História do Existencialismo e da Fenomenologia - Thomas Ranson Giles

January 19, 2018 | Author: Layne Almeida | Category: Phenomenology (Philosophy), Martin Heidegger, Edmund Husserl, Entity, Metaphysics
Share Embed Donate


Short Description

Livro....

Description

História do Existencialismo e da Fenomenologia -Thomas Ransom Giles Martin Heidegger 1. Introdução O pensamento de Heidegger surgiu em meio a uma geração conturbada, sacudida em seus valores tradicionais e no orgulho da sua civilização, mutilada pelo espanto da Primeira Guerra Mundial (a guerra que pretendia acabar com todas as guerras). Esse pensamento pretende representar a recolocação dos problemas fundamentais da Filosofia em função do problema axial do caminhar reflexivo que é a questão sobre o Ser, tema que coincide, conforme Heidegger, com o destino do próprio Ocidente, pois tal como Heidegger a considera, a História do Ser é a história mais autêntica do Ocidente; a questão mais fundamental de todas será, pois, a questão sobre o Ser, e na medida em que o Ocidente configurar o mundo, essa questão atingirá dimensões planetárias. Todavia, essa questão só se torna compreensível a partir de uma análise fenomenológica do ser do homem, único existente a quem foi confiado o pensamento e a guarda do Ser. Martin Heidegger nasceu em Messkirch, em Baden, no sul da Alemanha, aos 26 de setembro de 1889. Fez os primeiros estudos com os jesuítas, onde obteve uma vasta cultura clássica. O incidente que despertou nele a vocação filosófica foi o contato que teve com o livro de Franz Brentano, Sobre os Diversos Sentidos do Ente segundo Aristóteles, presenteado a ele por Konrad Gruber, vigário de Konstanz, e futuro arcebispo de Freiburg-im-Breisgau, a quem Heidegger evoca como amigo paternal e conterrâneo. Portanto, o primeiro contato do jovem Heidegger com a filosofia foi por um estudo sobre o Estagirita, o companheiro mais assíduo e mais familiar ao longo do seu caminhar filosófico. Depois de concluídos os estudos humanísticos nos ginásios de Konstanz e Freiburg-imBreisgau, Heidegger matricula-se na Faculdade de Teologia da Universidade de Freiburg. Desde essa mesma época Heidegger procura perscrutar o conteúdo das Investigações Lógicas de Husserl, que, nessa obra, tentava a refutação rigorosa e definitiva do psicologismo. Sob a influência do neokantiano Heinrich Rickert, Heidegger já se orientava para estudos sobre o problema dos objetos lógicos em face do subjetivismo psicologista. Foi Rickert também quem o iniciou, através dos exercícios de seminários e dos escritos do neokantiano Emil Lask, e quem o levou mais adiante pelo caminho já aberto para ele por Brentano: o caminho da filosofia da Grécia antiga. Entre 1910 e 1914 Heidegger toma contato com a Vontade de Potência, de Nietzsche, a tradução das obras de Kierkegaard e de Dostoievski, e mostra um interesse crescente em Hegel e Schelling, como também nos poemas de Rainer Maria Rilke, George Trakl, além das obras de Wilhelm Dilthey. Tantas forças que levarão Heidegger a colocar em questão toda a orientação metafísica do pensamento ocidental, colocação essa que revelará a profundidade dos transtornos cujas consequências catastróficas se tornaram perceptíveis na Primeira Guerra Mundial, como nas revoluções e guerras que se seguiram. Em 1915, Heidegger é nomeado livre-docente em Freiburg e, no ano seguinte, publica a tese de habilitação: A Teoria das Categorias e das Significações em Duns Escoto. É a Husserl que Heidegger deve o passo decisivo, sobretudo o tema da gramática pura, que o levou para o caminho da fenomenologia, acontecimento que para ele será de importância capital. Doravante, os dois grandes orientadores do filosofar de Heidegger serão Aristóteles e Husserl: o primeiro por ser o formulador da teoria do Ser enquanto Ser, e o segundo por ser o formulador do método fenomenológico. De 1917 a 1919 Heidegger presta serviço militar na frente de combate e toma contato direto com a Primeira Guerra Mundial, o agonizar apocalíptico do mundo moderno após o brilho do século XIX. Desde 1919, Heidegger é assistente de Husserl, ministrando aulas sobre várias questões de

fenomenologia. Comenta semanalmente as Investigações Lógicas de Husserl, sua obra de preferência. Já desde o início da época em que colabora com Husserl, Heidegger tem a sua própria posição e não está disposto a seguir Husserl pelo caminho do transcendentismo. Pelo contrário, intenciona desligar o método fenomenológico do idealismo transcendental das ideias. Nesses primeiros anos de magistério, Heidegger leciona sobre Wilhelm Dilthey, cuja Filosofia da Vida terá repercussões decisivas sobre o seu pensamento, São Paulo, Agostinho, Lutero e Kierkegaard, alternando o estudo sobre esses autores com estudos sobre Aristóteles, os présocráticos, Kant, Fichte, a mística medieval, Descartes etc. Em 1923, Heidegger é nomeado catedrático na Universidade de Marburg, onde dedica a maioria das aulas e seminários à história da ontologia, através de estudos sobre Platão, Aristóteles, os escolásticos, Descartes, Kant, Hegel e Schelling. Em 1933 é nomeado reitor da Universidade de Freiburg. Demite-se do cargo em 1935 mas continua como professor até i fim da Segunda Guerra Mundial, quando é temporariamente licenciado por supostas simpatias com o regime nazista. Heidegger falece em 26 de maio de 1976, em Messkirch. 2. O que significa filosofar? O filosofar heideggeriano é uma constante interrogação, na procura de revelar e levar à luz da compreensão o próprio objeto que decide sobre a estrutura dessa interrogação, e que orienta as cadências do seu movimento: a questão sobre o Ser. Esse filosofar não procura soluções (e nem podia, mesmo que quisesse), mas procura ser um pensamento que interroga dentro do âmbito a partir de onde todas as interrogações e soluções se levantam. É um caminhar que nos dará pelo menos a possibilidade de interrogar, de questionar,e quiçá de entender a voz do Ser do qual somos o pastor. Percorrer o caminho do filosofar significa estar dentro dele, coincidir com ele, encontrar moradia nele, comportar-se conforme ele nos guie. A meta de Heidegger é penetrar na Filosofia, demorar nela, submeter seu comportamento às suas leis. O caminho seguido por ele deve ser, portanto, de tal modo e de tal direção, que aquilo de que a Filosofia trata atinja nossa responsabilidade, vise a nós homens, nos toque e, justamente, em todo o ente que é no ser. O espanto carrega a Filosofia e impera em seu interior; perpassa qualquer passo da Filosofia. Aristóteles diz o mesmo na Metafísica, quando afirma que é pelo espanto que os homens chegam, assim como chegaram antigamente, à origem imperante do filosofar, àquilo donde nasce o filosofar e que constantemente determina sua marcha. É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim, e não de outra maneira. Todavia, o espanto não se esgota nesse retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. O espanto é a disposição em meio a qual está garantida a correspondência do ser do ente. Nesse caminho, que é caminho de reflexão, não pode ser questão de uma “filosofia” pessoal, de uma filosofia de Heidegger, pois ele próprio nos diz, numa conferência de 1955, que não há uma Filosofia” heideggeriana, e mesmo que houvesse algo de parecido, ele (Heidegger) não se interessaria por ela. Portanto, não se trata de estudar a Filosofia de Heidegger, não só porque ele desconheça tal Filosofia, mas também porque a questão que ele coloca caracteriza a Filosofia como tal. Não se trata de questão excepcional, mas de retomada do próprio fundamento da metafisica. Nessa colocação encontramos uma posição que, em certo sentido,ultrapassa a metafisica clássicanão no sentido da metafisica clássica ser falta de sim , na medida em que nela algo permaneça retraído e fora de todo o questionamento. Todavia, esse pensamento tampouco é extra filosófico, pois ele não abandona a Filosofia para perguntar a qualquer outra realidade aquilo que a própria Filosofia seria supostamente incapaz de proporcionar.

Pelo contrario, o pensamento de Heidegger é um retorno ao fundamento da metafisica num movimento problematizador, uma meditação sobre a Filosofia no sentido daquilo que permanece fundamentalmente velado. Alias,mesmo se não há uma Filosofia, na continuidade monumental da sua historia. Evidentemente, não se trata daquilo que se chama de Filosofia hoje em dia-aquele carnaval onde a virtuosidade e desregramento humanista, o desbaratamento dos valores e a pretensão cientifica, as pretensões dialéticas e a improvisação fenomenológica desempenham as suas comedias. A Filosofia sobre a qual medita Heidegger e sobre a qual ele nos convida a meditar é grande característica da inquietação humana em geral, inquietação inseparável da questão-guia a questão sobre o Ser, o primeiro e ultimo fenômeno. Perscrutar o pensamento tal como existe até agora para decifrar nele o que contém de impensado, a fim de que descobrir o lugar onde construir e morar no futuro. É esse o caminho que segue Heidegger. É nesse caminho que o Ser se torna transparente e, pelo próprio fato, se desvela, se mostra, tornando-se cognoscível em resposta à nossa procura do Ser e da verdade enquanto transparência. É nesse caminho que encontraremos talvez a força para tirar a própria Filosofia da solidão onde se refugiria. Mas, o que é essa Filosofia sobre a qual medita Heidegger e que, por assim dizer, orienta de uma forma misteriosa o seu caminhar? Ouvimos e pronunciamos essa palavra desde os primórdios da nossa civilização. É a palavra grega enquanto palavra grega o caminho que se estende diante de nós. Esse caminho que se nos mostra que a Filosofia é antes de tudo algo que pela primeira vez e antes de tudo vinca a existência do mundo grego. Mas não é só. A filosofia determina também, no seu fundamento, o próprio cursoo mais interior-e a linha mestra da nossa história ocidental-eu-mestra da nossa História ocidentaleuropéia a ponto de a expressão “Filosofia ocidental europeia”ser uma tautologia, pois a Filosofia é grega em sua essência. Heidegger entende que a filosofia é nas origens, na sua essência, de tal natureza que ela primeiro se apoderou natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver. Com isso Heidegger quer nos lembrar que somente o Ocidente e a Europa são, na marcha mais intima de sua história, originalmente “filosófico”. O que é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato delas brotarem da marcha mais intimas da historia ocidentaleuropéia, o que quer dizer do processo da Filosofia, são elas capazes de avançar hoje, com seu cunho especifico, para orientar a historia da humanidade nunca existiria, se a Filosofia não a tivesse precedido e antecipado. Mas será que essas afirmações realmente definem os termos do problema da maneira mais exatas? Quando perguntamos que é a Filosofia?, perguntamos sobre a filosofia e pelo próprio fato,colocamos-nos fora dela, ao passo que nós queremos entrar dentro dela, pois é essa a única meta das discussões do pensador de meta das meditações do pensador de Freiburg-im-Breisgau, seguir a filosofia, consciente de que o filosofar é e permanecerá sempre um saber, que não só não deixa moldar pela medida do tempo, mais ainda submete o tempo à sua própria medida. A Filosofia se acha necessariamente fora do seu pensamento, por pertencer àquelas poucas coisas cujo destino consisti em nunca poder nem dever encontrar ressonância imediata na atualidade . Onde tal parece ocorrer, onde uma filosofia se transforma em moda, é porque ou não há verdadeira Filosofia foi desvirtuada e abusada segundo proposito alheios, para satisfazer ás necessidades do tempo. Por isso, também, a Filosofia não é um saber que, à maneira dos conhecimentos técnicos e mecânicos, se possa aprender diretamente, ou formação profissional que se possa aplicar imediatamente e avaliar de acordo com sua utilidade. Todavia,o que é inútil pode ser, justamente por ser inútil, uma força. O que desconhece toda ressonância imediata, na pratica de todos os dias, pode estar em profunda consonância com o que propriamente acontece no pensar. Pode até mesmo ser a sua pré-sonância e prenúncio, pois aquilo

que se encontra fora do tempo terá seu próprio tempo . É o que vale da Filosofia. É essa a razão de não se poder estatuir em geral a missão da filosofia e, por conseguinte, o que dela pode esperar. Cada estádio e cada principio de seu desenvolvimento traz consigo sua própria lei. Somente o que a Filosofia não pode ser nem servir pode-se dizer. Mas, um pensador que está ainda a caminho, que está ainda a caminho,que está ainda à procura do caminho,pode já dizer o que é Filosofia?Consegue situar a questão num caminho claramente orientado, para não vagar através de representações arbitrária e ocasionais a respeito da Filosofia?Conseguirá encontrar o caminho no qual poderá determinar de maneira segura a questão? Talvez a palavra grega lhe mostre a direção, pois conforme Heidegger, se presentarmos atenção ás palavras da língua grega,penetraremos numa esfera privilegiada. Lentamente vislumbramos que a língua grega não é uma língua como as demais. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente em presença da própria coisa, aí diante de nós, e não primeiro apenas diante de uma simples significação verbal. Mas, mesmo que o filósofo, que está à procura do caminho,falasse, não cairia no perigo de ser mal entendido, pois sempre não estará presente a tentação de não tomar o pensamento como indicação, como simples meio de sinalização para aquele que está ainda à procura do seu caminho e, sim,como um resultado adquirido e acabando, apto para ser “compreendido” ? É em função da verdadeira e única questão que orienta o caminhar de Heidegger, a questão sobre o Ser, que forma o principio axilar desse caminhar,que ele recusa qualquer tentativa para dar uma reposta feita,mesmo a essa pergunta. Não se trata de recear que surjam contra-sentidos a respeito de um pensamento, mas da continuação do próprio esquecimento do Ser. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do Ser. Portanto, a nossa tarefa será tentar compreender a origem desse esquecimento;buscar a possibilidade de uma saída; descobrir o caminho de acesso áquilo que deve ser pensado, e conduzir a ele, o que exclui toda resposta feita. O caminho se obscurece e confunde quando nossa relação para com ele se mostra vacilante e abalada, pois filosofar significa tentar ousadamente esgotar, à força de investigações, o inesgotável desse caminho, revelando aquilo que se impõe a investigar. Onde qualquer coisa de semelhante ocorrer, há Filosofia. Nesse sentido toda questão essencial da Filosofia se encontra necessariamente fora de seu tempo, por duas razões principais: ou porque a Filosofia se projeta para muito além da atualidade; ou , então, porque faz reencontrar a atualidade a seu passado- presente originário. Não se trata de tentar conseguir uma compreensão acabada, e sim, de abrir o caminho para uma transformação da disposição do espírito fundamental de nosso filosofar- uma transformação de nosso estado de espirito a partir da qual aquilo que se chama Filosofia se torna atingível como aquilo que carrega em si um destino, o nosso destino. O caminho que Heidegger segue, sem saber muito bem aonde vai,perscruta o pensamento tal como existia até agora, para, ver o que há nele de impensado, para poder talvez descobrir, à sua maneira, o lugar da verdade do Ser enquanto lar onde construir e habitar no futuro. Por enquanto, esse pensamento se contenta em trabalhar na procura do caminho, à procura do que é o ente enquanto tal. A Filosofia, através do diálogo com aquilo que se nos transmitiu como Ser do ente. A Filosofia jamais poderá proporcionar imediatamente as forças, nem tampouco criar os modos de agir e as ocasiões que conduzem a determinada situação histórica, pela simples razão de concernir de modos imediato apenas a um minoria. Que minoria? A minoria daqueles que ,criando, transformam, a minoria dos revolucionários. A difusão da Filosofia é sempre mediata e segue caminhos incontroláveis, para, em algum tempo afinal, mas já há muito esquecida como Filosofia,decair de seu nível originário e transforma-se numa banalidade da existência. O que a Filosofia pode e tem que ser por excelência é outra coisa: a manifestação pelo pensamento dos caminhos e das perspectivas de um saber, que instaure critérios e hierarquias. Fundado nesse saber e a partir dele, um povo concebe e realiza plenamente a sua existência no mundo histórico do espirito. Trata-se daquele saber que antecede, ameaça e impede toda investigação e avaliação.

Pois bem, a Filosofia por essência, nunca torna as coisas mais fáceis, senão apenas mais graves. E isso não lhe é acidental, devido ao fato de seu modo de comunicabilidade parecer estranho e mesmo deslocado da compreensão vulgar, pois o agravamento da existência histórica, com isso, no fundo, do Ser, simplesmente constitui o sentido autêntico de seu esforço. Esse agravamento resistiu ás coisas, ao ente, ao seu peso (o Ser ). É por que tal agravamento é uma das condições essenciais e fundamentais para o nascimento de tudo que é grandioso, em cujo número encontramos, antes de tudo, o destino e as obras de um povo histórico. Ora, só há destino quando a existência se encontra dominada por um verdadeiro saber acerca das coisas, e é a Filosofia que desbrava os caminhos e abre os horizontes para consegui-lo. Quando se diz que da Filosofia não se obtém resultado algum, ou com ela não se pode fazer nada, ambas as maneiras de falar, que de modo particular correm nos círculos dos professores e pesquisadores das ciências, exprimem verificações de indiscutível exatidão. Quem tentasse provarlhes que por fim faria outra coisa senão aumentar e consolidar a incompreensão reinante. Isso se conclui do preconceito segundo o qual se poderia avaliar a Filosofia de acordo com os critérios vulgares, com que decidi da utilidade das bicicletas, ou da eficiência de banhos mediacionais. Está,pois, certo e na melhor ordem dizer-se que “com Filosofia nada se pode fazer”. O errado seria pensar que com isso terminou o juízo sobre a Filosofia, pois lhe sobrevém ainda um pequeno acréscimo na forma de uma contra pergunta:se nós nada poderemos fazer com a Filosofia, pois lhe sobrevém ainda um pequeno acréscimo na forma de uma contra pergunta: se nós nada poderemos fazer com a Filosofia, acaso a Filosofia também não poderá fazer coisa alguma conosco, contanto que nos abandonemos a ela?- Isso basta para elucidar-nos o que a Filosofia não é. Filosofar é investi ficar o extraordinário o que essa investigação em si mesma se apoiá por completo, própria e livremente, no fundo misterioso da liberdade, naquilo que é o salto. Filosofar, assim podemos dizer, é a investigação extraordinária do extraordinário 3. Da Fenomenologia para a Ontologia Conforme testemunha o próprio Heidegger,ele foi levado para o caminho da reflexão sobre a questão fundamental, isto é, a questão sobre o Ser, iluminado pela atitude fenomenológica. Heidegger associava-se de tão perto à fenomenologia, que o próprio Husserl,quando nos primeiros anos após a Primeira Guerra Mundial, perguntado sobre a fenomenologia de Husserl, pensamento esse que se caracteriza pela análise metódica,pela clareza na exposição e o rigor científico, que ensinava a tomar pé numa época de dissolução interna e externa de tudo o que era estável, obrigando a evitar toda linguagem grandiloquente, a provar cada conceito na instituição dos fenômenos, pois a fenomenologia é precisamente a arte de desvelar aquilo que, no comportamento quotidiano, ocultamos de nós mesmos. Mas o Husserl de que se trata é o Husserl das Investigações Lógicas, caracterizadas pelas suas intenções descritivas, pois um dos passos mais importantes na guinada que Heidegger dará à fenomenologia será a sua desvinculação do idealismo das Ideias, caracterizadas pelas pelas intenções transcendentais, para partir da vida real. O papel da fenomenologia consiste em se inserir nessa realidade, que escapa à total auto transparência, e nela manifestar aquilo que ali se oculta da reflexão, assim como a partir de si se manifesta, isto é, ocultando-se para a radicalidade reflexiva. É só assim que podemos atingir o ser do ente, muito além das dissimulações da vida em seu acontecer concreto, assumindo o Ser como velamento e desvelamento reciprocamente entranhados. Todavia, Heidegger não adotará a fenomenologia como movimento, como Filosofia existente, real e sim,como possibilidade metodológica. Ela não caracteriza o “quê” dos objetos da pesquisa, fundamentada na maneira pela qual entramos em contato com as próprias coisas. Heidegger fundamenta a fenomenologia como movimento naquilo que se cham de hermenêutica da facticidade, o que será em definitivo a fenomenologia de hermenêutica;hermenêutica que é primeiramente uma ciência que caracteriza os objetivos, as vias e as regras da interpretação; teoria da metodologia para todo tipo de interpretação e, no caso da

fenomenologia, essa própria interpretação, ou seja, anunciar o ser do ente de tal maneira que o próprio Ser venha a parecer. Porém, desde o primeiro momento da sua formulação por Husserl, a fenomenologia foi antimetafísica, se tomarmos o termo metafisica conforme o seu uso clássico. Contra todo sistema ela propõe um método; contra toda especulação ou construção metafisica ela propõe uma filosofia que assume as proporções de uma ciência de rigor: contra o realismo metafísico ingênuo ela preconiza uma colocação entre parênteses de todo juízo e afirmação sobre a existência e a própria realidade factícia. Em outros termos, a fenomenologia se coloca na perspectiva da estrita neutralidade metafísica, ou seja, na perspectiva das próprias coisas, antes de toda e qualquer intervenção do espírito,deixando que elas se mostrem naquilo que são. Nisso a fenomenologia representa o domínio das pesquisas neutras, em que todas as ciências têm raízes. Aliás, se a preocupação central da fenomenologia de Husserl era a procura do fundamento radical e primeiro de todo conhecimento, e se ele conseguiu levar essa procura num sentido transcendental, é evidente que essa Filosofia exige fundamentalmente uma teoria geral do Ser, isto é, uma Ontologia, pois, através do seu método puro intuitivo, a fenomenologia analisa e descreve a generalidade das essências. Ora, a fenomenologia foi animada, e não apenas de maneira latente, por uma preocupação ontológica; ela foi, por assim dizer, polarizando-se no sentido de fundamentar uma metafísica nova. Ela foi tomando consciência cada vez mais explícita da sua tarefa específica neste sentido, que consiste em lançar os fundamentos dessa metafísica nova. Na medida em que ela se foi aperfeiçoando e aprofundando, tornou-se evidente que ela já era uma ontologia, fato que talvez por causa da sua própria novidade levou algum tempo para ela reconhecer como tal. Mas, graças ao seu movimento incessante de superação e explicitação progressiva, a fenomenologia descobriu e revelou, como por natureza reflexa, a ontologia que lhe é inerente. É nessa ontologia fenomenológica que encontramos a originalidade e a própria profundidade do novo método. Mas nunca esqueçamos que o Ser de que é questão no caso não é mais aquele da ontologia escolástica, nem da ontologia hegeliana. Como para Husserl, também para Heidegger não se trata de perguntar o que é , nem de que realidade posso ter certeza, nem o que é a realidade fundamental e primeira. A questão para ambos será Qual o significado do ser? O que nós entendemos por ser? Até Heidegger, entendia-se, pelo menos tacitamente, que o significado da palavra ser era evidente, embora indefinível. Heidegger, enquanto autêntico fenomenológico, desejoso de levar à luz da compreensão os significados, chega à conclusão de que se é difícil responder à questão o que significa o ser, é porque o significado da própria questão não é tão claro. Aquilo que nos é mais próximo é ao mesmo tempo aquilo que é mais obscuro. Heidegger nos diz em Ser e Tempo, que hoje em dia a questão sobre Ser caiu no esquecimento. Ela inspirava as reflexões de Platão e de Aristóteles, para infelizmente emudecer-se depois como questão temática de uma investigação efetiva. O que ambos conseguiram conservou-se através de múltiplas modificações e retoques até a “lógica” de Hegel. E aquilo que eles, outrora, por um esforço intelectual dos mais árduos, conseguiram arrancar dos fenômenos, embora fragmentário e incipiente, há tempo se trivializou. Não só isso. Na base dos ensaios feitos pelos gregos para interpretar o Ser, desenvolveu-se um dogma que não só declara supérflua a questão do significado do Ser, mas também sanciona a omissão da questão. Diz-se que o “Ser” é o mais universal e vazio dos conceitos. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse, o conceito mais universal e, por fim, indefinível, tampouco precisa de definição. Cada um o usa constantemente e entende também imediatamente o que se quer dizer com ele. De tal sorte que aquilo que os antigos filósofos consideraram como algo obscuro e inquietante, se tornou uma evidência por si tão clara como o sol, a ponto de aquele que ainda pergunta sobre esse assunto ser acusado de um erro metodológico.

Ao iniciar essa investigação, não é possível tratar por extenso dos preconceitos que constantemente alimentam de novo a ideia de que uma questão sobre o Ser seja desnecessária. Esses preconceitos têm raízes na própria ontologia antiga. E só será possível (no que diz respeito ao fundamento a partir do qual brotam os conceitos ontológicos de base, e no que se refere à exatidão de sentido e do número das categorias) interpretar aquela ontologia de maneira adequada quando a questão sobre o Ser estiver esclarecida, respondida e tomada como indício. Heidegger leva então a discussão desses preconceitos até p ponto onde a necessidade de uma recapitulação da questão sobre o significado do Ser se torna clara. Nesse sentido ele aponta três desses preconceitos: 1. O Ser é o mais universal dos conceitos. A universalidade do ser transcende toda universalidade genérica. O Ser é designado na ontologia medieval como um transcendental. A unidade desse universal transcendental, como a unidade da analogia em contraste com a multiplicidade dos conceitos genéricos superiores, já é conhecida pelo próprio Aristóteles. Graças a essa descoberta e, apesar de toda a sua dependência da maneira de Platão formular a questão ontológica, Aristóteles colocou o problema do Ser sobre uma base fundamentalmente nova. Mas nem Aristóteles conseguiu tirar a obscuridade dessas interconexões categoriais. A Ontologia medieval discutiu amplamente esse problema,sobretudo nas escolas tomista e escotista, sem todavia chegar à clareza fundamental. E quando enfim Hegel define o ser como “o imediato indeterminado” e faz dessa definição a base de todas as demais explicações categoriais da sua “lógica”, permanece ainda na perspectiva da ontologia antiga, sem porém levar em conta o problema aristotélico da unidade do Ser em face da multiplicidade das “categorias” aplicáveis ao material. Constatamos então que dizer que o Ser é o conceito mais universal não pode significar que este seja o mais claro dos conceitos, ou que dispensa toda explicação ulterior. O conceito do Ser é, pelo contrário, o mais obscuro de todos. 2 . O conceito do Ser indefinível. É isso que se deduz da sua suprema universalidade. O Ser não pode deduzir-se de conceitos superiores por definição, nem pode ser induzido a partir de conceitos inferiores. Mas, segue-se daí que o Ser já não apresenta mais problema? De maneira alguma, afirma Heidegger. Podemos concluir apenas que o Ser não é um ente. Por fim, a forma justificável de determinar os entes dentro de certos limites – a definição da lógica transcendental que tem ela própria as bases na ontologia – não é aplicável ao ser. A indefinibilidade do Ser não dispensa a questão do seu significado, mas pelo contrário, torna essa interrogação necessária. 3 . O Ser é mais evidente de todos os conceitos. Em todo conhecer, afirmar, em todo comportar-se com respeito ao ente, mesmo com respeito a si próprio, faz-se uso do termo Ser, e esse vocábulo é supostamente compreensível sem mais. Todo o mundo compreende: “O céu é azul”, “Eu sou feliz”, e coisas semelhantes. Mas esse modo comum de compreensão demonstra apenas ser “ininteligível”. Torna-se evidente que em qualquer modo de comportar-se para com um ente enquanto ente, existe, a priori um enigma. O próprio fato de nós já vivermos numa compreensão do Ser e do significado do Ser ainda ser velado na obscuridade prova que é necessário levantar a questão de novo. A consideração desses preconceitos, porém, torna clara não apenas que à questão sobre o Ser falta uma resposta, mas que até a própria questão é obscura e sem direção. Recapitular a questão sobre o ser quer dizer enfim isso: elaborar de uma vez e de maneira adequada a própria formulação dessa questão. Fazer com que o Ser apareça, torná-lo tema de pesquisa metódica, tal é a tarefa que Heidegger se propõe. Para essa tarefa, já que temos a nossa disposição pelo menos uma compreensão vaga da palavra “é”, que nos ajudará na colocação da questão, a análise fenomenológica deve auxiliar-nos na explicação desse significado, fazendo surgir aos poucos as estruturas e os modos do Ser, para fazer ver aquilo que era de início velado e oculto. Nessa nova orientação da fenomenologia, que é ontologia, quais os elementos distintivos do método fenomenológico que encontramos em Heidegger, do método de “mostração”, de revelação ou de libertação, de explicitação que deve levar-nos um dia até o Ser que já foi esquecido, que caiu no esquecimento, para descobrir aquilo que já está encoberto?

Trata-se de levar à luz da compreensão as estruturas fundamentais do Ser, que são as condições de possibilidade do nosso mundo empírico, o fundamento constitutivo de tudo o que é. Trata-se de compreender esse mundo, e não de explicá-lo no sentido de reduzi-lo a outra coisa a ponto de ele desaparecer como mundo natural, do qual parte o próprio caminhar reflexivo. É essa compreensão que representa a realização máxima e radical da fenomenologia. Fenomenologia significa então: fazer ver a partir de si mesmo aquilo que se manifesta, tal como a partir de si mesmo se manifesta efetivamente. É esse o sentido formal que se dá ao nome de fenomenologia: não outra coisa que a máxima: voltar às próprias coisas. E é nesse mesmo sentido que a fenomenologia oferece as possibilidades de um caminho para o Ser, pois o Ser é aquilo que se oculta naquilo que se manifesta e, contudo, constitui o fundamento de tudo que se manifesta. A fenomenologia adequar-se-á, portanto, ao modo de manifestação do Ser, que será o caminho para recolocar a questão sobre o Ser. O conceito fenomenológico de fenômeno visa ao Ser do ente, enquanto aquilo que se manifesta, seu sentido, suas modificações e derivações. Na guinada que Heidegger dá à fenomenologia, encontramos a oposição entre o real e o seu significado, entre o empírico e o transcendental, sob a forma da oposição que é a chave pela compreensão de Ser e Tempo, entre o ôntico, aquilo que é o ente e o ontológico, o Ser, ou significado daquilo que é. Encontramos enfim, sob uma forma ainda mais reforçada, se isso for possível, a procura de um fundamento realmente radical, não somente do conhecimento, como em Husserl, mas da qualidade do Ser de tudo o que é: um fundamento que seja ao mesmo tempo significado. A fenomenologia é ao mesmo tempo procura do significado do Ser, isto é, ontologia. E, mais ainda, é um ontologia fundamental, que pretende responder à questão básica – qual o significado do Ser? - e revelar uma estrutura fundamental. Dentro da perspectiva da ontologia fenomenológica, a novidade essencial do transcendentalismo de Heidegger, em relação ao seu mestre Husserl, é ter tentado resolver o problema do fundamento sem recorrer à consciência, mesmo transcendental, o que seria sem dúvida idealista demais, mesmo subjetivista, pois Heidegger recusa partir de intuições, mas parte da compreensão da vida concreta. Do contrário, passamos ao lado da vida na sua realidade e no complexo dos significados do mundo. Em lugar da consciência pura, do Eu transcendental, Heidegger parte da vida na sua facticidade no mundo, da vida que é em última análise histórica e se compreende historicamente. A história torna-se o fio condutor das pesquisas fenomenológicas no caminho que vai da vida, na sua facticidade, à vida na sua historicidade. Filosofar fenomenologicamente vem a significar acompanhar a vida, o que para Husserl, será cair no antropologismo transcendental, como ele próprio falou na ocasião de publicação de Ser e Tempo, obra que Heidegger visa, e isso em termos de preocupação essencialmente ontológica, à analítica do Ser-aí (Dasein) como o ponto de partida privilegiado, para a recolocação da questão sobre o Ser, contra toda tradição transcendentalista e subjetivista. Aquém da consciência pura, Heidegger se apoia nessa estrutura mais nitidamente ontológica que é o Ser-aí, a partir do qual podemos compreender a possibilidade e o significado de uma consciência ou de um “eu” transcendental. É no plano mais radicalmente ontológico, como irrupção ou como abertura do aberto, que o Ser-aí pode finalmente compreender-se naquilo que dá significado a seu Ser. Todavia, o Ser e Tempo apresenta apenas uma análise preliminar. Nele, Heidegger não fala ainda do próprio Ser, mas se limita a explorar o campo das estruturas ontológicas da existência do Ser-aí. É nesse ponto, aliás, que intervém a influência decisiva de Kierkegaard, mas é importante notar que os temas kierkegaardianos (Angústia, Possibilidade, Repetição, Decisão etc.) são imediatamente transpostos para um registro transcendental e ontológico, pois representam, para Heidegger estruturas do Ser-aí, que é, ele próprio, uma estrutura eminentemente ontológica. De tal modo que, embora utilizando as categorias kierkegaardianas, a fenomenologia ontológica se opõe frontalmente à Filosofia da Existência no nível do vivido e do concreto.

Heidegger coloca entre parênteses o homem concreto, como Husserl colocou entre parênteses os dados existenciais da consciência. Se um dia vislumbrarmos o Ser, ofuscado este por aquilo que é, devemos operar essa mesma redução fenomenológica no homem e na consciência. Desde que a fenomenologia hermenêutica procura, a partir da questão sobre o sentido do ser, do Ser-aí chegar à questão sobre o sentido do ser, o sentido do termo hermenêutico é o de uma analítica da existencialidade da existência, embora o ser e a estrutura do Ser, se situem além de todo ente e de toda determinação ôntica possível de um ente. O objetivo da hermenêutica fenomenológica é em última análise a questão sobre o sentido do Ser em geral e, nesse sentido, tornar-se Ontologia, pois aquilo que deve tornar-se manifesto não é o ente que se impõe, mesmo que fosse o Ser-aí, mas aquilo que é escondido em todo ente, a saber, o seu Ser e o sentido desse Ser. Como apresentação do Ser do ente, e do seu sentido, a fenomenologia hermenêutica é Ontologia. 4 . A Ontologia Fundamental e a Instauração da Metafísica Como entender o ente em seu ser? De acordo com a tradição, a Filosofia entende por problema só Ser a pergunta pelo ente enquanto ente. Ela é a pergunta da Metafisica. A resposta a essa pergunta se refere sempre a uma explicitação do Ser, que elimina toda problematicidade e que prepara o fundamento e o chão para a Metafisica. Se o ente pode, em seu ser, enunciar-se de diversas maneiras, como pensar a unidade dos diversos dos diversos significados do Ser? A Metafisica clássica considerava o pensamento como uma “visão”, o Ser como constante ser-sob-os-olhos, uma presença constante, esquecida de que a faticidade e a historicidade são indispensáveis, se o Ser tiver de ser pensado como presença constante a partir do modo do tempo, que é o presente. O domínio onde o pensamento efetua a passagem do ente para o Ser, o horizonte transcendental da determinação do Ser como Ser, será, portanto, objeto de uma pesquisa sobre sua ausência. O fundamento da enunciabilidade múltipla do Ser torna-se problemático quanto à maneira de a ele ser fundamento, e assim se encontra colocada anteriormente à questão sobre a enunciabilidade do Ser, a do sentido do próprio Ser. A ciência do Ser enquanto Ser, a ontologia, se encontra baseada, de maneira fundamental, sobre a questão relativa ao sentido do Ser como fundamento para todo significado possível. Ser e Tempo é a elaboração da questão de saber como o tempo pertence ao sentido do Ser, a tentativa de alcançar, mediante o pensamento, aquilo que permaneceu impensado, o fundamento esquecido da metafísica, sobre o qual tudo o que ela concebe se fundamenta. Nesse sentido é significativo que, como preâmbulo a essa obra, figure aquela questão quem vem dos primórdios da Metafísica: o que quer dizer realmente a expressão “ente”? A respeito dessa questão, que Platão levanta no Sofista, Heidegger diz que hoje é necessário suscitar novamente a intelecção dela. A questão sobre o significado do Ser deve formular -se de modo explicito, pois, se é uma questão fundamental, ela deve torna-se transparente e de uma forma adequada. Para tanto, Heidegger tenta explicar o que é inerente em geral em qualquer questão, para poder depois, a partir desse ponto de vista, tornar sensível a originalidade da questão sobre o Ser. Todo questionar é uma procura e toda procura tem a sua direção prévia que lhe vem daquilo que é procurado. Questionar é procurar conhecer o ente naquilo que é, como é. A procura do conhecer pode assumir a forma de um “investigar” enquanto discernimento do objeto sobre o qual a questão é formulada. Todo “questionar sobre” é de alguma forma questionar algo. Ao questionar é inerente, além daquilo sobre o qual se questiona, um objeto questionado. Na investigação, isto é, na questão especificamente teórica, o objeto questionado é determinado e elevado em conceito. Naquilo que é questionado reside, então, como a autêntica intenção do objeto questionado, aquilo graças ao qual o “questionar” alcança sua meta. O próprio “questionar” possui, enquanto comportamento de um ente, o questionador, um caráter singular do Ser. Um “questionar” pode assumir a forma de um “palavrório interrogativo”, ou de uma questão explícita. O peculiar disso reside no fato de o “questionar” se tornar transparente em si em todos os

caracteres mencionados constitutivos da própria questão. Enquanto procura, o “questionar” exige uma orientação prévia pelo objeto questionado. O significado do Ser deve ser desde já acessível a nós de alguma maneira. Já notamos que nos locomovemos sempre dentro de uma compreensão do Ser. Dessa compreensão prévia surge uma questão explícita sobre o significado do Ser e a tendência a forjar o conceito correspondente. Não sabemos o que quer dizer “Ser”. Mas já quando perguntamos “o que é Ser”, encontramo-nos dentro de uma compreensão do “é”, sem que possamos forjar conceitualmente o que o “é” significa. Nem sequer conhecemos o horizonte a partir do qual devemos aprender a forjar o significado, mas ao menos, essa compreensão comum e vaga do Ser é um fato. Essa compreensão do Ser pode ser vacilante e desvanescente, até aproximar-se do mero conhecimento da palavra; essa indeterminação da compreensão do Ser, que já é disponível é, ela própria, um fenômeno positivo, que necessita de esclarecimento. Uma investigação sobre o significado do Ser não encontra o seu fio condutor necessário primeiramente no conceito mais elaborado do Ser. À luz desse conceito e dos modos da sua compreensão explícita, podemos entender o que significa essa compreensão obscurecida ou, ainda, não iluminada do Ser, assim como as formas de obscurecimento, isto é, a barreira para uma explicação possível e necessária do significado do Ser. A compreensão comum e vaga do Ser pode ser tão contaminada por teorias e opiniões tradicionais sobre o Ser, que essas teorias venham a permanecer como fontes de compreensão. E, todavia, o que procuramos no “questionário” sobre o Ser não é algo totalmente desconhecido, embora seja algo totalmente inacessível. O objeto da questão que havemos de elaborar é o Ser, aquilo que determina os entes enquanto entes, aquilo na base do qual os entes já são entendidos, embora possamos discuti-los em pormenores. O ser dos entes não “é” ele próprio um ente. O Ser, enquanto aquilo que é procurado, exige, afinal, uma forma toda especial de “mostração” que se diferencia essencialmente do descobrimento dos entes. Correlativamente, exige também o procurado, o significado do Ser, um aparelho conceitual especial que se destaque por sua vez essencialmente dos conceitos em que os entes alcançam a sua determinação significativa. A questão sobre o Ser exige, no que diz respeito ao procurado, que se inicie por encontrar um modo de acesso que assegure de antemão a reta forma de acesso. Mas, chamamos “entes” a muitas coisas, e em sentidos bem diferentes. O ente é tudo aquilo de que falamos, aquilo que significamos, aquilo relativo ao qual nos comportamos de tal ou tal maneira; o ente é também aquilo que somos nós mesmos e a maneira de sê-lo. O Ser está implícito no que é e como é, na realidade, o ser-subsistente, na consciência, no valor, no Ser-aí, e no “há”. Em qual ente se deve ler o significado do Ser, em qual ente se deve tomar o ponto de partida para exploração do Ser? É esse ponto de partida arbitrário, ou será que existe determinado ente com uma prioridade no desenrolar da questão sobre o Ser? Qual é esse ente exemplar e em que sentido tem uma prioridade? Se a questão sobre o significado do Ser é explicitamente formulada e elevada à plena autoconsciência, o seu desenrolar exige uma explicitação do modo segundo o qual se deve visar ao Ser, o seu significado entendido, e sua colocação em conceito, a possibilidade de escolher concretamente o ente exemplar e tornar manifesta a genuína forma de acesso a esse ente. Visar ao Ser, compreender, conceituar, escolher e aceder são modos de aproximação constitutivos da questão e, portanto, são eles próprios modos do Ser de determinado ente, do ente que formula a questão que é cada um de nós. Desenrolar a questão sobre o Ser significa: a explicitação de um ente – aquele que questiona – em seu ser. Esse ente, que é cada um de nós e que tem, entre outras possibilidades de ser, a de questionar, Heidegger o designa pelo termo Ser-aí. Portanto, a colocação explícita e consciente da questão sobre o significado do Ser exige uma análise prévia e adequada desse ente (o Ser-aí) relativo a seu ser. Em outros termos. A Metafisica exige uma ontologia fundamental. 5 . A Análise Fundamental do Ser-aí

O fato do Ser-aí se encontrar no centro da questão sobre o sentido do Ser é totalmente motivado pela preocupação fundamental de Heidegger, que consiste em responder à questão: o que é o Ser? Afastamo-nos inteiramente, como Heidegger nos aconselha, de qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos o ente em seu todo, mas sem qualquer preferência. No entanto, um dentre eles se insinua estranhamente: o Ser-aí, que investiga a questão. E é justamente o que lhe confere uma distinção. Para melhor elucidar essa problemática, Heidegger distingue inicialmente aquilo que é , o ente, e o ser do ente. O que é , o ente, inclui todos os objetos, todas as pessoas e em certo sentido o próprio Deus. O ser do ente, como tal, que é o fato de que todos esses objetos e todas essas pessoas são, não se identifica com nenhum desses entes, nem sequer com a ideia do ente em geral. Em certo sentido, não é, pois se fosse, seria um ente por sua vez, ao passo que é de certa maneira o próprio acontecer do Ser de todos os entes. Na filosofia tradicional sempre ocorria uma transição quase que imperceptível do Ser do ente em direção do ente. O ser do ente, o Ser em geral se tornava um ser absoluto, ou Deus. A originalidade de Heidegger consiste precisamente em manter com nitidez essa distinção, sem jamais falhar. O ser do ente é o objeto da Ontologia, ao passo que os entes representam o campo de investigação das ciências ônticas. Olhando mais de perto essas distinções, vemos que os atributos dos entes fazem com que seja isso ou aquilo. Determinando os tributos do ente, dizemos o que é, alcançamos a essência. Porém, ao lado da essência do ente podemos constatar, por uma percepção ou uma demonstração, que existe. E, com efeito, é a essa constatação da existência que se reduzia, pela Filosofia clássica, o problema da existência, que se colocava além do da essência. Mas determinar o que significa essa constatada existência sempre foi considerada como impossível, pois, sendo de uma generalidade superior, a existência não podia definir-se. A Filosofia da Idade Média chamava “transcendente” esse ser do ente. Kant conhecia também a especificidade do ser do ente com relação ao ente e com relação a todo atributo do ente, pois, na refutação que faz do argumento ontológico, frisa de modo especial a irredutibilidade do Ser a qualquer atributo do ente. Exatamente porque o Ser não é um ente, não é preciso alcançá-lo pelo gênero e pela diferença específica. O fato de compreendê-lo em sua significação fundamental a cada momento já mostra que se pode alcançá-lo de outra maneira. A compreensão do ser é a característica e o fato fundamental da experiência do Ser-aí. Nesse caso, então, a procura não será supérflua? Contudo, o simples fato da compreensão não quer afirmar que tal compreensão seja explícita, nem que seja autêntica. De fato, procuramos algo que já possuímos de uma certa maneira. Porém, explicitar essa posse ou essa compreensão do ser não é um ato puramente teórico e , sim, um acontecimento fundamental onde todo o destino do Ser-aí se engaja. Desde então, a diferença entre os modos explícitos e implícitos de compreender não é uma simples diferença entre um conhecimento claro e obscuro, pois diz respeito ao próprio Ser do Seraí. A passagem da compreensão implícita e não-autêntica para a compreensão explícita e autêntica, com suas esperanças e seus dissabores, é o drama da própria existência do Ser-aí. Passar da compreensão implícita do Ser para a compreensão explícita significa assumir uma tarefa de maestria e de dominação no seio de uma familiaridade ingênua com a existência que fará talvez cair a própria segurança dessa familiaridade. Nesse momento, o Ser-aí é caracterizado como o ente que compreende o Ser implicitamente (de maneira pré ontológica) ou explicitamente (de maneira ontológico). E é por o Ser-aí compreender que o Ser interessa à ontologia. O Ser-aí é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do Ser, como a pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no Ser. Mas o elemento distintivo do Seraí consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face dele, permanece relacionado com o Ser e assim lhe corresponde.

O Ser-aí é propriamente essa relação de correspondência e é somente isso. “Somente” não significa limitação, e sim plenitude. No Ser-aí impera em pertencer ao ser, porque a ele entregue como propriedade. Somente o Ser-aí, aberto para o Ser, propiciá-lhe o advento enquanto “apresentar”. Ser-aí e Ser estão entregues reciprocamente um ao outro. Por isso, será por uma análise profunda da existência do Ser-aí que deverá necessariamente começar toda pesquisa sobre o Ser da existência em geral. Esse privilégio não é arbitrário, pois se justifica pela capacidade de reflexão própria desse existente. A ação de questionar torna-se um modo de ser daquele que questiona. Todavia, nós somos o existente que se interroga sobre o ser de toda existência, e é por isso que o problema metafísico deve em geral iniciar-se por um exame fenomenológico do Ser-aí, pois este constituiu o caminho de acesso e o ponto de apoio obrigatório de toda Metafisica. Evidentemente, esse privilégio do Ser-aí não preconiza nenhum julgamento de valor. Não estabelece nenhuma hierarquia na ordem ontológica. Não há em tudo isso, nada mais que a constatação de uma situação de fato. A qualidade particular da existência do Ser-aí é que, sendo um ente existencial, se interessa por seu próprio ser. O entendimento do Ser, é, em si mesmo, um elemento de ser da existência do Ser-aí. Por esse motivo, a existência do Ser-aí é chamada ontológica, ao passo que todos os demais entes são denominados ônticos. A compreensão do Ser caracteriza a existência humana como o modo de ser que lhe é próprio. Determina não a essência e, sim, a própria existência do Ser-aí. Evidentemente, se consideramos o Ser-aí como ente, a compreensão do Ser faz a essência desse ente. Mais exatamente – e é essa uma das características fundamentais do pensamento heideggeriano -, a existência do Ser-aí é, ao mesmo tempo, sua existência. Essa identificação da essência com a existência não quer dizer que na essência do Ser-aí haja necessidade de existir – o que seria inexato-, pois o Ser-aí não é um ser necessário. Pelo contrário, a confusão da essência com a existência significa que, na existência do Ser-aí nada mais são do que seus modos de existir. Mas uma tal relação entre essências e existências só se realiza graças a um novo tipo de ser que caracteriza o fato Ser-aí. É a esse tipo de ser que Heidegger reserva a palavra existência, destinado o nome de presença pura e simples ao ser dos demais entes. É pelo fato de a sua essência consistir na existência que Heidegger designa homem pelo termo Ser-aí e não pelo termo ente-aí. A forma verbal exprime o fato de cada elemento da essência do homem ser o modo de existir, de se encontrar aí. A preocupação principal de Heidegger consiste em construir uma ontologia na base da qual será possível entender tanto os êxitos como as falhas na história da Metafisica, em reconduzir a vigência histórica do Ser-aí às suas raízes na Metafisica, redimensionando a propósito a própria problemática da questão sobre o Ser. Nessa tentativa de construir uma ontologia, em vez de imitar a Metafisica clássica que partia da cosmologia, Heidegger parte do Ser-aí. Mas lembramos que o interesse que mostra Heidegger no Ser-aí não tem por finalidade conseguir uma nova formulação da existência humana em termos psicológicos e culturais, mas só enquanto a instância peculiar do ser. O que importa é a relação entre essa instância do ser e a estrutura do ser como tal. Em Ser e Tempo, Heidegger, ao preparar o questionamento do problema sobre o sigilo do ser, se propõe repensar a essência do Ser-aí, no fundamento da sua possibilidade, a partir da experiência fundamental do esquecimento do ser. Esse caminho não significa uma ruptura com a história, nem a sua negação, mas uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Heidegger designa esta apropriação com a expressão destruição que não quer dizer arruinar e, sim, desmontar, demolir e por de lado, abrir o ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira. Seguindo esse caminho, a estrutura fundamental do Ser-aí quotidiano revela-se com o serno-mundo, que é indicada, decomposto em seus diversos momentos, para enfim ser considerado na sua unidade como preocupação. A facticidade que se baseia no Ser-no-mundo é o fundamento de todas as realidades do Ser-

aí. Podemos mudar certos elementos dessa realidade, mas sempre iniciamos a construção de nossas existências a partir dela. Todos os elementos constitutivos do Ser-aí são reais, mas só enquanto possibilidades para um ente que já está lançado no mundo, isto é, para um ente cuja essência consiste em estar além de si, dentro do mundo. No entanto, este ser-no-mundo não representa simplesmente a relação de dois seres no espaço. O Ser-aí é consciente da sua realidade, pode dar-lhe significado, assumir posição diante dela e lutar contra seu ambiente. Ele tem uma dupla maneira de reagir que são a preocupação, quando se trata de entes não-humanos, e a solicitude, quando se trata de outros entes humanos, outros seres-aí. Na descrição da existência do Ser-aí Heidegger evita, com muito cuidado, usar o termo “homem”, “ser-humano”, etc; porque esses termos poderiam denotar ou dar uma conotação tradicional ao problema ontológico, e é exatamente contra essa tradição metafisica, iniciada por Aristóteles que Heidegger seu inquérito. O Ser-aí está numa situação, torna-se consciente de si enquanto ser inserido num mundo de contradições factuais, que ele mesmo não criou. Por exemplo, o homem nasce em determinado ambiente linguístico, social, econômico, geográfico, etc.; pelo qual ele não é responsável, pois já se encontra nele desde o primeiro instante de sua existência. Heidegger mostrará que a existência do homem tem prioridade sobre a sua essência ou, mas exatamente, a existência é a sua essência, no sentido de que sua existência é a própria existência humana que defronta as suas tarefas, que transcende seu passado e se projeta para o futuro; que transforma e recria as estruturas sociais, culturais e factuais. Todavia, o primeiro fato que Heidegger anota é que a existência não é jamais a simples existência em geral. A existência é sempre minha , isto é, sempre pessoal. Para compreendê-la, Heidegger analisa a existência cotidiana banal, e não suposta existência purificada, que só seria alcançada pela aplicação de métodos complexos, como, por exemplo, a dúvida cartesiana e a huseerliana, que pretende colocar entre parênteses a própria existência. Pelo contrário, a existência cotidiana está sempre no mundo e com os outros, pois existir é ser no mundo com os outros. Ser-aí quer dizer estar-aí. O Ser-aí, por ser o Ser-no-mundo, não é apenas uma coisa num universo de outras coisas (pois, de fato, nem é uma coisa); a sua própria existência constitui-se por suas relações com o ambiente das coisas e de outras pessoas. O espaço geométrico abstrato da física- matemática difere fundamentalmente do espaço qualitativo das preocupações atuais, que é inseparável dos objetos. O lugar onde está o objeto determina a sua natureza e condiciona a sua função; o freio não é freio a não ser que esteja na roda, e o fato de ele estar no lugar certo cria as condições estáveis do ambiente. Se o espaço qualitativo das preocupações atuais é inseparável dos objetos, isso implica não apenas que as coisas são utensílios na sua própria essência, mas que o Ser-aí, aquele que faz utensílio e vos emprega, deve também conceber-se como vivendo naquele mesmo espaço qualitativo com os seus utensílios, fazendo-os e sendo condicionados por eles. Quanto aos demais seres-aí, são constituídos igualmente em seus pensamentos, sentimentos, na suas ações por suas relações com outros seres-aí, e não apenas o seu comércio com os objetos. Os ser-no-mundo, no sentido de Ser constituído por projetos e por relações com os objetos que utiliza e desenvolve como utensílios para realizar esses projetos e relações, envolve os ser-comos-outros que também são seres no mundo no mesmo sentido que ele. A existência dos outros não é um simples acidente, nem um problema para o pensamento e, sim, uma necessidade do pensamento; é constitutiva do Ser-aí e está implicada nele. A natureza do Ser-aí é ser-em-comum; a existência do Ser-aí é uma existência compartilhada, e a interdependência social da sua experiência cotidiana é primordial e constitutiva. A plena autoconsciência e a auto-confirmação derivam da consciência que tenho dos outros; não é que começo por mim mesmo, como dado indubitável, para de alguma maneira deduzir a existência de outros seres semelhantes. O Ser-aí é constituído tanto pelas preocupações que condicionam o uso que faz dos objetos como utensílios, como pela solicitude que sente pelas pessoas que compartilham a

existência com ele. A existência humana é “ser-com”, tanto com as coisas como as pessoas. Outro é fundamentalmente o homem-companheiro essencial e não apenas acidentalmente. O ser-com pertence à própria natureza do Ser-aí e é constitutiva da essência da existência. As coisas se apresentam em duas categorias: ou estão simplesmente presentes ou são vistas pelo prisma da sua utilidade. O mundo do Ser-aí, no estado cotidiano, o mundo dito natural, é o mundo circum-ambiental. O ente que encontramos no dia a dia não é um ente dado colocado a distância, é o ente à mão, um utensílio que sempre tem um destino preciso. O utensílio serve para algo; o utensílio se refere ao Ser-aí e através dessa referência recebe o seu significado. Os utensílios sempre tem relação entre si e com aquele que os manipula ou utiliza. A característica do utensílio, de estar-à-mão, depende das circunstâncias que podem modificar o seu sentido. Essas condições referem-se, em última análise, ao “para que”, pois se trata de uma intenção. Portanto, o Ser-aí é a condição indispensável da possibilidade do utensílio se revelar. Cada utensílio tem seu lugar e aí se manifesta. O lugar potencial do instrumento é que Heidegger chama de proximidade. No Ser-aí há uma tendência especial para proximidade, isto é, a aproximação do utensílio. As distâncias objetivas não coincidem com o afastamento ou a proximidade do instrumento, pois é a categoria da preocupação que constitui a medida de proximidade ou distância. O mundo é uma determinação ontológica do Ser-aí existe unicamente para o Ser-aí. Todas as primeiras ontologias cometeram o erro de confundir o estar-a-mão com algumas coisas que simplesmente está presente, erro notório, particularmente em Descartes. No entanto, não é a presença que qualifica, mas a nossa preocupação com o instrumento. O fato de ser utensílio ser utilizado para o trabalho e ao mesmo tempo significa que o Ser-aí existe com o utensílio. O Ser-aí está no mundo com utensílios e com os outros seres-aí. O mundo da existência humana é o lugar onde estamos juntos com utensílio e outros seres-aí, pois nosso Ser-aí é essencialmente ser-com-o-outro. O conjunto do complexo de referências ao outro e de significados é que constitui o mundo como mundo-ambiente. Esse complexo se determina como aquilo “em vista de que”, segundo modo determinativo do ser do Ser-aí. A existência que torna possível o “em vista de que” é a própria mundaneidade. O mundo não é apenas o mundo-ambiente, pois a mundaneidade do mundo fornece a primeira indicação decisiva sobre a estrutura do mundo; se o mundo se experimenta a partir do complexo de referências e de significados, então pode ser pensado como o domínio de onde vem um sentido. O ente que tira seu ser de tal procedimento não é o ente dado dentro de uma visão que recua e, sim, o ente-à-mão de uma práxis. Se o Ser-aí aprende a conhecer o mundo-ambiente, Heidegger se coloca, pelo próprio fato, em contradição com o ponto de partida da Filosofia tradicional, pois, normalmente, o pensamento se orienta em direção à representação de um ente que se pode mostrar. Numa perspectiva teórica, concebe-se como visão e representação o dado que está lá para a contemplação. O conjunto, o todo do dado, tal como deve existir para uma consciência que sobrevoa tudo, é considerado então como mundo. Assim, uma omissão do fenômeno da mundaneidade ( tal como se mostra primeiramente na mundaneidade do mundo-ambiente) surge junto com o fato de perder de vista a constituição do Ser-aí como ser-no-mundo. Em Ser e Tempo,Heidegger interpreta o mundo a partir do ser do ente que é dado como ultramundano, mas sem ser na maneira alguma inicialmente descoberto a partir da natureza. A natureza não é compreendida a não ser na medida em que é dada. Mas nesse aspecto ela é um caso limite do ser de um ente ultramundano possível, em que precisamente a mundaneidade do mundo não se manifesta. O conhecimento do mundo não se manifesta. O conhecimento do mundo subsistente tem por motivo o caráter de certa desmargarinização do mundo. Desde o inicio da tradição ontológica, que é determinante para Heidegger, e mais explicitamente em Parmênides, o fenômeno do mundo falta, e será de novo seguidamente as sempre omitido. O ente intramundado, descoberto primeiramente na “ natureza “, toma como tema o lugar do fenômeno omitido. No decorrer dessa evolução, Descartes encontrara na extensão das coisas

naturais a determinação fundamental do mundo. O modo de acesso ao ser do mundo, ele visa num conhecimento “ matemático”, não em virtude de uma predileção pela as matemáticas e, sim, porque o pensamento como visão é sempre orientado para aquilo que subsiste contatamento, e porque os matemáticos conhecem antes de tudo aquilo que está sempre lá, permanece sempre e sobrevive a toda mudança. Por hipótese, permanecemos ainda no plano da ontologia cartesiana, quando consideramos a subsistência e a extensão como se fossem apenas uma camada fundamental sobre a qual devem ser erguidas outras camadas, para chegar finalmente ás qualidades especificas: o belo, o utilizável etc. A respeito da tentativa de complementar a analise cartesiana do mundo apelando para o fenômeno do valor, Heidegger observa que a adjunção de predicados de valor não é em nada capaz de dar novos esclarecimentos sobre o ser dos bens, mas continua simplesmente a pressupor, por esses, o gênero de ser da pura presença dada. Heidegger procura enraizar a extensividade da coisa, que era para Descartes o que havia de mais inteligível, enquanto fenômeno derivado, na espacialidade do Ser-aí e, consequentemente, na estrutura do ser-para do mundo-ambiente. Se a mundaneidade do mundo for reconquistada, o conhecimento não poderá mais ser concebido apenas como a representação de um subsistente permanente, mas deve medir-se permanentemente, mas deve medir-se pela circunspeção da preocupação conhecer-se nela, através dos complexos de finalidade, e de referencias ao mundo. Consequentemente, anula-se a primazia que a pura visão possuía no conhecimento desde os primórdios da ontologia grega até o dia de hoje. Ser-no-mundo não implica estar no mundo como os demais seres, naquilo que se chama mundo, no todo do ente. Ser-no-mundo significa mais “morar junto de “, “ser familiar de “. Afirmar que o Ser-aí é ser-no-mundo quer dizer que ele “e” seu mundo nela familiaridade que tem com ele ( o mundo). Como o Ser-aí não é um objeto que se apresenta no mundo, totalidade do ente, também não é um sujeito privado de mundo, a partir do qual seria precioso, como se acostumou a fazer desde Descartes, tentar lançar uma ponte em direção ao “mundo”. Ao contrario, enquanto ser-nomundo, o Ser-aí já existe sempre junto ás coisas. E como está sempre junto ás coisas, está sempre com os outros. Não é primeiramente um “eu” que deve posteriormente estabelecer relações com os demais Ser-aí, mas originariamente um ser-com-o-outro. Todavia, o mundo em que o Ser-aí existe em sua facticidade é sempre um mundo determinado. A própria mundaneidade pode modificar-se no sentido da estrutura de conjunto que possuem individualmente os “ mundos” particulares, mas ela implica em-si no a priori da mundaneidade em geral. As coisas são alcançadas mediante conceito objetivos, gerais, onde através de um pensamento particular qualquer classe determinada pode ser substituída por uma outra. Masa a natureza humana só pode ser alcançada diretamente como sujeito individual. Há alguns aspectos da natureza do Ser-aí que podem evidentemente ser estudados pelas ciências e formulados mediante conceitos objetivos. Todavia, Heidegger enfatiza a grande diferença que há entre alcançar a existência do Ser-aí internamente e olhá-la externamente. A característica mais importante de ser um sujeito individual é que o homem é pessoalmente preocupado com as possibilidades de sua própria existência, e pode realizar-se apenas em termos dessas possibilidades. O Ser-aí pode tomar decisões com referência a essas possibilidades, pode ganhar ou perder seu verdadeiro eu em função delas. Heidegger insiste em que o Ser-aí não é apenas uma coisa no mundo; é um ser no mundo. As características peculiares do Ser-aí nos dizem algo de grande importância sobre a estrutura do próprio ser, algo que nunca aprenderemos mediante as ciências naturais ou a cosmologia. Admitido esse ponto, qualquer concepção do mundo que se queira abstrair da preocupação do Ser-aí e das demais características distintas da sua existência deve forçosamente ser superficial. Evidentemente, o indivíduo organiza a sua concepção do mundo à luz da maneira de ele se encontrar localizado no mundo. É por esse motivo que Heidegger inicia sua análise do mundo externo pelos utensílios, isto é, pelas coisas tais como se encontram e se dispõe na vida cotidiana, em vez de iniciar pelos fenômenos da natureza, tais como a ciência os descreve. Ele parte do fato de

que o Ser-aí se preocupa primordialmente de coisas externas na medida em que afetam seus interesses e necessidades. Mesmo as pesquisas teóricas das ciências naturais são, antes de tudo, empreendimentos que tem sentido dentro da perspectiva de sua preocupação com a própria existência e a preocupação com o mundo externo na medida em que este afeta aquela existência. Portanto, uma análise que se abstrair dessa correlação não pode dar um quadro adequado do mundo e do Ser-aí. A preocupação é o conceito unificador da condição humana e exprime a natureza da nossa existência, enquanto existimos no mundo com os outros. Esse traço essencial que penetra o nosso Ser-aí revela-se no sentimento primário da angústia que surge da característica fundamental do Seraí como o ente cujo ser se orienta pela preocupação com sua própria existência. É esse modo existencial que o separa de todos os demais do universo. Para Heidegger a preocupação é simplesmente a concretização dessa qualidade em nossa existência quotidiana. O próprio modo de nosso ser no mundo dirige-se para o aspecto primário da preocupação. Não estamos no mundo do mesmo modo com um objeto, um ente que não é o Ser-aí. Não estamos no mundo como objetos no espaço geométrico, a serem descobertos mais adiante pelas operações abstratas da ciência matemática. O sentido primário, isto é, o que nos é dado diretamente em nossa vida banal, em nosso serno-mundo banal, é a nossa preocupação com este ou aquele objeto que nos cerca. Na noção de um mundo em que existimos, com o qual nos preocupamos, e sobre o qual estamos apreensivos, a preocupação exprime o caráter fundamental dessa experiência, enquanto nos locomovemos através do mundo ocupando-nos das diversas tarefas da vida. Heidegger exemplifica tudo isso com o seguinte resumo, que apresenta a essência da análise fenomenológica do sentimento-preocupação. O resumo toma a forma de uma fábula que Goethe conta no segundo ato do Fausto. “Um dia quando a Preocupação atravessava um rio, viu a argila, tomou um pouco e começou a moldá-la. Refletia sobre o que fizera, quando Júpiter entrou em cena. A Preocupação lhe pediu que desse uma alma àquela forma. Então, uma discussão surgiu entre os deuses. Cada um quis dar seu nome à nova criação. Estavam discutindo quando a Terra se aproximou e insistiu que seu nome fosse dado à nova criatura, visto que ela lhe tinha dado o corpo. Os três chamaram Saturno para julgar a questão. Saturno diz a Júpiter: “Como tu deste à criação uma alma, receberás a sua alma depois da morte. E tu Terra, receberás o corpo. E a Preocupação, porque moldou a criatura, possuí-la-á enquanto viver. Quanto ao nome será “Homo” (homem) por ter vindo de “Humus” (terra).” O homem durante toda sua vida estará sempre possuído pela preocupação. Entretanto, suposto que a preocupação seja sempre dirigida para uma realidade ausente e futura, Heidegger parece dar à existência uma indigência singular, fazendo como que seja impossível alcançar esta existência como estrutura íntegra e total. É essa tarefa que Heidegger se propõe esclarecer na análise do modo existencial, que é a morte. A análise de morte talvez seja a mais importante das interpretações que Heidegger faz do Ser-aí. É de certo modo a pedra angular de suas análises, pois qualquer tentativa para considerar a existência como um todo nos leva ao fato da morte que conclui essa existência. A morte não é um ponto final da existência e, sim, um elemento constitutivo dela, já que desde o primeiro instante da concepção o Indivíduo pode morrer. A morte não é o fim da vida humana no sentido de ser o fim de um caminho que pode ser alcançado no termo de um trajeto. Quando chego ao fim da jornada, ainda existo e, enquanto existente, estou no estado de ter acabado algo. Mas, quando vem a morte, já não existo mais e, assim, não há uma jornada propriamente dita que eu possa afirmar ter acabado. E mais ainda, quando já fiz a metade da jornada, só posso chegar até o final atravessando a outra metade que resta. Porém, a morte é o fim da vida humana, no sentido de que pode terminar de repente, a qualquer momento, a minha existência. A existência não é dada ao Ser-aí como um caminho bem arranjado no fim do qual está a morte, mas a morte, como possibilidade, atravessa a sua existência: a qualquer momento pode surpreendê-lo.

Como podemos conceber em concreto e de modo positivo a morte com relação à existência do Ser-aí? Para responder essa questão, Heidegger concentra sua atenção numa análise da existência cotidiana, e pergunta como a morte aparece nesse contexto. O primeiro fato imprescindível é que o Impessoal tem meio engenhosos para fugir da perspectiva da morte, aproveitando o predomínio que tem sobre a existência cotidiana. O impessoal transforma a morte num fato, numa ocorrência quase banal: lemos nos jornais os falecimentos como fatos de óbitos; assistimos aos funerais como ocasiões públicas e sociais, regulados por prescrições complicadas sobre a maneira de comportar-se em tais funções. Todos esses ritos e cerimônias, que cercam a morte, tem por finalidade transformá-la num acontecimento público, anônimo. Por esse meio, o Impessoal esforça-se com ingenuidade para adiar a morte, apresentando-a como algo que acontece a todo mundo e, pelo próprio fato, não acontece a ninguém. O impessoal tem outro meio engenhoso para isso. Não somente torna a morte algo que acontece aos outros, mas também algo que acontecerá em outro tempo, mais tarde. Através do palavrório banal, o impessoal leva o Ser-aí a fazer afirmações tais como: “É certo que a morte vem a cada homem”, mas subentende-se que não vem agora para ele. Tem bastante tempo diante de si. Insiste, assim, em pensar na morte como o fim de uma jornada e imagina sempre que uma grande parte do caminho está ainda à sua frente. Entretanto, a morte não é um fato e, sim, uma possibilidade. E seu caráter real, enquanto possibilidade., consiste em que é possível a qualquer momento. Mas há pouco ainda mais significativo na atitude cotidiana acerca da morte. Apesar de a morte fugir da consciência, a existência banal se revela como essencialmente dirigida para a morte. Existimos continuadamente relacionados com a morte. O modo dessa relação, como aparece na cotidiana, é essencialmente o ser-para-a-morte. A morte, enquanto fim da existência, no sentido autêntico de fim, sempre está presente na existência humana. Mas a morte, uma vez entendida realmente como essa possibilidade, leva o Ser-aí a tomar o primeiro passo em direção a uma existência autêntica. Defrontando a morte como possível a qualquer momento, o Ser-aí é arrancado do contexto da vida banal e restaurado a si mesmo como aquele que deve e que pode enfrentar-se com a morte, sem máscaras, O Ser-aí deve viver com os olhos cheios da certeza e da soberania da morte; a morte de todo significado, de toda validez, além do fugaz e do temporal, pois, como Niezsche insistiu, Deus morreu, e os últimos vestígios da magia metafisica foram eliminados de seus substitutos, que são a moralidade objetiva, ou seja, a espiritualidade. Mas mesmo nesse caos podemos escolher, optar por criar os nossos próprios absolutos, por mais temporários, provisórios e condicionais que sejam. Esses novos absolutos serão determinados pelo quadro de nossas circunstâncias, pessoais e sociais. Ao menos assim, seremos um existência autêntica, seremos Indivíduos e não mais componentes do Impessoal. Então teremos aceito nosso nada original e final para dele fazer algo. Em virtude da resolução, com a qual ele se defronta com a sua própria morte, o Ser-aí está liberado da servidão dessas preocupações e atividades, que submergem a existência autêntica. Graças a resolução, o Ser-aí se liberta do Impessoal, que é o ditador onipresente dos afazeres humanos. Deixa de pertencer ao público no sentido de submeter-se a um processo em que cada um, numa atitude de conformismo necessário, se deixa dominar pelos usos estabelecidos, juízos e opiniões, assimilando-se nas formas gerais da existência. Todavia, rebelar-se contra esse processo do impessoal não significa a libertação automática dele e de sua influência; pode ser que o rebelde se encontre dentro do culto do excêntrico ou do não-conformismo sistemático. Mas de modo geral, o Ser-aí acha que é mais fácil nadar com a corrente; as forças da inércia e dos prazeres do conformismo são fortes demais para a maioria. É essa a substância da vida cotidiana. Essa situação tende a agravar-se, pois, como existência temporal, o Ser-aí é preso entre dois nadas factuais, atuais: a não-existência antes de nascer e o final da existência pela morte, que é a negação de todas as possibilidades ulteriores no futuro e, por antecipação, a desvalorização de todas as possibilidades, inclusive as possibilidades realizadas no presente.

A verdade fundamental acerca do Ser-aí é que deve morrer. Veio do nada e, dentro em breve, voltará ao nada. O pano de fundo sobre o qual o drama da existência do Ser-aí se desenvolve é o vazio. A última dimensão do predicamento do Ser-aí é o Nada. Já que a natureza do Ser-aí consiste na preocupação, seu ser deve-se projetar sempre para o futuro de sorte que ele se define por suas potencialidades, pois é sempre infinitamente mais do que é em qualquer momento determinado. O futuro se revela como aquilo para o qual a existência é projetada; o passado é aquilo que a existência transcende. Porém, podemos voltar para o passado, escolher afirmar este ou aquele ponto dele, revalorizando-o. Futuro, passado e presente são dados juntos, e definem uma existência temporal. São esses três “êxtases” da existência, três aspectos nos quais a existência é deslocada horizontalmente em três fases. A temporalidade primária não se reduz a uma série de instantes que deslizam do passado para o presente e deste para o futuro. Esse conceito vulgar de uma série de tempos, enquanto dado primário da existência temporal, resulta da existência inautêntica cotidiana, onde o tempo aparece como algo que passa momento a momento. Se o Ser-aí não assumir a existência para projetar-se em plena antecipação da morte, a vida parece necessariamente uma série de momentos que se sucedem passivamente. Só no nível de uma existência autêntica se pode tomar consciência dos diversos aspectos do tempo passado, presente e futuro, em função da temporalidade. Relógios e calendários são simples instrumentos e, como tais, tem seu lugar dentro do mundo, onde a preocupação humana procura regular seus projetos. Mas a preocupação em seu caráter essencial não se define por relógios e calendários, pois estes são instrumentos úteis só pelo fato de a existência realizar-se no tempo. Paralela à temporalidade e ao tempo, segue a historicidade e a história. A existência é fundamentalmente histórica. O presente é o resultado da história e, por conseguinte, a tradição não é algo completo em si, que teria existência fora da decisão que nos coloca em relação a ela. O Ser-aí se apropria deste ou daquele aspecto do passado e cria a tradição em vista da espécie de futuro que projeta. O presente é um “tornar presente”. Só enquanto é uma derivação da história se pode dizer que o Ser-aí existe no presente. Com relação à tradição histórica esse presente é sempre o presente dessa geração. Longe de ser algo externo ao qual a existência se submete passivamente, cada geração sente seu presente como seu destino histórico. Esse destino é o próprio ato de definição e projeção de si pelo qual o Ser-aí escolhe, como seu, tal destino. O modo existencial, inautêntico, que é o Impessoal, seduz, tranquiliza e aliena o Ser-aí da existência dentro das dimensões da temporalidade e da historicidade. Esse modo existencial manifesta-se no palavrório, em que o Impessoal passa a ser a verdadeira ressonância do discurso. É uma forma de curiosidade, uma distração e agitação contínua. O Ser-aí não consegue mais distinguir entre o que sabe e o que ignora, pois não assume a existência mas deixa-a ser controlada pelo Impessoal. Todavia, retirar-se da categoria do Impessoal exige uma opção dura, mas firme em favor da possibilidade de um projeto por parte do mais autêntico “eu”. A consciência é a testemunha desta possibilidade, pois é o modo de discursividade, o mais autêntico dos apelos que fala ao Ser-aí para que deixe de escutar o Impessoal e seu palavrório. Esta consciência não pode explicar-se por uma função biológica, nem por um poder estranho (de fora). O apelo da consciência vem do próprio Ser-aí. A convocação – apelo da consciência – surge da preocupação do Ser-aí, surge do fato de o Ser-aí ser lançado no seu abandono, angustiando-se pelo seu poder ser. No entanto, a voz da consciência nada diz que possa ser objeto de um debate, e seu silêncio inquietante manifesta a culpabilidade, não no sentido vulgar, pois se trata daquilo que a fundamenta. Quando o Ser-aí escolhe com deliberação, o caminho da consciência constitui-se em disposição para a angústia que se perfaz no silêncio. Ao autoprojetar-se, assumido no silêncio e na angústia, a culpabilidade genuína, Heidegger dá o nome de resolução. A resolução constitui a lealdade do Ser-aí a si próprio. Essa lealdade consiste em libertar-se para o ser-para-a-morte.

A resolução liberta o Ser-aí do Impessoal, dando-lhe a possibilidade de ser mais autêntico em suas possibilidades. Só a resolução desvela a situação originária, abrindo para o Ser-aí todas as possibilidades desta situação, ou seja, o “aí” que cada vez se patenteia nela. Graças a resolução, o Ser-aí pode aceitar corajosamente seu destino e desempenhar com decisão e força seu papel no mundo. É a resolução que soluciona o problema da unidade do Ser-aí, e fundamenta a diferença entre o Ser-aí autêntico e inautêntico. A própria autonomia do Ser-aí não significa outra coisa senão a resolução só ser aberto a todas as possibilidades autênticas e características da existência e, finalmente, ser para a morte. Isso só se torna possível se o Ser-aí puder fazer um ato de reflexão sobre si mesmo, sobre suas autênticas possibilidades. É o futuro que representa a capacidade de deixar vir sobre si as mais autênticas dessas possibilidades. Por outro lado, o abandono, elemento imprescindível desta análise, só é possível porque a existência humana futura pode assumir seu passado. O Ser-aí é lançado na existência de maneira passiva, mas depois de se encontrar no mundo pode começar a tomar iniciativa para descobrir o sentido da sua própria existência e dispor as suas potencialidades de uma maneira consequente. Portanto, se defronta com uma opção fundamental. Ou pode esforçar-se para interpretar-se como uma coisa entre outras coisas no mundo, subordinando-se às coisas, mas, também, pode projetar suas possibilidades de tal maneira que se torne um Ser-aí autêntico, o que exige uma opção entre a compreensão autêntica e inautêntica da existência. Essa compreensão deve renovar-se continuamente, pois é sempre possível retroceder. É pelo fato de ser livre que o Ser-aí pode fugir das suas responsabilidades para permanecer no nível de uma existência exteriorizada. Mas essa fuga está sempre perseguida pela angústia. Aquilo de que foge não pode especificar-se como objeto; e, todavia, o Ser-aí sente que esse algo é ameaçador. As possibilidades do sei “eu” verdadeiro ameaçam destruir e substituir os compromissos acomodatícios mediante os quais ele procura instalar-se como coisa no mundo. Essa angústia contém aspectos tanto destrutivos como construtivos, dependendo de como é utilizada. É como uma chama que cerceia o portal da liberdade. Se se deixar espantar pela chama, o Ser-aí cairá cada vez mais fundo na alienação, pois será incapaz de atravessar a porta da liberdade para realizar-se autenticamente. Uma vez atravessado o limiar, o Ser-aí deixa imediatamente a existência comum e banal onde predomina o Impessoal. Esta noção da liberdade é pressuposta em Heidegger desde o início das suas análises. Deixando de lado a noção de uma natureza fixa, ele define a existência do Ser-aí como sua essência. A existência cria a essência e essa criação implica a liberdade, que é essencial a qualquer existência autêntica. Heidegger não se preocupa em dar argumentação para demonstrar que p livre-arbítrio existe. Pressupõe a liberdade como parte do dado fenomenológico que é o Ser-aí, algo que encontramos imediatamente, quando descobrimos que o Ser-aí deve ser definido por suas possibilidades. No entanto, que o Ser-aí exista, esse fato não se fundamenta num livre projeto, mas o Ser-aí é sempre livre pelo próprio fato de que ele é. O Ser-aí é lançado na existência, da facticidade. Todavia, essa se distingue nitidamente da realidade efetiva de um determinado ente dado. Trata-se da facticidade do abandono do Ser-aí a si mesmo em sua liberdade. Ser e Tempo fundamenta o sentido da mobilidade e da abertura do Ser-aí como ser-nomundo. Portanto, o sentido está longe de ser um fenômeno estático; ao contrário, é aquilo em vista do que são estruturadas pelo propósito, a previdência e a antecipação que se realizam no projeto. A angústia é a estrutura fundamental do Ser-aí tal como se encontra primeiramente e antes de tudo em seu mundo-ambiental cotidiano. Na angústia, o sentido de ser do Ser-aí (sua “essência”) se anuncia, mas esse sentido permanece ainda velado, pois o Ser-aí tem, em sua banalidade e cotidianeidade, tendência a se recusar a seu próprio ser e assim não chega ao sentido desse ser. Normalmente, o Ser-aí não vê o sentido autêntico do seu ser-no-mundo, justamente orque antes de tudo e primeiramente ele é prisioneiro de seu mundo, se absorve inteiramente nele. Pertence ao Ser-aí ser jogado no ente e no Ser-com-o-outro.; enquanto é, permanece jogado: é lançado no

turbilhão por aquilo que há no mundo e que se impõe como o “ser-como” evidente nos outros. Assim, o Ser-aí prepara por si próprio a tentação constante de sua queda. O Ser-aí é lançado no mundo e é regido pelos entes deste mundo. Dentro dessa perspectiva, o mundo transcende o Ser-aí. Por outro lado, o Ser-aí é essencialmente construtor do mundo. Transcende-o e o ultrapassa. O Ser-aí liberta o existente do seu ocultamento transcendental e lhe dá o ser, isto é, o seu significado. Sem o Ser-aí não há ser, embora haja ente. Ora, esse ente ultrapassante parece justamente constituir a “ipseidade” do Ser-aí. Nesse segundo sentido, o Ser-aí existe na medida em que transcende o ente. A essência do Ser-aí consiste precisamente em transcender. A existência do Ser-aí tem ainda uma outra forma de transcendência, a do nada. O nada não é apenas uma categoria lógica, mas também, e primariamente, uma categoria ontológica. Não é a negação que fundamenta o nada, e sim, o nada que fundamenta a negação. O modo do Ser-aí relacionar-se com o nada é tríplice: 1- o Ser-aí carece de base, procede de um abismo sem fundo, do nada; 2- seu fim é a morte, outro abismo do nada; 3- o próprio ser do Ser-aí é sempre uma corrida para a morte, para o nada. Também o ser de cada ente que não é o Ser-aí é tirado do nada. Pode-se dizer de outro modo: Do nada vem todo ente enquanto ser. Mas a questão é que sentido dar ao nada. Uma tentativa de resposta encontra-se no seguinte: como o ente que carece de existência do tipo do Ser-aí sai do nada, graças ao Ser-aí, e como esse devir consiste em que o Ser-aí lhe confira a intelegibilidade, só o ser, e não o ente, provém do Seraí. O nada pode ser entendido, então, como um existente sem ser, um caos absoluto, profundamente ininteligível. O Ser-aí é então a luz natural que confere ao ente estrutura e sentido. Embora tenha por objeto uma análise da existência do Ser-aí, a leitura heideggeriana pretende ser uma leitura do significado do Ser. Heidegger insiste com determinada ênfase em que o seu pensamento não é existencialista, pois o seu interesse é o problema do Ser, e não a existência pessoal e os seus interesses éticos, ou seja, a condição humana como tal. O objetivo de Heidegger é sempre a intuição fenomenológica do Ser. Portanto, onde encontramos uma linguagem que implica a preocupação ou a solicitude, Heidegger está a procura de uma descrição objetiva de ordem mais geral, sem qualquer implicação ética, porque o homem não pode colocar-se fora de si para falar sobre o Ser. No fim o homem e todos os seus projetos caem no nada diante da intervenção irruptiva, explosiva, inexorável do Ser no esplendor da afirmação consequente à pergunta que há com o ser? 6 .A Superação e o Abandono da Fenomenologia Por considerar a fenomenologia um movimento sério em termos da questão sobre o Ser na sua primazia, Heidegger se encontra na obrigação de superá-la e abandoná-la. Como autêntico fenomenólogo, Heidegger tentava desocultar o Ser a partir do Ser-aí como Husserl tentava explicar o mundo a partir da consciência intencional. Mas como no fim há uma reviravolta, no sentido d]de o mundo assumir a primazia, em Husserl, em Heidegger a relação entre o Ser-aí e o Ser se inverte e assume o seu significado definitivo. Em vez de o Ser-aí revelar o Ser, é o Ser que se abre e se revela ele próprio. É o Ser-aí, abertura do aberto, que representa doravante a abertura do Ser para o homem. Mas essa relação invertida, esse deslocamento do contro de gravidade aparentemente tão semelhantes àquele que notamos em Husserl, resulta de elementos bem diferentes, e leva a um abandono do próprio método fenomenológico. A conversão do ente para o Ser, comparável à redução de Husserl, marcava a colocação entre parêntese do mundo dos entes, que permite alcançar o Ser num ângulo mais explícito. Só que daqui em diante a chave da relação “ser-homem” não é mais, para Heidegger, a interrogação humana, a preocupação para com o Ser. Heidegger abandona totalmente a linguagem kierkegaardiana, existencial, e mesmo antropológica, que ele tentava transpor em Ser e Tempo. Doravante ele parte de cima. É o Ser,

concebido como uma espécie de potência obscura e escondida, que concorda em manifestar-se, que projeta, ele próprio, o lugar de sua abertura. É o Ser que condescende em manifestar-se ao homem, como uma espécie de graça, de sair de si mesmo, de “exprimir-se” de tornar-se significado. A paciente pesquisa fenomenológica, com seus preliminares indefinidamente prolongados e retomados, para de repente. Não há mais método, pois se o Ser vem ao homem ou, melhor, se, abrindo-se, ele faz surgir o Aí, e até a sua própria possibilidade, este não tem mais de colocar-se a caminho, de abrir um caminho. O acento que Heidegger colocara na preocupação para com o Ser passa agora para a linguagem, novo centro da relação Ser-homem, pois o Ser se abre, se exterioriza, se exprime. Mais precisamente, aquele que fala não é mais o homem, é o Ser que lança uma voz no deserto para auscultar o eco que lhe enviará a sua própria palavra solitária. É o Ser que autocria o ouvido destinado a entenderem e as palavras portadoras da sua revelação. Constatando a importância da linguagem, poder-se-ia pensar que Heidegger ainda se encontra na linha da inspiração fenomenológica. De fato, a procura dos significados levou efetivamente a fenomenologia ao cerne do problema da linguagem. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre Husserl e a última forma do caminhar filosófico de Heidegger a esse respeito. Husserl procurava os significados dentro do quadro da intencionalidade da consciência, como realidade ideais ou essenciais. Ele estudava a linguagem como comportamento significativo do homem e os significados como “fenômenos”. Por outro lado,Ser e Tempo já nos mostra um Heidegger que faz uma espécie de fenomenologia das palavras. Ele tenta através da etimologia, mediante a redução do sentido cotidiano das palavras, fazendo-as estourar, revelar os significados implícitos retomando a linguagem humana em sua fonte original, significativa. Todavia, se os significados que se revelam essencialmente como realidades objetivas são palavras cheias de certa plenitude de sentido perdido, vale dizer que a linguagem não é mais o instrumento que o homem utiliza para se exprimir e, sim, a própria revelação do Ser. A linguagem não é algo que o homem possui instrumentos, senão aquilo que possui o homem. Mesmo antes de o homem falar ou pensar, o Ser fala ao homem e torna possível a linguagem a lógica e o pensamento. Mas, por outro lado vemos claramente que, assim, tanto o método como a ambição da fenomenologia desaparecem. Essa voz do Ser, essa palavra falada, essa ontologia não é mais portadora de significados humanos. Ela é uma espécie de linguagem sagrada, ou símbolo misterioso, uma espécie de revelação do Ser no silêncio de todas as palavras humanas. Portanto, o filosofo, no sentido corrente do termo, deve calar-se, pois é o poeta e o “pensador” que o substituirão. Eles terão a palavra ou, melhor a palavra os terá. O poeta, confidente do Ser, tendo apreendido o existir naquilo que não tem nome, pode nomear o sagrado. Quanto ao pensador, este pode dizer o Ser. Nessa perspectiva, pode-se compreender a predileção de Heidegger pela exegese ontológica-filológica dos poetas ( mormente Holderlin) e para os primeiros pré-socráticos que diziam o Ser como se recita, numa atitude religiosa, uma fórmula sagrada. As palavras não são mais palavras, Elas estouram para manifestar a presença do Ser. Depositário de uma mensagem ontológica e sobre-humana, elas se vestem de um silêncio essencial. O próprio Heidegger as pronuncia num tremor sagrado, com uma gravidade patética, como os oráculos que meditam no recolhimento. A fenomenologia, em Husserl, era superação incessante, mas na permanência de um método que se tornara sinônimo de Filosofia. No caso de Heidegger é a própria fenomenologia que é superada. Ela se torna Metafisica. Não se trata mais de colocar entre parênteses ou de reduzir a Metafísica para alcançar o seu fundamento: é questão de condenar o próprio empreendimento como tal. Depois de Platão, pensa Heidegger, a Filosofia desviou-se tornando-se Metafisica. Ela perdeu, portanto, e mesmo esqueceu o Ser para agarrar-se ao ente por não saber distingui-los. Trata-se agora de abrir a passagem da metafisica para o pensamento da verdade do Ser. A Metafisica, enquanto se representa sempre e apenas o ente enquanto ente, não pensa o próprio Ser. Daí porque a Filosofia não consegue recolher-se sob seu fundamento. Ela o abandona

pela Metafisica. Porém, remontando até o fundamento da Metafisicam, o pensamento racional e lógico é como um peixe fora da água. Portanto, estamos na hora de imergir o pensamento no Ser de novo, no Ser que é o seu elemento natural. O pensamento que virá não será mais filosófico, pois ele pensa mais originariamente que a Metafisica. Menos a Filosofia e mais respeito pelo pensamento, é esta a palavra de Heidegger. O homem antes de falar deve deixar-se primeiro dirigir-se de novo pelo à palavra pelo Ser, sob o risco de ter pouco ou raramente algo a dizer como resposta a esse apelo. É só assim que será dado de novo à palavra o seu preço essencial e ao homem o privilégio de demorar na verdade do Ser. Desde então, se queremos nomear, dizer, pensar esse fundamento radical que é o “Ser”, sem nome, não há outro recurso a não ser o símbolo poético ou religioso. Essa transmetafísica, pois podemos muito bem chamá-la assim, se exprime doravante por imagens. O fundamento será uma moradia, a Pátria, o em-casa, para onde, depois do esquecimento do Ser, voltaremos, pois o homem moderno é sem lar. Porém, ele pode reencontrar, à luz desse aí onde o Ser se encontra e se abre, a proximidade do Ser, pois o homem é o vizinho do Ser. Embora não seja senhor do ente, ele é o pastor do Ser, e os poetas e os pensadores são os guardas de sua moradia. Essa imagem não ultrapassa a simples metáfora, passarela analógica que permite progredir do mais conhecido ao menos conhecido, das nossas moradias familiares ao Ser-moradia. A imagem tem um valor ontológico. Mas virá o dia em que, pensando realmente o Ser revelado no seu significado (até agora escondido) de moradia, compreenderemos o que quer dizer, em verdade, “morar”. É como se o relacionamento entre símbolo e simbolizado se encontrasse invertido. Mas, nesse ponto, mais uma vez saímos da fenomenologia. O recurso à imagem como único meio de expressão basta para mostrá-lo. Com efeito, a fenomenologia não precisa de metáforas para operar a passagem ao nível do fundamento. A redução fenomenológica lhe é suficiente. Não há mais consciência constituinte e o homem não constrói o Ser por seu pensamento. Propriamente falando, não é nem o homem que pensa o Ser. Heidegger já aproveita uma fórmula mais neutra: o pensamento do Ser se revela ao homem, em vez de dizer que o homem questiona, Heidegger afirma “aquilo que questiona no homem”. O pensador e o poeta são os mediadores ou os profetas, por assim dizer, figuras sagradas desse questionar . À revelação fenomenológica, que fazia aparecer os conteúdos intencionais da consciência, Heidegger substitui a iluminação ou a revelação pura e simples. O escondido ou dissimulado que se trata de revelar não é mais o implícito ou o latente, como em Husserl, mas o misterioso, o sagrado. Aliás, é muito significativo que desde há muito tempo Heidegger pareça não mais usar o método “fenomenologia” em seus últimos escritos publicados. Heidegger, voltando-se em 1962, em suas recordações para a fenomenologia, pôde dizer: “ Hoje parece que o tempo da Filosofia fenomenológica passou. Já é julgada como algo do passado, que apenas é considerado ainda historicamente, ao lado de outros movimentos de Filosofia. Entretanto, em sua essência, a fenomenologia não é um movimento. Ela é a possibilidade de o pensamento, que periodicamente se transforma e somete assim permanece,corresponder ao apelo do que se deve ser prendida e guardada pode desaparecer como expressão, em favor do “objetivo” do pensamento, cuja manifestação permanece um mistério”. Assim a fenomenologia, pelo menos sob a forma em que a encontramos em Ser e Tempo, desaparece como expressão favor de outra perceptiva. 7. A Superação da Metafísica A hermenêutica fenomenológica, tal como foi elaborada e aplicada em Ser e Tempo, pretende ser um esclarecimento da compreensão que tem o Ser-aí do Ser. À primeira vista, a segunda fase da hermenêutica heideggeriana parece ser menos metafísica, pois, desde Sobre a Essência da Verdade até Que significa Pensar? Heidegger procura definir o homem e as coisas em função homem. Portanto, elimina todo significado concreto e referência existencial. Trata-se da

revelação do Ser que se realiza através do poeta e do pensador. Porém, são poucas as figuras que possuem ou são possuídas por essa visão essencial. A terceira fase da hermenêutica fenomenológica se encarna no profeta, numa visão de inspiração mística que torna visível o “Totalmente Outro”, para nos levar a uma dimensão totalmente outra. Nessa fase, Heidegger insiste na inefabilidade do fundamento último, a incompreensibilidade do jogo do ser, e a total alteridade de sua região de revelação. Essa mensagem profético-kerigmática anuncia publicamente o advento de um ser incognoscível-incognoscido na tentativa de preparar o homem para seu advento. O ser é o que reúne e guarda aquilo de que brota o reunido e se ajunta ao estado de nascimento e ocultamento. Mas qual o segredo e destino em questão? É aí que tem sua origem a mútua implicação entre ser e princípio, ser e fundamento. Porém, para Heidegger, isso é algo que está longe de ser evidente, pois se trata de um segredo particular. Aquilo que há,s e encontra ou se joga aí, como algo que está diante de um outro em tal ou tal relação. Aquilo de que depende que algo seja de determinado modo, e não de outro, assume o peso do culpável, o responsável por, aquilo que os romanos traduziam por causa. Segue-se que princípios e causas mostram o caráter de fundamentar. Por ter sua origem na essência do fundamento, princípios e causas pertencem, da mesma maneira que este, ao ser. Portanto, determinarão no futuro o ente e serão a norma de sua representação. A exigência de princípios e causas impor-se-á até ser aceita como coisa natural e evidente, como são, pois são eles que determinam, que fundamentam o ente em seu ser. Quando na época moderna se concebia o ser transcendentalmente como objetividade, e esta como condição da possibilidade do objeto, o ser se desintegrara naquilo que se chama de condição de possibilidade (em Kant) no sentido de findamento e fundamentação racional. Ao retirar-se, o Ser deixa atrás de si, como estrelas, essas figuras do fundamentar que permanecem desconhecidas quanto a sua origem, embora o entendimento comum não queira reconhecê-lo sob o pretexto de que é evidente a todo o mundo que o ente tem um fundamento e que nisso não há nada de extraordinário. Heidegger já não pensa o ser a partir do ente, e sim como ser, como fundamento no sentido radical: não como fundamento racional e sim como um deixar ou fazer estar que reúne. É dito que nada é sem razão, sublinhando-se o é. O que representa uma nova perspectiva, pois já se trata de um outro princípio e frase, tanto que propriamente falando o é não é nem princípio nem frase no sentido gramatical e lógico. A própria essência do fundamento torna-se problemática; se o fundamento no sentido radical, é o próprio ser, o que é o fundamento? Em Sobre a Essência do Fundamento, em 1929, Heidegger tentou dar uma primeira resposta a essa problemática. Porém, já não assume mais a resposta dada naquela ocasião, a saber, que o princípio da razão não pode levar-nos à essência do fundamento, já que fala do ente e não do ser. Não escutou o princípio no segundo sentido: nada é sem fundamento no princípio de razão, que afeta diretamente o ente. Temos que ver e ouvir o ser; ser equivale a fundamento, e fundamento equivale a ser. Ser e fundamento se implicam, dizem a mesma coisa, embora não sejam iguais; Ser é essencialmente fundamento. O ser não tem fundamento, pois é o fundamento; precisamente por sêlo não pode, ele próprio, ter fundamento; o Ser é, nesse sentido, o sem fundamento, o abismo. Com todo rigor teríamos que exprimi-lo evitando a forma enunciativa; ser e fundamento: o mesmo, ser, abismo. Já não se trata de uma frase gramatical e portanto não é propriamente um princípio. Naturalmente, isso exige uma transformação paralela no pensar, uma nova via para as coisas, um novo método. A frase de Silesius, “A Rosa é sem por quê” exprime perfeitamente a via de solução que Heidegger tomará. A rosa representa tudo o que floresce e cresce; a rosa é sem por quê,sem fundamento. É verdade que a botânica e mesmo a experiência vulgar encontram toda uma cadeia de causas e condições explicativas do Ser. Pois, sob este plano a rosa não tem fundamento, e sim é fundamento. Portanto, afirma que o porquê não remota a outra coisa floresce porque floresce; o florescer fundamenta-se em si, aparecer, despontar. A beleza é suprema maneira de ser: brotar a

partir de si é manifestar-se. Diante de surpreendente clareza com que o poeta místico Silesius viu isto, Heidegger pergunta se os místicos não seriam tão somente os homens da mais profunda experiência, mas também aqueles que pensaram mais profunda e agudamente. O princípio de razão, Heidegger nos diz, vale para a rosa enquanto objeto de nossa representação, não enquanto exite simplesmente si própria, em quanto é simplesmente rosa. Para Leibniz e o pensamento moderno, o princípio de razão se estende a todo ente: nada sem razão, nada sem por quê. O porquê que exclui toda fundamentação e todo porquê designa o simples e puro (sem porquê) estar-aí, onde tudo jaz, sobre o que tudo descansa. O porquê designa o fundamento, mas nomeia, como advérbio de duração, o Ser. O porquê nomeia uma vez o fundamento; nomeia o permanecer, o Ser, como fundamento. Ser e fundamento significam no porquê o mesmo. Ambos se reclamam mutuamente. O Ser como fundamento não tem por sua vez, fundamento, pois todo fundamentar é inconforme com o Ser como fundamento. Todo fundamento ou aparência de fundamentar precipita o Ser no ente. Então, o Ser fundamenta-se a si próprio, autofundamenta-se? Não, pois isso seria também rebaixar o Ser ao nível de um ente. Mas, então caímos no vazio? Sim e não. Sem, enquanto o Ser não pode explicar-se a partir do ente; não, enquanto temos que pensar o Ser como Ser. O ser em sua verdade é a medida que não pode medir-se com nenhum contar e medir nosso, que não se pode se pode contar partindo de nós mesmo, à nossa medida; é o incomensurável. Longe de ser um fundamento, o pensamento se coloca em correspondência com o Ser, com a verdade ou revelação do Ser. O Ser é fundamento e não tem por sua vez fundamento. É sem porquê. Ora, O que é sem porquê , o que é senão jogo? Como efeito, Heidegger leva a sério o jogo e faz dessa palavra um termo especial de se pensamento; em seus últimos escritos volta uma e outra vez a tratar do jogo, e conclui que no jogo se apoia o Ser e não em nenhum fundamento. O Ser é o jogo mais sublimo, um jogo que nada tem de capricho. Mas para poder pensar o Ser como jogo, temos que penetrar primeiro no mistério do jogo. A filosofia não alcançou a essência do jogo, pois tentou representá-lo como algo que é, como ente, como algo que tem um fundamento das regras do jogo, do cálculo. Heidegger tampouco julga suficiente determinar a essência do jogo a partir do Ser , fundamentando-o no ente; pelo contrário, temos que conceber Ser e fundamento. Ser como semfundamento, a partir da essência do jogo. O Ser remete ao jogo. Todavia, para Heidegger Ser é fundamento não é a última palavra que se pode dizer sobre o Ser; este permanece problemático para nós. De modo especial está ainda para ser esclarecida a relação entre a essência humana, o Ser, e o jogo. No jogo do mundo entramos também nós homens, como mortais, e precisamente como mortais. O tema da morte, que aparece e ocupa um papel tão importante em Ser e Tempo, continua sendo a possibilidade extrema da existência, e, como tal, a suprema potencialidade, capaz da suprema tarefa na vida: O homem só pode ser homem quando puser em jogo sua essência mortal dentro do jogo mundial. Com o tema do jogo, Heidegger nos introduz ao fundo de seu pensamento: o mundo como constelação de terra e céu, mortais e deuses; o jogo originário que exprima mais dizer pela palavra “Ser”. Na conversão do pensamento do Ser-aí para Ser, Heidegger afirma que superar a metafísica não significa destruí-la, e sim, mais simplesmente, revelar sua natureza: mostrar que era uma via humanista, subjetiva, niilista, para o Ser, via que por causa desses limites esgota as possibilidades essenciais da Metafísica. A partir dessa afirmação Heidegger procura transmitir uma compreensão do ente e de seu modo de ser à luz do projeto de Nietzsche; do ente como vontade de potência segundo o sentido do próprio Nietzsche, em direção a uma separação. Nietzsche não é apenas o poeta-filósofo em revolta contra uma tradição sem vida e rígida demais. Nietzsche teve o grande mérito de reconhecer que onde, como em nossa época, tudo se impulsiona para o nada, dominar o niilismo. É evidente que em nossa época o movimento niilismo

tornou-se mais manifesto em seu caráter planetário, incontrolável e multiforme, que a tudo corrói. Ninguém que vê claro negará hoje em dia, o fato de que o niilismo é, nas formas mais diversas e escondidas, o “estado normal” da humanidade, movimento a que duas Guerras Mundias não detiveram nem imprimiram outra direção. No meridiano zero o niilismo se aproxima de sua perfeição, entendendo o niilismo como processo no qual acontece a desvalorização dos valore supremos. A zona no niilismo perfeito constitui, Heidegger nos diz, a fronteira entre duas idades do mundo. Nessa linha crítica se decide se o movimento do niilismo termina no nada “nadificador” ou se ele é a passagem para a esfera de uma nova manifestação do Ser. Nietzsche é um metafísico em que se cumpre a realização de toda a metafísica ocidental , isto é, nele ela é completa e levada a término. Para Heidegger, há dois elementos cruciais no pensamento de Nietzsche: a vontade de potência e o eterno retorno. Heidegger interpreta esses dois temas em termos metafísicos, que quer dizer, Nietzsche concebe o Ser de tudo como aquilo que se identifica como a vontade de potência. Vontade de potência significa querer sua própria potência, ou querer seu próprio querer, oque vale querer seu próprio ser. Todavia, esse querer seu próprio se não equivale à vontade darwiniana de autoconservação se entende permanecer no estado em que se encontra, manter-se tal como é. Significa, melhor, ou todo querer, ou querer-se-mais, a vontade de auto-afirmação no sentido de incrementar, enaltecer e fortalecer aquilo que a pessoa é essencialmente. A vontade de potência é o ímpeto autocriativo comum a todos os seres. É o desejo de distanciar-se daquilo que é, o desejo de ir além de si, o desejo de ser a si mesmo, o homem que deve ainda tonar-se aquilo que que essencialmente é. Mas essa autotranscendência, essa vontade auto-reveladora é da própria essência da vida. Portanto, em Nietzsche, o ser de todas as coisas, o mundo como totalidade não é mais que a vida, é a vontade de potência, a vontade de ser. Mas, paradoxalmente, é da essência da vontade de potência não deixar que se revele na realidade. A ênfase que Nietzsche coloca no eterno retorno não introduz nenhum elemento novo, diferente, alheio ou contraditório na Metafísica. Pelo contrário, concebe o Ser, isto é, a vontade de potência , como o eterno retorno; a vontade de potência é enquanto eterno retorno. Ele pensa o Ser como tempo e vontade de potência, eterno retorno; Ser e tempo são outros tantos nomes diversos para a realidade metafísica última. Em Nietzsche, eternidade, o tempo do retorno, e arte o próprio retorno. Entendem-se só em base do momento, isto é, aquele tempo em que o futuro e o passado se encontram na existência humana. Assim também a temporalidade, em que, acima de tudo e enquanto sabemos, só existe o homem, na medida em que ele forma e suporta o presente, defrontando-se ao mesmo tempo resolutante com o futuro e preservando o passado. Mas, para Nietzsche, um tal conceito de temporalidade, fundamentado no homem, intrinsecamente ligado ao homem, não implica a humanização do eterno retorno como a vontade de potência, e portanto daquilo que é? A noção de temporalidade humana como processo de revelação da vontade de potência a vontade de ser, a vontade da vida autotrancendente não é uma noção eminentemente humana baseada em nossa própria introspecção, e não no ser? E esse tipo de introspecção não levaria inevitavelmente à humanização do Ser como tal? Uma filosofia que indica por uma tal terminologia antropomórfica pode escapar da armadilha do “humanismo”, isto é, de uma interpretação antropomórfica do mundo como totalidade? E afinal, se as filosofias de Platão e de Descartes já eram subjetivas e humanistas, o que significa a “revolta” contra a Metafísica tradicional? Heidegger responde essa pergunta mediante uma comparação entre o humanismo de Platão e o de Descartes como o pensamento de Nietzsche, para ver se a tão intencionada revolta de Nietzsche contra a Filosofia tradicional realizou-se ou não. Heidegger opina que o que Nietzsche queria realizar, e o que conseguiu realizar, são duas coisas totalmente diversas. Nietzsche interpretou a teoria das ideias de Platão de maneira externa e superficial demais. Portanto, pensou que fosse necessário opor suas próprias doutrinas à noção platônica de ideia preexistente. Mas,

devido à sua compreensão superficial, essa oposição resultou mais numa tradução do pensamento de Platão para um idioma moderno do que numa mudança de correntes. Para Nietzsche, a etapa mais significativa da Metafísica de Platão foi a divisão de todos os seres em dois mundos de valor ontológico desigual: o mundo do Ser, o mundo das ideias ou formas, por um lado, e o mundo das aparências, o mundo do parecer, o mundo dos fenômenos, por outro. O primeiro desses mundos, cognoscível por conter toda a realidade, era depositário de toda verdade e valor, e o segundo, objeto dos sentidos e falho como respeito à realidade, era um mundo de ilusões e de semelhanças. Nietzsche pergunta qual o tipo de conhecimento que se coaduna com ideias preexistentes “fixas”. A realidade de parada, um reino imutável de essência. Consequentemente, a ênfase de de Platão no conhecimento faz com que toda verdade e ser sejam uma questão de permanência, estabilidade imutabilidade. Ora, se o Ser é vida, a vontade de Potência , o eterno retorno no momento, como o é para Nietzsche a metafísica de Platão deve ser revalorizada, e a ênfase colocado no segundo mundo, o mundo do devir e do movimento, o que resulta numa revalorização radical do conhecimento. O conhecimento não se torna totalmente sem valor. Só que todo o valor que retém deve derivar-se do seu valor pela vida, a vontade de potência, a vontade de ser. O conhecimento é, por essência, a esquematização de um caos. Nesses termos, Heidegger interpreta Nietzsche, como dizendo que conhecer significa imprimir formas de ordem no caos. O caos é o esconderijo da abundancia não-dominada do devir e do fluxo do mundo como totalidade. Qual é então o valor verídico de um conhecimento que esquematiza e paralisa toda a realidade? Por um lado, toda a verdade inerente a tal conhecimento não é nada mais que ilusão, a distorção e a decepção. Por outro lado, essa espécie de ilusão é necessária para a vida; essa verdade é a espécie de erro sem qual um certo tipo de ser vivo não poderia subsistir. Portanto, o conhecimento como esquematização de um caos, de acordo com doador de formas, governado pelas perspectivas de nossa existência, é simplesmente uma condição necessária da própria vida. Para poder viver, é preciso saber, mas a vida é superior em valor ao saber, e o saber, embora torne a vida possível, não conduz à verdade. A verdade, a descoberta do Ser, se alcançar não no conhecimento e, sim, na arte, que, como movimento, eleva a um nível superior as possibilidades ainda não vividas que não estão acima a aquém, mas animam a própria vida. A arte é portanto mais verdadeira ou seja, de mais valor que o saber e sua verdade. Portanto, a avaliação que Platão faz da verdade relativa ao conhecimento e seu valor, e da arte, sofre uma transformação total. No entanto Heidegger, o resultado da inversão nietzscheana de Platão é idêntico em essência à teoria invertida. Aliás, acrescenta Heidegger, uma posição metafísica pelo fato de ser invertida. Nietzsche viu que as ideias, os valores transcendentes de Platão, aos quais o conhecimento e a conduta humana deviam subordinar-se, eram de fato o resultado da obra do homem. Viu que por sua própria criação o homem se ergueu como medida do significado e do valor das coisas, e só uma espécie de ingenuidade hiperbólica o tornou inconsciente desse fato. Foi por esse motivo que Nietzsche se propôs aniquilar esse hiperbolismo inconsciente e declarou todas as verdade e valores como artefatos humanos, e a vida humana fonte última de toda a verdade e todo valor. Mas um tal hiperbolismo consciente e deliberado não deixa de ser Hipérbole, no seu sentido de homem se sobrepujar como fonte tradicional e fim de tudo. Nietzsche é apenas a realização e a radicalização daquilo que era inerente a Platão e, a partir de Platão, à tradição da Metafísica ocidental. A Metafísica é antropomórfica, a formação e a visão do mundo refletem a imagem do homem. Em toda a metafísica a relação do homem como o todo , como aquilo que é, é decisiva, pois, o homem assumiu o papel de ser a medida única e incondicionada de todas as coisas. Embora o humanismo em Platão fosse mais implícito, a metafísica de Platão foi tanto o resultado e a expressão da vontade de potência como a de Nietzche. Tampouco foi menos niilista, pois a Metafísica é, enquanto Metafísica, essencialmente niilista, pois é um processo em que, implicitamente (Platão) ou explicitamente ( Nietzche), o homem se torna a medida de todas as coisas , com o resultado de que o próprio homem como também seu mundo torna-se sem medida, sem objetivo, sem valor, sem meta.

A tentativa do homem de tornar-se o fundamento incondicional e centro de tudo deixa o próprio homem sem fundamento e sem centro. Aquilo que podia e devia proporcionar o fundamento de toda existência humana, o ser como tal, caiu no esquecimento, e em vez de pensar no ser, a Metafísica niilista-humanista só pensa no mundo conforme a imagem e fins do homem. A percepção cartesiana, não menos que o conhecimento nietzscheano, subordina-se à vontade de potência do homem e serve para estabelecer o domínio do homem sobre a terra. Quando o homem se torna o sujeito preeminente, tudo no mundo se torna objeto, isto é, sujeito a seus cálculos, e a vontade torna-se um sujeitar todas as coisas ao nosso domínio. Resulta então que a relação do homem com os seres é o avanço dominador para a conquista e o domínio do mundo. O passo final da Metafísica humanista-subjetivista-niilista, enquanto projeção pela conquista do mundo, é o surgimento da técnica científica moderna; não mais uma contemplação e um cultivo harmonioso da natureza e, sim um ataque violento que obriga tudo o que há a se revelar de maneira mais apta a servir à nossa vontade insaciável de potência. A tecnologia moderna é apenas uma aplicação científica extrema da teoria de Nietzsche, que levou a Metafisica tradicional a sua realização e ao seu fim. A recuperação da Metafisica é a recuperação do esquecimento do Ser em sua essência tal como foi experimentado pelos gregos. Enquanto velamento, o esquecimento é, presumivelmente, um abrigar que conserva o que ainda não chegou ao desvelamento. Para a representação corrente, o esquecimento assume facilmente a aparência de uma mera omissão, de carência e de embaraço. Costumeiramente entendemos o esquecer e a distração exclusivamente como omissão, termos que, muitas vezes, podem ser encontrados como um estado subjetivo do próprio homem. Heidegger nos diz que assim ficamos ainda muito longe de uma determinação da essência do esquecimento. Contudo, mesmo ali, onde podemos ver, em sua amplitude, a essência do esquecimento, caímos, com demasiada facilidade, no perigo de compreender o esquecimento apenas como procedimento humano. O esquecimento do ser foi, muitas vezes, representado como se o ser fosse, para usar a expressão de Heidegger, o guarda-chuva que a distração de um professor de Filosofia esqueceu em algum canto. Entretanto, o esquecimento não apenas afeta a essência do ser, como algo aparentemente dela separado. Ela pertence à tarefa do próprio ser, impera como destino de sua essência. O esquecimento corretamente pensado, o ocultamento do ser (essência no sentido verbal) ainda não desocultado, esconde tesouros inexplorados e permanece a promessa de um achado que apenas espera por uma procura adequada. A recuperação da Metafisica se volta para a essência da Metafisica. Ela a envolve com aquilo que companha a essência da Metafisica até onde ela o exige, na medida em que clama por aquela esfera que a eleva ao espaço livre de sua verdade. Por isso, o pensamento, para corresponder à recuperação da Metafisica, deve antes elucidar a Metafisica. A uma tal tentativa a recuperação da Metafisica parece primeiramente, uma superação que liquida a representação exclusivamente Metafisica, para conduzir o pensamento ao livre espaço de sua essência recuperada. Mas na recuperação a verdade permanente da Metafisica, aparentemente rejeitada, retorna propriamente como sua essência reconquistada. Todavia, não existe recuperação que só possa assumir a tradição, como alguém que recolhe as maçãs caídas da árvore. Cada restauração é interpretação da Metafisica no sentido de reconquistar as experiências originais do ser dela, através da derrubada de representações tornadas correntes e vazias. Mas Heidegger insiste em que, para salvar a metafisica em sua essência, a participação dos mortais nesta salvação deve limitar-se primeiro a perguntar: Que é Metafisica? Se a pergunta visa discutir a Metafisica enquanto a ultrapassagem do ser sobre o ente, então se torna também problemático, com o próprio “Ser” que ultrapassa, aquilo que se distingue naquela distinção, em que se movem desde a antiguidade as doutrinas da Metafisica e da qual recebem o esquema fundamental de sua linguagem. Esta é a distinção entre essência e existência, e em vista dessa distinção Heidegger nos diz que a reflexão sobre a ultrapassagem do Ser sobre o ente se mostra como um daqueles problemas que devem ultrapassar o homem, não para que com isto o pensamento

morra, mas para que viva transformado. A pergunta Que é a Metafisica? se situa no âmbito d todas as ciências e a elas fala, mas não com a arrogante intenção de corrigir seu trabalho ou de depreciá-lo. Uma pergunta que visa à essência da Metafisica somente pode ter em mira o que caracteriza a “meta-física”, isto é, a ultrapassagem: o Ser do ente. Apenas porque a pergunta: Que é a Metafísica? pensa de antemão na ultrapassagem, no transcendente, no ser do ente, pode ela pensar o nada do Ser, aquele nada que é co-originalmente o mesmo com o Ser. Para a ultrapassagem e no meio dela, ilustra-se com a representação metafísica do ser do ente. Aparecendo desta maneira, o ser assume propriamente a representação metafisica. A Metafísica jamais proporciona, por sua essência, ao olhar humano, a possibilidade de se estabelecer propriamente na paragem, isto é, na essência do esquecimento do ser. Nas duas primeiras fases de sua hermenêutica, Heidegger mostrou que as possibilidades essenciais da Metafisica foram esgotadas, voluntária ou involuntariamente, seguindo os passos dos metafísicos tradicionais. A última fase dessa hermenêutica mostra os limites da metafisica humanista, ultrapassandoos para mostrar que as possibilidades essenciais da Metafisica foram realmente esgotadas no abandono da Filosofia para evitar a Metafisica. A primeira fase Ser e Tempo mostra a suprema preocupação com a ipseidade do ser (o Ser é tal que cada um pode dizer que é seu) e com o Ser como tal enquanto essência da racionalidade humana (existência). Descreve a estrutura da experiência fenomenal (ser-no-mundo) com base na transcendência ( projeção existencial) do Ser-aí está enraizada em e é a expressão da preocupação do Ser-aí com seu próprio Ser e com o Ser como tal. Na segunda fase que vai desde Sobre a Essência da Verdade até O que significa pensar?, encontramos a dialética da correspondência entre Ser-aí e Ser, e a projeção do Ser-aí torna-se resposta à autoprojeção do Ser como meio de auto-revelação do Absoluto. Na terceira fase transcende a própria Filosofia, reconhecendo que a Filosofia humanista é tão preocupada com os entes e seu ser que esquece do Ser como tal. 8- Ser e Técnica A visão técnica da mundo é a consumação da metafísica da vontade de potência da mesma maneira como esta já era a consumação da Metafísica ocidental. Isso significa que a técnica é o máximo de obscurecimento e esquecimento do Ser por parte do homem. No mundo tecnicamente configurado Heidegger nos diz que o Ser é necessariamente relegado ao esquecimento e esse próprio esquecimento é esquecido, isto é, a ausência do Ser não é experimentada como tal, a não ser como uma libertação e enriquecimento. Heidegger nos adverte de que essas descrições não reproduzem apenas algo do real já conhecido, mas preparam o acesso a uma nova realidade na qual não se trata de novos ensinamentos ou de um novo sistema. O marxismo, que para Heidegger não passa de uma derivação da essência da técnica, chegou a captar o sentido profundo da Metafísica ocidental que culminou em Hegel; um sentido ligado à essência da técnica. Aponta para uma concordância fundamental entre Marx e Hegel, a saber, a concepção técnica da realidade. Heidegger não vê a essência do materialismo marxista na tese de que tudo é matéria, e, sim, na consideração da realidade que depende de pontos de vista metafísicos, os da Metafísica moderna, que considera a realidade como material de trabalho. Este materialismo já está presente em Hegel, quando na Fenomenologia do Espírito considera a realidade como um processo de produção incondicionada, ou, o que se reduz ao mesmo conceito, como objetivação universal por parte do homem enquanto sujeito. Que é isso senão a essência da técnica? O essencial do materialismo dialético não é o que tem de “materialismo”, e, sim, o que tem da concepção técnica da realidade; e por ser esta concepção peculiar à Metafísica moderna, o materialismo dialético vem a ser a consumação dessa metafísica. Nesse sentido, para Heidegger, a visão marxista da história é superior à da fenomenologia e do existencialismo.

Podem-se adotar diversas posições com respeito às doutrinas do comunismo e sua fundamentação, mas o que é certo é que, do ponto-de-vista da história do Ser, nele se manifesta uma experiência fundamental de algo que pertence à história do mundo. Quem toma o “consumismo” só como “partido” ou como “ideologia” não vê a essência dele, pois não compreende que a essência da materialismo se esconde na essência da técnica. Quando Heidegger fundamenta todas as raízes essenciais de nossa época na Metafisica, ele define a Metafisica moderna como uma visão técnica da realidade; realidade como objeto para um sujeito, de tal maneira que seja perfeitamente dominável por esse. Quanto à relação entre a técnica e a matemática, a técnica não nasce das matemáticas, e sim, pelo contrário, as matemáticas e toda a ciência moderna pertencem ao âmbito da essência da técnica moderna e somente a ela. Quando se fala em funcionalidade, automação, burocratização, informação, já se está dentro do domínio da essência da técnica, tornando manifesto o caráter total do trabalho, de todo real, através da figura do trabalhador. O marxismo enfoca essa preceptiva da realidade a partir do ângulo do material; o trabalho e o trabalhador se colocam no centro da realidade. Heidegger conclui que talvez essa ideia do trabalho como título para nomear nossa época seja menos equívoca que a vontade de potência de Nietzsche. Pois, hoje em dia, o poder só é possível como representação da figura do trabalhador, que aspira a uma validez planetária. A técnica é a mobilização do mundo mediante a figura do trabalhador, e o trabalho se identifica com o ente enquanto vontade de potência. Na figura do trabalhador e no seu domínio não se vê mais a subjetividade do ser humano. O ser metafísico da figura do trabalhador corresponde ao projeto da figura essencial de Zaratustra no âmbito da metafísica da vontade de potência. Heidegger afirma que a essência do trabalho, como também a do trabalhador, só se esclarece a partir da vontade de potência, só que por sua parte a própria vontade de potência, só que por sua parte própria vontade de potência está regida pela essência da técnica. Afinal, a procura da essência da técnica nos leva inevitavelmente a raízes ainda mais radicais:a verdade do ser e seu ocultamento. Trabalho quer dizer, metafisicamente falando, o mesmo que Ser, pois é o mesmo que a vontade de potência. A presença da essência do trabalho se esclarece pela figura do trabalhador, pois a representação da presença é seu mínimo enquanto uma nova e especial vontade de potência. A presença da essência do trabalho se esclarece pela figura do trabalhador, pois a representação da presença é o seu domínio enquanto uma nova e especial vontade de potência, só que esta parece fundamentar-se na essência do trabalho. Portanto, o problema se radicaliza no das relações entre o Ser e o homem, pois a figura do trabalhador, como aquele que conhece e experimenta o novo e especial no trabalho, enquanto caráter total da realidade do real deve integrar-se em algo mais originário. A presença da figura do trabalhador constitui o poder. A representam da presença é seu domínio, sendo uma nova e especial vontade de potência. O domínio é, hoje, apenas possível como representação da figura do trabalhador. Trabalho, no sentido supremo e que perpassa toda a mobilização a representação da figura do trabalhador. A técnica é o modo pelo qual a figura do trabalhador mobiliza o mundo. A época moderna aceitava a técnica como simples função da forma humana, como feito do homem; em consequência, o Ser do ente e a própria essência do Ser manifestar-se-iam mo produto humano. Concretamente como um efeito do homem que representa. Para Heidegger, não há dúvida de que é o caso inverso. A imposição não se fundamenta na forma, mas a forma é que se fundamenta na imposição e dela deriva. Conceitos tais como “forma”, “tipo”, “construção orgânica”, etc., como todos os conceitos da ciência moderna, são incapazes de jogar luz sobre a realidade. Ao contrário, são um ataque frontal contra esta. Pode-se responder que tais conceitos são simplesmente instrumentais, magnitudes de trabalho para a apreensão da realidade que existe por baixo e além deles. Em outras palavras, trata-se de um sistema ótico através do qual podemos olhar a realidade. Uma vez utilizados, podemos esquecer deles e até eliminá-los totalmente.

Mas Heidegger não julga tão inócuo o uso do conceito, do próprio conceber no sentido moderno de objetivações da realidade. Pois o conceito co-determina a realidade, a constringe e coage. Se objetarmos que se trata de simples magnitudes de trabalho, é precisamente nessa caracterização que Heidegger vê o sinal de que são fruto de uma visão da realidade em que esta é contemplada do ponto de vista de material de trabalho. Normalmente damos uma de duas à pergunta que é a técnica? : os conhecimentos da técnica como um meio para certos fins, ou como um fazer do homem. Ambas as respostas correspondem e se implicam mutuamente. Pois a técnica é um instrumento humano. Trata-se da concepção instrumental e antropológica da técnica. Heidegger não nega que tal ideia seja exata e correta, tão estranhamente correta que convém até aplicá-la à técnica moderna, de que costumamos afirmar, não sem uma certa razão, que se trata de algo totalmente distinto e novo. Com efeito, uma central elétrica, com suas turbinas e geradores, reatores, estações de radar, etc., é meio para um fim. Todavia, o correto não alcança sempre a essência, não é sempre “verdade”. Através dessa qualificação corrente da técnica temos que ir à sua verdade. O ser do instrumento fundamenta-se na relação meio-fim, que por sua vez desemboca na ideia de causalidade. Partindo, pois, da noção de técnica como meio ou instrumento humano, análise nos obriga a concluir que a técnica não consiste na simples instrumentalidade, e., sim, antes de tudo, num modo de apresentação, numa forma de verdade. Para conseguir uma relação real com a técnica, é preciso ser mais do que técnico. Pelo produzir técnico imediato, isto é, pelo respectivo caráter especial de trabalho, jamais se atinge esta relação essencial. Esta repousa na relação com o caráter total do trabalhador. O trabalho assim entendido é idêntico ao Ser no sentido de vontade de potência. Que determinação essencial da técnica resulta disto? Ela é o símbolo da figura do trabalhador. Enquanto mobilização do mundo pela figura do trabalhador, fundamenta-se a técnica naquela conversão da transcendência à imanência da figura do trabalhador, através do que a presença dela se desdobra na representação de seu poder. A técnica tradicional não força a natureza, não é uma exploração, ao passo que hoje em dia explora-se a natureza. Por exemplo, explora-se o ar para obter nitrogênio, o sol para obter minerais, os minerais para conseguir urânio, e este para conseguir energia atômica, que por sua vez será explorada para fins pacíficos ou destrutivos. Não se procura cada produto para que exista sem mais, mas sim para que sirva para conseguir outra coisa. O descobrir da técnica moderna é uma provocação, um desafio à natureza para que liberte suas energias latentes, para logo transformá-las, algemá-las, distribui-las, e de novo transformá-las; são outros tantos modos do descobrir. Todavia, o descobrir provocador só pode tornar-se possível enquanto o próprio homem é levado a provocar a natureza. Mas, mesmo quando intervém, como explorador da natureza, longe de ser o autor dessa intervenção, ele próprio é explorado e coagido a ver a realidade como simples existência e objeto de encargo. A técnica moderna não é um simples fazer humano. Contudo, a técnica não é apenas provocação da realidade, mas é também reveladora. A essência da técnica é aquela maneira de a realidade mostrar-se, em que está reduzida à simples existência no sentido comercial e econômico. A técnica não é essencialmente um puro fazer humano, não é um acontecimento que surge primeiramente dentro do âmbito humano, nem mesmo o homem o agente principal desse acontecimento. Pelo contrário, é o homem quem mais sofre suas consequências. É ele a primeira vítima, o primeiro a ser explorado e provocado por ela, aquele que, mais que qualquer outro ente, se converte numa simples existência, a primeira e fundamental “matéria-prima”. O fato de a realidade se mostrar como matéria-prima não é o simples resultado do querer humano; é seu destino. Uma vez que a essência da técnica é uma forma da verdade, uma maneira de o ente se nos revelar, é também uma maneira de o Ser se nos revelar. Na essência da técnica fala o Ser, e sob a chamada do Ser está incluído não só o homem, mas todo ente, natureza e história. O Ser e o homem, ambos se dirigem para deter o ente e submetelo a uma planificação universal. Ser e homem se determinam mutuamente.

O Ser sob a forma da técnica provoca no homem a atitude técnica. Por sua parte, o homem, quando se empenha na atitude técnica, faz com que o Ser assuma uma feição técnica. Trata-se de uma provocação recíproca. Nesta relação deveria fundar-se a relação entre o trabalho, entendido metafisicamente, e o trabalhador. A essência da técnica afeta o homem mais intimamente e o mantém em suas redes. Energia atômica, máquinas, organização, informação e automação são apenas os resultados de tal realidade. A essência da técnica é mais fundamental que tudo isso, embora não seja mais presente ou mais visível. Concebemos o Ser do ente, desde os gregos, como presença. Mas o Ser é também ocultamente a ausência. Mas, desde que o Ser e o homem assumam seu sentido autêntico, torna-se possível a abertura de uma forma mais originária onde no mundo técnico se incluem natureza e história. Se, como Heidegger afirma, a técnica é a mobilização do mundo através da figura do trabalhador, existe círculo que encerra o determinante (o trabalho) e o determinado (o trabalhador) numa recíproca relação. Esse círculo é como sinal para o fato de que aqui se deve pensar a circularidade de um todo, num pensamento para o qual não pode servir de medida uma “lógica” que se conduz pelos padrões da não-contradição. Se a técnica é a mobilização do mundo através da figura do trabalhador, então, a mobilização acontece pela presença marcante da vontade de potência. Na presença e representação se manifesta o traço fundamental daquilo que se desvelou ao pensamento ocidental como Ser. “Ser” significa, desde os primórdios da antiguidade grega, até os últimos tempos de nosso século: estar presente (presenciar). Qualquer espécie de presença e apresentação brota do acontecimento da presença. Porém,a vontade de potência é, enquanto realidade do real, um modo de aparecer do “ser” do ente. Por sua vez, é do trabalho que a figura do trabalhador recebe seu sentido, se identifica com o “Ser”. 9 . Arte, Poesia e o Ser Ao preocupar-se com a arte e a poesia, Heidegger não abandona o tema orientador de todo seu pensamento – o Ser. Pois arte e poesia são essencialmente formas de o Ser se revelar. A arte não é primeiramente beleza nem criação, e, sim, a revelação do Ser. A arte como estética é tão velha como a reflexão filosófica grega sobre a essência da arte e do belo. Essa reflexão já se inicia como estética. Trata-se de esclarecer a arte a partir das vivências do artista e daquele que contempla obra de arte: seus sentimentos, suas sensações, seu mundo interior. O ponto de partida dessa reflexão é o artista e o espectador e não a própria obra. Só que, antes de haver estética, havia arte, inclusive arte grega. Porém, essa arte permaneceu sem sua correspondente reflexão conceitual. Os gregos contemporâneos da grande arte não tiveram, nem precisavam de uma estética. A estética começou na Grécia quando a grande arte já terminara, como a própria Filosofia nasceu quando o pensar grego mais profundo já chegara ao fim. Arte e pensar são contemporâneos, como também Filosofia e estética. Platão e Aristóteles, que representam para Heidegger o declínio do pensamento grego e o surgimento da Filosofia, são também os fundadores da estética. Eles deram a toda a história subsequente do Ocidente o ponto de vista a partir do qual contemplamos a arte até nossos dias. Para o pensamento grego o ser em repouso permanece perfeitamente distinto face ao ente mutável. Essa diferença entre o Ser e o ente se manifesta, quando vista do ente para o Ser, como a transcendência, isto é, como o metafísico. Entretanto, a distinção não é uma separação absoluta. Isto é tão certo que na presença (Ser) o que se apresenta (ente) é produzido, mas não causado no sentido de uma causalidade eficiente. Tampouco, a distinção matéria-forma era adequada para exprimir o que os gregos viram na arte. O fato de que essa distinção tenha sua origem na interpretação do ser instrumental já torna problemática sua aplicabilidade a outras esferas da realidade. O conceito matéria-forma converteu-se num esquema, num conceito geral, universalmente válido. Mas, pelo

próprio fato, perdeu-se praticamente a capacidade de dizer com eficácia o peculiar da arte; o que o pensamento ganhou em extensão perdeu em precisão. Na Idade Média o homem enquanto sujeito pensante constituiu-se em fundamento da verdade. O modo de o homem se sentir, isto é, o homem e seus estados de consciência, é que vai decidir o encontro com as coisas e a maneira de vê-las. A reflexão sobre o belo já é exclusivamente estética, tendo por base única a situação emotiva do homem. Consuma-se um acontecimento que vinha se preparando havia tempo: a decadência da arte. A grandeza da arte não consiste propriamente na qualidade do criado, e, sim, naquilo que tem de necessidade absoluta, em ser caminho e moradia do homem em sua procura da verdade, ou seja, da descoberta do ente. Só quando na arte se descobre o incondicionado e absoluto é que a arte chega à plenitude. As obras de arte só podem ser grandes se se fundamentarem nessa grandeza primordial. Na medida em que a arte se torna estética, acelera-se a queda da grande arte. Não é que a qualidade artística baixe de tom ou de estilo, ou que esses sejam menos válidos. É que a arte perde sua essência que consistia exatamente em exprimir a relação imediata com o absoluto, implantar decisivamente o absoluto como tal dentro do âmbito do homem histórico. No momento em que a estética enquanto teoria da arte alcança a perfeição, o momento de maior altura, amplitude e rigor, a grande arte já terminou. Segundo Heidegger, Hegel representa esse momento. Heidegger nos diz que Hegel tinha plena consciência de que com ele a estética chegou a seu apogeu, e que ao mesmo tempo morreu a grande arte. Doravante, a arte, em seu destino supremo, é realidade do passado, pois já se foram os belos tempos da arte grega. Para Hegel, a arte já pertence ao passado. As obras de arte passaram a ser objeto de gosto estético para certas camadas da sociedade, o que é a melhor prova de que a arte perdeu o poder do absoluto. Richard Wagner tentou restaurar a arte mediante a unificação de todas as artes numa arte universal. Tentou elevar a arte à categoria de festa popular; procurou transformar a arte em religião. Para tanto, a música, e especificamente a ópera, torna-se arte fundamental, pois na ópera as demais artes se põem a serviço da música. Na música prevalecem os sentimentos, o sustentar-se sobre o profundo oceano das harmonias, a embriaguez e a dissolução na pura emoção. A obra de arte geral é uma festa universal em que tudo se dissolve em ar e vapor, no reino do imenso, ilimitado e indeterminado, sem lei e sem clareza. A arte volta a ser, de um certo modo, uma necessidade absoluta, só que o absoluto se vive agora como puro sentimento e pura imersão no nada. Wagner encontrou na obra mestra de Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, a confirmação metafísica desse conceito da arte. No entanto, a tentativa grandiosa de Wagner fracassou. Com ele a degradação estética da arte chega ao extremo. É o estado emocional que determina a concepção e valorização da arte. O entendimento, abandonado a si próprio, permanece exposto a uma crescente barbarização. Estamos no reino do desmesurado. Nietzsche já não aceita que a arte seja definitivamente relegada ao passado. Aspira a convertê-la num futuro. Hegel elevou a estética à metafísica do espírito, ao passo que Nietzsche vai até tornar a reflexão sobre a arte numa Filosofia. A estética não é outra coisa senão uma fisiologia aplicada: uma investigação natural dos estados e processos do corpo e de suas causas excitantes. Assim, a arte chega à última consumação como fato estético; o estado sentimental é reduzido a excitações dos centros nervosos, a estados corpóreos. E nesses termos que Nietzsche eleva a arte à categoria suprema e declara que a arte é mais válida que a verdade. Com isso ele vai contra Platão, que nos diz que a arte, por ser mímesis, imitação, é inferior à verdade, a qual manifesta o próprio ente em sua realidade. A essência da arte esconde-se na obra de arte. Portanto, o caminho mais fácil para se chegar a compreender a essência da arte parece ser a análise da obra de arte, mas, para que a essência da arte possa esclarecer-se através da obra de arte, requer-se alguma compreensão da essência da arte. Que é uma obra de arte? Em vez de responder por meio de definição, Heidegger nos apresenta uma obra de arte concreta no quadro de Van Gogh, onde aparece um par de botas. O que na obra de arte salta aos olhos é, antes de tudo, uma coisa com as peculiaridades que a fazem ser

uma coisa especial. À pergunta “Que é uma coisa?”, Heidegger aponta para três respostas tradicionais: 1 .Coisa é aquilo em torno do qual se acumulam as propriedades de algo. Essa concepção da coisa contribui para configurar a estrutura da proposição enunciativa: um sujeito do qual se predica um acidente. Todavia, não se resolve qual é o primeiro, se a estrutura da coisa ou a da proposição tem prioridade; para incluir ambos os sujeitos, fala-se da coisa como portadora de atributos. Heidegger nos dia que, apesar de ser corrente, essa interpretação não é tão natural; trata-se da naturalidade do que nos é habitual; 2 .O conjunto dos dados sensoriais que formam uma unidade (de síntese, totalidade, forma etc.). Mas, propriamente falando, tais dados sensoriais não existem: nunca ouvimos, por exemplo, simples sons ou ruídos; ouvimos a tempestade, o trimotor, um Mercedes, que distinguimos perfeitamente de uma outra marca de automóvel. As puras sensações são uma abstração; 3 .A terceira interpretação parece manter-se no justo termo: a coisa é a síntese de matéria e forma; conceito que se aplica igualmente às coisas naturais e às artificiais. De modo especial parece explicar de maneira satisfatória (o que a obra de arte tem de coisa: a matéria. A obra de arte seria uma matéria formada. De fato, este esquema parece universalmente admitido na teoria da arte. Matéria-forma é um conceito que se adapta bastante bem às coisas que são instrumentos; mas não às simples coisas, termo que costumamos usar para designar os entes não elaborados, no estado natural, e as obras de arte. A simples coisa não possuí afinidade com a obra de arte que o instrumento possui pelo fato de ser algo fabricado; a obra de arte goza de uma auto-suficiência, de um repouso em si, que falta ao instrumento. Assim, o instrumento tem a ser uma realidade intermediária entre a simples coisa e a obra de arte. Não se pode pretender explicar com o esquema extraído do ser instrumental, matériaforma, as duas outras realidades. O certo é que ainda não conhecemos nem o ser da coisa, do instrumento ou da obra de arte; o conceito matéria-forma em vez de esclarecer tende a confundir as três realidades. Não parece haver outra solução para o problema a não ser prescindir de quaisquer interpretações, e examinar cada realidade concreta separadamente. Encontramos um instrumento no próprio quadro de Van Gogh: um par do botas. Seu ser é um ser útil, um ser-para-algo. Para percebê-lo só falta ver o instrumento funcionar. Por exemplo,ver o camponês andar com as botas pelo campo. Mas não é preciso ir ao campo para contemplar esse ato: as botas, por si só, por sua simples presença no quadro, nos dizem o que são, o que fazem, para que servem. No obscuro e gasto interior da bota está fixado o cansaço do andar penoso. No peso da bota vemos a tenacidade da marcha lenta através do campo açoitado pelo vento. No couro vemos a umidade e saturação do clima. Esse instrumento pertence à terra e está guardado no mundo do camponês. Assim surge o instrumento como tal em seu repousar em si mesmo. O ser do instrumento, das botas, não nos é revelado pela descrição e explicação das botas reais, pelo processo de fabricação ou pela observação de seu uso, mas pela simples contemplação de um quadro de Van Gogh. Este nos diz tudo. O segredo não está naquilo que o quadro nos apresenta graficamente com mais nitidez que a realidade, o par de botas, e, sim, em que a obra de arte torna manifesto o que é um instrumento. Na obra de arte acontece a revelação ou a verdade de algo: a verdade do ente se põe na obra. É só a partir da obra de arte (ou outras formas de verdade) que as coisas são coisas, os homens são homens, pois essa obra os torna presentes. A tragédia grega, por exemplo, não era propriamente uma representação pura e simples, era a própria luta dos novos deuses com os antigos. A tragédia não fala acerca dessa luta, mas sim a leva a cabo ao submeter a linguagem popular a uma transformação que decidirá para as gerações vindouras o que será o sagrado e o profano, o grande e o pequeno, o valente e o covarde etc. A essência da obra de arte consiste em instalar um mando; instalar, não apenas no sentido de pôr coisas, e, sim, no sentido de dedicar e celebrar. Dedicar é

consagrar: pôr o sagrado como sagrado, evocar o deus para que faça ato de presença. A celebração é a festa da majestade e esplendor do deus, em que o deus se torna presente através e sob as coisas. A obra de arte abre um mundo e o deixa subsistir. Mundo no sentido de abertura, pois o mundo é a própria abertura pela qual as coisas adquirem permanência e urgência, vizinhança e distância, amplitude e estreiteza. O mundo é o espaço que torna possível o advento dos deuses. Até a ausência dos deuses se realiza num mundo, mais precisamente, é um modo de “mundear” o mundo. Todavia, a obra de arte não consiste apenas em instalar um mundo, e, sim, em elaborar a terra. O instrumento supõe uma elaboração, mas no instrumento a matéria assume a forma de utilidade ou servibilidade. A obra de arte, o templo, ao elaborar a matéria, não a faz desaparecer, mas, ao contrário, a destaca; na obra de arte transparece o brilho do metal, a luminosidade da cor, a vibração do som, a dicção da palavra. A obra de arte elabora a terra, pois a terra é o fechado e o inescrutável. O peso da pedra, a cor, o som são impenetráveis à análise, ao cálculo matemático, à explicação física; podemos reduzir o peso a números e a cor a vibrações, mas então destruímos peso e cor. Na obra de arte não se pode falar propriamente de uma “matéria”. Evidentemente, o escultor usa a pedra, o pintor as substâncias corantes e o poeta as palavras; mas o escultor não gasta a pedra, nem o pintor as cores, nem o poeta as palavras. Ao contrário, fazem com que a pedra seja pedra, as cores sejam cores e as palavras sejam palavras. A obra de arte não requer apenas ser criada, o que é um produzir que coloca o ente em aberto, que revela a luta entre esclarecimento e ocultamento, que sustém o mundo e a terra em seu mútuo antagonismo, mas também a revela como conservação. Não há obra de arte sem conservação, não só no sentido da manutenção material da obra de arte e sua transmissão à posteridade, mas também conservação no sentido de os homens entrarem na obra de arte e por ela na abertura do ente. É convicção firme de Heidegger de que a arte deixou de ser arte já há séculos; a rigor, desde o nascimento da Filosofia grega, constitui-se como Metafísica. A Metafísica foi o fundamento da arte ocidental. Mas, se a arte tiver de reviver no futuro, não será na base da Metafísica, e, sim, no da revelação do Ser. É mister procurar a essência da arte na verdade do Ser. Quando a verdade do Ser se realiza na obra da arte, há beleza, pois a beleza não é outra realidade senão essa manifestação que pertence ao acontecer da verdade. A verdade a que pertence a beleza é a verdade do Ser, e não era outra coisa para os primeiros pensadores da Grécia. Só essa mútua pertinência da verdade e da beleza explica as sucessivas transformações da verdade do Ser em íntima conexão com a beleza. A beleza vem a coincidir, como princípio, com a verdade, mas não com a verdade do Ser, e sim com a verdade que é resultado da consumação da Metafísica: a verdade do sujeito. A procura da essência da arte levou Heidegger à poesia, já que a arte é, no fundo, poesia. Mas em que sentido pode a arte reduzir-se à poesia? Que é a poesia? Concernente à essência da poesia, Heidegger não procura uma essência no sentido universal, mas uma essência histórica. Por ser histórica é realmente essencial. A poesia recolhe o homem do fundo de sua existência naquele infinito repouso em que todas as forças se mantêm ativas. Enquanto fundação do Ser, a poesia está ligada a uma dupla lei que nasce de sua própria essência: os deuses e o povo. A poesia é o nomear originário dos deuses, mas tal nomear só é eficaz quando os deuses falam primeiro e assim fazem falar. E como falam os deuses? Por sinais. O dizer do poeta consiste em captar esses sinais para transmiti-los a seu povo. O poeta completa sinais e com audácia prediz o futuro. Volta o espírito audaz como a águia sobre a tempestade, anunciando seus deuses. O poeta interpreta a voz do povo nas lendas em que ele encerra sua história e seu destino dentro da totalidade do ente. Essa voz do povo com frequência emudece ou entorpece. Por si mesma não pode expressar o mais autêntico; necessita do intérprete: o poeta, que está entre os deuses e o povo. A essência da poesia é uma essência histórica no sentido mais puro, porque inicia um tempo novo, e precisamente por ser histórica é a essência essencial. A essência da poesia é fundar. Poetizar é um radical fundar. Que é que funda o poetizar? O ser. Portanto, o mundo, as coisas, Deus. Que é fundar? Abrir o ser, fazer aparecer o mundo, dizer a essência das coisas, nomear Deus. Ser, mundo, coisas, Deus formam o elemento em que se

desenvolve a existência humana. Portanto, o poeta como tal possibilita a existência humana, tal como Heidegger a fundamenta: o dizer do poeta é a fundamentação da existência humana. Quanto mais poeta é o poeta, tanto mais livre, quer dizer, quanto mais aberto e predisposto ao improvável é o seu dizer, tanto mais estranho é o seu dizer no sempre dificultoso escutar. O poeta autêntico é aquele que está atento ao habitar humano na casa do mundo, o que exige de si mesmo o estar pronto para dizer aos mortais as verdades essenciais. 10 . Ser e Linguagem A linguagem como exteriorização fonética de sentimentos ou movimentos vitais internos, como atividade humana, como expressão sensível-conceitual, é ideia corrente; só que não alcança a linguagem como linguagem. Falar uma língua será “utilizá-la”, ou seja, nossa fala comum. As palavras aparecem já prontas como articulações, sons que se percebem pelos sentidos. Estruturalmente, seria esse “dado” da linguagem, do qual temos que partir, o sensível. Ao som da palavra associa-se um elemento não-sensível, o significado ou sentido. Fala-se de atos que enchem de sentido as simples palavras. Essas são corno recipientes vazios que receberam um significado, que logo podemos extrair delas. As palavras se colocam por ordem alfabética no dicionário e são classificadas conforme a figura fonética e o sentido. Se queremos saber rigorosamente o que quer dizer uma palavra, a atitude científica exige que recorramos ao dicionário. Qualquer outro modo de proceder seria “não-científico”. É assim que se considera normalmente a linguagem. Mas é exatamente o “normal” que tem o poder inquietante de nos impedir acesso ao essencial. Aliás, Heidegger não está certo de que sejam os sons o dado imediato da linguagem. Ao ouvirmos as palavras, não ouvimos simples sons, pois a palavra como simples ruído fonético é uma pura abstração. Portanto, não é um dado. Nem quando escutamos uma língua desconhecida ouvimos sons propriamente falando, mas palavras que não entendemos. Há uma diferença essencial entre o simples som percebido acusticamente e uma palavra que não se entende. Mas ouvir falar não é só ouvir palavras. O que escutamos é, antes de tudo, a voz silenciosa do falado, que é o âmbito misterioso que nos dirige a palavra. Todavia, esse âmbito nos permanece oculto; ainda não ouvimos e menos ainda pensamos esse âmbito. As palavras não são recipientes dos quais extraímos o conteúdo, o sentido. As palavras são como poços de água, em cuja busca o dizer perfura a terra, poços que facilmente se escondem e que temos que redescobrir constantemente, pois às vezes jorram inesperadamente onde menos se espera. Sem esse constante retorno aos poços, o conteúdo dos recipientes torna-se água estagnada, ou insipida, quer dizer, a linguagem, arrancada de seu âmbito essencial pela quotidianeidade e ordinariedade torna-se palavrório, como Heidegger mostra em Ser e Tempo. Meditar sobre a linguagem é voltar-se em direção ao dizer das palavras. Para nós, homens de hoje, isso se torna muito difícil, pois estamos acostumados à perspectiva “natural” em que sempre tendemos a recair. A representação habitual da linguagem pertence à região metafísica (pois é “expressão”) e já é uma superação do simples fonético, portanto do físico-sensível. A linguagem representada como “expressão” possui um elemento supra-sensível (expressão é exteriorização de vivência), ou seja, a redução de um objeto a um. sujeito. Todavia, para Heidegger é insuficiente considerar a linguagem do ponto de vista metafísica, sobretudo da metafísica da subjetividade. O conceito tradicional da linguagem é rico e resume efetivamente a verdade. só que a inércia faz com que retenhamos apenas o peso morto dessa tradição. A linguagem se apresenta para nós já pronta, como uma atividade dos órgãos da fala. O termo com que os idiomas ocidentais designam a linguagem são provas dessa interpretação: língua, lengua, langue, language. Aristóteles formulou a interpretação decisiva da linguagem em termos linguísticos, passagem que Heidegger traduz da seguinte maneira: “Aquilo que acontece na pronúncia vocal (a voz) é sinal daquilo que acontece nas paixões da alma, e o escrito é sinal da pronúncia vocal. E assim, como o escrito não é o mesmo em todos, assim tampouco as vozes são as mesmas. Porém,

aquilo de que estas (vozes e sinais escritos) são sinais são todas as paixões da alma; e as coisas das quais estas (as paixões) formam representações semelhantes são igualmente as mesmas.” As letras são sinais da voz ou palavras, as vozes são sinais das paixões da alma, estas são sinais das coisas. A ligação é formada pela relação de sinal sem esquecer que Aristóteles não fala só de sinais, mas também de símbolos e igualdades. Trata-se de uma interpretação da linguagem a partir da fala; entendida esta como articulação vocal. A solução não consiste em recusar o sensível da linguagem, o elemento corpóreo a favor do supersensível, do espiritual, do significado ou sentido, daquilo que se chama “espírito” da língua. Não é possível prescindir do sensível e corpóreo como elemento essencial da linguagem. O que Heidegger põe em dúvida é a interpretação propriamente corpórea da linguagem, o que a voz e o escrito são propriamente. Não é possível salvar o “corpóreo” da linguagem só referindo-se à articulação fonética, ao “corpo” fisiológico, ou à esfera do “sensível” concebida metafisicamente. Evidentemente, podemos explicar a articulação e vocalização fisiologicamente como fenômenos do aparelho fonético, mas não é nesses termos que alcançaremos o essencial da linguagem. A consideração técnica da linguagem é rica e é correta, só que o essencial lhe escapa. O pensar comum (técnico-explicativo) não penetra no sentido profundo da linguagem. Escutar e ouvir só se interpretam como simples percepção acústica supondo que falar seja expressão e significação. Se a essência da fala é o reunir, em que pode consistir o escutar? Se o ouvir fosse uma simples captação do som, então esse entraria por um ouvido e sairia pelo outro, o que acontece quando não nos recolhemos naquilo que ouvimos. Ouvir consiste propriamente em recolher-se, recolhendo o escutado; ouvimos quando somos todo ouvidos. Mas ouvido não significa primordialmente o aparelho acústico. Enquanto este funciona só como instrumento ou órgão, não pode produzir um ouvir, nem sequer um ouvir ruídos, sons e tons. Evidentemente, ouvimos corporalmente, mas não se pode demonstrar anatômica nem fisiologicamente que o ouvir seja um simples produto de um aparelho acústico animado. É um erro pensar que o ouvir autêntico seja a atividade dos órgãos acústicos. Sobre o ouvir autêntico pouco se pode dizer, e isso num plano não circunscrito a um círculo entendido, mas sim num âmbito aberto a todo homem. Nesse campo de nada adianta investigar, pois é mister atender, meditar o simples. Não ouvimos porque temos ouvidos, e, sim, temos ouvidos porque ouvimos. Os mortais ouvem o rumor do bosque, o ruído dos motores, o ruído da cidade somente na medida em que tenham ou não relação com eles. Somos todo ouvidos precisamente quando nos recolhemos totalmente na atitude de escutar e esquecer os ouvidos e a pressão da voz. Enquanto ouvimos as vozes como expressão de um falante, já não ouvimos em absoluto, deixamos de ouvir. Assim nunca chegaremos a ouvir algo. O ouvir ocorre quando nos voltamos em direção ao dito, quando correspondemos ao falado. Se falar significa pôr, isto é, deixar estar aí, em reunião, corresponder à fala não será outra coisa senão deixar estar em sua integridade aquilo que um prévio deixar-estar recolhe e apresenta, pôr o subjacente como tal e como o uno, como o mesmo, como uma e mesma coisa. Ouvir é um eco do dizer. Em vista dessas considerações, Heidegger se atreve a traduzir assim o fragmento 50 de Heráclito: “Não me escutais a mim, e sim correspondeis à posição que reúne: deixar estar o mesmo; o destino está presente (a posição que reúne), o um unificando tudo. Os mortais correspondem ao destino (são sábios) quando seu dizer (posição que reúne) se adapta ao dizer originário (posição originária que reúne) daquilo que é o próprio destino e a própria habilidade e adaptação: o uno unificador de tudo.” A expressão com que Heidegger nomeou a essência da linguagem em Uma Carta Sobre o Humanismo é a Casa do Ser. Todavia, quando se trata da essência da linguagem, não se refere a um conceito da linguagem; casa do Ser não é um conceito da linguagem; mas também não é uma imagem, forma de deficiente ou metafórica do pensar, imprópria para um verdadeiro filósofo. Para alcançar a essência da linguagem é preciso deixar a palavra à própria linguagem. A essência da linguagem não deve ser precisamente algo linguístico. Daí a procura de outra palavra que exprimisse a essência da linguagem. “Casa do Ser” é apenas um sinal. Aliás, Heidegger insiste em

que a palavra, para designar a essência da linguagem, só pode ser um sinal ou uma indicação pela dita essência, e mesmo essa pretensão parece um tanto audaciosa. O que há de especial no sinal é remeter à própria coisa, ao mesmo tempo que se revela a si próprio. Nisso o sinal é parecido com o gesto. “Casa do Ser” não é uma imagem atrás da qual temos que buscar o não-sensível expresso nela, nem se concebe como uma realidade onde se aloja ou que aponta para outra realidade. A linguagem aponta para o próprio Ser, ou seja, a presença do presente, isto é, a dualidade do Ser e do ente em sua unidade. O homem está comprometido em sua própria essência pelo Ser assim entendido, pois o homem é homem na medida em que corresponde ao apelo da dualidade e põe de 'manifesto a mensagem da mesma, o que se realiza na linguagem. O homem pertence ao Ser como mensageiro, como aquele que transmite a mensagem e a conserva, quer dizer, enquanto hermenêutico. O homem está em relação, ou seja, se vê necessitado a conservar a duplicidade, a do Ser e do ente, presença e presente. A duplicidade não se pode entender a partir da presença nem a partir do presente, senão a partir da relação de ambos. O homem em sua essência está em relação com a duplicidade. A duplicidade não é o resultado da comparação entre o presente e a presença, postos frente a frente, para depois destacar a diferença entre eles. A duplicidade não é o resultado, é o originário. A rnissão da linguagem como linguagem, sua essência, não seria outra senão provocar a duplicidade, seu domínio e império. Ser homem é escutar essa mensagem; a relação hermenêutica do homem não consiste em outra coisa. Em virtude de sua relação hermenêutica o homem núncio dessa mensagem; esta reclama o homem para que a escute e lhe corresponda e assim se reintegre como homem em sua essência. O homem o porta-voz da mensagem e o desocultamento da duplicidade lhe é confiado pelo Ser. Doravante se trata de atender aos sinais da mensagem cujo mensageiro é o homem. Explicar em que consiste a relação hermenêutica do homem, como mensageiro, com o desocultamento da duplicidade enquanto mensagem, significa inquirir a essência da linguagem. Heidegger nos diz que a conversa radical seria aquela em que a essência da linguagem falasse e interpelasse como dicção os homens. Seria uma conversa da linguagem e a partir dela. Para conseguir uma experiência pensante da linguagem é necessário aproximar-se da sua essência, pois a linguagem é a palavra fundadora não só do ente, mas também do próprio Ser. A linguagem não é um simples meio de expressão que se pode pôr de lado e trocar como um disfarce, sem que com isto seja afetado aquilo que se expressou. Pois na linguagem aparece nela se manifesta em sua essência aquilo que nós somos. Em Ser e Tempo, a linguagem já era objeto de uma temática. Na própria analítica do Sor-aí aparece como co-existencial do discurso que articula, discurso que é fruto, ele próprio, da explicitação do mundo. Graças à compreensão, o Ser-aí pode explicitar o mundo nas suas significações. Pode dizê-lo a outros. O discurso, decorrente da compreensão e da situação fundamental, articula o projetosempre já lançado-do Ser-aí no Ser. A própria “lógica” enraíza-se na análise existencial do Ser-aí, pois o Ser-aí conhece o mundo, e por tal motivo pode dizê-lo. Desde Ser e Tempo, a linguagem fundamenta-se na abertura do Ser. Em Uma Carta Sobre o Humanismo, a característica própria do homem consiste em fazervir o Ser à palavra. Falar torna-se então um entender e um pertencer, que leva o Ser-aí até as mais altas possibilidades do Ser. Porém, a compreensão é uma compreensão são situada: a linguagem será então marcada pela queda. É por esse motivo que a linguagem também pode se tornar palavrório, limite do discurso, mas que ainda participa do seu ser; só que a palavra tende a estagnar-se, a repetir-se no já “dito”. O palavrório se situa de alguma maneira num tempo simplesmente dado à margem do tempo existencial. Alcançando o Ser, o Ser-aí fá-lo vir na palavra. Assim, se esboça o círculo da diferença ontológica. O sentido último do projeto compreensivo é o tempo, discurso articulador do projeto que é ele próprio temporalizante. Encarnando-se na linguagem, torna-o presente. Colhe o passado

enquanto é, e é o projeto para o futuro. O projeto articulado na linguagem interiorizada assume sobre si a temporalidade que tende a estagnar-se na representação espacial. A palavra “e”, no presente, já manifesta em Ser e Tempo a sua força refulgente de nomeação, o apelo do - e ao – Ser. Doravante, a linguagem não será mais vista apenas como um existencial, como um bem do homem. É o Ser como tal que a linguagem coloca em questão,coloca em perigo. Toda nossa linguagem, como também a da Metafísica, diz “é”. Vemos então que o problema da linguagem coincide com o da superação da Metafísica. Trata-se de fazer ver na palavra aquilo que a Metafísica, ciência do ente, não pode alcançar e portanto pressupõe. É preciso que surja uma nova relação que nós devemos estabelecer com a linguagem, que ela não apareça mais como faculdade ou atividade do homem, como acreditava a Metafísica, mas como a chegada da própria presença onde mais exatamente o homem encontra a sua dimensão essencial, o que o torna ser-homem. A Introdução à Metafísica aprofunda o sentido da palavra “ser” para livrar o que há de incomparável na relação que sustenta com a sua significação. Embora condicione a própria possibilidade da linguagem, nos parece superficialmente como se fosse o conceito mais vazio, mais usado. Pois,com ele, toda a linguagem perdeu a força do apelo. O resultado foi o consequente enfraquecimento de nossa relação com a linguagem. Na linguagem não se sabe mais do que se trata. Para alcançar a essência da linguagem, seria necessário colocar a nu aquela presença que fala nela. É porque dizemos “é”, porque somos “dizedores” do Ser, “mostradores” do Ser, que falamos. E isso é mais originário em nós que sermos homens. Sem a linguagem, sem a palavra”é” todo ente, portanto nós mesmos, ficaríamos fechados. Repensar a linguagem desde o início é re-encontrar o “lugar” essencial onde o Ser se mostrou, onde o pensamento lhe correspondeu, mas onde, ao mesmo tempo, ele se escondeu também, imprimindo assim o seu destino sobre toda a Filosofia ocidental. A palavra autêntica fundamenta-se no Logos. O resto, como diz Heráclito, não passa do ladrar de cães. Como os cães ladram face àquilo que desconhecem, os homens falam do ente e passam ao lado do Ser sem vê-lo. Em Parmênides, o Logos é o combate onde o não-ser se arranca do seio do Ser, permitindo que os entes apareçam. A linguagem implica esse devir que é do Ser, co-pertencente profundo a partir do qual a identidade e a contradição lógicas são possíveis. A linguagem arrisca o Ser, esconde-o ou o manifesta. É a palavra que mantêm o ente na abertura do Ser. Não é a determinação de um ente já aberto, mas opera essa mesma abertura, torna-a presente. A palavra pura é eficaz, é o logos recolhendo na presença e mantendo aí os entes. A origem, o lugar da linguagem, será então o apelo do Ser lançado ao homem, que está sempre respondendo, sendo ele próprio essa abertura, esse lá, ponto de luz onde o ser aparece. A palavra revela aquilo que é escondido, é lugar de acontecimento. A interioridade é total entre aquilo que é (fito e o dito. Sob o nível utilitário da linguagem, como simples moeda de câmbio, a palavra desaparece na sua maleabilidade e envia a significação que ela veicula. A palavra poética é “magnificação” iluminação da sua forma que, paradoxalmente, emerge na medida em que se retrai e se aprofunda indefinidamente. A palavra poética estoura, a palavra instrumental se faz esquecer. Acontecimento sempre renovado, a palavra poética nos leva ao recôndito; retendo o fulgor do Ser, ela nos permite morar na verdade. É este aspecto que guarda a palavra autêntica. No ensaio Hölderlin e a Essência da Poesia, Heidegger nos diz que a poesia é a mais inocente das ocupações, e que a linguagem é o mais perigoso de todos os bens. A poesia é um jogo inocente; ela se coloca no interior da linguagem. Ela é a linguagem que se ocupa de si própria, que se engaja consigo própria. Porém, se há linguagem é porque há diálogo: e o diálogo implica que compreensão mútua do mesmo. Se há algo que permanece, que persiste, é porque a poesia enquanto linguagem pura torna as coisas presentes, fundas menta-as no Ser. A poesia é fundamentação do Ser em e pela palavra. O homem é só porque antes de tudo ele é aquela fundamentação, livre dom do Ser,

gratuidade, que é característica da poesia. Se a poesia inocente,é porque ela se coloca fora do habitual, do quotidiano, ao abrigo dos golpes deste. O tempo que ela faz vir, a história que ela leva, nos empurra para um outro lugar, longe das coisas manipuláveis que estão simplesmente no tempo. A linguagem é o mais perigoso de todos os bens, pois sendo fundamentação do Ser, ela arrisca o Ser. Rilke nos diz que de todos os entes, o homem é aquele que mais arrisca. O homem, porque fala, e então o poeta, mais que todos, é aquele que assunte, o maior risco; ele é lançado fora, exposto ao aberto, defronta-se com o desmesurado, suporta a tensão extrema, aquela mesma tensão de que sofrerá Holderlín seu que lhe inspira a poesia mais pura. O poeta é mediador. Rejeitando o habitual, ele se coloca entre os deuses e os homens; lá onde se decide o que “é” o homem. Os deuses nos falam e o poeta é o seu intérprete. É a linguagem que, desde as épocas longínquas, assume o papel de sinal, e é o poeta que surpreende os sinais. O pensamento que caminha para o diálogo entre pensar e poetizar caminha para o seu modo inicial, que é o modo do dizer. Pensamento e dizer encontram-se aquém de toda distinção lógica. Eles se diferenciam, mas são inseparáveis; são atirados para o mesmo, turbilhão de um questionamento mais original. O objetivo é chegar a uma bipolaridade pensamento-poesia que não se explique mais de fora, que se situa além de um relacionamento lógico. O que os une é um diálogo que vai além da língua falada. No Posfácio a Que é a Metafísica?, Heidegger nos diz que “o pensamento dócil à voz do Ser procura encontrar-lhe a palavra através da qual a verdade do Ser chegue à linguagem”. Só quando a linguagem do homem histórico emana da palavra, está ela inserida no destino, que lhe foi traçado. Atingido, porém. este equilíbrio em seu destino lhe acena então a garantia da voz silenciosa de fontes multas. O pensamento do Ser protege à palavra e cumpre nesta solicitude seu destino. Este é o cuidado pelo uso ida linguagem. O dizer do pensamento vem do silêncio longamente guardado e da cuidadosa clarificação do âmbito nele aberto. De igual origem é o nomear do poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto é destino, e o poetizar e o pensar terem a mais pura igualdade no cuidado da palavra estão ambos, ao mesmo tempo,separados em sua essência. O pensador diz o Ser; o poeta nomeia o sagrado. Pensando a partir do acontecimento do Ser, o poetizar, o reconhecer e o pensar estão referidos um ao outro e ao mesmo tempo separados. Provavelmente, o reconhecer e o poetizar se originam, ainda que de maneira diversa, no pensamento originário que utilizam sem contudo poderem ser, para si mesmos, um pensamento. Se o homem possui a palavra, é então para ele uma determinação essencial. Se o homem é, é porque é “dizedor”, “mostrador” do Ser. É quando o homem fala, quando ele diz e faz florescer a presença que ele é. Se no juízo, o falar que representa a linguagem aparece como um fazer do homem, um modo de expressão da sua subjetividade, esse falar não fundamenta o ser do homem. A linguagem essencial não é o fato de o homem possuir a linguagem, mas antes o fato de o homem ser possuído pela linguagem, pois o homem não fala a não ser na medida em que é possuído pela linguagem. Pois só a linguagem fala realmente. É a linguagem que nos faz sinal, e somos nós essencialmente um sinal. Identidade e Diferença nos instala no coração do processo da verdade, ao qual pertencemos pelo fio frágil e único da linguagem. É pela linguagem que pertencemos ao Ser como acontecimento, é a linguagem que deveria responder ao apelo do Ser. Se a linguagem quer voltar até a sua própria essência, ela deve ser repensada a partir daquele dizer que é do Ser antes de ser um fazer do homem, do homem que só pode falar porque diz, porque mostra. Em No Caminho para a Linguagem, Heidegger nos diz que a linguagem fala, isto é, a linguagem leva à linguagem. Se quiséssemos pensar a linguagem, fazê-la falar, seria preciso que nos aproximássemos daquela intimidade, daquele núcleo fundamental que não se libertaria para nós a não ser que nos deixássemos levar por essa relação constitutiva do nosso ser-homem. Portanto, não se deve abordar a linguagem a partir de alguma realidade alheia a ela, quer que seja como

atividade , quer seja como expressão de nós-mesmos, sinais das nossas sensações, e até das coisas, como em Aristóteles. Pois o mistério da linguagem consiste no fato de a própria razão ser linguagem, logos. É preciso que aprendamos a morar na linguagem em vez de tentar alcançá-la de fora numa língua já constituída. É preciso nos instalarmos no coração da palavra falante - daquela palavra - da qual o acontecimento é sinal enquanto diz, e não enquanto leva a outra coisa além dela própria. A linguagem é pura quando faz aparecer o aberto; é poesia quando entende esse apelo como ponto de partida, quando decide, quando o arrisca. 11 . Conclusão O inquérito metafísico busca o fundamento do Ser para reconquistar o ser do ente em sua plena realidade e totalidade. Esse inquérito leva o homem a revelar-se, seu horizonte se dilata imensuravelmente e ambas, história e civilização, recebem um fundamento sólido. E este o processo que Heidegger empreendeu. Na especulação metafísica os fenômenos e problemas que o filósofo propõe para análise e interpretação nunca podem tornar-se “objetos”, no sentido de objetos de pesquisa científica. A razão é que quando se trata dos dados metafísicos, o ser do pensador é sempre envolvido e implicado no próprio inquérito. Pois ele não pode deixar de lado seu próprio ser para conseguir uma assim chamada “objetividade” cientifica. Consequentemente, todas as disciplinas históricas e filosóficas, e mesmo aquelas que tratam da vida humana orgânica devem, por necessidade, ser estritas, ser “inexatas”. O verdadeiro filósofo é aquele que dedica sua vida para manter a verdade do Ser. É só essa atitude por parte do filósofo que pode provocar uma dedicação semelhante nas futuras gerações. O verdadeiro filósofo e o verdadeiro poeta se esforçam para encontrar a palavra que enuncie a verdade do Ser. E a angústia, abrindo para o homem o abismo do nada, pode dar-lhe a ocasião de escutar esta palavra no silêncio profundo de si, pois o Nada é o frasco do Ser. Parmênides nos lembra que os entes nunca são realmente e plenamente. A Filosofia não podia avançar além dessa intuição fundamental. Como pode o homem ser capaz mesmo de perguntar se Deus está perto ou se esconde, se ele recusa colocar-se nessa dimensão, única dimensão em que tal pergunta pode ser feita? Só na medida em que o homem tem seu lugar, ou melhor, seu 1ar na verdade do Ser, pode ele receber diretivas do fundo do Ser, diretivas essas que ele pode não aceitar como sua lei e regra, mas em comparação com as quais todas as outras insignificantes. Heidegger, comentando Kant, diz que nenhuma outra época teve tão grande variedade de conhecimento acerca do homem, de uma maneira tão rápida e facilmente acessível, como a nossa. Mas, por outro lado, nenhuma outra época soube menos o que é o homem do que a nossa. Pois o homem nunca foi tão enigmático corno em nosso tempo. Visto nesta perspectiva, o pensamento de Heidegger não é um apelo, nem uma exortação, e sim, a meditação de um pensamento, isto é, o estar-a-caminho de um pensador que procura refundir o significado dos termos fundamentais da Metafísica ocidental, o fundamento do homem no Ser.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF