Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004.pdf

April 26, 2017 | Author: Bruno Delaluna | Category: N/A
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A retórica é a arte de convencer pelo discurso; é também a teoria dessa arte, criada pelos gregos e constitutiva do nosso • humanismo. Depois de um longo eclipse ela voltou em nossos dias com muita força, a ponto de ser aplicada à imagem, ao cinema, à música, ao inconsciente. Cinco enfoques complementares são desenvolvidos nesta introdução: uma apresentação histórica do "sistema" retórico, uma exposição metódica dos procedimentos retóricos, uma aplicação prática - "leitura retórica de diversos textos", um glossário com definições dos termos técnicos e uma filosofia da retórica.

Olivier Reboul, filósofo francês, é professor de Filosofia da Educação na Universidade de Estrasburgo. Escreveu, além deste, os livros: Lan8a8e et ideolo8ie, Le lan8a8e de l' éducation, Qy' est-ce qu' apprendre?

Projeto gráfico da capa Katia Harumi Terasaka

Execução Adriana Translatti Imagem da capa Charles Sydney Hopkinson, O];ver Wendell Holmes, 1930 (detalhe). Harvard Law Art

Collection, Cambridge.

INTRODUÇÃO À RETÓRICA

INTRODUÇÃO À RETÓRICA Olivier Reboul

Tradução IVONE CASTILHO BENEDETTI

Martins Fontes São Paulo 2004

Índice analítico

Esta ohra foi puhlicada originalmente em francês com o titulo

INTRODUCT/ON À LA RHÉTORIQUE - THÉORIE ET PRATIQUE por Presses Unil'ersitaires de France. Copyright © Presses Universitaires de France, 1991 Copyright © 1998, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Pau/o. para a presente edição.

Prefácio ......................................................................... . Introdução: Natureza efunção da retórica .................... .

l"ledição .::te-ero de 1998

XI XIII



-mmmr0 de 2004

Arte, discurso e persuasão......................................... XIV Função persuasiva: argumentação e oratória............. XVII A função hermenêutica ............................................. XVIII A função heurística.......... ........ ..................... ............ XIX A função pedagógica........ ........ ............ ........ ............. XXI

do original Vadim Vale inot'Ikh Nikitin _Revis'; s gráficas "-na Maria O. M. Barbosa Marise Simões Leal Produção gráfica Geraldo Alves PaginaçãolFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Capítulo I - Origens da retórica na Grécia ................. .

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Reboul, Olivie!. 1925Introdução à retórica I Olivier Reboul tradução Ivone Castilho Benedetti. - São Paulo: Martins Fontes, 2(X)4. - (Justiça e direito). Título original: Introduction à la rhétorique Bibliografia. ISBN 85-336-2067-5 1. Retórica I. Título. 11. Série. 04-6899

CDD-808

índices para catálogo sistemático: 1. Retórica

808

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Lida. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: info@martin,ifontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br

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Nascimento da retórica ............................................ . Origem judiciária ............................................... . Córax .................................................................. . Origem literária: Górgias ................................... .. A retórica e os sofistas ............................................ .. Protágoras: o homem medida de todas as coisas .. Fundamento sofistico da retórica ....................... .. Isócrates ou Platão? ................................................ . Isócrates, o humanista ........................................ . Uma pausa .......................................................... . Texto 1 - Platão, Górgias, 455 da 456 c, trad. M. Croiset ................................................................ . Retórica e cozinha .............................................. . De que "ciência" se trata? .................................. ..

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Capítulo 11 - Aristóteles, a retórica e a dialética ........ ..

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Uma nova definição de retórica .............................. ..

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Capítulo IV - Do século I ao XX .................................. .

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Período latino .......................................................... . Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras ........ . Retórica e moral .............. , .................................. . Retórica e democracia ........................................ . Por que o declínio? .................................................. . Retórica e cristianismo ....................................... . Verdadeiras causas do declínio: retórica, verdade e sinceridade ....................................................... . Hoje: retóricas ......................................................... . Uma retórica estilhaçada ................................... .. Retórica da imagem ............................................ . Retórica da propaganda e da publicidade ............ . Nova retórica contra nova retórica ..................... ..

Capítulo III - O sistema retórico .................................. .

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Capítulo V - Argumentação ........................................ .

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As quatro partes da retórica ................................ . Invenção ................................................................... . Os três gêneros do discurso ................................ .. Os três tipos de argumento: etos, patos, logos .... .. Provas extrínsecas e provas intrínsecas ............... . Os lugares ("topoi") ............................................ . Observações sobre a invenção ............................ . Disposição ("taxis") .............................................. .. Exórdio ("prooimion", proêmio) ........................ . N arraçao - ("d'legesls ,.,,) ......................................... . C f (" .. ,,) ...................................... .. on lrmaçao plshs Digressão ("parekbasis") e peroração ("epílogos") Por que a disposição? ......................................... .. Elocução ("léxis '') ................................................... . Língua e estilo: uma arte funcional... .................. . Figuras ("schemata") e o problema do desvio .... .. A ça-o ("h'Ypocnsls .. '') ................................................. . Uma "hypocrisis" sem hipocrisia ...................... .. O problema da memória .................................... .. O problema do escrito e do oral .......................... .

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As cinco características da argumentação .............. .. O auditório pode ser "universal"? ...................... .. Língua natural e suas ambigüidades .................. .. Premissas verossímeis: o que é verossímil? ........ . Uma progressão que depende do orador ............. . Conclusões sempre controversas ........................ . O que é uma "boa" argumentação? ........................ . Os sofistas e a argumentação .............................. . Não-paráfrase e fechamento ............................... . Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica .... . Do pedagógico ao judiciário ............................... . Uma controvérsia judiciária: os expropriados e a desvalorização .................................................... . Argumentação filosófica: onde está o tribunal? ..

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Texto 2 - Aristóteles, Retórica, livro I, capo 2, 1355 a-b ............................................................. .. Uma definição mais modesta............................. . A argumentação de Aristóteles .......................... .. O que é dialética? .................................................... . A dialética é umjogo .......................................... . Tudo para ganhar ............................................... .. Respeitar as regras do jogo ................................ .. Utilidade do jogo dialético .................................. . Retórica e dialética .................................................. . O que elas têm em comum .................................. . Dialética, parte argumentativa da retórica .......... . Moralidade da retórica ....................................... .. Conclusão: Aristóteles e nós .............................. ..

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Capítulo VI - Figuras .. ................................................ .

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Figuras de palavras .................................................. . Figuras de ritmo .................................................. . Figuras de som: aliteração, paronomásia, antanáclase ............................................................... .. Um argumento retórico: a etimologia ................. . Figuras de sentido .................................................... .

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Tropos simples: metonímias, sinédoques, metáforas..................................................................... Tropos complexos: hipálage, enálage, oxímoro, hipérbole, etc. ...................................................... Figuras de construção............................................... Figuras por subtração: elipse, assíndeto, aposiopese ou reticência ................................................ Figuras de repetição: epanalepse, antítese ........... Figuras diversas: quiasmo, hipérbato, anacoluto, gradação ............................................................. Figuras de pensamento ............................................. Alegoria: figura didática? .................................... Ironia, graça e humor ........................................... Figuras de enunciação: apóstrofe, prosopopéia, preterição, epanortose.......................................... Figuras de argumento: cong1obação, prolepse, apodioxe, cleuasmo ...................................................

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Capítulo VII - Leitura retórica dos textos...................

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Questões preliminares........................................... .... Orador: Quem? Quando? Contra o quê? Por quê? Como? ................................................................. Auditório e acordo prévio .................................... A questão do gênero: Pascal e La Fontaine ............... Texto 3 - Pascal, "Justiça, força" (Br. Min. N? 298, p. 470) .......................................................... Texto 4 - La Fontaine, "O lobo e o cordeiro", Fábulas, I, 10....................................................... Situação dos dois textos ................................. ...... A argumentação dos dois textos........................... Observações sobre o estilo dos dois textos.......... Os dois gêneros e seu impacto ideológico ........... Questões sobre o texto............................................... O que prova o exemplo?...................................... Entimema ............................................................ O intertextual, o intratextual e o motivo central... Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les châtiments, VII, 7 ................................................

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Capítulo VIII - Como identificar os argumentos? ..... .

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Os elementos do acordo prévio ................................ . Fatos, verdades, presunções ................................ . Os valores e o preferível ..................................... . Os lugares do preferível ...................................... . Figuras e sofismas concernentes ao acordo prévio Primeiro tipo: argumentos quase lógicos ................ . Contradições e incompatibilidade: o ridículo ..... . Identidade e regra de justiça ............................... . Argumentos quase matemáticos: transitividade, dilema, etc .......................................................... . Definição ............................................................ . Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do real ........................................................................... . Sucessão, causalidade, argumento pragmático ... . Finalidade: argumento de desperdício, de direção, de superação ................................................ . Coexistência: argumento de autoridade, argumento "ad hominem" .......................................... . Duplas hierarquias e argumento "a fortiori" ....... . Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a estrutura do real .......................................................... . Exemplo, ilustração, modelo .............................. . Comparação e argumento do sacrifício ............... . Analogia e metáfora ............................................ . Quarto tipo: argumentos por dissociação das noções Absurdo ou "distinguo" ...................................... . O par aparência-realidade ................................... . Outros pares ........................................................ . Artifício e sinceridade ........................................ .

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Capítulo IX - Exemplos de leitura retórica ......... ...... .

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de entimemas .................................. . Figuras fortíssimas ............................................. . A petição de princípio ......................................... . Texto 7 - Pierre Corneille, "Marquesa", 1658 .... .

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Prefácio

Texto 8 - René Descartes, Le discours de la méthode, segunda parte ........................................... . Texto 9 - Uma entrevista com Françoise Dolto, Libération, 5 de fevereiro de 1987 ...................... . Introdução .......................................................... . Parágrafo (1) ....................................................... . Parágrafo (2) ....................................................... . Parágrafo (3) ....................................................... . Parágrafos (4) e (5) ............................................ .. Observações críticas: o motivo central ............... . Texto 10 - Alain, "Considerações", de 20 de março de 1910 .................................................... . Texto 11 - A educação negativa, 1.-1. Rousseau, Emílio, 2? livro .................................................... . Introdução: haverá motivo central? .................... . Oparadoxo ......................................................... . A argumentação .................................................. . As metáforas da educação ................................. .. Conclusão: o motivo central ............................... . Texto 12 - Duas histórias iídiches ....................... .

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À guisa de conclusão .................................................... .

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Arte e naturalidade ............................................ .. A ilusão do livro do mestre ................................. . Da polêmica ao diálogo ..................................... ..

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Notas ............................................................................. . BU' .. ..................................................... . I lograrfila sumaria Índice remissivo e glossário dos termos técnicos .......... .

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Para começar, algumas palavras sobre este livro, sobre o que ele pretende ser e sobre o que dele se pode esperar. É multidisciplinar, como, aliás, a própria retórica que, desde seus primórdios, foi instrumento comum de juristas, filósofos, literatos, pregadores, de todos a quantos concerne a comunicação. É pluralista, assim como também a retórica. Esta, a serviço das causas e das mais diferentes teses, é algo mais que instrumento neutro, indiferente ao que veicula; utilizada em todas as controvérsias, obriga cada uma das partes a levar em consideração as crenças e os valores do adversário; ensina o sentido, se não do relativo, pelo menos do plural, e postula que a verdade resulta do encontro de dois enunciados, o proferido e o ouvido. Este livro pode ser lido de diversas maneiras. De cabo a rabo, sem dúvida. Mas também como obra de referência, a começar pelo índice. Ou então limitando-se a determinado capítulo, tendo-se em mente que de qualquer modo ele depende um pouco dos capítulos precedentes. É teórico e prático ao mesmo tempo. Por um lado pretende expor o que é retórica, extrair sua unidade profunda através das transfigtJrações de sua história, discutir suas implicações e distinguir se1t18 limites. Por outro lado, visa a aplicar a retórica à dos textos mais diversos, oferecendo assim um hermenêutica aos estudantes e aos futuros pesquisadores. Finalmente, tem várias pretensões: ser um manual acadêmico e outras coisas mais. Esforça-se, pois, por ser objetivo,

XII

INTRODUÇÃO A RET6RICA

por dar informações independentes do seu autor e de suas preferências. Mas um manual não mereceria o nome de acadêmico, se seu autor não se afirmasse também como pesquisador e pensador; portanto, como alguém que não se contenta apenas em expor, mas que se expõe. E o leitor que julgue. Um livro no plural, portanto. N.B. - À primeira visld, a retórica desencoraja pelo vocabulário. Quantos nomes de argumentos e figuras! Será realmente preciso falar em lugares em vez de provas, em hipérbole em vez de exagero, em ação em vez de dicção? Na verdade, cada um desses termos tem um sentido um póuco diferente daquele que pretende traduzi-lo; é, portanto, insubstituível. Assim como a medicina, a psicologia e a filosofia, a retórica tem necessidade de um vocabulário técnico. Portanto, cumpre saber que epanortose não é doença de pele, que hipotipose não é um supositório de bronze da antiga medicina, e que tapinose não é uma retórica de antas... É verdade que poderiam ser usados termos mais correntes, dizer correção em vez de epanortose, quadro em vez de hipotipose, depreciação em vez de tapinose. Mas o sentido não seria mais o mesmo. Hipotipose é um quadro retórico, que desempenha papel ao mesmo tempo poético e argumentativo; epanortose é uma correção retórica, que produz efeito de sinceridade ("ou melhor", "para dizer tudo ".. .); a tapinose é uma depreciação retórica. Apesar de inegável, a dificuldade léxica pode perfeitamente ser superada. E nosso índice-glossário deve possibilitar isso.

Introdução Natureza e função da retórica

o que se espera de uma introdução à retórica é que logo de início se defina o termo. Infelizmente, não é fácil, pois hoje em dia o termo "retórica" assumiu sentidos bem diversos e até divergentes. Em primeiro lugar, o sentido corrente não poderia ser mais pejorativo. Um professor de literatura, depois de brilhante alocução, ouve a seguinte felicitação de um colega: "Admirei sua retórica", frase que ninguém tomou por cumprimento, nem mesmo o interessado. Para o senso comum, retórica é sinônimo de coisa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa. Entretanto, no começo dos anos 60 os acadêmicos redescobriram a retórica e devolveram ao vocábulo sua nobreza, ao mesmo tempo prestigiosa e perigosa, mas nem por isso concordando quanto ao seu sentido. Mencionemos aqui as duas posições extremas. Uma delas, de Charles Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, vê a retórica como arte de argumentar, e busca seus exemplos mormente entre os oradores religiosos, jurídicos, políticos e até filosóficos. A outra, de Morier, G. Genette, J. Cohen e do "Grupo MU", considera a retórica como estudo do estilo, e mais particularmente das figuras. Para os primeiros, a retórica visa a convencer; para os últimos, constitui aquilo que toma literário um texto; e é dificil perceber o que as duas posições têm em comuml. . . No entanto, é esse elemento comum que bem poderia ser o mais importante, ou seja, a articulação dos argumentos e do estilo numa mesma função. Ao dizermos isso, referimo-nos à

INTRODUÇÃO A RETÓRICA

XIV

retórica clássica, que começa com Aristóteles e se prolonga até o século XIX. É a ela que recorreremos para definir a retórica. É verdade que se pode criticar a tradição, mas ela pelo menos tem a vantagem de nos oferecer elementos estáveis, independentes das preferências individuais e dos modismos. Pode-se criticar a tradição, e não deixaremos de fazê-lo quando for o caso, mas pelo menos saberemos o que estamos criticando e o que pretendemos suplantar.

Arte, discurso e persuasão

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Eis, pois, a definição que propomos: retórica é a arte de persuadir pelo discurso. Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma seqüência de frases, que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido. De fato, um discurso incoerente, feito por um bêbado ou um louco, são vários discursos tomados por um só. Conforme nossa definição, a retórica não é aplicável a todos os discursos, mas somente àqueles que visam a persuadir, o que de qualquer modo representa um belo leque de possibilidades! Enumeremos as principais: pleito advocatício, alocução política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciências humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desde que "de tese", e o poema satírico ou laudatório. O que sobra então de não retórico? Os discursos (no sentido técnico definido acima) que não visam a persuadir: poema lírico, tragédia, melodrama, comédia, romance, contos populares, piadas. Acrescentemos os discursos de caráter puramente científico ou técnico: modo de usar, em oposição a anúncio publicitário; veredicto, em oposição a pleito advocatício; obra científica, em oposição à vulgarização; ordem, em op?sição a slogan: É proibido fumar não é retórico, ao passo que E proibido fumar, nem que seja "Gallia"*, é retórico.

* Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.)

INTRODUÇÃO

XV

É verdade que a retórica antiga dá à palavra discurso um sentido claramente mais restrito, mas nós mostraremos que se pode perfeitamente ampliar o objeto da retórica sem a trair. Questão "de ordem": este livro é retórico? Portanto, a retórica diz respeito ao discurso persuasivo, ou ao que um discurso tem de persuasivo. O que é pois persuadir? É levar alguém a crer em alguma coisa. Alguns distinguem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindo este último não em fazer crer, mas em fazer compreender. A nosso ver essa distinção repousa sobre uma filosofia - até mesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto que opõe no homem o ser de crença e sentimento ao ser de inteligência e razão, e postula ademais que o segundo pode afirmarse sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. Até segunda ordem, renunciaremos a essa distinção entre convencer e persuadir. Por outro lado, manteremos uma distinção pertinente, porquanto inerente ao próprio termo "persuadir": 1) Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa. 2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.

Distinção capital para compreender a retórica, pois em (1) Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, enquanto em (2) ele conseguiu levar-me afazer alguma coisa, não se sabendo se acredito nela ou não. A nosso ver, a persuasão retórica consiste em levar a crer (1), sem redundar necessariamente no levar a fazer (2). Se, ao contrário, ela leva a fazer sem levar a crer, não é retórica. Pode-se dizer, por exemplo, que alguém persuadiu alguém a fazer alguma coisa por ameaça ou promessa, e que nisso residia toda a eficácia de sua argumentação. Resposta: é verdade que se falar de eficácia, mas não de argumentação. Esta visa se'tiíl>re a levar a crer. Por certo, através de promessa ou ameaça, pode-se persuadir alguém a cometer um erro, mas esse alguém estará persuadido de que o erro não é erro? No entanto, Pascal escreve:

XVI

INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Ao advogado pago adiantadamente parecerá bem mais justa a causa que defende! (Pensées, p. 365)

Na realidade, Pascal nada tem contra os advogados em particular; é do homem que ele não gosta, do gênero humano corrompido pela queda, cuja propensão para acreditar "no que sabe ser falso" mostra até que ponto ele é miserável. Entretanto, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que o erro não é regra, e que existe um tipo de persuasão que não se obtém nem pelo dinheiro nem pela ameaça: a que conceme à retórica. Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego f!:chné, é ambíguo, e até duplamente ambíguo. Em primeiro lugar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto uma competência adquirida através do ensino. Depois porque designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na criação ultrapassa a técnica e pertence somente ao "gênio" do criador. Em qual ou em quais desses sentidos se está pensando quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos. Para começar, existe uma retórica espontânea, uma aptidão para persuadir pela palavra que talvez não seja inata - não entremos nessa discussão agora -, mas que tampouco é devida a uma formação específica, e também existe uma retórica ensinada com o nome, por exemplo, de "técnicas de expressão e comunicação", que serve para formar vendedores ou políticos, para ensinar-lhes aquilo que outros vendedores, outros políticos parecem já saber naturalmente. Quais são os mais eficazes, quais deles conseguem "se sair melhor"? Sem dúvida os últimos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontramos os mesmos procedimentos, intelectuais e afetivos, procedimentos que fazem da retórica uma técnica. Mas será que se trata de simples técnica? Não, é muito mais. O verdadeiro orador é um artista no sentido de descobrir argumentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de que ninguém teria idéia e que se mostram ajustadas; artista cujos desempenhos não são programáveis e que só se fazem sentir posteriormente. Les provincia/es de Pascal (outra vez,

INTRODUÇÃO

XVII

mas em retórica ele é inevitável!) constituem uma bela ilustração; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam uma argumentação técnica, que não deixaria de ser pesada, Pascal retoma as mesmas idéias na forma de panfleto irônico, eficaz porque claro e jocoso, e que ainda tem a ver conosco. A arte de persuadir produziu muitas obras-primas. Mas não será ela também a arte de enganar, ou pelo menos de manipular? Voltaremos a esse problema no Capítulo 11. Enquanto isso, para compreender melhor a retórica, interroguemo-nos sobre suas funçõ"es; em outras palavras, sobre os serviços que ela é capaz de prestar aos que a empregam, e talvez também aos demais.

Função persuasiva: argumentação e oratória A primeira função da retórica decorre de sua definição: arte de persuadir. É, aliás, a mais evidente e a mais antiga; e o problema maior deste livro será saber por que meios um discurso é persuasivo. Aqui nos limitaremos a uma distinção realmente fundamental. Esses meios são de ordem racional alguns, de ordem afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros mais afetivos, pois em retórica razão e sentimentos são inseparáveis. Os meios de competência da razão são os argumentos. E veremos que estes são de dois tipos: os que se integram no raciocínio silogístico (entimemas) e os que se fundamentam no exemplo. Ora, como já notava Aristóteles, o exemplo é mais afetivo que o silogismo; o primeiro dirige-se de preferência ao grande público, enquanto o segundo visa a um auditório especializado, como um tribunal. Os meios que dizem respeito à afetividade são, por um lado, o etos, o caráter que o orador deve assumir para chamar a atenção e angariar a confiança do auditório, e por outro lado o patos, as tendências, os desejos, as emoções do auditório das quais o orador poderá tirar partido. De modo um pouco diferente, Cícero distingue docere, de/ectare e movere:

INTRODUÇÀO A RETÓRICA

XVIII

Docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do discurso. Delectare (agradar) é seu lado agradável, humorístico, etc. Movere (comover) é aquilo com que ele abala, impressiona o auditório.

Em resumo, o persuasivo do discurso comporta dois aspectos: um a que chamaremos de "argumentativo"; e outro, de "oratório". Dois aspectos nem sempre fáceis de distinguir. Os gestos do orador, o tom e as inflexões de sua voz são puramente oratórios. Todavia, o que dizer das figuras de estilo, aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retórica? A metáfora, a hipérbole, a antítese são oratórias por contribuírem para agradar ou comover, mas são também argumentativas no sentido de exprimirem um argumento condensando-o, tomando-o mais contundente. Assim é a célebre metáfora de Marx: "A religião é o ópio do povo." Se for introduzido um último termo, a demonstração, meio de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo e que escapa portanto ao domínio da retórica, chega-se ao seguinte esquema: retórico I

demonstrativo

argumentativo .1

I

I

oratório

I

racIOnal

A função hermenêutica Entretanto, por mais primordial, a função persuasiva não é única. Se a retórica é a arte de persuadir pelo discurso, é preciso ter em mente que o discurso não é e nunca foi um acontecimento isolado. Ao contrário, opõe-se a outros discursos que o precederam ou que lhe sucederão, que podem mesmo estar implícitos, como o protesto silencioso das massas às quais se dirige o ditador, mas que contribuem para dar sentido e alcance retórico ao discurso. A lei fundamental da retórica é que o

INTRODUÇÀO

XIX

orador - aquele que fala ou escreve para convencer - nunca está sozinho, exprime-se sempre em concordância com outros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de outros discursos. Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreender os que lhe fazem face, captar a força da retórica deles, bem como seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretação é feito por todos de modo mais ou menos espontâneo. Até a criancinha mostra ser um excelente hermeneuta, por exemplo quando percebe que a ameaça dos pais é aterradora demais para ser executada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentido que lhe convém I. Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem se está falando, compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não-dito. Aí vai um exemplo dessa hermenêutica espontânea. Durante o debate de televisão que antecedeu as eleições presidenciais de 1981, Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: "O senhor conhece a cotação do marco hoje?" Mitterrand, que provavelmente não sabia, adivinha que Giscard quer impor-se ao público como um economista sério, um especialista, um mestre, e lhe responde taco a taco: "Senhor Giscard, não sou seu aluno." E não se falará mais de cotação do marco durante todo o debate. Essa é a função hermenêutica da retórica, significando "hermenêutica" a arte de interpretar textos. Na universidade atual, essa função é fundamental, para não dizer única. Não se ensina mais retórica como arte de produzir discursos, mas como arte de interpretá-los. Aliás, é o que faremos aqui. Mas aí a retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa a produzir, mas uma teoria que visa a compreender.

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A função heurística

Arte de persuadir pressupõe que não estamos sozinhos; só pode ser exercida quando se interpreta o discurso de outrem. Pois bem, será mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

persuasão não passa de um modo - o mais insidioso de todos por certo - de tomar o poder, de dominar o outro pelo discurso. Podemos achar isso, é certo, desde que nos abstenhamos de persuadir alguém disso! Na realidade, quando utilizamos a retórica não o fazemos só para obter certo poder; é também para saber, para encontrar alguma coisa. E essa é a terceira função da retórica, que denominaremos "heurística", do verbo grego euro, eureka, que significa encontrar. Em resumo, uma função de descoberta. Claro que ela não é óbvia. Hoje em dia, quando falamos em descoberta, pensamos em ciência, e a ciência não quer nem saber de retórica. Quem sabe se por parte dos cientistas isso não é um denegação, não é a recusa de enxergar sua própria retórica. Mas pouco importa: o que se pergunta é o que a retórica pode ter para descobrir... Convenhamos, porém, que vivemos num mundo que não condiz inteiramente com o conhecimento científico, um mundo em que a verdade raramente é evidente, e a previsão segura raramente possível. No campo econômico e político, é preciso tomar decisões sem saber com toda a certeza se elas são as melhores, visto que o "com toda a certeza" só vem depois do feito! Nos debates jurídicos, é preciso sobrepujar, sabendo-se que muitas vezes não há veredicto objetivo, no sentido em que é objetiva a medida de um galvanômetro. Na esfera da educação, fazem-se programas, reformas, sem nunca se ter certeza de que as coisas serão melhores que antes e de que os alunos envolvidos realmente tirarão proveito delas, quer dizer, vinte anos depois ... Esse mundo de que estamos falando é o da vida; quase não comporta certezas científicas, dessas que possibilitam previsões seguras e decisões irrepreensíveis. Mas tampouco está entregue ao acaso, ao aleatório, ao caos. Não se pode prever com total certeza, mas é possível prever com mais ou menos certeza, com alguma probabilidade. Não se pode dizer: "é verdadeiro" ou "é falso", mas pode-se dizer: "é mais ou menos verossímil". Como pois achar o verossímil? Recordemos aqui a lei fundamental da retórica: o orador nunca está sozinho. O advogado

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mais hábil tem diante de si outros advogados que fazem o mesmo trabalho em sentido inverso. Do mesmo modo, o político confronta outros políticos; o pedagogo, outros pedagogos. Cada um deles - essa é a regra do jogo - defende sua causa sendo tão persuasivo quanto possível, e contribui assim para uma decisão que não lhe pertence, que incumbe a um terceiro: o juiz. Num mundo sem evidência, sem demonstração, sem previsão certa, em nosso mundo humano, o papel da retórica, ao defender esta ou aquela causa, é esclarecer aquele que deve dar a palavra final. Contribui - onde não há decisão previamente escrita - para inventar uma solução. E faz isso instaurando um debate contraditório, só possível graças a seus "procedimentos", sem os quais logo descambaria para o tumulto e a violência. A retórica possui realmente uma função de descoberta.

A função pedagógica Agora, poderemos ser censurados por termos ampliado abusivamente o campo da retórica. De fato, se nos reportarmos aos programas escolares da Idade Média e da época clássica, verificaremos que a retórica só admite a primeira das nossas três funções, ficando a função hermenêutica reservada à gramática, e a função heurística à dialética. Mas será legítimo impor à cultura as divisões de um programa escolar (por certo exigidas pelos imperativos da pedagogia), para estancá-la em disciplinas sem inter-relações, em "especialidades"? É mais ou menos como afirmar que a física não tem nenhuma relação com a matemática, alegando que elas têm professores diferentes. Mostraremos no próximo capítulo que, na própria escola, gramática, retórica e dialética não passavam de partes de um rnrsmo todo que se esclerosaram quando se separaram. A arte dô1hscurso persuasivo implica a arte de compreender e possibilita a arte de inventar. Qual é, pois, esse "mesmo todo" de que fazia parte a retórica? Em termos modernos, cultura geral. E aqui tocamos na

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última função da retórica, que pode ser chamada de "pedagógica". No fim do século XIX, a retórica foi abolida do ensino francês, e o próprio termo foi riscado dos programas. Todavia, como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra não se suprimiu a coisa. A retórica permaneceu, só que desarticulada, privada de sua unidade interna e de sua coerência. Em todo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazem retórica2 • Ensinar a compor segundo um plano, a encadear os argumentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encontrar as construções apropriadas e as figuras exatas, a falar distintamente e com vivacidade, não serão retórica, no sentido mais clássico do termo? Demonstraríamos com facilidade que os critérios segundo os quais um professor de língua, ou mesmo de filosofia, avalia uma redação - respeito ao assunto, ao plano, à argumentação, ao estilo, à personalidade -, que esses critérios são encontrados, com outros nomes, na retórica clássica (cf. infra, pp. 55-56). Deve-se ver nisso uma sobrevivência lamentável? Pode-se achar, ao contrário, que esses princípios são formadores, que deixar de respeitá-los - errar na formulação da questão, escrever de modo incorreto, monótono, extremado, confundir tese com argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atrás de clichês - é dar prova de incultura. Em outras palavras, é apartar-se dos outros e de si mesmo. É verdade que existem outras culturas além da escolar, mas não existe cultura sem formação retórica. E aprender a arte de bem dizer fi já e também aprender a ser.

Capítulo I

Origens da retórica na Grécia

A melhor introdução à retórica é sua história. Vamos, portanto, empreendê-la, mas com duas observações preliminares. A primeira é que a retórica é anterior à sua história, e mesmo a qualquer história, pois é inconcebível que os homens não tenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, aliás, encontrar retórica entre hindus, chineses, egípcios, sem falar dos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer que a retórica é uma invenção grega, tanto quanto a geometria, a tragédia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois sentidos. Para começar, os gregos inventaram a "técnica retórica", como ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois, inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas à compreensão, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teoria da arte, da literatura, da religião. Segunda observação: escrever uma história, como por exemplo da música, da pintura ou da filosofia, é repercorrer uma evolução, feita de transformações, perdas e criações. Ora, paradoxalmente, entre os séculos V e IV antes da nossa era, os gregos elaboraram A retórica, que, em seguida, "durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão I1I", pode-se dizer que se mexeu mais!. As diversas épocas enriqueceram alguma do sistema, mas sem mudar o sistema. Ainda hoje, quando se fala em "retórica", seja a de um filme ou a do inconsciente, a referência é sempre feita à retórica dos gregos. A história da retórica termina quando começa.

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Nascimento da retórica Tomemos duas datas como referência: 480 a.c., batalha de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram definitivamente sobre a invasão persa, quando começou o grande período da Grécia clássica; 399, ainda antes da nossa era: morte de Sócrates.

Origem judiciária A retórica não nasceu em Atenas, mas na Sicília grega por volta de 465, após a expulsão dos tiranos. E sua origem não é literária, mas judiciária. Os cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros conflitos judiciários2 • Numa época em que não existiam advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o seu próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma "arte oratória" (tekhné rhetoriké), coletânea de preceitos práticos que continha exemplos para uso das pessoas que recorressem à justiça. Ademais, Córax dá a primeira definição da retórica: ela é "criadora de persuasão"3. Como Atenas mantinha estreitos laços com a Sicília, e até processos, imediatamente adotou a retórica. Retórica judiciária, portanto, sem alcance literário ou filosófico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade. Como não existiam advogados, os litigantes recorriam a logógrafos, espécie de escrivães públicos, que redigiam as queixas que eles só tinham de ler diante do tribunal. Os retores, com seu senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aos logógrafos um instrumento de persuasão que afirmavam ser invencível, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Sua retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas a partir do verossímil (eikos). Observemos que isso é inevitável. Tanto entre nós quanto entre os gregos. De fato, se no âmbito judiciário se conhecesse

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a verdade, não haveria mais âmbito judiciário, e os tribunais se reduziriam a câmaras de registro. Mas o problema, tanto para nós quanto para os gregos, é que as más causas precisam dos melhores advogados, pois, quanto pior a causa, maior o recurso à retórica. É constrangedor. Ora, em vez de se constrangerem, os primeiros retores se gabavam de ganhar as causas menos defensáveis, de "transformar o argumento mais fraco no mais forte", slogan que domina toda essa época.

Córax Córax é considerado o inventor do argumento que leva seu nome, o córax, e que deve ajudar os defensores das piores causas. Consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser verossímil demais. Por exemplo, se o réu for fraco, dirá que não é verossímil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todas as evidências lhe forem contrárias, sustentará que, justamente, seria tão verossímil julgarem-no culpado que não é verossímil que ele o seja. Antifonte (480-411), o melhor representante da retórica judiciária de Atenas, cita o seguinte exemplo de córax: Se o ódio que eu nutria pela vítima tomar verossímeis as suspeitas atuais, não será ainda [mais] verossímil que, prevendo essas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de cometêlo? (in Perelman-Tyteka, p. 608, cf. Aristóteles, Retórica, 11, 24, 1402 a)

E O pleiteante a seguir insinua que os verdadeiros criminosos aproveitaram-se da verossimilhança para cometer impunemente aquele ato. O mais maçante é que o córax pode ser voltado contra seu autor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que pareceÍfâ.suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegou a acumular propositadamente acusações contra si mesmo, para depois as refutar com facilidade. - Argumento simples: todas as evidências estão contra ele.

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- Córax 1: exatamente, ele sabia que seria o primeiro suspeito, logo não seria verossímil que cometesse o crime. - Córax 2: mas justamente por isso ele poderia cometê-lo, sabendo que não suspeitariam dele. De qualquer modo, os primeiros retores inventaram a disposição do discurso judiciário, que Antifonte divide em cinco partes; também elaboraram os lugares (topoi), argumentos que bastava decorar e chamar à baila em determinado momento da disputa jurídica. Assim, no exórdio, o orador começa dizendo que não é orador, elogia o talento do adversário, etc.

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Conservou-se um magnífico exemplo dessa eloqüência epidíctica em Elogio de Helena. Sabemos que para os gregos Helena era o protótipo da mulher fatal. Esposa de Menelau, deixou-se raptar por Páris, o troiano, e os gregos, para resgatála, lançaram-se numa guerra que durou dez anos. Em seu discurso Górgias começa louvando o nascimento de Helena depois sua beleza: ' Em mais de um homem, ela despertou mais de um desejo amoroso; só por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontáveis corpos, uma multidão de guerreiros ... (Les présocratiques, p.l031)

Origem literária: Górgias Com Górgias surge uma nova fonte da retórica: estética e propriamente literária. Nascido por volta de 485, Górgias viveu cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Sócrates. Também siciliano e discípulo de Empédocles, em 427 foi para Atenas numa embaixada. Diz-se que ali sua eloqüência encantou os atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que voltaria. Essa história é significativa. Isso porque, até então, os gregos identificavam "literatura" com poesia (épica, trágica, etc.). A prosa, puramente fimcional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum. Górgias, um dos fundadores do discurso epidíctico, ou seja, elogio público, cria para esse fim uma prosa eloqüente, multiplicando as figuras, que a tornam "uma composição tão erudita, tão ritmada e, por assim dizer, tão bela quanto a poesia" (Navarre, p. 86). Suas figuras são, por um lado, de palavras: assonâncias, rimas, paronomásias, ritmo da frase; por outro, figuras de sentido e pensamento: perífrases, metáforas, antíteses. Exemplo de metáfora: "Túmulos vivos", para os abutres. Exemplo de antítese, o final do Elogio fúnebre aos heróis atenienses, cuja tradução é um pálido reflexo: Assim, apesar de terem desaparecido, o ardor deles com eles não morreu, porém, imortal, vive em corpos não imortais, ainda que eles não vivam mais. (Les présocratiques, p. 1030)

Mas então como perdoar-lhe o ter-se deixado raptar? O orador, através de uma enumeração completa, inventaria todas as possíveis causas desse rapto: ou ele se deveu ao decreto dos deuses e do destino; ou ela foi arrebatada à força; ou foi persuadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Ora, em nenhum dos casos Helena estava livre; em todos, foi subjugada por uma força superior à sua; portanto, não é culpada. Górgias se detém no terceiro caso, a força do discurso, e sua defesa de Helena na verdade é uma defesa da retórica:

o discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento material de pequenez extrema e totalmente invisível alçam à plenitude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo, dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade. (Ibid., p.1033) Observemos que sua retórica é bastante sofistica, visto que se baseia em uma petição de princípio. De fato, as únicas causas possíveis por ele atribuídas ao ato de Helena são precisamente as que a inocentam; não considera uma última possibilidade, a de que Helena tenha partido por livre e espontânea von .. Todavia, esse seu princípio, de que o ato involuntário não é culpável, é bem novo para a época. Aliás, é no sentido mais técnico que Górgias merece a denominação de sofista. Como todos os outros - Pitágoras, Pró-

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dico, Trasímaco, Hípias, Crítias, etc. -, ele foi professor; dava de cidade em cidade lições de eloqüência e de filosofia, cobrando a cada uma delas o fabuloso salário de cem minas. Digamos que por um dia de trabalho ele recebia o salário diário de dez mil operários! O mesmo acontecerá com Protágoras. Na realidade, esse ensino preenchia uma necessidade, pois até então os gregos só recebiam uma formação elementar, sem de parecido com um ensino superior ou mesmo secundário. E aos retores que se deve essa inovação: ensino intelectual aprofundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro objetivo senão a cultura geral. É verdade que logo Górgias foi criticado pela ênfase de sua prosa, que carecia demais de simplicidade; o verbo gorgiaz-o ficou como sinônimo de grandiloqüência. Mas sua idéia de prosa "tão bela quanto a poesia" impôs-se a todos os escritores gregos, a começar por Demóstenes, Tucídides, Platão ... Górgias pôs a retórica a serviço do belo.

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Ora, se admitirmos como ele que o ser não existe, ou que não é cognoscível nem comunicável, não estaremos reconhecendo ipso facto a onipotência da palavra, palavra que não está mais submetida a nenhum critério externo e da qual nem mesmo se pode dizer que é falsa? Nessas alturas estamos em plena sofística.

Protágoras: o homem medida de todas as coisas O elo entre a sofística e a retórica só aparece plenamente em Protágoras5 • Originário da Abdera, na Trácia, Protágoras (c. 486-410) também era um mestre itinerante, que ensinava ao mesmo tempo eloqüência e filosofia e também ganhava quantias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que GÓrgias. Chegando a Atenas, fez a seguinte profissão de fé agnóstica: Quanto aos deuses, não estou em condições de saber se existem ou se não existem, nem mesmo o que são. (Ibid., p.1 000)

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A retórica e os sofistas

A serviço do belo quererá dizer a serviço da verdade? Essa questão implica toda a relação entre a retórica e a sofística. Observemos que o ensinamento de Górgias comportava uma vertente filosófica. Foi conservado o resumo de um de seus discursos, intitulado Do não-ser, ou da natureza\ com este promissor início: Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que exista alguma coisa, o homem não a pode apreender; em terceiro lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, não pode ser formulada nem explicada aos outros. (Les présocratiques, p. 1022)

Haverá algum elo entre esse agnosticismo e a retórica? Em Elogio de Helena, ele diz: Quando as pessoas não têm memória do passado, visão do presente nem adivinhação do futuro, o discurso enganoso tem todas as facilidades. (Ibid., p. 1033)

O que logo lhe valeu uma condenação à morte, da qual, menos heróico que Sócrates, livrou-se fugindo. Com isso, foi um autor enciclopédico. Foi decerto o primeiro a interessar-se pelo gênero dos substantivos, pelos tempos dos verbos, bem como pela psicologia das personagens de Homero; em suma, pelo que depois será chamado de "gramática". Passa também por fundador da eristica, que depois virá a ser dialética. Partindo do princípio de que a todo argumento pode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado ou refutado, ele ensina a técnica eristica, arte de vencer uma discussão contraditória ("eristica" vem de éris, controvérsia). Essa arte, extremamente elaborada, não hesita em recorrer aos piores sofismas. Do tipo: },

...

•." ... O rato (mys) é um animal nobre pois é dele que provêm os mistérios ... (Aristóteles, Retórica, 140 la) Pode-se ser branco e não branco ao mesmo tempo, porquanto o etíope é negro (na pele) e branco nos dentes. (in Navarre, p. 65)

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É pouco compreensível como oradores célebres, gregos além de tudo, a começar por Protágoras, puderam impor-se com tais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Aristóteles e Platão, envidaram tantos esforços para refutar os sofistas, é sinal de que estes não eram negligenciáveis nem estúpidos, e que, acima de suas artimanhas publicitárias, eles ensinavam algo importante. Mas o quê? É dificil saber, pois só os conhecemos através de seus inimigos. Recordemos as teses de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas; em outras palavras, as coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade. O que produz o mais completo relativismo, porque, se uma coisa parece bela a um, feia a outro, fria a um, quente a outro, grande a um, pequena a outro, será as duas coisas ao mesmo tempo. Não há mais nenhuma objetividade, nem mesmo lógica, pois o princípio de contradição não vale mais. A cada um a sua verdade, e todas são verdades. A cada um: mas, em Protágoras, o "cada um" é tanto a cidade quanto o indivíduo; é a cidade que, em nome de seu próprio interesse, decide sobre os valores e as verdades. Isso equivale a dizer que nossa língua, nossas ciências, nossos valores estéticos e morais não passam de convenções que mudam de uma cidade para outra, que variam segundo a história e a geografia: "Bela justiça a que é delimitada por um rio ...", dirá Pascal, admitindo que assim é, e lamentando. Relativismo pragmático, tal parece ter sido a doutrina de Protágoras. Não existe verdade em si, mas uma verdade de cada indivíduo, de cada cidade; e o importante é aquilo que lhe permite fazer-se valer e impor-se, que é precisamente a retórica. Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a violência quanto a tolerância. Por isso ela nos parece ao mesmo tempo fascinante e ambígua; e é esse o sentimento que se tem diante do Protágoras de Platão. Platão parece ter detestado o grande sofista, que ele afirma ser pervertedor de jovens, e a quem objeta que não é o homem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E, no entanto, Platão escreveu dois pastichos, dois trechos brilhantes que ele atribui a Protágoras. O primeiro é o mito da origem do homem,

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em Protágoras (320 c s.), meditação antropológica espantosamente profunda e moderna. O segundo é a autodefesa de Protágoras em Teeteto (166 a). Esses dois textos nos apresentam um Protágoras cativante e respeitável, um mestre de humanismo e tolerância. Acreditar em quê, em quem?

Fundamento sofistico da retórica De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram a retórica como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático e global que se fundava numa visão de mundo. Ensino global: é aos sofistas que a retórica deve os primeiros esboços de gramática, bem como a disposição do discurso e um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a idéia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer retórica viva. Sim, todos os elementos de uma retórica riquíssima, que serão encontrados depois, especialmente em Aristóteles. No entanto, o fundamento que dão à retórica parece-nos bem perigoso. É de perguntar se eles não a comprometeram para sempre, ao justificá-la como o fizeram pela incerteza e pelo sucesso. Mas, afinal, por que esse laço, aparentemente inquebrantável, entre o sofista e o retor? Certamente porque o mundo do sofista é um mundo sem verdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar o consenso de todos os espíritos, para dizerem que dois e dois são quatro e que Tóquio existe ... Privado de uma realidade ob o discurso humano fica sem referente e não tem outro critério senão o próprio sucesso: sua aptidão para convencer pela aparência de lógica e pelo encanto do estilo. A única ciência possível é, portanto, a do discurso, a retórica.

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Concretamente, o que muda? Muda que o discurso não pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, só poderá ser eficaz; em outras palavras, próprio para convencer, que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem réplica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra; ela já não está devotada ao saber, mas sim ao poder. Os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e o objetivo de sua educação não deixa de ser nobre: capacitar os homens "a governar bem suas casas e suas cidades"6. Entretanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas o saber fazer a serviço do poder. Com a sofistica, a retórica é rainha, mas rainha despótica . porquanto ilegítima. Agora, o elo entre retórica e sofistica é fatal: será possível salvar a primeira da segunda?

Isócrates ou Platão? Vimos que a retórica veio atender a diversas necessidades dos gregos: necessidade de técnica judiciária, de prosa literária, de filosofia, de ensino. Ora, Isócrates vai conseguir satisfazer sozinho essas quatro exigências, ao propor uma retórica mais plausível e mais moral que a dos sofistas. Aliás, a partir do final do século V, esse termo passou a ser pejorativo, e devemos agradecer Isócrates por ter libertado a retórica do domínio sofistico. O problema está em saber se de fato foi uma libertação real, e se afinal Isócrates não deixou as coisas como estavam. É exatamente isso que Platão critica nele.

!sócrates, o humanista Ateniense da gema, Isócrates viveu noventa e nove anos (436-338). Sua voz fraca e sua invencível timidez impediramno de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratória. Aos oitenta anos, foi-lhe movida uma espécie de processo fiscal

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bastante grave; ele escreveu sua própria defesa, confiou-a a um discípulo e ... perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicar sua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, aliás, como modelos que publicou inúmeros discursos, alguns jurídicos, outros epidícticos. Em suma, um grande professor de retórica, admirado pelos contemporâneos e sempre admirável. Ao contrário de seus predecessores, recusa-se a fazer malabarismos prop_agandísticos e rejeita a aprendizagem automática de lugares e outros procedimentos. Ensina sempre recorrendo à reflexão do aluno e fazendo seus grandes discípulos cooperarem na gênese de seus próprios discursos, que lêem, discutem e corrigem com o mestre 7 • Aliás, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de capacitar qualquer um a persuadir qualquer um, ele mostra que o ensino não é todo-poderos0 8 • A seu ver, para ser orador, são necessárias três condições. Para começar, aptidões naturais. Depois, prática constante. Finalmente, ensino sistemático. Prática e ensino podem melhorar o orador, mas não criá-lo. Apesar de, como Górgias, querer uma prosa literária, despreza a grandiloqüência e cria uma prosa que se distingue completamente da poesia: sóbria, clara, precisa, isenta de termos raros, de neologismos, de metáforas brilhantes, de ritmos marcados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Sem ser poética, tem um ritmo que se deve ao equilíbrio do período e à cláusula que a fecha; é eufônica, evitando as repetições desgraciosas de sílabas e os hiatos. Principalmente, moraliza a retórica ao afirmar alto e bom som9 que ela só é aceitável se estiver a serviço de uma causa honesta e nobre, e que não pode ser censurada, tanto quanto qualquer outra técnica, pelo mau uso que dela fazem alguns. Aliás, para Isócrates, ensino literário e formação moral estão ligados, para dizer o mínimo. De fato, ele ensina que a retórica deve ter um objetivo para depois procurar todos os meios de sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a organizar um discurso, não se estaria também ensinando a governar a própria vida? O ensino literário é uma escola de estilo, de pensamento e de vida. Idéia bem grega, de que a har-

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monia é o valor por excelência, que rege a existência tanto quanto rege o discurso. Estamos aqui na origem do humanismo, para o qual Isócrates contribui, aliás, com um fundamento antropológico. A palavra, diz ele, é "a única vantagem que a natureza nos deu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo o resto"lO. Em outras palavras, todas as nossas técnicas, toda a nossa ciência, tudo o que somos devemos à fala. Donde ele infere uma conclusão política: os gregos, povo da palavra, formam na verdade uma única nação, não pela raça, mas pela língua e pela cultura. Devem, portanto, renunciar às guerras fratricidas e unir-se. Isócrates, que se proclama anti-sofista, também não reivindica o nome de retor. Ele se diz "filósofo". Mas, convencido (de que o homem não pode conhecer as coisas assim como são, colocando a dialética de Platão no mesmo nível de inutilidade da eristica dos sofistas, integra a filosofia na arte do discurso". Ela é para a alma o que a ginástica é para o corpo, formação intelectual e moral, boa para os jovens, mas inútil para perseguir por toda a vida (a mesma critica que será feita a Sócrates'2 por Cálicles). Em suma, para Isócrates, "filosofia" é cultura geral, centrada na arte oratória; numa palavra: retórica. Nesse caso, qual é seu mérito em relação aos sofistas? Uma contribuição tipicamente grega, o sentido da beleza. Ele escreve em seu Elogio de Helena que a beleza é "o mais venerado, o mais precioso, o mais divino dos bens" (54). É a beleza que constitui a harmonia do discurso e da vida, e a educação é ética pelo simples fato de ser estética. Se a linguagem é peculiar ao homem, a bela linguagem é valor por excelência: e a retórica, confundida com a filosofia, é a rainha das ciência. Mas será possível separar o discurso do ser, a beleza da verdade?

Uma pausa Se Isócrates enaltece a retórica, que para ele é toda a filosofia, Platão, em nome da filosofia, aplica-se a uma critica de

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fundo contra a retórica, especialmente no livro que lhe dedica, Górgias, um dos textos mais fortes de toda a literatura. Mas comecemos com uma pausa, dando pela última vez a palavra ao sofista retor. Pois nesse diálogo Platão lhe dá a palavra. Põe em cena seu mestre Sócrates a discutir retórica com Górgias e mais dois de seus discípulos. Aliás, parece que o Górgias histórico é menos visado em Górgias do que Isócrates. No começo, Sócrates, fingindo ignorar o que é retórica, pede a Górgias que a defina. Ela é - responde o outro - "o poder de persuadir pelo discurso" assembléias de qualquer tipo (452 e): ela é, portanto, "criadora de persuasão" (peithous demiurgos). Sócrates então faz uma pergunta capital para o que se segue: será que a retórica tem ciência daquilo de que persuade? E Górgias responde que ela não precisa disso (tanto quanto quem faz propaganda de um remédio não precisa ser médico). Mas então para que precisamos dela: nos debates públicos não se buscará o conselho de especialistas, e não retores? A resposta de Górgias merece ser citada por inteiro.

Texto 1- Platão, Górgias, 455 d a 456 c, trad. M. Croiset GÓRGIAS - Vou tentar, Sócrates, revelar-te claramente o poder da retórica em toda a sua amplitude (... ). Não ignoras por certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de toda a organização de vossos portos se deve por um lado aos conselhos de Temístocles e por outro aos de Péricles, mas em nada aos dos homens do oficio. SÓCRATES - É isso realmente o que se relata a respeito de Temístocles, e, quanto a Péricles, eu mesmo o ouvi propor a construção do muro interno. GóRGIAS - E, quando se trata de uma dessas eleições de que falavas há pouco, podes verificar que também são os oradores que matéria dão e que a fazem . SÓCRATES - Posso venficar ISSO com espanto, Gorglas, e por isso me pergunto há muito tempo que poder é esse da retórica. Ao ver o que se passa, ela se me aparece com uma coisa de grandeza quase divina.

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INTRODUÇÃO À RET6RICA GÓRGIAS - Se soubesses tudo, Sócrates, verias que ela engloba em si, por assim dizer, e mantém sob seu domínio todos os poderes. Vou dar-te uma prova impressionante disso: Aconteceu-me várias vezes acompanhar meu irmão ou outros médicos à casa de algum doente que recusava uma droga ou que não queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que as exortações do médico resultavam vãs eu conseguia persuadir o doente apenas com a arte da retórica. Que um orador e um médico andem juntos pela cidade que quiseres: se começar uma discussão numa assembléia popular ou numa reunião qualquer para decidir qual dos dois deverá ser eleito médico, afirmo que o médico será anulado e que o orador será escolhido, se isso lhe agradar. O mesmo aconteceria com qualquer outro artesão: o orador se faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois não há assunto sobre o qual um homem que conhece retórica não consiga falar diante da multidão de maneira mais persuasiva que um homem do oficio, seja ele qual for. Aí está o que é retórica, e do que ela é capaz.

Para começar, cabe admirar a ironia de Sócrates (§ 4), que finge não compreender e espantar-se. Observemos também que, sem explicitar, Górgias ilustra a teoria de Isócrates, para quem a palavra é apanágio do homem e origem de todos os seus "poderes"; donde se pode concluir que o domínio da palavra será também o domínio de todas as técnicas. Górgias, porém, não utiliza o raciocínio. Argumenta através do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipotência da retórica, ele parte de dois fatos bem conhecidos, de que seu próprio interlocutor foi testemunha (§ 2). Esses exemplos são muito fortes, pois bastam para pôr em xeque a pretensão dos especialistas e refutá-la. Ainda hoje não são os especialistas que promovem vendas, mas publicitários. Ainda hoje como na Grécia, as decisões políticas não são tomadas por especialistas. Por quê? Porque estão em falta? Ao contrário, talvez por existirem em excesso, por ser necessário selecionar os melhores, que raramente sabem se impor. É preciso, portanto, um "retor", um não-especialista que em contrapartida disponha de

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uma visão global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir e fazer-se ouvir. E seria fácil continuar os exemplos de Górgias: são os presidentes das empresas que decidem, não os engenheiros; os grandes ministros raramente são especialistas em seu setor: um Ministro da Saúde não precisa ser médico, um Ministro da Educação não precisa ser professor, e os melhores comandantes das guerras não são militares: pensemos em Clemenceau ou em Churchill. Quem realmente decide não são os especialistas, mas aqueles que, graças à cultura e à arte da eloqüência, são capazes de fazer-se ouvir e arbitrar. Aliás, é por isso que Protágoras, em outro diálogo, afirma que educa os jovens não para torná-los técnicos em alguma coisa, mas para sua educação all'epi paideia, ou seja, para sua cultura geraP3. Na seqüência de seu discurso, Górgias amplia o argumento, mas por isso mesmo o enfraquece, pois exige demais dele. Depois de mostrar o poder da retórica, quer transformá-lo em onipotência. Para isso acrescenta outro exemplo, menos verificável, mas também plausível, o do orador que convence o enfermo. Continuamos no verossímil: para levar um paciente a admitir que tem de sofrer para curar-se, é preciso coisa diferente da ciência médica: psicologia. Mas no fim a argumentação incha a ponto de explodir, com o exemplo - puramente fictício - do concurso. A assembléia preferirá o orador ao médico, caso o orador queira fazerse eleger médico! No fundo é o ponto de vista da publicidade, que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "venderse". No entanto o eu afirmo (phémi) de Górgias não é realmente autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por mais numerosos e eloqüentes que sejam, não provam tudo; não que não provem nada, mas não provam nada de universal. Desse modo, os exemplos de Górgias provam que nem tudo podem os especiattstas, e não que nada podem; provam que a retórica é capaz de alguma coisa, e até muito, mas não que é onipotente. Na verdade, seria fácil contra-argumentar mostrando que, sem médicos ou outros especialistas, o retor não iria muito longe; a

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cidade que o tivesse elegido médico não seria enganada por muito tempo! Em suma, partindo de um argumento muito forte, Górgias o enfraquece, depois o destrói, exigindo dele o que ele não pode provar.

Retórica e cozinha A seqüência do diálogo é uma refutação progressiva e total da retórica. Para começar, é o próprio Górgias que, como Isócrates, limita o pOder dela, subordinando-a à moral: Deve-se usar a retórica com justiça, assim como todas as armas. (Górgias, 457 b; cf. Isócrates, A troca, 251 a 253)

Górgias (ou Isócrates?), retor honesto, subordina a retórica a uma moral que lhe é completamente exterior; mas não estaria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos da retórica? Pois, afinal, mesmo a serviço de uma boa causa, a arma continua sendo uma arma, e não é infalível que o seu poder seja sempre totalmente controlável. Sócrates começa fazendo Górgias confessar que a retórica assim definida não necessita conhecer aquilo de que está falando, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusão desdenhosa: Logo, quem leva a melhor sobre o sábio é um ignorante que está falando a ignorantes. (459 b; "sábio" no sentido de competente)

O debate torna-se mais agressivo com o discípulo de Górgias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escrúpulos que seu mestre. Como ele se embevece com a onipotência da retórica, Sócrates demonstra que esse poder teria a mesma natureza do poder do tirano, o que Polos admite, achando por certo que lhe dirão que a retórica é perigosa, imoral, etc. Ora, Só-

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crates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranos fazem o que querem? Naturalmente fazem o que lhes agrada, mas será realmente o que querem? Fazer o que se quer implica saber do que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valor real. Ora, o retor e o tirano não conhecem nada disso. Pois seu único critério é o prazer, e o prazer nunca indica o verdadeiro bem; só dá uma satisfação aparente e fugaz. Assim como a culinária cujo objetivo único seja lisonjear nossa gula não nos dá saúde, pelo contrário, também a retórica apenas lisonjeia, sem preocupação com o verdadeiro bem. Aquilo que a culinária é para a medicina, ciência da saúde, a retórica é para ajustiça, ou seja, sua falsa cara, sua imitação. Poder da retórica? Um poder sem freios como o do tirano, e sem controle. Mas é poder de verdade? Polos afirma que o tirano é o homem onipotente, pois pode fazer "tudo o que lhe agrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei alguma. Ora, Sócrates abstém-se de criticas morais, do tipo "não está certo". Mostra simplesmente que "não é forte", que esse poder que o retor e o tirano se atribuem não passa de impotência, porque não fundado em verdade, porque não pode justificar o que está propondo ou se propondo. O tirano considera-se um monstro, mas um monstro feliz; na verdade, é apenas fraco e infeliz, mais digno de lástima que suas vítimas. POLOS - O homem miserável e digno de piedade sem a menor dúvida é aquele que foi morto injustamente. SÓCRATES- Menos do que aquele que mata, Polos ... (469 b)

E a retórica, com todo o seu prestígio, sofre da mesma impotência; não passa de técnica cega e rotineira que, longe de proporcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem ajudá-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotência da retQrica não passa de impotência:

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Os oradores e os tiranos são os mais fracos dos homens. (466 d)

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Platão rejeita a confiança que os sofistas como Isócrates atribuem à linguagem. Só lhe reconhece valor se a serviço do pensamento, único a atingir as "idéias", a verdade inteligível: A autêntica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro, não existe e não poderá jamais existir. (Fedro, 260 e)

É por isso que a retórica não é nem mesmo o que pretende ser, uma tekhné, uma arte. Em resumo, Platão volta contra o retor o seu próprio argumento. Seu pretenso "poder" nada é. Por quê? Porque ele desconhece o verdadeiro, porque lhe falta a ciência, especialmente a da justiça, única que concede o poder real e a felicidade. Assim CC!JllO é a medicina que proporciona o verdadeiro bemestar, não a confeitaria.

De que "ciência" se trata? Só que o argumento de Platão sustenta-se apenas por seu pressuposto: de que, no domínio dajustiça e da felicidade, existe uma "ciência", um conhecimento tão seguro quanto a medicina, que, assim como esta desqualifica a culinária, autorizaria a desqualificar a retórica. E Platão está bem convencido disso. Para ele, essa ciência, a dialética, proporciona um conhecimento das coisas éticas e políticas tão seguro quanto as ciências da natureza, e até mais seguro (cf. República, livros VII e VIII). Mas essa ciência existe? Quando Sócrates lança a Polos a célebre fórmula: "Mais vale sofrer a injustiça do que a cometer", querendo dizer com isso que a vítima não só é menos desonesta como também menos infeliz, porquanto o mal não está nela, tem razão. Mas será que podemos saber uma única vez e uma vez por todas o que é o justo e o que é o injusto? Hoje em dia, certamente em sentido diferente, alguns autores afirmam também que existe uma ciência da política, da ética, da educação, o que lhes permite condenar, como Platão, tudo o que é retórico, a que dão o nome de "literário" ou mesmo "filosófico". Mas afinal, se tal ciência existisse, todos sa-

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beriam disso! Há um bom tempo estaríamos livres de ações errôneas e erráticas, e poderíamos prever o futuro com segurança e tomar decisões irrefutáveis. Ora, nesse ponto, Isócrates continua tendo razão: não é por aí. A "ciência" que Platão opõe à retórica ainda está para ser feita e, sem dúvida, estará sempre. Notemos que, em Fedro, ele parece reabilitar a retórica. Mas trata-se de uma retórica a serviço da dialética, método da verdadeira filosofia, que "capacita a falar e a pensar" (266 b). Uma retórica do verdadeiro, que não procura o beneplácito das multidões, mas dos deuses (273 e). Mas essa retórica, que não passa de expressão da filosofia, perde toda a autonomia, e mesmo toda a existência própria. Concluindo, como diz muito bem Barbarin Cassin 1\ Platão apresenta-nos duas retóricas, quer dizer, duas a mais. A primeira, a dos sofistas e de Isócrates, não é arte, mas uma falsa adulação. A segunda é apenas uma expressão da filosofia, sem conteúdo próprio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo estéril entre uma publicidade que só procura agradar, para vender, e uma pretensa "ciência humana" que não resolve os problemas humanos, abstendo-se mesmo de formulá-los. Entretanto, esse conflito talvez não seja fatal. Deve ser possível uma outra retórica.

Capítulo 11

Aristóteles, a retórica e a dialética

Aristóteles (384-322) nasceu - quinze anos depois da morte de Sócrates - em Estagira, cidadezinha litorânea entre Salônica e o monte Atos. Entra com dezessete anos na Academia de Platão e ali fica vinte anos, abandonando-a por não poder suceder ao mestre; vai fundar uma escola concorrente, o Liceu. Filósofo e sábio universal, soube conciliar em si duas tendências pouco conciliáveis: o espírito de observação e o espírito de sistema. Antes de fundar o Liceu, foi preceptor do filho do rei Filida Macedônia, que mais tarde se distinguiu como um dos pe maiores gênios militares e políticos de todos os tempos, conquistando para a pequena Grécia todo o Oriente, desde o Egito até a Índia. Aristóteles e Alexandre, o Grande: o que o primeiro pode ter ensinado ao segundo? Um militar tentou responder:

o poder do espírito implica uma diversidade que nunca se encontra unicamente na prática da atividade profissional, do mesmo modo como não nos divertimos apenas em família. A verdadeira escola do comando está na cultura geral. Por meio dela, o pensamento é posto em condições de exercer-se, com ordem, de distinguir o essencial do acessório nas coisas, de perceber os prolongamentos e as interferências, em suma, de elevar um nível em que o conjunto aparece sem o prejuízo dos matizes. Não há ilustre capitão que nunca tenha tido gosto nem sentimento pelo patrimônio do espírito humano. Por trás das vitórias de Alexandre, encontramos sempre Aristóteles. (Charles de Gaulle, Vers I'armée de métier, 1934)

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Belo elogio da retórica. Retórica que Aristóteles vai repensar de cabo a rabo, integrando-a de início num sistema filosófico bem diferente daquele dos sofistas, e depois transformando-a em sistema.

Uma nova definição de retórica Texto 2-Aristóteles, Retórica, livro I, capo 2, 1355 a-b (1) A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e o justo mais força natural que os seus contrários, se os julgamentos não são como conviria, é necessariamente por sua única culpa que os litigantes [cuja causa é justa] são derrotados. Sua ignorância merece, portanto, censura. (2) Ainda mais: conquanto possuíssemos a ciência mais exata, há certos homens que não seria fácil persuadir fazendo nosso discurso abeberar-se apenas nessa fonte; o discurso segundo a ciência pertence ao ensino, e é impossível empregá-lo aqui, onde as provas e os discursos (logous) devem necessariamente passar pelas noções comuns, como vimos em Tópicos, a respeito das reuniões com um auditório popular. (3) Ademais, é preciso ser capaz de persuadir dos prós e dos contras, como no silogismo dialético. Não para pôr os prós e os contras em prática - pois não se deve corromper pela persuasão! -, mas para saber claramente quais são os fatos e para, caso alguém se valha de argumentos desonestos, estar em condições de refutá-lo (... ) (4) Além disso, se é vergonhoso não poder defender-se com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse vergonha em não poder defender-se com a palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que o do corpo. (5) Objetar-se-á que a retórica pode causar sérios danos pelo uso desonesto desse poder ambíguo da palavra? Mas o mesmo se pode dizer de todos os bens, salvo da virtude (... ) (6) Fica claro, pois, que, assim como a dialética, a retórica não pertence a um gênero definido de objetos, mas é tão universal quanto aquela. Claro também que é útil. Claro, por fim, que

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sua função não é [somente] persuadir, mas ver o que cada caso comporta de persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras artes, pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer tudo o que for possível para curar o doente.

Uma definição mais modesta ...

Nós mesmos traduzimos esse texto capital, utilizando a tradução de Médéric Dufour, a de Rhys Roberts, na edição inglesa, e evidentemente o texto grego. Se compararmos esse trecho com o de Górgias (texto 1), veremos nos dois casos que se trata de um elogio à retórica. Górgias a celebra por seu poder, Aristóteles por sua utilidade. Ambos admitem (como Isócrates) que ela pode ser usada desonestamente (adikôs), o que em nada subtrai o seu valor. Entretanto, se é que Górgias e Aristóteles estão falando da mesma coisa, não falam da mesma maneira. O discurso do sofista é digno quando muito de uma praça pública; sua argumentação pelo exemplo dá guinadas. O de Aristóteles, ao contrário, é muito coeso; procede por silogismos implícitos, ou entimemas. Em suma, passa-se de uma arenga propagandística, do tipo "vocês vão ver o que vocês vão ver", para uma argumentação rigorosa. E essa nova argumentação dá uma idéia mais profunda e sólida da retórica. Para começar, já não a apresenta como poder de dominar, mas como poder de defender-se, o que logo de cara a toma legítima. Em seguida, os argumentos contrários ao mau uso são muito mais fortes, porque o explicam; é precisamente por ser um bem (agathon) que a retórica pode ser pervertida, assim como a força, a saúde, a riqueza. Com exceção da virtude moral, todos os bens são relativos. Mas, enfim, nem por isso deixan;l de ser bens, pois mais vale ser forte que fraco, sadio que dotDte ..-. Do mesmo modo, é preferível saber utilizar a força do discurso. Em resumo, enquanto a defesa de Górgiasou de Isócrates consistia em fazer da retórica um instrumento neutro, que só

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valia pelo uso, Aristóteles lhe confere um valor positivo, ainda que relativo. Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, à sua definição "corrigida" da retórica. Ela não se reduz, diz ele, ao poder de persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no essencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta. Em outras palavras, o bom advogado não é aquele que promete a vitória a qualquer custo, mas aquele que abre para a sua causa todas as probabilidades de vitória. E aqui surge uma vez mais a personagem paradigmática do iatrós, do médico. Para Górgias, ele estava submetido ao retor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seu paciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Platão, é, ao contrário, o faz papel bonito; é ele que sabe e pode curar, enquanto o retor não passa de envenenador que não sabe nem como nem por que envenena, uma vez que sua pretensa arte não passa de rotina cega. Pode-se observar que o médico de Aristóteles tem bem menos segurança do que faz; ele nada pode fazer pelos doentes incuráveis, e mesmo aos outros não pode prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportunidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infinitamente mais científica que a de Aristóteles, não pode prometer mais. Aqui o médico já não está abaixo do retor, nem acima; ambos estão frente a frente, sendo cada um detentor de uma arte que só tem poder porque reconhece seus limites. Em resumo, dando à retórica uma definição mais modesta que a dos sofistas, ele a toma muito mais plausível e eficaz. Entre o "tudo" dos sofistas e o "nada" de Platão, a retórica se contenta com ser alguma coisa, porém de valor certo.

A argumentação de Aristóteles Nosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso é feito com quatro argumentos mais uma prolepse (§5), para finalmente passar à definição. Os quatro argumentos têm por finalidade provar a tese, exposta desde o início: "A retórica é útil" (khrésimos); em ou-

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tras palavras, dela se pode esperar aquilo que se espera de todas as técnicas: um serviço; é o que vão mostrar os quatro argumentos, cada um por sua vez. O primeiro argumento parece responder a uma objeção implícita: não é possível contentar-se com expor simplesmente o verdadeiro e o justo, sem recorrer a artifícios oratórios? Aristóteles leva em conta a objeção, dizendo: sim, o verdadeiro e o justo são por natureza (physei) mais fortes que seus contrários. Só que a experiência mostra - aqui, argumento pelo exemplo que muitos veredictos dos tribunais são iníquos. Como explicar isso? Pelo erro dos litigantes, que não souberam fazer valer seus direitos, que não conseguiram sobrepujar a retórica de seus adversários, capazes de "tomar mais forte o argumento mais fraco", de fazer o injusto prevalecer sobre o justo. Se a arte pode ter vantagem sobre a natureza, é preciso um suplemento de arte para devolver à natureza seus próprios direitos. É isso o que o terceiro argumento desenvolve tecnicamente. É preciso ser capaz de defender tão bem o contra quanto o pró, claro que não para tomá-los equivalentes - como pretendiam os sofistas -, mas para compreender o mecanismo da argumentação adversária e assim a refutar. O quarto argumento amplia o debate, ligando novamente a retórica à condição humana, como já fazia Isócrates, o grande ausente-presente de todo o debate. Se a palavra é característica do homem, é mais desonroso ser vencido pela palavra que pela força física. Para interpretar a polissemia do termo grego 10gos, o tradutor inglês emprega rational speech. Na verdade, esses argumentos valem não somente para o discurso judiciário como também para todos os tipos de discursos públicos. No campo do direito, da política, da vida internacional, vivemos sempre uma situação polêmica, em que as armas mais eficazes são as da palavra, visto que só ela - e não a força física - define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o nobre e o;àWsprezível. A retórica, arte ou técnica da palavra, é, portanto, indispensável. E aí está o que a legitima. Mas o que dizer então da objeção de Platão, qual seja, que a retórica é inteiramente estranha à verdade? Parece-nos que o

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segundo argumento de Aristóteles (§ 2) responde implicitamente a ele. A retórica, dizia Platão, que se autodefine como arte onipotente, não é arte de modo algum, pois é cega no que faz e no que quer. Por ignorar o verdadeiro, não é nem mesmo verdadeiro poder. O que responde Aristóteles? "Conquanto possuíssemos a ciência..." É preciso entender bem o que está em jogo. Aristóteles opõe-se aos sofistas, para os quais tudo é relativo, e também, como sempre, a Isócrates, para quem uma ciência absoluta, à moda de Platão, não passa de logro, visto que o homem poderá chegar apenas a opiniões justas, ou melhor, mais ou menos justas (A troca, VI, 271). Quanto a Aristóteles, admite que existe uma ciência exata, e até "inteiramente exata" (akribestaté). Assim como Platão, admite uma ciência que, por via demonstrativa, parta do verdadeiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Platão que a ciência mais exata é impotente para convencer certos auditórios, aos quais falta instrução. É preciso, portanto, utilizar noções "comuns", ou seja, acessíveis ao comum dos mortais. Suponhamos que uma comissão médica queira fazer campanha contra o tabagismo: vai precisar achar para difundir coisa bem diferente de um curso de medicina! Tal é a interpretação corrente do texto de Aristóteles. No entanto, ela nos parece evidente e banal demais para não ser suspeita. Com efeito, no fim da alínea, Aristóteles refere-se à dialética dos Tópicos. Atendo-nos a essa interpretação, poderíamos acreditar que a dialética não passa de quebra-galho, devido à incultura dos auditórios populares, uma maneira de falar aos ignaros, que só têm a seu favor (quando muito) o senso comum. A retórica seria então a filosofia do pobre, o que no fundo nos remete a Platão. Na verdade, é preciso retomar à frase obscura: "o discurso segundo a ciência pertence ao ensino". Em outras palavras, um discurso submetido às exigências científicas só pode ser feito numa escola, numa instituição especial, com seus métodos, seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, não é a mesma coisa quando se fala diante de um tribunal, ou em praça pública, onde não se tem nem mesmo o tempo para expor cientificamente. Mas será por causa da incultura do auditório?

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Parece que o problema está em outro lugar. O domínio da retórica, o das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo da verdade científica, mas do verossímil. O próprio Aristóteles diz isso em outro texto: Seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos simplesmente persuasivos quanto exigir de um orador (retor) demonstrações invencíveis. (Ética a Nicômaco, I, 1094 b)

A retórica não é, pois, a prova do pobre. É a arte de defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível, o que a obriga a passar por "noções comuns", que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria menos científico do que exigir respostas científicas. Numa palavra, Aristóteles salva a retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe Um papel modesto, mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos. É a arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo, sempre que não houver outro recurso senão o debate contraditório. Para entender melhor isso, passemos ao exame da relação entre a retórica e a dialética 1•

o que é dialética? Sabe-se que os gregos eram grandes esportistas, praticantes de toda espécie de lutas e competições. Mas também se destacavam numa disputa esportiva fora dos estádios e ginásios, ou puramente verbal, a dialética. Dois adversários se enfrentam diante do público: um sustenta uma tese - por exemplo, que o prazer é o bem supremo -, e a defende custe o que custar; o outro ataca com todos os argumentos possíveis. O vencedor será aquele que, prendendo o adversário em suas contradições, conSe8uir reduzi-lo ao silêncio, para grande alegria dos espectadores. Parece que a primeira dialética foi a erística dos sofistas, arte da controvérsia que permitia fazer triunfar o absurdo ou o

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falso. Sócrates e depois Platão puseram a dialética a serviço do verdadeiro, transformando-a no próprio método da filosofia. Para Aristóteles, a dialética não está menos a serviço do verdadeiro do que do falso; ela trata do provável: Em filosofia, é preciso tratar as questões segundo a verdade, mas em dialética somente segundo a opinião2•

A dialética de Aristóteles é apenas a arte do diálogo ordenado. O que a distingue da demonstração filosófica e científica é raciocinar a partir do provável. O que a distingue da erística sofista é raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente as regras da lógica.

A dialética é um jogo

O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes, necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simplesmente prováveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a todo o mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indivíduos competentes. O endoxon opõe-se, pois, ao paradoxon (o paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opinião aceita). São assim, hoje em dia, os conceitos de "normal" ou de "maturidade": não possuem nenhum rigor científico, mas são úteis para que as pessoas se entendam, tanto nas ciências humanas quanto na vida social; seriam bons exemplos de endoxa. Portanto, a dialética renuncia à verdade das coisas em beneficio da opinião aceita. Substitui a pergunta científica: "o que é?" por esta outra: "o que lhe parece?"3. A verdade é que Aristóteles toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consenso do consenso aparente (phainomenon endoxon), com que se contentam os sofistas. Hoje, quem lê os Tópicos pergunta-se com freqüência o que distingue Aristóteles dos sofistas. Desconfia-se que seu objetivo não é ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipular o adversário e mesmo a enganá-lo.

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Em nossa opinião, a melhor resposta para esse tipo de crítica é mostrar que a dialética não é nem moral nem imoral, simplesmente porque, no fundo, ela é um jogo. Num jogo, o problema é ganhar. E, neste, vencer é convencer; em outras palavras, uma proposição enunciada pelo adversário é admitida como provada, sem que se possa voltar a ela. Como em todos os jogos, a polêmica só é conflito na aparência: um prélio esportivo ou uma partida de xadrez estão tão longe de ser um conflito real quanto um rei do xadrez está longe de um monarca histórico; assim, quem defende uma tese pode muito bem não acreditar nela; defende-a por jogo ... Enfim, como todo jogo, a dialética não tem outro fim além de si mesma: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E é nisso que se distingue das atividades sérias: da filosofia por um lado e da retórica por outro, ainda que lhes seja - como veremos - indispensável. Em síntese, um jogo análogo ao xadrez, em que o acaso tem posição ínfima. Um jogo em que se deve fazer de tudo para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras ... da ló'gica.

Tudo para ganhar

No embate dialético, é preciso antes de tudo levar em consideração o adversário concreto que temos diante de nós e dispor os argumentos por via de conseqüência. Por exemplo, se o adversário é iniciante, será atacado com exemplos ou analogias; se for experiente, ser-Ihe-ão opostos raciocínios dedutivos4 • Aristóteles, aliás, ensina procedimentos, "truques" próprios a desorientar o adversário, impedi-lo de ver aonde se quer chegar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argumentação que dissimulem a conclusão, para que o adversário não sat& aonde se está indo realmente; inserir na argumentação proposições inúteis para melhor esconder o jogo, etc. 5 ; do mesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objeções a si mesmo; às vezes não se hesita em concluir o verdadeiro a

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partir de premissas falsas, em se verificando que o adversário admite estas últimas mais facilmente que as verdadeiras!6 No todo, as aparências são salvas. Tem-se até o direito de jogar com as palavras (como os sofistas!), quando, por culpa do adversário, se está "absolutamente impossibilitado de discutir de outra maneira..."7. Na verdade, pouco importa se o defensor sustenta uma tese provável ou improvável; pouco importa se a tese é dele, de outro, ou de ninguém. O importante é acharem que ele defendeu bem, que argumentou brilhantemente8 ; por fim, caso o questionador tenha vencido ressaltando todos os absurdos decorrentes da tese, o defensor deve poder "mostrar" que a culpa nâo é sua, mas da própria tese; em suma, que ele defendeu o melhor que pôde uma tese que não era sua>, Assim, num debate dialético, o objetivo do questionador é parecer, por todos os meios, estar fazendo uma refutação, e o objetivo do defensor é parecer não estar sendo afetado pessoalmente em nada.

(VIII,5,159a)

Respeitar as regras do jogo Um jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitandose as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas não por quaisquer meios. Porque a trapaça, transgressão das regras lógicas, induz de chofre a destruição do jogo. E é exatamente por isso que Aristóteles tanto insiste nas regras da dialética, que a opõem à sofistica, essa trapaça. As principais são as que seguem: Para começar, as que - sem serem propriamente lógicas têm por objetivo permitir a conclusão, o fim do jogo, num tempo limitado. Assim, se é verdade que, a partir de casos particulares, por mais numerosos que sejam, nunca se pode concluir por uma proposição universal, cumpre entretanto que o adversário, após certa quantidade de exemplos, aceite essa passagem para o universal, a menos que ele próprio gere um contra-exemplo. Se, ao

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contrário, se obstinar, não estará fazendo mais que chicanice, pois estará bloqueando o debate de modo totalmente arbitrário lO • Analogamente, é preciso evitar que as objeções acabem virando obstrução, o que equivale a desperdiçar tempo e paralisar a discussão para não perder. De modo mais geral, deve-se evitar discutir com qualquer um, porque, se o adversário ignora as regras do debate, este só poderá abespinhar-se, já que cada um recorrerá a qualquer meio para impor sua conclusão II • Às regras que dizem respeito aos argumentadores, acrescentam-se as que dizem respeito à argumentação. Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito aos termos. Muitas vezes os debates são deturpados por se utilizarem premissas ambíguas. Vejamos, entre milhares de exemplos, este sofista registrado na Lógica de Port-Royal (p. 217): Não és o que sou; eu sou homem; logo, não és homem.

Sofisma porque, na conclusão, "ser homem" é tomado no sentido universal, enquanto na premissa menor ele é tomado em sentido particular: este homem, e não todo o homem ou qualquer homem I2 • Outros sofismas dizem respeito à forma do raciocínio. Por exemplo, a petição de princípio, que toma como aceita a tese que se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras I3 ; em que a conclusão é extraída de premissas menos prováveis que ela, ou de premissas excessivamente numerosas para que se possa compreender a razão do que está sendo concluído; e em que se chega à conclusão por meio de um raciocínio impróprio ao assunto, como por exemplo um raciocínio não geométrico para estabelecer uma conclusão geométrica I4 • Vimos que, contra certos adversários malevolentes ou limitados, o verdadeiro pode ser concluído de premissas falsas. Mas, ,mesmo nesse caso, continua proibido transgredir as regras d&raciocínio; sejam as premissas certas, prováveis ou falsas, o raciocínio deve ser correto. A passagem,do falso ao verdadeiro deve ser dialética, não erística (161 a).

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Enfim, uma regra apropriada ao 'jogo" dialético: só serão feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com não. Por exemplo, não se deve perguntar: "O que é o bem?", mas: "O bem se reduz ao prazer?" (158 a)

Utilidade do jogo dialético A dialética é, pois, um jogo cujo objetivo consiste em provar ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio. O papel do inquiridor "é concluir a discussão de modo que o defensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como conseqüências necessárias de sua tese" (159 b). Ao outro, em contrapartida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial é que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos os argumentos a seu alcance. E esse "mostrar" já não é simples aparência; é o sofista que raciocina na aparência, exatamente como o trapaceiro, que faz de conta que estájogando. Quanto à dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência, mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que reforça ainda mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles: quando um dos dois adversários raciocina mal, a discussão vira chicana, e o faltoso "impede o bom cumprimento da obra comum" (161 a); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum, que é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas ambos querem levar a bom termo "a obra comum". Finalmente, qual é o proveito do jogo dialético? Aristóteles por certo responderia - e todos os gregos com ele - que esse jogo tem fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pela beleza e pelo prazer de uma disputa bem travada, prazer compartilhado, aliás, pelo público. Entretanto, Aristóteles diz em outro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo, pode-se também "jogar com vista a uma atividade séria"!5. Pode-se, com efeito, ignorar o valor insubstituível do jogo na educação? Pode-se ignorar o aspecto de jogo intelectual que se encontra tanto na matemática quanto na filosofia?

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E o próprio Aristóteles, no capítulo 2 do primeiro livro dos Tópicos, fixa os beneficios secundários oferecidos pela dialética. Aponta três: uso pedagógico, uso filosófico e uso social ("homilético", que diz respeito diretamente à retórica). O uso pedagógico será explorado pelo ensino durante cerca de vinte e cinco séculos! "É a gymnasía: Nos embates dialéticos, argumenta-se para avaliar as forças, e não para debater", "com o propósito de exercitar-se e provar-se, e não de instruirse"16. Se desse jogo não se extrair verdade alguma, pelo menos se adquirirá um treinamento intelectual, um método que permita argumentar sobre qualquer assunto. O 'uso filosófico divide-se em dois. Em primeiro lugar, a dialética, que desempenha um papel epistemológico por permitir (e só ela o faz) estabelecer através de um exame contraditório os primeiros princípios de cada ciência e os princípios comuns a todas. Foi graças a um exame dialético que Aristóteles estabeleceu os primeiros princípios da fisica, da moral e até o princípio de contradição. A outra função é interna à filosofia. A dialética dá ao filósofo uma competência que lhe é indispensável: "Numa palavra, é dialético quem está apto a formular proposições e objeções."!7 Proposição: extrair o universal de vários casos particulares; objeção: achar um caso particular que permita infirmar uma proposição universal... E ainda mais, a dialética dá ao filósofo "a capacidade de abarcar apenas com um olhar (00') as conseqüências de uma e de outra hipótese"; assim, só lhe resta "fazer a justa escolha entre ambas"18. Mas o filósofo não joga. Utiliza a formação que a dialética lhe dá para buscar a verdade. No uso lúdico da dialética, cada um leva em conta os objetivos reais ou prováveis do adversário que tem diante de si. No uso filosófico, têm-se em mente todas as objeções possíveis, ainda que estas jamais tenham sido formulaqas nem sejam formuláveis. O filósofo está diante de um adverMho que renasce a cada instante, pois está sempre insatisfeito: ele mesmo. Resta a função homilética da dialética:

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Sua utilidade no contato com os outros é explicada pelo fato de que, depois de prepararmos o inventário das opiniões da maioria (tôn pollôn), não estaremos falando a ela a partir de pressupostos que lhe sejam estranhos, mas a partir de pressupostos que lhe são próprios, sempre que a quisermos persuadir... (1,2, 101 a)

É preciso deixar claro que esta passagem é precisamente aquela à qual Aristóteles remete no segundo argumento de nosso texto de Retórica. "Contatos com os outros": essa é exatamente a área da retórica, e aí temos uma idéia dos serviços que a dialética pode prestar-lhe.

Retórica e dialética Qual é então a relação entre dialética e retórica? A esta pergunta Aristóteles responde desde a primeira frase de seu livro: a retórica é antístrofos da dialética" (Retórica, I, 1354 a). O problema é que não se conhece bem o sentido de antístrofos. Os tradutores utilizam ora "análogo", ora "contrapartida". Eo que não simplifica as coisas - a explicação do próprio Aristóteles é um tanto confusa. Nesse primeiro capítulo, ele escreve que a retórica é o "rebento" da dialética, isto é, sua aplicação, mais ou menos como a medicina é a aplicação da biologia. Mas depois ele a qualifica como uma "parte" da dialética. Diz também que ela lhe é "semelhante" (omoion), portanto que a relação das duas seria de analogia. Antístrofos: é maçante um livro começar com termo tão obscuro! Na nossa opinião, esse termo deve ser visto como uma provocação ... Isto porque Aristóteles argumenta quase sempre contra Platão. Como se sabe, este último desprezava a retórica e exaltava a dialética, na qual via o método por excelência da filosofia, único que permitia alcançar o absoluto, o "aipotético". Aristóteles inicia, pois, o seu livro com um gesto de desafio a Platão. Faz a dialética descer do céu para a terra e, inversamente, reabilita a retórica, atribuindo-lhe um papel mais modesto do que lhe atribuíam os antigos retores.

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Dessa forma, ela passa a ser antístrofos da dialética, ou seja, está no mesmo plano.

o que elas têm em comum No mesmo plano: vejamos agora como Aristóteles prova isso. Seus argumentos podem ser resumidos em cinco l9 • Primeiramente, a retórica e a dialética são capazes tanto de provar uma tese quanto o seu contrário; o que não significa que as duas teses sejam necessariamente equivalentes, pois então se cairia na sofística; quer dizer que se pode argumentar mesmo em favor de uma tese fraca. Em segundo lugar, a retórica e a dialética são universais, no sentido de não serem ciências, de não implicarem nenhuma especialização e de possibilitarem a discussão de tudo o que for controverso. Em terceiro lugar, ainda que ambas sejam praticadas por hábito ou mesmo por acaso, podem também ser ensinadas metodicamente, e são nesse caso "técnicas". Em quarto lugar, ao contrário da sofistica, ambas são capazes de fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente: a dialética, entre o verdadeiro silogismo e o sofisma', a retórica, entre o realmente persuasivo e o logro. Em quinto lugar, elas utilizam dois tipos idênticos de argumentação: indução e dedução, que se situam entre a demonstração (apodeixis) própria da ciência e a erística enganadora dos sofistas. Esses argumentos são tão fortes que dialética e retórica chegam a parecer dois termos que, no fundo, designam a mesma disciplina! Mas não é nada disso. A retórica é apenas uma "aplicação", entre outras, da dialética; é uma de suas quatro funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um meio,entre outros, de persuadir. Mais ou menos como o médico utiliza as ciências biológicas, mas também a psicologia, a psicanálise, etc.

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Dialética, parte argumentativa da retórica É certo que a retórica utiliza a dialética para convencer. E parece mesmo que, no capítulo primeiro do livro I, Aristóteles limita a retórica à técnica da prova; diz, aliás, que o orador só deve ocupar-se com problemas de fato e deixar para o juiz a preocupação de avaliá-los. Em suma, uma retórica honesta, porém inexpressiva ... que não será exatamente a que Aristóteles vai desenvolver em seu livro. Esta, longe de limitar-se a ser aplicação, vai subordinar a si a dialética como um meio entre outros de convencer. E já no capítulo 2 o autor introduz em sua retórica elementos de persuasão que nada têm a ver com a dialética, que só conhece provas de ordem intelectual. A retórica, diz Aristóteles, comporta três tipos de provas (pisteis) como meios de persuadir. Os dois primeiros são o etos e o patos, que estudaremos no próximo capítulo; constituem--4 parte afetiva da persuasão. O terceiro tipo de prova, o raciocÍnio, resulta do logos, constituindo o elemento propriamente dialético da retórica20 • O próprio Aristóteles diz que "esses dois métodos", a dedução e a indução, "são necessariamente idênticos nas duas técnicas" (1356 b). Idênticos não apenas em termos de estrutura, mas também de conteúdo. Em retórica como em dialética, os dois tipos de raciocínio apóiam-se no verossímil, o eikos, termo constante entre os antigos retores, que Aristóteles compara ao endoxon da dialética. Fique claro que, limitada ao verossímil, a argumentação continua racional. O eikos (por exemplo, o filho amar o pai) é o que acontece com mais freqüência, portanto o que apresenta grande probabilidade e pode ser presumido salvo prova em contrário (cf. 1357 a). Nesse sentido, a retórica assim como a dialética opõe-se à sofistica, que se compraz com o inverossímil e o "prova" por meio de uma aparência de raciocínio. Assim, no capítulo 24 do livro 11, Aristóteles detém-se numa análise dos sofismas que retoma de modo mais abreviado a análise feita em Tópicos. E no capítulo 23 expõe os lugares, ou seja, os tipos de argumentos verossímeis que servem de premissas ao raciocínio retórico. Por exemplo:

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Se não é justo encolerizar-se contra quem nos tenha feito mal sem intenção, quem nos fez bem por obrigação não tem direito a nenhum reconhecimento. (1397 a) Se os deuses não são oniscientes, muito mais razões há para que os homens não o sejam. (1397 b)

A partir daí, pode-se desculpar "X" por não ser grato, ou "Y" por se ter enganado. Embora não sejam irrefutáveis, esses argumentos são altamente verossímeis. Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa da retórica. Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua vez, não é um jogo. É um instrumento de ação social, e seu domínio é o da deliberação (buleusis); ora, esse domínio é precisamente o do verossímil. De fato, não se delibera sobre o que é evidente - por exemplo, para saber se a neve é branca! - nem sobre o que é impossível; delibera-se sobre fatos incertos, mas que podem realizar-se, e realizar-se em parte através de nós. Por exemplo, a cura de um doente, a vitória na guerra, etc. 21 Em resumo, a retórica é uma "aplicação" da dialética, no sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de persuasão. Mas instrumento que não a dispensa de modo algum dos instrumentos afetivos.

Moralidade da retórica Mas aí surge uma questão sobre a retórica que não existia com referência à dialética. Como vimos, esta última em si mesma é somente umjogo, cuja moralidade consiste em não trapacear, em respeitar as regras internas, sem as quais o jogo não seria mais jogo. A retórica, ao contrário, é uma disciplina séria, pois está ligada à ação social e contribui para decisões graves, como éôhdenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz, etc. Pode-se, pois, formular a questão de sua moralidade: será honesto o método de debater e persuadir, ou trata-se de manipulação desonesta?

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A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formular, vimos o que responde Aristóteles: a retórica é uma técnica útil, freqüentemente indispensável. Se seu uso às vezes é desonesto, não cabe censurar a técnica, mas o técnico. No entanto, lendo a seguir os conselhos da retórica de Aristóteles, perguntamo-nos se ela não se reduz a uma manipulação digna de sofistas. Discutiremos esse assunto a partir de um exemplo concreto. No capítulo 15 do livro I, Aristóteles dá conselhos ao litigante sobre o que dizer; primeiro se a lei lhe for contrária, depois se a lei lhe for favorável. Numa primeira leitura, tem-se a impressão de que ele legitima todas as "velhacarias de advogados". Para destacar bem isso, dispusemos os dois textos lado a lado, invertendo ligeiramente a ordem dos argumentos, para que cada um corresponda a seu contra-argumento. "Se a lei nos é desfavorável"

"Se a lei nos for favorável"

- "é preciso recorrer à lei comum, com razões mais equânimes e mais justas";

- Ué preciso explicar que ninguém [gortanto nenhuma cidade] escolhe o bem absoluto, mas sim seu próprio bem"; - "dizer que a fórmula em minha alma e consciência não tem por objetivo obter uma sentença contrária à lei, mas escusar o juiz de perjúrio, caso ele tivesse ignorado o sentido real da lei"; - "dizer que não há diferença entre não ter lei e não recorrer àquelas que temos!"

- "dizer que a fórmula do juramento em minha alma e consciência significa não nos atermos estritamente à letra da lei";

- "dizer que os princípios de eqüidade são permanentes e nunca mudam, nem a lei comum, que é baseada na natureza"; - citar "a lei não escrita de Antígona", único critério de justiça das leis escritas, aliás muitas vezes ambíguas, anacrônicas ou contraditórias entre si.

- "dizer que querer ser mais sábio que as leis é justamente o que proíbem essas leis [não escritas] que costumam ser elogiadas" (75 a).

Note-se que o debate é propriamente dialético, pois opõe dois endoxa. O primeiro é a recusa do legalismo, em nome da "eqüidade" (epieikés), que põe a justiça acima do direito positivo e faz do juiz um árbitro, que pode corrigir a lei quando esta "deixar de desempenhar sua função de lei" (ibid.), porque

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assim ela produzirá conseqüências iníquas. O segundo é a recusa do arbitrário, pois afinal cada um pode invocar as leis "não escritas" de Antígona para revogar a lei que o incomoda; é como se alguém alegasse erro médico "para passar-se por mais hábil que os médicos" (ibid.)! Só que a situação não é mais de dialética, mas de processo, em que há bens em jogo, talvez mesmo vidas. E aconselhar o litigante a adotar, segundo a causa, ora uma tese, ora seu contrário, parece um tanto amoral. Mas não se deve esquecer que a condição do litigante, como aliás a do político, é de não estar sozinho; ele tem diante de si outro litigante, a quem compete fazer de tudo para desmentir sua argumentação; ambos têm por missão preparar o julgamento: cada um faz valer tudo o que possa servir à sua própria causa. Quem define é o juiz. A retórica só é exercida em situações de incerteza e conflito, em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o debate entre Creonte e Antígona, entre a razão de Estado, que exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se acreditar que não nunca se encerrará. A única coisa que se pode fazer, na falta de uma demonstração rigorosa, é confiar no debate contraditório em que cada orador "se esforça por detectar tudo o que seu caso comporta de persuasivo" ...

Conclusão: Aristóteles e nós Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, ertttt outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e - indo mais longe - porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo.

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É certo que não desempenham o mesmo papel. "A dialética", diz Pierre Aubenque, "refuta no real ( ... ) mas só demonstra na aparência"22. Na retórica, em que não se sustenta uma tese, mas se defende uma causa, em que não se joga com idéias, mas o que está emjogo no discurso é o destino judiciário, político ou ético dos homens, na retórica, é preciso levar a sério o "na aparência", como verossímil que faz as vezes de uma evidência sempre inapreensível. Em todo caso, elas pertencem ao mesmo mundo. O que significa isso? A retórica de Aristóteles está bem próxima da retórica de Isócrates em termos de conteúdo. A diferença é que em Aristóteles a retórica é uma arte situada bem abaixo da filosofia e das ciências exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "necessárias", que, como os teoremas, só podem ser o que são, possibilitando compreender e prever. A retórica, por sua vez, só atinge o verossímil, aquilo que acontece no mais das vezes, mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer que ela só é possível em certo mundo. Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o mundo divino, o "céu", não cognoscívélJ pela fé, mas, ao contrário, pela razão demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invisível, Deus, quanto o divino visível, a saber, os astros, objeto da astronomia matemática, visto que seus movimentos são necessários, portanto calculáveis e previsíveis. Abaixo, o mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso, contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil. Mundo, enfim, aberto à ação humana. Citemos mais uma vez Aubenque: Num mundo perfeitamente transparente à ciência, isto é, onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para a ação humana23 •

Nenhum lugar também para a retórica, que é uma arte. Mas vivemos em um mundo que não é o da pura ciência; em um mundo que não é um jogo, mas que nem por isso está submetido ao cego acaso. Mundo onde a previsão é mais ou menos

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provável, onde a decisão é mais ou menos justa. Mundo onde, embora possamos "refutar no real", com uma certeza demonstrativa, devemos nos contentar com provas mais ou menos convincentes, com opções mais ou menos razoáveis. Esse mundo já não é nosso, dirão. Não mesmo, porém vai continuar sendo ainda enquanto não tivermos chegado à ciência total. Aí então é o homem que já não será. Quadro comparativo

Alvo Demonstração: Eu, nós saber Dialética: jogo, exercício Retórica: convencer um público Sofística: dominar pelo logro

Modalidade

Campo para Aristóteles

Campo para nós

Necessária

Lógica, ciências Lógica, ciências exatas, exatas e naturais metafísica Provável Universal, Ciências Tu (endoxon) princípios humanas, primeiros fílosofia, teologia Judiciário, Os mesmos, mais Vós Verossímil (eikos) político, pregação, epidíctico propaganda, publicidade Impessoal, Falsa-aparência Ilusão Idem eles

Notas. - Para começar, a distribuição não é mais idêntica à de Aristóteles. A metafisica passou para segundo plano, enquanto as ciências da matéria tomaram-se demonstrativas, e referem-se ao necessário (fisica, química, etc.). A natureza e o campo da sofistica não mudaram, ainda que o sofista já não se confesse como tal; esse é o campo em que se pode tomar a "aparência" de razão pela razão: na verdade, todos os campos! Note-se, por fim, que a sofistica, ao fingir que se dirige a "ti", ou a "vós", manipula na realidade o "eles" ou o "alguém"; não é eXá1amente a "ti" que o sofista se dirige, mesmo que finja fazer isso, mas sim à coisa em ti. Quanto à retórica, seu campo ampliou-se muito a partir de Aristóteles, o que provaria a fecundidade de seu sistema.

Capítulo III

O sistema retórico

Aristóteles, portanto, reabilitou a retórica ao integrá-la numa visão sistemática do mundo, onde ela ocupa seu lugar, sem ocupar, como entre os sofistas, o lugar todo. Mais ainda, Aristóteles transformou a própria retórica num sistema, que seus sucessores completarão, mas sem modificar. Passaremos, pois, ao estudo desse sistema retórico, não sem perguntar, no que se refere a cada um deles, qual a sua relação com o homem do século XX.

As quatro partes da retórica

o sistema começa com uma classificação: a retórica é decomposta em quatro partes, que representam as quatro fases pelas quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais acredita-se que passe. Na verdade, essas partes são principalmente os grandes capítulos dos tratados de retórica. Quais são elas? Para não criar confusão, manteremos seus nomes tradicionais, do latim. A primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que empreende o orador de todos os argumentos e de outros meios de persuasão relativos ao tema de seu discurso. A segunda é a disposição (taxis), ou seja, a ordenação desses argólilentos, donde resultará a organização interna do discurso, seu plano. A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à palavra oral, mas à redação escrita do discurso, ao estilo. É aí que

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entram as famosas figuras de estilo, às quais alguns, nos anos 60, reduziam a retórica! A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva do discurso, com tudo o que ele pode implicar em termos de efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à ação será acrescentada a memória. Essa classificação pode parecer bem escolar: na verdade não é bem assim que as coisas acontecem quando se prepara um discurso. Pode-se ir de uma tentativa de ação - proferir algumas frases - para buscar em seguida argumentos; escrever antes de encontrar um plano, etc. Mas pouco importa a ordem cronológica. As quatro partes na realidade são as quatro "tarefas" (erga) que devem ser cumpridas pelo orador. Se este deixar de cumprir alguma delas, seu discurso será vazio, ou desordenado, ou mal escrito, ou inaudível. Portanto, um advogado que prepare uma defesa, um estudante que prepare uma exposição, um publicitário que prepare uma campanha, todos deverão, se não passarem sucessivamente por essas quatro fases, cumprir pelo menos as tarefas que cada uma delas representa: compreender o assunto e reunir todos os argumentos que possam servir (invenção); pô-los em ordem (disposição); redigir o disClU'sO o melhor possível (elocução); finalmente, exercitar-se proferindo-o (ação).

Invenção

Antes de empreender um discurso, é preciso perguntar-se sobre o que ele deve versar, portanto sobre o tipo de discurso, o gênero que convém ao assunto. Veremos que essa questão do gênero também diz respeito à interpretação do discurso.

Os três gêneros do discurso

Segundo os antigos, os gêneros oratórios são três: judiciário, deliberativo (ou político) e epidíctico. Por que exatamente

O SISTEMA RETÓRICO

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três? Aristóteles responde: "porque há três espécies de auditório" (Retórica, 1358 a); é a necessidade de adaptar-se a eles que confere traços específicos a cada gênero: conforme as p.essoas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneIra. O discurso judiciário tem como auditório o tribunal; o deliberativo, a Assembléia (Senado); o epidíctico, espectadores, todos os que assistem a discursos de aparato, como panegíricos, orações fúnebres ou outras. Os atos dos três discursos não são os mesmos. O judiciário acusa (acusação) ou defende (defesa). O deliberativo aconselha ou desaconselha em todas as questões referentes à cidade: paz ou guerra, defesa, impostos, orçamento, legislação (cf. 1359 b). O epidíctico censura e, na malOna das vezes, louva ora um homem ou uma categoria de homens, como os mortos na guerra, ora uma cidade, ora seres lendários, como Helena ... ' Aristóteles, que nunca esquece que é filósofo, mostra que os três gêneros também se distinguem pelo tempo. O judiciário refere-se ao passado, pois são fatos passados que cumpre esclarecer, qualificar e julgar. O deliberativo refere-se ao futuro, pois inspira decisões e projetos. Finalmente, o epidíctico refere-se ao presente, pois o orador propõe-se à admiração dos espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do futuro. O principal é que os valores que servem de normas a esses discursos não são os mesmos. Enquanto o judiciário diz respeito ao justo e ao injusto, o deliberativo diz respeito ao útil e ao nocivo. Útil a quem? À cidade, e a nada mais; e o interesse coletivo, nacional, pode ser perfeitamente injusto; assim, o orador político pouco está preocupado em saber se não há nenhuma injustiça em reduzir povos vizinhos à escravidão, mesmo que eles nada tenham feito de mal. (1358 b)

Hoje, UfiílIl10S luvas de pelica... Mas será que encontramos muitos políticos para propor medidas justas, porém nocivas à nação? Quanto ao epidíctico, os valores que o inspiram são o nobre e o vil (kalon, aiskhron), valores que nada têm a ver com

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

o interesse coletivo, e que não se confundem tampouco com o "justo", pelo menos no sentido de legal. Aristóteles quase não se detém nos estilos respectivos dos três gêneros; esclarece, todavia, que o epidíctico é "o mais escrito dos três" (1413 b, 1414 a). Em compensação, mostra durante longo tempo que o tipo de argumentação dos três não é o mesmo. O judiciário, que dispõe de leis e se dirige a um auditório especializado, utiliza de preferência raciocínios silogísticos (entimemas), próprios a esclarecer a causa dos atos. O deliberativo, dirigindo-se a um público mais móvel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que, aliás, permite conjecturar o futuro a partir dos fatos passados: Dionísio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos conhecidos da história pediram uma guarda; logo, Dionísio vai tomar-se tirano (1357 b). Quanto ao epidíctico, recorre sobretudo à amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua importância e sua nobreza (1368 a). Hoje em dia mesmo, quando se faz o elogio de um morto, parte-se daquilo que todos conhecem, para exaltar seus méritos e calar o resto. Aliás, mesmo que o epidíctico e o deliberativo tenham igual conteúdo, assumirão modalidades diferentes. Quando o delibe"/ rativo aconselha: Não nos devemos gabar daquilo que devemos à sorte,

o epidíctico descreve:

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sentimento cívico e patriótico. Pronunciado, além do mais, durante jogos entre cidades (por exemplo, Olimpíada), reforçou nos gregos o sentimento de pertencer a uma mesma cultura que estava acima de todas as guerras intestinas (cf. 6 Gregos! de Górgias, 1414 b). Em suma, o epidíctico não dita uma escolha, mas orienta escolhas futuras. Significa dizer que ele é essencialmente pedagógico. No vastíssimo terreno que abre, os sucessores de Aristóteles incluirão a história, essa "memória dos grandes feitos do passado". Mais tarde, na era cristã, o gênero epidíctico será enriquecido com toda a pregação religiosa. O fato é que a teoria dos três gêneros hoje é bem mais restritiva; há tantos outros tipos de discursos persuasivos além desses três! Mas o mérito de Aristóteles foi mostrar que os discursos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a finalidade. Voltaremos a essa questão no capítulo VII.

Os três gêneros do discurso Auditório Judiciário

Tempo

Ato

Passado Acusar (fatos por Defender julgar) Deliberativo Assembléia Futuro Aconselhar Desaconselhar Epidíctico Espectador Presente Louvar Censurar Juízes

Valores Argumento-tipo Justo Injusto

Entimema (dedutivo)

Útil Exemplo Nocivo (indutivo) Nobre Amplificação Vil

Ele não se gabou daquilo que devia à sorte. (l368 a)

Os três tipos de argumento: etos, patos, logos

Pergunta: será mesmo que o gênero epidíctico faz parte da retórica, admitindo-se que esta só diz respeito aos discursos persuasivos? De fato, como mostraram tão bem Perelman-Tyteka (TA, §§ 11 e 12), o epidíctico é persuasivo, mas a longo prazo, ao versar sobre problemas que não exigem decisões imediatas. Usando o exemplo para fazer o elogio de certo herói, reforça o

Determinado o gênero do discurso, a primeira tarefa do orador é encontrar argumentos. define três tipos de argumentos, no sentido generalíssimo de instrumentos de persuadir (pisteis): etos e patos, que são de ordem afetiva, e logos, que é racional.

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o etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança: Por isso é que sua eqüidade é praticamente a mais eficaz das provas. (1356 a)

Como então dispor favoravelmente o auditório? É verdade que a resposta depende do próprio auditório, cujas expectativas variam segundo a idade, a competência, o nível social, etc. O orador, portanto, não terá o mesmo etos se estiver falando com velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato, sincero e simpático. Sensato: capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimular o que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar seu auditório (cf. 11, 1, 1377 b e também 1366 a). Note-se que etos é um termo moral, "ético", e que é definido como o caráter moral que o orador deve parecer ter, mesmo que não o tenha deveras. O fato de alguém parecer sincero, sensato e simpático, sem o ser, é moralmente constrangedor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer não é menos constrangedor, pois assim as melhores causas estão fadadas ao fracasso. /) O patos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso. Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristóteles dedica boa metade de seu livro 11 à psicologia das diversas paixões - cólera, medo, piedade, etc. - e dos diversos caracteres (dos ouvintes), segundo a idade e a condição social. Aqui, o etos já não é o caráter (moral) que o orador deve assumir, mas o caráter (psico lógico) dos diferentes públicos, aos quais o orador deve adaptar-se. No entanto, há nisso certa ambigüidade de que sofrerá a retórica ulterior. Quintiliano (VI, 2, 12 s.) dedica também um longo estudo ao etos e ao patos, termos que ele mantém em grego, alegando (como nós) que são intraduzíveis. Define o

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etos e o patos como dois tipos de afetividade: a primeira calma, comedida, duradoura, submetida ao controle mental; a segunda súbita, violenta, irreprimível, portanto irresponsável. Quintiliano, como a retórica ulterior, distingue bem dois tipos de afetividade, mas sem definir nitidamente que uma é do orador e a outra do auditório. Em todo caso, a retórica criou uma verdadeira psicologia, de que tirará proveito toda a literatura, em particular o teatro. Toda a análise dos sentimentos e das paixões deriva da retórica. Se o etos diz respeito ao orador e o patos ao auditório, o logos (Aristóteles não emprega esse termo, que utilizamos para simplificar) diz respeito à argumentação propriamente dita do discurso (cf. 1356 a). É o aspecto dialético da retórica, que Aristóteles retoma inteiramente dos Tópicos. Como em Tópicos, distingue dois tipos de argumentos, o entimema, ou silogismo baseado em premissas prováveis, que é dedutivo, e o exemplo, que a partir dos fatos passados conclui pelos futuros, e que é indutivo. As premissas prováveis dos entimemas são: ou verossimilhanças (eikota), como por exemplo que um filho ama o pai, ou indícios seguros, como por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indícios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica que houve fogo. Voltaremos a esses diversos argumentos no capítulo VIII.

Provas extrínsecas e provas intrínsecas

Na realidade, o orador dispõe de dois tipos de provas: as atekhnai, ou seja, extra-retóricas, e as entekhnai, ou seja intraretóricas. Vamos denominá-las, respectivamente, extrínsecas e intrínsecas (no século XVII, eram traduzidas por naturais e artificiais). As Pr"ovas extrínsecas são as apresentadas antes da invenção: testemunhas, confissões, leis, contratos, etc. Do mesmo modo, num discurso epidíctico, tudo o que se sabe da personagem cujo elogio se faz.

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As provas intrínsecas são as criadas pelo orador; dependem, pois, de seu método e de seu talento pessoal, são sua maneira própria de impor seu relatório. Vimos isso no capítulo anterior: o texto-lei, prova extrínseca, pode ser objeto de uma argumentação intrínseca contraditória, conforme essa lei seja favorável ou desfavorável ao orador (cf. supra, p. 50); do mesmo modo, quem não tiver testemunhas dirá que os testemunhos são subjetivos, muitas vezes comprados, e que é melhor julgar segundo as verossimilhanças (cf. 1376 a). O orador transforma assim sua desvantagem em vantagem. Num elogio fúnebre, as provas extrínsecas são aquilo que se sabe do defunto, que nem sempre é bonito; o argumento intrínseco é a amplificação, que tira partido das provas extrínsecas: transformar o impetuoso em franco, o arrogante em respeitável, o temerário em bravo, o pródigo em liberal. (1367 b)

Moliere retomou esse procedimento numa cena do Misantropo, descrevendo a retórica do amor, que transforma os defeitos da amada em "perfeições": A magra o que tem é altura e liberdade; A gorda tem porte cheio de majestade; ( ... ) A altiva tem a alma digna duma coroa; A patife é perspicaz, e a tola é tão boa. (lI, 5)

/,/

Logro? Sabe-se lá: quem disse, e com que direito, que ele era temerário e nada mais, que ela era tola e nada mais? Fala-se de objetividade, mas essa não é tantas vezes a máscara da malevolência? Em todo caso, é dificil conhecer alguém que, nesse domínio das relações humanas, possa ser realmente objetivo.

Os lugares ("topoi ")

Como encontrar os argumentos? Por lugares. Esse termo é tão corrente quanto obscuro. Na dúvida, pode-se sempre tradu-

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zir "lugar" por argumento. Mas lembremos que esse termo tem pelo menos três sentidos, que exporemos por níveis de tecnicidade. 1) No sentido mais antigo e mais simples, o lugar é um argumento pronto que o defensor pode colocar em determinado momento de seu discurso, muitas vezes depois de o ter aprendido de cor. Numa forma menos rígida, esses lugares são encontrados em toda a retórica antiga. Assim, no discurso judiciário, os lugares da peroração que concluem a acusação: Se deixardes impune o seu crime, haverá multidões de imitadores. Muitos esperam com impaciência o vosso veredicto. (Chaignet, p. 132, e Navarre, p. 305)

Como lugares de amplificação, servem para persuadir os juízes de que a causa ultrapassa a pessoa do réu, que ela compromete o futuro. Um lugar das defesas modernas é o da infância infeliz, que permite chamar à baila circunstâncias atenuantes. No século XVII, servia, ao contrário, à acusação, pois via-se na inf'ancia infeliz do acusado indícios de que ele sempre fora pervertido, e que só poderia reincidir; essa não era uma prova de que ele era escusável, mas ao contrário irrecuperável (cf. A. Kibedi-Varga, 1970, p. 145). No primeiro sentido, o lugar é, pois, um argumento-tipo, cujo alcance varia segundo as culturas. São encontrados no discurso epidíctico: os melhores são os que partem ... ; também serão vistos no discurso publicitário. 2) Em sentido mais técnico, o lugar já não é um argumento-tipo, é um tipo de argumento, um esquema que pode ganhar os conteúdos mais diversos. Por exemplo, o lugar do mais e do menos: Se,Os deuses não são oniscientes, muito menos os homens. EletJate nos vizinhos, pois bate no pai. (Retórica, lI, 1397 b)

Ou, de modo positivo, todos os lugares do tipo:

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Quem pode o mais pode o menos. (1392 a, b)

Altamente verossímil, esse lugar do mais e do menos está longe de ser evidente, porém; como toda verossimilhança, pode ser contestado. Seria incontestável se aplicado a realidades homogêneas, como por exemplo o dinheiro: quem pode dar mil francos pode dar cem; mas isso não despertaria interesse. É interessante quando se aplica a dados heterogêneos, como por exemplo aos saberes e aos poderes; mas aí deixa de ser evidente. Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de quem sabe mais; o mesmo para o poder: uma enfermeira pode coisas que um médico não pode, etc. Quem pode o mais não pode necessariamente o menos. Classicamente, dá-se a esses lugares o nome de "lugares-comuns", pois se aplicam a toda espécie de argumentação; no caso atual não passa de opinião banal expressa de modo estereotipado, enquanto o lugar comum clássico é um esquema de argumento que se aplica aos dados mais diversos. Tecnicamente, opõe-se ao lugar próprio, tipo de argumento particular a um gênero de discurso. Assim os lugares judiciários: Considera-se que ninguém ignora a lei. Uma lei não pode ser retroativa.

Note-se, aliás, que o segundo depende do primeiro; de fato, uma lei retroativa aplica-se a pessoas que não poderiam conhecê-la, pois ela não existia no momento em que essas pessoas agiraml 3) No sentido mais técnico, o dos Tópicos, o lugar não é um argumento-tipo nem um tipo de argumento, mas uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-argumentos: os lugares ( ... ) são como etiquetas dos argumentos, sob as quais vamos buscar o que há para dizer num ou noutro sentido. (Cícero, Orador, 46)

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Vejamos um exemplo simples: um estudante que precisa fazer uma dissertação não sabe ainda se vai adotar um plano por perguntas ou um plano por tese-antÍtese-síntese; o próprio fato de interrogar-se assim só é possível através de um lugar: a questão dos tipos de planos! Esse terceiro sentido da palavra lugar é muito notado num lugar próprio do gênero judiciário, o do estado da causa (stasis, status). Suponhamos que alguém é processado por um crime: a acusação e a defesa vão propor-se as mesmas perguntas, que a antiga retórica sintetiza em quatro: 1. Estado de conjectura: ele matou realmente? 2. Estado de definição: trata-se de crime premeditado, não premeditado, de homicídio involuntário? 3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido o crime voluntário, quais são as circunstâncias que podem acusar ou escusar o réu: motivo patriótico, religioso? 4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se o tribunal é realmente competente, se a instrução foi suficiente, etc. 2 Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode ser um lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espécie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos de causas, etc. Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma questão que permite encontrar argumentos que sirvam à tese, inventar as premissas de uma conclusão dada. Esta exposição, que desejamos tão clara quanto possível, ficará incompleta se não considerarmos o que se tomou o lugar depois de Aristóteles: termo abrangente que se aplica aos dados mais heteróclitos. Assim, na retórica medieval, teremos topoi, espécies de trechos esperados e até obrigatórios, como o lugar da modéstia afetada; o lugar do puer senilis, da criança ajuizada como um velho; o lugar da paragem agradável, da paisagem paradisíaca; o lugar dos impossíveis:

o

queima dentro do gelo, O sofficou negro. (Théophile de Viau)

Lugar que se encontra nos panfletos: teremos visto tudo!

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Existem igualmente lugares metafisicos, lugares teológicos (a autoridade da Escritura e dos concílios), lugares risí•

velS ...

3

Finalmente, lugar é tudo o que possibilita ou facilita a invenção, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invenção deixa de sê-lo à medida que se torna fácil!

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A disposição, em si, é um lugar, ou seja, um plano-tipo ao qual se recorre para construir o discurso. A retórica clássica quase não fala da disposição do discurso judiciário. Em que pode ela nos interessar? Unicamente pela(s) função(ções) desempenhada(s) por cada uma de suas partes. Os autores propuseram diversos planos-tipo, que iam de duas a sete partes. Ficaremos com o mais clássico, em quatro partes: exórdio, narração, confirmação e peroração.

Observações sobre a invenção

Na realidade, a própria noção de invenção pode parecernos muito ambígua. De fato, ela se situa entre dois pólos opostos. Por um lado, é o "inventário", a detecção pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a "invenção" no sentido moderno, a criação de argumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristóteles, a confiança inspirada pelo orador, deve ser "obra de seu discurso" (1356 a); em outras palavras, o importante não é o caráter que ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o caráter que ele cria. Invenção inventário, que hoje se poderia deixar a cargo de um computador, ou invenção criação? Na realidade, talvez sejamos nós que criamos uma oposição onde os antigos não a viam. Não imaginavam criação ex nihilo, e achavam que qualquer invenção é feita, por um lado, a partir de materiais dados (lugares extrínsecos) e por outro de regras mais ou menos estritas (lugares intrínsecos); mas achavam támbém que com ela a criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se ainda mais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de uma prática e de um ensino.

Disposição ("taxis")

Para definir com outros termos, a retórica apresenta-se como um código a serviço da criatividade. E esse duplo aspecto se encontra em suas outras partes, mais propriamente estéticas e literárias que a invenção.

Exórdio ("prooimion ", proêmio)

Exórdio é a parte que inicia o discurso, e sua função é essencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevolente. Dócil significa em situação de aprender e compreender; por isso, é preciso fazer uma exposição clara e breve da questão que vai ser tratada, ou ainda da tese que se vai tentar provar. Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedimentos - dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tão espantoso ou de tão grave -, procedimentos infladores, pois os juízes deviam ficar bem cansados com eles! Aliás - observa Aristóteles -, o exórdio é o momento do discurso que exige menos atenção; nas partes seguintes, ao contrário, a atenção tende a relaxar-se, sendo preciso renová-la. Benevolente: é aí que o etos assume toda a sua importância. Um dos lugares mais correntes consistia em escusar-se da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário (cf. Navarre,pp. 223 s.) A retórica do exórdio se aplica aos outros gêneros de discurso? Aristóteles afirma que o deliberativo quase não precisa do exórdio, pois o auditório já sabe do que se trata. Quanto ao epidícti$O, o exórdio consiste em fazer o auditório sentir que está pes;oalmente implicado no que se vai dizer, em incluí-lo no fato (cf. Retórica, 1415 b). A retórica do exórdio consiste às vezes em suprimi-lo, em ir direto ao que interessa. Assim, o célebre ex abrupto

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de Cícero: "Até quando, Catilina, vais abusar da nossa paciência?" Hoje em dia, completaremos essa teoria do exórdio com duas considerações. Primeiro, a fala improvisada, sobretudo em lugar público, quando a intervenção não é programada: é preciso toda uma arte para fazer-se admitir, ou seja, ouvir. Depois, o discurso escrito: um livro deve captar a benevolência já na primeira página; se deve, como?

Narração ("diegésis ") A narração é a exposição dos fatos referentes à causa, exposição aparentemente objetiva, mas sempre orientada segundo as necessidades da acusação ou da defesa. O fato é que, se não for objetiva, deverá parecer. E é na narração que o logos supera o etos e o patos. Para ser eficaz, deve ter três qualidades: clareza, brevidade e credibilidade. Como ser claro? Ao mesmo tempo pelos termos empregados e pela organização do texto, de preferência cronológica, mas recorrendo às vezes aos retornos, aosflash-backs. Como ser breve? Eliminando tudo o que seja inútil, todos os fatos anteriores ao caso, todas as circunstâncias que não esclareçam nada, mostrando que no fundo tudo leva àquilo ... Como ser crível? Enunciando o fato com suas causas, sobretudo se o fato não for verossímil; mostrando que os atos se afinam com o caráter de seu autor, com tudo o que se sabe dele: .) Conselhos especiais para narrações falsas: cuidar para que tudo o que se inventa seja possível e não seja incompatível nem com a pessoa, nem com o lugar, nem com o tempo; vincular, se cabível, a ficção a algo de verdadeiro; evitar cautelosamente qualquer contradição ( ... ) e não fOIjar nada que possa ser refutado por uma testemunha. (O. Navarre, pp. 248-249)

Na verdade, basta refletir nas regras da narração falsa para ver que são as mesmas da verdadeira; no primeiro caso, só é preciso aplicá-las de maneira mais estrita.

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É evidente que a maneira de apresentar os fatos já é, em si, um argumento. O que acontece com a narração nos outros dois gêneros? No deliberativo - diz Aristóteles - ela quase não tem razão de ser, pois discurso trata do futuro; no máximo, pode fornecer exemplos. No epidíctico, ao contrário, é tão importante que há interesse em dividi-la segundo as questões: os fatos que ilustram a coragem, os que ilustram a generosidade, etc. Na Idade Média vai constituir-se uma nova retórica da narração; desliga-se do gênero judiciário, mas insere-se na da pregação, com os exempla, histórias geralmente fictícias que ilustram o tema do sermão. Hoje em dia a publicidade e, principalmente, a propaganda utilizam narrações breves, também a título de exemplos.

Confirmação ("pis tis ") Em seguida vem uma parte nitidamente mais longa, a confirmação, ou seja, o conjunto de provas, seguido por uma refutação (confutatio), que destrói os argumentos adversários. Com a invenção, vimos os dois grandes tipos de argumentos, o exemplo e o entimema. Convém precisar que a amplificação, própria do gênero epidíctico, pode também servir à confirmação judiciária; como dirá Cícero, ela permite ampliar o debate, remontar da "causa" à "questão" (thésis) que lhe está subjacente; assim, além dessa traição, propor o problema da confiança, da pátria, etc. (cf. Do orador, 46). Tempo forte do logos, a confirmação recorre, porém, ao patos, despertando piedade ou indignação. Note-se, com O. Navarre, que a confirmação nem sempre está separada da narração. Nos oradores clássicos do século. IV (Iseu, Isócrates, Demóstenes), acontece de o discurso inteiro apresentar-se como uma única narração, em que cada seqüência constitui uma prova. Assim, em Eginética, defesa de um herdeiro cuja herança é contestada por uma parenta, Isócrates expõe os fatos passados, mostrando sucessivamente três

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coisas: 1) o testamento é legal; 2) é justo, e Isócrates prova isso narrando os inumeráveis serviços prestados pelo herdeiro ao defunto; 3) ele tem bons sentimentos, pois respeita os legítimos interesses da família4 • Em suma, narração e confirmação são duas tarefas que o orador deve cumprir, mas nada o obriga a realizá-las sucessivamente. Quintiliano dirá, aliás (11, 13, 7), que impor um planotipo ao orador é tão estúpido quanto impor uma estratégia-tipo a um general! No fundo, pouco importa em que ordem o general e o orador atingem seus objetivos, o importante é que os atinjam. Existe uma outra questão no que se refere à confirmação: é a da ordem dos argumentos. Deve-se começar pelos mais fracos e acabar pelos mais fortes? Nesse caso, há o risco de cansar o auditório. Optar pela ordem inversa? Mas o auditório não entenderá bem, achará que estão sendo queimados cartuchos à toa, esquecerá a força dos primeiros argumentos. Cícero, em Do orador (11, § 313), preconiza a ordem "homérica", que consiste em começar pelos argumentos fortes, continuar com os mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse plano supõe que o orador tem um número suficiente de argumentos fortes para reparti-los assim. Perelman-Tyteka (TA, p. 661) afirmam que a força de um argumento é uma noção relativa, pois um argumento é mais ou menos forte em função dos que o precederam. Portanto, partese de um argumento cuja força não dependa da dos outros; ou ainda de um contra-argumento que refute uma objeção que pese sobre qualquer argumento possível, por exemplo a afirmação de que o orador é desonesto venal, o que toma suspeito tudo o que ele disser. Em nossa opinião, convém contestar a própria idéia da pluralidade de argumentos; cada discurso só teria um único argumento capaz de conquistar a decisão, e os outros não passariam de maneiras diferentes de apresentar ou não seriam mais que contra-argumentos que responderiam às objeções possíveis. Assim, remetemos à dupla argumentação de Aristóteles em Retórica, I, 15 (cf. supra, p. 50). Nos dois casos, desenvolve-se um argumento único apresen-

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tando diversos aspectos seus e refutando os argumentos contrários. Se nos ativermos à ordem "homérica", teremos o seguinte: 1) apresentação do argumento; 2) refutação dos contra-argumentos; 3) retomada do argumento com nova forma. Essa tese do argumento único é provada a contrario: um discurso que acumula argumentos diferentes, sem nexos entre si, parecerá -estar lançando mão de qualquer expediente, portanto ser de má-fé. Note-se que, em Roma, a confirmação freqüentemente era seguida por uma altercação, breve debate com a parte adversária.

Digressão ("parekbasis") e peroração ("epílogos") No discurso judiciário, prevê-se um momento de "relaxamento", a digressão, trecho móvel, "destacável", como diz Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento do discurso, mas de preferência entre a confirmação e a peroração. Narrativa ou descrição viva (ekphrásis), a digressão tem como função distrair o auditório, mas também apiedá-lo ou indigná-lo; pode até servir de prova indireta quando feita como evocação histórica do passado longínquo. Hoje em dia, esse termo tomou-se pejorativo. Os professores, em particular, estigmatizam a digressão, ainda que a utilizem à vontade em suas aulas, aliás de pleno direit05 • A peroração é o que se põe no fim do discurso. Aliás, pode ser bastante longa e dividir-se em várias partes. Mencionemos as principais. 1) Amplificação (auxese, importada do gênero epidíctico. Se o acusador, por exemplo, tiver mostrado a realidade do delito,it1sistirá então em sua gravidade, mostrará que é vital para a cidade castigar o culpado de maneira exemplar, ao passo que absolvê-lo seria incitar outros a imitá-lo (cf. Navarro, pp. 307 s.).

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2) Paixão, trecho que visa a despertar piedade ou indignação no auditório. Assim, a apóstrofe de Cícero a Verres: Se teu pai houvera de julgar-te, grandes deuses, que poderia ele fazer? (in Quintiliano, VI, 1,3)

3) Recapitulação (anacefaleose), que resume a argumentação. Notemos que uma conclusão não deve constituir um novo argumento, pois nesse caso não passaria de uma parte a mais, e o discurso careceria de unidade. Note-se, enfim, que a peroração é o momento por excelência em que a afetividade se une à argumentação, o que constitui a alma da retórica.

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Elocução ("Iéxis") A elocução, em sentido técnico, é a redação do discurso. Das quatro partes da retórica, diz-nos Cícerd que esta é a mais própria ao orador, aquela em que ele se exprime com? tal. Tese esta que vale para toda produção literária: faço um lIvro; ter muitos conhecimentos e muitas idéias, um plano magnífico, mas meu livro nada será enquanto eu não o tiver escrito; e, quem sabe se, uma vez escrito, não exibirá outras idéias e plano bem diferente do que eu tivera no início? O verdadeiro salto criador está entre a obra escrita e aquilo que a prepara.

Língua e estilo.' uma arte funcional Por que a disposição? O plano antigo do discurso judiciário é muito particular, mas nos apresenta o problema da utilidade da disposição: afinal, por que fazer um plano? A nosso ver, por três razões. A disposição tem primeiramente uma função econômica: permite nada omitir sem nada repetir; em suma, possibilita que o orador "se ache" a cada momento do discurso. Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a disposição é em si mesma um argumento. Graças a ela, o orador faz o auditório encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu, conduzindo-o assim para o objetivo que propôs. Essa metáfora do caminho é confirmada por termos como "preâmbulo" (sinônimo de exórdio) ou "digressão" (desvio do rumo). Finalmente, a disposição tem funçàb heurística, por permitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, o que é fazer um plano? É formular-se uma série de perguntas distintas, constituindo cada uma delas uma parte ou uma subparte. Saber fazer um plano é saber fazer-se perguntas e tratá-las uma após outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasça da resposta precedente. É por isso que acreditamos - talvez de acordo com os antigos - que o verdadeiro plano, o plano orgânico, só aparece após a redação, a elocução.

A elocução é, pois, o ponto em que a retórica encontra a literatura. Todavia, antes de ser uma questão de estilo, diz respeito à língua como tal. Para os antigos, o primeiro pro!'lema da elocução é o da correção lingüística. O orador deve por-se a serviço, ou melhor, sentir-se responsável por aquilo que os gregos chamavam de to hellenizein, os latinos de latinitas, e que traduziríamos por "bom vernáculo". Naquelas culturas, em que o ensino ainda estava pouco desenvolvido, as exigências da arte oratória fixaram a língua como instrumento indispensável para quem se quisesse fazer entender por todos. Hoje em dia também, quem quiser persuadir o grande público não permitir-se incorreções nem preciosismos, salvo em ocaSlOes muito precisas. . , A retórica foi a primeira prosa literána e durante mUlto tempo permaneceu como a única; por isso, precisou se da poesia e encontrar suas próprias normas. Por quê? Afmal, um discurso poético pode ser perfeitamente convincente. Só que a poesia grega utilizava uma língua arcaizante, bastante esotérica e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portanto, era recorrer à prosa, mas a uma prosa digna de rivalizar com a poesia. Em suma, entre o hermetismo dos poetas e o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa oratória devia encontrar suas próprias regras.

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Estas 7 diziam respeito à escolha das palavras e à construção das frases, o que produzia um discurso ao mesmo tempo correto e bonito; mas será mesmo que essas coisas são diferentes? Para os antigos, parece que correção e beleza não eram separáveis. De qualquer modo, o fato é que a prosa oratória deve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vulgar. Para isso: escolher as palavras no vocabulário usual, evitando tanto arcaísmos quanto neologismos; utilizar metáforas e outras figuras, desde que sejam claras, ao contrário das dos poetas; evitar qualquer frase métrica, como os versos dos poetas, e qualquer frase arrítmica, para encontrar frases com ritmo flexível e sempre a serviço do sentido. Portanto, a retórica criou uma estética da prosa, uma estética puramente funcional, da qual tudo o que é inútil é excluído, em que o mínimo efeito de estilo se justifica pela exigência de persuadir, em que qualquer artificio gratuito engendra preciosismo ou vulgaridade. O que conservar dessas considerações sobre o estilo? A nosso ver, três pontos, que correspondem respectivamente aos três pólos do discurso: assunto, auditório e orador. O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, é aquele que se adapta ao assunto. Isso significa que ele será diferente conforme o assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo: o nobre (grave), o simples (tenue) e o ameno (medium), que dá lugar à anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que convém a seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na peroração; o simples para informar e explicar (docere), sobretudo na narração e na confirmação; o ameno para agradar (delectare), sobretudo no exórdio e na digressão. A primeira regra é, portanto, o da conveniência (prepon, decorum)8. :)

Estilo

Objetivo

Prova

Momento do discurso

nobre = grave

comover = movere

patos

simples = tenue

explicar = docere

logos

ameno = medium

agradar = detectare

etos

Peroração (paixão), digressão Narração, confirmação, recapitalução Exórdio, digressão

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A segunda regra é a da clareza, em outras palavras, a adaptação do estilo ao auditório. Pois a clareza é relativa: o que é claro para um público culto pode parecer obscuro para quem é menos culto e infantil para especialistas. Ser claro é pôr-se ao alcance de seu auditório concreto. Agora, será possível falar de clareza em si? Em todo caso, pode-se falar da obscuridade em si: a do discurso que nenhum auditório pode realmente penetrar, visto que seus termos e sua construção padecem de ambigüidade intrínseca. Certos oradores, em matéria de política, diplomacia, publicidade, utilizam essas ambigüidades para esquivar-se aos problemas mais embaraçosos ou então para conjugar públicos diversos. Admitindose que a honestidade permite esse tipo de manobra, ainda cumpre que ela seja consciente, que a obscuridade seja decorrente de uma decisão, e não, como quase sempre acontece, da impotência. Quanto ao resto, fiquemos com estas palavras de Quintiliano: A primeira qualidade da fala é a clareza, e quanto menos talento se tem, maior é o esforço para guindar-se e inflar-se, assim como os nanicos que se alevantam nas pontas dos pés. (11,3,8)

A terceira regra diz respeito ao próprio orador, que deve mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, dinâmico, imprevisto, engraçado ou caloroso, numa palavra: vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de empréstimo a um pastor retórico do século XVIII, G. Campbell, que a expõe com o termo vivacity. Para ser vivaz, é preciso observar regras de estilo bem precisas. Primeiro, a escolha das palavras, sempre que possível concretas: deve-se preferir "fonte" a "origem", "aqui jaz Alexandre" a "aqui jaz o corpo de Alexandre". Depois, o ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a que constitui a força das máximas: Todos querem viver muito, mas ninguém quer viver velho. (Swift, citado, p. 337)

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Em suma, não só se fazer entender, mas também fazer-se "saborear" (relish, p. 237). Essas regras, porém, não passam de linhas gerais: evitar ser redundante, inutilmente abstrato, etc. O sabor do discurso não se ganha com regra alguma; quem o faz é o autor. A vivacidade é capital para o etos, pois ela toma o discurso marcante, agradável, cativante; e, principalmente, conferelhe o indispensável cunho de autenticidade. O verdadeiro estilo é o do discurso onde é possível encontrar o seu autor.

Figuras ("schemata '') e o problema do desvio Campbell demonstra que a vivacidade depende das figuras. O Evangelho, em vez de dizer os reis mais gloriosos, emprega uma personificação: "Salomão em toda a sua glória ...", o que é bem mais vivaz. Durante muito tempo os antigos trataram as figuras como meios de exprimir-se de modo marcante, com encanto e emoção. Tentaram classificá-las, mas não chegaram a entender-se (nem nós, aliás). Fiquemos com a classificação mais simples, a de Cícero, que distingue as figuras de palavras, como o trocadilho e a metáfora, das figuras de pensamento, como a ironia ou a alegoria. Voltaremos a falar mais detidamente sobre as diversas figuras. Por enquanto, proporemos a questão de saber se é possível definir figura sem introduzir a noção de desvio, como por exemplo na metáfora: desvio do sentido derivado em relação ao sentido próprio. A teoria do desvio conheceu seu momento de glória nos anos 60, quando ele foi tão inchado que chegou a significar toda a retórica. Os retóricos da época, sobretudo J. Cohen, Roland Barthes e o Grupo MU, limitavam a retórica ao estudo das figuras de estilo, que um desvio em relação à norma, ao "grau zero", e portanto reduziam retórica a desvio ... No entanto, mesmo que se possa definir a figura como desvio, o que ainda precisa ser provado, parece totalmente abu-

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sivo transformá-la no traço distintivo da retórica. Dirão que o latim de Cícero constitui um desvio em relação à língua latina? Na verdade, a retórica não se reduz a figuras, que só constituem uma parte de uma parte de uma de suas partes. Pois bem, cumpre definir as próprias figuras como desvios? À primeira vista, sim. A metáfora desvia-se do sentido próprio, substituindo o significado por um outro que lhe é semelhante; assim também a ironia, que substitui o significado por um que lhe é contrário: - esse leão, por esse homem valente = metáfora; - esse leão, por esse homem covarde = ironia.

Aliás, os clássicos definiam figura como desvio, desde Aristóteles, que dizia da metáfora: "é para atingir maior grandeza que ela se afasta (exallattai) daquilo que convém" (Retórica, m, 1404 b), até Quintiliano, que explica o prazer (delectatio) proporcionado pelas figuras, por terem o "mérito manifesto de afastar-se do uso corrente" (11, 13, 11), e precisa: "a figura seria um erro se não fosse intencional" (IX, 3, 2). O fato é que, mesmo limitado à figura, a noção de desvio apresenta um problema triplo. Em primeiro lugar, desvio em relação a quê? Que "norma" é essa, esse "grau zero" da qual a figura se desviaria: o código lingüístico, digamos, o vernáculo? Não vemos que ele proíba figuras. A lógica? Mas não é a lógica que rege a língua: sol é feminino em alemão, o inverso para a lua; nenhuma "lógica" nisso, seja em alemão, seja em português. O sentido primitivo, etimológico? Veremos quanto essa noção é ideológica, ou mesmo mítica; ademais, utilizar um termo em sentido arcaico - por exemplo, húmile para o que está no chão - já é uma figura. O uso normal, ou seja, o modo como todos falam? Mas todos falam com muitas incorreções, por um lado, e por outro com muitas figuras, portanto com desvios. O discurso funcional Esse de fato é o ponto de vista de J. Cohen, que compara os textos dos escritores e dos poetas com um grupo-controle, formado por textos de autores científicos do fim do século XIX; mas nos custa enxergar como esses textos, tra-

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balhados para adaptar-se ao assunto de que tratam, seriam mais "normativos" ou mais "normais" que os dos escritores. Na realidade, a noção de desvio é relativa; um discurso se desvia de outro discurso em função de seus objetivos, de seus públicos e de seus gêneros respectivos, sem que nenhum deles constitua norma absoluta. Assim também: é um desvio ir a uma recepção noturna em traje de praia, mas também é desvio ir à praia em traje de gala. Mas não se pode dizer simplesmente que a figura se desvia do sentido próprio? Por certo, mas isso só vale para algumas, não para as figuras de palavras ou para as de construção (cf. capo VI). E, principalmente, o sentido próprio é realmente a norma? A teoria do desvio considera a figura como dupla operação: a) o autor propõe um enunciado que se desvia da norma, esse leão, b) que o receptor descodifica voltando à norma, "esse bravo". Mas, ou se trata de uma operação com resultado nulo, e não teria nenhum interesse além do prazer inegável de fazer buracos para tapá-los, ou se trata de uma operação positiva, mas que implica então que a figura diz mais do aquilo com que é traduzida, seu pretenso sentido próprio.

Ação ("hypocrisis")

Já não há Pireneus.

Se traduzido por: Já não há fronteiras (entre França e Espanha), perde-se algo de essencial. A figura confere um sentido extra. Um último problema, para nós essencial, é saber se a definição de figura como desvio permite explicar seu poder persuasivo. De fato, se a figura é percebida pelo auditório como desvio, é aí que não dá certo. Ela pode ser considerada pesada ou poética, engraçada ou não, mas não funciona. A figura eficaz pode ser definida como algo que se desvia da expressão banal, mas precisamente por ser mais rica, mais expressiva, mais eloqüente, mais adaptada, numa palavra mais justa do que tudo que a poderia substituir. E, fizermos questão de falar em desvio, é a figura, a figura bem-sucedida, que constitui a norma.

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A ação é o arremate do trabalho retórico, a proferição do discurso. É essencial porque, sem ela, o discurso não atingiria o público. Sua função, diria Jakobson, é acima de tudo fática. Ao lhe perguntarem qual é a primeira qualidade do orador, Demóstenes respondeu: a ação; e a segunda: a ação; e a terceira: a ação (Brutus, 142) ...

Uma "hypocrisis" sem hipocrisia Ação, que em grego é hypocrisis, no início, antes de adquirir sentido pejorativo, significava a interpretação do adivinho, depois a interpretação do ator, a ação teatral. Assim como o hipócrita, o autor finge sentimentos que não tem, mas sabe disso, e seu público também. Assim também o orador: pode exprimir o que não sente, e sabe disso; mas não pode informar seu público, ou destruiria seu discurso. O ator que finge bem é um artista; o orador que finge bem seria um mentiroso ... O fato é que o orador sincero não pode deixar de "representar" segundo regras semelhantes às do ator. Se renunciasse a isso, se abandonasse a hypocrisis, trairia sua mensagem. A ação, diz Cícero, "faz o orador parecer aquilo que quer parecer" (Brutus, 142). Seja sincero ou não, precisa dela. Quanto a isso, os oradores antigos eram vezeiros ... chegando - diz Quintiliano (XIII, 3, 59) - a "cantar" suas defesas. Aliás, o mesmo Quintiliano dedica todo o capítulo 3 de seu livro IX à ação, não só ao trabalho da voz e da respiração, mas também às mímicas do rosto, à gestualidade do corpo; tudo se inclui: ombros, mãos, tórax, coxas ... que é preciso pôr a servi- . ço das diversas paixões que é preciso exprimir9 • tem interesse histórico. O conteúdo da ação hoje é mais simples e flexível. Mas a ação continua sendo indispensável, aliás mais que nunca, numa época em que o discurso oral, graças aos meios de comunicação de massa, readquiriu impor-

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tância capital. Certas regras antigas permanecem, como a impostação da voz, o domínio da respiração, a variedade do tom e da elocução, regras sem as quais o discurso não passa. Outras regras dizem respeito à conveniência, aqui adaptação do discurso ao canal. Nos anos 30, os oradores políticos forçavam a voz diante do microfone, embora este permitisse justamente utilizar voz suave, calma e descontraída. Em todo caso, a dicção sempre faz parte da retórica.

o problema da memória Pois bem, como eram proferidos os discursos: eram lidos, proferidos a partir de notas, de improviso? Parece que, para os antigos, começava-se aprendendo de cor. Donde a importância da memória (mnemé), que para certos autores latinos constituía a quinta parte da retórica: a arte de memorizar o discurso. Para Cícero (Brutus, 140,215, 301), isso é uma aptidão natural, não uma técnica; portanto, não pode ser parte da retórica. Para Quintiliano, ao contrário, a memória não só é um dom como também uma técnica que se aprende (cf. XI, 2,passim); e indica processos mnemotécnicos, como decompor o discurso em partes, que serão memorizadas uma após outra, associando a cada uma um sinal mental para lembrar de proferi-la no momento certo: uma âncora para o trecho sobre o navio, um dardo para o trecho sobre o combate (29). Mas, além desses "truques", faz três observações essenciais. Primeiro, a memória depende antes de mais nada do estado fisico: para lembrar-se é preciso ter dormido bem, estar com boa saúde, etc. Depois, um discurso é fácil de memorizar por sua estrutura (ordo), ou seja, por sua coerência, pelo encadeamento lógico de suas partes, pela eurritmia de suas Finalmente, é "dominando" o discurso que temos mais condições de ajustar-nos às objeções e de improvisar. Portanto, em vez de se opor à criatividade, a memória é fator essencial para ela.

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o problema do escrito e do oral O que apresenta outro problema: a relação entre o discurso escrito e o oral. Ao lermos os antigos retores temos a impressão de que para eles o discurso é essencialmente escrito, e que o problema da ação é unicamente de "interpretá-lo", assim como um pianista interpreta uma sonata, portanto de pronunciá-lo com clareza e vivacidade depois de o ter redigido e memorizado. É verdade que as peripécias do debate político e judiciário obrigariam a improvisar (aliás, os discursos publicados dos oradores antigos foram reescritos), mas pouco importa: eles não parecem ter pensado num estilo específico do discurso oral, talvez porque a língua falada estivesse longe demais da língua escrita. Para nós, o discurso oral deve ser bem mais lento que uma leitura, ou o auditório perderia o fio da meada. Deve ser redundante, para suprir a memória. Finalmente, o mais importante, a língua não é exatamente a mesma: exige frases mais curtas, expressões mais concretas e familiares, ou então o discurso parecerá artificial. Concretamente, fala-se evitando a forma sintética do futuro, substituindo mesóclises e até ênclises por próclises, usando "pra" em vez de "para", dizendo "acho" em vez de "acredito". Quintiliano, que pode ser muito "moderno", aconselha o orador a: cuidar principalmente de fazer que sejam ouvidos como descontraídos desdobramentos muito cerrados, e a dar às vezes a impressão de estar refletindo, hesitando, buscando aquilo que foi levado bem pronto. (XI, 2, 47)

Ninguém fala "como livro", mas como gente. Mostrar que a retórica é um sistema é mostrar que ela tem um sentioo ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a seqüência deste livro sustenta a tese de que é possível utilizar a retórica sem fazer referência a esse sistema, que na verdade constitui uma das chaves da nossa cultura.

Capítulo IV

Do século I ao XX

De que forma os séculos foram enriquecendo o sistema retórico? Também aqui convém deixar claro que não tentamos traçar uma história da retórica nem um panorama. Limitamonos a lembrar alguns grandes problemas, que foram surgindo em diferentes épocas, desde Cícero até nós.

Período latino

Depois de Isócrates e Aristóteles, a retórica se instala na cultura grega helenística como disciplina essencial, tão importante quanto para nós a matemática. Os romanos também aderirão, assimilando-a. Como?

Forma efundo: pintura e cores verdadeiras

Aqui nos limitaremos a mencionar as obras axiais: Do orador, de Cícero, completada por O orador, 55 e 46 a.c., e Instituição oratória, de Quintiliano, escrita provavelmente em 93 d.C. Essas obras constituem admiráveis tratados de retórica, escritos por praticantes. Note-se que, ao contrário dos gregos, os romanos tinham advogados; que não tinham o direito de ser pagos, mas tinham um consolo: eram ressarcidos com presentes. CíeéPo e Quintiliano foram ambos grandes advogados que, em seus livros, "teorizaram" sobre sua prática. A primeira tarefa da retórica latina foi traduzir os termos gregos. Por exemplo, metáfora em Cícero transforma-se em

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tralatio, epidíctico é demonstrativum. Tekhné rhetoriké será chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra grega rhetor terá duas traduções: orator, que é o executante, o fazedor de discursos, e rhetor, que é o professor, geralmente grego. Essa dualidade apresenta um problema de fundo, o do papel da técnica na eloqüência. Pois o retor ensina uma técnica, com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verdadeira eloqüência tem a ver com receitas? Não, responde Cícero; se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas retóricas, os "truques" para se impor são ineficazes. O estilo também nada tem de artificial; longe de ser um ornamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do ftmdo. A escolha das palavras (electio), a composição das frases, as figuras, o ritmo - principalmente o ritmo - são expressões naturais do que se tem para dizer, e tudo o que soa artificial deve ser riscado: Se houver nobreza nas próprias coisas de que se fala, das palavras brotará uma espécie de fulgor natural. (Do orador, III, 125)

E o homem culto que tem algo para dizer não precisa dos cursos de expressão dos retores. É por isso que Cícero chama as figuras de estilo de lumina, pois elas trazem a lume o que queremos dizer (cf. O orador, 85, 95, 134). O discurso para ele é um organismo vivo cujas partes desempenham todas um papel; portanto, se forem aplicados ornamentos, eles não passarão de "pintura", enquanto o que conta é o "colorido da pele", sinal de boa saúde l . Então é melhor renunciar à retórica? Não, pois a ausência de retórica, em vez de significar sinceridade, não passa de inaptidão, incapacidade para exprimir-se e convencer. Portanto, uma retórica, e que seja ensinada. Mas trata-se de um ensino em profundidade, que pega o homem desde a infância e forma-o naquilo que os gregos chamam de Paideia, tra(fuzido magnifica-

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mente por Cícero como humanitas, nossa cultura geral. Só ela permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar o debate da causa à thésis, do caso particular à questão geral subjacente. Por exemplo, o advogado, ao pedir o castigo do réu, elevar-se-á, tomando considerações históricas em apoio, aos problemas da defesa social, da exemplaridade do castigo, etc.

Retórica e moral O mesmo se aplica a Quintiliano que, no apogeu do Império, retoma de modo mais sistemático as idéias de Cícero. Ele também considera a retórica como arte funcional, que exclui tudo o que seja inútil, arte que procede do mesmo espírito dos aquedutos romanos e da disciplina legionária. O estilo deve seu brilho à função, analogamente ao brilho das armas da legião em ordem de batalha (cf. X, 1,29). A arte oratória, portanto, em vez de criar "desvio" permite atingir a expressão mais justa, e nosso pretenso "grau zero" do discurso "normal" para Quintiliano não passaria de inaptidão, desjeito, incultura, "garrulice improvisada"2. Inversamente, retórica é sinônimo de cultura, e a Institutio oratoria, "Formação do orador", apresenta-se como um tratado completo de educação a partir da primeira infância, que possibilita classificar seu autor, sem muito anacronismo, como pedagogo. Não entraremos no mérito de seus conselhos notáveis, muitas vezes bem atuais, como o de sempre levar o aluno a propor-se questões. Diga-se que ele abre o campo do ensino retórico, por nele incluir a gramática, como explicação dos textos, e a dialética, como técnica de argumentação (cf. 11, 21, 12). Porém o mais importante, como educador, é que ele se esforça por reconciliar a retórica e a ética, que Aristóteles havia separado. Quantio define a retórica como scientia bene dicendi, arte de bem falar (11, 15, 5; 16, 38), a palavra "bem" para ele tem sentido não só estético como também moral. A quantos censuram a retórica por persuadir tanto do pior quanto do melhor,

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Quintiliano responde que não se pode atribuir "o nome de o mais belo dos oficios a quem aconselhe perversidades" (15, 17), e chega a dizer: Onde houver causa injusta, não haverá retórica. (11, 17, 31)

Em suma, ela não só é uma arte, mas uma virtude. E, à acusação de que um homem mau pode às vezes utilizar uma retórica excelente para chegar a seus fins, ele responde: Um bandido pode bater-se com valentia, e a coragem nem por isso deixará de ser virtude. (11, 20, 10)

Note-se que esses dois argumentos não combinam: de acordo com o primeiro, a retórica a serviço de uma causa imoral não é retórica; de acordo com o segundo, ela continua retórica e continua virtude! Na realidade, o que reconcilia retórica e moral é a cultura, para Quintiliano valor supremo. Concordando com Isócrates, ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente, só o homem de bem, honesto e culto, fala bem. Pode-se dizer que a Institutio oratoria propõe os fundamentos da educação humanista.

Retórica e democracia Na época imperial, um pouco depois de Quintiliano, um texto célebre de Tácito, Diálogo dos oradores, levanta problema bem diferente. No fim dessa conversa, os protagonistas se perguntam por que a eloqüência entrou em decadência depois de Cícero. Para isso, o orador Messala dá uma primeira explicação: esse declínio se deve "à preguiça dos jovens", tanto quanto ao desleixo de sua educação; história tantas vezes repe'/ tida desde então...

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Mas dá outra explicação, menos banal. A arte oratória cesenvolvera-se na sociedade em que era indispensável, qual seja, a democracia. Quando todas as decisões eram submetidas a debates públicos, o futuro orador formava-se naturalmente no fórum, ouvindo as discussões e depois tomando parte delas; descobria assim as técnicas dos diversos oradores e, principalmente, as reações do público. "Hoje" (na época dos imperadores), quando esses debates não são mais correntes, os jovens aprendem eloqüência na escola, ou seja, de modo artificial, sem outro público senão camaradas tão pueris quanto eles, sem outros temas de debate senão assuntos irreais, absurdos. Em suma, uma vez que a função cria o órgão, a eloqüência desenvolveu-se na sociedade que precisava dela, a democracia, e não sobreviveu a esta senão de maneira artificial. Mas não devemos enxergar em Tácito um velho democrata embrulhado em virtuosa nostalgia. Ele lembra que aquela democracia significava menos liberdade e mais desordem e violência, e que a paz romana, concretizada pelos imperadores, vale mil vezes mais que o regime de anarquia que a precedeu. Raciocinando por analogia, ele afirma que não se deve sentir saudade da desordem democrática só porque ela produziu grandes oradores, assim como não se sente saudade da guerra só porque ela produz heróis (37, 7). Fato é que esse trecho de Tácito foi transformado em verdadeiro lugar-comum, afirmando-se que a grande retórica teria morrido com a liberdade, dando lugar apenas à retórica artificial, ornamental e vazia. Será verdade? Em certo sentido, a história da educação romana confirma isso. Tudo ocorre como se os romanos tivessem ganho, com a retórica, um instrumento que não lhes servia para grande coisa. Nas aulas de retórica, usavam-se, como exercício, "declamações", discursos puramente fictícios. Eram de três tipos. Os elogios, discursos epidícticos, tratavam de personagens históricas ou lerttiárias e eram completadas por paralelos (por exemplo, entre Aquiles e Heitor). Os suasórios eram discursos políticos, mas fora da situação vivida:

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Aníbal, no dia seguinte a Canas, está pensando se marchará sobre Roma. (in Marrou, p. 415) As controvérsias, enfim, eram discursos favoráveis ou contrários a alguma coisa. Os exemplos utilizados eram fictícios, às vezes inverossímeis, alegando-se que a dificuldade era formadora por si mesma. Assim o caso do "duplo sedutor", que era preciso defender e acusar: A lei aqui será: a mulher seduzida escolherá entre a condenação à morte do sedutor ou o casamento com ele, sem dote. Na mesma noite, um homem violenta duas mulheres. Uma pede sua morte, a outra escolhe casar-se com ele. (in Marrou, p. 415) Essas khreias lembram o exercício da conferência dos advogados estagiários: a lei pune o marido se ele comete adultério no domicílio conjugal. Ora, um marido é surpreendido em flagrante delito de adultério com a vizinha, no muro que divide as duas residências. Ele é passível das penas da lei? Em Vida cotidiana em Roma, Jerônimo Carcopino fustiga esse ensino retórico totalmente apartado da vida: "retórica irreal" "virtuosidades verbàis", "formalismo incurável" (pp. 1:35 s.). R.-I. Marrou é mais matizado; mostra que essa cultura formal a longo prazo produzia resultado positivo: formava advogados, administradores, embaixadores capazes de falar com eficácia nas situações mais inéditas. Afinal, também seria possível falar de formalismo com referência a nossas dissertações e a nossos problemas de matemática. Se o ensino da retórica perdurou durante o Império Romano se sobreviveu em Bizâncio, tanto sob o islamismo quanto na' Europa medieval, com métodos semelhantes, significa que não era tão inútil. É verdade que a retórica perdeu os grandes debates políticos, que só recuperará nas democracias modernas, mas ganhou outros gêneros: a epístola, a descrição, o testamento, o discurso de embaixada, a consolação, o conselho ao príncipe, etc. O "fim da retórica" não passa de lugar-comum no mau sentido do termo, ou seja, não retórico.

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Por que o declínio? Na realidade, foi no século XIX que a retórica realmente declinou, a ponto de quase desaparecer. Seria interessante saberporquê.

Retórica e cristianismo Um grande problema que se apresenta no fim da Antiguidade é o da relação entre a retórica e a nova religião, o cristianismo. Este, de fato, situa-se em ruptura total com a cultura antiga, cujo "cerne" é constituído pela retórica: cultura pagã, idólatra e imoral, que só poderia afastar a redenção, "única coisa necessária" . No entanto, como mostrou tão bem R.-I. Marrou, os cristãos logo aceitaram a escola romana e a cultura que ela veiculava. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do Império desmoronaram, foi a Igreja que se tomou depositária desse cultura antiga, retórica inclusive. É verdade que grande número de pais da Igreja rejeitam os autores pagãos, como inúteis e perigosos, mas admitem a língua e a retórica dos pagãos (cf. Marrou, 460 s.). Por quê? Por duas razões. A primeira é que a Igreja, em seu papel missionário e em suas polêmicas, não podia prescindir da retórica, muito menos da língua (grega ou latina). Não podia deixar esses meios de persuasão e de comunicação em mãos de adversários. Santo Agostinho escreve assim, no fim do século IV: Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se esforçam por persuadir do falso saberiam desde o exórdio tomar o auditório dócil e benevolente, enquanto os defensores da verdade seriam incapazes disso? (Doutrina cristã, IV, 2,3)

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A segunda razão é que a própria Bíblia é profundamente retórica. Não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de palavras, antíteses, argumentações, tanto quanto nos textos gregos,

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se não mais? São Paulo bem que afirma que não tem a sophia logou, "arte do discurso" (1 Cor I, 17), mas acrescenta a argumentação de um rabino às antíteses de um orador grego. Portanto, a Bíblia era um modelo, porém mais ainda: um problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser compreendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos os recursos da retórica. A hermenêutica da Idade Média é toda alegórica: propõe que todo texto bíblico tem outro sentido além do literal. Outro, ou melhor, vários. Tomemos como exemplo a palavra Jerusalém (pois essa interpretação dizia respeito sobretudo à palavra): 1) ela tem um sentido próprio ou histórico, de cidade onde viveram David, Salomão, etc.; 2) tem também um sentido alegórico, que se refere ao Cristo, e Jerusalém significa Igreja; 3) tem um sentido tropológico, ou seja, moral, e Jerusalém significa a alma do cristão, tentada, castigada, curada; 4) finalmente tem um sentido anagógico, relativo à ressurreição e ao reino de Deus, e Jerusalém significa a cidade de Deus, depois do Juízo Final. Tomemos o texto seguinte, interessante por possibilitar destacar os mecanismos da alegoria; é um breve comentário sobre Êxodo, XI, 12: À meia-noite sairei pela terra do Egito. E todo primogênito morrerá ...

Como comentar esse versículo terrível? Pode ser interpretado historicamente porque, como se lê, quando a Páscoa é celebrada, o anjo exterminador atravessa (pertransit) o Egito. Alegoricamente, a Igreja passa (transit) da descrença à fé pelo batismo. Tropologicamente, a alma deve passar (transire) do vício à virtude pela conversão e pelo arrependimento. Anagogicamente, o Cristo passou (transivit) da condição mortal à imortalidade, para nos fazer passar (transire) da miséria deste mundo à fé eterna3 •

Como se vê, essa tripla alegoria é construída sobre o tema da passagem. Hoje em dia, os pregadores são bem mais só-

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brios, mas continuam utilizando a hermenêutica dos quatro sentidos, que funciona como um lugar da retórica.

Verdadeiras causas do declínio: retórica, verdade e sinceridade Portanto, o cristianismo nada tem a ver com o declínio da retórica. Esta, ao contrário, desenvolveu-se durante toda a Idade Média, tanto na literatura profana quanto na pregação. A partir do Renascimento, voltou aos cânones antigos, e seu ensino constitui o ciclo essencial de toda a escolaridade, tanto entre os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuítas\ No entanto, é nesse período que começa o declínio da retórica. As novas idéias vão dar-lhe o golpe mortal, rompendo o elo entre o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor. Foi dito que essa cisão ocorreu a partir do século XVI, com o humanista Pedro Ramus (Pierre de la Ramée, 1515-1572). Este de fato separa resolutamente a dialética, arte da argumentação racional, da retórica, reduzida "ao estudo dos meios de expressão ornados e agradáveis" (TA, p. 669), em suma à elocução. Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido duradoura; ao contrário, os retóricos que apareceram até o século XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incluindo tanto a invenção e a disposição quanto a elocução. Apesar disso, no século XVII ocorre uma fratura também grave com Descartes, que vai destruir um dos pilares da retórica, a dialética, em outras palavras a própria possibilidade de argumentação contraditória e probabilista. Em sua autobiografia intelectual, que abre o Discours de la méthode, ele escreve: Eu apreciava muito a eloqüência e era apaixonado por poesia, mas achava que uma e outra eram dons do espírito, e não do estudo. Aqueles que têm raciocínio mais forte e que digen!m melhor seus pensamentos, para tomá-los claros e inteligíveis, são os que sempre conseguem persuadir melhor daquilo que propõem, ainda que só falassem baixo bretão e nunca tivessem aprendido retórica.

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Como se vê, Descartes considera tanto o objetivo da retórica ("persuadir") quanto suas quatro partes: invenção ("raciocínio"), disposição ("digerem", no sentido de organizam), elocução ("tomar claros"), ação ("falassem"). Considera tudo da retórica, salvo a retórica ... como arte que se poderia "aprender" por "estudo"; idéia retomada depois por Pascal: A verdadeira eloqüência escarnece da eloqüência. (p. 321)

Mais ainda: com seu "baixo bretão" Descartes rejeita o privilégio de uma língua nobre, objeto da retórica, o latim. Principalmente no parágrafo seguinte ele repudia a dialética, por nunca oferecer mais que opiniões verossímeis e sujeitas a discussão, ao passo que a verdade só pode ser evidente, portanto única e capaz de criar acordo em todos os espíritos. Com a dúvida metódica, Descartes tomará a atitude de considerar não como verdadeiro, mas como falso, tudo o que só é verossímil, e sua filosofia se apresentará como um encadeamento de evidências, análogo a uma demonstração matemática. Enfim, contra o debate de várias pessoas, que é a dialética, ele afirma que só se pode encontrar a verdade sozinho, por um retomo a si mesmo (cf. infra, texto 8). A retórica deixa portanto de ser arte e perde seu instrumento dialético. Basta encontrar a verdade por sua razão, "E as palavras para expressá-la chegam facilmente" (Boileau). Outros filósofos, os empiristas ingleses, chegam à mesma condenação. Para eles, qualquer verdade vem da experiência sensível, e a retórica, com seus artifícios verbais, só faz afastar da experiência. Locke assim escreve: Confesso que, em discursos nos quais procuramos mais agradar e divertir que instruir e aperfeiçoar o julgamento, mal podemos fazer passar por erros essas espécies de ornamentos que tomamos de empréstimo às figuras. Mas, se quisermos. representar as coisas como são, é preciso reconhecer que, excetuando a ordem e a nitidez, toda a arte da retórica, todas as aplicações artificiais e figuradas que nela se fazem das palavras, segundo as regras que a eloqüência inventou, para outra coisa não

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servem senão para insinuar falsas idéias no espírito, despertar paixões e seduzir pelo julgamento, de tal modo que na verdade são perfeitos logros. (in Todorof, pp. 77-78) Se Locke admite um ensino da retórica para a elocução, é ainda mais severo que Descartes, pois faz da retórica a arte da mentira. Quanto ao resto, apesar de suas oposições filosóficas, estão de acordo. Descartes situa a verdade na evidência das idéias claras e distintas; Locke, na experiência dos sentidos. Mas ambos vêem a retórica como um anteparo artificial entre o espírito e a verdade. Ambos desconfiam da linguagem, que só vale como veículo neutro de uma verdade independente dela, de uma verdade que nada tem a ver com as controvérsias da dialética. A retórica não pode mais ter pretensões a invenção alguma. É certo que ela ainda poderá servir aos debates jurídicos, à política e à pregação. E por isso ainda haverá tratados de retórica até o século XIX. Mas aí duas novas correntes de pensamento conduzirão ao seu desenlace. A primeira é o positivismo, que rejeita a retórica em nome da verdade científica. Ela será excluída até mesmo de sua última trincheira, a elocução, sendo substituída pela filologia e pela história científica das literaturas. A última obra propriamente retórica na França é de Pierre Fontanier, publicada em 1818 e 1827, que G. Genette reeditará em 1968 com o título Les figures du discours, estudo notável, modestamente destinado aos alunos da penúltima série do estudo secundário. A segunda corrente é o romantismo, que rejeita a retórica em nome da sinceridade. "Paz com a sintaxe, guerra à retórica", exclama Victor Hugo, querendo dizer com isso que o escritor deve respeitar o código da língua, mas sem se sobrecarregar com um segundo código. Em 1885, a retórica desaparece do ensino francês, substituída pela."história das literaturas grega, latina e francesa". Fim.

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Hoje: retóricas Ou melhor: falsa saída de cena. Pois se a retórica perdeu o nome nem por isso morreu. Não só sobrevive, como se viu, no ensino literário, nos discursos jurídicos e políticos, como também vai renovar-se com a comunicação de massa, própria do século xx. Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na França e na Europa uma nova retórica, que logo conhecerá imenso sucesso. A palavra já não dá medo.

Uma retórica estilhaçada Apesar de tudo, a retórica atual é bem diferente daquela que substitui. Para começar, seu objetivo já não é produzir discursos, porém interpretá-los, e assim se aproxima mais da gramática dos antigos. Pode-se dizer que já não se aprende a fazer discursos? Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a formação literária e filosófica, já não é visto como retórica ou não é ainda. Em segundo lugar, o campo da moderna retórica alargouse muito. Longe de limitar-se aos três gêneros oratórios dos antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas modernas do discurso persuasivo, a começar pela publicidade, e mesmo dos gêneros não persuasivos, como a poesia. Não contente com reivindicar todo o campo do discurso, vai bem além, pois se apodera de todas as espécies de produções não verbais. Elabora-se assim uma retórica do cartaz, do cinema, da música, sem falar da retórica do inconsciente. Finalmente, e mais importante, a retórica moderna é uma retórica estilhaçada, fragmentada em estudos distintos. Distintos não só pelo objeto, mas pela própria definição que dão à palavra "retórica", de tal modo que cabe perguntar se esse termo ainda tem algum sentido preciso. Esse estilhaçamento, que afeta, aliás, a arte e a filosofia, é um dos grandes sinais da nossa cultura, índice de que ela está bem viva, pois é a vida que estilhaça as formas rígidas. Mas também de que, como acontece com tudo o que é vivo, há o risco de morrer.

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Os três parágrafos que seguem contêm exemplos desse estilhaçamento.

Retórica da imagem "Vivemos no século da imagem", é o que se ouve com freqüência. Clichê bem contestável, pois os outros séculos comunicaram-se bem mais pela imagem que pelo texto escrito. Além do mais, é raro que as nossas imagens possam prescindir do texto escrito para serem legíveis. Assim, é perfeitamente possível fazer a interpretação retórica de estátuas romanas, de ícones, de portais romanos, etc., imagens que se vinculam ao gênero epidíctico, para glória de um soberano ou de Deus. Mas é normal que essa retórica se interesse mais pelas produções atuais, sobretudo pelas imagens publicitárias, persuasivas por essência. O pontapé inicial da retórica da imagem, na França, foi dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communications no ano de 1964. Nele, Barthes analisa um cartaz feito para as massas Panzani, mostrando que além de sua denotação - legumes frescos e pacotes de macarrão saindo de uma sacola - o cartaz persuade pela conotação: as cores verde, branca e vermelha sugerem italianidade; os legumes, frescor e natureza; a sacola, cozinha artesanal, etc. Ainda que as massas em questão sejam francesas e industrializadas! Mas Barthes faz mais semiótica que retórica. O que se pode dizer é que, se é imprópria para produzir argumentação, a imagem é porém notável para amplificar o etos e o patos. Tomemos como exemplo o cartaz da oposição que inaugurou a campanha eleitoral para as eleições legislativas de 1986. Como texto, o cartaz contém o slogan: Vivement demain!, e em menores: Avec le RPR!*. O slogan expressa a ex de toda oposição: chegar ao governo. A seqüência

* Literalmente, "Vivamente amanhã" e "Com o RPR". (N. do T.)

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sugere que o beneficiário dessa expectativa é o RPR, e não dos outros partidos de oposição. A imagem: Jacques Chirac, o líder, no centro de uma linha de doze pessoas, das quais duas mulheres jovens, em posições simétricas, que avançam por um prado, debaixo de um céu imenso, onde está escrito o slogan. O etos é sugerido pelas conotações da imagem: "Equipe": as pessoas estão com os braços nos ombros das outras ou estão de braços; "respeitável": usam traje social, com gravata; "trabalho": tiraram os paletós; o vento levanta as gravatas; "juventude" : quase todos têm menos de quarenta anos; os mais idosos estão no meio; sinédoque: alguns jovens para marcar juventude. O patos também nasce das conotações: "ímpeto irresistível": a linha ondulante sugere uma vaga que nos envolve; metáfora; "saúde": todos estão incrivelmente bronzeados; "dinamismo": a equipe avança; numa primeira versão, estava imóvel, o que era bem menos convincente; "patriotismo": o céu é azul, as camisas são brancas, os vestidos das duas mulheres são vermelhos; "otimismo": as doze pessoas (bom número, o dos apóstolos), ostentam um sorriso comercial, o que valeu ao cartaz o nome de "ouistiti-sexe"*. Esse cartaz é obra de profissionais da publicidade, como aliás todos os dos outros partidos nessa campanha5 • Note-se que a conotação enriquece a denotação, e que em certo sentido a contradiz. Pois a imagem dá a entender que todos os figurantes da equipe irão tornar-se ministros de Chirac, ao passo que alguns não se tornaram; o mais importante é que ele não mostra os principais colaboradores de Chirac, que não eram nem um pouco jovens. Não se trata de uma mentira, tanto quanto no

* Ouistiti é sagüi, mico. (N. do T.)

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caso das massas Panzani ... Mas de uma sugestão, que por certo se encontraria em qualquer imagem publicitária. Em todo caso, esses dois cartazes, aliás belíssimos (beleza funcional), mostram bem duas coisas: 1) A retórica da imagem desenvolve o oratório em detrimento do argumentativo. 2) A imagem não é eficaz, nem mesmo legível, sem um mínimo de texto. A imagem é retórica a serviço do discurso, não em seu lugar.

Retórica da propaganda e da publicidade Pode-se considerar a propaganda (política, militar, etc.) e a publicidade como invenções do século XX. Ainda que nossos ancestrais não nos tenham esperado para defender seus partidos e criar suas mercadorias, o que eles faziam era coisa bem diferente, por uma boa razão. A propaganda e a publicidade pertencem à comunicação de massa. O que é massa? Um número indefinido, geralmente imenso, de indivíduos cujo único elo é receber a mesma mensagem. Um camelô que vende um tira-manchas na feira dirigese a algumas pessoas e adapta-se às reações delas. O anunciante de um tira-manchas na televisão dirige-se a milhões de desconhecidos cujo único elo é a mensagem a que estão submetidos. A massa, em si, é passiva e atomizada. Na verdade é a comunicação de massas que cria a massa. Para que ela exista, são necessários meios de comunicação modernos, de grande difusão, como o cartaz ou o anúncio de televisão. Nisso, a massa se distingue da multidão, conjunto de pessoas reunidas para alguma coisa, que pode reagir imediatamente à mensagem que recebem. A multidão aplaude ou infama; a massa não tem voz nem rosto. E a comunicação de massa é sempre indireta. Utiliza algum canal, do cartaz ao filme, complexo o que implica conseqüências para o próprio conteúdo do discurso. Em primeiro lugar, geralmente é breve, pois limitada no tempo ou no espaço, o que quase não lhe possibilita argumen-

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tações sutis, mas autoriza, em compensação, a jogar com ambigüidades. Sua satisfação ou o dinheiro de volta: ótimo, mas em que condições? X lava mais branco: mas o quê e como? Em segundo lugar, embora menos claro e menos preciso, o discurso é completado pelo conteúdo não lingüístico da mensagem, pela música, pela imagem, que no fundo desempenham o papel da ação, parte não verbal da antiga retórica. Mas a publicidade vai renovar a invenção também. Primeiro ela cria seus próprios lugares, no sentido de argumentos-tipo ("somos jovens") ou de perguntas para chegar a eles ("Como parecer jovem?"). Lembremos os lugares mais conhecidos: juventude, sedução, saúde, prazer, status, diferença, natureza, autenticidade, relação qualidade/preço. Depois, a publicidade privilegia o etos e, principalmente, o patos, em relação ao logos. Em outras palavras, a mensagem é bem mais oratória que argumentativa. O próprio patos - psicologia utilizada pelos meios de comunicação de massa - é diferente do da retórica antiga. Inspira-se, pelo menos atualmente, na psicanálise. Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a estratégia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa retórica, voltada para a necessidade que há nos consumidores de se sentirem seguros e amados. Es lohnt sich bestimmt ("Sim, vale a pena!"), proclama o slogan, incitando a deixar de lado a angústia da dúvida, a entregar-se à voz paterna onisciente e onipotente. Lee match frei ("Lee é liberdade"); Lee já não é um objeto, calças banais, porém um ser personalizado que cuida de nós, e a liberdade que nos proporciona encontra verdadeiro sentido no inconsciente: livra-nos da angústia de sermos adultos. Significa que todas essas mensagens, ao eliminarem o tempo e as relações causais, ao criarem uma fusão narcísica entre o objeto e o ego, jogam com a necessidade de regressão afetiva. Vê-se o mesmo fenômeno nos "revolucionários" de 1968; seus slogans mais fortes: Sob a calçada, a praia. É proibido proibir. Seja realista, peça o impossível. faziam parte da recusa global de ser adultos.

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Poder-se-ia retorquir a Flader que sua explicação é parcial, pois há outras motivações além do retorno à infância; a liberdade de Lee talvez seja também a comodidade do corpo, a liberação sexual, a saída da infância (e não a volta a ela!). Mas, no conjunto, ele tem razão; o patos ganha do logos, e esse patos inova em relação à tradição retórica. Mas, se mudar seu conteúdo, a publicidade se inserirá no sistema retórico; comporta invenção, disposição - plano da mensagem, estrutura do cartaz -, elocução e principalmente ação. Numa propaganda eleitoral, por exemplo, não só a voz é essencial como também todo o comportamento, a aparência do candidato, que é a forma moderna do etos. Caberia mostrar aqui o que distingue a propaganda da publicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confundir-se, pois os partidos políticos confiam suas campanhas cada vez mais a publicitários. Donde a pergunta: a publicidade é realmente compatível com a democracia? Pode-se responder: sim, porquanto é retórica, e a base da retórica é a argumentação contraditória. Toda publicidade é contraditada por outras, e quem não achar que X lava mais branco sempre pode comprar Y; assim também, quem não gosta do sorriso comercial deste candidato tem a liberdade de votar em outro. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha por situar o debate em tal nível que na verdade não há debate, conservando da argumentação apenas o que ela tem de mais sumário e oferecendo como termos de escolha apenas objetos - brancura, sorriso - que não têm grande relação com problemas reais. A democracia precisa de um povo adulto, e a retórica publicitária devolve as massas à infância.

Nova retórica contra nova retórica NOS'MloS 60, assiste-se ao nascimento de uma "nova retórica". Mas que retórica? Houve várias, e a que estava mais na moda naquela época afirmava-se puramente literária, sem relação alguma com a persuasão. Tinha-se então esquecido tão bem

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o que significava a palavra "retórica" que ela virou rótulo de coisa completamente diferente. Esse movimento, que incluiu Jean Cohen, o grupo MU, Gérard Genette, Roland Barthes, transforma a retórica em "conhecimento dos procedimentos da linguagem característicos da literatura" (Rhétorique générale, p. 25). E esses procedimentos são reduzidos às figuras de estilo, definidas como desvios do "grau zero", que seria a prosa não literária. Renri Morier chegou a fazer um Dicionário de retórica e poética sem falar de argumentos, lugares, disposições. Essa "nova retórica" limita-se, pois, à elocução, e desta só fica com as figuras. Em suma, uma retórica sem finalidade alguma. Não nos cabe desprezar essas obras, tão ricas e muitas vezes apaixonantes. Mas trata-se de retórica? Um representante do grupo MU responde rejeitando qualquer argumento de autoridade: Nem a Bíblia, nem o Código Civil, nem poder algum pode nos obrigar a partir do domínio da antiga retórica. ("Rhétorique de I' argumentation et des figures", in Figures et conflits rhétoriques, p. 126)

Por certo, mas há outro poder, o do dicionário. E nosso temor é de que, à força de infringi-lo, cheguemos à Torre de Babel... Em todo caso, à retórica literária opõe-se outra corrente, de Chai'm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, cujo livro mais importante, Traité de l'argumentation, la nouvelle rhétorique, foi publicado por Presses Universitaires de France em 1958 e quase não teve sucesso na época *. Essa obra, que se insere na grande tradição retórica de Aristóteles, Isócrates e Quintiliano, é realmente a teoria do discurso persuasivo. Seus autores partiram de um problema, não lingüístico nem literário, mas filosófico: como fundamentar os juízos

* Tratado de argumentação,

São Paulo, Martins Fontes, 1996. (N.

do E.) L/

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de valor? O que nos permite afirmar que isto é justo ou que aquilo não é belo? Buscaram, pois, a lógica do valor, paralela à da ciência, e acabaram por encontrá-la na antiga retórica, completada, como convém, pela dialética. A grande descoberta desse tratado - a palavra "descoberta" comporta um pressuposto, mas nós o assumimos - é que, entre a demonstração científica e a arbitrária das crenças, há uma lógica do verossímil, a que dão o nome de argumentação, vinculando-a à antiga retórica. No essencial, esse livro é um estudo dos diversos tipos de argumentos, a que voltaremos no capítulo VIII; é certo que abre espaço para as figuras, porém um espaço menor, reduzindo-as a condensados de argumentos; por exemplo, a metáfora condensa uma analogia. Em suma, uma retórica centrada na invenção, e não na elocução. Portanto, também incompleta. De fato, se o tratado descreve maravilhosamente as estratégias da argumentação, deixa de reconhecer os aspectos afetivos da Retórica, o delectare e o movere, o encanto e a emoção, essenciais contudo à persuasão. Na França, o Traité de 1'argumentation foi ignorado pelos meios literários, fechados para tudo o que não fosse estilística, e até pelos meios filosóficos, de tal modo a idéia de um terceiro caminho, entre a lógica formal e a ausência de lógica, era estranha à cultura da época. Pelo menos na França, pois continuava familiar aos anglo-saxões, que, aliás, nunca tinham esquecido de todo a retórica. O pensamento de Perelman só teve penetração realmente no fim dos anos 70. E mesmo então seus esquemas argumentativos foram utilizados bem menos para interpretar os autores que para "desmistificá-los". Pois na época o lado retórico dos discursos era considerado indício de manipulação ideológica: A retórica aparece, assim, como a face significante da ideologia. (R. Barthes, "La rhétorique de l'image", p. 49)

Essal'etórica da desconfiança, preconizada por Barthes e por tantos outros, parece-nos singularmente redutora, tanto dos textos que interpreta quanto da própria idéia de retórica. A nosso ver, a teoria de Perelman-Tyteca permite uma leitura re-

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tórica dos textos que se fundam no diálogo, e não na desconfiança, como tentaremos mostrar no último capítulo. Para chegar lá, é preciso negar-se à opção mortal entre retórica da argumentação e retórica do estilo. Uma nunca está sem a outra6 •

Capítulo V

Argumentação

No fim dos anos 60, um acadêmico, professor de matemática, fundou um instituto de pesquisas sobre o ensino, onde se elaborava aquilo que recebeu o nome de matemática nova. Um dia, diante de seus colegas, fez a seguinte pergunta: "Será possível demonstrar que nossa reforma tornará o ensino mais eficaz?" Pergunta honesta, porém ingênua. Pois, afinal, a eficácia de um ensino de matemática não se demonstra matematicamente! Essa é uma pergunta que não está realmente clara - o que significa "eficaz"? -, portanto a resposta não pode ter a evidência de uma lei científica. O que não significa que a pergunta não tem resposta. Se a ausência de demonstração significasse não-saber, não haveria ciências humanas. Ora, elas existem, mas os conhecimentos que proporcionam são de ordem diferente do das ciências "duras". Isso para ilustrar a tese deste capítulo e de todo o livro: entre a demonstração científica ou lógica e a ignorância pura e simples, há todo um domínio da argumentação. Esta constitui um método de pesquisa e prova que fica a meia distância entre a evidência e a ignorância, entre o necessário e o arbitrário. Tanto quanto a dialética - que ela continua com outra forma -, constitui um dos pilares da retórica. Os filósofos, desde Descartes, acreditaram que esse pilar estivesse destruído; no entanto eles mesmos precisam dele ... A lttórica em si compõe-se de dois elementos: argumentativo e oratório. E aí vai nossa segunda tese: a importância da oratória é maior quanto mais urgente for a questão, mais restrito o acordo prévio, e menos acessível à argumentação lógica o

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auditório. Um advogado será bem mais orador se o tribunal comportar um júri; um político será bem mais orador diante das massas que diante do Parlamento, e mais ainda quanto menor for o tempo que tiver para tomar a palavra. É então que o etos e o patos tendem a suplantar o logos, e é aí também que surgem as figuras. Essas são as duas teses que tentaremos defender com argumentos.

As cinco características da argumentação Como definir a argumentação? Certamente não como um conjunto ou uma seqüência de argumentos! Pode-se definir o argumento como uma proposição destinada a levar à admissão de outra. Um indício serve de argumento a um policial ou a um advogado, etc.: "pois", "de fato", "porquanto" ... e também a expressão: "Considerando os fatos como são ..." Como se vê, certos argumentos são demonstrativos, outros argumentativos, não se podendo definir a argumentação senão a partir do argumento. Argumentação é uma totalidade que só pode ser entendida em oposição a outra totalidade: a demonstração. Inspirando-nos livremente em Perelman-Tyteca, diremos que a argumentação distingue-se da demonstração por cinco características essenciais: 1) dirige-se a um auditório; 2) expressa-se em língua natural; 3) suas premissas são verossímeis; 4) sua progressão depende do orador; 5) suas conclusões são sempre contestáveis. Veremos que todas essas características incluem o componente oratória da retórica e justificam nossa segunda tese.

o auditório pode ser "universal"? Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-

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se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório é, por definição particular, diferente de outros auditórios. Primeiro pela competência, depois pelas crenças e finalmente pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de vista, com tudo o que esse termo comporta de relativo, limitado, parcial. Ora, como a argumentação pode modificar esse ponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos? Responderão que os próprios Perelman-Tyteca introduzem a noção de auditório universal, que está acima de qualquer ponto de vista, portanto talvez de qualquer retórica. Mas onde está esse auditório e qual seria a sua utilidade para o argumentador? Será um auditório não especializado? É o que se pensava às vezes no século XVII, com o testemunho de MoW:re e Pascal. Admitindo-se isso, a relação entre o orador e o auditório nem por isso deixará de ser retórica; por certo muito mais, pois a vulgarização é bem mais retórica que a ciência. E se o próprio orador finge não ser especialista, como Pascal em Provinciales, e estar interrogando ingenuamente especialistas, na verdade está utilizando uma figura completamente oratória, o cleuasmo (ou autodepreciação). Será um auditório não particular, sem paixões, sem preconceitos, a humanidade racional, em suma? Mas invocar esse auditório, fingindo que ele existe, poderia não passar de artificio. Em política, faz-se apelo ao homem acima dos partidos, ao homem comum, ao homem de bom senso, ao uomo qualunque... Nada de mais ideológico. Agora, será que o próprio filósofo não está sendo ideólogo quando afirma dirigir-se ao homem racional que está acima de seu auditório real (os leitores)? "Homens, sede humanos!", exclama Rousseau. Será que na verdade não estava interpelando os intelectuais parisienses de seu tempo? Dirigir-se ao "homem" por cima do ombro de seu auditório real é utilizar uma figura completamente oratória, a apóstrofe. Em suma, o auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador

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sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumentação l •

Língua natural e suas ambigüidades Na demonstração é grande o interesse de se utilizar uma língua artificial, por exemplo a da álgebra ou da química. A argumentação desenrola-se sempre em língua natural (exemplo, francês), o que significa utilizar com grande freqüência termos polissêmicos e com fortes conotações, como "democracia", que está longe de ter o mesmo sentido e o mesmo valor para todos os oradores. Além disso, a própria sintaxe pode ser fonte de ambigüidade. Tomemos como exemplo o adágio: O homem é o lobo do homem, que não é apenas um provérbio popular, mas foi lugar da filosofia do século XVII. O que quer dizer? A que corresponde a metáfora do lobo: ser cruel, é verdade, porém solitário ou em matilha? Neste último caso, os lobos, mesmo humanos, não se comem uns aos outros, e é possível continuar sendo lobos mesmo sendo irmãos! É significa "sempre" ou "na maioria das vezes"? E o artigo o refere-se ao homem em sua essência, ao homem natural anterior à cultura ou ao homem de hoje? Em suma, o adágio tem tantas armadilhas quanto um slogan publicitário. O mais notável, porém, é que não sentimos sua ambigüidade; basta ouvi-lo para que nos pareça claríssimo. É que em língua natural consideramos claro aquilo que é apenas familiar. Outra observação: quando se fala de argumentação, é preciso perguntar se ela é escrita ou oral, pois isso muda tudo. Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais: desatenção e esquecimento; e só pode fazer isso por meio de procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confir-

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mam isso; é certo que argumentam e ensinam, mas por repetições, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias, enigmas, que desenvolvem a função poética em detrimento da função crítica, como se observa ainda em nossos provérbios. Em suma, a argumentação oral em geral é menos lógica e mais oratória que a escrita. No entanto, cabe ressaltar uma expressão, que se ouve nos debates mais técnicos, e não só nas brigas de família: "Se pelo menos pudéssemos explicar pessoalmente!" Ela comprova que falta alguma coisa à argumentação escrita, que a oral tem um valor insubstituível, que a oratória pode ser, de certa forma, heurística.

Premissas verossímeis: o que é verossímil? Do fato de o auditório ser sempre particular, parece decorrer a terceira característica, o caráter simplesmente vero-símil das premissas, que não são evidentes em si, mas que "parecem verdadeiras" a esse auditório. Essa constatação parece fadarnos ao relativismo: "A cada um sua verdade." Mas essa "constatação" é errônea, pois repousa num jogo etimológico de palavras. De fato, a verossimilhança não está ligada ao auditório, e nossa terceira característica é logicamente independente da primeira. O verossímil não decorre de ignorância, incompetência ou preconceitos do auditório, mas do próprio objeto. Quando se trata de questões jurídicas, econômicas, políticas, pedagógicas, talvez também éticas e filosóficas, não se lida com o verdadeiro ou o falso, mas com o mais ou o menos verossímil. Inversamente, num mundo onde tudo fosse cientificamente certo, já não seria possível argumentar, nem ... agir. Em suma, a argumentação não deve resignar-se ao verossímil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve respeitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um que não passaria de engodo, que na verdade seria anti científico. O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em que a confiança é presumida. Por exemplo, os juízes nem sem-

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pre são independentes, os médicos nem sempre capazes, os oradores nem sempre sinceros. Mas presume-se que o sejam; e, se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida que rejeita o ceticismo. Cumpre deixar claro que a argumentação, mesmo se apoiando no verossímil, pode comportar elementos demonstrativos, no sentido de necessários e, portanto, indubitáveis. De modo geral, aliás, esses elementos são negativos; pode-se demonstrar que um projeto de lei não é incompatível com a constituição, mas não que será benéfico com certeza. E, se há uma ética na argumentação, é de respeitar esses elementos demonstrativos sempre que eles existirem. Suponhamos, por exemplo, um debate histórico sobre o caso Dreyfus: é certo que ele sempre comporta aspectos controversos, mas pode-se e deve-se considerar como "demonstrado" que o capitão Dreyfus não era culpado, que não foi ele o autor da documentação criminosa. Duvidar disso seria demonstrar parcialidade racista, e não prudência e objetividade. Premissas verossímeis: o simples fato de invocá-las equivale, pois, a apelar para a confiança do auditório, para a sua "presunção", e comporta um aspecto oratório.

A ordem dos argumentos é, pois, relativamente livre, e depende do orador; vimos, de fato, que a disposição dos antigos compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessário, e podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditório, no sentido de que o orador dispõe seus argumentos segundo as reações, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em suma, a ordem não é lógica, é psicológica. Assim, ainda que o exórdio seja muito útil, pode-se às vezes começar ex abrupto, como Cícero: "Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?" Ou ainda como de Gaulle, no discurso feito em Argel em 4 de junho de 1958: "Eu entendi." Se essas frases tivessem sido postas no interior do discurso, teriam perdido grande parte de sua eficácia.

Uma progressão que depende do orador

Conclusões sempre controversas

Se as premissas não são verossímeis, a progressão dos argumentos nada tem a ver com uma demonstração. A. Lalande define assim a argumentação: "Série de argumentos, todos tendentes à mesma conclusão." Definição que nos parece inadequada, devido à palavra "série", que lembra uma progressão linear. Se pudermos comparar a demonstração a uma cadeia de argumentos ("essas longas cadeias de razões" de Descartes), em que cada um é comprovado por aqueles que o precedem, e cuja ordem é, portanto, lógica, a argumentação será mais semelhante a umfuso de argumentos, independentes uns dos outros e convergentes para a

Numa argumentação, a conclusão não é, ou não é só, um enunciado sobre o mundo; ela expressa acima de tudo o acordo entre os interlocutores. Portanto, tem as seguintes características. Primeiramente, deve ser mais rica que as premissas, ao cbntrário da demonstração, em que a conclusão "sempre segue a pior parte"2; se a argumentação ficasse aí, seria estéril, ou estaria limitada a ser apenas refutação. Em segundo lugar, a conclusão é reivindicada pelo orador como algo que deve impor-se, encerrar 5 debate. Mas, no que se refere ao auditório, este não é obrigado a aceitá-la; continua ativo e responsável tanto pelo sim quanto pelo não; é principalmente nesse sentido que a conclusão é controversa: ela compromete tanto quem a aceita quanto

mesma conclusão; a palavra "aliás", desconhecida na demonstração, é freqüente na argumentação: Demonstração: A - B - C - D .. ·

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quem a recusa. Um bom exemplo, que l-B. Grize retirou de uma obra pedagógica, ilustra essas três características: É com referência à atividade da fala que o filhote de homem se situa; a palavra "infantil" é fonnada por duas unidades, in e Jari, que significam: "não falar". Portanto, é a partir de uma carência, de uma ausência, que a criança é percebidaJ •

A conclusão que se segue ao portanto é bem mais rica que as premissas, pois o autor passa da opinião dos romanos - opinião que ele infere, e de maneira bem contestável, a partir da etimologia - a uma verdade universal: a criança é percebida, que o autor coloca como necessária. Mas o auditório pode não aceitá-la, pois talvez não atribua mais valor à etimologia do que atribuiria a um trocadilho. Seja como for, uma conclusão não é obrigatória: é sempre contestável; mas o é em maior ou menor grau. Também aqui é preciso renunciar ao tudo ou nada em favor do mais ou menos verossímil. Concluiremos que a argumentação rejeita a alternativa "racional ou emotivo". Pois as premissas são crenças, e as crenças sempre têm um conteúdo afetivo, e só pode ocorrer o mesmo com a conclusão, mesmo que em caminho o discurso consiga modificar a afetividade; se o orador transformar medo em confiança, tristeza em alegria, terá libertado o auditório de sentimentos negativos, mas não de sentimentos. Antes de prosseguir, convém perguntar se opor assim argumentação e demonstração não tem algo de forçado. Pierre Oléron afirma assim que a própria demonstração científica não é tão pura e rigorosa quanto diz Perelman. No próprio cerne das ciências exatas encontram-se controvérsias em que ambas as partes têm o desejo de convencer, "de exercer intluência"4. Convém principalmente - cremos nós - distinguir entre demonstração lógico-matemática, puramente formal, e demonstração experimental, na qual intervêm também outros critérios além da validade lógica, como por exemplo a falsificação de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar à argumentaçã05•

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Quanto a esta, alguns acham que poderia ser formalizada, ou seja, expressa em língua artificial. Mas o verdadeiro problema é outro. Uma formalização só tem vantagem se for fecunda, se permitir descobrir pelo cálculo outros dados além daqueles que ela transcreve. Não nos parece que tal cálculo seja possível com a argumentação; suas estruturas podem ser descritas, mas não deduzidas. Por quê? Porque a argumentação é dirigida ao homem total, ao ser que pensa, mas que também age e sente.

o que é uma "boa" argumentação? Ora, dizer que qualquer argumentação é retórica, ou, em outros termos, que comporta uma parte de oratória, não será torná-la suspeita? Não será ela ipso facto manipuladora, seja por confusão, seja por omissão, seja por sedução? Em suma, uma argumentação pode ser boa? Como? Note-se que, aplicado à argumentação, o termo "boa" refere-se a dois valores diferentes, ou mesmo opostos. Uma "boa" argumentação é a mais eficaz ou a mais honesta? E as nem sempre estão juntas! Aqui nos ateremos ao problema da honestidade. Ora, se uma argumentação é mais ou menos desonesta, não é porque seja mais ou menos retórica. Caso contrário Platão, cujos textos são infinitamente mais retóricos, pelo conteúdo oratório, que os de Aristóteles, seria menos honesto que este! Então, segundo quais critérios avaliar a honestidade duma argumentação? O primeiro que vem à mente é o da causa. Uma argumentação valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que uma causa excelente seja às vezes defendida por má argumentação? E, principalmente, como sabemos que uma causa é boa? O critério.supõe que o valor da causa seja conhecido antes da argumentação encarregada de estabelecê-lo: o que equivale a julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral, a saber antes de aprender. Não existe dogmatismo pior.

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Outro critério, este interno, consiste em respeitar os elementos demonstrativos, ou seja, lógicos, que a argumentação comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela não seja sofistica.

Os sofistas e a argumentação

Inspirando-nos em Lalande 6, digamos que o sofisma é um raciocínio cuja validade é apenas aparente e que ganha adesão por fazer crer em sua lógica. Pode servir assim para legitimar interesses, amor-próprio e paixões. Portanto, é pela forma que um raciocínio é sofistico, e não por seu conteúdo. Vejamos dois exemplos de silogismo. O primeiro "demonstra" que o sal mata a sede: - Beber água mata a sede; - ora, o sal obriga a beber água; -logo, o sal mata a sede.

O segundo "demonstra" que o barato é caro: - Tudo o que é raro é caro; - ora, um bom cavalo barato é raro; -logo, um bom cavalo barato é caro.

O primeiro é um sofisma grosseiro, que reside no equívoco do termo médio: beber = obrigar a beber, significando o segundo na realidade o contrário do primeiro. O segundo é um verdadeiro silogismo, perfeitamente válido. Donde vem então o absurdo de sua conclusão? Do fato de que as premissas são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo absurdo. Prova que o que é raro nem sempre é caro; ou ainda que um bom cavalo barato nem sempre é raro (em caso de má venda, por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido estrito, mas um erro que consiste em transformar o provável em certo. Alguns autores argúem a oposição entre demonstração e argumentação, afirmando que esta não pode comportar sofis-

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mas, ainda que tenha muitas outras coisas censuráveis. Pode-se responder, porém, que a argumentação, pelo fato de comportar elementos demonstrativos, pode abusar deles, sendo pois sofistica no sentido estrito. Vejamos os dois tipos de argumentação descritos por Aristóteles. O exemplo torna-se sofistico quando dele se extrai uma conclusão que ultrapassa o que ele mostra, quando se "extrapola" do particular ao universal: tal e tal políticos de esquerda aprovam essa medida; logo, a esquerda aprova essa medida. O entimema torna-se sofistico quando infringe as regras do silogismo, quando conclui além daquilo que a lógica lhe permite. Vejamos a seguinte proposição: Dupont, por ser deputado de direita, precisou votar essa lei.

O entimema é válido se for admitida sua principal implícita: Todos os deputados de direita votaram essa lei.

Agora, um segundo exemplo: - Todos os deputados de direita votaram essa lei; - ora, Durand votou essa lei; -logo ...

Logo, nada! Não se tem o direito de concluir. Durand pode ter votado a lei sem ser deputado de direita. Vejamos um terceiro entimema: Essa medida é de esquerda porque foi tomada por um governo de esquerda.

Basta enunciar a principal implícita: Qualquer medida tomada por um governo de esquerda é de esquerda,



para perceber que é falso, pois acontece de um governo de direita tomar medidas de esquerda e vice-versa. O entimema é válido, mas sua premissa é falsa.

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Em suma, um entimema é sofistico quando conclui mais do que deve. É falso quando toma por verdadeira uma premissa, geralmente implícita, que é desmentida pelos fatos. Podemos ir mais longe: uma argumentação é sofistica, ou pelo menos errônea, quando sua conclusão vai além dos argumentos que supostamente a estabelecem. Mas, dirão alguns, isso não acontece sempre? Nós mesmos afirmamos que uma conclusão argumentativa é mais rica que suas premissas. E então?

Não-paráfrase e fechamento Sofisma da argumentação seria, portanto, ela dizer mais do que sabe. Pois bem, existe a maneira de "dizer". Pode-se afirmar excluindo qualquer objeção - para começar em si mesma-, mas também se pode propor sem impor, favorecer ao máximo a própria afirmação, deixando-a aberta às criticas alheias. Essa abertura constitui a honestidade da argumentação. Mas não estará esta comprometida pela retórica? Aqui cabe interrogar sobre o "dizer" próprio da retórica. Pelo que dissemos acima, um discurso é retórico quando, para persuadir, alia seu componente argumentativo a seu componente oratório, a forma ao conteúdo. Isso acarreta duas conseqüências. A primeira é que o discurso retórico nunca é completamente parafraseável; em outras palavras, não pode ser traduzido, nem mesmo em sua própria língua, por um discurso que tenha absolutamente o mesmo sentido. Vejamos o argumento quase lógico mencionado no TA: Os amigos de meus amigos são meus amigos.

É simples perceber que, se substituirmos amigos por aliados ou por quem me ama ... o argumento desaparece integralmente. A segunda é que um discurso retórico é sempre mais ou menos fechado, sem réplica. Um bom slogan é aquele que exclui qualquer resposta; é mau (ineficaz) em caso contrário. Nos anos 30, uma grande loja anunciava:

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De olhos fechados compro tudo na primavera.

Até o dia em que um outro respondeu: Quando abro os olhos, eu vou ao Louvre*.

o que ilustra um princípio fundamental: só se pode refutar uma retórica em seu próprio plano, por meio de outra retórica. Não-paráfrase e fechamento: demos numerosos exemplos disso em outros textos 7 • Aqui ficaremos satisfeitos com um só, o já mencionado início da primeira Catilinária de Cícero: Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?

Ele mostra perfeitamente o efeito persuasivo decorrente da aliança da forma com o fundo. Lembremos que essa pergunta oratória substitui o exórdio, e que, se aparecesse mais tarde no discurso, produziria menos efeitos. Constitui uma apóstrofe, que, aliás, vai durar quase até o fim da arenga; ora, se formos parafrasear a apóstrofe: "até quando Catilina abusará ..." em vez de "até quando, Catilina, abusarás...", perderemos muito. Por ser não-parafraseável, a pergunta também é fechada, pois é sem réplica. De fato ela contém três pressupostos. Admitamos que Catilina tenha respondido: "Vou parar já"; sua resposta teria deixado intactas três afirmações: 1) houve paciência; 2) ele abusou dela; 3) essa paciência era "nossa". Note-se, enfim, que Cícero conseguiu fundir numa mesma frase duas figuras opostas: a apóstrofe e a prosopopéia: finge dirigir-se a outro (Catilina), e não a seu auditório, mas faz o seu auditório (o Senado) ,falar por sua voz: patientia nostra. Mas quem não percebe que, sem essa retórica, sem esse elemento oratório, Cícero arriscava-se a fracassar? Sua argumentaçã%i eficaz: seria por isso desonesta?

* Note-se que em francês há rima: Quand je les ouvre, je vais au Louvre. (N. do T.)

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A nosso ver, a característica da boa argumentação não é suprimir o aspecto retórico - uma argumentação inexpressiva não é obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibrá-lo, segundo dois critérios. À não-paráfrase pode-se opor o critério da transparência: que o ouvinte fique consciente ao máximo dos meios pelos quais sua crença está sendo modificada; o encanto e a poesia do discurso não serão destruídos por isso, mas serão dominados. Ao fechamento, pode-se opor o critério da reciprocidade: que a relação entre o orador e o auditório não seja assimétrica, que o auditório tenha direito de resposta. Esses dois critérios não tornam a argumentação menos retórica, porém mais honesta. Naturalmente, esse mais é relativo. Uma mensagem publicitária é bem menos transparente e recíproca que uma argumentação acadêmica. No limite inferior, encontramos esse fenômeno próprio do nosso século, a língua estereotipada da propaganda, mensagens sem nenhuma transparência nem sentido preciso, sem nenhuma reciprocidade, pois se trata do discurso de um poder cuja "retórica" não tem outra função além de excluir a crítica. A linguagem estereotipada da propaganda não é a retórica; é apenas sua perversão mais caricatural. O que salva a retórica é precisamente o que exclui esse tipo de linguagem: o diálogo.

Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica Diálogo: vamos vê-lo em ação em três casos peculiares: ensino, justiça e filosofia.

Do pedagógico ao judiciário O ensino não pode prescindir da pedagogia; e toda pedagogia é retórica. O professor é um orador que, como todos os

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outros, deve atrair e prender a atenção, ilustrar os conceitos, facilitar a lembrança, motivar ao esforço. Iremos mais longe: aquilo que hoje chamamos de "transposição didática" faz parte da retórica; ensinar uma matéria é conferir-lhe uma clareza, uma coerência que ela não tem necessariamente como ciência, é passar da invenção à elocução e à ação, porém muitas vezes em detrimento do conteúdo propriamente científico. As pedagogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, não escapam a essa regra: o que há de mais retórico do que conhecer antes aqueles que vão ser instruídos e obter sua adesão? Note-se enfim que, mesmo quando se trata de ensinar a demonstrar, só se obtêm resultados através da argumentação retórica. E aqui tomamos a liberdade de transcrever uma experiência pessoal do tempo do liceu: - A professora: Durand, mostre que essas duas retas são paralelas. - Durand: Está se vendo, professora! -A professora: Durand, aprenda de uma vez por todas que em matemática não se vê nada, demonstra-se.

Esses imperativos ressaltam o aspecto assimétrico do ensino, mesmo quando se afirma que há diálogo ou cooperação. Só que o verdadeiro professor nunca dissimula sua retórica; ao contrário: ensina os procedimentos retóricos que possibilitam ensinar, e leva assim os alunos a tornar-se mestres no assunto. O ensino é, pois, uma relação assimétrica que trabalha por sua abolição, para que o aluno se torne, se possível, igual ao mestre. Aí está ajustificativa do "poder docente". Poder-se-ia pensar que o ensino define um modelo de retórica "transparente" e "recíproca" que deveria ser encontrada em todos os outros setores, pelo menos nas democracias. Convenhamos que isso é utopia. E acrescentamos: utopia das mais perniciosas. Tomemos como exemplo o setor judiciário. Se nos ativéssemos ao Jnodelo pedagógico, um processo penal deveria ser um diálogo após o qual o réu confessaria livremente seu crime e pediria para ser castigado. Esse, aliás, era o ponto de vista de Platão em Górgias, e foi isso o que os processos stalinistas pre-

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tenderam realizar: processos pedagógicos cujo objetivo era educar não só o público mas também os culpados, ou pretensos culpados ... Nossa democracia não tem essa pretensão. Distingue nitidamente a ética do judiciário, em que as decisões não implicam a anuência do culpado. Não se espera que o réu aceite o veredicto que o condena; ninguém lhe diz: "Não queremos coagilo ..." Admite-se que a justiça pode coagir. E isso é inevitável, pois há sempre o risco de que a anuência do condenado seja obrigatória, portanto hipócrita. Em todo caso, nada é mais nocivo que introduzir a relação pedagógica nos domínios não educacionais; isso não é libertar os homens, mas sim infantilizá-los. No judiciário, o diálogo "ecumênico" dá lugar ao debate polêmico, em que o objetivo não é convencer a parte adversária, mas uma terceira parte, o tribunal. E o advogado nada tem de professor; sua finalidade é fazer de tudo para tornar válida a causa de seu cliente, para lhe dar todas as oportunidades de vitória. Só que o advogado não está sozinho, mas tem diante de si colegas capazes de desmentir sua retórica, de contraditá-la com outra. E as duas partes preparam dessa maneira o julgamento do tribunal.

Uma controvérsia judiciária: os expropriados e a desvalorização

Vejamos um exemplo de controvérsia em direito civil, que agitou a opinião pública da Bélgica entre 1920 e 1926, mas que tem a ver com muitos outros países8• Trata-se da indenização devida aos expropriados. Falaremos em linhas gerais, sem nos perder em detalhes técnicos. A expropriação em caso de utilidade pública é uma venda forçada. Os proprietários são obrigados legalmente a ceder seu imóvel ao Estado (ou às comunas), do qual se tornam então "credores"; a única coisa que podem contestar é o montante da indenização proposta. Se fizerem isso, a questão vai parar num

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tribunal que designa peritos e depois, eventualmente, uma nova perícia, de tal modo que o processo pode durar muito tempo. Assim, em 1909, grande número de expropriados entrou com uma ação na justiça que durou até 1913. Mas as indenizações foram suspensas em 1914 por causa da guerra. Em 1919, os expropriados voltaram à justiça devido à desvalorização; nessa época, a moeda belga perdera a metade do valor e, em 1926, no fim do caso, seis sétimos do valor! Caberia indenizar os expropriados segundo o valor nominal fixado em 1913, como se nada tivesse acontecido? Nesse caso, as diferentes câmaras do tribunal de Bruxelas deram respostas contraditórias. Em resumo, os veredictos de tipo A eram favoráveis aos expropriados, os do tipo B contrários. A) Só uma das câmaras julgou que seria preciso recalcular o valor da indenização - digamos em 1926 multiplicá-la por sete -, argüindo que a lei previa um ressarcimento "justo", ou seja, que permitisse ao expropriado adquirir bem equivalente ao que possuía na época da expropriação. Além do mais, julgava a câmara: não se pode atribuir ao expropriado a responsabilidade pela duração do processo, pois ele "tinha o direito de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance" para obter a indenização mais favorável (in Foriers, p. 311). Até aqui, temos a impressão de que se trata de uma demonstração pura e simples, porquanto o veredicto só podia contar com a anuência dos interessados. B) No entanto, várias câmaras do mesmo tribunal tomaram a decisão contrária, mesmo diferindo em termos de argumentos. Vejamos os mais notáveis. O montante da indenização deve levar em conta unicamente o valor do imóvel na época da expropriação, e não as que se seguiram. Não fosse assim (argumento por absurdo), caso esse valor tivesse baixado, seria preciso reduzir proporcionalmente a indenização. Em todo caso, "a avaliação dependeria. de fatores arbitrários" (p. 314). Outro argumento: o Estado que desvaloriza a moeda decide apenas diminuir seu poder aquisitivo; não decide ipso facto elevar os preços. Inflação não é desvalorização, é apenas uma

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de suas conseqüências mais ou menos previsíveis; acontece até de um Estado desvalorizar sem que os preços subam (argumento de dissociação). Portanto, se o expropriado for indenizado segundo o valor do imóvel doze anos depois, cria-se um precedente para a especulação. Um último argumento é mais forte, porque dirigido a um auditório bem mais amplo e menos especializado: é a regra de justiça. A desvalorização é uma medida adversa que atinge todos os credores, e deve atingi-los com igualdade. Ora, se for concedida uma indenização compensatória apenas aos expropriados, criar-se-á uma "categoria de privilegiados". Não é concebível que o expropriado tenha mais direito [que os outros credores] de prevalecer-se de uma desvalorização da moeda que ocorreu posteriormente [à expropriação]. (p. 316)

Finalmente, um argumento que responde ao último de A: os expropriados, dilatando o processo, são causadores do próprio prejuízo, e devem considerar-se os únicos responsáveis por ele. Como se vê, enquanto A favorece o expropriado, B favorece o expropriador, que poderá pagar em moeda que vale sete vezes menos. Enquanto Ajulga em nome da ''justa'' reparação, B julga segundo o texto da lei, em nome do risco de arbitrariedade, e atém-se apenas ao sentido legal da palavra ''justo'' assim como se fala de "justas núpcias" (p. 319). Aqui encontramos o debate-tipo de Aristóteles (cf. supra, p. 50). C) As sentenças de tipo B ganhavam em número, mas indignaram a opinião pública. A Corte Suprema deu parecer favorável às sentenças de tipo A em 1929, depois de uma defesa veemente feita pelo procurador geral, Paul Leclerc. Esta opõe a B dois argumentos. Primeiro uma retorsão da regra de justiça. Se é que não se deve criar desigualdades diante da lei, por que só os expropriados deveriam pagar os custos da desvalorização? O Estado foi evidentemente culpado por fazer recair sobre uma classe social em particular os custos da reparação, unicamente porque essa classe estava em situação de deixar-se pilhar (p. 320; "pilhar": metáfora hiperbólica).

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Segundo argumento: uma dissociação. Até então as câmaras tinham considerado a moeda como meio de pagamento. Leclerc vai mostrar que a moeda também é - sobretudo - um instrumento de medida da economia. Ora, as desvalorizações haviam criado uma nova medida que na verdade é sete vezes menor que a antiga. Doravante o franco legal é outro bem diferente do franco legal estabelecido pela legislação ab-rogada. (p. 321)

A última frase introduz uma nova retorsão: Segundo V. Ex:', não devem ser levadas em conta as "flutuações" posteriores à expropriação; ora, aceitando outro franco legal, está sendo feito aquilo que V. Ex".' condenam. Note-se a epanalepse: franco legal. Esse exemplo mostra que certos raciocínios aparentemente demonstrativos na realidade são argumentativos e retóricos. Cada um repousa sobre princípios apenas verossímeis: B atémse à letra da lei, cuja infração abriria as portas para a arbitrariedade e a desigualdade. A apóia-se na eqüidade e nega que se deva observar apenas a lei numa situação que ela própria não previra (a desvalorização). Finalmente, C tem ganho de causa sobre B utilizando argumentos de B. A própria solução decorre do debate contraditório. Mas será ela racional? Não, por certo, porém certamente "mais razoável".

Argumentação filosófica: onde está o tribunal? 1 E a filosofia? Poderia ser comparada a uma controvérsia .. em que cada filósofo seria advogado de sua própria causa diante de um tribunal que seria ... quem senão o leitor? Mas o leitor dificilmente admitirá ser melhor juiz do que aqueles que ele lê; julgará phra si, é verdade, mas não para os outros. O fato é que os filósofos não formulam o problema dessa maneira, principalmente - como vimos - a partir de Descartes. Os maiores deles afirmam ser demonstrativos, "apodícticos",

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dizia Kant na língua de Aristóteles; e se, às vezes, aceitam o termo argumentação é deixando claro que ela não poderia ter nada que fosse retórico. A essa pretensão dos filósofos, de serem demonstrativos podem ser opostos três argumentos, dos quais os dois ros decorrem do lugar da unidade. O primeiro é que os filósofos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas, embora a demonstração só possa redundar numa verdade única. O segundo, ainda mais forte, é que as estruturas da demonstração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos Kant Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Há s6 matemática, enquanto existem várias filosofias. O terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade os filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à argumentação. Descartes argumenta para provar que é preciso demonstrar. Spinoza, que constrói toda a Ética "de more geometrico" (segundo o método geométrico), acrescenta a suas demonstrações os mais importantes "escólios", que as ilustram de modo pedagógico e retórico: tudo acontece como se ele tivesse escrito seu livro duas vezes, a primeira para Deus e a segunda para nós. Hegel procede da mesma maneira na Enciclopédia. E hoje em dia? Hoje em dia parece que a filosofia cindiu-se: de um lado uma investigação lógica rigorosa, porém estéril; de outro, um discurso retórico que, por falta de interrogar-se sobre sua própria argumentação, incide no arbitrário. No entanto, a pretensão de ser demonstrativo comporta certa dose de verdade, pois permite distinguir o filósofo do advogado, tanto quanto, aliás, do pedagogo. O propósito do filósofo é encontrar, e não ensinar o que outros encontraram, ainda que muitas vezes se encontre mais ensinando. Assim também, sua tarefa não é defender uma causa, e sim sustentar uma tese. Onde está a diferença? Uma causa exige um juízo hic et nunc; uma tese visa a uma explicação de alcance universal; ela não responde à pergunta: "Catilina é injusto?", mas a outra bem diferente: "O que é justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance prático, como aqui, é de longo prazo e para todos. Se cumprisse

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vincular a filosofia a um dos três gêneros, seria ao epidíctico. De fato, numa causa é sempre preciso suplantar, impor um veredicto para põr fim ao debate. Uma tese, porém, nunca é imposta, e sim proposta. Mas a quem? Consideremos um exemplo em que se vê a pior retórica (a mais fácil) passar como por milagre a servir à filosofia, milagre chamado Sócrates. Em Eutidemo de Platão, o sofista Dionisodoro fala assim do ensino: Quereis que [o aluno] passe a ser sábio e não seja mais ignorante? (... ) Uma vez que quereis que ele deixe de ser o que é, desejais sua morte? (283 s.)

Ele utiliza um sofisma, afallacia accidentis, em que se muda um nexo acidental: não ser mais ignorante (nexo acidental), não ser mais, portanto morrer. Essa metáfora do ensino como morte é um tanto freudiana, e lonesco, aliás, realiza-a em A lição, em que o professor, por ardor pedagógico, acaba matando o pobre aluno ... Aí entra o humor de Sócrates; em vez de desmentir a metáfora (morrer), brinca com ela e extrai uma lição: Se [esses sofistas] sabem aniquilar as pessoas de tal maneira que as transformam de viciosas e insensatas em virtuosas e sábias ( ... ), que matem esse menino para tomá-lo sábio, e a nós também por acréscimo. (285 b)

O grosseiro sofisma transforma-se em metáfora, ao mesmo tempo pedagógica e religiosa. Todo verdadeiro ensino é em certo sentido - sentido metafórico, portanto retórico - uma morte. E um novo nascimento. Convém lembrar que em Eutidemo, assim como em todos os diálogos, os interlocutores são apenas vozes interiores de Platão, que vê a filosofia como um diálogo consigo mesmo; por isso, quanlio o filósofo propõe uma tese, o faz primeiro a si mesmo. E a retórica então? Como todo diálogo, o diálogo interior também a utiliza, mas confrontando-a logo com uma outra. Portanto, o que distingue o filósofo - mesmo quando fala de política

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ou de direito - do político e do advogado é que ele sustenta ao mesmo tempo o pró e o contra, é que ele é ao mesmo tempo o advogado e seu adversário. Mas qual é o tribunal? O auditório universal, responderia Perelman. Mas deixemos claro que ele não está em lugar nenhum, senão em cada um de nós. Em Górgias, quando Sócrates declara a Polos que o culpado é mais digno de lástima que sua vítima, e o culpado impune mais infeliz que o punido, Polos exclama que ninguém admitiria tais paradoxos! E Sócrates: Tens por ti, Polos, todo o mundo exceto eu. E eu não peço anuência nem testemunho de ninguém, senão de ti. (475 e) Aí está o supremo tribunal. Em Polos. Em cada um. Aí está o que tentamos demonstrar neste capítul09 • Inicialmente, que a argumentação existe como meio de prova distinto da demonstração, mas sem incidir na violência e na sedução. Depois, que ela comporta uma parte de oratória, e que os antigos tinham razão em unificar seus elementos racionais e afetivos num mesmo todo, a retórica. Essa união vamos agora observar nas figuras.

Capítulo VI

Figuras

O que é figura? Um recurso de estilo que permite expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado. Livre, no sentido de que não somos obrigados a recorrer a ela para comunicar-nos; dessa forma, qualquer um poderá dizer que vai se suicidar para pôr fim a uma paixão culposa, sem precisar recorrer às figuras de Fedra: Para ocultar da luz uma chama tão negra.

Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura .conhecida, repetível, transmissível. Assim, no verso de Racme, identificam-se quatro metáforas e um oxímoro (chama tão negra). . A expressão "figuras de retórica" não é pleonasmo, existem figuras não retóricas, que são poéticas, humorístlcas ou simplesmente de palavras. A figura só é de retórica quando desempenha papel persuasivo. A religião é o ópio do povo. A esta metáfora, Raymond Aron responde com outra:

o marxismo é o ópio dos intelectuais.



Marx e Aron têm pelo menos alguma coisa em comum: não fazem metáforas por gosto nem por questão de estilo, mas para convencer. A figura de retórica é funcional.

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FIGURAS

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Mas como? Quando os antigos falam das figuras, é para evocar o prazer que elas proporcionam, que eles relacionam com o de/ectare e mais raramente com o movere. A figura seria, portanto, uma fruição a mais, uma licença estilística para facilitar a aceitação do argumento. Assim é que na Retórica a Herênio encontra-se um exemplo de epanalepse:

Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que dizem respeito à relação do discurso com seu sujeito (o orador) ou com seu objeto.

Não te abalaste quando uma mãe te beijou os pés, não te abalaste? (IV, 38)

o que caracteriza as figuras de palavras? O fato de serem intraduzíveis, de poderem ser destruídas por menos que se mude sua matéria sonora. Por isso, parecem reservadas à poesia ou, a rigor, ao humorismo. Entretanto, devem desempenhar bem alguma função argumentativa, porque os filósofos mais racionalistas recorrem a elas. Assim, basta traduzir a expressão Sôma sêma de Platão - "corpo, um túmulo" - para destruí-la, a não ser que se perca o poder da metáfora. Essas figuras se dividem em dois grupos:

Por que esta repetição? Segundo o autor, tem duas funções: emocionar o auditório e ferir a parte contrária: Como se um dardo atingisse várias vezes o mesmo lugar do corpo.

Se o argumento é o prego, a figura é o modo de pregá-lo ... Perelman-Tyteca também vêem na repetição uma figura de "presença", uma das que fazem sentir o argumento. Para eles, porém, ela não se reduz ao patos; não é apenas o que facilita o argumento, mas constitui o próprio argumento; desse modo, o primeiro Não te aba/aste ... indica um fato; o segundo, depois de quando uma mãe, ressalta o caráter chocante desse fato, incompatível (argumento) com os valores da humanidade. Para o TA, toda figura de retórica é um condensado de argumento: a metáfora é condensado de analogia, etc. A nosso ver, essa teoria é intelectualista demais; esquece-se do prazer da figura, que deriva ora da emoção, ora da comicidade, mas sempre do patos. Aqui estudaremos a função argumentativa das principais figuras de retórica l , que classificaremos conforme suas relações com o discurso em que se encaixam. Figuras de palavras, como o trocadilho, a rima, que dizem respeito à matéria sonora do discurso. Figuras de sentido, como a metáfora, que dizem respeito à significação das palavras ou dos grupos de palavras. Figuras de construção, como a elipse ou a antítese, que dizem respeito à estrutura da frase, por vezes do discurso.

Figuras de palavras

Figuras de ritmo Para os antigos, o ritmo da frase tem importância capital, pois é a música do discurso, o que torna a expressão harmoniosa ou tocante, sempre fácil de ser retida. O problema é que os elementos constitutivos do ritmo, como o acento tônico e a extensão das sílabas, não são marcados em todas as línguas. Desse modo, por exemplo o slogan alemão de 1968:

tem estrutura especular: iâmbico, troqueu/troqueu, iâmbico. Os esquerdistas franceses, por exemplo, foram obrigados a atribuir-lhe um ritmo arbitrário:

'" É só o começo; sigamos a luta. (N. do T.)

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No entanto, os provérbios, os slogans, certas "frases antológicas" muitas vezes têm um ritmo próprio graças ao qual ficam na memória: Qsc@s @dtaml e_ai

,-,

F_aça_a@r,



,-,

Vejamos algumas figuras de ritmo mais complexas. A parisose é um período composto por dois membros de mesma extensão: Beber ou guiar, convém optar. (5 + 5)

A cláusula é uma seqüência rítmica que termina um período, como esta com seis pés que termina a célebre peroração de Danton: Pour les vaincre, Messieurs, il nous faut de I 'audace, encore de I'audace, toujours de I'audace, et la France est sauvée. (in Suhamy, p. 76) - - -[Para vencê-los, senhores, precisamos de audácia, mais audácia, sempre audácia, e a França está salva.]

Em todos os casos, o ritmo gera um sentimento de evidência próprio a satisfazer o espírito, mas também a conseguir sua adesão ... Põe o pensamento sobre trilhos.

Figuras de som: aliteração, paronomásia, antanáclase

As figuras de som implicam fonemas, sílabas ou palavras. a) Fonemas: aliteração, em que há repetição de uma mesma letra na frase, como por exemplo na frase de De Gaulle, que lembra o resmuninhar dos velhos mal-humorados: La grogne, la rogne et la hargne. (r, gn [nh]) [Resmungo, rezinga, rabugem]

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b) Sílabas: paronomásia: Traduttore, traditore, de cuja tradução não sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima é uma paronomásia no final das palavras, que retoma em ritmo regular: Valéry au tri, Anémone au téléfone [Valéry na triagem, Anémone no telefone] (slogan dos carteiros em greve, em 1975, que brinca com o nome do presidente francês e de sua esposa). c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonímia, ora na polissemia. A partir da homonímia, cria-se o trocadilho, que aproxima duas palavras idênticas no som, mas com sentido diferente. Freqüentemente grosseiro, é fino quando cria uma relação inesperada com a situação. FremI, em O chiste, conta que, num baile, uma italiana dá um bom troco a Napoleão, quando este lhe pergunta se todos os italianos dançavam tão mal: Non tutti, ma buona parte... O imperador podia entender: nem todos, mas boa parte, e podia entender também que se tratava de um nome próprio, o seu. A figura que se baseia na polissemia é a antanác1ase, que se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha o exame de mamas: Eu tenho peito.

Enquanto o trocadilho é sobretudo fático, deixando o adversário sem palavras por desarmá-lo, a antanác1ase tem alcance argumentativo, permitindo pseudotautologias: Negócios são negócios ...

Ligada à antanác1ase está a derivação, que associa uma palavra a outra de igual radical. Assim, no discurso de 30 de maio de 1968, de Gaulle denunciava os contestadores que impediam· os estudantes de estudar, os professores de ensinar [les enseignants d'enseigner], os trabalhadores de trabalhar.

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Se ele tivesse dito: les profosseurs d 'enseigner, les ouvriers [operários] de travailler, o argumento de incompatibilidade teria desaparecido. Pergunta: de onde vem a força persuasiva das figuras de palavras? Elas facilitam a atenção e a lembrança, mas não é só isso. Lembremos o princípio lingüístico da arbitrariedade do signo, segundo o qual as palavras não são "motivadas": não há razão para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princípio também se aplica às nossas figuras de palavras: não é porque dois significantes são idênticos que seus significados também o sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem idênticos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparente, porém incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham, provavelmente não é por acaso. A harmonia é comprovada pelo prazer 2 • Que prazer? Do achado, da "felicidade de estilo" (Alain). Podemos ir mais longe. Segundo os psicólogos, a criança desconhece a arbitrariedade do signo; para ela, a palavra tem relação com a coisa. Cabe perguntar se o adulto, que se deleita com uma figura de palavras - seja ela engraçada ou poética não está no fundo sentindo o prazer de retornar à infância.

Um argumento retórico: a etimologia Entre as figuras de palavras, é preciso contar a etimologia, que serve de argumento tanto para as definições quanto para as dissociações. Recorrer à etimologia para definir o "verdadeiro" sentido de uma palavra na verdade é um ato de poder pelo qual o orador impõe seu "sentido", portanto seu ponto de vista, ao auditório. Note-se que muitas vezes a etimologia é falsa: "religião" seria relacionável com "relego" [percorrer de novo, revisitar] ou com "religo" [religar]? "Educação" viria de educere (conduzir para fora)? Conjecturas ou fantasias. Mas, ainda que verdadeira, a etimologia teria algum valor? É evidente que não se deve rejeitar a história das palavras. Caberia mesmo

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criar uma história do vocabulário. Por exemplo, em latim clássico, puer designa a criança, infans o bebê, aquele que não fala (fari, falar). Mais tarde, as designações das faixas etárias acabam com outra distribuição, e infans designa aquele que ainda não chegou à adolescência. Mas, daí a pretender que a infância é, "por definição", o período em que não há fala, não tem o menor fundamento, é propriamente errôneo. Na verdade, o argumento etimológico esquece-se de outra lei lingüística, a de que a palavra só tem sentido sincronicamente, ou seja, no sistema presente de uma língua. Desse modo, a palavra "infância" só tem sentido em relação a "lactação" e a "adolescência"; e o latim não tem autoridade alguma nesse sentido. O argumento etimológico às vezes cai no ridículo. Cabe citar nesse aspecto os adversários de Freud que, no início do século, pretendiam refutá-lo aduzindo o "sentido etimológico" de histeria, derivado do grego hystera, útero, para afirmar que, "por definição", histeria só poderia ser doença de mulher! É verdade que depois disso os psicanalistas inventaram muitas outras 3 ••• Etimologia como parte da história das línguas, sim. Etimologia como argumento, talvez, porém do mesmo tipo da antanáclase, e não do trocadilho. Uma última observação sobre as figuras de palavras: devese evitar o abuso. Lembremos l-I Rousseau que, em Emílio, vocifera contra La Fontaine, dado às crianças como "moral": sans songer que I'apologue. en les amusant, les abuse [sem pensar que

°apólogo, distraindo, trai].

Se ele tivesse dito: en les amusant, les trompe [distraindo, engana], não haveria atrativo. "Les amuse et les abuse" [distrai e trai] seria vistoso demais, nouveau-riche demais; desviaria a atençã9 da tese em vez de valorizá-la. Retórica, arte funcional...

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Figuras de sentido

Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes, as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem em empregar um termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual. O olho escuta ... Esta estranha metáfora de Claudel poderia levar a pensar em "desvio", transgressão da norma lexical segundo a qual o olho deve enxergar e não se intrometer no serviço dos vizinhos ... Mas, restabelecendo-se o termo próprio, perde-se sentido, pois o olho que "escuta" uma obra de arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Portanto escuta é o termo exato. Isso acontece com toda verdadeira figura. Em outras palavras, a figura de sentido desempenha papel lexical; não que acrescente palavras ao léxico, mas enriquece o sentido das palavras. "Já disse mil vezes." "Tenho mil coisas para dizer..." A palavra "mil" perde o sentido quantitativo para expressar algo como: vezes demais ... (para repetir outra vez), coisas demais (para dizer tudo agora... ). A hipérbole cria o sentido. Desse modo, a figura de sentido é um tropo, um significante tomado no sentido de outro, escuta por olha com reverência. Mas nem todo tropo é uma figura de sentido. Quando o tropo é lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo próprio poderia substituí-lo, passa a ser catacrese. Assim, asas do avião na origem era uma metáfora, mas não é mais figura, pois não há como dizer de outra forma. Inversamente, por falta de referências culturais, uma figura pode ser incompreensível; torna-se então enigma, mas aí deixa de ser retórica. Podemos dizer da figura de sentido aquilo que Aristóteles dizia da metáfora: deve ser clara, nova e agradável. Nova, porém clara e por isso mesmo agradável, como o enigma que se tem a alegria de desvendar. A meio caminho entre o enigma e o clichê, a figura de sentido desempenha seu papel retórico.

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Tropos simples: metonímias, sinédoques, metáforas

Trataremos agora das três figuras de sentido de que derivam todas as outras. A metonímia designa uma coisa pelo nome de outra que lhe está habitualmente associada. Seu poder argumentativo é antes de tudo o da denominação, que ressalta o aspecto da coisa que interessa ao orador. Assim, O trono e o altar é uma metonímia valorizadora; O sabre e o aspersório é metonímia depreciativa, que reduz o exército a extermínio, e a Igreja a superstição. Baseada no nexo habitual, a força argumentativa da metonímia provém da familiaridade, e essa força desaparece quando a metonímia vem de outra cultura. Para quem acha, por exemplo, que o poder ministerial se chama gabinete, pasta ou mesmo Esplanada, é difícil entender como o Império Otomano pôde usar o Divã como símbolo do poder. É verdade que a psicanálise já deveria nos ter acostumado com isso, mas entre os turcos era o ocupante do divã quem detinha o poder... Diz-se com freqüência que, em vista da poética metáfora, a metonímia é prosaica e pobre. No entanto, existem "metonímias vivas". Quando, em 1700, o embaixador da Espanha declarou Já não há Pireneus, deve ter produzido um belo efeito surpresa; se tivesse dito apenas "acabaram-se as fronteiras", teria perdido a conotação de cadeia inóspita, quase intransponível, que só o divino poder dos reis poderia abolir, poder capaz de mover montanhas ... O importante é que, mais que os outros tropos, a metonímia cria símbolos, como por exemplo A foice e o martelo, A rosa e a cruz. Nesse sentido, condensa um argumento fortíssimo. A sinédoque distingue-se da metonímia por designar uma . coisa por meio de outra que tem com ela uma relação de necessidade, de tal modo que a primeira não existiria sem a segunda; por exemplo cem cabeças por cem pessoas, sinédoque da parte, ou cem lfIortais, sinédoque da espécie. Donde sua função própria: ela é a figura que condensa um exemplo. Muito corrente em pedagogia (triângulo por todos os triângulos; soneto por todos os sonetos), serve também à propaganda: partido dos

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trabalhadores, sinédoque da parte. Na verdade, nada prova que o partido em questão represente todos os trabalhadores. Isso também se observa com a antonomásia, sinédoque que consiste em designar uma totalidade ou uma espécie pelo nome de um indivíduo considerado seu representante: JojJre ganhou a batalha do Mame, como se ele estivesse lá sozinho! Sabe-se muito bem como o referido Joffre motivou a sinédoque: Não sei se fui eu que a ganhei, só sei que eu sou quem a teria perdido! O slogan dos anos 30, Hitler é a guerra, fazia recair sobre Hitler todo o peso do hitlerismo. Também aqui se encontra a argumentação pelo exemplo. A metáfora designa uma coisa com o nome de outra que tenha com ela uma relação de semelhança. Voltaremos depois a seu papel argumentativo. Aqui diremos algumas palavras sobre sua gênese. Diz-se que a metáfora é uma comparação abreviada, que substitui o é como por é: Ela é [bela como] uma rosa; O olho [olha como se] escuta. Mas que comparação? Se esta se referir a realidades homogêneas, sua abreviação não redundará em metáfora: Pedro é [alto como] um gigante; João é [baixo como] um anão. Trata-se antes de hipérboles por meio de sinédoques. É o mesmo se eu disser: Esta água está [fria como] uma pedra de gelo. Suponhamos agora que se diga: Sofia é uma pedra de gelo. Há de fato uma comparação (e pouco benevolente), mas de outro tipo, porque Sofia não é da espécie dos seres que podem transformar-se em gelo; a semelhança em que se baseia essa metáfora provém de termos heterogêneos, que não têm matéria nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de gelo, nem é como uma pedra de gelo. Então, como poderemos entender a metáfora? Por uma semelhança de relações entre termos heterogêneos (cf. infra, pp. 193 a 196). Em resumo, se desenvolvermos a metáfora e lhe restituirmos seu como, teremos uma figura de comparação especial, que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os ingleses, chamaremos de símile. O símile é uma comparação entre termos heterogêneos: Ela canta como um rouxinol, que se abrevia em metáfora como O rouxinol 4 •

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O símile, como a metáfora que dele deriva, é fonte de poesia, pois aproxima seres cuja semelhança antes não fora percebida; cria, como em Claudel, o que em seguida vai parecer evidente. Se for inesperado demais, dará origem à comicidade: bonita como um aviãoJalada como a torre de Pisa. Sua criatividade permite entender o poder argumentativo da metáfora5 •

Tropas complexos: hipálage, enálage, oxímoro, hipérbole, etc. Desses três tropos básicos derivam outros. A hipérbole é a figura do exagero. Baseia-se numa metáfora (Estou morto de cansaço), ou numa sinédoque (As massas laboriosas, para certo número de trabalhadores). Para entendê-la, comecemos pela admirável definição de Pierre Fontanier: A hipérbole aumenta ou diminui as coisas em excesso, apresentando-as bem acima ou bem abaixo do que são ...

Temos aí a estrutura da hipérbole: auxese quando amplia em sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido negativo (esse anão), sendo sempre o significado figurado bem maior ou bem menor que o significado próprio. Por que esse exagero? ... não com o intuito de enganar, mas de levar à própria verdade, e de fixar, através do que ela diz de incrível, aquilo em que é realmente preciso crer.

Em suma, não é uma figura da mentira, como quando se diz que alguém está morto, se ele está bem vivo; é uma figura de expressão, como em Estou morto, que não engana ninguém. Porém, J"tra exprimir o quê? O inexprimível, por certo. A nosso ver, a função semântica da hipérbole é dizer que de fato não conseguimos dizer, é dar a entender que aquilo de que estamos falando é tão grande,

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tão bonito, tão importante (ou o contrário) que a linguagem não poderia exprimir. Donde o papel fundamental da hipérbole na retórica religiosa, visto que só ela pode designar aquilo que não se pode denominar. Mas, além da expressão, ela condensa um argumento, o de direção: se começarmos assim, onde vamos parar? A hipérbole amplifica o argumento, colocando-se já de início nesse ponto final, como veremos nos textos 11 e 12. Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio cansado, estarei substituindo a hipérbole pela litote, que não é uma hipérbole ao contrário, como a tapinose, mas o contrário da hipérbole. Figura do etos, por mostrar o orador modesto, prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a insinuação, o eufemismo e sobretudo a ironia: Não, o doutor X ainda não matou todos os seus doentes ... Como muitas vezes acontece, essa litote procede pela negação de uma hipérbole: matou. A hipálage é um deslocamento de atribuição. Como no célebre verso de Virgílio, que fala dos mortos a vagarem pelos Infernos: Ibant obscuri sola sub nocte per umbram ... (Iam escuros por entre a sombra na noite solitária ... )

Se ele tivesse falado em noite escura e almas solitárias, o efeito de hipotipose teria sido destruído; estaria perdida a expressividade do quadro. Daí a força argumentativa da hipálage. Por metonímia: liberdade de preços, por liberdade dos comerciantes, como se eles nada tivessem que ver com os preços, como se estes decorressem de um determinismo natural. A enálage é um deslocamento gramatical: do adjetivo para o advérbio, como em Vote certo; de uma pessoa para outra e de um tempo verbal para outro, como em O que estaremosfazendo?, por "o que você está fazendo?" A enálage torna as coisas mais presentes, embora também mais confusas; em Pensar francês, de Pétain, qual era exatamente o sentido de "francês"?

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o oxímoro é a mais estranha das figuras; consiste em unir dois termos incompatíveis, fazendo de conta que não são: Essa escura claridade que cai das estrelas (Corneille), O sol negro (Nerval). Como é possível? M. Prandi responde 6 que ele indica um conflito entre dois enunciadores: um deles - todo o mundo - diz que está fazendo sol, e o outro - o poeta - declara metaforicamente que para ele tudo está negro. Assim, quando qualifica Antígona de santamente criminosa, Sófocles quer dizer que ela é criminosa para o poder (Creonte), porém santa para os deuses e para sua consciência. Perelman-Tyteca vêem no oxímoro uma dissociação condensada, por exemplo entre a aparência - criminosa - e a realidade - santamente. Finalmente, dois tropos complexos, simétricos. Um deles é a metáfora expandida, seqüência coerente de metáforas, que aliás permite a personificação e... o humor; como por exemplo a metáfora também citada por Prandi: o inconsciente da minha máquina de escrever comete estranhos lapsos. Outro é a metalepse, que é para a metonímia o que a metáfora expandida é para a metáfora: uma seqüência coerente. Assim, no Eclesiastes se diz: Quando a porta está fechada para a rua, quando cessa a voz do moinho, quando se cala o canto do pássaro (... ), quando há temor da subida e pavores em caminho ... (XII, 4, 5)

Obscura e terrível metalepse para dizer: quando se está velho. Essa figura designa a velhice através de seus efeitos: cegueira, surdez, fadiga, etc. Mas é redutora, pois só leva em . conta os efeitos negativos; poderia até considerar os efeitos positivos da terceira idade: prudência, paciência, etc. De fato, todas as figuras de sentido são redutoras, por focalizarem certo aspecto efiobretudo certo valor do objeto que apontam em detrimento dos outros. Donde seu papel argumentativo.

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Figuras de construção As figuras abaixo dizem respeito à construção da frase, ou mesmo do discurso. Algumas procedem por subtração, outras por repetição, outras por permutação.

Figuras por subtração: elipse, assíndeto, aposiopese ou reticência A elipse consiste em retirar palavras necessárias à construção, mas não ao sentido. Isso acontece, por exemplo, no provérbio Longe dos olhos, longe do coração e no slogan CRS SS *. As palavras que desaparecem são adjuntos ou copulativos, como o verbo ser, o artigo, a preposição, etc., mas isso também pode acontecer com vocáculos plenos. Parece que a elipse é antes um meio de criar figuras do que propriamente uma figura. Por meio de cortes na frase, ela produz metonímia, enálage (Pense [com vistas a uma coisa] grande), oxímoro (O sol [não impede que para mim tudo seja] negro), metáfora (Sofia é [fria como] uma pedra de gelo). O assíndeto é uma elipse que suprime os termos conectivos, tanto cronológicos (antes, depois) quanto lógicos (porém, pois, portanto). O assíndeto é ao mesmo tempo expressivo, pelo efeito surpresa (Vim, vi, venci), e pedagógico, pois deixa por conta do auditório o trabalho de restabelecer o elo que falta, e isso o arregimenta, torna-o cúmplice do orador, a despeito de suas reticências. Assim o slogan criado em 1987 pelo governo francês, após a decretação da liberação dos preços: Os preços estão livres. Vocês são livres. Não digam sim a qualquer preço.

* CRS = Compagnie républicaine de sécurité, polícia para repressão de tumultos; SS = esquadrões militares da Alemanha nazista. (N. do T.)

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Além do trocadilho nas últimas palavras, recorre-se ao assíndeto; o que se deve acrescentar entre 1 e 2, e entre 2 e 3: portanto ou mas? A aposiopese, ou reticência, interrompe a frase para passar ao auditório a tarefa de completá-la; figura por excelência da insinuação, do despudor, da calúnia, mas também do pudor, da admiração, do amor, sua força argumentativa advém do fato de retirar o argumento do debate para incitar o outro a retomá-lo por sua conta, a preencher por sua conta os três pontos de suspensão.

Figuras de repetição: epanalepse, antítese Chamamos de epanalepse a figura de repetição pura e simples. Propõe duplo problema, o da correção e o da utilidade. Que um aluno repita uma palavra na frase ... o professor mandará substituí-la por um sinônimo. Mas será que o professor vai corrigir O homem é o lobo do homem? É aí que entra a utilidade da repetição; se a frase dissesse "é lobo para seu semelhante", estaria destruído o argumento de incompatibilidade que sugere: o homem é aquilo que não deveria ser, pois tem o homem como semelhante. Evidentemente, a epanalepse também diz respeito ao patos. Quando de Gaulle exclama em sua mensagem de 18 de junho de 1940: Pois a- França não está sozinha, não está sozinha, não está sozinha,

está expressando sua convicção patética, que tudo parecia desmentir então. Não se deve confundir epanalepse com antanáclase, que é a repetição de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a perissologia, repetição de uma mesma idéia com palavras diferentes. P Dá-se o nome de antítese à oposição filosófica de teses ou a uma oposição retórica, que sobressai graças à repetição; AABA, AACA, etc. A antítese é a oposição no mesmo.

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o mesmo pode ser representado por palavras idênticas: Fulminados hoje pela força mecânica, poderemos vencer no futuro com uma força mecânica superior. (ibid.) O mesmo também pode ser representado pelo equilíbrio rítmico: Et monté sur le faite il aspire à deseendre (Comeille)

[E subido no cume ele aspira a descer.] A identidade dos dois hexâmetros reforça a oposição.

Figuras diversas: quiasmo, hipérbato, anacoluto, gradação O quiasmo é uma oposição baseada numa inversão, ABBA, e não mais na repetição: Deve-se comer para viver, e não viver para comer. Às vezes cômico, o quiasmo no entanto integra-se muito bem nas visões trágicas do mundo, de São Paulo a Karl Marx: Quem se exalta será humilhado, quem se humilha será exaltado. (Le, XVIII, 14) Ao contrário da filosofia alemã, que vai do céu à terra, aqui subimos da terra ao céu (... ) Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. (Marx, A ideologia

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de-se dizer que, se a vida determina a consciência, esta, em troca, muda a vida. A causalidade linear é então substituída pela retroação. Também neste caso o argumento é sedutor, porém redutor. Cabe mencionar mais três figuras de construção. O anacoluto perturba a sintaxe da frase:

o maior filósofo do mundo, sobre uma prancha mais larga do que necessário, se embaixo houver um precipício, ainda que sua razão o convença de sua segurança, prevalecerá sua imaginação. O sujeito do verbo deveria ser o filósofo mas, para nossa surpresa, é a imaginação. Seria o anacoluto um "desvio em relação à norma"? Parece que sim, e até um erro; qualquer professor teria despachado o aluno Pascal a golpes de tinta vermelha... No entanto, será possível expressar de forma diferente a derrota da filosofia? A nosso ver, o anacoluto não constitui um erro, mas é a incursão do código da língua oral no código da língua escrita, o que torna a expressão mais pessoal e a argumentação mais viva. O hipérbato, ou inversão retórica, é um caso particular de anacoluto: Chorosa empós seu carro, quereis vós que me vejam? (Racine) Finalmente, a gradação consiste em dispor as palavras na ordem crescente de extensão ou importância: A pobreza viril, ativa e vigilante. (La Fontaine)

alemã.)

Aqui o quiasmo está a serviço de um argumento de dissociação. Ao par ilusório estabelecido pelo idealismo alemão, que põe a "terra" como não essencial e a "vida"como simples exteriorização da consciência, Marx opõe como verdadeiro o par inverso; a forma em X do argumento confere-lhe aparência de necessidade. No entanto, ele assenta numa alternativa simplista: é a consciência que determina a vida, ou o inverso? Po-

Portanto, é um excelente meio de apresentar os argumentos: não só, mas também, e sobretudo ...

Figurasltle pensamento As figuras de pensamento são, em princípio, independentes do som, do sentido e da ordem das palavras: só dizem respei-

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to à relação entre idéias. Mas essa definição dos antigos levaria a excluí-las do campo das figuras, e mesmo da retórica, que se caracteriza pela íntima ligação entre língua e pensamento. A nosso ver, essas figuras são identificadas por três critérios. Em primeiro lugar, não se referem a palavras ou à frase, mas ao discurso como tal; o trocadilho implica algumas palavras, enquanto que a ironia engloba todo o discurso; um livro inteiro pode ser irônico. Em segundo lugar, dizem respeito à relação do discurso com seu referente; ou seja, pretendem expressar a verdade: enquanto a metáfora não é verdadeira nem falsa, a alegoria poderá ser verdadeira ou falsa. Finalmente, uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha só não faz verão: a verdade do sentido meteorológico implica a verdade do sentido humano.

Alegoria: figura didática? Esse triste provérbio - eles raramente são alegres - já é uma alegoria. A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata. Ela é a estrutura do provérbio, da fábula, do romance de tese, da parábola 7• Apesar de ser uma seqüência de metáforas - andorinha como boa nova, verão como felicidade - nem por isso a alegoria é uma metáfora expandida. Por quê? Exatamente porque todos esses termos são metafóricos, enquanto na metáfora expandida os termos figurados se encaixam num contexto de termos próprios, de tal modo que a mensagem só possa ter um sentido, o figurado. Em Ponha um tigre no seu carro, tigre é metafórico, o resto não; assim, ninguém achará que se trata de um tigre de verdade, exceto o cineasta Jean-Luc Godard, que, para satirizar, filma um tigre num motor. A verdadeira alegoria, cujos termos são todos metafóricos, apresenta duas leituras possíveis: "Pedra que rola não cria limo" também pode ser lido em sentido figurado: quem viaja muito não cria amigos. Note-se

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que, na Escócia, Rolling stones gather no moss tem, ao contrário, sentido positivo: quem viaja não cria cascão, está sempre novo. É por isso que não podemos concordar com Goethe e com os românticos, que opõem a alegoria - figura que teria apenas um sentido figurado - ao símbolo, que seria aberto e polissêmico: vemos que a alegoria também pode ser assim. Fato é que ela tem má fama: é tachada de factícia, de ser criada para as necessidades da causa, em resumo, de ser puramente didática. Nesse caso, trata-se de uma curiosa didática, pois com ela se acaba perdendo tempo. Platão, após ter enunciado a alegoria da Caverna, precisa explicá-la; e Jesus também precisa dar a chave de suas parábolas: estranha didática que se condena a ensinar duas vezes! Mas veremos, com Rousseau (texto 11), que o verdadeiro problema da educação talvez não seja "ganhar" tempo. Na realidade, se a alegoria é didática, não é por tornar as coisas mais claras ou mais concretas; ao contrário, é por intrigar. A alegoria da Caverna e a parábola do Semeador intrigam os discípulos, que sentem que o texto quer dizer alguma coisa a mais do que está dizendo, mas não sabem o quê; esperam a explicação do mestre, explicação que não estariam desejando se o mestre a tivesse dado sem preparação prévia. Existe uma pedagogia muito antiga, a do mistério, que consiste em retardar a solução para incitar o discípulo a buscá-la, para motivá-lo a aprender. É nesse sentido que a alegoria é "didática". Donde seu papel também argumentativo: ela alicia as pessoas, no sentido de que, se estas aceitarem o foro (a letra), serão obrigadas a aceitar também o tema (espírito). Tomaremos da Bíblia (2 Sm XII, 1) o exemplo do profeta Natã, que vai di. zer ao rei Davi: Havia dois homens numa mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico possuía gado pequeno e grande em abundância. O pobrl nada tinha a não ser uma ovelhinha ( ... ) que ele amava como filha. Um hóspede chega à casa do rico que, poupando-se de tomar um dos animais de seu rebanho para servir ao viajante. pega a ovelha do pobre para prepará-la ...

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Essa narrativa indigna e intriga Davi, quer saber quem é esse homem, "que merece a morte". E o profeta responde-lhe "Tu és esse homem." Era ele, Davi, que, inflamado de paixão por Betsabá, raptara-a, engravidara-a e depois, arranjando tudo para que o marido dela morresse na guerra, desposara-a. Vemos aí a força da alegoria. Se Natã tivesse simplesmente exposto o crime, o rei poderia ter respondido que o amor não tem lei, ou que havia necessidade de um herdeiro para a coroa; poderia até não ter ouvido nada. Aqui, a causa é ouvida antes mesmo de ser exposta, e, ao condenar o rico, o rei prendeu-se em seu próprio veredicto. Prestando atenção à narrativa, Davi não percebeu - nem de longe - que se tratava dele. Sem a alegoria, teria porventura entendido?

Ironia, graça e humor Na ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer dar a entender. Sua matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcasmo; trata-se realmente de uma figura de pensamento, pois tem dois sentidos: És a fênix ... pode ser tomado ao pé da letra, como a ave, ou então segundo seu espírito, que aqui se opõe ao sentido próprio do termo. A ironia pode ser amena ou cruel, sutil ou grosseira, amarga ou engraçada ... Delimitaremos o assunto com duas perguntas. O que a torna "fina"? Provavelmente o afastamento entre os dois sentidos, a letra e o espírito. É verdade que se pode "marcar" a ironia: pelo tom de voz, por ponto de exclamação, aspas, etc. Se clara demais, passa a ser fácil. A ironia pesada é a esperada, a que sucumbe ao peso do sentido. A ironia é fina quando seu verdadeiro sentido se deixa esperar, quando sua vítima é a última pessoa a percebê-la; indo mais longe, pode-se dizer que é aquela cujo sentido nunca ficará completamente claro, que sempre deixará alguma dúvida. Por que é engraçada? Por certo há sempre uma dose de alegria sádica na ironia, o "prazer maligno" de ver a bola mur-

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char, de ver o esfrangalhamento das pretensões de poder, saber e virtude exatamente porque quem faz a ironia parece levá-las a sério. Figura do patos e do etos - põe do seu lado quem ri -, a ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento de incompatibilidade pelo ridículo. Apreciemos a réplica de Napoleão III, quando lhe mostraram o violento panfleto de V. Hugo contra ele: Pois bem, Senhores, aí está Napoleão, o Pequeno, por Victor Hugo, o Grande.

o que ele quis dizer exatamente? "É ele que se toma por Napoleão." "Não me atinge." "Admiro-o apesar de tudo como poeta" ... Talvez os três. A graça, em retórica, é a ironia que vem a calhar, a réplica arguta, que é a mais eficaz. Quanto ao humor, não é uma espécie de ironia; é o contrário da ironia. Esta denuncia a falsa seriedade em nome de uma seriedade superior - a da razão, do bom senso, da moral -, o que coloca o ironista bem acima daquilo que ele denuncia ou critica: não é o saber que faz de Sócrates um mestre, mas sua ironia. No humor, é o próprio sujeito que abandona sua própria seriedade, que abdica da importância. O que em princípio exige dele certa calma, certo domínio de si sim, a fleuma britânica e o humor são uma coisa só -, e desse modo se explica que o primeiro grau do humor seja a palavra descontraída nos momentos em que todos já perderam a cabeça. Antídoto contra todos os fanatismos, o humor tende para o irracional e às vezes para o niilismo. Assim, se a ironia é uma arma, o humor é algo que desarma. Retórica superior.

Figuras de enunciação: apóstrofe, prosopopéia, preterição, epanortose Cettas figuras têm parentesco com a ironia, mas sua antífrase diz respeito à enunciação, e não ao enunciado. A apóstrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguém diferente do auditório real, para persuadi-lo mais facilmente. O

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auditório fictício pode ser um ser presente, mas na maioria das vezes está ausente: são mortos, antepassados, a pátria, os deuses, qualquer coisa: Onde estou? O que vi? Enganais-me, olhos meus?

Para o TA, esta seria uma "figura de comunhão" (p. 240), que une o auditório ao orador. Para nós é mais uma figura de amplificação, que permite ultrapassar o auditório real em direção a um auditório (mais) universal, ou, inversamente, em direção a um indivíduo que personifique o auditório universal. A prosopopéia consiste em atribuir o discurso a um orador fictício: antepassados, mortos, leis, como Sócrates em Críton, que é interpelado pelas leis de Atenas: O que tentas (ao fugir), seria outra coisa senão destruirnos, a nós, as leis ... ?8

A preterição, muito próxima da aposiopese, consiste em dizer que não se vai falar de alguma coisa, para melhor falar dela. Eu também poderia ter dito que... Como se lê no TA, ela é "o sacrificio imaginário de um argumento" (p. 645). A epanortose consiste em retificar o que se acaba de dizer: Ou melhor... Também é uma intrusão do código oral na língua escrita; faz o discurso parecer mais sincero e, ademais, faz o auditório participar do encaminhamento dado pelo orador. A contrafisão é uma espécie de optativo que sugere o contrário do que diz: Tenhamfilhos então! A epítrope ou permissão é uma figura de indignação que finge aceitar um ato odioso de alguém para sugerir que esse alguém seria capaz de cometê-lo:

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FIGURAS

Figuras de argumento: conglobação, prolepse, apodioxe, cleuasmo Existem, finalmente, figuras de pensamento dificeis de definir sem recorrer à noção de argumento: mais que as outras, elas demonstram a existência de laços íntimos entre estilo e argumentação. A prolepse antecipa o argumento (real ou fictício) do adversário para voltá-lo contra ele: Dizer-nos que ... A conglobação acumula argumentos para uma única conclusão. A expolição retoma o mesmo argumento com formas diferentes. A pergunta retórica apresenta o argumento em forma de interrogação. O c1euasmo consiste no desgabo que o orador faz de si mesmo, para angariar confiança e simpatia do auditório: Talvez eu esteja sendo tolo, mas... Figura do etos, o c1euasmo também afirma a vingança do bom senso sobre os especialistas ou os eruditos, da vivência sobre o livresco, da ingenuidade sobre a sofisticação. Desse modo, o criado Sganarello diz a Don Juan: De minha parte, senhor, nunca estudei como vós, graças a Deus, e ninguém poderia se gabar de alguma vez ter-me ensinado algo; porém, com meu modesto senso, meu modesto juízo, enxergo melhor que os livros ...

A apodioxe é a recusa argumentada de argumentar, quer em nome da superioridade do orador (Não tenho lições para receber ... ), quer em nome da inferioridade do auditório (Não cabe a vocês dar-me lições ... ) Trata-se de uma espécie de violência verbal. Mas será só isso? Somos todos judeus alemães.

Eis aqui sangue, vem beber. .. (cf. texto 5)

Assim como a hipérbole, sublinha um argumento de direção.

O célebre slogan de maio de 1968 respondia a quem alegava que oPlíder esquerdista Cohn-Bendit, sendo filho não naturalizado de judeus alemães, não podia dirigir um movimento político francês. O slogan não recusava o diálogo, mas rejeitava o pretenso acordo prévio imposto pelos adversários para que

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houvesse diálogo (ou seja, um homem, que é judeu e alemão, só tem de calar a boca): queremos discutir, sim, mas não nesse nível! A apodioxe, aqui, não é mais violência, mas rejeição à violência. O mesmo acontece com o slogan americano Black is Beautiful: reivindicamos aquilo pelo que somos desprezados. Como se vê, existem figuras explosivas. Mas a mais explosiva provavelmente é a hipotipose (ou quadro), que consiste em pintar o objeto de que se fala de maneira tão viva que o auditório tem a impressão de tê-lo diante dos olhos. Sua força de provém do fato de que ela "mostra" o argumento, o patos ao logos. Dessa forma, Andrômaca responde a CefIsa, que a aconselha a casar-se com Pirro com esta descrição do saque de Tróia: ' Songe, songe, Céphise à cette nuit cruelle Qui fut pour tout un peuple une nuit éternelle. Figure-toi Pyrrhus, les yeux étincelants, Entrant à la lueur de nos palais brúlants, Sur tous mes freres morts se faisant un passage Et de sang tout couvert échauffant le carnage; Songe aux cris des vainqueur, songe aux des mourants, Dans la flamme étouffés, sous le fer expirant; Peins-toi dans ces horreurs Andromaque éperdue: Voilà comme Pyrrhus vint s 'offrir à la vue! Pensa, pensa, Cefisa na noite feral Que para um povo inteiro foi noite eterna!. Afigura-te Pirro com olhos luzentes A entrar no clarão dos palácios ardentes, Sobre meus irmãos mortos abrindo passagem E de sangue coberto incitando a carnagem; Ouve os gritos de triunfo, ouve os ais dos que clamam A morrer pelo ferro, abafados na chama. A vagar nesse horror, vê Andrômaca então: E verás qual de Pirro foi dela a visão! quase (pensa, afigura-te) é aI?plIfIcada por mumeras alIteraçoes: lueur - palais brúlants [lIteralmente, clarão, palácios em chama], pela enálage do pre-

FIGURAS

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sente (aqui os gerúndios); pelas metonímias: clarão, chama, ferro; pela gradação no horror: feral - eternal, gritos de triunfo - ais dos que morrem; pela litote: abrindo passagem, para mostrar que os mortos queridos estavam reduzidos a detrito; tudo isso para desembocar no Voilà [literalmente, eis --. E verás], que conclui a hipotipose: inexorável. Depois dessa extensa enumeração, aliás incompleta, alguém perguntará se as figuras são de fato úteis; não seriam antes nocivas, fonte de confusão e manipulação? Afinal de contas, por que falar de figuras? É como perguntar: por que falar? Sempre que queremos expressar sentimentos ou idéias abstratas, recorremos às figuras. E o filósofo, o jurista, o teólogo não escapam dela tanto quanto o homem (e a mulher) comum. Falar sem figuras, sim, seria o verdadeiro desvio, provavelmente mortal. O problema não é livrar-se das figuras - o que equivale a livrar-se da linguagem; o problema é conhecê-las e compreender seu perigoso poder, para não ser vítima dele; para tirar proveito dele.

Capítulo VII

Leitura retórica dos textos

Toda a seqüência deste livro será dedicada à interpretação de textos. Hoje em dia, dispomos de vários métodos para esse fim - análise do conteúdo, análise estrutural, hermenêutica, etc. -, cada um com suas virtudes e com suas fraquezas. O que propomos aqui nada mais é que a própria retórica, em sua filllção interpretativa; aborda o texto com a seguinte pergunta: em que ele é persuasivo? Portanto, quais são seus elementos argumentativos e oratórios? Nossa leitura é retórica também por sua atitude em relação ao texto. Certos métodos dizem-se puramente objetivos, abordando o texto com "neutralidade". Outros são partidários declarados da desconfiança, e se, como nós, procuram no texto procedimentos retóricos, é para mostrar que são mistificadores. Outros, enfim, como a hermenêutica, considerando o texto sagrado, como fazem teólogos e juristas, explicam-no com o único objetivo de entendê-lo, e postulam que ele tem razão sistematicamente, de tal modo que, se o comentador encontrar nele erros ou contradições, terá sido porque não o entendeu. ') A leitura retórica, por sua vez, não objetiva dizer que o texto tem razão ou deixa de tê-la. Nem por isso é neutra, pois não hesita em fazer juízos de valor, em mostrar que tal argumento é forte ou fraco, que tal conclusão é legítima ou errônea. Critica et>ondera, sem se abster de admirar, tendo como postulado que o texto, tanto em sua força quanto em suas fraquezas, pode ensinar alguma coisa. A leitura retórica é um diálogo.

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Questões preliminares

Diante de um texto, deve-se começar fazendo certo número de perguntas, que podem ser chamadas de lugares da interpretação. Algumas dessas perguntas dizem respeito ao orador; outras, ao auditório; outras, enfim, ao discurso, no sentido técnico que a retórica atribui a esses termos.

Orador: Quem? Quando? Contra o quê? Por quê? Como? Primeira pergunta: quem fala? Ao contrário de certas análises estruturais, a leitura retórica assume a responsabilidade dessa pergunta, considerando úteis quaisquer informações referentes à vida do autor e à sua doutrina. Mas essas informações raramente são indispensáveis. E, assim, a leitura retórica postula que o texto tem autonomia e é entendido por si mesmo. E ainda que seja útil conhecer a doutrina do autor para compreender seu pensamento, é inútil elucidar cada uma de suas afirmações com citações tomadas no restante de sua obra. Quanto mais se puder interpretar o texto em si mesmo, melhor. Na verdade, a pergunta indispensável é: quando? É preciso conhecer a época do discurso, nem que seja para evitar contra-sensos nos termos. Lemos, por exemplo: (... ) e não compreender em meus juízos nada mais que aquilo que se apresentar a meu espírito com tal clareza e distinção que eu não tenha ensejo de duvidar.

O que significa compreender aqui? O leitor moderno será tentado a ver nele o sentido de entender, explicar. Ora, se soubermos que o texto é de 1637, descobriremos que o autor quer dizer coisa bem diferente: "incluir em meus juízos". Não no sentido de "entender", mas no sentido de "conter". Outra pergunta: contra quem? Isso porque é raro que um discurso persuasivo não seja ipso facto dissuasivo, que não ataque, pelo menos implicitamente, uma opinião, uma doutrina,

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um autor. Assim, a famosa regra do Discurso do método, cujo final acabamos de citar e que identifica verdade com evidência, pode muito bem ser apresentada como um axioma lógico, mas nem por isso deixará de ser dirigida contra alguém. Reconhece-se Aristóteles, cuja dialética integra o campo da verossimilhança na filosofia, enquanto a regra da evidência leva a rejeitar como falso tudo o que é apenas verossímil. Contra quem, logo por quê? O discurso tende a persuadir de algo, mas esse algo pode ser múltiplo. O texto muitas vezes tem um objetivo imediato e outro distante, o mais importante. O autor do Discurso do método quer persuadir seus leitores do valor de seu método, mas principalmente do valor de sua empresa global, a saber, da ciência que esse método produzirá, tornando-nos "senhores e donos da natureza". Num texto irônico (cf. texto 10), o objetivo real é absolutamente oposto ao objetivo declarado. Finalmente, como o autor se manifesta em seu discurso? Esse é o problema da enunciação. Quando Jean-Jacques Rousseau (texto 11) diz Eu ousaria expor aqui ... , é Jean-Jacques Rousseau que está falando, ninguém mais. Quando Descartes enuncia o Penso, logo sou, é o eu universal que está falando, como em matemática. Mas quando Descartes escreve em nosso texto: meus juízos, meu espírito, que eu não tenha, quem é o eu? Por certo ele, Descartes, pois é o primeiro a dizer isso, mas também cada um de nós, pois ele pretende servir de modelo. Portanto, um eu intermediário entre o da audácia pessoal e o do pensamento universal. Cumpre mencionar dois casos notáveis. O primeiro é aquele em que o eu do discurso não é o de seu autor: isso se observa na citação ou na prosopopéia. O segundo é o caso em que não há eu algum, em que o discurso se apresenta como puro enunciado, assim como os textos escritos por juristas ou geógrafos. Mas a ausência de marcas de enunciação não significa ausência de eoonciação; os textos mais objetivos na forma às vezes são os mais tendenciosos.

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Auditório e acordo prévio A quem se está falando: em outras palavras, qual é o auditório real do discurso? Sabe-se que, na apóstrofe, não se trata do auditório aparente. Isso ocorre quando os candidatos de uma eleição travam uma polêmica na televisão, e cada um finge dirigir-se àquele que está diante de si, mas, como não pode esperar convencê-lo a lhe dar seu voto, na verdade está-se dirigindo ao público eleitor. Assim (cf. supra, p. 9): "Senhor Mitterrand, está a par da cotação do marco?" Mitterrand é o auditório fictício; o auditório real é o telespectador, que vai ficar sabendo que Mitterrand não está a par da cotação do marco. A quem: essa pergunta não é feita apenas pelo intérprete, mas por certo também pelo orador. Pois a regra de ouro da retórica é levar em conta o auditório. Ora, os auditórios distinguem-se de diversas maneiras. Em primeiro lugar pelo tamanho, que pode ir de um único indivíduo (por exemplo, numa carta) a toda a humanidade. Compreende-se facilmente que a importância do público influencie a natureza da mensagem. Em segundo lugar, pelas características psicológicas decorrentes de idade, sexo, profissão, cultura, etc. Em terceiro lugar, pela competência. Ninguém se dirige a um grupo de médicos como se fosse um grupo de doentes, a um grupo de especialistas como se fosse um público leigo. A competência distingue não só os conhecimentos necessários como também o nível de argumentação e até o vocabulário. Em quarto lugar, pela ideologia, seja ela política, religiosa ou outra. Pois não é só o argumento que muda segundo a ideologia; o vocabulário também. Orador, auditório: é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos um acordo prévio. De fato, não há diálogo, nem mesmo argumentação, sem um entendimento mínimo entre os interlocutores, entendimento referente tanto aos fatos quanto aos valores. Pode-se até dizer, sem paradoxo, que o desacordo só é possível no âmbito de um acordo comum. Assim, as controvérsias entre católicos e protestantes, no sécu-

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lo XVII, partiam de um postulado comum, a verdade do cristianismo: cada um dos protagonistas afirmava representar o "verdadeiro" cristianismo. O acordo inicial também dizia respeito aos métodos da controvérsia e aos assuntos espinhosos que cumpria evitar, como a graça e a predestinação!. Nas questões em que não haja nenhum acordo inicial, pode haver violência ou ignorância recíproca, não controvérsia. Pode-se objetar que é dificil interpretar um discurso quando se ignora o acordo prévio que ele pressupõe. Mas esse acordo é revelado pelo próprio texto: pelo não-dito, pela ausência das provas que seriam de esperar, por suas fórmulas estereotipadas, alusões, expressões como: "é certo que", "todos sabem", "deve-se admitir", etc. Também neste caso o texto explica o texto. Faltam as perguntas referentes ao discurso em si: do que trata, o que diz, como diz? Em retórica é a terceira pergunta que mais importa. Neste capítulo limitar-nos-emos a especificar seus aspectos preliminares.

A questão do gênero: Pascal e La Fontaine Uma questão capital na leitura retórica é a do gênero, que comanda estreitamente o conteúdo persuasivo do discurso. O gênero agrupa obras que apresentam características fimdamentais em comum: tragédia, poema lírico, tese, etc. Sem dúvida é impossível fazer uma classificação exaustiva dos gêneros, porém o mais útil para a leitura retórica é a comparação. Se quisermos determinar as características de um gênero, pre'; cisamos perguntar o que o distingue do gênero mais próximo; por exemplo o melodrama da tragédia, a novela do romance, a aula da conferência. Nossa tese, inspirada no livro de Angenot, Le discours pamphlbaire, é de que o gênero enseja não só injunções de estilo, extensão e vocabulário, mas também injunções ideológicas. Segundo a escolha que se faça, de tratar um assunto na forma de ensaio ou de panfleto, não se dirá a mesma coisa, não se

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tirarão as mesmas conclusões. O gênero circunscreve o pensamento. "Vamos mostrar isso", comparando dois textos. São da mesma época: Pascal morreu em 1662; o primeiro livro das Fábu/as foi publicado em 1668. Falam do mesmo assunto, que se poderia resumir pela expressão alemã das Faustrecht, o direito do punho, o que é um oxÍmoro. Mas não dizem a mesma coisa, precisamente porque não são do mesmo gênero; e por mais que o gênio dos dois autores transgrida as "leis do gênero" nem por isso este deixa de inflectir o pensamento deles; tanto é verdade que adotar um gênero é não só "assinar um contrato com o leitor"2 como também ingressar numa visão de mundo.

Texto 3 - Pascal, "Justiça, força" (Br. Min. N.0 298, p. 470)

É justo que o justo seja seguido, é necessário que o mais forte seja seguido. A justiça sem força é impotente; a força sem justiça é tirânica. Ajustiça sem força é contraditada porque sempre há perversos; a força sem justiça é acusada. Portanto, é preciso juntar justiça e força; e, para isso, que seja forte aquilo que é justo, ou que seja justo aquilo que é forte. A justiça está sujeita a discussões, a força é facilmente reconhecível e não se discute. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça, dizendo que esta era injusta, e que só ela mesma era justa. E assim, não podendo fazer que o justo fosse forte, fez-se o forte ser justo.

Texto 4 - La Fontaine, "O lobo e o cordeiro", Fábulas, 1,10

La raison du plus fort est toujours la meilleure: Nous I 'allons montrer tout à I 'heure. Un agneau se désaltérai! Dans le courant d'une onde pure.

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Un loup survient à jeun, qui cherchait aventure, Et que lafaim en ces lieux attirai!. "Qui te rend si hardi de troubler mon breuvage? Di! cet animal plein de rage: Tu seras châtié de ta téméri!é. - Sire, répond l'agneau, que Votre Majesté Ne se mette pas en coÜ?re; Mais plutõt qu 'elle considere Que je me vas désaltérant Dans le courant Plus de vingt pas au-dessous d'Elle; Et que par conséquent, en aucune façon, Je ne puis troub/er sa boisson. - Tu la troubles, repri! cette béte cruelle; Et je sais que de moi tu médis I 'an passé. - Comment I 'aurais-je fai! si je n 'étais pas né? Reprit l'agneau;je téte encore ma mere. Si ce n 'est toi, c'est donc ton frere. Je n 'en aipoint. - C'est donc quelqu'un des tiens; Car vous ne m 'épargnez guere, Vous, vos bergers et vos chiens. On me I'a di!: il faut que je me venge. " Là dessus, au fond des foréts Le loup I 'emporte et puis le mange, Sans autre forme de proces. A razão do mais forte é sempre a melhor razão:

É o que vamos mostrar agora. Um cordeiro a sede matava Numa corrente de água pura. Chega emjejum um lobo, à busca de aventura, Lobo que a fome a tal lugar levava. "Estás turvando minh' água. Que atrevimento! Disse aquele animal raivento: Serás castigado por tal temeridade. Resp.onde o cordeiro: - Que Vossa Majestade P Não se deixe destarte irar; Pois antes cabe considerar Que esta água que vou tomando Desce escoando

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Por vinte passos após vós; E que por conseguinte não posso jamais Turvar a água que tornais. - Mas turvas, respondeu aquela fera atroz; E bem sei que me difamaste ano passado. - Como, senhor, se eu nem tinha sido gerado? Se inda mamo, disse o cordeiro a mais. Se tu não és, é teu irmão. Se não os tenho. - É um dos teus então; Porque vós não me poupais, Vós, vosso pastor e o cão. Contaram-me: cumpre a vingança agora." E para a mata e seus recessos O lobo o carrega e devora, Sem outra forma de processo.

Situação dos dois textos

o texto de Pascal é um "pensamento", que poderia ser classificado no mesmo gênero dos "aforismas" de Nietzsche e das "considerações" de Alain. Todavia, é preciso levar em conta o projeto do autor: escrever uma "Apologia da religião cristã", cujo rascunho é constituído por Pensées e tudo o que nos ficou dessa obra! O gênero apologético, que começa com a Apologia de Sócrates e viceja em nossos dias com os Ce que je crois ... [Aquilo em que acredito ... ], pertence na verdade ao epidíctico dos antigos. Visa a persuadir de um valor fundamental, unindo uma argumentação mais ou menos rigorosa a um testemunho que engaja o autor: "Deus existe, encontrei-me com ele." A quem Pascal se dirige? Àquilo que se chamava de "honnêtes gens" em seu tempo, mais precisamente aos libertinos*. * Termo designativo dos cristãos que, no século XVI, iniciaram e desenvolveram correntes de independência religiosa em relação à Igreja Católica. Mais tarde esse termo, que dá idéia de liberdade, adquiriu conotação de vida dissipada e anti-religiosa. (N. do T.)

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Apóia-se num acordo prévio que possibilita o desacordo; esse acordo é a filosofia de Descartes, que opõe categoricamente as duas "substâncias": corpo e pensamento. Ora, como ajustiça está do lado do pensamento, que é infinitamente superior ao corpo, Pascal pode estabelecer um argumento de dupla hierarquia: Pensamento > corpo, portanto Justiça

> força.

Partindo desse argumento, admitido por seus leitores, Pascal vai mostrar que estamos numa situação absurda, insustentável, porque, mesmo não declarando e nem sequer estando cientes, invertemos a hierarquia natural. Aqui encontramos a atitude central de Pascal: levar o homem sem Deus a compreender e sentir o absurdo de sua condição, de que nenhuma filosofia pode dar consciência. Quando ele se gaba, eu o rebaixo; quando se rebaixa, eu o gabo; e sempre o contradigo, até que ele entenda que é um monstro incompreensível. (p. 216; o "ele" é "nós"!)

Em resumo, toda "apologia" repousa na antítese entre nossa grandeza e nossa miséria, nossa grandeza de direito, como criaturas de Deus, e nossa miséria de fato, como pecadores depois da queda de Adão. Antítese filosófica que o gênio de Pascal toma retórica, como demonstra o quiasmo final: justo-fortejorte-justo. Situemos agora a fábula. Em princípio, a fábula é uma alegoria que se reputa capaz de ilustrar, de mostrar, uma verdade moral. Portanto, é essencialmente pedagógica, e, aliás, o autor destina sélllivro I às crianças. No entanto, a justificativa oficial da fábula, pela moral, já não se sustenta em La Fontaine. Em primeiro lugar, porque a alegoria é muitíssimo mais longa do que aquilo que diz demons-

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trar, a "moral"; parece que, para o autor, ela se transformou num fim em si, na alegria de encenar; mas, justamente, essa maravilhosa encenação é ao mesmo tempo um prazer e uma lição. Em segundo lugar, porque a moral não é a que se esperava; em Fedro, modelo latino do autor, a mesma fábula terminava assim: Esta fábula é escrita contra aqueles que, com falsas alegações, oprimem os inocentes.

La Fontaine, ao contrário, não denuncia; apenas enuncia. E a única "moral" que aparece na fábula é francamente imoral. Rousseau afirmava que essas fábulas não convêm em absoluto às crianças; como psicólogo, estava coberto de razão; como pedagogo, completamente errado; pois, se às crianças fosse ensinado apenas o que é "para crianças", não se iria muito longe ... Em todo caso, La Fontaine utiliza o gênero "fábula" transgredindo-o; para ele, a pedagogia não passa de pretexto. Apesar disso, ensina tanto quanto Pascal, mas de outro modo.

A argumentação dos dois textos A argumentação de Pascal é ao mesmo tempo clara e densa. Opondo as duas formas de seguir, por razão e por necessidade (no sentido de inevitável), mostra que ambas são insuficientes, e que só existem unidas. Sozinhas, a justiça é impotente e a força é odiosa, porque ilegítima. A humànidade, portanto, só pode sobreviver associando-as. A questão é saber qual das duas sobrepujará a outra, o que exprime o primeiro quiasmo: subordinar o forte ao justo ou o justo ao forte? Ora, o homem de fato escolheu o segundo termo, e Pascal explica por quê. Acontece que um elemento veio romper o equilíbrio. Diante da força, a justiça padece de carência; não de uma, mas de duas: ela não só é impotente, como também está sujeita a discussões, ou seja, é fraca mesmo em sua própria ordem, o pensamento. Enquanto isso, a força é o que é, plena-

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mente. Pode-se objetar que a força também é enfraquecida pelos conflitos com outras forças. Mas basta que ela seja reconhecível, que se saiba onde está, ao passo que isso não acontece com a justiça. Portanto, a força pôde explorar essa dupla carência e apropriar-se da justiça, dizendo "que só ela mesma era justa". Conseqüência: a humanidade, sempre e em todo lugar [sujeito indeterminado no texto], só pôde tomar o segundo caminho, em que o justo é posto a serviço do forte, substituindo assim a justiça por sua falsificação. O que Pascal mostra não é que a força reina sobre o direito, pois esse reinado nada mais teria de humano, e sim que a força reina porque está disfarçada de direito. Em La Fontaine, a argumentação se dá em dois níveis. Primeiro, no nível do narrador: Jilmos mostrar... Na verdade ele não mostra nada, pois não se pode extrair de um exemplo apenas, e o mais fictício, uma lei universal: é sempre ... É de duvidar que La Fontaine tenha achado seriamente que estava mostrando alguma coisa, e sobretudo que tenha acreditado pessoalmente que a razão do mais forte é sempre a melhor. A nosso ver sua argumentação é puramente irônica; em outras palavras, o que ele mostra é tão enorme que o que se impõe é a tese contrária. No segundo nível, a argumentação dos dois interlocutores. A do lobo é o próprio discurso da má-fé. A do cordeiro, que começa com uma preparação psicológica (que Vossa Majestade... ) é uma demonstração (em sentido estrito) um tanto pedante, mas evidente: é fisicamente impossível turvar a água do lobo. Este limita-se a responder: Mas turvas, o que é uma apodioxe, uma recusa pura e simples do argumento contrário. No entanto - e talvez aí apareça a verdadeira lição da fábula -, a coisa não é tão simples. O lobo, afinal, se acha obrigado a argumentar. O fato de ter a força e de ter fome não lhe basta; superioridade é da ordem do necessário, e o lobo se querjusto, nem que seja com maus argumentos; Bem sei que... Se não és... é então... Porque... : cada frase é justificada, o que prova que o lobo não só precisa comer como também ter razão.

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O que torna a fábula singularmente complexa é que o lobo acaba trazendo à tona um argumento totalmente convincente: Porque vós não me poupais... E é verdade; se agarrado pelos pastores, o lobo seria morto. Por isso, segundo as regras da justiça, ele tem direito de matar o cordeiro. Para Louis Marin3, o lobo pertence ao mundo da natureza, e o cordeiro ao mundo da cultura; e entre os dois não é possível arbitragem alguma: só vale a lei do mais forte. Em suma, o lobo dá a verdadeira justificativa. Mas La Fontaine decerto percebeu que, se ficasse nisso, a fábula se tornaria trágica, e deixaria de ser fábula. Por isso, logo completa o argumento com Já me contaram, que, em vez de reforçar, destrói o argumento, pois o que era uma evidência natural, que não exigia comprovação - a luta mortal entre lobos e homens acaba sendo uma simples opinião, um dizem ("dizem que dois e dois são quatro"!). Argumento fraco e pouco coerente do homem enfurecido. Fato é que o lobo faz uma defesa, apresenta sua decisão cumpre [a vingança] - como resultado de uma argumentação que a torna legítima. Note-se que ela se apóia num endoxon da época, ou seja, que a vingança pode ser um dever, algo que cumpre realizar. E o sem outra forma de processo, subentendendo que houve processo, acentua ainda mais essa ironia. Em suma, antítese trágica mas clara em Pascal, ironia prazenteira mas túrbida em La Fontaine: tão túrbida quanto a própria vida. Talvez caiba mais falar de humor.

Observações sobre o estilo dos dois textos A elocução, portanto o estilo, acentua de modo impressionante a diferença entre os dois gêneros. A fábula é em versos, o pensamento é em prosa. Mas, também neste caso, o gênio transgride o gênero, e os dois autores reduzem a oposição. Pois ambos se aproximam do estilo oral. Com suas frases curtas e seus assíndetos, Pascal opõe-se aos períodos de Bossuet. E La Fontaine, com seus versos irregulares, seu andamento vivaz,

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opõe-se ao estilo épico e ao trágico, mas também à secura da fábula antiga. Note-se ainda a extrema economia de meios em Pascal; seu quiasmo, por exemplo, nada tem de ornamentação; é o próprio movimento do pensamento. É bem uma figura de conteúdo, independente em princípio do autor e da situação, no sentido de que, se quisermos dizer a mesma coisa, não poderemos dizer de outro modo; o quiasmo tem a mesma necessidade de uma fórmula matemática como a x b = b x a. O humor do fabulista é, ao contrário, figura da enunciação. Não há humor sem humorista, e o "tom" do fabulista sugere que a fábula não seja lida no primeiro grau. O fato é que, apesar da diferença de estilo, os dois textos dizem mais ou menos a mesma coisa. Mas só "mais ou menos". Observemos as diferenças. A primeira delas, menor na aparência, diz respeito ao tempo dos verbos. La Fontaine procede por uma seqüência de enálages: matava a sede... chega ... O presente, insólito, é aspectual; marca o acontecimento, a surpresa. Assim também a desordem dos marcadores de narrativa: responde, respondeu, e o presente narrativo do fim: carrega-o. Essas figuras contribuem para a vivacidade da narrativa. Pascal, por sua vez, começa no presente e passa bruscamente para o perfeito: Assim, não se pôde dar. .. , também próximo do estilo oral. Mas, neste caso, já não estamos na ficção; o tempo tem valor cronológico absoluto, o que distingue a apologia tanto da fábula quanto da exposição filosófica intemporal: Penso, logo ... Pois Pascal descreve um acontecimento, algo que surgiu no tempo, depois da queda de Adão. Seu primeiro parágrafo era filosófico: análise lógica. O segundo é histórico, porque teológico. A segunda diferença diz respeito à personificação. É a essência da fábula; curiosamente, Pascal se aproxima disso, pois sua metonímia aforça ... dizendo que equivale a personificar a força, o que torna trágico o debate. A força que fala aqui é o discurso dos fortes, que não tem outro peso senão o da força deles. A força que fala na fábula é o lobo.

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

o que dizer desse lobo e de outros

rias? Antes vale dizer: símbolos, porque passIveIs de vanas Interpretações. O lobo é o "marginal" que, arriscando-se a sentir medo e passar fome, preferiu a liberdade à coleira do cão. O lobo também é o poderoso, aquele que o cordeiro chama - não sem razão - de Majestade ... La Fontaine, que de ordinário exibe uma deferência total pelos monarcas, não os está aqui desmascarando em sua verdade? Afinal, o lobo e o cordeiro simbolizam certa relação entre os homens, ou mesmo certa relação no homem, pois não somos nós ora cordeiros, ora animal da fábula exprime nossa natureza em seu detenmmsmo inexorável: homens conduzidos pelo aquém de si mesmos, sem remissão. O mesmo pessimismo visto em Pascal, tirando o trágico.

Os dois gêneros e seu impacto ideológico Nossos dois autores, escolhendo um a apologia e o outro a fábula, não poderiam chegar a conclusões idênticas .. Pois a escolha de um gênero não é apenas a escolha de um estIlo e de uma argumentação. É necessariamente uma escolha ideol?gica, acarreta certa visão do mundo e do homem. Pascal nao podena ter expresso seu pensamento em forma de fábula. Por quê? A fábula pretende exprimir certa natureza do homem pela interpretação dos animais e das árvores, que falam uma linguagem familiar, pitoresca, muitas vezes cômica: uma e um diálogo. É a rejeição absoluta tanto da grandeza epIca quanto da profundidade filosófica; o que ela põe em é .0 homem, mas o homem subjugado pela ação das forças ammaIS que tem em si. E, mesmo quando a fábula home?s. em cena, eles são tão pouco livres para mudar, sao tao mecanICOS quanto os animais. Assim, em "O homem e a cobra": Ouvindo isso, o animal perverso (Estou falando da serpente, e não do homem: fácil seria enganar-se) ...

LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS

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A moral da fábula expressa, pois, o necessário de Pascal: todo bajulador... segundo fores poderoso ou miserável... Às vezes ela valida de modo preocupante esse primado do necessário. Assim, em "O lobo pastor":

o que é falso de algum modo sempre aparece. Quem for lobo aja como tal: Pois isso é o mais certo, afinal.

Apesar disso, pudemos demonstrar que a fábula, por oferecer interpretações muito diversificadas, é também o antídoto do maniqueísmo: o lobo não está completamente errado ... A apologia, com suas antíteses e seus quiasmos, é o gênero da grandeza, mas também da negação. Para ela, o homem é coisa diferente do que é, ou melhor, daquilo que acha que é. O projeto do apologista, seja ele Sócrates ou Pascal, é antes de tudo perturbar, para levar o homem a superar seu ponto de vista, a olhar para outro lugar, para um além de si mesmo. Mas, quando a apologia contradiz ou protesta, a fábula lança um olhar resignado e brincalhão. Por isso é menos ironia - que denuncia o mundo em nome de uma verdade superior que humor, pois limita-se a descrever o mundo em seu absurdo. Não diz o que está certo, nem o que está errado, diz o que é. Só conhece este mundo, e adverte-nos de suas ciladas enquanto nos diverte. A ética da fábula é reacionária, pois ensina a resignação. Mas com que felicidade!

Questões sobre o texto Uma questão inicial importante é, evidentemente, a da disposição, do plano do texto; voltaremos a ela em nossos comentários. Aqui observaremos que os textos muitas vezes são apenas excertos, não havendo portanto propósito em buscar a todo cusfle uma introdução e uma conclusão, que poderiam perfeitamente estar em outro lugar. Outra questão inicial: estamos diante de que tipo de argumentação? Segundo Aristóteles, há dois tipos, duas estruturas

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

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argumentativas, e apenas duas: o exemplo, que vai do particular ao geral, do fato à regra, sendo portanto uma indução, e o entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma dedução. Cabe lembrar que o texto 1, de Górgias, pretende provar por dois exemplos o poder da retórica, enquanto no texto 2 Aristóteles prova a utilidade da retórica por meio de entimemas.

todos os tiranos conhecidos para o tirano em geral, principalmente porque a palavra "tirano" não é unívoca: Dionísio não era tirano como era Hitler! O exemplo não permite provar que uma proposição é universal; só pode provar que uma proposição não é universal, que não pode começar com sempre nem com nunca. Mas, para essa prova negativa, basta um único exemplo; basta mostrar que um remédio não curou uma vez para demonstrar que ele nem sempre cura. A função lógica do exemplo é negativa, serve para infirmar. Mas na argumentação serve também para confirmar, função positiva que não tem na demonstração: a de tomar plausível um enunciado, como vimos com Aristóteles (cf. Tópicos, VIII, 2, 157 a, 158 a e 160 b). Assim, em justiça, se houver um acúmulo de acusações contra um réu, compete a este produzir um contra-exemplo (como um álibi), caso contrário será considerado culpado e até condenado.

o que prova o exemplo? Em retórica, o exemplo (paradeigma) tem sentido bem mais amplo que o do nosso banal "exemplo". É uma indução dialética, que vai do fato ao fato, passando pela regra subentendida. Aristóteles mesmo dá o seguinte exemplo de ... exemplo: quer-se provar que Dionísio (político de Siracusa) aspira a tornar-se tirano. Parte-se de um fato verificado: Dionísio pede uma guarda pessoal. Ora, sabe-se que todos os tiranos conhecidos da história começaram a carreira pedindo uma guarda. Portanto, pode-se inferir que Dionísio também se tomará tirano. Portanto, prova-se esse fato (futuro) com uma regra que pôde ser estabelecida a partir de fatos passados: "Todo aspirante à tirania pede uma guarda pessoal" (Retórica, I, 2, 1357 b). O problema então é saber se a própria regra é comprovada pelos fatos invocados com esse objetivo. Admitindo-se que todos os políticos conhecidos, que pediram uma guarda, tomaram-se tiranos, poder-se-ia dizer que isso sempre acontecerá, notadamente com Dionísio? Observe-se que o elo entre guarda e tirania talvez fosse um elo de causalidade na cidade grega; já não o é hoje, pois mesmo nas democracias acha-se natural que os estadistas tenham uma guarda pessoal. Então, o que o exemplo pode provar? Em primeiro lugar, o exemplo é realmente demonstrativo quando se pode mostrar que os casos são em número limitado, e que a regra se aplica a todos. Mas na argumentação o conjunto dos casos na maioria das vezes é ilimitado; portanto, a indução não é possível; não se pode passar de maneira lógica de

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Entimema Passemos agora à vertente dedutiva da argumentação, ao silogismo. Pode-se considerar o silogismo como uma velharia escolar, mas isso não impede que ele esteja sendo feito o tempo todo, como o alter da prosa. Quando o lobo diz: Estás turvando minh'água. Que atrevimento!

I

esse minha condensa um polissilogismo: turvar o que é meu é atrevimento (sacrilégio). Ora, essa água é minha; tu a estás turvando; logo ... O silogismo utilizado pela argumentação cotidiana chama-se entimema; emprega-se esse termo para distingui-lo do silogis11lO demonstrativo. As premissas do entimema não são proposições evidentes, mas nem por isso são arbitrárias; elas são endoxa, proposições geralmente admitidas, portanto verossímeis. Recordemos o texto 2, de Aristóteles:

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Além disso, se é vergonhoso não poder defender-se com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse vergonha em não poder defender-se com a palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que o do corpo.

Também neste caso trata-se de um polissilogismo implícito, que, como vemos, se apóia em dois endoxa: o uso da palavra é mais próprio ao homem que o do corpo; é vergonhoso não poder defender-se fisicamente. Este último aspecto podia ser considerado evidente no tempo de Aristóteles; já não é evidente para nós, que não achamos desonroso chamar a polícia quando somos atacados fisicamente ... Entimema, silogismo do verossímil, mas também silogismo abreviado, cujas premissas enunciadas - como no caso do texto de Aristóteles - são apenas as necessárias. Assim, em vez do silogismo completo: Maior: todo homem é mortal; Menor: Sócrates é homem; Conclusão: Sócrates é mortal,

limitamo-nos a dizer: "Por ser homem, Sócrates é mortal." O próprio Aristóteles diz: quando uma premissa é evidente para todos, é supérfluo enunciá-la (Retórica, I, 2, 57 a). No entanto, se omitida, será simplesmente por ser supérflua? Assim, o slogan francês lançado pelo governo antes da derrota de 1940, venceremos porque somos os mais fortes, é um silogismo abreviado, cuja premissa maior (os mais fortes sempre vencem) é omitida. Mas, na realidade, se ela tivesse sido enunciada, o slogan não teria sido enfraquecido? De fato, os franceses poderiam ter-se perguntado se os mais fortes realmente sempre ganham, notando então que um princípio desses tem desagradável semelhança com os princípios do inimigo hitlerista. Tecnicamente, há outras teorias lógicas diferentes da aristotélica, a começar pelas estóicas. Mas, para a leitura retórica dos textos, basta perguntar se o discurso - ou alguma de suas

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partes - é de natureza indutiva ou dedutiva, se os. se, pois portanto ... que contém anunciam exemplos ou enhmemas. FInalmente se examina se a argumentação não é sofistica, ou seja, se ela não pede aos argumentos mais do que eles podem provar.

o intertextual, o intratextual e o motivo central Sem chegarmos a afirmar, como Kibédi-Varga, que todo discurso responde a uma pergunta\ admitiremos .que ele pre replica - explicitamente ou não - a outros dIscursos, seja apoiando-se neles, seja refutando-os, seja completando-os. alusão é a figura da intertextualidade; isso acontece quando dIzemos que todos fazem silogismos sem saber, "como o alter da prosa". Não entraremos aqui nas complexas discussões sobre a intertextualidade. Simplesmente distinguiremos o intertextual do intratextual. Este último é a presença explícita de outro discurso no discurso. Presença que se manifesta de duas maneiras. Primeiro pela citação, que pode servir para apoiar o orador, constituindo então um verdadeiro argumento de autoridade, ou então pode servir de destaque, de prova contra o sário: "Vejam o que ele ousa dizer!" Finalmente, pode serVIr de documento de análise, como ocorre em nossos textos. Depois pela fórmula, cuja autoridade, ao contrário, vem do anonimato. Mais vale um "toma" que dois "te darei" é um adágio; não é o pensamento de alguém; é a verdade de expressa pela "sabedoria do povo". A fórmula pode ser adaglO, provérbio, máxima, slogan; este último, por sua vez, pode ser publicitário, político ou ideológico, como Inimigo hereditário, Faça o amor e não a guerra, Black is Beautiful. Em todos os casos a fórmula é uma frase curta, incisiva, fácil de guardar, cuja ftmção é resumir um pensamento complexo, dando-lhe mais força justamente por ser resumido. Cerne do discurso, a fórmula contém o fecho daquilo que é retórico; Morrer por Danzig ... : o slogan dos pacifistas de direita em 1939 não admi-

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tia réplica; era inútil argumentar com um "não se deve", ou "convém evitar", pois ninguém teria ousado sustentar o contrário! Em suma, a fórmula é um argumento condensado que se torna peremptório graças à forma, à concisão e à felicidade estilística. Tudo o que se pode fazer é opor-lhe outra fórmula: Porvir radioso - Porvir tenebroso.

Finalmente, diante de um texto, sempre há interesse em perguntar se ele não tem um motivo central. Entendemos por motivo central um procedimento retórico, figura ou argumento, que serve de princípio organizador para o texto, que permite dizer: é ironia, é alegoria, é argumento de autoridade, etc. Assim, o motivo central de nosso texto 1 (Górgias) é a hipérbole, uma hipérbole irônica, pois Górgias atribui aos retores poderes tão espantosos que custa acreditar. O do texto 3 (Pascal) é o quiasmo. É certo que não se pode distinguir um motivo central em todos os textos, mas é útil procurar um, porque, encontrando-o, encontramos logo a unidade viva do discurso. Aí vai um exemplo.

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Il entra sur le pont d 'Arcole, fi en sortit. Voiei de I'or, viens pille et vole, Petit, petit.

§ 3 Berlin, Vienne étaient ses maitresses; files forçait, Leste, et prenant les forteresses Par le corset. Il triompha de cent bastilles Qu 'il investit.Voiei pour toi, voiei des filies, Petit, petit.

§ 4 Il passait les monts et les plaines, Tenant en main, La palme, la foudre et les rênes Du genre humain. fi était ivre de sa gloire Qui retentit. Voiei du sang, accours, viens boire, Petit, petit.

§ 5 Quand il tomba, lâchant le monde,

Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les châtiments, VII, 7 § f Sa grandeur éblouit I 'histoire. Quinze ans, ilfut Le dieu que traínait la victoire Sur un ajJut; L 'Europe sous sa loi guerriere Se débattit.Toi, son singe, marche derriere, Petit, petit.

§ 2 Napoléon dans la bataille, Grave et serein, Guidait à travers la mitraille L 'aigle d'airain.

L 'immense mer Ouvrit à sa chute profonde Son goujJre amer; Il y plongea, sinistre archange, Et s 'engloutit.Toi, tu te noieras dans lafange, Petit, petit.

§ 1 Sua grandeza ofuscou a história. Quinze anos foi Deus levado pela vitória Sobre um arrnão; Sob sua lei guerreira a Europa P Se debateu. Tu, seu símio, marchas atrás, Ó pequenino.

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160 § 2 E Napoleão na batalha, Grave e sereno, Guiava através da metralha A águia de bronze. Ele entrou na ponte de Árcole, Dela saiu.Eis aqui ouro, pilha e rouba, 6 pequenino. § 3 Berlim, Viena, suas amantes; Ele as forçava, Lesto, tomando fortalezas Pela cintura. Ele triunfou de cem bastilhas Que atacou. Eis aqui as moças, são tuas, 6 pequenino.

§ 4 Transpunha montes e planícies, Tendo na mão As palmas, o raio e as rédeas Da espécie humana. Inebriava-se de sua glória Que retumbou. Eis aqui sangue, vem beber, 6 pequenino.

§ 5 Quando caiu, largando o mundo, o mar imenso Abriu-lhe na queda profunda Seu pego amargo; Lá mergulhou, sinistro arcanjo, Nele engolfou-se. Tu, tu te afogarás na lama, 6 pequenino.

Les châtiments [Os castigos] denunciam Napoleão III como um abominável tirano que subiu ao trono por meio de um crime, o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.

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Qual é o gênero desse poema? Curiosamente, parecem ser dois. O título indica "Chanson" [Canção], e, pela forma, realmente é uma canção: ritmo leve, com alternância de versos de oito e quatro pés, redundâncias, sintaxe solta, sentido às vezes subordinado à rima - versos 6 dos §§ 1 e 3 -, descuidos até desejáveis no estilo "canção". Finalmente, o mais importante é o refrão, só que, onde se esperava alguma espécie de "dondindondão", tem-se Petit, petit, amplificado pela necessidade de ser dito quase duas vezes mais devagar que o verso anterior. Pois a canção está a serviço de outro gênero. É a diatribe, modo epidíctico mas negativo. Victor Hugo recorre, portanto, à forma ligeira e sem rodeios da canção para dar maior destaque à violência de suas imprecações. Como explicar essa curiosa dualidade de gêneros? Pelo motivo central, justamente, a antítese. O poema começa com Sua grandeza [Sa grandeur] e acaba com pequenino [petit]. A antítese entre tio e sobrinho retoma a cada estrofe, mas com forma um pouco diferente, verdadeira expolição: § 1, deus e seu símio; § 2, guia e ladrão; § 3, conquistador e venal; § 4, homem glorioso e covarde cruel; § 5, queda grandiosa e fim ignóbil. A antítese não é maniqueísta, pois o próprio Napoleão é culpado, e deve ser castigado. Mas, mesmo em sua queda, çontinua grande, como indica o oxímoro sinistro arcanjo. Tu é a apóstrofe que surge a cada refrão - na verdade o poema é dirigido ao grande público -, e a apóstrofe se especifica em epítropes: pilha e rouba, vem beber, que fingem permitir que o tirano pratique atos ignóbeis para sugerir que ele é capaz desses atos: tu, ao passo que Ele ... As outras figuras, numerosas, amplificam mais a antítese. As metonímias possibilitam a criação de símbolos: Aguia de bronze, raio e rédeas, além da mais nova, armão, símbolo do exército em guerra, a que se opõem as metonímias do refrão: OUfO - sangue. As sinédoques - da espécie humana (§ 4), o mundo (§ 5) - possibilitam a hipérbole e sobretudo a personificação: a história que ele ofusca (§ 1); a vitória, que o levava (§ 1).

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Personificação também pelas metáforas: O deus -largando o mundo - cem bastilhas - engolfou-se, e principalmente pelas metáforas expandidas: Amantes -forçava - cintura, o mar imenso abriu, etc. Personificação: nota-se que o tio sempre está ligado, mesmo quando se trata de abstrações, a poderes personificados, ou mesmo divinizados, enquanto ao sobrinho só tocam matéria e coisas inertes: sangue, ouro, lama ... introduzidas por Eis aqui. Assim, as cidades transformam-se em mulheres, que Napoleão conquista, enquanto as mulheres do símio são apenas moças, mercadoria venal. Em resumo, tudo está a serviço da antítese, até a oposição entre o estilo épico das estâncias e o estilo seco, entrecortado, do refrão. A antítese, como dizíamos, é o oposto no mesmo: aqui o mesmo é representado pela estrutura idêntica das estrofes, das quais o tio ocupa sempre três quartos, e pela repetição

depetit. É possível encontrar argumentos nessa canção? Sim, exemplos e um argumento maciço de incompatibilidade; o poema ridiculariza a pretensão do déspota a ser um segundo Napoleão, quando não passa de seu símio. Mas o argumento não é marcado, pois, como quer a lei do gênero, a canção é paratáctica, ou seja, sem nexos lógicos expressos; por exemplo, o assíndeto do § 2: entrou ... saiu. Pergunta: Napoleão III foi realmente esse tirano abjeto e sanguinário? Seria bom matizar. Principalmente porque, em matéria de tirania, houve tanta gente mais competente depois dele que chegamos a pensar que o poeta talvez tenha desperdiçado talento. Mas, em retórica, o que importa é o talento.

Capítulo VIII

Como identificar os argumentos?

Como identificar os argumentos que contribuem para tornar persuasivo um discurso? Para responder, utilizaremos a classificação do Traité de I 'argumentation [Tratado da argumentação (TA)] de Perelman-Tyteca. A bem da verdade, já encontramos uma classificação dos argumentos, a de Aristóteles, que os divide em: indutivos (exempio) e dedutivos (entimema); será preciso criar mais uma? Sim, porque Aristóteles não trata da forma da argumentação, da relação entre as premissas. O TA, ao contrário, estuda o conteúdo das próprias premissas, define tipos de argumentos (lugares) que permitem propor uma premissa, mais precisamente uma premissa maior, à qual se pode depois subsumir o caso em questão. Por exemplo, a frase de Leibniz: Tendo cuidado dos pássaros, Deus não negligenciará as criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras ... (in TA, p.456)

é um entimema que se baseia numa premissa maior implícita: o que Deus concede às criaturas insignificantes também concede 1s criaturas nobres; premissa maior validada por um argumento afortiori; O TA distingue então quatro tipos de argumentos: - os quase lógicos, do tipo "um tostão é um tostão"; _ os que se fundam na estrutura do real, como o argumento a

fortiori - os que fundam a estrutura do real, como a analogia;

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INTRODUÇÃO À RET6RICA

- os que dissociam uma noção, como o distinguo entre a aparência e a realidade.

Por isso, utilizaremos essa riquíssima análise, mas indo além do simples resumo. Tentaremos contribuir com exemplos de nossa lavra e, eventualmente, com críticas.

Os elementos do acordo prévio Vimos que não há argumentação possível sem algum acordo prévio entre o orador e seu auditório. Quais são os elementos, as "premissas comuns" (TA, § 15), implícitas ou explícitas, que constituem esse acordo?

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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As verdades são ainda menos diretas; são nexos necessários, como e = 1/2 GP, ou então são prováveis, como uma lei tendencial. As presunções têm função capital, pois constituem o que chamamos de "verossímil", ou seja, o que todos admitem até prova em contrário. Por exemplo, não está provado que todos os juízes são honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se alguém desmente em tal ou tal caso, cabe-lhe o ônus da prova. O verossímil é a confiança presumida. Em todo caso, a presunção varia segundo os auditórios e as ideologias. Assim, para um conservador, o costume não precisa ser justificado, e sim a mudança. Para um liberal, o que não compete justificar é a liberdade, mas sim a coerção. Para um socialista, a igualdade é de direito, cumprindo justificar a desigualdade. O orador, portanto, precisa conhecer as presunções de seu auditório.

Fatos, verdades, presunções O acordo repousa primeiramente sobre fatos, e fatos já são argumentos. Por exemplo, um jornalista que quer mostrar o caráter "antidemocrático" de nosso ensino cita uma estatística: 25% dos jovens franceses concluem o curso secundário, contra 75% de americanos (Vial, Le Monde, 4 de janeiro de 1985). No entanto, a noção de fato está longe de ser clara. O que é fato? A única resposta possível é: uma verificação que todos podem fazer, que se impõe ao auditório universal, que parece ser o caso de nosso "fato estatístico". Contudo, como todo argumento, o fato pode ser contestado. Como? Primeiramente recorrendo a pessoas competentes: especialistas mostraram que o fato em questão é apenas aparente, assim como se provou que não é o Sol que gira em tomo da Terra. Depois, mostrando que o fato em questão é incompatível com outros fatos, comprovados. Finalmente, contestando o valor argumentativo do fato, sua "interpretação"; em nosso exemplo, diremos que o nível do diploma do término do curso secundário nos Estados Unidos nada tem que ver com o de nosso baccalauréat, que ele não permite entrar na universidade, etc.

Os valores e o preferível Os valores estão simultaneamente na base e no termo da argumentação. Mais ainda que os fatos, variam segundo o auditório. É certo que há valores universais, mas estes são formais; toda sociedade admite o justo e o belo, mas com conteúdos bem diferentes. De qualquer modo, essa pretensão ao universal é, em si mesma, um argumento; quem grita: "Franceses primeiro!" dirá que "isso é justo". Será então preciso renunciar aos juízos de valor para atingir a objetividade? Nos domínios da argumentação - jurídico, político, estético, ético, etc. - é impossível, pois neles todas as questões (inocente ou culpado; útil ou nocivo; belo ou feio; bem ou mal) são formuladas em termos de valor. Digamos que, assim como os fatos, os valores são presumidos; todos admitem sem provas, h9je em dia, que o desemprego é uma calamidade, e a quem sustentasse umjuízo de valor contrário competiria provar. Perelman-Tyteca distinguem dois tipos de valores. Os valores abstratos, como a justiça ou a verdade, que se fundam na

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INTRODUÇÃO A RET6RICA

razão; assim: "Devemos preferir a verdade aos amigos" (Aristóteles). E os valores concretos, como França, Igreja, que exigem virtudes como obediência, fidelidade: prefiro minha mãe à justiça, dizia Camus. Um mesmo argumento pode combinar esses dois tipos: "Todos os homens são iguais porque são filhos de Deus." Na verdade, quem diz valores diz hierarquia de valores. Assim, prefere-se o justo ao útil, acredita-se ser melhor sacrificar o cão que seu dono (Malebranche).

Os lugares do preferível Como justificar as escolhas? Recorrendo a valores ainda mais abstratos, que o TA denomina lugares do preferível. Esses lugares expressam um consenso generalíssimo sobre o meio de estabelecer o valor de uma coisa. Podem ser divididos em três espécies. 1) Lugares da quantidade: é preferível aquilo que proporciona mais bens, o bem maior, o mais durável, ou ainda o que propicia o "mal menor". Por essa óptica, o normal- no sentido do mais freqüente - determina a norma, o obrigatório; assim, expressões como "É isso o que todos fazem", "isso o que todos pensam", são dadas como argumentos, e, assim como Sócrates em Górgias, é preciso uma contra-argumentação para dissociar a norma do normal. 2) Os lugares da qualidade têm sentido contrário. À pergunta "De que vale o que não é eterno?", responde-se "Estimese tudo aquilo que não será visto duas vezes." Desse modo, o único passa a ser o preferível; enquanto se despreza o banal, o intercambiável, " a sociedade de consumo", valoriza-se o raro, o precário, o insubstituível. A norma já não é o normal, é o original, até mesmo o marginal, o anômalo. 3) Os lugares da unidade de algum modo sintetizam os dois anteriores: o que é um, ou efeito de um único, é por isso mesmo superior. Na hierarquia do ser, Platão coloca bem embaixo o "múltiplo" (ta polia), com que a "multidão" (oi polloi) se

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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preocupa; quanto mais o sábio se eleva, mais se aproxima do uno, do ser verdadeiro, do valor absoluto. Descartes (cf. texto 8) afirma que as obras perfeitas são aquelas em que "uma única pessoa trabalhou". Excelente exemplo do lugar da unidade é o famoso título de Bossuet Variações das Igrejas protestantes, que por si só é uma refutação do protestantismo: se ele fosse verdadeiro seria único. Na verdade, o argumento também valeria contra o cristianismo ... A nosso ver, os outros lugares identificados pelo TA se integram nos acima descritos, ou deles derivam: o lugar da ordem pertence ao da unidade; o lugar do existente, ao da quantidade (o que existe é superior à "quimera"); o lugar da essência, ao da qualidade: superioridade do essencial em relação ao acidental, ao fortuito; fala-se assim, por exemplo, de um "belo caso" para se referir a uma doença interessante.

Figuras e sofismas concernentes ao acordo prévio Segundo o TA, certas figuras contribuem para reforçar o acordo prévio: figuras de escolha, como a definição oratória; figuras de presença, como a epanalepse e principalmente a hipotipose, que faz do espetáculo um argumento e do argumento um espetáculo; figuras de comunhão, como a alusão, a pergunta retórica, etc. Cabe mencionar, finalmente, dois sofismas referentes ao acordo prévio. O primeiro é a ignoratio elenchi, ignorância do contra-argumento oposto, ou ainda do verdadeiro assunto de debate. Esse sofisma pode ser voluntário e tático, ou então passio'nal: "Discute-se acaloradamente, e muitas vezes um não entende o outro" (Port-Royal, p. 243). Essa ignorância é um erro de argumentação, pois contribui para impossibilitar o debate. O segundo sofisma, ainda mais corrente, é a petição de princípio. tSegundo o TA, não se trata de um argumento, mas de um "erro de argumentação" (p. 153), que consiste em argumentar como se o auditório admitisse a tese que se está tentando levá-lo a admitir, quando, justamente, ele não a admite! Mas,

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

assim definida, a petição de princípio se reduz a um erro psicológico. O dicionário Lalande dá uma definição mais objetiva disso, que se refere na realidade à argumentação: "Tomar por admitida, sob forma um tanto diferente, a própria tese que se quer demonstrar." Segundo a Lógica de Port-Royal, Aristóteles, ao querer provar que a Terra é o centro do mundo, teria cometido uma petição de princípio. Diz ele: A natureza das coisas pesadas é tender para o centro do mundo. Ora, a experiência nos mostra que as coisas pesadas tendem para o centro da Terra. Portanto, o centro da Terra é o centro do mundo.

A premissa maior desse silogismo na verdade não passa de uma petição de princípio. Pois como Aristóteles sabe que as coisas pesadas tendem para o centro do mundo? Ele simplesmente acredita nisso, e acredita porque acha que a Terra é o centro do mundo, o que seria preciso provar!

Primeiro tipo: argumentos quase lógicos

O TA começa com um grupo de argumentos que denomina quase lógicos. Essa expressão pode surpreender, pois afinal um argumento é lógico ou não é! Mas sabemos que a argumentação rejeita a lei do tudo ou nada. Na realidade, cada um dos argumentos quase lógicos é aparentado com um princípio lógico, como a identidade ou a transitividade; e, assim como eles, são a priori, no sentido de que não fazem apelo à experiência. Mas, ao contrário dos princípios lógicos da demonstração, podem ser todos refutados demonstrando-se que não são "puramente lógicos" (cf. § 45 s.).

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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bilidades, que variam segundo os meios e as culturas. Assim, ser comunista e funcionário público aparece como incompatível em certas democracias ocidentais, mas não em outras. Em todo caso, a argumentação refutará essa tese mostrando que ela é incompatível com alguma outra. Pode-se rejeitar esse argumento de duas maneiras: lógica, dissociando os conceitos por distinguo; empírica, buscando uma conciliação pela ação. Exemplo de resolução lógica: um professor ensina às crianças que é preciso obedecer aos pais, e que não se deve mentir. Mas o que fazer quando o pai manda mentir? Pode-se mostrar que só há incompatibilidade quando a regra subentende "sempre" com obedecer e "nunca" com mentir. Ou ainda, que a obediência a uma ordem injusta não é obediência. A incompatibilidade está vinculada à retorsão, que consiste em retomar o argumento do adversário mostrando que na verdade este é aplicável contra ele mesmo. Aos adversários que, em 1789, negam que os deputados devam assumir o nome de "representantes do povo", Mirabeau retorque assim: adoto, defendo e proclamo [essa qualificação] pela mesma razão que leva a combatê-la! Sim, é porque o nome de povo não é suficientemente respeitado na França, porque está deslustrado, coberto pela ferrugem do preconceito (... ) que devemos nos impor a tarefa de não só alçá-lo como também de enobrecê-lo. (16 de junho de 1789)

O caso mais célebre é a autofagia, argumento que consiste em mostrar que o enunciado do adversário se destrói por si mesmo: Aos positivistas que afirmam que toda proposição verdadeira é analítica ou de natureza experimental, perguntaremos se o que eles acabam de dizer é uma proposição analítica ou experimental. (TA, p. 275)

Contradições e incompatibilidade: o ridículo

A contradição pura, do tipo "é branco e não branco", é raríssima na argumentação, que não pode recorrer à prova por absurdo. O que se encontra, em compensação, são incompati-

O ridículo está para a argumentação assim como o absurdo está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompatibilidade, e a ironia é a figura que condensa esse argumento pelo riso:

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No momento em que, num teatro de província, o público se preparava para cantar A Marselhesa, um policial sobe no palco para anunciar que é proibido tudo o que não consta do cartaz: "E você, interrompe um dos espectadores, está no cartaz?" (TA,p.274)

Observe-se que, quando a incompatibilidade é nociva por exemplo com a negação das câmaras de gás -, ela já não é ridícula, porém odiosa. O ridículo é o odioso desenvenenado, que não provoca escândalo, porém riso.

Identidade e regra de justiça Outros argumentos fazem apelo ao princípio de identidade, A é A, mas sem se reduzirem a ele. Expressões como Mulher é mulher, Negócios são negócios são pseudotautologias, pois o atributo não tem exatamente o mesmo sentido do sujeito: mulher - ser feminino - é mulher - ser frágil, enganador, etc.! Mas é dificil refutar a aparência de identidade. Na identidade baseiam-se a regra de justiça: tratar da mesma maneira os seres da mesma categoria; o precedente: a admissão de um ato autoriza a cometer atos semelhantes; a reciprocidade: Olho por olho. Argumentos "quase" lógicos apenas, pois a expressão "mesma categoria" é problemática. Por exemplo, num exame: "X recuperou-se com 9,5; por que não Y, que teve 9,7?" Admitir isso é estabelecer a média em 9,5, e excluir qualquer deliberação. Outro exemplo: "O que é honroso aprender também é honroso ensinar" (Quintiliano, citado p. 298); mas aprender e ensinar são realmente recíprocos?

Argumentos quase matemáticos: transitividade, dilema, etc. Outros argumentos quase lógicos apóiam-se em fórmulas matemáticas. Assim é a transitividade: Os amigos de meus ami-

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gos são meus amigos, que se pode até desenvolver algebricamente:

+ x + = + Os amigos de meus amigos são meus amigos. + x - = - Os amigos de meus inimigos são meus inimigos. - x + = - Os inimigos de meus amigos são meus inimigos. - x - = + Os inimigos de meus inimigos são meus amigos. Este último argumento foi empregado por Churchill em 1941: quando a Alemanha invadiu a URSS, ele proclamou que esta era sua aliada. No entanto, a relação não é realmente lógica: pode-se detestar o amigo do amigo por uma questão de ciúme. Digamos que o argumento incita a presumir confiança. Já que você é amigo de meu amigo, vou tratá-lo como tal. Outro argumento é a divisão: divide-se um todo - a tese por provar - em partes, e, depois de mostrar que cada uma delas tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem essa mesma propriedade. Esse argumento só é rigoroso quando o todo e as partes são homogêneos; assim, o lugar Quem pode o mais pode o pouco só vale se o poder é de natureza idêntica: o médico pode tanto quanto a enfermeira no campo dela? Na divisão repousa o dilema, raciocínio que prova que os dois termos de uma alternativa levam à mesma conseqüência, sendo esta a tese. Ainda é preciso que a alternativa seja realmente uma alternativa! "É branco ou não branco" é uma alternativa lógica; "É branco ou preto" não é, a menos que se tenha provado que as cores intermediárias estão excluídas. Vejamos o seguinte dilema: Por que vos fazer uma repreensão? Se fordes honestos, não a merecereis; se fordes desonestos, ela não vos perturbará! (Retórica a Herênio, IV, 52)

Esse dilema só seria rigoroso se os dois termos - honesto, desonesto -tfossem os únicos, e não se pudesse ser um e outro ao mesmo tempo; um pouco de um, um pouco de outro ... O argumento ad ignorantiam mostra que todos os casos possíveis devem ser excluídos, salvo um, que é justamente a

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tese por provar, cuja admissão se pede por falta de coisa melhor; mostra-se que todos os candidatos a um posto são inaceitáveis, salvo um (o próprio), ao qual se concederá então o beneficio da dúvida. Esse argumento é muito útil em casos de urgência; aparece com freqüência na "moral provisional" de Descartes.

Definição

o TA

dedica à definição um longo estudo que aqui interpretaremos livremente (cf. TA, § 50). Definição é um caso de identificação, pois com ela se pretende estabelecer uma identidade entre o que é definido e o que define, de tal modo que se tenha o direito de substituir wn pelo outro no discurso, sem mudar o sentido, de dizer tanto homem quanto animal racional. Na realidade, essa identidade só é perfeita nas línguas artificiais - como a álgebra - ou ainda para os termos técnicos: peças de máquinas, por exemplo. Na argumentação, consideraremos quatro tipos de definição. 1) Normativa, que na verdade é wna denominação, pois impõe como convenção o uso de wna palavra, como por exemplo o termo falsificar na epistemologia de Popper. Não é nem verdadeira nem falsa; basta ater-se a ela em toda a argumentação. 2) Descritiva (ou "real"), que pretende enunciar o uso sentido corrente - do termo definido. Falsificar já não tem o sentido de Karl Popper, mas o do dicionário: "Alterar voluntariamente com intuito de fraudar." A definição descritiva pode então ser verdadeira ou falsa; falsa se não descrever realmente ouso. 3) Condensada, definição descritiva que se restringe às características essenciais: "Entendo por universidade a instituição que associa pesquisa fundamental a ensino superior." Omite grande número de coisas, como a formação dos adultos. 4) Oratória (cf. p. 233), definição imperfeita, pois o que define e o que é definido não são realmente permutáveis: "Guerra é toda a nação num esforço de vitória."

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Na realidade, toda definição é wn argumento, pois impõe determinado sentido, geralmente em detrimento dos outros. Torna-se perigosa e abusiva quando, sendo apenas normativa, tende-se descritiva; quando, sendo condensada ou oratona, pretende-se completa. Assim, no texto 6, veremos que Millner passa sem aviso prévio de: "Entendo por escola" para "a é isto" e depois: "Só é isto." Em sendo wn argumento, a propna definição deveria ser argumentada.

Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do real Os argumentos do segundo tipo já não se apóiam na lógica, porém na experiência, nos elos reconhecidos entre as coisa.s. Aqui, argwnentar já não é implicar, é explicar: "O diz isso porque tem interesse em dizê-lo" (argumento ad homlnem). Inversamente, estima-se que, quanto mais fatos wna tese explicar, mais provável será ela.

Sucessão, causalidade, argumento pragmático Pode-se argumentar constatando wna sucessão constante nos fatos, e deles inferindo um nexo causal; se um exército sempre tem excelentes informações sobre o inimigo, infere-s: que seu serviço de inteligência é e sera assim. Mas não se trata de uma demonstraçao cIentIfIca. Em primeiro lugar, o argumento é apenas provável, e o sofisma está sempre à espreita: post hoc, ergo propter hoc, "seqüência, portanto conseqüência". O mais importante é que o argwnento na verdade quer estabelecer wnjuízo de mostrar o valor do efeito a partir do valor da causa, ou o mverso. Assim, {m nosso texto 7, Corneille, a partir do valor da poesia, conclui pelo valor do autor. O argumento pragmático deriva disso: é "o argumento que permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis" (TA, p. 358). Por exemplo, que outra boa razão se teria para adotar uma lei, a não ser o conjunto de beneficios que dela se pode esperar (A. Smith)? O argumento pragmático goza de tal verossimilhança que de imediato presume confiança. Em outras palavras, a quem o contestar incumbirá justificar. Se digo: é preciso ser sincero, mesmo que disso muitas vezes resultem conseqüências desfavoráveis, cabe a mim defender essa tese, ética, contra o argumento pragmático. Sobre ele o utilitarismo funda seus valores pois afirma que é bom o que é útil à maioria; sobre ele o matismo funda a verdade: verdade é a crença que nos presta serviço. Suas fraquezas? Em primeiro lugar, geralmente ele opta pelas conseqüências; o banqueiro falará da rentabilidade de um investimento, e não de sua segurança. Importante: esse argumento elimina os valores superiores: só porque triunfa, uma causa é boa? Finalmente, como Sócrates objetava a Górgias (texto 1): o que é realmente útil ou realmente nocivo? O argumento pragmático só é válido quando já se sabe isso, ou então quando não se tem outro meio de conhecer esse realmente.

Finalidade: argumento de desperdício, de direção, de superação A finalidade, rejeitada pela ciência, desempenha papel capital nas ações humanas, e dela é possível extrair vários argumentos, todos fundados na idéia de que o valor de uma coisa depende do fim cujo meio é ela, argumentos que não exprimem o porquê, mas o para quê. Diz Polieuto de sua mulher, inda pagã: Tem virtudes de mais para não ser cristã!

afirmando assim que, se não se tornasse cristã, suas virtudes de nada serviriam, seriam meios maravilhosos para um fim ine-

('OMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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xistente. É o argumento do desperdício: declara-se que é preciso continuar a guerra porque, caso contrário, todos os mortos teriam tombado em vão; que é preciso continuar a emprestar aos países superendividados, caso contrário a bancarrota deles anularia qualquer possibilidade de quitação; ou ainda que todos têm o dever de empregar seus "talentos" inatos; que é preciso votar para não deixar de expressar sua opinião, etc. O argumento de direção consiste em rejeitar uma coisa mesmo admitindo que em si é inofensiva ou boa - porque ela serviria de meio para um fim que não se deseja. Quando se argumenta que o salário dos escrivães é baixo demais, o contra-argumento é que todas as categorias de funcionários iriam exigir aumento. É o argumento da reação em cadeia, da perda do controle: se você ceder desta vez aos terroristas... Em que esse argumento se distingue do argumento do precedente? O precedente fundamenta um direito, enquanto a direção prevê um fato. No argumento da superação, ao contrário, a finalidade desempenha papel motor. Ele parte da insatisfação inerente ao valor: nunca ninguém é bom demais, justo demais, desinteressado demais. O ideal inacessível mostra em cada conquista um trampolim para uma conquista superior, num progresso sem fim. O obstáculo transforma-se então num meio de passar para um estágio superior, como a doença que imuniza, o fracasso que educa. "Perfeito é o oposto de aperfeiçoar", dizia P. Valéry; aqui, opta-se pelo aperfeiçoamento ao infinito, pelo melhor contra o bom. A hipérbole, convém lembrar, é a figura que condensa esses dois argumentos. É o que acontece na seguinte piada: diante de todos os jornalistas, o Presidente atravessa o Sena andando sobre as águas. Um grande jornal de oposição traz como manchete no dia seguinte: "O Presidente não sabe nadar!" [email protected]: ele poderia fazer qualquer coisa, nunca estaria bom. A anedota dramatiza o "qualquer coisa". A epítrope também é argumento de direção levado ao extremo: Eis aqui sangue, vem beber. .. Duas observações sobre a finalidade. A primeira é que acontece criá-la para atender às necessidades da causa, como

um

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INTRODUÇA-O A RET6RICA

quando se invoca um "perfil do posto" que foi traçado em função do candidato que se quer nomear, ou se inventam "objetivos da guerra" bem depois que a guerra começou. A segunda é que um contra-argumento eficaz consiste em mostrar que o valor invocado não passa de meio: ele só estuda para ganhar mais, só está apaixonado para ganhar o dote ... O para destrói o valor. É o argumento pragmático ao inverso.

Coexistência: argumento de autoridade, argumento "ad hominem " Pode-se extrair o argumento de uma relação de coexistência entre as coisas. O TA dá a esse termo um sentido muito forte: relação do atributo com a essência, ou ainda dos atos com a pessoa. O argumento da essência consiste em explicar um fato ou em prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele. Quem bebeu beberá; em outras palavras, sua essência é ser - ou ter-se tomado - ébrio. A essência explica o que um grande número de casos tem em comum: "Todos esses monumentos são do século XIX, logo... "A essência pode ser estética (o gótico), política (a democracia ocidental), etc. Em ciências humanas, o "tipo ideal" é uma essência explicativa e heurística: "o operário fiandeiro dos vales de Vosges". É certo que esse operário nunca existe em "estado puro", mas o "estado puro", a essência, permite identificar e classificar muitos indivíduos, determinando-se seus desvios em relação a esse estado. Finalmente, a essência tem alcance ético; é a partir dela que se argumenta para fazer a distinção entre uso e abuso, entre suficiente e demasiado. A prosopopéia é a figura correspondente: são as leis "em si", "em pessoa", portanto em sua essência, que falam a Sócrates. O argumento de pessoa é uma aplicação do argumento acima. Baseia-se no nexo entre a pessoa e seus atos, nexo que permite presumir os atos dizendo que se "conhece a pessoa", julgálos dizendo que "são típicos dela", que "ela não vai mudar".

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Essa estabilidade da pessoa fundamenta sua responsabilidade: É ele que... ; falta saber se o ele é exatamente o mesmo ele de cinqüenta anos atrás, como nos processos por crime de guerra ... Mas o importante é que a identidade, conquanto fundamente a responsabilidade, também apresenta o risco de destruí-la, pois ser responsável é ser livre, logo poder ser diferente; se a identidade não pode ser mudada, toma-se fatalidade: sou assim, portanto uma desculpa. Em todo caso, no argumento de pessoa baseiam-se dois argumentos muito conhecidos. O argumento de autoridade (§ 70) justifica uma afirmação baseando-se no valor de seu autor: Aristoteles dixit, Aristóteles disse. Argumento muito desacreditado no mundo moderno, injustamente porém. Primeiro, ele nada tem que ver com dogmatismo: todo argumento pode ser dogmático, conforme seja usado; o de autoridade é uma "técnica" como outra qualquer. Depois, essa técnica - quer sejamos tradicionais, quer inovadores - muitas vezes é indispensável. Em que se baseia a autoridade? Na vida comum, baseia-se na moralidade: "Se foi ele que disse, pode-se acreditar." Em política, baseia-se no passado sério do candidato, ou até mesmo glorioso: foi assim que em 1940 confiou-se em Pétain, mas também, depois, em de Gaulle ... Em religião, baseia-se na revelação. Bossuet diz de Jesus: Não busquemos as razões das verdades que ele nos ensina: toda a razão é que ele falou. (In TA, p. 415).

A ciência parece excluir o argumento de autoridade. No entanto, ele está sempre presente: Lei de Joule; como mostra a experiência de X; isso porque o pesquisador não pode descobrir nem verificar tudo, precisa confiar em alguém. E em filo. sofia? Como diz Nietzsche; já não se pode afirmar depois de 'J Freud... ; Heidegger ensinou que... Na verdade o mais racionalista dos filósofos não pode encontrar tudo sozinho, partindo do zero eomo Descartes ... Finitude do pesquisador, do pensador. Ignorá-la seria o pior dogmatismo. . Pode-se contraditar o argumento de autoridade com técnicas de ruptura. Através de fatos por exemplo, mas estes tam-

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

bém são estabelecidos por uma autoridade; assim, em estatística, quem tem a palavra é o IBGE. Através de outra autoridade: pode-se opor Marx a Lênin, a Bíblia à Bíblia. Então, já não é a autoridade que decide, é a razão que escolhe; mas escolhe outra autoridade. O argumento ad hominem é o argumento de autoridade invertido. Consiste em refutar uma proposição recorrendo a uma personalidade odiosa: "Era o que dizia Hitler!" Ou então ressaltando as fraquezas de quem o enuncia: Se ele afirma isso é porque tem interesse ... como podem acreditar, se ele escreve no Le Figaro (ou no L'Humanité)? Argumento vil, que no fundo implica certa violência, obstando a qualquer raciocínio. Já se disse que a moralidade de Euclides não prova nada a favor nem contra sua geometria! No entanto, na falta de outras informações, a argumentação deve utilizá-lo: se alguém me recomendar um candidato, posso perguntar-me se essa pessoa está sendo movida por algum interesse ou por alguma paixão. A apodioxe exprime o argumento ad hominem: não é a você que compete nos ensinar! Os nexos simbólicos são outra estrutura do real, fundamentada na pertinência, mas de ordem puramente social e cultural, pois os símbolos mudam segundo o meio. O símbolo cruz, crescente, cores do time ou do partido, heróis históricos ou lendários, etc. - exprime de modo afetivo, para não dizer sagrado, os laços entre indivíduos e comunidade. Muito comuns na argumentação, os nexos simbólicos estão ligados sobretudo ao patos: honre seu distintivo, respeite sua bandeira, filhos de Joana D' Arc, herdeiros de Danton, etc. Todo orador deve levar em conta os símbolos de seu auditório se não quiser falar no vazio.

Duplas hierarquias e argumento "a fortiori " Das estruturas do real extrai-se um argumento muito complexo, porém muito eficaz, a dupla hierarquia, que consiste em estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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cada um deles aos de uma escala de valores já admitida. Por exemplo, se quisermos saber a importância que um jornal atribui às diversas notícias, compararemos o corpo respectivo dos títulos dedicados a cada uma delas. Aristóteles prova assim o "preferível", utilizando a coexistência sujeito-atributo:

o que pertence ao melhor ser é o preferível; por exemplo, o que pertence a um deus é preferível ao que pertence a um homem; o que pertence à alma é preferível ao que pertence ao corpo. (Tópicos, m, 116 b) A dupla hirarquia pode ser assim esquematizada: pertence aos deuses> aos homens; à alma> ao corpo: LOGO: eudemonismo (bem-aventurança) > felicidade; alegria> prazer. ARGUMENTO:

Mesmo esquema para o discurso de Antígona a Creonte: Não acreditei que teus editos pudessem suplantar as leis não escritas e imutáveis dos deuses, pois não passas de um mortal.

dos deuses> tu, mortal: suas leis não escritas> teus editos.

ARGUMENTO: LOGO:

A primeira hierarquia serve, portanto, para valorizar um termo da segunda: as leis não escritas em relação a teus editos. Na dupla hierarquia baseia-se o argumento a fortiori, ou "com maior razão", como na frase de Leibniz: Tendo cuidado dos pássaros, Deus não negligenciará as criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras ... (in TA, p.45f5)

criaturas racionais (mais caras) > pássaros: cuidados futuros> cuidados passados.

ARGUMENTO: LOGO:

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

Naturalmente, a argumentação só funciona se o auditório estiver de acordo com a primeira hierarquia, que serve de argumento; se ele puser os deuses acima dos homens, a alma acima do corpo, o homem acima dos pássaros. Isso se observa neste argumento de Cícero, extraído de Pro Milone: Se temos o direito de matar o ladrão, com mais razão o assassino,

argumento que inverteríamos hoje em dia: se não temos o direito de matar o assassino, menos ainda o ladrão; por exemplo, na legítima defesa. Portanto, pode-se refutar uma dupla hierarquia de duas maneiras. Primeiramente contestando o nexo entre as duas hierarquias. Assim, à frase de Hermíone: Se o amava inconstante, quanto mais fiel!,

pode-se opor o argumento de que os graus do amor não são diproporcionais ao grau de valor do ser amado, que talvez seja porque Pirro a tortura que ela é louca por ele. Depois, contestando a hierarquia de valores supostamente admitidas. Assim, em O misantropo, a "pudica" Arsínoe repreende a leviandade de Celimena e afirma:

E só tem amantes aquela que os quer ter.

E Celimena, taco a taco: Tenha-os então, Senhora!

Hierarquia de Arsínoe: nenhum amante> muitos amantes: mulher pudica> mulher leviana.

ARGUMENTO: LOGO:

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Hierarquia de Celimena: muitos amantes> nenhum amante: mulher leviana> mulher pudica.

ARGUMENTO: LOGO:

Como se vê, elas se opõem não só pela hierarquia mas também pela interpretação dos fatos. Para uma, se a outra tem amantes é por ser leviana ou fácil. Para a outra, é por ser bonita, enquanto sua adversária não os tem porque não é. A graça está na presteza da réplica, que inverte os valores inesperadamente.

Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a estrutura do real Os argumentos do terceiro tipo também são empíricos, mas não se apóiam na estrutura do real: criam-na; ou pelo menos a completam, fazendo que entre as coisas apareçam nexos antes não vistos, não suspeitados.

Exemplo, ilustração, modelo No TA o exemplo tem papel bem mais restrito que em Aristóteles; é o argumento que vai do fato à regra. Assim, nos Estados Unidos alega-se que certo jomaleirozinho ficou bilionário, para dizer que qualquer um pode ser bilionário (cf. § 78 s.). O exemplo reforça a regra por: 1) ser diferente dos que o sugeriram; 2) ser independente dos outros exemplos. Assim, Descartes (texto 8) parte de cinco exemplos completamente diferentes para chegar à sua regra. Como invalidar um exemplo? Com um outro, que o contradiga; a catedral, obra de uma multidão de homens, porém esplêndida, invalida a regra de que as obras perfeitas são as de um só homem. Mas pode-se responder de duas maneiras. Primeiro, restringindo o campo da regra: ela vale para as casas, não para as igrejas! Depois, prevendo a exceção que se julga

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INTRODUÇÃO A RET6RICA

infirmá-Ia; assim, o milagre não desmente em nada o determinismo da natureza, caso contrário deixaria de ser milagre. Mas a "extrapolação" a partir do exemplo é sempre contestável; pode infirmar uma regra universal, e não prová-la. A ilustração é um exemplo que pode ser fictício e cuja função não é provar a regra, mas dar-lhe "presença na consciência" e reforçar assim a adesão (§ 79). A ilustração pode ir de uma simples palavra - essa raposa - até uma obra, como 1984 de Orwell. Note-se que nem sempre é fácil distinguir a ilustração da analogia. Vejamos o texto de Epiteto (in TA, p. 486): São as dificulades que revelam os homens. Por isso, quando surgir uma dificuldade, lembra-te de que Deus, como um mestre de ginásio, te pôs às voltas com um parceiro jovem e rude.

Poder-se-ia dizer que as dificuldades têm com Deus a mesma relação que o jovem parceiro tem com o mestre de ginásio: relação de provação. Todavia, a ilustração e o "ilustrado" apresentam-se como duas aplicações particulares de uma mesma regra: a provação é pedagógica; portanto, são do mesmo gênero, ao passo que a analogia implica termos heterogêneos. O modelo é mais que exemplo; é um exemplo dado como algo digno de imitação. O jornaleirozinho não é apresentado como modelo; ninguém pede que se faça como ele, mas diz-se a todos que cada um pode fazer o que ele fez. Em compensação São Paulo, ao dizer "Sede meus imitadores como eu sou do Cristo", está-se apresentando como modelo. O modelo é um argumento? Sim, pois serve como norma; é ele que determina do "afastamento", o "desvio". Pode-se refutar recusando-o (por exemplo, preferir Sócrates a Paulo), mas também mostrando que o adversário não está extraindo dele o verdadeiro sentido:

o pai: Na tua idade Napoleão era o primeiro da classe. O filho: Na tua ele era imperador.

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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o antimodelo indica, muitas vezes de modo fortemente emotivo, o que não se deve imitar: o mau músico, o hilota bêbado, que era exibido diante dos jovens espartanos para levá-los a repugnar o alcoolismo. Fundamenta o argumento a contrario: "Vejam o que X fez; os resultados foram catastróficos." N.B. - Ao estudarmos "O lobo e o cordeiro", tentamos mostrar que as personagens da fábula não são modelos nem antimodelos, mas simplesmente exemplos. Comparação e argumento do sacrificio Quando classificamos a comparação entre os argumentos do terceiro tipo, afastamo-nos do TA, que a coloca entre os argumentos quase lógicos por alegar que a medida é um ato matemático. Nós, porém, alegamos que o que se mede é sempre empírico, e ligamos a comparação ao ato de fundar as estruturas do real. De fato, como se diz em outro trecho da TA (§ 57), ela instaura a relação entre dois termos - maior, mais forte, mais bonito, etc. -, estrutura que a realidade não impõe, e que às vezes é preciso inventar. É por isso, aliás, que certas comparações parecem "deslocadas". Num livro, comparamos a psicologia de Alain à de Théodule Ribot; uma discípula do primeiro achou a comparação ridícula, ainda que ela fosse favorável a Alain! O que a chocou foi o próprio fato de comparar. Por que a comparação é argumento? Por permitir justificar um dos termos a partir do outro ou dos outros. Justifica-se o montante de um salário, uma nota de exame, uma pena, por meio da comparação com outras da mesma categoria. Na realidade, o argumento só é rigoroso se comparar realidades do mesmo gênero, que podem, portanto, ser submetidas ao mesmo estalão: este candidato obteve dois pontos a mais média, este salário é 30% inferior ao estabelecido por lei. Inversamente, quando se comparam realidades heterogêneas, tende-se - muitas vezes erroneamente - a torná-las homogêneas; quando V. Hugo mostra (texto 5) que Napoleão III

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é "pequeno" em relação ao tio, submete-o ao mesmo estalão: a glória militar. Às vezes, a ordem da comparação muda o valor dos termos: "O tio é maior que o sobrinho" e "O sobrinho é menor que o tio" talvez tenham o mesmo sentido, mas não o mesmo alcance argumentativo. Às vezes, põe-se um termo no superlativo para situálo acima de qualquer comparação possível: X lava mais branco. A hipérbole é a figura que condensa esse gênero de argumento. É fonte de grandiosidade, mas também de comicidade: Um fanático de ciências ocultas apoquenta Bernard Shaw: - Ontem à noite a sessão durou três horas; nós estávamos todos cansados, mas finalmente a mesa se mexeu. - Não é de espantar - diz Bernard Shaw -, é sempre o mais inteligente que cede ... (L. Olbrecht-Tyteca, p. 217)

Aplicação de um adágio comparativo a uma situação totalmente heterogênea, e que equivale a dizer: vocês são ainda mais estúpidos que a mesa ... O argumento do sacrificio é um tipo de comparação; consiste em estabelecer o valor de uma coisa - ou de uma causa pelos sacrificios que são ou serão feitos por ela: Só acredito nas histórias cujas testemunhas dariam o pescoço. (Pascal, p. 593, in TA, p. 335)

Note-se que o sacrificio muitas vezes é ambíguo; os sofrimentos dos alemães no fim da guerra foram qualificados de sacrificios pelos hitleristas, de castigo pelos aliados ... em todo caso, o sacrificio serve para provar as qualidades morais de uma pessoa ou de um ato: provo minha sinceridade mostrando que tenho muito o que perder por causa dela! Mas esse argumento não tem cabimento na área econômica ou técnica. Da interferência entre esses dois campos surge a comicidade: Empregador: O senhor está pedindo um salário alto demais para quem não tem experiência. Candidato: Justamente, o trabalho é tão mais dificil quando a gente não sabe como fazer ...

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Analogia e metáfora

Raciocinar por analogia é construir uma estrutura do real que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma semelhança de relações. Em matemática, prova-se assim o valor de um termo por uma igualdade de relações: a/b = c/x; logo x = bc/a. Se 2/3 = lO/x, x = 15. Os quatro termos são diferentes, mas suas relações são idênticas. Na argumentação, as relações são simplesmente semelhantes. Vejamos esta analogia satírica: Hierarquia é como prateleira: quanto mais em cima, menos utilidade.

Ela exibe duas relações. A primeira, o tema, é o que se quer provar, que a hierarquia não serve para quase nada em seu ápice. O segundo, o foro, é o que serve para provar: quanto mais uma prateleira é alta, menos é acessível. O foro é em geral retirado do domínio sensível e concreto, apresentando uma relação que já se conhece por verificação. O tema é em geral abstrato, e deve ser provado. Vejamos esta comparação de Aristóteles, na verdade uma analogia: Assim como os olhos do morcego pela luz do dia, também a inteligência de nossa alma pelas coisas mais naturalmente evidentes. (Metafísica, A, 993 b) TEMA

FORO

A: Inteligência de nossa alma B: As coisas mais evidentes

C: Os olhos do morcego D: A luz do dia

Observa-se que o tema, referente a realidades espirituais, é heterogêneo em relação ao foro, mas a relação - por provar entre A ePB é semelhante à relação conhecida entre C e D: relação de ofuscamento. Semelhante, não idêntica, pois uma é fisica, outra espiritual.

INTRODUÇÃO A RET6RICA

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o TA (p. 505) registra analogias de "três termos", como: o homem em relação à divindade é tão pueril quanto a criança em relação ao homem. (Epiteto) TEMA

FORO

A: O homem B: A divindade

C: A criança D:Ohomem

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COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

De fato, segundo o TA (§ 87), a metáfora é uma analogia condensada que expressa certos elementos do tema ou do foro, omitindo os outros. Aliás, para o próprio Aristóteles a metáfora deriva da analogia (cf. Poética, 1457 b, e Retórica, 1406 b). Tomemos o exemplo de Aristóteles: A velhice é a noite da vida.

A analogia está subjacente: Na realidade, há quatro termos, pois em A homem significa ser humano, em D significa homem adulto. A analogia é sempre um pouco redutora, no sentido de anular tudo o que a relação exclui. Isso acontece até mesmo com as duas analogias acima, apesar de belas e profundas: a inteligência não é só "ofuscada" pela verdade, assim como o homem não é só "criança" diante de Deus; poderiam ser encontradas outras relações. É desse modo que se pode refutar a analogia. Contesta-se que a semelhança de relações seja uma prova: comparação não é razão. No entanto, é mais eficaz trabalhar com o foro: "Se o bispo é seu pastor, vocês não passam de ovelhas." Finalmente, pode-se opor ao foro um outro foro. Vimos como Cícero refuta a idéia de que a figura retórica seja ornamento: replica que ela não é um "cosmético", mas uma "cor" proveniente do saudável afluxo de sangue. O que nos parece capital nessa teoria da analogia é a distinção entre ela, o exemplo e a comparação, afirmando que a analogia sempre lida com realidades heterogêneas ou, na língua de Greimas, com "isotopias" diferentes. A prateleira não é do mesmo gênero da hierarquia, nem o morcego é do mesmo gênero da inteligência! Por isso, a analogia não é uma comparação, que dá ensejo à contagem e à medida. Contudo, parece que o TA não dá conta do raciocínio por analogia dos juristas, que lida com realidades homogêneas: leis, delitos ... Em todo caso, afirmar que a analogia é uma semelhança entre relações heterogêneas já tem uma grande vantagem: explicar a estrutura e a função argumentativa da metáfora.

TEMA

FORO

A: A velhice B:Avida

C: A noite D:Odia

Em suma, a velhice está para a vida como a noite está para o dia. Mas um dos quatro termos foi omitido na metáfora. Na metáfora in abstentia dois termos foram omitidos: A noite da vida (para a velhice). Como mostramos no capítulo VI, a metáfora condensa um símile (A velhice é como a noite da vida), que pode ser explicado como analogia: a velhice é para a vida o que a noite épara o dia. A nosso ver, só haverá metáfora se a analogia lidar com dois termos heterogêneos, como idades e horas. Mostramos que uma metáfora não pode derivar de uma comparação simples, nem mesmo de uma dupla hierarquia; esta só daria metonímias, como Onipotente para Deus, bem-aventurados para os eleitos. Por que a metáfora é argumento? Por condensar uma analogia. Mas nesse caso ela não é menos convincente do que seria a própria analogia? De modo mais geral, essa teoria da metáfora não será redutora, como acha Paul Ricoeur, por esvaziar tudo o que a metáfora comporta de poesia, de invenção? A essas duas perguntas pode-se responder que a metáfora não é menos convincente, porém mais que a analogia, precisamente pela mistura que opera entre foro e tema, tornando perceptível a união dos termos heterogêneos. Por exemplo, quem quiser tranqüilizar um idoso angustiado pela morte pode dizer: Morrer é dormir, condensando nessa metáfora a seguinte analogia:

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

TEMA

FORO

RELAÇÃO

A: Morrer B: Viver

C: Donnir D: Estar acordado

Resultado natural: repouso após o cansaço

Mas a metáfora é mais convincente por ser redutora, por traduzir semelhança em identidade; ao dizer é em vez de "é como dormir", ela anula as diferenças: que a morte é o "último" sono. Conseqüência: só se refuta realmente uma metáfora com outra. Assim, para refutar a nossa, a de Hamlet: To die, to sleep! To sleep, perchance to dream ...

Esse sono poderia ser povoado por sonhos, por pesadelos! Do mesmo modo, Jean Château replica aos partidários da "escola aberta para a vida": "Escola não é prisão, é cidadela"; em resumo, corrigindo o foro': TEMA

FORO I

FORO 11

A: Escola B: Alunos

C: Prisão D: Prisioneiros

Cidadela Protegidos

A relação não é mais de cativeiro, porém de proteção. A metáfora argumenta estabelecendo contato entre dois campos heterogêneos: o segundo, o foro, introduz no primeiro uma estrutura que não aparecia à primeira vista. Mas é redutora por ressaltar um elemento comum em detrimento dos outros, por ressaltar uma semelhança mascarando diferenças. Finalmente, ao aproximar dois campos heterogêneos, a metáfora muitas vezes cria um verdadeiro fluxo entre os dois, invocando outras metáforas em número indefinido. Assim, basta fazer uma aproximação com encaminhamento para que sUIjam: progresso, progressão, providência, método (caminho pelo qual se atinge um objetivo), objetivo, erro, desvio, dedução, conduzir meus pensamentos (Descartes), etc. 2 • Como se vê, a metáfora é, por excelência, a figura que fundamenta as estruturas do real.

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Quarto tipo: argumentos por dissociação das noções Absurdo ou "distinguo" Os argumentos do quarto tipo (cf. TA, § 89 s.) consistem em dissociar noções em pares hierarquizados, como aparência/realidade, meio/fim, letra/espírito, etc. Distinguem-se assim de todos os outros argumentos, que associam as noções. É verdade que todos esses outros argumentos ser recusados por uma "técnica de ruptura", mas esta se hmIta a manter separado aquilo que o adversário pretendia unir: "Não é uma identidade", "essa analogia não é válida", etc. Neste caso trata-se de uma ruptura não concreta, pois é o discurso que a cria; onde se via uma realidade, surgem duas, a aparente e a verdadeira. É o que faz a máxima de Severo, em Polieuto (Iv, 6): A seita dos cristãos não é o que se pensa.

Em seguida, a dissociação modifica profundamente as realidades que separa. Existem os cristãos da representação lar - agitadores fanáticos, degoladores de cnanças - e eXIstem cristãos como os que Severo estudou "de dentro" ... Note-se, aliás, que os dois termos do par não são riam o bem e o mal, porém hierarquizados, como cnstãos VIStos de fora e cristãos verdadeiros. Finalmente, a dissociação tem como objetivo essencial dirimir incompatibilidades, e é exatamente isso que a torna convincente e durável. É preciso escolher entre o absurdo e o distinguo. Assim, Pascal diz sobre o pecado original: Certamente nada nos atinge mais rudemente do que essa doutrina; e no entanto sem esse mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. (p. 552)

Aprova desse dogma, segundo Pascal, é. ele pode dirimir as contradições inerentes ao homem, dIstmgumdo o homem bom por criação do homem pecador: o primeiro explica nossa grandeza; o segundo, nossa miséria.

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o quarto tipo constitui o argumento filosófico por excelência, pelo menos desde Platão. O par aparência-realidade Partiremos do par por excelência, a dissociação entre aparência e realidade. A aparência apresenta incompatibilidades. Por que, por exemplo, uma vara reta parece quebrada quando sua extremidade é mergulhada na água? Certos empiristas respondiam: corrige-se a visão com o tato. Mas o tato também tem suas ilusões; por que então acreditar nele mais que na visão? Tudo o que se pode dizer é que a aparência tátil é incompatível com a visual. Para dirimir essa incompatibilidade, é preciso transpor as aparências e remontar à lei científica que a explica: seno de I = n X seno de r. É também por um distinguo entre aparência e realidade que Kant resolve a grande contradição da cultura moderna, entre a necessidade exigida pela ciência e a liberdade exigida pela moral: se todos os meus atos se explicam cientificamente por suas causas, não tenho nenhuma responsabilidade sobre eles, o que arruína a moral. A dissociação de Kant entre causalidade fenomênica (no tempo) e liberdade numênica permitelhe distinguir no homem o determinismo científico e a responsabilidade moral como dois pontos de vista, por exemplo o do psicólogo, que explica, e o do juiz, que absolve ou condena. Resumindo, em tudo o que parecia uno o argumento de dissociação introduz uma dualidade e cria um par hierarquizado: Termo 1: Ser aparente, imediato, conhecido diretamente. Termo 2: Ser real, critério de valor e de verdade do termo 1. Apesar de não se limitar à filosofia, esse distinguo constitui seu método por excelência. Até mesmo o materialista oporá o mundo real, a matéria científica, às aparências; até mesmo o empirista oporá a experiência real ao sonho e à ilusão.

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Outros pares Muitos outros pares são constituídos pela analogia com o par aparência/realidade, que permite identificar em cada um o termo 1 e o termo 2. Vejamos os pares mais freqüentes em nossa cultura: meio/fim, conseqüência/princípio, ato/pessoa, acidente/essência, ocasião/causa, relativo/absoluto, subjetiv%bjetivo, múltiplo/uno, normal/normativo, individual/universal, particular/geral, teoria/prática, linguagem/pensamento, letra!espírito ... (cf. TA, p. 562). Em cada um deles, o termo 2 - fim, princípio, pessoa, etc. é dado como superior ao termo 1. Todavia, essas hierarquias nada têm de invariáveis, mesmo em nossa cultura. O romantismo preferiu o subjetivo ao objetivo, o indivíduo ao universal. O pensamento moderno inverte igualmente certas hierarquias; para o pensamento antigo e clássico, o par é movimento/imobilidade; Baudelaire exprime assim o ideal grego em "Beauté" [Beleza]: Odeio o movimento que desloca as linhas, E eu não choro jamais, não rio jamais.

Mas no pensamento moderno, depois de Hegel, Nietzsche e Bergson, o termo 1 passa a ser imóvel, e o termo 2 é a mudança, considerada ontologicamente superior a ele. Um par pode ser expresso com elipse, por apenas um de seus termos. Assim, só se menciona o termo 2, mas com um artigo: A solução, ou com um adjetivo: A história autêntica, ou com um advérbio: universalmente verdadeiro, ou com maiúscula: o Ser, ou com um hífen pretensamente etimológico: eksistência. Pode-se também omitir o termo 2 marcando o termo 1 com aspas: "objetividade ", "direito ", para mostrar que se trata de pretensão. Um par também pode ser expresso por figuras. Vejamos a seguinte frase de Schiller, que une a epanalepse à pseudotautologia e-ao paradoxo: Qual é a religião que professo? Nenhuma, de todas as que citas. - E porque nenhuma? - Porreligião. (TA, p. 588)

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Às religiões positivas (escritas, tradicionais), ele opõe a Religião (natural, interior), a única verdadeira. Certas figuras, como o oxímoro, são compreendidas por uma dissociação, que converte uma das duas palavras em termo 1 e a outra em termo 2: douta ignorância (2/1), alegria amarga (1/2), pensar o impensável (2/1), dizer o inefável (1/2), perder para ganhar (1/2), sol negro (1/2). Num debate, o distinguo dirime a incompatibilidade através de uma dissociação semântica. Assim, em economia,franc courant/franc constant [franco corrente/franco constante]. Em psicologia, subsconsciente/inconsciente. Para refutar um par, às vezes basta invertê-lo. Deve-se comer para viver, e não viver para comer.

Esse quiasmo inverte o par fim/meio. Mais sutilmente, podese mudar a expressão dos termos; assim, real/ideal passa a ser ''utopia/real''; letra/espírito passa a ser "interpretação/texto"; fato/essência passa a ser "abstrato/concreto". Em resumo, invertem-se os termos depois de se ter mudado sua denominação. Note-se que a ausência de dissociação pode ser fonte de comicidade: A mulher voltou para casa de luto e de táxi.

Ou, ao contrário, pode haver dissociação abusiva: Só as palavras contam / o resto é parolice. (Ionesco)

Ou então a inversão inopinada de uma hierarquia: I can 't be there in spirit, so Iam coming in person.

Normalmente "em espírito" é um quebra-galho para o "em pessoa"!

COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS?

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Artificio e sinceridade Uma atitude que é possível tornar odiosa ou ridícula é a perversão da relação meio/fim: ser generoso para que os outros digam, estar apaixonado para fazer carreira; surge então um novo par pela inversão do primeiro, o par artifício/sinceridade. Esse par acabou servindo de argumento contra a própria retórica (cf. TA, § 96), que é reduzida a um conjunto de "artifícios", ou seja, de meios totalmente estranhos ao fim em vista, e que valeriam também para um fim contrário. Somos persuadidos por argumentos "fortes", "plausíveis", etc., mas, como o seu único objetivo é persuadir, dizemos que o orador utilizaria também argumentos falsos, insinceros, desde que se mostrassem mais eficazes. E nesse caso qualquer retórica, qualquer argumentação passa a ser suspeita de não passar de artifício. Então, ocorre uma dissociação no seio do próprio discurso: Termo 1: discurso artificial, estratagemas retóricos. Termo 2: discurso sincero, ausência de retórica. Na verdade, essa dissociação, em si, é profundamente retórica. A sinceridade, que consiste em só se dizer o que se pensa de verdade, é um valor ético. Mas, desde que alguém queira expressar-se com sinceridade, desde que queira persuadir os outros daquilo em que acredita, estará - querendo ou não, e talvez principalmente sem querer - no domínio da retórica. De que maneira esta pode superar a suspeita de artifício? Por meio de melhores artifícios! Primeiro, encontrando o tom 'justo", ou seja, apropriado ao assunto em questão e adaptado ao que se pensa, a "conveniência" dos antigos retores. Depois, por meio de certas figuras, como a hesitação, a epanortose ("ou melhor"), o anacoluto, a epanalepse (ai, ai, ai!), que conferem "tom" de sinceridade ao discurso. A retórica é uma arte que, como toda arte, atinge a perfeição quando se faz esquecer. Está certo que arte não é prova de sinceridade, mas basta que não seja tampouco prova de mentira.

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Para terminar, lembraremos os dois princípios que nossas análises trouxeram à tona. O primeiro é que não há argumento infalível, pois todo argumento pode ser contraditado por outro argumento. O segundo é que a argumentação não é inerentemente falaciosa; se todo argumento pode tornar-se sofistico por erro de prova, é porque ele também pode deixar de se tornar sofistico, falando-se então, de pleno direito, em objetividade da argumentação. Em outras palavras, não se espera de um argumento apenas que ele seja eficaz, isto é, que seja capaz de persuadir seu auditório; espera-se que ele seja justo, isto é, capaz de persuadir qualquer auditório, de dirigir-se ao auditório universal. Em que condições isso é possível? Quando o argumento se expõe deliberadamente à discussão, à contra-argumentação. E aqui encontramos o grande princípio: o que salva a retórica é que o orador não está sozinho, que a verdade é encontrada e afirmada na prova do debate. Tanto com os outros quanto consigo mesmo.

Capítulo IX

Exemplos de leitura retórica

Tentaremos pôr em prática os dados até agora desenvolvidos, aplicar a ferramenta retórica a textos tão diversos quanto possível. Por que - dirão - falar em textos, visto que em todo o livro mostramos que a retórica se aplica ao discurso? Para nós, não é igual. O discurso é um conjunto coerente de frases, que têm uma unidade de sentido e que falam de um mesmo objeto. Ora, a unidade do discurso é criada por seu autor: é ele que decide do que se falará, quando começará e quando acabará seu discurso, é ele que decide fazer um tratado, um drama, uma carta ou uma simples máxima. É nesse sentido que se fala de Discurso do método, de Discurso sobre o estilo, etc. A unidade do texto é, ao contrário, obra de seu comentador; é ele que o destaca no interior do discurso; e, para nós, todo texto é um excerto. Mas em todos os casos escolhemos textos cuja unidade temática e cuja coerência interna permitem tratá-los como discursos autônomos. Lembremos as regras principais da leitura retórica. Primeiro, ela consiste em fazer perguntas ao texto, dando-lhe todas as oportunidades de responder. Em segundo lugar, essas perguntas, ou lugares de leitura, referem-se o máximo possível ao conjunto do texto: qual é sua época, seu gênero, seu auditório real, seu motivo central, sua disposição, etc.? Se possível, evita-se' o comentário linear, que logo vira paráfrase. Em terceiro lugar, a leitura retórica busca o vínculo íntimo entre o argumentativo e o oratório. Em quarto lugar, ela pretende ser um diálogo com o texto.

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Texto 6 -J.-c. Milner, Da escola,pp. 9 e 10 §I

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§ II

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30 § III

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Há escola em certas sociedades, e particulannente na nossa. Aí está uma proposição indubitável; no entanto, cabe estabelecer o que ela significa. Dizer que a escola existe é, na verdade, dizer apenas isto: numa sociedade existem saberes, e estes últimos são transmitidos por um corpo especializado num lugar especializado. Falar de escola é falar de quatro coisas: (1) de saberes; (2) de saberes transmissíveis; (3) dos especialistas encarregados de transmitir saberes; (4) de uma instituição reconhecida, cuja função é pôr em contato, de maneira ordenada, os especialistas que transmitem e os indivíduos a quem se transmite. Cada uma dessas quatro coisas é necessária, de tal modo que negar uma delas é negar a existência da escola ( ... ) Quatro coisas lhe são necessárias; e também lhe são suficientes: dizer que há escola é dizer tudo o que foi dito, porém nada mais. Assim, não é dizer que todos os saberes são transmissíveis; não é nem mesmo dizer que todos os saberes transmissíveis são ou devem ser transmitidos pela escola; não é dizer que os especialistas encarregados de transmitir sabem tudo o que há para saber em geral, nem tudo o que há para saber do saber que transmitem. Decerto sempre poderão ser acrescentadas outras determinações às quatro determinações essenciais. Por exempIo, pode-se desejar que a escola dê felicidade, que contribua para a boa saúde fisica e moral, que possibilite um uso racional do telefone ou da televisão, etc. Nenhum reparo quanto a isso, contanto que ninguém se esqueça de que esses são fins secundários e suplementares, vantagens adicionais: querer transformá-los em fins principais e em beneficios maiores é na realidade renunciar às determinações essenciais. Logo, é querer o fim da escola. ( ... ) Trata-se, pois, sempre e primordialmente de designar e definir os saberes que se querem transmitidos; secundariamente, de ordenar as formas institucionais e especializadas da transmissão. ( ... ) A segunda decisão é na verdade a da pedagogia concebida não como fim, mas como puro meio de transmissão: muitas vezes tem pouco que ver com a pedagogia usual e vulgarizada.

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Motivo central Essas linhas constituem o início do livro e introduzem a parte intitulada "Axiomática". Quem é o auditório? O grande público culto, preocupado com todas as "reformas" do ensino, sobretudo com a última em termos cronológicos, a de Savary (1984), que parece dar ênfase à pedagogia, em detrimento dos saberes. O adversário, que o livro inteiro trata de desancar, é o clã dos pedagogos, acusados de fomentar um verdadeiro complô contra o ensino. No entanto, esse livro não se presume panfleto, mas ensaio, pretendendo-se rigorosíssimo. Seu método é o do lingüista (que Milner é), definindo inicialmente uma necessidade formal, e procurando depois os conteúdos apropriados a preenchê-la: Que saberes? Que pedagogia? Do mesmo modo, o lingüista estabelece a combinatória de todos os fonemas possíveis, para depois os buscar empiricamente nas diferentes línguas. Esse texto revela algum motivo central? Sim: o uso (ou abuso) da argumentação quase lógica, mais precisamente da definição. Observemos a palavra capital, o apenas da linha 4: declara que a escola é isto - as quatro características - e que só é isso. Resvala-se, sem qualquer aviso, de uma definição normativa para uma definição descritiva.

Uma cadeia de entimemas Como a argumentação se apresenta? Como uma cadeia de entimemas, que parte de um fato admitido por todos, há escola, e de uma pergunta sobre o sentido dessa proposição. A disposição, muito rigorosa, é a seguinte: I: Características necessárias da escola: 1 a 3: exórdio, colocação do problema; 4 a 10: enumeração das quatro características que definem a escola; 10 s.: conseqüência de sua negação:falam contra a escola.

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lI: As seguintes características são suficientes para definir a escola:

13 a 20: explicação e esclarecimentos; 20 a 25: concessão aparente; 25 a 29: refutação pelas conseqüências: o fim da escola. III: Das características formais a seu conteúdo: 30 a 33: explicação; 33: nota sobre a primeira decisão (aqui omitida); 33 a 36: nota sobre a segunda: a pedagogia é apenas meio. Quais são os principais entimemas? Em I, afirma-se que a escola tem necessariamente essas quatro características, de tal modo que quem negar uma delas estará negando a escola e, concretamente, contribuindo para destruí-la. O parágrafo 11 termina com um logo: como se chega a essa conclusão? Em três tempos: 1) afirma-se que as quatro condições são suficientes; 2) que tudo o que se pode acrescentar a elas não passa de fins secundários; 3) que transformá-los em fins principais é abolir os verdadeiros fins da escola. A premissa principal subentendida utiliza o lugar da essência: tudo o que se acrescenta à essência compromete sua integridade. No parágrafo I1I, a premissa maior do entimema seria: tudo o que só é formal deve ser completado. Observe-se que esse texto exclui exemplos. O Por exemplo da linha 22 só faz introduzir uma ilustração pedagógica (com a devida vênia!).

Figuras fortíssimas O estilo está a serviço desse rigor. No entanto, o texto é amplificado secretamente por figuras fortíssimas. Antes de mais nada, uma metáfora que retoma o tempo todo e comanda de fato todo o livro. Com freqüência se disse que as metáforas ocultas são as mais perigosas. Aqui é exatamente isso o que acontece. Trata-se da transmissão (1. 5 e passim); essa metáfo-

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ra, comum aos partidários da escola clássica e a seus detratores, não poderia ser mais redutora; ela modifica o sentido do ensino e do saber. De fato, equipara a escola a um sistema de transmissão, como o sistema de correios e telégrafos, com seus órgãos, agências, objetos (cartas, encomendas); os saberes não passam de mensagens, informações inertes, excluindo-se todo o campo das habilidades e, o que é mais grave, da compreensão; os alunos são reduzidos a receptores passivos; os professores, a agentes telegráficos. O papel da escola será de dar saber ou de ensinar a aprender? Outra figura é a ironia, que aflora na linha 22, com as concessões, cuja ordem mostra que elas são aparentes; se ele tivesse ido de televisão a dar felicidade, a gradação teria sido normal; aqui, a gradação ao inverso produz efeito caricato, salientando o ridículo dos "pedagogos", ironia reforçada pela metáfora das vantagens adicionais com tudo o que ela sugere: se junto com o sabão em pó vem um brinquedo, acontece-nos comprar o sabão por causa do brinquedo! O par fins secundários/fins primários está assim invertido. A litote da linha 35 (pouco que ver) introduz o par decisivo: Termo 1: pedagogia usual e vulgarizada, falsa e pretensiosa; Termo 2: pedagogia... puro meio de transmissão, útil e séria.

A petição de princípio Milner começa com uma definição normativa de escola; é seu direito propô-la, assim como é direito do leitor recusá-la. Mas depois essa definição vai funcionar em todo o texto como definição descritiva; em outras palavras, o autor exige do leitor que este a admita como verdadeira e única. Ora, se descermos do "axiomático" ao empírico, se estudarmos na realidade essa instituição que é a escola (cf. 1. 9), veremos que ela está longe de reduzir-se às quatro características de Milner; a escola inglesa, por exemplo, visa primordialmente à boa saúde fisica e

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moral, etc. O autor nos impõe sua definição pessoal, fazendo

de tudo para que não tenhamos consciência dessa imposição. É o exemplo típico da petição de princípio. Mas não será isso - como afirma o TA - um "erro retórico", uma inépcia da argumentação, pois age-se como se o auditório admitisse o que na verdade não admite (como por exemplo a transmissão do saber)? Não é certo. É verdade que o livro de Milner foi rejeitado com violência pelo clã dos "pedagogos", tão maniqueístas quanto ele, mas congraçou um auditório granjeado antecipadamente, fornecendo-lhe argumentos, e convenceu certo número de indecisos. Pode-se lamentar que as análises ricas e muitas vezes generosas desse livro tenham sido postas a serviço de uma tese redutora a ponto de ser caricatural, a "transmissão"".

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Vous en avez qu 'on adore; Mais ceux que vous méprisez Pourraient bien durer encore Quand ceux-Ià seront usés.

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Ils pourront sauver la gloire Des yeux qui me semblent doux, Et dans mil/e ans faire croire Ce qu 'i! me plaira de vous.

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Chez cette race nouvelle

Ou j 'aurai quelque crédit, Vous ne passerez pour belle Qu'autant que je I' aurai dito 8

Pensez-y, belle Marquise: Quoiqu 'un grisonfasse effroi, 11 vaut bien qu 'on le courtise, Quand il estfait comme moi.

Texto 7 -Pierre Corneille, "Marquesa", 1658

Marquesa, se meu semblante Tem traços envelhecidos, Pensai que na minha idade Não sereis muito melhor.

Marquise, si mon visage A quelques traits un peu vieux, Souvenez-vous qu 'à mon âge Vous ne vaudrez guere mieux. 2

Le temps aux plus belles choses Se plaft à faire un affront, Et saura faner vos roses Comme il a ridé mon front.

3

Le même cours des planetes Regle nos jours e nos nuits: On m 'a vu ce que vous êtes; Vous serez ce que je suis.

4

Cependantj'ai quelques charmes Qui sont assez éclatants Pour n 'avo ir pas trop d'alarmes De ces ravages du temps.

2

O tempo as mais belas coisas Tem prazer em afrontar, E murchará vossas rosas Como enrugou minha fronte.

3

Igual curso dos planetas Rege-nos dias e noites: Já fui o que sois agora; Sereis o que agora sou.

4

Mas conto com alguns encantos Refulgentes o bastante Pr'a não ter tantos cuidados Com estes estragos do tempo.

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5

Vós os tendes, adoráveis; Mas os que mais desprezais Poderiam durar ainda Depois que esses se estragassem.

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Poderão salvar a glória Duns olhos que eu veja afáveis, E em mil anos fazer crer O que de vós me aprouver.

7

E junto a essa nova raça Que me dará certo crédito, Vós só passareis por bela Tanto quanto eu descrever.

8

Pensai bem, bela Marquesa: Embora um velho amedronte, Sempre convém cortejá-lo, Quando ele é assim como eu.

Todo esse poema é uma apóstrofe a Marquesa, atriz que usava esse nome e que ofendera Corneille chamando-o de "coroa" (ele tinha então cinqüenta e dois anos ... ). Apóstrofe, pois o auditório real não é Marquesa, porém o público leitor. A enunciação é fortemente marcada: de um lado, Marquesa, vós, vossas ... e, de outro, eu, minha, mim ... O objetivo de Corneille certamente não é obter os favores da jovem, mas provar a todos que tem valor, que sempre convém cortejá-lo... (estrofe 8); não se trata de amor, mas de "honra". E ele prova seu valor com argumentos de comparação em que talvez encontremos o motivo central do texto. Embora nada tenha de lírico, essa poesia contribui muito para o patos; estrofes curtas, rimas ricas, ritmo ímpar - versos de sete pés -, tudo confere ao texto uma força, uma compostura, uma vivacidade que permitem dizer: "Belo troco!" Convém lembrar que a poesia geralmente é paratáctica (cf. Texto 5). Nesta, os termos conectivos muitas vezes são

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omitidos. Por exemplo, a estrofe 2 poderia ter começado com um "de fato"; a 5 com "é verdade que"; a 8 com "portanto", etc. O assíndeto às vezes enseja ambigüidades; por exemplo, deve-se entender as mais belas coisas ... como mesmo as mais belas coisas, ou principalmente as mais belas coisas? No segundo caso, ter-se-ia um argumento afortiori. O fato é que a estrutura argumentativa é clara e forte. A disposição apresenta-se da seguinte forma. Nas três primeiras estrofes, Corneille explica a Marquesa que ela não vale mais que ele. Nas cinco últimas, deixa claro que ele vale mais, pois ela só chegará à posteridade graças a ele. A argumentação é uma seqüência de entimemas. A primeira parte é constituída por dois entimemas bastante redundantes, cuja premissa maior é uma regra geral: O tempo... Igual curso ... , e cuja seqüência mostra que ela se aplica tanto a Marquesa quanto a ele, segundo a regra de justiça. As figuras só fazem amplificar esse argumento de reciprocidade: O tempo... tem prazer, personificação por metáfora; murchar vossas rosas, metáfora expandida; enrugar minha fronte, metalepse (ou "metonímia expandida"); o que sois... o que sou, antítese. Em suma, uma argumentação quase lógica, do tipo: não há por quê! Os entimemas das cinco últimas estrofes baseiam-se em outros argumentos, geralmente do segundo tipo. Observemos os termos de comparação: bastante... p'ra (estrofe 4), ainda ... depois que (estrofe 5), tanto quanto (estrofe 7), e a hipérbole em mil anos (estrofe 6): tudo evoca o lugar da quantidade, mais precisamente da duração; o duradouro tem mais valor que o precário, portanto o talento mais que a beleza. Donde uma dissociação que comanda toda essa segunda parte do texto: Termo I: vossos encantos, precários. Termo 2: meus encantos, duradouros.

Par que fundamenta a dupla hierarquia da estrofe 5: Duradouro> precário; logo: Meus encantos duradouros> vossos encantos precários. As estrofes 6 e 7 vão esclarecer por que o duradouro é uma superioridade: eles poderão salvar (vossa) glória; por um

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lado, alegando um fato: é graças à minha poesia que vossa beleza sobreviverá. Sabe-se que para os homens do século XVII uma causa deve ter pelo menos tanto valor quanto seu efeito, caso contrário se admitiria que esse valor "não procede de nada"; sabe-se que esse lugar serve para que Descartes prove a existência de Deus (cf. a quarta Meditação). Esse lugar nada mais tem de convincente para nós, que dissociamos o valor e o ser, e que acreditamos no progresso, portanto no aparecimento de um valor "complementar". Comeille, porém, utiliza isso para estabelecer uma nova dupla hierarquia:

EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA

SoujJre done que je m 'amuse; Car le temps, pour ton malheur, Pourrait bienflétrir ta muse, Avant de faner mes fleurs ...

Sei que te dói meu prazer O tempo, p'ra teu desgosto, Pode tua musa esvaecer Antes de murchar meu rosto ...

o que pode salvar um valor> esse valor;

Texto 8 - René Descartes, Le discours de la méthode, segundaparte

logo o valor de meus encantos> o valor de vossos encantos. A última estrofe, com aliterações notáveis - grison, effroi - conclui a argumentação com uma segunda dissociação: Termo 1: velho amedrontador. Termo 2: velho genial.

seguida de um argumento pragmático: sempre convém ... Observe-se que a conclusão ultrapassa as premissas, pois Comeille passa de alguns encantos (estrofe 4) a eu (estrofe 8), o que supõe uma nova dupla hierarquia, implícita, que vai dos predicados aos sujeitos: meus encantos> vossos encantos; logo, eu> vós. E a glória de seu eu culmina com o que me aprouver (estrofe 6), que no século XVII era atributo maior da realeza *. Portanto, motivo central: dupla hierarquia. Finalmente, o que Marquesa poderia ter respondido? Por um lado, com um argumento que contestasse o lugar do duradouro: que me importa se vou envelhecer, se agora ... (são as palavras que lhe atribui, sem rodeios, Georges Brassens). Por outro lado, contestando o fato, ou seja, o gênio de Comeille. Ou fazendo as duas coisas:

* "Car tel est notre bon plaisir" [pois assim nos apraz), fórmula presente nos editos, que marcava a vontade do rei. (N. do T.)

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Um dos meus primeiros [pensamentos] foi perceberme a considerar que freqüentemente não há tanta perfeição nas obras compostas por várias peças e feitas pelas mãos de diversos mestres quanto naquelas em que uma só pessoa trabalhou. Assim, vê-se que as construções iniciadas e terminadas por um só arquiteto costumam ser mais belas e mais bem ordenadas do que aquelas que várias pessoas cuidaram de reorganizar, servindo-se de velhas muralhas que tinham sido construídas para outros fins. Assim também certas cidades velhas, que, não passando de vilarejos em seus primórdios, tomaram-se grandes cidades com o transcorrer do tempo, são de ordinário tão mal compassadas, apesar das praças regulares que um engenheiro porventura trace nas planícies segundo sua fantasia, que, mesmo considerando seus edifícios um por um, e freqüentemente encontrando neles tanta arte, ou mais, quanto nos das outras, ao se ver, porém, como estão organizados, aqui um grande, acolá um pequeno, e como tornam curvas e desiguais as ruas, tem-se a impressão de que foram assim dispostos mais por obra da sorte do que pela vontade de alguns homens em uso da razão. (... ) Assim, imaginava eu que os povos que, tendo sido outrora semi-selvagens e tendo-se aos poucos civilizado, só criando suas leis à medida que a incomodidade dos crimes e das disputas a talos obrigava, não poderiam ser

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tão bem policiados quanto os povos que, desde os primórdios de seu agrupamento, tenham observado as constituições de algum prudente legislador (... ) 30 E assim pensava eu que as ciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e não têm quaisquer demonstrações, tendo sido compostas e engrossadas aos poucos com as opiniões de várias e diversas pessoas, não estão de modo algum tão próximas da verdade 35 quanto os simples raciocínios que pode fazer naturalmente um homem de bom senso no tocante às coisas que se apresentem. E assim também pensava eu que, por termos todos nós sido crianças antes de sermos homens, e por termos' 40 carecido durante tanto tempo ser governados por nossos apetites e por nossos preceptores, freqüentemente contrários uns aos outros e, uns e outros, talvez nem sempre bons conselheiros, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos quanto teriam sido se tivéssemos 45 feito uso pleno de nossa razão desde o momento de nosso nascimento, e se nunca tivéssemos sido conduzidos senão por ela.

Em várias ocasiões encontramos Descartes como inimigo da retórica e destruidor da dialética. Ora, aqui, estamos diante de um texto tipicamente dialético, que procede por razões apenas prováveis, rejeitadas pelo autor (l. 31). Em vez de usar demonstrações (l. 32), ele argumenta! Será inconsciente? Certamente não: Descartes é cuidadoso demais com seu método para ignorar o que está fazendo. E é com plena consciência que emprega certas palavras-chave da dialética: freqüentemente (l. 2, 17, 41), tradução do épi to poly de Aristóteles, assim como de ordinário, da linha 13. Melhor ainda, ele "modula" o texto, atribuindo-lhe o grau de verossimilhança que pode ter:foi perceber-me a considerar (l. 1); o vê-se (l. 6 e 18) indica que se trata de um exemplo, e não de uma evidência de tipo matemático, assim também imaginava (l. 23), no sentido de "representava". Pensava eu que (l. 29) e quase impossível (l. 43) introdu-

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zem uma verossimilhança, mas não um absurdo: isso poderia existir. Por que argumentação dialética num autor que não a aceita? Na realidade, Descartes a utiliza para mostrar a necessidade de mudar de filosofia, antes de expor sua própria filosofia. Digamos que usa a argumentação para abolir a argumentação. , Que argumentação? Pode-se discernir nesse texto algum motivo central? Note-se que, de maneira totalmente dialética, o autor apresenta uma tese que depois ampara com cinco argumentos. Tese: obra perfeita é aquela em que uma só pessoa trabalhou (l. 5); ilustra de modo notável o lugar da unidade, muito apreciado no século XVII. Note-se que, quando ele diz que esse pensamento foi um dos primeiros, não está indicando apenas anterioridade cronológica, mas lógica; sem esse pensamento, sem o lugar de unidade, Descartes não teria construído sua obra. Os argumentos, que começam todos com assim, como em Aristóteles, expõem fatos notórios: 1) construção; 2) cidade; 3) constituição; 4) ciência; 5) educação. Estamos diante da argumentação pelo exemplo. Mas tratar-se-á de exemplos em sentido estrito, de ilustrações, de modelos ou de analogias? O caráter basicamente heterogêneo dos cinco argumentos faz tender para a analogia. Isto porque, por um lado, temos realidades materiais - construção, cidade - e, por outro, realidades espirituais - constituição, ciência, educação; os dois primeiros poderiam lançar luz sobre os três últimos. No entanto, pode-se responder, como o TA (p. 484), que os cinco exemplos não passam de aplicação de uma única regra, suficiente para tomá-los homogêneos: materiais ou espirituais, essas realidades são todas obras; os cinco exemplos designam obras humanas. Cumpre esclarecer que a ordem desses exemplos não é aleatória nem reversível. Os dois primeiros, para o público do século XVII, apaixonado pela ordem e pela unidade, têm alto grau de verossimilhança; aliás, naquela época, construíam-se cidades bem compassadas, em forma de estrela ou em xadrez,

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como Lunéville, La Valette de Malte, etc. O terceiro exemplo, em que Descartes se refere à constituição de Esparta ou ao Decálogo, obras superiores porque oriundas de um único autor, também é aceitável para os contemporâneos. Mas os dois últimos são completamente paradoxais; seria inadmissível que a ciência fosse obra de uma única pessoa, nem no século XVII e muito menos no XX! Ora, é aí precisamente que Descartes quer produzir aceitação. Trata-se então de exemplos ou de ilustrações? Na realidade Descartes quer provar duas coisas: a regra e o fato de ela se aplicar também e sobretudo à obra científica e filosófica. Essas aplicações (11. 22 a 44) não são óbvias; por isso, Descartes não se contenta em invocar a regra, mas mostra com uma argumentação a contrario que ela também se aplica a isto: quem se remete aos livros escolásticos ou à educação escolástica está fadado à diversidade de opiniões, portanto à incerteza irremediável. Quem recebe opiniões de fora está fadado ao preconceito; mesmo quando é verdadeiro o que pensa, está em erro, pois não sabe por que aquilo é verdadeiro! Esse é o drama de quem aprende pelos livros (11. 22 s.), e mais geralmente de quem pensa em função da educação que recebeu; esta, por melhor que seja, só pode ser incoerente e dar origem a preconceitos. Por termos todos começado como crianças, a razão sempre chega tarde demais a um terreno já ocupado; só pode retificar mais ou menos um espírito já formado, ou seja, deformado. Esse desenvolvimento terá como conseqüência a dúvida "hiperbólica", em que Descartes se obriga a rejeitar como falso tudo o que aprendeu. Rousseau e seus discípulos se inspirarão nela para reclamar uma reforma radical da própria educação (cf. texto 11). A nosso ver, pode-se assim reconstituir a argumentação: uma tese; três ilustrações (construção, cidade, constituição); duas aplicações (ciência, pensamento), que é preciso provar, e ele prova a contrario. Cabe notar que as ilustrações não são aleatórias. Sabe-se que para falar de seu pensamento Descartes utiliza metáforas, partindo da luz (claro, escuro, evidência, etc.) ou do caminho,

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que aparecem nesta frase: eu era como um homem que anda sozinho nas trevas (segunda parte). Aqui aparece outra metáfora, a da construção, que comanda todo o texto: se a ciência - e de modo mais geral o pensamento - é uma construção, a ela pode ser aplicada a norma da arquitetura. Essa norma é o lugar da unidade, que aparece de forma notável como motivo central de nosso texto. Contra a escolástica, Descartes reivindica uma ciência única que só pode ser obra de apenas uma pessoa. Ele.

Texto 9 - Uma entrevista com Françoise Dolto, Libération, 5 defevereiro de 1987

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A psicanalista Françoise Dolto, especialista em crianças, reage apaixonadamente ao movimento de protesto dos professores primários. "Incompreensível", afirma. Sentada junto à sua janela, tendo a seus pés o majestoso pátio da escola de surdos-mudos de Paris, ela se diz "espantada com todo esse escarcéu". LIBÉRATION. - Como a senhora explica a rejeição do projeto ministerial por parte dos professores primários? FRANÇOISE DOLTO. - Não entendo; é o espírito de maio de 68 pervertido. Em 68, tudo bem, mas agora é rejeição, nem mesmo da autoridade em si, mas da simples definição de atribuições dentro da equipe. Não entendo. Existe a necessidade de que alguém represente a escola para os de fora, que alguém assuma os abacaxis de fora. Por que os professores, que se entendem bem em equipe hoje, não continuariam assim, mesmo que um deles fosse nomeado professor-diretor? Afinal, este último não tem o poder de dar nota aos colegas. Não é um superior, apenas um responsável. LIBÉRATION. - Como a psicanalista, que a senhora é, define o comportamento dos professores neste caso? F.D. - É um caso de puerilidade. São funcionários que gostariam de ser como os profissionais liberais, sem autoridade acima de si. É uma coisa ideal, mas não prática. Eles dizem "eu, eu, eu ... ". Idiota. Têm medo do quê? O que eles

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têm para temer? O diretor está lá como representante da escola, e isso não diminui em nada a autoridade do professor em classe. O sujeito que falou disso na televisão, já não lembro quem é, o ministro acho, falou bem. Na realidade, os professores gostariam de ser pagos por alguém que não tivesse nenhuma autoridade sobre eles, que só se encarnasse no inspetor, presente uma vez por ano. LIBÉRATION - Qual é a participação da criança em tudo isso? F.D. - A criança sempre precisa de uma situação triangular mínima. Em casa tem papai e mamãe que brigam; um dos dois ganha, e a situação está clara. É bom que a criança possa recorrer à escola. E o professor também, que nem sempre está seguro de si. Cabe ao diretor aparar as arestas, arranjar as coisas. Não há por que sempre opor à criança as decisões da equipe: é uma fragmentação ... É como se em casa dela tudo fosse decidido com as tias e os tios. LIBÉRATION - Esse diretor da escola deve ganhar mais? F.D. - Claro. Esse cara merece mais. Precisa visitar a escola, receber as autoridades, trabalhar até mais tarde, conhecer os pais, todos os pais. LIBÉRATION - O projeto tem conotação política? F.D. - Ter cabeça não é coisa de direita nem de esquerda. Com a autogestão, todos viram parasitas. É justo que haja ordem na escola, não vejo o que a política tem que ver com isso, acho isso idiota. É até anti democrático opor-se a esse projeto. É deixar o caminho livre para a fuzarca. Entrevista concedida a Nicolas Beau.

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aqui está combatendo a esquerda. Sua grande preocupação, principalmente em (1) e (5), é justificar-se, eliminar essa contradição, pelo menos aparente. O gênero, portanto, é entrevista, o que implica um estilo familiar e uma argumentação oral, mais ou menos improvisada. O que mais impressiona é a mistura de termos técnicos (definição de atribuições) e vulgares (abacaxi). Todavia, o gênero impõe a substituição de palavras eruditas por expressões comuns. É assim que, em (2), vemos eles dizem eu, eu, eu, em vez de "são narcisistas"; em (3) temos em casa ela tem papai e mamãe, para designar o "triângulo edipiano". Finalmente, como é normal numa entrevista, ela não tem domínio sobre a disposição; quem organiza as perguntas é Nicolas Beau. Aqui seguimos a argumentação passo a passo, procurando o motivo central desse texto.

Parágrafo (1) O argumento de partida é uma incompatibilidade: Não entendo, incompreensão reforçada pelas palavras do nariz-decera: incompreensível, todo esse escarcéu... É bom entender que não há nada para entender: modo de dizer que a revolta dos professores é absurda. Essa incompatibilidade vai ser dirimida por uma dissociação: Termo I: O espírito de maio de 68 pervertido; Termo 2: em 68, tudo bem.

Introdução Em 1987, a opinião pública francesa foi agitada por uma decisão do Ministro da Educação, de criar um corpo de "mestres diretores" nas escolas primárias, decisão que pôs os sindicatos e toda a esquerda em pé de guerra. A autora, ou melhor, a entrevistada, é uma psicanalista de crianças, muito conhecida na época. Diz-se de esquerda, mas

Esse par é explicitado por ela: o que os professores estão rejeitando não é a autoridade, como em maio de 68, mas a divisão do trabalho, a definição de atribuições. E através de um argumento do segundo tipo ela prova que essa definição de atribuições é necessária. Finalmente, uma prolepse: Afinal... , que antecipa um contra-argumento do adversário e o destrói por um distinguo: superior/responsável.

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Parágrafo (2) Pedem-lhe para definir, como psicanalista, o comportamento dos professores, e na verdade ela começa por qualificálos: pueris. Termo que introduz uma nova incompatibilidade, pois uma das características constantes do infantilismo é perseguir fins incompatíveis, aqui q\Jerer ser ao mesmo tempo funcionário e profissional liberal. Surge então uma nova dissociação, inversa à de (1): Tenno I: é uma coisa ideal; Tenno 2: mas não prática.

A incompatibilidade é sancionada pelo ridículo: Idiota. Que será repetido no fim: os professores gostariam ... O que eles têm para temer? É mais uma prolepse; para acabar com esse medo, ela dá uma definição normativa do diretor: representante. Mais adiante, ele será árbitro. Note-se enfim a preterição: já não me lembro quem é... , embora logo esclareça que é o ministro! Na verdade, sua preocupação é evitar o argumento de autoridade: se ela se alia ao ministro, não é pelo fato de ele ser ministro, mas sim por ser um sujeito que falou bem.

Parágrafo (3) A pergunta que abre o parágrafo (3) é retórica, pois sugere que essa revolta lesa o interesse da criança, e que portanto é inadmissível. Dolto só tem que aproveitar a deixa. Armando-se de seu triângulo edipiano, que ela erige em lei universal - ela sempre precisa ... -, Dolto passa, por analogia, da família à escola, amparando seu argumento numa dupla hierarquia: ARGUMENTO: criança < mãe < pai; logo TESE: aluno < professor < diretor.

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Aqui também uma prolepse, introduzida por Não há por que ... ; com dois argumentos ela refuta quem diga que a ação da equipe pedagógica basta: 1) analogia com a família; 2) lugar da unidade, marcado pela palavra fragmentação, que na última análise acaba adquirindo feições familiares: com as tias e os tios.

Parágrafos (4) e (5) Um dos pontos litigiosos do decreto era conceder uma recompensa aos novos diretores. Dolto justifica essa recompensa com quatro exemplos, para mostrar que esse cara merece mais (outra vez o estilo negligente). Trata-se de argumento pragmático? Seria, se ela tivesse dito que é preciso pagar mais o diretor para que ele trabalhe mais; no entanto ela disse: porque ele trabalha mais; logo, é um argumento de sacrifício, que por sua vez se funda numa dupla hierarquia: a hierarquia admitida das tarefas ampara a outra, dos salários, por provar. Em (5) a pergunta de Beau induz uma prolepse: pode-se desconfiar que o projeto seja de direita? Mais uma vez ela responde com uma dissociação: Tenno I: autoridade contestável no plano político; Tenno 2: autoridade incontestável no plano pedagógico.

Uma figura reforça o argumento: ter cabeça; é uma metonímia (cabeça por pensamento) ou uma metáfora (cabeça por chefe)? Viram parasitas é uma metáfora que resume um argumento pragmático: a autogestão tem conseqüências nocivas. É a fuzarca, metáfora enobrecida pelo general de Gaulle em 1968, que nem por isso deixa de ser uma hipérbole e um argumento de direção: a ficarem assim as coisas, é nisso que vamos acabar. Como se vê, essa esquerdista se entrega de corpo e alma ao lugar da ordem.

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Observações críticas: o motivo central

No mérito Dolto tinha razão? Não queremos nem podemos pronunciar-nos sobre isso. Mas não podemos deixar de examinar as falhas de sua argumentação. Em primeiro lugar, ela parece ignorar a situação concreta dos professores primários, sobretudo a autoridade dos inspetores e o temor que inspiram, motivado ou não, pouco importa. Em segundo lugar, o argumento de direção que termina o texto é probatório? Uma vez que, até aquele dia, se vivera sem "mestres-diretores", a fuzarca poderia estar reinando há muito tempo. Ora, ninguém tinha notado ... NB: - Nosso argumento é uma instância, refutação de uma tese por suas conseqüências. Em terceiro lugar, o motivo central de todo esse texto é sem contestação o argumento de autoridade. Está claro: Dolto é convocada como especialista da infância; no § 2, ela é interpelada como psicanalista capaz de definir o comportamento dos professores. E logo de início, quando afirma Não entendo, está querendo dizer que nada há para compreender, que tudo é pueril, idiota. O que se critica na psicanalista não é o fato de ter usado sua autoridade, mas de ter abusado dela, pois dita normas em seara alheia: organização escolar e política. Com o mesmo tipo de argumentação ela teria conseguido provar que a liderança mundial cabia aos Estados Unidos e a ninguém mais! É verdade que ela não é a única psicanalista que abusa de sua autoridade.

Texto 10-Alain, "Considerações", de 20 de março de 1910 Aprovo cabalmente essa subscrição nacional para socorrer os acionistas das minas de Courrieres, que passaram por transe tão cruel. Está claro que moralmente, se não de pleno direito, eles deveriam, com base nos lucros que auferiram e auferirão, reparar tudo o que de reparável houver na catástrofe, ou seja, responsabilizar-se desde já pelas viúvas e pelos órfãos. Isso a rigor é moral; seria até de direito se olhássemos de perto, pois no caso

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não há força maior, porém ação humana, imprevidência, precipitação, negligência do homem. Só que o rigor do direito e da moral neste caso talvez seja cruel demais. Pensemos nessas jovens magníficas oferecidas com um dote magnífico; vai ser preciso reduzir o dote? E o último modelo "quarenta cavalos", será preciso renunciar a ele? E aquela mansão tão confortável, que alugaram, como querem que se livrem dela? Todas essas despesas são interdependentes, e não se sabe bem por onde começar. Quanto à viagem às termas, é necessária. Saúde antes de tudo, não é mesmo? Palavra de honra que lastimo esses pobres ricos. Eles também têm suas necessidades, e as necessidades do hábito não são menos imperiosas que as outras. Tenho pena daquela linda loira, tão corretamente sentada em seu cupê elétrico; e aquele rapaz, de sobretudo acinturado, vai passar como o seu tempo se não jogar bacará? As mulheres estão de olho nele, e eu temo por sua virtude. Mas subscrevo, sim, com todo o coração. Vamos lá, senhores e senhoras, tenham a bondade. Principalmente os que forem de poucas posses, acostumados que estão a privar-se. Vamos, sejam humanos. Caridade, por favor, para os acionistas de Courrieres.

A catástrofe ocorrida na mina de Courrieres (Pas-de-Calais), que causou a morte de mil e duzentos mineiros, foi acompanhada por greves reprimidas pelo exército. Alain trata dela em um de seus artigos diários para um jornal de esquerda, La dépêche de Rouen. Trata-se de um "tópico", que chega a constituir um gênero: texto breve, ao mesmo tempo pessoal e conceitual, em etilo acessível e familiar, habitualmente irônico ou alegórico. É fácil descobrir o motivo central desse texto. Pode-se realmente acreditar que Alain lastime os ricos, que ele esteja fazendo a subscrição em seu favor e pedindo aos pobres que façam o mesmo? Com certeza esse texto é irônico; diz o contrário do que quer dizer, para exprimir-se melhor: de modo mais percuciente e convincente. No entanto, é preciso detectar

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a ironia por certas marcas. Aqui, a mais notória é o oxímoro, lastimo esses pobres ricos (4). Mas desde o terceiro parágrafo será possível tomar ao pé da letra essas expressões falsamente apiedadas, na realidade impiedosas, como a saúde dos acionistas, quando se conhece a catástrofe que desabou sobre seus operários? Em suma, entende-se que, quando Alain diz subscrevo, não fez nada disso; que, quando diz lastimo, está denunciando. Para os leitores de 1906 a ironia era ainda mais visível e devia até parecer imensa. Pois, afinal, a subscrição realmente ocorreu, mas não para os acionistas, e sim para os mineiros, evidentemente! Ora, ocorre aqui um desses deslocamentos em que Freud vê um dos grandes fatores da comicidade: Alain age como se a subscrição para os pobres fosse para os ricos, os patrões. Mas no fundo não será isso o que ele pensa? O que ele pensa se vê no segundo parágrafo, que se apresenta como uma prolepse e uma concessão: Está claro que... Só que... em suma, poder-se-ia acreditar, mas não é isso o que acontece. Mas, como estamos em plena ironia, é preciso tomar a concessão aparente por argumento real de Alain: os patrões devem reembolsar seus operários; não é só a moral que o exige, mas o direito, pois os danos são decorrentes da negligência deles. A catástrofe poderia ser evitada se não tivessem sacrificado homens ao lucro. Em resumo, um argumento de causalidade: o causador do acidente - mesmo que por omissão - é responsável por ele. Na época isso era bem menos claro que hoje. A lei dos acidentes de trabalho estipulava que, para serem ressarcidos, os operários deviam provar a responsabilidade do patrão, o que era especialmente dificil, em se tratando de um desastre numa mina. Portanto, para Alain, quem tira proveito de uma subscrição nacional "pelas vítimas" são os acionistas, e até duas vezes, pois ficarão dispensados de pagar o que devem, ao mesmo tempo que obrigam os operários a lhes serem gratos. A seqüência é apenas um argumento irônico, que se deve ler ao inverso! A força da ironia é que, por emprestar uma espécie de aparência a esses argumentos, no começo deixamo-nos

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levar. Antanáclase em rigor, que passa do sentido de exigência estrita para o de crueldade. Lugares-comuns: o aluguel que é preciso honrar, a viagem às termas, a saúde antes de tudo (3), as mulheres que estão de olho no boa-vida (4): esses argumentos são decerto escandalosos, mas isso só se nota depois de algum tempo de reflexão. O que Alain dá a entender é que esses argumentos são as verdadeiras razões, as únicas razões que os ricos poderiam alegar para deixar de pagar, razões tão ridículas (ou odiosas) que eles as guardam in petto. De se notarem as metonímias. Para indicar o luxo escandaloso, ele fala de jovens magníficas - mas oferecidas! -, de quarenta cavalos, de viagens às termas. A juventude dourada é a linda loira, o rapaz com sobretudo acinturado, etc. A metonímia desempenha papel argumentativo duplo: de exemplo e de símbolo. Com alguns traços Alain estabeleceu a riqueza. Cabe lembrar que a ironia quase sempre condensa um argumento de incompatibilidade, que ressalta através do ridículo. Na verdade, apesar das aparências, esse texto não é de ataque aos ricos, no sentido de que Alain não exige - como faziam então os socialistas - que eles sejam despojados de suas riquezas. Esse texto é contrário à caridade, que despoja os pobres de sua única riqueza, a dignidade. É esse escândalo que o artigo denuncia: pede-se ao povo, aos de poucas posses, que faça doações às vítimas, o que dispensa os responsáveis de ressarcir as vítimas e as priva de seus direitos: dupla vantagem para os ricos. Donde a hipérbole final, que leva ao extremo o argumento de direção: a continuar assim, logo estarão exigindo caridade para os acionistas ...

Texto ll-A educação negativa, J.-J. Rousseau, Emílio, 2.° livro Atrever-me a aqui expor a maior, a mais importante, a mais útil regra de toda educação? Não seria isso ganhar tempo, porém perdê-lo. Leitores vulgares, perdoai-me os paradoxos: é preciso criá-los quando se reflete; e, seja lá o

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que de mim disserdes, prefiro ser homem de paradoxos a ser homem de preconceitos. O mais perigoso dos intervalos da vida humana é o que vai do nascimento aos doze anos de idade. É o período em que germinam os erros e os vícios, sem que tenhamos ainda instrumento algum para destruí-los; e, quando chega o instrumento, as raízes já são tão profundas que já não é tempo de arrancá-las. Se as crianças saltassem de uma vez do peito para a idade da razão, a educação que lhes dão poderia ser conveniente; mas, segundo o progresso natural, elas precisam de outra, totalmente contrária. Seria preciso que nada fizessem de sua alma enquanto não contassem com todas as faculdades; pois é impossível que ela perceba o facho que lhe apresentais enquanto está cega, e que siga, na imensa planície das idéias, uma trilha que a razão traça tão levemente mesmo para os melhores olhos. A primeira educação deve ser, pois, puramente negativa.

Introdução: haverá motivo central? Pode-se encontrar nesse texto algum motivo central? Em todo caso, aparece uma figura essencial logo de início, a apóstrofe l : Leitores vulgares ... Note-se que esse termo nada tem de depreciativo; na época vulgar podia significar, como aqui, "leigo". Rousseau não se dirige nem aos educadores nem aos filósofos, mas a todos, ao auditório universal. A apóstrofe é subjacente a todo o texto: o que de mim disserdes (4), que lhe apresentais (16). E com uma apóstrofe se conclui o parágrafo seguinte: Começando por nada fazerdes, tereis feito um prodígio de educação.

Conclusão que mostra que o objetivo do texto é ser prático (jazerdes, feito), coisa normal num discurso sobre a educação. A apóstrofe é ao mesmo tempo expressiva e persuasiva, pois é como se o autor estivesse presente a nos interpelar. Mas nem por isso é indispensável, pois em qualquer lugar o vós

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poderia ser substituído por formas verbais impessoais sem que nada mudasse. A nosso ver, o motivo central está em outro lugar, e bem escondido ...

o paradoxo Aqui: nosso texto situa-se no livro segundo, que estuda a educação entre dois e doze anos, mostrando que, em essência, ela deveria ser uma não-educação. A página anterior trata precisamente do problema das punições, que para o autor são prematuras. Mas é contra a "prematuração" em geral que Rousseau se insurge em nosso texto, que, aliás, surge do contexto de maneira bastante inesperada. A argumentação é ao mesmo tempo rica e tensa. Por quê? Provavelmente porque o autor parte, como ele mesmo diz, de um paradoxo. Paradoxo enorme para os leitores do século XVIII, habituados a ver a educação como lavagem cerebral, adestramento, disciplina sádica, imagem que quase todos os seus colegas passavam. Enorme para nós também: e por uma razão lógica. Rousseau enuncia uma regra, e toda regra, até prova em contrário, é portadora de valor, valor que a toma justamente maior, importante, útil... Ora, perder tempo é expressão nitidamente pejorativa, exatamente o contrário do valor; inconcebível, portanto, que seja objeto de uma regra; seria como dizer que a grande regra da horticultura é deixar que os legumes apodreçam! E a educação não é ainda mais séria que a horticultura? Em suma, o paradoxo é tão grande que a primeira edição corrigiu o texto substituindo perder [perdre] por despender [prendre]. Mas na segunda edição Rousseau voltou com seu perder, e o impôs. O que é paradoxo? Uma opinião que contraria a opinião comum; isso não significa contrariar a razão: mas, afinal, Rousseau não estaria se arriscando a perder o auditório, ao partir em todo caso de um acordo prévio excessivamente restrito? Mas

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os leitores, imbuídos das Luzes, por certo achavam que qualquer coisa vale mais que um preconceito, e a argumentação de Rousseau aposta nisso.

A argumentação Todo o parágrafo consiste em transformar em verdade demonstrada o paradoxo com que começa: a educação... puramente negativa, cujo conteúdo prático o parágrafo seguinte exporá: o "como" depois do "porquê". Curiosamente, Rousseau - homem da experiência, da natureza, do herborismo parece muito preocupado com a demonstração matemática; expõe por entimemas, argumentos quase lógicos, mas não tem certeza de que seu rigor na realidade não seja dogmatismo. Se não, vejamos. De início, justifica seu paradoxo com um entimema: Premissa maior: não se pode refletir sem paradoxos; premissa menor (subentendida): ora, eu reflito; conclusão: sou homem de paradoxos.

A comparação que se segue apóia-se numa dupla hierarquia: como a reflexão é superior à irreflexão, o paradoxo é superior ao preconceito. A argumentação é rigorosa, mas contestável em dois pontos. Em primeiro lugar, arrisca-se ao sofisma: premissa menor, faço paradoxos; conclusão, reflito. Rousseau evita isso, mas o leitor não fica com essa impressão? Em todo caso - e esse é o segundo aspecto -, sua argumentação repousa numa alterativa nada comprovada. Entre o preconceito e o paradoxo não haverá meio-termo? Será que não podemos abandonar um sem incidir no outro? A justificativa do paradoxo é apenas uma prolepse. Mas toda a argumentação seguinte - para provar que o paradoxo não é paradoxo - tem pretensões ao mesmo rigor. Configura um entimema:

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Premissa maior: é antinatural dar às crianças uma educação que não lhes convenha; premissa menor: a educação positiva não lhes convém (antes dos doze anos); conclusão: precisam de outra totalmente contrária.

A expressão conveniente (I. 13), reforçada por impossível (I. 17), indica uma argumentação quase lógica fundada no lugar da essência. É a partir do progresso natural da criança que o autor prova a incompatibilidade entre a educação dada e aquilo que existe na realidade. Progresso natural: hoje diríamos crescimento espontâneo, com seus "estágios", já pressentidos por Rousseau. Nota-se também que ele com isso responde ao desafio de Descartes em Discours de la méthode (texto 8). Rousseau também admite que o homem nasce muito antes de sua razão, e que a inrancia é, portanto, um intervalo perigoso, durante o qual se instalam os erros e os vícios, porque o homem ainda não possui o instrumento para destruí-los (11. 8 a 11), ou seja, a razão. Mas, enquanto Descartes se resigna a ver na educação a causa irremediável de todos os nossos preconceitos, Rousseau afirma que se pode mudar a educação, educar segundo o progresso natural, evitando os erros e os vícios. Para isso, é preciso renunciar a educar cedo demais, não contrariar a natureza, "deixar que a inrancia amadureça na criança". Contudo, se voltarmos ao entimema, veremos que a conclusão excede as premissas. Pode-se afirmar sem mais nem menos que, não convindo às crianças a educação positiva, elas precisam de outra totalmente contrária? A conclusão só seria tal se ficasse provado que não há outra, que não há educação intermediária entre a coação e a espontaneidade total, intermediária que talvez seja simplesmente a pedagogia. Aí está, a nosso ver, o dogmatismo de Rousseau: ele nos impõe escolhas absurdas porque fundadas em alternativas que não são alternativas. Donde o maniqueísmo - preconceito ou paradoxo, educação positiva ou negativa - que será visto o tempo todo no discurso pedagógico, como mostramos em nosso Langage de I' éducation.

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As metáforas da educação

Conclusão: o motivo central

Outra característica importante do discurso pedagógico: a abundância de figuras, sobretudo metáforas, que dão testemunho do caráter fortemente polêmico da argumentação. Nosso parágrafo se inicia com uma pergunta retórica: Atrever-me a aqui... , cujo objetivo por certo é preparar o paradoxo, antecipando todo o seu efeito; o peito (1. 12) é uma metonímia que sugere a absoluta dependência da criança, dependência que a educação não elimina, mas ao contrário mantém sine die. As numerosas metáforas são clássicas em toda a linguagem educacionaF. Metáfora da luz: facho (1. 17), cega (1. 18), olhos (1. 20). Metáfora do caminho: saltassem (1. 12),progresso (1. 14), seguir. .. uma trilha (1. 19), que se combina com a anterior na personalização: que a razão traça tão levemente, para introduzir um argumento afortiori: para os melhores olhos (1. 20). Note-se que a palavra alma (1. 16) não é metáfora, pois alma para Rousseau é tão real e tão cognoscível quanto o próprio corpo. Em compensação, verifica-se a abundância e a força das metáforas "hortícolas" (D. Hameline), bastante expandidas: germinam - instrumento para destruí-los; raízes - arrancar. Essas metáforas são analogias condensadas: assim como os maus germes, sem instrumentos para arrancar... também os saberes inculcados antes da razão. Mas Rousseau multiplica os curtos-circuitos entre o tema e o foro, fundindo as metáforas:

Pode-se até pensar que esse é um texto contrário à pedagogia, como tantos que vicejaram nos anos 70 ... Certo, mas é também um dos textos que fundaram a pedagogia, pelo menos se a entendermos não como simples técnica de ensino, mas como consideração da criança em sua própria educação, consideração que é ao mesmo tempo conhecimento da criança e respeito por ela. Qual é o pedagogo que não sabe da necessidade de saber observar a criança, esperar o momento propício, etc.? Pois bem, mas ele não poderia dizer tudo isso dispensando o enorme paradoxo? Acreditamos que não se deva tomá-lo ao pé da letra. Para nós, esse texto tem como motivo central a hipérbole, que é não só um modo exagerado de exprimir o pensamento como também a forma extrema do argumento de direção, que refuta uma tese dizendo: a admiti-la, aonde chegaremos? Figura de exagero, em primeiro lugar. O que Rousseau quer dizer com sua educação negativa? Ele explicará isso depois, a monsenhor Christophe de Beaumont:

Foro:

Terna:

Na verdade, este último não é tempo pertence tanto ao foro quanto ao tema; nele culmina a metáfora, que também é aquilo que Rousseau quer provar. Mas será que Rousseau vê isso realmente como metáfora? Para ele, o parentesco entre o foro - natureza vegetal- e o tema - criança e sua educação - é tão obcecante que temos aí mais uma relação lógica de identidade do que propriamente analogia.

A que tende a aperfeiçoar os órgãos, instrumentos de nossos conhecimentos, e que prepara a razão pelo exercício dos sentidos.

A educação negativa, portanto, nada tem de vazia: ela prepara os instrumentos do pensamento e da ação, deixando a criança às voltas com o meio onde esses instrumentos se exercitarão de início, mas um meio cuidadosamente administrado pelo preceptor. Hoje diríamos: nada ensinar à criança que ela não possa compreender, que ela não esteja madura para aprender. Mas por que dizer isso de forma hiperbólica? Para argumentar. Rousseau denuncia um perigo: se a criança for instruída antes de precisar desses saberes e de ser capaz de entendêlos, só lhe estarão inculcando preconceitos, mesmo que se trate de verdadeiros saberes e de autênticos valores; ela se acostumará a pensar e a querer através de outras pessoas, portanto terá sido doutrinada. Mais precisamente: querendo forçar a crian-

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ça a sair da inrancia, corre-se o risco de mantê-la na inrancia pelo resto da vida: éramos feitos para ser homens; as leis e a sociedade mergulharam-nos de novo na infância (Emílio, p. 100, GamierFlammarion).

Rousseau provavelmente admitiria que seus conselhos são utópicos, e que numa sociedade como a nossa não se pode evitar o início precoce da educação positiva, muito antes dos doze anos em todo caso! Mas ele mostra aonde se chega quando se escorrega no "resvaladouro", ensinando-se uma criancinha depressa demais, cedo demais. Um grito de alarme; que ainda estamos ouvindo.

Texto 12 - Duas histórias iídiches Dois irmãos vão todos os anos mendigar em casa de Rothschild, que lhes dá vinte francos. Um deles morre, e o que continua vivendo só recebe dez francos. Quando se queixa, Rothschild lhe diz que seu irmão não está mais vivo. - "Mas, senhor barão, quem é o herdeiro, o senhor ou eu?" Um mendigo vai todos os anos à casa de um rico, que lhe dá seis marcos. De certa vez só recebe três. Quando se queixa, o rico se desculpa, dizendo que seus negócios vão mal, e que acaba de casar a filha. - "Ah, responde o mendigo, às minhas custas!"3

Essas duas histórias têm a estrutura de todas as piadas: 1) cenário; 2) núcleo, que cria a tensão; 3) desfecho, cômico porque inesperado. São muito semelhantes entre si; nas duas, o núcleo é criado pela decepção do mendigo, e nas duas a comicidade vem do argumento dele, totalmente inesperado. Note-se que, na segunda, Rothschild é substituído por um rico. Por quê? Porque, no imaginário popular, Rothschild não

EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA

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poderia estar menos rico; sua fortuna é inesgotável, e falar de Rothschild em necessidade seria um oxímoro intolerável (figura que, no entanto, a história se encarregaria de concretizar, já que vários Rothschild morreram de inanição em campos de concentração ... ) . Comicidade do argumento, portanto "comicidade da retórica" - como diz Lucie Olbrechts-Tyteea em Le comique du discours -, mas que, curiosamente, se volta contra o próprio orador; cada um dos mendigos pretende ressaltar uma incompatibilidade, mas quem sai ridicularizado não é o rico, e sim ele. No entanto, a comicidade não provém, como diria Bergson, de um mecanismo qualquer sobreposto à vida, de uma lógica cega e descompassada. A coisa é bem mais sutil. A comicidade provém antes de mais nada da ausência flagrante de acordo prévio entre os ricos e os mendigos, portanto do conflito entre duas lógicas. A lógica dos dois ricos é moderna, racional e individualista; segundo ela, a caridade é um ato pessoal, nunca exigível de direito. Na primeira piada, Rothschild raciocina por dupla hierarquia: como o mendigo está sozinho, só tem direito à metade. Na segunda, o rico acha que, como seus recursos diminuíram, tem direito a dar menos. A essa lógica baseada no devido, os dois mendigos (Schnorrer) opõem a lógica do donativo, típica das sociedades tradicionais, que fazem da caridade um dever religioso que confere ao mendigo uma espécie de direito, não escrito, porém bem real. Algo disso subsiste em nosso hábito de dar "caixinha de Natal": quem der ao carteiro a metade do que deu no ano anterior poderá vê-lo indignado. Donde a lógica dos direitos adquiridos, que nos dois casos se baseia na regra de justiça: não há motivo para que Rothschild fique com a metade, ou para que o pobre arque com as despesas das núpcias. Em suma, a reivindicação dos mendigos nada tem de ridículo; em certo sentido é até convincente. Por que então fazem rir (talvez propositadamente)? A nosso ver, a comicidade está ligada a duas figuras, muito freqüentes nas piadas: por um lado, o jogo de palavras (her-

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INTRODUÇÃO A RET6RICA

deiro e às minhas custas); por outro, a hipérbole: eles falam como se Rothschild realmente estivesse reivindicando uma. herança, ou como se os três marcos tivessem financiado as núpcias! No entanto, o jogo de palavras, que nada tem de trocadilho, é uma sutil antanác1ase, que repousa num ligeiro desvio de sentido. E a hipérbole é apenas um exagero. Bastaria que os dois mendigos dissessem "eu precisava tanto desse dinheiro", para que a resposta deixasse de ser cômica e passasse a ser comovente. Quem é o herdeiro ... : se ele tivesse dito "beneficiário", não seria engraçado; mas, falando assim, introduz uma igualdade totalmente incôngrua entre o barão e ele, como se o direito à mendicidade equivalesse ao patrimônio de um Rothschild (hipérbole). Às minhas custas ... : o segundo mendigo pode achar que contribuiu muito para o financiamento das bodas, pois é por isso que seu óbolo foi reduzido; e o iídiche se vale admiravelmente da ambigüidade da expressão (cf. alemão Auf meine Kosten), que significa "a expensas" e "à custa"; o humor está no deslocamento quase imperceptível de um sentido para o outro: do mendigo privado de seus três marcos para o mendigo que financia as bodas com seus três marcos. Cabe lembrar também a função argumentativa da hipérbole, que ressalta um argumento de direção: a continuar assim, o rico acabará por apropriar-se até da minúscula herança que nos resta, ou vai casar a filha com nossos três marcos! Mas a ambigüidade mais profunda está no papel dos mendigos. Se fazem rir de si mesmos, será mesmo sem intenção? Se involuntário, será dificill entender a inteligência das réplicas; se proposital, será mesmo deles que estamos rindo? Em suma, por um quase nada essas piadas perderiam toda a graça. É daí que provém, pensamos, a qualidade de sua comicidade.

À guisa de conclusão

No início deste livro, perguntamos se ele mesmo não era retórico. Precisamos confessar que é, pois visa a persuadir, sustenta teses sobre a retórica. Que teses? I) Definimos a retórica, a partir da tradição, como arte de persuadir pelo discurso, o que equivale a dizer que é uma arte funcional, cujos elementos - plano, argumentos, figuras, etc. - têm valor pelo serviço que prestam. Arte para a qual não se separa beleza de verdade, que postula que um discurso feio não pode ser verdadeiro, ou pelo menos tão verdadeiro quanto se não fosse feio. Arte para a qual a beleza inútil, sem função persuasiva, não passa de ornamento, de "pintura", como dizia Cícero. 2) Afirmamos que retória é a união íntima entre estilo e argumentação, e que, desse modo, um dfscurso é retórico à medida que é fechado e não parafraseável. Significa dizer que um discurso retórico não tem estruturas profundas; sendo inseparáveis sua forma e seu conteúdo, deixaríamos de entendê-lo se procurássemos por trás da forma um sentido para o qual ela não passasse de vestidura. O sentido está na superficie, e a superficie faz sentido. Voltemos à fábula de La Fontaine; se a interpretássemos reduzindo a narrativa poética a seu esboço em prosa, que por sua vez seria reduzido à "moral", teríamos entendido tudo, menos ... La Fontaine. Essa recusa de separar fundo e forma orientou nossas "leituras retóricas". 3) Não hesitamos em fazer um elogio da retórica, o que, evidentemente, é uma tese. Pois, mesmo que não entendamos a retórica no sentido vulgar, mesmo que a tomemos por aqui-

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

lo que ela mesma pretende ser, nem por isso ela estará imune a críticas. Argumentaremos uma última vez a partir dessas críticas.

Arte e naturalidade Certos termos que quase sempre são associados à palavra "retórica" (clichê, chavão, estereótipo, verbalismo, academicismo, etc.) sugerem que a "arte" na verdade seria um conjunto de artificios que impedem a expressão natural, índice de falta de sinceridade. Sim, o orador é culpado de não dizer simplesmente o que pensa, sobretudo quando pretende convencer os outros das coisas que pensa. "O que ele pensa": mas pode-se fazer caso de um pensamento que preexista já pronto à sua expressão? Acreditamos que uma idéia não expressa não passa de sentimento confuso que não pode enfrentar sozinho a prova do diálogo e da refutação'. Concretamente, a sinceridade não preserva ninguém da inaptidão, da incoerência, do chavão, da obscuridade; e ninguém favorece seu pensamento quando o expressa de viés! É preciso toda uma arte para exprimir-se; e ninguém convence as massas porque é sincero em política, nem é pregador ou missionário porque é crente sincero. É preciso aprender; e, se alguns têm mais dom que outros, significa apenas que são mais dotados para aprender. A arte é necessária à expressão, arte sem a qual ninguém seria crível ou, mais simplesmente, compreendido. Mas que arte não se confunda com artificio. Digamos que, em parecendo artificial, o discurso é ineficaz. O artificio é a ruína da arte, é a figura que não dá certo, é o estratagema que dissuade precisamente por ser percebido como tal. É próprio da arte, ao contrário, passar despercebida. E isso é dissimulação? Às vezes. Mas às vezes também revelação de um pensamento justo e sincero que não se afirmaria sem essa arte, sem a retórica. Finalmente, a desconfiança em relação à retórica poderia perfeitamente ser desconfiança em relação à linguagem, que só

A GUISA DE CONCLUSÃO

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traduziria o pensamento traindo-o. Não será essa no fundo a atitude dos grandes contendores da retórica, como Platão e Descartes? A esses temíveis pensadores oporemos seu próprio exemplo, que mostra que o pensamento, em vez de preexistir à linguagem, nasce de um trabalho na linguagem, e que aprender a expressar-se também é aprender a pensar.

A ilusão do livro do mestre Aqui surge outra objeção: a retórica não está a serviço da verdade. A prova é que a invenção retórica, em vez de ser busca sincera da verdade, não passa de inventário de argumentos e de sentimentos capazes de levar sua causa ao triunfo. Assim, a "arte oratória" só está a serviço do incerto, às vezes do falso, sempre da aparência. Por acaso essa mesma arte não proclama que está em busca do verossímil, e não do verdadeiro? Essa crítica repousa, a nosso ver, numa idéia falaciosa da verdade, que chamaremos de ilusão do livro do mestre. Raciocina-se como se todos os problemas da vida - judiciários, políticos, econômicos, pedagógicos, éticos - tivessem uma solução escrita em algum lugar, na terra ou no céu, em nossa consciência ou em nosso coração, numa espécie de livro do mestre que basta abrir para encontrar a resposta certa. Infelizmente, não é isso o que acontece; na maioria das vezes, a verdade só é "estabelecida" ulteriormente, depois de muitas dúvidas, debates, trabalhos; principalmente quando se trata das verdades que mais nos importam, que mais paixões despertam, que mais esperanças suscitam. Evidentemente, sabemos que a causa de Sócrates era justa, tanto quanto a de Joana d' Arc ou do capitão Dreyfus. Sabemos, mas os contemporâneos não tinham como saber; e, em cada caso desses, a causa só se mostrou justa graças a seus defensores e à sua retórica. E mesmo quando uma causa se mostra finalmente injusta, não teria ela o direito também de ser defendida? Negá-lo equivaleria a dizer que o debate judiciário é inútil, que deve ser substituído pelo leqto e dificil trabalho da prova pela ilusão infantil do livro do mestre.

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INTRODUÇÃO À RETÓRICA

À ilusão infantil opomos a razão adulta. Mas como a caracterizar?

Da polêmica ao diálogo "Razão adulta", dizíamos? Mas na realidade a prática da retórica se mostra bem pouco racional. Não será ela antes uma polêmica incessante entre advogados, políticos, publicitários, até entre pregadores, polêmica em que cada adversário tem como único objetivo vencer o outro a qualquer custo, mesmo à custa da verdade? Sempre à custa da verdade, pois o ganhador não é quem tem razão, mas quem detém a força da palavra. Os debates retóricos serão tão diferentes dos duelos judiciários e dos ordálios medievais? Francis Jacques opõe à retórica a verdadeira "dialógica"2. Enquanto a primeira, segundo ele, visa a dominar o orador contrário manipulando-o por meios parcialmente irracionais, a segunda é uma busca comum da verdade que repousa na idêntica liberdade de cada um e utiliza autêntica argumentação. Mas, a aceitar-se essa dicotomia, a questão continua aberta: como saber quando se está na "retórica" ou na "dialógica"? Concretamente, as duas apresentam-se de maneira idêntica, pois o retor mais astuto não vai confessar que é assim e que seu único objetivo é manipular por meios irracionais! Dirá que está dialogando livre e racionalmente. Quanto ao dialético, até o mais honesto, será obrigado também a utilizar meios artificiais, além dos racionais, para convencer. Se nossa mente e nosso coração constituíssem uma placa sensível sobre a qual a verdade viesse expressar-se espontaneamente, sem deformações, perdas ou denegações, não haveria necessidade de retórica, de pedagogia, de diálogo. A retórica é insubstituível; não fosse, há muito tempo teria sido substituída. Por certo enseja abusos; por certo às vezes permite o triunfo da habilidade sobre o justo direito; mas às vezes não significa sempre, e não se pode condenar o uso pelo abuso. Em que é ela insubstituível?

À GUISA DE CONCLUSÃO

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Para terminar, voltemos aos Tópicos de Aristóteles livro árduo e desconcertante, capaz de mostrar porém que nos domínios não pertencentes à ciência pura só se chega à verdade coletivamente, num debate em que cada um representa - no sentido próprio da palavra "representar" - sua parte o melhor possível, até que a verdade, ou seja, o mais verossímil, se imponha a todos. O diálogo é então realmente heurístico: encontra alguma coisa. Com que condição? Com a condição de que os oradores sejam iguais, que tenham todos, estritamente, os mesmos direitos. Caso contrário, se um dos oradores se arrogar um direito exorbitante, se já não se puder contestar seus argumentos, então o diálogo já não será possível, o conhecimento se petrificará em ideologia, e a retórica, em vez de afirmar, se degradará em chavões. Como se vê, estamos submetendo a retórica a um critério exterior: a liberdade. É esta que faz do diálogo um verdadeiro diálogo, em que cada um pode criticar os argumentos do contanto que produza os seus. Critério exterior, pois ele eXIge apenas que os oradores sejam independentes, que nenhum deles tenha de lisonjear o outro ou de se lhe submeter. Mas critério ético também, no sentido de caber a cada um de nós criar esse clima de liberdade, conceder a palavra a todas as objeções e bem mais: fazer-se pessoalmente todas as objeções. Criar as condições para o livre diálogo, a começar de si mesmo, essa pode ser a verdade da retórica. Depende menos das coisas que dos homens, menos dos outros que de nós.

Notas

Introdução 1. A respeito dessa retórica da criança, veja-se o artigo de Marie-José Rémigy, "La rhétorique chez l'enfant", in Rhétorique et pédagogie. O autor narra a seguinte história real. Uma criança de três anos é obrigada a ir passear, enquanto a irmã mais velha pode ficar brincando em casa. Daí surge uma discussão que a mãe conclui da seguinte maneira: "Seja como for, menininhos como você não discutem." E ele: "Eu também quero ser menina." A criança lida admiravelmente com a ambigüidade da linguagem e dos sentimentos da mãe: onde ela opõe pequeno a grande, ele opõe menino a menina. 2. Na Rhétorique et enseignement, Figures lI, Gérard Genette mostra bem essa permanência da retórica, mas, a nosso ver, introduz separações abusivas: o ensino da Antiguidade teria uma retórica da invenção; o clássico, da elocução; o nosso, da disposição. Mas serão elas realmente separáveis?

Capítulo I 1. Roland Barthes, 1970, p. 174. 2. "Retórica", portanto, na origem é um adjetivo, que significava oratória. Com Aristóteles, a tekhne rhétorike tomar-se-á simplesmente rhétorike, assim como hoje se diz lingüística. Para maiores informações, ver Chaignet, Roland Barthes e sobretudo O .. Navarre. Textos em Les présocratiques, org. J.-P. Dumont, Pléiade, Gallimard, 1988. 3. Ibid. 4. Cf. Barbara Cassin, Si Parménide, Presses Universitaires de Lille, 19'80, pp. s., estudo magistral sobre esse discurso,

INTRODUÇÃO A RETÓRICA

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5. Sobre os sofistas, ver Gilbert Romeyer-dherbey, Les sophistes, "Que sais-je?", PUF, 1985; Jacqueline de Romi11y, Les grands sophistes dans I Athenes de Péricles, Fallois, 1988, eLes présocra-

tiques. 6. Platão, Mênon, 91 e. Cf. Protágoras, 318 d. 7. Cf. Panatenaico, 200. 8. Cf. Contra os sofistas, 14,A troca, 186, 194. 9. Cf. A troca, 36, 76, 77, 99, 251-253; Carta aos filhos de Jason,

8 e9. 10. Panegírico, 48; cf. A troca, 253 s. 11. Cf. A troca, 260, 261, 271, 47, 176, e Panegírico, 6 e 186. 12. Cf. A troca, 182 s., Panatenaico, 28 e Górgias de Platão,

NOTAS

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16. Tópicos, VIII, 159 a, 161 a; cf. 1,101 a. 17. 164b. 18. 2. 163 b. Sobre a relação entre dialética e filosofia, ler L. Couloubaritsis, "Dialectique, rhétorique et critique chez Aristote", in De la métaphysique à la rhétorique, 1986. 19. 1. Cf. Retórica, 1,1355 a e b; 58 a; 59 b. E Tópicos, 1,104 b; 105 a; e VIII, 161 a. 20. Cf. Retórica, I, 2, 56 a. 21. Cf. Retórica, I, 2, 1356 b-1357 a e 1358 b. Tópicos, I, 10, 104 a e 105 a s. 22. Le probleme de I'être chez Aristote, PUF, 1966, p. 286. 23. LaprudencechezAristote, PUF, 1963, p. 68.

484c. 13. Platão, Protágoras, 312 b. 14. Bonnes et mauvaises rhétoriques: de Platon à Perelman, in Figures et conflits rhétoriques, Universidade de Bruxelas, 1990.

Capítulo II 1. Quem quiser saltar as páginas que seguem, mais técnicas e destinadas sobretudo a filósofos, poderá retomar este assunto mais adiante, no parágrafo sobre "a moralidade da retórica". 2. Tópicos, I, 105 b; os Tópicos são a exposição da dialética; Jacques Brunschwig faz uma síntese magistral do assunto na introdução da edição Budé (1967); ver também Pierre Aubenque, Le probleme de I' être chez Aristote, PUF, 1966, pp. 282 s., e Claude Bruaire, La dialectique, "Que sais-je?", PUF, 1985. 3. Cf. 1. Brunschwig, ibid., p. XI. 4. VIII, 155 b, 164 a. 5. 156 a, 156 b, 157 a. 6. 156b, 162a. 7. I, 18, 108 a 8. VIII, 159a. 9. 159a, 160aeb.

10.157 be 160b. 11. 12. 13. 14.

158 a, 161 a, 164 b. 158 b, 157 b. 162 b.

162aeb. 15. Ética a Nicômaco, X, 6,1176 b.

Capítulo III 1. Sobre o epidíctico, cf. também Retórica a Herênio, I1I, lOs. 2. Cf. D. Navarre, p. 260 a271; e Retórica a Herênio, 1,18-19. 3. Cf. E. R. Curtius, I, capo 5, bem como o brilhante apanhado de R. Barthes, in L 'ancienne rhétorique, pp. 208 a 211. 4. Isócrates, Eginética, in Obras, t. 1; cf. O. Navarre, pp. 272 S. 5. Cf. Do orador, 11, 312, e Quintiliano IV, 2,19; 3,14; IX, 1, 28;X, 1,34. 6. O orador, 61. Note-se que, nesse sentido, a elocução diz respeito ao aspecto escrito do discurso, uma vez que o oral é a ação. 7. Cf. Aristóteles, Retórica, 1404 a s.; Cícero, Do orador, I1I, 182 s.; Quintiliano, VIII, 3, 6; X, 1,29. 8. Cf. Cícero, O orador, 69, 100, 123; Do orador, I, 144; 11, 37. 9. Sobre a ação, cf. Aristóteles, Retórica, I1I, 1403 b; Cícero, Do orador, I1I, 219; Quintiliano, XI, 3,passim.

Capítulo IV 1. Cf. Do orador, I1I, 96, 199; O orador, 78-79; Quintiliano, 11, 5,12; XII, 1,33. 2.11,4, 16. Cf. Todorof, p. 9 e 60, e D. Auverlot, "Cicéron ou le rêve d'une rhétorique idéale", in Rhétorique(s), pp. 62 a 81. 3. In H. De Lubac, Exégese médiévale, Aubier, I, 1, p. 156. 4. Sobre essa história, devem ser lidas as obras de E. R. Curtius, Marc Fumaroli, A. Kibedi-Varga, bem como a introdução a B. Gra-

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

cian, Art etfigures de l'esprit, de B. Pelegrin. Ver também E. Durkheim, L 'évolution pédagogique en France, PUF, e D. Poirion, "Allégorie", in Encyclopaedia Universalis, I. 5. Pode-se ver esse cartaz em l Benoit e J. Lech, La politique à l'ajJiche, Ed. De maio de 1966. Ver também o capítulo sobre a imagem em A. Kibédi-Varga, Discours, récit, image, Bruxelas, P. Mardaga,1989. 6. Quanto a essa discussão, ver Gérard Genette, "La rhétorique restreinte", Communications n? 16, Seuil, 1970, e Ch. Perelman, L 'empire rhétorique, Vrin, 1977.

Capítulo V

1. Sobre o auditório universal, cf. TA, § 7, e o artigo de Barbara Cassin em Figures et conflits. É dificil saber se em Perelman o auditório universal é uma ilusão ou um ideal. 2. Pejorem semper sequitur conclusio partem: se uma premissa é negativa, a conclusão também; se uma premissa é particular (algumas), a conclusão também. 3. D. Bouvet, "La parole de l'enfant sourd", in Grize, "Raisonner en parlant" in De la métaphysique à la rhétorique, 1986. 4. P. Oléron, L 'argumentation, p. 37. 5. Cf. Renée Bouveresse, Karl Popper ou le rationalisme critique, Vrin, 1981. 6. Vocabulário de filosofia. Sobre os sofismas, ver principalmente Lógica de Port-Royal, caps. XIX e XX; e Schopenhauer, A arte de ter sempre razão, tão excitante quanto irritante! 7. O. Reboul, La rhétorique, pp. 73 a 85. A paráfrase integral será porventura possível? Lembremos a célebre anedota: Um jesuíta envia a Roma o seguinte pedido escrito: "Pode-se fumar enquanto se está orando?" Resposta: "Claro que não, é um sacrilégio." Um colega manda outra pergunta: "Pode-se orar enquanto se está fumando?" Resposta: "Claro que sim; pode-se orar em todas as circunstâncias." Na realidade, as duas perguntas não têm exatamente o mesmo sentido, e é aí que entra a retórica. 8. Foi relatada com pormenores por Paul Foriers, "Le raisonnement pratique. Le raisonnable et ses limites", in Revue internationale de Philosophie, n?' 127-128, 1979, distribuída por Vrin. Essa revista é uma homenagem a Chalm Perelman.

NOTAS

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9. Para teorias diferentes sobre a argumentação, cf. S. E. Toulmin, The Uses ofArgument, Cambridge University Press, 1958; J.-B. Grize, De la logique à I 'argumentation, Genebra, Droz, 1982; Michel Meyer, De la problématologie, Bruxelas, Mardaga, 1986, que continua Perelman, radicalizando-o.

Capítulo VI I. Para um inventário mais completo das figuras, cf. P. Fontainier, Les figures du discours, e H. Suhamy, Les figures de style. 2. Cf. C. Kerbrat-Orecchioni, La connotation, p. 41. Extraímos vários exemplos desse truculento e suculento trabalho. 3. Esse episódio é relatado por Gilbert Dispaux, La logique et le quotidien, Minuit, 1984, p. 86. Sobre esses problemas, cf. Jean Paulhan, La preuve par I 'étymologie. 4. Essa teoria da metáfora inspira-se diretamente em Aristóteles, Retórica, III, 1405 a e b. Cf. também os belos comentários de Nanine Charbonnel em La tâche aveugle, Presses de l'Université de Strasbourg, 1991. 5. Naturalmente são possíveis outras interpretações dessas figuras. Ver l-F. Garcia, "Lamétaphore, encore ... ", em Rhétorique(s), PUS. 6. Sémantíque du contresens, Minuit, 1987, p. 18. Note-se que, de acordo com sua origem grega, hipálage e análage são palavras do gênero feminino. Quanto ao oxímoro, neutro em grego, a língua francesa deu-lhe o beneficio da dúvida ... e deixou-o no feminino também, diferentemente do português, em que oxímoro é palavra do gênero masculino. 7. Em seu belo livro Les paraboles de Jésus, Xavier Mappus, 1962, Joachim Jeremias afirma que essas parábolas não são alegorias. Mas ele entende "alegoria" num sentido moral que esse termo não tem necessariamente em todas as línguas. 8. Sobre essas duas figuras, cf. Quintiliano, VI, I, 63; IX, 2, 28 e 3,24.

Capítulo VII 1. Cf. Bemard Dqmpnier, Le venin de I 'hérésie. Images du protestantisme et combat catholique au XVlle siecle, Le Centurion, 1985. 2. Verbete "Genre", Dictíonnaire des littératures, Larousse, 1985.

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

Bibliografia sumária

3. La parole mangée, Klincksieck, 1986. Essa fábula, na verdade muito em voga, foi alvo de interpretações fascinantes, que acabam dando toda a razão ao lobo! 4. Discours, rédit, image, Mardaga, 1989. Esse livro, que contém um utilíssimo esclarecimento sobre os gêneros (pp. 119 s.), põe em prática uma interpretação retórica dos textos.

Capítulo VIII 1. La culture générale, Vrin, 1964, p. 60. 2. Cf. Lakoff e Johnson, Les métaphores dans la vie quotidienne, e Nanine Charbonnel, La tâche aveugle (inúmeros exemplos).

Capítulo IX

1. Tecnicamente, trata-se de uma apóstrofe? Não, se leitores constituir o verdadeiro público de Rousseau. Sim, se ele estiver se dirigindo ao grande público através de seus leitores. 2. Sobre as metáforas em educação, ver nosso Langage de l'éducation; Daniel Hameline, L 'éducation, ses images et son propos; Nanine Charbonnel, La tâche aveugle. 3. Muriel Klein-Zolty, em Contes et récits humoristiques chez les juijs, L'Harmattan, 1991, dá várias versões dessas duas histórias, todas de origem alsaciana.

Conclusão

1. Sobre esse assunto, ler (e degustar) Jean Paulhan, Les fleurs de Tarbe, bem como Yvon Belaval, Digressions sur la rhétorique. 2. Dialogiques, PUF, 1979, pp. 221-222.

A indicação A significa que a obra pertence mais à vertente argumentativa da retórica, L à vertente literária. Angenot, M., La parole pamphlétaíre, Payot, 1982, AL. Aristóteles, Poétíque, Les Belles-Lettres, trad. fi. 1 Hardy, 1965, L. - - Rhétorique, Les Belles-Lettres, 3 vo1s., trad. fr. M. Dufour, 1967. Cf. também "Rhetoric" e "Poetics" de Aristoteles, trad. ing. I. Bywater, Nova York, The Modem Library, 1954,AL. - - Topiques, livro I a IV, trad. fi. 1 Brunschwig, Les BellesLettres, 1967. NB: a tradução francesa dos quatro últimos livros pode ser encontrada na ed. Vrin, A Barthes, R., L'ancienne rhétorique, Communicatíons, n? 16, Seui1, 1970, AL. - - Rhétorique de l'image, Communicatíons, n? 4, Seui1, 1964. Campbell, G., The Philosophy ofRhetoric (1776), reed. Southem Illinois University Press, 1963, AL. Chaignet, A-E., La rhétorique et son histoire, Wieveg, 1888, A Charbonnel, N., La tâche aveugle, les métaphores de l'éducation, Presses de 1'Université de Strasbourg, 1991. Cícero, Brutus, trad. fi. Ju1es Martha, Les Belles-Lettres, 1973. - - De l'orateur, trad. fr. E. Courbaud, Les Belles-Lettres, 3 vo1s., 1967, AL. --L'orateur, trad. fr. A. Yon, Les Belles-Lettres, 1964, AL. Cohen, 1, Structure du langage poétique, F1ammarion, 1966, L.

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BIBLIOGRAFIA SUMARIA

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Meyer, M., De la problématologie, Bruxelas, P. Mardaga, 1986. Navarre, O., Essai sur la rhétorique grecque avant Aristote, Hachette, 1900, A Olbrechts-Tyteca, L., Le comique du discours, ed. de 1'Université de Bruxelles, 1974. Oléron, P., L'argumentation, "Que sais-je?", PUF, 1984, A Pascal, Pensées et opuscules, ed. Léon Brunschvicg, Hachette, 1955. Paulhan, l, Lesfleurs de Tarbes, Le Cerf, 1984, L. - - La preuve par l'étymologie, Paris, Le temps qu'il fait, 1988. Perelman, Ch., Le champ de l'argumentation, ed. de l'Université de Bruxelles, 1970, A --Logiquejuridique, Dalloz, 1976, A - - e Olbrechts-Tyteca, L., Traité de I 'argumentation. La nouvelle rhétorique, ed. de l'Université de Bruxelles et Vrin, 1976, A Platão, Gorgias, trad. fr. A Croiset, Les Belles-Lettres, 1960, A. Prandi, M., Sémantique du contresens, Minuit, 1987. Quintiliano, Institution oratoire, trad. fr. l Coisin, Les BellesLettres, 7vols., 1975-1980,AL. Reboul, O., La rhétorique, "Que sais-je?", PUF, 1992, AL. Rhétorique générale, Groupe )1, Larousse, 1970, L. Rhétorique à Hérénius, trad. fr. G. Achard, Les Belles-Lettres, 1989,A Rhétorique(s), coletiva dir. l-E Garcia, Presses de l'Université de Strasbourg, 1989, AL. Rhétorique. et pédagogique, ibid., 1991, AL. Richards, I. A, The PhilosophyofRhetoric, Oxford, 1979. Ricoeur, P., La métaphore vive, Seuil, 1975, L. Schaeffer, l-M., Qu 'est-ce qu 'un genre littéraire? Seuil, 1989. Schopenhauer, A., L'art d'avoir toujours raison, ou dialectique éristique, Estrasburgo, Circé, 1990, A. Suhamy, H., Lesfigures de style, "Que sais-je?", PUF, 1981, L. Tácito, Dialogue des orateurs, trad. fr. P. Grimal, in Oeuvres completes, Plêiade, Gallimard, 1990. Todorof, T., Théories du symbole, Seuil, 1977, L.

Índice remissivo e glossário dos termos técnicos

Ação (hypocrisis, actio). Quarta parte da retórica, que trata da proferição, das mímicas e dos gestos, XII, 44, 67, 80, 87, 105. Acordo prévio. 91,142-143,164 s., 219, 225. Agudeza. Capacidade de penetração, por graça ou sugestão, que dá relevo ao discurso. Esse termo, que é um dos mais importantes da retórica barroca, corresponde ao espanhol agudeza, ao italiano conceito, ao inglês conceit, ao francês pointe, ao latim acumen ou acutus. Alegoria. Descrição ou narrativa de que se pode tirar, por analogia, um ensinamento abstrato, geralmente religioso, psicológico ou moral; exemplos são o provérbio, a fábula e a parábola, 77-78, 95, 115,130-132,147,152,158. Aliteração. Figura criada pela repetição de um som, 95, 116, l36. Alusão. Figura que consiste em lembrar uma pessoa ou uma frase conhecida sem elucidar seu nome: "Das duas palavras, prefere a menor" (Paul Valéry), 157. Amplificação (auxesis, amplificatio). Todo recurso retórico que ressalta a importância do que se diz, 46, 50-51, 57, 59,124,134. Anacoluto. Figura que realiza uma ruptura na sintaxe: "O nariz de Cleópatra, se fosse mais curto, toda a face da terra teria (Pascal), 128-129, 193. Antanáclase. Subst. Fem. Figura de palavra que consiste em tomar um mesmo termo em dois sentidos um pouco diferentes: "O coração tem razões que a própria razão desconhece", 117, 127,226. Antifrase. Subst. Fem. Figura que consiste em dizer o contrário do que se quer dizer; serve à ironia, ao cleuasmo: "Pode ser que eu seja um idiota, mas ... ", l32-l33. Antítese. Subst. Fem. Figura que ressalta uma contradição colocando-a no interior de uma repetição: "A França perdeu uma batalha, mas a França não perdeu a guerra" (de Gaulle), XVIII,4, 127, 147,161,203.

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

Antonomásia. Subst. Fem. Sinédoque que designa uma espécie pelo nome de um indivíduo: "César" por ditadores; ou um indivíduo pelo nome de uma espécie: "O Corso", por Napoleão, 122. Apodioxe. Argumento que consiste em rejeitar qualquer argumento: "Não cabe a você dar-me lições", 135, 149, 178. Aposiopese (ou reticência). Subst. Fem. Espécie de insinuação pelo silêncio, que se tem o cuidado de anunciar para dar mais importância ao fato que se cala: "E não digo o que sei", 126-127, 134. Apóstrofe. Subst. Fem. Figura pela qual o orador finge dirigir-se a outro auditório, e não ao seu: auditório que poderá ser uma pessoa ausente, um morto, um príncipe, etc., 93, 103, 133, 142, 161, 202,218. Argumentação. XV, XVII-XXIII, 15,23-25,29,31-32,35-37,39, 46,49-50, 52, 58, 60, 73, 78-79, 83, 87, 89-90, 122, 129, 135, 142, 146, 148-150, 152-155, 157, 163-169, 172, 178, 185, 193194,197,200,203-204,207-208,211,214,219-222,227,230 e capo V,passim. Argumento. Proposição destinada a levar à admissão de outras, como na canção folclórica francesa "Não sou tão plebéia, pois o filho do rei me ama", XVIII-XIX, XXII, 3-4, 7, 15-16, 18,22-26,34, 38,47, 50-52, 57-60, 88, 92, 97, 102, 107, 110, 114, 118-119, 124, 127-129, 134-136, 139, 142, 147, 149-150, 157-158, 163164, 166-184, 187, 190, 193-194,203-204,211-214,216-217, 222-226. Argumentos (os principais), capo VIII,passim: a contrario, 59, 183,208; afortiori, 163, 178-179; ad hominem, 173, 176, 178; ad ignorantiam, 171; da essência, 176 s., 198,221; de autoridade, 88, 157-158, 176-177; de causalidade, 173, 190,216; de desperdício, 174; de direção, 124, 134, 174-175,213-214,217,223,226; de dissociação, ou distinguo, 108-109, 124, 128, 189, 190-192. 193,203-204,211-212; de divisão, 171,210; de dupla hierarquia, 147, 178-180, 187,202-204,212-213,220. 225' de inco:Upatibilidade, 118, 127, 133, 162, 168, 189-190,211-212. 217,221,225;

íNDICE REMISSIVO E GLOSSARIO DOS TERMOS TÉCNICOS

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de pessoa, 176; de reciprocidade, 170; de sacrifício, 183-184,213; de superação, 94, 174-175; de transitividade, 168; do precedente, 170, 175; pela essência, 198; pela estrutura do real, 163, 173, 178, 181, 185; pelas conseqüências, consulte pragmático; pelo exemplo, consulte Exemplo; pelo ridículo, 168-170, 199,212,217,225; por analogia, 75,185-186,207,212-213,222; por autofagia, 169; por comparação, 122, 183-187,202,220; por dilema, 170-171; por identificação, 170, 172; por ilustração, 181-182, 198; por modelo, 78,141,148,181-182,205; por regra de justiça, 108, 150, 170,203,225; por retorsão, 108-110, 169; por símbolo, 121, 131, 178,217; pragmático, 204, 213; quase lógico, 102, 163, 168,220. Arte (tekhné, ars). XIII-XIV, XVI, XVIII, 1-2,7,9-14,18,24-28,40, 73-75, 78-86, 205-208. Assíndeto. Figura por supressão dos termos de ligação: Veni, vidi, vici [Vim, vi, venci] (César), 126-127, 150, 162. Auditório. O destinatário do discurso, que pode ser uma multidão, um grupo, um indivíduo, XVII, 45-46, 48-49, 54-55, 58, 60, 6268,92-98,112,114,118,127,133-136,140,142,164-165,178, 180,194. Auditório universal. Em Perelman-Tyteca, opõe-se ao auditório especializado, designa qualquer ser racional, trata-se mais de um ideal que da realidade, 93-94, 112, 164, 194. Catacrese (catachresis, abutio). Subst. Fem. Tropo que se toma necessário quando não há nome próprio para designar alguma coisa: asas do avião (catacrese por metáfora), 120. Chreia. Exercício de invenção nas aulas de retórica: definir um termo, comentar uma sentença, etc. (Nota: o ch é pronunciado como K),76.

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INTRODUÇÃO.4 RETÓRICA

Ciência e retórica. XX, 9,15,17-19,89,93. Cláusula. Membro ritmado de frase, que termina um periodo: "e a França está salva" (Danton), 11, 116. Cleuasmo. Figura pela qual o orador finge depreciar-se para se fazer mais apreciar: "Eu, que nada sei ... ", 93, 135. Confirmação. Parte argumentativa do discurso judiciário, acompanhada em geral por uma refutação (conJutatio), 55, 57. Conglobação. Figura que consiste em acumular os argumentos em favor de uma mesma tese, 135. Contrafisão. Figura que denuncia uma coisa fingindo desejá-la: "Tenham filhos, então!", 134. ' Controvérsia. Em Roma, exercício de proferir discursos judiciários, 76,81,106. Convencer e persuadir. XIII, XV, XIX. Conveniência (Prepon, decorum). Adaptação do estilo ao assunto e ao objetivo do discurso, 62, 68, 193. Córax. Subst. Masc. Argumento que mostra que uma coisa é tão verossímil que passa a ser inverossímil: "Meu cliente é alvo de acusações de mais para ser culpado", 3-4. Definição. 119, 123, 130, 167-168, 172-173, 197, 199-200,209-210, 212. Definição retórica ou oratória. Fórmula que tem a aparência de definição, mas não é, já que seus termos não são reversíveis: "Comunismo é sovietes mais eletricidade" (Lênin), 167. Deliberativo. Gênero dos discursos políticos, 44-46, 55, 57. Demonstração (apodeixis). XVIII, 27, 80, 88,91-92,94,96-98,100, 106,110,112. Derivação. Figura que emprega na mesma frase palavras com mesma origem: "A França para os franceses", 117. Desvio. 60, 64-65, 73, 88,120,128,137. Dialética. Em Aristóteles, arte da controvérsia, em si puramente lúdica, mas que serve tanto à filosofia quanto à retórica, cuja parte argumentativa ela continua sendo, XXI, 7, 12, 18-19,22,26-37, 40,73,79-81,89,91,141,154,206-207. Digressão (parekbasis). Parte facultativa do discurso judiciário que consiste em sair do assunto, mas para maior esclarecimento do auditório, 59. Discurso (logos, ora tio). Qualquer produção lingüística, oral ou escrita, que fale de certo assunto e apresente sentido e unidade: Discurso do método, XV, 63-69,140-143,149 s., 195,218,221-222.

ÍNDICE REMISSIVO E GLOSS.4RIO DOS TERMOS TÉCNICOS

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Disposição (taxis, dispositio). Segunda parte da retórica, que trata da construção, do plano do discurso, 4, 43-44, 54-55, 60, 79-80, 87, 97,153,197,203,211. . Docere, delectare, movere. Informar, encantar, comover, XVII-XVIII, 62,89,114. Elipse. 114, 126, 191. Elocução (lexis). Terceira parte da retórica, que trata da língua e do estilo, 43-44,60-61,68,79-81,87-89,105,150. Enálage. Subst. Fem. Figura de sentido que consiste em substituir uma forma gramatical por outra, inabitual: "Pensar grande", 123124,126,136,151. Endoxon. 28, 36, 150. Entimema. Subst. Masc. Silogismo rigoroso, mas que se baseia em premissas apenas prováveis (endoxa), que podem ficar implícitas: "Ele é falível, pois é homem", XVII, 23, 46, 49,57,101-102,154157,163,197-198,203,220-221. Epanalepse. Subst. Fem. Figura de repetição. Sobre suas variantes, verSuhamy,pp.58a63.109, 114, 127, 191, 193. Epanortose (correctio). Subst. Fem. Figura que consiste em corrigir o que se acaba de dizer: "Ou melhor... ", XII, 133-134, 193. Epidíctico (demonstrativum). Caracteriza um dos três gêneros do discurso, o elogio ou a critica pública; por exemplo, a oração fúnebre,4-5, 11,44,46-47,51,55,57,59,72,75,83,111,146. Epítrope (permissio). Subst. Fem. Figura em que se finge permitir a alguém a realização de algo chocante, para sugerir que essa pessoa seria capaz disso: "Não fique constrangido por isso!", 134, 161,175. Erística. Arte da controvérsia ensinada pelos sofistas, que para Aristóteles é sinônimo de sofistica em sentido pejorativo, 7, 27-28, 31,35,48. Estado (stasis, status) da causa. 53. Etimologia. 98. Etos (ethos). Caráter que o orador deve parecer ter, mostrando-se "sensato, sincero e simpático". Igualmente, caráter do auditório (jovens, ruralistas, etc.), ao qual o orador deve adaptar-se, XVII, 36,47,54,56,64,83-84,86-87,92,124,133,135. Etimologia. 1) Sentido primitivo e pretensamente autêntico (etymon) de uma palavra; 2) argumento que utiliza esse sentido para impor sua definição, 65, 98,118-119.

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INTRODUÇÃO A RETÓRICA

Exemplo (paradeigma, exemplum), XVII, 14-16,23,25,27,29-32, 36-38,46-47,49,51-52,57-59,64-65,94,96,98,101, 105, 114117,119,196-198,200,203,207,217. Exórdio (pooimion). Início do discurso, que visa a tornar o auditório dócil, atento e benevolente, 4, 55-56, 62, 97,103. Expolição. 135, 161. Extrínseco e intrínseco (ateklnos e enteehnos). 49-50, 54. Fático. Adj. Segundo Jakobson, designa a função do discurso onde se fala para poder falar, para criar o contato ou permitir que ele dure: "Alô, alô ... ", 67. Figura (sehema,jigura ou lumen). Modo de expressar-se que se afasta do uso comum para obter mais força e adequação, XVIII, 4, 64, 66 e capo VI,passim, 184, 186. Filosofia e retórica. XI-XII, XIV, XXII, 1,6-7,10,12,19,26,28-29, 32-34,40,94-95, 104, 108, 110-111. Foro e tema. 131, 185-188,222. Fórmula. 151, 157-158. Gêneros. A retórica antiga distinguia três gêneros de discurso em prosa: judiciário, deliberativo e epidíctico, que subsistem como modos bem gerais; assim, o panfleto e a pregação pertencem ao modo epidíctico, 44-47, 55, 57, 62, 66, 76, 82,143,150,152,161, 195,218,222. Gradação. Figura que representa uma seqüência de termos em ordem crescente, seja por extensão dos significantes, seja pela importância dos significados: "Vai, corre, voa, vinga-nos" (Corneille), 128129,137,199. Gramática (grammatiké, litteratura). Disciplina que consiste em ensinar a língua literária (grega ou latina), pela leitura explicada dos textos. Primeiro ciclo do ensino secundário, XXI, 7, 73, 82. Hermenêutica. Arte de interpretar os textos, XVIII-XIX, 78-79,139. Hipálage. Subst. Fem. Figura que consiste em deslocar uma atribuição: "Abriu grandes braços pasmados" (Eça de Queirós), 123-124. Hipérbato. Figura de inversão: "Do que a terra mais garrida / teus risonhos, lindos campos têm mais flores ... ," 128. Hipérbole. Subst. Fem. Figura que exagera para exprimir melhor: "Estou morto!", XII, XVIII, 120, 122, 134, 158, 161, 175, 184,203, 213,217,223,226.

iNDICE REMISSIVO E GLOSSARIO DOS TERMOS TÉCNICOS

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Hipotipose (deseriptio, evidentia). Subst. Fem. Figura que consiste em descrever um espetáculo ou um acontecimento de modo tão vivo que o auditório acreditar tê-lo diante do olhos: "Não enxergarei nem o ouro da tarde a cair, Nem as velas ao longe descendo para Harfleur" (V. Hugo).

Note-se que "velas" não constitui uma sinédoque, pois ao longe o que se vê são velas, e não barcos! V. Hugo descreve aquilo que veria, XII, 124, 136-137. Humor. 62, 124, 132-133, 150-153 s., 226.

Imagem. 83 S. Instância (entasis, instantia). Contra-argumento, 214. Intertextualidade. 157. Invenção (euresis, inventio). Primeira parte da retórica, que trata da procura dos argumentos, tanto do etos quanto do patos, XVII, 4344,49,54-57,79-80,87,89,105,229. Ironia. Figura que consiste em dizer o contrário do que se quer dizer, não para enganar, mas para ridicularizar, 64-65, 115, 124, 130, 132-133,150,152,158,169,199,216-217. Judiciário. Gênero que caracteriza os discursos proferidos diante de um tribunal para defender ou acusar, 44-46, 51-53, 55, 57, 59-60, 69,104-106,215 e capo III,passim. Litote. Subst. Fem. Figura que consiste em substituir um significado por outro menos forte: "Estou meio cansado", em vez de "muito cansado", 124, 137, 198. Lugar (topos, loeus). 1) Argumento-tipo: "Quem pode o mais pode o menos". 2) Tipo de argumento: por analogia, de autoridade, etc. 3) Pergunta-tipo para encontrar argumentos, XII, lI, 13, 17, 27, 30,32,35-36,40,43,50-53,54-55,62,64,74, 79,82, 84,86,88, 94,96,106,110,112. da ordem, 213. Lugar comum. 53, 75-76,217. Lugares de quantidade, qualidade e unidade. 110, 163, 166-167, 195. Memória (mneme, memoria). Conjunto de procedimentos mnemotécnicos que permitem saber o discurso de cor, 44, 47,68.

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INTRODUÇÃO A RET6RICA

Metáfora (metaphora, tralatio). Figura que consiste em designar uma coisa pelo nome de outra que se lhe assemelha: "O Eterno é meu rochedo", para meu "apoio seguro", XVIII, 4, 11, 60, 62, 64-65, 71, 77, 84, 89, 94, 108, 111, 113-115, 120-123, 126, 130, 162, 185-186,188,198-199,203,208-209,213,222. Metalepse. Figura que consiste em substituir o nome de uma coisa ou de uma pessoa por uma seqüência de metonímias: "Esse que choramos", pelo defunto, 125,203. Metonímia (metonymia, denominatio). Figura que consiste em designar um objeto pelo nome de outro que tem com ele um vínculo habitual. Exemplo é a frase de Churchill em 1940, em que ele diz que nada tinha para oferecer, além de "sangue, suor e lágrimas", 121-124,126,136,151,161,187,203,213,216,222. Moral e retórica. 10, 12, 16,23,29,33,37,48-50,52,54-55,60-62, 65,68,73,78, 119, 133, 196,200,214-216,227 s. Motivo central. Procedimento retórico essencial a um texto, que permite qualificá-lo como irônico, hiperbólico, quase lógico, etc., 157-158, 161, 195, 197, 202, 204-205, 209, 211, 214-215, 218219,223. Narração (diegesis, narratio). Exposição dos fatos, que constitui a segunda parte do discurso judiciário, depois do exórdio. A narração era o primeiro exercício de retórica, 55-56, 57-58, 62. Orador. O autor do discurso, escrito ou oral, XVI-XVII, 43-48, 50, 52, 54, 57-58, 60, 63, 66-69, 71-74, 78, 84, 92-93, 96, 140, 142, 156,225. Oratória. Para nós, é aquilo que, numa mensagem retórica, tem caráter afetivo, e não argumentativo, XVII, 71, 73, 75, 86, 91-93, 95, 99,103,112,167,172-173. Oxímoro (ou paradoxismo). Figura que consiste em associar dois termos incompatíveis: "Sol negro", 113, 123, 125-126, 144, 161, 192,216,225. Paradoxo (paradoxon, inopitatum). Opinião que contraria a opinião comum. Exemplo: texto lI, pp. 217 ss. 28, 32. Parisose. Subst. Fem. Equilíbrio rítmico entre dois membros de uma frase: "Beber ou guiar, convém optar", 116. Paronomásia. Figura de palavras provocada pela repetição de uma sílaba ou de várias: Traduttore, traditore,4, 116-117.

ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSARIO DOS TERMOS TÉCNICOS

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Patos (pathos, passio). Ação do orador sobre as paixões, os desejos e as emoções do auditório, para facilitar a persuasão. Daí vem a palavra "patético", XVII, 47-49, 56-57, 83-84, 86-87, 92-93, 114, 127,133,136,178,202. Pedagogia, pedagógico. XXI, 33, 47, 103-105, 121, 131, 148, 196199,220,222-223,230. Pergunta retórica. Pergunta cuja resposta o orador conhece, mas que faz com intuito expressivo ou persuasivo: "Sabem quanto ... ?", XX, 117-118, 135, 137, 197,212-213,222. Perissologia. Repetição da mesma idéia com termos diferentes, 127. Peroração (epilogos, peroratio). O fim do discurso, que o resume e acentua seu patos, por apelo à cólera ou à piedade, 51, 55, 59, 62. Personificação. 151, 161-162,203. Persuadir. XIV-XX. Petição de princípio. Sofisma que consiste em tomar por admitida a tese que é preciso provar e que é enunciada de uma forma um pouco diferente, para obter aceitação. Exemplo das pp. 167-168. 5,31,199-200. Poesia e prosa. 4, 6, 11,61-62,79,82,150,155,157. Presunção. Aquilo que se admite até prova em contrário: "Presumese a inocência do réu até prova em contrário", 96, 200. Preterição. Figura que consiste em dizer que não se falará de uma coisa, para chamar mais a atenção sobre ela: "E nada direi de sua inesgotável generosidade ... ", 133-134,212. Prolepse (prolepsis, occupatio). Subst. Fem. Figura que consiste em antecipar o argumento do adversário: "Objetar-se-á que ... " , 24, 135,211-213,216,220. Prosopopéia. Figura que consiste em falar por um orador fictício; é o que ocorre quando Sócrates se deixa interpelar pelas leis de Atenas (Críton), 103, 133-134, 141, 176. Publicidade e propaganda. XIV, 2,15,19,57,63,82,84-87. Quiasmo. Antítese em que os termos são postos em espelho: "Devese comer para viver, e não viver para comer". 128, 147, 151,153. Recapitulação (anakephaleosis). Parte da peroração que resume a argumentação do discurso para chegar a concluí-lo, 60. Retórica. Arte de persuadir pelo discurso. O ensino dessa arte. A teoria dessa arte (definição controversa), XI-XXII, 227-231 e passim. Retorsão. 169. Ritmo. 4, 11,61-63, 72,115-117.

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INTRODUÇÃO A RET6RICA

Silogismo. 22-23,28,35. Cf. entimema. Símbolo. 121, 131. Símile (eíkon, símile ou símílítudo). Subst. Masc. Comparação entre termos heterogêneos; "Ela canta como um rouxinol", que serve de base para a metáfora: "Ela é um rouxinol", 122, 187. Sinceridade. 72, 79, 81, 184, 193,228. Sinédoque (synekdokhé, íntellectío). Figura que consiste em designar uma coisa por outra que tenha com ela uma relação de necessidade; por exemplo, o gênero pela espécie, o todo pela parte, ou viceversa. Como quando se diz "mortais" (gênero) ou "cabeças" (parte) para referir-se a seres humanos, 84,121-123,161. Slogan. 83-84,86,94, 102, 115-117, 122, 126, 135-136, 156-157. Sofisma. Raciocínio aparente e ilusório, por não respeitar as regras da lógica: "Hitler era favorável à eutanásia; você também; logo, você é hitlerista", 7,31,35-36,100-102,111,167-173,220. Suasório. Em Roma, exercício do discurso deliberativo, 75. Subjeção. Espécie de pergunta retórica. Tapinose. Hipérbole depreciativa: "Esse aborto da natureza", XII, 123-124. Tautologia aparente. Argumento que consiste em repetir uma palavra com dois sentidos um pouco diferentes, como se isso não ocorresse: "Mulher é mulher", 170, 191. Tese (thesis, questio). Questão de interesse generalíssimo discutida pela dialética e pela retórica: "O tiranicídio é lícito?" No sentido moderno: afirmação teórica que deve ser provada, 24, 27, 29-33, 35,38,40,53,55,59,61,69, 77, 91-92, 110-111, 167-168, 170174,200,202,206,208,212,214,223. Tropo (tropos). Técnica de denominação que consiste em tomar uma palavra com o sentido de outra, por metáfora, metonímia ou sinédoque. Pode ser catacrese: "O nó do caule, onde se inserem as folhas", ou figura de sentido: "O nó da questão", 180 s. Valores. 8,45, 165-166, 174, 178-181,223. Verdade e retórica. XI-XII, XIV-XVI, XX, XXII, 3, 5-6, 8-10, 12, 14, 21-22, 35, 39-40, 71-73, 75-78, 84-87,163-169,172177,182,185. Verossimilhança (eikos, verisimile). Termo-chave da retórica. Designa o que acontece na maioria das vezes, ou o que a maioria das pessoas pensa, e que é proposto para admissão até prova em con-

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trário. É a "confiança presumida", 3, 39 49-50 52 95 141 174 206-207. ' ", , , Vivacidade. 63-64, 69.

- Muitos nomes de figuras tinham na origem um sentido bem maIS amplo do que o atualmente atribuído. Em Aristóteles metaphora desvio de sentido e compreende o conjunto tro (Poetlca, 1457 b). A auxesís dos retóricos gregos significava ampl,lficação, da retórica, mas depois passou a designar apenas hiperbole. valonzadora, auxese. A parrhesia, que significava antes discurso dIreto e figurado (o Evangelho a opõe à parábola), transformou-se na parresía, figura da franqueza brutal. Esse encolhimento semântico sem dúvida é um declínio indesejável, e a tarefa da nova retórica seria trilhar de novo o caminho ascendente, indo das figuras fossilizadas ao espírito que as engendrou.

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