Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial
March 22, 2017 | Author: Caius Brandão | Category: N/A
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Trabalho de Conclusão de Disciplina
Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial
Por Caius Brandão Disciplina: Filosofia Contemporânea Continental Responsável: Prof. Fabio Ferreira de Almeida Faculdade de Filosofia Universidade Federal de Goiás - UFG
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Dezembro, 2009
3 Introdução O objetivo central deste trabalho é estabelecer uma relação entre a compreensão da fenomenologia em Edmund Husserl e Martin Heidegger, em sua maior parte, com base nos textos A crise da humanidade européia e a filosofia e Conferências de Paris, ambos de Husserl, e na Introdução de Ser e tempo, de Heidegger. Com esse objetivo, buscaremos explicitar aspectos centrais em cada um desses pensadores, além de demonstrar alguns elementos comuns e discrepantes entre eles. Conhecido como o fundador da fenomenologia, Husserl (1859 - 1938) nasceu de uma família judaica em Prossnitz, Moravia, do antigo Império Austríaco, e faleceu em Friburgo, Alemanha, onde lecionou até o ano de 1928. Na Universidade de Friburgo, Husserl foi professor de Martin Heidegger (1989 – 1976) – filósofo alemão reconhecido como um dos mais influentes pensadores do século XX. Heidegger chegou a ser considerado um protégé de Husserl, mas distanciou-se do seu mestre por razões políticas. Por julgá-las irrelevantes ao objetivo deste trabalho, optamos por não tratar aqui sobre tais questões. Interessa-nos, contudo, investigar alguns pontos convergentes e divergentes nas obras desses autores. Em primeiro lugar, vamos expor, brevemente, o projeto filosófico de Husserl. Veremos como que, motivado pela preocupação com a então situação das ciências, ele retoma o projeto cartesiano de fundamentar todo conhecimento possível através da filosofia e cria a Fenomenologia Transcendental, uma ciência eidética. Neste percurso e através de uma redução fenomenológica, Husserl chega ao Ego Transcendental para conhecer as leis e princípios universais do conhecimento. Em seguida, passaremos à análise da Introdução da obra Ser e tempo, de Heidegger. Considerada por seus leitores e comentadores como sendo sua obra-prima, Ser e tempo tem como objetivo central uma elaboração criteriosa da questão acerca do sentido do ser. O método heideggeriano, a Fenomenologia Existencial, não investiga a “quidade real”, mas antes, o modo de ser dos objetos da investigação filosófica. Antes de expor este método no Segundo Capítulo da Introdução da obra, Heidegger reintroduz a questão sobre o sentido do ser e identifica o ente que, por seu primado ônticoontológico, será o primeiro a ser interrogado (Dasein ou Ser-aí, em alemão) para uma correta interpretação sobre o sentido do ser em geral. Por fim, buscaremos traçar um paralelo entre os dois autores, apontando alguns elementos convergentes e divergentes entre a Fenomenologia Transcendental, de
4 Husserl, e a Fenomenologia Existencial, de Heidegger. Para limitar a abrangência de tal empreendimento, nos concentraremos na análise de três elementos que consideramos mais fundamentais, a saber: o objetivo, o método e o objeto de investigação em cada autor.
A Fenomenologia Transcendental Tendo como cerne de sua preocupação a crise do espírito europeu e a precária situação da ciência moderna, Husserl se propõe a re-fundar as ciências positivas a partir de seu projeto filosófico. Para a melhor compreensão deste projeto, vamos brevemente percorrer o caminho histórico/filosófico aberto por ele no texto intitulado A crise da humanidade européia e a filosofia. Em seguida, procuraremos demonstrar a relação do projeto husserliano com o objetivo central de Descartes em sua obra Meditações, a saber: através da filosofia como unidade universal das ciências, oferecer um solo seguro para validar o conhecimento das ciências em geral. Aproximadamente no século VII a.C., os gregos deram início ao que Husserl chama de “transformação da humanidade.”
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Ele se refere ao surgimento da filosofia
como ciência universal. As ciências particulares surgem, a partir daí, como ramos da filosofia. Neste momento, é bastante claro o papel desta filosofia como uma “ciência da totalidade do mundo, da unidade total de todo o existente.” 2 Desta forma, observamos como o saber filosófico uma vez serviu ao propósito de fundamentação de todo conhecimento das ciências particulares. Entretanto, a partir da renascença, assistimos ao agravamento de uma situação já iniciada no período pós-socrático, quando as ciências começaram a se desenvolver seguindo um caminho orientado mais pela práxis do que pela filosofia como ciência global que deveria fundamentar todas as ciências particulares. Com a perda deste fundamento, as ciências da natureza inauguram o “objetivismo” do método científico, promovendo um modo de pensar científico-natural. Vejamos então no que consiste este objetivismo das ciências tão duramente criticado por Husserl. Em suma, é a separação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Enquanto que no surgimento da filosofia como ciência universal o mundo era compreendido como um todo integrado 1 2
HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Ed. EDIPUCRS, Rio Grande do Sul: 1996. Idem.
5 que existe por si mesmo (phisis), na modernidade temos a crescente valorização do método científico que busca a certeza matemática para as verdades de uma natureza objetificada, medida e controlada. Isso cria as condições necessárias para o que Husserl chama de “verdadeira revolução técnica da natureza.” 3 Ao promover a separação entre o sujeito que conhece e a natureza, agora objetificada, as ciências naturais se abstraem completamente do elemento espiritual, ou seja, a subjetividade. Acontece que, para Husserl, as ciências positivas são incapazes de questionar seus próprios princípios. Mesmo que os resultados a que se propõem sejam alcançados com êxito, como poderiam as ciências validar seu conhecimento do mundo e da natureza? Fato é que os cientistas não precisam lançar mão dos fundamentos últimos de suas atividades para o êxito de seus trabalhos, mas, ainda assim, como poderiam eles provar os pressupostos sobre os quais baseiam a validade de suas “verdades”? Para Husserl, este trabalho é um empreendimento a ser realizado exclusivamente pela filosofia. Exatamente por isso, Husserl retoma as Meditações de Descartes para criar um ‘neocartesianismo’ e, assim, buscar o desenvolvimento de uma filosofia que se coloca no caminho seguro de uma ciência rigorosa e universal – a filosofia transcendental. Esta filosofia, chamada de Fenomenologia Transcendental, vem, então, ao socorro das ciências positivas, lançando luz sobre seus fundamentos. De acordo com Husserl, a objetificação do mundo por cento tipo de ciência que carece de fundamentação universal provocou o agravamento da situação de penúria em que se encontravam as ciências modernas. O projeto husserliano, através da Fenomenologia Transcendental, busca justamente remediar esta situação de falta de fundamentação racional rigorosa para as ciências positivas. A fenomenologia de Husserl é uma ciência eidética (relativa à essência), pura e transcendental. Husserl promove um retorno ao Ego Cogito e busca conhecer as leis e princípios universais onde repousa a validade de todo e qualquer conhecimento possível. Através de uma operação metodológica que coloca entre parênteses as verdades científicas, a natureza ou a própria existência do mundo natural conhecido através da experiência, bem como a existência dos outros Eus e, desta forma, de todas as realizações sociais e culturais, Husserl chega ao “Ego Transcendental”. Este método é o que ele chama de epoché, ou ainda, de redução fenomenológica do eu natural (psicofísico).
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Idem.
6 O Ego Transcendental é o princípio de unificação e individualização da consciência. Ele é apresentado por Husserl como sendo o único responsável por todo conhecimento possível. “Pretender conceber o universo do ser verdadeiro como algo fora do universo da consciência possível, do conhecimento possível, da evidência possível, e ambos relacionados entre si de um modo puramente extrínseco por um lei rígida, é um absurdo. Ambos são essencialmente solidários e o que é essencialmente solidário é também concretamente um só, um só na concreção absoluta: da subjetividade transcendental. – Ela é o universo do sentido possível, um fora-de é, então, precisamente o absurdo.” 4 Apesar da sua aparente similaridade com o Ego Cogito cartesiano, o Ego Transcendental além de ter sido alcançado através de um método diferente – a epoché, em contraste com a negação do mundo, ele tem uma natureza distinta. Para Husserl, a consciência transcendental possui um caráter absoluto, na medida em que ela existe por si e para si. Em outras palavras, ela necessita apenas dela própria para existir. Para Husserl, Descartes cometeu um erro ao considerar o Ego Cogito como sendo um axioma apodítico, de onde ele trás à tona os axiomas fundamentais aos conhecimentos das ciências que buscam explicar o mundo, tal como a matemática. Ao contrário da perseidade do Ego Transcendental, o Ego Cogito necessita de uma causa exterior. Destarte, torna-se necessário ao projeto cartesiano a dedução da existência e veracidade de Deus e, a partir dele, a garantia da existência da natureza objetiva. Husserl entende que, desta maneira, Descartes estabeleceu a dualidade das substâncias finitas (res extensa) e os campos distintos de atuação da metafísica e das ciências positivas. Por outro lado, Husserl reconhece que Descartes fez uma importante descoberta com o Ego Cogito, mas não apreendeu a sua mais completa e verdadeira significação possível, a saber, a da subjetividade transcendental. O que interessa a Husserl não é a prova de que o mundo concreto existe, mas, antes, reconhecer como o próprio mundo e todo conhecimento possível apenas é possível no Eu Transcendental, pois é ele que constitui e dá sentido ao mundo.
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HUSSERL, E. Conferência de Paris. Ed. Edições 70, Lisboa.
7 A epoché fenomenológica procura descrever as vivências como elas aparecem à consciência que constitui seus objetos intencionais. Aqui, vemos como o conceito de intencionalidade é axial na fenomenologia de Husserl. Intencionalidade significa que a consciência está sempre consciente de algo, ou ainda, direcionada a algo. E o que Husserl busca é a consciência absoluta, revelada apenas pela redução fenomenológica. Neste sentido, a fenomenologia husserliana pode ser interpretada como um tipo de idealismo transcendental. Isso significa que todo sentido e todos os seres imagináveis pertencem, antes de mais nada, à subjetividade transcendental, ou seja, se constituem no âmago do Ego Transcendental. Exatamente por isto, para Husserl, a teoria do conhecimento que se pretende realimente válida deve ser fenomenológica e transcendental. Conclui-se, desta forma, que a Fenomenologia Transcendental tem em seu propósito geral um caráter epistemológico, a saber, a fundamentação de todo e qualquer conhecimento possível do mundo como ele aparece em nossa própria experiência, determinando o que é mundo para nós.
Fenomenologia Existencial Heidegger inicia a Introdução de Ser e tempo com a discussão a acerca do esquecimento do ser pela filosofia ocidental. O autor postula que, a partir de Platão, a filosofia abandonou o sentido original atribuído ao ser pelos pré-socráticos – desocultação do princípio (arché) de todas as coisas que possibilita a compreensão do ser em geral. Mas a questão do ser, objeto de estudo de Platão e Aristóteles, foi esquecida e trivializada pela metafísica tradicional. Com o esforço dos gregos para se compreender o ser, deu-se início a um dogma: a superficialidade da questão sobre o sentido do ser e a sua falta de definição. Desta forma, preconceitos com raízes na ontologia antiga passaram a fundamentar o não-questionamento do ser. Heidegger explicita tais preconceitos (a universalidade do ser, que revela a sua obscuridade; a indefinibilidade, que corrobora a necessidade de lhe atribuir sentido; e a evidência em si mesmo, que demonstra o enigma da questão do ser) na esperança de superá-los e, assim, trazer novamente à tona o questionamento sobre o sentido do ser. Com base na preponderância da linguagem, ao invés de buscar uma definição para o que é o ser, Heidegger postula a necessidade de se interpretar o sentido do ser. Quando indagamos o
8 que é ser, compreendemos esse “é” sem estabelecermos a ele uma definição conceitual: essa é uma compreensão vaga e mediana acerca do ser. “(...) é a partir da claridade do conceito e dos modos de compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão do ser obscura e ainda não esclarecida e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido do ser.”5 Em seguida, Heidegger coloca de forma objetiva a estrutura mais adequada para o questionamento sobre o sentido do ser. Nesta estrutura, temos três elementos essenciais, a saber: o questionado é o próprio ser; o interrogado é o ente; e o perguntado é o sentido do ser. Ora, se todo ser é ser de um ente, então, que ente é este que pode oferecer uma compreensão sobre o sentido do ser em geral? Heidegger entende que o primeiro a ser interrogado deve ser aquele ente capaz de linguagem, pois somente ele poderia se questionar sobre o sentido do ser. O questionamento em questão envolve atitudes também complexas, tais como visualizar, compreender, escolher e aceder. Então, quem é este ente exemplar que, por ser dotado de linguagem, tem em seu modo de ser a capacidade de se questionar sobre o sentido do seu próprio ser? Nas palavras de Heidegger, “Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença.” 6 Logo, aquele que pode oferecer acesso ao sentido do ser é o ente denominado Dasein. Heidegger analisa o aspecto ontológico e ôntico da questão do ser, com o intuito de evidenciar a primazia deste questionamento. Podemos justificar o seu primado ontológico com base nos fatos de que nos movemos sempre numa compreensão mediana (ou pré-ontológica) do ser e de que a questão do ser permaneceu esquecida pela metafísica tradicional. Para ele, até mesmo as ciências se movem numa compreensão mediana do ser, na medida em que quer conhecer o ente, mas sem se preocupar com o sentido do ser. O primado ontológico é identificado com o objetivocientífico. Isto porque a ontologia é aquele tipo de investigação que se preocupa com o real. A ciência, por sua vez, procura desvendar os fundamentos do real, ou seja, ao 5
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HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005.
Dasein foi traduzido por Marcia Sá Cavalcante Schuback como “pre-sença”. Neste trabalho, todavia, utilizaremos o termo em alemão.
9 analisar os entes reais, ela busca estabelecer a essência da realidade. O primado ôntico, por sua vez, é estabelecido ao se reconhecer a ciência como uma atitude do homem. Esta atitude é o modo de lidar ou de se comportar com o real, com a natureza. É justamente isso que possibilita, ou faz surgir o ‘mundo’. Ademais, a questão do ser apenas pode ser colocada a partir e com vistas aos entes. Assim se justifica o primado ôntico da questão do ser. Temos, então, que o primado ontológico se refere ao ser, enquanto que o primado ôntico, ao ente. Se, mais uma vez, o ser é sempre o ser de um ente, então o primado ontológico do Dasein se dá em virtude de ter em seu próprio ser a possibilidade de se perguntar sobre a compreensão do ser, ao passo que o primado ôntico está relacionado ao fato de que Dasein é ele próprio um ente. Portanto, outra confirmação do privilégio ôntico-ontológico da questão do ser se dá em virtude da primazia ôntico-ontológica do Dasein. Heidegger afirma que as ciências possuem o modo de ser do Dasein, mas este ente privilegiado possui outros modos de ser diferentes da investigação científica e que este não é o único possível. O ser do Dasein, sendo, coloca em jogo o seu próprio ser. Para Heiddeger, é sendo que Dasein se compreende em seu ser. Uma de suas características essenciais é que, sendo, ele se abre e se manifesta no mundo por meio de seu próprio ser. Portanto, o que pode dar sentido ao ser do homem é a sua própria existência, que se dá no modo de compreensão do ser. Heidegger designa Dasein enquanto “pura expressão de ser”. Em suas próprias palavras: “Como a determinação essencial desse ente não pode ser efetuada mediante a indicação de um conteúdo quidativo, já que sua essência reside, ao contrário, no fato de dever sempre assumir o próprio ser como seu, escolheu-se o termo pre-sença para designálo enquanto pura expressão de ser.” 7 Heidegger nos chama a atenção para a mundaneidade do Dasein, ou seja, faz parte da natureza deste ente existir no mundo. Logo, a interpretação que Dasein faz acerca do seu próprio ser inclui a compreensão de mundo, bem como a compreensão do ser dos entes neste mundo.
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HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005.
10 “(...) de acordo com um modo de ser que lhe é constitutivo, a presença tem a tendência de compreender seu próprio ser a partir daquele ente com quem ele se relaciona e se comporta de modo essencial, primeira e continuamente, a saber, a partir do “mundo”. 8 Uma vez estabelecidos os primados ôntico e ontológico da questão do ser, bem como, identificado o ente a ser o primeiro interrogado nesse questionamento (Dasein), Heidegger dá continuidade à investigação analítica existencial (ou ontológica) deste ente privilegiado. Aqui, o objetivo é descobrir a forma mais adequada de aproximação e interpretação dos modos de ser do Dasein para, desta forma, descortinar o horizonte que permitirá uma interpretação do sentido do ser em geral. O papel de uma investigação analítica existencial é a de revelar a estrutura categorial do Dasein, ou seja, a sua constituição específica de ser (tal como a mundaneidade). As modalidades de acesso e interpretação deste ente devem permitir que ele se mostre em si e por si mesmo em sua cotidianidade mediana, ou seja, “como ela é antes de tudo e na maioria das vezes.”
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Todavia, por mais que tal abordagem explicite o ser do Dasein, ela ainda não permite lhe atribuir um sentido. Como observamos anteriormente acerca da constituição ôntica do Dasein, sendo no mundo, cotidianamente, ele se move desde sempre numa compreensão vaga e mediana do ser (pré-ontológica). A partir deste entendimento, a temporalidade será interpretada como o sentido do Dasein. Isso significa que o tempo é o referencial e o fio condutor mais seguro para o questionamento e a interpretação do sentido do ser. Desta forma, o alvo principal de toda ontologia se funda no fenômeno do tempo. “Se o ser deve ser apreendido a partir do tempo e os diversos modos e derivados do ser só são de fato compreensíveis em suas modificações e derivações na perspectiva do tempo e com referência a ele, o que então se mostra é o próprio ser, e não apenas o ente, enquanto sendo e estando “no tempo”, em seu caráter “temporal”.” 10
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Idem. Idem. 10 Idem. 9
11 É importante ressaltar o nexo entre os elementos da estrutura categorial do Dasein: mundo – cotidianidade – tempo. A ligação entre tais elementos aponta para a historicidade enquanto um modo de ser constitutivo do Dasein. “Em seu ser de fato, a pre-sença é sempre como e “o que” ela já foi.” Isto significa, então, que Dasein é antes de mais nada um ente histórico. Em suma, é o tempo que libera o horizonte para uma investigação ontológica concreta. Em Ser e tempo, Heidegger explicita o seu método fenomenológico juntamente com o delineamento do seu objeto temático, a saber: o ser dos entes e o sentido do ser em geral. Para ele, uma investigação que se orienta pela questão acerca do sentido do ser é tarefa da filosofia e o modo de tratar este questionamento é o fenomenológico. Ao contrário da ontologia tradicional que investiga a “quidade real” dos entes, Heidegger está preocupado com o modo de ser e como são os objetos da investigação filosófica. Em suma, ao colocar a questão acerca do sentido do ser, Heidegger inaugura uma ontologia concreta que servirá de fundamento para todas as ontologias. A partir deste breve panorama sobre as fenomenologias de Husserl e Heidegger, passaremos, a seguir, à tentativa de estabelecer paralelos com pontos confluentes e divergentes entre esses dois pensadores, tomando como foco o objetivo, o método e o objeto de investigação em cada autor.
Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial É sob o ponto de vista da própria fenomenologia que identificamos a mais importante aproximação entre Husserl, considerado o seu fundador, e Heidegger, a quem é atribuído uma radical transformação da fenomenologia husserliana. Com o intuito de fundamentar a fenomenologia, ambos os autores retomam a forma de compreender o mundo dos filósofos pré-socráticos – desocultação do princípio (arché) de todas as coisas que possibilita a compreensão do ser em geral. Com essa munição, eles justificam uma crítica radical à tradição filosófica – de Platão a Descartes, no caso de Husserl, e de Platão a Nietzsche, no caso de Heidegger (Heidegger acreditava que Nietzsche foi o último dos metafísicos). O cerne das críticas que Husserl e Heidegger fazem à tradição é a separação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido (em termos husserlianos); e a falta de distinção entre ser e ente, que resulta na entificação do ser (em termos heideggerianos).
12 No entanto, a convergência entre os pontos de partida de cada autor não possibilitou que o caminho a ser percorrido por eles fosse o mesmo. De fato, cada um seguiu objetivos distintos na formulação de suas fenomenologias. De certa forma, podemos caracterizar o projeto husserliano como epistemológico, na medida em que ele busca fundamentar todo e qualquer conhecimento possível no Ego Transcendental. Numa visão mais abrangente, todavia, o que Husserl buscava era remediar a crise das ciências modernas que careciam de fundamentação filosófica. A busca por um conhecimento seguro sobre o qual todos os demais conhecimentos podem ser erguidos também é um projeto cartesiano. Husserl, entretanto, apesar de ter reconhecido a influência de Descartes em sua obra, distancia-se do dualismo cartesiano (res cogito versus res extensa) para criticar com veemência o objetivismo das ciências que suprime o elemento espiritual, ou seja, a subjetividade transcendental. Em suma, a fenomenologia de Husserl não pretende ser uma ciência exata, mas sim, uma ciência rigorosa e eidética. Por outro lado, o projeto heideggeriano não pode ser de forma alguma caracterizado como epistemológico. Isto porque o objetivo da Fenomenologia Existencial é o de fundamentar todas as ontologias, a partir de uma ontologia concreta. Com este fim, Heidegger dedica sua obra-prima, Ser e Tempo, ao questionamento sobre o sentido do ser. Heidegger reconhece que as ciências se movem numa compreensão mediana do ser, visto que ao investigarem os entes, elas não se perguntam sobre o sentido do ser. Mas isto, Heidegger nos adverte, é o papel da filosofia. Um conceito de extrema importância, tanto em Husserl, quanto em Heidegger, é a noção de ‘mundo’. Diferente da concepção cientificista de objetificação do mundo natural e do próprio espírito humano, ambos os autores consideram o mundo como um elemento espiritual. Neste sentido, apenas o homem constitui mundo. Então, é este mundo que existe apenas a partir dos seres humanos que desempenha uma função axial nos métodos de investigação husserliano e heideggeriano. Por exemplo, a operação metodológica utilizada por Husserl para chegar ao Ego Transcendental é a epoché, que consiste justamente em colocar o mundo entre parênteses (isso inclui as verdades científicas, a natureza ou a própria existência do mundo natural conhecido através da experiência, bem como a existência dos outros Eus e, desta forma, de todos os elementos sociais e culturais). Heidegger, por sua vez, elabora um método fenomenológico, que ele chama de analítica existencial, o qual consiste em analisar o ser humano (Dasein) enquanto um ente ‘cravado’ no mundo. A mundaneidade é
13 elemento constitutivo do Dasein, ou seja, faz parte da natureza deste ente existir no mundo. O papel de uma investigação analítica existencial é o de revelar a estrutura categorial do Dasein, ou seja, a sua constituição específica de ser. Uma diferença bastante significativa entre a Fenomenologia Transcendental e a Fenomenologia reside nos seus objetos de investigação. Enquanto Husserl edifica a sua fenomenologia sobre o Ego Transcendental, Heidegger desenvolve a sua ontologia concreta interrogando o ente a quem ele chama de Dasein. Tanto o Ego Transcendental, quanto o Dasein são os responsáveis pela constituição de mundo. Aqui vale ressaltar que em ambos os casos, o mundo é constituído, na verdade, pela interação entre os egos transcendentais (intersubjetividade), por um lado, e pela interação entre os daseins (cultura), por outro lado. Ainda é importante ressaltar a distinta natureza destes dois objetos de investigação. A natureza do Ego Transcendental é a intencionalidade, que subsiste aos diferentes níveis de redução fenomenológica. Com isso temos o seu caráter de perseidade, ou seja, o Ego Transcendental existe independentemente da veracidade do mundo exterior à consciência. O mesmo já não é verdade para o Dasein. Vimos acima que este ente está cravado no mundo e que sua mundaneidade é um elemento constitutivo do seu ser. Se pudermos atribuir uma natureza ao Dasein, ela teria que ser a ‘existência’, compreendida nos termos estritamente heideggerianos. Neste sentido, apenas o ser humano (Dasein) tem existência e, como já vimos, é constitutivamente uma existência no mundo. O mundo também é responsável pela constituição dos diversos modos de ser do Dasein, na medida em que é a partir dele (do mundo) que o Dasein compreende o seu próprio ser. Heidegger também se distancia do mestre Husserl ao não conceber o ser humano meramente como sujeito (ego) que se relaciona com objetos (a natureza, outros egos, etc.). Hubert Dreyfus, Professor de Fenomenologia da Universidade de Berkeley, fez o seguinte comentário num programa de entrevistas: “The traditional philosophy regards man as a subject relating to objects, a tradition from which Husserl did not seem to depart. Heidegger, on the other hand, reacted against it. That Cartesian tradition became so clear, and in a certain way so persuasive in Husserl, that Heidegger was driven to see whether that was the true description of the phenomena. Because Husserl kept saying that we
14 must go to the things themselves, and let them show themselves as they are in themselves. And when Heidegger actually looked at the way that human beings are related to the world, he found that they are not subjects related to objects at all. He found that awareness, consciousness, did not play any role.” 11 Por exemplo, na realidade, nem sempre desempenhamos tarefas complexas em plena consciência do que estamos fazendo, assim como muitas vezes um motorista experiente dirige desatento ao fato de estar dirigindo. De fato, este motorista poderia perfeitamente estar engajado numa discussão filosófica enquanto dirige. Ou seja, muitas vezes, reagimos ao mundo muito mais do que agimos nele com plena consciência das nossas ações, atitudes, sentimentos, etc.
Conclusão Mesmo que partindo da mesma compreensão pré-socrática a cerca do mundo (physis), vimos como Husserl e Heidegger se lançam em diferentes direções ao fundarem, respectivamente, a Fenomenologia Transcendental e a Fenomenologia Existencial. A exposição que fizemos acima evidenciou algumas similaridades, mas, de forma mais significativa, talvez tenha justamente corroborado as diferenças entre eles, tomando como exemplo o objetivo, o método e o objeto de investigação em cada autor. Naturalmente, não era nossa intenção esgotar o tema desenvolvido neste trabalho. Muito pelo contrário, esta breve exposição abre um enorme e intrigante campo de pesquisa acadêmica, ao qual esperamos dar prosseguimento num futuro próximo. Referências Bibliográficas Livro: HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005. Textos: 11
DREYFUS, H. Husserl, Heidegger and Modern Existentialism, disponível no link: http://www.youtube.com/watch?v=aaGk6S1qhz0
15 HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Ed. EDIPUCRS, Rio Grande do Sul: 1996. ____________ Conferência de Paris. Ed. Edições 70, Lisboa. Enciclopédia Online: Phenomenology. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Ed. Stanford University, Stanford: 2003. Disponível no link: http://plato.stanford.edu/entries/phenomenology/ Entrevista em Áudio-Visual: DREYFUS, H. Husserl, Heidegger and Modern Existentialism, disponível no link: http://www.youtube.com/watch?v=aaGk6S1qhz0
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