Historia Da Teologia Bengt Hagglund

April 2, 2017 | Author: Paulo S Silva | Category: N/A
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BENGT HÄGGLUND

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

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H istória da Teologia - Embora ser reconhecido como "um dos li­ vros mais com pletos e recomendáveis nesta área da história da teolo­ g ia " ^ Autor não alimenta a pretensão de esgotar a temática, pois re­ conhece que "há muito que fazer ainda neste cam po". Dividindo sua obra em três grandes partes - A Era dos Pais Eclesiásticos, a Idade Média, O Período Moderno - Bengt inicia seu estudo com os Pais Apostólicos e conclui com a análise das principais tendências teológi­ cas no início do século X X , traçando "a história do pensamento teoló­ gico através dos séculos", e analisando "as diferentes escolas teológi­ cas com suas peculiaridades” . Em sua pesquisa objetiva, o Autor não pronuncia julgam ento nem pretende "cristian izar" ou "reform ar" ou "luteranizar” os teólogos, cujas idéias apresenta. Mas sabendo que a "história da teologia desenvolve-se como análise de como a regra de fé cristã tem sido interpretada na história e no contexto de diferentes grupos", Hãgglund afirma que sua História da Teologia "tem como objetivo servir como introdução à literatura dogmática cristã e descre­ ver suas etapas de desenvolvim ento".

H IST Ó R IA DA TEOLOGIA

BENGT HÀGGLUND

HISTORIA DA TEOLOGIA Traduzido do inglês por MÁRIO L. REHFELDT e GLÁDIS KNAK REHFELDT

6o Edição - 1999

CONCÓRDIA EDITORA LTDA Av. São P ed ro , 633 - B a irro S ão G e ra ld o CEP 9 0 2 3 0 -1 2 0 - PO RTO A LEG R E - RS Fo ne: (051) 3 4 2 -2 6 9 9 - Fax: (051) 3 4 3 -5 2 5 4 E -m a il: e d ilu te r@ za z .co m .b r H o m eP a g e :e d ito ra co n co rd ia .co m .b r

Título Original: Teologins Historia

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Traduzida para o Inglês por Gene J. Lund da 3a Edição sueca Ia Edição - 1973 2“ Edição - 1981 3a E d iç ã o - 1986 4a E d iç ã o - 1989 5a Edição - 1995 6a Edição - 1999

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por CONCÓRDIA EDITORA LTDA.

APRESENTANDO

"Porque é indispensável que o bispo seja . . . apegado à palavra fiel que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder, assim para exortar pelo reto ensino como para convencer os que contradizem." (Tifo 1.7,9)

Em cada momento da História sentiram os cristãos a necessidade de de­ finir sua fé, explicá-la em linguagem compreensível aos homens de seu tempo e defendê-la contra distorções e ensinos contrários. A igreja cristã presenciou, assim , o surgimento e desenvolvimento de muitas doutrinas e heresias no de­ curso dos seus quase dois mil anos de existência. Resulta daí a importância de conhecer os fatos que cercam a origem e o desenvolvimento da formulação de determinada doutrina a fim de poder compreendê-la e avaliá-la plenamente. Esse conhecimento histórico oferece, também, a partir disso, melhores condi­ ções para se determinar até que ponto uma formulação doutrinária está fun­ damentada na Escritura e até que ponto ela é fruto de circunstâncias transitó­ rias. Muitos, sob a alegação de quererem valorizar a reflexão e ação do m o­ mento presente, preferem ignorar o passado e agir como se ele não tivesse existido. Estes, no dizer de Kurt D. Schmidt, são "um fardo para a Igreja" quando querem agir nela. Ou, como acreditava Santayana, eles estão conde­ nados a repetir os traços menos desejáveis desse mesmo passado. Outros, embora não desconheçam os benefícios que o conhecimento do passado pode proporcionar, se assustam com o volume de informações e opiniões que a história da Teologia acumulou durante os séculos e que já na Idade Média se assemelhavam, para o estudante principalmente, a uma selva obscura cheia de obstáculos. A História da Teologia de Bengt Hãgglund oferece orientação segura, clara e confiável para que o leitor não se perca nessa selva. O autor divide sua obra em três grandes partes correspondentes aos períodos antigos, medieval e moderno da história da igreja cristã. Ao longo do seu trabalho, ele faz uma

análise de "como a regra da fé cristã (ou, a confissão cristã original) tem sido interpretada na história e no contexto de diferentes grupos". Hãgglund, um teólogo sueco, professor de Teologia na Universidade de Lund, revela um profundo conhecimento do conteúdo que analisa e expõe e, ao mesmo tempo, demonstra uma capacidade de síntese e clareza raramente encontradas. A excelente tradução, feita a partir da tradução americana, possi­ bilita uma leitura fluente também ao estudioso de fala portuguesa. Ao apegado à palavra fiel da Escritura Sagrada, essa obra poderá servir como valioso instrumento auxiliar na tarefa de exortar pelo reto ensino e con­ vencer os contraditores. Recomenda-se, portanto, a leitura atenta e acompa­ nhada (e, certamente, também geradora) de reflexão dessa obra a pastores, estudantes de teologia, e a todos aqueles que sabem que somente poderemos descortinar horizontes maiores do que os avistados pelos gigantes do passado se nos pusermos de pé sobre seus ombros. Paulo W. Buss - STM Professor de teologia histórica da Escola Superior de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo

DO PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Esta história da teologia tem como objetivo servir de introdução à literatura dogmática cristã e descrever suas etapas de desenvolvimento. A história da teologia é, portanto, um ramo da história das idéias; trata das fontes da tradição cristã e examina o desenvolvimento das idéias nelas refletidas. Na teologia européia distingue-se, às vezes, entre «história do dogma», que trata dos desenvolvimentos doutrinários anteriores à Reforma, e «his­ tória da teologia», que estuda os desenvolvimentos posteriores à Reforma. Essa divisão, cuja base concreta é frágil, no entanto, demonstra claramente se r a expressão «história do dogma» título pouco satisfatório para este ramo especifico de pesquisa. Tendo-se em mente a divisão atual das disciplinas teológicas, a expressão «história da teologia» também poderia parecer im­ própria neste contexto. Mas quando o termo «teologia» é também empre­ gado para designar a interpretação da fé cristã, tanto em sua forma précientífica como na moderna, pode-se justificar o uso do termo «história da teologia». O s compêndios mais antigos de história do dogma — por exemplo, ás três obras merecidamente famosas de Adolf von Harnack, Reinhold Seeberg e Friedrich Loofs — definiam como dogma as doutrinas oficialmen­ te aceitas pela igreja. Harnack considerava-as a reelaboração científica das doutrinas da fé, ou, em suas próprias palavras, «o resultado do espirito gre­ go trabalhando no solo do evangelho». Considerava o período em que isto aconteceu certa época da história da igreja, em grande parte ultrapassada pela Reforma, e procurava criticar os dogmas com base nos critérios que dizia ter encontrado no evangelho original. Seeberg também acreditava que a formação do dogma teve lugar num certo período de tempo, que para os protestantes se encerrara com a Fórmula de Concórdia e o Sínodo de Dort. Mas também julgava ser dogma a expressão da fé cristã, e descobriu o fundamento da crítica nos próprios dogmas, na medida em que constituíam expressão das verdades fundamentais da salvação operada por Cristo. De­ ve-se ressaltar, contudo, que estas obras clássicas na realidade não tratam apenas de dogma em sentido restrito, mas de teologia cristã em geral. Os desenvolvimentos mais modernos, todavia, não foram considerados partes da história do dogma segundo os critérios aceitos naquela época. Em discussões contemporâneas não há unanimidade quanto ao signi­ ficado do termo «dogma». Em geral, no entanto, possui sentido bem mais

amplo que o da definição mencionada acima, pois também inclui desenvol­ vimentos teológicos modernos. Considera-se dogma não apenas algo her­ dado do passado, mas também a realidade contemporânea, que se relacio­ na intimamente com a proclamação da Palavra. Em alguns casos é conce­ bido como princípio transcendente da revelação (como em Karl Barth, por exemplo), em outros como complementação científica da mensagem prega­ da pela igreja. Em tais circunstâncias, é fácil ver quão difícil é fornecer uma descrição precisa da esfera e da tarefa do historiador do dogma com base nas premissas contemporâneas. Mas apesar destas dificuldades, é importante, acima de tudo, traçar a história do pensamento teológico através dos anos simplesmente como parte do campo das idéias, sem pronunciar julgamentos e sem empregar uma «crítica de dogma» preconcebida de qualquer espécie. Desejando-se encontrar um elemento básico comum, ou princípio diretivo para se usar numa pesquisa desta natureza, parece preferível partir da base da confis­ são cristã original e não da base de um conceito ambíguo de dogma. Esta confissão, a «regra de fé» cristã, tornou-se realidade definida desde o iní­ cio, não com respeito à forma, mas no tocante à substância (cf. Kelly, Early Christian Doctrines, 1958, p. 37: «resumo condensado, fluido em sua termi­ nologia, mas definido quanto ao conteúdo, ressaltando os aspectos princi­ pais da revelação cristã na forma de uma regra»). Esta regra de fé refle­ tiu-se nos símbolos então em uso, mas também podia ser expressa em ou­ tras formulações doutrinárias. Aparece com destaque nos escritos da igreja antiga não como dogma que se desenvolve gradualmente, mas como sumá­ rio do conteúdo da Escritura. A teologia da igreja é apresentada como ex­ plicação da regra de fé original ou daquilo que nela se considerava essencial. Sobre este fundamento, a história da teologia desenvolve-se como aná­ lise de como a regra de fé cristã tem sido interpretada na história e no contexto de diferentes grupos. Que tal ponto de vista não é nem arbitrá­ rio e nem imposto de fora, depreende-se do fato que de uma maneira ou de outra, as várias escolas teológicas procuraram, acima de tudo, interpre­ tar a confissão cristã. No que tange à teologia dos Pais Eclesiásticos, o ponto de vista a que aqui se faz referência, geralmente manifestou-se na apresentação da história do dogma, consciente ou inconscientemente. Isto acontece porque os esforços literários dos Pais da Igreja se relacionam intimamente com as questões principais tratadas pela regra da fé. No caso da teologia me­ dieval e contemporânea, é bem natural que este material também seja exa­ minado sob outros aspectos. A relação com a filosofia e os pressupostos intelectuais contemporâneos receberam atenção acurada nesta tentativa de se analisar as diferentes escolas teológicas com suas peculiaridades. Ao se delinear a história da teologia é de grande valor tomar em conta ade­ quadamente estas várias facetas do quadro geral. Há muito que fazer ainda neste campo. Quando se procura descrever de que modo a regra de fé

foi interpretada no período medieval (e posteriormente), e estudar a intera­ ção entre teologia e confissão, que constantemente ocorre na história da teologia, muitas áreas de pesquisa se abrem, e deveriam se r exploradas. . . . Nesta nova edição de História da Teologia o texto foi revisado em vários pontos, em outros foi ampliado com base em literatura nova ou an­ teriormente desconhecida. A edição de breve resumo da teologia inglesa — principiando com a Reforma — constitui a maior modificação. . . . Em resposta a numerosas solicitações foi adicionado um índice a esta edição. . . . Bengt Hãgglund Lund, Suécia, Fevereiro de 1963

PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO

Nesta edição acrescentei um trecho sobre a teologia do reavivamentism o do século XIX. Também conduzi a discussão até o presente em vá­ rios assuntos adicionando o Capítulo 34: «A Teologia da Parte Inicial do Século X X ; Tendências Contemporâneas». O leitor não deverá, contudo, esperar encontrar análise ampla ou pormenorizada dos desenvolvimentos do século X X neste capítulo. O objetivo deste capítulo de conclusão é sim­ plesmente o de esclarecer algumas das idéias mais importantes que foram ■trazidas à luz em anos recentes e de elucidar alguns dos problemas essen­ ciais em pauta na discussão teológica contemporânea. Para o preparo desta terceira edição sinto-me especialmente grato à assistência valiosa prestada por Bo Alhberg, Sven Ingebrand, Gõran Malestrõm, David Lagergren, Torsten Nilsson, Sven Hemrin e Olle Sigstedt, entre outros. Bengt Hãgglund Lund, Suécia, Agosto de 1966.

I PARTE A ERA DOS PAIS ECLESIÁSTICOS

CAPITULO 1 OS PAIS APOSTÓLICOS

Quando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos do fim do primeiro século e do início do segundo, cujos escritos chegaram até nós. Estes escritos — em sua grande maioria de natureza incidental (c artas, homiliasl — são de valor para nós porque. ao lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da fé cristã. Estes escritos, no entanto, não pretendem ser apresentações doutrinárias no sentido restrito do termo, e como resul­ tado, não podemos esperar deles um quadro completo dos artigos de fé. E, enquanto sua contribuição para o desenvolvimento da teologia foi rela­ tivamente pequena, eles contribuíram de forma notável para elucidar o con­ ceito de fé e os costumes da igreja que prevaleceram nas primeiras con­ gregações. Os mais importantes destes escritos são os seguintes: — A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95. — A s Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritas por volta de 115 durante a viagem de Inácio a Roma e para sua morte de mártir já prevista. — A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110. — A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por volta de 130. — A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, por volta de 140. — O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por. volta de 150.

— Fragmentos de Papias, escritos em Hierápolis na Frigia, por volta de 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros). — A Didaché («O s Ensinamentos dos Doze Apóstolos»), escrita na primeira metade do século, provavelmente na Síria.

C A R A C TER ÍSTIC A S G ERA IS A pesar de, cronologicamente, os escritos dos Pais Apostólicos esta­ rem próximos dos apóstolos e do Novo Testamento, a diferença entre estas fontes é grande e evidente, tanto com respeito à forma como quanto ao conteúdo. Alguns destes escritos foram incluídos, por algum tempo, no câ­ none do Novo Testamento, mas não foi por acidente que afinal foram ex­ cluídos. A diferença entre os livros do Novo Testamento e os escritos dos Pais Apostólicos se manifesta de muitas maneiras. Tem-se feito tentativas de determinar qual dos apóstolos (Pedro ou Paulo, por exemplo) influenciou os homens que produziram estes escritos. Mas, evidenciou-se que esta pes­ quisa é desnecessária. A teologia dos Pais Apostólicos não pode ser atri­ buída a qualquer membro individual do grupo apostólico; reflete, ao invés disso, a fé da congregação típica dos primeiros anos da história cristã. As semelhanças entre estes escritos e o Novo Testamento não dependem ne­ cessariamente do fato que os Pais Apostólicos foram influenciados direta­ mente por um autor canônico ou outro; refletem; antes, o fato que ambas as fontes tratam da mesma fé. Comparados com o Novo Testam ento, os Pais Apostólicos se distin-guem especialmente devido a sua ênfase no que geralmente se denomina moralismo (Anders Nygren usa a palavra «nomismo»; em português também se emprega o termo «leaalismo»'). A proclamação da lei ocupa lugar de destaque nos escritos dos Pais Apostólicos. Isto acontece em parte por­ que se dirigem a novas congregações cujos membros recentemente aban­ donaram o paganismo. Fazia-se necessário substituir seus antigos hábitos com praxe e costumes cristãos. A fim de realizá-lo, o costume judaico de pregar a lei foi usado até certo ponto, juntamente com outras praxes congregacionais judaicas, apesar do fato de haver marcada oposição ao judaís­ mo e à lei cerimonial. O evangelho era apresentado como nova lei oue Cristo ensinara mostrando o caminho da salvação. Dizia-se que a antiga lei tinha sido abolida e era obsoleta, mas nos ensinamentos de Cristo ha­ via nova lei. A vida cristã dizia-se consistir, acima de tudo, em obediência O moralismo não se encontrava na proclamação da lei como tal, mas na maneira como isto era feito. Entre os Pais Apostólicos havia forte ten­ dência de ressaltar a obediência à lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho à salvação e o conteúdo essencial da vida cristã. A morte e ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento para a salvação dos homens. Por causa da obra de Cristo o homem pode

receber o perdão dos pecados, o dom da vida, imortalidade e libertação dos poderes da corrupção. Mas mesmo no contexto em que tais assuntos eram discutidos, os Pais Apostólicos comumente faziam recair forte ênfase na lei e no novo modo de vida. A análise de alguns dos pontos fundamentais mais freqüentemente mencionados elucidará um pouco mais esta tendência. Justiça, como regra geral, não se descrevia como dádiva de Deus outorgada aos homens de fé (cf. Rm 3.21 ss.), mas, em vez disso, era aprssentada em termos de conduta cristã apropriada. Era, muitas vezes, apre­ sentada como o poder de Cristo que capacita o homem a fazer o que é correto e bom, mas ao mesmo tempo também se dizia, de maneira um tanto unilateral, que a nova obediência é exigência prévia para perdão e salvação. Esta era considerada não como dom da graça pura, dado aqui e agora àqueles que crêem, mas como alao. outorgado após esta vida, especialmente como recompensa aos que obedeceram a Cristo. Com a exceção de Pri­ meiro Clemente, os escritos dos Pais Apostólicos têm muito pouco em co­ mum com a ênfase paulina de justificação pela fé. Não é a graça imerecida que se situa no centro desta teologia, mas, antes, a nova vida que Cristo ensinou e para a qual ele capacita os homens. Deve-se, no entanto, lem­ brar que o caráter destes escritos, bem como o objetivo que os autores tinham em mente, eram, em parte, responsáveis por tal ênfase. Além disso, o fato que eram escritos casuais, que não pretendiam ser completos, é ou­ tra faceta da história. Estes escritos pressupunham que seus leitores tam­ bém tinham ouvido a proclamação ora! em que outros aspectos da fé cristã devem ter sido acentuados de maneira apropriada. Salvação é apresentada, na maioria das vezes, em termos de imor­ talidade e indestrutibilidade em vez de em termos de perdão dos pecados. Outro aspecto fortemente acentuado nesta conexão é conhecimento. Cris•to nos trouxe o conhecimento da verdade. Ele é o Revelador enviado por Deus a fim de que possamos conhecer o Deus verdadeiro e assim sermos libertados da servidão da idolatria e da falsa antiga aliança. Os Pais Apos­ tólicos não diziam, no entanto, que Cristo é mero ensinador; ensinavam que é Deus, aquele por cuja morte e ressurreição o dom da imortalidade é outorgado. Pecado é descrito como corrupção, maus desejos e cativeiro sob o poder da morte, além de erro e ignorância; a idéia de culpa não é muito acentuada. Notamos aqui um paralelo ao que foi dito sobre salvação; os Pais Apostólicos consideravam-na como sendo imortalidade ou a ilumina­ ção decorrente da verdade, tal como se encontra em Cristo. A relação en­ tre salvação e perdão ou redenção também se encontra neles — especial­ mente em Barnabé — mas não ocupa o mesmo lugar que em Paulo ou, por exemplo, na tradição protestante. A ssocia-se a salvação à vida fisica. em termos de libertação da morte e corrupção. Luz e vida, que formam seu conteúdo, relacionam-se com a lei. O caminho da obediência é o ca­ minho à vida.

A tendência moralista dos Pais Apostólicos aparece com maior evi­ dência em seu conceito de graça. No Novo Testamento qraca é o amor de Deus revelado em Cristo. Relaciona-se, por isso, com o próprio Deus, e com a obra redentora de Cristo. O homem é justificado por graça, não devido à força de suas próprias obras, fp tr s ns PaiSLApostólicos este con­ c eito nBotast^mrntnrin rte grana é snhstituíHn pnr nutro, no qual a graça é consideraria um riom que Deus outorga ao homem p o rjn ta imádioi —d s— C risto . Este dom, que algumas vezes é situado na mesma categoria do co­ nhecimento que chegou até nós mediante C risto , é imaginado como sendo um poder interno associado com o Espírito Santo, peio qual o homem pode buscar a justiça e andar no caminho da nova obediência. A graça é, por conseguinte, o pressuposto necessário à salvação, mas não no sentido neotestamentário — que a justiça é o dom de Deus outorgado aos que crêem em Cristo. Os Pais Apostólicos, pelo contrário, dizem que a graça confere o poder pelo qual o homem pode alcançar a justiça e afinal ser salvo» A linha de pensamento aqui apresentada, claramente indica a relação entre o conceito medieval de graça, com sua ênfase em «boas obras», e o padrão anteriormente estabelecido nesta tradição (cf. Torrance, The Doc­ trine of G race in the Apostolic Fathers, 1948). Há ao mesmo tempo, contu­ do, expressões que se relacionam majs intimamente com a doutrina paulina da justificação. Além disso, é também necessário que se observe a esta altura, que estamos aqui tratando de literatura exortativa, destinada a edu­ car as pessoas na nova vida, salientando fortemente o chamado à obediên­ cia aos mandamentos de Cristo. Esta ênfase èra feita a fim de se provi­ denciar uma influência que contrabalançasse a moralidade pagã que domi­ nava o ambiente no qual viviam as pessoas a quem estes escritos eram diri­ gidos. Como resultado não é lícito usar os escritos dos Pais Apostólicos nara tirar conclusões extremas com respeito a toda a proclamação cristã desse período. CO N CEITO DE E S C R IT U R A

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Assim como acontece nos livros do Novo Testamento, os Pais Apos­ tólicos julgavam que os livros do Antigo Testamento possuíam sua própria. autoridade intrínseca,. O fato que citam o Antigo Testamento tão freqüen­ temente, é tanto mais surpreendente quanto lembramos que seus escritos foram dirigidos, na maioria dos casos, a cristãos que tinham vindo de am­ biente pagão, A igreja era considerada o Novo Israel e, como tal, a herdeira dos escritos associados com a antiga aliança. O verdadeiro propósito da lei e dos profetas era de natureza espiritual, fato revelado através das pala­ vras e obras de Cristo. A Epístola de Barnabé, que tratou deste problema de modo especial, não faz qualquer distinção óbvia entre o que mais tarde se denominou interpretação tipológica e interpretação alegórica livre. Pres-

supunha-se desde o início que a lei de Moisés tinha objetivo mais profun­ do. Quando, por exemplo, a lei de Moisés proíbe que se comam animais impuros, julgava-se que a lei, com estes preceitos, condenava os pecados que tais animais simbolizavam. Referências a Cristo e ao Novo Testamen­ to eram encontradas mesmo nos pormenores mais insignificantes (cf. por exemplo: Barnabé IX, 8). Na base de tudo isto se encontrava a convicção que a Escritura era verbalmente inspirada pelo Espirito Santo: imaginandose que mesmo as minúcias externas ocultavam sabedoria espiritual de al­ guma espécie, que os judeus com seu método de interpretação literal fo­ ram incapazes de descobrir. Os Pais Apostólicos também testificam em termos insofismáveis que os quatro evangelhos e os escritos dos apóstolos estavam começando a ser reconhecidos como Escritura Sagrada com a mesma autoridade do Antigo Testamento, mesmo que o Novo Testamento ainda não tivesse alcançado sua forma firial em sua época. Quase todos os livros que chegaram a s e r incluídos no Novo Testamento são citados ou referidos nos Pais Apostó­ licos.. A tradição oral que se originara com os apóstolos também era con­ siderada como tendo autoridade decisiva para a fé e praxe congregacionais. Segundo Inácio, o bispo era o portador desta tradição válida.

A DOUTRINA DE DEUS; CRISTO LO GIA O s Pais Apostólicos ensinavam um conceito bíblico da natureza de Deus, baseado na idéia de Deus encontrada no Antigo Testamento. Con­ cebiam Deus como o todo-poderoso que criou o mundo e revelou sua von­ tade. sua justiça e sua oraca aos homens. Assim o expressa o Pastor de Hermas: «Crê acima de tudo que Deus é um, aquele que criou e ordenou todas as coisas e formou do nada tudo o que existe.» Enfatiza-se a fé no único Deus verdadeiro. A doutrina do Deus Trino ainda não aparece ple­ namente desenvolvida, mas a fórmula trinitária era empregada; por exem­ plo, no batismo, a fé na Trindade estava, naturalmente, implícita. A expli­ cação da maneira como as três pessoas da divindade se relacionam entre si pertence, todavia, a período posterior. A divindade de Cristo é salientada enfaticamente nos Pais Apostóli­ cos. Plínio, o Moço, dá testemunho disto na bem-conhecida frase incluída numa carta ao Imperador Trajano, ao dizer que os cristãos «cantam a C ris ­ to como cantam a Deus». Considerava-se Cristo como o Filho preexistente de Deus, que participou na obra da criação; é o Senhor do céu, que apa­ recerá como juiz dos vivos e dos mortos. Cristo é especificamente deno­ minado Deus, notadamente nas epístolas de Inácio. «Nosso D eys, Jesus Cristo, nascido de Maria segundo o decreto de Deus, verdadeiramente de Davi, mas também do Espírito Santo», escreveu ele em sua Epístola aos Efésios. (XVIII, 2).

Afirmavam estar Cristo presente na congregação como seu Senhor, e os cristãos se unem a ele como participantes em sua morte e ressurreiçãa. Esta união com Cristo é destacada de modo especial por Inácio. E s­ creveu aos cristãos em Esmirna: «Chegou a meu conhecimento que estais estabelecidos em fé sincera, firmemente unidos à cruz de Cristo tanto no corpo como na alma, constantes no amor mediante o sangue de Cristo, e convencidos que nosso Senhor é na verdade descendente de Davi segundo a carne, e Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus.» (Primei­ ra Epístola aos Esmirneanos). Também encontramos em Inácio várias afirmações dirigidas explicita­ mente contra (ou provocadas pelos) gnósticos judaico-cristãos, nas guais enfatiza a verdadeira humanidade de Crista. A vida real de Cristo na terra é vindicada em oposição àqueles que mantinham que Jesus tão-somente parecia existir em forma humana, que apenas parecia ter sofrido na cruz e que depois da ressurreição retornou a uma existência espiritual incor­ pórea. Tal opinião é conhecida como docetismo (do grego dokein). O con­ flito contra o cfocetismo foi uma das facetas mais significativas da teologia f cristã primitiva, visto contradizer o docetismo aouilo oue era hásico na proclamação apostólica, a verdadeira morte e ressurreição de Cristo. A sal­ vação resultava do que realmente acontecera dentro do contexto da histó­ ria, e do que os apóstolos foram testemunhas oculares. Quando o doce­ tismo, por meio de suas interpretações, eliminou a morte e a ressurreição de Cristo, a salvação era relacionada a um ensinamento abstrato e não ao que Deus realizara em Cristo. O docetismo assumiu várias formas: ou negava a verdadeira humanidade de Cristo empregando teorias sobre corpo fantasmagórico, ou então escolhia certos aspectos da vida terrena de Cristo como sendo potencialmente verídicos, enquanto negava o restante dos re­ latos evangélicos através de suas explicações. Certo gnóstico. Cerinto. ha­ bitante da Á sia Menor, tinha a opinião gue Jesus fora unido a Cristo, o Fi­ lho de Deus, por ocasião de seu batismo, e gue Cristo abandonou o Jesus terreno antes da crucificação.. Acreditava-se que o sofrimento e a morte de Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria docética, associada a Basílides, sugeria que ocorrera um engano, que Sim ão, o Cireneu fora crucificado em lugar de Cristo, escapando Jesus, desse mo­ do. da morte na cruz. Conforme Irineu, o Evangelho de João foi escrito com esta finalidade, entre outras, a saber, a de refutar o gnóstico Cerinto mencionado acima. O ponto de vista deste se caracterizava pelo contraste nítido que estabe­ lecia entre o homem Jesus e o ser celestial, Cristo, que podia residir em Jesus apenas por breve período de tempo. Em oposição a isto, o Evange­ lho de João nos diz que «o Verbo se fez carne»; de modo semelhante a Primeira Epístola de João afirma que «Jesus Cristo veio em carne». (2.22 ; 4 .2 -3 ).

Pode-se notar oposição desta mesma espécie no conflito de Inácio contra o docetismo. Contra aqueles que diziam que Cristo apenas parecia ter sofrido, Inácio expressou a convicção que Cristo realmente nasceu de Maria, foi realmente crucificado e que ressuscitou. C risto estava *na car­ ne» mesmo depois de sua ressurreição, disse Inácio-, não era «espírito in­ corpóreo».

CONCEITO DE IG R EJA Podemos determinar, com base nos Pais Apostólicos, quais eram os regulamentos eclesiásticos que estavam sendo consolidados na época. O cargo de bispo desenvolveu-se a ponto de distinguir-se do colégio dos an­ ciãos. Segundo Inácio, o bispo era o símbolo da unidade cristã e o porta­ dor ria tradiç ão apostólica. A s congregações, em vista disso, eram admoes­ tadas a aterem-se firmemente a seus bispos e a lhes obedecerem. Di?iase oue a unidade consistia, em primeiro lugar, num coroo de doutrina comum, e se explicava a posição dominante do bispo na congregação com base no fato oue era o representante da doutrina verdadeira. Esta harmonia, que tinha como centro os bispos, era enfatizada como proteção contra here­ sias, que ameaçavam destruir a unidade da igreja. Originalmente os anciãos e os bispos estavam no mesmo nível, mas a esta altura dos acontecimentos os bispos ocuparam posição superior a dos presbíteros. Este assim cha­ mado episcopado monárquico apareceu em primeiro lugar na Ásia Menor e é claramente salientado nas epístolas de Inácio, enquanto Primeiro C le ­ mente e o Pastor de Hermas, que foram escritos de Roma, não mencionam cargo superior ao colégio dos anciãos ou presbíteros. Mas Primeiro C le ­ mente também ressalta o significado do cargo de bispo e insiste que os que ocupam tal cargo são os sucessores dos apóstolos. A idéia de suces­ são apostólica desenvolveu-se a partir de protótipo judaico. Duas coisas entravam em jogo: primeiro, os bispos receberam o ensinamento verdadei­ ro dos apóstolos, assim como os profetas aprenderam de Moisés (su ces­ são doutrinária), e segundo, tinham sido designados pelos apóstolos e seus sucessores em linha ininterrupta, assim como ftpenas a família de Arão tinha o direito de constituir sacerdotes em Israel, (sucessão de ordenação). Como resultado, desenvolveu-se na igreja cristã primitiva um tipo de ordem congregacional mais definida, com jurisdição eclesiástica. Este de­ senvolvimento tem sido avaliado de maneiras diferentes. O conhecido his­ toriador jurídico Rudolph Sohm propôs a idéia que cada lei eclesiástica está em oposição à essência da igreja. É apenas o Espírito Santo quem governa a igreja e, por este motivo, o surgimento de «instituições» eclesiás­ ticas significa afastamento do espírito original do cristianismo (Kirchenrecht, I, 1892). Outros, contudo, negaram sua tese, salientando que ordenanças são necessárias. Este desenvolvimento não é acréscimo posterior; sua ori­ gem nos leva ao próprio tempo dos apóstolos. O que aconteceu posterior-

mente foi aplicação estrita de formas existentes e aceitação de novas (Seeberg). Também se disse neste contexto, e apropriadamente, que o Es­ pírito Santo e os cargos eclesiásticos não são mutuamente contraditórios, pelo contrário, pertencem jüntos. O fato que a iareia é criada pelo Espírito Santo não exclui o desenvolvimento de rearas. cargos e tradicõesj. Os mi­ nistérios e cargos da igreja se relacionam com a obra do Espírito Santo. (Linton, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, 1932)

ESCATOLOGIA A escatologia dos Pais Apostólicos incluía a idéia que o fim dos tem­ pos era iminente, e alguns deles (Papias, Barnabé) também sustentavam a doutrina de um milênio terreno. Barnabé aceitava a idéia judaica aue o mundo existiria por 6.000 anos, prefigurados nos seis dias da criação. E, por conseguinte, dizia-se, que seguiria o sétimo milênio, em gue Cristo rei­ naria visivelmente na terra com a ajuda de seus fiéis (cf. Ap 20). Este da­ ria lugar ao oitavo dia, a eternidade, que tinha seu protótipo no domingo. Papias, também, apoiava a doutrina de um milênio terreno, e descrevia a condição bendita que prevaleceria durante este tempo. Este ponto de vista («milenismo» ou «quiliasmo») foi amplamente desacreditado em tempos mais recentes. Realmente, Eusébio o fez em sua avaliação dos escritos de Pa­ pias. (História Eclesiástica, III, 39).

CAPÍTULO 2

OS APOLOGISTAS

Os autores do segundo século que, acima de tudo, procuraram de­ fender o cristianismo de acusações em voga na época, de procedência gre­ ga e judaica são, em geral, conhecidos como os apologistas. Para estes homens o cristianismo era a única verdadeira filosofia, substituto perfeito para a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que nada mais podiam fazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas cruciais do homem. O mais notável dos apologistas foi Justino. cognominado «o mártir», cujas duas «apologias» datam de meados do segundo século. Seu Diálogo com o Judeu Trifo foi escrito na mesma época. Entre os outros encontramse Aristides, que escreveu a mais antiga «apologia» cujo texto ainda temos, Taciano (Discurso aos Gregos, panfleto dirigido contra a cultura grega, por volta de 165), e Atenágoras (De ressurrectione mortuorum e Supplicatio pro Christianis, ambas escritas por volta de 170). Os seguintes também po­ dem ser incluídos neste grupo: Teófilo de Antioquia (Ad Autolycum libri tres, 169-182), e á Epístola a Diogneto, cujo autor é desconhecido e a igualmente anônima Cohortatio ad Graecos, que surgiu pouco antes da metade do ter­ ceiro século. Esta última erroneamente foi atribuída a Justino. Os apolo­ gistas também escreveram outras obras, que foram perdidas e que conhe­ cemos só de nome. (C f. por ex.: Eusébio, História Eclesiástica, IV, 3). CO N SIDERAÇÕES G ERA IS Os apologistas ocupam lugar de destaque na história do dogma, não só devido a sua descrição do cristianismo como a verdadeira filosofia co­ mo também por sua tentativa de elucidar ensinamentos teológicos com o auxílio de terminologia filosófica contemporânea (por exemplo: na assim chamada «cristologia do Logos»). O que neles encontramos, por conse­ guinte, é a primeira tentativa de definir, de maneira lógica, o conteúdo da fé cristã, bem como a primeira conexão entre teologia e ciência, entre cris­ tianismo e filosofia grega. Os apologistas refutaram as acusações dirigidas contra os cristãos. Atenágoras (em sua Supplicatio) discutiu três críticas principais: impieda­ de, hábitos anormais e inimizade ao estado. Em resposta atacavam a cul­ tura grega, por vezes de maneira bem severa (Taciano, Discurso aos Gre-

gos; Teófilo). Mas sua contribuição mais importante, do ponto de vista da história do dogma, foi a maneira positiva em que apresentaram o cris- , tianj8two como a v e rd a d e lra filosofia, CRISTIA N ISM O E F IL O S O F IA O modo como os apologistas conceberam a relação entre cristianis­ mo e filosofia reflete-se na obra autobiográfica de Justino, Diálogo com o Judeu Trifo. Justino apresenta-se como alguém que tem a filosofia em alta estima e que procurou respostas satisfatórias para as questões filosóficas em um sistema filosófico após outro. O propósito da filosofia, segundo Jus­ tino, é proporcionar conhecimento verdadeiro de Deus e da existência, e assim fazendo, promover um s entimento de bem-estar nas mentes humanas* A filosofia visa reunir Deus e o homem. Justino investigou os estóicos, os peripatéticos e os pitagóricos, mas todos o deixaram indiferente. Por úl­ timo chegou a um platonista e pensou ter encontrado com ele a verdade. Então encontrou-se com um velho, desconhecido, que dirigiu sua atenção aos profetas do Antigo Testamento, insistindo que tão-somente eles tinham visto e proclamado a verdade. «Apenas eles ensinaram o que ouviram e viram com a ajuda do Espírito Santo.» O testemunho desse ancião conven­ ceu Justino da veracidade do cristianismo. «Minha alma inflamou-se ime­ diatamente, e ansiei pelo amor dos profetas e dos amigos de Cristo. Re­ fleti sobre seus escritos, e neles encontrei a única filosofia útil e fidedigna. Desta maneira, e com este fundamento, tornei-me um filósofo.» (V II; VIII). O fato que o cristianismo é a única filosofia verdadeira significa, por­ tanto, que tão-somente ele possui as respostas corretas para as questões filosóficas. Filosofia, neste sentido, também abrange a questão religiosa concernente ao verdadeiro conhecimento de Deus. Apenas o cristianismo pode fornecer este conhecimento; a filosofia o procura, mas é incapaz de encontrá-lo. Tal linha de pensamento, em si, não afirma que o cristianismo depende da filosofia e a ela está subordinado, como às vezes se sugere. O cristianismo fundamenta-se na revelação, e os apologistas não acredita­ vam que a revelação pudesse ser substituída por deliberações racionais. Neste sentido, o cristianismo se opõe a toda filosofia. Sua verdade não se baseia na razão; tem origem divina. «Ninguém, a não se r os profetas, pode instruir-nos sobre Deus e a verdadeira religião, pois eles ensinam no po­ der da inspiração divina» (palavras finais da Cohortatio ad G raecos). Ao mesmo tempo, no entanto, a maneira como os apologistas aborda­ ram a verdade cristã incluía a tendência de intelectualizar seu conteúdo. A razão (lógos) era o conceito mais marcante de seus escritos, e ressal­ tavam de maneira especial a comunicação da verdade. Avaliavam a filosofia de diversas maneiras. Alguns dos apologistas se opunham enfaticamente à filosofia grega. Toda sabedoria pagã devia s e r substituída pela revelação. Justino, por sua vez, mantinha atitude mais

positiva face aos gregos. Todavia, é preciso enfatizar que a verdade que pode ser discernida em filósofos como Homero, Sócrates e Platão deriva­ va-se basicamente da revelação. Havia também a idéia correlata que al­ guns dos sábios da Grécia tinham visitado o Egito e lá tinham-se familia­ rizado com os escritos dos profetas de Israel. Outra idéia sugeria que os filósofos pagãos compartilhavam o . lógos spermatikós, que foi implantado em todos os homens. Mesmo a sabedoria humana depende, deste modo, da revelação — raios dispersos da razão divina que brilhou com toda sua clareza em Cristo. O s filósofos possuem certos fragmentos da verdade. Em Cristo a verdade está presente em sua plenitude, pois ele é a própria razão de Deus, o Loqos que se tornou homem.

CRISTO LO G IA DO LOGOS O conceito de Logos, derivado da filosofia contemporânea, especial­ mente do estoicismo com sua doutrina da razão universal, foi usado pelos apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai. Algo do Logos, diziam, encontra-se em todos os homens. A razão, como um embrião, encontra-se implantada dentro deles (lógos spermatikós). Mas os apologistas, em contraste com os estóicos, não diziam ser ela uma espé­ cie de razão universal concebida panteisticamente. Em vez disso, identifi­ cavam o Logos com Cristo. Com base nisto podiam dizer que Platão e Sócrates também eram cristãos, na medida em que exprimiam a razão. Sua sabedoria lhes foi transmitida por Cristo através dos profetas ou me­ diante revelação geral. O termo grego lógos significa tanto «razão» como «palavra». O Lo­ gos esteve com Deus, como sua própria razão, desde toda a eternidade (lógos endiáthetos). Posteriormente, esta razão procedeu da essência de Deus," conforme a própria decisão de Deus, como o lógos proforikós, a Palavra que se originou em Deus. Isto aconteceu quando da criação do mundo. Deus criou o mundo de acordo com sua razão e mediante a Pa­ lavra que procedeu dele. Desta maneira, _Cristo se fizera presente na cria­ ção do mundo. É a Palavra, nascida do Pai, mediante a qual tudo chegou a existir. «Na plenitude do tempo» esta mesma razão divina revestiu-se de forma física e tornou-se homem. Com esta aplicação do conceito de Logos os apologistas encontra­ ram uma maneira de descrever a relação entre o Filho e o Pai na Divinflade, empregando termos filosóficos correntes. Assim como a palavra pro­ cede da razão, ou — para usar outra analogia — assim como a luz pro­ cede da lâmpada, assim o Filho procedeu do Pai como o primogênito, sem diminuir o Pai ou destruir a unidade da Divindade. Esta cristologia do Lo­ gos visa responder a questão mais difícil da fé cristã na linguagem da épo­ ca. Os apologistas escolheram um conceito da filosofia contemporânea e o usaram para descrever o que para a mentalidade grega era absurdo — que Cristo é Deus mas que, com isso, a unidade da Divindade não é ne­ gada.

Nesta maneira de pensar está implícito o fato que, embora o Logos sempre tenha feito parte da essência divina, como a razão que habita nela, ainda assim não procedeu da Divindade até o tempo da criação do mundo. Cristo, portanto, teria sido gerado no tempo, ou no início do tempo. Esta doutrina filosófica do Logos também parecia sugerir que Cristo ocupa po­ sição subordinada relativamente ao Pai. A cristologia dos apologistas, co­ mo resultado, freqüentemente é descrita como «subordinacionismo». Pode parecer que é, do ponto de vista de épocas posteriores. A idéia da gera­ ção do Filho no tempo, por exemplo, foi combatida (Orígenes, cf. abaixo), bem como o emprego da doutrina filosófica do Logos no campo da cristo­ logia (Irineu). Mas é preciso lembrar também que os apologistas postu­ lavam a preexistência do Logos em termos inequívocos, embora julgassem que seu aparecimento como «Filho» tivesse ocorrido inicialmente quando da criação. Além disso, não podemos esquecer que na época dos apolo­ gistas a terminologia empregada para exprimir as diferenças entre as «pes­ soas» da Trindade ainda não tinha sido cunhada. Em vista disso, portanto, não é justo deduzir que os apologistas especificamente ensinaram que o Filho é subordinado ao Pai. (C f. Kelly, Early Christian Doctrines, pp. 100 s.). Se Cristo é apresentado como Logos, a razão divina, é natural con­ siderar sua obra principalmente em termos pedagógicos. Ele nos transmite o verdadeiro conhecimento de Deus e nos instrui na nova lei, que nos guia ao caminho da vida. Interpreta-se salvação em categorias intelectuais e moralistas. Identifica-se pecado com ignorância. Acredita-se que o homem é livre para fazer o bem, mas apenas Cristo pode mostrar o verdadeiro caminho da justiça e da vida. Enfatiza-se a necessidade de viver segundo a lei, e neste sentido o conceito de vida cristã dos apologistas concorda com o dos Pais Apostólicos. Considera do ponto de vista do desenvol­ vimento histórico do dogma, a principaLcontribuição dos apologistas foi sua. tentativa de correlacionar o cristianismo com a erudição grega, tentativa çjue encontrou sua expressão mais marcante na doutrina do Loaos e sua aplicação à cristologia.

CAPÍTULO 3 CRISTIANISM O JUDAICO E GNOSTICISMO CRISTIANISMO JUDAICO Q termo «cristianismo iudaico» significa várias coisas diferentes, e é usado de maneiras diversas pelos pesquisadores. Pode referir-se ao cris­ tianismo da Palestina no período subseqüente à ascensão, isto é, aos cris­ tãos de origem judaica, que viviam nâ Palestina e tinham como centro a congregação em Jerusalém — em contraste com os cristãos que tinham origem pagã. E m algum as, oçasjões,_ contudo, o termo é empregado para identificar certos grupos sectários que derivaram da congregação de Je­ rusalém depois de se ter transferido esta para a região a leste do Jordão por volta do ano 66. É neste sentido que se usará o vocábulo aqui. Uma das características mais proeminentes deste cristianismo judaico herético, também conhecido como «ebionismo» (derivado do termo veterotestamentário evjonim, «os pobres», originalmente nome honroso dos cristãos de Je­ rusalém), era sua confusão de elementos judaicos e cristãos. De acordo com as informações que chegaram até nós, os cristãos judaicos podem ter-se unido aos monges essênios, que se tornaram conhecidos recente­ mente através das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. A história do ebionismo, em sua maior parte, está envolta em tfevas. Nem os frag­ mentos de literatura preservados, nem as referências encontradas nos Pais Eclesiásticos nos fornecem um quadro minucioso das idéias e costumes desse grupo. Todavia, certas linhas mestras de pensamento podem ser reconstruídas.

_Qs ebionitas s ust e nt a v a m a y a Iida de da lei de M oisés; uma fração julgava que isto só se aplicava a eles, mas outra fração, mais militante, insistia que os cristãos de origem pagã também eram obrigados a cumprir a lei de Moisés. Outra idéia básica associada aos ebionitas era que espe­ ravam o estabelecimento de um reino m essiânico em Jerusalém. Isto reflete sua identificação de judaísmo e cristianismo. É verdade, sem dúvida, que a igreja universal se considera continua­ ção da comunidade do Antigo Testamento, o verdadeiro Israel, mas isto não impede o repúdio veemente ao «judaísmo» e à interpretação judaica da lei. Paulo, por exemplo, combateu os que pretendiam reintroduzir a cir­ cuncisão (cf. Gl 5), e demonstrou como a liberdade em Cristo excluía a hipótese de se fazer depender da lei o caminho da justiça. O s ebionitas, que conservavam os preceitos judaicos e os consideravam válidos para a vida congregacional, repudiavam a interpretação paulina da lei, e recusa­ vam aceitar suas epístolas.

Nos escritos dos cristãos judaicos (dos quais o mais importante é o assim chamado «Pseudo-Clemente», que contém entre outras coisas, «A Pregação de Pedro», além de vários evangelhos apócrifos) C risto é colo­ cado no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento. Ele é aí descrito como nova forma de revelação do «verdadeiro profeta», que apareceu an­ teriormente em Adão e Moisés, entre outros. O conceito de Cristo como o novo Moisés expressava a união de judaísmo e cristianismo, destacada de maneira especial no ebionismo. Dizia-se se r Cristo «um homem nasci­ do de homens» (cf. Justino: Diálogo com o Judeu Trifo, p. 48), ou, como freqüentemente se diria mais tarde: «unica e simplesmente homem». Q s ebjonitas, por conseguinte, negavam a preexistência de C risto; alguns de­ les também negavam a encarnação e o nascimento virginal. S u punham que Jesus recebera o Espírito Santo por ocasião de seu batismo, sendo desta maneira escolhido para se r o M essias e o Filho de D eus. A salvação não era associada com a morte e ressurreição de Cristo: em vez disso julga­ va-se que se tornaria realidade apenas por ocasião da segunda vinda de C risto, quando, conforme suas expectativas, teria início um milênio terreno. Com fundamento nestas idéias, o ebionismo forneceu o protótipo pa­ ra uma cristologia que concebia Cristo em termos puramente humanos e que supunha que não fora Filho de Deus até ser «adotado como tal por ocasião de seu batismo ou ressurreição» (a «cristologia adopcionista»). Os atributos de Cristo eram assim rejeitados. Visto à luz da história, o cristianismo judaico não exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da teologia cristã. Dividiu-se em vários grupos, e em pouco tempo desapareceu. É bem provável que não tenha existido por mais de 350 anos, no máximo. Por outro lado, no entanto, exerceu forte influência sobre o islamismo, no qual algumas de suas idéias reapareceram em forma diferente. Uma destas foi o conceito do «verda­ deiro profeta», outra foi o paralelo traçado entre Moisés e Jesus. Se o cristianismo judaico representa uma confusão de elementos ju­ daicos e cristãos, o gnosticismo era resultado da mistura da religião he-' lenística com o cristianismo. Portanto, o ebionismo diferia muito do gnosti­ cismo; opunha-se particularmente a Marcião e seu repúdio da lei (cf. o tópico seguinte). A pesar disto, no entanto, em certas regiões podemos ver uma combinação de idéias gnósticas e judaico-cristãs. Isto se dá, por exemplo, com os elcasitas, que provavelmente receberam este nome de­ vido a um certo Elcasai, que pode ter sido o autor do documento que ostenta seu nome. Outro exemplo encontramos nos adversários mencio­ nados em Cl 2, que também parecem ter reunido idéias gnósticas e ju­ daicas (cf. a referência aí feita a «filosofia e vãs sutilezas» (v. 8) e «apa­ rência de sabedoria, como culto de si mesmo» (v. 23). Contudo, não é correto dizer que os principais conceitos do cristianismo judaico tiveram forma e origem gnóstica. (Schoeps, Theologie und Geschichte des Ju­ denchristentums, 1949),

CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

O GNOSTICISMO Gnosticismo é o nome comum aplicado a várias escolas diferentes .de pensamento aué surgiram nos primeiros séculos da era cristã. No que tange à «gnose» ^cristã, isto se refere à tentativa de incltrif^ocristianism o num sistema gerâl filosófico-religioso. O s elementos mais importantes nes­ te sistema eram certas especulações místicas e cosmolóqicas, além do marcado duaRsmo entre o mundo do espírito e o mundo material. Sua doutrina de Salvação salientava o livramento do espírito de sua servidão na esfera, material. Esta religião tinha seus próprios mistérios e cerimônias sacram entais, além de uma ética aue preconizava ou o ascetismo ou a libertinagefn. Q figens. A questão dá origem do gnosticismo tem sido amplamente debgtída, e não parece haver qualquer resposta simples. A maior parte da literatura gnóstica foi perdida. Todavia, parte dela foi preservada em t/adução copta no Egito, por exemplo: a «Pistis Sofia», o «Evangelho de Tomé» e o «Evangelho da Verdade». A s duas últimas obras citadas en­ contram-se entre os manuscritos descobertos nà vila de Nag Hammadi (perto de Luxor) em 1946. Entre os itens ai encontrados, num jarro de ce­ râmica preservado na areia, havia 13 códices, inclusive nada menos de 48 escritos, todos de origem gnóstica. Esta descoberta ainda não foi comple­ tamente avaliada ou tomada acessível aos pesquisadores. A maior parte de nosso conhecimento do gnosticismo chegou até nós através dos e scri­ tos dos Pais Eclesiásticos. Citam autores gnósticos, ou se referem a seus escritos em suas obras polêmicas. O s País Eclesiásticos concordam que o gnosticismo iniciou com Simão, o Mágico (At 8), mas no mais seus relatos divergem. Segundo um certo Hegesipo, citado por Eusébio (IV, 22), o gnosticismo principiou entre certas seitas judaicas. Pais Eclesiásticos posteriores (Irineu, Tertuliano, Hipólito), por sua vez, sustentavam a opinião que a filosofia grega (Platão, Aristóteles, Pitágoras, Zenão) era a principal fonte da heresia gnóstica. Se aqui nos limitamos ao gnosticismo que se desenvolveu em solo cristão, e s­ tes relatos não são necessariamente contraditórios. Pois este tipo de gnos­ ticismo era um sistema sincrético que combinava correntes de pensamento opostas entre si. Quando falamos de gnosticismo, em geral pensamos no sistema que se desenvolveu no período cristão, na «heresia gnóstica» que os Pais Ecle­ siásticos combateram com tanto empenho. Mas o gnosticismo já existia quando o cristianismo surgiu; era então fenômeno religioso um tanto vago, uma doutrina especulativa de salvação com contribuições de várias tradições religiosas diferentes. Veio do Oriente, onde foi influenciado pelas religiões da Babilônia e da Pérsia. O s mitos cosmológicos atestam sua origem babi­ lónica, enquanto seu dualismo extremado o relaciona com a religião da Pérsia. O mandenismo é um exemplo de formação religiosa gnóstica na

área persa. Subseqüentemente o gnosticismo apareceu na Síria e em solo judaico, particularmente na Sam aria, e lá assumiu coloração judaica. Foi esta a forma de gnosticismo existente por volta do início da era cristã, e que os apóstolos encontraram com Simão, o Mágico, que andava pela S a ­ maria. Daí em diante começou a desenvolver-se uma escola gnóstica dentro da esfera cristã, com elementos derivados do cristianismo. Em vista dessa semelhança, o gnosticismo não surgiu como inimigo do cristianismo. Pro­ curava, ao invés disso, reunir elementos cristãos a outros elementos espe­ culativos já presentes nele numa espécie de sistema religioso universal. Foi nesta forma que o gnosticismo surgiu no segundo século, com seus prin­ cipais expoentes na Síria (Saturnino), Egito (Basílides) e Roma (Valentino). Este sistema posterior também foi profundamente influenciado pelo filosofia religiosa grega. Durante muito tempo o gnosticismo foi o adversário mais perigoso do cristianismo. A polêmica cristã contra o gnosticismo foi acom­ panhada por desenvolvimento do pensamento teológico sem precedente na história da igreja até aquela data. Tendências. Como já vimos, encontravam-se dentro do gnosticismo numerosas tendências divergentes. A s mitologias e os sistemas que sur­ giram em seu meio foram muitos e discrepantes. Conforme At 8.9-24. JS imáo. o Máaico. apareceu na Sam aria, onde o gnosticismo encontrou uma de suas raízes. Simão identificava-se com o «poder de Deus» e, portanto, pretendia ser figura messiânica. Também pro­ clamava libertação da lei. Ensinava que a salvação vinha, não por intermé­ dio de boas obras, mas pela fé nele. De acordo com os Pais Eclesiásticos a doutrina de Simão, o Mágico, era o protótipo de tcfdas as heresias. Saturnino apareceu na Síria no início do segundo século. Seu siste­ ma gnóstico revela influência oriental. Basílides trabalhou no Egito por volta do ano 125. Seu gnosticismo tinha natureza mais filosófica, e a influência grega era mais forte. Valentino, que pregou em Roma de 135 a 160, nos legou a apresen­ tação clássica do sistema gnóstico. A contribuição grega também é im­ portante em sua obra. Marcião também foi incluído entre os gnósticos pelos Pais E clesiás­ ticos. Sua doutrina é sim ilar ao gnosticismo em vários pontos. Mas ele foi, também, o fundador de sua escola sui-generis de pensamento, e seu sistema era, em muitos aspectos, original. Como veremos com maior cla­ reza no que segue, a posição teológica sustentada por Marcião e os gnós­ ticos freqüentemente era idêntica. Mas há uma diferença, como Adolf von Harnack enfatizou em sua História do Dogma. Pois, enquanto o gnosticismo era um pot-pourri religioso, em que cristianismo e filosofia grega eram misturados, Marcião procurou reorganizar o cristianismo de modo radical com base em certas idéias respigadas de Paulo juntamente com a elimina­ ção de todos os elementos judaicos.

CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

Conceitos principais. Excetuando Marcião, o gnosticismo contém cer­ tos conceitos básicos ensinados por todas as suas escolas e sistem as, em­ bora a mitologia e os costumes litúrgicos variem. A metafísica fundamental do gnosticismo, definida mais especificam en­ te na obra de Valentino, foi descrita pelo Pai Eclesiástico Irineu (Adversus haereses, I) e por outros. É apresentada em forma mitológica com a perso­ nificação de vários conceitos abstratos tais como verdade, sabedoria e ra­ zão. O ponto de vista básico é de natureza dualista, o que vale dizer que tem seu ponto de partida no contraste entre o mundo do espírito e o mundo material, juntamente com o contraste entre o bem e o mal e entre esfera superior e inferior. Em virtude de seu dualismo, o gnosticismo distinguia entre o Deus su premo e uma divindade inferior, e foi esta última, diziam, que criou o mundo. O Deus supremo era concebido em termos completamente abstra­ tos como sendo a essência espiritual última; não se faziam tentativas de descrever este Deus mais especificamente, e não era associado a qualquer revelação. Julgava-se estar ele tão longe do mundo como possível. Os gnósticos também insistiam que este Deus não podia ter criado o mundo. O mundo, afinal, é mau, e, por conseguinte, deve encontrar sua origem numa essência espiritual inferior, na qual existia o mal. Este deus criador, ou demiurgo, dizia-se se r o Deus do Antigo Testamento — o Deus judaico. O gnosticismo era antagônico ao Antigo Testamento; também rejeitava a lei, insistindo que o homem podia adquirir percepções superiores que o liber­ tariam da submissão a ela. Foi, acima de tudo, por este motivo, que os Pais Eclesiásticos combateram o gnostic[smo — para defende^ a c rença cristã no Deus único que criou o mundo e se revelou aos profetas. A doutrina gnóstica de Deus se relacionava com especulações mira­ bolantes relativas ao mundo espiritual e à origem do mundo material (a assim chamada doutrina dos «eons»). Valentino, por exemplo, supunha que 30 eons tinham emanado da Divindade em processo teogônico. O mundo material se derivara do eon mais baixo como resultado de uma queda. O Deus supremo, ou Progenitor, formava o primeiro eon, também conhecido como búthos (abismo). Do «abismo» procederam «o silêncio», ou «a idéia» (sigé ou énnoia), e destes dois, «o espírito» e «a verdade» (nous e aléetheia). Desta vieram, por sua vez, «razão» e «vida» (lógos e zooée), e destas «ho­ mem» e «a igreja» e 10 outros eons apareceram. «Homem» e «a igreja» juntos produziram 12 eons, o último dos quais «sabedoria» (sofía). Os eons, agindo unanimemente, formavam o mundo do espírito, o Pléroma, que con­ tém os arquétipos do mundo material. O último dos eons caiu do Pléroma como resultado de ataque de paixão e ansiedade, e foi por causa desta queda que o mundo material chegou a existir. O demiurgo que criou o mundo procedeu deste eon caído. Cristo e o Espirito Santo se originaram num dos eons mais elevados. A tarefa de Cristo é a de restaurar ao Pléroma o eon caído e, ao mesmo

tempo, livrar as almas dos homens de seu cativerio ao mundo material e trazê-las de vo lta ao mundo do espírito. Sobre esta base desenvolveu-se o conceito gnóstico de salvação.. Dizia-se consistir a salvação no livramen­ to das almas do mundo material a fim de que pudessem se r purificadas e trazidas de volta à esfera divina de onde vieram. Tal como acontece no neoplatonismo, que tinha muito em comum com o sistema de Valentino, a história do mundo era concebida em termos cíclicos. A alma humana era lançada para dentro deste processo cíclico. O homem caiu do mundo da luz e era conservado cativo no mundo material. A salvação consistia na libertação do mundo material de modo que o homem novamente pudesse ascender ao mundo espiritual, ao mundo da luz, de onde viera. De acordo com o gnosticismo, tal salvação era possível devido à per­ cepção superior (gnõosis, «gnose») dos gnósticos; essa percepção era uma .forma de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo ao P léroma e ao caminho que para lá conduzia. Mas nem todos podiam alcan­ çar essa salvação; apenas os assim chamados «pneumáticos», que possuíam o poder necessário para receber esse conhecimento, eram capazes de atin­ gi-la. Todos os outros homens, que os gnósticos denominavam de «mate­ rialistas», eram incapazes de utilizar esse conhecimento. Ocasionalmente, os gnósticos faziam referência a uma categoria intermediária entre os pneu­ máticos e os materialistas, os assim chamados «psíquicos», em cuja cate­ goria os cristãos geralmente eram colocados. Acreditava-se ser possível aos psíquicos a obtenção do conhecimento necessário à salvação. O gnosticis­ mo, portanto, ensinava uma forma de predestinação: apenas os pneumá­ ticos podiam ser salvos. Esta separação dos homens em cla sse s diferentes era combatida pelos Pais Eclesiásticos. Eles também repudiavam o conceito gnóstico de conhecimento superior, que era colocado acima do nível da fé e pretendia elevar o homem à esfera da divindade. O gnosticismo tomou de empréstimo certos elementos do cristianismo e os introduziu em seu conceito geral de salvação. Cristo, por exemplo, era considerado pelos gnósticos como o salvador, visto que diziam ter sido ele quem trouxera o conhecimento s a lvifico ao mundo. Mas este não é o Cristo da Bíblia; o C risto do gnosticismo era uma essência espiritual que ^manara dos eons. Este Cristo não podia ter assumido a forma de homem. Quando apareceu sobre a terra, diziam os gnósticos. só parecia ter corpo físico. Ao mesmo tempo, os gnósticos também ensinavam que este Cristo não sofreu e m orrea O gnosticismo, em outras palavras, proclamava uma cristologia docética. O sofrimento e a morte de C risto não tinham importância alguma para o gnosticismo: o que ele fez para iluminar os homens, por seu turno, foi enfatizado a ponto de excluir tudo o mais. Ele foi o transm issor daquele conhecimento de que o homem necessita para principiar a jornada de volta ao mundo da luz, «a jornada em direção ao Pléroma».

CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

O anosticismo ensinava que a salvação vinha ao homem por meio de mistérios que eram característicos da religião^qnóstica. Os principais des­ tes mistérios eram o batismo e a ceia do Senhor (deturpações dos sacra­ mentos cristãos) além de vários ritos sagrados adicionais de natureza simi­ lar. Por intermédio deles os gnósticos recebiam os segredos da salvação contida no conhecimento superior. A s fórmulas místicas assim adquiridas os protegeriam contra os poderes que guardavam o caminho através do mundo espiritual. Além disso, em virtude de sua participação nos mistérios, os gnósticos recebiam força interior (providenciada de maneira exclusiva­ mente física através dos sacramentos), e era esta que os capacitaria a ven­ ce r o mal e ascender ao Pléroma. A ética do gnosticismo se relacionava com seu dualismo básico. Se a salvação consiste na libertação do espírito do mundo material, é evidente que o ideal ético seria concebido em termos ascéticos. C ertas seitas pre­ gavam uma forma extremamente estrita de abstinência, como, por exemplo, os assim chamados encratitas (cf. Eusébio, História Eclesiástica, IV, 28-29). Mas o ponto de vista oposto também era sustentado por alguns. Consi­ derando o fato que o espírito nada tinha a ver com o material, pensava-se que as ações externas não tinham importância alguma. Alguns diziam que a independência da matéria só podia ser obtida quando a gente se entre­ gava completamente às concupiscências da carne (libertinismo). O dualismo extremado do gnosticismo (entre o espiritual e o material) refletia sua relação com o pensamento grego. Este se caracterizava por seu conceito deísta de Deus, e o gnosticismo também isto assimilou. A luz destas convicções, podemos entender porque o gnosticismo não podia acei­ tar a idéia que Cristo é Deus e homem ao mesmo tempo (cf. os ebionitas). O gnosticismo pretendia transformar o cristianismo numa especulação mito­ lógica. Sua doutrina da salvação implicava na negação daquilo que é mais essencial à fé cristã. A simples fé do cristianismo deveria ser substituída pelo conhecimento superior dos gnósticos, que assumiu a forma de con­ vicção pessoal concernente às realidades do mundo espiritual. Desta ma­ neira, para todos os efeitos práticos, o gnosticismo tornou-se uma forma de especulaçãoreligiosa filosófica quedou rejeitava ou reinterpretava o conteúdo básico do cristianismo. O gnosticismo combatia a crença cristã na criação divina: o criador, afirmava, não era o Deus supremo, e a própria criação era considerada vil e má fblasphemia creatoris). O Segundo Artigo do Credo era rejeitado ou reinterpretado pelos gnósticos com base em sua cristologia docética, que negava a existência terrena de C risto e sua expiação.. Considerava-se Cristo o transm issor da gnose. enquanto seu sofrimento e morte eram rejeitados como de somenos importância. A purificação que se recebia mediante os mistérios baseava-se sobre fundamento mitológico. Os gnósticos também repudiavam o conteúdo do Terceiro Artigo do Credo. O Espírito Santo era introduzido em sua mitologia como essência espiritual que emergira de um dos eons. Irineu afirmou que os gnósticos nunca re-

ceberam os dons do Espirito Santo e que desprezavam os profetas (Epideixis, 99 s.)- Também negavam a ressurreição do corpo, fundamentados na idéia que tudo o que é físico ou material é mau e não espiritual. Por­ tanto, o gnostícismo era uma interpretação idealista do cristianismo, que se procurou introduzir num sistema sincretista. Isto se evidencia especial­ mente em sua blasphemia creatoris, sua cristologia docética e sua negação da ressurreição do corpo. O gnostícismo não possuía escatologia: ao invés de aceitar o fato que a vida atinge sua plenitude em termos da segunda vinda de Cristo, falava-se da ascensão da alma ao Pléroma. Muitas idéias gnósticas reapareceram posteriormente na forma do neo­ platonismo e outras escolas de pensamento idealistas correlatas. Além dis­ so, certos conceitos teológicos fortemente influenciados pela filosofia grega revelam tendências que nos fazem lembrar o gnostícismo. Os contemporâneos de Marcião o consideraram gnóstico, e, no que respeita a pontos de vista básicos (blasphemia creatoris, docetismo, negação da ressurreição do corpo), Marcião concordava com os gnósticos. Mas em outros sentidos, era pensador independente, e propunha muitas idéias di­ vergentes do gnostícismo. Marcião, por exemplo, não era sincretista, dese­ java reformar o cristianismo rejeitando tudo o que, em sua opinião, não pertencia ao evangelho. Além disso, Marcião não aceitou as especulações mitológicas que caracterizavam o gnostícismo. Nem tampouco aludia ele a qualquer gnose particular que só era acessível aos assim chamados pneu­ máticos. Tudo o que queria fazer era proclamar uma fé bem simples. Nada ensinava sobre a divisão da humanidade em classes diferentes. O s pontos de vista em que Marcião diferia dos gnósticos recentemente receberam muita atenção crítica (especialmente de Adolf von Harnack), e agora é visto como completamente distinto dos gnósticos. É considerado um reformador, que redescobriu o apóstolo Paulo, que os demais tinham esquecido, e que pro­ clamava a salvação pela fé tão-somente, numa época em que o moralismo era a tendência dominante na teologia. Quando os Pais Eclesiásticos disseram que Marcião era o mais pe­ rigoso de todos os heréticos, percebemos que outros aspectos de sua teo­ logia, tais como sua doutrina de Deus e de Cristo, além de sua separação radical de lei e evangelho, eram as que mais se destacavam no sistema teológico. Foi por causa destas doutrinas que Marcião foi considerado se ­ melhante aos gnósticos, pois elas implicavam na negação dos ensinamentos básicos da igreja. Ambas as facetas da história têm seu lugar numa aná­ lise da posição teológica de Marcião, e aqueles aspectos que o distinguem dos gnósticos nos levam a considerá-lo com base em seus próprios méritos. No início, Marcião aceitava a fé da igreja, mas então sofreu a influên­ cia do gnóstico sírio Kerdo, principiando assim o processo de formação de sua própria teologia original. Chegou a Roma por volta de 140; quando foi expulso pela congregação local, organizou sua própria igreja, que em pouco

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tempo cresceu consideravelmente. Vestígios desta organização ainda pude­ ram ser encontrados em vários lugares até mesmo no século VI. O ponto de partida básico da teologia de Marcião encontra-se na dis­ tinção que fazia entre lei e evangelho, entre a Antiga Aliança e o Novo Testamento. Paulo dissera que o cristão está livre da lei, e Marcião inter­ pretou tal afirmação como significando que a lei fora superada e que o evangelho devia se r pregado sem qualquer referência à lei. A lei, dizia, fora substituída por nova ordem de coisas. Para ele, o evangelho era mensa­ gem nova, anteriormente desconhecida, que não apenas substituíra a lei mas também se opunha a ela. Tertuliano caracterizou esta atitude com as s e ­ guintes palavras: «A separação de lei e evangelho é a obra principal e mais característica de Marcião.» (Contra Marcionem, 1, 19), Essa linha de pensamento aproximou Marcião da doutrina gnóstica dos dois deuses. Em Marcião — e isto era característica sua — o Deus criador do Antigo Testamento era o Deus da lei, que considerava um deus de seve­ ridade e ira, que se vingava de seus inimigos e mantinha seus seguidores em servidão sob a lei. O Deus supremo, como Marcião o concebia, não era tanto uma essência espiritual abstrata, um Deus infinitamente transcen­ dental; era,antes, o Deus desconhecido que se revelou ao mundo em Cristo. Marcião o conceituava como o Deus da graça e misericórdia, o Deus do amor puro. Este Deus, dizia Marcião, combateu e conquistou o Deus da lei e da justiça e, por graça pura, salvou os que creram nele. Esta faceta da teologia de Marcião era interpretação deturpada e unilateral do conceito paulino de justificação. Conforme Marcião, o Deus de amor nada tinha a ver com a lei. Fez distinção radical entre justiça e misericórdia, entre ira e graça. Cristo foi quem proclamou o evangelho do Deus do amor. Na reali­ dade, ele era este Deus mesmo, que se manifestou aqui na terra durante o reinado de Tibério C ésar. Apareceu, todavia, como figura fantasmagórica. Por se r ele diferente do Deus criador, não podia ter assumido a roupagem da carne humana. A cristologia de Marcião era docética, mas, apesar dis­ so, ele acreditava no significado redentor do sofrimento e da morte de Cristo. Isto, naturalmente, contradizia sua cristologia docética, mas também o dis­ tinguia dos gnósticos. Tal fato foi notado por Irineu: «Como podia ele ter sido crucificado, e como podiam sangue e água ter jorrado do seu peito traspassado se não era verdadeiramente homem, mas apenas tinha aparên­ cia de homem?» (Adversus haereses). O Deus de Marcião era um deus que os fiéis não precisavam temer visto se r concebido como bondade pura. Em vista disso, poder-se-ia esperar que Marcião fo sse completamente indiferente à moralidade. Mas, o que a­ conteceu foi exatamente o contrário, pois, nesta questão, assim como os gnósticos, Marcião era extremamente ascético. Julgava, por exemplo, que o matrimônio era mau. Marcião ensinava que um código ascético de ética ajudaria a libertar o homem do Demiurgo, o Deus criador, o Deus da lei.

Marcião também se notabilizou por sua radical alteração do cânone. Rejeitou o Antigo Testamento dizendo que só era a proclamação do Deus da lei, o Deus judaico. O M essias dos judeus nada tinha em comum com Cristo. Marcião não permitia nem mesmo a interpretação alegórica. Com respeito ao Novo Testamento, Marcião desejava que fosse rejeitado tudo o que se referisse à lei ou ao judaismo. Reteve apenas 10 das epístolas de Pdulo (as Epístolas Pastorais-. I e II Timóteo e Tito, foram rejeitadas) e uma versão mutilada do Evangelho Segundo Lucas. Assim fazendo, Marcião tentou de modo extremado determinar, com base em seu próprio conceito da essên­ cia do cristianismo, quais escritos deviam se r normativos. A oposição dos Pais Eclesiásticos a Marcião abrangia os mesmos pon­ tos de doutrina do conflito com o gnosticismo em geral. Opunham-se a ele por negar que Deus criou o mundo e por ensinar que havia outro Deus além do Deus que criou o céu e a terra. Outro ponto em conflito era o fato de Marcião negar a encarnação, baseado em sua cristologia docética. Ajérn disso, o fato que negava a ressurreição do corpo era fortemente atacadq. .Marcião acreditava que só a alma podia se r salva e não o corpo, que pe.rtencia ao mundo material.

CAPÍTULO 4 OS P A IS AN TIG N Ó STICO S

O conflito com o gnosticismo deixou sua marca impressa de várias maneiras na teologia desenvolvida pelos Pais Eclesiásticos nos primeiros séculos. A apresentação da fé cristã, que encontramos nos assim chamados pais antignósticos, deve ser entendida contra o pano de fundo desta situa­ ção polêmica. Para estes teólogos da igreja primitiva, a crença na criação divina ocupou lugar central de modo mais destacado que na tradição oci­ dental posterior, onde a doutrina da salvação foi freqüentemente enfatizada às custas de outras facetas do cristianismo. Foi o idealismo gnóstico, com seu repúdio da criação, que levou os Pais Eclesiásticos a tratar tão porme­ norizadamente da doutrina de Deus e da criação, bem como o problema do homem, a encarnação e a ressurreição do corpo. Outra característica evi­ dente foi o ponto de vista moralizante que pode se r encontrado, por exemplo, em Tertuliano. Isto também se explica, em parte, pela oposição ao gnosti­ cismo, com sua doutrina da libertação da lei e sua deturpação antinomista do conceito paulino da justificação. IR IN EU Irineu veio da Ásia Menor, onde na juventude fora aluno de Policarpo de Esmirna. que, por sua vez, tinha sido discípulo de João. Sua teologia, além disso, exemplifica a tradição joanina associada à Á sia Menor. A maior parte de sua vida, no entanto, passou no Ocidente. Tornou-se bispo de Lyonç por volta de 177, e ali permaneceu até sua morte (no início do ter­ ceiro século). Apenas dois escritos de Irineu chegaram até nós. Um deles é sua ampla refutação dos gnósticos, A dversus haereses, do qual permanecem um fragmento do original grego e uma tradução latina. O segundo, Epideixis, apresenta as doutrinas básicas da «proclamação apostólica». Este, por mui­ to tempo, só era conhecido pelo nome, mas foi redescoberto em tradução armênia em 1904. O principal obietivo jd a,obra teológica de Irineu era defender a .fé apos­ tólica contra as inovações qnósticas. A gnose de Valentino foi a maior ameaça ao cristianismo, em sua opinião, pois ameaçava a unidade da igreja bem como procurava destruir a distinção entre o cristianismo e as especu­ lações religiosas pagãs. Irineu é denominado o pai da dogmática católica- Há algo de verdade nesta expressão, visto ter sido ele o primeiro a procurar apresentar um

sumário uniforme de toda a Escritura. Irineu rejeitou o conceito de c ris­ tianismo mantido pelos apologistas, a saber, que ele é a verdadeira filosofia. Recusou o auxílio da especulação grega, e não concordou com os que di­ ziam que o conteúdo da revelação era simplesmente uma nova e mais per­ feita filosofia. Para ele, a Bíblia era a única fonte de fé. Irineu, portanto, era teólogo bíblico no verdadeiro sentido do termo. Enquanto os gnósticos buscavam a revelação em sabedoria oculta que, ao menos, em parte, era independente da Bíblia, em mitos e sabedoria de mis­ térios, Irineu afirmava ser a Escritura a única base para a fé. O Antigo e o Novo Testamento eram os meios pelos quais a revelação e a tradição original nos atingem. Além do Antigo Testamento, que julgava ser, acima de tudo, o fundamento da doutrina da fé, Irineu faz referência a uma coleção de escritos do Novo Testamento, que considerava de igual autoridade e que, em traços gerais, é o mesmo cânone hoje aceito. A palavra «testamen­ to», naturalmente, não era empregada neste contexto. O cânone ainda não tinha sido formalmente determinado. Alguns dos escritos neotestamentários eram considerados demasiadamente controversos; eram aceitos como canô­ nicos em alguns círculos, enquanto em outros sua autoridade apostólica era posta em dúvida. Em traços gerais, no entanto, os limites do cânone do Novo Testamento já tinham sido definidos mesmo antes da época de Irineu. O modo como ele emprega os escritos do Novo Testamento, de­ monstra, até certo ponto, este fato. Irineu nada diz sobre a diferença entre Escritura e tradição que apa­ receu mais tarde no campo da dogmática. A tradição oral que cita como tendo autoridade decisiva era o que apóstolos e profetas ensinavam, e que confiaram à igreja, e fora perpetuado nela pelos que tinham recebido o evangelho dos apóstolos. Com relação ao conteúdo, isto nada era além da proclamação conservada em forma escrita no Antigo e no Novo Testa­ mento. Os gnósticos, por sua vez, deturpavam os ensinamentos da Bíblia fundamentando-se em tradições que não procediam dos apóstolos. Em pas­ sagem bem conhecida (Adversus haereses, III, 3, 3) Irineu se refere à cadeia ininterrupta de bispos romanos, começando com a época dos após­ tolos, para demonstrar que era a igreja — e não os heréticos — que tinha preservado a tradição correta. Seria erro, contudo, procurar ve r nesse texto o conceito de sucessão apostólica desenvolvido posteriormente. Irineu, em última análise, estava preocupado, em primeiro lugar, com conteúdo doutrinário e não com teorias sobre ordenação. Em algumas ocasiões Irineu fala da autoridade doutrinária em termos de regula veritatis, «a regra da verdade». De modo semelhante, os Pais Eclesiásticos freqüentemente mencionam a regula fidei, «a regra da fé», como o fator determinante em questões relativas às doutrinas cristãs. O significado destes conceitos tem sido amplamente debatido; alguns afirmam constatar neles referência à confissão batismal solene que surgiu no con­ flito com o gnosticismo, enquanto outros interpretam a regra da fé como

referindo-se à Escritura Sagrada. Essa «verdade» que, segundo Irineu, era a «regra» (o termo grego kanóon era empregado nesta conexão) era o plano da salvação revelado, do qual a Bíblia dá testemunho e que a confissão batismal resume. «A regra da fé» não estava, pois, fixada numa fórmula específica; nem tampouco designava a Escritura como código doutrinário. Referia-se, em vez disso, à verdade revelada como esta se apresentava, não apenas na confissão batismal e nas Escrituras, mas também na pregação, da igreja. Foi esta verdade revelada que Irineu usou para combater os gnósticos, e foi esta que procurou interpretar e descrever de maneira a fa­ zer justiça à genuína tradição apostólica. Irineu, portanto, derivou sua teologia da Escritura. O que desejava fazer, acima de tudo, era apresentar o plano de salvação de Deus desde a criação até o cumprimento final íoikonomía salutis). O tempo, em sua opinião, era época limitada; principiou com a criação e terminará com o cumprimento. Em ambas as extremidades circunda-o a eternidade. É dentro do contexto do tempo que a salvação ocorre. Dentro deste contexto Deus realizou as ações testemunhadas pela Escritura, e das quais depende a salvação dos homens. Para os gnósticos a salvação não era algo que se realizava dentro da história; era uma idéia, um sistema especulativo que supunha poder a alma elevar-se acima do temporal e reunir-se com sua origem divina mediante a gnose. Para Irineu tudo isto era história real, cujo cumprimento se esperava para o fim dos tempos. A diferença entre a cosmovisão grega e o conceito cristão de tempo evidencia-se nestes pontos de vista opostos. A criação fazia parte do plano divino da salvação. O Filho de Deus, o Salvador, estava presente antes do princípio do tempo em seu estado preexistente. O homem foi criado para que o Salvador não estivesse só, de modo que houvesse alguém para salvar (cf. Gustav Wingren, Man and the Incarnation According to Irenaeus, 1947, p. 28). Tudo foi criado median­ te o Filho e para o Filho. A salvação foi realizada pelo mesmo motivo porque Deus criou: a fim de que o homem pudesse ser semelhante a Deus. O homem foi criado à imagem de Deus, mas, como resultado da queda, essa semelhança foi perdida. O significado da salvação é tornar possível ao ho­ mem concretizar seu destino mais uma vez, a saber, que o homem possa tornar-se a imagem de Deus segundo o protótipo discernível em Cristo. O homem se encontra no centro da criação. Tudo o mais foi criado para o homem usar. Mas o homem foi criado para C risto e para tornar-se como Cristo, que é o. centro de toda existência, Aquele que abrange tudo no céu e na terra. i'C f. Adversus hae reses, V , 16, 2), Consideradas deste ponto de vista, criação e salvação unem-se inte­ gralmente, porque há apenas um Deus que tanto cria como salva. A dou­ trina gnóstica de dois deuses é blasfêmia contra o Criador. Também im­ plica no fato de se r a salvação impossível. Pois, se Deus não criou, então

a criação não pode se r salva. S e Deus não é o Criador, então não irá salvar a criação. Mas este é o alvo de todo o plano de salvação. A salvação, para os gnósticos, consistia em libertar-se o espírito do homem da criação, do mundo material e retornar à pura espiritualidade. Pa­ ra Irineu, no entanto, salvação significava que a própria criação seria res­ taurada a seu estado orginal, que a criação finalmente atingiria o destino que Deus lhe reservara. Em outras palavras, salvação, para Irineu, não significava que o espírito do homem se libertaria de suas cadeias materiais, mas em vez disso, que o homem inteiro, corpo e alma, seria libertado do domínio do diabo, retornando a sua pureza original e tornando-se como Deus. O homem foi criado, segundo Gn 1.26, à «imagem» e «semelhança» de Deus. É freqüente ouvir-se que Irineu foi o primeiro a introduzir a idéia (de grande aceitação, posteriormente) de que estes dois conceitos se re­ feriam a duas qualidades distintas no homem. Isto, todavia, não corresponde aos fatos. Pois Irineu, com freqüência, empregou estes dois conceitos para expressar a mesma coisa, e estas passagens parecem ser decisivas. (C f. W ingren). Çuando se diz que o homem foi criado à imagem de Deus, isto, de acordo com Irineu, indica o verdadeiro destino do homem. Não significa que o homem é a imagem de Deus, mas antes, que foi criado para tornar-se isso. Cristo, que é o próprio Deus, é a imagem de Deus segundo a qual o homem foi criado-, o destino do homem, portanto, é tornar-se como Cristo. Este é o alvo da salvação e da obra do Espírito Santo. Quando da criação, o homem era criança; não estava plenamente de­ senvolvido, mas foi criado para crescer. Se o homem tivesse vivido em conformidade com a vontade de Deus, teria crescido, e através do poder de Deus teria atingido seu destino — completa semelhança com Deus. Irineu entendia o crescimento, não como desenvolvimento interno, mas como re­ sultado da atividade criadora contínua de Deus. Mas o homem abandonou o caminho da obediência, tendo sido ten­ tado pelo diabo, um dos anjos que, ardendo de inveja contra os homens, rebelaram-se contra Deus. Foi desta maneira que o homem chegou a ficar sob o domínio do diabo. O homem está envolvido no conflito entre Deus e Satanás. O objetivo do plano da salvação, portanto, é o de libertar das garras do demônio aqueles que ilegalmente foram aprisionados por ele. Esta é a obra da redenção, que foi realizada através de Cristo. Ele venceu o diabo e, deste modo, obteve a libertação do homem. Mas, apesar disso, o con­ flito continua. Contudo, é preciso dizer, que ingressou em nova fase após a ressurreição de Cristo. Como resultado, a batalha decisiva já foi travada. O que agora acontece é que homens são atraídos para a vitória de Cristo e assim recebem a vida que perderam na queda de Adão.

Este plano de salvação pode ser retratado de várias maneiras, como 'ivramento da servidão ou como vitória após o combate (cf. acima). Tam­ bém pode se r descrito em termos legalistas: naturalia praecepta — lex Mosaica — Cristo, a nova aliança, a restauração da lei original. A lei ori­ ginal, tendo sido entregue na criação, expressa a vontade divina para o homem. O destino do homem é viver de maneira condigna com esta lei, em obediência ao mandamento de Deus. Assim fazendo, o homem recebe vida e justiça da mão de Deus e prossegue em direção ao alvo da perfeição e semelhança com Deus. Esta lei foi escrita no coração, e o homem está livre para obedecer-lhe ou transgredi-la. Mas quando o homem contraria o mandamento de Deus, coloca-se sob o domínio do pecado. Em vista disso, Deus firmou nova aliança com os homens, através dos israelitas, e deu aos homens a lei mosaica. O propósito desta lei era o de disciplinar os homens, revelar o pecado e conservá-lo em seu lugar, e o de manter a ardem exteriormente até a vinda de Cristo. Considerada neste contexto, a tarefa de Cristo era a de ab-rogar a lei mosaica e restaurar a lei que fora entregue na criação e que tinha sido obscurecida pelos regulamentos farisai­ cos. Cristo liberta da escravidão da lei por meio de seu Espírito que regenera o homem e cumpre a lei dentro dele. O Espírito Santo restaura a obedi­ ência, e desta maneira, o homem é regenerado segundo a lei que foi ou­ torgada na criação. Esta lei original revelava o que constituíra a seme­ lhança do homem com Deus. Há portanto, um paralelo entre a afirmativa que o homem foi criado à imagem de Deus e o que se diz sobre a lei natural. Vida e morte relacionam-se com a lei, e Irineu descreve o plano da salvação igualmente nestas categorias. Vida e obediência à lei andam de mãos dadas. Quando o homem obedece aos mandamentos de Deus, recebe vida de Deus, mas guando cai na desobediência, coloca-se sob o poder da morte. Pois desobediência a Deus equivale à morte. Foi por causa da desobediência que a corrente da vida foi rompida, e quando isto aconteceu a morte surgiu no mundo dos homens. A morte, portanto, não se associa com o corpo e com a vida criados, de modo eo ipso; é antes algo imposto aos homens por causa do pecado. Isto se reflete em Gn 2 .1 7 : «No dia em que dela comeres, certamente morrerás.» Salvação significa que a vida foi restaurada pela vitória de Cristo sobre a morte. Crendo em Cristo, o homem pode recuperar a vida que perdeu pela queda. A salvação outorga o dom da imortalidade. O corpo certamente morrerá por causa do pecado, a fim de que o poder do pecado possa ser vencido. A nova vida no E s ­ pírito é ativada pela fé, e alcança sua plenitude depois da morte. Então não haverá nada mais no homem que se relacione com a morte. O homem que foi restaurado percebe par« que destino foi criado — para tornar-se semelhante a Deus e viver sem morrer. A idéia básica da apresentação de Irineu do plano da salvação é que a obra da criação foi restaurada e recapitulada na salvação realizada por

intermédio de Cristo. Em oposição aos gnósticos, que julgavam consistir a salvação no livramento do espírito do mundo material, Irineu insistia que Deus e homem, corpo e alma, céu e terra, são capazes de ultrapassar a ruptura provocada pela invasão do pecado e serem reunidos novamente. Isto, para Irineu, era o significado da salvação. Cristo é o segundo Adão, o reverso do primeiro Adão. Este trouxe morte e ruína à criação por causa de sua desobediência. Cristo, por inter­ médio de sua obediência, restaura a criação a seu estado de pureza. Adão cedeu à tentação da serpente caindo assim sob o domínio do diabo. C ris ­ to resistiu à tentação e, desse modo, destruiu o poder do tentador sobre a humanidade. Em sua vida representa toda a raça humana, tal como o primeiro Adão o fizera. Pelo poder de sua obediência e obra de expiação, tornou-se o cabeça de nova humanidade. Tornou perfeito o que fora arrui­ nado pela queda de Adão. Por intermédio dele a humanidade continua a cre sce r para o alvo da perfeição. A criação é restaurada, seu destino se torna realidade. A obra redentora de Cristo principia com seu nascimento da virgem Maria e alcançará sua plenitude na ressurreição geral, quando todos os inimigos tiverem sido subjugados a Cristo, e Deus será tudo em tudo. Irineu resumiu toda esta oeconomia salutis num conceito singular: recapitulatio (anakefalaíoosis). Este termo significa «recapitulação»; também sugere «restauração». Deriva-se este conceito de Ef 1.10, onde se men­ ciona o decreto de Deus relativo ao plano «de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as cousas, tanto as do céu como as da terra». Para Irineu, portanto, «recapitulação» é termo que descreve toda a atividade redentora de Cristo desde o seu nascimento até o Dia do Juízo. Ao realizar esta obra, Cristo repetiu o que acontecera na criação, embora o fizesse, por assim dizer, em seqüência inversa. «Ele recapitulou a pri­ meira criação em si mesmo. Pois assim como o pecado entrou no mundo pela desobediência de um homem, e a morte pelo pecado, assim também a justiça veio ao mundo pela obediência de um homem, trazendo vida aos que anteriormente estiveram mortos.» (Adversus haereses, III, 21, 9-10). Recapitulação também lembra perfeição, ou plenitude. Aquilo que foi dado por intermédio de Cristo, e que chega a existir mediante sua obedi­ ência, é superior àquilo que foi dado na criação. O homem então era ainda um «filho» daquela época. Em virtude da salvação que foi obtida, o ho­ mem pode crescer até à plena semelhança com Deus, como representada na pessoa de Cristo. Irineu desenvolveu sua cristologia em oposição ao ponto de vista docético defendido pelo gnosticismo. A obra da salvação pressupõe que Cristo é tanto verdadeiro homem como verdadeiro Deus. «Se os inimigos do homem não foram vencidos pelo homem, não podem ter sido verdadei-

ramente vencidos; além disso, se nossa salvação não procede de Deus, não podemos estar plenamente seguros que estamos salvo s. E se o homem não se unisse com Deus, não lhe seria possível compartilhar a imortali­ dade» (III, 18, 7; C f. Gustav Aulen, History of Dogma, p. 32). Encontramos aqui forte ênfase na humanidade de Cristo: um homem real tinha de andar na trilha da obediência a fim de que a ordem que fora destruída pela deso­ bediência de Adão pudesse se r restaurada. Ao mesmo tempo, apenas Deus podia realizar a obra da redenção. Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus (vere homo, vere deus). O Filho existiu com o Pai desde toda a eternidade. Mas como o Filho veio do Pai não é revelado. Em vista disso, o homem nada pode saber a respeito deste assunto. Irineu rejeitou as especulações em torno do Logos feitas pelos Apologistas, nas quais o nascimento do Filho era comparado ao modo como a Palavra procedeu da razão. «Dever-se-ia perguntar: Como o Filho procedeu do Pai? esta é nossa resposta: Relativamente a sua ge­ ração, ou nascimento, ou manifestação, ou revelação, ou como se quiser expressar seu inefável nascimento, ninguém sabe; nem Marcião, nem S a ­ turnino, nem Basílides. Apenas o Pai, que o trouxe à luz, e o Filho, que nasceu, sabem algo sobre isto» (II, 28, 6). Os Apologistas diziam que ocor­ reu um nascimento no tempo (a Palavra procedeu da razão divina quando da criação). Irineu, por sua vez, parece ter conjeturado um nascimento na eternidade, mas não se expressa de modo específico neste ponto. Era típico de Irineu recusar explicação mais precisa de como foi que Cristo procedeu do Pai; o mesmo ocorre com respeito à relação entre Deus e homem em Cristo. Procurou apresentar o conteúdo da Escritura sem o auxílio da filosofia e aderir à regra da fé sem entregar-se a meras especu­ lações. Em Adversus haereses, I, 10, 1 Irineu forneceu um sumário breve da fé que fora transmitida desde os apóstolos: «A igreja se estende pelo mundo inteiro, às regiões mais remotas da terra. Recebeu sua fé dos após­ tolos e seus seguidores. Essa, é fé em um só Deus, Pai todo-poderoso, que fez os céus e a terra e os mares e tudo o que há dentro deles; e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, o qual, para nos redimir, assumiu forma humana; e no Espírito Santo, o qual, através dos profetas, proclamou o pla­ no de salvação de Deus, o duplo advento do Senhor, seu nascimento de virgem, sua paixão, sua ressurreição dos mortos, sua ascensão física ao céu, e seu retorno do céu na glória do Pai. Cristo retornará a fim de ‘res­ taurar todas as co isas’ e ressuscitar toda carne em toda a raça humana, de modo que todos os joelhos se prostrarão perante Jesus Cristo e todas as línguas o louvarão, a ele, que segundo o invisível beneplácito do Pai, é nosso Salvador e Rei.» Há na teologia de Irineu um paralelo à doutrina quiliasta, falar de «1.000 anos». Prefere, em vez disso, referir-se ao «reino no qual o domínio de Cristo se manifestará de maneira visível Além disso, o Anticristo será derrotado, a natureza se renovará,

mas evita do Filho», na terra. e os fiéis

reinarão com Cristo neste «reino do Filho». Isto precederá a segunda res­ surreição e o Dia do Juízo. A eternidade principiará após o final do julga­ mento, quando o Filho entregará o Reino ao Pai, e Deus será «tudo em tudo». (C f. Wingren, pp. 212 ss.), T E R T U L IA N O Em longa série de escritos profundos e incisivos, Tertuliano envolveuse nas controvérsias eclesiásticas de seu tempo a fim de defender a fé cristã e de instruir os fiéis. Foi o primeiro dos Pais Eclesiásticos com «estilo tipicamente ocidental», e de várias maneiras foi o fundador da tra­ dição teológica ocidental. Tertuliano nasceu em Cartago em meados do segundo século; ori­ ginalmente pagão, converteu-se ao cristianismo já adulto. Exerceu a advo­ cacia em Roma por algum tempo, mas após sua conversão retornou à vida privada em Cartago, onde se devotou ao estudo e a escrever. Sua atividade literária restringiu-se aproximadamente ao período entre 195 e 220. Por volta do ano 207 Tertuliano associou-se ao movimento montanista, que pos­ teriormente manifestou tendências sectárias. Como autor, Tertuliano era bem original. Em contraste com os e scri­ tores que o precederam, empregou estilo formal. Destacava-se no campo da retórica, e sua erudição era ampla e profunda. Não era filósofo, no en­ tanto; estava mais interessado em questões sociais, e possuía bom domínio da lei. Era observador acurado da vida em geral, e seus escritos manifes­ tam seu ponto de vista altamente individualista. Seu profundo interesse em questões práticas e sua firme adesão à realidade são características da teologia ocidental. Assim Karl Holl descreveu Tertuliano: «Nele o espírito do Ocidente falou claramente pela primeira vez.» (Gesammelte Aufsaetze, III, 2). Entusiasmo apaixonado e dialética engenhosa caracterizam os e s­ critos polêmicos de Tertuliano. Devido a seu estilo irregular, paradoxal e sucinto, às vezes é difícil entendê-lo. Os escritos teológicos de Tertuliano exerceram influência ampla e significativa. Isto se deve especialmente ao fato de ter ele produzido for­ mulações que se tornaram populares. Também cunhou certa terminologia que ficou fazendo parte da literatura teológica desde então (na língua latina que ele usava). Além disso, alguns de seus conceitos forneceram os pro­ tótipos para desenvolvimentos posteriores no campo da teologia. Isto acon­ tece, por exemplo, com respeito à doutrina da Trindade, cristologia e pe­ cado original. Tertuliano foi o precursor de Cipriano, que se tornou seu discípulo, bem como de Agostinho. A s contribuições de Tertuliano à época em que viveu se encontram em seus escritos polêmicos, bem como em seus pronunciamentos relativos

a problemas eclesiais práticos. Tal como os apologistas, defendeu o cris­ tianismo da religião pagã (cf. Apologeticum), Para ele, como para Irineu, o gnostícismo era o principal adversário (cf. Adversus Marcionem; De praescriptione haereticorum). Por último, voltou-se contra o modalismo (cf. Adversus Praxean). Tertuliano escreveu bom número de livros com o obje­ tivo de desenvolver suas convicções doutrinárias e para dar sua opinião com respeito a questões práticas congregacionais. A teologia de Tertuliano foi, em grande parte, condicionada pelo seu conflito com os gnósticos. Suas conhecidas afirmações contra a filosofia devem ser vistas neste contexto, pois em sua opinião, a filosofia era a fonte de heresia gnóstica. Valentino aprendera de Platão, Marcião dos estóicos, e como resultado transformaram o cristianismo numa filosofia re­ ligiosa pagã. Escreve Tertuliano: «Os filósofos e os hereges discutem os mesmos assuntos, e empregam os mesmos argumentos complexos. Pobre Aristóteles! Foi você quem lhes ensinou dialética, para se tornarem hábeis em construir e derrubar. Eleè são tão sutis em suas teorias, formais em suas inferências, tão seguros sobre suas provas, tão solenes em seus de­ bates, que se tomam fatigantes em virtude do fato que tratam de tudo de tal modo que, em última análise, não se tratou de nada. Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que tem a academia a ver com a igreja? Que têm os hereges a ver com os cristãos? Nossa doutrina flui da sala de pilares de Salomão, que aprendera que é preciso buscar o Senhor com inocência de coração. A mim pouco importa, quem quiser que produza um cristia­ nismo estóico, platônico e dialético. Visto como o evangelho de Cristo nos foi proclamado, não precisamos mais inquirir ou perscrutar e sses assuntos. S e temos fé, não desejamos qualquer coisa além da fé. Pois este é o pri­ meiro princípio de nossa fé: Nada há além desta fé em que precisamos crer» (De praescript., 7). Se alguém deseja algo além da fé, revela assim o fato que realmente não tem fé. Tal homem, em vez disso, tem fé naquilo que procura (ibid., 11). Os gnósticos vão além da fé em sua sabedoria. O cristão, pelo contrário, adere à fé simples que é revelada na Escritura e preservada na tradição apostólica. «Nada conhecer em oposição à regra (de fé) é conhecer todas as coisas.» (Ibid., 14). A rejeição da filosofia por parte de Tertuliano relacionava-se, pois, com seu conflito contra os heréticos. «Os filósofos são os pais dos heré­ ticos», escreveu (Adversus Hermogenem, 8). Mas essa rejeição também pode se r explicada do seguinte modo: Tertuliano reconheceu uma distinção fundamental entre fé e razão em epistemologia. O que o homem crê não pode se r compreendido com sua razão. O conhecimento da fé é diferente do conhecimento da razão. Aquele possui sua própria sabedoria, que nada tem a ver còm prova racional. Relativamente à ressurreição de Cristo, T e r­ tuliano disse: «É verdadeira porque é impossível» (De cam e Christi, 5; cf. De baptismo, 2). É esta espécie de «irracionalismo» que em geral se ca­ racteriza com a expressão credo quia absurdum («Creio porque é absurdo»).

Esta frase não se encontra em Tertuliano, mas seguramente expressa seu modo de pensar. O que foi dito acima, contudo, representa apenas uma faceta da con­ cepção de fé e razão de Tertuliano. Outras passagens em seus escritos apresentam sua opinião mais positiva no tocante à razão humana. Ele o faz sem recorrer ao auxílio da filosofia para fortalecer seus argumentos. Nesta questão, Tertuliano não faz es mesmas exigências rigorosas à teo­ logia como Irineu. É comum ouvir-se dizer que há um traço racionalista na assim cha­ mada teologia natural de Tertuliano. Ocasionalmente, disse que o não c ris­ tão possui conhecimento natural do Deus único; que a alma humana é naturaliter Christiana. Tertuliano também utilizava a prova cosmológica da existência de Deus: a beleza e ordem da criação são provas da presença do Criador no mundo. Estes pensamentos e outros semelhantes, no en­ tanto, destinavam-se a demonstrar a universalidade do cristianismo, e a apoiar a doutrina cristã da criação divina. Em vista disso, não se pode, com justiça, acusar Tertuliano de racionalismo. Embora criticasse severamente a filosofia, Tertuliano muitas vezes empregava idéias e formulações filosóficas. Em oposição ao espiritualismo característico do gnosticismo, por exemplo, tomou de empréstimo certas li­ nhas de pensamento dos estóicos, que então reorganizou numa teoria «rea­ lista». É este realismo que, pelo menos até certo ponto, distingue o pen­ samento ocidental do grego. Mas Tertuliano o levou a um extremo: a teologia, disse, deve relacionar-se com alguma realidade manifesta em todos os pontos. O corpo físico fornece o padrão para toda realidade. «Tudo que existe é corpo de algum tipo; nada é incorpóreo exceto o que não existe» (De carne Christi, 11). Como conseqüência desta tese, Tertuliano atribuiu corporeidade até mesmo a Deus, e também conjeturou a possibi­ lidade de ter a alma corpo invisível. Sua teoria sobre a origem da alma também se relacionava com isso ; a alma, segundo Tertuliano, se transmite por nascimento natural de uma geração à seguinte. Este conceito costumase denominar traducianismo. A outra teoria relativamente à origem da alma é chamada criacionismo, que sustenta que a alma de cada homem é nova criação, diretamente saída da mão de Deus. (C f. Karpp, Probleme altchristli­ cher Anthropologie, 1950). A doutrina da Trindade ocupa lugar de destaque na teologia de Ter­ tuliano. Ao lidar com esta faceta de sua teologia, Tertuliano adotou os conceitos de Logos dos apologistas e os desenvolveu mais ainda. Suas formulações serviram de base para fórmulas trinitárias e a cristologia que a igreja aceitou posteriormente. Tertuliano aplicou o conceito de Logos do mesmo modo como os Apo­ logistas. Cristo, afirmou ele, é a Palavra divina, que procedeu da razão de Deus quando da criação. Ao dizer Deus: «Haja luz», nasceu a Palavra

(o Verbo). Cristo é um com Deus, e ainda assim é distinto do Pai. Pro­ cedeu da essência de Deus como os raios emergem do sol, as plantas de suas raízes, ou o rio de sua fonte. Portanto, o Filho está subordinado ao Pai. É aquele que revelou a Deus, enquanto Deus mesmo é invisível. Assim como os apologistas, Tertuliano empregou a expressão «subordinacionismo». Ressaltou enfaticamente que o Filho e o Espírito Santo são um com o Pai, mas ao mesmo tempo algo diferente do Pai. «O Pai não é o Filho; ele é maior do que o Filho; pois aquele que gera é diferente daquele que nasce; o que envia é diferente do que é enviado» (Adversus Praxean, 9 ). Com o objetivo de expressar a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Tertuliano cunhou o termo persona, que mais tarde tornou-se o vocá­ bulo geralmente aceito neste contexto. O Filho, como pessoa independente, veio do Pai. O Logos tem existência independente. E, todavia, as três pessoas são um, assim como os raios do sol são um com o sol. Para exp ressar esta unidade, Tertuliano usou o termo substantia, que é paralelo ao vocábulo grego ousía, «essência» ou «substância». Este termo, também, chegou a se r geralmente aceito na formulação da doutrina da Trindade. A s três pessoas preexistiam em Deus. Mas quando procederam de Deus e ingressaram no tempo, isto ocorreu de acordo com o plano da sa l­ vação. O Filho procedeu do Pai a fim de declarar o plano da salvação. A s três pessoas denotam etapas diferentes na revelação de Deus, mas são, apesar disso, um só — assim como as raízes produzem a planta, e a planta carrega frutos, enquanto juntos formam uma e a mesma planta. Esta con­ cepção da Trindade é usualmente denominada doutrina «econômica» da Trindade. A diferença entre as pessoas é descrita com base em sua ativi­ dade no plano da salvação. Tertuliano desenvolveu sua cristologia em oposição ao modalismo (do qual se falará ainda, posteriormente). Traçou distinção nítida entre as qua­ lidades divinas e humanas em Cristo. Referem-se a duas substâncias di­ ferentes, diz ele, que se uniram numa pessoa, Cristo, mas não se combi­ naram. Quando Cristo d isse: «Deus meu, Deus meu, por que me desam­ paraste?» não foi Deus Pai quem clamou («Pois caso o fosse, a que Deus clam aria?») — foi o homem, o Filho, que clamou ao Pai. Cristo sofreu só como Filho, afirmou Tertuliano, rejeitando desta maneira o patripassionismo (Praxeas), que confundiu Deus e Cristo a tal ponto que dizia ter sido o Pai quem sofreu. É preciso ressaltar, entretanto, que Tertuliano usou ex­ pressões como D eus mortuus e Deus crucifixus, que não necessariamente contradizem o que foi dito acima. Mas nada disse de específico sobre a relação entre as qualidades divinas e humanas. O Logos apareceu em car­ ne, revestido de forma corpórea, mas não se transformou em carne. A doutrina subseqüente das duas naturezas de Cristo baseou-se em Tertu­ liano. Sua terminologia pode ser apresentada esquematicamente da seguinte maneira:

Uma substância (ousia) — três pessoas (upostáseis): Pai, Filho, Espí­ rito Santo. A pessoa de Cristo — natureza divina e humana (a substância do C riador e substância humana). Irineu apresentou Cristo como o Salvador do poder do pecado, que, através do seu Espírito, redime o homem da corrupção do pecado a fim de que o homem possa se r restaurado a su? pureza original. A salvação era descrita, em outras palavras, em termos de recuperação de saúde e integridade. Tertuliano deu ênfase a outro ponto de vista: apresentou C ris ­ to como o mestre que proclama nova lei (nova lex), fortalecendo, desta ma­ neira, a vontade livre do homem a fim de que possa viver de acordo com os mandamentos de Deus. V iver de maneira compatível com a lei de Deus é, segundo Tertuliano, o alvo da salvação. Isto se alcança mediante instru­ ção na lei. O conceito de mérito é dominante. Deus recompensa ou pune com base em mérito. A relação entre Deus e o homem é concebida em termos de sistema judicial. Se Deus não vingasse e punisse, não haveria razão para temê-lo e fazer o que é correto. A salvação, diz Tertuliano, é dada como recompensa pelo mérito humano. A s boas ações, bem como as más, devem se r recompensadas por Deus. Esta interpretação claramente opõe-se à de Marcião, que enfatizara o amor de Deus a ponto de negar todas as considerações de retribuição e ira. A doutrina da graça de Tertuliano também foi introduzida nesta estru­ tura. É a graça que salva — com o que Tertuliano quer dizer que a graça retira a corrupção que aderia à natureza humana como resultado da invasão do pecado. A idéia que esta corrupção se encontra na própria natureza, e é transmitida pelo nascimento, igualmente aparece em Tertuliano. É aí onde a doutrina do pecado original começa a tomar forma. Através da gra­ ça o homem pode receber o poder indispensável para viver a nova vida. A graça é concebida como o poder que é outorgado ao homem, capacitan­ do-o a viver vida meritória. Com base nesta doutrina de pecado — graça — mérito, que Tertuliano desenvolveu no decurso de sua controvérsia com Marcião (que ressaltava o amor de Deus), foi lançado o fundamento para a doutrina da salvação, que dominou a teologia medieval do ocidente e, mais tarde, a do catolicismo romano. Como foi dito acima, Tertuliano filiou-se ao movimento montanista, em parte como resultado da praxe complacente da igreja com respeito à penitência. A seita montanista originara-se na Á sia Menor, em meados do segundo século, e, de lá, propagou-se a Roma e ao Norte da África. D is­ tinguia-se por sua forte ênfase na profecia e nos dons livres do Espírito, por sua crença na iminência do fim do mundo, e por seu rígido ascetismo e sua rigorosa praxe de penitência. Em virtude de sua associação com os montanistas, Tertuliano é lem­ brado como tendo sido um cismático, mas ao mesmo tempo foi também um dos principais adversários das heresias, bem como um dos mais des­ tacados artífices da teologia ortodoxa ocidental.

H IPÓ LITO Hipólito, que foi bispo em Roma e adversário do papa Calixto (cuja atitude com respeito à penitência desaprovava veementemente), foi banido para Sardenha durante uma perseguição (ca. 235), e morreu no exílio. E s ­ creveu vários livros (em grego), dos quais alguns chegaram até nós, em que continuou a defesa da doutrina cristã contra a filosofia grega e as he­ resias eclesiásticas. Sua obra mais conhecida intitula-se Philosophoumena (ou A Refutação de todas as H eresias), que realmente é um apanhado en­ ciclopédico das idéias filosóficas que derivaram dos filósofos naturalistas gregos, de vários conceitos mágicos e religiosos dominantes em sua época, bem como das heresias eclesiásticas que, segundo Hipólito, tinham suas raízes na filosofia grega. Esta obra é testemunho eloqüente de sua vasta erudição e proporciona conhecimento valioso sobre as várias escolas de pensamento que Hipólito aí descreve. O material polêmico, por sua vez, dirige-se especialmente contra os gnósticos e os modalistas, e não apre­ senta a mesma originalidade e vigor das polêmicas de Irineu e Tertuliano.

CAPITULO 5 TEO LO G IA A LEXA N D RIN A

A teologia cristã desenvolveu-se em oposição à filosofia grega e às tendências heréticas. Os apologistas refutaram as objeções do mundo pa­ gão e apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia; os pais an­ . tignósticos desenvolveram, com base na Escritura e na tradição, uma teo­ logia destinada a proteger a ortodoxia das especulações do gnosticismo e da filosofia grega. Mas o que os alexandrinos ofereceram como s ubs­ tituto foi uma cosmovisão sistemática baseada em princípios filosóficos, em que o cristianismo foi inserido e conservado como a mais elevada sa­ bedoria. Esta foi a primeira tentativa de se obter uma síntese real entre o c ris­ tianismo e a filosofia grega. Ao contrário dos apologistas, os alexandrinos não se contentaram em apresentar a tradição cristã simplesmente como. complemento superior à filosofia. E em contraste com os gnósticos, não procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincretística de sal­ vação que repudiou alguns dos elementos fundamentais da fé cristã. O s teólogos alexandrinos queriam preservar a tradição cristã de ma­ neira fiel, e para consegui-lo apoiavam-se firmemente na Escritura. Ao mes­ mo tempo também possuíam um ponto de vista filosófico coerente, em cujo contexto procuravam inserir o conteúdo da revelação de modo a criar novo sistema teológico. Faziam uso da filosofia contemporânea desta maneira com o objetivo de apresentar a realidade da fé como cosmovisão uniforme e abrangente. O propósito disto não era o de misturar cristianismo e filo­ sofia, mas apenas o de apresentar o cristianismo como a mais elevada ve r­ dade. Orígenes foi um dos mais destacados teólogos bíblicos de todos os tempos, e desejava tão-somente interpretar o significado da Escritura. Mas como resultado de seus pressupostos filosóficos tinha a tendência de intro­ duzir implicações filosóficas e especulativas nas passagens da Escritura como seu sentido mais profundo. Fazia-o com auxílio do método alegórico. Em vista disso, o sistema de Orígenes traz impressa a marca da filosofia grega desenvolvida em sua época (e anteriormente) em Alexandria, o prin­ cipal centro de educação grega naquele período. Foi, portanto, o elemento básico desta filosofia que significativamente condicionou a teologia alexan­ drina como foi desenvolvida por Clemente e Orígenes.

O PLATONISMO DE A LEX A N D R IA É comum ouvir-se dizer que os princípios filosóficos reconhecíveis na teologia de Orígenes são os do neoplatonismo. Isto não corresponde plenamente aos fatos. O fundador real da escola neoplatônica foi Plotino, contemporâneo mais jovem de Orígenes. Esta escola foi fundada em 244, quando a teologia alexandrina já existia. Mais corretamente, pois, será di­ zer que o neoplatonismo foi o paralelo filosófico do sistema teológico ale­ xandrino. Mas tanto Plotino como Orígenes tiveram o mesmo mestre Amó­ nio S a cas. Através dele Orígenes chegou a sentir a influência do neoplato­ nismo embrionário. Pesquisa mais recente (E. de Faye; Hal Koch, Pronoia und Paideusis) demonstrou, no entanto, que esta influência não foi tão grande como se supunha. Na realidade, Orígenes era eclético. Mas no que tange a escolas filosóficas, mais do que de qualquer outra aproxima­ va-se do platonismo tal como era popular em Alexandria durante os pri­ meiros séculos da era cristã e que, em geral, denomina-se platonismo mé­ dio. Era continuação da antiga Academia, mas tinha transformado o plato­ nismo clássico num sistema cosmológico abrangente em que a religião, ao invés de conhecimento teórico, era o componente principal. O mundo das idéias como aí era apresentado não era simplesmente o mundo conceptual, mas sobretudo o mundo espiritual que emanou da divindade. O s aspectos fundamentais deste sistema afloram novamente tanto no neoplatonismo co­ mo nos teólogos alexandrinos. «A estrutura cosmológica alexandrina» (cf. Anders Nygren, Agape and Eros, trad. Philip S . Watson, Londres: S P C K , 1953, I, 186-89; o termo é tomado do Plotinus de Heinemann, 1921) baseava-se no antigo platonismo, visto que procede da antítese entre mente e matéria, entre o mundo das idéias e o mundo empírico. Esta antítese era fundamental. Dentro dessa «estrutura cosmológica» Deus era conceituado como o Único, transcendente acima de tudo o mais. O mundo inteligível emanava de Deus num processo eterno. O pensamento (nous) era a primeira etapa; a subseqüente era a da alma do mundo, que é a mais baixa no mundo e s­ piritual. Como resultado de uma queda ocorrida no mundo espiritual, a alma humana foi desligada e unida à matéria. A história do mundo está procurando cumprir com este objetivo, a saber, que os seres racionais que caíram em grau maior ou menor de seu estado original possam, mediante treinamento e purificação, elevar-se à presença da divindade, libertando-se deste modo das cadeias do mundo material. O alvo, em outras palavras, era produzir uma reunião extática com Deus (homoíoosis Theóo) através desse processo contínuo de treinamento e purificação. Essa estrutura cíclica, que já aparecera em outra forma entre os gnósticos, foi plenamente desenvolvida no platonismo alexandrino, e formou a origem da teologia de-Orígenes e Clemente. Empregaram esse mesmo e s­ quema com certas modificações e acréscim os. Dentro dessa moldura foi apresentada a doutrina da salvação.

CLEM ENTE Muito pouco sabemos sobre a primeira congregação de Alexandria, mas sabemos que nela surgiu uma escola catequética em meados do se ­ gundo século, a primeira instituição cristã de educação superior. Por volta do final do segundo século esta escola experimentou crescimento inusitado e se tornou o berço da teologia alexandrina. O primeiro teólogo de reno­ me associado à escola catequética_-dfi—Alexandrina foi Pantenn que cedo TÕÍ ultrapassado por s e u discípulo Clemente (ca. 150-2151. gim por sua vez, foi mestre de Oríoenes. A s principais características do sistema teológico em si, foram desenvolvidas por Clemente, mas foi Orígenes quem, fazendo uso deste sistema, o tornou famoso. O aspecto fundamental da teologia de Clemente é a idéia da pedago­ gia de D eus. A fim de tom ar o espírito caído do homem capaz de ascen­ der e de reunir-se com o divino, há necessidade de educ ação. Isto acon­ tece através de disciplina e castigo, por meio de admoestações e instrução. E sse treinamento é a própria finalidade da existência do mundo material. Clemente o torna claro em seus livros principais, tais como Admoestação aos Gregos, o Instrutor, e As Miscelâneas. A educação do homem se realiza através do Logos, que se revelou de maneira final e definitiva no cristianismo. Mas também houve etapa pre­ paratória, anterior à vinda do cristianismo, e o mesmo Logos, que se ma­ nifestou em Cristo, também exerceu influência pedagógica nesse período. Entre os judeus proclamou a lei, e entre os gregos foi a filosofia oue de maneira semelhante prenarou o caminho para a vinda de C risto . A filoso­ fia grega, em outras palavras, foi uma fase na pedagogia de Deus, seme­ lhante à lei dos judeus. Ambas auxiliaram a preparar os homens para a encarnação e procederam da mesma fonte, o Logos, que apareceu aos ho­ mens mesmo antes do nascimento de Cristo. Considerada deste ponto de vista, a filosofia, assim como a lei, é posição ultrapassada, uma vez que Cristo veio com o conhecimento salvador pelo qual os homens sã o trazi­ dos à fé. O que se disse até agora é explicação parcial do conceito de cris­ tianismo e filosofia de Clemente. Cristianism o e filosofia, segundo Clemen­ te, não são opostos entre si. A filosofia, ao contrário, expressa a mesma revelação que foi completada posteriormente no cristianismo. Portanto, a filosofia, segundo Clemente, é capaz de servir como «uma espécie de e s­ cola preparatória para os que obtêm a fé através de provas». Mas a influência da filosofia sobre Clemente expressou-se particular­ mente nisto, què o conduziu a concluir que «conhecimento» fica num nível mais elevado que a fé. Portanto, distinguia entre pistis (fé) e gnõosis (co­ nhecimento). Aquela, conforme Clemente, é a simples té autoritária cristã, de natureza bem literal, e preocupada com o temor de punição e esperan-

ça de recompensa. Este, por outro, é considerado conhecimento de espé­ cie superior, que não crê simplesmente com base na autoridade, mas an­ tes, avalia e aceita o conteúdo da fé à luz de suas próprias convicções in­ ternas. O «conhecimento» conduz ao amor, e o amor impele a ações que não seriam produzidas pelo temor. Clemente enfatiza energicamente a idéia que o conhecimento é o nível superior no qual a fé é conduzida à perfei­ ção. Apenas o «gnóstico» (conhecedor) poderia se r cristão perfeito. Ape­ sar disso, a diferença entre fé e conhecimento não é considerada idêntica á d iv is ã o QnÓStÍC3 d a humanidad© ©fltr© h ílip ne o n n a iim á firn c

P lo m o n to

não considerou os homens predestinados a uma ou outra categoria. Tam­ bém não concebeu o conhecimento que se obtém no níveKNriais elevado como sendo de espécie diferente daquele que se encontçáQ^a \(ié. A fé, di­ zia, contém tudo até certo grau. Mas uma fé exterrçaV^inc^iãz de com­ preender o verdadeiro significado da fé, uma ve z^ y ^ a çe it^ ío s dogmas s in ^ ' plesmente com base na autoridade. «O g n ó s tic y í^ o ^ s u a vez, é cajsaz d e^ apreender o significado da fé, tendo-o assimilado internamente. -O ^ e safio que Clemente lançava ao cristão, portanto\Qg^|e dirigir-se da tfè^o conhe­ cimento. O conhecimento conduz à tááaòAfefe^Deus e a uma Midà"de amor ao próximo. Clemente desejava substrew^a falsa gnose do gnosticismo pela verdadeira gnose escriturístiça^ dtc/jlstianism o . O oohTlecimento superior que ensinava não entrava emW&oftíto com a fé eXtôr^^Eíaseada na autori­ dade. Mas o desenvolvímènto da gnose cristã '£or parte de Clemente foi influenciado pela filo&OTadjatônica, que constituía seu ponto de partida e que servia, como ele a enCarava, corpof eécola preparatória ao cristianismo para os que prpcediam da «fé nua»'^gsim preensão mais profunda da fé. A s id^iasN^rincipais da gnose ©rístã, como desenvolvidas por C le ­ mente, iTeapftrecem no sistema^eorogico de Orígenes, e por essa razão, não ^ rá à ^ ié c u tid a s maisf4^m ènorizadam ente a esta altura.

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O RI G EN ES

A s diígfiiíSancias da vida de Orígenes são razoavelmente bem conhe­ cidas,HÍàtticularm ente como resultado da obra de Eusébio (História Ecle­ siástica, V I). Nascido em Alexandria em 185, de pais cristãos, revelou en­ tusiasmo pelo cristianismo desde a infância. De fato, ainda bem jovem qua­ se sofreu morte de mártir, como seu pai. No ano 203 sucedeu a Clemente _____ . _________ la _____ , . . __ __________ . _____ , serviu por muitos anos. Seu sucesso como professor foi extraordinário mas a opo­ sição do bispo de Alexandria o forçou a exilar-se. Foi à Palestina, onde fundou uma escola em C esaréia, semelhante à de Alexandria, e aí continuou sua atividade. Morreu em Cesaréia em 251 — ou, segundo outra fonte, em Tiro em 254. Como escritor no campo da teologia, a produtividade de Orígenes foi espantosa. Apenas parte de seus escritos foi preservada. Sua obra exe-

gética compõe-se de comentários, homilias e edições de textos. Orígenes tinha acesso a grande número de manuscritos que depois se perderam. Em sua obra mais importante, a Hexapla («a Sêxtupla»), colocou seis diferentes traduções do Antigo Testamento em colunas paralelas numa tentativa de determinar o texto correto. Mas apenas pequena parte da Hexapla chegou até nós, e o mesmo se dá com suas numerosas homilias e comentários. O ponto de vista teológico de Orígenes se encontra expresso com maior cla­ reza em seu grande conflito literário com Celso (Contra Celsum ), bem como na obra em que procurou fazer uma exposição ampla da fé cristã. Esta foi preservada em tradução latina de Rufino (De principiis). É difícil imaginar o volume original da produção de Orígenes. Jerônimo calculou que produ­ zira cerca de 2.000 escritos. No início de sua carreira Orígenes sofreu oposição dos que o acusa­ vam de ensinar doutrina falsa. Havia vários aspectos originais integrados em sua teologia que, de modo geral, era fortemente influenciada pela filo­ sofia grega. Por esse motivo, a teologia de Orígenes tornou-se cada vez mais controvertida até ser condenada como herética pelo Çuinto Concílio Ecumênico (553). A pesar disso, Orígenes demonstrou se r teólogo de in­ fluência extraordinária. Pode-se dizer, incidentalmente, que foi o fundador da tradição teológica oriental, assim como Tertuliano foi o fundador da tra­ dição ocidental. Orígenes foi teólogo bíblico, mas como resultado de sua utilização do método alegórico (tomado de empréstimo da tradição platônica) sua inter­ pretação da Bíblia também permitia a aceitação da cosmovisão que se de­ senvolvera na escola filosófica de Alexandria. Deve-se ressaltar, contudo, que Orígenes não só alegorizou. Como exegeta notável que era, também demonstrou compreensão pelo sentido histórico dos textos com que trabalhava. Su as interpretações tipológicas também devem ser distinguidas da tendência alegorizante. Aquelas incluíam a exposição do material veterotestamentário dentro da estrutura da histó­ ria da salvação, que Orígenes interpretava escatologicamente, cristologicamente e sacramentalmente. A interpretação mística, que se refere à expe­ riência interna do cristão, também pertence a esta categoria. Estas manei­ ras de interpretar a Escritura foram empregadas, até certo ponto, por toda a tradição cristã. O que distingue Orígenes foi que também usou o método alegórico. Esse método fora empregado anteriormente pelo filósofo religio­ so judeu, Filo de Alexandria, que interpretava o Antigo Testamento de acor­ do com a filosofia platônica. Em princípio, esse método relaciona-se com o ponto de vista platônico. Contrasta letra e espírito da mesma maneira como o platonismo em geral contrasta substância e idéia. Em Orígenes, a alegoria se fundamenta na idéia que há um sentido espiritual no fundo de cada passagem da Escritura. Assim como o homem compõe-se de corpo, alma e espírito, assim também a Escritura possui sen­ tido literal (ou «somático»), moralista (ou «psíquico») e espiritual (ou «pneu­

mático»). Este está sempre presente, e quando a interpretação literal pare­ ce pouco razoável, deve-se adotar apenas a espiritual. Além disso, o método alegórico pressupõe que todos os pormenores citados na Escritura são símbolos de grandes realidades espirituais univer­ sais, por exemplo, os poderes da alma e eventos cosmológicos. O alegorizador, portanto, abandona o terreno sólido da história e concebe os pro­ nunciamentos escriturísticos como fenômenos puramente espirituais ou idealistas. Isto constitui a diferença entre alegoria e tipologia. É evidente que esse método se presta muito bem para encontrar na Escritura as idéias cosmológicas que aparecem no sistema teológico de Orígenes. O método alegórico o capacitava a formar uma síntese de seu sistema cristão com idéias helenísticas. A regra da fé, segundo Orígenes, identifica-se com o conteúdo da Escritura. Orígenes forneceu um sumário na primeira parte de seu De principiis, em que apresenta seu sistema teológico com maior clareza. Aí inseriu idéias da tradição cristã na estrutura cosmológica alexandrina. Três temas principais aí se encontram: 1) 2) 3)

A respeito de Deus e do mundo transcendental; A respeito da queda no pecado e o mundo empírico; A respeito da salvação e a restauração dos espíritos finitos.

Tema característico da teologia de Orígenes é o da educação, pela providência divina, das criaturas racionais caídas em pecado. Eram pressu­ postas as três idéias básicas seguintes: (a) o curso do mundo é guiado pela providência divina; teve sua origem em Deus, e todas as coisas, des­ de os movimentos dos corpos celestiais até as relações terrenas dos ho­ mens, são governadas por um poder divino; (b) o alvo do cuidado provi­ dencial dispensado por Deus ao mundo (do qual o homem é o centro) é o de restaurar à sua origem divina as criaturas racionais, que estão aí apri­ sionadas em seus corpos; (c) essa restauração terá lugar como resultado de educação (paídeusis) — o que quer dizer que não é fenômeno natural, nem ainda se emprega qualquer coerção, mas deve se r realizada pela in­ fluência sobre o üvre arbítrio do homem. Que o homem tem livre arbítrio era, para O rígenes,fato pacífico sancionado pela própria regra da fé. Sobre isto Orígenes edificou seu sistema teológico, e como resultado seu conceito de salvação foi apresentado em termos de educação. Assim como acontece com Clemente, a idéia da pedagogia providencial de Deus é básica no s is ­ tema de Orígenes.

1. Orígenes descreveu Deus como o ser espiritual mais elevado, tão distanciado do material e físico como possível. Em vista disso, os antropomorfismos da Bíblia devem ser reinterpretados. Não possuem qualquer significado literal. A corporeidade é incompatível com o conceito de Deus. N essa questão Orígenes ppõe-se frontalmente a Tertuliano.

Deus, de sua bondade e amor, criou um mundo inteligível de tipo pu­ ramente espiritual. Esse mundo espiritual procede de Deus por toda a eter­ nidade. O Logos, Cristo, faz parte desse mundo. Orígenes rejeitou a idéia que o Logos apareceu pela primeira vez quando da criação (cf. os apolo­ gistas e Tertuliano). Em lugar disso, afirmou que o Logos preexistiu eter­ namente de modo independente («Nunca houve um tempo em que ele não existia»), O Logos não foi criado no tempo; nasceu de Deus na eternida­ de. Assim como Orígenes o concebia, esse nascimento do Filho na eter­ nidade foi uma emanação análoga à emanação do mundo espiritual da di­ vindade (cf. Irineu, que apresenta a mesma idéia sem este fundo filosófico). Isto suscitou a questão: Como se relaciona o Filho com o Pai? Com base em sua doutrina do nascimento do Filho na eternidade, Orígenes dizia (a) que o Logos é_da._rnesma essência do Pai e está subor-dioado a ele. O Fi­ lho é o «segundo Deus». Apenas o Pai «não nasceu» (é agénnetos). Tanto o conceito de homoodsios como o subordinacionismo, portanto, encontramse na teologia de Orígenes. 2. Os seres espirituais sofreram uma queda, pela qual alguns deles se afastaram mais de sua origem do que outros. «Esfriaram» (psuxos, frio), por assim dizer, e se tornaram criaturas racionais, psuxaí (plural de psuxée, alma). Foi assim que anjos, homens e demônios chegaram a existir. O mun­ do visível foi criado como conseqüência da queda, a fim de punir e puri­ ficar o homem. O mundo supre o lugar e as condições nas quais e pelas quais a instrução divina pode ter lugar. Orígenes, portanto, não conside­ rou a criação como algo mau (como o faziam os gnósticos). Na realidade, afirmou que Deus criara o mundo visível, mas apenas com a finalidade de dar ao homem a possibilidade de se r educado dentro dele. A criação nSo possui significado independente. A existência no mundo material é, em par­ te, punição para os espíritos racionais, mas isso não é tudo. Pois como Orígenes o imaginava, as coisas terrenas são símbolos das realidades ce­ lestiais, e ao contemplá-las, espera-se que o homem se eleve ao nível ce­ leste. Assim acontece que o mundo material também se inclui na instrução providencial do espírito humano. 3 . Orígenes concebia a salvação da seguinte maneira: O homem é um espírito que caiu do mundo inteligível e foi enxertado num corpo que é animado por uma alma. Para ser salvo, o homem precisa novamente ele­ var-se ao mundo espiritual, para lá reunir-se com Deus. Esta salvação é realizada por intermédio de Cristo, o Logos que se tornou homem. A alma de Cristo não caiu de seu estado puro. Sua alma ingressou em seu corpo, e assim a natureza divina e a humana se uniram. Mas, dizia Orígenes, o lado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino de modo que deixou de ser homem (cf. Inácio, que mantinha que Cristo permaneceu carne mesmo depois da ressurreição). Orígenes ensinou uma doutrina de expiação, mas uma vez que esta redenção tinha valor especialmente para aqueles que se encontram no ní-

vel inferior da fé, como ele o conceituava, a ênfase maior recaía sobre a instrução que Cristo dá no tocante aos mistérios da fé. A salvação não se completa a não se r após a morte. O processo de purificação continua após a morte e, como resultado disto, os homens são conduzidos á perfeição e reunidos com Deus — em primeiro lugar os homens bons, mas por último também os maus. Tudo se reunirá com sua origem (apokatástasis pántoon). Mas qualquer ressurreição do corpo está fora de questão. A matéria não' existirá mais, nem tampouco existirão homens; todos serão reconduzidos a um estado de pura espiritualidade («Vós sereis deuses; vós sois todos filhos do Altíssim o»). Outra queda, e a criação de novos mundos, são uma possibilidade com que se deve contar. Aqui notamos a influência do con­ ceito grego da natureza cíclica da história. No sistema de Origenes, idéias tipicamente platônicas eram combina­ das com a tradição cristã. Alguns aspectos deste sistema eram de natu­ reza completamente helenística, e assim não têm qualquer relação com a proclamação bíblica. Isto se dá, por exemplo, com a idéia que o mundo inteligível emanou da divindade, que todas as coisas serão restauradas e que cessará a existência de tudo que é material e físico. Em outros casos, a tradição bíblica é preservada fielmente. Origenes, no entanto, fez isso muitas vezes, associando estes dois pontos de vista tão intimamente que é impossível distinguir o elemento cristão do helenístico. O método de Orígenes desdobrou-se num padrão uniforme e sistemático de pensamento que era tanto cristão como helenístico. O conceito de pedagogia, por exem­ plo, é idéia grega, mas Origenes o usou ao mesmo tempo para exprimir suas convicções cristãs. Deliberadamente decidiu apresentar uma descri­ ção uniforme do conteúdo da regra da fé e, ao mesmo tempo, fornecer uma resposta às questões filosóficas sobre a vida, que eram atuais em sua época.

CAPITULO 6 MONARQUIANISMO: O PROBLEM A TR IN ITÁ R IO

Durante os últimos anos do segundo século, surgiram duas correntes teológicas incomuns, recebendo ambas a mesma designação: monarquianismo. Ambas causaram sérios conflitos dentro da igreja, e ambas foram afinal rejeitadas como sendo heréticas. Essa luta, que continuou durante a maior parte do terceiro século, teve influência significativa no desenvol­ vimento da história do dogma. Ainda se fazia notar quando a igreja deu forma à doutrina da Trindade. Os conceitos rejeitados naquela época ser­ viram de protótipos para muitas aberrações e heresias semelhantes através dos séculos, por exemplo, o ponto de vista unitário, que aflora sempre de novo na história da teologia como interpretação racionalista do cristianismo. O conceito «monarquiano», do qual estas duas escolas tomam seu nome, apareceu nos escritos de Tertuliano, que o usou com referência à unidade de Deus. O monarquianismo negava o conceito trinitário, pois sus­ tentava que ele se opunha à fé no Deus único. Seus adeptos repudiavam a idéia da «economia», segundo a qual Deus, que certamente é um, reve­ lou-se de tal maneira que apareceu como Filho e como Espírito Santo. A rejeição monarquiana das três pessoas na Divindade sofreu influên­ cia do conceito grego de Deus, que elevava Deus acima de todas as con­ siderações materiais, inclusive mudança e diversidade. Por esse motivo, o ponto de vista grego era incapaz de aceitar a reivindicação que Deus apareceu e agiu neste mundo. Sempre que os homens repudiaram o con­ ceito da divina «economia», isto é, a distinção entre as pessoas da Divin­ dade condicionada pelo plano de salvação, o pressuposto tem sido o con­ ceito deísta de Deus, em que a doutrina bíblica de Deus é substituída por uma idéia abstrata de Deus. O monarquianismo, portanto, possuía um pressuposto comum e uma idéia básica comum: a dificuldade de combinar a fé no Deus único com a fé cristã no Pai, Filho e Espírito Santo. Visto não se satisfazerem com a solução proposta pela doutrina do Logos, nem com o ensinamento sobre as três Pessoas (hipóstases), nem com o conceito de «economia», procu­ raram novos caminhos para resolver o problema — em cuja tentativa eli­ minaram elementos essenciais da fé cristã e chegaram a uma posição ra­ cionalista ou docética. Em certo sentido, o termo «monarquianismo» é designação artificial. Não sugere um ponto de vista uniforme; indica, em vez disso, uma carac-

terística mantida em comum por duas correntes de pensamento que sur­ giram mais ou menos ao mesmo tempo. Na maioria de seus aspectos, estas duas correntes de pensamento eram diametralmente opostas. Uma forma de monarquianismo era denominada dinâmica (ou adopcionista), a outra era chamada modalista.

MONARQUIANISMO D IN A M ISTA O primeiro representante desta corrente foi o curtidor Teodoto, que chegou a Roma de Bizâncio no ano 190 como resultado de uma persegui­ ção. Opunha-se à cristologia do Logos e, em geral, negava a divindade de Cristo. Em vez disso, acreditava ser Cristo mero homem (a posição ebionita). Nasceu de virgem, dizia Teodoto, mas apesar disso era simples ho­ mem. Era superior aos demais homens apenas com respeito a sua justiça (Tertuliano, Adversus omnes haereses, 8). Mais especificamente, Teodoto concebeu a relação entre Cristo e o homem Jesus do seguinte modo: Jesus vivera como os demais homens; por ocasião de seu batismo, contudo, C ris ­ to veio sobre ele como um poder e estava ativo dentro dele a partir de en­ tão. A crença que o elemento divino em Cristo era um poder outorgado a Jesus, em seu batismo, dava ao monarquianismo «dinamista» seu nome. Considerava-se Jesus um profeta que não se tornou Deus, embora esti­ vesse equipado com poderes divinos por algum tempo. Só se uniu a Deus depois de sua ressurreição. Teodoto foi excomungado pelo bispo Vítor de Roma. O mais destacado defensor do monarquianismo dinamista foi Paulo de Samósata, bispo de Antioquia por volta de 260. Seguiu nas pegadas da tradição dos ebionitas e de Teodoto, e ensinou que Cristo era apenas um homem dotado de poderes divinos. Não rejeitou a idéia do Logos, mas em sua concepção, o Logos era identificado com razão ou sabedoria, no sentido que estas qualidades podem ser atribuídas a um homem. Segundo ele, o Logos não era uma hipóstase independente. A sabedoria de Deus habitou no homem Jesus, mas apenas como poder divino; não formou pes­ soa independente com ele. O elemento pessoal existente era apenas o do homem Jesus. Com essa teoria, Paulo repudiou a doutrina de Tertuliano sobre o Logos como persona e a doutrina de Orígenes sobre o Logos co­ mo hipóstase independente. Paulo de Samósata foi declarado herético por um sínodo em Antio­ quia no ano 268. Seu ponto de vista era unitário: «O Filho» foi sim ples homem, dizia, e o Espírito Santo era a graça derramada nos apóstolos. Essa interpretação racionalista da fé cristã em Deus foi o primeiro exem­ plo claramente formulado de um ponto de vista que apareceria de muitas formas diferentes. Em tempos mais recentes apareceu no socinianismo, bem como na neologia e em certos ramos da teologia liberal.

MODALISMO A segunda forma de monarquianismo apareceu, em primeiro lugar, na Ásia Menor, mas Noeto e seus discípulos a levaram a Roma. Foi aí que Praxeas viveu, o representante modalista contra quem Tertuliano escreveu. O principal expoente desta escola foi Sabélio, qüe ensinou em Roma, co­ meçando por volta do ano 215. Noeto não aceitava o conceito «econômico» com respeito à doutrina da Trindade; nem aprovava a cristologia do Logos e as tendências subordinacionistas implícitas nela. Para Noeto, apenas o Pai é Deus, e embora esteja oculto à vista do homem, manifestou-se e se fez conhecer segundo o seu beneplácito. Deus não está sujeito a sofrimento e morte, mas pode sofrer e morrer se ele assim o quiser. Ao dizer isto, Noeto procurou res­ saltar a unidade de Deus. O Pai e o Filho não são apenas da mesma es­ sência; são também o mesmo Deus sob nome e forma diferentes. Noeto negou-se a diferenciar entre as três pessoas da Divindade. Como ele en­ tendia o problema, podia-se dizer tão bem que o Pai sofreu como dizer que Cristo sofreu. Praxeas atenuou um pouco esta opinião; dizia que o Pai sofreu com o Filho — mas sua posição também foi rejeitada. Tertuliano a cognominou «patripassianismo». Mais do que qualquer outro homem, foi Sabélio quem deu forma à concepção modalista. Afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um; são de uma substância, isto é, podem ser diferenciados um do outro apenas pelo nome. Tentou descrever sua posição de várias maneiras. A s­ sim como o homem compõe-se de corpo, alma e espírito (por exemplo), assim também há três facetas na essência divina; ou então, as três pes­ soas relacionam-se assim como o sol, sua luz e seu calor estão relaciona­ dos entre si. O Pai é o sol, enquanto o Filho é o feixe de raios luminosos e o Espírito é o poder aquecedor que procede do sol. O Filho e o Espírito são apenas as formas que a Divindade assumiu quando apareceu no mundo (no período de sua «expansão»). Atribui-se a Sabélio a frase: «Deus, com respeito à hipóstase é um, mas foi personificado na Escritura de várias ma­ neiras segundo a necessidade do momento» (Basílio, Epístola 214). Presu­ mia-se, pois, que Deus apareceu em formas diferentes em épocas diversas, primeiro de' modo geral na natureza, então como Filho, e finalmente como Espírito Santo. É desta concepção que o modalismo recebeu seu nome: as três pessoas são três diferentes modos (modi) em que o mesmo Deus se revelou. É característico de Sabélio que não apenas cria se r a subs­ tância divina uma só; também acreditava que as três pessoas da Divinda­ de são uma e a mesma. O que Sabélio dizia sobre diferentes formas de revelação mostra se­ melhanças com o conceito «econômico» da Trindade, mas diversamente de­ le ensinava (Sabélio) que o Filho e o Espírito apareceram um depois do ou­ tro em épocas diferentes. Deus não é Pai, Filho e Espírito ao mesmo tempo. Sabélio também se negava a distinguir entre as pessoas; não há Trindade

real. No conceito «econômico» julgava-se que as três formas de revelação são hipóstases independentes. Em oposição ao monarquianismo dinamista, o modalismo ressaltava enfaticamente o fato que o Pai e o Filho são um com respeito a sua substância. Como resultado, no entanto, o modalismo era incapaz de fazer justiça à humanidade de Cristo. Encontramos aqui como no monarquianismo dinamista, a tendência racionalizante na qual a revelação é substituída pela especulação metafísica. O modalismo — ou sabelianismo, como é freqüentemente denominado — foi rejeitado como he­ rético quando as doutrinas de Sabélio foram condenadas em 261.

A A TITU D E DA IG R EJA A doutrina da igreja opôs-se ao monarquianismo de modo especiaf nos pontos seguintes: a doutrina da consubstancialidade do Filho com o Pai (contra o dinamismo), a doutrina das três pessoas da Divindade (contra o modalismo), e a doutrina do nascimento do Filho na eternidade (contra ambos). O dinamismo ou negava a divindade de Cristo ou a interpretava como mero poder que foi outorgado ao homem Jesus. O s teólogos alexandrinos (e Tertuliano também) descreviam a divindade de C risto em termos de sua consubstancialidade com o Pai. Segundo Clemente e Orígenes, o Logos emanou da Deidade e é, portanto, da mesma substância (homooúsios) do Pai. Conforme Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são da mesma substância. O modalismo rejeitou a distinção entre as pessoas e identificava o Filho com o Pai, e o Espírito com o Filho e o Pai. Tertuliano, com a ajuda da doutrina do Logos, desenvolveu o conceito das três pessoas, que não são apenas formas de revelação mas três hipóstases independentes. Ambas as espécies de monarquianismo deram à doutrina de Cristo sentido racionalista: num caso, Cristo é simples homem; no outro, é ape­ nas uma forma em que Deus se revelou a si mesmo. A preexistência do Filho é negada por ambos. O Filho não surgiu como entidade independen­ te até o aparecimento de Cristo. E enquanto a teologia subordinacionista simplesmente ensinava que o Logos preexistia dentro da essência divina una, como a «razão» de Deus, Orígenes desenvolveu sua doutrina do nas­ cimento do Filho na eternidade: o Filho procedeu do Pai na eternidade e existiu como Filho, como hipóstase independente, antes de todos os tem­ pos. Entre os que se opuseram ao monarquianismo e contribuíram para o desenvolvimento teológico dentro da igreja no final do terceiro século en­ contram-se Novaciano e Metódio. Novaciano, presbítero em Roma por volta de 250, defendeu a posição teológica de Tertuliano. Ressaltou, de um lado, a divindade de Cristo e o

*3to que é consubstanciai com o Pai (contra o dinamismo), de outro, a ver­ dadeira humanidade de Cristo e a distinção entre as pessoas na divindade (contra o modalismo). Metódio de Olimpo (m. 311) continuou na tradição teológica de Orígenes, mas rejeitou suas teorias sobre a criação eterna, a preexistência da alma, e a restauração de todas as coisas.

CAPÍTULO 7 O A R IA N ISM O : O CO N C ILIO DE N IC É IA

O desafio do monarquianismo retornou de forma mais aguda nas vioentas controvérsias eclesiásticas do quarto século. Foi então que a amea­ ça do arianismo foi combatida e que a fórmula trinitária da igreja foi esta­ belecida nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381). Há também uma conexão puramente histórica entre Ario, o herético -ue provocou os maiores conflitos do século quarto, e o monarquianismo c:namista. Ario, presbítero em Alexandria por volta de 310, foi discípulo de Luciano de Antioquia, que por sua vez, era seguidor de Paulo de Samósata. Assim como os monarquianos, Ario partia de um conceito filosófico de Deus. Não era possível a Deus conferir sua essência a qualquer outro, em virtude do fato de se r uno e indivisível. Não se pode conceber que o _ogos ou o Filho pudesse ter chegado a existir a não se r por um ato de criação. D esse modo, na opinião de Ario, Cristo não podia se r Deus no sentido pleno do termo; devia, em vez disso, fazer parte da criação. Co" io resultado, Ario considerava Cristo como «ser intermediário», menos do cue Deus e mais do que homem. Também dizia ser Cristo criatura, tendo sido criado ou no tempo ou antes do tempo. Ario, portanto, negava a pre­ existência do Filho em toda a eternidade, e lhe conferia atributos divinos apenas em sentido honorífico, baseado na graça especial que Cristo rece­ bera e a justiça que manifestou. «O Filho não existiu sempre, pois quando todas as coisas emergiram do nada e todas as essências criadas chega­ ram a existir, foi então que também o Logos de Deus procedeu do nada. Houve um tempo em que ele não era (een pote hóte ouk een), e não e xis­ tiu até se r produzido, pois mesmo ele teve um princípio, quando foi criado. Pois Deus estava só, e naquele tempo não havia nem Logos nem Sabedo­ ria. Quando Deus decidiu criar-nos, produziu, em primeiro lugar, alguém que denominou Logos e Sabedoria e Filho, e nós fomos criados por meio dele» (Atanásio, Orationes contra Arianos, I, 5). O próprio bispo de Ario, Alexandre, voltou-se contra ele e o exco­ mungou por motivo de heresia por volta de 320. O conflito em breve alas­ trou-se por todo o Oriente, e Ario recebeu o apoio de Eusébio de Nicomé-

dia, entre outros. Em virtude do fato que este conflito punha em risco a unidade da igreja toda e, ao mesmo tempo, a própria coesão do Império Romano, o imperador Constantino resolveu ocupar-se com ele numa ten­ tativa para decidir a questão. Em primeiro lugar, enviou seu bispo da corte, Hósio, a Alexandria para agir com mediador e, quando esse estratagema fracassou, convocou um concílio geral para reunir-se em Nicéia no ano 325. Bispos de todas as partes do Império foram convidados a participar. Três diferentes pontos de vista foram apresentados no Concílio de Nicéia. Havia, em primeiro lugar, um pequeno grupo de arianos puros (che­ fiado por Eusébio de Nicomédia). Em segundo lugar, havia os que se opu­ nham ao arianismo, entre os quais os mais destacados eram o bispo A le­ xandre de Alexandria e seu diácono Atanásio. O acima mencionado Hósio de Córdova também pertencia a este partido. Havia ainda um grupo inter­ mediário, representado por Eusébio de C esaréia, entre outros. A fórmula que o concílio finalmente aceitou foi apresentada por ele. M as, depois de aprovada, esta fórmula foi alterada de modo a tornar-se mais especifica­ mente anti-ariana. Foi assim, por exemplo, que a expressão homooúsios (da mesma substância) foi inserida na fórmula mediante intervenção de Hósio. Fez-se isto a fim de ressaltar a oposição a Ario. A fórmula nicena foi e s­ truturada, tendo como base principal um símbolo então em voga. É possível que este símbolo tenha sido a fórmula batismal então usada em C esaréia, à qual foram adicionadas novas facetas, condicionadas pela situação polê­ mica. A adição final foi um anátema contra todos os ensinamentos de Ario. O assim chamado Credo Niceno não é idêntico à fórmula aceita no Con­ cílio de Nicéia, mas recebeu sua forma final antes do fim do quarto século. Foi aprovada pelo Concílio de Constantinopla (381) e pelo Concílio de Calcedônia (451). O Credo Niceno também se baseou em fórmula batismal mais antiga, e inclui várias das expressões anti-arianas encontradas na de­ cisão de Nicéia. A oposição a Ario tinha como motivos sua doutrina de Deus e sua doutrina de Cristo. Duas críticas especiais foram dirigidas contra Ario: (1) introduziu idéias politeístas e a adoração à criatura; (2) destruiu a base da salvação por negar a divindade de Cristo. Ario colocou o Logos na categoria dos seres criados. Por também julgar que o Logos devia ser adorado como ser divino, era possível criticar Ario por introduzir idolatria. A criação foi colocada lado a lado com o C ria­ dor e adorada como divina. S e Cristo é diferente de Deus, mas apesar disso é Deus, isto implica no culto a dois deuses. Ario também falou de outros seres semidivinos. Cristo, de acordo com Ario, era um ser criado cuja existência come­ çara no tempo, ou antes do tempo. Rejeitou com isso a doutrina da divin­ dade de Cristo e seu nascimento na eternidade. O Cristo proclamado por Ario não podia ter criado o mundo; nem podia ele se r o Senhor da criação. A cristologia de Ario, deste modo, repudiava a obra da redenção de Cristo,

O ARIANISMO

O CONCILIO DE NICÉIA

5 sto tornou-se o principal ponto em debate entre Ario e seus adversários. Se Cristo não é da mesma substância de Deus Pai, não possui nem pode ransm itir o pleno conhecimento de Deus. E a salvação consiste nisto, en*'e outras coisas, que Cristo nos transmitiu este verdadeiro conhecimento ze Deus. S e ele não é um com Deus, não podia fazê-lo. Se Cristo não é o Senhor da criação, também não podia realizar a cbra da redenção. Se ele não é Deus, não pode tornar o homem divino. O verdadeiro sentido da salvação é que traz vida e imortalidade ao homem. 0 Filho de Deus em forma humana podia ter derrotado a morte, ter feito expiação pela culpa dos homens, e restaurado o homem à vida e à imor­ talidade apenas sendo ele da própria essência de Deus. Esta cristologia, que foi laboriosamente definida durante a luta con­ tra o arianismo, foi resumida na fórmula de Nicéia, acima de tudo nas T-ases sobre Cristo: «o u n ig é n ito ... gerado por seu P a i . . . Deus de Deus, _-jz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de jm a só substância com o Pai.» O anátena final contra Ario continha as oalavras apropriadas: «Aqueles que dizem que houve um tempo quando e!e não existia, e antes de ser gerado ele não existia, e que foi criado daquilo que não existia, ou dizem que ele é de outra natureza ou essên­ cia, ou dizem que o Filho de Deus é criado ou mutável, todos estes são condenados pela igreja universal». Defensor extremamente zeloso do ponto de vista niceno foi Marcelo de Ancira (m. 374). Ensinava que o Logos, que tinha a mesma substân­ cia de Deus, só podia ser chamado «filho» a partir de sua encarnação. Também acreditava que a filiação de Cristo cessaria em dado momento, e que o Logos seria então reincorporado ao Pai. A s palavras «cujo reino não terá fim» foram inseridas no Credo Niceno a fim de contrabalançar a doütrina de Marcelo sobre este ponto. Defendia um conceito «econômico» da Trindade com sua idéia da «expansão» da divindade ao Filho e ao Es­ pírito. O s arianos, que se opuseram a ele, criticaram-no por ser sabeliano, mas em contraste com os modalistas, traçava linha demarcatória ní­ tida entre o Logos e aquele do qual o Logos procedia. Um dos discípulos de Marcelo, Fotino de Sírmio (m. 376), tirou con­ clusões da telogia de Marcelo que faziam parecer que (Fotino) apoiava a cristologia adopcionista ou dinamista. Assim aconteceu que a literatura polêmica mais antiga freqüentemente se referia ao «fotinianismo» como designação para este ponto de vista. Fotino considerava o Logos idên­ tico ao Pai, enquanto Cristo era considerado filho de Maria — e nada além disso. Longas controvérsias seguiram o Concílio de Nicéia (325). No início, a decisão de Nicéia encontrou forte oposição. O grupo ariano original, que subseqüentemente adotou posição intermediária, chefiado por Eusébio de Nicomédia, cresceu muito em Influência. Mesmo o imperador foi conquis-

tado para este ponto de vista; Atanásio foi forçado a abandonar sua sé episcopal. Em meados do século IV (no Sínodo de Ancira, 358), novo par­ tido mediador, que deriva seu nome do termo grego homoioúsios (de subs­ tância semelhante), apareceu. Mas vários teólogos, ativos na parte final do século, entre os quais se destacam os assim chamados «capadocianos» (sobre os quais ainda se falará mais tarde), defenderam energicamente a decisão de Nicéia e mesmo a desenvolveram mais ainda (a ortodoxia proto-nicena). Alguns dos proponentes da fórmula «substância semelhante» adotaram esta posição, da qual não estavam muito afastados mesmo an­ tes de tomarem tal passo. E assim aconteceu que o terreno foi prepara­ do para a vitória final no Concílio de Constinopla em 381 (posteriormen­ te considerado o Segundo Concílio Ecumênico), onde a decisão de Nicéia foi confirmada novamente.

CAPÍTULO 8

ATANÁSIO: A FORM AÇÃO DA DOUTRINA T R IN IT Á R IA

O mais zeloso defensor da fé, no conflito da igreja contra o aria­ nismo e o poder imperial que apoiava os heréticos, por longo tempo, foi Atanásio, cujo nome foi mencionado em conexão com o Concílio de Nicéia. Depois da morte de Alexandre em 328, Atanásio tornou-se patriarca de Alexandria. Mas como resultado de seu firme apoio à decisão de Nicéia, foi alvo de uma perseguição após outra. Teve de fugir de sua sé episcopal nada menos de cinco vezes, e passou ao todo quase 20 anos no exílio. Quando morreu em 373, a controvérsia ariana ainda estava em andamento, mas como resultado de suas contribuições, o caminho estava aberto para a vitória final da teologia nicena no Concílio de Constantino­ pla de 381. Entre os escritos de Atanásio, nossa atenção se volta especialmente para os seguintes: Oratio Contra Gentes e Oratio de incarnatione Verbi (escrito por volta de 318), e sua obra magna Orationes contra Arianos (escrita por volta de 335 — ou, de acordo com outra teoria, em 356 e mais tarde). A s Epistolas de Atanásio também documentos teológicos sig­ nificativos, especialmente sua carta a Serápion. Em contraste com os teólogos alexandrinos anteriores (Clemente, Orígenes), Atanásio não inseriu a fé cristã num sistema filosófico fechado. Pelo contrário, rejeitou os recursos da filosofia no desenvolvimento da doutrina cristã; a Bíblia era sua única fonte. Para ele, como para C le ­ mente, a regra da fé e o conteúdo da Escritura eram idênticos. A tradição, segundo Atanásio, só tem autoridade quando está de acordo com a E s­ critura. Como ele faz ver claramente em sua carta pascoal de 367, o câ­ none neotestamentário é definitivo. Do que se disse acima, depreende-se claramente que Atanásio operou com um princípio bíblico coerente. Ao mesmo tempo, insistiu que a B í­ blia não devia se r interpretada legalisticamente; antes deve se r entendida à luz de seu próprio centro, que é Cristo e a salvação operada por ele. O conceito bíblico de Atanásio nos lembra as palavras de Lutero: «O que proclama a Cristo é palavra de Deus.» Na luta contra o arianismo, Atanásio desenvolveu a doutrina eclesiás­ tica da Trindade e do Logos. Alguns de seus principais argumentos são os seguintes: (1) S e Ario está certo quando diz que Cristo é apenas um

ser criado, e não da mesma substância do Pai, a salvação não seria pos­ sível. Pois apenas Deus pode salvar, ele desceu até nosso nível a fim de nos elevar até ele. (2) A doutrina de Ario implica no culto à criação e na fé em mais de um deus. Como o primeiro argumento demonstra claramente, Atanásio procu­ rava combinar a doutrina da Trindade com a salvação operada por C ris­ to, que, na sua opinião, é o centro de toda a teologia. Em vista disso, continuava a ressaltar que a heresia ariana não apenas atingia pontos iso­ lados de doutrina; mas subvertia toda a fé cristã. O estilo atomista ou doutrinário que muitas vezes caracterizava a teologia polêmica da época de Atanásio não se encontrava em seus escritos. Contudo, não podemos concluir — em analogia com o pensamento moderno — que a doutrina do Logos só tinha significado para Atanásio no tocante ao conceito de salvação. Em sua opinião, esta doutrina era simplesmente um dos fundamentos da fé cristã e, portanto, era a própria insistência elementar da própria verdade que levava Atanásio a defender a doutrina nicena da Trindade contra o arianismo. O segundo argumento mencionado acima o evidencia. Tal como Irineu, Atanásio descreveu um plano específico de salva­ ção, começando com a criação, indo até ao cumprimento. Esta ordo salutis forneceu o contexto para sua polêmica contra Ario, do mesmo modo co­ mo Irineu desenvolveu sua polêmica contra os gnósticos, em linha de pen­ samento correspondente. A salvação e a criação pertencem juntas, segundo a opinião de Ata­ násio. Foi o próprio Criador onipotente que realizou a obra da salvação, para que a criação caída pudesse ser restaurada a seu destino original. Isto significa que o objetivo de Deus com a criação está se realizando e que uma nova criação está principiando a existir. Isto se refere, de modo especial, ao homem. O homem foi criado «à imagem de Deus», mas co­ mo resultado da invasão do pecado, afastou-se de Deus e foi entregue à morte e à corrupção. A salvação foi conseguida quando o Filho de Deus, o Logos, pessoalmente envolveu-se na humanidade e com isso reconduziu o homem à sua semelhança com Deus. «Isto não poderia ter acontecido, no entanto, se a morte e a corrupção não tivessem sido destruídas. Por­ tanto, naturalmente, ele assumiu um corpo mortal, para que a morte pu­ desse ser destruída nele, afim de que o homem criado à imagem de Deus pu­ desse se r renovado. Apenas aquele que veio na imagem do Pai estava à altura desta tarefa.» (Oratio de incarnatione Verbi, 13, 8-9). O sentido principal da obra salvadora de Cristo encontra-se nisto, que a maldição do pecado e da morte foi retirada. Isto aconteceu quando o Logos, que é o próprio Filho de Deus, tomou sobre si mesmo as condi­ ções da existência humana, levou sobre si os pecados dos homens e su­ jeitou-se à morte. Foi assim que estes poderes foram vencidos, pois, em virtude do fato que Cristo é da essência de Deus, não foram capazes de

derrotá-lo. Ele se libertou das cadeias do pecado e da morte, e assim fa­ zendo, também libertou toda a natureza humana destes poderes. Foi com esta finalidade que o Filho de Deus tornou-se homem. Se o Logos não se tivesse realmente tornado homem, não poderia ter libertado os homens, não poderia ter vencido o poder do pecado e da morte que mantinha ca­ tiva a natureza humana. Em segundo lugar, a obra salvadora de Cristo implica nisto, que o homem, que foi libertado do pecado e da morte mediante a expiação, po­ de ser renovado e deificado. O mesmo Cristo que derrotou a morte, en­ viou seu Espírito, por intermédio de quem recria o homem e o capacita a participar na vida divina que foi perdida com a queda. O homem, desta maneira, chega a possuir imortalidade e a viver novamente como o fize­ ra no início — à imagem de Deus. Esta deificação do homem é o alvo da salvação. A forte ênfase neste aspecto da salvação, ao invés de no perdão dos pecados, era típica dos Pais da Igreja Antiga. Pode-se dizer, todavia, que Atanásio, mais do que outros, também enfatizou a necessidade de perdão; reconheceu que o pecado trouxe a culpa e que a obra expia­ tória de Cristo foi sacrifício pelo pecado. Mas, acima de tudo, a salvação é associada à imortalidade. Pecado e morte, afinal, andam juntos. S e o pecado não tivesse trazido a morte, diz Atanásio, poderia ter sido facil­ mente removido pela penitência. Mas a vista do fato que o pecado re­ sultou em mortalidade, a salvação só poderia se r obtida se a morte fosse vencida. E assim, visto o poder do pecado ter sido derrotado, a obra do Espírito Santo é a de dar vida ao homem e tornar o homem semelhante a Deus. Isto só é possível se Cristo realmente é da mesma essência de Deus. Por ser ele mesmo Deus, deificou primeiro sua própria natureza hu­ mana, e como resultado disto, pode fazer o mesmo pelos que crêem nele e que participam, pela fé, de sua morte e ressurreição. Em vista disso, a mensagem da salvação como ensinada por Ario, que dizia ser o Logos criatura e não o próprio Deus, tinha de se r repudiada. «A verdade revela que o Logos não é uma das coisas criadas; ao invés disso, é seu Criador. Pois ele tomou sobre si o corpo criado de homem, para que ele, tal como um Criador, pudesse renovar este corpo e deificálo em si mesmo, de modo que o homem, em virtude da força de sua iden­ tificação com Cristo, pudesse entrar no reino do céu. Mas o homem, que é parte da criação, jamais poderia tornar-se como Deus se o Filho não fosse verdadeiramente D e u s ... Igualmente, o homem não poderia ter sido libertado do pecado e da condenação se o Logos não tivesse tomado sobre si nossa carne natural, humana. Nem poderia o homem ter-se tornado co­ mo Deus se o Verbo, que se tornou carne, não tivesse vindo do Pai — se não fosse seu próprio Verbo verdadeiro.» (Orationes contra Arianos, II, 70). Atanásio também salientou outra faceta da obra da redenção: Cristo, dizia ele, veio revelar que é o Filho de Deus, que reina sobre toda a cria­ ção; assim fazendo, restaurou o verdadeiro culto a Deus, que o homem em

sua ignorância e cegueira tinha esquecido. Em uma passagem Atanásio re­ sume a obra de Cristo da seguinte maneira: «O Salvador encarnado re­ velou a nós sua bondade de duas maneiras: pelo fato que removeu o agui­ lhão da morte e nos renovou, e pelo fato que ele, que em si mesmo está oculto e é invisível, revelou-se através de sua obra para que o possamos conhecer como o Logos do Pai, o Governante e Rei de todo o universo.» (Oratio de incarnatione Verbi, 16). A obra de Cristo foi manifestação de seu poder, demonstração do fato que ele é o Senhor de todas as coisas, enquanto ídolos e demônios são o mesmo que nada. A idéia que Cristo restaurou o verdadeiro culto a Deus, revelando-se a si mesmo como o verdadeiro Deus, foi (como já se viu) também um dos principais argumentos empregados no conflito con­ tra o arianismo. Ario introduzira um culto de tipo pagão, com fé em vários deuses e o culto à criação em lugar de ao Criador. Isto decorria de sua negação da divindade de Cristo e da afirmação que o Logos é criatura. Em sua doutrina da Trindade, .que se dirigia especialmente contra o arianismo, Atanásio salientava de modo enfático que o Filho é da mesma substância do Pai. Esta convicção não era apenas expressa pela palavra chave da decisão de Nicéia, homooúsios; Atanásio aceitava outros termos também, inclusive o vocábulo às vezes suspeito, homoios. A doutrina de que o Filho é consubstanciai com o Pai fundamentava-se, antes, nos pró­ prios fatos. O Logos não é parte da criação; em vez disso, compartilhava a própria divindade do Pai. Atanásio também ultrapassou a concepção subordinacionista anterior. O Logos não é outro Deus, e não se situa abaixo do Pai, como se r espiritual emanado ao Pai. O Pai e o Filho são uma Deidade.- O Pai é o que define a si mesmo e gera; o Filho é aquele que assim é gerado. O Pai é, em si mesmo, a essência divina; o Filho é Deus em atividade externa, aparece nas obras de Deus. «O Filho não é outro D e u s ... Pois se ele também é um outro, ao ponto de ter sido gerado, àpesar disso é o mesmo que D eus; ele e o Pai são um mediante a natu­ reza divina única que compartilham em comum, e através da identidade da única Divindade.» (Orationes contra Arianos, III, 4). Atanásio não falou de «pessoas» na Divindade; em lugar disso arti­ culava a relação entre o Pai e o Filho de modo diferente. Mantinha o conceito Pai-Filho, ou falava da diferença entre ambos como condicionada pela atividade de Deus. O Pai é a fonte, o Filho é Deus em sua atividade externa. Há então ainda o Espírito Santo, que conduz a obra de Deus ao indivíduo. Atanásio ensinava que o Espírito Santo é, também, «da mesma substância». É parte da mesma essência divina e não um espírito criado. O homem torna-se como Deus através da operação do Espírito. A reno­ vação não seria ato genuíno de salvação se o Espírito Santo não fosse da própria essência de Deus. A atividade externa do Deus Trino não está dividida; o que quer dizer que o Pai, o Filho e o Espírito Santo todos tra­ balham juntos. Foi em sua carta a Serápion que Atanásio, pela primeira

vez, desenvolveu o pensamento que o Espírito Santo é da mesma essência do Pai e do Filho. Esta foi uma de suas maiores e mais originais c o n t r i ­ buições à teologia.

OS TRÊS CAPADOCIANOS Embora a apresentação de Atanásio da ortodoxia nicena fosse fun­ damental a seu desenvolvimento subseqüente, suas formulações não foram seguidas estritamente na doutrina da Trindade sancionada pela igreja. Pa"a esta, idéias também foram tomadas de (entre outros) Orígenes e Tertuano — por exemplo, a doutrina das três pessoas na divindade. Mas as convicções de Atanásio nesta questão não foram esquecidas. O s que le­ varam avante sua obra, e fizeram mais que outros quaisquer para dar à doutrina da Trindade sua forma final, foram os assim chamados «três capa­ docianos». Basílio, o Grande (m. 379, arcebispo de Cesaréia) foi o principal ar­ tífice da assim chamada teologia proto-nicena, que finalmente derrotou o arianismo. Seu irmão mais moço, Gregório de Nissa (m. por volta de 384), desenvolveu o mesmo ponto de vista ortodoxo de modo mais especulativo, e Gregório de Nazianzo (m. por volta de 390) interpretou-o de maneira re­ tórica em suas Orationes. Foi em grande parte devido à influência dos três capadocianos que a teologia nicena finalmente triunfou como verdadeira posição média entre o arianismo e o modalismo. Além disso, a base dos desenvolvimentos pos­ teriores, na teologia oriental, foi preparada nesta época. Os três capa­ docianos foram mais especificamente «orientais» em sua teologia do que Atanásio. Isso se evidencia, por exemplo, no fato que interpretavam Ata­ násio no espírito de Orígenes, bem como no fato que associaram a orto­ doxia nicena à idéias da antiga escola de pensamento alexandrina. Enquanto Atanásio salientava vigorosamente a idéia de «uma substân­ cia» e partia deste ponto para sua descrição da Trindade, os capadocianos partiam da idéia de «três pessoas distintas» e desenvolviam uma termino­ logia que descreve tanto a unidade como a Trindade. Assim fazendo, acei­ taram a teologia grega anterior que concebia três pessoas em níveis dis­ tintos no S e r Divino (Orígenes). Foi nesta época que se fez uma distinção clara entre os dois con­ ceitos expressos pelas palavras gregas ousía e hupóstasis. A primeira des­ tas foi usada para indicar a natureza indivisível da essência divina, enquanto a outra foi colocada em justaposição à palavra prósoopon (pessoa). B a­ sílio ilustrou esta distinção da seguinte maneira: o conceito «homem» re­ fere-se ao que é comum a todos os homens. Mas homens individuais, tais como Paulo ou João, possuem características distintivas que os destacam de outros indivíduos. Tanto Paulo como João existem independentemente,

mas também têm algo em comum: são homens; pertencem à categoria geral de «homem». Assim , enquanto compartilham a essência (ousía) comum, são também pessoas individuais com existência independente (hupóstasis). A hipóstase, portanto, é a forma especial de existência, as características sui-generis, pelas quais aquilo que é tido em comum recebe expressão concreta. É aquilo que existe no indivíduo e em mais ninguém. Quando o conceito de hipóstase é empregado na doutrina da Trin­ dade, indica-se por ele que as três pessoas possuem suas próprias qua­ lidades e atributos peculiares, pelos quais se distinguem uma da outra e aparecem cada uma em sua forma especial de existência. Ao mesmo tem­ po, todas participam da mesma essência divina. Esta apresentação da dou­ trina da Trindade é geralmente resumida nas palavras: «uma essência, três pessoas». Quando perguntados sobre o que distingue as três hipóstases, os capadocianos respondiam referindo-se à relação que existe entre elas. O Pai é agénneetos (não gerado); o Filho é gerado pelo Pai; e o Espírito Santo procede do Pai através do Filho (Gregório de Nazianzo, Orationes, 25, 16). Aquilo que caracteriza as pessoas, uma em relação à outra, também foi descrito com referência à atividade divina: o Pai é a fonte (aítios), o Filho é o que realiza a obra (deemiourgós), e o Espírito é aquele que a completa (teleiopoiós). (Gregório de Nazianzo, Orationes, 28, 1). O ponto em que os capadocianos foram além de Atanásio dizia res­ peito, em particular, à distinção entre ousia e hipóstase. Ao fazer esta dis­ tinção, os capadocianos procuraram (com o auxílio de terminologia filosó­ fica) descrever o que caracteriza a natureza divina e as três pessoas em si, independentemente da atividade externa da Trindade. O único resultado disso foi certo número de distinções formais que, à luz da fé cristã, pa­ recem se r conseqüências necessárias. O que estes homens aí tentaram fazer foi elucidar o que vai além dos limites do conhecimento humano, e que, portanto, não pode se r exposto mais claramente.

AGO STIN HO E A D O U TRIN A DA T R IN D A D E O CRED O A TA N ASIA N O No que tange à teologia oriental, os capadocianos chegaram a for­ mular a doutrina da Trindade de modo mais ou menos definitivo. D esen­ volvimento correspondente também ocorreu no Ocidente, em parte como resultado da influência da teologia oriental. Agostinho, mais que qualquer outro, deu forma definitiva à posição ocidental neste ponto, especialmente em seu livro De Trinitate. A teologia de Agostinho forneceu a base para a posição trinitária encontrada no Credo Atanasiano, o último dos três C re ­ dos Ecumênicos.

Os três capadocianos salientaram as três hipóstases em particular,

e seu principal problema era, pois, referente à unidade da essência divina. >sío caracteriza o ponto de vista oriental, com seu conceito mais estático, abstrato de Deus. O problema, naturalmente era este: Como pode toda a essência divina encontrar-se em três existências distintas? Este proble­ ma fizera surgir a antiga teologia subordinacionista, e a contribuição dos capadocianos foi exatamente esta, que chegaram à posição de «uma substân­ cia» (como fizeram Atanásio e o Credo Niceno) e, ao mesmo tempo, enfa­ ticamente proclamaram a distinção entre as três pessoas. Agostinho, que representa o ponto de vista ocidental, desenvolveu sua posição trinitária com base na única essência divina. O que tentou esclarecer foi que a unidade divina é constituída de tal modo que inclui as três pessoas, e que o caráter «trino» de Deus está implícito nesta uni­ dade. Descreveu a triunidade como relação internamente necessária entre as três facetas da única essência divina. Isto, para Agostinho, era mistério inefável, que o homem nesta vida jamais pode compreender inteiramente, muito menos descrever em termos conceptuais. Mas Agostinho empregou analogias tomadas de realidades humanas num esforço para demonstrar a relação correspondente de três com um, na mesma entidade. Certos fenômenos humanos, em especial a estrutura da alma humana, foram usados para simbolizar (embora muito imperfeita­ mente) a realidade intertrinitária. Assim , Agostinho dizia, por exemplo, que o amor implica na relação daquele que ama com o objeto do amor. Isto sugere uma relação entre os três seguintes: aquele que ama (amans), o que é amado (quod amatur), e o próprio amor (amor). Relação correspon­ dente encontra-se na divindade entre Pai, Filho e Espírito. O que é peculiar a esta relação é que tanto sujeito como objeto estão dentro da mesma essência indivisível. O Pai gera o Filho, o Pai ama o Filho, etc. De acordo com Agostinho, há algo análogo a isto na vida espiritual do homem. A própria ação de observar envolve três elementos que estão necessaria­ mente relacionados entre s i: há o objeto observado (re s), a própria visão (visio) e a intenção da vontade (intentio voluntatis). A mesma relação se diz existir entre pensamento, intelecto e vontade no ato de conhecer. O conteúdo do pensamento está presente, de alguma maneira, na alma; este, por seu turno, é considerado e recebe forma pela habilidade intelectual da pessoa, que se volta para o objeto pelo poder da vontade (memória — interna visio — voluntas). A vida da alma também compreende uma «tríade»: memória, inteligência e vontade. E aqui podemos ve r a mesma unidade entre sujeito e objeto que Agostinho encontrou dentro das relações intertrinitárias. A alma está ciente de si, possui conhecimento de si, e ama a si; em outras palavras, o objeto de sua atividade se encontra, em parte, dentro de si. É, simultaneamente, sujeito e objeto em ações autoconscientes e de amor a si mesma.

Agostinho não diz que estas analogias são perfeitas — que esclare­ cem todos os mistérios relacionados com o conceito trinitário. Em grande parte, sua apresentação foi desenvolvida na forma de especulações sobre a realidade intertrinitária. Foi assim que surgiu nova etapa de desenvolvi­ mento que ultrapassou a concepção «econômica» da Trindade que fora a forma original da doutrina dos «três em um». Agostinho salienta, energi­ camente, a unidade do S e r Divino e tentou mostrar como a Trindade está implícita na unidade e vice-versa. Esta convicção fundamental também se encontra no Credo Atanasiano que, na realidade, se baseia na teologia de Agostinho, embora, gradualmente, fosse revestido com a autoridade de Atanásio. Este credo é uma afirmação em forma de hino e, provavelmente, foi composto durante o quinto ou sexto século, de certo por algum discípulo de Agostinho. É bom sumário da doutrina da Trindade como foi formulada pela igreja antiga. O desenvolvimento do dogma cristão, como esboçado até esta altura, constitui a origem deste credo, que, em sentenças breves e concisas, resume a posição da igreja alcançada durante as controvérsias trinitárias e cristológicas. Este Symbolum quicunque (como é denominado, devido a suas pala­ vras iniciais) apresenta, em sua primeira parte, uma interpretação da dou­ trina da Trindade: «E a fé católica é esta, que adoremos um único Deus na Trindade e a Trindade na Unidade; sem confundir as pessoas, nem di­ vidir a substância.» A distinção entre as pessoas é ressaltada: «Pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo.» Igual­ mente o é a unidade da essência divina: «Mas a divindade do Pai, do Fi­ lho e do Espírito Santo é uma só: a glória é igual, a majestade coeterna.» Todas as três pessoas participam da essência divina e suas qualidades: ♦incriado» — «incomensurável» — «eterno». E ainda assim não são três se ­ res incriados, incomensuráveis e eternos; não há três D euses; mas há um único Deus. Cada pessoa deve se r reconhecida como Deus e Senhor, mas isto não significa que há três Deuses ou três Senhores. A fórmula seguinte descreve as relações existentes entre as pessoas: «O Pai por ninguém foi feito, nem criado e nem gerado; o Filho provém apenas do Pai e não foi feito, nem criado mas gerado; o Espírito S a n t o .. . procede do Pai e do Filho.» .segunda parte do credo trata da cristologia.

í*T. A encarnação era apresentada como transmutação da Deidade na' natureza hyrn3r&- Mas em virtude do fato que a essência divina é imutável, isto significa que a natureza humana foi elevada ao nível da divina, foi ^ ^ A ransm iitada ,^q natureza divina. Concebida desta maneira, a união, julga­ va-se que ela não só abrangia atividade e vontade, mas a própria substân­ cia. Era, em outras palavras, união substancial, física, em que as qualida­ des da natureza humana desapareciam.

N ES T Ó R IO E Ç IR IL O •

A oposição entre os alexandrinos e os antioquianos foi a origem do amargo conflito que teve lugar entre Nestório e Cirilo no início do século V . É preciso que se diga, no entanto, que política eclesiástica e ambições pessoais também influíram consideravelmente. Alexandria competiu com Antioquia, e em especial com Constantinopla pelo domínio eclesiástico do Oriente, e nesta luta pelo poder entraram também questões teológicas. O Sínodo de Éfeso (431) decidiu em favor da teologia alexandrina, e Nestó­ rio, que sustentava a posição contrária, foi declarado herege e condenado ao exílio. Uma vez feito isto, todo o partido nestoriano separou-se do res­ tante da igreja. O s nestorianos então organizaram sua própria igreja na Pérsia, e se propagaram por toda a Á sia, mas estiveram condenados a uma existência isolada. Pequenas congregações nestorianas, contudo, existem ainda hoje (cf. a Igreja de S . Tomé na India). Nestório, que se tornou patriarca de Constantinopla em 428, era, em geral, representante da escola teológica de Antioquia. O veredito da histó­ ria sobre Nestório e suas obras mudou completamente. Em vista do aná­ tema lançado sobre ele, por seus contemporâneos, em geral se concluiu que ele levara o ponto de vista antioquiano um pouco longe demais e que, como resultado, chegara a uma falsa cristologia. Imaginou-se que ele en­ sinara uma doutrina de «dois C ristos», um divino e outro humano, invali­ dando, deste modo, a fé cristã. Foi assim que o epíteto «herege» foi lan­ çado sobre Nestório, e foi considerado o protótipo do ponto de vista que apresenta uma falsa antítese entre o divino e o humano. Durante a época da Reforma, por exemplo, a Igreja Católica Romana era acusada de ensinar cristologia nestoriana. Em nossa época, poder-se-ia apontar a atitude que freqüentemente forma a base para a abordagem cien­ tífica à teologia; caracteriza-se por uma concepção ambivalente da teolo­ gia, de um lado usa a história como ponto de partida, e de outro faz uso da experiência religiosa. Distinção semelhante se faz entre o Jesus histó­ rico e Cristo, o Filho de Deus. Estas tentativas de resolver a questão do relacionamento entre teologia e ciência nos lembram, de certo modo, a Nestório e os elementos básicos de sua cristologia. A pesquisa moderna nos apresentou uma avaliação de Nestório que contrasta flagrantemente com a tradição antiga. A cesso mais adequado a fontes primárias tornou possível esta reavaliação. Agora se diz que Nes­ tório foi mal compreendido e interpretado erroneamente por seu adversário Cirilo, e que foi isto, juntamente com a política eclesiástica, que provocou o conflito entre os dois. Diz-se que na realidade a teologia de Nestório era semelhante à da antiga escola de pensamento de Antioquia e que não possuía tendências heréticas. Segundo Seeberg: «Nenhum dos grandes ‘hereges’ da história do dogma ostentaram este nome tão injustamente co­

mo Nestório» (Lehrbuch der Dogmengeschichte, II, 2a. ed., 204). Seeberg e Loofs foram os que mais se esforçaram para reabilitar Nestório. Nesta conexão, é preciso dizer, contudo, que estes dois historiadores do dogma representam um ponto de vista teológico que mais se aproxima de Nestório e da escola de Antioquia doque da de Alexandria. A cristologia antioquiana, com sua ênfase no Cristo histórico e na uniãomoral dos elementos divino e humano, foi considerada mais defensável, do ponto de vista científico, que a cristologia alexandrina com sua ênfase na união físi­ ca das duas naturezas ou a deificação da carne. A cristologia antioquiana se adapta melhor ao ponto de vista científico, e é isto que explica, pelo menos em parte, a mudança de veredito sobre Nestório. É óbvio, entretanto, que seus ensinamentos foram mal interpretados pelos seus adversários no calor do conflito, e também que a luta contra ele não foi motivada inteira­ mente por considerações teológicas. A diferença entre a teologia de Nes­ tório e a teologia dos antioquianos anteriores não era tão grande como seus adversários reivindicavam ser. O fundamento da cristologia de Nestório era o mesmo que o dos teó­ logos anteriores de Antioquia; todos insistiam que as naturezas divina e humana em Cristo não devem ser confundidas, devem ser consideradas co­ mo completamente distintas. O ponto crucial em questão entre Nestório e seus adversários relacionava-se com esta doutrina fundamental, embora em si parecesse que este ponto era apenas pormenor insignificante. Os teó­ logos alexandrinos também se referiam à Maria como theotókos (a mãe de Deus). Havendo em Cristo a união física de Deus e homem, argumentavase que Cristo, que nasceu de Maria, deve ser chamado Deus, e Maria deve ser denominada «a mãe de Deus». Esta conclusão harmonizava-se com a adoração à Maria que estava crescendo naquela época. Outros fatores con­ tribuíram para o mesmo desenvolvimento. Dizia-se, por exemplo, que Maria não fora contaminada pela mácula do pecado original; também se afirma­ va que permanecera virgem durante toda sua vida. Mas Nestório opôs-se à expressão theotókos; Maria, dizia ele, deu à luz ao filho de Davi, no qual o Logos passou a residir. O elemento divi­ no em Cristo não se encontrava em sua natureza humana; estava presente apenas porque o Logos se unira a este homem. Esta união, segundo Nes­ tório, tivera lugar por ocasião do nascimento de Cristo. Ao dizer isso, Nes­ tório combatia os monarquianos dinamistas que diziam que isto só aconte­ cera por ocasião do batismo. Por ensinar sobre este ponto como o fazia, era impossível a Nestório referir-se á Maria como theotókos. No máximo, dizia, pode-se denominá-la xristotókos. Em vista disso, Nestório foi acusado de negar a divindade de Cristo. S e Cristo viveu, sofreu e morreu apenas como homem, então a salvação conquistada por ele não tem valor. A teologia antioquiana anterior susten­ tava que o elemento humano se unira ao divino em Cristo de maneira mo­

ral, espiritual, de modo que era verdadeiramente uma pessoa. Mas que dizia Nestório a respeito disto? Ele também falava de Cristo como sendo uma pessoa, mas tinha a tendência de distinguir entre as naturezas a tal ponto que não havia unidade real na pessoa de Cristo. Dizia, por exemplo: «Distingo entre as naturezas, mas adoro apenas um (Cristo).» Isto não im­ plica em unidade real no próprio Cristo. Dizer: «Adoro apenas um (C ris ­ to)», implica antes em unidade subjetiva por parte do crente. Tenha Nestório merecido ou não a alcunha de herege, a verdade é que sua linha de pensamento tornava difícil qualquer afirmação clara sobre a unidade da pessoa de Cristo. A s naturezas divina e humana ficavam in­ flexivelmente lado a lado. Pode-se citar Nestório como tendo dito que ce r­ tas características e fatos na vida terrena de Jesus eram puramente huma­ nos, enquanto em outros os poderes divinos estavam presentes. Mas, com base no que ensinava, era impossível expressar, de maneira adequada, a união simultânea dos elementos divinos e humanos em Cristo. Como já mencionamos, o principal adversário de Nestório foi Cirilo, o patriarca de Alexandria, que também era seu competidor na luta pelo do­ mínio eclesiástico na Igreja Oriental. Cirilo era representante da escola teo­ lógica de Alexandria, mas não era tão unilateral como Apolinário, nesta ques­ tão. Procurava, acima de tudo, reunir os conceitos básicos da teologia antioquiana com os tipicamente alexandrinos. Mas foi implacável em sua opo­ sição a Nestório, e publicou declaração contra Nestório que incluía uma dúzia de anátemas. No Concílio de Éfeso sua posição triunfou. Neste, o conceito alexandrino theotókos foi aceito, enquanto que o ponto de vista nestoriano foi rejeitado. Em contraste com Apolinário, Cirilo enfatizava que Cristo é homem completo, com alma humana. Ambas as naturezas encontram-se nele, cada uma delas retendo suas próprias qualidades. Como os antioquianos, por­ tanto, Cirilo salientava que há duas naturezas completas em Cristo e que não são transformadas ou confundidas entre si. Mas em contraste com Nestório, Cirilo insistia que há união verda­ deira, substancial entre as duas naturezas em Cristo. Rejeitava a idéia de união moral ou devocional. Um de seus anátemas contra Nestório é o se ­ guinte: «Aquele que não confessa que o Logos veio de Deus Pai para se unir hipostaticamente com a carne, para formar, com a carne, um Cristo, Deus e homem, seja amaldiçoado.» Se não foi o próprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo, de modo que o próprio Deus assim sofreu e mor­ reu, ele não pode se r nosso Salvador. O ponto de vista de Nestório tornou impossível a verdadeira divindade de Cristo, e dessa maneira também a salvação por meio dele. Cirilo descreveu a união entre Deus e homem como união física ou substancial. O cerne da questão se encontra em suas palavras «união com respeito à hipóstase». Esta expressão pode parecer corresponder à doutri­

na da união pessoal, unio personalis. Mas nos escritos de Cirilo a palavra «hipóstase» não significa «pessoa», como na doutrina da Trindade; ér antes( empregada como sinônimo de ousia. Esta expressão, portanto, sugere o mesmo que as palavras «união com respeito à essência». O que Cirilo aí está tentando dizer é que se trata de união real, implícita na própria natu­ reza da questão, em Cristo mesmo, e não simplesmente em nosso culto a ele. Cirilo, em outras palavras, tomou de empréstimo as palavras de Apolinário, que dissera: «O Logos de Deus tem apenas uma natureza, aquela que se fez carne». Visto Cirilo afirmar, ao mesmo tempo, que as duas naturezas precisam manter sua identidade separada, surgiu uma contradição em sua cristologia. Colocou o ensinamento antioquiano de duas naturezas distintas (com­ pletas, com ênfase na verdadeira humanidade de Cristo) ao lado da idéia alexandrina de união física. O mesmo paradoxo se encontra na fórmula cristológica que foi finalmente fixada e aceita como definitiva, mas em C i­ rilo esta concepção não está tão nitidamente delineada. Seu ponto de vista foi reconhecido como plenamente ortodoxo, mas, ao mesmo tempo, também foi possível a monofisitas posteriores a aceitação de algumas de suas fór­ mulas. Na controvérsia doutrinária que precedeu o Concilio de Calcedônia de 451, foram os pontos de vista de Nestório e Cirilo que constantemente lu­ taram pela supremacia. O terceiro elemento importante nesse conflito foi a posição cristológica ocidental, que fora desenvolvida por Hilário, Ambrósio e Agostinho. Suas idéias, e a maneira como foram apresentadas, exer­ ceram influência decisiva sobre a eventual formação do ponto de vista ecle­ siástico oficial. Mesmo Tertuliano já ensinara ter Cristo duas naturezas em uma pessoa. A teologia ocidental desenvolveu este conceito dizendo que é o Logos que constitui a pessoa de Cristo, que assumiu a natureza humana e se uniu a ela e agiu através dela. Cristo, portanto, é apenas uma pessoa, e esta pessoa leva a marca da natureza divina. Tais idéias são semelhantes ao ponto de vista alexandrino. Ao mesmo tempo, entretanto, os ocidentais enfatizavam a distinção entre as duas naturezas.

E U T IQ U E S ; O CO N CILIO DE C A LC ED Ô N IA Eutiques, abade de um mosteiro em Constantinopla, em geral concor­ dava com a escola teológica de Alexandria e se opunha energicamente à cristologia antioquiana. Dizia que Cristo, depois de se tornar homem, tinha apenas uma natureza. Sua humanidade, contudo, não era da mesma essên­ cia que a nossa. Com base nestas doutrinas, Eutiques foi excomungado em Constantinopla. A questão foi finalmente trazida perante o papa Leão I. Foi convocado um sínodo geral para reunir-se em Éfeso em 449, e lá, com a colaboração do partido de Alexandria, Eutiques foi reinstalado em seu car­

go. A atitude papal nesta questão, 'que foi exposta numa carta ao bispo Flaviano de Constantinopla, nem mesmo foi discutida. Este é o sínodo que na história da igreja é lembrado como o «sínodo dos ladrões». Recebeu este nome por causa de seu transcorrer tumultuado, e nunca foi reconhe­ cido como concílio ecumênico. Após o «sínodo dos ladrões», a já mencionada carta do papa Leão adquiriu importância cada vez maior. Era objetivo de Leão convocar nova reunião que desfizesse as decisões tomadas em Éfeso. Como conseqüên­ cia, foi realizado outro sínodo em 451, em Calcedônia. A esta altura, a si­ tuação tinha mudado com vantagem para o papa, e sua carta serviu de base para os trabalhos em Calcedônia. Neste concílio o ponto de vista alexan­ drino foi repudiado energicamente, enquanto se louvou a posição ocidental de Leão. Entretanto, a carta do papa não foi expressamente aprovada pelo concílio; em vez_ disso, decidiu-se escrever nova fórmula de teor claramen­ te ocidental. Esta fórmula rejeitava, não apenas Nestório, mas também Eutiaues, o que quer dizer que repudiava tanto o diofisitismo extremado como o monofisitismo radical. Por um lado, Calcedônia condenava os que pro­ clamavam «dois filhos», e por outro, os que presumiam a existência de «duas naturezas antes da união, mas uma só depois da união». A decisão de Calcedônia é o resultado final das várias controvérsias surgidas, e constitui o resumo confessional do desenvolvimento teológico que floresceu na esfera cristológica. Um relance a várias sentenças deci­ sivas da fórmula revelará como Calcedônia se relaciona com pontos de v is ­ ta anteriores, e como as diferentes controvérsias foram solucionadas; «Con­ fessamos um e o mesmo Filho (contra Nestório, que distinguia a tal ponto entre o filho de Davi e o Filho de Deus de modo a se acreditar que ele en­ sinava a existência de «dois filhos»), nosso Senhor Jesus Cristo, que é per­ feito em sua divindade (contra o dinamismo, Ario e Nestório) e perfeito na h u m anidad e... com alma racional e corpo (contra Apolinário, que substi­ tuía a alma humana de Cristo pelo Logos e ensinava que o Logos assumira «carne celestial»), de uma essência com o Pai segundo a divindade (cf. o Credo Niceno) e da mesma essência que nós segundo a humanidade (con­ tra Eutiques), igual a nós em todas as coisas,exceto que não tinha pecado; que segundo sua divindade foi gerado peio Pai antes de todos os tempos, e que segundo sua humanidade nasceu da Virgem Maria, a mãe de Deus (Cirilo versus Nestório; cf. Éfeso, 431) para nossa salvação; um e o mes­ mo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, revelado em duas naturezas (a cristologia ocidental) sem confusão, sem modificação (contra Eutiques — e opi­ niões anteripres como a de Apolinário), indivisivelmente e inseparavelmente, sendo a distinção das naturezas de nenhum modo eliminada pela união, sen­ do preservadas as propriedades de cada natureza, convergindo elas numa pessoa) uma hipóstase, não separadas ou divididas em duas pessoas, mas um e o mesmo Filho e Unigénito de Deus, Logos, o Senhor Jesus Cristo.»

O significado do Concílio de Calcedônia foi realmente extraordinário. O objetivo da decisão aí alcançada foi o de combinar as posições alexan­ drina e antioquiana. Nestório foi condenado, mas nenhum outro antioquiano o foi. A s doutrinas de Eutiques foram repudiadas, mas as de Cirilo fo­ ram reconhecidas como ortodoxas. O s homens reunidos em Calcedônia ti­ nham em mente um alvo mais elevado ainda.- o de reunir pontos de vista orientais e ocidentais em conexão com estas questões dogmáticas. O pa­ pa Leão I, que deu um toque ocidental ao desenvolvimento da cristologia, exerceu grande influência sobre a decisão alcançada em Calcedônia. Foi aí, portanto, que idéias de Roma, Alexandria e Antioquia foram combinadas numa formulação doutrinária comum e ortodoxa.

S E V E R O ; M ONOFISITISM O Prolongadas controvérsias doutrinárias surgiram como conseqüência dó Concílio de Calcedônia. Estas foram condicionadas, em parte, por mo­ tivos políticos, mas a posição teológica sancionada em Calcedônia também contribuiu para inflamar os ânimos. Numerosos grupos, especialmente na área da Igreja Oriental, se opuseram a certas expressões da fórmula calcedoniana. Acreditava-se que Calcedônia fizera concessões à doutrina de Nes­ tório de duas pessoas em Cristo, negando assim a unidade da pessoa de Jesus. Alguns foram a ponto de dizer que o Cristo descrito na fórmula de Calcedônia era um «ídolo de duas faces». Como resultado desta oposição, surgiu a assim chamada escola monofisita, que pode se r dividida em dois grupos principais. Um destes re­ presentava a posição moderada e se desviava pouco da cristologia ortodo­ xa,' embora deixasse de reconhecer a decisão calcedoniana. Seu principal porta-voz era Severo de Antioquia, cuja posição teológica era semelhante à de Cirilo de Alexandrina. A fórmula citada acima (p. 82), que afirma que o «Logos de Deus só tem uma natureza, a saber; a que se fez carne», foi interpretada por Severo de maneira tal que a palavra «natureza» corres­ pondia mais ao conceito de hipóstase, ou «pessoa», que ao uso feito pelo Credo de Calcedônia do termo «natureza» (que significa «essência», ou ♦substância»). Como resultado, a concepção de Severo não excluía o que a igreja ensinava relativamente às duas naturezas. Também mantinha a dou­ trina que Cristo é verdadeiro homem. No outro ramo monofisita encontramos uma linha de pensamento que nos faz lembrar Apolinário de Laodicéia ou o eutiquianismo que fora rejei­ tado pelo Concílio de Calcedônia. O s que sustentavam essa posição mo­ nofisita partiam da idéia que Cristo, em sua humanidade, não podia ter a mesma natureza que nós; em lugar disso, acreditavam que transmutara sua natureza humana para torná-la igual à natureza divina. Eram, aparentemen­ te, incapazes de fazer justiça à verdadeira humanidade de Cristo, sem pen-

sar que a carne se deificara de um modo ou de outro. Assim , conforme uma teoria, o corpo de Cristo foi glorificado e exaltado a um estado de incorruptibilidade desde o início da encarnação. Em outras palavras, o cor­ po de Cristo antes de sua ressurreição era o mesmo que seria depois dela. Esse ponto de vista, freqüentemente cognominado «docetismo incorruptível», foi sustentado por Julião de Halicarnasso, entre outros. Os monofisitas criticaram a decisão calcedoniana dizendo que era ab­ surdo falar de duas naturezas em Cristo e ainda sustentar que há apenas uma pessoa, ou hipóstase. Natureza ou essência necessariamente também significa hipóstase independente. Não se poderia falar de natureza huma­ na perfeita sem também pensar nela como existência pessoal independen­ te. Se é preciso pressupor que há duas naturezas, isto implica (diziam os monofisitas), naturalmente, que também se está pensando em duas pessoas. Esta crítica teve seu efeito na interpretação da fórmula calcedoniana. Um dos resultados foi que nos anos seguintes notou-se a tendência de en­ fatizar mais a unidade da pessoa de Cristo. Desta maneira, a decisão cal­ cedoniana reconquistou seu domínio; a posição monofisita deixou de triun­ far. Apesar disso, é verdade que, até certo ponto, ao menos, o problema suscitado pelos monofisitas não foi completamente solucionado. Ainda per­ manecia a pergunta: Como pode a crença nas duas naturezas coadunar-se com a crença em uma pessoa ou hipóstase?

LEÔ N CIO D E B IZ Â N C IO ; A C O N T R O V É R S IA M O N O TELETA Uma resposta ao principal problema do conflito monofisita foi dada por Leôncio de Bizâncio (m. 543). Procurou ajuda na filosofia de Aristóte­ les; realmente, foi um dos primeiros teólogos cristãos a fazê-lo. Em sua cristologia, no entanto, tomou de empréstimo a terminologia dos três capadocianos, e contribuiu com a idéia da «enhupostasis» como solução para a divergência entre os pontos de vista monofisita e diofisita. Principiou com os antigos conceitos empregados na doutrina da Trin­ dade, fúsis (=ousía) e hupóstasis (=prósoopon). Fúsis indica o «ser» de uma coisa — isto é, que ela é, que é constituída de certa maneira. Refe­ re-se ao que faz uma coisa se r o que é. O conceito de hipóstase indica que algo existe por si mesmo, como sujeito independente. Estes conceitos já estavam em uso anteriormente. Na formulação cristológica, portanto, Cristo era apresentado como tendo duas naturezas (essências) em uma hi­ póstase (pessoa). O problema, portanto, é o seguinte: Pode haver uma «natureza» que é perfeita com respeito a sua própria espécie e que, apesar disso, não é hipóstase independente? Leôncio tentou resolver o problema usando o conceito de enhupostasía. É concebível que haja uma natureza

que não possua existência independente mas que exista em outra. Há em Cristo apenas uma hipóstase, e esta é a hipóstase do Logos, que existe desde a eternidade e que, no tempo, assumiu a natureza humana. Portanto, o Logos tornou-se a hipóstase do homem Cristo também, de modo que a natureza humana de C risto tem sua hipóstase em outra, a saber, a do Lo­ gos (enhupóstatos). Esse tipo de cristologia possibilitava uma aproximação à posição monofisita. É o Logos que constitui a pessoa de Cristo, que providencia a hi­ póstase mesmo para a natureza humana. Esta natureza humana tem exis­ tência independente, mas está incorporada, por assim dizer, no Logos. Isto não nega, entretanto, o fato que a natureza humana de Cristo seja com­ pleta, composta tanto de corpo como de alma. Essa teologia da «enhupostasis» foi aprovada pelo Quinto Concílio Ecumênico (de Constantinopla, 553) e considerada interpretação correta da decisão de Calcedônia. Como resultado disso, os monofisitas obtiveram uma espécie de aprovação parcial para suas concepções. Contudo, não se satisfizeram com a solução proposta por Leôncio. Sua posição foi apre­ sentada de maneira puramente lógica, enquanto os monofisitas desejavam expressar uma união física. Posteriormente os monofisitas seguiram seu próprio caminho e organizaram sua igreja que se encontrava principalmente na Síria, Palestina e Egito. Várias igrejas nacionais no Oriente chegaram a ter caráter monofisita: a Armênia, a Síria (Jacobita), a Egípcia (Copta) e mais tarde a igreja na Abissínia. Em geral, foi o ramo mais moderado do monofisitismo (o representado por Severo) que influenciou as igrejas nes­ tas regiões. Depois de ter a controvérsia monofisita chegado a seu desfecho, surgiu o assim chamado conflito monoteleta. Seu principal problema foi: Possui Cristo uma vontade ou duas? Deve-se salientar, nesta conexão, que o problema cristológico (como refletido neste conflito) já se afastara de considerações puramente m etafísicas; eram introduzidos agora também fa­ tores psicológicos concretos. Isto, no entanto, não resultou em maior cla­ reza. O s monoteletas aceitavam a doutrina das duas naturezas, mas in sis­ tiam que Cristo tinha apenas uma vontade — a do Logos divino. Procura­ ram desta maneira fazer justiça à unidade psicológica que caracteriza o quadro bíblico de Cristo. A vontade, sustentavam, pertence à pessoa e for­ ma uma faceta de sua essência. Os dioteletas, diziam, por sua vez, que tal posição aproximava-se muito do docetismo. Quando se crê que Cristo pos­ sui natureza humana completa, isto pressupõe que também tem vontade puramente humana, como sua natureza divina tem vontade divina. O s que sustentavam essa posição também acreditavam, no entanto, que a vontade divina dirige a vontade humana e opera através dela, de modo que não há abismo entre ambas. Este ponto de vista foi desenvolvido por Máximo, o Confessor (m. 662), e foi aceito pela igreja no Sexto Concílio Ecumênico (também realizado em Constantinopla, 680-81). Houve a tentativa, neste con­

cílio, de se combinar o dioteletismo com a idéia da enhupostasis, salientan­ do-se assim a independência de ambas as naturezas bem como a existên­ cia da natureza humana na divina. Esta decisão, contudo, não ficou defi­ nida, e não foi reconhecida pelos reformadores do século XVI.

JOÃO DE DAMASCO A posição cristológica da igreja antiga foi de certo modo completada por João de Damasco, que viveu no século VIII (os anos de seu nascimen­ to e morte são desconhecidos). Mais do que qualquer outro, sintetizou a tradição que posteriormente se tornaria a norma na Igreja Ortodoxa Grega. Também exerceu profunda influência no Ocidente. João de Damasco repe­ tiu a teologia dos pais da igreja antiga e a apresentou em forma padroni­ zada com o auxílio do aparato filosófico que empregou. Sua obra clássica é A Fonte do Conhecimento, e compõe-se de três partes distintas. A pri­ meira parte tem forma dialética e só trata de questões filosóficas; a se ­ gunda lida com heresias; enquanto a terceira é a parte dogmática: «Ex­ posição da Fé Ortodoxa». Esta última parte eventualmente chegou a se r­ vir de norma dogmática na Igreja Grega. João de Damasco estava familiarizado com a filosofia aristotélica é neoplatônica, e tomou de empréstimo formas de pensamento e conceitos de ambas. Estes eram empregados como fundamento de seu sistema teo­ lógico. Em outras palavras, empregou metodologia escolástica; foi o pri­ meiro a fazê-lo no campo da dogmática. Na maior parte dos casos, reuniu as idéias do passado e lhes deu forma mais específica, sem pretender ser original. As adaptações escolásticas são a maior contribuição deste mestre. Na longa exposição de sua cristologia associa-se a Leôncio de Bizâncio e Máximo, o Confessor. João de Damasco ressaltou com vigor a unidade da pessoa de C ris ­ to: «A hipóstase do Logos de Deus é perpetuamente uma só.» Essa uma hipóstase é, ao mesmo tempo, a hipóstase do Logos e da alma e corpo humanos. Acreditava, em outras palavras, que a natureza humana existe na divina e não tem existência pessoal independente. Ao mesmo tempo, João de Damasco também enfatizava a diferença entre as duas naturezas e sustentava o ponto de vista dioteleta. Conside­ rou cuidadosamente o problema da relação que há entre as duas nature­ zas e contribuiu com algumas idéias novas neste setor. Em vista da uni­ dade da pessoa, ocorre uma «penetração mútua», pela qual o Logos assu­ me a natureza humana e então lhe comunica suas qualidades. Assim , po­ de-se dizer, por exemplo, que «o Senhor da glória» foi crucificado, ou, por outro lado, que o homem Jesus é incriado e infinito. Desta maneira, ambas as naturezas retêm sua peculiaridade e distinção.

João também expressou, energicamente, algo que às vezes parece con­ tradizer o que disse sobre a idéia da «penetração mútua». Pois acreditava que apenas a natureza divina tinha penetrado a humana, e não vice-versa. Fez isto para salientar o fato que a divindade, como tal, deve permanecer inalterada, intocada por sofrimento e morte. O s raios do sol que brilham so­ bre uma árvore não são afetados quando a árvore é cortada. Assim acon­ tece com Deus; está acima do sofrimento que Cristo experimentou. Se alguém pergunta sobre as naturezas em sentido abstrato (como «divinda­ de» e «humanidade»), devem ser distinguidas nitidamente; o divino não se torna humano e o humano não se torna divino. Mas quando se olha para Cristo como pessoa real, a unidade das naturezas é evidente. É total e completamente Deus e, ao mesmo tempo, total e completamente homem — no que tange à identidade e unidade de sua pessoa. O que realiza esta união, portanto, é a hipóstase do Verbo, que também se torna a hipóstase da natureza humana manifestada em Cristo. O retrato de Cristo que en­ contramos em João de Damasco também se reflete, de certo modo, na ico­ nografia da Igreja Ortodoxa, em que as qualidades transcendentais e ma­ jestosas aparecem claramente. O papel desempenhado pelo simbolismo corresponde ao grau em que a transcendência absoluta da divindade é enfatizada. Não foi mera coinci­ dência que a teologia de João de Damasco passou a defender o culto a gravuras (isto não implica em culto no seu sentido verdadeiro, antes sugere adoração e veneração). Símbolos servem para mediar a divindade; são acessíveis aos sentidos e representam aquilo que é invisível, celestial. G ra­ vuras representam, num sentido real, o divino e, como tais, podem tornarse objeto de adoração. Depois de longo conflito entre os partidos opostos na Igreja Oriental (Bizantina) (alguns se opunham vigorosamente à adora­ ção de gravuras), decidiu-se no Concílio de Nicéia, em 787, que esse cos­ tume era aceitável (cf. abaixo, p. 128).

CAPÍTULO 10 O DESEN VO LVIM EN TO DO CONCEITO DE IG R EJA

Como já vimos, a teologia em geral adquiriu forma no conflito com pontos de vista heréticos ou divergentes. Assim também aconteceu com o conceito de igreja; desenvolveu-se, em parte ao menos, como resultado da oposição do gnosticismo e outras escolas de pensamento estranhas. O desenvolvimento que teve lugar nesta área, durante o primeiro pe­ ríodo da história da igreja, resultou no surgimento de um padrão mais ní­ tido de organização eclesiástica e também na elaboração de idéias desti­ nadas a justificar e apoiar essa consolidação externa da vida congregacional. Ao mesmo tempo, diferentes conceitos sobre a essência da igreja, sua santidade e sua relação com a organização externa estavam rivalizando uns com os outros. Inácio, que foi executado pelos romanos no início do segundo século, salientou a importância do cargo do bispo como vital à defesa da igreja. Os gnósticos, com suas doutrinas falsas, ameaçavam destruir a fé e a uni­ dade da igreja. Portanto, os fiéis eram convocados para cerrar fileiras em torno dos bispos, que sucederam os apóstolos como dirigentes das con­ gregações. Os bispos assumiram e ssa posição porque representavam a tradição apostólica e, dessa maneira, garantiam a pureza da doutrina em conexão ininterrupta com os apóstolos. É por ordem divina que cada con­ gregação se une em torno de um cabeça comum, assim como os apóstolos se uniram em torno dé Cristo. A igreja é uma, santa e universal porque preserva a verdadeira tradição apostólica. E esta unidade se expressa nos bispos. Outra idéia atribuída a Inácio é que a unidade da igreja se explica pelo fato de se r ela o único administrador dos meios da graça. O s sacra­ mentos constituem a igreja tão bem como a Palavra, a doutrina pura, e e s­ tes obrigam os fiéis a se manterem unidos em torno do ofício episcopal. Outros teólogos expressaram estas mesmas idéias, que representam a an­ tiga tradição oriental (por exemplo: Irineu). O conceito romano de igreja, por sua vez, foi desenvolvido mais tar­ de e especialmente em solo ocidental. A questão da igreja adquiriu impor­ tância extraordinária também no Ocidente, mas por outro motivo que no Oriente. O desenvolvimento do conceito de igreja no Ocidente foi condi­ cionado por vários problemas relativos tanto à teoria como à praxe ecle­ siástica. O conceito romano tomou forma como resultado de prolongadas discussões em torno de problemas tais como penitência, a santidade da igreja e a validez do batismo de hereges.

Os aspectos básicos da teoria e praxe da penitência que caracteri­ zaram a igreja antiga reapareceram nos escritos de Tertuliano. Deve-se salientar que esse conceito de penitência é diferente do mantido pelos pro­ testantes. A tradição protestante mais antiga descrevia a penitência como obra de lei e evangelho, pela qual o homem é aterrorizado pela lei e re­ nascido pelo evangelho. A penitência era assim definida em termos de con­ trição e fé. Como Tertuliano a concebia, a penitência era o caminho pelo qual o homem reconquista a paz com Deus. Deus se ira contra o pecador, e pune o pecado segundo sua norma de justiça. Mas em sua graça tornou possível ao homem receber perdão e viver novamente em relação correta com Deus. Essa «escapatória» era a ação da penitência, que era conside­ rada, até certo grau, como obra de mérito, que aplacava a ira de Deus. Compõe-se de contrição, confissão e satisfação. A primeira penitência a s­ socia-se ao batismo, que é uma confirmação do perdão do pecado. Depois de serem batizados os cristãos devem evitar pecados evidentes. Mas, caso acontecer que pequem, podem ser restaurados em virtude de segunda ação de penitência. Acreditava-se que podia haver apenas uma ação de penitên­ cia após o batismo. Originalmente Tertuliano sustentava que uma segunda penitência poderia ser possível, até mesmo para pecados mortais, mas ao ficar montanista insistiu que os que cometeram pecado mortal após o ba­ tismo não podiam realizar ação de penitência. Realmente, foi a posição indulgente da igreja, neste problema, que levou Tertuliano a unir-se aos montanistas. O problema mais delicado relativo à praxe da penitência dizia respei­ to à possibilidade da segunda ação de penitência. Alguns comparavam a penitência a uma prancha na água à qual os cristãos se agarravam depois do naufrágio de sua fé. Mas outros adotaram o ponto de vista mais rigo­ roso de Tertuliano, e sustentavam que para pecados mortais como idolatria, assassinato e adultério, a penitência estava fora de questão. Foi neste contexto que o bispo Calixto de Roma (217-22) promulgou uma ordem permitindo uma segunda penitência, mesmo em casos de peca­ dos mortais. Em vista do fato que Cristo tivera misericórdia da adúltera, julgou que o clero podia prosseguir dando a absolvição a pecados graves (embora não a assassinato e idolatria). Calixto reivindicou para os bispos o direito de assum ir a responsabilidade pela praxe da penitência e de to­ mar as decisões necessárias relacionadas com o caso. A penitência che­ gou a se r considerada, pois, como algo sobre o que a igreja tinha jurisdi­ ção, a qual foi colocada nas mãos dos bispos. Mas Calixto sofreu a oposição de Tertuliano e Hipólito, os quais exi­ giam interpretação mais rígida. Diziam que apenas Deus pode perdoar pe­ cados, e rejeitavam a opinião que os bispos (como sucessores de Pedro) tinham tal poder. A tradição original, mais antiga, se reflete nesta crítica daqueles que se opuseram às tendências hierárquicas, e procuraram ao mes­ mo tempo manter um conceito mais rigoroso de penitência.

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE IGREJA

Foi Cipriano, bispo de Cartago (m. 258), que continuou a desenvolver a doutrina da penitência e lançar as bases para o conceito romano de igre­ ja. A perseguição sob Décio, em meados do terceiro século, suscitou sério problema: Poderiam os que apostataram durante as pressões da perse­ guição ser .recebidos de novo na igreja? Os que podiam apresentar decla­ ração de coirmão que permaneceu firme na fé a ainda assim escapou da morte (os assim chamados «confessores») eram recebidos de volta na con­ gregação naquela época-, pois se julgava que o Espírito Santo habitava neles em medida invulgar. Esse costume ameaçava degenerar, e Cipriano afirmou que apenas os bispos estavam em posição de pronunciar julga­ mento em tais casos. D ecisões arbitrárias, alcançadas sem consentimento episcopal, poderiam prejudicar a igreja. A autoridade da lei e dos regu­ lamentos eclesiásticos sobrepujou a autoridade puramente espiritual dos mártires. Destaca-se Novaciano entre os que se opuseram a Cipriano em Roma. Insistia em praxe mais rígida de penitência e não qireria receber de volta na igreja os que tinham apostatado. Segundo a opinião de Novaciano, a igreja devia compor-se daqueles que eram, sem sombra de dúvida, santos. A santidade da igreja devia encontrar-se não só nos sacramentos mas tam­ bém na santidade de seus membros. Finalmente separou-se da igreja, mas a organização que fundou nunca chegou a se tornar muito significativa. Um sínodo de bispos em Cartago aceitou o ponto de vista de C ipria­ no como sendo o correto. Decidiu-se nele que os bispos têm o direito de julgar se os que apostataram podem ou não ser readmitidos na igreja e ser perdoados. Foi em conexão com este problema que Cipriano desenvolveu sua doutrina da igreja. O elemento novo em seu pensamento não se en­ contra no que disse sobre penitência; é antes isto, que atribuiu autoridade maior aos bispos do que aos confessores, contribuindo assim poderosa­ mente para a centralização da igreja em torno do ofício episcopal. Cipriano não via diferença entre a autoridade deste ofíclO--.e a do_. Espírito Santo; para ele, os bispos são os portadores do Espírito. Espírito e ofício perten­ cem juntos, e os que são verdadeiramente espirituais se subordinarão aos que ocupam o ofício episcopal. Cipriano considerou este oficio a base da Cipriano também apoiava a tendência hierárquica que considerava a ceia do Senhor como ação sacrifical, com o bispo oferecendo o sacrifício a Deus em lugar de Cristo. O bispo, portanto, dirige a congregação como representante de C ris ­ to. Cipriano também acreditava, em conseqüência disto, que cada congre­ gação só podia ter um bispo, uma vez que este ofício representava a uni­ dade da igreja. «Há um homem ao mesmo tempo sacerdote-na iaceja. e iuiz em luaan de Cristo» (Epístola 59 (54), 5). Não queria com isto dizer que o bispo podia dominar os outros; simplesmente queria dizer que cada congregação devia unir-se em torno de um único bispo. Toda a igreja de

Cristo se encontra em cada congregação. Com o correr do tempo, no en­ tanto, suas idéias contribuíram para que os bispos de Roma reivindicassem o «primado». Essa reivindicação começou a ser feita na época de Cipriano e, subseqüentemente, resultou na doutrina papal — que o papa é o vi­ gário de Cristo na terra. Cipriano considerava Pedro o símbolo da unidade da igreja (cf. Mt 16.18). Mas também julgava que os demais apóstolos possuíam o mesmo grau de autoridade. E, em oposição aos que aceitavam o primado romano, referia-se (entre outras coisas) a Gl 2, onde nos é dito que Paulo se le­ vantou contra Pedro e o repreendeu. Mas um dos contemporâneos de Cipriano, o bispo Estêvão de Roma (254-57), concluiu que o bispo de Roma, sucessor de Pedro, o principal após­ tolo, tinha a supremacia sobre todos os demais bispos. Reivindicou e sse poder para si mesmo e dramatizou sua reivindicação exigindo a obediência dos outros bispos, e designando pessoalmente bispos na Gália e na Espa­ nha. Reivindicava a «cátedra de Pedro» com fundamento na sucessão e falava do «primado» do bispo de Roma. Cipriano e outros se opuseram a essa reivindicação, mas Estêvão triun­ fou. Cipriano acreditava ser o bispo a autoridade na igreja; não, contudo, apenas em virtude da sucessão externa, mas também por se r o portador do Espírito. O bispo representava a igreja, e todos os cristãos estavam subordinados a esse ofício. O s que se encontravam fora dessa comunhão não podiam ser cristãos, embora fossem mártires ou de outra forma famo­ sos por sua fé, «porque não há salvação fora da igreja» (Epístola 73 (72), 21) e porque «quem não tem a igreja por mãe não pode ter Deus por Pai».

(De ecclesiae unitate, 6). A validade do batismo realizado por heréticos foi outra questão sig­ nificativa nesta conexão. O s batizados por heréticos, tinham sido correta­ mente batizados, ou deveriam ser rebatizados se voltassem à comunhão da igreja? Opiniões divergentes prevaleciam dentro da cristandade. .C ip ria­ no concluiu, com base em seu conceito de igreja, que o batismo realizado por heréticos não era válido e que as pessoas assim batizadas deveriam ser rebatizadas ao retornarem à igreja. O espírito da regeneração, que o B a ­ tismo outorga, só pode se r con ferido pelo bispo que possui os dons do Espírito. Batismo de hereges não é obra do Espírito, é «imersão sórdida e profana». (Epístola 73 (72), 6). Estêvão de Roma e outros, sustentavam o ponto de vista contrário. Julgavam que o batismo realizado por herege é válido, uma vez que é fei­ to em nome do Deus Trino. O uso de água e das palavras da instituição de Cristo são essenciais ao batismo. Onde água e o nome de Cristo são usados, a ação batismal é eficaz, independentemente da atitude de quem celebra o rito.

Num caso, dava-se ênfase ao episcopado dotado do Espírito como elemento unificador da igreja, no outro ressaltava-se a instituição e o car­ go como tais. Esta última posição coadunava-se melhor com conceito de greja que aos poucos tornou-se o dominante. A questão do batismo de hereges surgiu mais tarde dentro de contexto diferente — no conflito entre Agostinho e os donatistas.

CAPÍTULO 11 AGOSTINHO

C O N SID ER A Ç Õ ES G E R A IS O nome de Agostinho ocupa lugar de destaque não só na história do dogma mas também na história geral da cultura. Além da teologia, os cam­ pos da filosofia, literatura, governo eclesiástico e jurisprudência também fo'am influenciados por seus escritos. Melhor que qualquer outro «latino», Agostinho sintetizou a cultura da antigüidade e fundiu essa herança com a teologia cristã. Realizou, portan­ to, uma síntese entre a herança filosófica da antigüidade e o cristianismo, Tias também contribuiu com algo de novo e original de sua própria perso­ nalidade. Ao mesmo tempo que estava profundamente enraizado na anti­ güidade e na tradição cristã, exerceu também impacto criador tanto sobre a teologia como sobre a filosofia. Representava uma cultura que estava no ocaso — a romana — mas ao mesmo tempo suas idéias serviram de base aara a época que estava surgindo. Nos séculos seguintes, os teólogos con­ tinuaram a enfrentar os problemas que Agostinho propusera, a cultivar suas déias, ou a usar suas obras como fontes de referência. Nos pensamentos de Agostinho de Hipona encontram suas raízes as tendências da escolás­ tica bem como as dos místicos, as da política eclesiástica papal e ainda as de reforma da Idade Média. A primeira coisa a fazer a esta altura é tentar entender o conceito básico de cristianismo de Agostinho, juntamente com seu significado para o desenvolvimento da história do dogma. A posição teológica de Agostinho enquadra-se na da igreja antiga, a qual ele completou, ao menos no que se refere à sua parte «ocidental». Reuniu e articulou a tradição cristã. Mas, ao mesmo tempo, contribuiu com algo de novo. Po ponto de vista filosófico, Agostinho era neoplatônico. Essa escola de pensamento exerceu influência decisiva sobre elèT^Tlíunca ele deixou de apresentar suas doutrinas cristãs em categorias derivadas dela. Rela­ cionou o cristianismo com as idéias de seu próprio tempo, que em grande parte eram afetadas pelo neoplatonismo. Do ponto de vista formal, a teo­ logia de Agostinho é uma síntese de formas de pensamento cristãs e neoplatônicas, e o conceito básico que caracteriza sua teologia leva impressa a marca dessa síntese.

Agostinho era homem do Ocidente, e as facetas mais proeminentes de sua teologia são as que se encontram no centro da teologia ocidental. O problema da igreja bem como as questões antropológicas, por exemplo, foram respondidas por Agostinho de maneira tal que se tornaram básicas para o pensamento teológico nos séculos seguintes — e isto acontecia mesmo quando a posição de Agostinho não era inteiramente aceita. Há quatro elementos diferentes na teologia de Agostinho que são de interesse particular neste contexto. São : sua doutrina da Trindade (anali­ sada acima), seu conceito básico de cristianismo (neoplatonismo e cristia­ nismo), sua doutrina da igreja (desenvolvida em seu conflito com o donatismo), e sua doutrina de pecado e graça (desenvolvida em seu conflito com Pelágio). D ESEN V O LV IM EN TO PESSO A L DE AGO STINHO Para se compreender a teologia de Agostinho, é importante saber al­ go a respeito de sua vida eseu desenvolvimento interno, que influenciou a formação de sua teologia. A melhorfonte de informações é seu conhe­ cido livro Confissões, escrito por volta do ano 400. Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia, em 354. Seu pai era pa­ gão, mas sua mãe era cristã, de modo que chegou a conhecer o cristianis­ mo já muito cedo. Foi enviado a Cartago em 371 para estudar. Enquanto ali vivia, levava uma existência completamente mundana até ler o Hortênsio de Cícero, que criou nele o amor à filosofia. O desejo de encontrar a ver­ dade substituiu o desejo de obter riqueza e fama. Anos mais tarde reco­ nheceu esta mudança de pensamento como um passo em direção ao cris­ tianismo. «Ó verdade, verdade, quão ardentemente minha alma ansiou por ti nessa época!» Desde o início parecia até certo ponto claro a Agostinho que a verdade não poderia se r alcançada a não ser em Cristo. O que o impedia de crer era a linguagem não filosófica e (como ele a considerava) bárbara da Bíblia. Também não conseguia submeter-se à autoridade da B í­ blia, o que exige fé. Pouco tempo depois do incidente acima mencionado, Agostinho uniu­ se aos maniqueus, seita que tinha bom número de adeptos na África. Esse grupo, fundado por Mani, um persa, no terceiro século, tinha muito em co­ mum com o gnosticismo. Mas seu dualismo era ainda mais radical; não era simplesmente dualismo entre Deus e o mundo, mas acima de tudo entre Deus e o mal. O s maniqueus consideravam o mal como principio indepen­ dente ao lado de Deus, poder que limitava o domínio de Deus e contra o qual Deus combatia. Seu sistema de salvação lembra o plano gnóstico, e este, em geral, fornecia ao maniqueísmo uma explicação ampla e especula­ tiva do mundo. O maniqueísmo também se caracterizava por seu código de ética ascético, que freqüentemente chegava ao oposto — ao libertinismo — entre seus membros. Agostinho foi atraído ao maniqueísmo por sua

explicação racional do mundo, bem como pelo seu código ascético, que temporariamente ofereceu uma solução a seus problemas. Mas o caráter fraudulento da posição maniquéia se lhe tornou cada vez mais evidente, e depois de 9 anos abandonou suas fileiras. No mesmo ano, 383, Agostinho atravessou o mar, indo até a Itália. Viveu em Milão, onde entrou em contato com o famoso teólogo e prelado Ambrósio, que exerceu influência decisiva sobre ele. Ambrósio represen­ tava a posição teológica ocidental, mas também ficara profundamente im­ pressionado com a teologia do Oriente, bem como com a filosofia grega. Entre outras coisas, apropriara-se do método alegórico de interpretação de Filo e Orígenes. Esse método chegou a ter grande significado para Agos­ tinho, uma vez que lhe permitiu pôr de lado algumas passagens da E scri­ tura que considerava inaceitáveis. Em suas pregações, Ambrósio salienta­ va còm vigor o conceito paulino de justificação através do perdão dos pe­ cados, e também isto foi de grande importância para Agostinho. Primeiramente, no entanto, Agostinho dirigiu-se ao neoplatonismo. Foi em grande parte esta escola de pensamento que o afastou do maniqúeísmo. O conceito neoplatônico de Deus era diametralmente oposto ao conceito maniqueu. Aquele concebia Deus como o bem absoluto, imutável, situado acima de toda mudança, a fonte de tudo o que existe. Tal concepção era incompatível com a idéia que o mal é princípio independente, e com a su­ posição que Deus combatia o mal e era, portanto mutável, exposto às mo­ dificações existenciais. O mal não pode ser algo independente, princípio criador e eficiente. No contexto neoplatônico, conceituava-se o mal como qualidade negativa, não ser, ausência de bem. Agostinho aceitou esta defi­ nição de mal, a qual constituiu a origem de seu diagnóstico da natureza dc pecado. O impacto do pensamento neoplatônico se percebe claramente na seguinte passagem de suas Co nfissõ es: «Mas, tendo então lido aqueles li­ vros dos platonistas, e neles tendo aprendido a procurar a verdade incor­ pórea, descobri tuas coisas invisíveis, entendi pelas coisas criadas. . . Então certifiquei-me que existes, que és infinito . . . e que verdadeiramente és aque­ le que é sempre o mesmo, sem variação em qualquer parte e sem movimento; e que todas as outras coisas procedem de ti, neste terreno seguro apenas, é que existem. . . . E, posteriormente, quando meu espírito foi conquistado por tua Bíblia . . . aprendi a distinguir entre presunção e confissão — entre os que vêem aonde devem ir, mas não vão, e o caminho que conduz não apenas à visão mas também à morada na terra abençoada.» (VII, 20). Mas, apesar disso, foi uma passagem da Carta de Paulo aos Romanos que destruiu os últimos vestígios de resistência e facilitou a conversão de Agostinho ao cristianismo. Estas foram as palavras decisivas: «Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúm es; mas revesti-vos do S e ­ nhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne, no tocante às suas concupiscências.» (13.13-14).

Estas palavras levaram Agostinho a abandonar sua vida mundana; e dirigiram seus desejos ao transcendental, não para vantagem temporal, mas a fim de melhor compreender e contemplar a Deus. Sua vontade fora aba­ tida, mas restaurara-se novamente de modo definitivo. A conversão de Agostinho significou mais do que abandonar sua am­ bição de se tornar um retórico famoso. Anteriormente fora escravo de de­ sejos mundanos, mas isto agora passara, e seus pensamentos se voltaram a coisas espirituais. Ao mesmo tempo, submeteu-se aos ensinamentos e à autoridade da igreja. Foi a fé em Cristo que tornou o transcendental rea­ lidade viva para Agostinho. Depois de sua conversão, Agostinho e mais alguns cristãos fiéis se retiraram a um lugar denominado C assicíaco , fora de Milão, e depois de algum tempo foi batizado nesta cidade, em 387. No ano seguinte voltou a Cartago. Durante a viagem, sua mãe faleceu — o que o afetou por longo tempo. Depois de viver em Cartago por alguns anos, Agostinho foi eleito presbítero na igreja de Hipona. Mais tarde ficou bispo da mesma cidade (395). E aí permaneceu até sua morte ocorrida quando os vândalos inva­ diram a região e sitiavam Hipona em 430. Muitas são as interpretações feitas quanto ao significado da conver­ são de Agostinho. Vários pesquisadores protestantes, inclusive Harnack, afirmaram que sua conversão não significou ruptura com sua posição an­ terior. Julgam que continuou platonista mesmo depois de sua conversão. Obras escritas depois de sua conversão, como os Solilóquios, são citadas como prova. Com base neste livro (escrito em C assicíaco ), o significado da conversão foi diminuído — o que é bem o contrário do que o próprio Agostinho diz dessa experiência. Pesquisadores católicos apoiam a reivin­ dicação feita nas Confissões e consideram a conversão como mudança ge­ nuína, em conseqüência da qual Agostinho chegou a alcançar a fé cristã e a se submeter aos ensinamentos da igreja. Como resultado das investi­ gações de Nõrregaard e Holl, esta última interpretação é hoje, em geral, aceita. Holl demonstrou que os estudos filosóficos de Agostinho, que ele naturalmente continuou após sua conversão, receberam enfoque diferente. O CO N CEITO BÁSICO DE C R ISTIA N ISM O DE AGO STINHO Nas Confissões Agostinho descreve sua peregrinação à fé cristã. Con­ ta como perambulou, cegamente, nas trilhas do erro. Durante todo esse tempo, no entanto, estava sob influência dos poderes da graça e foi atraí­ do cada vez mais peio amor à verdade, até que, afinal, através de sua con­ versão, este amor tornou-se permanente e seus desejos se voltaram à rea­ lidade espiritual. Antes disso, apenas fora capaz de vislumbrar a verdade de longe, e seu amor a ela era por demais evanescente para capacitá-lo

a dominar seu amor pelo mundo. A natureza caleidoscópica dos interesses seculares o mantinha cativo e exercia influência decisiva sobre seus de­ sejos. Não conheceu a paz até chegar a ter fé em Cristo, até submeter-se à verdade escriturística. Somente então encontrou aquilo que em vão bus­ cara tateando. Essa foi a experiência que Agostinho resumiu nas conhe­ cidas palavras: «Tu nos fizeste para ti, e nossos corações estão inquietos, até encontrarem descanso em ti.» (Fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te. Confissões I, 1). Como já vimos, Agostinho submeteu-se à autoridade da igreja e acei­ tou os ensinamentos da Escritura depois de sua conversão. Seu batismo e a escolha da nova maneira de viver dão testemunho da natureza decisi­ va dessa modificação. Em seus escritos, entretanto, podemos ver certa con­ tinuidade; o que escreveu depois de sua conversão relaciona-se, até certo ponto, com o que escrevera antes dela. Mesmo as coisas que escreveu imediatamente depois de sua conversão (os Solilóquios, por exemplo) são obviamente influenciados pelo neoplatonismo. À medida que o tempo cor­ ria, voltou-se cada vez mais à tradição cristã, mas nunca rompeu completa­ mente com o neoplatonismo (como fez, por exemplo, com o maniqueísmo). Em sua opinião, o cristianismo e o neoplatonismo não se excluíam mutua­ mente. Acreditava que, em vez disso, idéias neoplatônicas o capacitaram a encontrar o cristianismo e a entender suas implicações mais profundas. Como resultado, os fundamentos de sua posição teológica foram sempre, ao menosem parte, determinados por pressupostos neoplatônicos. Todavia, a atitude básica de Agostinho face à especulação filosófica modificou-se depois de sua conversão. Antes dela, a filosofia tinha ofere­ cido a Agostinho a possibilidade de encontrar a verdade por meios racio­ nais, através do uso da especulação. Depois de converter-se, Agostinho entendeu a relação entre teologia e filosofia de acordo com a seguinte fór­ mula: «Creio para que possa compreender» (Credo ut intelligam). A sub­ missão à autoridade ocupava agora o primeiro lugar em sua vida. Não mais julgava se r a especulação filosófica o caminho que conduzia ao alvo. Acreditava agora que só pela fé se podia chegar a conhecer verdadeira­ mente a Deus, aceitando a verdade revelada. Não concluía com isso, en­ tretanto, que a possibilidade de considerar a fé em termos racionais ficava excluída; julgava que a verdade da fé também podia ser alvo de compre­ ensão, pelo menos até certo ponto. Mas o pensamento filosófico não mais ocupava o lugar de honra na vida de Agostinho; este fora substituído pela fé e pela submissão à autoridade da Escritura. Para Agostinho, o pensamento lógico, embora se baseasse na fé (o intelligere) e se relacionasse com a submissão aos ensinamentos da igre­ ja, tomava a forma de síntese entre cristianismo e neoplatonismo. Em sua opinião, estes dois estavam em harmonia um com o outro; não se excluíam mutuamente. Isto não quer dizer que Agostinho considerava o neoplatonis­ mo uma religião situada no mesmo nível do cristianismo. Bem pelo con-

trário, julgava ser este a única fonte da verdade. Mas a relação entre am­ bos, em sua opinião, era que apenas o cristianismo podia fornecer as res­ postas corretas às questões propostas pelo neoplatonismo ou a filosofia em geral. O s filósofos buscam a verdade, mas não podem encontrá-la. Re­ conhecem o alvo, mas não conhecem o caminho que a ele conduz. Desta maneira, quando o cristianismo responde às profundas questões levantadas pela filosofia (as únicas respostas válidas que podem se r encontradas), s i­ tua-se numa relação ambivalente com a filosofia. De um lado, a atitude da fé revela a falsidade da filosofia, demonstrando quão vazia ela é, bem como traz à luz sua incapacidade de satisfazer os anseios mais profundos do ho­ mem. Do outro lado, o cristianismo aceita as questões levantadas pela fi­ losofia, e desta maneira reconhece a atitude básica face à vida que é ca­ racterística da filosofia. Esta ambivalência é típica do conceito de cristia­ nismo de Agostinho. De um lado, reconhece a verdade da revelação e da tradição cristã em contraste com a razão e a filosofia. De outro lado, apre­ senta o cristianismo em categorias implícitas nos pressupostos filosóficos que aceitava. Agostinho criou uma síntese que incluía tanto elementos cris­ tãos como neoplatônicos em interação mútua. Estas linhas de pensamento podem ser isoladas e diferenciadas uma da outra, mas na mente de Agos­ tinho formaram um ponto de vista unitário, simultaneamente cristão e neoplatônico. O neoplatonismo ensinava que a tendência mais elementar encontra­ da no homem é sua busca da felicidade, e é esta idéia, acima de tudo, que constituiu o elo de ligação entre Agostinho e este sistema de pensamento. Em sua opinião, o pressuposto básico de todo esforço humano se encontra na concentração do homem sobre um objeto que lhe promete trazer certos benefícios. «Certamente todos desejamos viver felizes.» (De moribus ecclesiae catholicae, I, 3, 4). Além disso, Agostinho desejava provar que essa concentração da vontade humana não se limita simplesmente a alvos fortuitos e temporais. O que o homem deseja acima de todas as outras coisas é o bem supremo (summum bonum), e mesmo que possa aplacar seus desejos de obter van­ tagens temporais, isto não o satisfará inteiramente. Revela-o o fato que o homem constantemente dirige sua atenção a novos alvos. Não se satisfaz com o que é apenas parcialmente bom, que oferece valores de qualidade inferior. O que corresponde plenamente ao destino humano, e aquilo a que se dirigem suas aspirações mais profundas deve ser o bem supremo, algo de valor absoluto, não qualificado por qualquer coisa superior. Agos­ tinho também acreditava que se o homem busca certo nível de realização e o alcança, seu desejo não se aquietará, pois sempre viverá no temor de perder o que obteve. Pois o bem que alcança é mutável e perecível. Ape­ nas o que é permanente e imutavelmente bom pode satisfazer o coração do homem. E é apenas Deus que é este summum et incommutabile bonum. Em vista disso, há em todos os homens um desejo natural por Deus, o bem

supremo. Esse desejo se expressa mesmo em formas pervertidas de amor. «Deus, que é amado por tudo que é capaz de amar, consciente ou incons­ cientem ente.. . » (Solilóquios, I, 1 , 2). Há um eudemonismo em Agostinho, mas não é o eudemonismo filo­ sófico que afirma que a satisfação do desejo ou a realização do prazer próprio é o alvo mais elevado. Conforme Agostinho, o alvo mais elevado é união com o bem supremo, como algo transcendente, não encontrado na esfera humana. «Para mim o bem é estar unido a Deus» (Serm ão 156, 7). A visão de Deus é o objetivo supremo. Quando todos os poderes do e s­ pírito estão dirigidos a Deus e à eternidade, é então que a mente está cor­ retamente inclinada, e a alma pode experimentar paz e clareza. Esta espé­ cie de amor é o mandamento mais elevado, que abrange todos os outros. «Ama, e faze o que quiseres.» (Dilige, et quod vis, fac. In epistolam ioannis, VII, 8). „ Agostinho distinguia entre o amor ao bem supremo, caritas, e amor ao mundo — a saber, o desejo que busca o bem nas coisas temporais. Es­ te foi denominado cupiditas. Os dois relacionam-se um com o outro como bem e mal. Caritas é a única forma verdadeira de amor; cupiditas é for­ ma falsa, pervertida. Pode-se dizer, pois, que o poder de desejar é em si. o mesmo em ambos os casos. No homem natural dirige-se ao mundo, ao sensual e variável. Quando ocorre a conversão, esse desejar é substituí­ do; o cristão é dirigido ao celestial e eterno. Sua vida é transformada pelo fato que seu amor a Deus foi despertado, e este amor gradualmente sub­ juga seu amor pelo mundo. Agostinho considerava o amor (amor) especialmente aquilo que coin­ cide com a vontade interna do homem. Este podia dirigir-se para cima, em direção a Deus e ao eterno (ascendit), ou para baixo (descendit) em dire­ ção ao que está sujeito à vontade — à criação, ao que é temporal. Aquele é caritas, este, cupiditas. O homem só pode atingir seu destino e chegar a conhecer a paz depois que seu amor foi totalmente dirigido a Deus. Em uma passagem Agostinho compara o amor (amor) a uma corrente de água que, ao invés de correr em direção à sarjeta,onde não pode fazer qualquer bem, deveria ser regada sobre o jardim para refrescar tudo o que nele existe. Tal como ele o entendia, o elemento de esforço é essencialmente o mesmo,tanto em caritas como em cupiditas. O amor que é prodigalizado em coisas do mundo deveria ser dirigido a Deus, pois ele é o bem supre­ mo, o bem perene. Poderia parecer, em vista disso, que o homem deveria romper sua relação com o mundo e devotar-se exclusivamente ao que é eterno. Este, no entanto, não é o caso. Agostinho tinha em alta estima a vida de reclu­ são, e com alegria concebia a relação religiosa como comunhão íntima da alma com Deus — visão de Deus que é antecipação da bem-aventurança eterna. Mas Agostinho não desprezava a vida neste mundo. Apenas quan­ do as coisas temporais ocupam o primeiro lugar no coração de um homem

é que ele se torna objetável. A criação de Deus é boa, e o homem foi colocado nela para cuidar das dádivas que Deus colocou a nossa dispo­ sição. Mas, como então, se relaciona a posição do homem no mundo com sua comunhão com Deus? Agostinho respondeu esta pergunta fazendo dis­ tinção entre uti e frui, usar e deleitar-se em. Mesmo o que foi criado pode ser objeto de amor por si mesmo, mas o homem não deve aí encontrar seu alvo final. Estas coisas só deveriam ser usadas como meios a serviço da forma mais elevada de amor. Somente Deus deveria ser o objeto daquele amor que repousa, incondicionalmente, no que é amado. Tal amor é absor­ ção perpétua em Deus — fruitio Dei. A diferença entre frui e uti é a dife­ rença entre amar por causa da coisa em si (diligere propter se) e amor por causa de outra coisa (diligere propter aliud). A vida do homem pode ser comparada a uma jornada à terra natal. O alvo de suas peregrinações é apenas aquela terra que lhe proporciona verdadeira alegria. Em sua jornada precisa usar navios e carros para atin­ gir seu alvo. Se procurasse alegria nos prazeres da viagem, aquilo que deveria ser meio teria assim se transformado em alvo. Da mesma forma, o mundo em que o cristão vive deve ser usado, mas não deve tornar-se o objeto da alegria. Aquele amor que usa as coisas do mundo, mas en­ contra sua verdadeira alegria apenas na pátria celestial, é caritas. Aquele amor que busca a satisfação no mundo, usando Deus como meio para al­ cançar prazer temporal, é cupiditas. «Os bons usam o mundo para pode­ rem encontrar seu prazer em D eus; os perversos, ao contrário, querem usar a Deus para que possam gozar o mundo» (A Cidade de Deus, XV , 7). A distinção entre uti e frui constitui a base para um amplo sistema relativo à conduta do homem face a Deus e ao mundo. Considera-se ele ordenado segundo uma escala de valores em que tudo tem o lugar que. me­ rece, dependendo do próprio valor e de sua proximidade ou distância da­ quilo que é de valor absoluto. O amor deve-se ajustar a esta escala de valores, e assim torna-se ordinata dilectio. O amor bem ordenado é aque­ le que ama a Deus como ele merece, e ama o mundo apenas por causa de sua relação com o bem mais elevado, apenas porque é um meio de atingir o que tem valor supremo. Agostinho, com isto, não nega, entretanto, que a criação também po­ de se r objeto de amor. Mas este amor deve ajustar-se segundo o valor da coisa em questão, que é determinado não pelo que faz por nós aqui mas pelo fato que aponta para cima para o bem supremo. Mesmo o amor próprio (amor sui) tem o seu lugar segundo Agostinho. Pois quando nos é dito: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo», isto sugere que o ho­ mem também deve amar a si mesmo. Agostinho introduziu esta idéia na doutrina da dilectio ordinata. Deve-se amar a própria vida de acordo com sua importância na escala de valores. tinho.

Mas o conceito de amor sui também significa outras coisas para Agos­ Pode se r usado como sinônimo para amor em geral, uma vez que

todo amor é basicamente amor sui — concentração sobre o próprio bem estar ou sobre o destino mais elevado. Foi neste sentido que Agostinho disse que amor próprio correto é amar a Deus e negar-se a si mesmo. Mas amor sui também pode ser usado para designar uma espécie de falso amor próprio, em que o homem só busca o prazer próprio, e ama a si mesmo em lugar de a Deus. Tal amor é uma das facetas da cupiditas humana, e como tal se opõe à verdadeira forma do amor. Nos escritos de Agostinho, portanto, amor sui pode ser entendido de três maneiras diferen­ tes: como amor próprio legítimo, «bem ordenado»; como concentração no destino mais elevado (neste sentido o termo é sinônimo de amor D ei); ou como falso amor próprio. O contraste decisivo se encontra entre caritas e cupiditas. Como ser criado, o homem está obrigado a procurar seu bem fora de si mesmo. Em sua condição corrupta, busca-o no mundo, em coisas e prazeres temporais. Pecado é precisamente isto, que a concentração mais profunda da vontade humana se afasta de Deus em direção ao mundo, de modo que o homem ama a criação ao invés de ao Criador. A mudança que ocorre na conver­ são é que cupiditas, o amor impróprio ao mundo, é transformado em ca­ ritas. Tal homem está saturado com o amor a Deus. O homem é incapaz de produzir essa transformação por si mesmo. Seus desejos por bens temporais o mantêm cativo. Se o amor a Deus deve ser despertado nele, isto deve vir de fora como dádiva. Deve ser «infun­ dido» nele (infusio caritatis), expressão que Agostinho derivou de Rm 5 .5 : * 0 amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado.» O homem só pode dominar seu amor pelo mundo depois que o amor de Deus lhe foi dado. Entendia Agostinho essa infusão de amor em sentido físico, como a cpncessão de um poder? Ele foi interpretado desta maneira, especialmente pela escola liberal de teologia, que em geral procede com base na antítese físico-ética. Mas esta conclusão não está correta. A graça e o amor são derramados para dentro da vida do homem, mas isto é feito pelo Espírito Santo, não acontece de qualquer modo mágico. Realmente, pode-se dizer que a caritas, que é outorgada ao homem, coincide com o Espírito Santo. É Deus que se dá a si mesmo ao homem, e mediante sua presença o ho­ mem fica repleto daquele amor que o capacita a triunfar sobre os maus desejos. Na teologia católica romana posterior esta graça infusa é concebida como poder interno, conferido por meio dos sacramentos. Como resultado, considera-se isto freqüentemente como ocorrência mágica, sobrenatural. Mas não se pode dizer que a maneira pessoal, ética de considerar as coi­ sas está ausente nos escritos de Agostinho. A graça é considerada como verdadeiro poder transformador, e este poder é o próprio Deus, o Espírito que é dado mediante a fé em Cristo.

A encarnação foi necessária para a salvação. A cruz de C risto nos diz que Deus humilhou-se até à morte por causa do homem. E é tão-somen­ te isto que destrói o orgulho humano (superbia). O orgulho nos mantém cativos de nós mesmos, e esta é a causa de nossa miséria e infelicidade. Nada pode romper esses grilhões a não se r a humildade de Cristo, que nos dá o exemplo e o remédio para nossa superbia. Agostinho reuniu duas linhas de pensamento numa síntese: a salva­ ção resulta da ação divina, sua graça preveniente, e sua descida até nós ---------- - i ---- ----------í --- ,----- * . . . tra se caracteriza pela dialética caritas-cupiditas: a busca do bem supre­ mo, que está oculto a todo homem. Esta busca é corromphjte pelo amor impróprio ao mundo e ao próprio eu, e deve, como resulfaeÊ^ser redirigida a seu alvo mais elevado e, desta maneira, encontrai\jêátlsfação no amarv cristão a Deus. Foi assim que Agostinho combinou um cõrteéito basicam en^ te neoplatônico (a doutrina do eros) com a doutrifiã crista de salvaçãan um a'“ tentativa de trazer respostas às perguntgs^ma^—grofundas do ^pmêbi'J e, ao mesmo tempo, resumir o conteúd o^ ^ v^ ahgelho cristão. \Ç0fi Anders Nygren. Eros and Agape ( Lon d r e s 953), II, 449-562)

A D O U TR IN A DA IG R E JA SEGUNDO AGO STIN HO

Com respei&tx^a^utrina da igrejasA gostinho continuou a desenvol­ ver a tradiçãK^aiagèrital que se origtrfaíá, acima de tudo, com Cipriano. Tem sido pôsàjfwj interpretar ^ p 0 jça o de Agostinho de várias maneiras. Ilustra que tanto ovcoirceito hierárquico como as tendências antipapàis \^faTtdade Média efrqpntraram apoio na eclesiologia de Agostinho. que levou Agostfnho a desenvolver seu conceito de igreja mais cui­ dadosamente foka>
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