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April 4, 2017 | Author: Capbm | Category: N/A
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IMAGEM TAMBÉM SE LÊ OBJETO/DESIGN

Sandra Ramalho e Oliveira

EDITORA ROSARI 2004

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PRIMEIRO, O CARDÁPIO As letras douradas da minha tese de doutorado sumiram. As capas dos dois exemplares, depositados na biblioteca da universidade onde eu trabalho, estão sem identificação, quase. Considerando-se que se tratava de uma impressão de boa qualidade, fiquei vaidosa, pois é um indício de que ela está sendo bastante lida, ainda que sendo uma tese, geralmente sinônimo de leitura muito de um texto muito formal e, por isso, enfadonha. Assim, achei que o assunto poderia ser interessante para um número maior de pessoas. Seu título é “Leitura de imagens para a

educação”; foi defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, sob a orientação de Ana Claudia Mei Alves de Oliveira e ela dá origem a este livro. *****

Minha preocupação vem sendo, há tempo, o acesso às imagens, ou melhor, à significação das imagens. Como professora de arte, muitas vezes eu mesma tinha dúvidas diante de determinadas obras. Buscava orientação nos conhecimentos de história da arte, ou na história de vida dos artistas. Mas tinha pruridos éticos; como professora, achava que eu não poderia ter certas dúvidas. Eu me sentia, por vezes, uma impostora... Nesse tempo, preocupavam-me exclusivamente as imagens artísticas. Ainda assim, como motivar as pessoas para compreender a arte contemporânea, se agora é que muitos começam a perder as resistências em relação à arte moderna (não faz muito que assisti alguém conhecido ficar exultante por “descobrir” que Picasso “também sabia pintar”, ao visitar o museu que leva seu nome, em Paris, onde as obras do início da sua carreira também estão expostas)? Em seguida, novas deduções: fora dos grandes centros, a arte vem sendo

sistematicamente terceirizada. Quero dizer com isto que nas escolas, mesmo em muitas escolas superiores, e até em algumas paredes tidas como respeitáveis, as imagens às quais se refere como se arte fosse, são meras reproduções. Nas escolas, a arte está terceirizada em livros, slides, transparências e, mais recentemente, em power point. Assim, os alunos não estão estudando arte, mas outra mídia, geralmente, a fotografia “da” arte (e não a fotografia “de” arte). E pelo fato de ser outra mídia, a imagem fotográfica que reproduz a arte, geralmente a modifica em, no mínimo, três de seus elementos constitutivos: dimensão, cor e textura. E esses elementos, já que são

3 “constitutivos”, eles são básicos, eles constituem a imagem, eles engendram sua significação. E se estão distorcidos (ou modificados), implicam modificações na sua significação. Quando uma reprodução é apresentada “no lugar” da arte, além de a “imagem em questão” não ser a “imagem em questão”, seu significado fica inevitavelmente alterado. Lembro-me do impacto que senti diante de três exemplares da série “Os Retirantes”, de Portinari, ao subir as escadas do MASP, percebendo-os tão mais eloqüentes (porque tão “maiores”) do que as pequenas reproduções que eu conhecia... Diante desta constatação, percebida de diversos modos, ampliou-se o raio do meu interesse sobre imagens. Não me desafiavam “apenas” as imagens artísticas, mas todo o universo visual em torno de nós, dos rótulos às capas de caderno, do desenho dos biscoitos à estamparia de tecidos, dos cartazes às capas de CD, da organização que associa texto verbal a imagens visuais (isto não é redundância, como veremos mais tarde), dos jornais à propaganda eleitoral gratuita. Além do mais, ou seja, além de podermos estudar com nossos alunos o original dessas imagens, e não sua cópia, os exemplares de composição visual no qual elas consistem eram – e são – sempre mais próximos da realidade dos alunos, o que faz com que lhes seja mais interessante conhecer melhor. Aí está o

início (ou o início da formalização) do meu interesse pelo design. *****

É necessário – e eu continuo defendendo isto - que as pessoas possam conhecer e usar um referencial mínimo para poder decodificar o universo de imagens que invade o seu cotidiano. Intuitivamente eu achava que a mesma base estrutural que sustentava as imagens da arte também estava presente na base das imagens estéticas do cotidiano. Depois, confirmei através de teorias e de exemplos. Primeiro, foi necessário estabelecer teoricamente esta classificação. Mas, afinal, o que é arte? Pergunta irrespondível, definitivamente, é claro, pois pode ser respondida dos mais diferentes modos. No meu caso, eu precisava saber, ou

diferenciar, o que era arte do que não era (e o que seriam essas imagens que não eram arte?). Jan Mukarovský foi o teórico que me auxiliou, neste sentido. É uma das questões que eu trato no primeiro dos meus “textosdesign”, que recebeu o título de IMAGENS

DO DESIGN, IMAGEM DA ARTE? Não menos polêmico é o assunto seguinte: estética. Quais os diversos sentidos e interpretações que esta palavra carrega consigo, através da história? E o que hoje atribuímos a ela? Se

4 imagens nos interessam, seja quanto à criação ou à leitura (e não é melhor escritor aquele que muito lê?), os significados da palavra estética, as funções das imagens, sua condição de imagem estética ou imagem artística têm que interessar também. Disso aborda o texto que tem como título

AFINAL, O QUE É ESTÉTICA?, que acabou começando também com um questionamento, como o anterior. Tudo a ver... não são as dúvidas que nos fazem pesquisar, buscar conhecimentos? ***** Confirmada, com a devida unção teórica, a possibilidade de não se ter preconceitos em relação às imagens, independentemente de suas funções ou da categoria na qual esteja ela classificada, era imperativa a busca de uma via de acesso à significação. Qual a chave que pode abrir a misteriosa porta da arte conhecida como “abstrata”, por exemplo? Seria a História da Arte, com seu acervo de características de uma sucessão de estilos, movimentos, acontecimentos, vidas? Ou a Psicologia, por meio de interpretações das pinceladas daqueles que são compelidos a se expressar através da arte, dada a incapacidade das linguagens convencionais para explicitar seus sonhos? Ou a Sociologia, atenta às características do contexto, as quais permitem o surgimento de fenômenos artísticos, cada vez mais associados a movimentos sociais? Ora, foi aí que entrou a Semiótica. E, ao entrar também aqui, me obriga a escrever um pouco mais, mesmo sendo o mais breve possível. É apenas UMA PINCELADA DE SEMIÓTICA. E nem vai precisar pular o capítulo; além de ser um assunto que é bom estar por dentro, pois parece estar “na moda”, garanto não ser chata. ***** Tudo é preparação para o que vem depois, que são as leituras de imagens. Antes ainda de começar, falta apresentar o “como fazer”, ou seja, o roteiro, ou os passos da proposta metodológica,

para que os leitores possam depois fazer as suas próprias leituras de imagens. Os professores de arte poderão trabalhar com seus alunos usando mil imagens diferentes. Os designers de todas as especialidades poderão desconstruir imagens para melhor estudá-las e melhor criar novas imagens. E o leigo, bem, para ele vou contar a lição que deu meu Primo Paulo, advogado: -

Legal te interessares tanto por arte! Afinal, nem á a tua área...

-

Como não é a minha área? Eu sou gente!

5 Assim, para todos que “são gente”, escrevi UM MODELO PARA LER IMAGENS. Foi durante a escrita deste capítulo que senti a necessidade de incluir alguma coisa sobre a violação de normas quando da criação de imagens. Mais precisamente, ao estabelecer analogias entre o texto verbal e o texto visual. Daí surgiu ABAIXO AS REGRAS. ***** Apresento as duas primeiras leituras, que são de duas obras de arte, usando esse modelo que venho propondo. Afinal, foi da arte que eu parti... E outra: o mesmo modelo de análise usado para uma imagem da arte serve para a análise de uma imagem ou a imagem de um produto do design. Isto será mostrado, exatamente pela analogia das leituras e pela semelhança entre os passos. No tocante à arte, uma das imagens analisadas é uma colagem de Matisse, a obra chamada “Formas”, em um texto verbal intitulado FORMAS MATISSIANAS; a outra é um Portinari da série “Os Retirantes”, que se chama “Enterro na Rede”, no capítulo batizado de UM ENTERRO

SEM CAIXÃO. ***** De imagens artísticas para imagens estéticas, entramos no campo da moda; inicialmente, uma espécie de introdução, onde lembro que a moda é um profícuo sistema de comunicação entre os seres; por isso essa parte recebeu o título de MODA TAMBÉM É TEXTO. Ela vem seguida de uma leitura de uma imagem nessa área, intitulada

ARGOLAS

DOURADAS. Como a moda é, intrinsecamente, mutante, e como também é muito complexa, em termos de elementos constitutivos e até de figuras que a compõe, tomei formas, as argolas, e cores, os dourados, que são recorrentes ao longo da história, para pensar um pouco sobre esta “linguagem” que usa o corpo como suporte através da história e da geografia. Igualmente, as argolas douradas servem aqui de um exercício de análise do minimalismo e, neste sentido, pretendo ainda aplacar um pouco os preconceitos e mostrar as identidades/identificações entre entidades perceptíveis ao olhar. *****

6 Não esquecendo da relação, nem sempre harmoniosa, entre design e artesanato, escrevi

ENQUANTO O ARTESANATO NÃO SE ATUALIZA, para compartilhar com o leitor preocupações sobre esta “linguagem” tão designer, como é a “linguagem” artesanal, a qual é complementada com a análise de duas imagens tridimensionais. É mais um dos “textosdesign” que apresento, o qual batizei de IMAGENS HAND MADE, que consiste em uma minuciosa leitura de duas peças de cerâmica figurativa, oriundas da minha terra, o litoral catarinense. Através deles faço também uma homenagem à toda produção visual de Florianópolis e adjacências. ***** Então, entramos no âmbito do produto. Devo confessar que tenho uma predileção por vidros de perfume (e pelo seu conteúdo também). Vai ficar evidente, pois apresento partes selecionadas de meu estudo de pós-doutorado, desenvolvido em Paris, sob a orientação do semioticista italiano, radicado na França, Andrea Semprini, tendo como objeto de estudo imagens específicas da marca Givenchy. O perfume Hot Couture – seu vidro – foi estudado, vindo a compor com outra leitura de frasco desenvolvida ainda no doutorado, qual seja, o vidro do perfume Eden, da Cacharel. Iniciamos com

FRASCOS TAMBÉM SÃO TEXTOS, que contém considerações de ordem geral, tendo como foco a significação das imagens, ainda que em forma de vidro de perfume. Seguimos com ESSÊNCIA DO PARAÍSO NUMA GOTA, o capítulo onde é apresentada a leitura do perfume Eden, da empresa francesa Cacharel e, logo após, é apresentada a leitura de Hot Couture, que recebeu o título de UM PRISMA QUE É MAIS QUE UM

FRASCO. ***** Chegamos então no último bloco de textos, este voltado para a publicidade. O primeiro capítulo, introdutório como os que antecederam as leituras da moda,do artesanato e dos frascos, recebeu o título de PROPAGANDAS, TEXTOS SINCRÉTICOS. Para comprovar esta afirmativa, apresentamos as duas últimas leituras de imagens; uma delas refere-se à marca Mont Blanc e recebeu o título de UMA CANETA “TRÈS CHIC”.

7 O outro exercício de leitura de imagem publicitária consiste no capítulo intitulado

UM

DIÁLOGO ENTRE DESIGNERS. Ele encerra esta coletânea, mostrando as relações intertextuais que se estabelecem em um texto híbrido ou miscigenado como o da publicidade do perfume Hot Couture, de Givenchy. É o último dos “textosdesign” que ora apresento. Enfim, são muitos temas; eles todos têm relações entre si, mas apontam para distintas questões. São escritos que foram bem sintetizados, “penteados”, simplificados, para facilitar o acesso do leitor... afinal, são duas teses saindo da prateleira... e de uma só vez... Mas não é preciso que o leitor se assuste com isso: além de sintetizado, simplificado e “penteado”, tudo foi devidamente “traduzido”, daquele linguajar pomposo das teses para um português que todo mundo entenda! E, depois de tudo, THE END é o fim!

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IMAGENS DO DESIGN, IMAGENS DA ARTE? Existem diferenças entre as imagens produzidas nas diversas áreas do design e as imagens consideradas obras de arte? Para complicar mais a questão, vamos fazer uma outra pergunta: pode uma imagem

estética, produzida por um designer, destinada a um determinado fim específico, vir a tornar-se uma obra de arte? Como se sabe, as imagens podem desempenhar vários papéis. Fica então registrado que o parâmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo não sendo absoluto nem definitivo, uma vez que não se trata de um referencial destituído de polêmica. Assim, este pode ser um bom começo para a discussão: analisar as finalidades que podem ter as imagens. Isto significa examinar as funções de cada imagem, verificar como ela funciona, para quê ela serve, para poder definir se ela é um produto do design ou uma obra de arte. Existem diversos estudiosos que são contra pensar em arte como um fenômeno que tenha “função”, pois a relação entre a arte e o sujeito deveria ser de “pura gratuidade”. Outros dizem que o próprio fato de uma imagem “funcionar esteticamente”, já é, em si, uma utilidade, uma função. O que se observa é que as funções de uma imagem podem mudar, através não só do tempo, como do espaço. E se mudam as funções, conseqüentemente, também pode mudar a categoria dessa imagem. Por exemplo, o que em determinado contexto cultural teve função religiosa e persuasiva pode, em outro espaço, deixar de tê-las, mesmo que permaneçam outras funções, como a simbólica e a estética. Servem como exemplo as Igrejas que são ou que contém relevantes obras de arte sacra, e que hoje estão transformadas, praticamente, em museus, pois são abertas permanentemente à visitação – e muitas delas cobram ingressos – já que nelas raramente são oficiados atos litúrgicos; nessas circunstâncias, inexistem funções religiosas e persuasivas.

Cartazes de espetáculos, como os que foram criados no início do século por Toulouse-Lautrec podem, através do tempo, perder sua função informativa. Prova disso é que nos recortes desses cartazes, quando da sua reprodução, não há cuidado com elementos verbais, pois certas palavras foram cortadas ao meio, já que só tinham sentido quando os cartazes possuíam a função informativa. Mas neles ainda restam as funções simbólica e estética. Outros tipos de imagem podem servir de exemplo para a ocorrência de mudança nas funções das imagens. É o caso das pranchas de botânica, aquelas dos cartazes escolares ou mesmo reproduzidas nos livros de ciências, contendo como ilustração de cada planta, o desenho do fruto

9 “aberto” e “fechado”, da flor, da folha, da árvore inteira. Muitos exemplares dessa categoria de imagens são comercializados em galerias de arte. Para ampliar ainda mais os exemplos, lembramos das imagens produzidas pelos viajantes

europeus que aqui no Brasil estiveram, como Rugendas, Debret ou Eckhout. Eles desenharam a flora e a fauna, os trajes, os costumes, os tipos físicos aqui encontrados na época, com a principal finalidade de mostrar, em terras distantes, como a vida acontecia por aqui. As exposições desses trabalhos têm levado muita gente aos museus onde se realizam. Hoje, são considerados arte. Em um olhar panorâmico em direção ao mundo das imagens, poderemos nelas encontrar diversas

funções:

mágicas, religiosas, políticas, estéticas, epistêmicas,

informativas, decorativas, persuasivas ou até comerciais. Além da função simbólica, que parece ser inerente à sua condição de imagem, uma ou mais funções podem se realizar em uma mesma imagem. Exemplificando, praticamente todos os afrescos com temas religiosos, além de sua função simbólica, guardam ainda as funções religiosa, estética e persuasiva. Um videoclipe publicitário, juntamente com seu caráter simbólico, tem também função persuasiva e comercial, além de apresentar uma proposta estética. Assim parece claro que as imagens se prestam para diversas finalidades, que podem ser chamadas de funções, e que essas funções podem se alterar, ao longo do tempo. Fica então registrado que o parâmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo não sendo absoluto nem definitivo, uma vez que não se trata de um referencial destituído de polêmica. ***** De posse dessas idéias, podemos apreciar (e, quem sabe, adotar) uma afirmação baseada em Jan Mukarovský, um estudioso da estética e da significação das imagens; ela pode funcionar como um paradigma quando da necessidade de classificação de imagens e pode ser assim resumida:

quando a imagem tem entre suas funções a função estética, mas ela é secundária, temos uma imagem estética; quando a imagem tem entre suas funções a função estética, e ela é a mais importante, temos uma imagem artística.

10 A partir deste paradigma podemos responder às questões iniciais. Em primeiro lugar, sim, existem diferenças entre imagens da arte e imagens do design, na medida em que existem distinções entre as funções dessas imagens. E quanto à segunda questão, um produto do design, uma imagem ou um produto estético pode tornar-se, sim, uma imagem ou produto artístico: no momento, no contexto e na medida em que sua função estética tornar-se mais importante do que suas outras funções utilitárias. É o que acontece com muitos produtos do design que já estão em museus, porque são representativos de um estilo, ou de um movimento estético, ou significam uma quebra de paradigmas ou registram um determinado momento da história. Neste sentido (e para concluir), é ainda importante lembrar que toda a imagem artística

é estética; mas nem toda imagem estética é artística.

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AFINAL, O QUE É ESTÉTICA? Estamos, todo o tempo, falando de imagem “estética”; devido a mudanças ocorridas, igualmente através do tempo, com a palavra estética, torna-se necessário atualizar o conceito que está por trás desta palavra. Muitos enganos podem ser cometidos ao se ouvir ou usar a palavra estética. Geralmente, ela é considerada sinônimo de beleza, e esta beleza sendo considerada como padrão ideal, com base no estilo clássico da antiga Grécia e depois, de Roma, princípios formais mais tarde retomados no Renascimento, como o equilíbrio e a harmonia. Mas estamos no século XXI e os equívocos continuam. Daí merecer uma revisão as definições que a palavra estética recebeu através da história. Derivada do grego aisthetikós, de aisthanesthai, que quer dizer perceber, sentir, a palavra foi usada primeiramente por Alexander von Baungarten, no século XVIII, para designar mais do que ciência do belo: o estudo da sensação ou a teoria da

sensibilidade. Estética, como disciplina da área da Filosofia, é relativamente recente na história do pensamento humano, portanto. Mas os homens pensam acerca da natureza da arte, do porquê e do para quê da atividade artística muito antes de Baungarten ter batizado esse conjunto de conhecimentos com o nome de Estética. Daí que estética, no sentido de reflexão sobre imagens produzidas pela humanidade, existiu desde os tempos mais remotos, mesmo que o termo não fosse usado para nomeá-la; e mesmo que não se tenha autores de textos verbais na pré-história, é certo que se pode extrair questões científicas, estéticas, a partir da produção gráfica da arte rupestre. ***** Podemos ainda considerar como origem da Estética a Antigüidade grega, mesmo que não tivesse este nome, como já foi afirmado. Não que os gregos tenham concebido um sistema estético, mas certamente elaboraram determinados princípios que não se pode adjetivar de outra maneira que não seja de estéticos, os quais podem ser encontrados em diversos pensadores. Após o período mitológico, ou seja, o período onde a visão do homem grego se delineava através de mitos, deu-se um período intermediário entre aquele e o que foi denominado metafísico; trata-se do lapso de tempo e espaço chamado de mitológico-poético, onde os poetas como Hesíodo,

12 Homero, os líricos ou os precursores do teatro como Ésquilo e Sófocles falam de estética cantando, à sua maneira, o que entendiam como sendo a beleza. Nesse período, surge a beleza como atributo de traços e cores, na natureza e na figura feminina; posteriormente, os homens também podiam possuí-la, quase sempre associada à força ou à bondade. Mais tarde, a beleza passa a ser também qualidade de objetos, bem como da música e

do canto, com os poetas líricos. É a partir deles, também, que a beleza física começa a ser vinculada à beleza moral. Com os trágicos, a beleza é associada à idéia de morte, dando origem a uma estética dramática que, transitando em temas que buscam equilibrar loucura humana e espírito de justiça, apresenta-os estruturados nas três unidades, espaço, tempo e ação. Com Pitágoras, inaugura-se o formalismo: os números, as medidas, as figuras,

as dimensões postos a serviço da harmonia, norma estética proposta para a articulação de elementos, aplicável à música e à geometria. Em Sócrates, evolui um pouco mais o que anteriormente havia sido apenas entrevisto: a fusão

das idéias de beleza e de bem, conceito denominado kalocagatia, o que viria a ser consolidado, posteriormente, por Platão. Para Sócrates, é belo o que cumpre sua finalidade; trata-se de uma estética utilitária, mais preocupada com o conteúdo do que com a forma. Platão, na obra Hípias maior, dedicada especificamente ao belo, recapitula as propostas anteriores, ou seja, posiciona-se frente a conceitos estéticos preexistentes. Nesta obra Platão define teses fundamentais para a história da estética, entre as quais se destaca a proposição de uma noção de beleza, um conceito de belo, belo em si, belo ideal e não só o belo como

atributo de alguma coisa. Importante também é a transformação que faz sofrer o conceito de beleza utilitária, tomado de Sócrates, ao vincular o belo ao bem, bem em si, acabado e perfeito, e não ao útil, como queria Sócrates; para Platão, a beleza suprema está no verdadeiro e no

bem. É a definição do conceito de kalocagatia. Há uma diferenciação entre belo e arte para Platão, pois o belo é incorruptível, está

no mundo das idéias e confunde-se com o bem, enquanto que a arte é uma tekné, existe no mundo do sensível, é matéria. E se o mundo sensível é a cópia do mundo das idéias, a arte é menor que beleza: faz coisas belas, mas não é beleza em si. Ainda segundo suas teorias e sob influência pitagórica - o ouvido e a vista transmitem as sensações organizadas através das medidas, o metron; assim, a beleza nas artes está subordinada a elementos de

prazer e de ordem.

13 Se, para Platão, a realidade é uma cópia imperfeita das idéias, para Aristóteles, seu discípulo, o importante é a realidade, uma vez que as idéias são abstratas; assim, para ele, quanto mais se materializa a coisa, mais real se torna o conhecimento e quanto mais a

imagem é abstrata, mais genérico é o conhecimento. Da mesma maneira que seus antecessores, Aristóteles não deixou um sistema estético, mas sim opiniões sobre o belo e sobre a criação artística, considerada sempre por ele uma técnica, campo onde incluiu a música, a poesia e o teatro, deixando de lado as artes plásticas. O valor da arte, para ele, residia no fato de ser uma atividade do homem e não por ter um valor em si mesma, uma vez que seus esforços estavam centrados na constituição do ser humano. Reduzida à condição de técnica, Aristóteles diferenciava, como Platão, a arte do belo, que para ele era metafísico. Distingue o bem, que para ele tem uma finalidade, do belo, que não a tem. Separa ainda o belo moral (cósmico, prático ou útil) do belo formal e, neste último, destaca a importância da matemática, pois para ele o belo está condicionado a leis que tornam a forma bela, à simetria e ao que chama de determinação, uma modalidade da ordem. Fundamental para o estudo de estética são as formulações de Aristóteles sobre a tragédia e, em especial, um conceito que viria a ser recorrente na história, diversas vezes utilizada na Filosofia e mais adiante na Psicanálise: a catharsis, a purgação das paixões através do

sofrimento, da tragédia, esta considerada por Aristóteles como a ilusão do verossímil. ***** Na Idade Média, deu-se uma incompatibilidade entre o ideal cristão e a preocupação com a beleza, pelo fato de se acreditar que o belo suscitava o que é sensível e sensual no homem; esta espécie de temor caracterizava o sentimento de época e foi o que levou S. Tomás a declarar: “Pulchritudo corporis est pulchritudo maledicta”. Ainda no primeiro período medieval, Santo Agostinho, que filosofava para resolver os problemas da sua própria existência - sendo considerado o precursor do existencialismo - deixou reflexões sobre o signo e a beleza, inclusive a do corpo. Mas durante esse período, a maior contribuição foi a de S. Tomás de Aquino. Ele distingue três categorias de bem: o bem útil, que não é belo porque não é desinteressado; o bem deleitável, que pode levar ao pecado da luxúria, através da lisonja; e o bem honesto, desinteressado e espiritual, como o belo da alma, onde o bem e o belo se confundem.

14 No seu sistema filosófico, são diversas as abordagens de beleza, sendo que de Aristóteles toma duas das três características a ela atribuídas: a integridade ou perfeição e a justa

proporção ou harmonia. A terceira característica tem em S. Tomás mesmo sua origem e por isso merece destaque:

claritas, que é claridade, que é luz, luz que é Deus, luz que é cor, pois sem luz não há cor e a cor torna as coisas mais belas. É esta estética da luz que se presentifica na catedral gótica, mais precisamente, na luz passando através dos seus vitrais. De qualquer maneira, na Idade Média prepondera o valor utilitário da arte, sendo que este sentido permanece na transição para o Renascimento, quando o ofício de construir a beleza é um ato de fé e fruí-la é a contemplação do divino. A arte é utilizada pedagogicamente para evangelizar, através da imitação da natureza ou de alegorias. ***** No Renascimento, a arte deixa de ser um meio para ser um fim em si mesma e a retomada dos ideais da Antigüidade Clássica, com nova roupagem, substitui o misticismo medieval. O homem, como centro do universo, é a idéia fundamental, presente nas teorias e confirmado na produção artística, onde a beleza sensual glorifica as manifestações mais altas da arte. Nesse período histórico, surgem tratados sobre a arquitetura e escultura e mesmo sobre as cores, e o conceito de beleza passa (ou volta) a ser confundido com o de arte. A partir daí também os estilos artísticos adquirem características próprias em regiões diferenciadas, de acordo com as influências e o pensamento do respectivo contexto: na Espanha, permanecem resquícios medievais, dado o sentimento nacional de religiosidade, o qual disputa espaço com as influências estrangeiras; na França, a partir do século XVIII e por influência do racionalismo, a sensibilidade deve subordinar-se à razão e às leis dela emanadas. Em torno deste período da história, diversificam-se as correntes filosóficas e muitos são os estudiosos que se ocupam com questões como as sensações, a sensibilidade, a beleza e a arte, em maior ou menor proporção. A partir de Baungarten, a Estética passa a ser considerada uma disciplina específica, o que torna mais objetiva a busca teórica, ainda que “dentro” da Filosofia. Desde que adquiriu o status de área específica do conhecimento, o termo “estética” foi se ampliando cada vez mais, quer para designar as teorias do belo e da arte, quer para compreender as teorias mais recentes que já não remetem a beleza à sensação ou a arte ao

sentimento, como nem mesmo ligam a arte à beleza.

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***** Em pleno século XX, um francês, teórico da significação, chamado Algirdas Julien Greimas, resgata o sentido de estética como inicialmente proposto por Baungarten, pautado na noção de

percepção de sensações, concede-lhe nova roupagem e o aprofunda, na medida em que estabelece relações recíprocas entre o sensível e o inteligível. Esta espécie de trânsito entre o cognitivo e as sensações é o que possibilita o acesso do sujeito ao mundo, independentemente da cara que este mundo tem, “bonita” ou “feia”. Isto porque Greimas se afasta de um conceito de estética vinculado ao belo e se aproxima da Estética como estesia - percepção através dos sentidos, do mundo exterior, análoga ao conceito de Baungarten. Trata-se da experiência do prazer ou mesmo do

desprazer, das percepções dos sentidos, da sensualidade e da sensibilidade. Nada mais adequado do que esta ampliação, uma vez que, na produção artística contemporânea, verifica-se a presença do jocoso, do irônico, do escatológico, da transgressão, da descontinuidade, da pluralidade, das interfaces, da atemporalidade,

da arte virtual, do chocante, do forte,

dessacralização, em relação à arte e ao artista. Enfim, a arte contemporânea produz o que alguns chamam de antiarte. É necessário, pois, ampliar os mecanismos de percepção e recepção, bem como a disposição para a reflexão sobre a contemporaneidade.

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UMA PINCELADA DE SEMIÓTICA O que é Semiótica? Antes de tudo, este é o título de um livro de Lúcia Santaella, que bem melhor responderá a esta questão específica, pois nele ela dedica-se apenas a respondê-la, ainda que se declare impotente para concluir tal tarefa, remetendo o leitor para outras leituras. Do mesmo modo, Winfried Nöth, em dois trabalhos, quais sejam eles, “Panorama da Semiótica” e “Semiótica no século XX”, responde, de um modo respeitável, à aparente simplicidade da questão. Isto tudo me lembra meu querido sobrinho neurocirurgião, o Dr. Marcelo Linhares que, em visita, durante meu “postdoc” “à Paris”, fez a mesma aparentemente singela questão. Ouviu tentativas de respostas durante a noite inteira... E na noite seguinte, ao encontrarmos brasileiros na Opera Bastille, percebendo que faziam a mesma pergunta, exclamou, balançando a cabeça entre as mãos, temendo participar de nova pregação: - Não! Eles fizeram “aquela” pergunta (o que é Semiótica)! Existem muitas histórias sobre apenas “o que é Semiótica”, sem entrar no que seja Semiótica, propriamente dita. Exemplos: ainda do livro da Santaella, anteriormente citado, ela coloca: seria o estudo dos símios? Ou uma especialidade em Camões? Meu próprio filho, subsidiado por primo Paulo (aquele que é gente), dizia que eu era uma semi-ota, mas que, a partir da defesa do doutorado, passaria a ser uma ota inteira. Também há o caso da vizinha de poltrona de avião, quando eu estava rumo ao congresso internacional realizado no México, em 1997, que perguntou, ao saber que me destinava ao congresso de Semiótica, se eu era oftalmologista... E isto é verídico!!! Encerrando as brincadeiras, embora algumas verdadeiras, – e com elas procurando tirar lições – o fato é que Semiótica é uma palavra e um conceito desconhecidos. Isto porque ela é uma nova, em termos de organização em sociedade científica, ao menos – área de conhecimentos (para não contrapor aos que não aceitam chamá-la de ciência). Mas, com tantos senões (é ou não é ciência? é uma área nova, de fato?

existem várias Semióticas?), parece haver mesmo necessidade de algumas palavras sobre Semiótica, neste livro; por outro lado, como se está pretendendo também atingir um público leigo, além de estudantes que não tenham tido Semiótica anteriormente no seu currículo, mais evidente ainda parece haver a necessidade de apresentar algumas idéias sobre o assunto; e remeter os leitores mais interessados a fontes mais completas, profundas ou específicas.

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***** A primeira questão que surge, geralmente, quando se pronuncia a palavra Semiótica, é a seguinte: o que existe em comum entre Semiótica e Semiologia, este último, um termo mais conhecido dos leigos? De acordo com o francês Roger Odin, poder-se-ia escrever um livro para estudar em detalhes a totalidade das definições propostas para cada uma destas duas palavras; no entanto, ele apresenta três possibilidades. A primeira hipótese seria a de considerá-las sinônimos, sendo apenas diferenciadas pelo fato de semiologia ser um termo de origem européia e Semiótica, de origem norte-americana. A segunda possibilidade apontada por Odin, para diferenciá-las, consiste em se reservar a palavra semiologia para a tradição saussureana (teorias dos seguidores do suíço Ferdinand de Saussure), e Semiótica para a tradição peirceana (teorias dos seguidores do norte-americano Charles Saunders Peirce), não apenas para diferenciar seus pais fundadores, mas para distinguir seus modelos teóricos e corpos de referência: estruturalismo no caso da semiologia e pragmatismo, no da Semiótica. A terceira relação entre semiologia e Semiótica apontada por Odin diz que, na França, Semiótica é freqüentemente usada para designar as teorias propostas pelo francês A. J. Greimas, as quais pretendem dar conta do fenômeno da produção de sentido em geral, diferenciando-a assim da semiologia européia, que se ocupa do estudo da estruturação das linguagens, além da sua produção de sentidos. Mas, para os iniciados, esta polêmica entre os termos Semiologia e Semiótica passou a ser um episódio histórico a partir de 1969, quando Roman Jakobson propôs - e a Associação Internacional de Semiótica aceitou – a adoção do termo comum Semiótica para

designar todo o campo de estudo abarcado tanto pela semiologia quanto pela Semiótica. ***** E “o que é Semiótica” (volta a tal pergunta)...? A palavra Semiótica é derivada do grego semeion, que significa signo. E signo significa tudo aquilo ou todo aquele que significa, de um modo simplista.

18 São inúmeros os estudiosos que vêm tentando definir Semiótica, até porque, como já pode ser observado anteriormente, existem várias correntes teóricas dentro da Semiótica, e cada uma delas a define de acordo com sua visão específica. Algumas dessas conceituações são complexas; todavia, pode-se iniciar por definições sucintas, não podendo evitar simplificações grosseiras e lacunares, conforme palavras de Lúcia Santaella. Semiótica é a ciência geral dos signos; também pode ser considerada a ciência da significação, ou ciência que estuda todas as

linguagens; ou ainda, “ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido”, se usarmos palavras da já citada estudiosa Lúcia Santaella. Pode ser ainda definida como a “ciência geral de todos os sistemas de signos através dos quais estabelece-se a comunicação entre os homens”, usando-se palavras de T. Coelho Netto; ou conforme Odin, inspirado em Greimas: “teoria geral dos sistemas de comunicação, capaz de possibilitar

o estudo do conjunto dos processos de produção de sentidos, seja intervindo nas linguagens verbais, não verbais ou no mundo natural”. Semiótica também pode ser considerada como um conjunto de meios que tornam possível o conhecimento de uma grandeza manifesta qualquer que se propõe conhecer, “tal qual aparece durante e depois de sua descrição”, se considerarmos a definição do Dicionário de Semiótica de A. J. Greimas e J. Courtés. Ou a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose)

na natureza e na cultura, conforme Nöth. Porém, o próprio Winfried Nöth pondera, a seguir, seu conceito integrador, reconhecendo que esta definição não é aceita por todos os estudiosos da área. Enfim, são muitos os modos de conceituar esse campo de estudo que é recente, em termos históricos, enquanto conhecimento sistematizado, embora remonte às cavernas seu objeto de estudo, qual seja, o fenômeno da significação. E, por outro lado, o próprio estudo das linguagens verbais e nãoverbais remontam a Platão, embora não organizados no contexto de uma área específica de investigação. ***** Na História Antiga, esses estudos situavam-se no âmbito da Filosofia; na Idade Média, nos domínios de vertentes da Filosofia – Teologia e Lógica, bem como da Gramática e da Retórica; daí em diante, dentro de diversas correntes filosóficas e da Filologia; modernamente, na Lingüística, na Teoria Literária, na Antropologia, na Semiologia e nas chamadas ciências da Comunicação e da Informação,

19 até essas diversas vertentes se encontrarem em um estuário caudaloso e desembocarem em um mar comum, denominado Semiótica, já na segunda metade do século XX. Daí o questionamento a respeito de ser ou não a Semiótica uma ciência recente. ***** Outra questão polêmica diz respeito a ser ou não a Semiótica uma ciência. Alguns propõem como pressuposto para considerar qualquer conjunto de conhecimentos acumulados e em desenvolvimento como ciência, o fato de existir um objeto de estudo definido, um

método de investigação próprio e uma base teórica comum. Ora, o que contemporaneamente se considera Semiótica não atende a nenhum dos três pressupostos. Não existe um objeto de estudo para a Semiótica: poder-se-ia dizer as linguagens; mas como delimitar linguagens, quando hoje se fala da ecossemiótica, da sociossemiótica, da biossemiótica e da semiótica da cultura? Conseqüentemente, essa diversidade de objetos de estudo exige equivalente multiplicidade de instrumentos de investigação. O mesmo vai ocorrer, como se pode deduzir, do referencial teórico necessário para dar conta desse mundo significante. Ou seja, os fundamentos semióticos estarão associados ora a bases teóricas das ciências da vida, ou das ciências sociais, ou da Física, da Filosofia, ou de uma ou mais subdivisões de alguma dessas ciências, como a Estética, para dar conta da especificidade de cada objeto de estudo. Assim sendo, permanece a polêmica. Como se já não bastassem essas interrogações (Semiótica ou Semiologia? recente ou remota? ciência ou não?), a Semiótica contemporânea apresenta escolas ou linhas teóricas distintas, o que já foi evidenciado quando da apresentação de definições, pois cada definição encerra um modo particular de descrever o que seria a área de estudo, na dependência da matriz teórica a qual se filia seu autor. Existem, portanto, diversas linhas teóricas dentro da Semiótica, mas vamos fazer umas poucas considerações apenas sobre três delas, que são as mais conhecidas no Brasil. Uma delas é a chamada Semiótica Russa, Semiótica Soviética ou Semiótica da Europa Oriental, sendo que depois de vários desenvolvimentos nas teorias e após algumas mudanças geopolíticas havidas naquela região da Europa, hoje é conhecida como Semiótica da Cultura. Dizem os autores, entre eles Bóris Schneidermann, autor do livro Semiótica Russa, que na segunda metade do século XIX, na Rússia, embora não existisse ainda essa área de conhecimento estruturada, já havia uma consciência semiótica, que perdurou praticamente até Stálin assumir o poder. Essa consciência se não nasceu, ao menos seus princípios estavam presentes nos estudos do grupo que ficou

20 conhecido como Círculo Lingüístico de Moscou. Foi aí que surgiu o chamado formalismo russo, dada a preocupação daqueles estudiosos com a forma lingüística. O Círculo Lingüístico de Moscou inspirou a criação do Círculo Lingüístico de Praga, anos mais tarde, já entre as décadas de 20 e 40. Em ambos, havia a predominância de estudos acerca da linguagem verbal, com ênfase na análise sintática, especialmente da poesia. Entretanto, já havia o prenúncio da possibilidade de estender os princípios da estruturação da linguagem verbal para o estudo de outros códigos estéticos, como a pintura, o teatro, o cinema e a arte popular. A esse respeito, uma figura fundamental foi Roman Jakobson, que participou de ambos os grupos, além de ter deixado claro, em suas obras, a possibilidade do trânsito entre sistemas distintos, a partir de um modelo comum, até então usado nos estudos das línguas naturais. Com a chegada de Stálin ao poder supremo, deu-se o fechamento do regime na então URSS, sendo que, como acontece nessas situações de cerceamento de liberdades individuais e de grupos, ficam sob suspeição todos os modos de comunicar. E, neste caso, não foi diferente: o regime político passou a interferir tanto na produção artística como na teórica, principalmente nos estudos lingüísticos. Mais tarde, na década de 50, é fundado em Moscou o Instituto de Semiótica da URSS, havendo a retomada de estudos anteriores e novos desenvolvimentos. Em 1970, a nova geração de semioticistas soviéticos passa a denominar a linha específica adotada por eles de Semiótica da Cultura, pelo fato de terem como princípio investigar os sistemas de signos sempre levando em

conta seu respectivo contexto cultural. Na atualidade, os princípios adotados por esses estudiosos ultrapassaram os limites da Europa Oriental e a Semiótica da Cultura está presente em diversas regiões do mundo. Outra das três linhas ou escolas mais reconhecidas no âmbito da Semiótica é chamada de Semiótica Americana ou, simplesmente, Semiótica Peirceana. Isto porque seu fundador foi o norte-americano Charles Saunders Peirce (1839-1914), o qual deixou uma vasta produção teórica que talvez não tenha sido mesmo, até hoje, completamente explorada. O ponto de partida de Peirce não foi a língua natural, como foi o caso das outras linhas teóricas da Semiótica. Peirce, que era filósofo e matemático, criou uma teoria dos signos associada à lógica, cuja função seria a de classificar e descrever todos os tipos de signos. Se para Goethe tudo na vida é ritmo, para Peirce, tudo no mundo é signo: os objetos, as idéias e o próprio ser humano são entidades semióticas. Este princípio é chamado por seus seguidores de visão semiótica universal do mundo ou visão pansemiótica do mundo, pois ele sequer admitia uma classificação entre entidades semióticas e não semióticas.

21 Para dar conta de classificar todos os fenômenos desse mundo inteiro semiótico, ou seja, para desenvolver a classificação de todos os signos, Peirce criou apenas três categorias; e teve a necessidade também de inventar novas palavras para designar essas categorias. Essas palavras foram traduzidas para o português como primeiridade, secundidade, terceiridade, repectivamente, do inglês

Firstness, Secondness e Thirdness. Estas categorias constituem a base das teorias do autor, pois são esses os termos que designam as únicas três possibilidades de se

enquadrarem todos os fenômenos da natureza e da cultura, incluído o pensamento, os conhecimentos, e o próprio ser humano. As categorias de Peirce podem ser assim sintetizadas: primeiridade, como sendo a capacidade contemplativa do ser humano; o ato de apenas ver os fenômenos; o acaso; o espontâneo; secundidade, como a capacidade para distinguir e discriminar as experiências, ou a reação aos fatos concretos; terceiridade, a capacidade de generalizar os fatos e organizá-los em categorias; neste nível, dá-se, segundo ele, a mediação, o crescimento, a aquisição. Essa tricotomia é um modelo teórico que possibilita a aplicação em diversas áreas do conhecimento. Do mesmo modo, outra tricotomia pregada por Peirce – as noções de ícone, índice e símbolo – tem servido para aproximar e inter-relacionar a Semiótica com as chamadas ciências cognitivas. A grande divulgadora e estudiosa da obra de Peirce no Brasil é Lúcia Santaella, que já conta duas dezenas de livros publicados com base em teorias peirceanas. Como essas brevíssimas noções podem mostrar, a Semiótica peirceana, a exemplo de outras escolas semióticas, usa uma terminologia hermética, o que muitas vezes afasta interessados no estudo do fenômeno da significação. E sua construção teórica é tão original em relação a estudos sobre linguagens e significação com base na Lingüística, o que levou Roger Odin, outro francês, estudiosos da significação, a afirmar que a Semiótica de Charles Saunders Peirce quase nada tem a ver com a semiologia de Ferdinand de Saussure. A última fonte teórica semiótica contemporânea, de acordo com a classificação de Santaella, em três origens distintas, nasceu e vem se desenvolvendo com mais consistência na Europa ocidental; é conhecida como Semiótica Saussureana (por conta de Ferdinand de Saussure), Semiótica da Europa Ocidental (para diferenciá-la da semiótica de origem soviética), Semiótica Francesa (mesmo que vários de seus seguidores sejam de outras nacionalidades), Semiótica Visual (pelo fato de o estudo da visualidade estar muito bem desenvolvidos pelo grupo da chamada École de Paris) e, mais recentemente, para se referir a desenvolvimentos posteriores, usa-se a expressão Semiótica

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Greimasiana, para designar os adeptos das teorias propostas pelo francês Algirdas Julien Greimas e seu grupo de pesquisadores. As linhas teóricas, no âmbito das ciências, desenvolvem-se como dinastias: determinado cientista professa princípios específicos, utiliza um método aplicável a outros objetos de estudo ou descobre certas propriedades de um elemento; seus assistentes acompanham-no, sucedem-no, fazem novas descobertas, associam-se a outra geração de discípulos; estes, por sua vez, continuam os estudos, aprofundando-os ou, às vezes, mudando seus rumos. E a ela, associa-se outra geração e assim, sucessivamente. Isto fica evidente na vertente francesa da Semiótica. Seu pai fundador, o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1915), partiu do estudo da linguagem; criou a Lingüística, que tinha como objeto não apenas o estudo de sinais, mas da matriz do comportamento e pensamento humanos, uma vez que considerava a linguagem como a formatação de atos, vontades, sentimentos, emoções e projetos, ou seja, um dos principais fundamentos das sociedades humanas. Saussure, percebendo a possibilidade de estender várias das proposições adotadas para a análise da língua natural para outros sistemas de significação, propôs e termo Semiologia para designar o estudo geral de todos os sistemas de signos; contudo, fora o estudo mesmo das línguas naturais, apenas alguns estudos foram feitos, ainda assim, muito associados à lingüística ou, como “uma disciplina anexa” a ela, conforme disse, mais tarde, Greimas. Na segunda geração dessa abordagem teórica destaca-se o dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965), que estudou o isomorfismo entre diversos sistemas de signos, vindo a propor critérios para considerar outros sistemas, que não os das línguas naturais, como linguagem. É sua a denominação que designa plano da expressão e plano do conteúdo ao que Saussure havia chamado, respectivamente, de significante e significado, termos esses mais familiares aos leigos. Alguns o criticam por apenas mudar a terminologia adotada por Saussure neste e em outros fenômenos da significação. Outro nome de destaque é o francês Roland Barthes (1915-1980), que agrega a noção de sujeito e o sentido cultural ao processo de significação. Dedica-se aos estudos do mito, da língua, do teatro, da fotografia, do cinema, da arquitetura, da pintura, da propaganda, da moda e até da medicina e da música. Tanto Hjelmslev quanto Barthes têm diversas obras publicadas em português. Um personagem de grande relevância nesta geração pós-saussurre é o de Algirdas Julien Greimas (1917-1992). Ele cria um grupo de pesquisadores dedicado à sociolingüística, cujos interesses estavam voltados tanto para a ciência especulativa quanto para a ciência aplicada, tendo inicialmente como objeto de estudo o texto literário. Deixou importantes fundamentos teóricos para seus seguidores em ensaios e livros.

23 Greimas foi um dos semioticistas que se manteve mais fiel às idéias estruturalistas de Saussure, sendo que o objetivo principal do projeto semiótico de Greimas é o de estudar o

discurso com base na idéia de que uma estrutura narrativa se manifesta em qualquer tipo de texto, sendo que a palavra “texto” extrapola, de acordo com essa linha teórica, a condição exclusiva de texto verbal. Para Greimas e seus discípulos, um ritual ou um balé podem ser considerados textos ou discursos. Em decorrência, ele e seu grupo ocuparam-se – e seus seguidores ainda hoje se ocupam – do estudo do espaço, da arquitetura, da pintura, da teologia, da televisão e do cinema, da publicidade e da moda, do direito e de outras ciências sociais, sempre considerando cada manifestação, em qualquer dessas áreas, como textos. Em sua obra A Semiótica no Século XX, Winfried Nöth afirma que apenas um esboço grosseiro das idéias de Greimas poderia ser apresentado, em um capítulo. Menor ainda é nossa ambição nestas poucas linhas, não só em relação a Greimas, mas a toda a Semiótica. Afinal, é apenas

uma pincelada de Semiótica, conforme prometido.

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UM MODELO PARA LER IMAGENS Para penetrar na complexidade da imagem, com vistas a uma leitura que contemple o seu todo, ou para que se perceba integralmente seu plano de expressão, ou seja, tudo aquilo que é perceptível ao olhar, é necessário vasculhar o texto, inicialmente tentando definir a linha ou as

linhas que determinam a macroestrutura da imagem visual, também chamada de estrutura básica. É uma diagonal? É um eixo vertical? Diagonais que se cruzam, horizontais paralelas, figuras geométricas, ângulos ou um ponto central? Estas são as primeiras indagações que devem suscitar uma imagem. Isto porque a estrutura básica da imagem vai dar sustentação à composição visual no seu todo e, portanto, será fundamental no jogo de decodificação dos significados. Definida a estrutura básica da imagem, parte-se para a observação das minúcias, ou seja, para a identificação de seus elementos constitutivos, como linhas, pontos, cores, planos, formas, cor, luz, dimensão, volume, textura. Que elementos dão origem ao texto visual? E como se apresentam outros elementos, que não podem ser chamados de constitutivos porque não compõem a imagem, mas que também geram efeitos de sentido, como o suporte, o recorte e a moldura? Aliás, aqui cabe um parênteses: quando falamos em “moldura”, é no sentido amplo, não só aquela madeira ou metal, decorado ou pintado, mas tudo o que está em torno, que dialoga com a obra. Onde estão esses elementos mínimos constitutivos e significantes? Este é o foco do segundo grupo de

indagações que cada um deve fazer a si mesmo, diante de uma imagem. Entre os elementos constitutivos estabelecem-se relações. Assim sendo, identificados os elementos constitutivos, buscam-se as articulações entre esses elementos, momentânea e mentalmente desfeitas, quando da investigação do rol de elementos que constituem a imagem. As relações, articulações ou regras de combinação entre os elementos constitutivos da imagem são chamadas

procedimentos relacionais. Essas relações podem ser encontradas entre elementos, entre elementos e bloco de elementos, entre blocos de elementos entre si; também um mesmo elemento pode estar articulado de modos diferentes. Por exemplo, entre várias circunferências que compusessem uma imagem, elas poderiam estar relacionadas pela repetição ou rebatimento das formas; por outro lado, as mesmas circunferências poderiam estar relacionadas pelo contraste de dimensões e de cores; poderiam, ainda, estar relacionadas de modo eqüidistante, gerando ritmo, considerando-se o fundo dessas figuras; e poderiam se relacionar

25 através do procedimento de repetição através da textura, fosse entre as circunferências ou deste bloco de circunferências com o seu fundo. Para clarear um pouco esta composição intrincada que é a imagem, poderemos fazer analogias, que são bastante simplistas, mas têm funcionado. Uma das comparações propõe pensar na imagem como um texto verbal, onde os elementos constitutivos seriam as palavras, e os procedimentos relacionais corresponderiam à sintaxe, ou seja, ao modo de organizar as palavras entre si. Mas é preciso cuidado, pois existem distinções para além do aspecto visual de ambos os textos. Uma delas é que nem a escrita nem a leitura da imagem são lineares; a outra é que cada elemento não “concorda” com apenas um outro elemento, como já foi mostrado acima; ao contrário, ele geralmente está articulado com diversos elementos, como que formando uma teia. E a terceira, bem, é um papo para outro capítulo... trata-se da “obediência às regras gramaticais”, que já há muito não funcionam quanto às imagens... Outra comparação pode ser feita entre a criação ou a leitura de uma imagem e um produto culinário, um bolo, por exemplo: os elementos constitutivos da imagem seriam os ingredientes, e os procedimentos relacionais, o modo de fazer... Enfim, esta proposta para ler imagens faz um desmonte, em busca dos efeitos de sentido, das significações. Desconstruindo e reconstruindo a imagem, as articulações entre os elementos são processadas. A leitura passa a ser um processamento das relações, onde a cadeia de significações é remontada, com base em determinadas regras de combinação, selecionadas para construir a imagem, que são os procedimentos relacionais adotados pelo sujeito criador. Como estão organizados

os elementos no texto? Eis a pergunta seguinte. Elementos mínimos constituintes articulados através de regras são as marcas da concepção do texto visual que, nele deixadas intuitiva ou conscientemente, revelam o momento vivido e as pretensões do seu produtor. Em cada texto visual está registrado um discurso, evidenciando uma visão específica, a do seu criador. A imagem mostra a sua visão de mundo, suas relações com o seu contexto, além da sua capacidade de manipulação do código ao qual pertence a imagem. Todavia, qualquer que seja o contexto e a concepção de mundo do produtor e independentemente do código que se utilizar para a manifestação, expressão e conteúdo, correlacionados, estarão sempre no seu

texto, visíveis e ou audíveis. Assim, o que o leitor ou o enunciatário da imagem tem diante de si é o texto estético, que é o próprio universo de sua leitura. Isso caracteriza a autonomia da imagem: os procedimentos relacionais estão ali registrados, e são essas relações que a definem como tal, pois tão logo o criador termine o seu

26 trabalho, ele não mais lhe pertence. A imagem passa a falar por si mesma,

independentemente do que seu autor teria querido dizer. O leitor fica, então, dispensado de pesquisar a história e o contexto do autor da imagem, pois os dados indicativos desses e de outros conteúdos estão na própria imagem. Por isso o leitor de um texto visual deve transitar incansavelmente de um ou mais elementos mínimos para outros elementos, de um tipo ou de vários procedimentos para outro ou outros, de elementos para procedimentos e viceversa, deles para o todo da imagem. Em seguida, retorna do todo ao que pode parecer

detalhe, ou seja, ao que algumas vezes não fica visível diante de um primeiro ou segundo olhar. Munido de seus sentidos e de sua capacidade cognitiva, segue o leitor na direção do desvelamento de novos conhecimentos, através de renovadas significações que encontra, transitando das partes para o todo e do conjunto do texto estético para seus componentes. São as inúmeras trilhas que se entrecruzam no visível da imagem (plano de expressão) ao mesmo tempo em que tecem a significação (plano do conteúdo); daí a necessidade de observar minuciosamente toda a imagem, resgatando pontos relevantes para, a partir deles, recriar, traduzindo uma teia de elementos e procedimentos significantes que, como tal, é construída por meio de linhas paralelas, concêntricas, todas relacionadas.

Tudo isto é necessário para que se chegue aos incontáveis sentidos de um texto, ao que quer dizer a imagem, ao plano do conteúdo. Os elementos constitutivos do texto estético não devem ser considerados como um vocabulário autosuficiente apenas, pois estes elementos não adquirem sentido no isolamento, mas sempre e somente na relação. A descoberta dessas relações vai conduzir o leitor aos efeitos de sentido, ou ao plano do conteúdo. O acesso às imagens estéticas não é, de modo algum, um processo simples; talvez seja tão complexo quanto o universo mesmo dos produtos visuais. O que se propõe é um referencial

mínimo para a leitura da imagem; parâmetros passíveis de utilização na leitura de diversas imagens; uma abordagem que oriente para um modo de ver diferente do habitual; uma estrutura básica a ser guarnecida com outros conhecimentos, tanto os já trazidos na bagagem do leitor, quanto aqueles que ele se sentirá instigado a buscar a partir da provocação proposta pelo texto estético diante de si.

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ABAIXO AS REGRAS Há pouco, ao falar das diferenças entre o texto verbal e o texto visual, lembramos das regras ou normas da gramática, aquelas que permitiram ao nosso professor de português nos tirar pontos, ou nos rodar, ou riscar nosso trabalho, ou passar por cima com tinta vermelha sobre nossos erros, ou escrever

aquele esperado “C” com perna bem comprida, nas questões de prova. Todo mundo sabe o quê é uma destas coisas, ao menos, dependendo da idade que hoje temos. E agora, que não temos mais professor, continuamos errando, sem ter quem nos corrija...

Por que cometemos erros? Porque existem regras para cumprir. Ou, no caso da linguagem verbal, porque existe a gramática, um conjunto de leis ou regras, que regulam o uso das palavras em um determinado idioma. Assim sendo, na linguagem verbal há o certo e o errado (o que está de acordo com as regras da gramática ou não); o professor ensina e depois corrige o que fizemos diferente do que foi ensinado por ele e pelo livro que, por analogia, também é chamado de GRAMÁTICA. Antigamente, existiam os chamados cânones em arte, que eram equivalentes às regras gramaticais: os olhos deveriam estar no limite entre 1/3 e 2/3 da cabeça, de cima para baixo; o corpo deveria medir sete vezes a dimensão da cabeça e assim, sucessivamente. Aí acreditavam os gregos, os romanos e mais tarde, os artistas do Renascimento, estava garantida a beleza. Mas muitos experimentaram usar os tais cânones e não conseguiram bons resultados... O que se percebe é que, no âmbito do sistema visual, não existem regras específicas, já há muito tempo. Ao contrário, quanto mais original é a imagem, quanto mais ela conseguiu um modo de se sustentar (ao mesmo tempo, cumprindo suas funções e quebrando as normas estéticas vigentes). Por exemplo, na publicidade, o primeiro a ultrapassar os limites da moldura do outdoor incorreu em uma violação de uma norma estabelecida. O precursor de anúncios com cheiro, em revistas, também. Existe o habitual, o estabelecido, o quê é tacitamente aceito e reconhecido enquanto tal, seja uma embalagem, um cartaz, uma capa de CD. Isto é a norma, ou a regra, ou o paradigma estético. Criar algo além disto significa quebrar, violar, romper ou desobedecer as normas, regras ou paradigmas. Percebam: todos estes verbos, violar, desobedecer, por exemplo, nos levam à noção de infringir leis, nos levam à idéia de marginalidade. Porém, nas “linguagens” visuais, bidimensionais ou tridimensionais, quanto mais violada a norma vigente, tanto mais original,

criativo e... eloqüente é a imagem; porque ela se diferencia das demais da sua classe; ela se destaca...

28 Por este motivo, devemos ter cuidado ao fazer a transposição ou as analogias entre texto verbal e texto visual. Além das diferenças já conhecidas, certas palavras próprias do fenômeno de comunicação verbal, ao serem utilizadas no âmbito do visual, deveriam merecer uma referência qualquer para distingui-la, seja um grifo, um rodapé explicativo, umas aspas. Porque não existe

uma gramática do visual; não existindo gramática, inexiste uma sintaxe; não existindo gramática nem sintaxe, inexiste uma linguagem visual... apenas, uma “linguagem” visual, com linguagem entre aspas, quer dizer, uma espécie de “linguagem” que não é exatamente o que se pensa quando se diz linguagem. Deu para entender? Ora, o uso já consagrou a expressão “linguagem” visual. No entanto, esta “falta de cerimônia” ao nos apropriarmos de uma terminologia importada de outro sistema, dada a nossa própria incapacidade de gerar palavras mais adequadas para designar nosso trabalho, merece, no mínimo, um reparo, uma demonstração pública de que sabemos que se trata de uma apropriação. Se é indevida ou não, isto é outro papo... ***** Ao voltar para a questão das regras estéticas, vigentes e/ou consagradas, encontramos em um escrito do pensador alemão Walter Benjamin, uma referência ao contexto sócio-cultural europeu da primeira metade do século, na qual ele dizia que o povo fruía, sem criticar, aquilo que

era convencional; o que era verdadeiramente novo era criticado com repugnância. Segundo Benjamin, a massa populacional necessitava da ligação entre a obra fruída e a experiência vivida e apresentava, como exemplo, o fato de o público de sua época reagir positivamente diante de um Chaplin e negativamente diante de um Picasso, ambos seus contemporâneos. O que haveria de diferente entre o cinema de Chaplin e a pintura de Picasso, a ponto de fazer com que o público reagisse de maneira oposta? O cinema é um código de massa e a pintura não o é? O código audiovisual pode ser usado como uma mídia para a massa populacional, mas o visual também pode ser assim entendido: a título de exemplo, todo o acervo da humanidade na forma de arte sacra teve e ainda tem a massa como fruidora. Em períodos históricos onde a maioria da população não tinha a compreensão do texto escrito, era o código visual que cumpria o papel de disseminador dos conteúdos bíblicos. O problema estaria na temática? Seriam os temas chaplinianos mais próximos do cotidiano vivido pelo homem de então do que os temas de Picasso, como propõe Benjamim? O tema da guerra,

29 expresso em Guernica, um dos trabalhos mais divulgados da obra de Picasso, poderia ser considerado como distanciado da experiência vivida pelo homem da primeira metade do século na Europa? E a sua pomba da paz, identicamente conhecida? Não! Os temas de ambos estavam muito presentes na vida cotidiana; mas a resposta do público com relação à obra de Picasso pode estar ligada à impossibilidade de compreendê-la, decorrente da falta de conhecimentos de paradigmas estéticos para a leitura; assim, o público reagia reacionariamente, afastando-se, na verdade, daquilo que não entendia. Eis aí uma situação que coincide com o que se vê e se ouve em relação à produção cultural na realidade brasileira contemporânea. Como exemplo, pode ser citada a reação de boa parte do público, quando da realização de cada Bienal de São Paulo. Predomina a perplexidade diante da

vanguarda artística; e a imprensa muitas vezes reforça a visão do senso comum, destacando como excentricidade o que na verdade se caracteriza como violação da norma estética. Mas as questões envolvendo compreensão ou da rejeição de produtos estéticos estão relacionados diretamente ao problema dos paradigmas ou regras estéticas. Vejamos: provavelmente, a massa fruidora reagia positivamente diante de Chaplin, não por estar mais próximo da sua experiência de vida, mas pelo fato de conseguir fazer uma “determinada” leitura de sua obra, adequada ou não ao potencial de significados que Chaplin oferece. Ou seja, a massa “lia” Chaplin com referenciais do cinema “literário”, prendendo-se apenas ao enredo, aos paradigmas ou regras do cinema voltado para o divertimento, à historinha com happy end, vivenciada no contexto do descompromisso característico da busca de lazer. As pessoas não percebiam a quebra da norma estética por trás da poética de Chaplin. Claro: se ele iludiu censores, porque não iria entorpecer as massas? Em relação a Picasso, pelo fato de ele propor novos paradigmas estéticos, explicitamente, ou seja, novas formas de apresentar seus temas, ou nova forma de uso do código, quebrando a norma estética então vigente para a leitura do código pictórico, havia a rejeição. As pessoas não estavam instrumentalizadas para o tipo de leitura que sua obra exigia; nem tinham um outro referencial anterior para adotar. Por outro lado, o que ocorria, com o cinema de Chaplin, é que dele não era feita uma leitura estética; ele era visto, principalmente, como entretenimento. E última análise, ambos, Chaplin e Picasso quebraram os paradigmas estéticos de seu tempo, respectivamente, no cinema e nas artes plásticas. Porém, Picasso violou a normas estabelecidas e o público o rejeitou, pois não possuía um referencial alternativo para compreendê-lo. No caso de Chaplin, ele

foi interpretado com referenciais de

paradigmas ou regras vigentes, diferentes daqueles que ele propunha, mas ainda assim pode ser

30 compreendido. A leitura da obra de Chaplin, com a devida percepção das

violações das regras estabelecidas, só foi feita anos mais tarde. Se ainda hoje, quando se comemoraram cem anos de cinema, à massa faltam referenciais para fruir esteticamente uma obra cinematográfica, prendendo-se muitas vezes apenas ao enredo, mais difícil ainda seria haver uma apreciação estética diante de uma nova poética cinematográfica que surgia. Como o cinema inicialmente retratava o cotidiano do mundo natural, fazia-se dele a mesma leitura que se fazia dos fatos do dia-a-dia; este era o referencial anterior para a leitura de Chaplin. Analisemos ainda um pouco mais a questão da quebra de paradigmas ou da violação da regra ou da norma estética, agora tomando como referência, ainda no cinema, o ritmo (porque o ritmo está

presente não só na música: há ritmo na dança, no teatro, na poesia, na pintura, no cinema, na televisão, e mesmo nas fachadas dos prédios e casas). O ritmo acelerado é característico da época atual, onde não se pode perder tempo; e o ritmo é um elemento estético que só acontece no tempo. Nosso padrão estético de ritmo, portanto, é o do videoclipe. Assim, quem se dispuser a romper com esta norma estabelecida, tem que arcar com o ônus de nadar contra a corrente, para tentar impor uma nova estética, uma nova regra. No caso do cinema – e de outras “linguagens” que também têm pressa – criar imagens com ritmos mais lentos desafia o tempo do cinema moderno, com filmes amplos, detalhistas, um verdadeiro antídoto à estética do videoclipe. A estética do videoclipe é a estética do ritmo acelerado, tudo paralelamente e ao mesmo tempo, em termos tanto de som como em termos de tempo de exposição de imagem, dificultando a possibilidade de reflexão sobre o que lhe está sendo apresentado, já que se trata de um código audiovisual, que propõe simultânea e sucessivamente uma série de significados: é híbrido e acontece no tempo. Essa diversidade exigiria um tempo maior, ou um ritmo mais lento, para a leitura da complexidade das articulações de sentido. No entanto, predomina nos meios audiovisuais, o ritmo acelerado da estética do videoclipe. Tal ritmo faz com que as pessoas se habituem a ele e, em conseqüência, a não conseguir e a não gostar de refletir. Esse ritmo rápido passa a ser a norma estética, porque os espectadores vêm sendo condicionados pela televisão e pela própria vida a recebê-lo desta forma. Um criador de imagens que restitui ao filme um tempo hoje considerado lento, quebra com a norma estética vigente, vindo a ser enquadrado em um movimento denominado neo-realista, o que por si só já diz muito. ****

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Para encerrar este papo sobre quebra de paradigmas estéticos, ou violação das regras visuais vigentes, façamos am paralelo com o que nos mostra Thomas S. Kuhn, no seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Como o título diz, ele se refere à história da ciência, mas sua premissa serve para todos os campos da atividade humana onde há criação. Isto porque o novo assusta, o

novo ameaça, o novo, no mínimo, causa estranhamento. Neste estudo, Kuhn comprova, com exemplos de fatos envolvendo as descobertas e as histórias de vida de diversos cientistas, como Arquimedes, Newton e Galileu, que quando uma nova descoberta contraria o paradigma aceito pelo que chama de “ciência normal”, há um mal estar na comunidade científica. De uma maneira mais ou menos enfática, a nova descoberta e seu autor não são prontamente aceitos, até porque novos paradigmas sempre colocam em questão aqueles anteriormente vigentes. Para Kuhn, a “ciência normal” é aquela que se ocupa com os “quebra-cabeças”, ou seja, com variações em torno de um mesmo - e antigo – paradigma. Diante de um novo paradigma, toda a comunidade científica se retrai diante da ameaça que significa o novo paradigma, gerando uma crise que enfraquece as regras dos quebra-cabeças em vigor, de tal modo que acaba permitindo a emergência de um novo paradigma. Assim, gradativamente, o novo paradigma, as novas normas vão se estabelecendo, e a comunidade científica começa a produzir “quebra-cabeças” sobre a nova descoberta... até o surgimento de uma nova quebra de paradigmas... É possível estabelecer uma analogia entre um novo paradigma científico e uma nova norma estética, na arte ou no design: trata-se sempre de questionar o que está posto, o

habitual, buscando novos princípios, uma nova ordem. É natural, portanto, que violação de uma ordem estabelecida cause estranhamento, no mínimo. Mas se sabe também que é questão de tempo a aceitação. Ainda mais no campo da visualidade, onde há a cumplicidade do olhar, pois a visão tem uma enorme capacidade de adaptação...

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FORMAS MATISSIANAS Ao se observar as reações das pessoas diante das imagens em geral, percebe-se que é dominante, no senso comum, a idéia de que a arte abstrata é de difícil legibilidade. Complementando essa noção, entendem que tanto mais se compreende uma imagem quanto mais reprodutora do mundo natural ela é. Assim, o critério para a escolha deste Matisse, entre tantas outras imagens, deu-se em virtude do seu distanciamento de uma imagem natural análoga, ou de sua proximidade do que é genericamente considerado “abstração”. Para torná-la ainda mais distante de referentes anteriores, omite-se, inicial e propositadamente, seu título verbal. Tudo isto para tentar mostrar que tal texto não é exclusivamente simbólico, a saber, não é composto por elementos cuja significação é convencionada e aleatória. Também não se trata de seu oposto, ou seja, não é uma imitação “perfeita” de algo que se pretendeu re-presentar. Na sua breve leitura que se segue, pode ser percebido que não se trata do relato descritivo de uma história ou de uma cena “literária”, acerca de referentes do mundo “real”, como pessoas, seus atos ou sentimentos, nem sobre a flora, fauna ou coisas construídas pelo homem. Antes, trata-se do relato de percepções dos elementos constitutivos e de sua estruturação, através de procedimentos relacionais, no texto imagético. E das idas e vindas do olhar sobre uma imagem que, mesmo aparentemente abstrata, permite emergir efeitos de sentido. O que se vê? Um suporte, um plano, em forma de retângulo, cuja maior dimensão é a horizontal. Sobre o retângulo do suporte, dois outros retângulos cujos maiores lados são os verticais, de dimensões equivalentes entre si e guardando, também entre si, um pequeno distanciamento. Sobre o retângulo da esquerda, mais um retângulo, igual quanto a altura em relação ao qual ele se sobrepõe e um pouco menor na largura. Tomando quase toda a área deste retângulo sobreposto há uma forma recortada que, sendo vazada, permite a visualização de área igual no retângulo de fundo. Contrastando com as retas descritas até aqui, esta forma é composta quase que apenas por curvas; a exceção é a base. Sobre o retângulo da direita, há uma forma semelhante, também com contornos curvilíneos e base reta. Comparando-se as formas, a altura de ambas é igual, bem como, aproximadamente a área de ambas, que ocupam praticamente a mesma área no plano ou nos respectivos retângulos que lhes servem de fundo, tomando-os quase totalmente. A diferença é

que a da esquerda, vazada, deixa o olhar atravessá-la, podendo perceber a área do retângulo do fundo; a forma da direita, por estar sobreposta ao seu respectivo plano,

33 encobre-o com sua área. As duas formas rebatem-se: competem entre si, ao

mesmo tempo em que dialogam. Quanto aos contornos, são semelhantes, mas não iguais. A curva intermediária e a curva inferior do contorno esquerdo da figura da esquerda são mais pronunciadas do que as curvas do contorno equivalente da figura da direita; quanto ao contorno esquerdo, há duas curvas a mais na figura da direita. Quanto às cores, além do suporte branco, são usados dois tons de azul, um muito claro e o outro muito forte. A figura da esquerda, recortada em um retângulo azul escuro, sobreposto a outro retângulo azul claro, assume a cor do seu plano de fundo; a figura da direita em azul forte, colada sobre o seu respectivo retângulo, retira dele a área que ela delimita. As duas formas provocam, no olhar, procedimentos comparativos quanto às linhas, aos planos, às cores, às dimensões, aos movimentos; trata-se da busca de identificação de igualdades e de diferenças. Agora, pode-se acrescentar o título verbal da obra: Formas. Sabê-lo agora altera, de alguma maneira, a leitura? Mas o que esta obra indica, o que ela mostra? Este texto imagético estuda basicamente o contraste: contraste de curvas e retas, contraste de ritmo, de movimento; contraste de planos, contraste de cores; jogo de equilíbrio através do contraste das cores e da posição das formas; presença/ausência; positivo/negativo: dualidade. Como pode ser observado, não há uma total arbitrariedade neste texto imagético; os azuis são mesmo azuis; um azul, infinito, finito em outro azul, em outro plano ou em outra forma. As formas não são outra coisa senão formas, formas azuis; semelhantes, mas não iguais. Elas estão ali e podem ser lidas por pessoas que falem qualquer língua, porque o significado está no como elas são construídas, portanto, na obra. Os que procuram penetrar na imagem visual pelo seu enunciado global poderão ver, graças à percepção gestáltica, dois torsos, aliás dois torsos femininos, já que as curvas das cinturas e dos quadrís são bastante acentuadas. Justamente nesse jogo de contrastes do torso é que essa imagem nos diz algo. As formas dos nus agem como actantes, ou seja, de personagens que participam do processo, ainda que sem intencionalidade. E nessa espécie de agir mostram, pelo contraste, a dualidade, e pelas semelhanças, a possibilidade de comparação. Comparando-se, observa-se a dualidade das coisas, a dualidade do ser humano; a dualidade, talvez, da mulher. O título da obra é Formas (ou Formes, em francês, no original) e o vocábulo alemão gestalt quer dizer forma. São as diferenças entre as formas, formas das coisas, formas de vida, humanas ou não. São os contrastes, as diferenças. E a harmonia, o movimento, o equilíbrio conseguem estar igualmente presentes em ambas as formas, que são diferentes entre si.

34 De uma maneira geral, qualquer texto é, em princípio, um gerador de efeitos de sentidos diversos. Mas no caso da imagem estética, dada a natureza dos códigos utilizados, a dimensão expressiva cada vez mais deixa de ser representação para tornar-se presentificação. É sutil a diferença: enquanto representar é estar no lugar de outra coisa, presentificar quer dizer ter semelhanças com outra imagem ou coisa, mas sendo uma nova imagem ou coisa, original e autônoma. Um exemplo é uma foto 3x4; ela não nos representa; ela nos presentifica: muda a dimensão, a textura, a profundidade, a cor... Assim, o significado não está fora do texto, em uma imagem anterior; o conteúdo de uma imagem estética está na nova imagem e não em uma exterior e anterior, que estaria sendo, supostamente, na nova imagem re-(a)presentada. Em síntese, a expressão já é conteúdo, em si. No estudo da significação na imagem, a adoção da segmentação do texto em elementos, procedimentos, planos, se dá, metodologicamente, para efeitos de análise. O desconstruir e o reconstruir a imagem, sempre consideradas as inter-relações desses elementos e planos, o recriar o texto, reconstituindo-o a partir dos dados oferecidos pelo plano da expressão e seu relacionar com o plano do conteúdo, são estratégias às quais se recorre na busca de meios para uma reeducação da cognição mediada pelos sentidos, através da diversificação dos modos de ver - e, por que não, também dos modos de ouvir - na tentativa de propiciar uma compreensão mais abrangente da imagem. Consiste em uma espécie de tradução das operações científicas de análise-síntese, ainda que com princípios e dinâmica diferenciados, em função do objeto de estudo. Cada imagem impõe ao estudioso o modo de ser conhecida, ou seja, ela ilumina a escolha dos procedimentos metodológicos e não vice-versa. Desse “semiotizar” o objeto de estudo é que se determina o modo de decompor o todo em elementos, para melhor conhecê-los e apreendê-los em suas articulações; paralelamente encontramse as relações dos elementos do todo, o que consiste em reconstituir, a cada momento, uma visão do todo que agregue a complexidade das partes. Trata-se de um processo de análise que busca a significação, que deve estar disponível tanto aos profissionais de diversas áreas quanto aos leigos, e que pode ser usado tanto para a compreensão de um cartaz, como de uma cena teatral ou o traçado urbanístico de uma cidade.

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UM ENTERRO SEM CAIXÃO Enterro na Rede é um dos quadros da série Os Retirantes, pintado em 1944 pelo brasileiro Cândido Portinari, série que hoje pertence ao acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. O que se vê? Observe-se, primeiramente, os elementos constitutivos. Depois, a combinação entre elementos e procedimentos relacionais. Para que se possa mostrar visualmente o jogo entre os elementos constitutivos, utilizamos um esquema visual que apresenta as figuras que nele se estruturam. Nesse esquema são destacados um a um os planos de profundidade propostos, diferenciação que é feita através do uso de linhas e cores específicas para contornar e destacar a estrutura de cada um deles. No primeiro plano de profundidade, mais próximo do olhar, a planta dos pés da mulher central ajoelhada, de costas, evidencia-se pela proximidade do espectador, pela centralização e pelo ângulo de visão proposto; o olhar percebe a totalidade da planta dos pés porque está na mesma altura que ela. As pernas em escorço estão atrás da planta dos pés, escondidas, o que atrai a direção do olhar para os pés, dado o destaque que apresentam, efeito que é reforçado por suas dimensões avantajadas.

A posição dos pés indica a forma que está destacada em toda a imagem: o ângulo, elemento que vai se repetir sucessivas vezes, algumas delas formando triângulos, como no caso dos pés da mulher central. Os contornos das partes internas e externas dos pés não são paralelos e por estarem eles postos, qual mãos postas em oração, compõem a diagonalidade da obra e formam dois ângulos que se sobrepõem e remetem o olhar ao centro da tela onde se situa, oculto atrás desta mulher, a personagem principal da cena, o morto. Também no centro da tela, o ângulo formado pelos pés da mulher central, é rebatido por um grande ângulo - na verdade, um triângulo - que se origina do lençol ou rede, situado no terceiro plano de profundidade. O corpo da mulher central está no segundo plano de profundidade do quadro. Sua saia apresenta dobras que formam ângulos, os quais aparecem também no contorno desta peça do seu traje. O mesmo ocorre na blusa: ângulos estão presentes, nas dobras e no contorno. Seus braços abertos formam outro grande ângulo, que é paralelo e que se sobrepõe ao ângulo formado pela rede. Nos dedos das mãos desta mulher visualizam-se pequenos ângulos, agudos entre os dedos e retos nos terminais. A cabeleira desta mulher, também no segundo plano de profundidade, ainda que concebida por pinceladas sinuosas, pode ser vista, considerando-se seu contorno, como uma forma triangular. Outros ângulos são percebidos nas linhas ambíguas - estampa ou dobra? - das mangas da sua blusa. O

ângulo formado pelos braços desta mulher remete o olhar para seu

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vértice, no tronco do corpo dela mesma, o qual oculta o centro da rede, lugar onde está o morto. No terceiro plano de profundidade, localizam-se a rede e seus carregadores, duas figuras masculinas. O pano da rede apresenta, acima da cabeça da mulher, um suposto quadrado em tom mais claro, que tendo uma parte encoberta, deixa aparente, no seu contorno, um ângulo que é rebatido nas diversas formas angulares do fundo, na parte superior da tela. A rede forma um triângulo isósceles cujo maior lado é o superior, horizontal e quase paralelo ao pau no qual está amarrada, bem como à linha que delimita o chão. Uma ponta do pano, à esquerda, sai do vértice em direção ao centro inferior da rede; as linhas das dobras do ângulo da direita tomam a mesma direção, indicando o local onde está depositado o defunto. Também no terceiro plano de profundidade, encontram-se dois carregadores; estando em marcha, as aberturas das pernas de cada um dão origem a dois ângulos dispostos em sentido inverso ao ângulo inferior oculto da rede por eles ladeado. Há uma complementaridade entre os três, pois o ângulo central como que se encaixa, à distância, nas formas dos ângulos que se estruturam nas pernas dos carregadores. Mais dois nítidos ângulos aparecem nos contornos do braço direito do carregador da direita, bem menos sutis do que os que estão nas suas mãos e nos que surgem do contraste entre luz e sombra nas dobras de sua vestimenta. Neste homem ainda podem ser observados ângulos nos pés, no joelho direito e entre a coxa e a perna esquerda. A deformação da sua cabeça é construída através de linhas angulosas, onde se destaca o nariz. O homem da esquerda é delineado também através de linhas angulosas: nos pés, nas dobras da calça e da blusa, no encontro entre braço e cintura, nas mãos e na cabeça. Um músculo anguloso salienta-se no seu braço direito. Em contraste com as retas predominantes na tela, encontram-se algumas linhas sinuosas. Elas estão no braço direito do homem da esquerda, sobre seu ombro e na amarração da rede. Se o olhar percorrer a tela, partindo deste ponto, vai encontrar linhas curvas nos terminais dos músculos expostos deste homem, em algumas dobras da saia da mulher central e nos seus dedos dos pés, nos terminais dos músculos das pernas do homem da direita, semelhantes aos do homem da esquerda, e nos contornos da mulher da direita, no quarto plano de profundidade. No entanto, se se desenhar este percurso, vai-se observar que se trata de um trajeto anguloso. Ao chegar ao quarto plano de profundidade, vai-se deparar com a mulher da direita, já mencionada por suas linhas curvas, como encontradas nas paralelas das dobras da saia, embora seja quebrada a linha que demarca o contorno desta saia. Ela possui linhas curvas também no contorno do

37 braço visível, o direito, e na cabeça. Mas sua imagem também apresenta linhas retas e ângulos, que são vistos, formando triângulos, a partir do delineamento do seu braço: um formado pelas linhas interiores do braço, pescoço e queixo e o outro, que em posição inversa e dimensão semelhante, repete-se na manga. Nas mãos desta mulher, aparecem ângulos nos contornos, mais explícitos do que os que expressam seus ossos e músculos. O fundo do quadro é considerado o quinto plano de profundidade. Na parte inferior da tela, uma linha horizontal descendente demarca o chão, sobre o qual aparecem pedras e sombras angulosas. Quanto à parte superior do fundo, ela é composta por planos de profundidades sobrepostos, delineados, preponderantemente, por linhas retas. Em alguns desses planos de profundidade, repetem-se pinceladas em forma de sucessivos pontos, gerando uma textura grosseira, a qual é rebatida na saia da mulher central. Destaca-se, no todo da obra, os fortes contornos em preto, preto das trevas e do sentido negativo que, por outro lado, põe em evidência e delineia os elementos e formas que compõem o quadro. Este preto, especialmente nos músculos expostos e nas dobras das

roupas, funciona também para dar profundidade, pois é sombra, e para compor a textura. Os contornos pretos estão ausentes no fundo, o que evita que figura e fundo se misturem. A maior parte da tela é monocromática, apresentando diversos tons de cinza que tendem ora a azuis diversos, ora aos verdes claros. O cinzento predominante dá a idéia de cinza, o que resta depois de um incêndio, ou de cadáver, o que restou depois da vida. Na parte inferior da tela, aparece a terra nua, um barro alaranjado, cuja cor contrasta com o resto do quadro, realça múltiplos sentidos - da aridez da terra seca e das “vidas secas” ao sangue da dor e do sofrimento, passando pelo alaranjado da chama do fogo. O laranja é também uma cor quente, ponto de equilíbrio entre o amarelo e o vermelho. Assim sendo, a terra laranja é presentificação de equilíbrio, equilíbrio às vezes inatingível. Esta cor, em contraste com os cinzas diversificados, assenta a parte cinza das cinzas sobre o laranja das chamas; evita a monotonia no quadro e dá peso à composição plástica. A luminosidade vem do alto e da esquerda, determinando o clareamento das partes das vestes que a ela se expõem, bem como um ponto de luz na cabeça da mulher central. O local de origem da luz condiciona as partes sombreadas. Azuis claros e límpidos salpicam o traje da mulher da direita, sendo um azul da mesma tonalidade do da água de um pequeno lago, à sua direita, semi-seco. As retas e os ângulos dos contornos, geram uma gestualidade veemente e patética, sendo que a veemência é reiterada através do vigor das pinceladas. As retas fazem com que os contornos sejam

38 grosseiros, originando seres que parecem ser talhados à machado na madeira; tanto estas linhas como as poucas curvas que contrastam com elas são usadas na deformação da figura humana.

O equilíbrio axial central é determinado, principalmente, pela forma decorrente da posição assumida pela mulher central. A composição apresenta uma simetria que não é absoluta: há simetria na mulher central, nos dois carregadores, na rede. A quebra da simetria é gerada pela localização da segunda mulher, à direita da tela. A diagonalidade presente na estrutura do quadro contrasta com as linhas horizontais do chão, do lado superior do ângulo formado pela rede e pela vara paralela a ele. Retas, originando ângulos, estão presentes de modo recorrente na estrutura da obra. Por vezes, o ângulo fica mais evidente por aparecer sublinhado com o uso da cor preta. O elemento plástico chave da tela é o ângulo, que presentifica uma cunha, objeto cortante, ou uma seta ou uma ponta de flecha. O ângulo pode ser também considerado uma figura incompleta, imperfeita, que pede o que falta, o que não há. O ângulo também pode ser visto como uma presentificaçao de boca ou receptáculo. Adotandose esse modo de olhar, observa-se a inter-relação entre expressão, no nível da manifestação, e significação, no nível do conteúdo. Os pés da mulher central, vincados por linhas diversas, assim como a superdimensão dos demais membros e os músculos evidentes aludem à atividade braçal, no cultivo da terra. Pés

descalços reforçam esta idéia e presentificam uma noção de pobreza. A forma dos pés, grandes, retangulares, com toda a base em contato com o solo, parece colar o ser humano àquele chão, àquela realidade. É uma versão da expressão verbal “com os pés no chão”, que pode ser entendido como o estado de quem deixou os sonhos de lado. A partir de uma linha vertical imaginária, traçada do centro da borda superior da tela até os pés da mulher central, percorrida pelo olhar, fará com que ele passe pelos vértices dos dois grandes ângulos - o que é formado pelos braços abertos da mulher central e o que dá o contorno à rede - e estabelece o eixo da composição plástica. O vértice do ângulo, formado pelos braços da mulher e o inferior do triângulo, que é a rede, são quase coincidentes, sobrepostos. Esta coincidência, reiterada pelo fato de estar a

rede prenhe do morto, podem indicar que esta mulher é a mãe do defunto. Ou teria sido ele quem fertilizou seu ventre? São inúmeros os efeitos de sentido que pode causar uma única figura, o triângulo, tantas quantas forem as relações que forem estabelecidas entre tal figura e outros elementos da imagem.

39 Sob esta linha estão situados, além do morto, conteúdo da rede e da mulher central, a mão esquerda do homem da esquerda, que cria ambigüidade ao se parecer com uma caveira. Esta mão/caveira explicita o destino daquele que está contido na rede, aliás, o destino de todos nós, lembrando que, mesmo em condições subumanas, aquelas personagens são tão humanas quanto o apreciador da obra. Todos temos um crânio, o que nos iguala, independentemente das aparências externas. Percebe-se que a gestualidade da mulher central deixa em aberto seu(s) sentimento(s). Pelo fato de seu rosto não estar aparente, resta a dúvida, a ambigüidade, a ambivalência: imprecação e/ou súplica? Revolta ou pedido de clemência? Na abertura da rede, outro efeito de sentido: boca, boca aberta, sedenta de água e justiça. A mão esquerda do homem da esquerda, além de poder ser vista como uma caveira, pode ser, agora, uma língua nesta boca; “língua de fora”, idéia de cansaço, de chegada aos limites, de rendição. A mão direita do homem da esquerda indica o chão, que lhe é perpendicular, isto é, o chão, a terra, a realidade, o destino. A mão direita do outro homem, o da direita, confunde-se com a vara que carrega no ombro, na qual descansa esta mão. Ela parece estar recoberta por uma atadura, que amarra a mão e o homem ao pau que carrega, prendendo-o na mesma realidade e conduzindo-o ao mesmo fim.

A vara, como figurativização de lança, atravessa o quadro; ela é paralela à linha da terra, da realidade, da morte; ambas as linhas, horizontais, dão estabilidade à composição, contrastando com a diagonalidade dos ângulos e com a emocionalidade da tela, para qual estes ângulos contribuem. Os terminais retos dos dedos da mulher central remetem à idéia de castração ou à de final abrupto. Cabeças pequenas em relação ao corpo e barrigas retraídas, aliadas aos membros superdesenvolvidos aludem ao excesso de trabalho, em troca de pouca comida e à sua conseqüência: cérebros pouco desenvolvidos.

O peso do corpo do defunto é que dá a forma de triângulo à rede, pois ela é flexível, de pano; assim, a forma triangular que o tecido da rede adquire, denota um defunto minguado, amontoado no fundo da rede. A rede pode ser vista, também, como um buraco, cova ou receptáculo. Outra espécie de metáfora é uma pedra no caminho, na parte inferior da tela, com valor de obstáculo, cujo sentido é reforçado pela forma angulosa que esta pedra apresenta.

40 O fundo superior é formado por efeitos de superposição de superfícies em diferentes tons de cinza esverdeados, onde o preto dos contornos está ausente; a direção das superfícies é dada pelas pinceladas. São os infinitos horizontes de esperança, tão diversificados quanto inatingíveis. A linha da vara que usam os carregadores para conduzir a rede nela amarrada e a linha da terra, ambas levemente descendentes, articuladas à forma da postura arqueada do homem da direita e à da mulher da direita formam um sintagma, dando a idéia de determinada direção: para frente e para baixo. Indica a necessidade de continuar a caminhada, para a frente, mas para baixo, na direção da terra ou do inferior, no sentido descendente ou decadente. A rede, formada por uma espécie de lençol e a imagem da mulher da direita, considerando-se em especial o véu que lhe encobre a cabeça e as pinceladas azuis, cor que remete à Virgem Maria, dão origem a outro sintagma, que evoca a paixão de Cristo. Pode ser incluído neste sintagma, igualmente, a água, o líquido do mesmo azul que o da roupa desta mulher, insuficiente para cobrir a cavidade do lago, podem ser as lágrimas que ela não verte. O pequeno lago, parcialmente seco, é ao mesmo tempo metáfora e metonímia de seca.

Tanto os ângulos com abertura para os céus quanto aqueles com abertura para a terra podem dar a idéia de cunha, ferindo pelo vértice, agressão, violação, ou, pelo lado oposto, pela abertura do ângulo, a idéia de abertura mesmo, de vulnerabilidade, de rendição, fragilidade, aceitação do estupro inevitável. Neste entrecruzamento de significados através dos ângulos, pode-se entrever a ausência de justiça social terrena e também, da justiça celeste ou sua invocação. É um jogo de forças, de forças desiguais; um jogo no qual já se sabe de antemão quem é o ganhador e quem é o derrotado. E o que resta? A submissão, estampada no rosto dos dois homens. Em síntese, a tela apresenta dois homens carregando sobre os ombros um pedaço de pau, do qual pende um pano, ou uma rede, conforme o título do quadro indica. As duas extremidades da rede, amarradas às pontas do pau, permitem que o pano fique pendurado, como uma bolsa, e que ela sustente um conteúdo. O conteúdo não se vê, mas interrelacionando-se o título da obra à gestualidade das mulheres presentes na cena (ambas de joelhos, uma chorando e a outra com braços abertos, dirigidos ao alto), deduz-se que é um defunto. Se se observar os quatro actantes visíveis na tela dois a dois, ou seja, os dois homens em relação às duas mulheres, vai-se perceber que, enquanto as mulheres estão de joelhos, os homens estão de pé. São os homens que carregam o defunto, embora ele seja tão pequeno que as mulheres - mesmo se frágeis, o que é pouco provável, naquele contexto - poderiam carregá-lo. Dos homens, pode-se ver os rostos; os das mulheres, eles não são dados a ver. A postura dos homens é conformada, eles parecem

41 destituídos de emoção. O que dá este sentido a eles é a sua gestualidade, quase estática e a expressão dos rostos, que nenhum sentimento permitem perceber. Eles não parecem estar alegres ou tristes. Eles estão apenas sérios.

As mulheres, mesmo sem que se veja a expressão do rosto e mesmo que não vertam lágrimas, mostram forte emoção: a gestualidade da mulher central, de joelhos, voltada para a rede, e com os braços abertos em direção do céu, produz o efeito de desespero; a mulher da direita, também de joelhos, adiante do féretro, com sua cabeça baixa, apoiada na mão, confere-lhe um sentido de sofrimento contido . As pernas dos homens apresentam músculos expostos, de forma longitudinal; as pernas das mulheres estão escondidas. Nos pés da mulher central, muito evidentes são os seus dedos, em forma circular e a mulher da direita é construída quase que exclusivamente com linhas curvas. As retas e os ângulos, na organização de um texto visual, geram efeitos de estaticidade, permanência ou mesmo agressividade, além de conduzirem a direção do olhar. Por outro lado, as linhas curvas ou sinuosas são mais brandas, conferem mais leveza, mesmo também sendo condutoras do olhar. Durante todo o processo foi levada em conta a inter-relação entre o código pictórico e o verbal, ou seja, entre a imagem da tela, em si, e o título da obra: Enterro na Rede. Isto porque, considerando-se a forma assumida pelo defunto, na tela, que não parece a de

um ser humano, mas um volume qualquer; o costume característico de uma região específica, o de levar os mortos a enterrar em uma rede e não em um caixão; o fato de a rede parecer mais um lençol, e não uma rede; e mesmo o fato de que a cena retratada não é o enterro, em si, mas a caminhada até o local do enterro, ou seja, o préstito, um olhar mais apressado poderia não perceber de pronto o significado global do quadro.

Enterro na Rede é um título que facilita o acesso aos inúmeros significados da obra. Ao se conhecer o título, não restará dúvidas sobre o que seria o pequeno volume dentro do lençol, nem sobre o destino do préstito. Assim se verifica a relevância da interrelação obra/título, o que cresce ainda mais em importância em contextos onde não se conhece o autor nem maiores detalhes sobre o tema retratado. Neste encontro/troca entre expressão e conteúdo pode ser observada a dimensão epistemológica da obra pois, além de desvendar as relações, precisa também articular as áreas de conhecimento que o estudo de cada obra específica leva-o a se defrontar. Vale dizer que, embora este texto pictórico traga todo um conjunto de significados em si, passível de leitura em qualquer contexto

42 sócio-cultural, a apreciação cresce em densidade se se dispuser a conhecer um pouco mais sobre o tema, o que, neste caso, é favorecido pelo texto verbal que, sendo o título da obra, com o texto pictórico interage.

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MODA TAMBÉM É TEXTO No dia em que, em período remoto e sem possibilidade de ser definido com exatidão, um ser humano ajeitou de modo diferente ou acrescentou algum detalhe à pele ou ao couro que lhe cobria o sexo ou lhe aquecia, foi inventada a moda. Temos a tendência de considerar os produtos da moda como elitistas ou supérfluos, bem como a simples preocupação com elas; todavia, esses como outros produtos considerados “de luxo” têm papéis estéticos, sociais, psicológicos e políticos, além de semióticos, através da história. Desde a Antiguidade até a Idade Média, em todos os sistemas sociais baseados na diferença de classe, a moda desempenhava um importante papel de diferenciação entre membros da classe dominante; que só em um segundo momento a moda chegava às classes intermediárias e, raramente, à massa da população. Esta classe usava trajes camponeses, considerados “folclóricos”. Também não parece que a situação tenha se alterado, em grande escala, após a Idade Média. Talvez se possa estender um pouco mais essa situação no tempo, e afirmar que o acesso das classes intermediárias à moda se deu a partir da Revolução Industrial. Se hoje a excelência do design italiano disputa com a França a primazia na qualidade dos produtos na área da moda, o fato é que durante praticamente todo o século XX, a capital da moda foi Paris. A atividade inicial das maisons francesas foi a haute couture, que se dedicava à criação de modelos exclusivos para igualmente singulares clientes ao redor do mundo. As transformações sociais ocorridas durante a segunda metade daquele século incluem uma maior mobilidade social e a

inserção da mulher no mercado de trabalho – que por sua vez exige uma maior mobilidade física. Aliado a esses fatos, acontece a ampliação de uma classe média com crescente poder de compra,

e surge o prêt-à-porter: os modelos passam a ser mais práticos e

produzidos em série, e os materiais, não são mais tão “nobres”. É nesse período também que se diversificam os produtos oferecidos pelas grandes maisons, incluindo uma diversidade de acessórios e produtos de beleza. Um novo, maior – e não tão “nobre” – mercado, para produtos de qualidade, embora já não mais exclusivos. Mas todos nasceram com a força da respectiva marca, a marca da exclusividade, a marca da maison. Com um imenso mercado consumidor disponível, e meios de produção em larga escala viabilizados, torna-se importante para o sistema capitalista estimular a competição das massas através da moda. A produção em série atende às necessidades de uma classe média em expansão (em termos de dimensão e de poder aquisitivo), pois pode consumir produtos derivados daqueles

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ou associados, por meio da marca, àqueles inacessíveis. Esses produtos, simplificados, mas mantendo a marca de origem e traços estéticos universalmente reconhecíveis, permite ao consumidor uma ligação com o valor da marca, satisfazendo sua necessidade de consumo daquele conceito que a marca significa, através de uma espécie de mimetismo. Ao adquirir produtos derivados, pertencentes a uma marca consagrada, como perfumes e acessórios de moda, passamos a participar do patrimônio cultural das marcas e ascender ao seu território, conforme disse Danièlle Allérès, uma estudiosa do assunto. Paralelamente, uma outra indústria se institucionaliza: a das revistas de moda, que possibilitavam, e possibilitam ainda, a produção doméstica do vestuário, de acordo com o quê “está na moda”. A moda se populariza e, por exemplo, não é estranho uma empregada

doméstica falar do seu pretinho básico, mesmo sem saber que esta foi uma criação (e um conceito, conseqüentemente) de Mademoiselle Chanel, há décadas atrás. Neste contexto de democratização, surgem ainda duas formas diferenciadas de resistência: a pirataria, na forma de cópia de modelos assinados, ou mesmo a falsificação de modelos prêt-à-porter, e o advento da moda jovem, despojada e uniforme, anulando a diferença de classes, fato acontecido no fim do século passado. Mas o que nos interessa aqui, não é a moda em si, no sentido do que está na moda ou está démodé, dépassé; ou se a peça é exclusiva ou se foi comprada em uma cadeia popular de lojas de departamento. É isto que nos interessa: a vestimenta como texto visual. Que sentidos estão articulados em uma peça exclusiva da haute couture e o que está dizendo o que traja a moça no metrô? Para tanto, foram escolhidas algumas criações de Givenchy, modelos que foram publicados no livro Le Style Givenchy, de Françoise Mohrt. Trata-se de uma obra antológica, uma espécie de biografia autorizada, portanto, elaborada com o consentimento deste criador, uma vez que o próprio Givenchy é o autor do prefácio e das legendas das fotos. Assim, supõe-se que as imagens que ilustram este livro contenham elementos plásticos que apresentam suas principais características, uma vez que consistem em exemplares representativos da “linguagem” Givenchy, ou seja, em modelos contendo seus elementos plásticos de identificação. Pode parecer um paradoxo a escolha de uma marca de luxo e produtos exclusivos de alta costura para discutir a estética do cotidiano. Ocorre que, mesmo sendo criados para o consumo direto de uma cliente exclusiva, esses cortes, essas dimensões de peças, esses tecidos e essas cores passam, em seguida, a povoar as ruas e o universo visual das sociedades ocidentais e, no presente, também das orientais, independentemente ou, na melhor das hipóteses, paralelamente às influências culturais autóctones. São textos visuais, cores e formas que nos falam, quebrando paradigmas estéticos,

45 revolucionando costumes. Não é sem motivo que ainda se diz que os grandes

costureiros “ditam” a moda. Os textos visuais disponíveis através desse livro intercalam fotografias de modelos com outras de objetos e ambientes pertencentes a Givenchy. Em síntese, visualizam-se seu escritório e de seu hall de entrada, em Paris; um bouquet de flores (“bouquets altos” são sempre minha preferência, diz ele); close de um punhado de alfinetes dourados, com cabeça esférica de vidro cor-de-mel; detalhes das portas de seu armário chamado por ele fétiche, em negro e ouro; fotos e aquarela de seus salões em Paris; um armário exibindo louça de Limoges e detalhes de outras peças de mobiliário; um torso grego em mármore branco, imagem de Afrodite; vasos ornados com máscaras de Baco e cachos de uva; também várias cenas, internas e externas, de sua propriedade no Vale de La Loire, denominada Jonchet, com destaque para o desenho dos jardins; receitas culinárias, uma foto de um menu e outra de seu prato preferido; um close de dois tecidos verdes, um transparente e outro com o avesso branco; por último, diversas fotografias do interior e dos jardins de sua propriedade em Saint-Jean-Cap-Ferrat, denominada Clos Fiorentina, onde se destaca o uso da cor branca. Qual o sentido dessas imagens, no livro de Françoise Mohrt e qual o sentido de sua citação neste estudo? Ora, como pode ser observado, não se trata de uma espécie de valorização da moda de Givenchy, no sentido material, uma vez que coisas simples como as imagens de um pernil de porco assado, de um punhado de alfinetes ou de carretéis de linha, também fazem parte deste conjunto de ilustrações. E são imagens que podem estar no cotidiano do mais comum dos cidadãos. Igualmente, não se trata de expor publicamente a classe e a elegância da vida privada do costureiro, pelo fato de terem sido intercalados às suas propriedades e pertences, objetos muito singelos e recortes da natureza. Essas imagens estão ali pela sua capacidade de ressaltar elementos estéticos que fazem parte, como um sistema visual, da “linguagem” Givenchy. Isto porque são cores e formas que estão presentificados nas obras deste criador de moda, algumas vezes explicitamente. É o que o senso comum denomina “fontes de inspiração”, mas na verdade, consistem em um fenômeno bem mais palpável do que alguma coisa etérea como a inspiração: trata-se da questão da construção de significados visuais. Os critérios usados por Givenchy para escolher elementos estéticos, com o objetivo de construir o mundo em torno de si, são mesmos que ele usava para criar textos visuais moldados em tecidos, linhas, cores, bordados. Porque esse outro material visual, seus pertences e suas escolhas, também são textos. A estrutura acentuadamente vertical em um “bouquet alto”

é a mesma estrutura dominante no conjunto de sua produção visual. E é a mesma estrutura longilínea do alfinete e de Audrey Hepburn, musa do costureiro, ou seja, um conceito estético.

46 Por outro lado, a integração de todos esses dados visuais, a coerência entre criador/criatura, mostrando o conjunto de todas as peças como sendo um único sistema, consiste em um fator importante para o fortalecimento da marca Givenchy. São textos visuais que contém sentidos que integram o nível narrativo da marca, à “linguagem” Givenchy.

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ARGOLAS DOURADAS Toda imagem pode ser considerada um texto; e esta é uma reflexão sobre a significação de textos não-verbais. Trata-se de verificar "o quê" dizem as imagens, neste caso, uma imagem visual, e ainda, de tentar mostrar "como" ela fala. O objeto desta análise é um acessório de moda: uma par de brincos dourados. Se observarmos imagens femininas através da história, vamos encontrar, em diversos momentos, argolas douradas. E se olharmos em mais direções, igualmente vamos encontrá-las em distintos contextos culturais, eventualmente também como ornamento masculino, na forma de adornos análogos, como os braceletes e os cintos, que não deixam de ser espécies de argolas. E, em nossa volta, nos dias atuais, vamos vê-los aos montes, nos lábios umbigos e lugares ainda mais inusitados de corpos humanos, sejam eles de mulheres ou de homens. Não vamos aqui examinar um par de argolas particular, com uma textura especial, ou com uma forma exclusiva, que quebre o paradigma de argola (quero dizer, sendo aberta, ou oval, ou sextavada, por exemplo). Vamos tratar de argolas as mais convencionais: nem enormes nem pequeninas; mas redondas, lisas, douradas. Inicialmente, vejamos os elementos constitutivos dessas argolas: linhas curvas que se repetem compondo um par, apenas. E a "cor", o dourado, ou seja, o amarelo metalizado. Como se percebe, é um objeto conciso, sintético, de um certo modo, minimalista. O que um objeto (ou um par dele) tão corriqueiro poderia significar? Argolas, além de brincos, são aros e elos. E tem semelhança com anéis, fivelas, cacho de cabelos, alças, laços, círculos, curvas, voltas. E absorvem toda a carga semântica, ou os efeitos de sentido, desses outros objetos ou formas, que são análogos. Argolas fechadas remetem ao sentido de proteção; abertas, ao de liberdade. E as argolas formadas por anéis de cabelo já foram muito usados como identificação. Em francês, chamamos os brincos de “boucles d'oreilles”, literalmente, arcos ou fivelas de orelhas, que alude à proteção das orelhas, também no sentido de afugentar o significado do que por elas passaria em forma de sons, rumo aos ouvidos. Há também analogias com a fertilidade, pois "boucles" tem também o sentido de pequena boca, ou de órgão genital feminino. Anéis e brincos são conceitos que se confundem, portanto. Anéis são alguma coisa a mais do que simples adornos. Anéis também serviram, há tempos atrás, para identificação, quando traziam, geralmente em relevo, o brasão da família, ou as iniciais da pessoa. Neste caso, serviam como sinete,

48 isto é, matriz para impressão, sobre o papel ou lacre, dos dados de identificação, muito usados para selar compromissos. Anel encerra o sentido do poder, e o sucesso atual de público nos filmes da série "O Senhor dos Anéis" (The Lord of the Rings, no original em inglês) mostra a atualidade deste efeito de sentido, que atravessa o tempo e permanece nos mais distintos espaços. Possuir um anel pode encerrar a noção de ter poderes mágicos; de abrir portas secretas, de estar protegido contra forças desconhecidas. E “ring” quer dizer, além de anel, círculo, argola; e circo, ringue, arena; também em inglês, como verbo, tem os sentidos de toque ou ressonância de sinos, campainha ou carrilhão. São mais conteúdos que podem se somar aos efeitos de sentido de argolas douradas. Nas Escrituras, várias passagens atribuem a sabedoria de Salomão a um anel que usava. E o anel papal, chamado anel do Pescador, é quebrado quando da morte do Papa, mostrando a quebra do vínculo entre Deus e os homens, através da desaparição daquele ente. Mas argolas podem ser ainda alianças, o que acrescenta uma nova bagagem de efeitos de significação às argolas. Entre noivos, elas são um acordo de fidelidade, mas podem ser interpretadas como a escravidão de um em relação ao outro. Em religiosos, é a submissão a Deus; as freiras são as noivas de Deus. Na prática da domesticação de falcões, a partir da colocação de uma argola na perna da ave, ela passa a caçar apenas para aquele respectivo dono. Algemas também são argolas. Assim se diz que as argolas unem e isolam amo e escravo. Aliança, o anel ritual do noivado ou casamento, alude também a noção de compromisso. Aliança pode ser ainda um acordo, um pacto, um outro tipo de compromisso, onde posições diferentes se reúnem para ações conjuntas, geralmente, tendo como motivação um objetivo comum. Daí veio o verbo aliar, que segue o mesmo campo semântico. Argolas também são elos, que indicam ligação, união, palavra que tem a mesma origem que anel, pois ambas derivam do latim "annellu". A palavra aliança já foi usada desde as Escrituras, pois Deus fez diversos pactos com os homens, as alianças. Em síntese, além dos efeitos de sentido já mencionados, as argolas em forma circular aludem às idéias de ciclo fechado; ciclo solar; encerramento ou continuidade de circuito; eterno retorno; homogeneidade; sucessão contínua; totalidade indivisível; unidade; tempo; destino; sol; roda; movimento; e perfeição, pois tem como base a figura geométrica que é considerada perfeita e, enquanto tal, remete à noção de divino. Com relação à cor, as nossas argolas imaginárias, relembrando, são douradas. Não sendo de ouro, mas de qualquer outro metal menos nobre, o dourado presentifica o ouro, e rouba dele a carga semântica. Como metal perfeito, por ser o mais precioso, o ouro guarda relações com o conceito de

49 imortalidade. Do mesmo modo, a partir de conexões estabelecidas através do tempo, o dourado remete à nobreza, ao fogo, à luz, ao divino. E ao sol. E, conseqüentemente, ao se relacionar ao conceito de sol, o dourado alude às noções de calor, brilho, luz, conhecimento, riqueza, fecundidade, amor, dominação. Enfim, uma simples forma circular, como a das argolas, guarda consigo uma série de efeitos de sentido que assimila dos sentidos de diversas outras formas análogas. Mas não se trata de apenas somar significados fechados, de caráter exclusivamente simbólico, representativo, aleatório ou convencionado socialmente. As alusões, atualizações ou mesmo migrações de efeitos de sentido se dão a partir da presentificação de elementos. Circulares são os planetas, claro, também o sol, e o trajeto dos planetas em torno do sol. Contornar uma pessoa ou coisa é um modo de aprisioná-la. Elos unem. Adereços identificam, além de adornar. Metais são preciosos e a arte de formatar metal com vistas a produção de pequenos objetos exige maestria; é o fazer do ourives, que agrega valor ao metal. Isto tem um custo e quem pode possuir esses objetos tem poder. Laços, alças, voltas, enfim, quaisquer linhas curvas sempre causam, ao olhar, a sensação de movimento, ao contrário das retas, que surtem o efeito de rigidez. Com estes exemplos podemos observar que não são gratuitos os efeitos de sentido que as argolas são capazes de gerar. Quando as argolas são douradas, essas linhas curvas perfeitas, as formas circulares, interrelacionam seus significados com os do ouro. Dessas relações surgem novos efeitos de significação, como aconteceria com as relações entre formas e cores em qualquer outro objeto ou imagem. Mas nesse caso, como pode ser observado, alguns efeitos de sentido que emanam do ouro, ou do dourado são coincidentes com certos significados das argolas, ou do círculo, embora outros sejam complementares. Esses significados da forma, reiterados pela cor - ou pelo material - potencializam esses efeitos de sentido e talvez aí esteja a força da carga semântica das argolas douradas, especialmente no que diz respeito ao poder, à perfeição, ao divino, ao destino, tanto nas formas circulares como no ouro, que geram um certo mistério em torno delas e justificam sua presença nas mais distintas culturas, através dos tempos. Aos designers vale lembrar que não só jóias ou bijuterias como anéis, brincos e alianças são argolas douradas. Aldravas, as antigas argolas de metal usadas para bater nas portas antes do advento das campainhas, os puxadores do mobiliário, os aros de contornos de luminárias, os acessórios de cortinas, detalhes da moda, óculos, entre outros, são objetos que podem consistir em argolas douradas. Ficam aqui disponíveis estas referências de significação para tais produtos, que pela sua forma e pela sua “cor”, assumem os mesmos efeitos de sentido que possuem os brincos e os anéis dourados.

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ENQUANTO O ARTESANATO NÃO SE ATUALIZA... Adélia Borges quase esgotou o assunto quando escreveu “Design e artesanato, um namoro promissor”, no seu livro intitulado Designer não é personal trainer. Por conta do “quase” e do fato de apresentar adiante uma leitura de um produto artesanal, volto ao assunto. Em síntese, Adélia desmonta a tese da preservação da “pureza” dos artesãos, mostrando que esse patrimônio da identidade cultural não pode ficar congelado, pois seria sua morte. Que esta espécie de atualização do produto deve ser feita pelos designers, todos estamos de acordo. Enquanto a atualização não acontece, vemos a suposta pureza sendo deturpada, não por adaptações de quem conhece a fundo o assunto, mas por inescrupulosos que só visam o lucro. São adaptações canhestras, sem o mínimo de coerência interna e, às vezes, distantes das características naturais da região ou da cultura local. É o caso do alabastro de plástico ou dos santos moldados em gesso. Hoje em dia, chegamos ao cúmulo de saber da existência de fábricas de artesanato. E se formos aos dicionários, veremos que além de trabalho manual, exercido no âmbito doméstico, da tradição do fazer, da associação do aspecto artístico ao utilitário, também aparece como uma das dimensões de significado o fato de o produto artesanal não ser criado em série. Ao contrário, como se vê artesanato em série! Com o advento da Revolução Industrial, houve a valorização dos produtos manufaturados, com as superfícies mais regulares, consideradas “mais bem acabadas”. Em contraposição, produtos elaborados artesanalmente eram considerados primitivos, rústicos, medievos, destinados ao uso dos que não tinham acesso ao equivalente industrializado. Mas, o avanço dos meios de reprodução, e a conseqüente massificação de produtos geraram a falta de identidade. Houve o retorno da valorização dos produtos rugosos, fruto da ação da mão do homem sobre eles. Hoje há uma tendência, em alguns setores, de considerar que tudo o que é hand made é superior. São produtos mais valorizados, porque são “mais exclusivos”. Um exemplo, na arquitetura, foi a disseminação do estilo mediterrâneo por muitos países distantes daquele mar que emprestou o nome ao estilo, no qual os muros e paredes brancas são recobertos por uma áspera argamassa . É também o caso, mais recente, da disseminação de texturas artesanais na arquitetura de interiores, seja nos revestimentos de paredes ou no mobiliário.

51 O fenômeno da significação subjaz a tudo isso, como pode ser observado. Além do aspecto da valoração atribuída a determinados materiais e suas propriedades, é interessante observar a mobilidade da significação e conseqüente valor, através dos tempos. Ao brilho, por exemplo, tem sido

atribuído, historicamente, um valor superior do que às superfícies opacas. Isto vem do valor dos metais, tais como durabilidade e, no caso de alguns, raridade. Isto sem contar a maleabilidade, a qual é conseguida com a ação do fogo, elemento com poderosa carga de significação. Mas a sabedoria popular já vaticinou: “nem tudo que reluz é ouro”. Dada a descoberta de novos materiais e a massificação de imitações de metais nobres, principalmente do ouro, o brilho vem perdendo esta valoração de superior, podendo ser considerado, em alguns casos, um atributo kitsch. Daí o advento e a valorização dos metais escovados. Mas o dourado, como morfema (forma mínima com significado gramatical), permanece significando. Quando morei fora do Brasil pude observar como a França trata a questão do artesanato, especialmente no que se refere aos alimentos. E percebi como nós estamos, de certo modo,

ainda deslumbrados com a Revolução Industrial... Lá o padeiro é o artisan boulanger, e isto tem muito status. O açougueiro, aliás, o artisan boucher, por baixo do guarda-pó está de gravata, tem carro do ano, só abre a boucherie poucas horas ao dia, antes das principais refeições. Mas vale a pena só olhar um balcão frigorífico de uma boucherie. Que carnes! Muitas vêm não só cortadas, mas amarradas com cordão e decoradas... E como eles as manipulam com cuidado; e como têm prazer que se procure um produto preparado com esmero; e como não se furtam a recomendar como assar ou quantos minutos de fogo... Enfim, tudo o que é feito por um artisan é mais caro do que um produto equivalente industrializado, porque é personalizado e agrega o valor da ação da mão e da

mente humana. É o preço da exclusividade, ou no mínimo, da seletividade. Em síntese, lá os produtos da feira são muito mais caros do que os do supermercado. Talvez os franceses se excedam em relação à valorização do artesanato. Quando houve uma greve de médicos do serviço público por causa de salários, quase não acreditei quando ouvi o presidente do sindicato dos médicos usar como principal argumento o fato de que seu trabalho era artesanal. Voilà: l’artisan médicin... Enquanto nem o artesanato, nem o conceito de artesanato são atualizados, continuamos, aqui nos trópicos, pagando mais caro por suco de laranja de caixinha do que pelo suco natural...

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IMAGENS “HAND MADE” Vamos agora ver o que nos tem a dizer uma imagem da arte popular, na verdade duas imagens, ou seja, um conjunto em cerâmica. Ele é originário da cidade de São José, município da Grande Florianópolis, Santa Catarina, onde são desenvolvidos, tradicionalmente, trabalhos em cerâmica, utilitária e figurativa. As duas personagens que formam este conjunto em cerâmica, presentificam, respectivamente, dois sujeitos no exercício de suas atividades produtivas: o pescador artesanal e a rendeira, cujos instrumentos de trabalho fazem parte do texto estético. São duas pequenas imagens medindo cerca de dez centímetros de altura, as quais, em virtude da técnica utilizada, foram coloridas a frio, com tinta comum, após a queima da argila. Para realizar o estudo dos efeitos de sentido um texto tridimensional, é indispensável considerar diversos ângulos de observação. Inicialmente, então, observa-se uma visão de cima das imagens, para que se veja o contorno e as dimensões sob esse ângulo específico. O primeiro elemento estético a ser observado, é a dimensão das peças; embora elas se equivalham na largura, a peça que contém o homem é maior no comprimento;

tem quase o dobro do tamanho da peça na qual a mulher é a figura principal. Na peça que contém o pescador, há uma diversidade entre as linhas curvas e retas. O pescador está em primeiro plano, pois é a imagem mais alta da peça da qual faz parte, o que lhe confere importância. Sobressaem-lhe o chapéu, os olhos e o nariz e se apresenta com postura estática. Esta postura, bem como os detalhes anatômicos pouco elaborados, são características da cerâmica popular figurativa, mesmo em outras regiões do país. A peça, vista de cima, apresenta como delineamento o contorno da canoa, onde o pescador está sentado; é uma forma simétrica, longitudinal, mais larga no centro e afunilada nas duas extremidades, o que as torna pontiagudas; seus lados são duas linhas curvas, dois arcos em posição côncava que, ao se encontrarem em dois pontos, desenham o contorno do objeto. Em cada extremidade da parte interna da canoa, há uma espécie de rosácea pintada em azul e vermelho sobre um círculo verde, as quais se localizam, centralizadas, sobre os triângulos brancos que fazem o acabamento das pontas extremas internas do barco. As bordas que contornam a canoa são vermelhas e entre elas existem dois bancos, um onde está o pescador e outro que apresenta uma decoração em vermelho sobre o fundo branco. O fundo da canoa é azul claro, do tom que se pensa o mar.

53 Na canoa vêem-se quatro peixes cor de prata, sendo um à direita e outro à esquerda do pescador, ambos com os rabos angulosos para cima, partes que estão mais próximas do pescador do que suas cabeças, uma vez que estes peixes estão na posição diagonal. Colocados nesta direção, eles funcionam como setas - rabos mais largos, bifurcados, e cabeças terminando em forma angular, como cabeça de setas. Assim, os peixes mesmos fazem o papel de setas. Ainda sendo apontado pelos dois peixes laterais, no fundo da canoa está outro pequeno peixe que aponta para o pescador, pois sua cabeça está voltada para ele, o que gera o encadeamento de ligações entre o pescador, em primeiro plano, elemento destacado, cuja direção dos braços, paralelos aos peixes laterais remetem a eles, aos peixes que indicam o mar e o pequeno peixe que faz o olhar retornar ao pescador. Fecha-se o círculo que determina a significação de entrelaçamento entre pescador, pescados, mar e pescador. O fundo da canoa, sendo azul claro, presentifica o mar, de onde vêm os peixes que sobre ele estão. Há um quarto peixe, distanciado deste conjunto tanto pelo espaço mesmo quanto por estar separado pelo banco da canoa. Ele está localizado entre este banco e o triângulo da proa do barco. Sua dimensão é média, em relação aos outros três, ou seja, ele é menor que os dois peixes que apontam para baixo e maior que o peixinho do fundo do barco. Sua posição é diagonal em relação tanto ao eixo do barco, quanto aos bancos; é mesma disposição dos grandes peixes, apesar de o quarto peixe não estar disposto paralelamente em relação a eles. Mas a direção deste último é oposta à dos grandes peixes. Enquanto aqueles apontam para o fundo do barco e para o mar, o peixe médio tem o rabo no fundo do barco e a cabeça voltada para cima, em direção para o alto e para fora da canoa. Ele, indicando a direção, vincula o mundo restrito da canoa com o mundo em torno dela, lá fora. Os dois bancos do barco, dispostos em direção perpendicular à longitudinal que é predominante na canoa, atravessam-na horizontalmente. Um deles está quase encoberto pelo pescador que nele está sentado. Elementos constitutivos se articulam a cor vermelha, especialmente na cobertura do outro banco, que é inteiramente visível, bem como nas bordas da canoa. O segundo banco tem um fundo, na cor branca e, sobre ele, no mesmo vermelho das bordas, duas faixas se estreitam em direção ao centro, formando um círculo no ponto onde se encontram. Parece um nó de um cinto, trazendo a idéia de que sentada ali naquele banco, a pessoa estaria amarrada, em segurança. Sabe-se que a estabilidade de uma canoa é precária e, para que não vire, é necessário que o peso de tudo o que está dentro deve ser nela bem distribuído. O ponto do banco onde está o nó da faixa vermelha que o decora está centralizado, indicando o local exato onde uma pessoa deveria se sentar sem causar instabilidade no equilíbrio do barco. Assim, o que parece inicialmente a decoração do banco é uma forma que lembra um cinto de

54 segurança e indica o ponto de equilíbrio do barco. Por outro lado, as cores também reiteram este significado: o fundo é branco, paz, tranqüilidade e a faixa e os nós são vermelhos, o perigo. O vermelho também é usado no contorno das bordas da canoa; é a região do barco limítrofe do perigo, o mar. E também são as áreas do barco onde qualquer peso em desequilíbrio pode, mais facilmente, fazê-lo virar. As duas rosáceas idênticas, situadas na proa e na popa do barco, merecem uma atenção especial, embora possam parecer, para um olhar descuidado, mera decoração. O contraste do colorido com o branco do fundo lhe dão destaque, assim como o da linha curva do contorno do círculo em relação às linhas retas do contorno do triângulo onde está inserido. O verde do fundo do círculo rebate o verde da calça do pescador; o azul escuro, rebate a cor da sua blusa e o vermelho, os contornos da canoa. As rosáceas ficam, através das cores, vinculadas ao pescador e à canoa, mais a ele do que a ela. As quatro pétalas, duas azuis, duas vermelhas, inicialmente formam uma flor. Mas podem ser também quatro gotas de água, de água do mar, de onde vem o peixe, o alimento, a vida, ou gotas de água doce, igualmente vida, água para matar a sede de quem fica tão exposto ao sol que precisa de um chapéu para proteger-se. Ou podem ser as pás de um hélice de um motor que a canoa não tem, mas que o pescador gostaria que tivesse. Podem ser também as pás do hélice de um ventilador, que dá origem ao vento, o mesmo vento necessário para facilitar o singrar do barco, poupando forças ao pescador. Mas vento demais não é bom, bom seria poder controlar sua intensidade; e o vento do ventilador é controlável... Voltando-se à idéia de flor que, de maneira geral, remete a efeitos de

sentido relacionados ao feminino; são noções como a de círculo, de cálice, de receptáculo, de orifício que surgem. Além de poder presentificar as virtudes e a perfeição espiritual, o que é reforçado por estar inserida, neste caso, em um círculo, uma flor pode ainda remeter para idéias de amor, harmonia, vida, beleza, natureza. Estando nas bordas, onde, qualquer direção que tome o barco, para frente ou para trás, estará apontando provavelmente para a terra, onde estão, talvez, a vida, o amor... No banco encoberto está sentado o pescador. O pescador está descalço, traja calças verdes e blusa azul; porta um chapéu amarelo e arredondado, é uma analogia em relação ao sol do qual ele precisa se proteger, dada pela forma circular e pelo cor amarela. O homem traz com ele, entre a parte externa da sua perna esquerda e o braço esquerdo, paralelo ao seu corpo, um remo na cor laranja. É uma peça longitudinal e dada a não consideração da fragilidade da cerâmica quando da elaboração deste elemento, a desproteção causada à parte superior, com pequena espessura, faz com que ele se

55 quebre com facilidade, como aconteceu com a peça analisada. Assim, a forma do remo deve ser considerada com maior altura do que a apresentada nas fotografias. Observe-se a cadeia de efeitos que geram os elementos constitutivos, linhas e formas, associados às cores. O remo é o único elemento que tem a cor laranja e por isso se destaca. Sua situação, entre o amarelo do chapéu e o vermelho das bordas da canoa, fazem com que ele se equilibre na composição, uma vez que o laranja é o equilíbrio entre o amarelo e o vermelho. A forma do remo, longitudinal, por sua similaridade, aponta para a noção de falo; e sua cor, laranja, reforça essa idéia, ao se interrelacionar com seu contorno, já que laranja é uma cor quente, derivada do vermelho, que é a cor do sexo, da carne, do sangue. Exceto o azul claro do fundo do barco, tom obtido da mistura do azul da camisa do homem ao branco, as demais cores são puras e nesta exceção pode ser verificada mais uma vez a vinculação homem/barco/mar. As extremidades dos membros, compostas por linhas e formas simplificadas, juntamente com a predominância de cores puras, evidenciam a ausência do conhecimento de técnicas elaboradas na produção deste texto estético. Os olhos dos peixes e os olhos do pescador são da mesma cor, azul, e a boca do homem também é do mesmo vermelho que as bocas dos peixes. Esta similitude, além de ligar os animais de dois gêneros, lembra que o peixe, que é alimento, também se alimenta. Considerando-se o conjunto da peça onde está o pescador, percebe-se que as superfícies são lisas, à exceção do chapéu do pescador, cuja textura busca a semelhança da palha, bem como os quatro peixes, cuja textura se assemelha ao mesmo tempo a das escamas e às

ondas do mar. Olhando-se para a figura do pescador de frente, observa-se que as linhas internas de contorno das suas pernas formam um ângulo muito fechado, que remete para o ponto onde estão, encobertos pela calça, seus órgãos sexuais; por outro lado, os contornos externo e interno de ambos os braços, formados, cada um por duas linhas curvas paralelas e côncavas, chamam a atenção para um ponto central, eqüidistante dos dois braços. Este ponto coincide com o baixo-ventre do homem, o que é reforçado pela passagem, pelo mesmo ponto, da linha reta que delimita a barra da sua blusa. Vista de lado, a canoa é predominantemente branca e possui um pequeno friso amarelo e outro, mais grosso, azul do tom da camisa do homem. Sobre a faixa azul, a inscrição do nome do local de origem do barco e da cerâmica: Fpolis, SC. Como ambos os frisos horizontais não são retos, mas irregulares, na parte lateral da proa, há uma curva a qual, olhada ao mesmo tempo que o contorno da canoa no lado oposto, gera uma forma que se assemelha a um peixe, demonstrando a limitação do repertório visual do artista popular. Isto se repete em ambos os lados externos da canoa.

56 Ainda deste ângulo, a figura do homem, inserido na canoa, pode ser ainda considerada como tendo a conotação fálica, especialmente se se rever a forma vaginal da canoa vista de cima e se se levar em conta a forma longitudinal do pescador nela colocado. A peça que apresenta a rendeira, vista de cima, mostra o contorno determinado por uma base com forma arredondada próxima à oval; sobre esta base, a mesma marca da origem da cerâmica grafada: Fpolis, SC. Também sobre esta base e ocupando a maior parte dela, vê-se outra forma circular, gerada pela roda da sua saia. Sobre as duas formas circulares, em primeiro plano, está a cabeça da mulher e sobre ela, os cabelos presos em um arranjo geram uma quarta forma circular, o que pode ser observado de outro ângulo na foto de frente. Da cabeça, sobressaem-lhe as orelhas, além do nariz. Seu tronco, em escorço sob este ângulo, visto ao mesmo tempo que seus braços estendidos para a frente e em conjunto com a linha determinada pelo contorno interno da caixa sobre a qual está a almofada, formam um quadrilátero, quase um quadrado, que contrasta com as formas circulares e se rebate na caixa da almofada, que tem a forma retangular. Um dos lados desse quadrado só é assim delineado porque a mulher não tem seios: o contorno dianteiro de seu tronco, visto de cima, é uma reta. Dentro do quadrado se vê, ao fundo, a saia da rendeira. Sua cabeça é contornada por linhas paralelas que determinam a presença de uma espécie de xale em torno do pescoço. Nas inúmeras idas e vindas diante desta imagem, de um elemento para outro, de um conjunto de elementos para a cor de um específico, de uma forma para outra, das partes para o todo e vice-versa, surgem inúmeros efeitos de sentido, nesse caso, quase tudo remetendo à idéia da natureza feminina. A forma oval se repete na almofada mas, seus eixos são perpendiculares, ou seja, se traçada uma linha imaginária sobre a maior largura da oval da base, esta linha atravessaria a menor largura da oval apresentada no contorno da almofada. Ambas as formas, sendo circulares, contrastam com o retângulo da caixa prateada sobre a qual ela está e com o quadrilátero vazado formado pela cintura , braços da rendeira e pela mesma linha que forma o retângulo justaposto, sendo esta última, levemente curva, pois se vê antes a almofada do que a caixa. Sobre a almofada, em relevo estão quatro bilros - quatro pequenas formas fálicas que apontam para a mulher - pintados de azul claro. Presa na parte frontal da almofada está a renda, com contorno feito, a partir de uma seqüência de linhas curvas, acompanhadas, paralelamente, por idênticas curvas pontilhadas. As duas seqüências paralelas de curvas, uma de linhas cheias e outra de pontilhadas, são pintadas de dourado. Outra linha curva assinala o centro da renda, a qual, da mesma forma, é acompanhada, por dentro por uma paralela pontilhada e ambas são pintadas de dourado. A base amarela aumenta a dimensão da imagem, mas fica ainda aquém da dimensão dada à peça que apresenta a figura masculina. Sua forma oval também contrasta com a forma longitudinal e

57 duplamente pontiaguda da canoa. A cor usada, o amarelo, é cor terrestre, mas é também cor do sol e do calor, pois o amarelo é uma cor quente. Talvez ele esteja ali para aquecer o que está, invisível, entre a própria base e o círculo seguinte, a saia da rendeira: a metade inferior do seu corpo. Este amarelo é rebatido no chapéu do homem, o qual também tem em comum com ele a forma circular. A saia é da cor laranja, cor que é rebatida pelo remo do pescador. Observada a partir de um ponto lateral, ver-se-á que esta saia tem a forma de um cone, que tem a forma de um receptáculo, o qual esconde estrategicamente a porção inferior do seu corpo. A saia é estampada por vários pontos amarelos cercados, cada um, de cinco pontos azuis, dando origem a pequenas flores, sendo que, como o cone, a flor também pode aludir à noção de receptáculo. O amarelo do miolo das flores rebate o da base e o do xale sobre o ombro, bem como o amarelo do chapéu do pescador. Já os pontos azuis, rebatem a camisa do homem e as pétalas de flor das rosáceas da canoa. A blusa da mulher é verde, do mesmo tom que o da calça do homem. Embaixo da saia, no espaço delimitado pelo quadrado, que seus braços estendidos demarcam, estão escondidas suas pernas dobradas, o que pode ser mais bem observado em uma visão lateral ou oblíqua. O xale, ou grande gola, é amarelo, com detalhes de pequenos pontos laranja, nas bordas, dando a impressão de uma franja. Visto de frente, melhor se observa sua forma, determinada pelo contorno: dois ângulos superpostos, com vértices quase coincidentes. Separando-se os lados dos ângulos dois a dois, tanto o par direito quanto o esquerdo - já que há simetria em toda esta peça de cerâmica - formam triângulos ou setas. Do vértice do ângulo superior sai o pescoço da mulher, e na direção oposta, ou seja, para baixo, os vértices quase coincidentes ou, visto de outra maneira, as setas, apontam para o ventre da rendeira. A rendeira, observada de frente, oculta a parte inferior do seu corpo, que é encoberta pela caixa sobre a qual está a almofada com os bilros, diante do que está a renda. Sob este ângulo, tem-se a visão completa da renda: interiormente, uma forma branca oval, determinada por uma linha cheia, acompanhada, por dentro, por uma linha pontilhada, que tem a mesma forma, sendo ambas recobertas por tinta dourada. Em torno desta oval, a superfície branca da renda continua, terminando em gomos formados por curvas subseqüentes - igualmente em linhas cheias e pontilhadas - que determinam a borda da renda, a qual também é pintada de dourada. O dourado atribui valor à renda, por ser um trabalho precioso e também por ser fonte de rendas, no sentido de recursos financeiros. O branco da renda se rebate no branco externo e em alguns detalhes internos da canoa, que é o meio para a obtenção de recursos financeiros, ou rendas. Elementos diferentes somam-se às cores para compor um conjunto de dois personagens, totalmente diferentes, se observadas as imagens de modo superficial, considerando seu nível

58 topológico. Através das inúmeras idas e vindas, do estabelecimento de relações e correlações, percebese um princípio comum entre os dois actantes: ambos causam efeitos de sentido que remetem ao seu respectivo sexo; e sendo assim, são, efetivamente, muito diferentes entre si. Visto de frente, o casal deixa à mostra a porção superior de seus respectivos corpos, pois da

cintura para baixo vê-se, anterior ao corpo do homem, a forma pontiaguda da proa da canoa. Da mulher, o que se vê nesta posição é a renda, sendo que o olhar é atraído especialmente pela oval do centro da toalha rendada. Assim, a imagem da rendeira é antecipada pelo conjunto formado pelas caixa, almofada, renda e bilros, que encobrem a visão, protegendo suas pernas e seus órgãos sexuais. No entanto, a forma circular, a oval, é o que aparece em primeiro plano na renda, oval esta circundada por uma outra forma ovalóide, com contorno de flor. A forma oval - e também a cor branca - remetem à noção de ovo, o que propõe significados como ninho, origem de vida, maternidade e também consiste em uma analogia de um orifício. A renda, como uma lente de aumento, amplia o que ela própria encobre. Do homem, o que se vê abaixo da cintura é a ponta da canoa, a proa, uma forma que também gera o efeito de sentido que remete à noção de um órgão genital masculino. A renda, no seu todo, não deixa de ser também uma espécie de flor, pois tem miolo, a oval do centro, e as pétalas, que são os seis gomos que circundam o miolo. A flor, que insere a idéia de feminino, receptáculo, é a forma que se repete inúmeras vezes na estampa da saia da rendeira e é também a forma que se vê, ainda que destituída de miolo, nas extremidades internas do barco. De uma maneira geral, pode-se perceber que embora inúmeros elementos estéticos interliguem as duas personagens, ressalta a afirmação da identidade sexual de cada uma, o que é expresso reiteradas vezes; como cada uma é de um sexo, os procedimentos utilizados são diferentes. Entre eles destaca-se a dimensão de uma peça em relação a outra.

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FRASCOS TAMBÉM SÃO TEXTOS Os pequenos frascos, como os de perfume, sempre exerceram uma grande fascinação sobre as pessoas. Isto porque está associado, historicamente, ao seu conteúdo, o qual, por sua vez, foi sempre vinculado à noção do bem-estar do indivíduo: poções mítico-religiosas, ungüentos medicinais, além do uso mais permanente e difundido ao longo da história da humanidade, qual seja, conter e armazenar, inicialmente óleos com odores agradáveis e, mais tarde, os destilados perfumados. Ora, em qualquer caso, trata-se de líquidos raros, dada a sua composição (o que pode ser deduzido pelas pequenas dimensões dos recipientes que os contém), além de preciosos, em virtude das suas finalidades. Daí o fato de ter havido sempre uma preocupação com as qualidades estéticas desses frascos, que não deixa de ser uma coerência entre conteúdo e continente. O perfume, em si, também é um texto estético. Isto porque é estético tudo que pode ser perceptível através dos sentidos; no caso do perfume, trata-se de um texto olfativo, principalmente. Possui ainda, o perfume, um corpo “objetivo”, o qual permite que ele seja também um texto visual, desde que seu continente, o frasco, seja transparente. Aí então poderiam ser observadas apenas duas qualidades estéticas: a densidade do líquido e sua cor, já que forma teria sido definida pelo frasco. Não são muitos os estudos arqueológicos específicos sobre os frascos de perfume, pois sua identificação exata fica prejudicada por dois motivos: a inexistência de resquícios que pudessem comprovar seu uso, bem como da ausência histórica do hábito de identificar o conteúdo no frasco, através da escrita. No entanto, escritos sumerianos do fim do III milênio a. C. apresentam dados sobre a composição de perfumes, o que leva a crer que, se havia perfume, deveria haver frascos para contê-los. Se inicialmente o perfume parece ser um produto de uso elitista, não é demais lembrar que manjedoura Cristo recebeu incenso e mirra dos Reis Magos e que, na Idade Média, tanto a

Igreja quanto a medicina condenavam os banhos, a primeira, por causa da licenciosidade das termas públicas e a segunda, pelo fato da água ser considerada condutora da peste e da sífilis. Assim, grande era a produção de perfumes, usados para purificar e desinfetar o ambiente nauseabundo e preveni contra doenças. Enfim, seu uso democratiza-se cada vez mais e não é de hoje que a Avon chama as classes sociais de menor poder aquisitivo, para se manterem perfumadas. A disseminação do uso do perfume também está vinculada às mudanças nos materiais usados para armazená-lo: da cerâmica ao vidro, passou-se para a porcelana, a opalina, o cristal, com detalhes em metais e pedras preciosas ou semipreciosas, voltando depois ao vidro e, mais recentemente, marcas de prestígio começaram

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a usar o plástico, principalmente nas tampas, enquanto que marcas populares já utilizam esse material integralmente, em substituição ao vidro. Mesmo com o barateamento do material empregado, visando a socialização dos produtos – ou ampliação das vendas - os grandes fabricantes franceses passaram a oferecer, paralelamente aos produtos de linha, edições limitadas ou re-edições de perfumes fora de linha, uns com seus frascos originais, outros em frascos com design atualizado. Não é feita publicidade dessas séries limitadas; ou contrário, seu lançamento é mantido em segredo, mas a produção se esgota em pouco tempo, dado o vazamento de informação, ou informações privilegiadas, passadas por bocas que podem ser igualmente adjetivadas. Essas edições são polêmicas; para os produtores, sendo limitadas (e alcançando um custo altíssimo), elas mantém o conceito de exclusividade da marca. Para outros, colecionadores, principalmente, é um modo de banalizar o raro. Isto porque grande parte dos perfumes e respectivos frascos estão relacionados à sua época e mesmo a acontecimentos históricos, através do seu nome ou da forma do frasco; e quando essa relação não é explícita, mesmo assim um produto de sucesso passa a ser vinculado àquele momento histórico, por força da sinestesia. Por isso esses lançamentos descolados do seu contexto original, ainda que com tiragem limitada, são criticados, especialmente quando a mesma fragrância recebe um novo frasco.

O frasco de perfume é visto como uma espécie de escultura que deverá expressar, antes de tudo, a preciosidade do seu conteúdo. Mas existe uma infinidade de odores preciosos, que podem ser associados aos atributos que o consumidor potencial possui, pensa que possui, ou gostaria de possuir. Esse atributo é o conceito do qual o designer parte para criar o frasco, pois é ele que vai fazer, conseqüentemente, a comunicação entre o perfume e o consumidor. O designer francês Pierre Dinard que é considerado um dos mais importantes especialistas em design de frascos de perfume da atualidade. Ele tem 69 anos, é arquiteto de formação e venceu 35 vezes o prêmio de melhor design do FIFI Award; nos últimos 40 anos criou mais de 450 linhas de frascos, entre eles Eternity e Obsession, da Calvin Klein. Segundo Dinard, um frasco é a primeira impressão sobre o perfume, sendo capaz de determinar o sucesso ou fracasso de um lançamento. E o trabalho dos criadores de

frascos é muito mais difícil do que desenhar uma cadeira ou uma lâmpada, porque inclui ingredientes emocionais como amor, paixão e sedução.

61 Há muito tempo a França assumiu lugar de destaque na produção de perfumes, mas foi no século XIX que se deu o nascimento da indústria de frascos e o aparecimento das grandes maisons de parfum. Quanto aos designers de invólucros, destacam-se os belgas e, com maior produção, os franceses, com destaque para Baccarat, Lalique e St. Louis, casas que permanecem por mais de um século de criação de frascos de perfumes, além de outros produtos em cristal, igualmente ambicionados pelo mercado. A preocupação com a criação de frascos é tão grande que, em determinado momento, pintores de prestígio foram contratados para desenhá-los: é de autoria de Salvador Dali o desenho do invólucro do perfume Le Roi Soleil, de Schiaparelli, com fabricação de Baccarat; e é de Fernand Léger o vidro de Cantillène, de Reveillon, com fabricação de Lalique. A partir do pós-guerra, com a grande mudança verificada nos costumes, mudam também as mentalidades e os grandes costureiros passam a se interessar pelo mundo da perfumaria: Christian Dior, Jacques Fath, Mademoiselle Carven, Yves Saint Laurent, Pierre Balmain, Hubert de Givenchy, Pierre Cardin e Nina Ricci, uma vez que Mademoiselle Chanel já se havia interessado anteriormente. Assim, o conceito da marca na moda passou a ser associado à perfumaria e vice-versa, pois o perfume também agrega valor à marca. Mas o que nos interessa aqui é o vidro de perfume como texto

visual: um objeto estético tridimensional que produz um discurso, ou seja, apresenta efeitos de sentidos ao destinatário potencial, o consumidor.

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ESSÊNCIA DO PARAÍSO NUMA GOTA Eden é um perfume da marca francesa Cacharel. O perfume francês, propriamente dito, pode não estar ao alcance de qualquer pessoa; porém, a visualização do seu invólucro - da imagem do vidro que o contém - pode se dar no cotidiano de todos, através da publicidade ou, com maior probabilidade, nas vitrinas das lojas especializadas, no caminho de casa ou nos templos de consumo habitados pela massa que nem sempre pode consumir: os shopping centers. O vidro de perfume em questão insere-se no sistema visual. Este objeto, por ser tridimensional, precisa ser analisado através de diversos ângulos de visão. A imagem não é artística, mas estética, pois, além da função que cumpre como objeto estético, tem outra função, utilitária, específica e primordial, que é a de conter um líquido perfumado. É um objeto que, como outras peças da nossa vida cotidiana, acaba passando desapercebido ou não recebendo as diversas leituras que oferece, ou ainda, transmitindo significados sem que muitos se dêem conta disso. Um objeto estético criado para acondicionar um perfume deve receber um cuidado especial, uma vez que o perfume é destinado à satisfação de um sentido, o olfato, através de um produto que, em si mesmo, ao sentido da visão diz pouco. Ainda mais no caso deste texto visual, uma vez que o vidro é opaco e não se pode ver sequer a cor do líquido. O vidro de perfume precisa manter relações coerentes com o produto que contém. Em outras palavras, o designer de frascos para perfumes precisa saber decodificar os

odores para traduzi-los para a “linguagem” visual. Inicialmente, são observados os elementos e procedimentos que a imagem apresenta. Olhado de frente, ou do ângulo que geralmente se vê um objeto dessa natureza - o que é oferecido ao olhar pela maneira habitual de arranjá-lo sobre o toucador - seu contorno, ou a forma que ele contém, é instigante, uma vez que contraria um princípio estético presente em quase toda a

história da arte: a simetria. Se uma linha imaginária atravessá-lo de cima a baixo, passando pelo meio da tampa, que é simétrica, obtém-se dois lados diferentes. A tampa é circular, mas não é um círculo, vista deste ângulo, uma vez que o contorno da base se dá através de uma reta. Imediatamente abaixo, já no corpo do vidro, a lateral direita é levemente curva e a lateral da esquerda apresenta uma curva mais acentuada, especialmente na porção superior, próxima da tampa. A face de trás deste vidro de perfume, por ser equivalente, repete a mesma descrição, apenas tendo os lados, direito e esquerdo invertidos, já que são os mesmos contornos; o ângulo de visão é que muda.

63 A base, como consiste em um corte horizontal na forma do vidro, parece também uma curva irregular; seu desenho fica explícito, se a base for observada de baixo: trata-se da forma através

da qual é sintetizada, usualmente, uma gota. Talvez tenha sido a gota a idéia geradora desta forma de vidro, e que o corpo do objeto, em si, seja o prolongamento desta linha curva quebrada. Na base estão grafados, na forma de linguagem verbal, o nome do perfume e da perfumaria, bem como a logomarca da perfumaria. Parece não ter havido a intenção de uma importante interrelação entre estes elementos e o vidro em si, uma vez que se acham ocultos, sob a base, em uma reentrância. Ainda sob este ângulo, observa-se que o ponto localizado na quebra da curva, na ponta superior da gota, gera no volume do vidro uma linha, quebrando a circularidade horizontal do vidro, ao passo que as laterais curvas e a parte inferior da gota, sob este ponto de vista, geram planos que, aumentadas as dimensões, repetem a curva da gota. Ou seja, se fosse possível cortar o vidro em diversas fatias, horizontalmente, seria obtida uma sucessão de formas de gotas, inicialmente, cada uma um pouco maior que a anterior e, a partir de dois terços da altura do vidro, as dimensões das gotas iriam diminuindo, também gradativamente. Assim concebido este vidro de perfume, suas laterais são diferenciadas; um lado é arredondado e o outro expõe a linha gerada a partir da quebra da curva, na base do vidro. Em relação à tampa, que é arredondada, ela rebate um dos lados, formando um conjunto mais harmônico do que o lado oposto, onde as formas da tampa e as da lateral, agora frontal proeminente, são contrastantes. A tampa, vista a partir de qualquer uma das faces principais do vidro, as duas mais largas, lembra a forma fálica, podendo estar penetrando na ou sendo penetrado pela forma do vidro onde ela se encaixa. Se o ponto de vista for lateral, mais ainda a forma fálica se evidencia, ou seja, no lado arredondado, tampa e vidro, estão quase que indissociados. Se não fosse a faixa prateada, pareceriam ser um só objeto. No lado oposto, o anguloso, permanece a forma fálica, porém há uma distinção maior entre vidro e seu complemento, a tampa, em virtude da proeminência frontal da linha vertical determinada pelo encontro dos dois planos que caracterizam a angulosidade. Vista de cima, a imagem mostra, em primeiro plano, um círculo verde, a tampa do vidro; em seguida, nos quatro planos subseqüentes, vêem-se quatro formas de gota, sendo que, ao se sucederem os planos, estas gotas aumentam sua dimensão; as duas primeiras são prateadas e as duas últimas, no quarto e quinto planos, são verdes, quase do mesmo verde - apenas um pouco mais escuros - do que o verde claro do círculo do primeiro plano. Há uma intensa centralização em torno de significados que articulam

gênero, sexo e vida, através das cores e das formas. Seria a lateral arredondada o

64 lado feminino e a angular o masculino? Ou seja, dois gêneros em um mesmo corpo? A idéia da unidade de corpos está presente na Bíblia, no Gênesis, e a passagem que faz referência a essa idéia tem como cenário o Éden. Foi do primeiro homem, feito de barro, que Deus tirou uma costela para fazer a mulher. E então, disse Adão: “Eis agora aqui (...), o osso de meus ossos e a carne da minha carne... ” A unidade de dois gêneros em um só corpo está também em “O Banquete”, de Platão. Segundo ele, chamavam-se andróginos os seres que, diferentes do homem e

da mulher, possuíam dois sexos. Por terem desafiado os deuses, confiantes em sua força e cegos pela presunção, foram por Zeus separados, como castigo. Ao se encontrarem, enlaçavam-se e nada mais faziam, até morrer de inanição. Com pena, Zeus muda o sexo da parte inferior para a frente dos corpos, permitindo assim que o macho gerasse a descendência na fêmea. No frasco de Eden, os dois lados diferentes, o arredondado e o angular, em um mesmo corpo, o vidro de perfume, trazem esta idéia dessa dualidade dos gêneros, buscando a completude, diferenças que se integram em um mesmo todo, uno. No que se refere à cor, destaca-se o verde, cor predominante no jardim, jardim do Éden, porque é cor da vegetação, da vida, portanto. O prata na faixa superior do vidro é, ao mesmo tempo, contraste com o verde, e complementar ao branco do qual o verde é mesclado. Prata é a “cor” da lua, que em uma cadeia associativa de significados remete à água - e, de novo, à vida - e por outro lado, ao princípio feminino, contraposto ao princípio masculino, figurativizado pelo ouro. Quanto à forma, a gota geradora traz, inicialmente, a idéia de água e de vida, mas pode, ainda significando vida, trazer esta idéia através de uma gota de esperma. Verde e prata entrecruzam significados que dizem respeito diretamente ao conteúdo do vidro, ao perfume: se prata pode ser água purificadora ou símbolo da purificação, o verde é considerado tonificante, refrescante e envolvente. Esta associação pretendida não se concretiza, apenas, na justaposição das duas cores, mas também na forma como o verde é apresentado. Não se trata de um verde puro, mas de um verde misturado com branco, sendo que o branco fica mais evidente em ondas, no sentido vertical, que dão um certo movimento ao frasco. O branco é, neste caso, a cor da prata, assim como o amarelo é a cor do ouro. O branco também se articula com o verde para melhor integrálo ao prata. Já que o branco tem como um de seus significados mais fortes a pureza, aqui há também a sua inter-relação com a idéia de purificação do prateado, com a tonificação do verde e com uma possível função pretendida para o perfume. Um outro foco de significados está vinculado à transgressão estética que significa a assimetria nas duas faces principais desse objeto, o qual também se articula com os outros conteúdos expressos.

65 Trata-se da quebra de um paradigma de muita relevância em nossa cultura, a simetria. Isso porque fomos acostumados, desde as primeiras experiências visuais, a ter contato com formas simétricas, desde o peito da mãe, passando pelos animais, folhas e flores, brinquedos e com o nosso próprio corpo. A partir da constatação da assimetria e da sua aceitação como um modo de violar uma norma estética - basta observar os frascos de outros perfumes - pode-se partir para um campo de maior abrangência, o das inter-relações, para que se aprofunde seu significado. No verbal do nome escolhido para o perfume se encontra, com mais clareza, o significado da transgressão. A violação de uma norma estética, a simetria, associada ao nome do perfume, gera outra cadeia de efeitos de sentido. O nome do perfume é Eden, ou seja, o paraíso terrestre, de acordo com a tradição bíblica. O que houve no Éden? Uma transgressão, a violação de uma ordem divina, pelo pecado. E o que evoca o paraíso? Jardins, vegetação, água; e homem e mulher, além do pecado, pecado esse passível de reparação através do batismo com água, água benta. O que poderia conter um frasco de Eden? A água da purificação, uma poção com poderes milagrosos, um extrato do paraíso, cuja utilização talvez pudesse, como o batismo, anular os efeitos da transgressão, resgatando a condição de felicidade terrena anterior ao pecado, à transgressão. Se se observar a marca Eden, diminuta, escrita no fundo do vidro, percebe-se, novamente, o sentido da transgressão, da violação, paralelamente ao sentido de complementaridade: as duas letras “E” foram criadas a partir de semicircunferências - forma circular, feminina - cortadas, cada uma, por uma diagonal, a linha reta, longitudinal, o masculino. Dentro de uma visão, pode-se considerar que a linha reta transpassa, como uma flecha, a linha curva. De outro modo, pode-se ver os morfemas significantes do masculino e do feminino em uma mesma letra, a unidade obtida pelas diferenças sobrepostas, graças à escolha do tipo gráfico. É outra alusão ao mito do andrógino, dois gêneros em um mesmo corpo. A letra “N” também obedece à mesma regra, ou seja, a linha diagonal da letra, de um lado, sai do ponto superior da primeira vertical, mas a segunda vertical é transpassada pela diagonal. Ela é formada por linhas retas, enquanto que o “D” é um “D” convencional, idêntico ao tipo usado neste texto escrito. O desenho destas letras pode ser observado na propaganda veiculada em uma revista. Embora aqui não seja o objetivo estudar esta peça publicitária, mas sim trazer de um modo mais visível a grafia do nome Eden, vale a pena conhecer uma outra tradução, do perfume em si, do seu nome e da forma do seu vidro. Para o tradutor que criou a publicidade, a forma do vidro é uma síntese do corpo feminino. E Eden é “o perfume proibido”. Interessante ainda se faz observar, nesta tradução, outros aspectos da leitura do publicitário, como o uso das cores quentes, do vermelho ao amarelo, que contrastam com o verde do produto, e das conotações que elas propõem.

66 Assim esta peça publicitária possui mais uma utilidade neste estudo: a de mostrar que um objeto estético, assim como a obra de arte, estão abertos a diferentes leituras. A que foi aqui feita, percebe o perfume como fonte de purificação; a do publicitário, reafirma o perfume como fonte de pecado, pois para ele, Eden é o perfume proibido e, conseqüentemente, seu uso seria uma transgressão. Trata-se dos efeitos de sentido que um mesmo texto imagético oferece ao leitor.

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UM PRISMA QUE É MAIS QUE UM FRASCO Um outro frasco selecionado para análise, foi o vidro do perfume Hot Couture, da marca Givenchy. Inicialmente, merece atenção o nome dado a esse produto. Um olhar apressado pode confundi-lo com Haute Couture, alta costura. Há a associação direta com a moda Givenchy, através da palavra Couture, um substantivo, escrito em francês. Então, percebe-se um jogo entre letras, idiomas e significados: Hot, um adjetivo do inglês, substitindo Haute, um adjetivo do francês. O dicionário sempre é um bom parceiro quando se busca o significado das coisas. Ora, consultando o Dicionário Eletrônico Michaelis, encontram-se as seguintes significações para a palavra hot: quente,

apimentado, apaixonado, recente, moderno, vivo, forte. Desde modo, na construção do significado do nome do perfume, são agregados ao substantivo Couture, costura, os sentidos dos diversos adjetivos correspondentes à palavra hot. A Costura que o nome do perfume lembra é, antes de tudo, alta costura, pois a palavra hot substitui haute, mas não apaga seus efeitos de sentido, por dois motivos: pela associação automatizada, dado o uso freqüente e conjunto das palavras haute e couture, formando uma expressão única; e pela semelhança visual das palavras hot e haute (já que a semelhança fonética é muito menor). E, além de essência volátil da alta costura, o perfume oferece outras qualidades, que de adjetivos se transformam em substantivos, portanto, em mais produtos a serem consumidos juntamente com o perfume: o energético, o picante, a paixão, a novidade, a atualidade, a presença marcante, uma identidade. Poderia se parar por aí. No entanto, a palavra Couture também merece mais um olhar. Estaria aí só para significar costura? Sempre é adequada a ajuda de um dicionário para se avaliar as possibilidades de geração de sentidos de um vocábulo. Couture, além do significado mais conhecido, ao menos pelos estrangeiros, significa também cicatriz. E o que é uma cicatriz? Um registro permanente no corpo, uma coisa que fica na pele, uma marca, uma possibilidade de identidade. Couture é então um produto para o corpo, para ficar na pele, para marcar, por muito tempo. Por outro lado, sabe-se que uma das principais qualidades químicas de um perfume é a capacidade do seu fixador... Assim sendo, Hot Couture não quer dizer apenas Costura Quente. Hot

Couture é uma marca, quente, apaixonada; um registro forte, atual; uma presença moderna; uma presença talvez agressiva; uma identidade que permanece. Por sua vez, a costura de Givenchy também agrega esses atributos, dadas duas associações existentes, no caso do perfume Hot Couture: a associação de ambos, moda e perfume, ao

68 nome da marca Givenchy; à outra associação entre ambas as “linguagens”, gerada pelo nome deste perfume, em particular. ***** Para a análise da imagem visual, buscam-se os elementos constitutivos, no plano de superfície da significação. O frasco de Hot Couture é longitudinal; pois sua largura é muito inferior à sua altura. Predominam as linhas retas. Seu material é o vidro incolor, transparente, de sorte que ele assume a cor do seu conteúdo, o perfume, que é rosa claro. Percebem-se dois pontos de atenção: a tampa, e uma imagem vertical, sulcada na parte frontal do vidro. É a imagem de uma mulher de perfil em traje longo, ou melhor, um traje longo, supostamente vestido por uma mulher que não é dada a ver, salvo por uma suposta cabeça, encimando o conjunto de elementos visuais. Essa imagem feminina se destaca pelo seu rebaixamento milimétrico em relação ao plano frontal do vidro. Esse sulco se dá em níveis distintos, um para cada superfície de cada uma das partes que compõe a imagem. Também caracteriza essa suposta imagem feminina a transparência reduzida, em função da interferência de algum processo no tratamento do vidro, que tem como resultado o mesmo que o de jato de areia. Neste momento, cabe uma pergunta, dada a veemente longitudinalidade tanto da imagem feminina quanto do vidro: a figura foi adequada à moldura, ou vice-versa? O traje da mulher pode ser dividido em quatro partes. Na primeira parte, observa-se uma espécie de bolero, ou seja, uma capa curta que termina acima de cintura, com uma gola muito alta, que cobre a metade inferior da sua cabeça. O corpo da capa apresenta bolas em delicado relevo, organizadas simetricamente entre elas. Denominando bolas, pois gigantes, ou pontos que tornaram-se superfície, segundo Kandinsky, o fato é que a forma circular está em destaque nesse conjunto visual. Em termos de ergonomia, este relevo, juntamente com o formato do bolero, possibilitam ao usuário – ou usuária – do perfume acomodar diagonalmente e oferecer resistência à lateral do dedo polegar da sua mão esquerda, enquanto o resto da mão circunda o vidro, tornando-o firme para que a mão esquerda possa retirar a tampa. A figura do bolero é assimétrica, vista deste ponto lateral oferecido. Ângulos agudos se repetem na frente e nas costas da alta gola, bem como na frente do bolero, enquanto que o ângulo que delimita costas e bainha do bolero, na parte traseira, é um ângulo reto, tendendo levemente para obtuso, pelo fato de o bolero ser mais comprido na frente do que atrás. Na segunda parte, observa-se o corpo de um vestido longo, muito esguio, com a cintura bem marcada, afunilado na parte inferior, lembrando um fuso, determinado por duas longas linhas

69 levemente curvas, uma côncava e outra convexa, as quais se encontram na parte inferior. Há textura nesta peça, e pode-se dizer que é assimétrica, pois é determinada por linhas sinuosas, que parecem não obedecer a nenhum padrão de simetria. Este elemento em forma de fuso, ou a saia do vestido longo, fica em um nível sulcado mais profundamente do que seu complemento, uma espécie de sobressaia. A sobressaia é a terceira parte desse conjunto de elementos estéticos, que são planos irregulares, arranjados de forma tal que nos passam o efeito de ser um elegante traje feminino que tem como suporte o corpo de uma mulher. Esta sobressaia é longa, mais longa do que o vestido. Apresenta o efeito de transparência, pois a saia, colocada em um plano mais profundo – que dá a noção de interioridade e distância do olhar do enunciatário - pode ser também visualizada. Na parte inferior, a sobressaia apresenta três ângulos, dois agudos frente a frente, determinando a bainha da sobressaia e seu comprimento, e outro ângulo no lado direito, ou seja, na frente deste traje visto de perfil. O quarto elemento que compõe essa imagem é mais simples, muito pequeno em relação aos demais, mas talvez seja o elemento que tem maior importância na leitura da imagem como um todo. Trata-se de uma semi-circunferência que suscita o efeito de sentido de uma cabeça. Sem esta cabeça (ou este chapéu), a legibilidade desse corpo feminino vestido ficaria mais inacessível. O vidro é construído a partir da base que é um trapézio. Como os demais planos que contornam o frasco têm origem em cada um dos quatro lados do trapézio, ou seja, no prolongamento dessas linhas retas, o frasco apresenta quatro planos que originam um prisma. A base do trapézio gerou a frente do perfume, assim considerada por ter a imagem feminina neste lado impressa. Sendo originário da base do trapézio, esta é a maior das superfícies, dentre as quatro. Os planos laterais do frasco, derivados dos lados inclinados do trapézio, fecham-se ao encontro da parede traseira do frasco; isto causa um efeito visual que torna o rosa do perfume mais escuro, o que dá uma noção de duas molduras laterais para a imagem feminina. A tampa é de plástico, tão incolor e transparente quanto o vidro do frasco; assim, a diferença entre os dois materiais não prejudica a noção de conjunto. Essa inter-relação entre vidro, a imagem feminina e a tampa é reiterada na concepção da tampa. Sua forma tem ângulos bem marcados, como o frasco e a imagem, no entanto, a superfície geradora do elemento tridimensional é um quadrado e não um trapézio. A parte superior é dividida quase pala metade por uma diagonal. Abaixo da diagonal a superfície é mais fosca, como se fosse jateada, do mesmo modo que a mulher que ilustra o frasco, ficando menos transparente do que sua parte superior. Na parte jateada, mais opaca, repetem-se a mesmo padrão de bolas do bolero da mulher. Do mesmo modo, rebate a forma frontal do bolero o ângulo formado na base frontal da tampa, já que a parte dianteira da base é mais baixa do que a traseira. A tampa ainda deixa entrever o prateado do sistema de vaporização, situado na parte superior

70 do frasco. A prata, que é a cor branca metalizada, possibilita ainda mais o

reflexo da luminosidade sob este produto do design, gerando efeitos de brilho. A tampa do perfume, como se fosse um pescoço do vidro, e a alta gola da indumentária da mulher mantém inter-relações, por se localizarem na parte superior de seus respectivos conjuntos visuais, pelas retas e ângulos que delimitam suas formas, e por serem mais estreitas do que as demais formas que, localizadas imediatamente abaixo, lhe dão sustentação. ***** Aqui cabe então aprofundar um pouco o papel da gola no estilo Givenchy. Voltando-se aos trajes anteriormente analisados, dentro da amostra pré-determinada, que são as fotografias constantes da publicação Le Style Givenchy, vários casos de golas altas apareceram. No vidro de perfume, a gola

alta volta a aparecer, tão alta que chega a ocultar meia cabeça. Para a análise e atribuição de sentidos a essa gola alta na obra de Givenchy, houve a necessidade de buscas em outras fontes. Inicialmente, a tarefa foi procurar a ocorrência de golas altas em outros modelos criados pelo estilista, fora da publicação estabelecida como limite da amostra para análise. Na página 125 de um catálogo de uma exposição ocorrida em Munich, em 1987, denominada “Ars de vivre en France”, figura uma foto de uma imagem de um desenhista chamado Gruau para Hubert de Givenchy: a blouse Bettina, a blusa branca com gola alta que tanto marcou o estilo Givenchy. E na página 414 do Guia Histórico Le costume français, há a foto de um traje de noite com punhos e gola alta em vison. Gola, em francês é col, derivado de pescoço, que é cou, ambos originados da palavra latina collum. Col então é o nome genérico para gola, uma vez que existem designações variadas, de acordo com a diversidade dos modelos de gola. A título de exemplo, a palavra cachecol, usada em português, nada mais é do que corruptela da expressão francesa cache-col, literalmente, “esconde-gola”. Um dos tipos de gola, mais antigo, pois que estamos agora caminhando do presente ao passado em busca da significação, é o collerette, gola confeccionada em tecido fino, quase sempre franzida, usada como ornamento. Este collerette era usado tanto por homens quanto por mulheres, muitas vezes sendo feitos de renda ou até mesmo recebendo bordados. Existem dois tipos de collerettes, ainda que alguns autores denominem o primeiro de collet e só o segundo de collerette: grande gola branca, sobreposta à roupa, contornando todo o pescoço e tendo abertura frontal; gola alta,

71 sustentada por armação de arame ou madeira, situada de uma lateral à outra do traje, passando pelas costas, como se fosse um leque. Ambos são derivados do fraise, modelo de gola trazido por Catarina de Médicis da Itália para Paris, quando se tornou rainha da França, no século XIV. O fraise era igualmente branco e usado por homens e mulheres da aristocracia. Seu nome deriva de fraises de veau, vísceras de bezerro, com o qual mantém relação de semelhança em termos de forma. Também foi chamado fraises en roue de charrette, fraises em roda de charrete, por se parecer com uma roda, em cujo eixo se situa a cabeça. Ou seja, o fraise é aquele babado branco engomado, alto, formando favos, geralmente rendado, que pode ser visto em grande parte dos retratos da nobreza européia, até que o collerette assumiu gradativamente seu lugar. Do fraise ao collerette, do collerette ao collet, do collet à gola alta, eis alguns aspectos a considerar, em termos estéticos e semióticos. Primeiro, que todos os ancestrais da gola alta eram, além de altos, brancos. O tecido fino branco usado em uma peça tão exposta a máculas era, por si só, um sinal de nobreza e distinção. Isto porque, mantê-lo branco, naquela época, era mais difícil que hoje em dia. Seria necessário não desempenhar atividades físicas pesadas, e ter alguém que limpasse... Em segundo lugar, a altura da gola, muitas vezes sustentada por armações

inflexíveis, obrigavam as cabeças a se manterem erguidas, em uma postura que alonga a silhueta, além de lhe emprestar uma atitude que gera efeitos de superioridade, dignidade, altivez. A obra de Givenchy apresenta muitas ocorrências de golas altas; a cor mais usada por Givenchy é o branco. Isto vai se refletir também no vidro de Hot Couture. ***** Além da gola alta, outros aspectos da mulher – ou da moda Givenchy – citada no frasco de perfume, coincidem com as características encontradas na análise das fotografias dos trajes, a começar pela estrutura básica deles, que é a linha vertical; praticamente todos os modelos se ajustam sobre um eixo, onde a dimensão longitudinal real é reiterada por meio de outros elementos estéticos próprios da costura. Outro fenômeno estético que ressalta, na imagem de mulher registrada no vidro de perfume, são os pois. E eles são tão grandes, proporcionalmente, que passam a ser antes superfícies em forma circular do que pontos. Os pois estão em relevo, gerando uma textura no vidro. E eles se rebatem na tampa do vidro; lá também se encontram as pequenas formas circulares. Quanto às linhas, as mais

72 usadas na criação dos modelos Givenchy nesse novo texto visual, são as retas. Aparecem algumas curvas; mas se forem bem observadas, elas mesmas, as curvas, mais parecem duas retas, em posições diferentes, que se encontram. De qualquer modo, das quatro linhas que contornam o que seria o vestido e uma sobrecapa, três são curvas muito pouco acentuadas e a quarta é reta. Outras pequenas linhas simulam um tecido estampado, fato pouco encontrado, nos trajes anteriormente analisados. Em compensação, se fazemos essas observações, é porque a capa que lhe sobrepõe é transparente, e assim aparece uma outra característica bastante presente em Givenchy: a transparência. Além da transparência, a capa sobre um vestido é outra marca de Givenchy, qual seja, a da presença quase constante de um complemento, seja uma capa, um xale, um bolero, ou um manteauchâle, enfim, uma outra peça de roupa sobre o traje. Na imagem de mulher que ilustra o frasco de perfume, o fenômeno encontrado na análise das fotografias se repete, em dose dupla pois, neste caso, um mesmo traje apresenta um bolero, e uma capa transparente sobre a saia. A moda Givenchy citada através desta imagem propõe envolver, proteger e até esconder a mulher, de certo modo. ***** Em síntese, o vidro do perfume Hot Couture ressalta propriedades estéticas decorrentes de seus elementos constitutivos, que são a transparência, a luminosidade, a longitudinalidade, a angulosidade, a valorização da imagem pela moldura, a citação, ou seja: - a transparência do vidro branco – isto é, incolor -, que em si só é um fato comum, mas aqui se torna incomum por possibilitar a visualização da imagem da mulher de qualquer ângulo, inclusive causando o efeito de duplicação, quando olhado de ambas as laterais; essa duplicação, que é um efeito ótico, implica uma certa magia, pois uma delas aparece e desaparece, conforme se move o vidro; - a luminosidade agindo sobre o material transparente, e sobre o líquido, remete às noções de limpidez, de pureza, de brilho, com suas diversas conotações; e remete também a cristal, que igualmente gera efeitos de sentido semelhantes, pois qualquer coisa que seja cristalina é límpida, clean, verdadeira; - a longitudinalidade, que propõe as noções de elegância e de síntese;

73 - a angulosidade, através não só de inúmeros ângulos, como também de arestas, presentes na imagem da mulher, no vidro e na sua tampa, originados de muitas retas, horizontais e verticais, passam as idéias de estaticidade, equilíbrio, delimitação de espaço, marca, agressividade, direção, como no caso do ângulo frontal da tampa, que aponta para a imagem da mulher – e para o conteúdo do vidro, o perfume; - o vidro de perfume não deixa de ser uma moldura, que mantém uma relação de interdependência com a mulher – e/ou a moda – que a(s) emoldura: a moldura valoriza a moda/mulher, que por sua vez dá ao vidro um outro sentido, o de ser moldura dessa imagem; - a citação, lembrando a moda, que nada mais é do que a impressão dessa imagem de mulher sobre uma das faces do vidro de perfume; enquanto que boa parte da produção de frascos para perfume sintetizam uma silhueta de mulher no próprio vidro (a tampa sendo a cabeça, e o vidro sendo o tronco), este vidro, ou este prisma, serve de moldura ou de redoma para a imagem feminina que o ilustra e decora, conferindo a mulher uma condição de destaque, a idéia de estar protegida, mas também a noção de distanciamento. Assim sendo, considerando o aspecto ergonômico, o vidro de Hot Couture destina-se à mulher moderna, que trabalha, que compete, que tem horários a cumprir e, portanto, não pode perder muito tempo: com a mão direita ela fixa o vidro; abre a tampa com a esquerda, com um rápido movimento, pois a tampa é de encaixe e não de rosca. A seguir, o dedo indicador da mão direita sai de trás do vidro para, agora sobre ele, apertar o vaporizador. Enquanto isso, a mão direita permanece bem acomodada em torno do vidro, graças à sua forma de prisma, à reentrância gerada pela imagem sulcada da mulher e pela posição do dedo sobre os pois, ou as bolas do bolero. Os contornos do vidro, da tampa e da imagem da mulher apresentam inúmeros ângulos, que servem de setas, apontando uns para os outros. Esses ângulos encerram sentidos de determinação, de força, e de uma certa agressividade, que pode ser associada aos diversos sentidos de expressão verbal Hot Couture: uma marca quente, um registro forte, um sentir-se apaixonado, um ser atual. Mas essa consumidora, mulher do seu tempo, não obstante sua adesão ao mundo do trabalho, tradicionalmente conhecido como mundo dos homens, não abre mão da feminilidade: Hot Couture a trata com carinho, embalando-a e protegendo-a com gola alta, capa-bolero e sobre-saia, e decorando seu traje com pois, elementos de identificação do estilo Givenchy, mostrados na imagem feminina que adorna o vidro. E

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ainda a protege e também a exalta, ao colocá-la em um nicho, dentro de uma moldura, de um prisma. Hot Couture promete mais feminilidade através da cor do líquido, o cor-de-rosa, que gera este efeito de sentido. Nas culturas ocidentais, o azul claro é a cor dos meninos, enquanto o rosa é a cor das meninas. Por outro lado, há uma inter-relação com uma flor, a rosa: a palavra francesa rose pode ser traduzida simultaneamente por rosa, a flor, ou cor-de-rosa, a cor, e mesmo em português ultimamente se tem usado mais a o vocábulo simples, rosa, em detrimento da palavra composta cor-de-rosa, para denominar a cor. A única outra cor presente no conjunto é o prata do vaporizador, que é o branco metalizado, deixado entrever pela transparência da tampa. Assim como o ouro e o sol carregam em si o sentido do masculino, através dos tempos e em diversas culturas, o prata e a lua passam o sentido do feminino. Deste modo, o rosa e o prata se complementam. E é essa ambigüidade na vida da mulher contemporânea que é apresentada no discurso deste vidro de perfume: agressividade e delicadeza; determinação e doçura; tradição

e modernidade; racionalidade e paixão; força e fragilidade. O grande ponto de atenção – ou linha de atenção – que é a citação da moda Givenchy através da imagem feminina que decora o vidro, e que propõe, além de tudo o mais que já foi visto, que a consumidora passe a fazer parte, através do uso do perfume, do mundo Givenchy, o mundo da haute couture, do qual o odor de Hot Couture é a essência, em seu duplo sentido.

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PROPAGANDAS, TEXTOS SINCRÉTICOS O marketing e a publicidade consistem em atividades e/ou produtos polêmicos, principalmente em sociedades onde existe grande desnível social e onde sequer as necessidades básicas de toda a população estão asseguradas. Julgamentos de valor acusam esses instrumentos das sociedades capitalistas de manipular consciências e estimular o consumo do supérfluo. O fato é que esses produtos existem, continuarão existindo e estão permanentemente chamando a atenção das pessoas, visto que são imagens visuais e, como tal, são textos, são enunciados propostos a cada esquina para toda uma população de enunciatários potenciais. Então, conhecer um pouco mais sobre essas imagens, perceber melhor seu modo de funcionar não pode se prestar para outra coisa que não seja uma maior consciência do cidadão diante dos enunciados apresentados. Entretanto, não pode ser refutada a importância social da publicidade, uma vez que ela invade nosso universo visual sem pedir licença. E um dos aspectos que a faz tão poderosa, porque

detentora de um alto poder de persuasão, é o fato de a publicidade, geralmente, articular mais de um sistema de comunicação: trata-se de uma “linguagem” híbrida, sincrética, que se apropria, no mínimo, de dois sistemas comunicacionais, o visual e o verbal. Dois estudiosos da publicidade, os franceses B. Cathelat e A. Cadet, dizem que são cinco as funções da comunicação de massa e da publicidade, em relação à sociedade onde se inserem:

antena, amplificador, foco, prisma e eco. Todas as palavras escolhidas pelos autores para denominar essas funções têm um sentido duplo, um segundo sentido metafórico, conforme pode ser observado. Isto permite compreender melhor o significado de cada uma dessas funções, respectivamente: captar tendências e inovações; ampliar fenômenos localizados (hábitos, práticas, atitudes) para o todo da sociedade; focar a atenção em determinado assunto, produto ou mudança social; filtrar, decompor e transmitir informações; espelhar a sociedade. Por outro lado, os profissionais voltados ao marketing sabem que os pontos básicos para o sucesso de um produto no mercado são quatro: o próprio produto, o preço, a distribuição e a comunicação. Danielle Allérès, em um estudo sobre o marketing dos produtos de luxo, apresenta estratégias diferenciadas nas políticas de comunicação de uma mesma marca, destinadas aos igualmente diferentes públicos, de acordo com as possibilidades de acesso aos respectivos produtos. Para o que ela chama de produtos de luxo inacessível, como as criações exclusivas da alta costura, bem como da joalheria, da cristaleria e da cutelaria, a divulgação é feita através de operações de relações exteriores, onde se incluem eventos esportivos ou artísticos, que reúnem

76 consumidores tradicionais e potenciais, sempre um grupo restrito. Tais eventos dão origem a reportagens em revistas seletivas, um método indireto de publicidade, já que visa exclusivamente manter o posicionamento e consolidar a marca, uma vez que não foca nenhum produto ou linha de produtos em particular. No caso do chamado luxo intermediário, seus produtos, como o prêt-à-porter da moda, os artigos de couro, os artigos em série da joalheria, da cristaleria e da cutelaria, inicialmente, desfrutam dos efeitos de marketing da marca, obtidos em torno da publicidade indireta. Mas como a comunicação desses produtos precisa atingir uma fatia maior de consumidores, ainda que limitada, principalmente a burguesia emergente, há necessidade de alguma publicidade. No entanto, ela é seletiva, discreta e refinada, como por exemplo, nos stands, espaços próprios de uma marca no interior de grandes magazines. A razão dessa discrição é o fato de a marca precisar garantir a sua clientela uma exclusividade, ainda que relativa. Quanto aos produtos de luxo acessível, como produtos de beleza, da perfumaria, chocolates e bebidas, sua política de comunicação é desenvolvida através de campanhas publicitárias completas e importantes, quando do lançamento de um novo produto, quando da expansão de linhas de produção ou mesmo da própria marca. Ela deve incluir diversas mídias, jornais, revistas, cinema, televisão e outdoors e cartazes menores, para os pontos de venda. Talvez a vertente mais importante da comunicação, principalmente para os produtos aqui apresentados, seja o anúncio publicitário. Esta categoria do marketing nasceu em meados do século XIX, nos Estados Unidos, chegando mais tarde à Europa. A publicidade impressa lança produtos, consolida a marca, apresenta-se para os consumidores potenciais estabelecidos e mesmo para os que, naquele momento, não têm acesso àqueles bens ou serviços. O anúncio invade a intimidade do enunciatário. Exposto em vitrines, em páginas de revistas ou outdoors, fica na memória de um público que, na primeira possibilidade de uma promoção financeira, vai utilizar a aquisição de um daqueles bens materiais como símbolo de status social. Tudo isto porque a imagem é eloqüente. São cores e formas que se articulam para veicular significados que muitas vezes, mais do que os textos verbais, ficam impressos na consciência do seu interlocutor. Daí a importância de estarmos “bem equipados” para compreender o que as imagens são e o que elas estão comunicando.

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UMA CANETA “TRÈS CHIC” Outro texto imagético selecionado para estudo das relações de significação na imagem publicitária é híbrido, pois é composto por elementos do sistema visual, através do código fotográfico e por elementos do sistema verbal, em parte utilizando esses elementos em um arranjo poético e, em outra parte, como simples linguagem verbal informativa escrita. Houve a intenção, por parte do criador deste texto, de fazer uma analogia entre o poético e o visual, o que torna preponderantemente visual, mesmo sendo híbrido ou sincrético; daí o motivo de estudá-lo à luz de parâmetros do sistema visual, principalmente. A imagem em questão é bidimensional e foi publicada na Revista Exame VIP: uma propaganda da caneta tinteiro Mont Blanc, modelo Meisterstück 149 e de um tinteiro da mesma marca. O contexto onde está inserida a publicidade por si só já produz algum significado; sabe-se, de antemão, que a publicidade pretende atingir o público de uma revista destinada a pessoas que se consideram muito importantes. O espaço retangular da folha de revista foi dividido verticalmente em duas partes iguais, dando origem a dois retângulos com as mesmas dimensões entre si. Como o retângulo da página da revista é menor na largura, ao ser dividido em dois, gera dois retângulos ainda mais estreitos na largura do que na altura. Esta dimensão facilita a acolhida do olhar à imagem de um produto longitudinal, que é a caneta. Então percebemos que a figura da imagem fotográfica gerada pelo conjunto caneta/tinteiro tem as mesmas dimensões e contorno que a poesia visual. Assim colocados, e se actantes podem ser tanto pessoas como objetos e conceitos, temos dois actantes análogos, a caneta com tinteiro e a poesia que, na inter-relação, reforçam reciprocamente os respectivos significados. O que estabelece a divisão das duas superfícies justapostas são as “cores” dos dois fundos, ou seja, o branco, ausência ou reunião de todas as cores, fundo do plano da esquerda e o preto, a negação ou síntese de cores, fundo do plano da direita. Embora opostas, ambas situam-se nas extremidades cromáticas, ambas podem ser consideradas a ausência de todas as cores ou a presença de todas elas; ambas são ambivalentes; ambas, na sua ambivalência, caracterizam-se como elementos estéticos radicais, a não-cor, independentemente do fato de estarem destituídos de cor ou somando todas elas. Assim, preto e branco são opostos que, ao mesmo tempo, têm características análogas, mas o que predomina no texto é a relação cromática opositora entre eles.

78 A maioria das interpretações para as cores ou não-cores, as quais predominam neste texto estético, atribuem valor negativo para o preto e positivo para o branco, embora o preto possa aludir sentidos como o de noite, boa conselheira, e o branco possa passar a noção de luto, como acontece entre os orientais. De outro modo, o preto tem sido visto como sinal de peso, no sentido de poder e respeitabilidade. Neste texto, em um dos seus lados, o esquerdo, o branco é usado para dar destaque aos produtos anunciados, nos quais o preto predomina; no outro lado, o esquerdo, o preto é utilizado para destacar forma e conteúdo de um verbal, parte integrante do texto publicitário, o qual remete ao lado direito, por ter forma análoga e conteúdo relacionado, que é onde os produtos anunciados estão expostos. Em síntese, temos uma figura simétrica repetida à esquerda e à direita, ou seja, uma forma estreita longitudinal, sobre uma base espessa, associando o branco e o preto. Para que se possa estudar as intra-relações entre os elementos de um mesmo código, isola-se a imagem fotográfica, situada no plano da direita, que passa a consistir em um recorte do texto publicitário em análise, deixando o todo para mais adiante. No retângulo de fundo branco, há uma imagem que se caracteriza pela simetria e pelo equilíbrio axial, ou seja, pode-se traçar um eixo no seu meio, e se obterão duas metades semelhantes e, neste caso, iguais. Sobre uma invisível superfície horizontal, que não se distingue de um suposto fundo vertical - pois ambos os espaços são brancos - está um tinteiro com formato quadrangular, do qual se vê a face frontal, em primeiro plano. Esta face do tinteiro possui uma base preta, da qual se vê apenas a parte frontal, e como se situa abaixo do olhar do leitor, apresenta-se na forma de um pequeno retângulo horizontal. A forma adquirida por esta base foi possível porque o olho da objetiva foi

centralizado em relação aos lados do tinteiro e também centralizado com relação a toda a imagem fotografada, composta por um conjunto de dois objetos: o tinteiro e, acima dele, a caneta. A parte superior do tinteiro também é preta, levemente côncava e sobre ela aparecem a boca, por onde se introduz a caneta para sugar a tinta, em segundo plano, bem como a tampa aberta do tinteiro, já em quarto plano. Contrariamente à parte inferior, e em função do foco escolhido pelo fotógrafo, a parte superior é visível e, embora preta, adquire tonalidade prateada em função do artifício da pulverização de gotas d’água sobre ela, juntamente com o efeito da luminosidade que incide sobre esta parte superior do tinteiro. Nela ainda se vê, em primeiro plano, uma forma preta, que se situa, portanto, na face frontal da parte superior do tinteiro; é uma forma análoga à parte visível da base, coincidindo com ela em largura e altura; difere, apenas, do retângulo da base, em função de uma leve

79 curvatura no contorno do lado superior. Anulado pela transparência do vidro, o espaço entre as duas barras pretas horizontais quase paralelas é ocupado pelo branco do fundo. No segundo plano de profundidade, visível através do vidro transparente que o contém, está um cilindro cheio de tinta azul, azul que gera efeitos de profundidade e de infinito. Duas linhas verticais e laterais em relação ao cilindro informam que a peça transparente que forma o corpo do tinteiro é maciça, e que o cilindro foi nela lapidado ou deixado vazio, dependendo da técnica de fabricação utilizada, sendo que vazio é uma das interpretações possíveis de azul, o que aqui geraria uma redundância. Ainda neste plano de profundidade, vê-se a boca do tinteiro, composta por semicircunferências concêntricas que se sobrepõem: na parte inferior, colado à parte superior do corpo do tinteiro, há uma semi-circunferência preta, mais larga, logo acima uma dourada, estreita, depois outra preta, da mesma espessura do que a dourada anterior, após outra dourada mais larga e irregular nos contornos, sobre ela mais uma preta, estreita, outra dourada e, finalmente, uma preta, com diâmetro menor. Esta peça, a boca do tinteiro, adquire a textura de rosca e, acomodada sobre a parte superior do tinteiro, contrasta com a forma da parte externa que lhe é inferior e quadrangular e, ao mesmo tempo, rebate a forma de semi-circunferência do cilindro interno que contém a tinta azul. Além dos dourados do tinteiro e da caneta, bem como os detalhes em prata na pena e o prata da luminosidade da parte superior do tinteiro, que rebate e valoriza o prateado da pena, este azul é a única cor deste texto publicitário. Ele está no cilindro do tinteiro e é rebatido no reservatório de tinta da caneta, que é aparente neste modelo, o que vincula um objeto a outro. Tudo o mais é preto ou branco. No terceiro plano de profundidade, está o outro objeto do conjunto da imagem, a caneta. O foco da máquina parece ter se dirigido, exatamente, para o pequeno ponto vazado da sua pena, o que o faz com que ambos cresçam em importância, o ponto e o foco. Através de um artifício fotográfico, provavelmente uma fotomontagem, a caneta está, verticalmente, como que

flutuando sobre o tinteiro. Pronta para ser usada, a pena está à mostra e a tampa foi colocada na extremidade oposta à da pena, que no caso desta foto é também a extremidade superior da fotografia. No entanto, existe uma ambigüidade: o ângulo de visão não deixa claro se a caneta está efetivamente no ar, uma vez que a tampa aberta do tinteiro serve de fundo à pena; assim situada, frente ao círculo preto que tem inserida, como um friso, uma circunferência dourada - a qual rebate o dourado da pena - não se sabe se a caneta está presa à tampa ou solta no ar. O ângulo de visão frontal impede a visão da tridimensionalidade dos objetos e sua real localização no espaço. A segunda hipótese

80 ofereceria uma idéia inverossímil do produto, uma caneta voadora; a primeira, lhe confere mais credibilidade e estabilidade; esta é a impressão que prevalece, inicialmente. A pena da caneta tem design tradicional: as linhas laterais, de cima para baixo, abrem-se levemente e fecham-se em seguida, formando dois pequenos ângulos laterais e depois, um ângulo agudo, ao se encontrarem no ponto a ser utilizado na escrita. É a manutenção da forma da pena de animal, originalmente utilizada para a escrita, que traz da pluma o simbolismo de poder aéreo, superior ao mundo terrestre. Talvez aí esteja o porquê de a caneta parecer estar no ar. Mantém-se a ambigüidade. A pena apresenta uma faixa prateada interna e paralela às bordas, que assim sendo, também indica a ponta da caneta. O dourado, muito utilizado nestes objetos, presentifica o ouro, o mais nobre dos metais, que através da história tem assumido significados de divino, da perfeição, de Deus, do conhecimento, da imortalidade, da felicidade, da iluminação, enfim, alude às noções de princípio ativo, macho, solar, diurno, ígneo, quente, enquanto que a prata é considerada feminina, lunar, que emana sentidos como o de água e o de frio. Se o ouro é a metalização das cores quentes e se a prata é a metalização do branco, não é difícil perceber por que, através dos tempos, receberam, ouro e prata, essas conotações. Mas o prateado pode, ainda, sugerir efeitos de significado como o de sabedoria divina, a pureza, e também o objeto cobiçado, pois a prata, em francês, é l’argent, do latim argentum, nome que é dado ao dinheiro, assim como o é la plata, em espanhol, e mesmo prata, em

português, ainda que com um uso mais restrito, é sinônimo de dinheiro. No centro dessa pena há um pequeno ponto vazado, que é o foco da máquina fotográfica; dele sai uma pequena linha reta vertical vazada, em direção da ponta da pena. Pequenas marcas, ilegíveis, estão impressas sobre a pena, provavelmente especificações técnicas da marca e do modelo da pena ou da caneta. Ao continuar o trajeto de baixo para cima na foto, encontra-se o corpo da caneta, com o reservatório de tinta azul à mostra e semi-encoberta pela sua tampa, na extremidade superior. A caneta é preta e a tampa, também preta, sendo que esta apresenta detalhes em dourado: na parte inferior, três linhas paralelas são as circunferências que circundam a tampa cilíndrica, outra linha aparente mostra outra circunferência situada próximo à ponta arredondada da tampa. Esta linha rebate as outras três linhas douradas da parte inferior da tampa da caneta e também as da boca do tinteiro; ela ainda marca o início ou o fim de uma forma vertical, a da haste dourada que permite à caneta ser presa a um bolso. Eis aí outra cadeia de significação: no nível cromático, ouro e prata associam-se, formando a figura de uma seta que aponta para um conjunto de anéis dourados.

81 Na extremidade da tampa, quase imperceptível, em função do ângulo de enquadramento escolhido pelo fotógrafo, está, em dourado, a marca da caneta. É uma tradução de

floco de neve em forma de flor, o que pode ser deduzido se se comparar suas bordas, parcialmente visíveis com as da flor idêntica que compõe a logomarca Mont Blanc, a qual pode ser vista no canto inferior direito do texto, no retângulo oposto, à direita. No quarto plano de profundidade pode ser vista a tampa aberta do tinteiro, igualmente preta, inserindo uma circunferência dourada e tendo a forma de círculo. Ela é a moldura da pena da caneta; sua circunferência dourada rebate o dourado predominante na pena e o negro contrasta com ambos os elementos dourados, bem como com o prata da pena. Nesta sobreposição de formas ainda se observa o contraste das linhas quase retas da pena e da extremidade pontiaguda com a circularidade do negro e da linha dourada na tampa. A circularidade da tampa também destaca o pequeno ponto central da pena da caneta, que é, na verdade, o centro do círculo formado pela tampa, além de centro do foco da máquina fotográfica em direção à imagem fotografada. Esta sobreposição da pena da caneta sobre a tampa do tinteiro faz com que os dois objetos se tornem estreitamente vinculados, umbilicalmente ligados. O limite inferior da caneta, após a pena, pertence a um plano anterior e parece estar apoiado na parte superior da tampa, evitando a noção de que a caneta está em suspenso. Isto dá unidade aos dois objetos e estabilidade à caneta pois, caso contrário, seria frágil seu equilíbrio sobre o ponto que é a ponta da pena, uma vez que a caneta está em posição vertical. A circularidade deste elemento central, a tampa do tinteiro, estabelece relações análogas com o terminal da tampa da caneta, no alto da imagem e também com as semicircunferências formadas pela boca do tinteiro e com a base do recipiente que contém a tinta azul, no interior do tinteiro, em termos de forma; no que toca às cores, a boca do tinteiro rebate o preto e o dourado da ponta superior da tampa da caneta e a boca do tinteiro, contrastando com a cor do cilindro que adquiriu o azul da tinta que contém. Toda esta circularidade contrasta com os retângulos negros da base e da parte superior do tinteiro, com as linhas douradas da tampa da caneta - que mesmo se sabendo que circundam um cilindro, dados a bidimensionalidade do papel e o ângulo da foto, aparecem como se fossem linhas horizontais - e com a discreta linha que marca a base posterior do tinteiro, situada em um quinto plano de profundidade; a circularidade também contrasta com as verticais apresentadas no corpo da caneta, pela sua haste dourada e pelas linhas laterais quase imperceptíveis do vidro transparente do corpo do tinteiro.

82 O fundo branco destaca a figura formada pelos dois objetos e dá a noção de limpeza e precisão, o que é reforçado pelas cores da figura. A base negra e os demais detalhes em negro conferem seriedade e peso ao tinteiro, o que é quebrado pela transparência e delicadeza do vidro e dos dourados, conseguindo assim efeitos simultâneos de ousadia e conservadorismo: o tinteiro gera, ao mesmo tempo, efeitos de sentido que podem se opor, como atual e tradicional, leve e pesado, discreto e original. De qualquer modo, o tinteiro é construído, no seu conjunto, como um objeto requintado. Até mesmo o azul da tinta, que não faz parte de nenhum dos dois objetos, mas do texto estético em análise, está a lhe conferir uma espécie de dignidade aristocrática, já que é um líquido azul, como o é o sangue azul. Por outro lado, na caneta predominam linhas tradicionais; as formas da pena, do corpo e da tampa são as mesmas de canetas fabricadas há décadas atrás, antes da existência das esferográficas. Talvez por este motivo ela seja assim, isto é, depois da invasão do mercado por produtos de baixo custo, uns sem qualquer preocupação estética e outros com cores e desenhos tendendo ao kitch, o produto mais requintado passa a ser o modelo tradicional, originário de um tempo no

qual todas as canetas eram a tinta. A manutenção do desenho conservador também intui a idéia de durabilidade, agregando ao produto a noção de qualidade. Quem tem uma Mont Blanc tem uma nova ou uma antiga Mont Blanc? Em ambos os casos, possuir uma Mont Blanc confere determinado prestígio social e certo requinte em termos de gosto. A forma da haste da tampa da caneta e sua posição central e vertical remetem o olhar do alto para baixo, onde se encontra a pena da caneta, que tendo a forma semelhante a uma seta, conduz para o objeto que está abaixo, o tinteiro. Se penetrar no tinteiro, o que está prestes a acontecer, a caneta atravessará sua boca circular, rica em elementos estéticos, que são os círculos concêntricos pretos e dourados, de tamanhos diferentes, e mergulhará no azul da tinta; após este trajeto que o olhar acompanha, ao chegar ao fundo do recipiente que contém a tinta, a circularidade devolve o olhar para o centro da figura, onde há mais detalhes, como os da boca e da tampa do tinteiro, além do círculo dourado, a figura geométrica perfeita, situada atrás da pena. Diante dele e circunscrito por ele, está a contrastante e pontiaguda pena prata e dourado. Esse conjunto expresso pela imagem fotográfica pode ser descrito como formado por um objeto longitudinal, a caneta, na direção de um orifício, receptáculo onde vai penetrar para sorver o líquido do qual depende para desempenhar sua função. A tampa está aberta e a mesma posição que lhe permite dar espaço para que a pena seja introduzida é a que lhe faz ser contraste, moldura e fundo desta forma estética, a pena, tão valorizada na composição que é seu ponto central.

83 Ao dar início à busca das articulações intertextuais, olha-se para os dizeres à direita do plano esquerdo, em fundo branco. Na primeira linha, a identificação da caneta através de nome e

número do modelo; na segunda, ambas em negrito, a informação de que o tinteiro é de cristal. Nas duas linhas seguintes, não mais em negrito, fica-se sabendo que os dois objetos podem receber gravação do nome do proprietário; nas três posteriores, sabe-se que os produtos estão disponíveis nas boutiques Mont Blanc e revendedores autorizados em todo o mundo. Na última linha, sempre mantendo o princípio da economia de palavras, lê-se o número telefônico da assistência técnica, com prefixo que denota que a ligação é gratuita. O que mais dizem essas palavras? Nova rede de significados emerge, decorrente das articulações desse texto informativo com as imagens que lhe acompanham. As informações têm função estritamente comercial e foram colocadas discretamente, com tipos muito pequenos. Em tudo esses dados são coerentes com a elegância do texto e reforçam a idéia passada pela imagem: requinte,

tradição, exclusividade, status social. O tinteiro não é de vidro, como pode parecer pela imagem; é de cristal; houve a necessidade de dizê-lo para complementar o que a imagem não consegue dizer. A possibilidade de gravação personalizada, torna os produtos ainda mais exclusivos. Omitem-se as palavras “à venda em”; o texto verbal diz apenas: “nas boutiques...e nos revendedores autorizados”. Isto quer dizer que não são vendidas em qualquer lugar, mas ainda assim não omite que esses lugares especiais existem em todo o mundo. Por último, um número de telefone com ligação gratuita à disposição do futuro proprietário, para lhe garantir que a empresa fabricante se preocupa com o perfeito funcionamento e a durabilidade do que anuncia. Em síntese, os produtos aparentam ser de boa qualidade e duráveis, mas não estão ao alcance de qualquer pessoa. É preciso recursos financeiros de certa monta para adquiri-los. Isto não é apresentado claramente, mas fica implícito no tipo de mídia escolhido para veiculação, uma revista; pelas características da revista, como qualidade de impressão, papel, matérias apresentadas e pelo seu próprio nome;

pelos elementos visuais e verbais utilizados, que não parecem atraentes ou

compreensíveis para qualquer indivíduo. Outras relações são encontradas, atendo-se, agora, ao retângulo da direita, de mesma dimensão que o anteriormente estudado, porém tendo o negro como fundo. Esta é a primeira imagem com a qual se depara o leitor da revista, o público ao qual se destina a publicidade, pois está à direta da página, na parte que primeiro é visualizada quando se folheia a revista, a qual tem as páginas presas pela esquerda. E se o negro não lhe despertar a curiosidade por ser uma página predominantemente

84 negra, diferenciada da maioria das outras páginas da revista, provavelmente o contraste do branco das letras e a forma que assumem no espaço retangular irão fazê-lo. O que surge do negro? Um poema de Gertrude Stein: são palavras entre aspas, e seu nome está colocado, em tipos menores, logo abaixo do poema. O quê diz o poema? Escrever é escrever é escrever é

escrever... é escrever, sendo oito vezes repetido o verbo. Esta repetição do verbo escrever no infinitivo, que sugere uma tarefa interminável, merece outro nível de aprofundamento, já que se trata de uma ação reiterada, no poema descrita. Na imagem publicitária está transcrito o que foi escrito pela poetisa: escrever é escrever, é escrever, é escrever...”. De saída, uma alusão à durabilidade da caneta. Em seguida, gera também o sentido de disponibilidade necessária, permanente e incansável, que a tarefa do escritor exige, significados que então se articulam. Por outro lado, escrever é escrever, isto é, a frase propõe-se a definir um conceito de escrever e acaba por não defini-lo objetivamente, apenas repetindo que escrever é escrever, o que talvez pudesse ser mesmo uma definição. Na definição sem definição concreta, escrever é aquilo que bem sabe o que é quem já sabe escrever. Escrever e ler. E ler em inglês. Há um sentido restritivo na intencionalidade de não conceituar claramente o ato de escrever como há no uso de um idioma estrangeiro. Outro efeito de sentido pode ser assim estabelecido: mesmo que o futuro usuário não seja um amante da escrita, ele pode adquiri-lo através da caneta, pois ela se identifica com determinado status, o qual é transferido para quem a utiliza. O poema não está em português, mas em inglês. Ora, a revista é brasileira; logo, a manutenção do texto em inglês está, automaticamente, limitando o acesso ao seu significado para os que conhecem uma segunda língua. De outra sorte, escrito na língua inglesa, o poema apresenta, na leitura, um ritmo de valsa. Embora a valsa seja considerada como um gênero popular, historicamente adquiriu conotações socialmente distintas. Definitivamente, o texto publicitário não se

destina a todos ou a qualquer um. Um dado bastante instigante desta peça publicitária é o fato de que o poema, da maneira que foi distribuído na página, apresenta aproximadamente, em termos de forma, as mesmas dimensões e os mesmos contornos do que os da imagem delineada pelo conjunto da caneta com o tinteiro, ou seja, uma parte longitudinal, simétrica, formada por uma ou duas palavras “To; write; is to; write; is to; write, desenhando a caneta. No final do poema, apresenta-se um número maior de palavras por linha, to write is to write is e to write is to write, desenhando duas barras como os dois retângulos horizontais que compõem a base e a parte superior do tinteiro, em preto, na imagem fotográfica. Entre as duas imagens de contornos idênticos há, reciprocamente, a tradução verbal do visual e do visual ao verbal, propostos

85 em códigos distintos, isto é, um mesmo significado, a caneta e o tinteiro, é partilhado por dois significantes específicos: a imagem fotográfica e a imagem do poema visual. Em diversos aspectos, a parte direita do texto publicitário, a que contém o texto poético, estabelece inter-relações com o texto visual da esquerda e mesmo com as informações publicitárias colocadas na parte inferior daquela imagem. A exclusividade do uso do preto e do branco imprimem a idéia de poder, sobriedade e finesse; são as cores que predominam no texto inteiro, tanto no retângulo direito quanto no esquerdo, e são também as cores utilizadas em trajes de noite para homens em cerimônias elegantes. Mesmo a escolha de um poema reitera o status pretendido para o produto, bem como para seus potenciais consumidores, pelos designers dos objetos e pelos criadores da propaganda, independentemente do tipo do poema que fosse, uma vez que a linguagem poética, ainda que verbal, não é da mesma forma acessível como a linguagem verbal corrente. No entanto, neste caso, forma, conteúdo, idioma e colorido interpõem seus significados para reforçar outros já explicitados, o que contribui para a unidade e a coerência interna deste texto publicitário que pode parecer inicialmente fragmentado em linguagens e partes diversas. Ainda cabe, nesta imagem, observar seu canto inferior direito; ali se encontram a logomarca da Mont Blanc e seu slogan, “the art of writing”. Outras teias de efeitos de sentido podem ser buscadas. Mont Blanc, é sabido, é o monte que possui o pico mais alto da Europa, sendo conhecido ainda com o nome de Monte Bianco, na parte que ocupa o território italiano. Mas a marca é Mont Blanc, o que denota a referência à parte francesa do monte e a intenção de, ao adotar seu nome, relacionar a marca a essa parte da paisagem alpina. Observem-se as relações passíveis de serem estabelecidas: primeiramente, aos pés do Mont Blanc estão as mais elegantes estações de esqui européias; em segundo lugar, no alto deste monte, situa-se a Aguille du Midi, marco pontiagudo cuja visitação pode ser tão almejada quanto pode ser almejado possuir uma caneta desta marca. A pena da caneta ou a própria caneta podem ser uma alusão daquela Aguille. Em terceiro lugar, nada melhor para escrever do que uma superfície branca, do mesmo branco que possuem as superfícies nevadas. O simbolismo do nome Mont Blanc se completa, na sua logomarca, com um floco de neve em forma de flor, acima e após a palavra “mont”. É a mesma forma que está sobre a tampa da caneta, em dourado, na imagem fotográfica do retângulo da esquerda. Um último nó de significados a ser observado é o slogan da Mont Blanc: the art of writing , o qual também é gerador de inter-relações neste texto: aí está, com todas as letras, o porquê do uso do poema de Stein. No slogan surge o conceito que o poema promete, mas não explicita: escrever é

arte. Arte que a arte escrita, a poesia, não descreve. Ela é. Além disso, estando em inglês, reforça a idéia de que se trata de um produto para cidadãos internacionalizados, uma vez que

86 outras multinacionais radicadas no país, dependendo de seu público alvo, traduzem seus slogans para o português.

87

UM DIÁLOGO ENTRE DESIGNERS: PUBLICIDADE, MODA E UM FRASCO DE PERFUME Depois de ter analisado o vidro de Hot Couture, vamos ver o anúncio do mesmo perfume. A publicidade de Hot Couture mostra uma mulher longilínea, sobre a qual está sendo feito um vestido com tecido cor-de-rosa. É o exercício da técnica conhecida, mesmo em português, como moulage, que consiste em talhar e alinhavar (ou alfinetar), ou seja, moldar o traje diretamente sobre o corpo de um modelo vivo. Existe um foco de luz sobre os elementos que compõem a cena, que vem da frente e da direita de quem olha, o que pode ser observado pelo jogo de claro e escuro sobre o corpo, nas dobras do tecido e no fato de cinco mãos estarem aparentes e em atividade, embora seus respectivos corpos não apareçam. Todo o fundo é negro, é sombra. São três mãos à esquerda de quem olha, e duas à direita. Começando pelas da esquerda, a que aparece mais no alto, próxima ao quadril da manequim, parece estar segurando um alfinete. A segunda, que se situa mais abaixo do que a anterior, na altura da coxa, mostra o pulso com uma almofada para alfinetes em vermelho, e alguns alfinetes espetados, dos quais só se vêem as cabeças. Essas duas mãos parecem pertencer à mesma pessoa. Uma outra mão, maior, na altura do joelho, segura uma tesoura aberta que forma um ângulo, sendo que uma das pontas toca de leve o tecido. As duas mãos, as quais estão mais no alto do que a terceira, estão com os dedos abertos, formando ângulos que têm a abertura voltada para a mulher. As mãos que aparecem à direita de quem olha parecem pertencer a uma mesma pessoa. Estão esticando o que pretende se passar por uma fita métrica: uma reta cinza. Os dedos dessas duas mãos estão abertos, formando ângulos que têm a abertura direcionada para a mulher. Além do pequeno detalhe da almofada vermelha, apenas quatro cores estão presentes nesta publicidade: o rosa no tecido e, em um tom mais escuro, no slogan; o cinza (ou seria o prateado?) na tesoura, na fita métrica, nos sapatos de salto alto, na palavra HOT e no vidro de perfume; o branco, na palavra Couture; e o negro, que cobre todo o fundo e o chão, sem deixar que se perceba diferença entre eles. O braço esquerdo da manequim está dobrado para cima, formando um ângulo agudo e sugerindo que a mão está atrás da nuca. O braço direito está para baixo, levemente dobrado, formando um ângulo obtuso, e a mão está pousada na lateral da parte superior da coxa, deixada à mostra. O tronco da mulher está em diagonal na bidimensionalidade da fotografia, e todo o seu corpo está em diagonal no espaço, deduzido pelos efeitos de luz e sombra, pelo contorno do tronco e pelo fato de que sua perna esquerda está na frente e é mais comprida do que a perna de trás, a sua perna direita. E

88 percebe-se que o quadril está deslocado para sua direita – ou esquerda de quem observa – em função do contorno. O tecido rosa cobre o corpo da mulher, da altura do decote até o início da coxa. Daí em diante, a perna direita está já coberta, mas a da esquerda, não. O decote é baixo, horizontal, e deixa uma parte dos seios a mostra. A parte do tecido que já compõe o vestido possui muitas dobras, algumas seguras por meio de alfinetes, as quais se apresentam como retas, na maioria, horizontais. Metros e metros de tecido estão espalhados no chão, formando mais dobras, contornando a modelo por trás, até chegar onde está o resto da peça, ainda enrolada e o respectivo rolo de tecido, que, em diagonal, como que coloca um ponto final na trajetória do tecido e mesmo na própria publicidade, pois se situa na parte mais à direita e mais inferior de quem observa. O tecido espalhado no chão apresenta dobras, que formam ângulos, determinados pelas linhas de contorno e pelos efeitos de luz. Sobre o rolo de tecido, fruto de um procedimento posterior de montagem, está o vidro de Hot Couture, com sua dimensão desproporcional em relação à cena, uma vez que está em uma escala maior do que o conjunto anteriormente descrito. Sobre o vidro, está o nome do perfume: a palavra HOT em cinza, a palavra Couture em branco e o slogan, em rosa, le nouveau parfum. Para hot foi usada a mesma fonte da marca Givenchy, denominada arial. Mas houve uma intervenção: a letra “O” ficou mais larga do que suas vizinhas “H” e “T”. A palavra Couture parece manuscrita. O “C”, maiúsculo, começa como que se enrolando, como um fio de linha, no pé do “H” de HOT, e o “t”, toca de leve o “O”. ***** O olhar da mulher está fixo no enunciatário da foto; assim o discurso é na primeira pessoa: a mulher não ignora que está sendo vista, ao contrário. Associando-se o olhar à sua pose, o conjunto pode passar a idéia de sedução. A cabeça, o rosto, e nele, o olhar, é o ponto de partida para o percurso do olhar. Como a cabeça está de lado, ela faz com que o trajeto continue pelo braço direito de quem olha, porque uma diagonal pode ser traçada no eixo da cabeça, continuando, sem interrupção, pelo pescoço e pelo antebraço, os quais estão chamando a atenção sobre si em função da luminosidade. O olhar continua após a pequena dobra do cotovelo, segue até a mão, e aí tem duas opções: o sexo da modelo, coberto pelo tecido mas sutilmente marcado por um ângulo mais escuro, definido pelas dobras e luminosidade, é a primeira. E a segunda hipótese é continuar descendo, percorrer toda a coxa da mulher, e aí surgem novamente duas alternativas: sair do corpo, à direita, no meio da perna, para

89 acompanhar o caminho do tecido até o vidro de perfume; ou acompanhar a perna até o pé, o bico do sapato, pulando para a ponta do rolo de tecido e daí para o perfume. Assim, os principais pontos de atenção são o rosto iluminado da mulher, o vidro de perfume, e sua marca. Há o predomínio das linhas retas, muitas delas diagonais; elas formam muitos ângulos. Há o rebatimento de ângulos. As quatro mãos e a tesoura são ângulos que se abrem em direção à manequim. Mesmo seu braço direito, dobrado à altura da cabeça, reforçado pelo efeito de luminosidade, forma mais um ângulo que se abre sobre ela. Todo esse conjunto de ângulos funciona como se fosse uma aura em sentido contrário: não é a luz que se espalha, emanando da figura humana; são focos de luz direcionados para a pessoa humana. Ou seria para a costura? ou para a criação? Parece mesmo ser mais para a moda, pois o traje está em processo, em ato. Por outro lado, há mais de um autor deste ato de criar moda, e os autores deste ato não são dados a conhecer. Daí vários efeitos de sentido podem surgir: não é importante a autoria do ato de criar moda? Ou o mais importante é a marca, em si, anulando a autoria específica, ou seja, Givenchy é Givenchy, tanto no perfume quanto na haute couture? Ou tratase da valorização do trabalho coletivo? Ainda com relação aos ângulos, apenas um deles é o composto pela tesoura. Mas não seria exatamente a tesoura que estaria sendo aludida nos demais ângulos agudos? Sendo rebatimentos da forma da tesoura aberta, os ângulos recorrentes não estariam a reforçar o sentido de valorização do ato de cortar o tecido, uma etapa fundamental na criação de moda, quando o desenho das formas é concebido, a partir do plano que é o tecido? Indo mais longe, não seria a forma da tesoura aberta a justificativa para o uso de tantos outros ângulos, também no vidro de perfume? No que toca à cor, o único elemento na cor vermelha é a almofada de alfinetes. Ela tem a forma redonda. Se traçarmos uma linha reta horizontal, da almofada até o logotipo de Hot Couture, vamos encontrar a palavra “hot”; assim se associa ao hot o vermelho, o quente, o

calor, a cicatriz, ao forte. Isto é reforçado pelo fato de a almofada ter a mesma forma do “o” de “hot”. São os mesmos círculos encontrados no bolero da mulher que decora o vidro. O contorno da mulher repete, com pequenas diferenças, o contorno da mulher que decora o vidro de perfume. Por exemplo, o braço direito da mulher da propaganda, dobrado à altura do pescoço, rebate e lembra a gola alta da mulher do perfume; seu quadril em ângulo repete o ângulo da frente do bolero. Mas para que isto ocorresse, foi necessário considerar como frente do perfume não o lado que, de acordo com a proposta ergonômica do vidro, seria a frente, mas o lado de trás. Isto talvez tenha ocorrido dada a dificuldade de a modelo fazer uma pose análoga à mulher voltada para direita. Assim, na publicidade, a mulher do vidro de perfume está com a frente voltada para a esquerda de quem olha.

90 A palavra Couture, grafada com uma fonte que simula ser manuscrita,

traz a idéia de que a costura é artesanal, manual, única e que tem uma assinatura e uma personalidade própria. Escrita em branco, e se destacando por ser o único elemento dessa cor, lembra o giz branco, instrumento usado pelos costureiros para desenhar as formas e detalhes da roupa, no tecido a ser cortado. Por outro lado, o perfume, em si, não pode ser visto; o vidro parece estar vazio; mas a cor rosa do tecido presentifica a cor do líquido. A mulher Givenchy é esguia, longitudinal, como o vidro e como a figura principal da sua publicidade. E o vidro é um prisma, que evoca a luz, e a luminosidade tem papel fundamental na propaganda. Então, tanto no perfume como na publicidade, a mulher Givenchy não é uma mulher qualquer; ela é uma mulher sob um foco, uma mulher que se destaca, como diversos elementos e procedimentos fazem-nos perceber. Enfim, a publicidade de Hot Couture, assim como o design de seu vidro são coerentes entre si, em termos de efeitos de sentido: eles passam a noção da ambigüidade que vive a mulher atual, entre a feminilidade e a masculinidade. A feminilidade está na cor rosa e nos pratas (que na propaganda aparece como cinza); nas bolas ou pois; na gola alta, nos cuidados com a mulher, no vidro colocando-a em um nicho, e na publicidade, focando-a tanto com a luminosidade de fato, em meio a um fundo escuro, quanto com os focos das mãos em sua direção; está ainda no Couture, fonte que simula uma delicada palavra manuscrita. A masculinidade está na firmeza das retas, está nos ângulos, tanto no vidro de perfume quanto na publicidade; está na palavra HOT; está na postura corporal destemida e no olhar da mulher que encara o enunciatário. O perfume é um produto de luxo acessível; a moda, principalmente a haute couture, um produto de luxo inacessível. Assim, Hot Couture oferece à mulher a possibilidade de

acesso ao mundo inacessível, ainda que através de um produto volátil. É forte a associação entre o perfume e a moda. No perfume, a silhueta feminina apresenta vários elementos de identificação Givenchy: a estrutura alongada, a gola alta, a sobre-saia; afinal, ali está presentificada uma imagem feminina bem vestida. E a publicidade se ocupa, da mesma maneira, da moda. ***** Existem diferentes versões da mesma propaganda e tivemos acesso a três delas: uma publicação em uma revista popular brasileira, outra, em uma revista de bordo de uma companhia aérea, em um vôo internacional (a que foi usada para a análise, por suas condições técnicas serem melhores), e a terceira, uma foto tirada de um cartaz, em um ponto de venda, em Paris. Há diferenças entre elas, e

91 vale a pena observar. Entre a primeira e a segunda, existem três diferenças básicas, quais sejam, a dimensão da imagem, em si, a posição do logotipo da marca, e a dimensão do vidro de perfume. Na revista popular, a propaganda ocupa duas páginas. A mulher, o tecido rosa que envolve seu corpo e cai no chão, e as mãos que se direcionam para ela, ocupam a primeira página. A segunda página mostra a marca Givenchy no alto, na cor branca, contrastando com o fundo negro. Logo abaixo, a marca do perfume, Hot Couture, e a expressão le nouveau parfum. Mais abaixo, em primeiro plano em relação ao tecido rosa que se estende pelo chão, da primeira página para a segunda, está uma reprodução do vidro de perfume e, em seguida, colocado como de um modo naturalmente displicente, está o rolo de tecido rosa. O topo do vidro de perfume, se traçada uma horizontal em direção à primeira página, atinge o quadril da mulher. Na revista de bordo, a mesma foto não parece ter sido cortada, para ocupar menos da metade do espaço, em relação à anterior. É a mesma foto, mas ela foi reduzida na sua largura, provavelmente fruto de efeito computadorizado, ou a anterior foi alargada, com o mesmo processo. Nesta segunda versão foi ainda reduzido o tamanho do vidro de Hot Couture: traçando-se uma linha horizontal do seu topo em direção à imagem da mulher, ela atinge seus joelhos, e não o quadril, como na versão anterior. Na propaganda publicada na revista de bordo, a foto foi colocada dentro de uma moldura branca. No alto da moldura, à direita, aparece a assinatura da companhia e da revista; em baixo, à esquerda, em preto, contrastando com o fundo branco, e em dimensão muito menor do que na versão da revista popular, está a marca Givenchy; à direita, dentro de uma circunferência traçada em uma linha negra e muito fina, está o nome do perfume, a informação que um vidro de 50 ml com spray custa 44 dólares americanos e uma informação com caracteres orientais. A circunferência é traçada sobre o ângulo que é formado pela ponta direita inferior da foto; assim, no espaço de intersecção entre a circunferência e a foto, consta, em branco e em caracteres muito pequenos, o site da marca Givenchy. Na terceira versão, novas diferenças, embora se perceba que a fotografia que originou as três versões é a mesma, pois todos os detalhes da mulher e das mãos que a cercam são idênticos. Assim, as diferenças foram pós-produzidas, adequando cada propaganda à respectiva mídia e fatia de mercado. Na versão criada para os pontos de venda, o fundo da foto não é mais negro, mas rosa, um tom mais claro do que o rosa do tecido. As dimensões são maiores, para permitir a visibilidade de pontos mais distantes do que aquele de um leitor de revista. Nesta foto da terceira versão, a marca Givenchy está acima da mulher, no alto da foto, em cinza; o vidro de perfume não aparece na foto, mas está – supõese – dentro da sua embalagem, colocada diante do cartaz, sobre uma espécie de bandeja de acrílico transparente. E por trás da foto, complementando o cartaz, estão quatro retângulos colocados em quatro posições diagonais distintas; eles têm texturas e cores diferentes; suas bordas formam sucessivos

92 ângulos, como que cortados por uma tesoura de um profissional da costura; assim construídos, estes quatro retângulos presentificam quatro amostras de diferentes tecidos: preto, prata com pois, rosa liso e rosa com textura. E esse efeito de amostra de tecidos foi o mesmo conceito usado para colocar o título de Hot Couture, na embalagem do vidro. Na revista popular, a logomarca Givenchy domina, pela dimensão, cor/contraste e situação na página; duas páginas são usadas, para concentrar mais a visão sobre um único texto visual; e o vidro do perfume está em escala maior do que na versão da revista de bordo. As diferenças entre aquela versão e a da revista de bordo passam a noção de que o ou a consumidora da revista do avião já conhece a marca, pois a publicidade é bem menor e a marca é muito mais discreta. Deduz-se que há a

intenção não só de anunciar o perfume, mas igualmente de divulgar e firmar a marca. E a propaganda do ponto de venda abandona o contraste da imagem com o fundo preto. O rosa de fundo ao mesmo tempo ameniza a visualização e torna o espaço da imagem publicitária mais integrado ao ambiente comercial. E a caixa do perfume está ali presente, fazendo parte do conjunto da peça publicitária; ambas as estratégias aproximam o ou a consumidor(a) do produto.

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THE END Por que é tão difícil terminar (qualquer coisa)? Coisas que achamos ruins, exatamente porque não gostamos, ficamos adiando, adiando, adiando o seu fim. Coisas boas, não queremos

que acabem. No mundo acadêmico, há um certo preconceito pelo título “Conclusão”, para finalizar dissertações ou teses, pois pode parecer pretensioso (e, às vezes, é). Então, criamos eufemismos como “Considerações Finais”; “Últimas Reflexões”, coisas assim. Mera hipocrisia, pois o conteúdo não muda, só o título. ****** Daí eu começar este difícil finalizar com estas considerações, intitulando-o de THE END. Esta expressão inglesa remete, ou alude, ou atualiza, ou sintetiza, ou figurativiza, ou presentifica – sei lá, protagoniza alguma ação semiótica – que me leva ao passado ou que traz ao presente o cinema, o do escurinho, aquele com final feliz, da ilusão da felicidade, do mundo ideal, do amor que dá certo, aquele da infância e da adolescência, sem a necessidade de Estatuto. Aquele fim de filme concluído sem dó

com um

The End

escrito com a fonte que chamamos de Blackadder ITC, linhas em forma

de palavras que se distanciavam do nosso olhar para, semioticamente, dizer isto mesmo: que nós, espectadores, não podíamos alcançar o fim, que o filme iria terminar, não obstante a nossa vontade de ver as pessoas vivendo felizes para sempre, como éramos dados a supor, aliás, que seriam felizes merecidamente, depois de todas as intrigas do enredo. E todos tínhamos nossa frustração de meros

espectadores sublimada por aquele

The End

fugidio, que prometia tudo aquilo que eles

não mostravam, mas que nós, espectadores, éramos capazes de imaginar. ***** Depois, expressões em língua estrangeira passaram a ser mal vistas, e aquelas em inglês, consideradas “anglicismos” ou “americanismos” (com um ar de desdém). Depois, passaram a ser “dominação cultural”. Mais tarde ainda, “politicamente incorreto”. Junto com a falta de preconceito em relação ao final feliz se foi nossa infância, nossa adolescência, nossa ingenuidade, nossa esperança, nossos sonhos; também a crença de que se pode terminar bem uma coisa legal....

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Terminar uma relação afetiva, por melhores momentos que se tenha vivido em conjunto, todos que passaram por isto dizem ser uma experiência terrível. Esta experiência falta no meu currículo, mas em compensação, experiência mais rica é ter um cobaia-mor, parceiro solidário de um regime de tolerância máxima, que após ler estes originais me falou: “Falta um fim (entre outras coisas)”! Pensei, desesperada: “Ah, meu Deus, ‘O’ FIM!” ***** Bem, vocês leram aqui algumas partes de dois trabalhos acadêmicos, um de doutorado e outro de “post doc” (e aqui, mais do que por obrigação, quero lembrar que fui bolsista da CAPES no doutorado e do CNPq no pós-doutorado). Obrigada, povo brasileiro, pois com seus impostos possibilita a essas agências ajudar os pesquisadores do nosso país, mesmo que ninguém lhe consulte ou esclareça sobre a importância disto. Fiz nos trabalhos em si, e depois, nos textos, várias lipoaspirações, onde gordura foram consideradas as citações, os conceitos pouco conhecidos e mesmo as construções de frases mais rebuscadas... Foi tudo para a lixeira. ***** Eu sou apenas uma modesta “tia de artes” metida, assim como a Semiótica é uma “ciência” metida, porque se “intromete” (são os pesquisadores que a levam) em todas as áreas do conhecimento humano para tentar ajudar, da medicina às artes, da física quântica à exegese, da hermenêutica à estética... Mas meu entusiasmo é crescente em relação às idéias aqui contidas porque, como professora, na graduação e na pós-graduação, ou orientando meus alunos para aplicar com crianças esta proposta, percebo como a prática desta espécie de leitura altera a capacidade de ver, apura o olhar e faz o que é mais importante para mim, que é especializar o potencial de extrair das imagens

seus significados. Em cada turma que dou aula, repito o teste: mostro uma imagem e peço que escrevam sobre ela. Ao final do semestre, repito a operação. Depois, eles mesmos se avaliam. O Design é uma área nova, no âmbito da academia. Tanto é que muitos dos mais famosos “designers” da contemporaneidade são arquitetos, ou vêm de outras formações de conhecimento. Mas os designers de hoje já “nascem” designers; além do que, já iniciam a criar sob a égide da objetividade

95 e da síntese, ou seja, sob o ritmo, o nível de reflexão e sob a ética de autoria de uma época vivida com Internet, ou seja, onde nada é privativo (exclusivo), um valor que foi acalentado durante séculos. Sequer o conhecimento é privativo, pois a autoria, porque difícil de comprovar, perde seu valor. Daí a satisfação de dar a público estes “textosdesign”. ***** Além de alunos de Design, meu objetivo, neste trabalho, é atingir a pessoa leiga, o “simples” mortal que tenha interesse em discutir idéias sobre objetos estéticos do cotidiano, como moda, design e publicidade, sobre arte e cultura; e, se possível, oferecer uma maneira a mais, diferente, para lidar com as questões que essa produção determina. Tudo do modo mais simples possível. É claro, não são assuntos primários; assim, vez que outra pode exigir um pouco mais de concentração... Este trabalho trata do mundo de imagens que nos rodeia, de textos visuais que nos seduzem, nos fazem ficar alegres, maravilhados, emocionados, frustrados... são imagens que nos fazem correr, trabalhar e comprar mais... Isto porque as imagens “falam”, como pudemos observar. E, se não sabemos como falam essas imagens, acabamos não podendo fazer nossas escolhas com liberdade. Aos prezados colegas da academia: não leiam este livro; vocês irão detestá-lo, achá-lo muito simples. Leiam outras coisas que eu escrevi. Este trabalho é, antes, para o cidadão

comum que não gosta de se sentir mudo diante de uma obra de arte, ou que consome produtos no cotidiano e só depois se dá conta de não estar precisando deles; ou que deixa de comprar o que é bom porque é muito caro. E quanto aos alunos, estes “textosdesign” não são apenas para os de Design, mas aos de Arte também, que tanto sofrem tentando entender traduções, às vezes até inadequadas, das mais complexas teorias importadas, ou tentando se concentrar em cópias apagadas de idéias já ultrapassadas...

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