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T í t u l o : História Mística de Portugal A u t o r i a : Pedro Silva E d i t o r : Luís Corte Real Esta edição © 2007 Edições Saída de Emergência R e v i s ã o : Idalina Morgado C o m p o s i ç ã o : Saída de Emergência, em caracteres Minion, corpo 12 D e s i g n d a c a p a e i n t e r i o r e s : Saída de Emergência I m p r e s s ã o e a c a b a m e n t o : Guide - Artes Gráficas, Lda. 1 ª e d i ç ã o : Junho, 2007 i s b n : 978-972-8839-98-7 D e p ó s i t o L e g a l : ??????/07 Edições Saída de Emergência Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dtº, 2775-274 Parede, Portugal T e l e F a x : 214 583 770 w w w. s a i d a d e e m e r g e n c i a . c o m
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Agradecimentos Gostaríamos de mostrar total gratidão, em primeira instância, ao nosso editor, pela confiança demonstrada nas nossas capacidades e pelo apoio incessante, desde o primeiro momento, para a concretização do presente trabalho. De um modo geral a todos os ensaístas que se vêm dedicando ao tema da História de Portugal, sem os quais teria sido impossível apreendermos parte das noções aqui expressas. Aos leitores que se interessam pelo nosso trabalho, principalmente aos que o fazem desde o primeiro momento.
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Índice
Introdução
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1. Início Mágico
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2. Divindades e Cultos Pré-Cristãos
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3. Influências Externas
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4. Nascimento da Nação Portuguesa
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5. Heróis Portugueses
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6. Símbolos Nacionais
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7. Monarcas e as suas Histórias Secretas
115
8. Locais Místicos
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9. Figuras da Cultura
145
10. Lendas de Portugal
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11. Portugal, um País Católico
165
12. Portugal: Passado, Presente e Futuro
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Bibliografia
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Notas do Autor
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Introdução
Ao fim de uma década de intenso labor literário, entendemos que havia chegado o momento de nos abalançarmos para um projecto mais ambicioso. Na verdade, a história de um ensaísta não ficará completa enquanto não redigir um tratado sobre a sua própria visão do país que o viu nascer. Porém, tal tarefa é, ao contrário do que possa pensar-se, pelo menos no nosso ponto de vista, deveras complexa. Em primeiro lugar, porque consubstancia remexer nas nossas próprias raízes, indo beber da fonte antiga onde navegaram os antepassados que tanto prezamos. Numa segunda via, ambicionarmos escrever sobre algo que, de forma tão empolgante, tivemos oportunidade de ler, pela pena de alguns dos maiores historiadores portugueses, é motivo de receio para qualquer jovem ensaísta. Em terceiro, e último, aspecto, a grande verdade é que, tendo sempre primado por uma tríade de objectivos prefixados para cada obra, isto é, rigor, isenção e objectividade, essa preocupação surge redobrada quando o tema a tratar é Portugal, o país que nos viu nascer e que desperta na nossa pessoa um sem-número de emoções agradáveis e um orgulho infindável. Efectivamente, sempre fomos apaixonados pela História, apesar de termos trilhado, academicamente, caminhos diversos. De paixão passou a obsessão e, felizmente, desde o início do novo milénio tornou-se profissão. Durante anos, mais concretamente entre finais da década de oitenta e finais da seguinte, procurámos angariar a mais vasta bagagem cultural que foi possível. O nosso principal interesse baseava-se na História de Portugal. Autores que aprendemos a respeitar, tais como Alexandre Herculano, José Veríssimo Serrão, José Hermano Saraiva ou José Mattoso faziam parte do nosso dia-a-dia. Apenas com os verdadeiros mestres pode um discípulo aprender com qualidade. Tem sido essa a nossa máxima de vida. Posteriormente, dedicámos a nossa atenção, de forma simultânea, com a História de outros países, nomeadamente os anglófonos. Comportamentos sociais como o fenómeno da escravatura, da actividade de sociedades secretas ou ordens militares e religiosas foram motivo de análise e comparação entre diversos países e respectivas culturas. 11
Entendemos também que deveríamos conhecer mais sobre outros grandes impérios medievais, no caso a Espanha, a França ou a Holanda. Sem sombra de dúvida, todos eles tinham muito que contar, pejados de personalidades extraordinárias e histórias fantásticas. Mas, devemos confessar, quanto mais conhecíamos o que outros haviam feito, mais nos sentíamos interessados pelo que os nossos antepassados tinham legado à posteridade. Passámos, então, a viajar dentro de Portugal, sempre com finalidades históricas. Deste modo conhecemos grande parte dos monumentos pré e proto-históricos portugueses, assim como castelos, fortalezas e demais lugares de cariz mais religioso, sobretudo igrejas, conventos, mosteiros e algumas sinagogas. Segundo o trajecto previamente traçado a partir dos magníficos trabalhos de investigadores como José Leite de Vasconcelos, Francisco Martins Sarmento, Adriano Vasco Rodrigues ou Vieira de Guimarães, calcorreámos o país, sabendo que cada pedra contava uma pequena história. Custava, também, por vezes, apercebermo-nos do desprezo com que monumentos de transcendental importância eram tratados. Daí que tenhamos procurado incentivar, em todos os nossos trabalhos, o gosto dos leitores pelo património arquitectónico, mediante, naturalmente, as nossas humildes capacidades. Em cada pequeno castro (antiga povoação fortificada) ou imponente fortaleza que visualizámos, por mais que tivessem sido maltratados pelas agruras do tempo, tomámos respectivas notas, percebendo que cada um dos quais significava um pedaço do passado de Portugal. Centenas, se não milhares, de horas foram empregues, em viagens de norte a sul do país, analisando pedra por pedra, registando fotograficamente o que ainda resta de tempos idos. No final de cada jornada, retirávamos as nossas próprias conclusões. Esses factos têm dado origem a vários trabalhos de cariz ensaístico, felizmente bem recebidos pelos leitores de ambos os lados do Oceano Atlântico. Mas havia algo que constantemente pululava na nossa mente. Um objectivo fixo e que, em crescendo, nos ia impelindo a tomar a atitude de escrever uma História de Portugal. Uma vez mais, e depois de conhecer os factos tradicionalmente aceites, sentimos que o momento era de analisar autores que, durante décadas, se haviam dedicado ao chamado outro lado da História, isto é, à sua vertente mística, esotérica ou misteriosa. Figuras de proa da nossa cultura, tais como António Quadros, Lima 12
de Freitas, Teixeira de Pascoaes, André Jean Paraschi, Dalila Pereira da Costa, António de Macedo ou António Telmo representam uma importante fase ensaística nacional que tem sido extraordinariamente bem seguida por investigadores que tanto prezamos, entre eles destacando nomes como os de Eduardo Amarante, Vítor Manuel Adrião, Rainer Dahenhardt, José Medeiros, Victor Mendanha, Manuel J. Gandra ou S. Franclim. Todos eles primaram pelo rigor na sua análise. E todos têm vindo a acrescentar algo mais à cultura portuguesa. Quando o leitor vislumbra uma obra na prateleira de uma livraria, porventura desconhecerá as dificuldades subjacentes à sua criação. Redigir um texto no campo do ensaio nada tem que ver com o simples debitar de palavras. Envolve imensa dedicação, total concentração e a dádiva interior, no que à intelectualidade diz respeito. É assim que, nas palavras do grande poeta português Fernando Pessoa, “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce…” Foi desse modo que, após anos de análise e preparação cultural, sentimos que o momento havia chegado. Finalmente decidimos escrever uma «História Mística de Portugal». O momento, segundo cremos, não poderia ser mais oportuno. Durante séculos, o sentimento da dita portugalidade baseava-se, sobretudo, como oposição à invasão militar da nação. Ou seja, não havia sido fácil a independência da coroa vizinha de Leão e Castela e os primeiros portugueses não queriam, naturalmente, perder algo que tanto lhes havia custado a alcançar. Naturalmente, com os seus altos e baixos, o país foi vivendo sempre ao sabor dessa sensação de independência, quer em relação a elementos da mesma religião quer através da reconquista, pela qual os muçulmanos foram forçados a retirar da Península Ibérica. A época áurea dos Descobrimentos encheu os habitantes deste pequeno rectângulo à beira-mar plantado de grande orgulho. Mas o declínio do mesmo levou o país a uma depressão que, de lá para cá, tem oscilado entre a euforia desregrada e o pessimismo latente. O período conhecido historicamente como de ditadura em nada ajudou a que os portugueses pudessem, finalmente, levantar a moral, olhando de igual para igual as demais nações, como acontecera em tempos anteriores. Grande parte do século XX foi passado sob a égide de um regime opressivo, demasiado concentrado nas ideias de uma só pessoa, com a sua visão muito própria de um país fechado ao exterior e socialmente contido. Agitar a bandeira portuguesa, por exemplo, deixou de ser um acto natural, passando a ser forçado. 13
Como bem sabemos, tudo o que seja obrigatório tem tendência para se tornar pouco atraente. A chegada da revolução de 1974 trouxe a tão ambicionada liberdade. O povo ansiava por se libertar das amarras ditatoriais. Tal foi conseguido de uma maneira que poderemos considerar tipicamente portuguesa – o mais brando possível, atendendo às circunstâncias, evitando abusos que, infelizmente, foram comuns em outros locais. Mas, de certo modo, a opressão fora tanta que, por um lado, houve, posteriormente, o mau aproveitamento da liberdade, incorrendo alguns em excessos desnecessários e, por outro, a grande maioria da população vivia ainda sob o medo, desta feita meramente psicológico, mas, ainda assim, forte. Na verdade, os símbolos nacionais pareciam demasiado interligados com o período da ditadura. Ter orgulho neles parecia agora o mesmo que compactuar com um passado de repressão. Deste modo, o medo permanecia. Por isso mesmo, este é o momento ideal para uma obra desta índole. Pela primeira vez desde o momento da libertação social, os portugueses voltaram a perder o medo de agitar as suas bandeiras, de ter orgulho nas cinco quinas e o patriotismo verdadeiro, que nada tem que ver com fascismo ou demais regimes autoritários, parece querer irromper do seio de uma nação tantos anos oprimida. Conhecer o nosso próprio passado, aprender sobre os magníficos feitos de um vasto leque de homens e mulheres que, ao longo dos tempos, atingiram cometimentos à partida considerados impossíveis parece-nos a melhor forma de acreditarmos que o futuro é possível e que, naturalmente, dependemos, única e exclusivamente, de nós mesmos e das capacidades com as quais nascemos. Para além disso, numa altura em que o europeísmo vem abraçando todos os países do continente em que nos inserimos, é altura de percebermos a importância das boas relações com todos os que nos rodeiam, percebendo que a visão solitária do português de costas viradas para o mundo, como aconteceu durante grande parte do século passado, por via de uma ditadura longa, está hoje em dia, felizmente, ultrapassada. Em termos culturais e linguísticos, Brasil, Angola, Moçambique ou Timor são espaços fantásticos de percepção do que fomos e das sementes que deitámos na Humanidade. A língua portuguesa é ponto de união entre milhões de pessoas pelo mundo fora. No que ao campo social, político e económico diz respeito, a abertura de fronteiras demonstra que a Europa, e os demais países que dela 14
fazem parte, nos acolhem e abraçam fraternalmente sabendo que ambas as partes só têm a ganhar com o óptimo relacionamento e a troca de conhecimento. Portanto, a hora é chegada para conhecermos, ainda melhor, a nossa própria História e que possamos orgulhar-nos dela, da mesma forma que os nossos vizinhos conhecem e respeitam os seus antepassados. Assim, faz todo o sentido que, ao contrário das múltiplas obras que abordam a visão tradicional, ou académica, da História de Portugal, exista também uma nova visão do passado do país. Uma nova abordagem, sem dúvida, mas sem deixar de obedecer aos requisitos típicos de um texto ensaístico. Por mais estranho que possa parecer ao entendimento, o facto é que analisar os aspectos místicos, misteriosos ou esotéricos de uma nação não equivale, de forma automática, a deixar de ter um texto com rigor, objectividade e, naturalmente, com base em documentos históricos e na análise de factos concretos, do mesmo modo que um cientista tira as suas conclusões com dados que lhe são fornecidos. Obviamente que o leitor português, independentemente do grau de conhecimento que possua do passado de Portugal, não deixará de sentir que nada acontece por acaso. Há uma linha de acontecimentos que se interligam e que, nas páginas seguintes, lhe darão uma aprendizagem diferente daquela que é tradicionalmente ensinada nos bancos da escola. O que está para lá da História tradicional é exactamente o ponto de partida e de chegada para o presente trabalho. Também por isso, e pela dificuldade própria de discorrer sobre factos que, não parcas vezes, apenas se conseguem perceber através da leitura nas chamadas entrelinhas, este foi um livro que demorou imensos anos a germinar, como frisámos anteriormente. A obra que agora publicamos, intitulada propositadamente «História Mística de Portugal», pretende ser, simultaneamente, motivo de aprendizagem cultural, orgulho histórico e confiança em como todos nós, habitantes deste espaço que os Lusitanos tão fervorosamente defenderam, podemos e devemos acreditar que o futuro nos será risonho. E, tal como os primeiros navegadores portugueses, tiveram de enfrentar tanto as vicissitudes provocadas por embarcações que os abalroaram e assaltaram, como as intempéries da natureza, hoje em dia temos a felicidade de olhar para o nosso passado e perceber que é possível, com força de vontade, dobrar o Cabo das Tormentas, tornando-o no Cabo da Boa Esperança. Como escreveu Fernando Pessoa… 15
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a Terra fosse toda uma Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente Clareou, correndo, até ao fim do mundo E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou, criou-te português Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! … Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Pedro Silva
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1. Início Mágico
Apesar do descuido com que o passado pré-histórico de Portugal foi tratado durante demasiado tempo, felizmente, as décadas mais recentes têm-nos proporcionado a grata felicidade de verificar que tal espaço temporal deixou de merecer apenas breve referência, muitas vezes como nota de rodapé, para passar a ser elemento preponderante nos primeiros capítulos das obras de cariz histórico. Efectivamente, é mais que evidente a noção de que o conhecimento do passado prefigura o vislumbre do futuro. Temos defendido, ao longo dos nossos trabalhos, a ideia de rotatividade dos ciclos históricos de Portugal. Grosso modo, o ciclo Atlante (que mais correctamente se defenderia por megalítico), de grande expressividade ao nível místico, terá sido sucedido pelo ciclo Templário (o qual veio a incluir os Descobrimentos, provavelmente o mais áureo de todos os momentos da história nacional) e tem-se sonhado com o ciclo Sebastiânico (dito do Quinto Império, ou período de relevo, no qual Portugal seria novamente uma nação próspera e na liderança mundial). Como se pode observar, em todos há pontos que se cruzam, mormente o relevo do místico e esotérico. Se o tempo pudesse ser divido deste modo, poderíamos acreditar, como muitos o fazem, que Portugal é, desde sempre, uma nação escolhida. Atente-se que o termo em questão, que aqui utilizamos, foi tudo menos inserido de forma despropositada. Jesus Cristo, o Messias, era mais conhecido por o Escolhido, pelo facto de ter sido ungido e de ter nascido sob o signo astrológico que o colocava como rei dos reis. Ora, a grande labuta intelectual de grande parte dos investigadores dos mistérios, por vezes insondáveis, deste nosso Portugal, é encontrar uma explicação racional para a tese defendida de esta nação, aparentemente encolhida, ou empurrada para o canto do enorme continente europeu, ter sido criada sob uma égide de transcendental importância. Vejamos: de modo algum a nossa dimensão territorial ou a própria localização espacial foram motivos adversos no passado. Um país pequeno como o nosso permitiu que nos tornássemos uma das nações mais antigas, no que à definição de fronteiras e independência política e social diz respeito. Para além disso, somos, simultaneamente, o espaço que fecha a porta da Europa mas que, por outro lado, a abre para o dito Novo Mundo. Em último 17
lugar, olhemos para sul e perceberemos que praticamente tocamos África, esse grande continente que, desde sempre, nos cativou. Ora, pensando desta maneira, a importância estratégica de Portugal passa a ser fenomenal. Foi assim que personalidades históricas como D. Afonso Henriques, São Bernardo de Claraval ou o Infante D. Henrique encararam este espaço. Sem derrotismos, sem menosprezos auto-inflingidos ou a tradicional sensação de pequenez. Acreditamos piamente que encararmos os factos de forma racional, e com elevada dose de optimismo, far-nos-ia sentir melhor. Independentemente desse facto, a grande verdade é que os ciclos atrás referidos, no caso uma tríade, com o último ainda por cumprir, possibilita-nos, pelo menos, sonhar com a ideia de Portugal ser uma nação especial. Para nós, portugueses, sê-lo-á certamente. Mas será que estas teorias ultrapassam os limites das nossas fronteiras? Ao contrário de outros povos, esta crença de um país escolhido para representar algo de diferente não tem absolutamente nada que ver com as tradicionais visões de superioridade que tantos povos e culturas defenderam, seja ao nível físico (como os mitos da raça ariana e superior que dominaria o mundo, envolvidos em pangermanismos criados em torno das lendas nórdicas) ou mesmo militar (de onde podemos destacar o Império Romano e a figura dos imperadores-deuses, de onde distinguimos Júlio César que, ainda em vida, era venerado como divindade do panteão romano ou os exemplos de Átila, o Huno ou Gengis Khan e os seus poderosos guerreiros mongóis). Basicamente, Portugal seria o país escolhido no que ao misticismo dizia respeito. Um espaço onde as demais culturas pudessem viver livremente, sob a égide da paz e do amor fraternal (mais intenso que o comum, conotado com o aspecto carnal), um exemplo para a própria Humanidade. Esta é, grosso modo, a visão de um Portugal seleccionado para algo mais do que uma mera nação. Qual a nossa opinião? Não deixa de ser muito curioso que os legados megalíticos aqui encontrados sejam de tão elevada monta, assim como o facto de os Templários aqui surgirem pouco depois de terem sido criados na cidade santa de Jerusalém e, de pronto, com tal poderio que aos historiadores tem deixado farta curiosidade. Também é de estranhar como D. Afonso Henriques, apoiado apenas por meia dúzia de nobres e um punhado de homens valentes, terá conseguido uma tão rápida independência de uma das mais fortes nações da época e que estando a mesma tão unida ao papado romano, este não tenha hesitado em dar o seu aval à cisão do Condado Portucalense da coroa leonesa. 18
“Há uma história oculta de Portugal. Não dizemos isto no sentido em que de tudo se pode afirmar ter um aspecto oculto. Pensamos que houve entre nós, senão connosco, uma organização esotérica que, de uma forma perfeitamente consciente e intencional, procurou a partir desta pátria, a que deu existência, redimir o mundo do mal e da divisão.”1 A grande dúvida, efectivamente, é perceber até onde vai a veracidade histórica comprovada pelos documentos e pela interpretação dos analistas, e onde começa a teoria especulativa (isto se consideramos que a mesma existe). Um simples tratado histórico jamais dará a resposta a esta angustiante dúvida. Mas, de todo um conjunto de investigações, segundo estamos em crer, sairá a conclusão que todos ambicionamos. Para tanto, este trabalho é evidentemente uma humilde contribuição, uma pequena gota de água que pretende encher o oceano do nosso conhecimento cultural enquanto povo historicamente relevante. Como terão a oportunidade de verificar, pela leitura da presente obra, um longo caminho foi já percorrido. Mas permanece sempre a porta aberta da curiosidade pois, por cada resposta ofertada, duas questões aparecem. Porventura o momento não tenha ainda chegado para termos todas as explicações que ambicionamos. Talvez, até, existam verdades que nem se devam conhecer por não estarmos preparados para elas. Mas, se nos perguntassem, de forma directa, se consideramos Portugal uma nação escolhida, de pronto teríamos de anuir. Criando uma civilização espiritual própria, subjugaremos todos os povos; porque contra as artes e as forças do espírito não há resistência possível, sobretudo quando elas sejam bem organizadas, fortificadas por almas de generais do espírito. Fernando Pessoa
• O primeiro habitante de Portugal, o menino do Lapedo Fruto do intenso labor de dezenas de arqueólogos, o espaço físico de Portugal, no que à pré-história diz respeito, tem vindo a ser, lenta mas cabalmente, desvendado. Sabe-se, então, com grande certeza, que, até à data, não existe qualquer vestígio, em Portugal, com datação anterior a 700 mil anos (o período chamado de Plistocénio Inferior). Era a fase dos chamados homens de Ne1- Notas de rodapé na página 197.
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andertal, os quais, comummente, têm sido apelidados de rudes. A análise rigorosa ao seu comportamento, no entanto, tem vindo a desmistificar essa ideia. Os achados líticos, isto é, os tradicionais monumentos de pedra (sejam eles castros, antas ou menires) demonstram que a consciência destes primeiros seres humanos era mais racional do que à partida seria de esperar. Seja como for, e evitando o avanço demasiado lesto, concentremo-nos em uma data muito especial, localizada temporalmente há 25 mil anos atrás. O local? Abrigo do Lagar Velho, no distrito de Leiria. Aí, incrustada entre as povoações de Palmeiria e Carrasqueira, corre a ribeira da Caranguejeira. Exactamente nessa zona encontra-se a gruta do Lapedo, tornada famosa a partir do Natal de 1998. A razão? Aqui foi encontrada a sepultura de uma criança, com cerca de quatro ou cinco anos, que passou a ser conhecida como o mais antigo habitante que se conhece do espaço físico de Portugal. Obviamente, tal facto obteve larga repercussão junto da opinião pública. Cronologicamente, o menino do Lapedo era o nosso familiar mais afastado temporalmente. Porém, as revelações que a sua análise trouxe ao nosso conhecimento ainda nos deixaram mais boquiabertos. Apesar de ser um elemento tipicamente arcaico, nada em si consubstanciava o típico atraso cultural e físico com o qual até aí se conotava esta raça humana. “De um modo geral, o tipo físico da criança do Lapedo é, sem dúvida, anatomicamente moderno, isto é, o partilhado por todas as populações humanas actuais, que, por isso (e pela sua infertilidade generalizada), se considera pertencerem a uma só espécie zoológica, o Homo sapiens. O queixo muito bem definido, os incisivos e caninos de pequeno tamanho, as proporções do púbis, por exemplo, aproximam-na claramente de nós e afastam-na dos nossos antepassados de tipo físico dito arcaico”2. A par desse facto, a análise exaustiva do seu método de enterramento levou a concluir que existia um fundo cultural comum em toda a Europa. Para tanto, ressalve-se o uso intensivo do ocre vermelho, a purificação prévia da fossa sepulcral e até o uso na testa do menino de um ornamento constituído por uma junção de dentes de pequeno roedor ou mamífero (crê-se que, com grande probabilidade, de um veado). Mas, se no campo arqueológico este foi um achado fundamental, também na vertente histórica não deixou de o ser. 20
Durante muito tempo, as afirmações, de certos estudiosos, sobre as capacidades dos nossos antepassados eram encaradas com algum desdém. A partir desse momento, todos puderam perceber que, pelo menos, há 25 mil anos atrás, os habitantes do espaço físico português eram fisicamente similares a nós e que, obviamente, tínhamos bem mais para descobrir e aprender com eles do que aquilo em que havíamos acreditado durante demasiado tempo. Para compreender a identidade e a personalidade deste povo que tem por símbolo a esfera armilar como imagem da harmonia do mundo, será necessário remontar à mais alta antiguidade. Na história, como na natureza, nada se perde. Mesmo das civilizações e das culturas remotíssimas, profundamente enterradas nos recessos do tempo aparentemente perdido, algo de exemplar e resistente subsiste numa tradição, numa forma, num canto, num verso ou numa palavra. António Quadros
• Manifestações simbólicas (práticas funerárias) Atentemos, em primeiro lugar, no que escreveram alguns dos mais brilhantes estudiosos da pré-história portuguesa para, posteriormente, tirarmos as nossas conclusões. “O homem de Neander já enterrava os seus mortos, e essa inumação reveste um carácter intencional. O cadáver era acompanhado de objectos pessoais ou de oferendas, o que faz pensar numa crença na imortalidade. A própria posição dos esqueletos parece revelar uma preocupação religiosa. (…) A morte devia impressionar profundamente o homem primitivo. (…) A morte será a destruição? A rigidez do morto faz pensar no adormecimento. Durante o sono mantemos uma actividade psíquica. O primitivo quando dormia entraria num reino mágico, misterioso. (…) O homem do Paleolítico temia a morte porque sabia que tinha de morrer. (…) Quarenta mil anos nos devem afastar das primeiras pinturas. (…) A arte é a projecção dos nossos centros de interesse. Povos caçadores, pensavam na caça. As cavernas pintadas podem ser santuários. (…) Religiosidade, naturalmente, tinham-na. A religião nasceu com o homem. A religião é um fenómeno humano, quer se trate do culto ao sol, ou do culto à ciência”3. “A partir do Neolítico, a divulgação da crença numa outra vida pos21
terior à morte física deu lugar à profunda veneração pelos mortos, materializada no extraordinário desenvolvimento das práticas funerárias. (…) Em certas áreas portuguesas a sul do Tejo, a raridade de grutas e abrigos sob rocha, onde, de acordo com o ritual neolítico, se pudessem inumar os corpos, contribuiu para o aparecimento de túmulos de pedra, individuais, com cerca de um metro de altura, de planta rectangular ou trapezoidal e com as lajes de granito totalmente talhadas.”4 “Assim como não encaram a morte como um facto natural, os primitivos não entendem a sua consumação em termos puramente fisiológicos. A morte só se completa com as cerimónias fúnebres. São estas que, ao atribuir ao defunto o seu novo lugar, num espaço simbólico bem demarcado (que pode variar com a categoria social a que ele pertencia), permitem à sua alma a integração na comunidade dos mortos, no seio da terra, que passará a habitar. A morte é pois um rito de passagem, ou melhor, um conjunto de ritos, de separação, de margem e de agregação, sendo os deste último tipo os que têm maior importância. (…) Torna-se evidente que, nas religiões megalíticas, se associam duas linhas de força: a crença na vida após a morte, relacionada com o culto dos antepassados, e a ligação da pedra à eternidade e de continuidade da vida”5. Assim sendo, há, naturalmente, que convir que havia uma consciência mágica ou espiritual na mente dos primeiros habitantes de Portugal. Partindo deste pressuposto inabalável, estava dado o mote para que todos os que, desde o século passado, haviam estudado esta área tão longínqua da história nacional começassem a obter o reconhecido mérito académico e que uma nova geração de autores pudesse expressar, de forma ensaística, o relevo da pré-história para o conhecimento do que fomos, somos e seremos. É assim que chegamos ao fenómeno que mais tem entusiasmado os estudiosos do chamado pré-Portugal e onde, por mais estranho que isso possa parecer, vamos buscar algumas das manifestações místicas mais incrustadas na alma portuguesa, o Megalitismo. • Megalitismo A origem deste é, hoje em dia, assaz conhecida. Resulta da fusão entre os termos gregos mega (grande) e lithos (pedra), resultando em algo de enormes dimensões e construído utilizando como única material a pedra. 22
Em Portugal, o mesmo aparece em torno do VI milénio a.C., mas o seu apogeu está datado apenas quatro milénios depois. De distribuição irregular dentro do nosso território, onde a zona mais a sul se destaca pela maior quantidade de elementos líticos, o facto é que o megalitismo surge por via de um sedentarismo das populações em geral, após séculos a viver em constante mutação, pelo facto de sobreviverem através daquilo que a terra fornecia. Agora, pelo contrário, tinham alguns conhecimentos de agricultura, possuíam alguns utensílios (na sua maioria pequenos seixos rudemente talhados) que os auxiliavam no capítulo do cultivo e da caça, pelo que, a pouco e pouco, houve um assentamento colectivo. Esta é, obviamente, a explicação académica. Mas existe uma outra razão para o surgimento deste fenómeno megalítico: a consciência mística dos habitantes de então. Por mais discussão que este tema ainda levante, a grande verdade é que a grande maioria dos autores sente-se hoje à vontade para afirmar que “o megalitismo é um fenómeno que se integra obviamente no comportamento simbólico do homem das sociedades arcaicas e, mais particularmente, no comportamento religioso. Falamos realmente aqui de religião mais num sentido genérico e comportamental (…) uma vez que não podemos aceder às religiões pré-históricas como sistemas ideológicos senão de forma indirecta, através dos restos materiais existentes no solo”6. Ainda que o termo arcaico seja utilizado de forma amiúde, quiçá como meio de precaução, estes são notórios focos de pré-religiosidade, um termo que aqui aplicamos em contraposição ao que actualmente conhecemos por fenómenos de fé e devoção. O primitivo homem, estamos em crer, desconhecia as razões exactas que o impeliam a desenhar no interior das cavernas, assim como não sabia correctamente a função de inumar os seus defuntos. Mas nem por isso deixava de o efectuar pois um apelo interno impelia-o nesse sentido. Já vimos como a visão do corpo humano em decomposição terá sido a razão para a prática do enterramento. Mas o modo como o corpo era normalmente colocado, em posição de decúbito frontal, como que simulando a instalação do feto no ventre materno não é tão inocente quanto possamos pensar. Assim, enterrar um ente querido com os seus haveres pessoais só pode ter como finalidade que este, em um outro mundo, possa continuar a utilizar os seus objectos de sempre. Em trabalhos anteriores, analisámos como a questão da mudança entre dia e noite, Sol e Lua, luz e trevas se tornou muito apelativa ao homem primitivo. Era, por assim dizer, o facto mais concreto, e visível, de mudanças extraordinárias que tomavam lugar de forma constante. 23
Ora, os primeiros habitantes de Portugal passaram, a par dos seus congéneres europeus, a perceber que havia uma rotatividade do seu próprio elemento. Mas, curiosamente, perceberam que o dia chegava sempre após o mergulhar nas trevas. O mesmo poderia acontecer com os seus defuntos. Para além disso, a expressão pictórica, principalmente nas paredes de grutas e cavernas, tem muito pouco de aleatório. As cenas retratadas, fossem a caça ou a pesca, vasculham profundamente as entranhas psíquicas desses homens e mulheres. Aquela era a sua realidade, o seu dia-a-dia. Um mau dia de caça significaria a fome. Contavam com uma normal sucessão de acontecimentos quotidianos para sobreviverem. Do mesmo modo que, actualmente, vislumbramos no apelo a uma entidade divina superior os mais diversos pedidos místicos: (um milagre, uma bênção, entre outras), também o homem antigo começou a sentir a necessidade de se expressar para além do básico. “Apontemos antes do mais que as primeiras expressões estéticas, espirituais, mágicas, simbólicas, religiosas e inteligentes do homo sapiens terão sido as pinturas e as gravuras deixadas nos tectos ou nas paredes das recônditas câmaras em grutas abrigadas das terríveis glaciações ou frios, há vinte, trinta ou quarenta mil anos. (…) Não nos parece, ao contrário do que afirma Aarão de Lacerda, ser possível desligar inteiramente a intencionalidade mágica de uma intencionalidade religiosa. Mais: sob a representação simbólica do duplo da presa de caça, sob a sua síntese simbólica figurando toda uma espécie, sob os rituais encantatórios que em seu redor se desenvolvem, há uma mitologia, uma religião e até uma teologia virtuais e embrionárias. (…) Um abismo de tempo, de mentalidade e de etnia parece separar a arte rupestre da arte neolítica e megalítica. Em sete ou oito mil anos quanto de enigmático, praticamente incognoscível se terá passado, embora com a lentidão de uma época entre todas opaca e dificilmente investigável da história humana.”7 A par das pinturas, manifestou-se, em Portugal, uma outra faceta do megalitismo, exactamente aquela que lhe dá o nome e da qual mais se tem escrito – o fenómeno das pedras. Este divide-se em quatro grandes figurações: 1. Dólmenes: tratam-se de monumentos tumulares colectivos, constituídos por uma câmara onde uma grande laje se assenta sobre as demais pedras verticais. Igualmente conhecido por anta, existem dos mais diversos feitios, havendo os que possuem corredor interno e outros de enormes di24
mensões passando, naturalmente, pelo mais simples. Em conjunto com o dólmen, podia ser associada a mamoa, desde que um montículo de terra fosse preenchido, na zona superior, por seixos; 2. Tholoi, conhecidos no plural por tholos, são monumentos, normalmente, de maiores dimensões que os dólmenes, diferem dos demais espaços de inumação pelo facto de apresentarem apenas lajes de xisto, e não enormes pedras, a cobrir a cúpula. Para além disso, no nosso país, os tholos conhecidos possuem corredor, característica peculiar que os torna monumentos deveras curiosos; 3. Menir é, basicamente, uma pedra de grandes dimensões em posição erecta. Procurando significar o campo da fecundidade, e assemelhando-se ao falo masculino, o menir obtém a sua voz das divindades ctónicas para, de forma vibrante, empunhar o seu meato em direcção ao céu, espaço físico que os antigos muito temiam. Quando se dá a colocação de vários menires, agrupados de forma intencional, estamos a falar de cromeleques; 4. Grutas artificiais, como o próprio nome indica, tratam-se de espaços escavados pela mão humana, protegidos da área dita pública, ou comum, e pensados inicialmente quer para inumações, como o caso já abordado da criança do Lapedo, quer também como local de práticas pictóricas e, por assim dizer, de manifestações místicas. Em Portugal, as pedras re-velam um mundo oculto vastíssimo. Foram (e ainda são) parte integrante da vivência do sagrado dos povos que por cá passaram ao longo de milénios. São uma parte fundamental da identidade do Portugal Desconhecido nas grandes cidades, mas enigmaticamente ainda bem vivo nos meios menos povoados. Não existe, em certas zonas do país, povoação que não tenha – e não sinta orgulho por esse facto – a «pedra da moura», o «penedo do galo», etc. (…) A «eternidade» da pedra exerceu um grande fascínio sobre a consciência humana. Paulo Alexandre Loução
• Pedras mágicas Já fizemos questão de o frisar diversas vezes e, sendo uma convicção intrínseca, continuaremos a efectuá-lo sempre que necessário: uma pedra não é apenas algo frio e imutável. Efectivamente, a pedra, enquanto objecto amorfo, não passa disso mesmo. Mas, com a actuação da mão humana, passa a ser algo completamente diferente, moldado com coração e, como tal, passando a ter sentido e, quiçá, sentimento. 25
Atendendo a isso, não é de estranhar que possamos apelidar as pedras de mágicas. E porquê? Porque nos fazem rir, chorar e até devotar o mais profundo da nossa fé, tudo perante um simples seixo ou uma mais elaborada construção lítica. Atentemos no simbolismo daquilo que apelidamos de petrus: “O valor da pedra enquanto símbolo está relacionado com o contexto de vida específico que é o tempo: enquanto representação do Arquétipo da matéria, é a substância física do mundo, que depois é impregnado pelo espírito vivo. A matéria é em si própria totalmente inconsciente e simboliza as profundezas da inconsciência. Quando trabalhada, representa a união do espírito e da matéria, do que está acima e do que está abaixo, sem que qualquer deles seja intrinsecamente masculino ou feminino, se bem que o feminino seja frequentemente associado com o inconsciente e a terra.”8 Em Portugal, felizmente, o leque de possibilidades de visualização de monumentos pétreos é amplo. Já redigimos, inclusivamente, um roteiro místico de Portugal, que passa pela grande maioria dos locais pré e proto-históricos mais profundamente marcados pela importância da pedra enquanto fenómeno de devoção. No presente caso, optámos por uma singela selecção de locais para sobre eles discorrer um pouco, atendendo à sua importância na dupla função mística e histórica. Em primeiro lugar, o Santuário de Panóias, localizado no concelho de Vila Real. Trata-se de um local óptimo para todos aqueles que, pela primeira vez, pretendem tomar contacto com o fenómeno megalítico na sua função mais mágica. Igualmente conhecido por Fragas de Panóias, é, basicamente, um recinto construído entre os séculos II e III, portanto mais recente do que os seus congéneres pré-históricos mas, ainda assim, onde o fenómeno lítico possui a expressão máxima. Aqui podemos encontrar grandes fragas (termo mais utilizado no Norte do país) criteriosamente dispostas e escavadas que, em tempos, serviu de local para a prática de rituais mágicos, dedicados ao altíssimo Serápis, uma divindade infernal do panteão romano. Andando pelo espaço em questão sente-se, naturalmente, uma aura profundamente mística e, apesar do passado mais próximo não ter sido generoso com o monumento, a sua grande maioria resistiu à passagem do tempo, permitindo-nos, ainda hoje, visualizar as inscrições cravadas nas pedras, entre as quais destacamos as seguintes: 26
“G. C. Calpurnius Rufinus consagrou dentro do templo (templo entendido como recinto sagrado), uma aedes, um santuário, dedicado aos Deuses Severos.” (inscrição número 2) “Aos Deuses e Deusas e também a todas as divindades dos Lapitaes, Gaius C. Calpurnius Rufinus, membro da ordem senatorial, consagrou com este recinto sagrado para sempre uma cavidade, na qual se queimam as vítimas segundo o rito.” (inscrição número 3) É deste modo que, se dúvidas existissem, se confirma a utilização antiga deste monumento. Num segundo espaço, no caso o Cromeleque dos Almendres, desta feita no Alentejo, está bem próximo à linda cidade de Évora. É um espaço vibrante, apontado como observatório astronómico e que tivemos oportunidade de visitar algumas vezes. Na realidade, como tivemos oportunidade de informar anteriormente, um cromeleque resulta da distribuição criteriosa de menires. No caso, tratam-se de 92 actualmente (pois crê-se que, no passado, tenham sido mais de uma centena), tornando-se o maior conjunto estruturado de menires da Península Ibérica. Tendo dimensões aproximadas de sessenta por trinta metros, terá sido construído em torno do milénio V a.C. Como sobreviveu em tão boas condições até aos dias de hoje só pode ser explicado pela perseverança própria da pedra, como o próprio termo em latim indica. Em terceiro lugar, destaque para a Pedra Formosa, que foi encontrada na Citânia de Briteiros, próxima a Guimarães, a cidade que foi berço da nação portuguesa, até 1897. Actualmente repousa no museu da Sociedade Martins Sarmento. Com, aproximadamente, três metros de largura por dois de altura, esta pedra é deslumbrante aos olhos de todos os que encarem a História como algo fascinante. Tocar-lhe é sentir o apelo do passado, as vivências daqueles que fizeram o dia-a-dia de Portugal muito antes da nossa existência. Hoje em dia sabe-se que pertencia a um conjunto funerário, edificado em torno do primeiro século da nossa era, e as representações pictóricas que nela foram cravadas levam-nos a um outro local dentro do nosso país, mais concretamente São Pedro do Sul. É em Serrazes, uma pequena aldeia da região de Viseu, que se localiza a famosa Pedra Escrita. Na verdade, este quarto destaque, no nosso mini-roteiro dos espaços onde reinam pedras mágicas, é um monólito construído tendo o granito como material utilizado. Com dois metros e meio de altura e dois de largura, pensa-se que seja 27
datado do século X a.C., de acordo com a análise efectuada pelo geógrafo Amorim Girão. Convém aqui fazer um paralelismo entre a Pedra Formosa e a Pedra Escrita, tendo como base as gravuras nelas existentes: a existência de um culto solar (outros crêem lunar) que, conforme iremos abordar em capítulo posterior, esteve na base das primeiras manifestações místicas em Portugal. A grande diferença surge no facto de a Pedra Escrita, pelas suas características, ser menos trabalhada esteticamente, mas mais aproveitada para inscrições gráficas. Aqui surgem, então, cenas primitivas da caça, actividade fundamental para os homens de então. Rumemos, agora, a Trás-os-Montes, para encontrar, em Murça, a célebre Porca, quinto e último destaque entre as chamadas pedras mágicas portuguesas, que, de acordo com insigne investigador nacional, não é um animal tão incomum de ser representado. “Na área correspondente à antiga Lusitânia e, em particular, na região transmontana, encontram-se inúmeros exemplares de quadrúpedes de pedra chamados porcas ou berrôas. Está, neste caso, a célebre Porca de Murça, de carácter eminentemente lunar, símbolo de fecundidade e abundância.”9 Efectivamente, muitos mais exemplos poderiam ser dados. Partir à descoberta depende de cada um e Portugal, sem sombra de dúvida, possui um vasto leque de oferta monumental. É que, para além do fenómeno pétreo, existe também uma outra faceta do nosso país – a existência de locais mágicos por natureza! Os símbolos são imagens, os mitos são narrativas e os ritos são encenações simbólicas dos mitos. Toda a misteriosa História de Portugal está, assim, impregnada de imagens simbólicas (como por exemplo a cruz templária e a esfera armilar), de narrativas míticas (como por exemplo o Milagre de Ourique ou a não-morte de D. Sebastião), de encenações mítico-simbólicas (como por exemplo o culto do Divino Espírito Santo). António de Macedo
• Locais mágicos Para que um determinado espaço físico possa ser considerado mágico, é natural que possua características especiais. Das nossas viagens pelo Portugal 28
místico, dois locais em particular ficaram-nos na retina do mistério pelo facto de não lhes conseguirmos dar interpretação concreta. Aliás, no que ao primeiro deles diz respeito, até hoje, ninguém conseguiu explanar convenientemente qual a função do mesmo. Ora, estamos, naturalmente, a falar de Centum Cellas. “Uma insólita construção em pedra, com 12 metros de altura, três andares e um número desusado de janelas, chama a atenção de quem se aproxima da vila beirã de Belmonte, no distrito de Castelo Branco, não só por se tornar estranha na paisagem como por se localizar a poucas dezenas de metros da estrada municipal que leva à povoação de Colmeal da Torre. Depois de muitos séculos de existência, chegou até nós baptizada com o nome de Centum Cellas, que em português se pode traduzir por Cem celas, embora esteja posta de parte a possibilidade de algum dia ter funcionado como cadeia já que nunca poderia conter uma centena de celas no seu interior. Por outro lado, os Romanos – ao engenho romano a atribuíram durante muito tempo – nunca construíram prisões daquele tipo num país ocupado pois, em tais circunstâncias, até nas estruturas dos acampamentos das legiões empregavam a madeira. Aliás, por mais congressos, mesas-redondas e investigações aturadamente levadas a efeito sobre tão enigmática construção, ninguém parecia saber qual a primitiva serventia do edifício, erguido numa encosta suave e na cota dos 490 metros, considerado Monumento Nacional pelo decreto 14425, de 14 de Outubro de 1927. Valerá a pena verificar até onde chegaram as divergências, entre historiadores e arqueólogos, a respeito da função desta torre a parecer mais inspirada na arquitectura da América pré-colombiana do que no estilo imposto pelos arquitectos de Roma.”10 Se o autor atrás citado vislumbra na enigmática construção ideia original dos Edomitas, um povo natural da Idumeia, que seriam construtores de templos e descendentes de Esaú, já Bluetau, um historiador do século XVIII, a coloca como romana e possível local de desterro de São Cornélio. Na mesma obra, referência para a análise de Ricardio Belo, que a define como hospedaria romana, e não prisão, uma interpretação que se nos afigura assaz interessante e que vai um pouco de acordo àquilo que também pensamos. Por fim, Adriano Vasco Rodrigues define-a como pretório de um acampamento romano e Manuel João Calais acredita que fosse um templo cristão do século III ou IV. Na verdade, todas estas possibilidades são devidamente fundamentadas e, como tal, todas possuem larga possibilidade de estarem correctas. 29
O grande entrave à solução da questão é que jamais teremos a confirmação factual de qual a função de Centum Cellas, perdida que ficou nos meandros temporais. Hoje em dia é, sem sombra de dúvida, um espaço a visitar, com os chamados olhos de ver. Porque um país que tenha a honra de poder dar a visitar espaços como este, intrigantes, esteticamente relevantes e historicamente fundamentais, terá sempre de sentir-se bem consigo mesmo. Mais para sul acabamos por encontrar, no território alentejano, a Gruta do Escoural, ponto de chegada no que às viagens deste capítulo diz respeito. É aqui que, pela primeira vez, nos deparamos com as mensagens místicas legadas pelos nossos antepassados. “Em Portugal, a primeira gruta decorada com pinturas e gravuras rupestres foi descoberta em 1963, no Escoural. (…) O percurso principal da gruta, com cerca de cinquenta metros, orienta-se no sentido norte-sul, a contar da entrada primitiva. (…) Nesta cavidade subterrânea identificaram-se catorze pinturas e três gravuras. (…) A iconografia da arte paleolítica do Escoural é constituída por duas figuras híbridas, uma das quais com cabeça de cavalo e parte de um corpo humano e outra representando a cabeça e o pescoço de uma ave com corpo a tender para o antropomórfico e, ainda, por desenhos de cavalos, bois e cabras e por alguns sinais”11. A reter o facto de se tratar de um espaço, ainda hoje, extremamente bem conservado e visitável. Para além dos factos visíveis, que são, efectivamente, as representações de bovídeos, cavalos, cabras e aves, surgem os pormenores misteriosos. E o Escoural tem-nos em grande quantidade. No entanto, para nós, fixemo-nos em dois. O primeiro, as duas figuras híbridas que surgem no espaço da gruta, uma delas tendo como composição uma cabeça de cavalo com corpo humano (centauro) e a outra uma cabeça de ave com membros de Homem (Abraxas?). Se quanto à primeira figura, ou seja, o centauro, estamos a lidar com a mitologia grega, rapidamente adaptada pela iconografia cristã como representação da bestialidade infernal, um demónio tentador das donzelas, não deixa de ser ainda mais curiosa a possibilidade de vislumbrar a representação de um arcaico abraxas na Gruta do Escoural. As pedras abraxas eram utilizadas na Antiguidade como amuletos por seitas gnósticas, sendo que o Abraxas seria uma divindade que incorporava, de forma simultânea, o Bem e o Mal. Mais importante ainda, era 30
um deus único, a representação monoteísta, em uma época que o politeísmo reinava. Qual a razão da sua hipotética presença é um mistério que permanecerá por desvendar - a menos que aceitemos essa ideia de pré-religiosidade pela qual nos temos vindo a debater ao longo desta e de outras obras de nossa autoria que abordam este tema. Mas, para além da gruta propriamente dita, o Escoural revelou-nos, posteriormente, algo mais, porventura ainda mais importante. “Muito recentemente um caçador, José Carvalho, descobriu na mesma região do Escoural uma pequena estatueta que os arqueólogos Prof. Veiga Ferreira e G. Zbyozewski identificaram como uma Vénus, isto é, uma representação da Deusa-Mãe, ligada aos cultos da fertilidade, que terão nascido no período aurinhaco-perigordense. Esta, esculpida em osso de rena, datada provavelmente de 17000 anos a.C., tem apenas dois exemplares semelhantes, um em Istrutiz, outro em Laugerie Basse, ambos em França.”12 Portugal, um país marcadamente mariano, não poderia, naturalmente, deixar de ter um passado ligado ao culto da deusa, do chamado sagrado feminino. Não será assim, então, tão estranho aceitar que neste pequeno rectângulo à beira-mar plantado se tenha decidido São Bernardo de Claraval – a primeira personalidade, pós-Concílio de Nicéia, em 325, a resgatar o culto da Virgem Maria – apoiar incondicionalmente a instituição de uma nação independente, fortalecendo-a com o braço armado dos cavaleiros templários. Isto sem esquecer, obviamente, que a zona centro de Portugal possa ter sido espaço físico para as célebres aparições de Nossa Senhora. Sem dúvida, o culto da chamada Grande Deusa, ou Deusa-Mãe, faz parte integrante do passado mais remoto de Portugal, como pudemos comprovar acima e, de forma mais detalhada, veremos no capítulo seguinte. A própria criação de Portugal foi «imaginada» por uma elite espiritual, cuja expressão mais visível terá sido São Bernardo de Claraval. Eduardo Amarante
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2. Divindades e Cultos Pré-Cristãos
• A Grande Deusa ou Deusa-Mãe Se, como vimos anteriormente, o menir, fenómeno megalítico de grande expansão no nosso país, funda a sua origem no culto masculino da fertilidade, a terra, por consequência, era o espaço feminino. Era aqui que este monumento fálico era cravado, como que solicitando a uma entidade superior que as colheitas fossem de modo a alimentar todas as bocas da família. Não apenas no passado mais longínquo assim sucedia. Vários autores relatam factos extraordinários que tomaram lugar na cultura portuguesa em século passado, tais como a prática do acto sexual no campo cultivado, de modo a fertilizá-lo, ou o roçar do órgão sexual feminino em pedras cultuais para lhes ser ofertada a graça de engravidar. Não há modo de escapar-lhe: a agricultura surge como consequência natural da sedentarização das populações megalíticas e, com esse facto, o papel da mulher ganha um destaque superior ao que até aí tinha sucedido. A fertilidade do campo é comparada à da mulher. “O campo é uma entidade feminina por natureza, e mesmo a origem do mundo é frequentemente ligada à visão fecunda do Céu e da Terra, através, por exemplo, das propriedades seminais da chuva. Até o arado, de invenção relativamente tardia, será visto facilmente como o elemento que abre a terra, permitindo a sua fertilidade. São frequentes, nas sociedades agrárias, os mitos e os ritos relacionados com a fecundidade da terra, como, por exemplo, no segundo caso, a prática de relações sexuais sobre o campo lavrado, o parto sobre o solo, e a deposição do recém-nascido no mesmo. (…) O culto da deusa-mãe, comum a todas as grandes culturas mediterrânicas antigas, assenta aqui as suas raízes”13. Deste ponto de vista, que corroboramos, a visão feminina da natureza irá impregnar o ambiente mágico das primitivas sociedades agrárias. Atentemos nas misteriosas palavras que, sobre o universo da mulher, nos são ofertadas por um dos mais importantes estudiosos do misticismo em Portugal, de modo a aquilatarmos da força que tem a união de um casal, sendo que, a nosso ver, tal como reporta o texto em questão, a balança pende para a visão-fêmea. 32
“A imagem da mulher desperta o espírito vital, o pássaro adormecido no coração. A regra a seguir depois consiste em intensificar a energia que foi posta em movimento. Desde então, o amor assenhoreou-se, de facto, da minha alma, que logo a ele se uniu; e passou a ter sobre mim tanto ascendente, a exercer tal domínio, ‘pela força que lhe dava a minha imaginação’, que eu era obrigado a satisfazer tudo quanto exigia.”14 O ovo, sinónimo da gravidez, ganha também novos contornos e, ainda actualmente, a sua utilização no ciclo pascal tem muito que ver com o renascimento que sucede na Primavera, sendo cristianizado como a ressurreição de Jesus Cristo. Na verdade, tudo isto está interligado, mesmo que a grande maioria de nós não perca muito tempo a analisar tais factos. A própria representação da Grande Deusa obedece, sempre, a padrões rígidos: seios volumosos (simbolizando a quantidade de leite necessária para alimentar todos os seus filhos, isto é, os habitantes do planeta terrestre), ancas desenvoltas (associadas ao facto de comummente se considerar que as mulheres com esse arquétipo físico serem melhores parideiras) e ventre descomunal (espaço necessário para dar vida a todos os que dela descendiam). Ao longo dos séculos, muitas divindades ocuparam este lugar de suprema sacerdotisa da Humanidade. Mut, a deusa egípcia, conhecida como abutre divino (um animal que no Antigo Egipto era sinónimo de protecção), era Senhora de Isheru, a sul de Karnak e o seu nome, bem a propósito, significa mãe. Também a civilização suméria tinha em Ereshkigal a sua divindade feminina mais notória, no caso rainha dos mortos e do mundo subterrâneo. Na verdade, tratava-se de uma deusa dos grãos, simbolizando, deste modo, o crescimento dos cereais e, tal como escrevemos acima, intimamente unida à agricultura. Já na Antiga Grécia, Vénus era a representação da grande deusa da Natureza, comparável ao culto sírio da Astarte. Era, regra geral, representada como dominando todo o mundo, sentada no seu trono divino, com uma bonomia natural do sexo feminino e uma candura própria de quem, no entanto, não evitava o lado mais sensual e afrodisíaco. Mas, muito provavelmente, é na Babilónia que surge o mais antigo culto que se conhece, sob o nome de Lilith, por muitos conhecida como a deusa negra, amante do Lúcifer, ou anjo caído em desgraça, o antigo mais brilhante dos ajudantes divinos de Deus que, pretendendo saber mais do que o seu mestre, de pronto foi expulso do Céu. 33
A origem do seu nome é incerta, quiçá suméria, mas desmontando a raiz etimológica, talvez a possamos considerar como Grande Mãe. Uma análise menos superficial revela-nos que Lilith foi invocada como lasciva e “rainha da noite”. Esta foi uma consequência natural da actuação da mitologia judaica que a definia como demoníaca, sendo que anteriormente havia sido a rainha dos céus. Seja como for, este culto foi transportado para Portugal, não havendo confirmação alguma de que aqui tenha crescido a partir do nada. E a importância deste culto está mais que atestada, não apenas pelas nossas palavras, mas pelos estudos de diversos autores. “Dalila Pereira da Costa, a autora de alguns livros importantes para toda a arqueologia de tradição portuguesa, como nomeadamente A Nau e o Graal (1978), publicou recentemente a obra Da Serpente à Imaculada (1984), onde estuda exaustivamente a tradição dos cultos terrestres, maternais e lunares da Grande Deusa-Mãe em solo português, antecedentes do culto de Maria, como Virgem e Mãe, que estará no cerne da nossa religião cristã, desde os começos da nacionalidade e protegendo o seu território como terra de Santa Maria. Como disse, se do Paleolítico Superior não possuímos já representações antropomórficas da Deusa-Mãe (…) nada nos poderá levar a negar a existência do seu culto aqui neste território: o bétilo ou a arvora tendo sido então suportes ou representações da deusa. Ídolos semelhantes a custo saídos dessas primitivas representações, surgirão já no neolítico, como por exemplo o pequeno ídolo feminino de Carrazeda de Alvão, no qual, tal como nessas representações avultam os seios e o púbis, como sinais da sua força de fecundidade, ou o ídolo da jazida de Comporta (Setúbal), de forma anicónica e com tatuagens. E acrescenta: tudo leva a crer que aqui, tal como no resto do mundo, só a partir do neolítico se teria verdadeiramente criado a sua religião, como religião organizada. Representações oficiais e astrais, como aqui das mais correntes nos dólmenes deste período, nos poderão levar a supor que a Deusa já era adorada e cultuada como rainha do céu e da terra, mãe dos vivos e dos mortos, num culto inseparável de fertilidade e funerário: ainda, com o seu poder de fazer germinar os grãos e ressuscitar os mortos, ele surgirá na época do domínio, sob o nome de Atégina. (…) Para Dalila Pereira da Costa, a tradição mais antiga seria a do culto da Deusa-Mãe”15. Efectivamente, a noção de protecção de que o ser humano necessita para se sentir bem consigo mesmo tem origem antiga. Não é, assim, à toa que este culto se tenha diversificado, passando de mera ligação agrária, para 34
a sensação de conforto divino e, igualmente, a crença de imortalidade, de onde destacamos os dólmenes, ou monumentos funerários que pretendem representar a possibilidade de os defuntos ressuscitarem no futuro. “Se como vimos já havia no paleolítico superior um semblante do culto, embora mágico, da Deusa da fecundidade, representada nas Vénus de formas femininas exageradas nas ancas e no ventre, este culto amplia-se e associa agora uma crença na imortalidade pessoal, sem dúvida relacionada nos seus modos com a observação da semente que, lançada à terra, morre e contudo engendra uma nova planta. A Terra-Mãe, a Deusa-Mãe de todas as grandes religiões posteriores, é sentida, escreve Eliade noutro livro, como a matriz universal, como a fonte ininterrupta de toda a criação. A morte, em si própria, não é um fim definitivo, não é a aniquilação absoluta, tal como é por vezes concebida no mundo moderno. A morte é assimilada à semente que, enterrada no seio da Terra-Mãe, fará nascer uma planta nova. Pode assim falar-se de uma visão optimista da morte, pois a morte é considerada como um regresso à Mãe, uma reintegração provisória no seio materno. E o pensador romeno acrescenta: eis porque, a partir do neolítico, encontramos o enterro em posição embrionária, como se se esperasse a todo o momento que regressassem à vida. Os próprios dólmenes, onde os mortos são assim colocados, têm analogia com o útero feminino. E um ciclo completo, do nascimento pelo útero ao retorno ao útero e à vida embrionária dentro do ventre obscuro e silencioso da Mãe. Os dólmenes eram inteiramente cobertos pela mamoa, um aglomerado de areia, terra, brita, de tal modo que se fazia a escuridão completa no seu interior.”16 Assim sendo, talvez possamos considerar esta divindade feminina como a mais completa de todas as que temos vindo a estudar. Inclusivamente, a Deusa-Mãe consegue, de forma simultânea, ser rainha, deusa e mãe. Se o paralelismo nos é permitido, é por tal facto que, ainda actualmente, a mulher é louvada, pois consegue desmultiplicar-se por tarefas tão díspares quanto esposa, mãe e profissional. Seja como for, o facto que convém ressaltar é que este culto é ancestral, quiçá unido à própria consciência mística do ser humano e, mesmo que pensado como agrário e lunar, veio a fundir-se naquilo que chamamos de protecção divina, cristianizado de modo a que não se perdesse nas brumas do tempo. Sentirmo-nos eternamente reconfortados pela mão que embala o berço é algo de que o ser humano preferiu não abdicar. E se a função agrária tem vindo a passar para um plano secundário, a sua actuação no campo da 35
visão de imortalidade da alma parece ressurgir com grande fulgor no culto mariano, o qual passou por uma fase de grande esquecimento forçado até reaparecer sob a égide de São Bernardo de Claraval no seio da cavalaria templária. “Se a Ordem tomou como patrono S. João Evangelista, associou-lhe, sob a influência de S. Bernardo, a Virgem Maria, a qual se apresenta, de facto, como uma remanifestação da grande protectora genésica dos povos pré-cristãos como Isis, Ishtar, Annita, Vénus Urânia – a Sofia dos Gregos – ou a Dé Ana, a Virgem devendo gerar, Virgini pariturae, cuja vinda era esperada pelos Celtas. No pensamento bernardino e templário, o tema mariano é recorrente, encontrado num grande número de orações, muitas vezes impregnadas de grande beleza, de um despojamento muito cisterciense e de uma mística profunda. Pode citar-se a que foi pronunciada pelo irmão Amaury de Limoges, à guisa de louvor (1310): Santa Maria, Mãe de Deus, (…), Mãe sempre virgem e preciosa, ó Maria, salvação dos enfermos, consoladora dos que a vós recorrem, triunfadora sobre o mal e refúgio dos pecadores arrependidos, aconselhai-nos, defendei-nos. Defendei a nossa religião (a Ordem), que foi fundada pelo vosso santo e caro confessor, o Bem-aventurado Bernardo, com outros sábios homens. Arquétipo da mulher sublimada, a Virgem é a via por onde passa a força cósmica, servindo e animando toda a criatura que a descobre. É a intermediária que permite ao Verbo incarnar e simbolizar o Amor real e indiferenciado, perpetuamente vivo, tornando-se a Mãe ou a Senhora, no sentido cavaleiresco do termo. (…) A temática mariana conheceu dois níveis de interpretação: um nível exotérico, reservado aos irmãos comuns, com base estritamente devocional, em que a Virgem era entendida como a mãe de Cristo, conforme os ensinamentos da Igreja de Pedro, e um nível esotérico e simbólico, sem marilatria, em que Maria, imagem velada da Pistis Sophia, era a Schékinah da Cabala que designa a presença imediata de divindade no seio do mundo. (…) Ela é o laço que liga o finito ao infinito, os mundos superior e inferior, mediador que faz comunicar Deus e os homens. Estas concepções podem ser ligadas às últimas palavras pronunciadas por Cristo ao morrer, relatadas no Evangelho de João: Então Jesus, vendo sua mãe e junta dela o discípulo amado, disse a sua mãe ‘Mulher, eis o teu filho!’ Em seguida disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’ e desde aí o discípulo a guardou em sua casa. (…) No séc. XII, Sto. Amadeu de Lausana, monge em Cister no tempo de Bernardo, escreveu estas soberbas linhas: O Espírito Santo desceu sobre outros santos; sobre outros descerá; mas sobre ti [a Virgem] ele descerá de novo, porque, entre todos e sobre todos, escolheu-te para que ultrapassasses a universalidade daqueles que antes de ti vieram, ou depois de ti virão, pela ple36
nitude da graça (…). E quando ele te tiver cumulado, pairará sobre ti e serás levado pelas tuas águas, para de ti fazer uma bem melhor e mais maravilhosa obra do que quando, levado ao princípio sobre as águas do abismo, dispunha a matéria da criação de maneira a tomar forma e a tornar-se o mundo. Tudo isto explica a extrema devoção que o Templo votava à Senhora Santa Maria, em quem colocava, nas suas orações, o começo e o fim da religião”17. E, convenhamos, Portugal adoptou o culto de Maria, com a mesma pujança com que os seus antepassados tinham acolhido a ligação com a Grande Deusa. De um momento para o outro, a profusão de espaços monumentais, ou meramente religiosos, intimamente ligados a esta devoção foi extraordinária. Isto leva-nos, naturalmente, a acreditar que, na sua grande maioria, pura e simplesmente as populações locais trataram de cristianizar um ancestral culto agrário ou lunar, de modo a que a íntima união mística entre a deusa e os seus apaniguados não fosse quebrada. Obviamente que tal relação nem sempre foi fácil, como escreve um prestigiado autor, devoto investigador das primícias da nacionalidade portuguesa. “A implantação do culto mariano foi bastante controversa entre as diferentes igrejas do cristianismo dos primeiros séculos. Esse facto, aliás, aconteceu com a maioria dos dogmas que acabaram por vencer, sendo hoje, no geral, considerados os esteios revelados das actuais teologias cristãs. Logo nos primeiros séculos do cristianismo, os gnósticos coliridianos transferiram o culto de Astarté, a deusa síria, para Maria como Virgem e Rainha dos Céus, tendo sido perseguidos pelos cristãos ortodoxos por heresia. Porém, nos séculos IV e V, começaram a surgir muitos templos dedicados à Virgem Imaculada, e foi só no Concílio de Éfeso, em 431, que Maria recebeu o epíteto de Mãe de Deus. Esta divinização tardia da Virgem Maria surgiu como necessidade de cristianizar os velhos cultos à Deusa-Mãe. Essa cristianização (quase só mudança de nome) foi um êxito histórico. Na Frigia os locais de culto a Cibele converteram-se em igrejas dedicas à Virgem Maria, como aconteceu com a caverna próxima de Antioquia, antigo lugar de Cibele, hoje dedicada a Nª Senhora. (…) Essa cristianização permitiu que, com outro nome, os povos da cristandade continuassem a adorar a Deusa-Mãe. A forma praticamente nem mudou, existindo, por exemplo, muitas imagens de Ísis amamentando Horus, tal como acontece com a Nª Sr.ª do Leite. (…) Em Portugal, existem inúmeras particularidades relacionadas com as múltiplas tradições da Nossa Senhora dos mil nomes, que merecem 37
um estudo esotérico e antropológico. Uma dessas particularidades é a relação da Nossa Senhora com a caverna ou a gruta iniciática, o útero da Terra-Mãe. Da mesma forma que na antiga Terra das Serpentes os dólmenes inseridos nas mamoas seriam a imitatio da caverna primordial, local, por excelência, do culto à Deusa-Mãe, ainda hoje existem santuários marianos em Portugal inseridos em grutas, podendo citar-se como exemplos: Nª Sr.ª da Lapa, em Sernancelhe, Nª Sr.ª do Carmo, em Guimarães, e Nª Sr.ª da Estrela, na Redinha.”18 Apesar de nem todos os historiadores estarem de acordo quanto a esta afirmação, os nossos estudos tornam possível que nos atrevamos a afirmar que Portugal é, na sua essência, um país mariano, criado originalmente sob a égide da Grande-Deusa, culto ancestral e confirmado entre nós destes tempos bem remotos e, posteriormente, cristianizado na visão da Nossa Senhora19, a que personalidades como D. Afonso Henriques, primeiro monarca da nação, e o monge cisterciense São Bernardo ajudaram a dar forma. Mais tarde, os sucessivos elementos que tornaram esta nação uma realidade limitaram-se a moldar o culto de modo a que os portugueses se sentissem de tal forma aconchegados no seio divino que, ainda actualmente, corre a noção de que Portugal é um país intocável pelo facto de ter a protegê-lo a rainha dos céus, a senhora de branco que vela constantemente por nós. Naturalmente que as aparições marianas, datadas do século XX, a isso não são alheias. Por outro lado, os portugueses também não se fazem rogados no que diz respeito a prestar a devida homenagem à protecção divina da Virgem. “O que sensibiliza é a predominância de Maria (…) Maria é companheira. Por influência de Cister e da mariologia de S. Bernardo, parece estar no princípio e fim da Ordem, mas ela serve apenas de escada: a consagração a Maria ordena-se à consagração de Jesus. O ofício matinal de Nossa Senhora é compulsivo, segundo o artigo 7º da Regra, mas nas suas festas, sob o seu maternal amor, o jejum era mitigado. No mais, tudo se consagra a Maria, por isso a razão de se considerar a Ordem templária uma Ordem mariana, se bem que ordenada ao Filho e, por seu Filho, ao Pai. (…) Na essência, porém, o ano mariano templário acompanha todas as principais festas marianas, que a Ordem de Cristo manteve e ampliou. (…) O mapa de Portugal abunda nas invocações templárias de Santa Maria, por vezes com outro nome, como se vê em Nossa Senhora da Flor 38
da Rosa (Crato), Santa Maria do Olival (Tomar), Nossa Senhora do Mosteiro (Castelo Novo), Nossa Senhora da Oliveira (Guimarães e Ribatejo) ou na simples designação de Santa Maria Maior (Assunção), Padroeira de todas as Sés Catedrais portuguesas de fundação medieval. Os tempreiros, como diziam os portugueses da medievalidade, privilegiaram o culto mariano, ratificando a par e passo a pastoral mariana própria da Ordem de Cister. (…) A mariologia bernardina transpira na Regra templária e transitou para a Ordem de Cristo que, segundo alguns, não é uma Ordem nova, mas a mesma Ordem templária, crismada com outro nome, nome esse já patente no Prólogo de Troyes, sob a forma Miles Christi. A teologia mariológica de S. Bernardo celebra sobretudo a maternidade divina (Nossa Senhora do Ó), fazendo depender os atributos da humildade e da virgindade do próprio e original facto da maternidade divina, de modo que a virgindade é fruto da maternidade, pela qual Maria se torna medianeira universal, e suporte da redenção.”20 Tendo, como tal, chegado à conclusão que ambicionávamos desde o início da análise ao tema em concreto, cremos ser este o momento de desmistificar uma visão histórica que, por vezes, nos é feita chegar por algumas leituras. E, logo, em algo que, bem recentemente, passou a figurar entre os factos mais estudados da mitologia portuguesa. Apesar de algumas teorias abordarem a possibilidade de o Santuário de São Miguel da Mota, no Alandroal, ter sido dedicado a esta deusa, a realidade é bem distinta. Na verdade, estamos a tratar de uma devoção, bastante antiga, à mais misteriosa das divindades cultuada no nosso território, Endovellicus. • Endovélico Grosso modo, aquilo que sabemos sobre esta divindade é que se trata de um culto simultaneamente solar e ctónico ligado, muito provavelmente, à medicina (ou, num estado mais embrionário, à saúde física). Originário da Idade do Ferro, a devoção passou às gerações posteriores e de tal modo se enraizou no solo português que o culto passou, através da actuação dos romanos, de nacional a internacional, distribuindo-se por todo o Império com sede em Roma, porém denominado Esculápio ou Asclépio (ainda hoje consideradas divindades medicinais). Fundamentado na existência de, pelo menos, setenta monumentos epigráficos, este culto depressa se estendeu a todo o território nacional (as39
sim como em partes de Espanha, nomeadamente em Huelva, no Monte Adelabo, de onde se depreende a conotação entre a divindade Andevellicus), tornando-o o mais importante de que há registo. Parte efectiva do panteão lusitano, existe, actualmente, a chamada Rota do Endovélico, que passa por locais alentejanos que vão desde Rocha da Mina até Castelo Velho, sem deixar de referir Castelinho. No entanto, a zona fulcral da sua devoção seria uma zona agreste localizada no concelho do Alandroal, nomeadamente o outeiro de São Miguel da Mota. “É opinião unânime no nosso país, corroborada pelos mais afamados investigadores desta área, e apoiada, em certa medida, pela presente obra, que o deus Endovélico foi, efectivamente, aquele que obteve, junto das populações coevas, da pré-cristandade, uma maior notoriedade. Erguido no topo do cabeço de S. Miguel da Mota, há muitos séculos atrás, o santuário do Deus Endovélico resume-se hoje apenas aos vestígios das suas ruínas. Actualmente as dúvidas sobre a origem desta divindade ainda perduram no ar. Para uns poderá ter sido uma divindade do panteão indígena da Lusitânia, que mais tarde foi romanizado. Para outros, como J. Leite Vasconcellos, o Deus poderia ser de origem céltica. (…) Desta forma não se pode pois afirmar, com clareza, que o culto do Endovélico seja de origem PréCéltica, contudo na época Céltica este culto acentua-se, atingindo o seu maior esplendor na época romana. (…) O culto de Endovélico é revelado pela existência de um santuário. Provavelmente, todo o outeiro de S. Miguel da Mota, primeiramente, seria sagrado (culto da montanha). À medida que a crença vai aumentando, surge a necessidade de criar um local próprio para a divindade. Esse local é, pois, o santuário de S. Miguel da Mota. Foi nas suas encostas que se encontraram lápides e outros objectos, dedicados a este culto. (…) Estes objectos eram levados ao Deus como forma de pagamento em relação ao benefício feito aos crentes. (…) Após a implantação da fé cristã, o santuário do Deus Endovélico foi destruído.21 E, pode ainda acrescentar-se, que tendo em conta os dados arqueológicos disponíveis, o fortíssimo impacto que este culto teve na época e a magia do lugar onde o templo se encontrava – no alto de um monte em cujo sopé passava a ribeira do Lucifecit, uma área há muito sentida como sagrada –, parece-nos interessante estabelecer uma certa relação com o templo de Apolo em Delfos, onde estava o omphalos, o ‘centro ou umbigo do mundo’. (…) Não nos custa nada a crer que Endovélico tenha sido um deus fortemente inspirador da resistência lusitana. Numa ara a ele consagrada está esculpido um ramo de palmeira, símbolo do triunfo e da vitória22. 40
Independentemente da sua origem, o certo é que, no nosso país, obteve posição de destaque, revelando-se como uma espécie de iniciação ao aprofundamento religioso que se seguiria.”23 Esta, naturalmente, tem sido a definição comum. Mas, como temos vindo a observar na presente obra, regra geral existe sempre um outro lado do mesmo assunto. No caso, existe uma opinião divergente, da autoria de José Leite de Vasconcellos, que o considera como divindade céltica. Definitivamente, não estamos de acordo, a menos que analisemos a questão de um ângulo diferente – mesmo sendo, de forma confirmada, um deus pré-céltico, foi durante a presença da cultura dos druidas que a devoção se manifestou de forma mais vigorosa. A razão? Estamos em crer que tal se verificou pois Endovélico seria uma divindade benfazeja, isto é, com o poder de conceder profecias e oráculos, daí a existência de cavidades no Santuário acima descrito, aonde os antigos iam colocar questões que, supostamente, seriam respondidas. Ora, esta ligação profunda com o omphalos, ou “umbigo da terra”, o seu âmago, era algo que os celtas mais estimavam, sempre em contacto com a natureza. Daí o carácter psicopômpico, isto é de condutor de almas do outro mundo, que também Endovélico possuía. É da leitura das inscrições patentes em alguns dos santuários que, em Portugal, se dedicaram a esta divindade que nos chega a hipotética existência de sacerdotes. Primitivos, é certo, mas, ainda assim com funções rituais. A nosso ver, não se tratavam de meros sacerdotes. Eram, na realidade, os míticos Druidas, oriundos do seio da cultura céltica. • Celtas e ligação dos druidas Como sabemos, os celtas eram um conjunto de povos originário da zona indo-europeia que se espalhou por todo o continente, a partir do milénio II a.C., contando-se entre eles famílias sociais tão distintas quanto os Bretões, os Escotos e os Gauleses. Possuíam um rico panteão politeísta, em que as suas divindades se encontram em perfeita comunhão com a natureza e, com grande certeza, uma das mitologias mais fascinantes, de onde destacamos as fadas, os gnomos e os elfos. Porém, é nos seus sacerdotes, figuras de carne e osso que têm em Merlin, o mago da mítica corte do Rei Artur, a sua representação mais co41
nhecida, que reside o principal da sua estrutura mística. Estes eram apelidados de druidas. Portugal, tal como grande parte da Europa continental, não resistiu à invasão céltica, tal como nos revela um autor nacional. “O território onde o actual Portugal continental está localizado funcionou como um verdadeiro caldeirão, dentro do qual se misturavam diversas raças e culturas durante os primeiros séculos da nossa era, originando o carácter do povo português e a sua maneira de estar no mundo, qualidades e defeitos temperados pela índole peculiar dos Lusitanos, dos Celtas e dos Suevos e estruturados pelo cimento aglutinador romano.”24 A abordagem histórica, dita tradicional, dos celtas já foi, por diversas vezes, colocada à análise do leitor e não é essa a nossa motivação neste espaço. Efectivamente, é com algo que raramente se tem abordado que queremos preencher a união entre a cultura destes povos tradicionalmente considerados como irlandeses. Estamos a falar da misteriosa Lenda da Fundação de Portugal, que envolve a figura de Gatelo e as nações célticas da Irlanda e da Escócia. “Aconteceu à cidade do Porto, o que a outras muitas, tanto e mais populares que ela para que se estimassem as suas fundações e origens, as escondeu a antiguidade de maneira que ou de todo as não sabemos, ou só mais leves indícios as conjecturamos… É certo darem à cidade do Porto, os autores tantas fundações quantas etimologias puderam fazer dos nomes que primeiro teve e para que dela falemos com distinção, supomos como coisa averiguada que o primeiro assento desta cidade, esteve de além Douro, em sítio pouco diferente do que hoje ocupa Gaia e, com os mesmos nomes que o tempo lhe foi dando, e assim o que dizemos dela e de seus princípios, havemos por dito dos do Porto. O mais antigo fundador que achamos de Gaia é o que lhe dá João Lesseu, Bispo Rossense em Hibernia (Irlanda), na sua História da Escócia e dele o traz Fr. Bernardo de Brito, na Monarquia Lusitana. Dizem estes dois autores ser Gatelo Cecrópis, filho de Neolo, quarto rei dos Gregos, de quem contam que, depois de ter passado ao Egipto com muitos dos seus naturais e casando-se aí com uma irmã do faraó, Escota, aquele que perseguiu os filhos de Israel, houve de deixar aquela província para lhe não abrangerem os castigos que Deus começava a dar a seu cunhado, pela mão de Moisés. Foi sua saída pelo Nilo ao Mediterrâneo onde nunca pôde tomar porto pelo não deixarem os que habitavam aquelas costas, até que de enfado se meteu no Oceano e veio a ancorar no rio Douro, pouco mais de meia légua arri42
ba da sua foz, onde para sua defesa e comodidade dos seus, edificou uma povoação a que chamou Gatélia, ou Portus Gateli, de onde depois derivou o nome de Portugal, quase Portus Gateli, e que ficou Gaia, que ainda hoje dura… Da vinda deste Gatelo a Hespanha não duvida nada D. Frei Prudêncio de Sandoval nas suas Antiguidades de Tui, antes lhe dá por assento próprio e aos que com ele vieram, à Vila da Corunha em Galiza que faz também fundação sua.”25 De acordo com a autora da obra de onde transcrevemos o excerto acima, Gatelo seria exactamente a figura mitológica de Mil, um celtibero que, com os seus apaniguados, invadiu a Irlanda em tempos muito remotos, dando origem à cultura céltica nessa zona do planeta. Para além disso, tem sido ainda apelidado, sucessivamente, de Goidel, Gaidel Glass e Galam, sendo que, na mitologia céltica, seria neto ou filho de Breogan, considerado o deus Ogma (quiçá, mesmo, Hércules). “Em suma, o Gatelo da lenda, fundador de Portugal e igualmente na origem da fundação da Irlanda e da Escócia, será afinal a personificação de algo que pode ter acontecido na História e que foi tornado mito e transformado num acto de um deus, muito provavelmente venerado pelos Celtas, povos considerados nas origens deste lendário.”26 O estudo sobre a origem da lenda e a personalidade mítica de Gatelo é escalpelizado pela obra em questão, atrás citada, e que desde já aconselhamos a respectiva leitura. Da nossa parte, contentamo-nos em perceber que, para além das ligações que a arqueologia tem vindo a efectuar entre a presença céltica em Portugal, no caso com uma vertente considerada celtibera, por resultar do “cruzamento” entre os povos celtas com os iberos, há uma forte união mitológica entre nós, portugueses, e esse povo que foi materialmente subjugado pelo Império Romano, mas que, no campo mágico e místico, legou noções de tal forma profundas que, ainda hoje, as utilizamos, por vezes de forma inconsciente. Seja como for, a época histórica dos celtas estava fadada ao desaparecimento, com o surgimento dos primeiros focos de cristianismo. • Cristianismo primitivo Dos nossos estudos do fenómeno místico em Portugal, entendemos destacar três focos de religiosidade pré-cristã ou transversal aos ensinamentos de Jesus Cristo. 43
Em primeiro lugar, destaque para o Luciferismo, que muitos têm, erradamente, vindo a considerar como satanismo, por a adoração envolver uma entidade conhecida por Lúcifer, cristianizado com o nome de “diabo”. Na realidade, Lúcifer seria o anjo mais brilhante de Deus que, tendo procurado alcançar um conhecimento superior, caiu em desgraça junto do seu Senhor – eis a explicação mais sucinta e lógica para este anjo caído. Estes pressupostos e definições demoníacas acontecem na época em que os primeiros cristãos pretendem erradicar os cultos politeístas para se concentrarem na figura única (ou, teologicamente, a Santíssima Trindade, ou incorporação de Pai, Filho e Espírito Santo numa mesma entidade) de Deus. É um facto que nem em todos os locais aconteceu assim. No entanto, o estudo em questão prende-se com o território português e, assim sendo, temos de considerar que, por aqui, a cristianização de antigas divindades, como vimos anteriormente com a questão da Deusa-Mãe, foi uma realidade. Não deixa, obviamente, de ser curioso referir que o ribeiro que corre no sopé do monte onde se encontra o Santuário do Endovélico, no Alandroal, se chama, exactamente, Lucifecit (ou Lúcifer, na linguagem actual). “Os primeiros cristãos insistiam que os deuses e os anjos das outras culturas eram, por definição, diabos disfarçados. (…) No entanto, esta demonização não ocorreu por toda a parte. Nos países celtas, os anjos dos druidas foram incorporados na hierarquia cristã. A deusa celta Brigit, por exemplo, transformou-se na Santa Brígida da mitologia cristã. A intolerância dos primeiros cristãos em relação aos anjos das outras culturas era invulgar. Os gregos, os romanos e os celtas tendiam a aceitar todas as religiões como formas válidas de expressar o respeito e o amor pelo poder divino”27. Deste modo, atentemos em Paulo Alexandre Loução que, na sua obra “Portugal, Terra de Mistérios”, confirma: “saliente-se que havia no século IV uma seita cristã denominada os Luciferianos”. Mas não apenas ele nos dá a certeza da existência deste foco anterior à cristandade. “Como se sabe, a iniciação cátara28 – a endura – consistia num suicídio lento pela fome, pela sede e pela solidão, através do qual a alma, dobrando-se sobre si própria, se esforçava por apoderar-se da sua beleza essencial: a forma da luz. Neste estádio superior do narcisismo, designável em termos cristãos por Luciferismo (o mito do Narciso, do jovem que se apaixona pela própria imagem reflectida no abismo, equivale ao mito da queda de Lúcifer), a energia espiritual movimenta a energia sexual em circuito fechado. Cortada a corrente de relação com a natureza exterior, pela 44
abstinência de alimentos, a força ígnea do sangue começa a devorar-se a si própria, e, deste modo, se estabelece um circuito interno, de alta tensão, base subtil da clarividência ou epoptia iniciática. O processo operava assim uma deslocação da potência da morte: o poder desagregador do corpo passava a residir na alma, como um centro devorador.”29 O estudo do luciferismo tem sido escasso. Do pouco que se sabe, colocamos em Gregório de Elvira (ano 392 d.C.) como líder da seita em Espanha durante a sua época. Outros procuram interligar este fenómeno devocional com, entre outros, a Maçonaria. Seja como for, a grande conclusão sobre esta seita é que vem a surgir no seio de uma Europa em transformação e está na origem de um ciclo que, passando pelo arianismo, se vem a focar na tese do pensador Prisciliano que, na Península Ibérica, terá sido bem acolhido principalmente na Galiza e Norte de Portugal. É assim que, para compreendermos a visão do herético espanhol, teremos de analisar a religião pré-cristã que lhe deu origem, o Arianismo. Basicamente, cumpre-nos informar que o arianismo seria uma visão diferente da figura de Jesus Cristo nascida da mente de Arius, um presbítero cristão da região da Alexandria, que viveu entre os anos de 256 e 336. As suas teses assentavam na seguinte tríade – contestava a Santíssima Trindade, com base em: num primeiro lugar, defendia que a matéria e o Pai não eram da mesma essência; num segundo aspecto, afirmava que o Filho era uma criação do Pai, o que nos leva ao terceiro argumento, defendendo que houve um tempo em que o Filho não existia. Deste modo, as bases da personificação tripartida da figura de Deus deveriam esbater-se por completo. Arius foi, naturalmente, contestado. Durante anos a sua doutrina foi rebatida por algumas das mais influentes figuras da cristandade de então, entre as quais se destacava o Bispo Alexandre (natural da Alexandria). Apesar de os seus apoiantes integrarem personalidades como o Bispo Eusébio de Nicodémia, acredita-se que por volta do ano 335 Ário se tivesse “reabilitado”, isto é, renunciado à sua tese e voltado para o seio da visão ortodoxa da fé em Cristo. Para tal, uma missiva, escrita pelo seu próprio punho, assinalava que estava disposto a aceitar a Doutrina extraída do Concílio de Nicéia. Independentemente desse facto, a grande verdade é que os seus pensamentos tiveram seguidores, mormente na Península Ibérica. O principal entre eles chamava-se Prisciliano de Ávila, o qual, muito provavelmente, seria natural da Galiza. À sua linha de pensamento chamou-se Priscilianis45
mo e, por assim dizer, podemos afirmar que inundou a visão pré-cristã de Portugal e, no dizer de Victor Mendanha, conseguiu “rapidamente congregar, em volta do seu credo, tanto os cristãos da vizinha Galiza como os do norte de Portugal”. O mesmo autor vai, ainda, mais longe. “Agostinho da Silva considerou mesmo o priscilianismo como um movimento galaico-português e uma crença profunda, latente ainda na religiosidade do povo das duas regiões. Prisciliano nasceu na Galiza, no ano 385, de famílias nobres, sendo e declarando-se um homem cristão, por sinal muito eloquente e erudito, afirmando constituir a oração, a meditação e o comportamento religioso três procedimentos fundamentais. A dissidência com os teólogos da Igreja Católica assentava, porém, em dois factos principais: pretendia a mulher revalorizada na sua dignidade e a intervir, de forma activa, nas reuniões litúrgicas e até no sacerdócio; achava que a religião estava sendo limitada ao espírito, pretendendo por isso alargá-la a toda a individualidade ou constituição do homem. (…) Os biógrafos do bispo galego referem ter sido Prisciliano discípulo do cristão gnóstico Marcos, nascido no Egipto e educado na escola de Alexandria onde, ao mesmo tempo, se ensinavam os Grandes Mistérios. Muitos milhares de pessoas aderiram ao priscilianismo e até diversos bispos da Península, como Instancio e Salviano, seguiram-no e defenderam-no, o que não obstou ter Prisciliano sido condenado à morte e degolado em Tréveris, no ano 385 depois de Cristo.”30 Se a ideia de ter esta visão herética erradicada da face da terra com a morte do seu mentor era notória nas autoridades eclesiásticas de então, convenhamos que erraram redondamente. As ideias de Prisciliano não se terão perdido algures no tempo. A sua visão de um papel mais notório para a mulher nasce pouco depois do Concílio de Nicéia onde, como já vimos por diversas vezes, a estrutura base assentou na Santíssima Trindade e na imagem primordial de Jesus Cristo. No entanto, ainda actualmente, esta questão da participação activa do elemento feminino na celebração eucarística tem sido debatida. Assim, temos de afirmar que, pelo menos em Portugal, algumas das noções de Prisciliano não desapareceram sem deixar rasto. De que outro modo podemos perceber que, ao fim de praticamente um milénio de continuado silenciamento do culto da figura feminina, uma 46
pequena nação, localizada na área mais continental da Europa pudesse, em 1143, assumir-se, sem tergiversar, como país mariano? É clássico dividir a História em quatro pilares: religioso, militar, económico e social; todavia, há ainda um quinto pilar: o mítico. Vítor Manuel Adrião
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3. Influências Externas
Já lemos anteriormente que Portugal esteve, desde os seus primórdios, à mercê da influência cultural e arquitectónica de diversos povos. De todos aproveitou o que havia de melhor e, por assim dizer, parece ter renegado interferências nefastas para o crescimento da sociedade. De todas estas culturas que por aqui passaram existem, no entanto, algumas que, a nosso ver, mais influíram naquilo que, actualmente, chamamos a alma portuguesa. Naturalmente, os Lusitanos, os nossos mais directos antecessores, assim como o Império Romano e os Muçulmanos estiveram, forçosamente, na génese de formação cultural surgida da independência portuguesa. Mas, por outro lado, existem duas outras civilizações que, de acordo com a grande maioria dos investigadores nacionais, podem ter auxiliado na construção do nosso território. Infelizmente, estamos em crer que jamais se poderá confirmar tal teoria, atendendo a que, apesar de tudo, a ilha perdida de Atlântida e o mítico reino de Tartessos não passaram ainda de ser meras teorias especulativas, até por não se ter a certeza absoluta da sua real existência. “A da Atlântida é a mais conhecida entre as histórias misteriosas do mundo. O nome do continente evoca em nós uma estranha familiaridade, quase de recordações perdidas, e isto não deve fazer surpreender: durante milénios os nossos antepassados fizeram conjecturas acerca deste tema. (…) A lenda da Atlântida, se é que assim podemos chamar-lhe, é inegavelmente rica de vitalidade e continuamente se renova, como o mito igualmente conhecido da Fénix árabe. Cada nova geração absorve da tradição a recordação deste continente desaparecido, deste paraíso perdido no fundo do mar; assim se colocam novas perguntas, novas explicações aparecem.”31 Assim seja, então. Avancemos para uma tentativa de explicação de todas estas questões, com a consciência, porém, que um ensaísta não é mais do que um filtrador de informação legada pelos documentos antigos, pela investigação in situ, formulando as suas próprias conclusões. E, se isto é verdade para o campo da dita História Pura, então imagine-se a dificuldade quando estamos a lidar com a apropriadamente apelidada de História Mítica. 48
• Atlântida De todas as civilizações, definidas enquanto tal, que se conhecem, a mais antiga que possa ter estado presente na formação de Portugal é, sem sombra de dúvida, Atlântida. Basicamente, todos os teóricos defendem que se trataria de uma ilha, baseando-se nos relatos de Platão, o primeiro a abordar este tema. Portanto, antes de mais, atentemos nas suas palavras, transcritas do célebre Timeu. “Uma ilha, com efeito, se encontrava diante do estreito que vós chamais as Colunas de Hércules. (…) Daí era possível aos navegadores de antigamente passarem para as outras ilhas, e destas ilhas para todo o continente situado em frente delas e que rodeia esse mar longínquo, o verdadeiro mar. Porque aqui, para cá do estreito de que estamos a falar, é apenas uma enseada de saída apertada; do outro lado é realmente o mar, e a terra que o rodeia, é que verdadeiramente tem direito a ser chamado continente”. Assim se inicia o relato épico do filósofo grego, escrito em torno do ano 360 a.C. Platão vai, ainda, mais longe, declarando que, à época, seria possível percorrer todos os demais continentes a pé, ligados que estavam na fase posterior a Pangeia, esse momento único de criação da civilização. No entanto, havia uma pequena ilha, localizada a Oeste das Colunas de Hércules (que têm sido interpretadas como o Estreito de Gibraltar), isolada das demais nações, que primava por uma cultura extremamente avançada, distinguindo-se de todas as outras. “Nesta ilha, chamada Atlântida, existia um grande e maravilhoso império, que dominava toda a ilha juntamente com muitas outras partes do continente. (…) Possuíam riquezas como nunca as possuíram anteriormente soberanos e poderosos, como provavelmente nunca as terão no futuro. Tinham acumulado tudo o que precisavam nas cidades e na região circundante. Muitas coisas, por causa do seu poderio, lhes chegavam dos países estrangeiros, muitas outras lhes fornecia a própria ilha para as necessidades da vida. Em primeiro lugar, extraíam da terra todas as substâncias sólidas e fundíveis. (…) Havia abundância de madeira para o trabalho dos marceneiros e alimento bastante para os animais domésticos e selvagens. Havia, além disso, na ilha enormíssima quantidade de elefantes. (…) Os perfumes que agora existem na terra, de raízes ou ervas ou madeiras ou essências destiladas de flores e frutos, todos eram ali produzidos e fornecidos. Também os frutos moles ou duros que nos servem de alimento, os legumes que usamos na co49
mida, os frutos lenhosos que nos dão bebida, alimentos e unguentos, como ainda os frutos que, usados por jogo e por deleite, depressa se estragam e aqueles que usamos como estimulantes contra a saciedade no final da refeição, todos aquela ilha sagrada debaixo do sol produzia, belos e maravilhosos e infinitos em número. Seja como for, enquanto obtinham todas estas coisas da terra construíam templos, palácios reais, portos, arsenais e embelezaram toda a região. (…) Revestiram de prata todo o exterior do templo excepto os acrotérios, que foram revestidos de ouro. No interior, a abóbada era toda em marfim, matizado de ouro e auricalco, enquanto toda a parte restante das paredes, das colunas e do pavimento estava coberta de auricalco. Ali se colocaram estátuas de ouro: o próprio deus de pé no carro, guiando seis cavalos alados, tão alto que com a cabeça tocava na abóbada; e em volta cem Nereidas sobre delfins, pois tal era o seu número para as pessoas daquele tempo. No interior do templo existiam além disso muitas estátuas oferecidas por particulares. Cá fora, em volta, viam-se as imagens de ouro daqueles que foram incluídos entre os dez reis e suas consortes, como ainda de muitas outras grandes oferendas de reis e de particulares, quer da própria cidade quer de outras cidades de que tinham o domínio.”32 A partir daqui, não existe mais nada de concreto. Tudo o que se tem passado, em termos ensaísticos, não passa de teorias, por mais bem fundamentadas que se possam tratar. E foram imensas, como podemos aquilatar da seguinte transcrição: “Em Creta: Encontraram-se, na ilha de Santorini, restos de uma cidade sepultada sob a lava com 3.500 anos de antiguidade. Toda esta zona sofreu grandes cataclismos geológicos. No Mar do Norte: Foram encontrados restos ciclópicos de uma cultura nórdica que, segundo Jorge Spanuth, dataria de 3.000 a.C. O seu livro A Atlântida é um dos mais documentados sobre a demonstração de uma hipótese não clássica. Teoria Clássica: É a defendida por Platão e pela maioria dos autores gregos, os quais, por sua vez, vêem as suas afirmações corroboradas pelos relatos tradicionais (egípcios, sumérios, maias, astecas, etc). Para o filósofo grego, a Atlântida (isto é, Poseídon, última ilha daquele continente) afundou-se há 11.500 anos e era, aproximadamente, do tamanho da Irlanda. Situava-se para além do Estreito de Gibraltar, ou seja, no Oceano Atlântico. As tradições egípcias situam-se a ocidente, e as pré-colombianas, a oriente. Houve também quem defendesse que a Atlântida se situava em Tar50
tessos, na América do Norte e do Sul, no Norte de África, na Bélgica, na Sibérua, no Oceano Índico (Mu), no Pólo Norte… Actualmente, não há dúvidas quando à localização da Atlântida no meio do oceano Atlântico. No entanto, é preciso não confundir as colónias atlantes com o continente propriamente dito, pois aí é que reside a causa de muita confusão. O que nos diz a História Crantor (Séc. III a.C.) escreve que ele, tal como Platão, tinha visto as colunas onde estava escrita a história da Atlântida. Aristóteles (384-322 a.C.), apesar de ter sido um dos primeiros cépticos quanto à existência da Atlântida, escreve sobre uma grande ilha situada no Atlântico, à qual os Cartagineses terão chamado Antília. Homero e mais tarde Plutarco descrevem um continente chamado Saturnia e uma ilha de nome Ogygia, situada a Ocidente. Na Odisseia, também se fala de uma ilha localizada no centro do mar e governada por Atlas. Hesíodo (séc. VIII a.C.) em Os Trabalhos e os Dias fala do mito das raças, que se vão sucedendo umas às outras. E cita o caso de uma raça vermelha que abandonou o Sol e foi absorvida pelas águas no decorrer de uma noite. Marcelino (330-395), historiador romano, diz que a intelectualidade de Alexandria considerava a destruição da Atlântida como um facto histórico. Proclo (412-485), membro da escola neoplatónica, afirma que, não longe do oeste da Europa, havia algumas ilhas cujos habitantes conservavam ainda a recordação de uma grande ilha que os dominara, em tempos idos, e que fora mais tarde tragada pelo mar. Heródoto (séc. V a.C.) relaciona Tartessos com a Atlântida e fala de uns povos chamados Atarantes ou Atlantes. Tucídides (460-400 a.C.), em As Guerras do Peloponeso, narra vários terramotos, referindo-se num deles ao afundamento de Atalante. Diodoro Sículo (séc. I a.C.) descreve detalhadamente as guerras entre as Amazonas e um povo chamado Atlantioi. Situa as Amazonas numa ilha do Ocidente chamada Hespera, próxima do pântano Tritoris, no centro de África; diz que este estava habitado pelas Amazonas e pelas Gorgonas e secou devido à ruptura dos terrenos que o separavam do oceano. Esta narração concorda com uma outra, egípcia, que nos conta que o templo de Heliopólis foi o primeiro a ser construído quando o país emergiu das águas. Apolodoro (séc. II a.C.) faz eco da doutrina de Platão. 51
Tertuliano (160-240) refere-se ao afundamento da Atlântida e ao estado da Terraque que está, inclusive, a sofrer agora transformações. Fílon, o Hebreu (20 a.C.) também comenta a abertura dos estreitos da Sicília e cita três cidades que estão debaixo do mar. Arnóbio, o Africano (séc. IV d.C.), membro da primitiva comunidade cristã, diz: Fomos acaso nós os culpados de há 10.000 anos terem escapado uma grande quantidade de homens da ilha chamada Atlântida ou Neptuno e arruinarem e eliminarem inúmeras tribos?”33. De todas estas interpretações, concluímos que muitos têm sido aqueles que acreditam na anterior existência da ilha conhecida por Atlântida. E, se igualmente somos obrigados, pela força dos documentos e estudos dos mais proeminentes ensaístas da História, a concordar com a existência de tal civilização, uma questão surge de pronto: onde se localizaria? Da nossa parte, naturalmente, temos um único local como ponto de referência: os Açores. Para tanto baseamo-nos em dois pormenores que nos parecem indiscutíveis: em primeiro lugar, o facto de a raiz etimológica de Atlântida provir de Atlanticu, termo que igualmente se conota com Atlântico, isto é, o Oceano que divide os continentes europeu e africano do americano. Num segundo lugar, e olhando para um qualquer mapa cartográfico, poderemos vislumbrar algumas ilhas espalhadas por essa grande superfície aquática. Porém, as palavras de Platão sugerem que a ilha seria localizada a seguir ao Estreito de Gibraltar que, como sabemos, se localiza entre Gibraltar (Espanha) e o Norte de África. Vemos, assim, reduzido o lote de possibilidades entre as ilhas atlânticas, até porque não acreditamos que a localização de Atlântida de afastasse demasiado do continente europeu. Um último pormenor torna, em conjunto com tudo o mais que descrevemos, então, a teoria irrefutável: o fenómeno da presença de vulcões, tão comum nas ilhas açorianas. Curiosamente, ou talvez não, não só os autores nacionais defendem esta teoria: “Suponhamos encontrar no meio do Atlântico, frente ao Mediterrâneo nas proximidades dos Açores, os vestígios de uma imensa ilha mergulhada no mar com a largura de uma milha (cerca de dois quilómetros) e o comprimento de duas ou três: não seria isto uma prova convincente de quando Platão declarou a propósito do facto de que para lá do estreito onde colocais as Colunas de Hércules existia uma ilha maior do que a Ásia (Menor) e a Líbia reunidas chamada Atlântida? E suponhamos que vamos descobrir que os Açores sejam os picos das montanhas desta ilha submersa, arrasadas e niveladas por tremendas convulsões vulcânicas e que em toda a volta, descendo para o mar, existam amplas camadas de lava, e que toda 52
a face submersa esteja coberta por milhares de milhar de restos vulcânicos; seríamos talvez forçados a admitir que estes factos fornecem a prova da verdade da narrativa de Platão, onde disse que num só dia e numa noite fatal sobrevieram terríveis maremotos e inundações que fizeram afundar aquele povo poderoso… Todos estes factos foram claramente provados por recentes investigações.”34 Posto isto, e antes de avançarmos demasiado, seria interessante analisar uma visão mais esotérica da Atlântida. Concretamente, estamos a falar da Teosofia, que define os Atlantes como uma raça de gigantes que teriam vivido há aproximadamente dezoito milhões de anos. Em termos evolutivos, a perspectiva teosófica define quatro grandes raças: a Sem Mente (300 milhões de anos atrás), a Sem Ossos (continente hiperbóreo), Lemuriana (há 10 milhões de anos) e, por último, a Atlante (ou Ariana, a ter existido há um milhão de anos). Estes atlantes, os primeiros da Humanidade a possuir características similares ao Homem actual, sentiram, inclusivamente, necessidade de se cruzarem com animais, surgindo seres que conhecemos, entre outros, como centauros. Seja como for, e acredite quem quiser, o certo é que, a existir, a ilha da Atlântida parece ter tido um desaparecimento abrupto. As afirmações do seu desaparecimento de um dia para o outro, devido a uma catástrofe natural, que se calcula a erupção de um ou vários vulcões, são apoiadas por vários pesquisadores. Na verdade, faz todo o sentido, se olharmos atentamente para a própria configuração geográfica das ilhas dos Açores. Por mais que um vulcão possa parecer inactivo, a qualquer momento, do seu cume podem ser expelidas matérias de tal modo ardentes que devastam tudo na sua passagem. “O afundamento da Atlântida, antes situada entre a Europa e a América, ter-se-á devido a seu (investigador João de Almeida, na sua dissertação de licenciatura, em 1901) ver a uma catástrofe geológica, ou melhor, a transformações sucessivas na crosta terrestre a partir do começo do plioceno (que cobria a parte oriental da Península Ibérica), elevação das cordilheiras bordejantes da fossa mediterrânica… No final do período pleistocénico teria começado a noite trágica da Atlântida que, fendida de alto a baixo, retalhada, desconjuntada em muitas ilhas, se foi submergindo e desaparecendo lentamente, pelo espaço de muitos milénios, até restarem nos nossos dias, os topos de certos maciços montanhosos, como os das Ilhas dos Açores, da Madeira, das Selvagens e das Canárias.”35 53
Esta raça atlante era, então, extremamente avançada para o seu tempo, comungando algumas das tradições que, ainda hoje, se vislumbram em Portugal, tal como o culto do touro. Na verdade, já na Atlântida se dava a prática de primitivas touradas, nas quais se caçava este animal para, depois, o mesmo ser morto e deglutido por todos. Para além disso, praticavam um culto solar e também lunar, tal como os antigos habitantes do nosso país. Temos, então, vários pontos de contacto que, por mais ténues que possam parecer, acabam por formar uma justificação global de algumas das teorias aventadas. Se, como nos refere outra lenda, muitos dos atlantes ter-se-ão apercebido da possibilidade de erupção de um vulcão na ilha e, desse modo, fugido ao atroz destino, quiçá refugiando-se no continente africano, dando posteriormente origem ao actual Egipto, porque não poderemos acreditar que os habitantes da Atlântida, localizada nas ilhas que hoje em dia chamamos de açorianas, tenham também procurado a zona continental que lhes estava mais próxima, no caso Portugal36? A viagem não era longa. O espaço, nessa época, já poderia ser propício à habitação humana, pelo facto de aí já residirem os mais antigos descendentes dos seres humanos que necessitavam, obviamente, de condições mínimas para sobreviver. Então, teriam alguns membros da raça atlante encontrado refúgio na zona que actualmente conhecemos por Portugal? Nesse caso, porque não considerar que Tartessos tenha sido por eles fundada? “Na dúvida abstém-te, ensinava Zoroastro, e Francis Bacon dizia que na contemplação das coisas, se o homem principia com certezas, terminará na dúvida; mas, se ele se contenta em principiar com dúvidas, terminará na certeza. (…) Será que pretendemos afirmar categoricamente que a Atlântida existe? Não, o que se passa é que duvidamos da sua não existência porque acreditamos que as mitologias não mentem, como já foi provado mais do que uma vez, e tão-pouco as investigações científicas que apontam para a existência de um continente no fundo do oceano Atlântico.”37 • Tartessos Talvez a aproximação teórica que fizemos anteriormente entre a Atlântida e Tartessos se deva a defeito profissional, isto é, à busca incessante de emparelhamentos históricos, por mais improváveis que, à partida, possam parecer. 54
Talvez a Atlântida e Tartessos jamais tenham existido. Ou, por outro lado, talvez a hipótese por nós avançada possa ser comprovada se possuirmos a mente aberta… Da nossa parte, não deixamos nunca de estar receptivos à análise dos mais diversos factos. E, sobre Tartessos, sabemos o seguinte: de acordo com muitos historiadores, este reino seria herdeiro da cultura megalítica andaluza, incrustado entre Huelva, Cádis e Sevilha, e tendo o rio Tartessos como referência. Convém notar que, posteriormente, este rio foi conhecido por Baetis, na época do Império Romano, e Guadalquivir, em período muçulmano. Seria, tal como Atlântida, uma civilização extremamente avançada, em termos culturais, economicamente poderosa, mas não interessada no capítulo de força militar, daí resultando o seu posterior desaparecimento. A Bíblia refere o nome Tarsis38 e este foi, sem dúvida, um reino confirmado entre Portugal e Espanha, em datação antiga. Se isto é suficiente para nos abalançarmos em acreditar na existência real de Tartessos, o facto de se ter encontrado uma estela epigrafada com uma estranha escrita considerada tartéssica parece ser o elemento documental que faltaria para se dissiparem as dúvidas. No entanto, o estudo epigráfico parece apontar para que a dita escrita de Tartessos seria, na verdade, original do povo Cónio (ou Cinetes). José Medeiros, no entanto, apoia a primeira versão da origem da placa epigrafada, baseando-se nos estudos de Jorge Alonso, citando-o inclusivamente, na afirmação de que “há uma maior identidade entre a escritura tartéssica e o egípcio-egeo que entre o tartéssico e o grego, fenício ou qualquer outro alfabeto. (…) A antiguidade do alfabeto tartéssico parece superior à de qualquer outro da península, incluindo o púnico.”39 Para além disso, o tesouro do Carambolo, vestígio arqueológico encontrado no Sul de Espanha, tem vindo a dar força aos que acreditam na existência de Tartessos. Porém, o facto de não se ter ainda encontrado resquícios de habitações da cidade de Tarsis levam, ainda, a considerá-la como mítica. Rufus Avieno, no entanto, na sua Ora Marítima, reafirma a existência da civilização tartéssica, escrevendo que entre os Tartéssios, havia o costume de negociar nos confins da Estrimnidas (Bretanha). Também os colonos cartagineses e o povo que habitava junto às Colunas de Hércules frequentavam esses mares, águas que, no dizer do cartaginês Himilco, apenas durante quatro meses podiam ser percorridas. Mas não é o único a dar como confirmada a existência deste povo que habitaria a Península Ibérica na zona que, no nosso país, actualmente conhecemos por Alentejo. 55
“Estrabão, que já viveu depois da morte deste reino, também nos fala dela. Diz que as suas leis eram feitas em verso e tinham mais de seis mil anos. Possuíam escrita e eram mais ilustrados que os iberos. Tartessos teve grandes reis, que a história nos aponta envoltos num misto de lenda e realidade. O seu mais antigo monarca chamar-se-ia Théron. Outro rei, teria sido Gargoris, a quem atribuem a descoberta do aproveitamento do mel. Seu filho Habis teria herdado o gosto pela vida campestre e teria sido o primeiro a inventar a agricultura, a criar as primeiras leis, a proibir o trabalho dos nobres e a dividir o povo em sete classes”40. Também o investigador Adolf Schulten, que durante grande parte da sua vida investigou a existência desta civilização da Antiguidade, refere, na sua obra “Tartessos”, de 1945, que este reino teria sido uma colónia dos Tirsenos da Ásia Menor, ao que parece fundada cerca de 1200 a.C., com o intuito de explorar o minério da Península. À conta disso, ter-se-ia tornado uma das nações mais poderosas do mundo, possuindo uma riqueza incalculável e dominando uma área rica em extracção de minério. Convém, aqui, referir um pouco dos lendários líderes de Tartessos, com início em Gerião, o qual, segundo a lenda, seria um gigante tricéfalo (novamente a associação com os gigantes da Atlântida), passando por Norax, seu neto, e fundador da cidade espanhola de Nora, e Gargóris que teria inventado a apicultura. Porém, o único de que se possui referências histórias é Argantónio, que teria vivido mais de cem anos, e, por assim, dizer, é considerado pelos historiadores (sobretudo Heródoto) como o único que teria sido real. “Argantónio é um rei tartesso de que temos conhecimento pelos gregos. (…) O nome deste rei significa homem da prata. (…) Apesar das riquezas mineiras que exploravam, teriam sido excelentes agricultores, utilizando canais de rega, introduzindo a cultura da oliveira e da videira e criando gado.”41 Aceite-se, ou não, a sua existência, Tartessos ficará, indelevelmente, unida à história do nosso país. E se o seu desaparecimento acontece no século VI a.C., as bases haviam sido instaladas para que, alguns séculos depois, por aqui surgisse uma civilização que, ainda que vivendo na Idade do Ferro, não seria, de acordo com as palavras de Adriano Vasco Rodrigues, menos culta ou avançada que o poderoso Império Romano. Estamos a falar, evidentemente, dos nossos pais históricos, conhecidos por Lusitanos.
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