‘História. Ficção. Literatura’, De Luiz Costa Lima
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resenha de obra de Luiz Costa Lima...
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letraselivros.com.br História. Ficção. Literatura, de Luiz Costa Lima
Qualquer comentário que desejasse fazer justiça ao livro História. Ficção. Literatura e esg tar todos os veios abertos no corpo desse plural tomo produziria uma fortuna críti ca maior do que muitas bibliotecas particulares. Luiz Costa Lima imprime à sua esc rita o viço curioso e ágil que toda busca original possui: em quatro centenas de págin as constrói um debate panorâmico de uma questão demasiado específica e que, no entanto, possui ricas ramificações por toda sociedade de espetáculo em que vivemos: a natureza do discurso e suas diferentes formas de abarcar e delimitar o real e o verdadeir o. Ficção, relatos, documentos: numa sociedade dominada pela disputa da hegemonia no campo das mídias um olhar sobre os discursos e as maneiras como são construídos e dis seminados é relevante e necessário. Não é a que Costa Lima, crítico literário, se propõe: o q e lhe importa é o texto, e como todo texto é a metáfora da sociedade que o produziu, d ebater um é alcançar o outro. O livro todo se equilibra no contraste entre as escritas da história e poesia, e n a maneira como ambas se alimentam da ficção para se enriquecer (ou se devastar). No caso da história, essa aproximação invalida seu discurso, já que não deveria se afastar nu nca da verdade do que aconteceu. A proposta da história é gerar um relato a partir d e uma coleta e seleção de registros. A poesia, por outro lado, não postula a verdade, não a tem como compromisso: ao contrário, põe a verdade entre parênteses, como Costa Lim a afirma inúmeras vezes. É cortando o tecido daquilo que se sucedeu que ela, a poesi a, busca outros níveis de subjetividade que não foram encontradas pela história. Ambas partem do mesmo evento, muitas vezes; mas têm diferentes naturezas. Possuem até a m esma origem, construídas a favor ou contra certa matriz homérica, mas enquanto uma a lçou vôo, a outra chafurda no avançar prático e material dos acontecimentos. Ainda assim , a energia do livro nasce de uma crescente tensão ao redor da pureza daquilo que alimentaria tanto uma escrita quanto a outra: o documento, e a fantasia. Walter Benjamim demonstra o quanto de subjetivo há na coleta, no ato de selecionar; apost a na porosidade de intenções da mão que colhe, de quem coleciona. Poesia e história acab am sendo filhas do mesmo pai distraído e caprichoso, o tempo; e são construídas por aq ueles que mais gostariam de calar sua ação. Sua análise de História e Poesia é apresentada por contrastes de figuras paradigmáticas em suas origens: Heródoto e Tucídides, de um lado; Virgílio e Ovídio, na poesia. Os dive rsos registros e marcas históricas, a relevância de relatos orais para a escrita, co mo os focos do relato histórico são afetados por certa proximidade com a esfera deci sória, todos esses temas são debatidos com profundidade e riqueza de citações na primeir a metade do livro. Costa Lima é mais dedicado em seu embate com a prática de escrita de Tucídides talvez por esse ser mais consciente da natureza artificial na constr ução do saber histórico. Tucídides denuncia certa retórica literária na escrita que o preced eu, certa intenção de gerar beleza, de agradar determinado público; há um credo objetivo nele que o coloca como um autor central na delimitação de um espaço neutro e imparcia l a partir do qual o historiador escreve. O contraste na poesia entre Virgílio e O vídio parte para a construção de um espaço da ficção. A poesia de Virgílio era um braço da fo mperial, a voz oficial de Roma; sua poesia, a recriação verbal da origem de um corpo institucional que lhe legitimava. Sua poesia canta um mundo determinado, de for ma compreensiva a esse mundo. Por outro lado, a peculiaridade de Ovídio nasce do t empo ficcional que criou para seu conjunto de poemas. A História em Metamorfoses é par ticular, regulada pelo próprio texto, e só existe dentro dele. Costa Lima afirma que o caminho aberto por Ovídio foi pouco explorado. Ao longo do livro Costa Lima usa algumas narrativas para ilustrar seus argumento s. Chama atenção a maneira como se debruça sobre O Mestre, romance de Colm Tóibín cujo prot gonista é Henry James. Costa Lima faz uma leitura contrastando o romance com biogr afias e algumas missivas de James, buscando o evento real que alimentou o evento ficcional. E assim demonstra como a liberdade do criador está em resignificar os
gestos, o romance histórico abrindo espaços ricos para ficção nos intervalos da verdade, do que aconteceu, do que foi registrado. O mesmo procedimento Costa Lima empree nde com Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. Comparando os relatos de um ativista político que esteve detido junto de Graciliano com aquilo que é descrito nas Memórias , lembradas dez anos depois dos acontecimentos, Costa Lima aponta para o quanto de verdade uma narrativa que pende ao inexato pode alcançar. O livro História. Ficção. L iteratura, naturalmente, aponta para outros sentidos, numa crisálida rica e erudit a: faz um breve e precioso contraste entre as poéticas de Proust e Valéry, debate a reação pública de Os Sertões, faz uma reflexão sobre a natureza fragmentária do sujeito (e discurso). Para além do livro, pode-se observar que uma riquíssima vereda da ficção contemporânea nas ce da crescente tensão entre a voz do narrador e a voz estatal, em como a história, antes cenário das peripécias das personagens, agora se torna ela mesma o coração da aven tura narrativa. O texto é construído no contraste entre duas ficções: aquela construída pe lo narrador; e aquela legitimada pelo Estado. A mais bem sucedida experiência estéti ca nesse sentido talvez seja a obra do alemão W. G. Sebald, principalmente nos rom ances Os Emigrantes e Austerlitz, nos quais absorve vários procedimentos da escrita hi storiográfica para dar um artificial estatuto de realidade a sua esplendorosa ficção. Projeto esse que encontra irmãos em Cláudio Magris (Danúbio e Microcosmos), V. S. Naipaul (Um Caminho no Mundo), Javier Cercas (Soldados de Salamina), Mario Vargas Llosa (His tória de Mayta) ou Peter Esterhazy (Harmonia Celestial e Versão Corrigida); ou, também, n recente romance Nove Noites, do brasileiro Bernardo Carvalho, e, por uma via irônic a, na curiosa narrativa As Confissões de Lúcio do pernambucano Fernando Monteiro. Vinicius Jatobá
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