou o Falso. (Nesse sentido, os enunciados são análogos aos nomes próprios). Isso equivale a dizer que o enunciado “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”, por não ter denotação, não é nem verdadeiro nem falso. Essa última tese corresponde, decerto, à intuição que alguns podem ter acerca de enunciados desse tipo. Mas Russell partilhava a opinião segundo a qual a ausência de denotação da expressão “Ulisses” torna falso o enunciado “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”. Em seu artigo “ On denoting ”, ele mostra que a concepção de Frege põe inúmeros problemas. O que dizer, para tomar um só exemplo, do enunciado “Ulisses não existe”? Segundo Frege, este não seria nem verdadeiro nem falso, o que realmente não é satisfatório. Russell propõe então sua teoria das descrições definidas. Estas se apresentam como sendo termos singulares, ao mesmo título que os nomes próprios; o célebre exemplo de Russell sendo “O atual rei da França”. Toda a teoria de Russell repousa sobre uma paráfrase dos 5 6 7
N. Malcolm, Ludwig Wittgenstein – A Memoir , 2ª ed., Oxford, Clarendon, 2001, p. 57. G. Frege, Lógica e filosofia da linguagem , São Paulo, Edusp, 2009, p.137 e segs. D. Laurier, Introduction à la philosophie du langage , Liège, Mardaga, 1993, p. 200.
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enunciados como “O atual rei da França é careca”, que deve ser lida: “Há um e um único x que é o atual rei da França e esse x é careca”, ou, em símbolos lógicos: ∃ x (R x & ∀ y (R y → x = y ) & C x )
onde R x : “ x é o atual rei da França”; C x : “ x é careca”. O enunciado afirma então três coisas: que existe ao menos um indivíduo que é o atual rei da França, que existe no máximo um indivíduo que é o atual rei da França e que esse indivíduo possui a propriedade de ser careca. Uma vez que não há indivíduo que seja o atual rei da França, isto é, que não há x tal que “Há um e um único x que é o atual rei da França e esse x é careca”, então o enunciado “O atual rei da França é careca” é, segundo a análise de Russell, muito simplesmente falso, e não desprovido de valor de verdade. Notar-se-á que a paráfrase mostra que as descrições definidas só aparentemente são termos singulares. A gramática superficial de nossa linguagem mascara portanto o fato de que as descrições definidas não são mais que “símbolos incompletos”; estes não remetem a nada por si mesmos, pois não podem denotar algo senão no interior de um enunciado completo. Mais uma vez, não é necessário discutir mais profundamente essa teoria das descrições definidas8, ainda que muitas de suas consequências sejam importantes para o que segue. O que se deve guardar, por enquanto, é a ideia de Russell segundo a qual a forma gramatical das linguagens naturais mascara a forma lógica da proposição 9. (Frege irá falar, em um de seus últimos manuscritos, do trabalho do filósofo como um “combate com a língua”.10) Essa ideia é retomada por WittWittgenstein, para quem a “desconfiança” para com a gramática é uma exigência necessária para todo trabalho em filosofia ( NL, p. 106) : Ibid., cap. 9. Utilizo, daqui para frente, quase que indiferentemente “proposição” e “enunciado”. Utilizarei no entanto “proposição” quando for falar especificamente das teses do Tractatus . 10 G. Frege, Kleine Schriften, Hildesheim, Georg Olms, p. 350. 8 9
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4.002 – A linguagem usual é parte do organismo humano, e não menos complicada que ele. É humanamente impossível extrair dela, de modo imediato, a lógica da linguagem. A linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado; isso porque a forma exterior do traje foi constituída segundo fins inteiramente diferentes de tornar reconhecível a forma do corpo.
Mas Wittgenstein não irá adotar a teoria de Russell, e irá propor sua própria “análise”, como veremos na seção sobre a análise da proposição. De outro lado, cumpre compreender corretamente o modo pelo qual Wittgenstein entrevê a relação entre a linguagem ordinária e as linguagens formais que os lógicos podem construir. Russell havia escrito, em sua “Introdução” ao Tractatus , que Wittgenstein se interessava pelas “condições que teria que cumprir uma linguagem logicamente perfeita”, mas, como o notou Ramsey na época, não é de modo algum o que ocorre 11. Se Frege e Russell desconfiavam da linguagem ordinária e propunham construir uma linguagem ideal, Wittgenstein de seu lado acreditava que as proposições da linguagem corrente “estão logicamente, assim como estão, em perfeita ordem” (5.5563) e que “não podemos pensar nada de ilógico” (3.03). Não apenas “se pode exprimir todo sentido” em uma linguagem ordinária (4.002), mas não se pode “representar na linguagem algo que ‘contradiga as leis lógicas’” (3.032). De fato, Wittgenstein acreditava que a linguagem ordinária só é falha na medida em que mascara uma forma lógica que, ela, nada tem de imperfeito. E, como veremos, ele acreditava que a forma lógica é uma condição necessária para toda linguagem possível.
11 B. Russell, “Introdução”, in L. Wittgenstein, Tractatus , op. cit., p. 113; F. P. Ramsey, “Critical Notice of Wittgenstein’s Tractatus Logico-Philosophicus”, in The Foundations of Mathematics , Londres, Routledge and Kegan Paul, 1931, p. 270.
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A segunda ideia fundamental contida nas observações citadas no início dessa seção já se encontra nos Prinzipien der Mechanik do físico Heinrich Hertz, obra cuja Introdução, em particular, influenciou fortemente Wittgenstein ao longo de toda sua carreira 12. Ele a menciona duas vezes no Tractatus (e várias vezes nos Notebooks ), em especial no 4.04, onde retoma de Hertz uma noção central de sua obra, a de “modelo”. Podese resumir assim o empreendimento de Hertz: no século XIX, surgiram alguns problemas no interior do quadro da mecânica newtoniana, problemas que estavam ligados ao uso do conceito de “força”; o que Hertz propôs foi uma nova formalização da mecânica, livre de toda contradição e com um poder de expressão que rivaliza com o das formulações precedentes, mas que não recorria a essa noção problemática de “força”. Assim, segundo Hertz, os problemas ligados a essa noção se “dissipam”, uma vez que ele mostrou que podemos nos passar desse conceito graças a uma formulação alternativa que não recorre a ele. O Tractatus traz um exemplo desse método. Nas proposições 6.02-6.03 e 6.241, Wittgenstein define os números naturais e as operações aritméticas elementares que se efetuam sobre estes (a adição e a multiplicação) em termos de “operações”. No 6.031, ele anuncia que a teoria das classes é “inteiramente supérflua” na matemática. Voltarei a essas questões na seção sobre a lógica e a aritmética . Por enquanto, notemos que a noção de “classe” desempenha um papel central no projeto “logicista” de Frege e de Russell de fundar a matemática em um sistema axiomático de lógica. Infelizmente, a axiomática proposta por Frege permitia a formulação de um paradoxo, descoberto por Russell. Nos Principia Mathematica 13, para evitar esse paradoxo, Russell empregou uma teoria dos tipos que engendra, por sua vez, problemas de outra ordem. A observação de Wittgenstein no 6.031 só tem sentido porque ele acaba de oferecer, nas proposições precedentes, 12 H. Hertz, Die Prinzipien der Mechanik in neuerem Zusammenhange dargestellt , Leipzig, J. A. Barth, 1894; cf. J. Leroux, “La philosophie des sciences de Hertz et le Tractatus ”, Lekton, vol. 1, n.1, 1990, p. 187-195. 13 A. N. Whitehead e B. Russell, Principia Mathematica , Cambridge, Cambridge University Press, 3 vols., 1910-1913, 2 ed., 1926
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o que se poderia a rigor descrever como um “modelo” da aritmética que não recorre à noção de classe. Mostrando que se pode oferecer tal “modelo”, Wittgenstein produziu uma peça de filosofia da ciência à la Hertz, e se pode afirmar sem hesitação que ele acreditava que as dificuldades ligadas à noção de classe seriam assim “dissolvidas”. Esses problemas de filosofia da matemática não podem ser considerados como a totalidade daqueles que Wittgenstein, no prefácio, havia dito que havia resolvido “de vez” e acerca dos quais ele anuncia que se deve, todas as contas feitas, guardar silêncio. Sobre o que, então, se deve guardar o silêncio? Pode-se dizer que Russell, excessivamente ocupado em desenvolver a lógica – a teoria dos tipos – como utensílio para os fundamentos da matemática, não havia prestado atenção suficiente à essência mesma da lógica; Wittgenstein não se preocupará muito com as questões mais técnicas, e seu livro versa antes sobre a essência da lógica. Mas Wittgenstein também tratou ali de questões existenciais no interior do quadro lógico e filosófico que ele desenvolveu na esteira dos trabalhos de Frege e de Russell. O próprio Wittgenstein irá escrever em 1916: “Meu trabalho na verdade se desenvolveu a partir dos fundamentos da lógica até a essência do mundo” ( NB , p. 79). Vale evocar aqui uma carta a Ludwig von Ficker, na qual Wittgenstein diz, acerca do prefácio de sua obra, que ...eu queria escrever o seguinte: meu trabalho consiste em duas partes; uma que é aqui apresentada, e à qual deve ser acrescentado tudo o que eu não escrevi. E é precisamente essa parte que é importante. Com efeito, meu livro traça os limites da Ética, por assim dizer do interior... Enfim, creio que no que concerne tudo aquilo de que muitos hoje falam para não dizer nada , eu o repeti ao calá-lo (PT , p. 15)14.
14 Sobre as questões dos limites e do silêncio, cf. F. Latraverse, “Ce que se taire veut dire. Remarques sur la question du silence dans le Tractatus ”, in Corps écrit, n. 12, Paris, PUF, 1984, p. 39-54.
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Como essa observação o indica, os verdadeiros problemas, para Wittgenstein, são os da ética e ele pode afirmar, por outro lado, no finalzinho do prefácio do Tractatus que, uma vez resolvidos todos os problemas filosóficos, percebemos “como isso importa pouco”; de fato, não se tocou nos verdadeiros problemas – os “problemas da vida” (6.52) –, mas apenas se mostrou que eles não foram atingidos. Seria portanto equivocado associar de forma rápida demais o Tractatus com a cruzada antimetafísica do Círculo de Viena. Decerto, as últimas proposições do Tractatus constituem uma crítica da metafísica que será retomada pelos “positivistas” (dentre os quais Carnap, sob as espécies de sua distinção entre o modo material e o modo formal de expressão), mas essa crítica se aplica aos físicos tanto quanto aos filósofos profissionais que falam “para não dizer nada” – Wittgenstein falará mais tarde em “tagarelice sobre a ética” – e ela não toca o que Wittgenstein percebe como “o essencial do que está em jogo” na ética ( WWK , p. 69). Pode-se evocar aqui uma carta de Wittgenstein a Engelmann (9 de abril de 1917) para sustentar essa observação. Wittgenstein dizia ali, acerca de um poema de Uhland do qual gostava, que “se somente não tentamos exprimir o que é inexprimível, então nada se perde. Muito pelo contrário, o inexprimível está – inexprimivelmente – contido no que é expresso” (L, 209). O inexprimível é portanto indiretamente comunicado naquilo que é expresso. (A ideia de uma comunicação indireta é retomada de Kierkegaard.) Vê-se então que Wittgenstein não queria rejeitar a ética como equivalente à metafísica, isto é, como um discurso desprovido de sentido, mas antes traçar um limite para a expressão dos pensamentos que mostrará que todo discurso filosófico sobre a ética não é mais que “tagarelice”. Rejeitar o Tractatus como uma obra “positivista” é não ver a admirável conjunção que Wittgenstein opera entre uma crítica da metafísica pela via da análise da linguagem e uma ética essencialmente estoica da renúncia, que ele herda muito provavelmente pelo intermédio de Schopenhauer e que lhe permite trazer uma solução para os “problemas da vida”. O campo de problemas fundamentais do Tractatus está portanto ligado ao traçado do limite para a expressão dos pensamentos. De
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um lado, muitas questões de filosofia da linguagem, da lógica e da matemática são resolvidas enquanto se traça esse limite. Esse traçado sustenta as críticas endereçadas, por exemplo, à teoria dos tipos de Russell, mas o benefício desse limite é também, de outro lado, a possibilidade de resolver problemas de ordem ética ou religiosa, graças a uma hábil utilização da ética estoica. Em suma, WittgenWittgenstein procurou resolver de um só golpe todos os problemas que o preocupavam. A resolução dos problemas da filosofia passa portanto por uma correta compreensão da lógica de nossa linguagem ou, o que parece dar no mesmo, pelo traçado do limite para a “expressão dos pensamentos”, acerca do qual Wittgenstein nos diz que ele “só poderá ser traçado na linguagem, e o que estiver além do limite será simplesmente um contrassenso”. O limite servirá portanto de linha de demarcação entre as proposições “dotadas de sentido” ( sinnvoll ) e o “contrassenso” (Unsinn). Tal será nosso fio condutor. Assim, nem é preciso dizer que cabe começar por explicitar as condições necessárias para que uma proposição tenha um “sentido”. Para consegui-lo, será preciso no entanto primeiro compreender a herança de Frege e de Russell, cujas ideias constituem o ponto de partida da reflexão de Wittgenstein. Fato significativo, são os únicos autores que ele menciona em seu prefácio. Após a publicação, nos anos 70, do livro A Viena de Wittgenstein15, de Alan Janik e Stephen Toulmin, muito se falou da importância do meio cultural vienense para o desenvolvimento do pensamento de Wittgenstein. A chave da obra, no entanto, encontra-se no traçado do limite para a expressão dos pensamentos e é a herança de Frege e de Russell, e não a de Kraus, Weininger, Schopenhauer e Kierkegaard que nos permite compreender esse traçado. O papel deste últimos decerto não é negligenciável, mas se situa em outro patamar da obra.
15 A. S. Janik e S. E. Toulmin, A Viena de Wittgenstein, Rio de Janeiro, Campus, 1991.
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SIGNIFICAÇÃO, FIGURAÇÃO E JUÍZO
É
COM R USSELL QUE W ITTGENSTEIN COMEÇOU A TERÇAR LANÇAS EM
filosofia, entre 1912 e 1914, antes de partir para a guerra e escrever seu Tractatus . A reputação de Russell veio a se desvanecer no meio do século XX, de modo que não percebemos mais hoje em dia a imensa importância de suas inovações e de seu papel no desenvolvimento da filosofia nesse século. É preciso libertar-se desses preconceitos ridículos; sua influência sobre a obra do jovem Wittgenstein – que se referirá frequentemente a “nossos problemas” (CL, p. 19, 110 e 111) ou a “nossa teoria” (CL., p. 21) – é sem igual, a ponto de o Tractatus muitas vezes só se esclarecer como reação, positiva ou negativa, às ideias de Russell 1. Já mencionei a teoria das 1
Minha leitura opõe-se portanto por princípio às leituras “fregianas” do Tractatus , como, por exemplo, a de Peter Carruthers, Tractarian Semantics. Finding Sense in Wittgenstein’s Tractatus, Oxford, Blackwell, 1989. Também se opõe às recentes leituras americanas do Tractatus , cujo único objetivo é o de mostrar que Wittgenstein não tinha por objetivo propor uma nova teoria da lógica na linhagem daquelas de Frege e de Russell, mas sim mostrar, numa abordagem visceralmente destrutiva, que toda tentativa desse tipo só pode desembocar na produção de contrassensos. (Tal seria o sentido das
descrições definidas, à qual voltarei na próxima seção. Gostaria agora de apresentar dois outros aspectos do pensamento de Russell que irão desempenhar um papel crucial naquilo que segue, quais sejam, o “atomismo lógico” e sua teoria do juízo como “relação múltipla”. Apresentarei o “logicismo” de Russell quando for abordar as questões de filosofia da matemática. É assim bastante interessante esboçar as ideias centrais do atomismo lógico nos servindo da rejeição, por Russell e por WittgenWittgenstein, da distinção que Frege estabelece entre “sentido” ( Sinn) e “denotação” (Bedeutung ), em seu célebre artigo de 18922. O ponto de partida de Frege é o fato de que não se pode explicar, sem essa distinção, a diferença de valor cognitivo entre enunciados do tipo “a = b”, tal como “Héspero é Fósforo”, e “ a=a ”, tal como “Héspero é Héspero”. Segundo Frege, os nomes “Héspero” e “Fósforo” denotam realmente o mesmo objeto, mas têm “sentidos” distintos, e é aí que reside o valor cognitivo do enunciado “Héspero é Fósforo”. Na verdade, Russell e Wittgenstein não rejeitavam a distinção como tal, mas antes o uso que dela faz Frege, ao estendê-la a todas as categorias da linguagem: nomes, conceitos, enunciados, etc. Para simplificar, podemos dizer que, para Russell e Wittgenstein, nenhuma dessas categorias tem simultaneamente um sentido e uma denotação. Segundo Frege, o enunciado “Bismarck calça 43” não deve ser analisado no modo tradicional sujeito/predicado, mas em termos de função e argumento. Ele poderia portanto ser analisado na forma C(b), com “b” para o argumento “Bismarck” e “C” para a função “__ calça 43”. (Ele também poderia ser analisado de outro modo, digamos: B(c ); para Wittgenstein, no entanto, “há uma e uma só
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últimas frases do Tractatus ). A origem dessa abordagem encontra-se em C. Diamond, “Throwing Away the Ladder”, em The Realistic Spirit , Cambridge, Mass., MIT Press, 1991, p. 179-204; para uma exposição detalhada, cf. M. B. Ostrow, Wittgenstein’s Tractatus. A Dialectical Interpretation, Cambridge, Cambridge University Press, 2002. G. Frege, “Sobre o Sentido e a Referência”, in Lógica e filosofia da linguagem , op. cit., p. 129-158.
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análise completa da proposição” (3.25).) Um nome próprio tal como “Bismarck” possui uma denotação (no caso, o objeto que foi a pessoa de Bismarck) e um sentido, que Frege descreve sumariamente como o “modo de apresentação” ou de “doação” da denotação. O predicado “calça 43”, por sua vez, exprime um sentido, que não é nada além da propriedade de calçar 43, e denota uma função, que é definida da seguinte maneira. Toda função, segundo Frege, tem por domínio o universo – ou seja, o conjunto de todos os objetos, concretos ou abstratos – e cada função é definida pelo conjunto dos valores que ela associa aos objetos do domínio. No caso de “___ calça 43”, o valor é sempre um valor de verdade, o Verdadeiro ou o Falso (o que faz dessa função, segundo Frege, um conceito). Suponhamos que Bismarck calçasse de fato 43, então a função “___ calça 43” tem por valor “Verdadeiro” quando toma como argumento “Bismarck”. Em último lugar, Frege considerava que o enunciado “Bismarck calça 43” exprime um sentido, que ele chama muito simplesmente o “pensamento” (Gedanke ) de que Bismarck calça 43, e denota seu valor de verdade; este último, segundo Frege, é um dois seguintes objetos: o Verdadeiro ou o Falso. O nome próprio e o enunciado têm portanto o mesmo modo de significação, a denotação. A objeção de Wittgenstein a essa tese é um dos fundamentos do Tractatus . Russel consignou suas críticas às concepções de Frege em seu artigo “On denotation”, no qual sua teoria das descrições (apresentada na seção precedente) desempenha um papel muito importante. Os termos singulares são descrições definidas ou nomes próprios e, para Russell, que nisso segue a teoria de John Stuart Mill, os nomes próprios não têm “sentido” que lhes seja associado: eles denotam diretamente um objeto, um pouco como uma etiqueta. Se assim é, então o problema de Frege, isto é, o da distinção entre “Héspero é Fósforo” e “Héspero é Héspero”, permanece intocado, uma vez que a solução de Frege é rejeitada. Com sua teoria das descrições definidas, Russell conseguia parafrasear os usos contextuais das descrições definidas de tal modo que a expressão denotativa desaparecia, e sua resposta ao problema de Frege consiste portanto em dizer que ao menos um dos termos, “Héspero” ou “Fósforo”, deve na verdade
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ser uma descrição definida disfarçada. Haveria então “nomes logicamente próprios” (logically proper names ) que não são descrições disfarçadas, mas não os conhecemos antes da análise. Como veremos, essa ideia é particularmente importante em Wittgenstein, para quem as noções de “nome” e de “objeto simples” são aparentadas à de “nome logicamente próprio”. Reencontramos, por exemplo, o “isto” (this ), que é um dos egocentric particulars de Russell, nos Notebooks : “O que parece nos ser dado a priori é o conceito do isto. Idêntico ao conceito de objeto” (NB , p. 61). Segundo Russell, os “nomes logicamente próprios” denotam de modo imediato “particulares”. Constituem de certa forma as unidades fundamentais, os “átomos” da significação, de onde a expressão “atomismo lógico”, que Russell irá utilizar para descrever sua filosofia: A razão pela qual chamo minha teoria de atomismo lógico é que os átomos aos quais quero chegar enquanto resíduos últimos da análise são átomos lógicos, e não átomos físicos. Alguns são o que chamarei de “particulares” – tal como pequenas manchas de cor ou sons, coisas momentâneas – e outros são predicados ou relações, etc. O que importa é que o átomo ao qual quero chegar é o átomo da análise lógica, não o da análise física 3.
Não se deve assimilar inteiramente o projeto de Wittgenstein ao atomismo lógico de Russell; uma boa parte deste livro é consagrada a detalhar suas diferenças. No entanto, não é possível compreender o Tractatus sem pôr em relevo essas diferenças sobre um pano de fundo comum. A analogia com a física e a química, é claro, era também partilhada por Wittgenstein, que irá escrever nos anos 30:
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B. Russell, The Philosophy of Logical Atomism, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2010, p. 3.
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Minha concepção no Tractatus Logico-Philosophicus era falsa [...] pois eu pensava também que a análise lógica deveria trazer à luz coisas escondidas (como a análise química e a análise física) (PG , p. 210).
A oposição com relação a Frege não se limita aos nomes próprios. Como eu disse, Frege considerava que um enunciado exprime um sentido, chamado por ele de “pensamento” ( Gedanke ), e denota seu valor de verdade, isto é, o Verdadeiro ou o Falso. Essa tese é, para Russell, inaceitável, mas os argumentos que ele desdobra contra a teoria fregiana em “On denotation” são particularmente obscuros e ainda hoje em dia tema de controvérsia 4. É Wittgenstein quem trará a chave de abóbada do edifício do atomismo lógico, com uma das teses mais célebres de seu livro, segundo a qual “a proposição é uma figuração da realidade” (4.021). Essa tese será apresentada em detalhe no começo da próxima seção 5. Por enquanto, cumpre perceber que a proposição não tem “denotação” no sentido em que os nomes simples “denotam” objetos – seu modo de significação é diferente. Ela “afigura” (abbildet ) a realidade. Para descrever essas proposições, Wittgenstein usa sempre no Tractatus a expressão “ter sentido” (Sinn haben), mas não se trata do “sentido” de que fala Frege, isto é, do “modo de apresentação”: segundo o 2.221, as proposições, sendo a figuração de uma situação ( Sachlage ), “representam” (darstellen) seu sentido. E, contrariamente ao que dizia Frege, as proposições não denotam seu valor de verdade: quando um estado de coisas (Sachverhalt ) existe que corresponde à proposição, então esta é verdadeira, senão, ela é falsa. (A distinção entre “estado de coisas” e “situação” será apresentada na seção sobre os problemas ontológicos.) Eis, portanto, nos termos mais simples possíveis, a oposição de Russell e de Wittgenstein às concepções de Frege. Os detalhes des4 5
Cf. D. Laurier, Introduction à la philosophie du langage, op. cit. , p. 210-212 Para uma introdução concisa à teoria da figuração no conjunto da obra de Wittgenstein, cf. J. Bouveresse, “‘Le tableau me dit soi-même...’ La théorie de l’image dans la philosophie de Wittgenstein”, Macula , 5/6, p. 150-164.
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sa oposição (assim como daquela entre as concepções de Russell e as de Wittgenstein) serão tema das seções seguintes. Talvez seja útil mencionar aqui uma das consequências mais importantes da oposição de Wittgenstein a Frege. Para este último, os conectivos lógicos tais como “e” ou “ou” são termos que denotam funções cujo domínio é constituído por pares de valores de verdade e o contradomínio pelos valores Verdadeiro e Falso. Para Frege, portanto, os conectivos lógicos são tão somente funções como quaisquer outras. Mas Wittgenstein, em 5.44, irá rejeitar a tese segundo a qual as funções de verdade são “funções materiais”. Na verdade, segundo ele, os conectivos lógicos não são sequer funções; são “operações” – as “operações de verdade” ( Warheitsoperationen) –, ao passo que as funções de verdade são o resultado da aplicação de operações de verdade às proposições elementares (5.3-5.32). Wittgenstein irá opor então à semântica “funcional” e conjuntista de Frege uma Ars combinatoria leibniziana, uma combinatória 6 de inspiração nitidamente mais construtivista, que será apresentada na seção sobre a lógica e a aritmética. Quando Wittgenstein encontra Russell em 1911, este acaba de terminar a redação de um pequeno livro, Problemas de filosofia 7, que constitui sua primeira investida no campo da teoria do conhecimento. Esta, tal como a podemos reconstituir a partir dos diversos textos da época, está essencialmente fundada em duas teses sobre estas relações cognitivas que são o “conhecimento direto” ou “conhecimento por familiaridade” (knowledge by acquaintance ) e o juízo. Nos dois casos, um “ato” está implicado. A rigor, pode-se falar, como Russell o faz por vezes, de “sujeito”, mas sob a condição de lembrar que Russell compartilhava a tese de Hume ( A Treatise on Human Nature , book I, part IV, sec. VI) segundo a qual a introspecção não nos oferece nunca uma apreensão de um “eu” isolado, 6 7
Cf. P. Simons, “Wittgenstein and the Semantics of Combination”, in R. Chisholm, J. C. Marek, J. T. Blackmore, A. Hübner (orgs.), Philosophy of Mind/ Philosophy of Psychology , Viena, Hölder-Pichler-Tempsky, 1985, p. 446-449. B. Russell, The Problems of Philosophy , Londres, Williams and Norgate. 1912.
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independente de seus atos. No caso do conhecimento por familiaridade, esse sujeito está em relação com um único objeto, e assim a relação se dá entre dois termos, ao passo que no caso do juízo ele está em relação com vários objetos, e a relação é dita “múltipla” 8. O objeto do conhecimento por familiaridade é o “ sense-datum”, expressão introduzida por Moore, mas que Russell irá popularizar nos Problemas de filosofia 9. O sujeito está portanto em relação direta, imediata com esses objetos, cujo estatuto permanecerá aliás obscuro tanto para Moore quanto para Russell. (Estão eles na mente ou no cérebro? Ou na superfície dos objetos?, etc.) Isso implica que não há conhecimento direto (conhecimento por familiaridade) dos objetos físicos, mas apenas um conhecimento indireto: eles estão de certa forma por trás dos sense-data , com os quais estariam em relação causal. É o que Russell irá exprimir ao dizer: “A mesa real, se ela existe, não é imediatamente conhecida por nós, mas deve ser o resultado de uma inferência a partir daquilo que é imediatamente conhecido.”10 A teoria do conhecimento deve portanto mostrar como chegamos a um conhecimento (knowledge ) dos objetos que povoam o “mundo exterior” – e das outras mentes (other minds ) – com base naquilo que conhecemos diretamente, isto é, com base nos sense-data , que são particulares, e nos universais (propriedades e relações), que Russell irá também admitir como objetos do conhecimento por familiaridade. O princípio que Russell irá seguir a partir de 1913 será o de substituir, sempre que possível, “construções lógicas” às entidades das quais só se pode inferir a existência 11. A teoria do conhecimento de Russell, que pode ser considerada um dos florões do empirismo britânico, está intimamente ligada à sua filosofia da linguagem. Com efeito, ele já havia enunciado nos Problemas de filosofia o “princípio fundamental” da análise da 8 9 10 11
B. Russell, Philosophical Essays , Londres, Routledge, 1994, p. 155. B. Russell, The Problems of Philosophy , op. cit., p. 17. Ibid.p. 16-17. B. Russell, “The relation of Sense-Data to Physics ”, in Mysticism and Logic , Londres, Allen & Unwin, 1986, p. 149.
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proposição, segundo o qual: “Toda proposição que podemos compreender deve ser composta unicamente de constituintes dos quais temos um conhecimento por familiaridade.” 12 A palavra “análise” deve ser aqui tomada no sentido tradicional da decomposição de um todo em suas partes. É o programa da redução ao conhecimento por familiaridade, que na verdade não é mais que a contraparte do programa de “construção lógica” dos objetos do mundo exterior 13. Russel havia avançado uma distinção entre conhecimento “ por familiaridade” e conhecimento “por descrição”. Nenhum de nós tem um conhecimento por familiaridade de Júlio César, só temos dele um conhecimento por descrição do tipo “o homem que foi assassinado por ocasião dos Idos de Março”, etc. Mas este conhecimento se baseia em última instância em elementos dos quais temos um conhecimento por familiaridade (o livro que eu li, etc.). O conhecimento por descrição nos permite “ultrapassar os limites de nossa experiência privada”14, mas ele deve desaparecer com a análise que explicitará sua significação: É preciso que atribuamos alguma significação às palavras que usamos para que possamos falar com sentido, ao invés de emitir simples sons; e a significação que atribuímos às nossas palavras deve ser algo de que nós temos [o conhecimento por familiaridade]. Se, por exemplo, formulamos uma afirmação acerca de Júlio César, claro está que o próprio Júlio César não está diante de nossa mente, uma vez que não temos dele um [conhecimento por familia-
12 Ibid., p. 80-81. Esse princípio já está estabelecido desde 1905, no artigo “On denoting ”, op. cit., p. 55-56. 13 O que não deixa de lembrar a dualidade redução/constituição em Husserl. Sobre os numerosos paralelos entre o programa de Russell e de Husserl, cf. J. Hintikka, “The Phenomenological Dimension”, in B. Smith e D. Woodruff Smith (org.), The Cambridge Companion to Husserl , Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 78-105. 14 B. Russell, The Problems of Philosophy , op. cit., p. 92.
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ridade]. É uma descrição que temos na mente [...] nossa afirmação não tem exatamente a significação que parece ter, mas sim uma que envolve, em vez de Júlio César, alguma descrição dele que é composta unicamente de particulares e de universais dos quais temos [conhecimento por familiaridade]15.
Mostrarei, na seção sobre a análise, que a concepção que WittWittgenstein tem da “análise” da proposição difere de modo essencial daquela de Russell, uma vez que Wittgenstein vai procurar livrar-se dos “complexos”, tais como “a-faca-está-a-esquerda-do-prato” ou, mais formalmente, “a -está-em-relação-R -com-b”, os quais, segundo Russell, podemos tanto perceber quanto nomear . Por outro lado, a “análise” de Wittgenstein não pode em circunstância alguma ser compreendida de outro modo do que como uma variante do projeto de Russell. Como não ver a semelhança entre o princípio da redução ao conhecimento por familiaridade de Russell e a ideia de WittgenWittgenstein (que será apresentada na seção sobre a análise) segundo a qual uma proposição complexa deve ser “completamente analisada” em “proposições elementares” que consistem em um “encadeamento” de nomes, os quais “estão por” (ou “substituem”) objetos (3.22)? Sem dúvida alguma, essa semelhança não deve mascarar importantes diferenças; além disso, mostrarei, na seção sobre os problemas ontológicos, que os “objetos” que constituem o terminus da análise segundo Wittgenstein não são os sense-data de Russell; no entanto, não faz absolutamente sentido algum não os conceber, nesse quadro russelliano, como objetos da “experiência imediata” – uma expressão que Wittgenstein usará a partir de 1929. Uma vez que a relação entre o sujeito ou ato e o “sense-datum” é simples (isto é, com dois termos) e imediata , não há, segundo Russell, possibilidade de erro. No entanto, ao julgar, podemos nos enganar. Assim, quando Otelo crê ou julga que “Desdêmona ama Cássio”, ele se engana. O que ocorre, nesse caso? É preciso começar 15 Ibid., p. 91-92
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por notar que o objeto da crença de Otelo é uma proposição, “Desdêmona ama Cássio”, mas é também um “complexo” (na época, a distinção entre proposição e complexo não estava clara para Russell), que podemos nomear “Desdêmona-está-em-relação-de-amorcom-Cássio”, e simbolizar, a partir da forma “ xRy ” das relações binárias, do seguinte modo: “ dAc ” (com “d ” para Desdêmona, “c ” para Cássio e “ A” para o universal ou relação “amor”). Em 1904, Russell publicou um longo artigo na revista Mind sobre a teoria de Meinong 16. Segundo Meinong, a todo juízo corresponde um complexo, um “objetivo” (Objektiv )17: a um juízo verdadeiro corresponde um objetivo subsistente, a um juízo falso, um objetivo que não subsiste18. Russell ainda estava próximo do ponto de vista de Meinong e concluía seu artigo dizendo que a verdade e a falsidade são propriedades (de proposições) que não podem ser analisadas e que não podemos fazer mais que apreender (apprehend ), exatamente como há rosas que são brancas e rosas que são vermelhas 19. Mas muito rapidamente ele veio a julgar tal posição “intolerável” 20, em particular porque ela não respeita o princípio de não-contradição, e ele irá abandoná-la já no ano seguinte, em “ On denoting ”. Mais tarde, ele irá escrever em “On the Nature of Truth and Falsehood ”: [...] essa hipótese tem igualmente o inconveniente de tornar inteiramente inexplicável a diferença entre
16 B. Russell, “Meinong’s Theory of Complexes and Assumptions”, Mind , vol 13, 1904, p. 204-217, 336-354 e 509-524. Para os textos de Meinong discutidos por Russell, cf. A. Meinong, Théorie de l’objet et présentation personnelle , Paris, Vrin, 1999. 17 Sobre a definição de “objetivo”, cf. A. Meinong, Théorie de l’objet et présentation personnelle , op. cit., p. 69-70. 18 O alemão bestehen, aqui traduzido por “subsistir”, será retomado por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus . Não é possível saber se Wittgenstein leu Meinong, mas parece evidente que ele conhecia os textos de Russell em que este discute os trabalhos de Meinong. 19 Ibid., p. 524. 20 B. Russell, , “On denoting ”, op. cit., p. 45.
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o verdadeiro e o falso. Sentimos que, quando nosso juízo é verdadeiro, deve haver fora de nosso juízo uma entidade que lhe “corresponde” de um modo ou de outro, ao passo que quando nosso juízo é falso, nenhuma entidade semelhante lhe corresponde 21.
A solução que Russell irá preconizar consiste em rejeitar a premissa segundo a qual o juízo é uma relação binária entre um sujeito, digamos Otelo, e uma proposição, tal como “Desdêmona ama Cássio”. Portanto, nos enunciados que versam sobre as “atitudes proposicionais” tais como a crença (a compreensão, o juízo, etc.), dos quais “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio” constitui um exemplo, é preciso “analisar” a parte proposicional. Russel irá portanto defender uma teoria do juízo como “relação múltipla” 22 entre um sujeito e os objetos que constituem a parte proposicional, no caso, d , c e A. (Muito evidentemente, Desdêmona e Cássio não são “nomes logicamente próprios”, mas essa complicação pode ser deixada de lado no que segue). É a relação de crença que liga os elementos entre si. O sujeito tem portanto um conhecimento por familiaridade desses elementos, mas é possível que, ao recompor os elementos em seu juízo, o sujeito se engane, pois nenhuma entidade na realidade corresponde ao enunciado “Desdêmona ama Cássio”, o qual é, portanto, falso. Essa teoria do juízo como relação múltipla não era de interesse marginal para o projeto de Russell, pois fora concebida com vistas a dar uma base epistemológica para a teoria dos tipos dos Principia Mathematica 23. Ela foi portanto muito naturalmente um dos pontos de partida das reflexões de Wittgenstein e é muito importante para a compreensão do Tractatus . Ali encontramos, em poucas linhas,
21 B. Russell, “On the Nature of Truth and Falsehood”, in Philosophical Essays , Londres, Routledge, p. 152. 22 Ibid , p. 155. 23 Cf. S. Sommerville, Types, Categories and Significance , tese de doutorado, Universidade MCMaster, seção C, apêndice A.
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em 5.541-5.542, uma teoria do juízo que está longe de ser vaga e incompleta, uma vez que ela pode até mesmo ser formalizada 24 e que se opõe de modo essencial à de Russell. O leitor desatento pode não notar a alusão à “teoria de Russell” no 5.5422. Cumpre dizer que se trata de uma alusão a um manuscrito de Russell, Theory of Knowledge , de 1913, que só foi publicado em... 1984 25 – Russell abandonou seu projeto sob o golpe de uma crítica de Wittgenstein que o havia “paralisado” (CL, p. 29 e 33). Portanto, só a partir dessa época foi possível compreender o sentido dessa alusão (assim como as numerosas alusões nos Notebooks ) e a importância das críticas de Wittgenstein para a compreensão de seu próprio “pensamento fundamental” (4.0312). A análise de Russell tal como a apresentei defronta-se com objeções elementares. Com efeito, deve-se poder explicar a diferença entre “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio” e “Otelo crê que Cássio ama Desdêmona”, ou seja, entre dAc e cAd . Quando a crença é concebida como uma atitude proposicional, isto é, como uma relação entre um sujeito e uma proposição, essa diferença não é problemática, mas no caso da teoria da relação múltipla, os elementos são os mesmos e não estão em relação entre si mas em relação com Otelo. Pior, nada na teoria permite evitar o contrassenso Adc ou “Otelo crê que ama Desdêmona Cássio”, uma vez que o universal “amor” já não comparece ali como uma relação que liga os elementos, mas simplesmente como um objeto ligado pela relação de crença. Essa questão irá preocupar no mais alto grau Wittgenstein – por aqui voltamos à questão da limitação do contrassenso –, como o atesta sua carta a Russell de 16 de janeiro de 1913:
24 Cf. G.-J. Lokhorst, “Ontology, Semantics and Philosophy of Mind in Wittgenstein’s Tractatus : A Formal Reconstruction”, Erkenntnis , vol. 29, 1988, p. 53-64. 25 B. Russell, Theory of Knowledge. The 1913 Manuscript , Londres, Allen & Unwin, 1984; trad. franc.: Théorie de la connaissance. Le manuscript de 1913 , Paris, Vrin, 2002.
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Toda teoria dos tipos deve ser tornada supérflua por uma teoria adequada do simbolismo. Se eu analiso a proposição Sócrates é mortal em Sócrates, mortalidade e (∃ x , y )ε1( x , y ), preciso de uma teoria dos tipos que me diga que “Mortalidade é Sócrates” é um contrassenso porque se eu trato “Mortalidade” como um nome próprio (o que acabo de fazer) não há nada que me impeça de fazer a substituição ao contrário... (CL, p. 24-25).
(Voltarei logo adiante à crítica da teoria dos tipos). Essa ideia é retomada em 5.5422: 5.5422 – A explicação correta da forma da proposição “ A julga p” deve mostrar que é impossível julgar um contrassenso. (A teoria de Russell não satisfaz essa condição).
A natureza exata da objeção de Wittgenstein à teoria de Russell é muito difícil de apreender e é impossível explicá-la detalhadamente no quadro desta introdução26. Russell irá retrabalhar sua teoria em 1913, por ocasião da redação de sua Theory of Knowledge . A objeção com a qual Russell se defronta é, como vimos, dupla. No que diz respeito à possibilidade de julgar um contrassenso tal como Adc , Russell modifica sua teoria adotando uma terceira categoria de objetos (ao lado dos “particulares”, que são os sense-data , e dos universais) dos quais teríamos um conhecimento por familiaridade, a saber, a “forma lógica”. No caso
26 Cf. S. Sommerville, Types, Categories and Significance , op. cit., e “Wittgenstein to Russell (July 1913). ‘I am very sorry to hear: my objection paralyses you’”, in R. Haller e W. Grassl (org.), Language, Logic and Philosophy , Viena, HölderPichler-Tempsky , 1980, p. 182-188; N. Griffin, “Wittgenstein’s Criticism of Russell’s Theory of Judgement”, Russell: The Journal of the Bertrand Russell Archives , vol. 5, 1985-1986, p. 132-145; D. J. Hyder, The Mechanics of Meaning. Propositional Content and the Logical Space of Wittgenstein’s Tractatus, Berlin, de Gruyter, 2002.
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de “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio”, a forma lógica seria a das relações binárias xRy , da qual dAc seria uma instanciação. Em suma, a análise desse enunciado teria aproximadamente a forma: C = {O , d , A, c , xRy } (com “C” para a relação de crença e “O” para Otelo). A ideia de um conhecimento por familiaridade das formas lógicas, que não deixa de lembrar a intuição categorial de Husserl, não é nenhuma novidade em Russell, que já dizia em The Principles of Mathematics acerca dos “indefiníveis”: O exame dos indefiníveis – que constitui a parte principal da lógica filosófica – é um esforço para ver – e fazer ver aos outros – claramente essas entidades, de modo que a mente possa ter delas esse tipo de conhecimento por familiaridade que temos do vermelho ou do gosto do abacaxi27.
Essa alternativa não era decerto do gosto de Wittgenstein, o qual, quando Russell lhe mostra o capítulo que acabara de escrever, lhe endereça uma objeção decisiva: Posso agora expressar minha objeção à tua teoria em termos exatos: creio que é evidente que, da proposição “A julga que (digamos) a está em relação R com b”, se ela estiver corretamente analisada, a proposição “aRbV¬aRb” deve se seguir imediatamente, sem auxílio de nenhuma outra premissa . Essa condição não é preenchida por tua teoria ( CL, p. 29).
A objeção é a seguinte: a análise de “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio” em C = {O , d , A, c , xRy } não garante que dAc enquanto
27 B. Russell, Principles of Mathematics , Londres e Nova Iorque, Norton, 1996, p. xv.
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não estiver estipulado que (na terminologia dos Principia Mathematica ) d e c são indivíduos, que A é uma relação de primeira ordem e que xRy é a forma das relações binárias de primeira ordem. Por que não aceitar tais premissas? É que o juízo asserindo que d e c são argumentos possíveis de uma relação binária de primeira ordem é ele próprio um juízo de ordem superior, o que vai de encontro ao espírito mesmo dos Principia Mathematica , cuja teoria só funciona se os juízos de uma ordem dada estiverem fundados na obtenção prévia dos juízos de ordem inferior 28. Uma das principais motivações do Tractatus , como vimos na seção precedente, era a crítica da teoria dos tipos de Russell e, portanto, de todo o projeto dos Principia Mathematica . Isso sobressai claramente de uma carta de Ramsey, escrita por ocasião de sua visita a Wittgenstein na Áustria em 1923, na qual ele narra que WittgenWittgenstein estava “um pouquinho irritado pelo fato de Russell preparar uma nova edição dos Principia , pois ele acreditava ter mostrado a Russell que [o próprio projeto dos Principia ] estava de tal modo equivocado que uma nova edição seria fútil” 29. A principal crítica aos Principia Mathematica , em 3.331-3.333, articula-se em torno daquela que acabamos de ver: o erro de Russell “revela-se no fato de ter precisado falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras notacionais” (3.331). Wittgenstein faz aqui uso da distinção a mais original e a mais “fundamental” (NB , p. 130) de seu livro e talvez mesmo de sua obra, entre “o que se diz” e “o que se mostra” (4.124.1212): não se pode falar dos tipos, e os símbolos “mostram” ( NL, p. 108) aquilo que a teoria dos tipos procura mas não consegue “dizer”. Voltarei a essa distinção na próxima seção. Em sua Autobiography , Russell reproduz uma carta na qual admite que essa crítica foi de primeiríssima importância: “Vi que ele tinha razão e vi que já não podia esperar realizar algum trabalho
28 A. N. Whitehead e B. Russell, Principa Mathematica , op. cit., vol. 1. A objeção de Wittgenstein articula-se em torno de uma variante da proposição *13.3 (p. 172). 29 “Letters by F. P. Ramsey”, in, L. Wittgenstein, Letters to C. K. Ogden, Oxford/ Londres, Blackwell/Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 78.
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fundamental em filosofia”30. Isto é evidentemente um exagero, mas Russell abandonou sua teoria do juízo como relação múltipla e, desse modo, a esperança de dar um fundamento epistemológico a sua teoria dos tipos. Em sua Philosophy of Logical Atomism de 1918, o conhecimento por familiaridade das constantes lógicas terá também desaparecido. Wittgenstein precisará portanto livrar-se da teoria de Russell e propor a sua, nos § 5.541-5.542: 5.541 – À primeira vista, parece que uma proposição poderia ocorrer em outra também de outra maneira. Particularmente em certas formas proposicionais da psicologia, como “ A acredita que p é o caso” ou “ A pensa p”, etc. Superficialmente, parece que nesse caso a proposição p manteria com um objeto A uma espécie de relação. (E na moderna teoria do conhecimento (Russell, Moore, etc.), tais proposições foram mesmo entendidas assim.) 5.542 – É claro, porém, que “ A acredita que p”, “ A pensa p”, são da forma “‘ p’ diz p”. E não se trata aqui de uma coordenação de um fato e um objeto, mas da coordenação de fatos por meio da coordenação de seus objetos.
Wittgenstein opõe-se aqui à ideia de que uma atitude proposicional seja uma relação entre um objeto simples, o sujeito “ A”, e um fato complexo “ p”. Quando “ A pensa que p”, então um dos pensamentos de A é um fato ‘p’, que é uma figuração do fato p no mundo. É o que Wittgenstein exprime ao dizer “ ‘ p’ diz p “, onde a primeira ocorrência de p é um pensamento. Em uma carta a Russell datada de 19 de agosto de 1919, Wittgenstein descreve o “pensamento” (Gedanke ) como não sendo composto por palavras mas sim por “constituintes psíquicos que têm com
30 B. Russell, Autobiography , Londres, Routledge, 1998, p. 282.
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a realidade o mesmo tipo de relação que as palavras” ( NB , p. 130). São portanto esses elementos do pensamento que formam um fato ‘ p’, que é coordenado com um fato p no mundo “por meio da coordenação de seus objetos”. Voltarei à noção de “pensamento” na seção seguinte. O que é do papel das “constantes lógicas”, “indefiníveis”, etc? Um dos textos mais antigos que conheçamos de Wittgenstein, a saber, uma das primeiras cartas de Wittgenstein a Russell, datada de 22 de junho de 1912, já menciona a ideia-mestra segundo a qual “NÃO há constantes lógicas ” ( CL, p. 14). De fato, os “simples” de Russell são desprovidos de toda forma, portanto desprovidos de toda indicação quanto à sua possibilidade de combinação com outros simples para formar complexos, etc. Russell via-se portanto obrigado a fazer intervir a forma como uma entidade distinta, cujo papel metafísico seria, de certo modo, o de “colar” de modo apropriado os simples. Russell era profundamente realista, tendo rejeitado as doutrinas de Kant e de Green, e nunca teria aceitado que fosse o “sujeito” o responsável por essa atividade estruturante. Essas formas tornavam-se portanto automaticamente entidades “platônicas”, com relação às quais ele se viu obrigado (como Husserl) a postular que as percebemos de um modo ou de outro. O último capítulo da primeira parte da Theory of Knowledge contém um argumento revelador: ainda que confessando que seria difícil dizer o que é um conhecimento por familiaridade de formas abstratas tais como a forma xRy das relações binárias, Russell considera que um tal conhecimento por familiaridade deve a despeito de tudo ocorrer, pois ele é pressuposto em toda compreensão de enunciados tais como “Desdêmona ama Cássio”. Tudo isso era inaceitável para Wittgenstein, cuja solução, como mostrou David Pears31, consistiu, de certa forma, em deslocar as for31 David Pears apresentou suas análises em diversos artigos, dentre os quais “The Relation between Wittgenstein’s Picture Theory of Propositions and Russell’s Theories of Judgement”, in C. G. Luckhardt, Wittgenstein. Sources and Perspectives , op. cit., p. 190-212. As grandes linhas de sua interpretação são retomadas em D. Pears, The False Prison: A Study of the Development of Wittgenstein’s Philosophy . 2 Vol. Oxford: Oxford University Press 1987/1988.
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mas abstratas de Russell de sua espécie de topos hyperouranos platônico a fim de torná-las, ao modo aristotélico, imanentes. Esse deslocamento tem duas consequências. Primeiro, os objetos devem possuir sua própria forma, isto é, sua própria possibilidade de combinação: 2.0123 – Se conheço o objeto, conheço também todas as possibilidades de seu aparecimento em estados de coisas. (Cada uma dessas possibilidades deve estar na natureza do objeto) 2.0141 – A possibilidade de seu aparecimento em estados de coisas é a forma do objeto.
Os objetos possuem portanto sua própria forma, mas sem por causa disso possuir alguma complexidade, uma vez que “o objeto é simples” (2.02). Além disso, os elementos do simbolismo acerca dos quais se poderia pensar que eles “estão por” ou “substituem” ( vertreten) as formas não o fazem: 4.0312 – A possibilidade da proposição repousa sobre o princípio da substituição de objetos por sinais. Minha ideia básica é que as “constantes lógicas” não substituem: que a lógica dos fatos não se deixa substituir.
Wittgenstein inscreve-se aqui na linhagem dos gramáticos da idade média que distinguem entre elementos categoremáticos e sincategoremáticos da proposição; as constantes lógicas são portanto de algum modo sincategoremas. Esse pensamento é inteiramente “fundamental”, trata-se de uma etapa essencial não apenas na história do conceito de constante lógica – uma vez que essa concepção se faz necessária para toda definição recursiva da verdade – mas também na teoria da significação, onde as concepções de Wittgenstein estão na contramão, por exemplo, da doutrina do ser como “excedente” (Überschuß) em Husserl e Heidegger. Russell acabará por reconhecer a correção dessa ideia e, na sua esteira, o mesmo acontecerá com toda a tradição analítica.
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LINGUAGEM, MUNDO E PENSAMENTO
O
LIMITE QUE W ITTGENSTEIN SE PROPÕE TRAÇAR NO PREFÁCIO DO
Tractatus irá servir, como eu indiquei, de linha de demarcação entre as proposições dotadas de sentido e o “contrassenso”. Cabe portanto procurar elucidar as condições necessárias à posse do “sentido”. Pode-se dizer sem excessiva simplificação que o Tractatus tem sua raiz na explicação do fato de que, para que uma coisa – uma proposição, um desenho, uma fotografia, hieróglifos, etc. – possa “estar por” algo na realidade, digamos uma situação, essa coisa deve ter algum ponto comum com essa situação. 2.13 – Aos objetos correspondem, na figuração, os elementos da figuração. 2.15 – Que os elementos da figuração estejam uns para os outros de uma determinada maneira representa que as coisas assim estão umas para as outras. Esta vinculação dos elementos da figuração chamase sua estrutura: a possibilidade desta, sua forma de afiguração (Form der Abbildung ). 2.1511 – É assim que a figuração se enlaça com a realidade: ela vai até a realidade.
Portanto, uma proposição só pode ser uma figuração da realidade na medida em que partilhar algo com esta última: “O fato, para ser uma figuração, deve ter algo em comum com o afigurado” (2.16). Esse “algo em comum” é a “forma de afiguração” (2.17). Wittgenstein introduz em seguida a categoria mais geral de “forma lógica”: uma figuração pode possuir ou não uma forma de representação espacial, mas toda figuração deve possuir uma forma lógica (2.18-2.181) e, desse modo, deve ser “ também uma figuração lógica” (2.182). A figuração lógica será definida em 3.5 como o “pensamento”. Podemos nos perguntar desde já se existe alguma relação de prioridade entre linguagem e mundo: seria a linguagem que ajustaria sua forma sobre a forma, independente e preexistente, do mundo ou, ao contrário, seríamos nós que atribuiríamos ao mundo uma forma que reconhecemos primeiro como sendo a da linguagem 1? Não é necessário esboçar uma resposta por enquanto, pois podemos nos ater ao fato, recentemente demonstrado por François Latraverse, de que existe uma terceira possibilidade, que faz entrar em jogo, 1
Acerca dessa questão, os comentadores dividem-se em dois blocos: de um lado, Max Black, Erik Stenius e David Pears subscrevem a primazia do mundo. Cf. Max Black, A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, Ithaca, Cornell University Press, 1964; E. Stenius, Wittgenstein’s Tractatus. A Critical Exposition of the Main Lines of Thought , Oxford, Blackwell, 1960; D. Pears, The False Prison, op. cit. De outro, Hidé Ishiguro, Brian McGuinness e Peter Winch subscrevem uma espécie de autonomia da linguagem com relação ao mundo. Cf. H. Ishiguro, “Use and Reference of Names”, in P. Winch (org.), Studies in the Philosophy of Wittgenstein, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1969, p. 20-50, e “Can the World Impose Logical Structure to Language?”, in R. Haller e J. Brandl (org.), Wittgenstein – Towards a Re-Evaluation. Proceedings of the 14º International Wittgenstein – Symposium , vol. 1, Viena, Hölder-Pichler-Tempsky, 1990, p. 21-34; B. F. McGuinness, “The So-Called Realism of Wittgenstein’s Tractatus ”, in I. Block (org.), Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, Oxford, Blackwell, 1981, p. 60-73, e “Language and Reality in the Tractatus ”, Teoria , vol. 5, 1985, p. 135-144; P. Winch, “Language, Thought and World in Wittgenstein’s Tractatus ”, in Trying to Make Sense , Oxford, Blackwell, 1987, p. 3-17.
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além da linguagem e do mundo, o “pensamento” ( Gedanke )2. O Tractatus não se reduz a uma reflexão sobre as relações entre a linguagem e o mundo. Seria, com efeito, esquecer o “pensamento”, que aparece em duas das proposições principais: “A figuração lógica dos fatos é o pensamento” (3); “O pensamento é a proposição com sentido” (4). Quando vejo, por exemplo, que um desenho representa um fato que eu observo, é porque ele possui elementos, digamos, uma mesa, um vaso, maçãs vermelhas, e porque estes estão arrumados do mesmo modo que os verdadeiros objetos da cena diante de mim. Nos Notebooks , Wittgenstein irá dizer (o grifo é meu): “É pela correspondência que estabeleço entre os componentes da figuração e os objetos, e apenas por ela , que a figuração representa então um estado de coisas e que ela é correta ou não” (NB , p. 33-34). O papel do pensamento parece essencial e incontornável. Com efeito, se o pensamento não tivesse nenhum papel a desempenhar, então uma figuração deveria estar em condições de representar sua própria forma de representação, mas isso não se dá (2.171-2.174). Do mesmo modo, uma proposição não pode por si mesma enunciar o fato de que ela partilha sua forma lógica com um estado de coisas. O que leva Wittgenstein a enunciar a mais importante distinção de seu livro3: 4.12 – A proposição pode representar toda a realidade, mas não pode representar o que deve ter em comum com a realidade para poder representá-la – a forma lógica. 2
F. Latraverse, “Signe, proposition, situation: éléments pour une lecture du Tractatus logico-philosophicus ”, Revue internationale de philosophie , nº 219, 2002, p. 125-140.
3
Cf. J. Bouveresse, “Les origines fregéennes de la distinction entre ce qui ‘se dit’ e ce qui ‘se voit’ dans le Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein”, in Recherches sur la philosophie et le langage , Université de Grenoble, 1981, p. 1754; P. Geach, “Saying and Showing in Frege and Wittgenstein”, in J. Hintikka (org.), Essays in Honour of G. H. Von Wrioght. Acta Philosophica Fennica , vol. 28, 1976, n. 1-3, p. 54-70.
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Para podermos representar a forma lógica, deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer dizer, fora do mundo. 4.121 – A proposição não pode representar a forma lógica, esta forma se espelha na proposição. [...] A proposição mostra a forma lógica da realidade. [...] 4.1212 – O que pode ser mostrado não pode ser dito.
Já cruzamos essa distinção na seção precedente, e vamos reencontrá-la adiante. É preciso notar de imediato uma categoria daquilo que se mostra mas não pode ser dito, a saber, as propriedades “internas”. Uma propriedade “interna” é uma propriedade com relação à qual é “impensável que seu objeto não a possua” (4.123): 4.122 – [...] A presença de tais propriedades e relações internas não pode, todavia, ser asserida por proposições; mostra-se, sim, nas proposições que representam aqueles estados de coisas e tratam daqueles objetos [cf. 4.124].
(As relações internas serão discutidas na seção sobre a lógica e a aritmética.) Talvez seja útil fazer aqui uma breve digressão sobre a distinção entre conceitos “materiais” e “formais” (4.122, 4.124, 4.126-4.12721), pois a noção de propriedade “formal” está intimamente ligada à de propriedade “interna” (4.122). Para Wittgenstein, os conceitos “formais” são denotados pelas “variáveis proposicionais” (4.126-4.1271). Trata-se de conceitos tais como os de “objeto”, “coisa”, “complexo”, “fato”, “número”, etc. (4.1272), em oposição aos conceitos materiais tais como “elefante”, “rosa”, etc. De um conceito formal, é importante notar que ele “já é dado com um objeto que cai sob ele” (4.12721), mas que: 4.126 – [...] Que algo caia sob um conceito formal como seu objeto não pode ser expresso por uma pro-
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posição. Isso se mostra, sim, no próprio sinal desse objeto. (O nome mostra que designa um objeto; o numeral, que designa um número, etc.)
Portanto, cada vez que um conceito formal é utilizado de outro modo, isto é, como se se tratasse de um conceito material, seguemse “pseudoproposições sem sentido” (4.1272). Assim, não se pode dizer “Há objetos” como se diz “Há livros”, e muito menos “Há 100 objetos” ou “Há ℵ0 objetos” (4.1272). (Esse último exemplo não deixa de lembrar o axioma do infinito dos Principia Mathematica , que Wittgenstein rejeita exatamente por essa razão. Notar-se-á, por outro lado, que, em oposição a Frege, os conceitos formais não são representados por meio de funções (4.16).) Por enquanto, cumpre insistir no fato de que o que se mostra mas não se pode dizer pode ser visto e deve ser “pensado”. O pensamento é definido no §3 como a “figuração lógica dos fatos” e no 3.5 como “sinal proposicional empregado, pensado”. Em 3.11, 3.12 e 3. 2, lemos: 3.11 – Utilizamos o sinal sensível e perceptível (sinal escrito ou sonoro, etc.) da proposição como projeção da situação possível. O método de projeção é pensar ( das Denken) o sentido da proposição. 3.12 – O sinal por meio do que exprimimos o pensamento, chamo de sinal proposicional. E a proposição é o sinal proposicional em sua relação projetiva com o mundo. 3.2 – Na proposição, o pensamento pode ser expresso de modo que aos objetos do pensamento correspondam elementos do sinal proposicional.
Três elementos estão aqui em jogo: o sinal proposicional, a proposição e a situação, unidos na “relação projetiva com o mundo”. Cumpre compreender corretamente sua natureza. De um lado, Wittgenstein diz em 3.11 que “utilizamos o sinal sensível e per-
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ceptível (sinal escrito ou sonoro, etc.) como projeção da situação possível” e, um pouco adiante, em 3.14, ele acrescenta: “O sinal proposicional é um fato.” Wittgenstein distingue também entre “sinal” e “símbolo” da seguinte maneira: “O sinal é aquilo que é sensivelmente perceptível no símbolo” (3.32). Para reconhecer o símbolo no sinal, é preciso “atentar para seu uso significativo” (3.326) e dois símbolos podem portanto compartilhar o mesmo sinal (3.321). Assim, quando fala de “sinal proposicional”, Wittgenstein refere-se ao aspecto físico do sinal, quer as marcas de tinta no papel, quer os sons da linguagem falada. De outro lado, ele enuncia também no 3.11 que “o método de projeção é pensar o sentido da proposição”. As observações 3.1 a 3.13 do Prototractatus mostram à saciedade que o “método de projeção” é efetivamente “o modo de empregar o sinal proposicional”: 3.1 – A expressão sensível do pensamento é o sinal proposicional. 3.11 – O sinal proposicional é uma projeção do pensamento. 3.111 – Ele é uma projeção da possibilidade de uma situação. 3.12 – O método de projeção é o modo de aplicar o sinal proposicional. 3.13 – A aplicação do sinal proposicional é pensar o seu sentido.
Uma vez que uma proposição é dotada de sentido na medida em que ela é a figuração de uma situação, “pensar o sentido” quer dizer então: tomar a proposição enquanto fato, isto é, sob seu aspecto físico de marcas ou de sons, e aplicá-lo como figuração, isto é, de modo quase literal pensar um fato como uma figuração de outro fato (possível ou real) no mundo, um pouco como quando vemos que um desenho representa um fato diante de nossos olhos. O uso que faço de um sinal proposicional “ p” como representação de uma situação mostra portanto o que eu compreendo por “ p”: é “o uso significativo” (sinnvollen Gebrauch) (3.326).
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Uma rápida observação terminológica impõe-se. Na escola de Brentano, fala-se de bom grado de “intencionalidade” em vez de “pensar o sentido da proposição”. De fato, não é inútil notar o paralelo com a noção de “intenção de significação” ( Bedeutungsintention) na primeira das Investigações lógicas 4. Não se trata obviamente de instaurar uma leitura “fenomenológica” do Tractatus : cabe simplesmente ver que Wittgenstein fala realmente de “intenção”5. Aliás, ele irá utilizar esse vocábulo a partir de 1929, por exemplo nestes trechos das Philosophische Bemerkungen: Elimine da linguagem o elemento da intenção, é sua função inteira que desaba (PB , §20). Como entendemos uma figuração? A intenção não reside nunca na própria figuração, pois, qualquer que seja o modo pelo qual a figuração é produzida, ela sempre pode ser entendida de diferentes modos [...] a intenção já se exprime no modo pelo qual eu comparo atualmente a figuração com a realidade (PB , §24).
É preciso ressaltar uma diferença fundamental. Se Husserl confessava nas Investigações lógicas “não conseguir descobrir esse eu primitivo, enquanto centro de referência necessária” 6, ele mudará posteriormente de posição e irá introduzir o “ ego transcendental”7, mudança cujas consequências são bem conhecidas. Como mostrarei adiante, não há nenhum vestígio de tal “sujeito” no Tractatus e a análise da intencionalidade francamente nada tem de “husserliana”. Independentemente dessas questões terminológicas, é evidente que as observações do início da seção precedente vão de encontro 4 5 6 7
E. Husserl, Logische Untersuchungen, t. 2, Tübingen, Max Niemeyer, 1968, p. 38. P. M. S. Hacker, “Naming, Thinking and Meaning in the Tractatus ”, Philosophical Investigations , vol. 22, 1999, p. 131. E. Husserl, Logische Untersuchungen, op. cit., t. 2., p. 361. É o que indica uma nota de rodapé acrescentada à segunda edição, na qual Husserl anuncia: “Desde então, aprendi a encontrá-lo!”
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a uma leitura “diádica” do Tractatus , onde apenas importa a relação linguagem-mundo – o “grande espelho” do 5.511 –; estamos antes diante de uma “tríade”: o sinal proposicional, a proposição e a situação. Essa “tríade” permite lançar um novo olhar sobre a questão da prioridade; ela sugere antes, como o mostrou François Latraverse, que não há nenhuma assimetria e, portanto, nenhuma primazia de um elemento sobre o outro, uma vez que nenhum de seus elementos desempenha um papel privilegiado8. Pelo contrário, esses três elementos são inseparáveis uns dos outros e não podem ser pensados separadamente . De modo inverso, Norman Malcolm sustenta em Nothing is Hidden a tese de uma prioridade do pensamento 9, fazendo uma leitura dos Notebooks e do Tractatus que coloca Wittgenstein numa tradição “ideacionista” que vai de John Locke ( An Essay Concerning Human Understanding , livro III, cap. 2, seção 1) até Jerry Fodor e sua tese de um “sistema interno de representação” ou “linguagem do pensamento”10. E é fato que Wittgenstein nos diz nos Notebooks : O pensamento, com efeito, é uma espécie de linguagem. Pois o pensamento é naturalmente também uma figuração lógica da proposição e, por conseguinte, justamente uma espécie de proposição (NB ., p. 82).
A tese da prioridade do pensamento implica no entanto que poderia haver um pensamento fora da linguagem, que permitiria o aprendizado da linguagem, que seria fonte do sentido, etc. Essa tese casa mal com as diversas observações ( por exemplo, no prefácio, em 8
F. Latraverse, “Signe, proposition, situation: éléments pour une lecture du Tractatus logico-philosophicus ”, op. cit., p. 130. 9 N. Malcolm, Nothing is Hidden. Wittgenstein’s Criticisms of his Early Thought , Oxford, Blackwell, 1986, p. 67. Esse tipo de posição é criticado em S. Gandon, Logique et langage. Études sur le premier Wittgenstein, Paris, Vrin, 2002, cap. III. 10 J. Fodor, The Language of Thought , Hassocks, Harvester Press, 1976, p. 79. Sobre as teorias ideacionistas, cf. D. Laurier, Introduction à la philosophie du langage , op. cit., p. 17-25.
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3.03-3.32, ou em 5.61 ) no sentido de que não há “pensamento” ali onde não há expressão clara na “linguagem”; isto é, observações que estabelecem uma espécie de identidade entre o que é pensável e o que podemos dizer . É realmente o sentido da última observação do 5.61: “O que não podemos pensar, não podemos pensar; tampouco podemos dizer o que não podemos pensar.” Limitar-se a interpretar o Tractatus procurando ver nele uma teoria da “linguagem do pensamento”, é procurar ler o Tractatus contra a “segunda” filosofia e correr o risco de uma leitura parcial11. É verdade que a distinção entre o aspecto físico e o aspecto intencional está presente no Tractatus , sob a forma da distinção entre os dois elementos da proposição que são o sinal proposicional e o método de projeção. Mas é preciso guardar-se de ver ali mais do que isso: Wittgenstein não desenvolve uma concepção “substancial” do pensamento no Tractatus : ali, o pensamento é coextensivo à proposição dotada de sentido e não tem propriedades separadas12. A intencionalidade não pode portanto ser “reduzida” a um processo do “pensar” que seria independente 13. O pensamento também não pode ser concebido como a fonte do sentido, na medida em que Wittgenstein nega categoricamente a existência de um “sujeito” no sentido forte do termo: “O sujeito que pensa, representa, não existe” (5.631). É por isso que Wittgenstein cuidará de distinguir seu projeto daquele da psicologia: 4.1121 – [...] Meu estudo da linguagem por sinais não corresponderia ao estudo dos processos de pensar, estudo que os filósofos sustentaram ser tão es11 Com efeito, Malcolm e Hacker assimilam a concepção do Tractatus àquela criticada num trecho bastante conhecido do Caderno azul . Cf. L. Wittgenstein, The Blue and Brown Books . New York: Harper&Row Publishers, 1997, p. 3 ; N. Malcolm, Nothing is Hidden, op. cit., p. 76. P.M.S. Hacker, “Naming, Thinking and Meaning in the Tractatus ”, op. cit., p. 132. 12 F. Latraverse, “Signe, proposition, situation: éléments pour une lecture du Tractatus logico-philosophicus ”, op. cit., p. 136. 13 Para uma posição contrária, cf. P. M. S. Hacker, Mind and Will , Oxford, Blackwell, 1996, p. 25.
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sencial para a filosofia da lógica? No mais das vezes, eles só se emaranharam em investigações psicológicas irrelevantes, e um perigo análogo existe também no caso do meu método.
Numa conversa com Schlick e Waismann, Wittgenstein irá dizer: [...] não paro de voltar à questão: o que quer dizer compreender uma frase? Isso se vincula à questão mais geral: o que é que chamamos de intenção, querer dizer, significar ? O modo de ver dominante hoje em dia é o de que a compreensão é um processo psicológico, que se desdobra “em mim”. Diante do que, eu pergunto: a compreensão seria um processo que corre paralelamente à frase (seja esta pronunciada ou escrita)? Se sim, qual é a estrutura de tal processo? Seria a mesma estrutura que a da frase? Ou esse processo seria algo amorfo, aproximadamente como quando, ao ler uma frase, eu experimento ao mesmo tempo uma dor de dente? Creio, de meu lado, que a compreensão não é de modo algum um processo psicológico particular que teria uma existência separada e viria acrescentar-se à percepção da frase. Decerto, quando escuto ou leio uma frase, há de fato diversos processos que ocorrem em mim: aqui uma imagem surge, ali associações são feitas, etc. Mas todos os processos desse tipo não são nesse caso o que me interessa. Compreendo a frase na medida em que a aplico. A compreensão não é portanto de modo algum um processo particular, é o fato de operar com uma frase. A frase está aí para que nós operemos com ela (O que eu faço é também uma operação) (WWK , p. 167).
Wittgenstein indica aqui claramente que a “intenção” não deve ser concebida como um processo mental qualquer, mas sim como uma operação sobre sinais. É o que ele confirma um pouco adiante na conversa:
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O que eu faço com as palavras da linguagem (na medida em que as compreendo) é exatamente a mesma coisa que eu faço com os sinais de um cálculo: eu opero com elas (WWK , p. 169).
Podemos nos perguntar se essa concepção “operatória” do aspecto “intencional” da linguagem, que guarda apenas o mínimo necessário de manipulação ou de combinatória dos sinais, está de fato no Tractatus ou se ela reflete uma nova posição, assumida após 1929. A meu ver, essas observações confirmam o antipsicologismo do Tractatus e esclarecem e completam as observações sobre a noção de “operação”, noção que, como mostrarei na seção sobre a lógica e a aritmética, está no fundamento mesmo da teoria de Wittgenstein 14. Como indiquei na seção precedente, nosso filósofo concebia os conectivos lógicos não como funções, mas como “operações de verdade” (5.234); as funções de verdade são definidas em 5.32 em termos de “operações”. Segundo 5.234 e 5.2341, as funções de verdade registram o “resultado de operações” que têm proposições como base e, segundo o 5.3, toda proposição é “o resultado de operações de verdade sobre proposições elementares” e uma operação de verdade é definida como “a maneira pela qual a função de verdade resulta das proposições elementares”. Uma operação é definida como “o que deve acontecer com uma proposição para que dela se faça outra” (5.23), o que significa que se trata, em termos não wittgensteinianos, do ato pelo qual uma proposição é engendrada a partir de outra proposição. Essas operações de verdade são a negação, a adição lógica (isto é, a conjunção), etc. (5.2341).
14 Ressaltei o papel central da noção de operação no capítulo 2 de meu livro, Wittgenstein, Finitism and the Foundations of Mathematics , Oxford, Clarendon Press, 1998, e em meus artigos “Operations and Numbers in the Tractatus ”, Wittgenstein Studien, vol. 2, 2000, p. 105-123: “Qu’est-ce que l’inférence? Une relecture du Tractatus logico-philosophicus ”, Archives de philosophie , vol. 64, 2001, p. 545-567.
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Uma das dimensões menos bem compreendidas do Tractatus é a da distinção entre o que se poderia chamar o estático e o dinâmico. Como mostrarei na seção sobre a ontologia, a do Tractatus é uma ontologia dos “objetos simples” e dos “estados de coisas”, das “situações” e dos “fatos”; é uma ontologia do estático. Há decerto fatos que são “pensamentos”; no entanto, vimos que há um “pensar” o sentido da proposição, uma “projeção” do sinal proposicional, etc. Em outros termos, há “atos”, manipulações ou “operações”, que não são capturados na ontologia formal do Tractatus ; o “pensar o sentido da proposição” é um ato cujo resultado é visto de modo estático como um “pensamento”, um fato15.
15 A ideia de que os “pensamentos” podem ser compreendidos tanto como atos quanto como fatos se deve a H. Kannisto, Thoughts and their Subject. A Study of Wittgenstein’s Tractatus. Acta Philosophica Fennica , vol. 40, 1986, p. 99.
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A ANÁLISE DA PROPOSIÇÃO
E
M QUE CONSISTE AFINAL ESSE “PENSAR O SENTIDO DA PROPOSIÇÃO”?
É a “análise” da proposição que nos fornecerá a resposta 1. Mais uma vez, a palavra “análise” deve ser tomada aqui no sentido tradicional de decomposição de um todo em suas partes, que Wittgenstein retoma dos Principles of Mathematics de Russell: Toda complexidade é conceitual no sentido de que ela se deve a um todo passível de análise lógica, mas é real no sentido de que ela não depende de modo algum da mente, mas apenas da natureza dos objetos. Ali onde a mente pode distinguir objetos, deve haver objetos para serem distinguidos. [...] Em todo caso de análise, há um todo formado de partes e de relações; é apenas a natureza das partes e das relações que distinguem os diferentes casos2.
1
2
Sobre a “análise” no Tractatus , cf. J. Griffin, Wittgenstein’s Logical Atomism , Oxford, Oxford University Press, 1964, cap. VI; P. Simons, “The Old Problem of Complex and Fact”, reed. em Philosophy and Logic in Central Europe from Bolzano to Tarski , Dordrecht, Kluwer, 1992, p. 319-338. B. Russell, Principles of Mathematics , op. cit ., §439. Nesse trecho, Russell
Russell é “realista”, uma vez que, segundo ele, toda complexidade é “real”. Mas, como esse trecho o indica, Russell também considera essa complexidade como uma complexidade lógica , que pode, portanto, ser analisada não apenas em decorrência de uma investigação empírica, mas também logicamente . Talvez esteja aí o erro cardinal do atomismo lógico. Ele irá forçar Russell e, por sua vez, Wittgenstein a postular, na linhagem da Monadologia de Leibniz, “substâncias simples”, que são os elementos dos complexos ou “compostos”3. Contrariamente ao que pretendem comentadores como Maslow e Stenius, a distinção entre simples e complexos deve ser absoluta, e não simplesmente relativa 4. Notar-se-á, por outro lado, que os “simples” de Wittgenstein não são substâncias aristotélicas, pois não são portadores das propriedades, mas sim aquilo que forma as propriedades materiais: 2.0231 – A substância do mundo só pode determinar uma forma, e não propriedades materiais. Pois estas são representadas apenas pelas proposições – são constituídas apenas pela configuração dos ob jetos. 2.0232 – [...] os objetos são incolores.
As proposições 3.2 a 3.22 nos dizem que tipo de coisa deve ser uma proposição “completamente analisada” segundo Wittgenstein: podemos conceber uma proposição na qual “o pensamento pode
3
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toma como exemplo a análise do espaço em pontos, o que será criticado por Wittgenstein, cf. (NL, p. 93). Para Leibniz, no entanto, o complexo ou composto não é mais que um “amontoado ou aggregatum de simples”. Cf. G. W. Leibniz, La monadologie , Ed. De E. Boutroux, Paris, Delagrave, 1978, p. 141-142. Para Wittgenstein, os complexos não podem ser apenas um “amontoado”, mas devem ser estruturados. A. Maslow, A Study of Wittgenstein’s Tractatus, Los Angeles, University of California Press, 1961, p. 38-40; E. Stenius, Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 84-85.
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ser expresso de tal modo que os objetos do pensamento correspondam aos elementos do sinal proposicional” (3.2). Esses elementos do sinal proposicional são chamados “sinais simples” (3.201) e são “nomes” (3.202) que significam ( bedeuten) (3.203) ou “substituem” (vertreten ) (3.22) o objeto, ao passo que a configuração dos sinais simples na proposição corresponde à configuração dos objetos na situação (Sachlage ) (3.21). A proposição deverá possuir o mesmo número de elementos, isto é, a mesma “multiplicidade lógica” (a expressão é de Hertz) que a situação que ela representa (4.04). Tal proposição é dita “completamente analisada” (3.201). Infelizmente, Wittgenstein não fornece, em seus textos, nenhum exemplo. Na verdade, seus Notebooks mostram à saciedade que ele não tem nenhum caso particular em mente. A falta de clareza nesse assunto está na origem de diversos problemas de interpretação. Wittgenstein só reflete sobre as condições de possibilidade da análise da proposição; essa reflexão dá assim ao projeto de Wittgenstein uma coloração kantiana 5. Os se-
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Desde o livro de Stenius (Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., cap. XI), muito se falou dos paralelos entre Wittgenstein e Kant. Na verdade, estes se resumem essencialmente ao fato de que esses dois filósofos querem limitar as esferas da ciência (4.113) e da filosofia, esta última sendo concebida como uma “atividade” que tem por objetivo limitar os excessos da metafísica (4.112, 6.53). Não se deve no entanto esquecer que a crítica da metafísica em Wittgenstein pode ser vista como procedendo em linhagem direta da tradição vienense de filosofia da ciência, de Carl Menger a Ludwig Boltzmann, que não é muito “kantiana”, e não se deve exagerar tais paralelos em detrimento dos aspectos francamente antikantianos do pensamento de Wittgenstein – de sua ontologia realista à sua ética estoica. Cf. H. Visser, “Wittgenstein as a Non-Kantian Philosopher”, in E. Morscher e R. Stranzinger (org.), Ethics, Foundations, Problems, and Applications , Viena, Hölder-Pichler-Tempsky, 1981, p. 399-405. Jaako Hintikka também notou um aspecto kantiano em Wittgenstein, vinculado à sua concepção da linguagem como meio universal, segundo a qual não se pode “sair” da linguagem para dela falar “de fora”. Wittgenstein dizia, ele próprio: “O limite da linguagem mostra-se na impossibilidade de descrever o fato que corresponde a uma proposição (que é sua tradução) sem, justamente, repetir a proposição. (Defrontamo-nos aqui
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guintes trechos dos Notebooks dão uma ideia das reflexões de Wittgenstein: Manifestamente são possíveis proposições que não contêm sinais simples, isto é que não contêm sinais que possuem uma significação imediata. E são realmente proposições dotadas de sentido, que não têm sequer necessidade de que lhes sejam acrescentadas as definições de suas partes constituintes. No entanto é claro que as partes constituintes de nossas proposições podem e devem ser analisadas por meio de definições, se quisermos nos aproximar da estrutura real da proposição. Há portanto em todo caso um processo de análise . E não se pode então perguntar se esse processo tem realmente um término e, nesse caso, qual é esse término? ( NB , p. 46) [...] nós não deduzimos a existência de objetos simples a partir de objetos simples determinados: nós os conhecemos pelo contrário como resultados finais da análise [...] por meio de um processo que nos conduz a eles (NB , p. 50).
Admitindo que haja um processo de análise, Wittgenstein pergunta se este chega a bom termo ou não, isto é, se é possível que uma análise seja infinita: Seria a priori claro que devemos chegar pela análise a partes constituintes simples, isto já estaria contido no conceito de análise – ou uma análise ad infinitum é possível? (NB , p. 62).
com a solução kantiana do problema da filosofia)” (L. Wittgenstein, Culture and Value , Chicago, University of Chicago Press, 1980, p. 10). O raciocínio que leva Wittgenstein a tal conclusão, a bem dizer mais neokantiana do que kantiana, não repousa no entanto sobre premissas kantianas e não parece portanto adequado falar de “kantismo”.
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Algumas linhas adiante, Wittgenstein irá responder pela negativa, uma vez que, a seu ver, “o mundo deve ser justamente o que ele é, ele deve ser determinado” ( NB , p. 62). Essa intuição metafísica – pois só pode se tratar disso – vai se revelar muito importante, uma vez que ela implica que o sentido seja “determinado”: “a exigência das coisas simples é a exigência da determinação do sentido” ( NB ., p. 63) e (3.23). Que o mundo seja “determinado”, Wittgenstein irá exprimi-lo desde as primeiras frases do Tractatus : 1.11 – O mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os fatos. 1.12 – Pois a totalidade dos fatos determina o que é o caso e também tudo que não é o caso.
Cumpre notar de passagem que a exigência da determinação do sentido tem em Wittgenstein uma origem inteiramente diferente do que em Frege, que também exige essa determinação para sua linguagem formal no § 32 dos Grundgesetze der Arithmetik , quando, para assegurar a coerência de seu sistema formal, pede que cada sinal tenha uma denotação. Cabe portanto se guardar de aproximar Wittgenstein de Frege a esse respeito, como o faz, por exemplo, Hacker6. A análise deve portanto ter um fim, o que implica, segundo Wittgenstein,, que as proposições elementares devem ser logicamente independentes umas das outras (5.134). Com efeito, o contrário indicaria que a análise não está terminada. Essa condição de independência lógica vai se revelar ser o calcanhar de Aquiles da concepção da análise do Tractatus , quando Wittgenstein for reexaminar em 1929 o problema da exclusão das cores em Some Remarks on Logical Form. Com efeito, uma parte do campo visual não pode ter duas cores ao mesmo tempo e Wittgenstein, que acreditava ter resolvido o problema em 6.3751 – onde ele queria mostrar que toda neces6
P. M. S. Hacker, Insight and Illusion. Themes in the Philosophy of Wittgenstein, 2ª ed., Oxford, Clarendon Press, 1986, p. 58
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sidade é lógica –, percebe que as proposições versando sobre graus de qualidades (cores) devem fazer intervir números já no nível das proposições elementares e que isso quer dizer que essas proposições se excluem mutuamente, que elas não são independentes (SRLF , p. 33)7. Uma vez repudiada a independência lógica das proposições elementares, é toda a concepção da análise do Tractatus que irá desabar. A análise deve assim terminar em um nível no qual os elementos são apenas os simples. Estes últimos são portanto postulados como condição de possibilidade da análise, que assumirá as seguintes feições: uma proposição complexa deve ser decomposta em “proposições elementares, que consistem em nomes em ligação imediata” (4.221, 5.5562); uma proposição elementar é um “encadeamento” de nomes (4.22, 5.55). (Várias proposições elementares serão compostas numa proposição complexa, por vezes chamada “molecular”, com a ajuda dos conectivos lógicos). Os nomes “estão por” objetos (3.22), substituem-nos, mas poderiam os objetos em questão ser complexos, ou devem eles ser “simples”? Wittgenstein irá se opor a Russell acerca dessa questão aparentemente anódina ao desenvolver um argumento do qual já se disse ser o mais importante do Tractatus 8. Ambos utilizam como exemplo de objeto complexo um objeto com três partes, a , R e b, tal que a mantém a relação R com b. Como vimos, Russell chama um complexo desse tipo “a -mantém-a-relação-R -com-b”9. Em 2.0201, Wittgenstein escreve: 2.0201 – Todo enunciado sobre complexos pode-se decompor em um enunciado sobre as partes constituintes desses complexos e nas proposições que os descrevem completamente.
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Há no entanto uma solução simples para esse problema, cf. M. B. Hintikka e J. Hintikka, Uma investigação sobre Wittgenstein, Campinas, Papirus, 1994, cap. 5, §3. J. Griffin, Wittgenstein’s Logical Atomism , op. cit., p. 41-42. A. N. Whitehead e B. Russell, Principia Mathematica , vol. 1, op. cit ., p. 44.
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(cf. NL, 93 e 101). Nos Notebooks , Wittgenstein havia proposto a seguinte definição: φ(a ) & φ(b) & aRb ≡ φ[aRb]
que analisa a proposição acerca do complexo [ aRb] em proposições acerca dos constituintes e mais uma descrição, aRb, do complexo (NB , p. 4). (Irei empregar essa notação.) Essa definição não é retomada no Tractatus , mas Wittgenstein diz ali no 3.24 que “a síntese do símbolo de um complexo num símbolo simples pode ser expressa por meio de uma definição”. Retomando o exemplo de Wittgenstein no § 60 das Investigações filosóficas , podemos dizer que “A vassoura encontra-se no canto” significa, segundo essa análise, algo como “A escova encontra-se no canto e o cabo encontra-se no canto e o cabo está parafusado à escova”. É claro, “escova” e “cabo” não são simples, essa análise deve portanto ser reiterada até o momento em que se atingir o nível dos simples. Wittgenstein opõe-se vigorosamente à ideia de que se possa nomear um complexo, como o faz Russell, ou ainda à identificação, operada por Frege, entre o modo de significação da proposição e o do nome: Frege dizia que “as proposições são nomes”; Russell dizia que “as proposições correspondem a complexos”. Esses dois enunciados são falsos e o enunciado “as proposições são nomes de complexos” é muito especialmente falso (NL, p. 97).
Wittgenstein não poderia portanto aceitar que os objetos complexos pudessem ter nomes simples. Tudo que é um nome de objeto complexo deve poder ser analisado. A esse respeito, Wittgenstein leva a análise mais longe do que Russell; sua concepção da análise não remete mais à teoria das descrições de Russell, ainda que as duas “análises” tenham um ponto em comum de grande importância. Como o indiquei na seção sobre a significação, Russell e Wittgenstein não aceitavam a tese de Frege segundo a qual a proposição
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“Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” não tem valor de verdade. Para Wittgenstein, o fato de que ela pode ser verdadeira ou falsa é uma propriedade essencial da proposição. Eis por que ele apreciava a teoria das descrições definidas de Russell, que permitia dar conta de proposições contendo expressões não denotativas como sendo falsas. A análise dos complexos de WittgenWittgenstein tem consequências inteiramente similares: se [ aRb] não existe, então a descrição “aRb” na definição que reproduzimos acima não afigura nada. Portanto, segundo essa definição, [aRb] é falso. É o que ele indica em 3.24: “A proposição em que se fala de um complexo será, caso ele não exista, não um contrassenso (unsinnig ), mas simplesmente falsa”. Wittgenstein irá confessar ele próprio posteriormente que ele tinha em mente “algo do mesmo tipo que a definição oferecida por Russell para o artigo definido” ( PG ., p. 211). No entanto, essa concepção da análise já não é a de Russell. Com efeito, as descrições definidas de Russell são símbolos incompletos, que não podem ser inexatos como em 3.24. Em “A vassoura encontra-se no canto”, a análise de Russell consiste em deslocar “vassoura” da posição de sujeito para a de predicado, o que daria algo como : ∃ x (B x & C x )
(com “B” para “vassoura” e “C” para “encontra-se no canto”). Isso não ocorre em Wittgenstein, para quem um “complexo só pode ser dado por meio de sua descrição” (3.24); “vassoura” não é portanto um nome, mas uma descrição de um complexo, complexo que deve ser decomposto por meio de um procedimento que será iterado tantas vezes quantas forem necessárias a fim de atingir o nível dos simples. Portanto, em vez de deslocar o sujeito para a posição de predicado, Wittgenstein o substitui por outros sujeitos. Dentre as inúmeras consequências dessa concepção da análise, só mencionarei uma. É claro por si mesmo que a significação das frases da linguagem ordinária não corresponde à sua versão “completamente analisada”; se digo “Esse relógio não está na gaveta”, pode ser que eu não saiba nada de seu mecanismo e, portanto, que
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eu não queira dizer que “relógio” é um complexo que contém engrenagens, etc. Wittgenstein abordou essa questão nos seus Notebooks : Se eu digo que esse relógio é brilhante e o que eu quero dizer com “esse relógio” altera, um pouco que seja, sua composição, então não apenas o sentido da proposição se vê assim alterado em seu conteúdo, mas o enunciado acerca desse relógio altera também imediatamente seu sentido, a forma inteira da proposição se vê alterada (NB , p. 61). Se eu digo, por exemplo, que esse relógio não está na gaveta, não é de modo algum necessário que se siga logicamente que uma determinada engrenagem não está na gaveta, pois eu talvez não soubesse de modo algum que essa engrenagem está no relógio e não poderia, então, querer dizer com “esse relógio” um complexo que inclui essa engrenagem (NB , p. 64-65).
Essa observação parece contradizer a própria ideia da análise como processo de decomposição dos complexos em seus respectivos simples. Já não se trata de uma tal análise, mas antes de representar fielmente aquilo que é dito. Na verdade, Wittgenstein procurar dar lugar ao fenômeno do “vago” e da indeterminação do sentido. Sua solução vem expressa no mesmo trecho dos Notebooks : Se a complexidade de um objeto é determinante para o sentido da proposição, então é preciso que ela seja representada na proposição na medida em que ela determina o sentido. E na medida em que sua composição não é determinante para este sentido, nessa medida os objetos da proposição são simples . Eles não podem ser mais decompostos . A exigência dos objetos simples é a exigência da determinação do sentido. Pois se eu falo, por exemplo, desse relógio significando através disso algo complexo, e o modo pelo qual ele é composto não desempenha nenhum pa-
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pel, então entrará em jogo na proposição uma generalização, cujas formas fundamentais, na medida em que elas nos são dadas , serão completamente determinadas (NB , p. 63-64).
Quando há um sentido definitivo e uma proposição o exprime completamente, há também nomes para os objetos simples; mas se o sentido não é definitivo, então uma “generalização” aparecerá na análise. É isso que Wittgenstein quer dizer no 3.24: 3.24 – Que um elemento proposicional designe um complexo, pode-se percebê-lo por uma indeterminação nas proposições em que aparece. Sabemos que, por meio dessa proposição, ainda não fica tudo determinado. (A designação de generalidade contém, na verdade, um protótipo de figuração (Urbild )).
Poderíamos descrever o que Wittgenstein quer dizer de modo quase paradoxal dizendo que, para ele, a indeterminação do sentido é determinada em sua indeterminação10. Vê-se assim que, na maior parte dos casos, o sentido de um enunciado da linguagem ordinária será corretamente vertido, segundo Wittgenstein, por meio de uma análise que termina em um enunciado com quantificadores da forma ∃ x F x . Como veremos na seção sobre a lógica e a aritmética, tais enunciados são redutíveis a uma disjunção de casos: ∃ x F x ≡Fa V Fb V Fc ... É assim que as formas da generalidade são “completamente determinadas”, ao passo que uma parte do sentido do enunciado da linguagem ordinária permanece “indeterminada”. Estamos doravante de posse de elementos suficientes para formular algumas observações sobre a questão fundamental da relação de prioridade entre linguagem e mundo, pois esta questão gira em torno da sintaxe dos nomes simples: trata-se de saber se esta última provém dos próprios objetos ou não. Sustentei, na seção precedente, 10 Cf. P. M. S. Hacker, Insight and Illusion, op. cit. , p. 58.
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a tese segundo a qual se trata na verdade de uma “tríade” e que não há nenhuma prioridade de um dos elementos sobre os outros. A tese “realista” segundo a qual o mundo impõe sua estrutura, sustentada, por exemplo, por Pears e por Malcolm, não deixa de ter bases textuais – pode-se pensar, por exemplo, nas observações de Wittgenstein em Some remarks on logical form sobre a necessidade de “uma investigação lógica versando sobre os próprios fenômenos” ( SRLF , 30) –, mas permanece por si mesma difícil de compreender, pois podemos nos perguntar em que consistiria uma investigação de verdades lógicas no mundo. E, quando Malcolm afirma que “a sintaxe de um nome é derivada do objeto” 11, temos o direito de perguntar o que ele entende por “ser derivada do objeto”. Além disso, essa tese vai de encontro ao fato inegável de que Wittgenstein insiste na autonomia da lógica: “A lógica deve cuidar de si mesma” (5.473). Mais difícil de ser refutada é a ideia de que somos nós que, por meio da linguagem, atribuímos uma forma ao mundo. Essa interpretação, por vezes qualificada de “antirealista”, foi defendida por Hidé Ishiguro12. A seu ver, há prioridade da sintaxe no sentido de que um símbolo não pode denotar um objeto estável sem ter um uso estável13 e de que a identidade do objeto só pode ser determinada por meio da determinação do sentido das proposições nas quais ele comparece; os nomes não são portanto mais que dummy names 14. Apoiando-se na retomada do princípio de contexto de Frege em 3.3, onde vem dito que “é só no contexto da proposição que um nome tem significado”, Ishiguro considera, na contramão da tese realista, que não se pode sair em busca de um objeto, isto é, da denotação de um nome simples, independentemente do uso deste último em proposições. Essa crítica no entanto erra seu alvo, uma vez que os nomes simples só aparecem no momento em que a pro11 N. Malcolm, Nothing is Hidden, op. cit., p. 27. 12 Especialmente no importante artigo: H. Ishiguro, “Use and Reference of Names”, op. cit. 13 Ibid ., p. 20. 14 Ibid ., p. 34-35 e 41.
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posição é “completamente analisada” (2.021 e 3.2) : portanto, está fora de questão de partir da proposição não analisada para, depois, procurar a denotação dos nomes simples. Por outro lado, não se deve subestimar o fato de que a sintaxe da linguagem deve refletir as possibilidades combinatórias dos objetos; do mesmo modo, essa leitura não dá conta do fato de que os objetos são a substância do mundo (2.021), eles são o que subsiste (2.024): a substância é “forma e conteúdo” (2.025). Brian McGuinness, que subscreve a interpretação de Ishiguro15, chega mesmo a dizer que os objetos estão “para além da existência” (beyond being ) e que é um engano acreditar que Wittgenstein foi realista a seu respeito16. Decerto, WittgenWittgenstein não pode “dizer” que um objeto “existe”, pois isso equivaleria a transgredir a distinção entre “o que se mostra” e “o que se diz”, mas sua existência vem a ser implicitamente reconhecida pelo fato de que “só havendo objetos pode haver uma forma fixa do mundo” (2.026; cf. 2.023): uma vez que o mundo tem uma forma fixa, os objetos devem portanto existir! Aliás, se não existissem, então não seria possível formar qualquer figuração, seja verdadeira ou falsa, do mundo (2.0212). É preciso que os significados dos sinais simples “nos sejam explicados para que os entendamos” (4.026), e isso só pode ser feito por “elucidações”: 3.263 – Os significados dos sinais primitivos podem ser explicados por meio de elucidações. Elas são proposições que contêm os sinais primitivos. Portanto, só podem ser entendidas quando já se conhecem os significados desses sinais.
As elucidações não podem ser definições ostensivas do tipo: “Isto é um A”. Os nomes simples seriam assim correlacionados aos obje15 B. McGuinness, “The So-Called Realism of Wittgenstein’s Tractatus ”, op. cit., p. 66-67. 16 Ibid., p. 73.
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tos simples e as correlações seriam “como que as antenas [...] com as quais [a figuração] toca a realidade” (2.1515). Isso implicaria no entanto que possamos antes obter a significação dos nomes para depois compreender as proposições nas quais eles comparecem17. A noção de elucidação é um tanto aparentada à de Russell, no *1 dos Principia Mathematica : Uma vez que todas as definições dos termos se fazem por meio de outros termos, todo sistema de definições que não é circular deve começar por um determinado aparato de termos não definidos. [...] As ideias primitivas são explicadas com a ajuda de descrições concebidas para apontar com o dedo diante do leitor o que se quer dizer, mas as explicações não constituem definições, pois supõem as ideias que elas explicam18.
17 A esse respeito, Ishiguro tem razão, as elucidações não podem ser definições ostensivas; cf. H. Ishiguro, “Use and Reference of Names”, op. cit., p. 33. No entanto, ela considera as elucidações como proposições que especificam as propriedades internas dos objetos, o que não pode ser o caso, pois isso implicaria o uso de um conceito formal como se se tratasse de um conceito material. Além do mais, isso implicaria que toda proposição fosse uma elucidação de seus constituintes. 18 A. N. Whitehead e B. Russell, Principia Mathematica , op. cit., vol. 1, p. 91.
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PROBLEMAS ONTOLÓGICOS
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ACIOCINAR NA AUSÊNCIA DE EXEMPLOS É UM DEFEITO INFELIZMENTE
muito disseminado na filosofia, do qual Wittgenstein não escapa: ele não avança nenhum exemplo de análise “completa”. O resultado disso é uma falta de clareza em suas teses e em sua terminologia – encontram-se mesmo algumas incoerências menores1. Essa obscuridade está na origem de diversos problemas de interpretação, tanto acerca dos complexos quanto dos simples; examinarei alguns desses problemas na presente seção. Norman Malcolm relata a seguinte conversa, de 1949: Eu havia perguntado a Wittgenstein se ele, no momento em que escrevia o Tractatus , não havia decidido o que seria um exemplo de “objeto simples”. Ele me respondeu que, nessa época, pensava ser um
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Cf., por exemplo, a incoerência encontrada por Fogelin em 2.04, 2.06 e 2.063. Tomadas conjuntamente, essas observações implicam que a totalidade dos estados de coisas existentes é equivalente ao conjunto formado pela existência e pela inexistência de estados de coisas. Cf. R. Fogelin, Wittgenstein, 2ª ed., Londres, Routledge, 1987, p.13.
lógico e que não era tarefa do lógico decidir se essa coisa é uma coisa simples ou um complexo, isso sendo uma questão puramente empírica 2!
Essa anedota confirma que Wittgenstein acreditava, na época em que escrevia o Tractatus , numa distinção firme entre o trabalho, a priori , do lógico e o trabalho, empírico, do psicólogo. Segundo a carta a Russell de 19 de agosto de 1919, a relação entre os constituintes de um pensamento e os de um fato é do âmbito da psicologia (CL, p. 125). Wittgenstein apresentou no Tractatus uma concepção da filosofia purificada de todo ingrediente empírico ou psicológico, concepção na qual a teoria do conhecimento é assimilada à “filosofia da psicologia” (4.1121). Algumas questões são portanto da alçada da “aplicação da lógica” (5.557) e não da própria lógica 3. A análise da proposição apresentada na seção precedente defronta-se com sérias dificuldades. O quase desaparecimento dos complexos força Wittgenstein a introduzir em sua ontologia entidades que desempenharão seu papel. Com efeito, a proposição descreve um “fato” (Tatsache ) (4.023). Mas um “fato” é algo positivo, e falar na existência de um “não-fato” parece ser da ordem do contrassenso. Wittgenstein defronta-se portanto com o problema sobre o qual tiveram de se deter aqueles que, como Meinong ou Russell, refletiam sobre as proposições falsas. Na verdade, Wittgenstein situa-se clara-
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N. Malcolm, “Ludwig Wittgenstein”, op. cit., p. 411. Não se deve esquecer nesse contexto que, quando aluno de Russell em Cambridge, antes da guerra, Wittgenstein também fazia estudos de psicologia; chegou mesmo a fazer um relatório de seus trabalhos sobre a percepção do ritmo na British Psychological Society em 1912. Infelizmente, quase nenhum vestígio de seus trabalhos chegou até nós. (A reflexão de Wittgenstein sobre a música nunca estava longe de suas preocupações em lógica, como o atesta esta observação de 1915: “Os temas musicais são, em certo sentido, proposições. O conhecimento da natureza da lógica conduzirá desse modo ao conhecimento da natureza da música” (NB ., p. 40)). O interesse de Wittgenstein pela percepção dos sons poderia levar a crer que quando ele fala da aplicação da lógica, ele tem em vista investigações empíricas análogas às suas.
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mente entre Russell e Meinong. Ele guarda da crítica de Meinong por Russell a ideia de que a tese segundo a qual a uma proposição verdadeira corresponde um objetivo subsistente e a uma proposição falsa corresponde um objetivo não subsistente é indefensável, pois o princípio de não-contradição não é então mais respeitado, uma vez que algo corresponde a toda proposição; para Wittgenstein, assim como para Russell, é preciso poder dizer que a uma proposição verdadeira corresponde algo e que nada corresponde a uma proposição falsa. Mas Wittgenstein não pode seguir Russell na via em que este se engajou, a via da teoria do conhecimento: vimos que ele rejeita a teoria do juízo como relação múltipla e a necessidade de um conhecimento por familiaridade da forma lógica. A indecisão de WittgenWittgenstein é palpável em seus Notebooks , no outono de 1914: “Não p” e “ p” se contradizem, não podem ser ambas verdadeiras. No entanto, posso formulá-las ambas, as duas figurações existem. Elas estão lado a lado (NB , p. 28).
Na primeira frase, Wittgenstein retoma quase literalmente a crítica que Russell endereça a Meinong. Não pode portanto haver objetivo, complexo, ou fato falso. Mas ele tem simultaneamente que se equilibrar sobre outro problema, que ele exprime em sua segunda frase: a proposição dotada de sentido deve representar seu sentido, mesmo se a proposição é falsa. Wittgenstein irá portanto se opor em última instância a Russell, o que ele irá exprimir ao escrever nas “Notes on Logic ”: “Há fatos positivos e negativos, mas não fatos verdadeiros ou falsos” (NL, p. 97). Uma vez que Wittgenstein não quer recorrer aos complexos, pelas razões que vimos, ele introduz novas entidades, de certa forma espremidas entre os complexos e os fatos, que são os Sachverhalte e os Sachlage 4. Quando Russel lhe perguntou qual é a 4
A tradução desses termos em inglês fez correr muita tinta. Cf. a discussão detalhada por Max Black já em 1964, em A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 39-45. As opiniões, mais uma vez, estão divididas;
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diferença entre Tatsache e Sachverhalt , Wittgenstein respondeu: Sachverhalt é o que corresponde a uma [proposição elementar] se ela é verdadeira. Tatsache é o que corresponde a um produto lógico de proposições elementares quando este é verdadeiro (NB , p. 129).
Essa interpretação, que encontra respaldo (dentre outros aforismos) nos 2.034 e 4.2211, foi usada por Russell em sua introdução. Ela concorda com a tradução de “Sachverhalt” por “fato atômico”, que restitui a ideia de uma correspondência entre o Sachverhalt e uma proposição elementar . No entanto, há razões para acreditar que os Sachverhalte não são de modo algum fatos e que a tradução por “fatos atômicos” é enganosa. Parece que a tradução por “estados de coisas” seja a mais apropriada. Se é verdade que Wittgenstein usa frequentemente, no início da seção 2, “ Sachverhalt ” no sentido de um encadeamento existente de objetos ( bestehende Sachverhalt ), ele fala também da não-existência (das Nichtbestehen)5 de um Sachverhalt em 2.06, 2.062, 2.11, 4.1, 4.25, 4.27 e 4.3. Além disso, segundo o 2.06, os fatos são positivos ou negativos, mas os Sachverhalte , de seu lado, são todos eles positivos: não há proposição elementar negativa (NB , p. 130). Pode-se resumir o que precede explorando o 2.06 da seguinte maneira: se uma proposição elementar é verdadeira, então existe (besteht ) um Sachverhalt , o que é em si um fato positivo, do qual não
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de um lado os partidários da tradução Ramsey-Ogden por atomic fact ou “fato atômico” (cf. G. E. M. Anscombe, An Introduction to Wittgenstein’s Tractatus, 4ª ed., Londres, Hutchinson, 1971, p. 30) e, de outro, os partidários da tradução de McGuinness-Pears por state of affairs ou “estados de coisas” (cf., em particular, E. Stenius, Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 29-37; P. Simons, “The Old Problem of Complex and Fact”, op. cit., p. 331-335). Traduzo aqui o alemão “bestehen” por “existir”, mas se poderia também fazer a terminologia concordar com a de Meinong e traduzir a expressão nesse trecho por “subsistir”.
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se deve esquecer que ele é atômico, uma vez que ele não é o produto de fatos mais simples. Se uma proposição elementar é falsa, então a não-existência (nichtbestehen) de um Sachverhalt é um fato negativo (atômico). Mas as proposições elementares não podem afigurar apenas fatos positivos (atômicos), pois seriam então todas verdadeiras. É preciso portanto introduzir uma outra classe de entidades que possam ser representadas pelas proposições elementares independentemente de seu valor de verdade: é esse o papel desempenhado pelas situações (Sachlagen). Estas devem portanto ser identificadas com a possibilidade da existência ou da não-existência dos estados de coisas, isto é, com a possibilidade de fatos positivos ou negativos. (Wittgenstein se aproxima portanto em última instância dos “objetivos” de Meinong...) Muitos se perguntarão por que Wittgenstein introduziu as situações, se ele já tinha os fatos positivos e negativos como “verificadores” (truth-makers )6. É preciso notar de início que ele distingue “afigurar” (abbilden) e “representar” (darstellen): uma proposição “afigura” um fato ou a realidade, mas “representa” uma situação. Essa diferença é particularmente visível no 2.201: “A figuração afigura (abbildet ) a realidade ao representar (darstellt ) uma possibilidade de existência ou inexistência de estados de coisas.” Ao introduzir assim as “situações”, Wittgenstein resolve o outro problema que ele tinha em vista: as proposições, sendo a figuração de uma situação, “representam” seu sentido (2.221) independentemente de seu valor de verdade (2.22). Retomando a metáfora dos Notebooks , eis aí a “sombra” que a figuração projeta sobre o mundo ( NB , p. 27 e 30)7. A projeção dessa “sombra” é também o “pensar o sentido da
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A expressão não é de Wittgenstein, ela é extraída de K. Mulligan, P. Simons, B. Smith, “Truth Makers”, Philosophy and Phenomenological Research , vol. 44, 1984, 287-321. Essa interpretação não pode ser discutida mais profundamente, por falta de espaço. Ela se opõe, entre outras, à de P. Carruthers, Tractarian Semantics, op. cit. E ela só tem dois antecedentes, P. Simons, “Tractatus Logico-Philosophicus”, in J.-P. Leyvraz e K. Mulligan, Wittgenstein analysé , Nîmes, Jacqueline Chambron,
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proposição” do 3.11, que vimos na seção sobre linguagem, mundo e pensamento. De outro lado, as situações permitem introduzir a noção de “espaço lógico”: “A figuração representa ( vorstellt ) a situação no espaço lógico, a existência e inexistência de estados de coisas” (2.11). É o espaço lógico que irá permitir por sua vez a elaboração da combinatória das tabelas de verdade8. Outro problema espinhoso é o do estatuto “categorial” dos “objetos simples”. A escolástica distingue entre os particulares e os universais (que são as propriedades e as relações). Podemos portanto nos colocar a pergunta: seriam os “objetos simples” tão somente particulares ou Wittgenstein admite também os universais como “simples”? Em outros termos, o Tractatus é de inspiração nominalista ou realista 9? Os Notebooks e as inúmeras observações
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1993, p. 16-32; p. 21-22 e, sobretudo, J. Plourde, Nécessité, possibilité et contingence dans le Tractatus logico-philosophicus. Essai d’une reconstruction de la théorie wittgensteinienne des modalités , tese de doutorado, Universidade de Genebra. A este último devo as ideias centrais desse trecho. D. Hyder e T. Lampert mostraram a origem dessa noção nos trabalhos de Helmholtz. Cf. D. J. Hyder, The Mechanics of Meaning. Propositional Content and the Logical Space of Wittgenstein’s Tractatus, op. cit.; T. Lampert, Wittgenstein Physikalismus: Die Sinnesdatenanalyse des Tractatus LogicoPhilosophicus in ihrem historischen Kontext , Paderborn, Mentis, 2000. Segundo Copi e Anscombe, os simples do Tractatus não podem ser senão particulares. Cf. I. M. Copi, “Objects, Properties and Relations in the Tractatus ”, Mind , vol. 67, 1958, p. 145-165; G. E. M. Anscombe, An Introduction to Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 98 e segs. Seus argumentos foram refutados, a meu ver de modo convincente, por Allaire, Stenius, Maury e os Hintikka. Cf. E. B Allaire, “The Tractatus : Nominalistic or Realistic?”, reimpresso em I. M. Copi e R. W. Beard, Essays on Wittgenstein’s Tractatus, Nova Iorque, MacMillan, 1966, p. 325-341; E. Stenius, Wittgenstein’s Tractatus, op. cit.; A. Maury, The Concepts of Sinn and Gegenstand in Wittgenstein’s Tractatus, Acta Philosophica Fennica , vol. 29, n. 4, 1977, parte II; M. B. Hintikka e J. Hintikka, Uma investigação sobre Wittgenstein, op. cit., cap. 2. Sébastien Gandon propõe no entanto uma interpretação mais próxima da de Copi, que ele interpreta como insistindo sobretudo na inerência da forma aos objetos. CF. S. Gandon, Logique et langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 65-66.
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sobre essa questão em 1929 mostram que Wittgenstein admitia propriedades e relações como objetos. Nos Notebooks , encontramos inúmeros trechos em que Wittgenstein diz explicitamente que “Relações, propriedades, etc, são também objetos ” (NB , p. 61). Por exemplo: Segue-se disso que poderíamos nos passar dos nomes? Certamente não. Os nomes são necessários para enunciar que esta coisa possui esta propriedade, etc. Eles ligam a forma proposicional a objetos completamente determinados (NB , p. 53).
Dentre os diversos trechos que podem ser invocados e que datam da volta a Cambridge em 1929, o mais marcante é a explicação do aforismo 2.01 para Desmond Lee em 1930-1931: 2.01 – “Um fato atômico é uma combinação de objetos (entidades, coisas)”. Objetos, etc., é empregado aqui para coisas tais como uma cor, um ponto no espaço visual, etc. [...] “Objetos” inclui também as relações; uma proposição não é duas coisas ligadas por uma relação. “Coisa” e “relação” são do mesmo tipo. Os objetos são vinculados uns aos outros, exatamente como os elos de uma corrente (WL, p. 120).
Essa última frase alude ao 2.03: “No estado de coisas, os objetos se concatenam, como os elos de uma corrente.” Poder-se-ia pensar que Wittgenstein teria mudado de posição duas vezes, abandonando o realismo dos Notebooks ao escrever o Tractatus , para depois voltar a ser realista em sua volta à filosofia em 1929, de modo que as afirmações dos Notebooks e os textos posteriores a 1929 seriam enganadores. Esse tipo de proposta nada tem de convincente. Em 1929, Wittgenstein escrevia, em Some Remarks on Logical Form:
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Poder-se-ia pensar – e eu mesmo pensava outrora – que um enunciado que exprime o grau de uma qualidade seria analisável em um produto lógico de enunciados quantitativos simples e em um enunciado suplementar que os completasse (SRLF , p. 32).
Sem entrar nos detalhes desse trecho, cabe reconhecer que WittWittgenstein ali enuncia claramente que uma propriedade – a saber, a “qualidade” da qual falam os “enunciados quantitativos simples” – entra na composição das proposições elementares. Além disso, ao dizer: “Eu mesmo pensava outrora”, Wittgenstein só pode estar se referindo ao Tractatus ! No interior do Tractatus , há vários trechos que se prestam a discussão. Só examinarei alguns. Em primeiro lugar, o 3.1432, no qual Copi se apoia 10: 3.1432 – Não: “O sinal complexo ‘ aRb’ diz que a mantém a relação R com b”, mas que “a ” mantenha uma certa relação com “b” diz que aRb.
Para Copi, esse trecho mostra que, para Wittgenstein, não há senão dois ingredientes no fato de que aRb, e ele sugere tornar isso patente escrevendo aRb do seguinte modo: a b. Mas a proposição elementar deve ter a mesma “multiplicidade” que aquilo que ela representa (4.04) e a situação aRb não é certamente determinada apenas pelos objetos a e b. É o que mostra o exemplo da percepção de um complexo tal como um cubo, do qual só foram desenhadas as arestas (o célebre cubo de Necker) e que podemos perceber de dois modos diferentes. Wittgenstein é claríssimo a esse respeito: “o que realmente vemos são dois fatos distintos” (5.5423). Deve haver portanto um terceiro elemento na proposição, que é determinado por R. 10 I. M. Copi, “Objects, Properties, and Relations in the Tractatus ”, op. cit., p. 155-156.
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Seja como for, nada proíbe à análise de terminar em três objetos a , R , b que se mantêm juntos como os elos de uma corrente (2.03). Por outro lado, outros trechos fornecem um apoio sem reserva para a tese realista, tais como 5.5261, onde Wittgenstein, ao usar a expressão “(∃ x ,φ)( φ x )”, admite como variáveis ligadas pelos quantificadores, que mantêm “relações designativas com o mundo, como na proposição não generalizada”, além das variáveis de indivíduos, tais como x , as de propriedades, tais como φ. Por outro lado, duas doutrinas fundamentais do Tractatus militam contra a abordagem nominalista. Em primeiro lugar, Wittgenstein opõe-se mais uma vez a Frege em 2.0121-2.0122. Para Frege, uma função distingue-se de um objeto pelo fato de que este é “saturado” e aquela é “insaturada”, o que significa que ela exige um objeto como argumento a fim de ser “saturada”. É o que Frege exprime ao escrever a função com uma lacuna: “F( )”11. Para Wittgenstein, “Não podemos pensar nenhum objeto fora de sua ligação com outros objetos” (2.0121); em termos fregianos, os objetos do Tractatus são todos “insaturados”. A identificação destes com indivíduos (saturados) é portanto impossível. Em segundo lugar, Wittgenstein assevera em 1.1 que “o mundo é a totalidade dos fatos” e em 1.11 que “o mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os fatos”. Como observa Maury, é estranhíssimo que os partidários da interpretação nominalista não observem que um nominalista que rejeita os universais não deveria no entanto ter simpatia particular pelos fatos12. Será que, como pensa Griffin13, a análise dos complexos em seus simples proíbe nomes tais como [ aRb] e, portanto, a possibilidade de que relações sejam objetos? Wittgenstein não via as coisas desse modo:
11 Cf. G. Frege, Lógica e filosofia da linguagem , op. cit., p. 85-86. 12 A. Maury, The Concepts of Sinn and Gegenstand in Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 96. 13 J. Griffin, Wittgenstein’s Logical Atomism , op. cit., p. 60.
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Minha dificuldade consiste certamente nisto: em todas as proposições que me ocorrem, nomes se apresentam, mas que devem desaparecer sob o efeito de uma análise ulterior. Sei que tal análise é possível, mas não estou em condições de levá-la a cabo. A despeito disso, aparentemente sei que, se a análise fosse levada a cabo, o resultado deveria ser uma proposição que ainda conteria nomes, relações, etc. (NB , p. 61)
Aliás, em 4.24, Wittgenstein diz escrever a proposição elementar “como função de nomes”, sob a forma: “ fx ”, “φ( x , y )”. O Tractatus é portanto “realista” no sentido que se confere a esse termo na querela dos universais. No entanto, cumpre precisar, com Hacker, que é o único sentido da palavra “realismo” que pode ser aplicado ao Tractatus : sobretudo, não se deve entender por aí que Wittgenstein teria ali exposto uma semântica “realista” no sentido em que se entende essa expressão no quadro do debate instaurado em torno da obra de Michael Dummett, acerca da questão do “realismo” na teoria da significação 14. A esse respeito, já se disse do Tractatus que ele contém uma concepção realista da semântica das condições de verdade. Citando como prova o aforismo 4.024, no qual Wittgenstein escreve que “Entender uma proposição significa saber o que é o caso se ela for verdadeira”, já se disse dele que ele adotava uma versão da tese da extensionalidade de Carnap 15. Essa 14 P. M. S. Hacker, Insight and Illusion, op. cit. , p. 65. 15 Em sua versão original, em Carnap, essa tese versa sobre os conceitos: em toda proposição que versa sobre um conceito, este pode ser representado por sua extensão, quer seja uma classe, quer uma relação. Cf. R. Carnap, Der Logische Aufbau der Welt , Berlin, Weltkreis Verlag, 1928, p. 57. A expressão “tese da extensionalidade” veio depois a designar a tese segundo a qual toda proposição é uma função de verdade de proposições elementares que são funções de verdade de si mesmas. Para a atribuição dessa tese a Wittgenstein, cf. D. Favrholdt, An Interpretation and Critique of Wittgenstein’s Tractatus , Copenhague, Munksgaard, 1967, p. 11. Para uma exposição do aspecto “extensional” do Tractatus , cf. P. Frascolla, Tractatus Logico-Philosophicus. Introduzione alla lettura , Roma Carocci, 2000, cap. 4.
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leitura “extensionalista” do Tractatus foi foi criticada de modo convincente por André Maury e, na sua esteira, por G. H. von Wright16, em um artigo aliás muito importante para o desenvolvimento das leituras “ontológicas” do Tractatus 17. Maury mostrou que a essência da proposição “dotada de sentido” é de poder ser verdadeira e de falsa, o que exprimimos, na esteira dos Notebooks , falando poder ser falsa, de “bipolaridade” da proposição. A própria noção de significação proposicional proposicio nal é portanto modal. O único trecho do Tractatus no no qual Wittgenstein oferece, de passagem, exemplos de “objetos” acerca dos quais se pode concluir, com base nos Notebooks , que se trata de “simples”, é o 2.0131: 2.0131 – [...] Não é preciso, por certo, que a mancha no campo visual seja vermelha, mas uma cor ela deve ter: tem à sua volta, por assim dizer, o espaço das cores. O som deve ter uma altura, altura, o objeto do tato, uma dureza, dureza, etc.
Nesse trecho, encontramos novamente propriedades: “cor”, “altura”, “dureza”, mas também objetos fenomenais como uma “mancha no espaço visual”, um “som”, um “objeto do tato”. Anscombe, que rejeita a ideia de que as propriedades possam ser objetos simples também criticou a ideia de que os particulares ou indivíduos possam ser russellianos18; na sua esteira, Griffin assimilou os “objetos” sense-data russellianos do Tractatus a a “pontos materiais” de Hertz19, ou seja, entidades bem mais teóricas do que fenomenais, uma vez que os pontos materiais Wit tgenstein ein’s’s Tractatus, 16 Cf. A. Maury Maury,, The Concepts of Sinn and Gegenstand in Wittgenst op. cit., parte 1; G. H. von Wright, “La logique modale et le Tractatus ”, ”, in Wittgenstein, Mauvezin, TER, 1986, p. 195-214. 17 Cf. R. Bradley, The Nature of All Being. A Study of Wittgenstein’s Modal Atomism, Oxford, Oxford University Press, 1992; L. Goddard e B. Judge, The Metaphysics of Wittgenstein’s Tractatus. Australasian Journal of Philosophy. Monograph Monogr aph Series , vol. 1, 1982. Wittgenstein’s’s Tractatus, op. cit., cap. 1. 18 G. E. M. Anscombe, An Introduction to Wittgenstein 19 J. Griffin, Wittgenstein’s Logical Atomism, op. cit. , p. 101.
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de Hertz não são nem mesmo minima sensibilia 20. É evidente que os objetos do Tractatus não podem ser sense-data . Já mostrei, na seção sobre a significação e o juízo, que Wittgenstein havia rejeitado a teoria do juízo de Russell e que isso o havia de certo modo forçado a conceber seus simples como possuindo sua forma, isto é, sua “possibilidade combinatória”. Os sense-data de Russell não possuíam tais formas. Por outro lado, Russell e Moore descreviam os sense-data como os “objetos” da percepção e não os objetos reais que são as mesas, cadeiras, etc., dos quais Russell dizia, como vimos, que cumpre dar uma “construção lógica”. Não há tal metafísica no Tractatus , onde não encontramos distinção entre conhecimento “direto” dos sense-data e e conhecimento “indireto” dos objetos físicos. Os objetos simples “cons“constituem a substância do mundo” (2.021) e, ao contrário dos sense-data , que são objetos efêmeros, são “fixos” e “subsistentes” (2.027-2.0271). Mas os objetos simples não são dados na experiência imediata? Mais uma vez, o texto do Tractatus não não nos ajuda em quase nada. Os paralelos que eu explicitei entre o princípio da redução ao conhecimento por familiaridade de Russell e a análise, em Wittgenstein, Wittgenst ein,, da proposição proposiçã o complexa em proposições proposiçõ es elementaelement ares, que consistem em um encadeamento de nomes que “estão por” objetos, militam antes em favor de uma resposta positiva 21: ambos procuravam saber o que deve me ser dado para que eu possa compreender a minha linguagem. Que os objetos devam me ser dados em minha experiência imediata não implica necessariamente, no entanto, que eles tenham uma existência subjetiva ou relativa ao sujeito, como os objetos dos quais falam as diversas formas de fenomenalismo.
20 Cf. H. Herz, Prinzipien der Mechanik, op. cit., cap. 1. 21 Pa Para ra outras análises análises que vão no mesmo mesmo sentido, cf. cf. M. B. Hintikka e J. Hintikka, Uma investigação sobre Wittgenstein, op. cit.; D. J. Hyder, The Mechanics of Meaning. Propositional Content and the Logical Space of Wittgenstein’s Tractatus, op. cit.; T. Lampert, Wittgenstein’s Phisikalismus: Die Sinnesdatenanalyse des Tractatus Logico-Philosophicus in ihrem historischen Kontext, op. cit
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Se Wittgenstein menciona ocasionalmente nos Notebooks os pontos materiais de Hertz (NB , p. 67), sem por isso confundi-los com seus objetos simples, ele não se priva de dizer: Como exemplo de simples, penso sempre nos pontos do campo visual. (Assim como são sempre as partes do campo visual que me vêm ao espírito como tipos de “objetos compostos”) (NB , p. 45).
Ele acrescentará mais tarde que lhe parece “perfeitamente possível que manchas de nosso campo visual sejam objetos simples, na medida em que não percebemos separadamente nenhum ponto dessas manchas” (NB , p. 64) – o exemplo que ele tem em vista nesse trecho é “a imagem visual das estrelas”. Do mesmo modo, após sua volta à filosofia, Wittgenstein não deixa lá muitas dúvidas. O texto contém uma discussão Algumas Observações sobre a Forma Lógica contém do problema da exclusão das cores que versa explicitamente sobre proposições elementares acerca de “toda mancha de cor em nosso campo de visão” (SRLF , p. 31). As Observações filosóficas abrem-se abrem-se com um enunciado surpreendente: “A linguagem fenomenológica, ou ‘linguagem primária’ como eu a chamei, não é mais o objetivo que persigo, já não a tomo como indispensável” ( PB , §1) Essa linguagem “fenomenológica” ou “primária” (a expressão encontra-se em Hertz) é constituída por proposições “que tratam do imediato” (PB , §11). Waismann Waismann escrevia em suas “T “Teses”: eses”: “As “As proposições proposi ções que tratam imediatamente da realidade são chamadas proposições elementares ” ( WWK , p. 2), acrescentando, algumas linhas abaixo: “O que as proposições elementares descrevem são os fenômenos” ( WWK , p. 249). Mais uma vez, é sempre possível pensar que Wittgenstein tenha mudado de posição e tenha rejeitado esse ponto de vista quando da redação do Tractatus ; o que não é muito convincente, pois isso implicaria que as observações que precedem fariam referência a uma hipotética posição que Wittgenstein teria sustentado entre a publicação do Tractatus e e 1929-30. Tal suposição não se funda em nenhuma evidência textual.
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Gostaria de acrescentar a isso três razões internas ao Tractatus para acreditar que os objetos devem ser aproximados dos objetos do conhecimento por familiaridade de Russell. Em primeiro lugar, pode-se “conhecer” (kennen) um objeto, o que só é possível se estes são fenomenais e não hertzianos (os “pontos materiais” de Hertz não são minima sensibilia ). Com efeito, em 2.0123, Wittgenstein diz: “Se eu conheço (kenne ) o objeto, conheço também o conjunto de suas possibilidades de ocorrência nos estados de coisas”. Quando ele se corresponde com C. K. Ogden acerca da tradução inglesa de sua obra, Wittgenstein precisa o sentido de seu emprego da palavra “kennen” dizendo “quero dizer apenas isso: eu o conheço, mas não estou na obrigação de saber o que quer que seja acerca dele”22; o que corresponde perfeitamente à definição do conhecimento por familiaridade por Russell, como o mostrou Malcolm23. Em segundo lugar, é decerto verdade que Wittgenstein descreve seus objetos como “fixos”, mas não é por oposição a Russell, pois a dimensão de variação não é temporal, mas lógica 24. Com efeito, não há para Wittgenstein “decurso do tempo” (6.3611) e a “existência” da qual ele fala é portanto “atemporal” 25; os objetos simples são, ao invés, concebidos como os constituintes a partir dos quais se pode conceber outros mundos possíveis: 2.022 – É óbvio que um mundo imaginário, por mais que difira do mundo real, deve ter algo – uma forma – em comum com ele. 2.03 – Essa forma fixa consiste precisamente nos objetos.
Deve-se portanto falar de uma dimensão de variação lógica, que não exclui de modo algum que os objetos sejam dados na experiência imediata. 22 23 24 25
L. Wittgenstein, Letters to C. K. Ogden, op. cit., p. 59. N. Malcolm, Nothing is Hidden, op. cit., p. 8-9. P. Frascolla, Tractatus Logico-Philosophicus. Introduzione alla lettura, op. cit. , p. 107. M. B. Hintikka e J. Hintikka, Uma investigação sobre Wittgenstein, op. cit., cap. 3, § 13.
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Em terceiro lugar, a identificação do mundo com “meu mundo” no 5.62 é impossível se os objetos que constituem a substância do mundo são concebidos como objetos físicos do tipo dos pontos materiais de Hertz. Com efeito, os aforismos 5.6, 5.62 e 5.63 enunciam: 5.6 – Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo. 5.62 – [...] Que o mundo seja meu mundo, é o que se mostra nisso: os limites da linguagem [...] significam os limites de meu mundo. 5.63 – Eu sou meu mundo. (O microcosmos).
Como o mundo, do qual os objetos simples formam a substância (2.021), poderia ele ser meu mundo se esses objetos fossem apenas objetos físicos e públicos ? Os objetos do Tractatus devem portanto ser-me pessoais, o que significa que eles me são dados na experiência, assim como os objetos do conhecimento por familiaridade de Russell26. Ocorre o mesmo com as observações sobre a morte ali pelo fim da obra. Se o mundo e a vida “são um só” (5.621), o mundo deixa portanto de existir quando da morte: 6.431 – Como também o mundo, com a morte, não se altera, mas acaba. 6.4311 – A morte não é um evento da vida. A morte não se vive.
Mais uma vez, essas observações só têm sentido se a substância do mundo é composta por objetos que me são dados. Com essas últimas observações, pode-se medir a importância do longo trabalho de exegese nessa seção e nas precedentes: uma compreensão dos mecanismos do Tractatus é essencial para a compreensão das observações sobre o mundo sub specie aeternitatis , que a interpretação de Anscombe e Griffin torna inteiramente opacas. 26 Ibid., cap. 3, especialmente §7.
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A OPERAÇÃO: LÓGICA E ARITMÉTICA
A
“SEMÂNTICA ” DE W ITTGENSTEIN É UMA COMBINATÓRIA 1. UMA proposição elementar só tem duas “possibilidades de verdade”, o acordo ou o desacordo com o mundo, o que depende de que ocorra ou não um estado de coisas. Para n proposições elementares, há 2n combinações possíveis (4.27). Podemos representar as “possibilidades de verdade” por um esquema como o seguinte: p
p
q
p
q
r
V F
V F V F
V V F F
V F V V F F V F
V V F V F V F F
V V V F V F F F
1
Por razões que Sébastien Gandon viu muito bem, não se pode falar de “semântica” em Wittgenstein no sentido em que se a compreende hoje em dia. Cf. S. Gandon, Logique et Langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 35 e segs. Tais simplificações são inevitáveis quando se considera a brevidade do presente comentário.
Há possibilidades de acordo ou desacordo entre uma proposição complexa e as possibilidades de verdade das n proposições elementares das quais ela é composta (4.42); para duas proposições elementares, haverá portanto 16 proposições complexas (elas são apresentadas em 5.101). Com base nessas combinações, pode-se determinar as funções de verdade e, portanto, as tabelas de verdade, que são uma das inovações técnicas do livro. Wittgenstein certamente não “inventou” as tabelas de verdade: pode-se fazê-las remontar aos estoicos2 e o próprio Wittgenstein reconhecia que a ideia já se encontrava em Frege3. Deve-se a ele, ao mesmo tempo (1921) que a Post4, a ideia de um procedimento de decisão; deverse-ia mesmo falar, no caso de Wittgenstein, de um “procedimento de construção”5. Sobretudo, deve-se a Wittgenstein a análise filosófica dos dois “casos extremos” das condições de verdade, que são as “tautologias” e as “contradições”. Estas são definidas, respectivamente, como verdadeiras ou como falsas “para todas as possibilidades de verdade das proposições elementares” (4.46). A noção de tautologia é uma das mais célebres da obra, uma vez que Wittgenstein explicita por meio dela a essência das verdades lógicas (6.1): 4.461 – A proposição mostra o que diz: a tautologia e a contradição, que não dizem nada. A tautologia não tem condições de verdade, pois é verdadeira incondicionalmente; e a contradição, sob nenhuma condição. Tautologia e contradição não têm sentido (sind sinnlos ).[...] 2 B. Mates, Stoic Logic , Los Angeles, University of California Press, 1961, p. 44. 3 G. Frege, “Begriffschrift , a formula language, modeled upon that of arithmetic, for pure thought”, in From Frege to Gödel – A Source Book in Mathematical Logic 1879-1931 , J. van Heijenoort org., Cambridge, Harvard University Press, 1967, p. 1-82; §5, p. 13-15. 4 E. Post, “Introduction to a general theory of elementary propositions”, in From Frege to Gödel – A Source Book… , op. cit . , p 264-283. 5 S. Gandon, Logique et langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 42.
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(Nada sei, p. ex., a respeito do tempo, quando sei que chove ou não chove.) 4.462 – Tautologia e contradição não são figurações da realidade. Não representam nenhuma situação possível. Pois aquela admite toda situação possível, esta não admite nenhuma . [...] 4. 463 – [...] A tautologia deixa à realidade todo o – infinito – espaço lógico; a contradição preenche todo o espaço lógico e não deixa nenhum ponto à realidade. Por isso, nenhuma delas pode, de maneira alguma, determinar a realidade.
As proposições da lógica são portanto tautologias e “não dizem nada” (4.461, 6.11). Essa concepção das verdades lógicas é hoje adotada universalmente. Ela será retomada naquela época, por exemplo, pelos membros do Círculo de Viena, em seu projeto de renovação do empirismo. Mas estes fizeram dela então um uso que já não respeita as intenções de Wittgenstein. Autores como Hans Hahn e Rudolf Carnap retomaram a tese de Frege e de Russell segundo a qual a matemática não é mais que um ramo da lógica 6. E a tese de Wittgenstein, segundo a qual as verdades lógicas são proposições analíticas (6.11), que nada dizem do mundo, permitialhes então eliminar o principal obstáculo para o empirismo puro de um John Stuart Mill, que sustentava que as verdades matemáticas não são mais que generalidades empíricas, isto é, proposições sintéticas a posteriori 7. Mas, como mostrarei adiante, Wittgenstein nunca partilhou a tese “logicista” de Frege e de Russell8. As combinações de possibilidades de verdade reaparecem (para 6 7 8
Cf., por exemplo, R. Carnap, Der logische Aufbau der Welt, Hamburgo, Felix Meiner, 1961, p. 149. Cf. H. Han, Empirismus, Logik, Mathematik , Francoforte, Suhrkamp, 1988, p. 57. Acerca dessa questão e das relações entre Carnap e Wittgenstein, cf. M. Marion, “Carnap, lecteur de Wittgenstein; Wittgenstein, lecteur de Carnap”, in F. Lepage, M. Paquette e F. Rivenc (org.), Carnap aujourd’hui , Montréal/ Paris, Bellarmin/Vrin, 2002, p. 87-113.
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citar alguns exemplos) na teoria da inferência, que abordarei um pouco adiante, e na definição das probabilidades9: 5.15 – Sejam V r o número dos fundamentos de verdade da proposição “r ”, V rs o número dos fundamentos de verdade da proposição “s ” que são também fundamentos de verdade de “ r ”; chamamos, nesse caso, a razão V rs: V r de medida da probabilidade que a proposição “r ” confere à proposição “s ”. 5.151 – Num esquema como o do nº 5.101 acima, seja V r o número dos “V” da proposição r ; V rs, o número dos “V” da proposição s que estão na mesma coluna que “V” da proposição r . Nesse caso, a proposição r confere à proposição s a probabilidade V rs:V r.
Em outros termos, seja um conjunto S de n proposições elementares (portanto, logicamente independentes), e r e s duas proposições que são funções de verdade dessas n proposições elementares – estas últimas são chamadas em 5.01 de “argumentos de verdade”. Os fundamentos de verdade (Wahrheitsgründe ) de r e de s são as combinações de valores de verdade de seus argumentos de verdade para as quais r e s tomam o valor verdadeiro. Seja ν o número de fundamentos de verdade de r e µ o número de fundamentos de verdade de s que são também fundamentos de verdade de r . Para ν < 0, µ ≤ ν e 0 ≤ ν ≤ 2n, µ/ν mede a probabilidade que a proposição r confere à proposição s . Para tomar um exemplo simples10, sejam p e q duas proposições elementares. Uma vez que “ p V q ” tem três possibilidades de combinação dos valores de verdade de p e de q que a tornam verdadeira, e uma única combinação em comum com “ p & q ”, a medida da probabilidade que a proposição “ p V q ” confere a “ p & q ” é 1/3.
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Para uma discussão detalhada desta última, cf. G. H. von Wright, “Wittgenstein et les probabilités”, in Wittgenstein, op. cit., p. 147-174. 10 G. E. M. Anscombe, An Introduction to the Tractatus, op. cit., p. 156.
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Essa definição situa-se na linhagem dos trabalhos de Bernouilli, de Laplace e de Bolzano, e frequentemente se censurou WittgenWittgenstein por ter-se apoiado sobre um “princípio de indiferença” disfarçado, com sua tese da independência lógicas das proposições elementares (5.134)11: 5.152 – Proposições que não tenham em comum nenhum argumento de verdade, chamamos de mutuamente independentes. Duas proposições elementares se conferem mutuamente a probabilidade 1/212.
Wittgenstein não escaparia portanto às críticas endereçadas à concepção “clássica” das probabilidades desenvolvidas pelos partidários da concepção frequencial e por J. M. Keynes 13. Para evitar esses escolhos, Friedrich Waismann irá propor em 1930 uma variante da teoria de Wittgenstein 14, na qual a escolha da métrica é em parte convencional e em parte vinculada às frequências empíricas, ao passo que para Wittgenstein o número dos “V” que aparecem na última coluna constituía a medida absoluta do âmbito (Spielraum) da proposição. A medida de um âmbito é assim definida:
11 Cf., por exemplo, M. Black, A Companion to Wittgenstein’s Tractatus , op. cit., p. 247-248. 12 Essa condição torna impossível toda predição com base no conhecimento do passado de probabilidade mais elevada do que na ausência de um tal conhecimento. Mas, para Wittgenstein, para quem a crença em um vínculo causal é uma “superstição”, “Os eventos do futuro, não podemos derivá-los dos presentes” (5.1361). 13 J. M. Keynes, A Treatise on Probability , Cambridge, Cambridge University Press, 1921. 14 F. Waismann, “Logische Analyse der Warscheinlichkeit”, Erkenntnis, vol. 1, 1930, p. 228-248.
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1 / Se p é um enunciado e µ( p) sua medida, então µ( p) é um número real, que nunca é negativo. 2 / Uma contradição tem medida 0. 3/ Se p e q são dois enunciados que são incompatíveis, então µ( p V q) = µ( p) + µ(q ).
No simbolismo de Waismann:
p probq = µ( p&q )/ µ(q ). A probabilidade de q dado p é portanto a medida do âmbito comum de p e q proporcionalmente à medida do âmbito de q . A probabilidade assim definida é, segundo a expressão de Waismann, a medida da proximidade lógica ( logische Nähe ) das duas proposições. Os dois limites são o grau 1, quando p implica q , e o grau 0, quando p contradiz q . Essa teoria é conforme à axiomatização, hoje standard, de Kolmogorov 15, e servirá de base à de Carnap16. A combinatória de Wittgenstein está intimamente vinculada à noção de operação. As relações “internas” ordenam ou engendram as “séries formais” (Formenreihe ) (4.1252), que estão no fundamento do simbolismo do Tractatus . Elas são definidas como segue (o grifo é meu): “A relação interna que ordena uma série equivale à operação por meio da qual um termo resulta de outro” (5.232). (Uma definição alternativa é oferecida em 4.1252.) As relações internas são portanto equivalentes a operações. Vimos na seção intitulada Linguagem, mundo e pensamento que uma operação é definida como o ato pelo qual uma proposição é engendrada a partir de outra proposição; mais precisamente como aquilo por meio do que uma forma de proposições é engendrada a partir de outra forma de proposições (5.23). Deve-se acrescentar a isso que, segundo Wittgenstein, 15 A. Kolmogorov, Grundbegriffe der Wahrscheinlichkeitsrechnung , Berlim, Springer, 1933. 16 Cf. R. Carnap, Logical Foundations of Probability , Chicago, University of Chicago Press, 1950, p. 294 e 299.
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“Só assim é possível a progressão de termo a termo em uma série formal” (5.252), uma vez que, contrariamente àquilo que ocorre com uma função, o resultado de uma aplicação da operação pode se tornar a base de uma nova aplicação da operação. Poderemos ver isso se examinarmos um exemplo como o da operação simbolizada por “O’ ξ” em 5.2521. O símbolo “O ” é a variável da operação como tal e, associado ao apóstrofo, indica o resultado da aplicação da operação, ao passo que o símbolo “ ξ” representa a base à qual a operação é aplicada. O símbolo “O’ ξ” representa portanto o resultado da aplicação da operação O a ξ. Se, por exemplo, escolhermos a como ponto de partida absoluto (o que significa que a não é o resultado de nenhuma aplicação anterior da operação), então O’a representa o resultado de uma primeira aplicação da operação. Esse resultado pode servir, por sua vez, de base para uma segunda aplicação da operação, cujo resultado será simbolizado “ O’O’a ”; o resultado de “três aplicações sucessivas de «O’ ξ» será «O’O’O’a »” (5.2521). É assim que a operação O engendra ou ordena por iteração a série formal:
a , O’a , O’O’a, O’O’O’a, O’O’O’O’a... Ainda segundo as concepções de Wittgenstein, a operação, que “mostra como se pode passar de uma forma de proposições para outra”, mostra-se a si mesma em uma “variável” (5.24). Essa “variável” é apresentada em 5.2522: [a , x , O’ x] onde “a ” representa o primeiro termo da série formal, “ x ” é um termo qualquer desta e “ O’x ” a forma que assumirá o sucessor imediato de “ x ” na série, isto é, o resultado de uma aplicação da operação O ao termo qualquer x 17. Indiquei, na seção sobre a 17 O uso que Wittgenstein faz aqui do conceito de “variável” não corresponde àquele de hoje em dia, pois é a expressão “[a , x , O’x ]” como um todo que ele considera como uma variável e não alguns de seus constituintes, tais como “a ” ou “ x ”.
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linguagem, mundo e pensamento, que a noção de operação estava no fundamento tanto da lógica quanto da aritmética. Essa “variável” desempenha aqui um papel fundamental, uma vez que permite estabelecer definições por indução, dentre as quais a forma geral da proposição (6) que, entre outras coisas, revela como a proposição pode “nos comunicar um novo sentido” (4.027). Esse simbolismo é muito importante e merece ser esclarecido. Como indiquei, para Wittgenstein as funções de verdade “são resultados de operações que têm as proposições elementares como bases” (5.234), essas operações (de verdade) sendo a negação, a adição lógica, a multiplicação lógica, etc. (5.2341) Wittgenstein introduz em 5.5 a operação N de negação conjunta, isto é, o conectivo cujo valor é o verdadeiro unicamente quando os dois membros são falsos. A operação N é frequentemente comparada à barra de Sheffer “|” da qual ela é uma generalização18: p
q
p|q
V F V F
V V F F
F F F V
O que Wittgenstein simboliza a seu modo, transformando a última coluna em uma linha: (FFFV) ( p, q ) (5.51). A operação N não opera apenas sobre pares de proposições, mas também sobre coleções de tamanho arbitrário, ou mesmo infinitas. Ele escreve também N( ) em 5.502; aqui, o símbolo “ ” designa o conjunto19 dos 18 H. M. Sheffer, “A Set of Five Independent Postulates for boolean Algebras, with Applications to Logical Constants”, Transactions of the American Mathematical Society , vol. 14, 1913, p. 481-488. Na verdade, a barra de Sheffer não é exatamente a mesma que a negação conjunta, e esta se deve a Jean Nicod, “A Reduction in the Number of Primitive Propositions of Logic”, Proceedings of the Cambridge Philosophical Society , vol. 19, 1917, p. 32-41. 19 Não pode se tratar, propriamente falando, de um conjunto tal como este
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valores que a variável ξ pode assumir e “N” a operação que consiste em negá-los conjuntamente. Portanto, segundo 5.51, se: = { p, q , r , s } Então N( ) = ¬ p & ¬q & ¬r & ¬s . A expressão “N( )” comparece em 6.01, onde Wittgenstein introduz a forma geral da operação, simbolizada por “Ω’ ( )”. Wittgenstein escreve ali:
Esse simbolismo um tanto árido é no entanto simples 20. À esquerda, Wittgenstein substitui o “Ω” em “Ω’ ( )” por “| , N( )|” o que dá “| , N( )|’ ( )”; trata-se apenas de uma expressão mais detalhada da forma da operação. À direita, encontramos apenas uma transformação, na qual o “( )”do “Ω’ ( )” é deslocado para o interior dos colchetes de “| , N( )|” para dar “ ”. Se tomamos, por sua vez, a expressão geral “ ”e nela substituímos o “( )” pela expressão particular “ ”, que designa o conjunto das proposições elementares, obtemos a forma geral da proposição, ou seja, uma definição indutiva que é uma das chaves do Tractatus , em 6:
é compreendido hoje em dia na teoria dos conjuntos, pois a concepção de Wittgenstein é mais construtiva e se aproxima conceitualmente do cálculo lambda. Podemos ignorar, no que segue, esse tipo de complicação. 20 Sobre essas questões, cf. G. Sundholm, “The General Form of the Operation in Wittgenstein’s Tractatus ”, Grazer philosophische Studien, vol. 42, 1992, p. 57-76.
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Vê-se portanto que a forma geral da proposição é apenas um caso particular da forma geral da operação e também, claro, que nos dois casos se trata de variantes da “variável” [ a , x , O’x ] do 5.2522. Essa forma geral da proposição deve portanto ser lida como segue: a partir da base , que é o conjunto das proposições elementares, obtemos, por aplicações sucessivas da operação N, todas as proposições complexas. Após um número qualquer de aplicações da operação N, obtém-se o conjunto , a partir do qual se obtém, por uma nova aplicação da operação N( ), etc. É o que Wittgenstein exprimia em 5.3: “Todas as proposições são resultados de operações de verdade com proposições elementares”, frase que devemos nos guardar, como mostrei, de interpretar de forma excessivamente estrita como uma “tese de extensionalidade”. Graças à forma geral da proposição 6, Wittgenstein completa o argumento que sustenta sua tese sobre a essência da proposição. Com efeito, tendo mostrado que as proposições elementares são figurações, Wittgenstein só usa dois conectivos na definição da operação N, a partir da qual, como ele demonstra, podemos obter todas as proposições complexas21. Basta portanto definir as operações de negação e de conjunção em termos de “sentido” e de “figuração”. A conjunção é um caso simples, trata-se simplesmente de juntar duas figurações. A negação como operação é definida em 5.2341: “A negação inverte o sentido (Sinn) da proposição.” Nos Notebooks , Wittgenstein dizia da proposição que ela é “bipolar”, isto é, que ela tem dois polos, o verdadeiro e o falso. A inversão do sentido consistiria portanto na mudança de polaridade, ao passo que a figuração permanece inalterada. Cabe acessoriamente mostrar como eliminar as “constantes” que não são definidas pela operação N, ou seja, o quantificador existencial “∃ x F x” , o quantificador universal “∀ x F x ” e a identidade “=”. Como o indicam as notas de curso tomadas por Moore ( M , p. 89 e
21 J. Hintikka, “An Anatomy of Wittgenstein’s Picture Theory”, in Ludwig Wittgenstein: Half-Truths and One-and-a-Half-Truth , Dordrecht, Kluwer, 1996, p. 21-54, p. 38-41.
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segs.) e uma observação feita a von Wright em 1939 22, os quantificadores são considerados equivalentes a conjunções ou disjunções finitas ou infinitas23: ∀ x F( x ) ≡ F(a ) & F(b) & F(c ) &... ∃ x F( x ) ≡ F(a ) V F(b) V F(c ) V...
Essa leitura dos quantificadores ajusta-se perfeitamente à da operação N em 5.51. Em compensação, Wittgenstein vincula a essência da generalidade à variável, e não aos quantificadores (5.521)24. Nos Principia Mathematica , a identidade é definida em *13.01 de acordo com a identidade dos indiscerníveis de Leibniz, o que significa que x = y se e somente se x e y satisfazem exatamente as mesmas funções (predicativas):
x = y ≡ ∀F(F( x )→F( y )). Para Wittgenstein, é perfeitamente possível que dois objetos distintos partilhem as mesmas propriedades (5.5302). E mais: “dizer de duas coisas que elas são idênticas é um contrassenso e dizer de uma coisa que ela é idêntica a si mesma é não dizer rigorosamente nada” (5.5303). Wittgenstein propõe portanto eliminar o sinal de igualdade, que ele não considera como um “constituinte essencial da ideografia” (5.533). Um exemplo extraído de 5.532 bastará para ver como ele procede. O enunciado “Há dois objetos que têm a propriedade F” é normalmente traduzido pela fórmula: ∃ x ∃ y (F( x ) & F( y ) & ( x ≠ y )).
22 G. H. von Wright, Wittgenstein, op. cit., p. 162, n. 23 Segundo Ramsey, trata-se aí de uma “inovação de primeira importância”. F. P. Ramsey, The Foundations of Mathematics, op. cit. , p.7. 24 M. Black, A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., p. 282.
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Wittgenstein a reescreve: ∃ x,y F( x , y ).
Essa fórmula será verdadeira se e somente se F( x , y ) for verdadeiro para uma substituição de x e para uma substituição diferente de y . A eliminação da identidade está portanto vinculada a uma convenção para a interpretação dos quantificadores : a coincidência dos valores de diferentes variáveis fica excluída. É o que Jaako Hintikka chamou de interpretação “exclusiva” das variáveis; ele também mostrou que se pode traduzir desse modo todas as proposições do cálculo de predicados25. O simbolismo do Tractatus não vai sem dificuldades técnicas. Assim, por exemplo, Robert Fogelin mostrou que a notação de Wittgenstein não permite obter os enunciados que exprimem uma dependência entre quantificadores de um tipo tão simples, mas tão fundamental quanto: ∀ x ∃ y F xy ;
Peter Geach e Scott Soames propuseram ambos modificações para a notação do Tractatus que aumentam sua capacidade de expressão, mas não é certo que essas modificações respeitem a letra dessa notação26. Por outro lado, não se deve esquecer que, para Wittgenstein, uma vez que as constantes lógicas não “estão por” coisa alguma (4.0312), as verdades da lógica devem ser determinadas “a partir apenas do símbolo” ( am Symbol allein). Wittgenstein pa-
25 J. Hintikka, “Identity, Variables and Impredicative Definitions”, Journal of Symbolic Logic , vol. 21, 1956, p. 225-245. 26 R. Fogelin, Wittgenstein, op. cit., p. 78-83; P. T. Geach, “Wittgenstein’s Operator N”, Analysis , vol. 41, 1981, p. 168-171; S. Soames, “Generality, Truth Functions, and Expressive Capacity in the Tractatus ”, Philosophical Review , vol. 92, 1983, p. 573-589.
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rece portanto reclamar implicitamente um procedimento de decisão para o cálculo de predicados27: 5.551 – Nosso princípio básico é que toda questão que se possa decidir por meio da lógica deve poderse decidir de imediato. [...] 6.113 – É a marca característica particular das proposições lógicas que sua verdade se possa reconhecer no símbolo tão-somente, e esse fato contém em si toda a filosofia da lógica. Assim, é também um dos fatos mais importantes que a verdade ou falsidade das proposições não lógicas não possa ser reconhecida na proposição tão-somente. 6.126 – Pode-se calcular se uma proposição pertence à lógica calculando-se as propriedades lógicas do símbolo. [...]
Infelizmente, a operação N e o simbolismo do Tractatus não não podem cumprir essa tarefa, mesmo quando corrigidos por Geach ou Soames28. Por outro lado, a concepção da lógica de Wittgenstein difere radicalmente da de Frege e de Russell. Estes concebiam a lógica no modelo de uma teoria axiomática, com termos de base (variáveis, constantes) e regras de boa formação dos enunciados, que formam uma linguagem, à qual se acrescentam axiomas que definem o uso dos conectivos lógicos e uma regra regra de inferência, o Modus Ponens . Para Frege, a lógica é a ciência do verdadeiro. Wittgenstein opõe-se a essa concepção, pois, em consonância com a tradição, ele conside-
27 O que vários comenta comentadores dores negam, no entanto; cf. P. P. M. S. Hacker, Hacker, Insight and Illusion, op. cit., p. 55. 28 Alonso Church irá dar em 1936 1936 um resultado de indecidibilidade indecidibilidade fundamental em “A Note on the Entscheidungsproblem”, Journal of Symbolic Logic , vol. 1, 1936, 40-41, “correção”, ibid., p. 101-102. Deve-se no entanto tomar o cuidado de não atribuir a Wittgenstein a noção de “completude” “completude” que possuímos hoje.
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ra a lógica como teoria da inferência (6.1224). Ele rejeita portanto a ideia de que haja axiomas em lógica: “Todas as proposições da lógicas têm os mesmos direitos. Não há, entre elas, o que seja essencialmente lei básica ou proposição derivada” (6.127), e ele ataca um aspecto crucial da concepção axiomática, a saber, a evidência como único critério de reconhecimento da verdade dos axiomas: “é notável que um pensador tão exato quanto Frege tenha recorrido ao grau de evidência como critério da proposição lógica” (6.1271). Já mostrei que, para Wittgenstein, as constantes lógicas não “estão por” coisa alguma (4.0312); muito simplesmente, “não há ‘objetos lógicos’, ‘constantes lógicas’ (no sentido de Frege e Russell)” (5.4) 29. Os sinais para as operações de verdade, que são capturadas pelas tabelas de verdade, “&”, “V”, “¬”, etc., não são portanto senão “pontuações” (5.4611). Nos fragmentos das Dictées de Wittgenstein intitul ados “A “A lógica de Russell” e “A “A inà Waismann Waismann et pour pou r Schlick Schli ck intitulados ferência”, Wittgenstein apresenta uma concepção da lógica segundo a qual “os axiomas devem ser hipóteses” ( D , p. 96) e segundo a qual “em uma inferência, nunca se trata da verdade ou da falsidade dos axiomas, mas, pelo contrário, os axiomas devem ser ser supostos supostos ” (D , p. 106). Todos esses elementos mostram que a concepção da lógica de Wittgenstein Wittgenste in na verdade está muito próxima, como o havia visto G.-G. Granger30, da de G. Gentzen, isto é dos sistemas de dedução natural, onde os conectivos lógicos são definidos em termos de atos de prova 31. Wittgenstein Wittgenst ein também também atacava, em 5.132, 5.132, as regras regras de inferência: inferência: “‘Leis da inferência’, às quais – como em Frege e Russell – cumpra
29 Sobre a noção de constante constante lógica, cf. M. M. Bourdeau, Bourdeau, “La nature des des constantes logiques dans le Tractatus ”, ”, Dialogue , vol. 32, 1993, p. 703-719. 30 G.-G. Granger, “Wittgenstein et la métalangue”, in Invitation à la lecture de Wittgenstein, Aix-en-Provence, Alinéa, 1990 , p. 159-171 ; p. 163.
Infelizmente, sustentei essa aproximação sem conhecer o texto de Granger em M. Marion, “Qu’est-ce que l’inférence? Une relecture du Tractatus logico-philosophicus ”, ”, op. cit. 31 G. Gentzen, Recherches sur la déduction logique , Paris PUF, 1955.
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justificar as inferências, não têm sentido, e seriam supérfluas.” O que ele critica aqui, não são propriamente falando as regras de inferência, mas antes a mistura linguagem objeto/metalinguagem que encontramos na concepção axiomática: para explicar a passagem de um enunciado para outro em uma prova, devemos inscrever em alguma parte da folha uma indicação da regra de inferência em conformidade com a qual essa passagem foi efetuada. Essas inscrições estão no limbo, uma vez que a metalinguagem não é formalizada. No Tractatus , a distinção dizer/mostrar permite evitar a postulação de uma metalinguagem. (Notar-se-á, por outro lado, que a distinção linguagem objeto/metalinguagem era desconhecida na época em que Wittgenstein escreveu seu livro: ela aparece pela primeira vez na introdução redigida por Russell! 32) Para Wittgenstein, a inferência deve ser literalmente feita diante de nossos olhos – a relação interna entre as proposições mostra-se – e não há necessidade de recorrer para tanto a um enunciado da regra de que teríamos de seguir mentalmente o rastro. É a concepção da inferência dos Prin que é visada. Segundo Russell, “uma proposição cipia Mathematica que ‘p’ é afirmada, e uma proposição ‘ p p p implica q ’ também, e daí se segue que a proposição ‘q ’ é afirmada.” Ele verte isso simbolicamente numa mistura linguagem objeto/metalinguagem que lhe é própria, dizendo que somos justificados por “ ” e por “ ” a escrever “ ”, ao que ele acrescenta que é preferível escrever “ ”33. O sinal de asserção asserção “ ”, que Russe Russellll retoma retoma aqui de de Frege Frege,, é, para para WittWittWittgenstein, “logicamente desprovido de qualquer significado; apenas indica, no caso de Fr Frege ege (e Russell), que esses autores tomam como verdadeiras as proposições por ele assinaladas” (4.442). Gentzen mostrou como era possível formalizar a lógica sem postular verdades lógicas, isto é, tão somente pela especificação das regras de inferência. Apenas estas são consideradas primitivas, e o reconhecimento de enunciados como sendo logicamente verdadei-
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B. Russell, “Introdução”, in Tractatus, op. cit., p. 127-128. B. Russell, Principia Mathematica , op. cit., volume 1, p. 8-9.
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ros já não ocupa uma posição central. Wittgenstein também havia visto muito claramente que, segundo sua concepção, o conjunto das verdades lógicas não é mais que um subproduto da adoção das regras de inferência: 6.1221 – Se duas proposições “ p” e “q ”, p. ex., na ligação “ ” resultam numa tautologia, fica claro que q se segue de p. Que “q ” se siga de “ ”, p. ex., vemos nessas próprias proposições, mas podemos também mostrá-lo assim: ligando-as em “ ” e mostrando então que isso é uma tautologia. 6.1223 – Agora fica claro por que frequentemente nos sentimos como se a nós coubesse “ postular ” as “verdades lógicas”: com efeito, podemos postulá-las na exata medida em que podemos postular uma notação satisfatória. 6.1224 – Também fica claro agora por que a lógica foi chamada a teoria das formas e da inferência.34
Eis por que devemos nos guardar, quando Wittgenstein caracteriza as verdades lógicas como tautologias (6.1) e estas como “analíticas” (6.11), de ver nisso uma concepção das verdades analíticas, eternas ou “válidas a priori ”, análoga às de Frege e de Russell, derivadas da concepção axiomática da lógica que lhes é própria. Além disso, as Dictées de Wittgenstein à Waismann et pour Schlick contêm uma explicação por parte de Wittgenstein de sua descrição das tautologias como sendo “incondicionalmente verdadeiras” (4.461) que exclui que se as conceba como formando uma classe de “verdades eternas” ou “analíticas”. Não são proposições “autênticas” ( D , p. 101 e 108). Se a inferência lógica possui tais elementos “dinâmicos”, a ontologia dos resultados dos atos de inferência permanece “estática”. A
34 Sobre a pertinência da teoria do “subproduto” de Wittgenstein, cf. I. Hacking, “What is Logic?”, Jounal of Philosophy , vol. 76, 1979, p. 285-319; p. 288-289.
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definição da consequência lógica que Wittgenstein oferece em 5.125.122 é um tanto vizinha daquela da teoria dos modelos: 5.12 – Em particular, a verdade de uma proposição “p” segue-se da verdade de uma outra “q ” se todos os fundamentos de verdade da segunda são fundamentos da primeira. 5.121 – Os fundamentos de verdade de uma estão contidos nos da outra: p segue-se de q .
Esse esboço de definição é prefigurada pela de Bolzano e se situa na linhagem das definições posteriores de Carnap 35 e de Tarski, esta última afirmando que uma proposição X “se segue logicamente” de uma classe K de proposições “se e somente se todo modelo da classe K é também um modelo da proposição X ”36. A sequencia não deixa de lembrar Leibniz: 5.122 – Se p se segue de q , o sentido de “ p” está contido no sentido de “q ”. 5.123 – Se um Deus cria um mundo em que certas proposições são verdadeiras, com isso já está também criando um mundo em que todas as suas consequências procedem. [...]
Em 6.02, Wittgenstein usa sua noção de operação a fim de completar outro argumento seu, na contramão dos Principia Mathematica e do “logicismo” como programa para os fundamentos da matemática. Este último tem sua origem nos trabalhos de Frege, que lançou suas bases desde a Conceitografia de 187937. Esse livro contém algumas inovações fundamentais na história da lógica, 35 Cf. R. Carnap, Logische Syntax der Sprache , Viena, Springer, 1934, p. 88 e segs. 36 A. Tarski, “Sobre o conceito de consequência lógica ”, in A concepção semântica da verdade , C.A. Mortari e L.H.A. Dutra (orgs.), São Paulo, Unesp, 2007, p. 235-246; p. 243 . 37 G. Frege, Begriffschrift, op. cit.
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a saber, a substituição da distinção sujeito/predicado pela distinção função/argumento, que permite introduzir o instrumental da teoria das funções na lógica, a invenção dos quantificadores e a introdução da ideia de “sistema formal”. Esta última ideia é muito importante: Frege concebe a lógica pelo modelo da axiomática, como acabo de indicar. Desde a Conceitografia , Frege propõe desenvolver um sistema de lógica formal a partir do qual poderemos deduzir todos os teoremas da teoria elementar dos números. Isso é feito em duas etapas. Em primeiro lugar, trata-se de desenvolver um sistema de axiomas para os conectivos e os quantificadores. São os sistemas cuja expressão completa será fornecida por Frege em seu Grundgesetze der Arithmetik (1892-1902) e por Whitehead e Russell nos Principia Mathematica (1910-1913). Trata-se, em seguida, de tomar uma teoria axiomática da aritmética, tal como a aritmética de Peano (1881), e de mostrar que se pode dar uma interpretação de seus conceitos de base (e portanto de seus axiomas) no sistema de lógica formal. Cabe depois mostrar que a todo teorema da aritmética corresponde um teorema no interior do sistema formal e vice versa. Seria assim efetuada uma redução da aritmética à lógica. Essa redução possui algumas consequências filosóficas dignas de interesse. Ela mostra, entre outras coisas, que a aritmética é tão “analítica” quanto a lógica e não “sintética a priori ”; podemos portanto nos passar dessa noção tipicamente filosófica – pois que no fundo perfeitamente vazia – que é a intuição a priori kantiana. Da forma mais breve possível, tal é a essência do programa “logicista”. Wittgenstein discordava dessa abordagem e suas críticas são inúmeras. Elas parecem provir na maior parte de sua rejeição da noção de “classe”, essencial para os sistemas de Frege e de Russell (não obstante a no-class theory dos Principia Mathematica ). Com efeito, estes definiam, por exemplo, os números naturais com base nesse modelo: o número dois é a classe de todas as classes de dois membros. O sistema dos Grundgesetze der Arithmetik era no entanto falho, pois continha, além do cálculo de predicados, axiomas que permitiam a introdução da classe:
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isto é, da classe de todas as classes x que não são membros de si mesmas. (A classe dos cavalos, por exemplo, não é um cavalo e, portanto, pertence a R). É a fonte do paradoxo de Russell: essa classe R seria ela por sua vez membro de si mesma ou não? Ela só é membro de si mesma se ela não é membro de si mesma, e se ela não é membro de si mesma, então ela é membro de si mesma. Russell havia desenvolvido sua teoria dos tipos com vistas a resolver esse problema e levar a cabo o projeto logicista de Frege. Para WittgenWittgenstein, a teoria dos tipos não funciona, como vimos: o erro de Russell “revela-se no fato de ter precisado falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras notacionais” (3.331). Por outro lado, ele acredita poder resolver do seguinte modo o paradoxo de Russell (mas ele só o faz em sua versão “funcional”), evitando o recurso à teoria dos tipos: “Uma função não pode ser seu próprio argumento, porque o sinal de função já contém o protótipo ( Urbild ) de seu argumento e ele não pode conter a si próprio” (3.333). Em suma, não pode haver, para uma função proposicional F( x ), a proposição F(F( x )), na qual a função se tomaria como seu próprio argumento, pois F( x ) é da forma φ( x ) e F(F( x )) é da forma ψ(φ( x )). Wittgenstein fará diversas críticas mais pontuais, que não posso discutir em detalhe, pois elas exigem um conhecimento mais aprofundado da lógica matemática. Retomando uma crítica de Poincaré, ele acusa Frege e Russell, em 4.1273, de terem dado uma definição circular da noção de relação “ancestral”; essa noção é fundamental para a redução logicista da sequência dos números naturais 38. Ele rejeita o axioma do infinito dos Principia Mathematica , que enuncia 38 Essa crítica irá forçar Russell a acrescentar um apêndice à segunda edição dos Principia Mathematica, op. cit. , p. 650-658. Cf. G. E. M. Anscombe, Introduction to the Tractatus, op. cit., p. 128: acerca dessas questões, cf. J. Sackur, Opération et description. La critique par Wittgenstein des théories de la proposition de Russell , tese de doutorado, Université de Paris I – Panthéon – Sorbonne, 2000, cap. 3.
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que há uma infinidade de objetos (indivíduos) de nível 1 na teoria dos tipos39, porque se trata de uma tentativa de dizer o que não se poderia senão mostrar pelo uso de uma “infinidade de nomes com significados diferentes” (5.535). O axioma da redutibilidade enuncia que a toda função de ordem superior corresponde exatamente uma função de primeira ordem, que é satisfeita por exatamente os mesmos argumentos. Para Wittgenstein, esse axioma não é lógico, mas empírico (6.1232-6.1233). Essa objeção revelou-se decisiva. Todos os problemas provêm, segundo Wittgenstein, da própria noção de classe, da qual precisamos nos livrar. Para fazê-lo, basta, como indiquei na seção sobre o campo de problemas , oferecer uma “redução” da aritmética que não recorra à noção de classe, o que Wittgenstein faz ao dar, em 6.02, uma definição da sequência dos números naturais em termos de operações. O número dois, por exemplo, é definido do modo mais geral possível em termos da dupla aplicação sucessiva de qualquer operação a qualquer base. Essa definição, que não posso apresentar aqui, foi claramente exposta por Lello Frascolla 40. Essa definição justifica a denominação, em 6.021, de “expoentes” de uma operação. Na verdade, a definição dos números naturais por Wittgenstein prefigura a definição no cálculo λ fornecida por Alonzo Church em 1932 41. Wittgenstein propõe em seguida uma definição indutiva dos números naturais, com base no modelo da “variável” de 5.2522: [0, ξ, ξ+1]. Não tendo recorrido à noção de classe, ele pode portanto anun-
39 A. N. Whitehead e B. Russell, Principia Mathematica, op. cit., vol. 2, p. 183. 40 P. Frascolla, Wittgenstein’s Philosophy of Mathematics , Londres, Routledge, 1994, cap. 1; P. Frascolla, Tractatus Logico-Philosophicus. Introduzione alla lettura, op. cit., §5.4; M. Marion, “Operations and Numbers in the Tractatus Logico-Philosophicus ”, op. cit. 41 A. Church, “A Set of Postulates for the Foundations of Logic”, Annals of Mathematics , vol. 33, 1932, p. 346-366 e vol 34, 1933, p. 839-864.
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ciar em 6.031: “A teoria das classes é, na matemática, inteiramente supérflua”. Wittgenstein completa sua “redução” mostrando, em 6.421, como provar, em sua teoria das operações, teoremas aritméticos como 2X2=4 42. Contrariamente ao que dizia Max Black, essa prova não é “excêntrica”43. Notar-se-á, no entanto, que o argumento de Wittgenstein só funciona se houver “redução” das verdades aritméticas às equações na “teoria” das operações. Lello Frascolla provou que esta só captura um fragmento do cálculo equacional 44. Essa concepção “equacional” da matemática é de um alcance fundacional limitado; Russell e Ramsey farão esta censura a Wittgenstein 45. Uma das consequências da abordagem construtivista de WittgenWittgenstein é sua rejeição da ideia de que possa haver estritamente falando “enunciados” ou “proposições” na matemática. As proposições da matemática não exprimem, portanto, nenhum pensamento (6.21), são “pseudoproposições” (Scheinsätze ) (6.2). A matemática só é composta de algoritmos46, um pouco como um ábaco extremamente complexo: 6.211 – Na vida a proposição matemática nunca é aquilo de que precisamos, mas utilizamos a proposição matemática apenas para inferir, de proposições que não pertencem à matemática, outras que igualmente não pertencem à matemática. [...] 42 P. Frascolla, Wittgenstein’s Philosophy of Mathematics, op. cit., p. 15-17. 43 M. Black, A Companion to Wittgenstein’s Tractatus , op. cit., p. 343. Cf. G. E. M. Anscombe, An Introduction to the Tractatus , op. cit., p. 124-126, para uma crítica análoga. 44 P. Frascolla, “The Tractatus System of Arithmetic”, Synthese , vol. 112, 1997, p. 353-378. Cabe notar, além disso, que o cálculo equacional foi inventado por Louis Goodstein, que foi aluno de Wittgenstein nos anos 1930. Goodstein nunca escondeu ter encontrado suas ideias fundamentais em Wittgenstein. Cf., por exemplo, R. L. Goodstein, Constructive Formalism , Leicester, University College, 1951. 45 B. Russell, “Introdução”, op. cit., p. 126; F. P. Ramsey, The Foundations of Mathematics, op. cit., p.13. 46 O mesmo vale para a probabilidade, que é apenas um cálculo, e não descreve nenhum “objeto” (5.1511).
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A matemática é portanto constituída por equações, as provas procedendo pelo método de substituição (6.2341-6.24) e o “essencial, no caso da equação, é que ela não é necessária para mostrar que as duas expressões ligadas pelo sinal de igualdade têm o mesmo significado (Bedeutung ), já que isso se pode ver (ersehen) nessas próprias duas expressões” (6.232); “sua correção é algo a ser visto (einzusehen), sem que deva o que exprimem ser comparado com os fatos quanto à sua correção” (6.2321). Essa visão filosófica da matemática opõe-se à de um Frege, para quem os enunciados aritméticos versam sobre objetos abstratos do mesmo modo que enunciados sobre cadeiras e mesas versam sobre objetos concretos. Cabe no entanto notar que, mais uma vez, WittWittgenstein fala de “ver” a relação (interna) entre os termos ligados pelo sinal de identidade (matemática, e não lógica 47). A prova na matemática, como a inferência lógica, é justificada por uma relação interna, que se mostra e que nós vemos . Mas, mais uma vez, Wittgenstein não recorre a um “sujeito pensante”, pois ele recusa todo papel à intuição (6.233), para conservar apenas o “processo de calcular” (6.2331).
47 Como viu muito bem Sébastien Gandon, para Wittgenstein, os logicistas estão equivocados ao acreditarem que a quantificação pode “dar conta identicamente tanto da estrutura das proposições numéricas ordinárias quanto das equações aritméticas” (Logique et langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 224).
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O MUNDO SUB SPECIE AETERNITATIS
A
S ÚLTIMAS SEÇÕES DO T RACTATUS TÊM POR OBJETIVO MOSTRAR QUE
as proposições da lógica são vazias de sentido ( sinnlos ) (6.16.13), que as proposições matemáticas não são proposições (6.2-6.241), e que as proposições das ciências da natureza são de dois tipos: proposições dotadas de sentido ( sinnvoll ) e “princípios” que não são tautologias (6.3-6.3751), e que as proposições da ética e da metafísica são unsinnig , contrassensos (6.4-6.54). Os dois primeiros casos foram discutidos na seção precedente, e só me falta examinar os dois seguintes. A ciência é o sistema ideal de todas as proposições dotadas de sentido que são verdadeiras1. Obviamente, esse sistema é composto de abreviações, que são as leis da natureza ou hipóteses, tais como a “lei da indução” (6.31) ou as leis causais (6.321). Essas leis são também proposições dotadas de sentido, pois são funções de verdade de proposições elementares; os quantificadores sendo redutíveis a conjunções ou disjunções. No entanto, as leis causais são “leis com a
1
Sobre a filosofia da ciência do Tractatus , cf. B. F. McGuinness, “Philosophy of Science in the Tractatus ”, in Wittgenstein et le problème d’une philosophie des sciences , Paris, CNRS, 1970, p. 9-18.
forma da causalidade” (6.321) e a ciência contém além disso “princípios” como o princípio de razão suficiente ( Satz vom Grunde ), que não são proposições dotadas de sentido, mas “iluminações a priori sobre a conformação possível das proposições da ciência” (6.34). Esses “princípios” portanto não dizem nada, mas são adotados a priori . Segundo a analogia de Wittgenstein em 6.341, a decisão de adotar tal ou qual princípio para nossa descrição do mundo corresponde à escolha de uma “rede de malhas triangulares ou hexagonais”. Poderíamos falar aqui da parte convencional das teorias científicas. Uma vez adotados esses princípios, cabe descobrir as leis particulares da forma escolhida, que se adaptarão aos fatos. Segundo Wittgenstein, 6.53 – O método da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer, portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação de que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto.
O erro cometido pelo metafísico seria de não conferir sempre uma significação às suas palavras. Mas em que isso consiste? Em 5.4733, Wittgenstein havia precisado o que ele entende com isso: 5.4733 – Frege diz: toda proposição legitimamente constituída deve ter sentido; e eu digo: toda proposição possível é legitimamente constituída, e se não tem sentido, isso se deve apenas a não termos atribuído significado a algumas de suas partes constituintes. (Ainda que acreditemos tê-lo feito.) Assim, “Sócrates é idêntico” não diz nada porque não atribuímos nenhum significado à palavra “idên-
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tico” como adjetivo. Pois, quando ela intervém como sinal de igualdade, simboliza de uma maneira inteiramente outra – a relação designativa é outra – e, portanto, também o símbolo é inteiramente diferente nos dois casos; em comum, os dois símbolos só têm, por acaso, o sinal.
Cabe lembrar que, para Wittgenstein, a linguagem mascara a forma lógica (4.002). Mesmo se somos capazes de falar uma língua, não estamos protegidos de todo tipo de ilusão e de confusão (4.0015) e é assim que nasce o tipo de confusão que caracteriza a filosofia (3.324); a clareza irá provir do uso de uma linguagem simbólica “que obedeça à gramática lógica – à sintaxe lógica” (3.325). O erro do metafísico é o de não respeitar a sintaxe lógica . A linguagem que eu entendo (5.62), eu a entendo porque posso sempre analisar suas proposições em proposições elementares que conterão sinais simples em relação com objetos de minha experiência imediata. O erro do metafísico não é portanto o de usar no interior de uma proposição um nome que não denotaria nada que possa ser encontrado no círculo de minha experiência, pois “toda proposição possível é legitimamente construída”. Uma proposição é um contrassenso (unsinnig ) na medida em que um de seus constituintes não simboliza, porque a sintaxe lógica não foi respeitada (como é o caso com “Sócrates é idêntico”). Em outubro de 1916, Wittgenstein escrevia em seus Notebooks : No modo de ver comum, consideramos os objetos por assim dizer nos colocando em meio a eles; no modo de ver sub specie aeternitatis , nós os consideramos do exterior (NB , p. 83).
Essa observação encontra um eco em 6.45: “A visão ( Anschauung ) do mundo sub specie aeterni é a sua visão como totalidade – limitada”. A visão sub specie aeternitatis de uma coisa (a obra de arte, o mundo, a vida) é portanto uma visão externa dessa coisa como um todo limitado. As últimas observações do Tractatus são
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tributárias de tal visão, e versam sobre o “sujeito” metafísico e o solipsismo, a ética, a felicidade, Deus, a morte e o “místico”. Pelo seu lado sugestivo, estão na origem da popularidade do Tractatus junto aos filósofos da tradição existencialista, mas não são, propriamente falando, senão contrassensos, pois não respeitam a sintaxe lógica. As observações sobre a morte (6.431-6.4311), já citadas, nos oferecem uma outra razão para ver a impossibilidade de um tal discurso. Se a determinação da “boa vida” – a expressão “ das gute Leben” deve ser tomada em seu sentido socrático – consiste na possibilidade de ver a vida como um todo limitado, então isso simplesmente não é possível, pois a morte “não é um evento da vida. A morte não se vive.” (6.4311). Um “sujeito” não pode portanto nunca se colocar sub specie aeternitatis a fim de determinar a conduta de sua vida, de onde a impossibilidade de uma ética substancial. Mas de qual “sujeito” falamos? Não é inútil ver como a noção de “sujeito metafísico” (5.641), que desempenha um papel de articulação entre a análise da proposição e as considerações éticas, se vincula à teoria do juízo apresentada na terceira seção. A alma é simples, pois “uma alma composta não seria mais uma alma” (5.5421). No entanto, quando “A crê que p”, não se trata de uma relação múltipla entre um sujeito simples e os objetos que formam um fato, mas de uma relação entre dois fatos compostos de objetos, o que é expresso por “ ‘p’diz p”. Nesse caso, a alma seria composta, e já não seria uma alma. Esse argumento mostra que, na verdade, “a alma – o sujeito, etc. -, tal como entendida na psicologia superficial de hoje, é uma não-coisa (Unding )” (5.5421). Haveria portanto dois conceitos distintos: o “sujeito” da psicologia, que é um composto de todos os pensamentos, que são eles próprios compostos, e um “eu filosófico” ou “sujeito metafísico”, que é simples e não deve, por conseguinte, ser identificado ao “sujeito” da psicologia – o que vem expressamente dito em 5.6412. Essa distinção é retomada em 6.423, onde WittWitt2
Sobre essas questões, não há nenhum consenso entre os comentadores. Cf. G. J. Lokhorst, “Wittgenstein on the Structure of the Soul: A New Interpretation of Tractatus 5.5421”, Philosophical Investigations , vol. 14, 1991, p. 324-341.
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genstein usa a expressão “vontade”, que ele toma de Schopenhauer: “Da vontade (Willen) enquanto portadora do que é ético, não se pode falar. E a vontade enquanto fenômeno só interessa à psicologia.” O sujeito metafísico não pode, por conseguinte, fazer parte do mundo, ele “não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo” (NB , p. 79 & 5.632). Esse sujeito metafísico é solipsista 3: 5.62 – O que o solipsismo quer significar é inteiramente correto; apenas é algo que não se pode dizer , mas que se mostra. Que o mundo seja meu mundo, é o que se mostra nisso: os limites da linguagem (a linguagem que, só ela, eu entendo) significam os limites de meu mundo4.
Retomando portanto sua distinção entre “dizer” e “mostrar”, Wittgenstein reconhece que o solipsismo é correto, mas que isso não pode ser dito, pois exprimir o que o solipsismo quer dizer equivaleria stricto sensu a enunciar proposições metafísicas do tipo daquelas que ele critica em 6.53. Mas em que a correção do solipsismo pode ela se mostrar? No seguinte, que “os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (5.6); o que é estabelecido um pouco acima, em 5.5561: “A realidade empírica é limitada pela totalidade dos objetos. O limite volta a evidenciar-se na totalidade das 3 4
Sobre a questão do solipsismo, cf. entre outros, R. W. Miller, “Solipsism in the Tractatus ”, Journal of the History of Philosophy , vol. 18, 1980, p. 57-74. D. Pears, The False Prison, op. cit., cap. 7. Jaako Hintikka propôs (“On Wittgenstein’s Solipsism”, Mind , vol. 64, 1958, p. 88-91) traduzir a expressão entre parênteses “der Sprache, die allein ich verstehe “ por “a única linguagem que eu compreenda”. Essa tradução é confirmada por uma nota marginal feita por Wittgenstein que é relatada por C. Lewy (“A Note on the Text of the Tractatus ”, Mind , vol. 76, 1967, p. 416423). A tradução por “a linguagem que apenas eu compreendo”, mais próxima do alemão, faria dessa observação a fonte da linguagem privada criticada nas Investigações filosóficas . Outra tradução em francês é possível, que é quase neutra entre essas duas possibilidades: “Le langage que seul je comprends ” .
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proposições elementares.” Como vimos nas seções sobre a análise e a ontologia, a análise das proposições requer a existência de objetos (simples) que devem me ser dados em minha experiência imediata. Wittgenstein dizia compartilhar em sua juventude uma forma de “idealismo epistemológico” derivado de sua leitura de Schopenhauer5. Essa defesa tractariana do solipsismo, embora seja apenas parcial, parece ir na contramão de muitos outros aspectos “realistas” da obra, mas Wittgenstein não vê as coisas assim, uma vez que ele apresenta, algumas observações depois, um dos argumentos mais desnorteantes de seu livro: o solipsismo rigorosamente pensado “coincide com o realismo puro”. Esse argumento aparece nos Notebooks em dezembro de 1916: O caminho que percorri é o seguinte: o idealismo isola do mundo os homens como únicos, o solipsismo me isola apenas a mim, e eu vejo no final das contas que pertenço eu também ao resto do mundo; de um lado, não resta portanto nada , do outro, o mundo que é único. Assim, o idealismo, rigorosamente desenvolvido, conduz ao realismo. (NB , p. 85).
Essa ideia é retomada em 5.64: 5.64 – Aqui se vê que o solipsismo, levado às últimas consequências, coincide com o puro realismo. O eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada a ele.
Wittgenstein poderia ter acrescentado uma etapa em seu trajeto, qual seja, a passagem do solipsismo ao “solipsismo do tempo presente”. A expressão foi inventada por Santayana, mas Wittgenstein
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G. H. von Wright, “A Biographical Sketch”, in N. Malcolm, Ludwig Wittgenstein – a Memoir , Oxford, Clarendon, 2001, p. 1-20 ; p. 6.
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muito certamente retomou essa ideia da Theory of Knowledge de 1913 de Russell, na qual encontramos um questionamento paralelo: não posso nunca apontar com o dedo um objeto fora de minha experiência do momento presente; perdemos então de vista a noção de um escoamento objetivo do tempo para nos reencontrar prisioneiros da experiência do momento presente. Nas notas de cursos de Wittgenstein, encontramos a seguinte confissão: Acerca do solipsismo e do idealismo, disse ter sido ele próprio frequentemente tentado a dizer “A experiência do momento presente é a única coisa real” ou “A experiência do momento presente é a única coisa certa”, ao que ele acrescentou que quem quer que seja tentado a subscrever ao idealismo ou ao solipsismo tem a tentação de dizer “A experiência presente é a única realidade” ou “ Minha experiência presente é a única realidade” ( M, p. 102)6.
Essa concepção do “solipsismo do tempo presente” não deixa de ter relação com as considerações sobre o mundo sub specie aeternitatis , uma vez que as duas observações seguintes só se esclarecem por referência a esse solipsismo: “Aquele que não vive no tempo, mas no presente, é feliz” (NB ., p. 74); “Se entendemos por eternidade não a duração infinita, mas a atemporalidade, então tem a vida eterna quem vive no presente” (6.4311) 7. O sujeito metafísico é “portador do ético” no sentido de que ele é a fonte dos valores, pois nenhum fato no mundo tem em si mesmo valor: 6
7
Para uma discussão mais detida desse argumento, cf. D. Pears, The False Prison, op. cit. A ideia do sujeito como ponto sem extensão é tomada de Schopenhauer, cf. A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação. São Paulo : UNESP, 2005, p. 566. Sobre a questão do tempo no Tractatus , cf. J. Hintikka, “Wittgenstein on Being and Time”, in Ludwig Wittgenstein: Half-Truths and One-and-a-HalfTruths , op. cit., p. 240-274.
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6.41 – O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e, se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e ser-assim é casual.
A ética deve, portanto, ser, a exemplo da lógica, uma “condição do mundo” (NB , p. 77); ela é transcendental (6.421). Se não há nenhum valor nos fatos, então as proposições que os afiguram “têm igual valor” (6.4) e, o que dá no mesmo, “não pode haver proposições na ética” (6.42). Como o indicará a Conferência sobre a ética de 1929 (LE ), pode decerto haver proposições dotadas de sentido sobre os “valores relativos”, tais como “Mathieu Marion é mau patinador ainda que bom remador”, mas não pode haver proposições sobre “valores absolutos”, como o “bem” ou o “mal absoluto”, que sejam dotadas de sentido. Nessas condições, não é possível reconstituir uma “ética wittgensteiniana”. Pode-se apenas, a partir dos poucos fiapos enunciados, chegar a uma ou outra certeza. Em primeiro lugar, é claro que Wittgenstein se opõe tanto às éticas formais do tipo kantiano quanto às éticas consequencialistas: 6.422 – O primeiro pensamento que nos vem quando se formula uma lei ética da forma “você deve...” é: e daí, se eu não o fizer? É claro, porém, que a ética nada tem a ver com punição e recompensa, no sentido usual. Portanto, essa questão de quais sejam as consequências de uma ação não deve ter importância. – Pelo menos, essas consequências não podem ser eventos. Pois há decerto algo de correto nesse modo de formular a questão. Deve haver, na verdade, uma espécie de recompensa ética e punição ética, mas elas devem estar na própria ação.
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Esse trecho mostra bem, mais uma vez, a importância da dimensão do ato no Tractatus : encontrarei castigo ou recompensa no pró prio ato e não em suas consequências. Não se trata portanto de um cálculo de tipo utilitarista a partir das consequências de meus atos. A distinção entre fato e valor tem como corolário que o “querer” não pode mudar os fatos, apenas o limite do mundo: 6.43 – Se a boa ou má volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos; não o que pode ser expresso pela linguagem. Em suma, o mundo deve então, com isso, tornarse a rigor um outro mundo. Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo. O mundo do feliz é um mundo diferente do mundo do infeliz8.
A felicidade exige que eu reconheça que o mundo é o que ele é independentemente do querer, isto é, de mim mesmo. Então, se sou infeliz, não pode ser por culpa do mundo, ao qual devo portanto adequar-me para chegar à felicidade. A posição de Wittgenstein, que se aparenta ao estoicismo, foi muito bem resumida por seu amigo Paul Engelmann: Se eu sou infeliz e sei que essa infelicidade reflete um descompasso acentuado entre eu mesmo e a vida tal como ela é, não resolvi nada: estarei desnorteado e não reencontrarei nunca meu caminho para fora do caos de minhas emoções e de meus pensamentos enquanto não tiver atingido a visão suprema desse descompasso como não sendo a culpa da vida tal como ela é, mas de mim mesmo tal como sou9.
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Essas últimas observações são particularmente difíceis de interpretar, cf. J. Schulte, “The Happy Man”, Grazer philosophische Studien, vol. 42, 1992, p. 3-21. P. Engelmann, Letters from Ludwig Wittgenstein with a Memoir , Oxford, Blackwell, 1967, p. 76-77.
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Wittgenstein falará frequentemente do erlösende Wort , isto é, da palavra que traz esse estado de paz interior. Essa posição não deixa de lembrar a discussão do estoicismo por Schopenhauer ali pelo final do primeiro livro do Mundo como vontade e representação, que Wittgenstein conhecia bem: [...] pois a ética estoica não é originária e essencialmente uma doutrina da virtude, mas mera instrução para uma vida racional, cujo fim e objetivo é a felicidade mediante a tranquilidade de ânimo. A conduta virtuosa encontra-se ali como que per accidens , como meio, não como fim. Eis por que a ética estoica, segundo toda sua essência e ponto de vista, é fundamentalmente diferente dos sistemas éticos orientados imediatamente para a virtude, como o são as doutrinas dos Vedas , de Platão, do cristianismo e de Kant. O objetivo da ética estoica é a felicidade10.
Na Conferência sobre a ética de 1929, Wittgenstein menciona alguns exemplos de experiências religiosas que ele julga impossível exprimir na linguagem, tal como o “espanto diante da existência do mundo” ( LE , p. 41). Este é equivalente ao que Wittgenstein chama em 6.45 o “místico”, isto é “O sentimento do mundo como totalidade limitada”. Esse espanto não pode, segundo Wittgenstein, ser expresso na linguagem, a menos que se produza um contrassenso, pois “não posso imaginar que ele não exista” (LE , p. 41-41). Se não posso conceber o que seria o caso para que uma proposição seja falsa, então esta perde sua propriedade essencial que é de ser “bipolar”; ela não pode portanto ser uma proposição dotada de sentido (sinnvoll ). Wittgenstein prossegue então seu raciocínio da seguinte forma: não se pode portanto responder, de nenhuma maneira, a uma questão ou “enigma” do tipo “por que há o ser ao invés de nada?” por meio de uma proposição dotada de sentido; se não há resposta possível, é que a questão ela própria não pode verdadeiramente 10 A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, op. cit., p. 142.
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ser formulada. Não há portanto “enigma” e o problema da vida não pode ser resolvido senão tomando consciência disso, isto é, fazendo “desaparecer” a própria questão, uma vez que ela é inexprimível: 6.5 – Para uma resposta que não se pode formular, tampouco se pode formular a questão. O enigma não existe. Se uma questão se pode em geral levantar, a ela também se pode responder. 6.521 – Percebe-se a solução do problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por essa razão que as pessoas para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se fez claro não se tornaram capazes de dizer em que consiste esse sentido?)
Para Wittgenstein, querer exprimir algo sobre o “mundo como totalidade limitada” é querer per impossibile se colocar sub specie aeternitatis , isto é, fora do mundo (de meu mundo) e fora da linguagem (de minha linguagem): o que ele por vezes exprime falando de querer “se jogar contra os limites da linguagem”. Wittgenstein viu a ligação entre suas concepções e a ideia do “paradoxo absoluto” de Kierkegaard: Pense, por exemplo, no espanto diante do fato de que algo existe. Espanto que não se pode exprimir sob a forma de uma questão e que tampouco comporta resposta. Tudo o que gostaríamos de dizer aqui só pode ser a priori um contrassenso. Nem por isso deixamos de correr contra os limites da linguagem. Tendência que Kierkegaard também percebeu, e que ele descreve mesmo de um modo inteiramente semelhante (como uma corrida ao paradoxos). Esse modo de se lançar contra o limite da linguagem é a ética (WWK , p. 68)11.
11 Cf. S. Kierkegaard, Migalhas Filosóficas ou Um bocadinho de Filosofia de João Climacus . Petrópolis: Vozes, 1995, Cap. III, p. 61-82. Sobre as relações entre Wittgenstein e Kierkegaard, cf. J. Bouveresse, La rime et la raison¸ Paris,
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O Tractatus fecha-se portanto com uma injunção ao silêncio: Wittgenstein Wittgenste in espera que o leitor leitor esteja em condições, condições, após ter ter compreendido sua obra, de “ver corretamente o mundo” e, portanto, de ver que não se pode trazer à expressão linguística alguns sentimentos, sobre os quais é portanto preferível manter silêncio: 6.54 – Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las reconhecê-las como contrassensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer dizer,, jogar fora a escada após ter subido por ela.) Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente. 7 – Sobre aquilo de que q ue não se pode falar fal ar,, deve-se calar.
Aquele que compreen compreendeu deu o Tractatus compreenderá também que, paradoxalmente, a maior parte das proposições do Tractatus não respeitam a sintaxe lógica. As transgressões da sintaxe lógica são de tipos diversos: proposições enunciadas acerca de conceitos formais como se fossem conceitos materiais, proposições que procuram dizer o que só pode ser mostrado e proposições enunciadas acerca da totalidade do mundo ou do inexprimível. Essas proposições transgridem o limite que elas se empenham em traçar... O leitor deverá portanto derrubar a escada após ter subido por ela. Uma interpretação do Tractatus derivada derivada da obra de Cora Diamond12 tornou-se muito popular nos Estados Unidos, onde se fala doravante de um “novo”13 Wittgenstein. Essa interpretação funda-se Éditions de Minuit, 1973, cap. 2 ; F. Nef, “Logique et mistique : à propos de l’atomisme logique de Russell et Wittgenstein”, in. F. Gil (org.), Acta du Colloque Wittgenstein, op. cit., p. 35-46. 12 A maior maior parte dos artigos importantes estão reunidos reunidos em em C. Diamond, The Realistic Spirit. Wittgenstein, Philosophy and the Mind , Cambridge Mass., MIT Press, 1991. Para uma leitura do Tractatus na na linhagem de Diamond, cf. M. Interpretation, op. cit. Ostrow, Wittgenstein’s Tractatus. A Dialectical Interpretation, Wittgenstein, Londres, Routledge, 2000. 13 A. Creary e R. Read (org.), the New Wittgenstein
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em sua quase totalidade em uma casuística daquilo que Diamond chama de “proposições-quadro” do livro, ou seja, o prefácio e as últimas proposições: 6.53, 6.54 e 7. A posição de Diamond pode ser enunciada rapidamente, dizendo que, a seu ver, pretender, como o faz a maior parte dos comentadores, que haveria outra coisa além do contrassenso absoluto no Tractatus é “amarelar” (to chicken out )14. Assim, à ideia de que haveri haveriaa prop proposiçõe osiçõess que são despr desprovid ovidas as de sentido mas que poderiam ter um sentido caso conseguissem veiculá-lo15, e, portanto, a toda distinção entre o contrassenso puro, do tipo “Sócrates é idêntico” e um contrassenso “substancial” que não se poderia exprimir por proposições dotadas de sentido, mas que no limite poderíamos tentar assoviar assoviar,, Diamond irá contrapor a ideia de que só há uma única forma de contrassenso, o contrassenso puro. Não há portanto nada que se mostre mas que não se possa dizer, não há nenhuma verdade inefável que seria apontada pelo Tractatus e e não há portanto nada de semelhante a “simples”, “fatos”, etc. E todos os enunciados a respeito destes últimos são tão somente puros contrassensos. O que Wittgenstein queria, nos diz ela, não é corrigir alguns erros cometidos por Frege ou Russell, mas mostrar que seu projeto teórico é nulo e sem efeito e que estamos imersos no contrassenso desde o início. Wittgenstein teria desconstruído seu próprio projeto e mostrado (?), ao fazê-lo, que o projeto de Frege e a de Russell – e, na esteira destes, acrescentaríamos: toda a filosofia analítica 16 – está fadado a não produzir mais do que esse tipo de contrassenso. No entanto, Wittgenstein retoma, no meio da obra, suas observações do prefácio, escrevendo, em 4.114, que a filosofia
14 C. Diamond, “Throwing Away the Ladder”, op. cit., p. 180. 15 Cf., por exemplo, G. E. M. Anscombe, Introduction to the Tractatus, op. cit., p. 161. 16 Essa refutação refutação não terá de modo algum como resultado resultado legitimar as formas de discurso filosófico criticadas pelos filósofos analíticos; apesar do respeito que Wittgenstein consagra aos grandes metafísicos como Kierkegaard, ele considera também seu discurso como desprovido de sentido. Sua crítica da metafísica, seja lá de que forma que se a leia, visa sempre esse tipo de discurso.
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“deve traçar os limites do pensável e, desse modo, do impensável” e “limitar o impensável de dentro, através do pensável”, ao que ele acrescenta que ela “significará o indizível ( das Unsagbare ) ao representar claramente o dizível” (4.115). Ele também escreve em 6.522: “Há certamente o inefável ( Unausprechliches ). ). Isso se mostra, é o Místico”. Wittgenstein diz portanto claramente que há o indizível ( Unsagbare ) e não se pode simplesmente colocar essas observações na conta da ironia ou algo do tipo. O inexprimível decerto não é da ordem do sentido que se pode dizer cla claramente na linguagem, pois senão poderíamos dizê-lo, mas ele existe de fato; tal é a natureza, por exemplo, do espanto diante da existência do mundo. A acreditar em Diamond, não haveria haveria nenhuma diferença entre uma frase do Tractatus como, como, digamos, 3.23, “O postulado da possibilidade dos sinais simples é o postulado do caráter determinado do sentido” e uma frase como “Sócrates é idêntico” ou ainda o primeiro verso do poema Jabberwocky , que eu cito no original: “’Twas brillig, and the slithy toves did gyre and gimble in the wabe”. As aparências seriam enganosas. No entanto, não há dúvida alguma de que esse verso nunca enganou ninguém, diferentemente do que ocorre com, digamos, um fragmento de Heráclito ou uma frase da de Aristóteles, mas Diamond não parece estar nunca em Metafísica Metafísic a de condições de nos explicar essa diferença. Assim sendo, não há a nenhum sentido em falar de um processo pelo qual sería fortiori nenhum mos levados a reconhecer que as frases do Tractatus são são totalmente vazias de sentido, isto é, que haja uma escada a ser galgada. A isso, Diamond respondeu insistindo sobre a importância do 6.54 (grifo meu): “Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contrassensos.” Wittgenstein nos pediria não para compreender as proposições do Tractatus , mas para compreender a ele enquanto enquanto enunciador de contrassensos; estaríamos assim engajados, na leitura do Tractatus , em uma atividade particular,, a de imaginar o que seria para alguém confundir sentido particular
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e contrassenso17. A meu ver, essa última réplica mostra que a leitura de Diamond não é defensável. Hacker, por outro lado, mostrou toda a fraqueza hermenêutica dessa leitura 18, que se limita a alguns trechos do Tractatus (ainda que se acabe por reconhecer que alguns trechos no centro da obra são dotados de sentido o quanto basta para sustentar essa interpretação), mas que literalmente ignora a considerável quantidade de indicações contrárias que encontramos em outras partes de sua obra. A inovação de Wittgenstein não foi portanto a de mostrar que além da linguagem só encontramos o contrassenso absoluto, ali onde outros teriam acreditado equivocadamente ver verdades inefáveis. Através dois mil anos de história da filosofia, encontramos muito poucos filósofos que acreditaram nessas verdades inefáveis, e não é dessa doença que ele queria nos curar por sua terapia. A história da filosofia abunda no entanto de filósofos, Frege e Russell inclusive, que acreditaram que essas verdades que se mostram mas não podem ser ditas podem de fato ser enunciadas com sentido e são eles que são muito certamente visados pelo Tractatus . Que Wittgenstein tenha conseguido ou não solapar os fundamentos de todo projeto do tipo dos de Frege ou de Russel ao sabotar o seu próprio projeto é uma outra questão, que não pode ser considerada como resolvida implicitamente pela simples repetição das últimas frases do Tractatus , pois a possibilidade mesma de solapar os fundamentos de seu projeto é tributária de teses – sobre o “sentido”, entre outras coisas – que eu me preocupei em explicitar nesta obra, e que temos todo o direito de recolocar em questão, exatamente como Wittgenstein ele próprio veio a fazê-lo a partir de seu retorno à filosofia, em 1929.
17 C. Diamond, “Ethics, Imagination and the Tractatus ”, in A. Creary e R. Read, The New Wittgenstein, op. cit., p. 149-173; p. 155 e 157-158. 18 P. M. S. Hacker, “Was He Trying to Whistle it?”, in A. Creary e R. Read, The New Wittgenstein, op. cit., p. 353-388, cf. p. 371.
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COLEÇÃO FILOSOFIA E LINGUAGEM Direção: Marcelo Carvalho, Bento Prado Neto e João Vergílio G. Cuter Conselho Editorial: André Porto, Arley Moreno, Danilo Marcondes, David Stern, João Carlos Salles, Luiz Carlos Pereira, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Mathieu Marion, Mauro Engelmann, Philippe Narboux, Silvia Altmann Títulos Publicados: Ludwig Wittgenstein: introdução ao Tractatus logico-philosophicus
Mathieu Marion As investigações filosóficas de Wittgenstein: uma introdução
David G. Stern
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