Ide, Indo ou Enquanto Vão

February 14, 2019 | Author: Nickerson F Barbosa | Category: Resurrection Of Jesus, Great Commission, Gospel Of Matthew, Jesus, Saint
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ACADEMIA DE FORMAÇÃO EM MISSÕES URBANAS ANÁLISE DA GRANDE COMISSÃO - AULA 2 PROFESSOR YAGO MARTINS

Certamente, você já ouviu uma pregação que tenta conceituar uma melhor tradução para o “ide”. Eu ouvi várias mensagens que me diziam que o imperativo, a ord em, da Grande Comissão era simplesmente “discipular”, fazer discípulos. O “ide”, na verdade, seria “indo”, ou “quando fordes”. Assim, nós não seriamos ordenados a ir a locais específicos para pregar o evangelho e

fazer discípulos, mas sim que devemos fazer iss o “quando formos” ou “enquanto vamos”. Fiquei muito impressionado quando ouvi isto pela primeira vez. Parecia que eu estava conhecendo alguma sabedoria oculta reservada apenas a alguns iluminados (leia- se “estudantes de grego”). Encontrar estas traduçõ es alternativas era mais interessante que conhecer a “última” da vida de alguém: era um segredo santo que eu podia compartilhar e ainda sair como o inteligente da turma. Foi decepcionante descobrir que mentiram pra mim. Eu entendo a motivação daqueles que não desejam que nossa motivação e preocupação estejam, acima de tudo, com o “ide”. M uitos realmente colocam uma grande ênfase nesta

palavra, em detrimento de toda a continuação da fala de Cristo, esquecendo que o texto também possui outras ênfases. Chamamo s até o ato de fazer discípulos de “cumprir o Ide” 1! Porém, de modo algum, esta tentativa de nos trazer a ênfase original do texto pode ser desculpa para imprecisões exegéticas. Eu imagino que os divulgadores de uma visão errada deste texto não leram suas posições em nenhuma gramática de grego e estão apenas reproduzindo aquilo que ouviram nos púlpitos de algum congresso. Não estou dizendo que todo pregador precisa ser um gramático em koiné – meu próprio conhecimento de grego é parco e extremamente limitado. Porém, dou graças a Deus pela cultura de pesquisa que o seminário teológico inculca na cabeça de seus alunos. Assim, ainda que minha expertise em grego não seja digna de muita confiança, posso reproduzir abaixo o que dizem alguns dos melhores gramáticos das línguas originais. Nos originais, apenas o verbo “discipulai” está realmente no imperativo. Os outros verbos do texto, como “batizando” e “ensinando”, são imperativos modais, que dão o modo como a ação se

estabelece. Desta forma, batizar e ensinar são o meio pelos quais os discípulos são feitos 2. O verbo

1 William

Carey, muito provavelmente, foi o popularizador desse modo de ver a Grande Comissão. Ver CAREY, William. An Enquiry into the Obligations of Christians to use Means for the Conversion of the Heathen. New facsimile edition. Londres: Carey Kingsgate, 1962. 2 Ainda que alguns discordem, a estrutura do texto da Grande Comissão satisfaz os critérios regulares para um particípio modal, como, por exemplo, o fato do particípio seguir o verbo e de o verbo ser vago, quase implorando para ser definido (ver WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe exegética do Novo Testamento. São Paulo, SP: Editora Batista Regular, 2009, p. 628-630).

ACADEMIA DE FORMAÇÃO EM MISSÕES URBANAS “Ide”, por outro lado, é um particípio de circunstância atendente 3. Tentando simplificar ao máximo, isto significa que, mesmo não sendo a ordem principal da frase, o “ide” ganha alguma

força imperativa4 - É uma ordem dependente da ordem principal, que precisa ser obedecida como uma circunstância necessária para se obedecer aquilo que se deseja. Outras passagens da Escritura também possuem este tipo de construção: “ ide e aprendei o que significa” (Mt 9:13), “Eis

que um chefe veio e o adorou” (Mt 9:18a), “Minha filha acabou de morrer, mas vem e coloca tua mão sobre ela e ela viverá” (Mt 9:18b), “Rapidamente ide  e dizei a seus discípulos que [Jesus] ressuscitou dos mortos (Mt 28:7), “ Ide e mostra-te ao sacer dote” (Lc 5:14). Em todos estes casos,

os verbos em itálico representam particípios de circunstâncias atendentes e são, claramente necessidades a serem cumpridas para que a ordem principal seja satisfeita. Em Mt 9:13, os fariseus só poderiam aprender se  fossem fazê-lo ; em Mt 9:18a, o chefe só poderia adorar  viesse; em Mt 9:18b, Jesus só colocaria a mão sobre a garota se  fosse; em Mt 28:7, as mulheres só poderiam avisar aos discípulos a respeito da ressurreição se  fossem até eles; Em Lc 5:14, o leproso curado só poderia se mostrar ao sacerdote se  fosse até ele . Os fariseus não deveria aprender o que é misericórdia enquanto ia, mas deveriam fazê-lo ativamente; o chefe não adoraria enquanto andava, mas iria diretamente a Cristo para isto; Jesus não colocaria a mão sobre a garota enquanto caminhava, mas foi diretamente a ela; as mulheres que viram o anjo anunciado a ressurreição de Cristo não deveriam viver suas vidas normais e, caso trombassem com algum discípulo enquanto lavavam as roupas, avisar a eles da ressurreição, mas ir direto a eles para anunciar a vida de Cristo; o leproso curado deveria ir direto ao sacerdote para se mostrar a ele, e não esperar encontrá-lo no metrô. Diante de tudo isto, podemos dizer que ainda que a ênfase maior esteja em fazer discíp ulos, em um contexto em que precisamos alcançar “todas as nações”, é difícil acreditar que não temos a ordem de ir. Assim sendo, só podemos concordar que neste texto Cristo não só nos ordena fazer discípulos e pregar o evangelho, mas também nos comissiona a “ir” como um meio para que essa missão seja concretizada5.

Isso significa que a ordem da Grande Comissão está focada, sim, em um deslocamento geográfico. Expressa uma saída de onde se está para ir a outro ambiente, espaço, lugar, cultura, país, continente. Baseado neste erro quanto ao texto, alguns bons homens tem feito aplicações erradas da Palavra de Deus. Tony Payne e Colin Marshall argumentam que “a comissão não é 3

“O  particípio de circunstância atendente é usado para comunicar uma ação que, em certo sentido é

coordenada com o verbo finito. Com respeito a isso não é dependente, por isso é traduzido como verbo. Todavia é semanticamente dependente, porque não pode existi r sem o verbo principal. [...] O particípio, de fato, ‘pega carona’ no modo do verbo principal. Esse uso é relativamente comum, mas extensivamente mal entendido” (WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe exegética do Novo Testamento. São Paulo, SP: Editora Batista Regular, 2009, p. 640).

Para uma longa seção a respeito do assunto, ver as páginas 640-645 da obra supracitada. 4  Isso acontece com frequência no livro de Mateus. Ver, por exemplo, Mt 2:8-13; 9:13; 11:4; 17:27 (CARSON, D. A. O Comentário de Mateus. São Paulo: Editora Vida Nova, 2011, p. 688). 5 Para um ótimo estudo em português que defende uma posição bem parecida, ver: BOSMA, Carl J. Missões e Sintaxe grega em Mateus 28.19, In Revista Fides Reformata XIV. nº 1, 2009, p. 9-34. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2012. 2

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fundamentalmente sobre a missão lá fora, em algum outro lugar ”6, quando é exatamente disto que o texto está falando. Meu nobre companheiro de labutas Rodrigo “Bibo” de Aquino, a quem muito admiro, também se equivoca quando escreve que “Se a ênfase [da Grande Comissão] é o proclamar [no caso de Mc 16:15], logo, não preciso me deslocar geograficamente, mas, onde estiver, posso viver minha identidade como igreja de Deus ”7. Claro que podemos viver nossas identidades como igreja do Deus vivo em todo e qualquer contexto, uma vez que nosso sabor como sal e nossa luminescência como luz do mundo não são propriedades existentes apenas no campo missionário, mas em todo crente. Porém, a aplicação de que não precisamos nos descolar geograficamente para cumprir a Grande Comissão tem como base uma análise comum, porém imprecisa do texto. “Ir” é uma ordem de Jesus, e desobedecê-la é desobedecer ao próprio Deus.

Sinceramente, se eu assumisse, discordando da boa exegese do texto, que Jesus deseja que façamos discípulos “enquanto vamos”, eu e muitos outros praticamente viveríamos isentos da

necessidade de pregar Cristo aos perdidos. Eu vou andando para o seminário, por um caminho meio perigoso (ladrões, não leiam isto) e encontro quase ninguém pelo caminho. Eu não vejo meus amigos ímpios com frequência  – uma vez por ano, no máximo  – devido a minha rotina de trabalho e estudo. Minha faculdade, por ser o seminário, só tem crentes. Trabalho em uma instituição religiosa que só aceita cristãos como funcionários, obviamente. Não tenho hobbies ao ar livre. Acaba que meu “indo” não inclui a presença de muitos descrentes a serem evangelizados.

Eu estaria justificado, então, em minha não-pregação do evangelho? Além disto, só quem tem amigos crentes seria salvo. Se todos os crentes estão pregando enquanto vão, o ímpio de poucos amigos que não sai muito de casa ou o perdido que vive em tamanha devassidão que nunca frequenta locais comuns ou mais familiares estariam sem alguém que os ministrasse o perdão dos pecados. Nenhum crente sairia de sua rotina comum para “ir” a

outros ambientes lhes propagar a mensagem da salvação. Nós não teríamos exemplos modernos do que Orígenes testemunha, no terceiro século: “Alguns deles abraçam a vida itinerante, visitando não só cidades, mas também vilarejos e casas no campo, a fim de fazer convertidos para Deus”8. A fé não ultrapassaria as barreiras do gueto eclesiástico. Eu entendo que o que meus irmãos estão tentando fazer ao tirar a ênfase do “Ide” é deixar

claro que missões podem ser feitas também em solo nacional, na própria cultura ou para o próprio povo. Por exemplo, o brasileiro Edison Queiroz define Missões como “levar a mensagem do evangelho atravessando uma barreira cultural ”9, o que é uma limitação absurda. Uma vez que a

6 PAYNE,

Tony; MARSHALL, Colin. The Trellis and the Vine.   Australia: Matthias Media, 2009, posição 126-131

(kindle) 7

 AQUINO, Rodrigo de. Rascunhos da Alma: reflexões sobre espiritualidade cristã. Joinville: Refidim, 2009. p. 67.

8

Apud TERRY, John Mark. “The History of Missions in the Early Church”, In: TERRY, John Mark et al (org.). Missiology : An Introduction to the Foundations, History, and Strategies of World Missions. Mashville: Broadman,

1998, p. 167. 9  QUEIROZ, Edison. Administrar Missões: tarefa da igreja local. São Paulo, SP: Vida Nova, 1998, p. 15. 3

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missão de Deus tem alcance local, regional e mundial, eu só posso louvar a ideia de que missão é missão mesmo que em locais geograficamente próximos, o que redefine o termo para além do deste velho vício de só ter como missionários aqueles que estão longe de suas culturas de origem. No entanto, esta percepção não pode ser exagerada ao ponto de esquecermo-nos da primazia das missões de vanguarda, que buscam alcançar povos e etnias que ainda não ouviram o evangelho. Além disso, o que eu percebo é que muitas pessoas acham que, a menos que a tradução “indo” ou “enquanto forem” seja a melhor tradução, todo crente só conseguirá ser fiel se vender fogão e

geladeira para morar em outras nações. A leitura que muitos fazem de uma tradução mais imperativa desta passagem seria que “quanto mais longe formos, mais obediente seremos” 10,

como ironiza Rubem Amorese, também com base em uma tradução errada. Segundo muitos, o evangelismo em áreas próximas não possuiria base bíblica para existir a menos que “indo” ou “enquanto forem” seja nossa escolha de tradução . A estes, três percepções podem ser úteis:

primeiro, nem todo crente vai ter que ir a outras nações. A Grande Comissão é uma atividade a ser cumprida por toda a igreja, não simplesmente por crentes individuais. Além disto, o conceito de etnia usado por Cristo em Mateus 28:19 não fala apenas de povos geograficamente longínquos, além de que a nossa missão inclui compromissos com aqueles já alcançados. Infelizmente, ainda não conseguimos superar o vício de tentar solucionar um problema com outro. Se a igreja prega muito, mas não se preocupa com o pobre, respondem com missão integral. Se o neopentecostalismo toma conta do Brasil, respondem com um cristianismo desespiritualizado. Se bandas góspeis deturpam o verdadeiro louvor, respondem proibindo o que não for hinos ou salmos. Será que nunca vamos aprender que a teologia do cabo-de-guerra nunca vai ser a resposta sã para nossos problemas? Acaba que vários irmãos, por estarem em contextos em que missões só são vistas como o ato de enviar gente para outros países, negligenciando a salvação daqueles que estão próximos, querem se apegar a algo que dê um aspecto mais geograficamente próximo à pregação do evangelho, e cometem estes tristes exageros. Vi alguém confessar, quando confrontado em sua má tradução de nosso texto: “ Vivo em um contexto onde

missão só é missão se for em locais longínquos, por isso fui tão para o outro lado ”. Precisamos ser mais centrados se quisermos solucionar os problemas de nossas igrejas.

10

 AMORESE, Rubem. Fábrica de Missionários: nem leigos, nem santos. Viçosa, MG: Ultimato, 2008, p. 32. 4

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