História Da Música Européia
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Livro completo sobre a história da música Européia....
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Jacques Stehman
História da Música Européia das origens aos nossos dias DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO, LDA.
RUA RUA BENTO DE FREI TAS, 362- 6. " —SÃO PAU PAULO LO
Nascido em Bruxelas em 1912, Jacques Stehman fez os seus estudos de música no Conservatório Real desta cidade. De 1933 a 1939 integra-se num grupo de jazz, participa nas atividades de um cenáculo literário, publica duas revistas musicais, organiza recitais de piano. Terminada a guerra, retoma a atividade, distribuindo-se pela crítica e pela composição. Algumas das suas obras mais conhecidas: Sinfonia de Algibeira, Concerto de Piano, Suite para Cordas, música de bailado (O Baile dos Embaixadores) e de cena (Cristóvão Colombo, de Ch. Bertin). Em 1953 é distinguido com o Prêmio Itália. Atualmente professor de Harmonia Prática no Conservatório Real de Bruxelas e de História da Música na Escola Superior de Artes Decorativas e no Instituto dos Jornalistas da Bélgica, Jacques Stehman exerce também os cargos de vice presidente da Juventude Juventude Musical Belga Belga e da Sociedade Sociedade Belga de Musicologia Musicologia Alaúde-(Século XVI, coleção particular) NA CAPA: A Tocadora de Alaúde-(Século Maítre dês Demi-Figures. Mais detalhes sobre a figura: http://eunjangdo.net/g_gallery/16/jf.htm A obra original foi Publicada em francês com o título”Historie de la Musique européenne” pelas Êditions Gerard & C.ie.", Verviers Bélgica Maquetas dos extratextos de Yvan Rolen * Tradução de Mana Teresa Athayde * Revisão técnica de Fernando Cabral 2
© 1964 1964 by Éditions Éditions Gérard ir C", Verviers (Bélgica). Todos os direitos reservados para a publicação desta obra em Português (Portugal e Brasil) pela Livraria Livraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa.
Numerosas histórias da arte apresentam uma lacuna: a de ignorar a música. Por outro lado, existe outra lacuna correspondente em algumas histórias da música, que isolam o fenômeno musical de um mundo onde, contudo, ele sempre permaneceu, por assim dizer, incrustado. Pois uma obra de arte não se deve apenas ao impulso do seu autor: este obedece, consciente ou inconscientemente, a uma ordem social ou moral, religiosa ou estética, a determinado estado das idéias que o rodeiam e que moldam a alma e a fisionomia de uma época, de que ele será simultaneamente testemunha e intérprete. Músicas primitivas ou eruditas, religiosas ou profanas, antigas ou modernas, todas obedecem a estas leis. Um dos mais eminentes musicólogos franceses, Jules Combarieu (18591915), pôde escrever em 1913: “Porque será que em França, ainda hoje e em vinte obras assinadas por nomes ilustres, a rubrica "história da arte" apenas significa história das artes do desenho? A que lugar inferior ou estranho, a que ordem de estudos abandonam eles a música, esses que, após haver adaptado tal atitude, julgam poder ignorar os músicos?” Verificar-se-á que meio século não introduziu qualquer alteração nesta situação e que as histórias da arte permanecem divididas em compartimentos. Foi por isso que nos pareceu útil, dentro dos limites desta pequena obra, recordar os laços que, em cada época, unem a música às outras artes e à vida do seu tempo. J. S.
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I – DEFINIÇÕES O destino europeu da música
A história que vamos aqui evocar é a da música européia. Devemos considerar haver nisto qualquer injustiça? Não, não há; a música existe em todos os países não europeus, desde a Antigüidade, segundo duas tendências freqüentemente paralelas: ou evoluciona, torna-se erudita, inspirando-se finalmente na técnica ocidental, ou, fiel às suas tradições religiosas e populares, permanece ritual e primitiva. Um povo não poderia renunciar a esta música tradicional sem perder a sua alma: é a fonte da sua civilização própria. Nota-se em muitos países uma sobrevivência permanente da música tradicional (música folclórica, que os especialistas chamam “étnica”), enquanto outra música de inspiração européia liga esses mesmos países às grandes correntes artísticas que percorrem o mundo. O perigo reside no fato de que essa música possa tornar-se puramente acadêmica e impessoal, limitando-se a decalcar os processos dos grandes compositores ocidentais. Mas o interesse mais evidente é que esses compositores têm a possibilidade de criar uma música “erudita”, impregnada de elementos tradicionais (ritmos e melodias), onde podem exprimir o autêntico caracter do seu país, numa linguagem universalmente compreendida e ao nível das maiores obras de arte. Observemos a música popular espanhola ou grega, a música tradicional árabe, balinesa, índia do México, chinesa ou japonesa e veremos sempre o mesmo fenômeno: ou assimilou a técnica e o espírito europeus e perdeu o seu caracter nacional, ou conservou os seus caracteres preservando-se da evolução. É apenas desde há cerca de cem anos, com o aparecimento das “escolas nacionais” que descobriram o folclore, que este aparece integrado na música erudita. Mais próximo de nós, foi apenas desde há algumas dezenas de anos que compositores brasileiros, mexicanos, japoneses, negros americanos, etc., conseguiram misturar os mais puros elementos da sua música com os elementos técnicos e estéticos da nossa cultura musical, criando assim obras interessantes e novas. É evidente que a música folclórica, elevando-se ao nível de uma obra de arte, não pode substituir o elemento funcional que existe em toda a música tradicional e que é a sua sujeição à celebração de um rito. Para citar um 4
exemplo, as mais belas páginas de um Manuel de Falia são obras de arte impregnadas de um profundo caracter nacional, evocando com precisão o que é a Espanha; mas em caso algum poderiam substituir o flamenco popular, que, pelo bater de palmas, o martelar de saltos, as melopéias e os gritos, traduz, no estado puro, a necessidade, para bailarinos e para aqueles que os rodeiam, de ativamente exprimirem o seu ser profundo. Ainda outro exemplo: os Choros de um Villa-Lobos, no Brasil, ou a Sinfonia índia de um Carlos Chavez, no México, são estilizações de concerto, tal como as obras de Bartok ou de outros; exprimem admiràvelmente todos os caracteres genuínos de uma música tradicional, que, no entanto, continua a existir sob forma independente. O destino da música, tal como o vamos encarar, é, portanto, europeu, porque foi a Europa que produziu esta cultura musical universal e a ensinou ao mundo. Ela substituirá, pouco a pouco, os múltiplos sistemas musicais em uso na Antigüidade por um sistema codificado que se tornará numa linguagem, e cujas convenções serão admitidas. Uma infinidade de elementos rodeia esse facto e confirma a sua força: a expansão da Igreja Cristã e, consequentemente, do seu canto; o papel de algumas grandes abadias e de algumas grandes cidades, tal como Paris, desde a Idade Média, com a sua influência que se estendeu a todo o Ocidente. A herança grega, e em seguida a romana, transmitiu-se modificada, mas foi ela que serviu de base à Europa para explorar infatigàvelmente o universo musical e estabelecer uma grande linguagem universal. A história desta música é inseparável da história e das vicissitudes da Europa. primeiro religiosa, e separando-se depois, na Idade Média, em dois ramos bem distintos: a música de Igreja e a do povo, segue a evolução das idéias e dos gostos, exprime o estado dos espíritos em dado momento, responde às necessidades de uma sociedade (distrações, protocolo, etc), acusa as perturbações das crises políticas ou morais. A partir de um vasto feixe de músicas procedentes da Antigüidade Oriental, a Igreja Cristã fixará a atenção dos seus fiéis sobre uma música cantada, simples, completamente destituída de sensualismo, e que — paralelamente à expressão progressiva dessa mesma Igreja — vai por sua vez radiar, impregnar as almas, penetrar nos espíritos, moldar a inspiração musical. O lento caminhar desta música permanece ligado ao caminhar da civilização ocidental. É a partir da cantilena gregoriana que surgem as primeiras tentativas de polifonia; é por 5
meio das missas e dos motetos que a linguagem musical se ornamenta e enriquece. A ciência musical evoluiu através da música religiosa; e a música religiosa transmitiu à música profana todo o seu saber. Do robusto tronco gregoriano, que foi o primeiro a crescer, brotaram múltiplos ramos, que em seguida se desenvolveram; toda a nossa música provém desta origem e foi principalmente na França, na Itália e na Alemanha que se operou essa evolução. A essência da música
A música foi primeiro a linguagem mágica do homem primitivo, a sua invocação às divindades. Em seguida, foi ciência, como as matemáticas e a astronomia. Durante longos séculos permaneceu oração. Finalmente, misturando-se com o mundo profano, tornou-se uma arte, um divertimento também, o que lhe trouxe considerável enriquecimento, por vezes puramente material (uma orquestra de sonoridades sumptuosas não será necessariamente mais “rica” do que uma melodia isolada intensamente expressiva). Mas, a partir do momento em que a música se torna arte, as leis da estética vão condicionar a sua evolução, enquanto anteriormente, desde a Antigüidade até à Idade Média, era apenas regida pelas leis da moral: com efeito, quer seja magia, quer oração, a música ritual obedece a regras éticas precisas. Existem, portanto, duas grandes eras da música, cada uma englobando uma evolução de facetas múltiplas, no interior de um domínio bem definido: a era religiosa e a era estética. A Idade Média forma praticamente a charneira entre estas duas fases. Desde as mais rudimentares ou recuadas civilizações até à Idade Média, o homem viveu a era religiosa da música. Desde há oito séculos, vivemos a sua era estética. Se a música é um ritual, a linguagem sagrada do homem — mas livre de qualquer referência realista, já que exprime o mundo do irracional mais diretamente que a literatura ou a pintura —, é também um fenômeno cujos elementos devem ser conhecidos. De que é feita a música, como se manifesta o fenômeno sonoro altamente organizado da nossa civilização e qual o seu significado? Parece oportuno, em meados do século XX, abandonar a definição de Jean-Jacques Rousseau: “A 6
música é a arte de combinar os sons de forma agradável ao ouvido.” Emanando de um filósofo cujas opiniões neste domínio foram muitas vezes discutíveis, esta definição encerra a música dentro dos limites onde se reconhecem os ditames do estilo galante. Ora a “música amável” é apenas um aspecto da música em geral. Após esses convencionalismos do século XVIII, como formular uma opinião sobre um canto guerreiro da Antigüidade, uma monódia gregoriana, uma ária de Monteverdi, uma página de Beethoven, Berlioz, Strawinsky ou Bartok? Como apreciar todos esses compositores, cujo alvo não foi serem agradáveis ao ouvido”, segundo aquele critério, mas exprimir com intensidade os anseios de uma coletividade, as suas próprias paixões, ou ainda as diversas possibilidades da linguagem ou da arquitetura sonora? Foi contudo graças ao gênio de tais inovadores que o domínio da música se enriqueceu e alargou. É, portanto, impossível fecharmo-nos dentro de princípios sem dúvida claros e tranquilizadores, mas que a vida pode sempre desmentir. Conforme a música seja uma organização sonora articulada, tal como uma linguagem (frase, pontuação, ritmo, desenvolvimento de uma idéia), ou um meio intencional de provocar uma sensação, ela será intelectual ou sensorial, mas agirá sempre sobre a nossa sensibilidade. No primeiro caso, o encanto (fascinação) físico do som está sujeito a uma ordem estética e intelectual, no segundo exerce-se livremente. É evidente que esta própria liberdade se move dentro de quadros fixos. Um exemplo familiar ilustrará este fato: sabe-se que a improvisação livre e totalmente “inspirada” dos instrumentistas de jazz se desenrola de acordo com um esquema harmônico e rítmico muito estrito. O compositor nunca se afasta desse quadro invisível, sendo este a dar a sua coerência ao discurso, que, de outra forma, seria apenas desordem e confusão. Para esquematizar, poder-se-ia classificar numa categoria “intelectual” toda a música clássica, onde a forma impõe a sua autoridade e onde o sentimento é estilizado, trabalhado: os polifonistas do Renascimento, Bach, Haydn, Mozart, Haendel no século XVIII, um Strawinsky, um Hindemith presentemente, etc. Na categoria “sensorial” poderíamos classificar os impressionistas, os românticos, os expressionistas e alguns dos grandes compositores do século barroco. Acrescentar-lhe-emos o jazz, música de encantamento por excelência. Aqui voltamos a encontrar as denominações tradicionais de apolíneo e de dionisíaco. Para ser completo, é necessário acrescentar uma categoria 7
“espiritual”, abrangendo a música ritual dos povos primitivos e o canto gregoriano da liturgia católica. Aqui os elementos sensoriais e intelectuais fundem-se num só. E se o canto gregoriano, purificado, decantado é o reflexo de uma vida espiritual muito elevada, a música ritual do povo primitivo pode refletir uma mesma exigência de superação pela fé, na sua ingênua mistura de pureza e de ação sobre os sentidos. O que é o tom?
Antes de adquirir qualquer significado, a música é um fenômeno sonoro; foi a exploração deste fenômeno e a sua domesticação que produziram os sistemas musicais. A matéria sonora é, de início, uma vibração. Esta vibração, qualquer que seja a sua origem—corda, pele esticada, tubo produzindo sons—, transmite-se ao nosso ouvido. Este constitui um aparelho de recepção minúsculo e subtil, reagindo às freqüências (número de vibrações por segundo), que vão de cerca de 20 a 20000. Abaixo de 20 vibrações por segundo situam-se os infra-sons, acima de 20 000 os ultra-sons, que, saindo do campo de percepção do ouvido, são, portanto, inaudíveis para o homem. No ouvido interno encontra-se o órgão de Corti, receptor das vibrações, que o alcançam após terem abalado as fibras nervosas e que ele transmite ao cérebro por meio do nervo auditivo. Uma cadeia de transmissões físicas das vibrações transforma-se assim em transmissões fisiológicas: efetivamente, as fibras auditivas conduzem a uma região chamada “zona auditiva” da massa cinzenta, o que explica o fato de transformarmos os sons, recebidos sob forma puramente física, em representações mentais, imagens, pensamentos, recordações, etc. Neste fato reside a diferença entre o homem e o animal, cuja audição permanece puramente física. Esta explicação muito esquemática do fenômeno da audição permite compreender que a música, ou, antes da música, o simples som, atinge diretamente um dos nossos centros nervosos mais importantes e, após ter-nos comunicado uma sensação física pura, determina instantaneamente em nós, por um lado e conforme os casos, a excitação ou o entorpecimento e, por outro, os mais coerentes pensamentos ou representações, se estiver organizada segundo uma ordem intelectual ou afetiva. No caso oposto, uma música de forma e 8
expressão elementares ou obsessivas provoca em nós a embriaguez física. Estas noções são conhecidas, pois todos sabem o que significa a excitação física produzida por certos trechos musicais ou, pelo contrário, a exaltação espiritual originada por outros. Mas a recepção do fenômeno sonoro processa-se de tal forma que as mais sublimes expressões da arte mais perfeita atingem-nos primeiro sob a forma de uma simples sensação física: o gênio do homem organizou essa sensação e levou-a a participar no exercício das nossas mais elevadas faculdades. Ao analisar sucintamente o mecanismo da audição musical, observa-se que o som passa pelo ouvido externo (condutor auditivo), o ouvido médio (tímpano e cadeia de ossículos que transmite as vibrações) e o ouvido interno (labirinto, membrana basilar, que contém 24 000 fibras que reagem às vibrações dos ossículos, e órgão de Corti, fim da transmissão). Sendo a música uma sensação física, essa sensação pode ser deleitável até ao êxtase, ou desagradável até à dor. A música tem a capacidade surpreendente de poder exercer um efeito hipnótico, eufórico ou exaltante sobre os nossos sentidos; se for violenta, pode igualmente revoltar-nos. Todo o significado da mensagem musical, até às suas mais requintadas proliferações, encontra-se contido neste fenômeno elementar; assim, a música mais requintada, tal como a mais primitiva, é um encantamento que age sobre os nossos sentidos. Num dos casos detém-se nos sentidos, no outro ultrapassa-os e subjuga-os pelo domínio do pensamento. Destes fatos depreende-se uma moral da música, e foi essa moral que alguns povos das antigas civilizações tinham compreendido. A nossa época já não toma estes elementos em consideração na apreciação da obra musical, porque concedeu plena liberdade a obra de arte em geral, de forma a explorar a fundo todas as virtualidades humanas. E esta sensação elementar que distingue a música da pintura ou da literatura. A emoção causada pela leitura de um .texto provém essencialmente da nossa apreciação intelectual; o mesmo sucede com a emoção provocada por uma obra plástica. Nos dois casos a nossa sensibilidade é atingida pela beleza de expressão, o encanto da obra, mas a apreciação do nosso intelecto é indispensável para agir sobre a nossa emotividade.
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Nascimento de uma ordem sonora
Pitágoras, filósofo e matemático grego (582-500 a.C.), defendia a teoria de que o princípio de tudo reside nos números. Essa teoria levou-o a estudar as relações das vibrações dos sons resultantes da divisão de uma corda esticada. Descobriu assim que as principais consonâncias (oitavas e quintas) correspondiam à divisão simétrica da corda e, portanto, ao número de vibrações. Esta descoberta revelava uma ordem matemática inerente à altura dos sons e indicava que as relações de consonância são, antes de mais, relações matemáticas de vibrações e não um princípio puramente arbitrário de conveniência ou de gosto. Alargando o campo das suas observações, Pitágoras estabeleceu as relações que o levaram a percorrer uma escala de sons de vibrações cada vez mais rápidas, partindo de um som fundamental. Por outras palavras, o total das vibrações do som fundamental, ao subdividir-se, produz uma série de sons na direção do agudo. Uma vez que a divisão regular de uma corda produz a oitava, a quinta e a terceira, o acorde perfeito encontra-se, portanto, contido dentro das ressonâncias naturais de um som, tal como a escala de sete sons. Assim sé explica por que razão o nosso sistema musical está construído sobre princípios matemáticos e acústicos naturais e o acorde perfeito, base do sistema, é uma realidade de ordem física. O acorde perfeito provoca uma sensação de plenitude e de repouso; a dissonância uma impressão de tensão ou de constrangimento. A harmonia da consonância e o dramatismo da dissonância são elementos que os músicos têm largamente utilizado, e que exercem uma forte influência sobre o nosso psiquismo, as nossas reações nervosas, a nossa imaginação, constituindo um dos aspectos das relações matemáticas exatas ou imperfeitas entre vibrações diversas. A ordem sonora, a ordem musical e, por fim, a ordem estética foram, portanto, na origem, estabelecidas pela natureza. A escala, alfabeto da linguagem musical
Da divisão da corda nasce o sistema das escalas, ou seja das sucessões de sons dentro de certa ordem, mas por graus aproximados. A escala de Pitágoras (sete sons) serviu de base à instituição do nosso sistema musical, depois de 10
passar por numerosas transformações, de que as mais importantes são, em primeiro lugar, entre a Idade Média e a Renascença, o estabelecimento progressivo das escalas ascendentes na música profana, em oposição às escalas descendentes da música religiosa; em seguida, no século XVIII, instituiu-se o chamado “sistema temperado”. Em poucas palavras, este sistema consiste na elaboração de uma escala na qual cada som se encontra convencionalmente fixado de acordo com um número de vibrações doravante invariável. Fixado o padrão (o lá do diapasão que serve de referência) em 870 vibrações por segundo (muitas orquestras utilizam presentemente um lá de 880, portanto ligeiramente mais alto), estabeleceu-se o conjunto das relações de forma a uniformizar os sons e, portanto, a reunir dois sons quase semelhantes num só: por exemplo, dó sustenido e ré bemol, ré sustenido e mi bemol, mi sustenido e fá natural e assim por diante. Por este processo obtém-se uma escala total de doze sons (as teclas brancas e pretas do teclado totalizam doze notas), que constitui o “total cromático” do sistema, no qual os sons distam entre si de meio som — o intervalo mais claro e mais perceptível ao ouvido. Este sistema temperado (nome que deve a sua origem ao fato de se terem “temperado” as vibrações, apertando umas e alargando outras, para as trazer às doze alturas convencionais) inspirou a João Sebastião Bach o famoso Teclado Bem Temperado (e não cravo, como por vezes se diz), constituído por doze prelúdios e fugas nos doze tons do sistema, que era então uma novidade. Um tal sistema, a despeito de reduzir a extensão sonora a doze alturas bem definidas, acusa por um lado arbitrariedade e, sem dúvida, imperfeição, pois renuncia às riquezas das alturas sonoras “à margem”. Possui ele, contudo, o merecimento de simplificar o alfabeto musical, reduzindo-o a doze elementos. Na ausência de um sistema temperado, teria sido necessário recorrer a um sistema de vinte e uma notas, cada uma destas com a sua altura exata (matematicamente nas relações de vibrações), o que não teria deixado de tornar tudo mais pesado e complicado, impedindo, por exemplo, a prática da música polifônica ou orquestral. Além disso, pensemos no universo musical que nos legaram os séculos a partir desta escala temperada. Confessemos que ela de forma alguma impediu o desenvolvimento da técnica e do pensamento artístico.
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Se por um instante voltarmos às escalas, notaremos que certos povos da Antigüidade, tal como os Chineses, os Hebreus e os Japoneses, utilizavam as escalas pentatônicas (de cinco sons). Presentemente estas escalas ainda existem em algumas ilhas do Pacífico. Pouco sabemos das melodias pentatônicas, transmitidas por tradição oral (sem notação). Outros povos, tal como os Gregos, utilizavam a escala de sete sons, dita diatônica (cinco tons e dois meios tons).
Agrupando os sons, cuja altura praticamente se confunde, obtém-se o sistema cromático atual. Observemos que a escala de sete sons (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) pode, neste caso, ser percorrida três vezes: em bemóis ( b). em natural e em sustenidos ( # ). Só mais tarde é que virá a ser intercalado um som intermédio entre cada um destes sons, para assim se obter a escala cromática (doze meios tons). Os sistemas musicais da índia e da Arábia utilizam escalas que compreendem intervalos menores do que o meio tom, mas impossíveis de notar 12
na nossa escrita: o “quarto de tom” existe ainda em algumas músicas primitivas, que o utilizam inconscientemente por falta de uma organização sonora racional. Na nossa época, os compositores tentaram ressuscitar o quarto de tom e reintegrá-lo no nosso sistema musical. A experiência não podia deixar de ficar à margem, mesmo sendo de natureza a enriquecer a percepção sonora. O quarto de tom pode ser muito expressivo nas vibrações da voz ou de um instrumento, mas é necessário que um ouvido seja bastante sensível para o perceber, o que parece provar que o sistema temperado corresponde a uma realidade acústica. Note-se que o Ocidente teve o merecimento de simplificar os sistemas existentes, no intuito de torná-los universais. Esta tendência, constante nos povos europeus, tem-se manifestado desde os primeiros séculos da nossa era, prosseguiu na Idade Média e ainda hoje se verifica: a Europa propõe ao mundo um tipo de linguagem universal. Assim o nosso alfabeto literário, prático, espalha-se desde há séculos, ao contrário do que sucede com os complexos alfabetos orientais. Assim também o nosso sistema musical tende, desde os primeiros séculos da era cristã, a transformar os diversos sistemas anteriores do mundo oriental numa espécie de síntese. Empobrecida, sem dúvida, de certo modo por esta operação, a linguagem musical enriquece-se por outro lado. Por exemplo, se a instituição da “barra de compassos” (espécie de grade que, nas partituras, marca os tempos e a sua divisão) põe termo à arte subtil e rica do ritmo livre e matizado (característica que, nos nossos dias, o canto gregoriano ainda conserva), permite por outro lado a prática da música de conjunto, que, de outro modo, seria impossível. Mesmo a sujeição ao “tempo forte”, acento instintivo sobre cada primeiro tempo de um compasso, pode introduzir na música grandes riquezas expressivas e rítmicas. Mas todos estes fatos são a história da expansão ou da decadência de um sistema. Será possível, contudo, imaginar a impotência, a confusão e as limitações que teriam ameaçado a cultura musical, se a dispersão dos sistemas musicais se tivesse perpetuado...?
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II - AS PRIMEIRAS ERAS DA MÚSICA A pré-história musical
Terá existido uma música anterior a qualquer civilização? Existiu, sim, e é necessário referi-la, pois a música não surgiu subitamente um belo dia no decurso da história. Se nada sabemos, praticamente, sobre a pré-história musical, podemos pelo menos observar um fato: tão longe quanto possamos retroceder na história e imaginar, encontramos a música, ou pelo menos, certa música rude e sumária, cujo papel e função são já em potência o que serão ao longo dos séculos. De tudo quanto o nosso século descobriu sobre as origens do homem e as mais rudimentares condições de vida da humanidade primitiva, sobressai que a música, assim que se manifesta, é de ordem sagrada. A música é o ritual da existência e, simultaneamente' religiosa e profana, é ela que dá à vida quotidiana o seu sentido sagrado. Os homens das eras mais recuadas, vivendo rodeados de mistérios inexplicáveis e de terrores diversos, sem recurso perante a hostilidade da natureza e os enigmas da criação, utilizam, antes mesmo de saberem falar, uma linguagem que representa um meio de comunicação com os espíritos ou com as forças que os dominam, ou ainda com as divindades que comandam essas forças. Esta linguagem exprime a revolta ou a sujeição, a alegria ou o medo perante a vida, a morte, a doença, os fenômenos da natureza. Os homens dançam, gritam, batem em si próprios, pintam o rosto e o corpo, ora no intuito de conciliar a proteção dos deuses poderosos, ora de os afastar assustando-os. Desta forma aprendem o poder do ritmo e do grito, os dois elementos fundamentais de qualquer música. O encantamento, a fascinação hipnótica ou exaltante da obsessão do ritmo atingem — sem o freio dos mecanismos intelectuais — a sensibilidade dos primitivos. Estas considerações partem de um conjunto de fatos verosímeis: a préhistória musical tem sido objetivo de investigações científicas bastante recentes e constitui um vasto capítulo da história da música. Além do caráter ritual das primeiras manifestações sonoras, já comprovado, os instrumentos pré-
históricos, tais como chifres, ossos, objetos percutíveis, etc., fornecem outras indicações que confirmam as primeiras. Eis, portanto, a primeira faceta da música na aventura da humanidade: a música existe porque corresponde a uma necessidade fundamental de comunicar com o Além, com os mortos e os deuses, a uma necessidade intensa e profunda de atingir um segundo estado. Desde a sua origem, a música é, portanto, uma linguagem superior; não é a linguagem da razão e da vida quotidiana, mas a das grandes forças misteriosas que animam o homem. Nada existe de mais necessário o que esta música, que não é luxo nem prazer, mas, pelo contrário, a voz profunda da humanidade. Assim é esta “pré-música” que podemos imaginar nas sociedades ainda em estado embrionário; até é possível fazermos dela uma idéia bastante exata, se observarmos o papel atribuído à música nas sociedades que ainda permanecem primitivas nos nossos dias ou que, tendo evolucionado, conservaram contudo uma música de caráter religioso primitivo (Bali, índia, Arábia). Será, pois, lógico afirmar que a música primitiva é sempre sagrada, porque exprime essencialmente um sentimento, ou instinto, religioso. A expressão “música primitiva” indica uma música ritual constituída por cantos e ritmos baseados em motivos simples, repetidos obstinadamente, na maioria dos casos, com o fim de provocar o estado de transe. A música primitiva, tal como a dança, está carregada de símbolos: determinado ritmo, determinada feição melódica, ou determinado gesto, exprimem uma idéia precisa e tornam-se sagrados pela prática. “Primitivo” não significa pobre ou sumário, pois, dentro dos seus limites, a música primitiva exprime uma grande intensidade de sentimentos e, frequentemente, uma arte sutil da melopéia e do ritmo. Em termos mais simples, esta música não é erudita nem elaborada de acordo com as leis estéticas. Pensemos na expressão “pureza primitiva” e sentir-nos-emos mais próximos da verdade. Podemos, portanto, reter a seguinte imagem da pré-história musical: o emprego do ritmo (tambor, tanta, etc.), com o seu poder de sugestão psicológica; o emprego do grito, de início grosseiro, em seguida cada vez mais modulado, graduado, a fim de exprimir sentimentos cada vez mais diversos; finalmente o emprego da dança, primeiro como encantamento e trepidação, transformando-se progressivamente em linguagem e arabesco.
A Antiguidade Oriental
Os primeiros, exemplos de que dispomos sobre a existência de uma música sujeita e integrada numa ordem social, ética ou religiosa, são os que colhemos na Antiguidade: Egito, Mesopotâmia, China, Grécia. Treze séculos a.C., a China possui uma cultura musical. Vinte séculos a.C., o Egito utiliza uma música que consiste em cantos acompanhados por instrumentos, em danças de luto ou de júbilo, em cantos de cerimônias diversas: adoração do Sol, banquetes rituais, colheitas, etc. Os faraós têm os seus cantores e instrumentistas. Um dignitário, espécie de mestre de capela, está incumbido de tudo quanto diz respeito aos músicos e ao emprego da música. Harpa, trombeta, flauta, címbalos e campainhas formam um repertório instrumental bastante variado. Trinta séculos a.C., os Sumérios empregavam flautas de prata e de cana, harpas, liras; a sua música, exclusivamente religiosa, participava em todas as cerimônias e, segundo estudos muito recentes, sabe-se que a música desempenhou um papel extremamente importante na civilização sumeriana. A história ensinou-nos que os Hebreus dedicavam considerável interesse à música; o rei David, poeta e músico, é um ilustre exemplo deste fato. Possuíam cantos de guerra e de misteres, salmos e cânticos; os seus instrumentos eram igualmente a trombeta, a flauta, a harpa e vários tipos de tambores. Infelizmente apenas temos conhecimento deste imenso repertório musical por meio de frescos, textos teóricos ou ornamentações de alguns achados, tais como vasos, ânforas, etc. Alguns instrumentos foram assim encontrados nos túmulos. Mas como nos falta a notação musical, este precioso patrimônio não pode restituir a presença viva da música. Uma das principais características da música da Antiguidade, e que sobrevive até à Idade Média, é a sua forma monódica. Nota-se, efetivamente, que nas civilizações antigas nunca se fez menção de música a várias vozes: os conjuntos vocais, instrumentais ou mistos cantam e tocam em uníssono. Pôde, portanto, admitir-se como verosímil que a monódia, cuja existência se estendeu por vários milhares de anos, foi o único gênero musical conhecido pelas grandes civilizações antigas, que, de resto, atingiram na sua prática um extremo requinte. Mas tal fato não significa que a música tenha sido monódica de forma
sistemática e sem excepção. Assim, baseando-se na flauta dupla (3000 anos a.C.), capaz de emitir dois sons simultaneamente (é o caso do aulos grego), no órgão antigo (hidráulico), utilizado em Alexandria 300 anos a.C., e no qual dois tubos podiam funcionar ao mesmo tempo, e, finalmente, nas diferenças de registo vocal entre homens, mulheres e crianças, é fácil admitir que uma polifonia rudimentar tivesse podido existir muito antes do aparecimento, na Idade Média, da polifonia como ciência organizada. As vozes humanas de registo diferente podiam cantar a oitava, em uníssono ou ainda a outros intervalos (terceira, quinta), inconscientemente. Outras formas elementares de polifonia podiam ter sido, por exemplo, o acompanhamento de uma nota de baixo contínuo durante o canto; ou um tocador de lira podia entregar-se a diversas variações sobre a linha melódica do cantor: notas mais graves ou mais agudas, ritmos contrastantes, etc. Considerando, contudo, as teorias da Antiguidade, assim como a música que esta nos legou, temos de admitir que tais polifonias, verossimilmente limitadas a duas vozes, fossem utilizadas sem que tivesse surgido a idéia de estabelecer uma teoria ou de regular o seu uso. Eram sem dúvida “acidentais” e em nada prejudicavam o princípio da monódia. Tal como na Pré-História, observa-se em todas as civilizações da Antiguidade que os acontecimentos da vida quotidiana de uma coletividade, as suas manifestações religiosas ou guerreiras, os seus múltiplos ritos são acompanhados de música. Não existe cerimônia onde ela não tenha o seu lugar. Dessa forma alcança uma importância considerável na ordem social: o seu uso não se limita à prática do canto ou de um instrumento, imas faz parte da formação moral do cidadão. Exprime os sentimentos da comunidade e não os de um indivíduo, é a linguagem do grupo que assim atinge a sua unidade espiritual. Foi confiada aos sacerdotes, aos músicos e aos poetas, que se incumbiram de traduzir o sentimento comum. Durante estes milênios e até à Idade Média, a _ música não é considerada como uma arte; esta noção só começará a manifestar-se a partir do momento em que a música se libertará do seu papel puramente ritual. As transformações da Idade Média — aparecimento da notação musical e, em seguida, da polifonia, o desenvolvimento da música profana e erudita, os instrumentos
inéditos—darão à música um aspecto e um significado totalmente diferentes do que haviam sido no decurso dos séculos anteriores. Ao descobrirmos a intensa vida musical que impregnou as civilizações não européias da Antiguidade, não podemos deixar de pensar nesse passado que continua a viver, por vezes de forma surpreendente, nos seus monumentos, frescos, desenhos, estatuária e objetos, enquanto a sua voz se extinguiu e a sua música permanece muda, manifestando-se apenas por sinais e enigmas. O único esforço que podemos fazer é decifrar esses enigmas, dar uin sentido a esses sinais e tentar imaginar, sem poder ressuscitá-la, uma música que hoje é apenas uma língua morta. A Antiguidade Greco-Romana
Já anteriormente evocamos a Antiguidade Greco-Romana; voltemos apenas por alguns instantes a esse mundo, berço da música ocidental.
Egipto: tocadora de lira (cerca de 1500 a. C.) Grécia: tocadora de citara (cerca de 500 a.C.)
É justo dizer que foi a Grécia que nos legou a música, visto que impôs, além do seu sistema musical pitagórico, uma poética musical que se tornou um modelo. O que foi possível reconstituir, pelos raros documentos que chegaram até nós, permite afirmar que: 1.° A música grega é essencialmente vocal; os instrumentos desempenham apenas um papel de acompanhamento. 2." A função da música é simultaneamente religiosa e social, constituindo o ritual da vida coletiva. 3.° O emprego da música encontra-se estritamente regulamentado; o sistema musical compõe-se de sete modos; cada um destes modos possui um carácter bem determinado, cujo uso está fixado por lei. 4." A música é monódica; quando um instrumento a acompanha é em uníssono. A escala grega é diatônica (as teclas brancas do nosso teclado). Os Gregos conheciam igualmente o gênero cromático, que comportava intervalos menores que o diatônico, mas apenas em determinadas alturas da escala. Se a escala é uma sucessão de notas, o modo é a maneira de dispor essas notas. Cada nota da escala dava origem a um modo diferente. Para imaginarmos a importância dos modos, lembremos que a nossa época emprega, desde a Renascença, apenas dois: o maior e o menor, o que, portanto, empobreceu as possibilidades de modificação das escalas. Os nossos modos são “ascendentes”, enquanto os modos gregos eram “descendentes”; ainda se encontram vestígios dos modos gregos nos modos de igreja, que deles são originários, bem como na música popular espanhola ou na música árabe. A explicação deste fato é simples: alheia ao movimento de evolução da música erudita na Europa Ocidental, a música popular ou religiosa da bacia mediterrânea, tendo conservado as suas tradições, permanece ainda hoje igual ao que era há dois mil anos, enquanto a música européia se afastava em busca de novos caminhos. A música grega, que possuía, sem dúvida alguma, um repertório muito vasto, deixou-nos pouca coisa: um fragmento de um coro para a Oréstia, de Eurípides, dois hinos a Apoio (século n a.C.), o Hino ao Sol, de Mesomedes de Creta, um hino cristão de Oxyrhinchos. Os Gregos possuíam igualmente um sistema de notação sumário, constituído por letras; juntamente com os escritos dos teóricos, este elemento permite reconstituir um conjunto que deve ter sido
muito rico e do qual o canto da Igreja Cristã nos dá uma idéia, uma vez que praticamente todo o seu repertório descende dele. Se os documentos materiais não são numerosos, sabemos, em contrapartida, que a cultura grega deve muito à música e à sua influência sobre os costumes. Se as obras musicais são raras, sabemos que a formação moral do cidadão se apoiava na música e parece ser evidente que a espiritualidade grega foi fecundada pela música. Platão professa, na sua República, que a música deve guiar a juventude para a beleza e a harmonia espiritual. Aristóteles preconiza a “purificação pela música”, não obstante reconhecer que esta pode ser um divertimento, como por exemplo depois do trabalho. Se os cultos de Apoio e de Dionisos têm os seus fiéis, apenas os dissolutos celebram o deus do prazer nos seus banquetes, com melodias e ritmos, cantos e danças incitando à licenciosidade. Mas ninguém se ilude e a verdade surge nos filósofos e na mitologia. O teatro tem os seus coros e os seus intermédios instrumentais, que acompanham a tragédia; as Panateneias, festas em honra de Atenas, são dotadas de cantos e de danças nobres; os Jogos Píticos evocam a luta de Apoio e do monstro Pitão, com o auxílio de uma música descritiva. Cerimonias religiosas, cortejos, festas profanas, estes acontecimentos não se realizam sem música. Os aedos, poetas-cantores discípulos de Orfeu, subjugam a multidão com as suas grandes obras de caráter épico, acompanhadas pela cítara ou a lira. Esta descrição conduz-nos aos instrumentos, cujo domínio é mais conhecido: além do fato de estes instrumentos terem sido frequentemente reproduzidos em efígie, encontrou-se um grande número deles. Por outro lado, é certo que o princípio da ressonância dos instrumentos foi sempre o mesmo desde as épocas mais recuadas. Os consideráveis aperfeiçoamentos introduzidos nos instrumentos musicais desde há alguns séculos não trouxeram qualquer modificação neste capítulo. Tão longe quanto possamos retroceder, a percussão o sopro e a corda têm constituído os três tipos de ressonância: bater numa superfície vibrante, soprar num tubo ou ferir uma corda, são os três processos de que o homem mais primitivo pôde ter conhecimento. Da corda tensa nasceu a harpa, a cítara, a lira (cordas pinçadas) ou o ravanastron (Ceilão, 5000 anos a.C.), primeiro instrumento de arco. Do tubo surgiu a siringe, a flauta, o aulos (espécie de oboé, que os Gregos consideravam como
dionisíaco), a trombeta, a buzina, etc. Quanto à percussão, deu origem às castanholas, aos diversos tipos de tambores e tantas. Certos instrumentos em nada evolucionaram desde a Antiguidade, exceto nos pormenores. Outros, tais como as “madeiras” ou a família dos violinos, adquiriram novos meios técnicos desde há apenas trezentos anos. Quando o Império Romano sucedeu às repúblicas gregas, absorveu uma grande parte da sua música e inspirou-se na ordem e na beleza helênicas. Durante muito tempo músicos gregos tomaram parte na vida artística romana, verossimilmente ensinado ou, pelo menos, introduzindo o seu exemplo e as suas tradições. Privada, contudo do espírito que comandava a sua existência e da sua antiga força espiritual, a música romana torna-se mais prosaica, mais dura, mais exterior; exaltando a glória militar e a grandeza dos césares, vulgariza-se: a tuba, a trompa, o órgão, a buzina, instrumentos de maior potência sonora, acompanham os combates dos gladiadores. A decadência, helênica dilui-se no poderio romano: os vestígios da música pertencentes ao apogeu da civilização grega vêm morrer num mundo regido por uma escala de valores diferentes. No primeiro século da nossa era, a música em Roma destina-se ao povo, música de folguedo, de circo, de dança, que se tornará rapidamente trivial ou libertina. Em suma, ao passar da Grécia para Roma, a música degenera; perde o seu sentido e a sua nobreza. É, contudo sob esta forma que vai penetrar no Ocidente, pois será nos amplos fundos legados pelas civilizações antigas que os cristãos irão colher os cantos que lhes servirão de senha. É de resto através destes cristãos, bom como das tradições conservadas em certos meios patrícios, que poderá sobreviver uma música superior.
Os instrumentos antigos vistos por um musicólogo do século XVIII (Ensaio sobre a Música Antiga e Moderna, de Laborde)
III - A MÚSICA CRISTÃ A época gregoriana (séculos III a XI)
Posto que os informes sobre a música nos princípios do cristianismo sejam escassos, sabe-se, contudo que esta aparece associada à liturgia desde as primeiras manifestações do ritual cristão. Acompanha os primeiros gestos rituais do partir do pão (a ceia) e as reuniões culturais. Assim nascem os salmos monódicos, destituídos de qualquer artifício; assim a sublimação dos arrebatamentos espirituais dos participantes se exprime por meio de uma simples linha melódica cheia de sentido. Os cânticos e as longas melopéias dos primeiros séculos da era cristã constituem uma oração cantada, cuja pureza vai acentuar-se constantemente. Originário das tradições judaicas (salmos e cânticos do Antigo Testamento), gregas e pagãs, o canto de igreja está edificado sobre os modos descendentes da Antiguidade; a sua melodia flexível alia-se ao texto segundo um ritmo livre (cantochão, oposto ao canto medido, que fará a sua aparição pelo século XIII). Na sua simplicidade, o canto de igreja representa, ao longo da história e a despeito das consideráveis transformações da música erudita, um exemplo de perfeição, de equilíbrio exato entre a expressão e os meios pelos quais se exterioriza. A melodia, ou melhor, a monódia religiosa, basta-se a si própria, sem necessidade de recorrer à harmonização ou à instrumentação; exprime, com supremo requinte, as menores graduações do texto. Assim a “oração cantada” da Igreja Cristã representa já um dos pontos culminantes da espiritualidade. Esta liturgia das primeiras épocas, síntese de um patrimônio legado pela história, foi marcada pela personalidade de um homem: Santo Ambrósio, bispo de Milão no século IV. A música que o precede pode ser chamada música cristã primitiva. Santo Ambrósio introduziu na sua diocese antífonas e hinos vindos do Oriente, integrando na missa os modos do rito bizantino, derivados dos modos gregos, subtis e eruditos: estes impregnaram o “rito ambrosiano” de cantos vocalizados extremamente flexíveis, onde abundam os “pequenos intervalos”, que produzem uma expressão mais sensual. Esta expressão será combatida pelos neopitagoristas, que reclamam para a Igreja um canto menos “efeminado” segundo o seu critério. Os chefes da Igreja, inquietos por verem
que os fiéis se afastam de uma liturgia que lhes é estranha (e demasiado erudita, acrescentam eles), tentarão regressar à aplicação dos modos gregos clássicos, isto é, diatônicos 1 . Em 387 Ambrósio efetua o batismo de Agostinho de Hipona, o futuro Santo Agostinho (354-430). Este vai propagar o salmo ambrosiano e redigir o tratado De Música, de grande importância para a teoria do canto de igreja e surge como um dos primeiros grandes pensadores e teóricos do canto litúrgico. Aproximemos do seu nome o de Boécio (475-526), nobre romano, autor do tratado De Institutione Musica, súmula dos conhecimentos teóricos do mundo greco-romano. Esta obra, característica de uma tendência então espalhada, considera a música unicamente como uma ciência, dentro da tradição pitagórica. Sabe-se que este conceito influenciará a evolução da música até à Idade Média. Voltemos a Santo Ambrósio, que, por sua iniciativa, difunde a liturgia ambrosiana na Gália. Ao espalhar-se, contudo, esta liturgia tem tendência a transformar-se. Na Provença, na Alemanha, na Espanha, desenvolvem-se liturgias locais, que empregam associações de modos e de línguas: com efeito, a “língua vulgar” aparece frequentemente, alterando o texto e a melodia. Pouco a pouco manifesta-se uma espécie de vasta anarquia, inconsciente, que ameaça tornar-se heresia, conduzir aos cismas e até, por fim, fazer ruir a estrutura da própria Igreja, fragmentando-a em tantas liturgias — e depois igrejas —, quantos ritos locais existam. A abundância de liturgias põe em jogo nada menos do que a unidade da Igreja. A ausência de notação favorece esta dispersão: o impulso vigoroso que os chefes da Igreja tentam transmitir através da Europa, perde a sua força ao chegar aos confins da cristandade, em terras longínquas onde o temperamento dos homens, o clima, os gostos, tendem a dominar. Torna-se necessário efetuar uma enérgica reforma, pois na Alemanha triunfa o ritual gelasiano, fundado por Gelaso I, e que sobreviverá até ao século IX. Em Espanha reina o rito moçárabe, associação de cantos gregos, romanos e
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Podemos imaginar uma comparação — exacta na essência, senão no pormenor: a melodia cromática é sensual, suaviza os contornos, é lânguida. A melodia diatónica serve melhor a expressão viril, os contornos nítidos, o sentimento são. Beethoven utiliza o diatonismo, Wagner o cromatismo.
orientais, em uso nas comunidades cristãs misturadas com os conquistadores árabes. Este rito ainda existirá na Renascença em alguns pontos do território. Em diversas ocasiões, Carlos Magno vê-se forçado a chamar a atenção dos bispos para a necessidade de observância do rito romano. Uma ordem sua nesse sentido ficou célebre: Revertimini vos ad fontem sancti Gregorii, quia manifeste corruptistis cantum. (“Voltai às fontes de São Gregório, pois estais manifestamente a corromper o canto”). Quem é este São Gregório, a quem a cristandade é solenemente convidada a referir-se? Papa no século VI, Gregório I, tal como os seus predecessores, é testemunha do desenvolvimento— rico mas inquietante—da liturgia romana, das transformações do rito ambrosiano, da vitalidade dos ritos bizantinos, célticos, moçárabes. Aplica-se então a reprimir esta enorme proliferação e a estabelecer a unidade da liturgia romana através da Europa. E é assim que o repertório do canto religioso é depurado das cantilenas de caráter oriental, que numerosos intervalos melódicos são corrigidos e se regressa a uma severa disciplina de expressão, que rejeita tudo quanto possa ser chamado lirismo. Além disso, este canto, estabelecido num tipo gradual (o Antifonário, coletânea dos cantos da Igreja romana), é imposto a toda a cristandade; enviam-se missionários a todas as dioceses, a fim de ensinar o canto de igreja. Esta reforma, que fixa definitivamente o rito, comporta sem dúvida o perigo de impedir qualquer evolução ou enriquecimento eventuais; em contrapartida, desenvolve a intensidade da sua expressão, a sua exaltante austeridade. Foi assim que este canto, doravante chamado gregoriano, adquiriu essa simplicidade luminosa, essa gravidade apaziguadora e, talvez possamos acrescentar, essa suavidade romana que só nele se preservou enquanto desaparecia à sua volta, e graças à qual sobrevive intacto desde há treze séculos. Não é bem conhecida a obra verdadeira de Gregório, mas pode razoavelmente atribuir-se-lhe o merecimento da reforma do canto religioso; é lícito supor que, se não foi o único a agir nesse sentido, foi pelo menos ele que, tanto pelos seus próprios trabalhos, como pela sua autoridade, reuniu os escritos dos teóricos seus predecessores e contemporâneos. O gregoriano iria, portanto, ser doravante o canto oficial da Igreja Cristã. Contudo, no século XIX, julgou-se necessário efetuar uma nova reforma e
desta vez foram os beneditinos da Abadia de Solesmes, em França, que ligaram o seu nome à paciente revisão do repertório litúrgico. A Edição Vaticano, versão oficial do canto gregoriano após esta revisão, foi publicada em 1908. É oportuno notar que as monódias gregorianas conservam a sua pureza nos ofícios divinos dos conventos beneditinos, mas na nossa época estão harmonizadas e são acompanhadas pelo órgão na maioria das igrejas. Este sistema, de prática tão corrente que os fiéis nem reparam nele, está contudo em contradição com o espírito da monódia, que se basta a si própria. Além disso, o estilo das harmonizações encontra-se muito frequentemente em oposição com toda a estrutura modal destas monódias. O canto gregoriano é p núcleo de toda a música ocidental: tal facto explicase facilmente. A canção popular da Idade Média, que é anônima, tem a sua fonte na igreja, pois a vida do povo permanece estreitamente ligada à das comunidades religiosas. O povo reúne-se em volta das igrejas ou das abadias e conventos. A música sacra é a única a que ele tem acesso e é inconscientemente que ele cantarola o que ouviu nos ofícios, transformando, ornamentando, alterando ou ritmando segundo a sua fantasia os cantos rituais ou inventando melodias inspiradas nestes. As mais antigas canções que possuímos são testemunhos surpreendentes desse mimetismo entre a melodia religiosa e a profana: assim, as canções de misteres, baseadas em ritmos funcionais (gestos de ofício, etc.), reproduzem contornos melódicos próprios do canto gregoriano. Pouco a pouco a canção separar-se-á deste completamente, mas conservará, não obstante, a escala descendente, que evoca com precisão o canto de igreja. A primeira fase da história da música na era cristã pode situar-se entre os séculos I e X, isto é, no decurso de um período em que o canto litúrgico se estabelece, após algumas hesitações, e se torna no servidor imutável da estabilidade da Igreja. Simultânea e progressivamente desenvolve-se o canto popular, segundo os legítimos anseios do povo, que deseja folguedos. O final desta primeira época situa-se no momento em que esses folguedos adquirem tal importância que são rejeitados pela Igreja e em que, ao mesmo tempo, os progressos da teoria musical dão lugar, .por um lado, à notação e, por outro, ao nascimento da polifonia.
Instrumentistas egípcias tocando flauta dupla, alaúde e harpa (fresco tumular de um sacerdote de Amon, cerca de 16001800 a.C .;
Tipos de instrumentos gregos, no século V a.C.: o aulos, oboé duplo, era utilizado nas bacanais e nas festas profanas (taça ática)
A cítara acompanhava os cantos e a poesia lírica (terracota beociana)
Vaso para refrescar, do século V a. C. A lira era o atributo da poetisa Safo e do poeta Alceu
Começa então uma segunda fase da história da música. Verificaremos, efetivamente, que a evolução da vida social na Idade Média introduz notáveis modificações nas festas religiosas: diversos elementos profanos (cantos e danças), assim corno a língua vulgar, são integrados como intermédios nos ofícios divinos. Estes elementos vão intensificar-se até desfigurar o aspecto da cerimônia religiosa, tanto mais que não desprezam os temas de atualidade, nem os de inspiração libertina. Em breve se produz o rompimento inevitável entre estes dois gêneros inconciliáveis e a Igreja rejeita do seu seio tudo quanto é exterior à cerimonia propriamente dita. Assim regressa à pureza primitiva, restitui a missa o seu sentido real e apenas autoriza as representações profanas no adro das igrejas. Desta atitude resultará para o espetáculo profano a
possibilidade de se desenvolver livremente, provocando assim o nascimento do teatro. Estas representações, jogos, ou “mistérios”, como lhes chamavam, meio religiosos, meio profanos, ilustram, ora a Paixão, ora a história de Adão e Eva, ora qualquer outro tema tirado das Escrituras onde, por vezes, figuram alusões à crônica da época. A época gregoriana encontra-se mais ou menos contida entre o século III e o século XI. Mas no momento em que, sob o impulso das forças profanas, a missa se dilata desmedidamente e se torna ela própria meio profana, no momento em que ocorre a separação entre a oração e os divertimentos que tinham tentado associar-se-lhe, nesse momento termina a época gregoriana, isto é, a longa sucessão de séculos durante os quais o estilo gregoriano dominara a arte musical. Quando se examina a história deste período, verifica-se que a música escapou à regra geral da evolução que marca tanto o destino dos homens como o das suas criações artísticas. A que atribuir esta fixidez? Ao fato de a música, sendo essencialmente religiosa, ritual, atingir plenamente o seu fim ao participar na oração. Estranha à vida do século, não é afetada pelas leis da evolução: no exterior, os homens agitam-se e a vida transforma-se; no seio da Igreja, a música permanece contemplação e adoração. Mas esta imobilidade vai terminar no século XI; associada ao ritmo da vida e às aspirações dos homens, a música profana vai, de certo modo, “recuperar o atraso”, seguir o movimento das idéias, responder à poesia e à pintura. Haverá doravante uma música religiosa e uma música profana e esta última dividir-se-á em breve em música popular e em música erudita. Estes três tipos, gerados em graus diversos pelo canto gregoriano, constituem toda a música desde há dez séculos. A notação musical
Um dos problemas mais árduos que o homem teve de resolver na história da música foi o da notação. Foram necessários séculos de pesquisas para encontrar uma forma de fixar por meio de um sistema de escrita os dois dados fundamentais de uma notação musical: a altura e a duração dos sons. Tais pormenores, que nos parecem simples, representaram durante muito tempo
uma incógnita para os investigadores. Ora a música padeceu certamente desta falta de notação, visto que o essencial das criações musicais da Antiguidade caiu no esquecimento e que, por outro lado, tal ausência alterou, sem dúvida numa medida por vezes considerável, cantos deformados pela tradição oral. Os Gregos e os Romanos designavam as notas por meio de letras do alfabeto. A Índia e a China empregavam igualmente uma notação, mas deve observar-se que nenhum sistema antigo pôde impor-se à Europa, uma vez que a escala modal de sete notas e os intervalos utilizados nas melodias nada tinham de comum com os sistemas musicais antigos e orientais. Julga-se que Boécio foi o primeiro a designar os sons estabelecidos por Pitágoras por meio de letras latinas, substituindo assim as letras gregas usadas até então. Contudo desenvolveu-se um sistema, cujos primeiros documentos se situam cerca do século VII. Este sistema, inteiramente empírico, baseava-se na analogia entre o ouvido e a vista e iria tentar “desenhar” a linha melódica com o auxílio de linhas e de pontos, reproduzindo os seus contornos com maior ou menor fidelidade. Impreciso na origem, iria, ao aperfeiçoar-se, dar nascença à nossa escrita musical e revelar-se apto a notar a música nos seus múltiplos pormenores. Este sistema é a notação neumática. Os neumas consistiam numa espécie de taquigrafia, correndo por cima do texto religioso e indicando, pelas diversas formas dos sinais utilizados, as subidas, descidas, ornamentos e paragens do canto. Efetivamente, a única utilidade dos neumas, nesta fase tão primitiva, era a de auxiliar a memória do cantor na igreja. Mas iriam desenvolver-se de forma inesperada; nas abadias e nos mosteiros, os clérigos procuravam infatigavelmente um processo para dar forma a este velho sonho: fixar no papel um fenômeno de pura imaterialidade como o som, com as suas particularidades secundárias. Tantos esforços não foram vãos: surgiu a idéia de dispor os neumas em volta de uma linha traçada ao longo do texto, encontrando-se o primeiro som da melodia fixado sobre esta linha. Desta forma precisava-se a identificação dos intervalos. Depois traçaram-se duas linhas de referência, em seguida três e, finalmente, quatro; sobre e entre estas linhas (o seu afastamento designava o intervalo de terceira) dispunham-se os neumas, doravante muito mais precisos quanto à altura. As quatro linhas (chamadas “pauta”) permaneceram associadas à escrita do cantochão de igreja, enquanto a
música profana utiliza a pauta de cinco linhas, dada a extensão da escala sonora que percorre. Estando a altura dos sons praticamente definida pelo sistema de linhas (com um som sobre cada linha e um som entre cada uma destas, os sete sons da escala eram notados sobre quatro linhas e três entrelinhas), tornava-se ainda necessário indicar a duração destes sons. Diferentes formas convencionais forneceram uma primeira apreciação. Foi assim que se elaborou progressivamente um sistema de sinais em forma de quadrados ou de losangos, dispostos sobre e entre as linhas, cada um representando um som. A sua dimensão, a maneira de agrupá-los ou de lhes associar um traço vertical, indicavam uma série de durações diferentes. No século XIII surge a notação proporcional, estabelecida a partir da notação quadrada. Temos aqui um exemplo, que nunca mais se modificará, da escrita musical utilizada para os cantos da missa gregoriana; será apenas por intermédio da música profana que esta escrita evolucionará ainda para a notação redonda, a pauta de cinco linhas e as divisões binárias dos valores das notas (uma semibreve vale duas .mínimas, ou quatro semínimas, ou oito colcheias, ou dezasseis semicolcheias, etc.). Dois teóricos da Idade Média deixaram os seus nomes ligados à história da notação musical: o monge Hucbaldo (840-930), professor, autor do tratado De Harmonia Institutione, que verosimilmente estabeleceu a pauta de quatro linhas; e o beneditino italiano Guido d'Arezzo (980?-1050), que efetuou um importante trabalho de fixação das cantilenas litúrgicas e passa por ter completado a pauta de quatro linhas. Foi ele também que atribuiu aos sons os seus nomes definitivos, mas de uma maneira inesperada, onde o acaso desempenhou um papel; sucede que o canto de um hino a São João Baptista é concebido em “escada”, o que quer dizer que cada verso começa num grau mais alto que o precedente.
A progressão da notação musical entre os século X e XV:
1. Neumas franceses do século X — 2. Notação de um canto litúrgico na pauta, no fim do século XII — 3. Página de cantochão de um livro de missa do século XIII, pauta de quatro linhas — 4-Antifonario do século XV, com notação proporcional, pauta de cinco linhas.
Fragmento com neumas do manuscrito 239 de Laon, Metz, escrito por volta de 930.
Laon 239 de Metz (cerca de 930) nos dá um pouco mais de informação quanto à melodia
Pauta de 4 linhas
Pautas de 4 linhas
O texto é o seguinte: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Sancte Johannes, o que significa: “A fim de permitir que ressoem nos corações as maravilhas das tuas ações, absolve o erro dos lábios indignos do teu servo, ó São João.”
Sucede também que o primeiro verso ut queant laxis começa pela nota tradicionalmente chamada C, segundo o hábito adquirido no momento do aparecimento dos neumas, e que designava os sons fixos da escala sonora pelas sete primeiras letras do alfabeto. O hino a São João começa, portanto, por C: Chamar-Ihe-ão Ut. O segundo_começa por D, chamar-lhe-ão Ré, e assim por diante. Restam dois pontos que se torna necessário explicar: Por que motivo a denominação assim elaborada compreende dois nomes, Ut e Dó para a mesma nota? Porque o primeiro verso começa sobre Ut e o regresso do Ut, oito graus mais acima, recai sobre a oitava deste som, onde o cantor termina dizendo “Domino”. De onde provem o nome Si para o sétimo grau? Das iniciais Sancte Johannes, o J confundindo-se com o I. Eis portanto, a escala de sete notas estabelecida a partir do som Ut. Este desnível de duas notas em relação à escala antiga de Lá (A) estabelece simultaneamente o tipo de escala maior em Dó, tal como a conhecemos hoje. Por meio de uma série de modificações subtis e pelo emprego de graus elevados ou abaixados, o sentido (“tonal” vai desenvolver-se durante a Idade Média e fazer recuar pouco a pouco o sentido “modal”, que havia prevalecido desde a Antiguidade, e se conservará no canto de igreja.
A música tonal, a escala ascendente, embriões de todo o nosso sistema musical profano, abrirão caminho mercê dessas descobertas e teorias, que alargarão as fronteiras que limitavam a música desde há cerca de dez séculos.
Guido d'Arezzo e um discípulo (miniatura do século XII)
IV - A IDADE MÉDIA
Por volta do século X, a fisionomia da sociedade européia modifica-se progressivamente: O Ocidente organiza as suas estruturas feudais e divide-se em vilas burguesas, em castelos e em conventos. Os castelos dos suseranos são os centros do poder e da autoridade militar, que se estendem às regiões vizinhas. Nesses tempos em que os nobres guerreiam permanentemente entre si, os conventos são o refúgio da vida espiritual, mas até estes nem sempre escapam às devastações que por vezes os arruinam. As vilas esboçam-se, centros econômicos e sociais que prefiguram as grandes cidades futuras. No que respeita à música, deu-se uma grande transformação desde o tempo em que o gregoriano reinava sozinho sobre a Igreja e o povo. Num movimento constante, lento mas irreprimível, a música profana, como já vimos, invadiu a Igreja, sendo em seguida rejeitada por esta, e assistimos à separação destes dois gêneros por volta do século X. Doravante vai operar-se a associação da música erudita e da música popular, ambas profanas. Quando qualquer delas tiver adquirido força autônoma, separar-se-ão por sua vez. Dissemos mais acima que o canto religioso não evoluciona; é exato. Teóricos, copistas, professores, protegeram a cantilena litúrgica de qualquer agressão exterior. Por outro lado, os compositores (o que, na Idade Média, significa os “mestres de canto”) pretenderam enriquecer o gregoriano, conferir-lhe maior variedade expressiva ou decorativa; com a polifonia, vão adorná-lo de vestes sumptuosas. Mas primeiramente desenvolveram um gênero que assumiu grande importância: o tropo. Amplificação do canto litúrgico, o tropo é uma improvisação de vocalizes. O tropador, precursor dos trovadores, é um trouver 1 na acepção medieval. Dá livre curso à sua inspiração quando chega à palavra “aleluia”: ornamentando-a, prolongando-a, acabará por conferir-lhe tal amplitude que o tropo tornar-se-á numa verdadeira peça separada. Transformar-se-á na sequência, trecho original que perdeu as suas ligações com a Aleluia, e que se cultiva em todos os conventos europeus, sobretudo em Saint-Martial de Limoges e em Saint-Gall. Neste último, o monge Notker (830-912) deixou diversos modelos de sequências. 1
Do francês trouver — achar, encontrar — significando, portanto, “aquele que encontra”. (A1, da T.)
A sequência chama-se igualmente jubilus (canto alegre). Longínquo ante passado dos vocalizos ornamentais e expressivos do bel canto, o jubilus designa qualquer improvisação sobre a Aleluia, improvisação que exprime júbilo espiritual. Esta alegria da alma não conservará sempre a sua pureza de intenções: o jubilus representa uma tentação para a virtuosidade, o prazer sensual da voz e da expressão. Este gênero, que se conservará do século VII até ao século XIV aproximadamente, será condenado pelo Concílio de Trento (1545-63), devido aos excessos que origina. O tropo e a sequência desaparecem então da cena, mas já se haviam introduzido na música profana e desempenhado um papel eminente no estímulo da criação musical da Idade Média, de que foram um dos fermentos ativos. Sem tais elementos, a música religiosa teria estagnado numa tradição que recusava absorver qualquer idéia nova. A este propósito, será interessante fazer notar que tal tradição, firmemente mantida através de vinte séculos, só conseguiu sobreviver graças a um equilíbrio harmonioso e prudente, constantemente discutido, entre os princípios intangíveis do estilo religioso e certa infusão de sangue novo cuidadosamente controlada. Os legisladores da Igreja conseguiram sempre repelir riquezas que pudessem asfixiar a pureza do gregoriano e que assim iam manifestar-se à margem dos ofícios divinos. É, contudo, este movimento de enriquecimento do canto religioso que vai caracterizar a Idade Média, provocar o nascimento da polifonia, favorecer o desenvolvimento dos grupos instrumentais e, finalmente, originar a floração polifônica, que atingirá o seu apogeu no século XVI. Trovadores (séculos X-XIII)
Duas correntes opostas, mas igualmente vigorosas, irão marcar a Idade Média: as correntes religiosa e profana. Como se desenvolve a música profana? De duas formas, uma popular e outra aristocrática. O povo canta e dança, ela borando um inteiro repertório de melodias ritmadas conforme as necessidades do trabalho (canções de ofícios), e impõe um quadro simétrico a estas melodias. A simplicidade do ritmo e da melodia é necessária no canto popular para facilidade de compreensão e de memória. Assim se explica a existência de estribilhos e coplas curtos, repetidos em textos diferentes, e de fórmulas rítmicas
e melódicas impressionantes e sugestivas. Desta forma, a canção popular introduz na música um elemento do qual ela nunca mais conseguirá libertar-se: a barra de compasso. Esta permitiu notáveis progressos na escrita e, por exem plo, a possibilidade de execuções coletivas. Mas, ao mesmo tempo, impede a liberdade, a flexibilidade e as subtilezas do ritmo, tal como aparece no gregoriano e de que só ele conservou o segredo (excetuando algumas músicas rituais do Oriente). Trovadores
Marcabru
Gile de Vièle Mariont
A canção aristocrática permanece ainda estreitamente ligada ao gregoriano até cerca do século XIII, fazendo uso restrito da simetria rítmica. Esta canção aristocrática é o apanágio dos trovadores, cuja obra é considerável, em França, a partir do século XI até ao século XIII. Poetas líricos em língua de oil, então falada ao norte do Loire (onde se chamavam trouvières), ou em língua de oc, empregada ao Sul (troubadours), são na sua maioria nobres letrados que escrevem eles próprios os poemas e as músicas das suas canções; os assuntos escolhidos vão das Cruzadas à adoração da Virgem, passando pela sátira, a Primavera e o amor cortês. Nessa época cria-se o hábito de prestar homenagem platônica a uma dama, cantando-lhe ou enviando-lhe uma canção de amor. Amor cortês e cavalheirismo vêm suavizar os costumes muito rudes de uma sociedade inteiramente
preocupada com acções guerreiras. Realizam-se reuniões poéticas e musicais, chamadas “cortes de amor”, onde cantores e declamadores se defrontam em despiques apaixonados. As canções eruditas dos trouvières e dos troubadours (troveor: trouvère, trobador: troubadour) exerceram grande influência no desenvolvimento das formas musicais; existem histórias cantadas de forma livre, mas também canções de coplas e estribilhos ou onde se emprega repetidamente um motivo dominante. Existem canções-tipo, que dão origem a um repertório inteiro sobre o mesmo assunto: a “canção do pano”, que acompanha a fiação e tecelagem; a “canção da alvorada”, contando a separação dos amantes ao nascer do dia; a pastourelle, canção de pastora frequentemente dialogada, tal como o jeuparti, canção para várias personagens. Finalmente, as canções corteses, que evocam as alegrias e tristezas do amor. Na maioria dos casos a canção molda-se sobre uma forma poética, sendo assim que a balada, o rondo, o lai e o virelai devem os seus nomes e a sua estrutura ao exemplo literário que seguiram. Todas estas formas são de coplas e estribilhos. Devem acrescentar-se as canções de carácter político (sirventes) ou satírico, assim como o planh (planctus), lamentação fúnebre. No plano instrumental salienta-se também um gênero que se espalhou consideràvelmente: a estampida, dança tocada na flauta e ritmada pelo tambor, ou, mais tarde, acompanhada por um contraponto na viola. Por vezes a estampida, cujos ritmos se inspiram no domínio popular e se desenrola numa sucessão muito simples de motivos breves, é acompanhada de palavras. Salvo raras excepções, os trovadores inspiraram-se no canto gregoriano; além disso, associaram o canto religioso e o canto popular, as suas fontes de inspiração. O seu repertório musical, de que apenas um décimo chegou ao nosso conhecimento, devia representar perto de dois mil cantos. Não devemos deixar de referir igualmente um aspecto importante da arte dos trovadores: o aspecto social. Viajando eles próprios, a fim de irem declamar e cantar os seus poemas e canções nas cortes vizinhas, os trovadores fazem-se também, por vezes, representar por menestréis e jograis pertencentes à sua casa e que atuam em seu nome, percorrendo as estradas de França, indo de castelo em castelo, de vila em vila e, em breve, de província em província. Nas praças públicas, nas salas de armas, ou seja onde for que os acolham, relatam
as proezas do seu senhor. Cantam evidentemente o repertório que este lhes ensinou, mas como pelo caminho vão vendo inúmeras coisas que se apressam a repetir, este repertório alarga-se à medida que eles próprios inventam canções, parodiando melodias ouvidas nas suas digressões. Acabam por misturar de tal forma as criações do seu senhor com as da sua própria autoria, que nem sempre se consegue saber a quem de fato pertencem. Estas personagens errantes, e por vezes famélicas, percorrem as estradas, tanto no Verão como no Inverno, munidas da sua pequena harpa portátil ou de uma sanfona. Menestréis (cantores-poetas) e jograis (distraidores), ambos por vezes fundidos num só, tocam sem suspeitar de uma influência que ultrapassa a sua humilde atividade: as suas idas e vindas através da Europa tecem uma am pla rede de crônicas e de informações, contribuindo para um contínuo intercâmbio de idéias. Estes “portadores de notícias” difundem a lírica românica no interior de um território cuja extensão nos deixa hoje estupefactos, considerando os meios rudimentares de que dispunham para se deslocar. A rede dos trovadores cobre, nos séculos XII e XIII, toda a Europa: França, Alemanha, Países Baixos, Suíça, Itália, Hungria, Áustria, Portugal, Espanha, Inglaterra e Irlanda... Estes poetas são todos franceses? Sim, na maioria dos casos. De entre os trouvères podemos citar Adam de la Halle (Arras 1240 —Nápoles? 1287), Blondel de Nesles (Picardia, século XII), Thibaut de Champagne (rei de Navarra, Troyes, 1201-1253); de entre os troubadours, Guilherme IX de Aquitania, o mais antigo de todos os conhecidos (1071-1127), Bernard de Venta-dour ou Bernard de Ventadorn (Limousin, século XII), Jeanroy Marcabru (Gasconha, século XII), etc. Existem igualmente trovadores italianos no século XII. Quanto à Alemanha, sofreu este país intensamente a influência desse movimento poético e musical, que se manifesta pelo aparecimento dos Minnesánger (cantores de amor), de que Walter von der Vogelweide é um dos mais famosos representantes no século XIII, e dos Meistersànger (mestres-cantores), de entre os quais a história reteve sobretudo o nome de Hans Sachs (Nuremberga, 1494-1576), graças à homenagem prestada por Wagner, tanto ao homem, como à sua corporação.
A música na Alemanha no século XIV. Da esquerda para a direita: tambor, flauta, flauta de cana, vièles, saltério e gaita de foles. (Manuscrito de Manesse, por volta de 1300) Os Meistersànger são posteriores aos Minnesánger; existem do século XIV ao século XIX aproximadamente, e esta sobrevivência até à nossa época explica-se pelo fato de que os mestres-cantores, contrariamente ao que sucedeu com os Minnesánger ou os trovadores, organizaram-se em corporações, editaram regras de admissão muito severas, estabeleceram uma hierarquia e conservaram ciosamente as suas tradições. Beneficiando dos privilégios e da prosperidade dos comerciantes, artífices e burgueses, a arte destes mestres-cantores e a sua atividade manteve-se, pois, dentro de um campo bastante limitado e escolásti-
co; em contrapartida, tiveram o merecimento de conservar viva uma tradição musical e poética onde numerosas gerações irão colher a inspiração. Resumindo, verificamos que a importância do repertório dos trovadores, a variedade dos seus temas de inspiração, a influência da sua arte poética e musical nos gostos, nos costumes e nos espíritos, a sua difusão através da Europa feudal, todos estes fatores fazem deles os arautos de um poderoso movimento lírico que durante mais de dois séculos inspira o Ocidente. Foi graças a eles que a música profana alcançou grande popularidade. Consideremos, por exemplo, a apresentação do Jeu de Robin et Marion, de Adam de La Halle: não é cheio de novidade, de frescura? Trata-se de um ensaio de teatro cantado. O amor de dois jovens e as inúmeras peripécias que o contrariam são evocadas com o auxílio de árias “em voga” e de cantilenas ins piradas no gregoriano, segundo uma sucessão de monólogos e de diálogos (árias e duetos) em que o agradável se associa ao enternecedor. Esta obra pode ser considerada como a primeira ópera cômica. A fábula cantada Aucassin et Nicolette, cujo autor não foi identificado, conta uma bela e longa história de amor, cheia de situações a que hoje chamaríamos melodramáticas. A forma destas obras é simples: em primeiro lugar, canta-se, depois um instrumento (flauta, vièle) proporciona um intermédio e os solos e os duetos alternam, por vezes acompanhados em uníssono. Esta ingenuidade, esta simplicidade, caracteriza muitas produções da mesma época. A par das grandes epopéias, dos cantos ou das crônicas, elabora-se também uma música destinada a deleitar ou a divertir. Finalmente, uma última observação: a música dos trovadores é geralmente monódica. Os acompanhamentos instrumentais intervêm em uníssono; só muito raramente (no caso de Adam de La Halle, entre outros) assumem uma forma polifônica, por vezes simplesmente a duas vozes. A polifonia
Contraponto provém de “ponto contra ponto” (punctum contra punctum), alusão às notas, chamadas “pontos” na Idade Média. O contraponto é uma escrita de várias linhas (ou vozes), primeiro nota contra nota, em seguida combinando os valores (ou durações). A diferença, por vezes confusa, entre contra-
ponto e polifonia é simples: o contraponto é a técnica de escrita que produz a polifonia. A escrita contra-pontística, em que evolucionam diversas linhas melódicas mais ou menos diferenciadas em contornos e durações, levará vários séculos a atingir uma flexibilidade total, uma liberdade perfeita.
Alegoria medieval da música, com carrilhão, viola e saltério (portal oeste da Catedral de Chartres, século XIII)
Harpista. Pormenor do livro de tropos de Saint-Martial de Limoges (seculo XI)
Um episódio do romance de cavalaria Renaud de Montauban. Em primeiro plano uma harpa portátil (miniatura de Loyset Lié det, século XV)
Século XV, expansão da polifonia. No primeiro plano: Saltério, flauta e órgão portátil; no segundo: trombeta, viola, tambor e harpa (frontispício do livro de salmos de René de Lorraine) Precisemos que a polifonia pode existir sem contraponto: uma série de acordes, cada um deles colocado sobre as diferentes notas de uma melodia (num coral religioso, por exemplo), pertence à escrita harmônica (encadeamento de acordes fixos), mas forma uma polifonia, uma vez que contém várias vozes. Para simplificar, podem-se resumir assim os três termos: Polifonia: várias vozes. Harmonia: várias notas agrupadas em acordes. Contraponto: várias linhas melódicas simultâneas.
Podemos encontrar a primeira—ou pelo menos uma das primeiras — manifestação da polifonia no século X no Música Enchiriadis, de Hucbald, no qual está anotada uma Rex Coeli, Domine Maris (“Ó Rei do Céu, Ó Senhor do Mar”) a duas vozes, a inferior fornecendo a melodia, a superior seguindo o desenho melódico a uma distância de quarta. Este processo, muito rudimentar, constitui na realidade o início da polifonia, chamado organum. (A etimologia, bastante complexa, pode resumir-se assim: o termo latino que deu origem à palavra “órgão” — instrumento — provém do grego organon que significa órgão vocal, voz). O organum, primeiro ensaio da arte polifônica, é, portanto, constituído por um contraponto paralelo a duas vozes, também chamado diafonia. Note-se que a polifonia faz a sua aparição no momento em que a notação musical se aperfeiçoa e a música profana se desenvolve. Ainda neste caso, os progressos da técnica evolucionam paralelamente ao aparecimento de ideias novas. As duas vozes do organum primitivo vão em breve adoptar outra técnica: o movimento contrário. Este simples achado enriquecerá consideràvelmente as possibilidades da polifonia, que assim se aventurará a acrescentar uma terceira e, em seguida, uma quarta voz à melodia principal, e por fim a variar as durações e os ritmos dessas diversas vozes. Será então que o contraponto encontrará as suas mais belas aplicações e que a escrita musical se .tornará numa ciência minuciosa e precisa. O que assim se resume numa frase representa, contudo, uma evolução lenta e difícil, que levará, desde o início até atingir a plenitude, cerca de seiscentos anos... Poderia perguntar-se por que motivo aparece a polifonia no decurso da Idade Média. Porquê numa determinada época em vez de outra? Por que motivo ninguém tinha pensado na polifonia anteriormente? Pode admitir-se, contudo, que ela não surgiu devido a um simples acaso. Seguindo paralelamente a evolução da música, bem como o grau de evolução social, a polifonia manifesta-se no momento em que se procura aumentar o poder expressivo das melodias dos ofícios religiosos, onde a sua nudez e a sua singeleza já não pareciam suficientes. A associação de uma voz à voz que canta a melodia provém desse desejo de ampliar as possibilidades do gregoriano, mas, simultaneamente, representa um
ato audacioso, correspondendo a uma audácia geral que marca os espíritos, a uma vasta corrente de progresso que a nossa época nem sempre reconheceu como devia. Na verdade, mencionam-se com mais frequência as “trevas” da Idade Média do que as suas “claridades”. O movimento polifônico espalha-se porque corresponde ao gosto e à curiosidade da época. É o gregoriano que serve de base aos primeiros ensaios de polifonia e, assim, será o canto de igreja que vai amparar a nova música. No século xi, por exemplo, surge o discantus, improvisação livre em movimentos paralelos e contrários ao canto litúrgico, que se experimenta nomeadamente na Catedral de Chartres. Uma palavra, de que os séculos modificaram totalmente o sentido, permanece ligada aos começos da polifonia: tenor. Proveniente de tenere (sustentar), o tenor é uma melodia cantada em valores longos, sobre a qual se desenrola o discantus em valores mais breves. O tenor sustenta assim a melodia principal, em volta da qual se tecem floreios diversos; o cantor a quem se confia esta voz torna-se uma espécie de protagonista. Foi nesse sentido que o termo transitou para a linguagem profana. O primeiro balbuciar da polifonia dá origem a diferentes gêneros, que mais tarde desaparecerão, mas que lhe trazem novas formas e definições: o gymel inglês, acompanhamento do canto à terceira inferior em movimento paralelo; o fá-bordão, ou falso-baixo, a voz à terceira superior cantando-se na oitava inferior (ainda hoje um cantor pode enganar-se na oitava e cantar abaixo de uma melodia que dobra julgando cantar acima); o conductus, peça litúrgica ou profana, que consiste num canto ornamentado por uma segunda voz. livre. Até aqui a música tinha sido anônima: tanto os cantos rituais como os populares não têm autores. Tão longe quanto possamos retroceder na história, am bos pertencem à criação coletiva (ou individual, imediatamente transmitida à coletividade), cuja origem permanece inevitavelmente misteriosa. Mas a partir do momento em que a música se desenvolve noutras direções, os nomes dos teóricos e dos compositores vão permanecer ligados à sua evolução. Já pudemos citar os nomes de Ambrósio e de Gregório, os primeiros a exercer sobre o canto religioso uma influência reconhecida pelos seus contemporâneos. Mais tarde, entre outros, bastante escassos, encontramos Hucbald e Guido d'Arezzo, pois então existiam poucos teóricos ou compositores que se tor-
nassem conhecidos. Não esqueçamos que o trabalho dos monges, voluntariamente humilde e obscuro, favoreceu o anonimato. Quanto aos trovadores, os seus nomes ficaram ligados à história porque se tratava de nobres ou haviam conquistado a fama por outros motivos. Ao mesmo tempo em que a música se desliga do canto religioso coletivo, sai, portanto, do anonimato. Caminha para certa individualização do sentimento e também da técnica; a marca do músico criador poderá doravante manifestar-se; ao, princípio modesta e muitas vezes involuntária, em breve se afirmará com uma audácia sempre crescente. Na cena musical vão aparecer músicos especializados, teóricos ou compositores. Em Notre-Dame de Paris, o organista Léonin (século XII) escreve uma série de músicas para órgão, algumas a duas vozes. O seu sucessor, Pérotin, dito o Grande, é considerado como um dos primeiros grandes compositores da história e o pai da música polifônica. Deixou organa, discantus, conductus, peças a quatro vozes, que, executadas por coros ou órgão, deviam produzir nos fiéis uma profunda impressão de novidade. Imaginemos o que devia representar para o homem do século XII a audição simultânea de duas ou várias melodias - surpresa para a qual os espíritos estavam tão pouco preparados como os ouvidos - e conviremos que os primeiros ensaios da polifonia - a despeito da sua desajeitada rigidez, que nos parece cheia de “encanto arcaico” - devem ter suscitado grande curiosidade. A segunda voz e, em seguida, as outras que se lhe agregaram introduziram um elemento de colorido e de calor completamente estranho à austera tradição gregoriana. Pérotin, que, não o esqueçamos, é organista numa catedral, afirma a fé ro busta dos seus construtores e do seu povo. Entre 1180 e 1232 aproximadamente, Pérotin cria um novo estilo musical que hoje seria classificado de vanguarda. Para coroar os seus trabalhos, utiliza por fim o processo itnitativo, que estrutura as peças pela repetição dos .motivos principais, respondendo entre si de uma voz à outra. Este processo, de que os polifonistas da Renascença farão uso até às suas mais extremas possibilidades e que dará origem à fuga, continua a empregar-se atualmente como um dos elementos constitutivos da forma musical. Desta vez a tradição greco-romana foi completamente abandonada. O mundo feudal da Idade Média é um meio activo, corajoso, poderoso, onde circulam
e se desenvolvem numerosas idéias novas. Os homens deslocam-se; Paris é já um local de encontro para os clérigos. Estudantes de vários países vêm a esta cidade para assistir aos cursos da universidade que Robert de Sorbon acaba de fundar e que usará o seu nome. Notre-Dame de Paris é um ponto de reunião dos fiéis e a música nova e ousada que ali se toca repercutir-se-á longe. Tam bém virão jovens músicos estrangeiros, que aprenderão os mistérios da polifonia com mestre Pérotin. O rei Filipe Augusto, cognominado o Construtor, favorece em Paris o progresso social e econômico; grandes catedrais começam a cobrir a França, a literatura e a música desenvolvem-se. Em 1235 compõe-se a primeira parte do Romance da Rosa; é o romance do amor cortês, que os trovadores continuam a difundir por toda a Europa. Assiste-se ao despertar de um mundo novo, onde as criações do espírito adquirem cada vez mais importância e lançam os alicerces da civilização artística do Ocidente. É então que a música, que havia sido uma ciência no estudo dos fenômenos sonoros e, desde sem pre, um ritual, começa a transformar-se no que será doravante: uma arte. É então também que, juntamente com a literatura e a pintura, ela se torna num dos elementos fundamentais da cultura européia. A Ars Nova (século XIV)
Como vimos, a polifonia nasceu de necessidades novas: de acordo com uma explicação não científica, mas simplesmente poética, a alma dos homens, nos primeiros séculos da nossa era, não estando preparada para a música polifônica, não sentia a sua falta. Nesses tempos de grande fé e austeridade, não se podia conceber ou admitir que qualquer elemento ornamental ou sensual fosse introduzido no canto religioso; como também vimos, os chefes da Igreja agiram diversas vezes no sentido de se lhe opor.
Orquestra burlesca, miniatura do Romance de Fauvel A despeito de, aqui e ali, se manifestarem algumas liberdades, de um modo geral a ignorância e a superstição mantêm o povo num estado de absoluta docilidade em relação a tudo o que lhe é imposto. Esta simplicidade do homem da remota Idade Média pouco durará: será abalada pelas reivindicações de alguns, pelas correntes de idéias, pelas criações artísticas que pouco a pouco modificam o estado dos espíritos e, em breve, o cenário da existência.
A música na Boémia no século XIV. Em cima: harpa de saltério, carrilhão e saltério. Em baixo: harpa, sistro, vièle e saltério. (Bíblia de Velislav, 1340) A sociedade feudal, dos séculos XI a XVI aproximadamente, vive de uma determinada maneira, que suscita uma forma e uma expressão artísticas corres pondentes. À monódia gregoriana, na sua pureza e nudez, emanação de um
espírito adequado aos primeiros séculos do cristianismo, corresponde a igreja românica na sua simplicidade. No momento em que decorações e esculturas começam a cobrir estas paredes nuas, no momento em que se animam as personagens dos frescos, até então imobilizadas num hieratismo bizantino, surgem 'também os primeiros ornamentos sobre a nudez gregoriana: a polifonia. No domínio da música, passar do românico ao gótico significa passar da monodia à polifonia. Existe uma estreita correlação entre o século e a criação musical. Vários fatos confirmam esta teoria: os trovadores começam a notar as suas canções, visto que existe uma notação, na verdade reservada ao canto religioso, mas que vai transbordar para o campo profano; os menestréis iniciam-se no seu mister nas ménestrandies, escolas criadas em Paris, e onde se ensina a arte de cantar, de falar, de tocar um instrumento, resumindo, de entreter. As ménestrandies da Idade Média podem considerar-se como os humildes e populares antepassados dos nossos conservatórios. Por outro lado, o conjunto dos músicos começa a interessar-se pelas canções populares, enquanto anteriormente os monges teóricos ou copistas tinham outras tarefas a cumprir nos seus conventos do que debruçar-se sobre as canções da gente vulgar, que corriam as ruas e os campos. Com inteira boa fé não lhes atribuíam qualquer importância e será mais tarde, na Renascença, que se compreenderá verdadeiramente o interesse desta criação espontânea do povo. Entretanto, pelo século XIV, a canção popular integra-se na música, afirma-se com mais vigor do que anteriormente, não só pelas canções de ofícios fortemente ritmadas, mas também por melodias livres cujo texto trata de um assunto de atualidade. No domínio da música erudita, os progressos da polifonia dão lugar, no plano teórico, ao aparecimento de um tratado da nova música, publicado em 1330 pelo bispo de Meaux, Philippe de Vitry (1291-1361). Trata-se do Ars Nova, que determina os conhecimentos da época e fixa as regras da escrita polifônica. O que Vitry propõe por esse meio aos seus contemporâneos é um programa de vanguarda: os modos eclesiásticos, por exemplo, já não são considerados como os únicos aceitáveis, e a “nota sensível” (sétimo grau elevado) de uma escala, processo inteiramente moderno, vai favorecer e fortificar a escala maior que hoje conhecemos. A técnica da notação aperfeiçoa-se e Vitry codifica assim numerosas aquisições recentes.
O estilo proveniente do Ars Nova e que usará o seu nome, vai revolucionar o mundo musical e religioso. Aos ofícios litúrgicos correspondem já as danças e canções populares, por um lado, e, por outro, as danças, canções e divertimentos das cortes e dos castelos. Eis que surge um tratado importante, devido a um eminente teórico, além disso, homem de igreja, que defende a causa do enriquecimento da música por diversos processos e encara resolutamente uma música de futuro. A Ars Nova estende a sua influência a um período de cerca de século e meio; ela representa uma fase de evolução da polifonia, mas inscreve-se num encadeamento que não podemos, sem arbitrariedade, dividir em capítulos. Se a história da música estabelece tradicionalmente esses capítulos, é unicamente por espírito de ordem e de classificação, pois os contemporâneos de Philippe de Vitry, por exemplo, prosseguem a obra de um Pérotin e dos seus sucessores; introduzem-lhe novidades, audácias, liberdades que, por sua vez, vão dar lugar ao nascimento da grande arte polifônica da Renascença. Para maior clareza do exposto, situemos a Ars Nova nos séculos XIV e XV, na esteira de Vitry. A personalidade de um compositor marcou o período da Ars Nova: Guillaume de Machaut (1300-377). Após uma juventude aventurosa, em que, na qualidade de secretário, seguiu Jean de Luxembourg por toda a Europa, tornouse cónego de Reims. Homem culto, frequentador das cortes (Carlos de Navarra, o duque de Berry), tanto cultiva a poesia como a música. Espírito audacioso e fecundo, deixou numerosas obras profanas: baladas, virelais, rondós; contudo, a obra mais importante da sua carreira é a Missa a Quatro Vozes, escrita, ao que se julga, para a sagração de Carlos V em Reims, em 1364. A novidade fundamental da obra reside no facto de que as suas diversas partes: K yrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei, já não são peças isoladas: o autor trata-as a quatro vozes, liga-as entre si, criando assim a primeira “missa polifônica” da história. Pela primeira vez, efetivamente, surge uma concepção arquitetônica que procura atingir o monumental, a unidade de um vasto conjunto, assim como a diversidade de pormenores no seio desta unidade. Esta missa de Machaut (chamada também Missa Nossa Senhora) marca uma data-charneira na história da música e coloca-se entre as obras que melhor caracterizam a franqueza e a audácia da Ars Nova.
É evidente que esta polifonia, ainda rude e desajeitada, mas que manifesta um indiscutível caráter de fervor e de grandeza, não exerce nos nossos ouvidos esse “entanto” que geralmente esperamos da música, por vezes erradamente, visto que ela nem sempre teve como objetivo ser encantadora ou sedutora. Nas épocas de fé, a música devia ser forte, expressiva sem dúvida, rica de linguagem e de graduações, mas sem languidez, semelhante, neste aspecto, às idéias e aos costumes da época. Cem anos após o Romance da Rosa, surge o Romance de Fauvel, obra satírica em verso, cujas afinidades com a música são comprovadas pela importante série de composições musicais que nela se encontram integradas: antífonas, rondós, lais, motetes, sequências, baladas, aleluias, onde, como se vê, se misturavam o profano e o sagrado. Estas peças constituem um documento interessante no que respeita às formas então utilizadas, bem como às novidades pertencentes à Ars Nova, tais como a complexidade rítmica das diferentes partes de uma peça polifônica, o interesse do acompanhamento instrumental de uma melodia de moteto, etc. Para completar a fisionomia da França gótica, não esqueçamos que também a língua profana alarga o seu domínio e alcança a produção literária e poética: já não é em latim, mas sim em “língua vulgar”, que se escrevem os poemas e as canções e se representam os “mistérios”. A língua francesa começa a existir. Na Itália, onde se espalha a Ars Nova, citaremos o organista cego. Francesco Landino (1325-1397), como o mais notável desta escola. A sua música é mais gentil e mais terna do que a de um Machaut, revelando uma sedutora invenção melódica, e se o nome de Landino não figura na primeira fila dos grandes criadores, tal fato deve-se a uma lamentável injustiça. A história não comete muitas injustiças, mas neste caso é flagrante. Landino (ou como por vezes erradamente se escreve, Landini) alcança pela sua ciência o prestígio de um chefe de escola, e os numerosos discípulos que formou contribuíram para fazer brilhar a Ars Nova na Itália. Pelo seu realismo e misticismo, ele evoca o seu contemporâneo Fra Angélico. Por outro lado, Landino situa-se no prolongamento direto de Giotto, nascido cerca de cinquenta anos antes dele, e cuja audácia e realismo exprimem de forma semelhante as tendências da nova arte. Assim, logo no início da polifonia, os músicos italianos afirmaram um estilo onde a fantasia e a liberdade têm o seu lugar, um estilo que nunca se torna es-
cravo de uma escolástica demasiado estrita, que se alia a certa faceta popular, e onde se manifestam os elementos sensuais e líricos da música. Esta disposição de espírito e de sentimento é permanente nos músicos italianos. É ela que condiciona toda a criação artística do país e tem sido possível observar, até aos nossos dias, de que forma os compositores italianos transformam, de acordo com o seu próprio gênio, a severidade de qualquer imperativo estético vindo do Norte. Os gêneros e os instrumentos
Detenhamo-nos aqui um instante, para formularmos algumas interrogações sobre os gêneros e os instrumentos em uso na música medieval. Ao desenvolvimento da música profana corresponde necessariamente um desenvolvimento de estruturas e de gêneros. Paralelamente à expansão das cidades burguesas, verifica-se a expansão da música cultivada pelos cidadãos: burgueses, artífices, personalidades de destaque. Ao uníssono do gregoriano, que representa a fé coletiva, sucedeu a polifonia, que espalha o gosto pelo diferenciado; no primeiro caso a música pretende edificar, no segundo divertir. Para os cidadãos que se reúnem para cantar ou tocar, a música representa uma distração. Assim nascem e se expandem gêneros diferentes. Já vimos quais eram os gêneros religiosos dos princípios da polifonia: o organum, o conductus, o discantus, a sequência. É necessário acrescentar o moteto, peça composta de várias partes, cada uma destacando um texto diferente em língua vulgar sobre um tenor litúrgico, que, na voz superior, canta uma palavra. (motetus) por cada nota. Este tenor pode ser também tocado por um instrumento. No século XIV, a adoção de um tenor profano transforma o moteto numa peça profana, que se dilatará até se tornar, com Lully e os seus contemporâneos do século XVII, numa grande arquitetura de coros, solistas e instrumentos. A balada é uma espécie de estilização das árias de dança dos trovadores; é uma canção acompanhada, uma narração. Transforma-se, torna-se polifônica: o seu gênero define-se melhor do que a sua forma. No seguimento e até a nossa época, a balada corresponderá sempre à mesma definição. O lai é uma peça acompanhada, compreendendo doze estrofes diferentes quanto ao ritmo poético e à melodia.
O virelai canta-se a uma voz, com duas ou três partes instrumentais em contraponto, e alterna coplas com estribilho. É parente próximo do rondo, onde alternam uma única voz (coplas) e coro (estribilho), baseados em ritmos de dança. Compor-se-ão também rondós polifônicos. O cânone (que significa regra) é um processo de imitação que vai obter sucesso e considerável expansão, enriquecendo-se até aos nossos dias em todos os gêneros. Trata-se da repetição de uma mesma frase, enunciada pelas diferentes partes de uma peça, cada uma por seu turno. O cânone primitivo dá origem, na Itália, à caccia (século XVI), pequena peça descritiva que evoca os prazeres da caça. Por meio das entradas sucessivas do motivo cria-se a impressão de corrida. O ricercar (procura), em Espanha tento, em Inglaterra fancy, em Portugal tento, peça instrumental decalcada do moteto vocal, retoma o processo de imitação e toca-se no alaúde, no órgão ou no cravo. Mais tarde, no século XVII, aperfeiçoar-se-á por meio de uma escolástica complexa, que dará origem à fuga. A música em França no século XV: No primeiro plano, tocadora de flauta doce e de tamboril, tocadora de trombeta direita, tím pano; no segundo plano, órgão portátil, tímpano, bombarda-tenor (ante passado do oboé), mandara (guitarra) tocada com plectro, ainda outra flauta doce (flauta suave). As musas, manuscrito de O Campeão das Damas - 1441)
(A frottola (Itália, século XV) é uma canção a quatro
vozes, que provém dos cantos e danças populares. Dará origem ao madrigal da Renascença, a que nos referiremos mais adiante. Em Espanha, as canções de estribilhos de ricos ritmos de dança, ditas vilancicos (de aldeia), alcançam considerável e duradoura popularidade. Os trovadores do século xii trazem para a Península a canzone, gênero italiano. Primeiro monódica, torna-se polifónica, e de vocal transforma-se em instrumental (can zone da tonar: canção para tocar num instrumento). Composta de várias partes, a canzone é a origem da sonata. É, portanto, uma série de peças vocais ou instrumentais, religiosas ou profanas, sempre polifônicas, que vimos surgir e multiplicarem-se entre os séculos XI e XV. Estes gêneros permitem que a fantasia criadora se manifeste sob múltiplas formas; e a principal verificação que podemos fazer é que a música polifônica tem tendência a ornamentar-se cada vez mais. É um movimento incessante, que conduzirá à extraordinária proliferação do século XVI e marcará a expansão duma técnica que atingiu o seu ponto culminante. Que instrumentos se usavam neste período, que vai dos trovadores aos polifonistas, da Idade Média à Renascença? Reencontramos instrumentos conhecidos da Antiguidade, mas aperfeiçoados. Na categoria das “cordas”, eis a harpa, o saltério e a lira (cordas pinçadas). A viola de arco é o mais longínquo antepassado do violino; a sanfona, instrumento nobre que, mais tarde, se tornou popular, é constituído por uma caixa munida de cordas; uma manivela lateral move uma roda resinada que faz vibrar essas cordas, enquanto um teclado produz as notas. (Não confundir com a vièle, antepassada da viola, nome que na Idade Média servia para designar qualquer instrumento de corda e arco.) O alaúde, que apareceu na época das Cruzadas, manter-se-á até ao século XVII. Compreende de quatro a onze cordas; é o instrumento por excelência do acompanhamento, mas também é usado como solista. O seu repertório é imenso; é o instrumento-rei da Renascença. A guitarra, conhecida desde o século XII, é irmã do alaúde, mas estes instrumentos não derivam um do outro. No século XV, existem diferentes tipos de guitarras, que conforme as regiões de Espanha, se chamam mandolas (de onde provém bandolim) e vihueIas. A vihuela de mano, instrumento aristocrático que possui uma extensa literatura, tornar-se-á a guitarra espanhola, que conhe-
cemos e que será simultaneamente a mensageira de uma arte erudita e do repertório popular em todos os países de cultura ibérica, gozando de inalterável preferência, como se pode verificar. O clavicórdio, de início chamado échiquier 2 , é uma caixa retangular que se pousa sobre uma mesa. Munido de cordas e de um teclado, é o antepassado do piano, pois o seu .mecanismo é constituído por “martelos” que percutem as cordas. (A espineta e o cravo são instrumentos de cordas pinçadas.) O clavicórdio existiu do século xiv ao século XVII. Em Inglaterra, a expressão virginal (séculos XVI e XVII) designa uma espineta. Os instrumentos de sopro compreendem as trombetas, a trompa (de metal ou de madeira) e a corneta, instrumento de madeira contendo seis ou sete orifícios. A par destes antepassados dos nossos metais, existem a flauta doce (de madeira) e a flauta travessa (metálica), que se toca segurando-a de lado. Tam bém se usa a flauta de Pã, legada pela Antiguidade. Alguns destes instrumentos são “de palheta” (lâmina de cana vibrando na embocadura): a flauta de cana, a gaita de foles, a bombarda (oboé), o cromorne. O órgão, instrumento de sopro, é conhecido sob a forma portátil — pequeno órgão de mesa — e sob a forma majestosa do órgão de igreja. É evidente que só a história do órgão encheria numerosas páginas; limitemo-nos a recordar com brevidade que o órgão tem por antepassado longínquo o aulos (flauta dupla) dos Gregos ou a flauta de Pa, de diversos tubos de com primento decrescente. O órgão de boca dos Chineses (cheng) era constituído por um conjunto de tubos semelhantes mergulhados numa cabaça provida de uma abertura. Ao aplicar os lábios nessa abertura faziam-se vibrar os tubos; encontra-se aqui o princípio do órgão. Crê-se, em geral, que Ctesibio de Alexandria construiu, no século n a.C., o primeiro modelo de órgão. Grandes instrumentos (quatro séries de treze tubos), datando do século m depois de Cristo, foram encontrados na nossa época. Os pequenos órgãos de mesa, tal como os órgãos destinados à igreja, espalharam-se pela Europa desde os primeiros séculos da cristandade até à Renascença. Dois tipos de órgão subsistem praticamente desde o século XVII : o órgão barroco, de sonoridades leves, coloridas, finas, e o órgão romântico, que se deve a Cavaillé-Coll, instrumento potente e maciço, cuja utilização se revelou limitada, a despeito de uma grande riqueza de 2
Échiquier — tabuleiro de xadrez. (N. da T.)
paleta. Desde há alguns anos, o órgão barroco tem obtido novamente algum sucesso. É insubstituível para a execução de toda a literatura musical dos séculos XVII e XVIII. Os instrumentos de percussão não são desprezados: utilizam-se sobretudo para sublinhar o ritmo das danças. Assim sucede com ó tamborim (percutido com a mão), as castanholas, os címbalos (placas de metal), os sinos ou as diversas espécies de tambores.
Manuscrito borgonhês do século XV. As letras sob o texto indicam os passos de dança
V - A IDADE DE OURO DA POLIFONIA
A escola borgonhesa (séculos XV e XVI)
A partir do momento em que, no século IX, surgira o primeiro ensaio de organum, nascera a polifonia. Esta irá doravante desenvolver-se de forma irresistível, dando origem a um novo capítulo na história da música. A Antiguidade, as civilizações pré-cristãs e a nossa própria música tinham vivido até à Idade Média a era monódica; desde há onze séculos, vivemos a era polifônica. No decurso de cerca de seiscentos anos a polifonia iria alcançar uma riqueza prodigiosa, mas, uma vez atingido o apogeu, iria ceder subitamente, por volta de 1600, perante forças novas (a ópera: melodia acompanhada), para finalmente retomar o seu lugar no seio de uma arte musical que os seus princípios nunca cessaram de impregnar e fertilizar. Com certa lógica, alguns musicólogos têm subdividido a história da polifonia em três grandes períodos: o primeiro vai dos anos 1100, em que se espalha o uso de cantar o organum nas catedrais francesas, até 1330, ano em que se publica o tratado de Vitry; o segundo é o da Ars Nova (séculos XIV); finalmente o terceiro período, ou idade de ouro, é o da escola borgonhesa (séculos XV e XVI). Já evocamos Machaut e Landino; eis dois outros grandes músicos também pertencentes à Ars Nova: Guillaume Dufay e Gilles Binchois. Dufay (14001474), formado pela escola de canto coral litúrgico de Cambrai, esteve ao serviço dos príncipes Malatesta, em Rimini, tornando-se em seguida chantre na capela pontifical de Roma. Nomeado cónego da Catedral de Cambrai, onde acabaria os seus dias, Dufay é também mestre de capela de Filipe o Bom. Tanto pela sua ciência considerável, a sua inspiração rica e pessoal, as suas ousadas inovações, como pelo encanto e elegância da sua escrita contrapontística. Dufay é uma personalidade dominante do seu século. As suas relações com os mais ilustres soberanos da Europa, a sua inteligência e o seu talento, fazem dele um dos príncipes da música. A missa Alma Redemptoris Mater e baladas como a admirável Virgine Bella são testemunhos, entre inúmeras outras páginas, da sua sensibilidade, bem como da influência do lirismo italiano que fecundou a sua inspiração.
Gilles Binchois (1400-1460), nascido em Mons, falecido em Soignies, distinguiu-se pela graça e a originalidade do seu temperamento. No fim da Idade Média, no fim da Ars Nova, Binchois impõe o seu requinte, e as suas obras profanas são talvez mais significativas do que as religiosas, como o provam as suas canções escritas sob a forma de rondo, o qual gozava de grande predileção. Binchois esteve também ao serviço de Filipe o Bom; situa-se ligeiramente atrás de Dufay, de quem não tem a envergadura, mas deixou-nos páginas de grande beleza e foi considerado como um dos primeiros mestres do seu tempo. A par do tratado de Philippe de Vitry, citemos ainda o de Jacques de Liège, escrito depois de 1330 e intitulado Speculum Musicae. Este é o mais volumoso tratado de música da Idade Média. Jacques de Liège, de quem apenas se conhece o nome próprio, Jacobus, e a sua origem, segue um caminho diferente do de Vitry; compara os processos dos “antigos” e dos “modernos”, como lhes chama, e sublinha o interesse das novidades da escrita polifônica. Um facto importante vai, contudo, modificar o curso da história: em 1415 a França perde a Batalha de Azincourt, os Ingleses entram em Paris e os príncipes que amavam a música e recrutavam cantores, menestréis e organistas desaparecem da cena. Simultaneamente, a vida intelectual e artística desloca-se para regiões mais propícias ao seu desenvolvimento: as que dependem da autoridade dos poderosos duques e Borgonha e que compreendem os actuais territórios do Norte da França, da Bélgica e do Sul dos Países Baixos. Eis que se aproxima agora a idade de ouro da polifonia. O país borgonhês é próspero; os seus músicos, alimentados, por um lado, pela Ars Nova e, por outro, pela exuberância italiana, são mestres disputados na Europa. A derrota de Azincourt terá tido, portanto, repercussões profundas, apesar de indiretas, no plano da música, deslocando o centro da cultura musical e pondo em foco os compositores borgonheses. Tais fatos são, de resto, apenas um princípio, pois de 1450 a 1600, aproximadamente, vai ocorrer uma prodigiosa expansão da música borgonhesa. De todos os lados as grandes igrejas, as cortes principescas, eclesiásticas ou reais, solicitam a presença dos músicos do Norte. Os mais eminentes têm brilhantes carreiras na Itália, Espanha, Alemanha ou Inglaterra. Mestres de capela e organistas ensinam a sua arte de instrumentistas ou de compositores; espalham através da Europa a rica escrita polifônica, que, no encalço de um Dufay e de um Binchois, elevam a um grau superior de requinte
e de habilidade. Ao período de século e meio durante o qual se exercerá a influência dos músicos borgonheses corresponderá o apogeu da polifonia.
O imperador Maximiliano dirigindo um concerto Gravura de Hans Burgkmair, 1516
Estes mestres deixam discípulos, que, por seu turno, ensinarão. Pode dizerse que eles dão à Europa a sua linguagem musical unificada, modelo sobre o qual se edificará a música dos séculos vindouros. É a esta difusão dum estilo é duma escola à escala européia que a linguagem musical deve a sua universalidade: estabelece-se um sistema que se fortifica e completa, para em seguida se espalhar, ditando leis, impondo convenções que todos reconhecem. Assim, não
se fará mais qualquer tentativa para sair desse sistema (e mesmo os sistemas que mais tarde se erguerem contra ele terão este facto em consideração). Tal como uma língua falada, cuja gramática, sintaxe e vocabulário são unanimemente admitidos, a fim de que os homens se compreendam, a música alcançou então a sua fase “adulta”. Quem foram os homens que coroaram esta evolução de dez séculos, escrevendo as obras mestras da polifonia? Eis alguns: Jean Ockeghem, de Termonde (1420-1495); Jacob Obrecht, nascido em Berg-opZoom (1450-1504); Josquin dês Près, nascido no Hainaut (1450-1521); Henry Isaak, nascido na Bélgica — dizia-se oriundo da Flandres, (1450-1517); Johannes Tinctoris, nascido em Nivelles (1435-1511); Adrien Willaert (Bruges ou Roulers, 1480-1562); Cyprien de Rore (Malines, 1516-1565); Jacob Arcadelt (Flandres, 1514-1560); Roland de Lassus (Mons, 1532-1594); Philippe de Monte (Malines, 1521-1603); Lambert de Sayve (Liège, 1549-1614). Estes músicos podem ser considerados como os mais importantes. Assim o rótulo de “escola borgonhesa” corresponde a uma realidade e estes polifonistas, a que os musicólogos chamavam anteriormente neerlandeses ou franco-flamengos, são, sem dúvida alguma, borgonheses. A evidência geográfica e a lógica musical apontam-nos este fato: é como cidadãos de estados ricos e poderosos, onde a prática da música está largamente difundida - tal como Josquin des Prés se difundiu o gosto flamengo de um certo fausto burguês -, e como representantes de uma civilização material e moral de incontestável envergadura que estes mestres da música se fazem conhecer e apreciar. Os belgae ou os fiamminghi, como lhes chamam no estrangeiro, são muito procurados e a sua carreira internacional é brilhante. Todos eles, de certo modo, fecundaram a Europa. Jean Ockeghem foi chantre em Antuérpia e, em seguida, tesoureiro do Mosteiro de Saint Martin de Tours. onde permaneceu. Viajou também em Espanha.
Missas, motetos e cauções profanas constituem a sua obra, onde um Dco Gmtins a trinta e seis vozes, obra-prima de técnica, ficou célebre. Jacob Obrecht foi chantre em Hutreque, em Ferrara e em Cambrai. entrando cm seguida ao serviço do duque de Ferrara. Josquin dês Près esteve sucessivamente ao serviço dos duques de Borgonha e da corte dos Sforza, em Milão. Membro da capela pontifical em Roma. visitou Florença, Modena, Nancy, St. Quentin. As suas obras revelam uma originaori ginalidade ousada, tanto na escrita, como na expressão. Henri Isaak dividiu a sua atividade entre a Alemanha e a Itália: foi organista da capela de Lourenço o Magnífico, em Florença, servindo em seguida Maximiliano I, em Inesbruque, e Frederico o Sábio, em Torgau. Regressou a Florença, como agente diplomático de Maximiliano. Um pormenor para a “pequena história”; numa carta datada de Janeiro de 1508, Maquiavel cita ter encontrado em Constância “Isaak, il Fiammingo”. Johannes Tinctoris esteve ao serviço do rei de Nápoles, como professor de Beatriz de Aragão, futura rainha de Hungria, e tradutor francês-italiano. O rei incumbiu-o de regressar ao Bravante para ali recrutar chantres. Posteriormente exerceu as funções de mestre dos meninos de coro da Catedral de Chartres. Adrien Willaert, a quem na Itália se chama frequentemente “Adriano Fianimingo”, teve nesse país uma carreira prestigiosa. Do serviço do duque de Ferrara passou para o do arcebispo de Milão, sendo finalmente elevado à dignidade excepcional de mestre de capela de São Marcos, em Veneza. Foi aí que ele escreveu as suas Sumptuosas composições para coro duplo, pois a Igreja de São Marcos possuía duas tribunas e dois órgãos frente a frente. O estilo “para coro duplo” vai espalhar-se e enriquecer as solenidades religiosas. Cyprien de Rore exerceu as funções de chantre em São Marcos, no tempo de Willaert, e mais tarde junto do duque de Ferrara. Após ter servido o duque Farnésio, em Parma, deslocou-se novamente a Veneza, para aí tomar a sucessão de Willaert, mas regressou a Parma dois anos mais tarde. Jacob Arcadelt foi mestre de capela na corte de Florença e na Capela Giulia, em Roma, donde transitou para a capela pontifical. Contratado por Carlos de Lorena, residiu em Nancy e mais tarde em Paris.
Philippe de Monte, preceptor de música em Nápoles, viveu algum tempo em Inglaterra. Regressou a Roma, indo em seguida fixar-se em Viena, ao serviço do imperador Maximiliano II. Lambert de Sayve, chantre da capela imperial i mperial de Viena, acabou os seus dias como sucessor de Philippe de Monte na mesma capela. Entretanto havia estado ao serviço do arquiduque Carlos da Áustria. Roland de Lassus era ainda criança quando foi levado para a Sicília pelo vice-rei Fernando de Gonzaga, que havia reparado nos seus excepcionais dotes. Foi mais tarde para Milão, Nápoles e Florença, sendo nomeado director do coro de São João de Latrão nesta última cidade. Viajando em Inglaterra e em França, é chamado a Munique pelo duque Alberto da Baviera e ali fixa residência. Graças à sua influência, a capela de Munique será uma das mais brilhantes da Europa. Lassus, o maior de todos estes músicos, é um gênio universal que sintetiza todas as tendências do seu tempo. A sua Roland de Lassus Lassus vigorosa personalidade, a sua pujança criadora, tanto lhe inspiram obras de fé profunda e severa, como outras onde a fantasia, a vivacidade e a audácia brotam com brilho irresistível. A sua existência faustosa, as suas elevadas funções e a sua cultura fazem dele uma personagem digna de ocupar um lugar de destaque entre os príncipes da música. A sua produção é imensa: motetos, salmos, missas, canções francesas, madrigais italianos, lieder polifônicos alemães, paixões, etc. A sua figura evoca a de um Rubens (que precedeu de quarenta e cinco anos), tanto pelos traços de caráter, como pela obra e a situação social. Seria fastidioso demorar-nos mais na descrição das atividades dos compositores que acabamos de citar: as suas carreiras européias, o nível das suas fun-
ções, chegam amplamente para evidenciar a profunda influência que irradiaram. De 1450 e 1600 aproximadamente, o renome dos polifonistas borgonheses resplandece em toda a Europa com fulgor incomparável e, mercê da sua mestria, a música atinge uma das fases mais elevadas da sua história. Os gêneros praticados pelos polifonistas
Do século XI ao século XVI deu-se uma evolução considerável, que vai da simplicidade à complexidade: a escrita musical tornou-se cada vez mais erudita, a técnica, doravante dominada, desenvolve-se livremente. Com insistência crescente, a música é chamada a desempenhar o papel de divertimento que a sociedade da Renascença vai atribuir-lhe. As obras profanas multiplicam-se e, paralelamente, desenvolvem-se os requintes r equintes de escrita, de expressão e de imaginação. A utilização de determinado cromatismo, alguns progressos na notação, tudo concorre para enriquecer a linguagem musical.
é, de todos os gêneros, aquele que incontestavelmente oferecerá mais recursos à música. Simples processo de resposta de um mesmo motivo às diferentes vozes, a imitação pode assumir os aspectos mais complexos, mais requintados, e contribuir para edificar estruturas polifônicas de extrema riqueza. A técnica da imitação vai dar ao tecido polifônico a sua solide/ e a sua unidade. Será utilizada tanto nas obras religiosas como profanas, e atingirá por vezes tal sobrecarga que a grande grande polifonia da Renascença Renascença aí encontrará encontrará a sua decadência, pela simples razão de que a obra musical se transformará num pretexto para eruditos floreados de escrita. Um exemplo das das surpreendentes surpreendentes combinações combinações de de gêneros em que se deleitavam os compositores é a missa-paródia. Desde o século XV aproximadamente e até meados do século XVI, momento em que o Concílio de Trento proibiu tal prática, espalhou-se o uso de construir missas sobre motivos profanos pré-existentes. As “árias em voga”, como se diria hoje, constituem o material temático, isto é o motivo inicial de cada parte da missa, sobre o qual se desenvolve a polifonia... e o texto religioso. Assim se explica a origem dos títulos inesperados de certas missas dos séculos XV e XVI: missa La Bataille (“A Batalha”), segundo a Batalha de Marignan, de Janequin; missa L'Homme Arme (“O Homem Armado”), de Josquin dês Près e de muitos outros, pois o tema de L'Homme Arme, muito popular nessa época, foi numerosas vezes a proveitado; missa Se Ia Face ay Pale, de Dufay; missa Douce Mèmoire, de Lassus; missa Ma Maitresse, de Ockeghem, etc. Omadrigal é o género musical por excelência; disseram-no resultante do matrimônio entre a melodia italiana e a polifonia do Norte, e se tal fórmula é atraente não é menos exata. Nascido provavelmente no século XVI, o madrigal desenvolve-se sobretudo na Itália e na Inglaterra. Na origem, é uma peça a duas vozes, de caráter profano. Mas os elementos literário e musical assumem nele idêntica importância; foi cultivado por Dante, Petrarca e Boccacio. Com positores como Arcadelt ou Willaert trabalham o madrigal polifônico recorrendo ao processo imitativo: repetição dos motivos nas diferentes vozes. Com Lassus, Luca Marenzio, Palestrina, Monteverdi, Cyprien de Rore, Philippe de Monte, o madrigal atinge a sua forma última: escrito a quatro, cinco ou seis A imitação
vozes, utiliza cromatismos por vezes audaciosos na liberdade expressiva e todas as subtilezas do contraponto. O madrigal aborda assuntos heróicos, pastoris e até libertinos: é estruturado, quer sob forma simétrica, em imitações estritas, quer sob forma livre no ritmo e na melodia. Pela sua flexibilidade, que nenhuma outra forma musical havia até então oferecido aos músicos, assim como pela variedade dos textos sobre os quais se constrói, ele favorece a imaginação criadora e o lirismo de expressão. Em suma, o madrigal contribui durante cerca de dois séculos para o desenvolvimento de uma rica literatura lírica, levando simultaneamente a escrita do contraponto a uma fase de suprema mestria. Mais adiante veremos que ele será a origem da ópera. A canção polifônica francesa, produto da escolástica borgonhesa e de um espírito de fantasia livre, representa no século XVI o elemento mais atraente da música. (Não esqueceremos alguns “madrigais alegres” da Renascença italiana, que praticam igualmente uma fantasia livre do mesmo gênero.) No que respeita às canções polifônicas francesas, um editor de música, Attaignant, contribuiu para a sua difusão, publicando numerosas colectâneas durante toda a primeira metade do século XVI. Estas coletâneas, que foram conservadas, representam hoje uma mina de ouro para musicólogos e músicos. Trabalhada a quatro vozes, a canção francesa é frequentemente descritiva; a sua melodia é flexível e aborda todos os assuntos. Emparceira com o madrigal italiano ou inglês, e, no momento em que o grande estilo polifônico começa a estagnar no academismo, ela afirma a vitalidade de uma arte que procura sem pre a sua liberdade, insurgindo-se logo que um estilo começa a impor leis susceptíveis de a represar. Precisemos que iodos estes gêneros são vocais e que esta polifonia da Renascença exclui praticamente o uso de instrumentos, baseando-se no sistema chamado a-capela (de capela). Este sistema provém do hábito de cantar na igreja sem acompanhamento instrumental, que, como elemento profano, era proibido. A expressão perpetuou-se: um coro a-capela designa presentemente ioda a espécie de canto de conjunto sem acompanhamento.
Polifonia, Renascença e humanismo
De 1330, data da Ars Nova, a 1600, nascem e desenvolvem-se múltiplos gêneros e formas, traduzindo o desejo e a necessidade de novidades que animam os homens ao sair da Idade Média: a música manifesta as mesmas aspirações que as outras disciplinas culturais; a audácia do gótico flamejante, com os seus requintes ornamentais e expressivos, simboliza a polifonia em toda a sua proliferação. No momento em que os territórios da cristandade se cobrem de catedrais, de palácios e de castelos, a arte musical enriquece-se de vastas composições polifônicas, cujo caráter monumental responde perfeitamente, tanto no espírito como na forma, ao ideal dos grandes arquitetos e pintores do tempo. Bastará, para compreender a que ponto a música permanece ligada ao seu século, pensar na sociedade da Renascença, nos ricos mercadores, nos burgueses, cujo poderio econômico e social se defronta com o dos reis e príncipes. Estes vivem faustosamente no seio dos seus domínios e protegem as artes. Aqueles rodeiam-se de um fausto semelhante, contribuem para a prosperidade das cidades e reúnem nas suas residências as mais belas criações da arte e do artesanato: trajos, móveis, tapetes, tapeçarias, pratas, louças e roupas, jóias e quadros, decorações de toda a espécie. Cantores e músicos têm o seu lugar no seio desta ordem social. Como poderia a música da Renascença, no meio do esplendor das igrejas e do luxo dos palácios burgueses, ter deixado de assumir o mesmo caráter de grandiosidade e de opulência? Talvez seja na Itália que a proliferação artística européia tenha encontrado o seu centro mais ativo. Podemos, até certo ponto, dissociar o século XVI do século XV, no sentido em que foi nos anos 1400 (o Quatrocento italiano) que floresceu uma arte em que os temas profanos são tratados com ousadia; as fontes tradicionais do cristianismo, tão abundante e demoradamente exploradas, parecem tornar-se menos necessárias para os homens da Renascença, voltados para outros horizontes, sob a influência progressiva das ideias e dos acontecimentos que transformam o século. O humanismo, essa nova atitude filosófica que vai modificar a face do mundo, nasce em parte da descoberta da civilização grega revelada ao Ocidente —e em primeiro lugar à Itália — pelos sábios bizantinos fugindo diante dos Turcos (tomada de Constantinopla por Mohammed II). A Antiguidade torna-se um tema de inspiração para os artistas e, ao mesmo
tempo, uma espécie de modelo de vida. O homem da Renascença liberta-se de catorze séculos de docilidade religiosa e de anonimato. Ele entrevê outros destinos; arrastado pelas suas recentes descobertas, sente-se orgulhoso das suas próprias forças.
A música, divertimento de corte no principio da Renascença, em Franca (tapeçaria de Gobelins do século XVI)
Algumas datas são o bastante para revelar a vitalidade do século: 1454: Gutenberg faz imprimir o seu primeiro livro em Mogúncia. 1456: reabilitação de Joana d'Arc e, em seguida, reinado de Luís XI. A França será doravante um estado unificado por uma sólida instituição monárquica. 1470: a Sorbonne imprime o primeiro livro em França. 1492: Cristóvão Colombo desembarca na América; no mesmo ano, em Es panha, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, retomam Granada.
Efetivamente, a grande revolução da Renascença pode resumir-se da seguinte forma: até ao século XV, o homem dedica-se inteiramente a Deus; nas suas obras — e sobretudo nas suas obras de arte — ele dirige-se a Deus, pois pintar, escrever ou tocar são formas diversas de orar, de prestar homenagem à glória divina, perante a qual o homem manifesta uma humildade tão absoluta que as suas obras de arte até esse momento são, na sua maioria, anônimas. Em suma, Deus é o centro do universo para o homem da Idade Média. Pode dizer-se, ao inverso e esquematizando ligeiramente, que para o homem da Renascença o centro do universo será o homem. A sua obra representa uma forma de se afirmar ele próprio e de cultivar todos os valores humanos. O humanismo vai provocar — mesmo no campo religioso — a grande florescência dos séculos XV e XVI e suscitar um mundo onde os artistas exprimem a vida na sua plenitude, um mundo que parece ter sido criado por e para os artistas. Este facto é o que melhor define a ruptura com a austeridade, a gravidade, a nobreza, muitas vezes dura, da Idade Média. Esta inversão dos valores sobre os quais vivia o Ocidente há quinze séculos marca na realidade o início dos tempos modernos. Este início fixa-se, evidentemente, em épocas diferentes, conforme as regiões: mais precoce no Sul da Europa, mais tardio no Norte, mas situa-se sempre, nas suas grandes linhas, nesse momento em que o mundo antigo desaba literalmente, para fazer surgir outro de que ainda somos os herdeiros, não obstante tudo quanto dele nos separa. O século XVI vê brilhar o maior esplendor da Renascença: um materialismo evidente conjuga-se com um gosto pelo fausto e pela grandeza e um sentido religioso, fervente também, mas renovado por esse mesmo gosto faustoso. É neste quadro que se inscrevem as opulentas polifonias de um Adrien Willaert, dos Gabrieli em Veneza, as prodigalidades de um Rolando de Lassus, o radiar de um Palestrina, cujas obras abandonam toda a rudeza para assumir uma linguagem erudita extremamente subtil. É ainda necessário notar, para distinguir tudo quanto possa separar a Renascença da Idade Média, que a música medieval é essencialmente escolástica; não pode pretender igualar o realismo que marca, por exemplo, a pintura, as letras ou a escultura. Esta escolástica constitui um entrave para os músicos da Renascença, que empregarão todos os meios para lhe escaparem: flexibilidade das formas, multiplicação das graduações expressivas, ampliação dos temas de
composição. É o verdadeiro “sentido moderno” da música que a Renascença vai descobrir, ao dedicar-se a outros alvos para além das eruditas combinações do contraponto. De acordo com a pertinente observação de Combarieu, a música da Renascença descobre que não deve apenas construir, mas também exprimir, e é então que começa esta conquista do verdadeiro que ainda hoje não terminou. Esta representa, na realidade, toda a evolução e toda a aventura da música. Na Itália
Se os nomes de um Willaert ou de um Lassus designam os mais ilustres mestres da escola borgonhesa, o italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526-1594) é, para a Itália, um valor correspondente: Palestrina foi efectivamente considerado como o maior músico do século. Em Roma, onde trabalhou sucessivamente em S. Pedro, S. João de Latrão, na Capela Sistina e no Oratório de Filipe de Néri, Palestrina será incumbido, como consequência do Concílio de Trento, de impor à Igreja um canto polifónico tão puro quanto possível e cujas palavras sejam acessíveis aos fiéis. Esta circunstância, aliada ao seu temperamento profundo, impregnado de gravidade, levá-lo-á a escrever obras (mais de cem missas) cuja perfeição nunca foi ultrapassada. Pelo equilíbrio admirável do sentimento e da forma, pela exata flexibilidade da escrita, pela comovente nobreza do lirismo, Palestrina deu à polifonia vocal o seu máximo fulgor. Este compositor personifica a ordem soberana da Renascença. Enquanto Palestrina atinge o cume da sua carreira, alguns compositores dedicam-se mais particularmente à música profana e cultivam o madrigal. É o caso de Luca Marenzio (1553-1599), familiar dos príncipes e das cortes, espírito aristocrático, que leva o madrigal polifônico ao seu apogeu, imprimindo-lhe alegria e fantasia. Diz-se que Palestrina não gostava dele, considerando-o, sem dúvida, como um músico frívolo. Mas dentro dos limites do gênero que pratica, Marenzio é um mestre. O padre Orazio Vecchi (1550-1605) tornou-se famoso pelos seus numerosos livros de madrigais e de “diálogos”, nos quais pretendeu sobretudo divertir, de forma que as suas obras religiosas passaram para segundo plano. Pelas suas comédias madrigalescas, em que se exprime um realismo popular, pelas suas
fantasias, serenatas, e diálogos, Vecchi contribuiu para libertar o estilo polifônico do seu academismo e da rigidez da sua escrita de imitações. A sua obra, onde já se encontram algumas verdadeiras pequenas comédias musicais (como, por exemplo, o Amfiparnasso), prepara o aparecimento da ópera. canzonnette,
Dança de corte, acompanhada de viola e alaúde. (Tabuleiro de parturiente, primeira metade do século XV)
Anjos músicos (órgão pneumático, harpa portátil e viola). Pormenor do triplico de Najéra, de Hans Memling, século XV
A Coroação da Virgem, por Juan de Sevilla – Seculo XV
Pormenor de “A natividade” , de Piero della Francesca: tocadora de alaúde e cantoras ( século XV)
A Virgem e o Menino, Sasseta, Seculo XV
Em contrapartida, Cláudio Merulo (1533-1604) é um compositor inteiramente dedicado ao órgão, para o qual escreveu páginas esplêndidas: toccatas, canzone e ricercari. Os Gabrieli, Andrea (1502-1586) e o seu sobrinho Giovanni (1557-1612), que ocupam os órgãos de São Marcos depois de Willaert, são os dois representantes mais brilhantes da escola veneziana. O esplendor formal e expressivo das suas obras produziu profunda impressão em toda a Europa. A música instrumental destes compositores, assim como as suas polifonias sacras, manifestam idêntico carácter de intensidade de sentimentos, de nobreza, de originalidade e de riqueza técnica. Em França
O brilho da Renascença italiana vai produzir profunda impressão no rei Francisco I, que, a despeito das suas infrutíferas campanhas além dos Alpes, fica seduzido pela intensa vida artística e intelectual da Península. Ao regressar a França, este rei levará com ele o espírito da Renascença e convidará para a sua corte alguns dos mais famosos pintores de então, nomeadamente Vinci, que viveu em Amboise. Além disso, Francisco I vai lutar pessoalmente em favor dos sábios e dos artistas, sempre perseguidos pela má vontade dos doutores formados pela Sorbonne (os sorboniqueurs, cuja rigidez escolástica foi escarnecida por Rabelais). A vida de corte em França atravessava então um período áureo; espetáculos, cantos e danças sucedem-se, inspirados na sua maioria pela Itália, nomeadamente os bailados, as mascaradas e as cenas cômicas. Fontainebleau é o ponto de reunião de nobres e grandes senhores, que vivem eles próprios rodeados de artistas e de humanistas nos seus castelos, que já não são as sombrias fortalezas de outrora, 'mas se transformaram pouco a pouco em residências acolhedoras. A par dos mestres borgonheses, os músicos franceses introduzem fantasia e novidade na música profana. Clément Janequin, um dos mais bem dotados, dedica-se a este gênero de música e enriquece-o com invenções surpreendentes. Nascido por volta de 1480 e falecido cerca de 1560, Janequin personifica verdadeiramente a canção francesa da Renascença; as suas polifonias vocais, de uma virtuosidade magistral, manifestam um espírito malicioso que se deleita
a evocar em páginas famosas (Cris de Paris, Bataille de Marignan, Chant dês Oiseaux, Caquet de Femmes), assuntos que à primeira vista parecem ser muito pouco “musicais”; mas o seu bom gosto, o seu sentido descritivo, a sua ciência dos efeitos, fazem destas peças pequenas obras-primas, onde se passa da ironia ao drama, numa sucessão de infinitas graduações de sentimento.
Farândola de pastores – fim do século XV
Claude, o Jovem (1528-1600), torna a melodia mais flexível e liberta-se do estilo imitativo demasiado rigoroso. Guillaumc Costeley (1531-1606) destacase pelas suas audácias e o seu requinte. Uma das suas canções ficou célebre: Je Voy de Glissantes Eaux.
Foi sem dúvida Claude, o Jovem, quem tirou maior partido das teorias da “música medida à antiga”, que apareciam, em 1571, na Academia de Música e Poesia fundada pelo poeta Antoine de Baif. Este poeta, querendo fazer reviver a união destas duas artes à maneira dos antigos, vai até ao ponto de tentar a união do drama, da dança, da poesia e da música; introduz na poesia a notação da quantidade rítmica, oponível à simples escansão, e que poderia chamar-se igualmente “graduação rítmica”. A sua iniciativa, bem como os seus poemas, apesar de uma sistematização por vezes excessiva, exerceram grande influência nos compositores franceses, pois a sua “música medida à antiga” encontra-se na origem do ritmo geral da música francesa, até à canção de corte e ao bailado do século XVII. Claudin de Sermisy (c.1490-1562), compositor extremamente sedutor, divide-se entre a música religiosa e a música profana. Mais inclinado para os temas sérios, Sermisy, ao inverso de Janequim, não se ocupa de canções para acom panhar as libações nem de canções libertinas. Nas suas composições profanas trata os temas líricos (canções francesas); em matéria religiosa, goza de uma brilhante reputação na Europa.
De Passereau, quase desconhecido (primeira metade do século xvi), ficounos uma encantadora canção: Il Est Bei et Bon. O seu estilo aproxima-se do de Janequim. Mas a música erudita e aristocrática cede por vezes o passo à canção e à dança de essência popular; em França, por exemplo, a bourrée, a galharda e a farândola tomam o seu lugar ao lado da pavana, da forlana e da sarabanda, danças das cortes reais e principescas. E, para voltarmos a Francisco I, citemos aqui o nome de Claude Gervaise, que se supõe ter sido violinista ao seu serviço e que, entre 1550 e 1555, publicou vários livros de danceries (danças), pavanas, galhardas, alle-mandes, bransles de Borgonha, da Champanha, de Poitou, etc. (O bransle é uma basse danse, isto é uma dança em que se caminha ou desliza, por oposição à danse sautée. Esta última é popular, enquanto a outra é aristocrática.) As danceries de Gervaise, escritas para diversos instrumentos, fornecem-nos preciosas indicações, tanto sobre os divertimentos de corte no século XVI, como sobre a intrusão da música popular na música erudita. Estas danceries formam o embrião da “suite de danças”, que se tornará na “suite” instrumental, a qual, por sua vez, dará origem ao “concerto grosso” e, finalmente, no século XVIII, à sinfonia. Não deixaremos a França sem mencionar outros músicos que lhe estão ligados, a despeito da sua arte permanecer borgonhesa: Jacob Arcadelt, de quem já falámos; Nicolas Gombert (c. 1500-1556), possivelmente discípulo de Janequin, dedicado ao grande estilo clássico. Thomas Créquillon (falec. c. 1557), entre Josquin dês Près e Lassus, é um dos mais hábeis representantes do estilo imitativo. A sua música é sobretudo religiosa. E, finalmente, evoquemos esses escritores que fizeram a grandeza da Renascença francesa: Rabelais, bardo do individualismo e da liberdade, Montaigne, pensador ousado e profético, Ronsard e Joachim du Bellay, poetas que fizeram florescer a grande língua francesa. Na Inglaterra
A Inglaterra de Isabel I conheceu, no domínio da música, uma espécie de idade de ouro, que corresponde à grandeza do reinado noutros setores; infelizmente, os historiadores esquecem-se regularmente de mencionar a atividade musical de uma época, mesmo quando evocam as artes em geral. Ora seria
injusto ignorar os virginalistas (brilhante escola de compositores que escreveram para o virginal), os madrigalistas, os compositores religiosos, que, no decurso de todo o século XVI inglês, ilustram uma arte onde se associam a graça, a majestade, a riqueza e a eloquência. Recordemos rapidamente as fases da música na Inglaterra: John de Garlande, nascido por volta de 1190, veio para Paris e aqui publicou o tratado De Musica Mensurabili (“Da Música Medida”), participando assim nos primeiros passos da polifonia e nos ensaios que lhe estão ligados. Em meados do século XIII (provavelmente por volta de 1240), aparece uma peça polifónica tão erudita, requintada e bela, que permaneceu na história como testemunho da aptidão dos músicos ingleses e como prova do seu perfeito conhecimento no que res peita a um estilo completamente novo praticado no continente. Este cânone duplo a seis vozes, Summer is i-cumen (“O Verão Está a Chegar;”), é de autor desconhecido. Em seguida, destaca-se a forte personalidade de John Dunstable (por volta de 1379-1453), que, depois de Azincourt, veio para França ao serviço do duque de Bedford, e certamente influenciou os músicos do seu tempo pela sua ciência e originalidade, às quais se aliavam processos de escrita mais flexíveis do que a severa Ars Nova. Efectivamente, o gymel inglês (que corres ponde ao organum europeu de século XI) admitia os intervalos de terceiras e de sextas, muito mais suaves ao ouvido do que as quartas e quintas, que, muito curiosamente, eram prescritas durante toda a Idade Média como sendo os únicos intervalos consonantes. Estas terceiras e sextas reencontram-se nas obras de Dunstable, cujas harmonias e arabescos melódicos são particularmente sedutores. É um facto significativo que Johannes Tinctoris, teórico e compositor flamengo já anteriormente citado, tenha apreciado Dunstable nos seguintes termos: “Dunstable é o iniciador da escola inglesa, fundamento e origem da arte nova, que ultrapassa tudo quanto em música possamos sonhar.” Podemos, portanto, admitir como certo, a despeito da ausência de documentos sobre este período, que, na Idade Média, a Inglaterra já possuía uma boa civilização musical, a qual prosseguirá até Purcell, no século XVII, mas com venturas diversas. Finalmente, sob o reinado de Isabel, aparece um grupo muito brilhante de compositores: Thomas Tallis (cerca de 1510-1595), um dos mais prestigiosos, distingue-se sobretudo na música religiosa; William Byrd (1543-1623), prote-
gido pela rainha a despeito de ser católico; John Dowland (1562-1626), a quem chamaram o maior dos petits-maitres 1 , escreveu páginas encantadoras, sobretudo para o alaúde; John Buli (1563-1628), grande virtuoso do órgão e do virginal, será organista da Catedral de Antuérpia. Citemos ainda: Giles Farnaby (cerca de 1560-1600), virginalista cheio de fantasia e de sedução; John Wilbye (1574-638), compositor de madrigais, espírito simultaneamente sensível, brilhante e capaz de grandeza; O. Gibbons (1583-1625), que se distingue, princi palmente, na música religiosa; Thomas Weelkes (1575-623), outro madrigalista, cuja obra se revela cheia de inovações e audácias. Todos estes músicos participam, de resto, na extraordinária vitalidade intelectual do século pela diversidade do seu talento. Em Portugal
A Ars Nova em Portugal teve o seu mais brilhante representante na personalidade de Damião de Gois (1502-1574). historiador, humanista e compositor. Muito viajado, familiarizara-se com as técnicas dos principais centros musicais europeus do seu tempo, sendo autor de canções e motetos, um dos quais, a 3 vozes, se tornou então famoso. As formas da balada, do cânone, do rondo e do vilancico também gozaram de grande popularidade, transformando-se este último no madrigal, ao qual permanecem ligados, entre outros, os nomes de Marques Lésbio (1639-1709), um dos melhores contrapontistas do seu tempo, e de frei Francisco Santiago (falecido em 1646), autor fecundo, que, além de muitas missas, salmos, responsórios e motetos, escreveu 538 vilancicos. Não devemos deixar de referir a escola de guitarra em Coimbra, no século XVI. A forma então ali praticada para este instrumento era a variação sobre temas de danças ibéricas, tais como a passacalle espanhola ou a chacota portuguesa. O período de maior atividade polifônica em Portugal situa-se entre o fim do século XVI e a primeira metade do século XVII, em que se evidenciaram numerosos polifonistas dedicados ao estilo imitativo a-capela, tais como: Cosme 1
Há aqui um jogo de palavras intraduzível em português, pois a expressão petit-maitre, que literalmente, corresponde a pequeno mestre, significa em francês peralta, janota, etc. (.Y. da T.)
Delgado (segunda metade do século XVI), Manuel Mendes (falecido em 1605), compositor de corais de sugestiva austeridade, Filipe de Magalhães (fim do século xvi-1623), o carmelita frei Manuel Cardoso (1570-1650), João Lourenço Rebelo (1610-1661), mas o mais notável de todos foi incontestavelmente Duarte Lobo (1540-1643?), mestre excelente do contraponto e autor de vasta obra, que compreende numerosos vilancicos, magnificats, missas, motetes e um salmo a 3 coros e 11 vozes, de grande poder expressivo. Em Espanha
Em Espanha devemos mencionar o padre Juan dei Enchia (1469-1529), poeta e músico, que escreveu a letra e a música de representações sagradas e de éclogas. Cristobal Morales (cerca de 1500-1553), o polifonista mais representativo da sua época, compôs missas e motetos. Mas o maior de todos é incontestavelmente Tomas Luis de Victoria, chamado correntemente Vittoria (cerca de 1548-1611), cuja obra é exclusivamente consagrada à liturgia. Músico cheio de poder, procurando uma expressão intensa, por vezes austera, Vittoria aparentase — na maioria das suas 180 obras — aos seus contemporâneos Teresa de Ávila e Juan de La Cruz, tanto pelo lirismo místico e o palpitar ardente de emoção, como pelo sentido do trágico e do sublime. António de Cabezon (1510-1566), familiarizado com as técnicas italiana, flamenga e francesa, de que tomou conhecimento no decurso das suas viagens, permanece essencialmente um organista. Aperfeiçoa a escrita instrumental com tanta ciência e gosto que exerce grande influência na sua época. Luís de Milão (1561), músico requintado, consagrou-se à técnica da guitarra. Uma palavra a este propósito: a vida musical foi sempre particularmente rica em Espanha, onde os ritmos e as melodias populares têm um caráter específico muito marcado. Da mesma forma, a música erudita, tanto sob o domínio árabe, como depois da reconquista, distinguir-se-á sempre das outras escolas européias pela sua exuberância expressiva e ornamental. O canto moçárabe, utilizado pelos cristãos que viviam em territórios dominados pelo Islão, oferece um exemplo desta afirmação. O vilancico é uma peça polifônica, inicialmente um canto estrófico do Natal, que se desenvolverá até se tornar, no século XVIII, um conjunto em que intervêm solistas, coros e interlúdios instrumentais. A
vihuela, antepassado da guitarra, de que já falamos, goza de tanta popularidade
em Espanha como o alaúde no Norte. A despeito da voga crescente da guitarra, conservará o seu prestígio ao longo do século XVI, e as coletâneas para vihuela de mano (vihuela dedilhada, por oposição às vihuelas de arco ou plectro), pu blicadas por Luís de Milão entre 1535 e 1560, comportam trechos de inspiração erudita e popular: vilancicos, romanzas, sonetos, pavanas, etc. Os vihuelistas dão à Espanha um vasto e brilhante repertório. É conveniente fazer notar que a vihuela e a guitarra existiram simultaneamente durante muitos anos; só pelos fins do século XVI é que a vihuela desaparecerá pouco a pouco da cena. Assim, a Renascença espanhola caracteriza-se por uma profusão musical; e se os compositores ibéricos, que na sua maioria viajaram pela Itália e absorveram as influências conjugadas das escolas borgonhesas e italiana, foram admiráveis polifonistas, souberam ser também grandes líricos, tornando-se frequentemente porta-vozes do sentimento popular. Aqui, mais uma vez, misturam-se os diferentes gêneros: tanto em Vittoria como Greco ou em Zurbarán, tanto em Teresa de Ávila ou em Juan de La Cruz, como em Cervantes ou Lope de Vega, encontramos essa exuberância dos sentimentos, essa intensidade do realismo, esse fervor da inspiração poética que arrebatam o espírito. Deve notar-se que a música em Espanha nunca cairá numa escolástica abusiva; esta será sempre dominada pelo fogo de uma eloquência nata. Da grandeza deste século XVI, a música apenas nos oferece um aspecto, contudo estreitamente ligado à época, que fervilha de forças novas. Basta evocar Ticiano, Miguel Angelo, Vinci, esses arautos das idéias novas, que abrem de par em par as portas do futuro. Se pensarmos nos seus contemporâneos e nos seus predecessores, nos poetas, nos pintores ou nos filósofos, em Brueghel, na Flandres, Ronsard, Rabelais ou Montaigne, em França, Shakespeare, na Inglaterra, El Greco, em Espanha, encontraremos por todos os lados resplandecentes manifestações do espírito novo, ou seja do individualismo oposto ao espírito coletivo da Idade Média. Pela sua poderosa personalidade, todos esses artistas arrastam a sua época para novas realidades humanas e morais. À parte, sem que por isso deixe de ser igualmente característico do seu tempo, Jerôme Bosch, visionário alucinado, liberta com surpreendente violência os terrores, os pesadelos e as visões do inferno das crenças medievais. É a reação de um espírito que ultrapassou a fase da submissão. No domínio científico, é um Copérni-
co que descobre o movimento dos planetas, e está prestes a surgir o génio de Galileu. O universo alarga-se em todas as direções. Reforma e Contra-Reforma
Século de ouro da civilização espanhola e de grande prosperidade dos Países Baixos, século de ouro da Inglaterra sob o reinado de Isabel e século de ouro também da Renascença italiana, sabemos contudo que esse século XVI tam bém assistirá a conflitos religiosos cruciantes, que lhe imprimirão a marca dos seus tumultos, tal como as artes e o pensamento o marcaram com a sua riqueza. O acontecimento dominante e a promulgação da Reforma, por Lutero, em 1517. Sem nos alargarmos neste trabalho sobre o seu caráter religioso e político, verificaremos a profunda perturbação que a Reforma causará nos espíritos, bem como o estilo que ela vai impor à música de igreja — luterana na Alemanha e nos países vizinhos, calvinista em Genebra, em França e na Inglaterra. Um sopro de austeridade e de purificação espalha-se pela Europa. Lutero escreve Corais, espécie de cânticos lentos e solenes, cantados a quatro vozes, em acordes, sem ornamentos (e cuja severa beleza atingirá o seu apogeu com J. S. Bach). Numerosos músicos adotam por sua vez o coral, que introduz no culto reformado uma liturgia musical pura e grandiosa. Calvino faz cantar os salmos em uníssono e proíbe que a igreja ostente -pinturas, esculturas ou qualquer pompa exterior. O estilo musical do rito protestante impor-se-á doravante ao lado do estilo católico romano. Deve observar-se que vários compositores escrevem versões polifônicas dos salmos para uso profano, pois a polifonia, banida da Igreja pela Reforma, continua a viver uma vida intensa e agora profundamente enraizada na sociedade. Johann Walther (1496-1570), amigo de Lutero, compõe ou faz compor inúmeras obras sob a fornia de corais; Walther pode ser considerado como o mais eminente dos compositores luteranos. O salmo protestante é uma paráfrase em língua vulgar dos salmos de David. Enquanto os católicos os cantam em latim, os protestantes vão cantá-los na língua do país onde praticam o seu culto. A pedido de Calvino, Clément Marote,
em seguida, Théodore de Bèze, traduzem para francês os cento e cinquenta salmos, numa obra que ficará conhecida pelo nome de Saltério Huguenote.
Numerosos compositores adaptam estes salmos à música, de acordo com a escrita polifônica; mas a Igreja calvinista não admite o canto em uníssono. O francês Claude Goudimel (1505-1572) dará duas versões do saltério: uma no estilo contra: pontístico, a outra no estilo harmônico (em acordes). Será esta segunda versão, mais próxima das concepções de Calvino, que se imporá.
Os rápidos progressos do movimento da Reforma levam a Igreja Católica a tomar medidas enérgicas para resistir ao cisma; criam-se ordens novas, entre estas a dos Jesuítas, verdadeiros soldados de Deus. Nascem duas instituições: a Inquisição, que exercerá terríveis repressões, e a congregação do índex, dedicada à defesa da doutrina católica. Finalmente, um concílio reúne todos os re presentantes da Igreja na cidade de Trento. Esse Concílio de Trento, que durará de 1545 a 1563, terá como consequência a reorganização total da vida interna da Igreja e a consolidação da sua doutrina. O movimento de Contra-Reforma, iniciado desse modo cerca de vinte anos após a Reforma, terá também consideráveis repercussões no domínio artístico. Perante a austeridade da Reforma, esse movimento ergue um conjunto de crenças que já não são sombrias, mas sim reconfortantes (culto aã Virgem e dos santos, verdadeira presença de Cristo na eucaristia, etc.), e atinge uma humanização da religião que comunicará aos crentes uma espécie de júbilo, um sentimento de renovação. A Contra-Reforma provoca uma verdadeira explosão de alegria; os aspectos mais espetaculares e mais tangíveis da religião são postos em evidência; cerimônias e manifestações grandiosas, imagens sagradas, culto do Sagrado Coração de Jesus, tudo isto se opõe ao rigor protestante e manifesta-se no domínio artístico por uma libertação de forças novas, que irão glorificar e magnificar a religião. O espírito da Contra-Reforma vai dar origem ao barroco. Chegamos ao fim do século XVI; uma nova geração de artistas começa a abandonar a ordem e a harmonia da Renascença, para exprimir mais liberdade, mais realismo, mais “autenticidade”, como hoje diríamos. Se colocarmos a música neste movimento geral das idéias, compreenderemos melhor a sua evolução. O desabrochar da Renascença conduziu os músicos a uma espécie de ponto de equilíbrio supremo, que alcança todos os apogeus de uma época e que se conserva milagrosamente durante certo tempo, mais ou menos breve. No que respeita à polifonia, pode dizer-se que ela viveu as suas horas mais gloriosas na segunda metade do século XVI. À medida que os anos passam, vamos vê-la enterrar-se pouco a pouco numa escolástica tão erudita que acabará por se tornar confusa, obscura, esotérica. Vítima de uma espécie de orgulho do seu próprio poder, ela concede o triunfo aos “fortes em tema”, que se entregam a jogos subtis de escrita; mas esta arte de retóricos perde progressivamente todo o contacto com a realidade. Cai finalmente na deca-
dência e cederá amanhã perante o impulso irresistível das duas grandes criações estéticas do século XVII: o barroco e a ópera. Não esqueçamos finalmente que todos os progressos introduzidos na linguagem musical, desde a Idade Média à Renascença, conduziram a uma convergência na aplicação dos princípios. Foi assim que, pouco a pouco, se forjou uma linguagem que transpôs as fronteiras: ao atingir o apogeu da Renascença, a música (e é este fato que lhe dará força) tornou-se européia; quer se estude música em italiano, alemão, francês, inglês ou espanhol, observam-se as mesmas regras, as mesmas convenções. Paralelamente à Europa do pensamento literário e filosófico, existe uma Europa musical cosmopolita, cuja importância não poderia ser subestimada sem injustiça. Pois as grandes viagens, o incessante intercâmbio de artistas e de intelectuais, contribuem para afirmar um espírito europeu que então parecia natural, já que a Europa era uma realidade psicológica. A era dos grandes nacionalismos destruiu esta ordem, que o nosso século procura reconstituir, a fim de tentar reencontrar esse “pensamento europeu” altamente civilizado e que produziu frutos tão admiráveis.
VI - ADVENTO DO BARROCO
O ano de 1600 é importante na história da música: o movimento de idéias, que se preparava aqui e ali desde há cerca de um quarto de século, define-se e manifesta subitamente a expressão justa que procurava. É o rompimento, nítido desta vez, com o estilo polifônico, pelo aparecimento de um estilo novo: a melodia acompanhada, a que costuma chamar-se “o reinado do baixo contínuo”. Estas duas expressões: melodia acompanhada e baixo contínuo, que ao leigo podem parecer puramente técnicas, designam na realidade uma estética que vai ditar leis a século e meio de criação musical. São apenas a definição, em termos profissionais, de um fenômeno que, por volta de 1600, vai perturbar a música: o advento do barroco. Explicá-las-emos mais adiante. A vida da arte desenrola-se em ciclos que partem de um estado primitivo e, através de uma sucessão de transformações, tendem para um ideal de perfeição clássica. Esse classicismo, uma vez atingido, conduzirá por sua vez à decadência, da qual nascerá um novo estilo. É este fenômeno que observamos na música, onde, mais do eme em qualquer outra arte, a técnica tem sempre ameaçado asfixiar a expressão. Em consequência, a música nunca se fixa no seio de uma ordem ou linguagem estabelecidas, pois a liberdade de expressão que ela reivindica encontra-se perpetuamente entravada por leis de escrita que progressivamente a enclausuram, até que, finalmente, ela se revolta e adota uma nova liberdade, uma nova “desordem fecunda” que a salvará do academismo. Já vimos, desde a Ars Nova, a evolução deste processo, que representa a luta do espírito e da matéria. A matéria é perigosa para a música: deve estar presente sem nunca se fazer sentir. Esta lei é válida em todas as épocas e quaisquer que sejam os estilos: verifica-se na mestria de um Palestrina ou de um Alban Berg, manejando formas de uma rigorosa exigência técnica a quatrocentos anos de distância e conferindo-lhes a aparência da mais absoluta liberdade. O pedantismo escolástico existiu sempre e foi contra ele que sempre lutaram os verdadeiros criadores. É contra ele que lutam os músicos e os humanistas dos últimos anos do século XVI, para tentarem novamente a “conquista do verdadeiro”, quase asfixiado sob uma forma convencional, que apenas se preocupa com a sua própria perfeição. Não são todas as grandes páginas polifônicas dessa época infalivelmente construídas sobre o processo intangível da imita-
ção? É impossível ouvir dois compassos de qualquer trecho sem ver surgir, contra toda a verosimilhança, as respostas sucessivas do primeiro motivo nas diferentes vozes, de forma que o trecho se estrutura sempre exatamente da mesma forma. É impossível que tais composições possam exprimir o sentimento individual, por exemplo, uma vez que o “eu” é cantado por quatro vozes (ou mais) e pelo processo imitativo, nenhuma voz podendo destacar-se isolada da apertada trama da polifonia. Esta forma, daí para o futuro cristalizada, perfeito exemplo de habilidade, amostra de virtuosidade de um estilo que alcançou o mais alto nível da sua evolução, torna-se banal, monótona, perde toda a verdade humana. Os eruditos deleitam-se em combinações cada vez mais extraordinárias do contraponto, tão complicadas que agora apenas servem para leitura. E a própria música é assim espoliada do que lhe é devido... Este fato é bem evidente, pois a revolução vem precisamente do interior: por outras palavras, são os maiores músicos da época, um Lassus, um Monteverdi, um Marenzio e outros, que, pelo caminho indireto do madrigal, introduzem na polifonia algumas liberdades de escrita que rompem a severidade acadêmica (os madrigalismos), algumas audácias, como a de confiar à voz superior (o soprano) um canto que exprime o sentimento individual, enquanto as três vozes restantes em breve parecerão apenas acompanhar o solista. Tais liberdades e flexibilidades representam o fermento de desagregação do edifício polifônico, que, tanto no sentido próprio como no figurado, vai desaparecer, porque os espíritos, aventurando-se para além das fronteiras conhecidas, vão partir em busca de uma nova verdade. A Itália, que devolveu à Europa o que a Europa lhe havia dado (uma arte polifônica magistral) acrescido da sua própria riqueza (o lirismo, a flexibilidade de expressão), a Itália, que incontestavelmente se encontrou no centro espiritual da Renascença, vê manifestarem-se as primeiras e mais férteis impaciências de uma geração que pretende romper com as leias severas dos (músicos do Norte, graças às quais ela criou verdadeiras jóias, mas que lhe parecem, contudo, asfixiantes... E o poder ofensivo da Contra-Reforma exerce ele também a sua influência, no sentido de que a arte da Renascença é pouco a pouco considerada como ultrapassada, pertencendo a uma época que tudo naquele momento renega.
E então que vai nascer esse movimento tumultuoso que vivifica toda a história da música: o barroco. Simultaneamente, o desejo de renovação, a necessidade de uma música que “represente” com realismo os sentimentos humanos 1, inspira um gênero novo, onde a vontade e o acaso se conjugaram, e que vai ocupar um lugar imenso na vida musical: a ópera. O advento do barroco e da ópera são os dois acontecimentos essenciais da música no século XVII; são o bastante para modificar a face do mundo, do mundo musical evidentemente. A juventude triunfante destes dois elementos vai em breve fazer parecer arcaica toda a arte da Renascença, e a música inteira seguirá pelos mesmos caminhos onde eles avançam a largos passos.
A explosão libertadora O barroco é uma grande explosão libertadora; se, por um lado, representa a desagregação das formas legadas pela Renascença, por outro é também uma arte do ornamento e do movimento, a arte do poder e da riqueza. O barroco é profusão, virtuosidade, grandeza e frequentemente grandiloquência. Opõe-se totalmente ao classicismo, no sentido em que as linhas direitas tornam-se curvas, a serenidade dá lugar à intensidade, a moderação transforma-se em trans bordamento, em suma, o barroco representa exatamente o oposto do que o precedeu. O artista do século XVI sujeita a sua fantasia a uma forma; o do século XVII sujeita a forma à sua fantasia. O classicismo define-se pela aceitação de uma ordem estética; o barroco improvisa, cria formas inesperadas e afirma a preeminência do impulso humano sobre a regra abstrata que subjuga a obra. Se observarmos todas as grandes criações barrocas das artes plásticas, não será difícil estabelecer um paralelo com a música e verificar que a criação musical do século XVII é barroca pelas mesmas razões e segundo os mesmos princípios: a linha melódica inesperada, quebrada, caprichosa (a que vai provocar a grande literatura instrumental dos virtuoses), o poder expressivo aliado ao gosto pelo ornamento, o emprego dos contrastes de volumes, de relevos coloridos (o diálogo solista-orquestra, que amplifica o estilo decorativo e conduzirá ao grande concerto), os arabescos flexíveis do canto ou do instrumento — em 1
A palavra ficou no vocabulário musicológico: stile rapprasen-tativo, estilo representativo dos sentimentos.
resumo, a intensidade de expressão aliada à turbulência da decoração—, todos estes elementos constituem a música barroca.
O bailado As Fadas das Florestas de Saint-Germain, exibido no Louvre em 1625: instrumentistas do Grande Ballet, espanhóis e instrumentistas campestres.
A efervescência ornamental e expressiva que caracteriza o barroco plástico encontra-se assim transposta paia a música. O que faz a grandeza de uma ópera de Monteverdi é o espírito barroco: grandes arabescos melódicos, contrastes imprevistos, jorros súbitos, grande declamação lírica. Os elementos que, num concerto de Corelli ou de Vivaldi, definem o barroco são tambem a oposição dos grupos, o sentido do relevo, do volume, da perspectiva, os contrastes dinâmicos das graduações, a vitalidade do ritmo e, finalmente, a escrita fluente, nervosa, decorativa, enchendo o espaço de uma infinidade de trajectórias. O barroco permitiu o desabrochar de uma música inteiramente renovada, tanto no espírito, como na forma. Por outro lado, torna-se responsável por certos excessos que continha em potência e de que nem a ópera nem a música instrumental jamais poderão libertar-se completamente, de tal forma eram poderosas as suas seduções: os excessos da virtuosidade. Do bel canto — virtuosidade vocal — à virtuosidade instrumental, vivemos desde há cerca de quatro séculos a era da virtuosidade. Numerosas vezes combatida, por vezes rejeitada por compositores que introduzem na música outros valores, ela voltou sempre à superfície, porque o seu poder é irresistível. Ela faz parte das grandes conquistas humanas; a virtuosidade do arquiteto ou do pintor, a do cirurgião, do engenheiro ou do técnico é da mesma ordem: significa a vitória sobre a matéria. No que respeita à música, compete-nos fixar limites a essa virtuosidade, de forma a que as suas ofensivas regulares nunca consigam asfixiar a arte. Eis, portanto, o barroco, que vai reinar sobre a música de 1600 a 1750 aproximadamente. Podemos considerar três estados sucessivos, que definem bastante bem a sua evolução: primeiro um “barroco primitivo”, que precede os anos 1600 e se revela durante o último terço do século: é a época das grandes manifestações de liberdade de que já falamos e que abalam o edifício polifônico. Músicos tais como Orazio Vecchi, Cláudio Merulo, Giovanni Gabrieli e Jan Pieter Sweelinck manifestam por essa forma a sua fantasia criadora, mesmo a despeito de uma escolástica por vezes severa. O “pleno barroco” cobre aproximadamente todo o século XVII: é neste período que se situa o desabrochar total do género, com as grandes óperas mitológicas de cenários faustosos e imponentes (Lully) ou conflitos psicológicos (Monteverdi), com os concerti grossi (Corelli) e as sonatas e tocatas instrumentais (Frescobaldi, Couperin).
O “barroco tardio”, a que poderíamos igualmente chamar barroco clássico, representa a conclusão do gênero que estabelece progressivamente o seu pró prio classicismo: as leis da linguagem e da forma obedecem a certos ditames de ordem e de estrutura, canalizando de certo modo a profusão. Dois grandes gênios porão termo ao barroco, introduzindo-lhe as virtudes conjugadas de uma inspiração poderosa e de uma arquitetura magistral: Haendel e João Sebastião Bach. Apesar de nem todos os artistas se ligarem necessariamente ao estilo de uma época e terem portanto existido isolados — ou atrasados — ao longo da história, o fato é que o barroco abrange praticamente toda a produção musical dos séculos XVII e XVIII, pelo menos até cerca de 1750. Por outro lado, ele adquire diversas expressões conforme os países: luxuriante, apaixonado e fluente na Itália, torna-se teatral, pomposo, bastante frio em França, enfático, pesado e sensual na Alemanha, poético e feérico na Inglaterra, so brecarregado de ornamentos em Espanha e em Portugal. Mas as suas características permanecem as mesmas em toda a parte. O barroco musiO Músico, gravura do século XVII cal, demasiado esquecido pelos historiadores, é uma realidade extremamente rica. Se a música do século XVII não for integrada no movimento de idéias que nesse momento suscita uma flo-
ração tão opulenta, ela não tem razão de ser. Se não lhe for aplicada a palavra “barroco”, ela perde o seu significado. Uma vez alcançado o ponto culminante de meados do século XVIII e pouco depois de 1750, o estilo barroco começa por seu turno a empastar-se. Reveste-se de tantos pormenores que estes acabarão por lhe fazer perder o seu verdadeiro caráter; o gosto pelo ornamento, que já não serve o desejo de alcançar um ideal, conduz ao preciosismo. Os períodos amplos, os grandes voos, são abandonados em proveito de uma forma que, com demasiada frequência, se revela pré-estabelecida, isto é, acadêmica e prudente. Até as próprias idéias perdem a sua envergadura. A expressão amesquinha-se e
dissolve-se em boniteza, em “estilo galante”. Chegamos ao rococó. A fase do poder passou, e inicia-se agora um tipo de música amável, pura distração ao serviço de uma sociedade frívola. O rococó é a conclusão insípida do barroco e a sua decadência. A audácia e a aventura desapareceram; os gigantes da música deram lugar a peraltas de cabeleira empoada. A música tornou-se numa arte “tranquilizadora”, enquanto, no século anterior, fora concebida para deslumbrar, assustar, subjugar. Este culto do “lindo” encontra-se, como se sabe, na maioria dos pintores e literatos da época. E se a música acusa um ligeiro atraso em relação a esta evolução, de resto já perceptível antes do fim do século, ela será pelo menos, com as outras artes, a última luz de um século que os acontecimentos de 1789 deitarão por terra.
A riqueza do século XVII O reinado de Luís XIV estende-se de 1645 a 1715; em volta do soberano gravitam Mazarino, Colbert, Louvois. O rei cria a Academia Real de Música. Anteriormente, Richelieu tinha fundado a Academia Francesa (1635). São Vicente de Paula e São Francisco de Sales, duas grandes figuras da ContraReforma, iluminam o século cristão, enquanto a filosofia se encontra representada por estes dois pólos do pensamento: Descartes e Pascal. O século literário conta com Corneille, Racine, Molière, Bossuet, La Rochefoucauld e La Bruyère, e na pintura temos Claude Gellée, Georges de Ia Tour, Philippe de Champaigne, Poussin. Os Holandeses percorrem os mares e conquistam vastas colónias, enquanto Rembrandt, Vermeer, Ruysdael, Frans Hals evidenciam a vitalidade artística da
nação. Na Inglaterra, os nomes do poeta Milton, do sábio Newton e do filósofo Locke respondem ao de Purcell.
A Visita, gravura do século XVII
Em Espanha, onde Lope de Vega e Calderón ilustram uma renascença teatral, Velázquez exprime o barroco pictural. Rubens afirma esse mesmo barroco na Bélgica, enquanto Bernini constrói a colunata e o baldaquino de São Pedro, em Roma. Borromini, no domínio da arquitetura, e Caravaggio, no da pintura, assim como os seus contemporâneos, impõem à Itália a sua exuberância. Jordaens e Van Dyck, Zurbarán ou Ribera, a extraordinária abóbada de Santo Inácio, em Roma, de Pozzo, os grandes empreendimentos de um Colbert, abrindo os mares à França, os voos oratórios de Bossuet... De um extremo ao outro da Europa respondem-se as grandes vozes inspiradas, as ideias audaciosas, que, em todos os domínios, exaltam o século, um século de vistas largas. Fica-se surpreendido perante as transformações que marcam a Europa do século XVII em relação à do século XVI. Determinadas épocas continuam as que as precederam, outras renegam-nas, mas neste caso dá-se um rompimento total. Entre o século da Renascença e o do barroco situam-se as reformas religiosas, as descobertas da ciência e da filosofia, as grandes explorações, um estilo novo de vida. Só em fins do século XVIII é que se acalmarão as ondas alterosas que agitaram o mundo e se terminará um ciclo de civilização. A Europa terá progredido mais no decurso de duzentos anos do que ao longo dos mil e quinhentos precedentes. Mas regressemos agora aos inícios do século xvn, que viram o advento e a revelação do barroco.
 ópera no século XVII Por volta de 1600, o conde Bardi reuniu na sua bela residência de Florença um grupo de humanista trados. A camerata Bardi2 debate muitos assuntos e, em especial, a arte. Evoca-se detidamente a Grécia Antiga, que simboliza um ideal de perfeição para os homens da Renascença. No intuito de representar os grandes temas mitológicos com a maior veracidade possível, o compositor Jacopo Peri (1561-1633) propõe aos membros da camerata uma narrativa da história de Eurídice, que, em vez de ser cantada como um madrigal polifônico, seria interpretado por cantores solistas, cada um atuando por seu turno e acom panhados por um grupo de instrumentos. Os cantores, trajando à antiga, evolucionariam no palco no meio de cenários especialmente concebidos para o efei2
Camerata: salão, centro, grupo.
to. Este acontecimento ocorreu em 1600; ao querer ressuscitar a tragédia grega com os seus coros e orquestra, ao colocar as personagens no centro de uma ação psicológica que vão representar para o espectador, os Florentinos aca bam, sem o saber, de criar um gênero novo: a ópera. Musicalmente, a revolução assim operada era considerável: a ópera renunciava completamente ao velho estilo. O seu sistema baseava-se unicamente na melodia cantada por uma só personagem, a quem se confiava a expressão de todas as graduações do sentimento. O stile recitativo ou stile rapprasentativo nascia ao mesmo tempo, com o seu realismo psicológico,- e nunca mais abandonaria a cena do teatro lírico até aos nossos dias. Se a ópera inicial é indiretamente oriunda do. madrigal, pelo fato de ter podido assumir a forma de um madrigal representado e enfeitado de intermédios e melodias de solistas, nem por isso deixa de constituir um gênero estético completamente novo. Ver-se-ao, portanto, obras musicais de vastas proporções, que se desenrolam como sucessões de monólogos e de diálogos, entrecortados de intervenções de coros (regresso ao madrigal) que comentam a situação, enquanto o recitativo dos solistas exprime os seus sentimentos. Para sustentar estes longos recitativos, os instrumentos (violas, oboés, cravos) tocam alguns acordes que pontuam o ritmo ou marcam a tensão dramática. Chega-se assim a uma espécie de síntese da polifonia fortemente aliviada, pela qual o estilo harmónico vai suceder ao polifónico. Efetivamente, o emprego do acorde, ao qual se pode dar grande força ex pressiva — além do seu eventual papel rítmico — , vai desenvolver a notação da harmonia, oposta à da polifonia (uma harmonia é um grupo de notas ouvidas simultaneamente). A ciência da harmonia, quase ignorada até à Renascença, vai assumir, a partir do século XVII, uma importância tão considerável, que substituirá a da polifonia: o estilo harmônico caracterizará a maioria das obras do clássico século XVIII, do romântico século XIX e do século XX, quando então se associará ao estilo polifônico, mas dominando-o. Eis, portanto, o que mais atrás havíamos chamado o reinado da “melodia acompanhada”. Considerada em relação à extrema riqueza da estrutura polifônica, a melodia acompanhada pode parecer sumária ao ponto de representar um empobrecimento. Contudo, este empobrecimento, incontestável do ponto de vista material (a escrita), encontra-se compensado por um enriquecimento não
menos certo do ponto de vista espiritual (a expressão); mercê da “melodia acompanhada”, os sentimentos vão poder expandir-se livremente por meio de uma melodia que obedece com flexibilidade às sugestões do texto poético, sem o entrave de qualquer convenção de escrita a quatro vozes de formas préestabelecidas. A “melodia acompanhada” volta a encontrar a liberdade expressiva de toda a música que precedeu a era polifônica: monódia antiga, declamação grega, canto gregoriano, etc. Mas os cinco séculos de polifonia que a música acaba de viver enriqueceram-na consideràvelmente; doravante, a “melodia acompanhada” conservará a marca do estilo polifônico e harmônico, mesmo se for reduzida a uma síntese, uma simples elipse. No século XVIII, quando Bach, o único grande polifonista da época, escreve as suas sonatas para um só instrumento, como o violino ou o violoncelo, notar-se-á que as suas melodias sugerem ao ouvido uma verdadeira coerência tonal e harmônica: a sua monódia está firmemente estabelecida sobre o sistema harmônico. Embora o nascimento da ópera na Itália — centro da civilização da Renascença — possa parecer natural, é preciso notar que, quer seja ou não coincidência, esse país onde o lirismo é rei ia libertar a música das amarras que a retinham e permitir-lhe regressar à sua profunda vocação, que é o canto. Soltando assim as rédeas à expressão lírica, a ópera ia simultaneamente provocar o desabrochar de um gênero e fazer nascer um perigo contido em potência nessa própria libertação: o bei canto, a embriaguez da virtuosidade. As ofensivas do bei canto vão doravante suceder-se; a história da ópera será em parte a da luta entre os partidários de uma arte lírica e os de uma arte ornamental. Sendo a ópera um espetáculo, a luta estender-se-á ao domínio do palco: representar-seão, por um lado, obras baseadas num argumento psicológico, cuja música evocará em profundidade o desenvolvimento dramático e, por outro, obras baseadas na atração da encenação e do espetáculo puro, em que a música é utilizada para embelezar superficialmente essas seduções. A história da ópera é praticamente uma história italiana; é da Itália que virão os modelos em que o mundo se inspirará, mesmo para os combater. Depois da Euridice, de Peri, representada em 1600, e alguns outros ensaios que abriram o caminho, considera-se geralmente que o verdadeiro ponto de partida . da ópera foi o Orfeu, de Monteverdi, escrito para o duque de Mântua e representado no
palácio ducal em 1607. O Orfeu é a primeira obra lírica que, de um só golpe, mercê de uma extraordinária intuição do génio, se eleva aos cumes do realismo dramático e aos limites da liberdade expressiva. Esta liberdade é a do “recitativo”, que já não corresponde a qualquer lei de organização sonora, mas, literalmente, “vai onde o texto o conduz”. O recitativo acusa todas as graduações expressivas do texto pelos ritmos, os silêncios, as curvas e os afastamentos melódicos, os efeitos de contraste e de intensidade. Em suma, este recitativo barroco, estabelecido por Monteverdi, inaugura uma estética completamente oposta à estética arquitecturada da polifonia. Acompanhado de acordes, que como já dissemos — têm uma função, ora rítmica, ora expressiva, ele dá origem ao estilo de “baixo contínuo”, que se repercutirá na música instrumental e que designa o acompanhamento em acordes de uma melodia vocal ou instrumental: o cravo e o alaúde (ou órgão, conforme o tipo da obra) tocam os acordes de suporte, eles próprios por vezes acompanhados por um baixo de viola. Pouco a pouco, não só as recitações e árias, mas também os grandes conjuntos vocais, serão acompanhados pelo baixo contínuo — chamado igualmente “baixo cifrado”, porque os acordes tocados pelo instrumentista não são inteiramente escritos, mas indicados por cifras. (Conhece-se hoje um sistema análogo, com a notação dos acompanhamentos à guitarra, que deriva de um longo hábito dos músicos de jazz.) O
exemplo de Monteverdi
Cláudio Monteverdi (1567-1643) escreveu numerosas obras, das quais infelizmente poucas nos ficaram: Orfeu, Ariana, O Coroamento de Papeia, O Combate de Tancredo e de Clorinda, todas elas tragédias musicais explorando a fundo as paixões humanas e exprimindo-as com uma prodigiosa intensidade. O célebre “lamento” de Ariana prefigura a atitude do artista romântico dominado pelas paixões e apenas preocupado com a sua exteriorização (consta que o músico compôs esta página numa noite, à cabeceira de sua mulher, agonizante). Não obstante ter sido marcada por alguns sucessos, a vida de Monteverdi não foi feliz: perdeu a mulher e os dois filhos e, a despeito da sua notoriedade, foi diversas vezes forçado a renunciar a cargos que ambicionava. No plano
musical, é um gênio de grande envergadura: pressentiu tudo quanto o teatro lírico podia conter; a exaltação de um sentimento romântico, aliado ao estilo barroco, fez-lhe exprimir as alegrias e as tristezas da humanidade, não só com rara intensidade, mas ainda com originalidade, nobreza e grandiosidade. As suas obras são palpitantes de vida. Além disso, Monteverdi compreendeu o papel da orquestra, confiando aos instrumentos a missão de criar o ambiente no qual a obra vai desenvolver-se. Dá ao seu conjunto instrumental uma “cor sonora” característica da cena tratada e introduz-lhe efeitos dramáticos (tais como o “tremulo” das cordas). Até meados do século XX, o exemplo de Monteverdi será retomado e analisado sempre que se tentar definir o teatro lírico. Observemos que o drama lírico, tal como e representado no princípio do século XVII por Monteverdi, Peri e, em seguida, pelos outros compositores, Caccini, Landi, Cesti ou Cavalli, reúne todos os elementos daquilo que hoje se chama o “espetáculo total”: todas as artes nele se encontram integradas; o canto, a dança, o desempenho dos atores, o guarda-roupa, os cenários, a iluminação e, finalmente, a orquestra, participara numa realização que, a despeito de ter o canto como elemento essencial, se apoia em todas elas e este conjunto Monteverdi que confere à ópera o seu prestígio, e podemos imaginar o que devia ter sido a sedução exercida por um tal gênero, num momento em que constituía a maior distração oferecida ao público. Magia, encanto, realismo transposto para uma obra de arte, deslumbramento das luzes e dos cenários, engenhos espantosos, histórias romanescas, heróis mitológicos ou humanos, tudo concorria para fascinar o público, tal como hoje sucede com o cinema. Pensemos ainda no nível geral de cultura e de informação desse público e compreenderemos o poder da ópera, assim como as paixões que ela desencadeou.
A forma adoptada por Monteverdi e os seus contemporâneos, e que estrutura a ópera desde o seu início, é a do “recitativo e ária”. O princípio é simples: o recitativo é a acção, o diálogo dos atores; a ária é a paragem da ação e a confidência dos sentimentos que o ator exprime. A ária pode ser cantada por um solista ou por um duo, um trio, ou qualquer conjunto. Entre estes dois gêneros situa-se o arioso, combinação do recitativo e da ária, e que geralmente é uma narração expressiva, de inflexões melódicas sugestivas. Na ópera à italiana, recitativos e árias seguem-se sem paragem, exceto para introduzir um intermédio coreográfico ou orquestral. Baseada nestes elementos, a ópera vai viver cerca de duzentos anos, não sem algumas modificações, Mas conservando, contudo, o essencial. Será a mitologia que fornecerá à ópera os seus primeiros temas, de acordo com as aspirações dos humanistas da Renascença e dos gostos da camerata Bardi em especial. Tendo as grandes obras iniciais ressuscitado com felicidade as narrações e os heróis mitológicos, estabelece-se a tradição de recorrer a estes temas e a ópera mitológica alcançará um sucesso considerável; ao ler os títulos das obras líricas dos séculos XVII e XVIII, verificamos que este fundo parece inesgotável; permitirá mesmo a evocação de personagens ou acontecimentos contemporâneos, mercê de uma hábil transposição. Sabe-se que tais transposições permitiram aos escritores dizer na sua época verdades de outra forma inaceitáveis. Seja como for, Orfeu, Eurídice Apolo, Ulisses, Andrómaca, Perseu, Armida, e tantas outras, contribuem para alimentar um gênero que parece ter apenas existido para evocar uma antiguidade fabulosa. As idéias do momento reencontram-se nestas obras, onde os deuses e os semideuses assumem figuras humanas e experimentam paixões humanas; a exploração das almas apaixona o público, assim como os grandes problemas do destino do homem e as suas relações com a divindade. Esse domínio infinito da consciência humana, cuja exploração nunca consegue fatigar-nos, é abordado por meio da transposição mitológica. Sob este ponto de vista, a ópera do século XVII, e em especial a de Monteverdi, abre a época moderna. É neste aspecto que sentimos quanto o nosso mundo vive segundo os valores herdados da Renascença italiana, enquanto os da Idade Média nos parecem tão longínquos; nos primeiros anos de 1600, o público apaixona-se pelas peripécias de um amor ou de um destino trágico, cantadas com realismo violento por um ator que comunica ao auditório sentimentos transmutados em obra de arte. Este único fato encerra tudo quanto separa o século XVII das épocas anteriores e tudo quanto o aproxima de nós.
Solimão, ópera de Bonarelli, representada em Roma em 1632
Vénus Ciumenta, de Sacrati, representada em Veneza em 1643
A ópera veneziana e a napolitana O destino paradoxal da ópera reside no fato de que o seu advento foi determinado pela necessidade de libertar a música de que, no entanto, ela só sobreviveu mercê de múltiplas convenções, de que muitas vezes foi prisioneira. Dado que cada arte é uma convenção, a ópera não podia fugir a esta regra; a sua fraqueza reside no fato de que as suas convenções foram em muitos casos demasiado flagrantes: convenções de interpretação cênica e musical, lógica musical por vezes oposta à lógica psicológica, convenção dos sentimentos estilizados de forma demasiado sumária, convenção de artifícios (bei canto, bailados) destruindo a verosimilhança, etc. Vários historiadores da música disseram, com fundamento, que se a ópera, em vez de ter nascido nos salões dos príncipes italianos e de ser, de certo modo, o produto de uma fantasia estética, tivesse surgido da arte popular ou do drama litúrgico teria assumido um aspecto muito diferente. Efetivamente, a ópera permaneceu um gênero artificial e os seus sucessos foram mais devidos ao gênio de alguns compositores do que às virtudes dos seus princípios. Seja como for, a atração da ópera é tão intensa que ela fez furor desde o seu início, espalhando-se por toda a Itália. É Florença que presencia as suas primeiras manifestações; mas, com músicos como Francesco Cavalli (1602-1676) e Marco António Cesti (1618-1669), desenvolve-se um estilo veneziano, onde se aliam o fausto do espetáculo, a complexidade do enredo e o encanto de uma música mais amável e sugestiva do que profunda. É em Veneza que, em 1637, se inaugura pela primeira vez uma sala de teatro destinada ao público. O sucesso é tal, que em breve esta cidade possuirá sete salas de ópera. A ópera veneziana resplandecerá na Europa durante cerca de um século; as suas qualidades não devem fazer esquecer que ela contém em germe (e por vezes em flor) vários defeitos, que mais tarde lhe serão censurados por todos os músicos desejosos de disciplinar a sua negligência ou de corrigir as suas mais absurdas convenções. Mas a ópera evolucionará incessantemente de acordo com os ditames da moda. E se o bel canto suscita o entusiasmo da multidão, que enche as salas de espetáculos bem mais no desejo de apreciar a mestria dos virtuosos do que a beleza pura da música, é preciso não esquecer que este fenômeno não lhe é
particular: os aficionados que sublinham com bravos e apupos as proezas dos toureiros nas praças espanholas, os conhecedores que aplaudem as séries impressionantes de jetés-battus ou de fouettés das grandes bailarinas, todos obedecem a um mesmo conceito do espetáculo, que se confunde com a noção da proeza. O impulso para o salto à vara, o poder do salto em esqui, a destreza no lançamento da linha de pesca, todos proporcionam ao espectador a mesma embriaguez. É por isso que, se é difícil afastar a proeza da cena lírica, é necessário estar vigilante a seu respeito, a fim de evitar que ela se imponha em prejuízo dos valores artísticos. Outro estilo vai desenvolver-se ao mesmo tempo que a ópera veneziana: a ópera napolitana, revestindo um caráter completamente diferente 3. O povo de Nápoles aprecia a loquacidade, a sátira, o gracejo; a ópera napolitana vai ex primir estas características e fá-lo-á especialmente pela pena do mais brilhante dos representantes do novo estilo: Alessandro Scarlatti (1659-1725), pai de Domenico, o famoso cravista. Compositor extremamente fecundo, Alessandro Scarlatti escreveu mais de cem óperas, sem contar as suas obras religiosas. Tinha o talento fácil, mas neste fato residiu exatamente a sua fraqueza, pois poucas das suas obras sobreviveram. Scarlatti impõe-se-nos sobretudo como um inovador: é ele quem aperfeiçoa o tipo da ária da capo (de repetições) e que confere à abertura (de início apenas uma simples e sumária introdução) a estrutura sinfônica que conservou; deu ao recitativo secco, oposto à ária, a sua forma definitiva. Este recitativo secco, que Mozart utilizará, é uma invenção preciosa: como o termo sugere, ele evoca o fluir da palavra, pontuada por alguns acordes breves no cravo; sem qualquer lirismo, ele desenha as inflexões da voz falada em pequenos arabescos melódicos. Este realismo, vindo de Nápoles, fazia acompanhar--se por outro realismo: o dos temas, pois os Napolitanos tinham muito menos tendência para o sublime do que os seus compatriotas do Norte. Assim, ver-se-ão óperas edificadas sobre temas mais prosaicos, mesmo quando estes ainda são fornecidos pela história ou narram um episódio com fundo moral. 3
A ópera napolitana do tipo sério c representada por Francesco Provenzale (1627-1704). que teve numerosos discípulos e escreveu várias ópera. A sua influência perdurou, mas a história iria reter de preferência um outro nome tia música napolitana.
Finalmente, a ópera napolitana transporá a distância que separa a" grande ópera de caráter sério, a opera seria, de um gênero que cativará a atenção e a preferência da multidão, criando a farsa musical: a opera buffa. Tipicamente napolitana, a opera buffa alcançará um sucesso universal; o seu rótulo, tanto podia servir para as verdadeiras farsas, como para os temas meio sérios meio jocosos. Os temas inspiram-se desta vez na vida quotidiana, não só dos nobres, mas também do povo; basta pensar no “neo-realismo italiano” do cinema depois de 1945, para imaginar o que devia ser a opera buffa por volta de 16801700. Ao lado das grandes óperas mitológicas, que ora foram tragédias cantadas, ora espectáculos faustosos, e cujo estilo de corte era por vezes um tanto enfático, a opera buffa representa uma corrente de ar Saltimbancos venezianas na fresco e de juventude. Praça de São Marcos (1610) Os dois gêneros vão doravante coexistir dentro de domínios bem definidos, -cujas fronteiras são respeitadas até aos nossos dias. Salientemos aqui que não se deve confundir a opera buffa com a ópera cômica; sendo a palavra “cômica” empregada no sentido de “comédia”, a ópera cômica é uma obra onde alterna o canto e a palavra (a ópera séria poderia ser chamada ópera lírica).
Com as duas grandes escolas de Veneza e de Nápoles, a Itália deu à Europa um teatro lírico de extraordinária vitalidade. O prestígio dos músicos italianos é tão grande que são convidados para o estrangeiro. Assim sucede com Cavalli, que o cardeal Mazarino chama a Paris em 1660, por ocasião do casamento de Luís XIV, no intuito de oferecer ao auditório, como um grande acontecimento, a representação de uma das suas óperas. Todas as cidades italianas têm o seu teatro de ópera, e a multidão, de todos os graus da escala social, apaixona-se por estes espetáculos. Semelhante situação incita os músicos a escrever abundantemente; na realidade, deve ter-se consumido uma quantidade de obras de circunstância, cujos títulos e nomes de autores não chegaram até nós. Mas podemos adivinhar o poder que a ópera exerceu desde a sua origem sobre o espírito de um público muito vasto, sobre a sua sensibilidade, os seus gostos e até as suas opiniões sociais e políticas. Sabemos que a cena lírica foi por vezes um local predileto de polêmicas e que a censura dos reis e os príncipes a fulminou com frequência.
A ópera de Lully Enquanto conquista a Itália, a ópera espalha-se também no estrangeiro. Em França, ela terá um destino singular, pois será um italiano que terá a oportunidade de criar o estilo francês. O público francês, de acordo, neste aspecto, com o seu próprio gênio, era mais sensível às situações trágicas exprimidas por grandes comediantes do que cantadas por grandes tenores, e assim não tinha seguido espontaneamente a revolução que se produzira na Itália no princípio do século. Mas quando as companhias italianas (chamadas em duas ocasiões por Mazarino: em 1646, para o Carnaval, e mais tarde aquando do casamento do rei, como já mencionamos) vieram representar em Paris, o êxito foi extraordinário. A qualidade das vozes, a prodigiosa técnica vocal dos cantores, o brilho da encenação e o encanto da música atuaram poderosamente sobre os Parisienses. A corte apaixona-se, e Luís XIV não tinha esperado por este acontecimento para desejar que a música tomasse um lugar condigno em Versalhes. Um homem vai contribuir de forma brilhantíssima para a grandeza que o rei pretende impor: trata-se de Jean-Baptiste Lully.
Filho de um moleiro florentino, ganhando alguns tostões como saltimbanco nos palcos de feira, Lully (1632-1687) atraiu um dia a atenção do cavaleiro de Lorena, que o levou para França e o introduziu na corte. Perfeitamente dotado para a música, mas sabendo também desempenhar o papel de hábil cortesão (até na ausência de escrúpulos), Lully torna-se indispensável. Cativando, divertindo, adivinhando os desejos do rei, Lully consegue obter tudo quanto pede. Pouco a pouco, através de uma carreira prestigiosa, se bem que nem sempre edificante, consegue ser nomeado superintendente da música do rei e assumir na realidade um posto de comando supremo. Doravante, nada se fará no domínio da música sem primeiro ter sido aprovado por Lully e pelo rei. O florentino saberá manter na sombra os músicos de talento Trajo do Rei-Sol no Ballet de Ia Nuit. susceptíveis de o prejudicar e montado por Lully em 1663 provocar os êxitos ou fracassos que mais lhe convierem. A ação de Lully no plano musical é, contudo, considerável: para servir de divertimento ao rei, ele compõe grandes óperas bailados, onde cantos, danças e intermédios de orquestra se sucedem, rodeados por encenações sensacionais, providas de maquinismos imponentes. É quase desnecessário dizer que tais representações se afastam notavelmente dos exemplos de Monteverdi e até dos italianos contemporâneos: as óperas bailados de Lully são nobres, pomposas e solenes, ricas e cheias de efeitos
espectaculares. O seu estilo decorativo, apesar de perfeitamente ordenado, não deixa de ser barroco no aspecto geral. Oferece efectivamente um perfeito exemplo do grande barroco francês, inseparável de uma certa “ordem”. Sabe-se que Lully colaborou com Molière, tanto na montagem de comédias bailados, como para lhe fornecer músicas de cena. O estilo que ele inaugura encontra-se na origem da música dramática francesa. Ele impõe a grande declamação lírica e majestosa, dando relevo ao texto. As suas óperas Cadmus et Hermione, Atys, Thésée, Proserpine, Lê Triomphe de l'Amour Acis et Galathée, tanto pela prosódia, como pelo estilo, quer cantado, quer instrumental, manifestam uma originalidade que nada fica a dever aos Italianos. O que Lully cria é de facto uma ópera francesa. À sua volta e após a sua morte, um grupo bastante numeroso de músicos comporá no mesmo sentido. Concebida para brilhar na corte do Rei-Sol, essa música inscreve-se numa estética geral em que podem ser classificadas as construções de Mansart, os jardins de Lê Nôtre, a pintura de Poussin, a escultura de Puget e as obras literárias de Bossuet e de Racine. Dá-se o nome de “escola de Versalhes” a este fecundo movimento musical, que não foi apenas profano, pois Lully escreveu também obras religiosas de belo efeito (Te Deum, Dies Irae, De Profundis). Entre os compositores de maior fama dessa época, devemos citar Michel-Richard de Lalande (16571726), Marc-Antoine Charpentier (1634-1702), Henri Dumont (1610-1684), André-Cardinal Destouches (1672-1749), Jean-Joseph Mouret (1682-1738), Marin Marais (1656-1728), os três primeiros complementos impregnados da grandeza de Versalhes, os três últimos manifestando um talento mais pessoal e mais fino. Verifica-se, portanto, que o destino da ópera será muito diferente em França e na Itália; tendo amadurecido e produzido obras-primas, os dois estilos estabelecer-se-ão ambos solidamente, mas, por força das circunstâncias, tornar-se-ão rivais. Até ao século XIX (e poder-se-ia dizer até ao presente), os partidários da ópera italiana e da ópera francesa defrontar-se-ão. No século XVIII, a luta assumirá um aspecto bastante violento com a “Querelle dês Bouffons”, a que mais adiante nos referiremos, pois existem dois conceitos fundamentais da ópera, do espectáculo e da música que se opõem a qualquer possibilidade de entendimento. Uma coisa é certa: a ópera francesa em nada
influenciou a Itália, enquanto o estilo importado da Península encontrou os seus adeptos em França, como em todos os outros países da Europa 4.
A ópera inglesa A história conservou-nos poucos nomes de madrigalistas e de compositores ingleses; limitemo-nos aos principais e recordemos, em primeiro lugar, que a grande época dos madrigalistas ingleses situa-se aproximadamente entre 1550 e 1600, no momento em que o reinado de Isabel I suscita uma admirável floração artística. A par do madrigal, os ayres, confiados a solistas, obtêm grande sucesso: são cantados por um dos cantores de madrigais, acompanhados por vozes ou instrumentos, às vezes por ambos. A “canção do alaúde”, que terá ainda maior sucesso, por ser mais popular, tornar-se-á numa ária de solista, que se acompanha a si próprio. Esta é já uma forma que pode ser chamada .moderna, visto que ainda se mantém nos nossos dias, tendo o alaúde sido substituído pela guitarra, o piano ou qualquer outro instrumento. No que respeita ao teatro dos tempos de Isabel, praticar-se-á o mask (máscara), termo que designa qualquer representação e, nomeadamente, a mágica. O mask, que se tornará na forma cênica especificamente inglesa, já existia antes da época de Isabel I. Em 1512, Henrique VIII ordena um divertimento à maneira italiana, a que chamam mask. De que constava este espectáculo, cem anos antes da ópera? Tratava-se de um espectáculo de corte combinando diversos elementos cantados, falados, dançados e que tirava a sua origem dos fabliaux5 e moralidades da Idade Média. O mask, que na realidade é um drama musical, sofrerá a influência da ópera no século XVII, modificar-se-á em consequência disso e dará à Inglaterra um tipo especial de espetáculo-divertimento. Os sucessores da era isabelina não conservarão as suas tradições. Querendo imitar Luís XIV, o rei Carlos II institui o faustoso musical na sua corte, abrindo assim as portas ao barroco na mesma ocasião. Na segunda, metade do século, os espetáculos caracterizam-se por grandes encenações, numerosos intermédios 4
Notemos aqui a nascença da opera buffa francesa (género popular) sobre os palcos de [eira em Paris. Este vaudeville (de voix--de-ville) vai buscar os seus temas - satíricos - à actualidade. 5 Fabliau: pequeno conto popular francês, em verso, dos séculos XII e XIII.(N. da T.)
- por vezes supérfluos -, linguagem de grandes efeitos, em suma, o gosto da ostentação. Três músicos marcaram- o século: John Blow, Matthew Locke e, finalmente, Henry Purcell, o maior de todos. John Blow (1649-1708), organista de Westminster, autor fecundo de obras religiosas, escreveu em 1682 um “mask” para a distracção do Rei”, Vénus e Adónis, considerado uma obra-prima. Matthew Locke (1630-1677), músico de Carlos II, é um precursor. Dedicado à música profana, instrumental ou lírica, Locke escreve masks que prefiguram a ópera. Tal como em Itália ou em França, a grande ópera inglesa (ópera séria) vai recorrer à declamação lírica, dedicar-se a exprimir os conflitos e as paixões, afastando qualquer elemento superficial ou exterior. Será Henry Purcell (1658-1695) que a levará à perfeição, ao fazer a síntese dos estilos italiano e francês. A escola de Versalhes exerceu incontestavelmente a sua influência em Inglaterra e Purcell é uma testemunha deste fato. Mas este músico delicioso, dotado de irresistível encanto e de gênio poderoso, soube molPurcell dar os elementos estrangeiros numa matéria pessoal e, o que é mais, nacional. Pois Purcell é o grande músico nacional da Inglaterra no século XVII. Adaptando um admirável estilo recitativo dramático à língua inglesa, legou-nos, com Dido e Eneas, o Rei Artur ou The Fairy Queen, os exemplos mais perfeitos de obras onde se associam o grave e o deleitoso, o real e o fantástico, os intermédios coreográficos ou instrumentais. A morte de Dido, entre outras, é uma das mais belas páginas do repertório lírico; o patético da lamentação atinge ali o sublime. Pode dizer-se que Purcell não foi apenas o grande músico inglês do seu século, mas também um gênio comparável a Lully, no que respeita à ópera (em que se mostra muito mais rico de expressão), a Buxthude, na música de órgão, a Schútz, na música religiosa (a sua Ode a Santa Cecília é notável), ou ainda a Alessandro Scarlatti, na cantata de câmara.
O barroco shakespeariano surge mais de uma vez nos libretos das suas obras cénicas, escritas por Dryden; porém, ainda mais do que o barroco, encontra-se na obra de Purcell esse gosto tipicamente inglês pela mágica, a canção popular associada a um assunto dramático e, como já o fizemos notar, essa combinação de elementos reais e fantásticos, cujo sabor poético é inimitável. “Purcell morreu novo e com ele a música inglesa”, disse um dos seus biógrafos. A expressão não é exagerada. Esse Mozart do século XVII deu à música inglesa toda a sua nobreza, a sua beleza, a sua graça. Depois dele começará uma lenta decadência e a invasão do repertório pelos artistas italianos e os “italianismos”, sem que surja outra qualquer produção verdadeiramente nacional. As maravilhosas audácias de declamação, de harmonia, de modulação e de orquestra concebidas por Purcell, o requinte da sua inspiração, tudo isso foi quase esquecido em benefício do que a ópera italiana tinha de mais inferior. Foi preciso a chegada (e as lutas esgotantes) de Haendel, no século XVII, para que um “grande estilo” fosse imposto de novo e pusesse em fuga a música sem valor. Foi necessário que surgisse na nossa época um Benjamin Britten, para que se voltasse a encontrar o segredo da prosódia genuinamente inglesa e de uma ópera nacional - segredo que, segundo o próprio Britten, se havia perdido desde Purcell. A ópera conquistou, portanto, toda a Europa no século XVII? Sim, mas im põe-se uma reserva: pouco atraídos pelo prestígio do espetáculo, do bei canto e da melodia acompanhada e ligados, pelo contrário, às suas elevadas tradições polifônicas, os músicos da Alemanha, Europa Central e Países Baixos não seguiram o movimento. Alguns produziram realmente óperas ao gosto veneziano ou napolitano, mas, à parte J. S. Kusser (1660-1727), antigo discípulo de Lully, e, em seguida, Reinhard Keiser (1674-1739), discípulo de Kusser—que muito contribuíram para estabelecer um estilo de ópera hamburguesa, espécie de comédia lírica anunciando o Singspiel, de que nos ocuparemos mais adiante—, nenhum compositor dos países do Norte ajudou a enriquecer o gênero. A floração da ópera no século XVII, sob a sua forma italiana, francesa ou inglesa, e o carácter de divertimento sumptuoso que assumirá em toda a parte onde se afastaram da pura tradição de um Monteverdi — e até o acréscimo de atractivos representado pelo luxo material, as encenações sensacionais (trovoadas, sismos, monstros e engenhos diversos) e a vertiginosa ostentação
da virtuosidade vocal — são elementos que constituem a expressão mais característica do barroco em matéria artística. Grandes arquitectos, decoradores e pintores colaboram nos espectáculos encomendados ora pelos reis, ora por directores teatrais ávidos de receitas. Cem episódios diferentes, indo da mitologia ao fantástico, passando pelo realismo, fazem da cena lírica um lugar vivo onde se manifesta um barroco triunfante. A glória do século XVII terá sido permitir que a ópera, não obstante os seus erros e fraquezas, lançasse esse prodigioso fogo de artifício cuja recordação ainda nos deslumbra.
Como se apreciava a ópera no século XVII A moda do bei canto determinará a moda da vedeta; os teatros, que delas dependiam para se manter, sofreram os seus caprichos. Ô cinema deixa-nos hoje adivinhar o que poderia ter sido então a celebridade de uma “estrela”; os compositores, se desejassem obter algum sucesso, eram forçados a escrever para um ou uma virtuose; as lutas pelo prestígio entre cantores obsediavam os compositores e diretores de teatro. O público, pelo seu lado, apenas se interessava pelas proezas vocais, de forma que em muitas obras a parte “séria” ou os recitativos eram pura e simplesmente suprimidos. Nos camarotes tagarelava-se, jogava-se as cartas... ou dormia-se. As grandes árias e, sobretudo, a ária d'agilità (ária de bravura) eram acolhidas com gritos de entusiasmo. Na alta sociedade estabeleceu-se a tradição de apenas se ir à ópera no momento previsto, quando a diva cantava a sua grande ária, sendo o resto do espectáculo considerado apenas próprio para as classes vulgares... O bei canto floresceu especialmente em Nápoles: o público aguarda a entrada do gran uomo (sopranista castrado) ou da prima donna, e estes, senhores absolutos da partitura, cantam o que querem, substituem tal ária que não lhes agrada por outra e reservam certas passagens para a improvisação de vocalizos. Na sala ouvem-se então verdadeiros uivos de alegria. Quanto à obra, evidentemente, ninguém lhe prestava qualquer atenção. Os jovens aclamam as cantoras, chamando-as pelo seus nomes, gritando: Mi butto cara, fingindo precipitar-se do alto dos camarotes a fim de as apertar mais prontamente nos seus braços. Um grande divertimento consiste em reconhecer os cantores disfarçados sob trajos estranhos. Quando certo padre, famo-
so pela maneira como desempenha papéis burlescos, surge no palco mascarado de ama, toda a platéia grita encantada: Ecco Pré Pierrô che fà Ia vecchia! 6 Quanto mais numerosos são os feiticeiros, os fantasmas, os imbróglios de todos os gêneros e, sobretudo, os travestis, mais contente se mostra o público. Chegou-se ao ponto de ver, em Xerxes, de Cavalli, um frade cantar o papel da rainha Ammestris, apaixonada pelo rei da Pérsia e disfarçada de homem. Estas extravagâncias não impediram os bons músicos de escrever muito boa música.” (Henry Prunières). “Temos de concordar que o sentido da paixão falta frequentemente nas árias francesas, porque o nosso canto contenta-se em fazer titilar os ouvidos e deleitar por meio de futilidades, sem ter a preocupação de excitar as paixões dos auditores”, disse o padre Mersenne, musicógrafo do século XVII. Definição muito exata do que distingue a ópera francesa da italiana. “Vi as óperas de Inglaterra e de Itália”, escreve um pouco mais tarde Montesquieu. “São as mesmas peças e os mesmos atores; mas a mesma música produz efeitos muito diferentes nas duas nações: uma é tão calma e a outra tão exaltada, que parece inconcebível.” “O pior flagelo que apareceu para devastar a cena musical inglesa foi, em 1679, a chegada do sopranista italiano Grossi. Este virtuoso teve um sucesso extraordinário; a partir desta época, a influência dos castrados tornou-se tão grande, que adquiriram o hábito de exercer uma verdadeira ditadura sobre os compositores de ópera. Estes, para fazer valer a voz dos seus tiranos, eram forçados a escrever árias de soprano de uma dificuldade extravagante, cujo mau gosto era ainda acrescido de ridículo, quando as melodias saiam das gargantas de um Augusto ou de um Alexandre...” (R. de Candé).
Novas formas O barroco lança-se no desconhecido, inventa as suas formas e a sua expressão à medida dos seus desejos, avança a cada passo no domínio do novo e do inesperado, e esses mesmos elementos fazem do século XVII uma extraordinária época de investigações e de descobertas. O radiar da ópera não impede que outros gêneros floresçam e proliferem na Europa; primeiro porque a ópera não 6
“Olha o padre Pedro que faz de velha!”
é a única expressão artística que responde às aspirações do tempo, em seguida porque a vitalidade do barroco estimula as forças criadoras. É assim, por exemplo, que a música religiosa e a música instrumental tomam um impulso vigoroso e encontram novos caminhos. Os gêneros musicais do século são numerosos: as formas que definem esses gêneros estão, em primeiro lugar, subordinadas aos mesmos. Esta é a característica própria do barroco. Mas antes de chegar ao século XVIII, que assistirá à fixação acadêmica das formas, elas precisar-se-ão entretanto. Para melhor as apreciarmos, diremos que a sua estrutura permite que as poderosas imaginações se manifestem com coerência, enquanto no século seguinte o seu quadro rígido tolherá com pletamente uma inspiração dócil. Esse grande século de criação, em que tudo é novo, tudo é possível, viu nascer todas as formas modernas que nos foram legadas e que a nossa época ainda pratica, cm certos casos à custa de algumas modificações. Salientemos, de passagem e para evitar confusões, que os musicólogos utilizam as palavras forma, gênero, estrutura, com muita circunspecção em várias categorias. Admitiremos simplesmente que o gênero designa um tipo de obra em geral (a ópera, o concerto, a oratória, são gêneros); a forma designa uma arquitetura característica da obra (o concerto grosso, a fuga, a suite); finalmente a estrutura designará a articulação interna da obra, aquilo que se pode “tecnicamente decompor”. Contudo, quando falamos das “formas” do século XVII, é por vezes possível substituir esta palavra por “gênero”, sem que a verdade se deturpe com esta terminologia, visto que ela ainda não possui leis precisas. De resto, um gênero pode assumir formas diversas e estas variarem de estrutura... A oratória fez a sua aparição em Roma, em 1575, quando o jesuíta Philippe de Neri (1515-1595) teve a idéia de fazer representar pela Congregação do Oratório, que ele dirigia, laudi spirituali (cantos espirituais) compostos por músicos do seu meio. Temas tirados das Escrituras e Evangelhos da Paixão foram assim tratados sob forma de recitativos, diálogos, oposições de solistas e coros, cujo realismo iria impressionar os fiéis. Este gênero novo, simultaneamente representativo e narrativo, está ligado ao espírito da Contra-Reforma. Tirando o nome do seu lugar de origem, a oratória designará qualquer obra lírica ç dramática baseada num texto religioso. Na realidade, trata-se quase de uma ópera sacra; a fronteira entre a ópera e a oratória será de resto frequente-
mente confusa no século XVII, pois a oratória assume em alguns casos um estilo mais brilhante e mais teatral do que verdadeiramente religioso. O estilo barroco reencontra-se em absoluto na oratória do século XVII: vitalidade, eloquência, grandeza, dramatismo, contrastes, intensidade, ornamentação, tudo ali se encontra reunido. Fixa na sua forma e nos seus elementos (solistas, coros e orquestra; árias, duetos, conjuntos, corais, recitativos), ela atravessará os séculos mantendo quase as mesmas prerrogativas. As oratórias mais marcantes do século são as do alemão Henrich Schútz (1585-1672), músico espantoso, que mantém a tradição polifónica enquanto se inicia no estilo italiano (óperas e bailados mitológicos). Compôs quatro paixões: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João, e as Sete Palavras de Cristo na Cruz. O seu estilo prenuncia o de Bach. Giacomo Carissimi (1604-1674), autor das oratórias: Exéquias, Baltasar, Jefta, Abraão, e Isaac, etc., é considerado como o grande mestre do género na Itália. A par de Schútz, a oratória de Carissimi é mais brilhante e anuncia Haendel mais do que Bach. Discípulo de Carissimi, o francês Marc-Antoine Charpentier (escola de Versalhes) escreve “histórias sacras” que são na realidade oratórias ou “dramas sacros”; de entre as suas obras conservou-se David e Jónatas. O seu estilo erudito tem grande encanto melódico. Quanto a Alessandro Scarlatti, tão fecundo em todos os gêneros, legou-nos cerca de vinte e cinco oratórias. Notemos que a primeira grande oratória representada em Roma em 1600 foi La Rappresentazione di Anima e dei Corpo (“A Representação da Alma e do Corpo”), de Emílio de Cavalieri (1550-1602). Composta no novo estilo oriundo da camerata Bardi, esta obra punha em cena personagens alegóricas, tais como o Tempo, a Vida, o Prazer, a Alma e o Corpo. Era cortada por ritornelli (repetições de um mesmo motivo) e por danças. Apesar de ser esta a origem da oratória, há um pormenor importante que mais tarde intervirá para consumar a sua separação da ópera: esta não pode existir sem um palco, enquanto a oratória abandoná-lo-á de vez e será representada no estrado da sala de concertos, mais de acordo com o seu gênero. A cantata é uma obra para solista e orquestra ou um pequeno grupo de instrumentos. Pode ser sacra ou profana; de proporções mais reduzidas do que a oratória, consiste frequentemente num monólogo dividido em recitativos e á-
rias sucessivas. Gênero barroco por excelência, a cantata presta-se a todas as liberdades de composição. Certas cantatas dramáticas italianas aproximam-se, como a oratória, do estilo da ópera; existe de resto frequentemente uma certa contusão, pois o desenho melódico, os acentos dramáticos de um recitativo ou de uma ária de uma cantata, por um lado, e da ópera, por outro, podem ser muito semelhantes. Cantata (de cantare) significa muito simplesmente peça cantada. Será a progressiva definição Na ópera de Viena, o frontão de Papageno comemorando a criação de A Flauta Mágica, de Mozart, em 1791. À direita: retraio de M o lar t aos treze anos da forma e do estilo que determinará a acepção da palavra. Para evidenciar a confusão de que falamos, basta evocar o admirável Combate de Tancredo e de Clorinda, de Monteverdi, que é simultaneamente uma cantata e uma ópera. A cantata em geral não se representa: a ópera, porém, desenrola-se no palco. Caccini, Peri, Rossi e Carissimi praticaram a cantata, que, obedecendo aos ditames do barroco, adquire amplitude no decurso do século (importância das personagens, da orquestra, dos conjuntos vocais). Em França, os grandes motetos da escola de Versalhes são na realidade cantatas de igreja. Notar-se-á que as cantatas de J. S. Bach têm um caráter mais íntimo, uma forma reduzida, um estilo mais clássico. A suite é uma das formas mais antigas e também das mais imprecisas da música instrumental. Mas nem todos os conjuntos de trechos sucessivamente ligados podem ser definidos como uma suite: é necessário introduzir uma certa ordem e, em primeiro lugar, a da alternância e unidade de caráter. É já neste sentido que trabalham os músicos da corte de Borgonha. No século XVI, Claude Gervaise compõe de uma forma audaciosa e profética suites de melodias de -dança diretamente oriundas dos repertórios popular e erudito: bransies, gavotas, bourrées, tourdions, etc. É ao som destas suites que dançam os senhores franceses, enquanto alguns instrumentos — alaúdes, violas, harpas, flautas e tamborins — as acompanham.
Séculos XV-XVI: a Renascença italiana associa a musica ao movimento de libertação das artes Esq.: anjo músico tocando flauta, por Donatello. Dir.: Ninfa tocando trompa -(fresco do século XVI)
Espineta
Espineta, instrumento de cordas pinçadas, aparentado com o cravo, mas com um único teclado. Modelo do sec. XVIII
Tímpano, espécie de citara de cordas de latão, que se feriam com plectros de madeira
Grande cravo com dois teclados, fabricado por Jean Couchet em 1649
Virginal fabricado por Gilbert Townsend em 1641. Este instrumento, parente do cravo, estava muito espalhado em Inglaterra
Virginal, atribuído a Vincentius de Taeggiis, Bologna, 1629
Século XVII, proliferação do barroco: órgão, alaúde, harpa, cravo e viola de gamba ( quadro atribuído a Van Kessel)
“Concerto de mesa” no século XVII, com alaúde e baixo de viola ( segundo O Ouvido , de Abraham Bosse). Aperfeiçoando-se, a suite torna-se uma obra de música erudita para conjunto instrumental. As danças que a compõem vêm de todos os pontos da Europa; assim a bourrée é da Auvérnia, a gigue da Escócia, o minuete de Versalhes, a siciliana e a allemande denunciam a sua origem. A alternância dos movimentos vivos e lentos, o fato de que todas as partes são escritas no mesmo tom, indicam uma preocupação de coerência. Partindo desta fase, a suite, que pode comportar um número indefinido de andamentos, vai dar origem à sonata, que apenas conservará três ou quatro andamentos, bem como ao concerto grosso.
A sonata (do italiano sonare, tocar) é uma peça destinada a ser tocada por um instrumento qualquer e não cantada. Tem a sua origem nas canzoni da sonar do século XVI (A. Gabrieli), que eram peças instrumentais. A suite de danças e a peça de polifonia vocal transcrita para instrumentos de teclado podem ser chamadas sonatas. Mas em breve destaca-se uma forma de sonata, dita “monotemática” (de um só tema). Kuhnau e Couperin contribuem para o desenvolvimento deste gênero. Corelli fixa-o. Domenico Scarlatti, no século XVIII, ainda utilizará a sonata monotemática de um andamento, quando já numerosos compositores do século XVII tinham escrito sonatas de três partes sobre o modelo das suites, Haydn e Mozart fixarão o modelo clássico da sonata “bitemática”, de três ou quatro andamentos: allegro, adagio (minuete), allegro. Em princípio, a sonata é um pretexto para a virtuosidade instrumental e, facto novo, já não depende de qualquer assunto extramusical: seguir ofícios, sublinhar textos, ritmar danças, etc. O advento da sonata é importante, pois marca um passo em direção à autonomia da música instrumental, ou seja aquilo que se chamará a “música pura”. Afirmaram-se dois tipos de sonatas nos Maqueta do trajo desenhado por séculos XVII e XVIII: a sonata de igreja Carzou para a reposição de (da chiesd) e a de câmara (da camera). A Indes Galantes, de Romeau primeira, escrita para o órgão, é de estilo (Paris, 1955) severo; a segunda, mais ornamentada, utiliza por vezes ritmos de danças e o seu estilo é mais harmônico do que o contrapontístico.
Século XVIII, advento do estilo galante: a sociedade encara a música como um divertimento amável. O marquês de Sourches e a sua família, por Drouais. Os românticos ampliaram e variaram a forma da sonata, vergando-a completamente às necessidades da expressão. Apenas permanecem as grandes linhas de estrutura: bitematismo da primeira parte e as três ou quatro partes tradicionais, mas remodeladas e desenvolvidas. A sonata — hoje novamente incluída
nas normas clássicas — designa qualquer tipo de obra de música pura (para um ou vários instrumentos) obedecendo a estas regras gerais de forma. O concerto grosso separa-se da suite no século XVII. Não obstante esta ter existido até ao século XVIII, até Bach, que dela nos deu os modelos mais perfeitos, nota-se que permaneceu arcaica, enquanto o concerto grosso constitui o seu elemento “progressista”. O concerto grosso, emanação típica do século barroco, é também construído sobre ritmos de dança e dividido em vários andamentos (partes), quatro, cinco, seis ou mais. Orienta-se em direção a um destino mais ambicioso e essa ambição levá-lo-á ao concerto para solista e à sinfonia, dois gêneros que ele continha em potência e que, como se sabe, reinam sobre a música como Na ópera de Viena, o frontão de Papagueno senhores incontestados desde comemorando a criação de A Flauta Mágica , de Mozart, em 1791. há duzentos anos. Nascido na Itália, o concerto grosso e constituído por dois grupos instrumentais que dialogam (concertare); um solista ou um grupo de solistas tocam a melodia (o tema e as suas brilhantes variações): é o concertino. Um conjunto instrumental responde-lhe, fornecendo o acompanhamento: é o ripieno. A reunião destes dois grupos, chamada concerto grosso, significa o conjunto, a orquestra completa. O número de instrumentos não está fixado. O género: cordas e madeiras. O estilo do concerto tende para a música pura, livre de qualquer elemento narrativo; as danças que lhe fornecem o material são tratadas em variações com intermédios livres. Estas utilizam o estilo harmônico ou polifônico ou uma associação de ambos; a polifonia do concerto grosso é sempre extremamente clara e ligeira, uma vez que a virtuosidade dos solistas passa para primeiro plano. O primeiro andamento, como no caso da suite, é geralmente uma ouverture, dita à francesa, segundo o modelo imposto por Lully: adagio-
allegro-adagio. O estilo solene desta introdução devia ser especialmente adequado para captar a atenção do auditório. Na alternância das partes do concerto grosso encontram-se mais frequentemente os cinco andamentos seguintes: ouverture ou prelúdio (lento), allemande (bastante lento); corrente (moderadamente animado); sarabanda (adagio), e giga (rápido). Cada peça torna-se um trecho de música autônomo, sabiamente desenvolvido, onde a inspiração pode expandir-se livremente sobre o esquema rítmico e melódico proposto. É a Corelli que pertence o merecimento de ter dado ao concerto grosso a sua forma clássica, favorecendo assim a sua expansão. Corelli já utiliza vocábulos que designam o tipo de trecho em vez da dança original; assim ele escreve allegro em vez de corrente. Em breve os nomes das danças desaparecerão e, simultaneamente, afirmar-se-á o caráter da obra, sendo assim que esta vai conquistar a sua plena inde pendência. Apenas o minuete se conservará até à obra de Beethoven, que, precipitando o seu ritmo a três tempos para lhe conferir um caráter dramático, lhe chama scherzo, Mozart aos 13 anos eliminando da sinfonia este último vestígio da antiga suite. O concerto grosso dividir-se-á, portanto, em dois ramos: o concerto e a sinfonia. Desenvolvendo-se cada uma das suas partes, em breve só se utilizarão os três ou quatro andamentos que resumem as suas necessidades. O concerto provém da parte cada vez mais importante confiada ao solista, verdadeiro virtuose do “bel canto instrumental”, onde o ornamento prevalece sobre a expressão. Concerto e sinfonia adquirirão a sua forma definitiva no século XVIII, nomeadamente com Haydn e Mozart, que, como no caso da sonata, nos darão modelos perfeitos:
1.° Andamento (allegro}: entrada sucessiva de dois temas contrastantes; seu desenvolvimento e oposições. 2.º Andamento (adagio, andante, etc.): longa melodia de caráter .meditativo e expressivo, com variações, desenvolvimento, etc. 3,° Andamento facultativo: minuete, finale (presto, allegro vivace, etc.): ideia musical mais viva e desenvolvimento mais breve do que na primeira parte, com vista a uma conclusão brilhante. A tocata, terceira das peças nascidas de um princípio sonoro (cantare, sonare, toccare) e que deveria chamar-se toccale para sermos lógicos, é uma obra de pura virtuosidade, destinada a fazer valer o instrumento de teclado. Conservou este caráter até aos nossos dias. “Toca-se” no teclado, o que é uma coisa diferente de fazer soar determinado instrumento ou grupo de instrumentos. A tocata designava, logo desde a origem, um gênero bem definido, e as tocatas do século xvn para órgão ou cravo são testemunhas deste fato, apesar de a sua virtuosidade não ser ainda deslumbrante. O ricercar, precursor da fuga, consiste numa construção de temas e respostas que se estruturam de acordo com regras severas (ricercar: procurar). A chaconne expõe um tema que se transforma no decurso de uma série de variações rítmicas e melódicas. A passacaille, que por vezes tem sido confundida com a chaconne, consiste num motivo de baixo repetido continuamente e sobre o qual se enxertam variações. A diferença reside, portanto, no fato de que o tema da chaconne se transforma ele próprio, enquanto o da passacaille se repete sem modificações e serve de fundo às variações das outras vozes. As duas formas são oriundas de uma dança lenta, de compasso ternário, vinda de Espanha. A ária (melodia) é uma das grandes invenções do século. A ópera, a oratória, a cantata e mais tarde a música instrumental e sinfónica utilizam-na. Grande melodia livre, a ária permite que a música barroca se expanda sem constrangimento (Monteverdi). No decurso do século xvn adicionam-lhe, porém, uma estrutura: pela forma a-b-a, ela obedece aos princípios (e às necessidades incontestáveis) do espírito ocidental, que quer a repetição da ideia, o regresso de um mesmo motivo. Será a ária da capo “(do começo” ou regresso ao princípio). Esta forma de ária, utilizada por todos os grandes músicos, acusa convencionalismo em alguns, enquanto noutros parece natural.
Oposta à grande improvisação barroca inaugurada por Monteverdi, ela representa, não obstante o seu interesse e as belezas que suscitou, o constrangimento de uma forma arbitraria. (Nos géneros menores a forma copla-estribilho é indispensável para suster a evolução do texto.). Irmão da ária, o arioso é um recitativo expressivo, medido, de caráter menos amplo do que a ária, mas mais melódico do que o recitativo. Todas estas formas criadas no século XVII sublinham a sua vitalidade; notarse-á que o sinal distintivo de todas elas é a grandeza, a majestade do porte, a amplitude das proporções. Este século moldou as formas que melhor se adaptavam às suas necessidades expressivas. Se a ópera, a oratória, a cantata e as formas vocais em geral beneficiam de uma extraordinária renovação, não deixemos de observar que esta época é também a da maior floração instrumental da história. É no século XVII que o estilo instrumental brota verdadeiramente da obscuridade relativa em que tinha sido retido pela polifonia, gênero essencialmente vocal. Com a ajuda do barroco, assistimos a uma prodigiosa competição de todos os gêneros: instrumentos solistas (órgão, cravo, alaúde), instrumentos de acompanhamento (flauta, oboé, violas), sonatas em trios, gru pos instrumentais diversos, concertos grossos, suites. É a embriaguez da procura: descobre-se a virtuosidade, escrevem-se peças exclusivamente destinadas a fazer brilhar os instrumentos, multiplicam-se as sonatas e as tocatas. As escalas sobem e descem, as passagens rápidas das semicolcheias abundam, manifestase uma espécie de febre de alegria na literatura instrumental; em breve surgem os grandes solistas instrumentais, fazendo concorrência aos virtuoses do canto. O bel canto introduz-se de resto no repertório instrumental; da virtuosidade vocal passa-se à virtuosidade instrumental. Pela extraordinária abundância ornamental e a riqueza da escrita, o barroco marca nitidamente toda a produção musical do século.
VII - O SÉCULO XVIII, PERÍODO CLÁSSICO Herdeiro do século XVII, o século XVIII vai selecionar, classificar e ordenar as riquezas que o seu predecessor semeou com louca prodigalidade. Era forçoso que assim acontecesse: o impulso do barroco não podia durar e viu-se que, no início do século XVIII, esse barroco começa pouco a pouco a instruir certas regras de estilo e de forma. Além disso, as idéias do século XVIII tendem para o equilíbrio, a medida; é a época dos enciclopedistas e dos filósofos da razão. O progresso das ciências também contribui para fortalecer um espírito simultaneamente racionalista e céptico. O século XVIII não é um período de grande fé religiosa nem de grande aventura no plano espiritual ou até material; será sobretudo uma era de sensatez, de razão que orienta e tempera. Será frívolo também, e apoiar-se-á mais sobre a considerável herança do século anterior do que sobre valores próprios. Mas ele coloca tudo ao nível de uma filosofia optimista e tranquilizadora, que, a despeito das críticas acerbas contra a realeza, a Igreja e a desigualdade social, apresenta a existência de uma maneira sumária e convencional. No interior desta confortável e completamente teórica concepção da vida, o homem do “século das luzes” nada vê das rudes realidades exteriores. Este estado de espírito desenvolve pouco a pouco o “sentimento”, a “sensibilidade”. Pelo fim do século, as almas emotivas procuram a melancolia na contemplação da natureza. Os leitores de La Nouvelle Héloise, de Rousseau, ou do Werther, de Goethe, já romperam com a ordem antiga; sem o saber, preparam o advento do romantismo. A música reflete fielmente a ordem estética que dá o tom geral do século: antes de 1750, essa ordem estética ainda está ligada à tradição do barroco, que se orienta para um classicismo cada vez mais marcado. Após 1750, o barroco foi ultrapassado e as tendências levam ao rococó, ao estilo galante, ao maneirismo e à pieguice - um Marivaux, um Watteau, um Mozart transcenderão estas características, transformando-as em virtudes supremas duma arte disci plinada. O prazer delicado que se espera da arte condiciona o seu aspecto e impõe-lhe um verdadeiro código: as suas regras são escritas e ninguém pode impunemente transgredi-las. Sujeita a esta ordem intransigente, a música é dominada pela forma; a expressão pessoal torna-se apenas perceptível, o compo-
sitor é abrigado a fornecer à sociedade um divertimento amável e de bom gosto (após o “grande gosto” do século precedente, eis o “'bom gosto”; a distinção é significativa). Escuta-se esta música domesticada, de asas delicadamente cerceadas, acha-se que ela é agradável e está tudo dito. Antes de 1750
Regressemos ao princípio do século, ainda profundamente impregnado do barroco. Em França, os sucessores da grande escola de Versalhes são François Couperin (1668-1733), Louis Marchand (1669-1732), Nicolas Clerambault (1679-1749), Claude Daquin (1694-1772), cravistas e organistas que praticam a virtuosidade instrumental com tal mestria e originalidade, que se tornam nos clássicos de um gênero. Couperin (membro de uma gloriosa linhagem de músicos que se sucederam durante dois séculos no órgão de Saint-Gervais) é o mestre da escola francesa de cravo; é ele quem espalha o gosto pelas pequenas peças pinturescas, retratos de personagens: A Mimi, A Manon, Irmã Mónica, de caracteres: A Ingénua, A Jovial, A Majestosa, ou quadros descritivos: A Toutinegra Queixosa, O Pintarroxo Assustado, etc. Cinzelando o pormenor com elegância, e espírito também, faz lembrar Watteau e afirma assim o “estilo galante”. Por outro lado, Couperin deixou admiráveis obras de inspiração religiosa. Os cravistas franceses haviam tido como primeiro mestre Jacques Champion de Chambonnières (1602-672), que na época de Luís XIV escreveu suites de danças e peças descritivas para o teclado, renunciando à supremacia do alaúde. Estes cravistas espalhar-se-ão por toda a Europa, no século XVIII, e os músicos estrangeiros inspirar-se-ão nos seus processos técnicos e tipo de expressão. Os compositores de óperas, bailados e música instrumental da mesma época (fim do século XVII e primeira metade do século XVIII) permanecem ligados a um barroco que não se pode conceber sem uma certa ordem e uma elegância que contém em germe a evolução .da música francesa ulterior. André Campra (1660-1744) distingue-se pela graça e originalidade dos coloridos. A sua Euro pa Galante marca uma data na história da ópera bailado. Jean-Joseph Mouret (1682-1738), o “músico das graças”—já citado—, escreveu cantatas profanas, sinfonias e fanfarras que justificam esta reputação.
Jean-Marie Leclair (1694-1674) pode ser considerado como o primeiro compositor-violinista do seu tempo. As suas sonatas e concertos revelam um virtuose notável e que fez escola. Como Couperin, ele reuniu frequentemente o “gosto italiano” e o “gosto francês”, ou seja um estilo melódico expressivo e maleável, aliado a um trabalho harmônico e contrapontístico bastante requintado. Aproximadamente entre 1700 e 1750, alguns compositores vão imprimir o cunho da sua personalidade na história da música e elevar a herança do barroco aos cumes do classicismo: trata-se sobretudo de Stamitz, Vivaldi, Rameau, Haendel e J. S. Bach. Johann Stamitz (1717-1757), virtuose do violino e compositor, mestre de capela da corte de Mannheim, dispunha de uma orquestra, na qual introduziu inovações absolutamente revolucionárias. Em primeiro lugar organizou essa orquestra de forma coerente, por famílias de instrumentos (cordas, madeiras, metais). Para este conjunto escreve sinfonias onde os grupos se respondem, se reúnem e opõem. É a primeira vez que aparece uma orquestra organizada: até ali os instrumentos agrupavam-se um pouco ao acaso. Lully e Corelli tinham manifestado uma preocupação de ordem, mas utilizando sobretudo a orquestra de cordas, por vezes acrescida de trombetas e oboés, etc. As obras de Stamitz destinam-se à sinfonia, de que ele também fixa a forma, completando assim as suas descobertas. Além disso recorre aos “cambiantes”: aos cambiantes sumários que já então existiam, e que apenas consistiam em “suave” e “forte”, ele acrescenta as gradações (crescendo) e degradações (decrescendo), os acentos, os efeitos. A obra musical adquire assim um relevo 1 e uma vida que espanta os contemporâneos e esta extraordinária novidade atrai a Mannheim numerosos amadores de música. Vê-se assim nascer e afirmar-se o estilo sinfónico actual, o equilíbrio das sonoridades, o seu uso dramático, o sentido dos volumes, dos planos, dos contrastes rítmicos, dinâmicos e expressivos. Nada revela melhor o espírito barroco do que esta manifestação; a escola de Mannheim, berço da sinfonia, exercerá a sua influência sobre o século inteiro e, a par da ópera e do concerto, introduzirá um género novo, rico de possibilidades, cujo fértil desenvolvimento é bem conhecido. António Vivaldi (1678-1743), que a nossa época voltou a descobrir, foi um dos mais brilhantes representantes da música instrumental. A sua fama ultra-
passou a de Bach e, como virtuosa do violino ou como compositor e maestro, foi uma figura tão prestigiosa, tão lendária, como o serão mais tarde Liszt ou Paganini. Vítima de uma dessas injustiças tantas vezes inexplicáveis, Vivaldi acabou a sua vida praticamente esquecido e a sua obra desapareceu com ele. Será preciso esperar pelo século XX para que Vivaldi seja lembrado e a desco berta de numerosas partituras provoque subitamente um enorme movimento de interesse. Padre e ruivo (chamaram-lhe Il Prete Rosso), de saúde delicada, consagrou o essencial da sua atividade ao Hospital da Pietà, em Veneza, instituição para órfãs, a quem um grande número das suas obras foram destinadas. O principal merecimento de Vivaldi foi o de ter fixado a forma do concerto de solista, oriundo do concerto grosso de Corelli. Improvisador extraordinário, músico da alegria de viver e da inspiração luminosa, Vivaldi é mais um gênio exuberante e espontâneo do que um grande construtor de formas. Não hesita ©m repetir muitas vezes o mesmo motivo ou o mesmo ritmo sem os variar, ou em entregar uma obra sumariamente escrita, sem se preocupar com o seu desenvolvimento. A sua maior qualidade é precisamente o brio da virtuosidade, a fluência do discurso, o espírito vivo que se manifesta na sua obra, a vitalidade comunicativa dos seus ritmos, a audácia dos seus temas, das suas harmonias e , frequentemente, a penetrante poesia dos seus andamentos lentos. Obras religiosas, evidentemente, mas em muito maior número concertos para um ou mais violinos ou outros instrumentos, onde o solista se eleva e paira sobre um discreto acompanhamento de orquestra: aí reside o gênio de Vivaldi. O seu concerto é construído em três partes (allegro-adagio-allegro), na maioria dos casos bastante breves. A parte do solista apresenta uma profusão de passagens, de arpégios, de escalas, de saltos acrobáticos. É a expressão mais pura e mais brilhante do grande concerto barroco 1. Jean-Philippe Rameau (1683-1764), grande compositor e grande teórico, introduz na música francesa — e por intermédio desta na música européia — os seus princípios clássicos. Tudo na obra de Rameau tende para a ordem, a inteligência, a ciência, o equilíbrio entre o coração e a razão. As suas obras teóricas 1
Outro veneziano, Benedetto Marcello (1686-1739), cognominado o príncipe da música por grandes músicos do seu tempo, é também conhecido pelos seus Salmos e a sua elegante música instrumental. Também escreveu óperas, obras religiosas, obras poéticas e teóricas.
(e nomeadamente o Tratado da Harmonia Reduzida aos Seus Princípios Naturais, publicado em 1722) fixam as bases da linguagem musical moderna.
Partitura-autógrafo do
Concerto em Sol Maior, de Vivaldi
As suas obras orquestrais e instrumentais afirmam uma medida, uma elegância, uma clareza espiritual que se imporão até ao fim do século. E contudo, de algum modo sujeito ao gosto do tempo, Rameau também sacrificou nos altares do barroco: escreveu óperas-bailados e óperas cujo tom sério pareceu excessivamente austero aos seus contemporâneos. Na realidade, Rameau enveredava por caminho errado: o público começava a enfadar-se dessas óperas mitológicas pretensiosas, super-convencionais, que se arrastavam solenemente ao longo de uma noite inteira, para enunciar banalidades mil vezes ouvidas sobre fórmulas musicais já gastas. Hyppolite et Aricie, Lês Indes Galantes, Castor et Pollux, Lês Fêtes d'Hébé, Dardanus, contêm belas páginas e outras mais fracas. As encenações faustosas deviam salvar estas obras, tal como sucedeu nos nossos dias, quando a Ópera de Paris levou à cena Lês Indes Galantes, numa apresentação de um luxo tão denso que a partitura musical desaparecia para segundo plano...
A seriedade de Rameau, a sua ironia por vezes cortante, ter-lhe-iam sido mais proveitosas se se tivesse dedicado à música pura. Basta ouvir as suas peças para cravo e os Concertos em Sextuor para se ficar convencido; nessas o bras encontramo-nos perante uma grande arte clássica, de uma distinção e de um equilíbrio supremos e de um caráter mais justo, mais natural do que o das obras líricas, onde este músico, talvez inconscientemente, forçava a sua natureza. A única grande virtude das obras líricas de Rameau é de, pela nobreza e seriedade, afirmar a existência de um estilo francês, de que, apesar de tudo, ele é o porta-bandeira perante o estilo italiano. Pode dizer-se que Rameau deu ao teatro musical o seu aspecto clássico; não é contudo proibido pensar que os seus princípios eram melhores do que a sua música. Para sermos justos, acrescentaremos que esse gosto, essa distinção, esse feliz equilíbrio entre o intelecto e a sensibilidade (Voltaire chamava a Rameau “o nosso Euclides-Orfeu”) criaram em França uma tradição a que, por vezes, pareceu são e providencial regressar. A “Querelle dês Bouffons” foi, em 1752, um momento de crise nessa rivalidade entre a música francesa e a música italiana. De início uma simples controvérsia entre os amadores do que se poderia chamar a música fácil e os da música erudita, essa querela ia envenenar-se, devido a posição assumida pelos filósofos enciclopedistas, assim como pelo rei Luís XV e a rainha. Uma com panhia italiana veio representar em Paris 2 a Serva Padrona (“Criada Patroa”), do jovem e infortunado Pergolesi, falecido, em 1736, aos vinte e seis anos. Esta opera buffa, escrita na melhor tradição napolitana, fervilha de malícia, de familiaridade e de sentido do natural e permanece um modelo que numerosos com positores—italianos ou não—irão imitar mais tarde. O seu êxito extraordinário levou alguns melómanos apaixonados, entre os quais o barão Grion, a dizer (e a imprimir) que os compositores franceses se entrincheiravam num gênero maçador e antiquado. Rameau foi tomado como alvo; certamente não o merecia mais do que qualquer outro, mas... a nobreza cria obrigações. Organizaram-se imediatamente dois clãs. Quando se soube que o rei era partidário dos Franceses e a rainha dos Italianos, os salões da época entraram também na contenda. No teatro, o 2
No Théâtre dês Bouffons, o que deu origem ao nome desta querela. (N. da T.)
“grupo do rei” reunia Madame de Pompadour, Rameau, Mondonville, Philidor; o “grupo da rainha”, em frente, Grim, Diderot e Jean-Jacques e JeanJacques Rousseau. Como sempre sucede nestes casos, os argumentos não podiam alcançar o adversário e nos nossos dias tem-se visto de forma bem evidente a vaidade de tais controvérsias. No que respeita a Rousseau, este assumiu uma posição de polemica tão ousada que se tornou ridículo para a posteridade. A sua Caria sobre a Música Francesa, além dos ataques extremamente desagradáveis dirigidos contra Rameau, contém inépcias tão solenes, que somos forcados a verificar que melhor teria sido se este filósofo não se tivesse metido em assuntos musicais. Pretender que não existe “nem melodia nem com passo na música francesa”, que “o canto francês é um ladrar contínuo”, que os Franceses são “incapazes de criar uma música própria”, e assim por diante, era aventurar-se bastante imprudentemente num domínio onde apenas a sua animosidade e alguns muito vagos conhecimentos de amador o guiavam. As obras musicais de Rousseau (nomeadamente Lê Devin du Village) não passam de pálidas e enfadonhas pastorais, que, não sendo nem francesas nem italianas, só se fossem geniais se poderiam opor às de Rameau. Vê-se neste retrato o célebre Em 1754, os comediantes italianos Rameau, filho dileto de Apolo, regressaram ao seu país e a disputa per- rival da Itália, e que por novos deu a sua intensidade. Não foi, de resto, caminhos soube descobrir-nos as nesta época que o público francês se leis da harmonia deixou seduzir e deslumbrar pelo encanto da música italiana, se nos recordarmos do sucesso já obtido anteriormente pelos cantores italianos em Paris, um século antes.
Frontispício da partitura de
Júlio César, de Haendel (1724)
Georg-Friedrich Haendel (1685-1759) é um dos mestres do século XVIII. Representa, com Bach, a conclusão do estilo barroco transformado em classicismo grandioso. Excepcionalmente dotado, Haendel (que nasceu em Halle, na Saxónia) era aos dezoito anos tão bom organista como violinista; aos vinte já tinha escrito uma Paixão segundo São João e duas óperas. A sua carreira foi cheia de atribulações e de viagens. Estando ao serviço do príncipe de Hanover, teve subitamente a ideia de tentar a sua sorte em Inglaterra. Após ter obtido êxito em Londres, voltou a Hanover, mas a nostalgia das mundanidades londrinas levou-o a solicitar uma segunda dispensa e, desta vez, esqueceu-se de regressar. Entretanto, produzia-se um acontecimento imprevisível: o seu antigo amo, o príncipe Jorge, de Hanover, subia ao trono de Inglaterra (1714). Perplexo, Haendel preparava-se para sofrer as represálias, quando—conta a história (ou a lenda) — por ocasião de uma festa real no Tamisa, Haendel fez acompanhar o barco do soberano por outro barco onde se encontrava uma orquestra que tocava a sua célebre Water Music, o que lhe valeu o perdão desejado. Verdadeira ou falsa, esta anedota refere-se, contudo, a uma realidade: Haendel forneceu à corte músicas de circunstância e era excelente no género pomposo e decorativo. A música de Haendel, a despeito de uma ciência muito vasta e de uma incontestável facilidade de invenção, nem sempre é profunda e procura os grandes efeitos; a sua escrita na literatura instrumental (concertos para órgão, concertos grossos, peças para cravo) é rica e a sua expressão not>re, mas será nas obras de maior envergadura que ele dará o melhor de si próprio. Tal como Rameau, Haendel ia cometer um erro na justa apreciação das suas faculdades, passando vários anos a tentar impor-se como compositor de ópera italiana. Dolorosos fracassos, assim como problemas de saúde, venceram a sua obstinação, e foi com a idade de cinquenta e sete anos que ele finalmente enveredou pelo caminho onde o seu gênio ia afirmar-se, com a composição do Messias, que permanece uma das obras--primas da música. O talento de Haendel estava doravante maduro e seguiram-se então Baltasar, Jefta, Judas Macabeu, etc. A grandeza de arquitetura, a eloquência majestosa, os sugestivos efeitos orquestrais, tudo nestas inspiradas oratórias indica o barroco, mas também, e não menos, o classicismo, o gosto pela ordem, o domínio de uma ampla forma servindo de molde à inspiração.
João Sebastião Bach (1685-1750), considerado desde há um século como um dos maiores gênios da música e que deixou obras cuja análise se revela perpetuamente fecunda, apenas teve durante a sua vida a honesta notoriedade de um virtuose do órgão e foi esquecido após a morte. Ao serviço do príncipe de Anhalt-Cöthen de 1717 a 1723, compôs essencialmente música instrumental, pois a corte, de religião reformista, não admitia música nos ofícios divinos. Mestre de capela (organista, mestre de coros, compositor da música dos ofícios) em São Tomás de Leipzig, de 1723 até à sua morte, acumulou com extraordinária fecundidade as obras religiosas, os grandes corais para órgão, etc. O caso de Bach é bastante curioso: a despeito de permanecer atento às novidades que o rodeiam e aos estilos então espalhados nas capitais da música europeia, Bach mostra-se um fiel continuador da técnica polifónica. Emprega o género da suite, que praticamente já não se usava, e aperfeiçoa-o; eleva a fuga ao seu ponto culminante em matéria de ciência; toma como exemplo um Schútz para as suas Paixões (S. Mateus e S. João), inspira-se num Dittersdorf para as peças de órgão, harmoniza corais de Lutero e compõe grandes “corais variados”, forma indicando que o canto largo do coral se insere num tecido polifónico complexo. Ele reúne assim as características do estilo barroco e do polifónico, afirmando-se, com tanta humildade como majestade, um grande tradicionalista e reencontrando a lição dos velhos mestres polifonistas que a Alemanha sempre conservou, pois este país admira a música mais nobre, mais erudita, mais rica, sem se importar que ela seja de ontem ou de hoje. A característica de Bach, no domínio da escrita, é de ter levado todas as formas antigas a um ponto extremo de perfeição ou de floração. O seu traço dominante, no plano pessoal, é o facto de que, músico de igreja, adido à sua obscura tarefa quotidiana numa cidade provinciana, onde teve de lutar constantemente Bach aos 35 anos contra a ignorância e a mesquinhez de espíri-
to, ele aceitou com serenidade essa situação onde a Providência o havia colocado; através das suas viagens e dos seus contactos, ele mantêm-se ao corrente do prestigioso movimento musical exterior, sem sentir o menor azedume pelo fato de não ter ali o seu lugar. Viúvo e casado pela segunda vez, pai de vinte filhos, praticando a música em família, levando uma existência patriarcal, ele criou obras “funcionais”, destinadas a servir o culto e, para ele próprio, a cele brar com todo o fervor, que era intenso, a glória de Deus. As suas obras, que foram escutadas sem atenção e tocadas por instrumentistas inábeis, são das mais elevadas e perfeitas que um cérebro humano possa ter concebido. Com Haendel, Bach marca a conclusão do barroco; mas se o seu estilo se integra no barroco pela sua majestade, a sua profusão ornamental, a sua fantasia, é também clássico sob muitos aspectos — nem que fosse apenas pelo facto de que qualquer das suas obras obedece a um princípio cie forma ou de arquitetura, e que, em certos casos, a expressão se encontra voluntariamente dominada. São de estilo barroco as paixões, fantasias e tocatas, mas clássicas as suites, enquanto os concertos, as cantatas, as fugas se caracterizam pela associação dos dois gêneros. A grandeza essencial de Bach reside no facto de que ele surge como um .músico de síntese; síntese dos estilos da sua época, síntese do passado e do presente, síntese de todos esses elementos que ele ultrapassa numa arte inteiramente pessoal. É impossível citar as suas “grandes obras” sem evocar toda a sua produção, pois tudo nela é grande. Os. dois livros do Teclado Bem Temperado (Wohltem periertes Klavier), e não “cravo” como por vezes se diz, foram escritos com uma modesta finalidade didática, para marcar o advento do temperamento igual e provar que, num teclado bem temperado, a sucessão das notas da escala( tons e meios tons) se reencontra exatamente igual quando se transpõe nas diferentes tonalidades. Já explicamos, no princípio deste livro, a teoria do “temperamento igual”, que, de certo modo, impõe um teclado standard e uma altura de sons igualmente standard, servindo de base a todos os instrumentos. Assim, esta obra de Bach, que se apresentava em princípio como um simples exercício, transpunha audaciosamente audaciosamente o limiar inexplorado de um novo domínio. Os seis Concertos Brandeburgueses (escritos para o margrave de Brande burgo) e as quatro Suites, são expressões perfeitas de música pura. O Magnificai, a Oratória do Natal e a da Páscoa, a Missa em Si, as duas Paixões, são
monumentos cujas vastas proporções revelam uma inspiração inigualável. A contemplação mística exprime-se nas coletâneas de corais para órgão. Em suma, não existe uma única obra onde Bach não tivesse sabido, com pena infalível, deixar o cunho da grandeza e da beleza. O lugar de Bach na música é tão considerável que existe o hábito, auxiliado pelo recuo do tempo, de situar a sua morte no fim do grande estilo barroco. E, efetivamente, os anos que se seguiram a 1750 indicam já uma transformação do gosto. Os filhos de Bach e os músicos da sua geração abordarão o estilo galante; a austera grandeza do “velho Bach” já não convém a ninguém 3. Esta primeira metade do século XVIII é de uma maravilhosa fertilidade; terse-á notado que todos os músicos que acabamos de citar viveram entre o fim do século XVII e cerca de 1750. Existem outros, como por exemplo Pergolesi (1710-1736), que no decurso da sua breve existência saberá afirmar a sua excepcional originalidade, desde o Stabat Mater, profundamente comovedor, à Serva Padrona, cintilante de ironia. Domenico Scarlatti (1685-1757), filho de Alessandro, permaneceu longos anos em Espanha e Portugal. Com as suas Sonatas para cravo, breves e monotemáticas, escritas num espírito de pura virtuosidade, ele dá a este instrumento numerosas peças (mais de quinhentas) onde se manifesta uma inesgotável fantasia, uma inspiração, ora poética, ora espiritual, uma escrita tão interessante como elegante e audaciosa; em suma, sob o rótulo de esercisi, como ele dizia, trata-se de um verdadeiro monumento musical e didático. Se a influência dos cravistas franceses é evidente na obra de Scarlatti (e sabe-se que esta se estendeu a toda a Europa), ele soube, contudo, e para além da sua vivacidade italiana, dar provas de qualidades criadoras que o situam ao nível dos seus brilhantes antecessores. Sem esquecer as suas obras religiosas, nem as suas óperas, reconheçamos que Scarlatti é, antes de mais, o compositor de sonatas para cravo.
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A família de Bach forma uma verdadeira dinastia dinastia de músicos. O primeiro Bach conhecido, Hans, nasceu em 1561; os últimos descendentes que se conhecem viveram até 1871. João Sebastião figura no meio de uma numerosa linhagem de primos, parentes diversos, sobrinhos, que são organistas, chantres, compositores. Entre os seus filhos, Jean-Christophe, CarlPhilippe-Emmanuel e Wilhelm-Friedmann são os mais dotados.
Georg-Philipp Telemann (1681-1767) obteve em vida uma glória que facilmente eclipsou a notoriedade de Bach. Compositor amável, sedutor, bastante superficial, teve uma carreira brilhante; o seu estilo musical, prejudicado pela afetação, orienta-se nitidamente para o rococó. Muito eclético, era capaz de escrever tão bem à italiana como à francesa, manejava o contraponto com destreza e dava provas de uma estonteante facilidade e de uma ciência excepcional. Amigo de Bach e de Haendel, foi padrinho de Philippe-Emmanuel, filho daquele. Nos nossos dias, a despeito de se reconhecer que a sua envergadura não era das maiores, aprecia-se neste amável músico o encanto da eloquência e a elegância da forma. Não citaremos aqui todos os virtuoses italianos do violino que foram com positores apreciados, nem todos os compositores que foram apreciados virtuoses: existiram centenas. Presentemente, a moda impõe uma admiração por Vivaldi e pela música italiana do século XVIII, e os programas dos concertos ostentam frequentemente nomes até agora quase desconhecidos; trata-se de compositores menores, certamente músicos honestos, que beneficiam do prestígio do rótulo “século XVIII italiano”. Na realidade eles manifestaram a. virtude, desde então desaparecida, de praticar a sua arte como artífices impecáveis, de forma que, se o céu não lhes dispensou o gênio criador, exprimem-se contudo numa linguagem intensa, requintadamente artística e de boa sociedade, pelo que, evidentemente, evidentemente, não poderão poderão ser censurados. censurados. Também não citaremos os inúmeros compositores de óperas, de óperas bailados, ou de operas buffas que, tanto em França como na Itália, forneceram aos seus contemporâneos contemporâneos noites magníficas e pretextos para discussões. A produção geral de um país é interessante pelo nível médio que revela e pela fecundidade que afirma — fecundidade fecundidade que banha os espíritos num “clima” artístico, representativo da época e em que todos colaboram. Mas a nossa intenção é apenas a de evocar os maiores desses compositores. Em França, por exemplo, houve uma quantidade infinita de músicos que escreveram para o teatro nos séculos XVII e XVIII. Infelizmente os famosos “temas mitológicos” formava o seu fundo principal, e esta particularidade, aliada ao menor valor da sua música, faria desaparecer as suas obras com a época que vira o seu sucesso.
Do mesmo modo os autores de peças para cravo e sonatas para violino, oboé, ou flauta com baixo contínuo serão inumeráveis, assim como os compositores de obras religiosas: missas, motetos, peças para órgão. Ter-se-á reparado que todos os grandes músicos, qualquer que fosse o gênero particular em que se distinguiram, escreveram música de igreja. Porquê? Porque, na maioria dos casos, ocupavam funções de mestres de capela no seio de uma corte real ou principesca e essas funções postulavam a composição de obras destinadas ao culto, o que não os impedia de se dedicarem, tanto à ópera, como à música instrumental. Esta primeira metade do século XVIII vê, portanto, estabelecer-se insensivelmente uma ordem estética, que, poder-se-ia dizer, codifica o barroco. Um tal impulso não podia perpetuar-se sem recorrer a princípios que o amparem, depois de passada a grande labareda inicial. O mesmo caso repetirse-á mais tarde com o romantismo. Ao examinar a produção produção musical dos anos anos 1700 a 1750, reconhecem-se sem dificuldade as características do barroco; imas também se vê surgir com idêntica nitidez o estilo clássico, pelo abandono da ênfase, do poder, da fantasia livre, que são substituídos pela medida, a elegância, a ironia, o requinte e a sujeição à forma". Através da orquestra, e até na música de solistas, impõe-se o estilo de Mannheim: fixa-se a estrutura material da orquestra, tal como o tipo da sonata para orquestra, a que se dá o nome de “sinfonia” e que se perpetuará até aos nossos dias. Em 1734, Jean-Baptiste Sammartini (1698-1775) escreve a primeira verdadeira sinfonia, em quatro andamentos, que, pela sua construção e desenvolvimento, vai mais longe do que as sinfonias de Mannheim. Sammartini contri bui assim para essa estabilização da linguagem musical, onde a ordem estética manda e a inspiração obedece. É contudo necessário fazer uma verificação: o grande estilo musical que reina nesse momento vem da Itália; os artistas italianos — cantores, virtuoses, compositores — invadem a Europa e alcançam triunfos; todos os países estão subjugados pelos seus encantos. Como se calcula, o bom e o mau gosto caminham de mãos dadas. Mas o lado resolutamente positivo de toda esta atividade é o fato de que o grande estilo instrumental (sonatas, concertos, sinfonias), o grande estilo vocal da ópera e o grande estilo religioso (missas, motetos, cantatas, oratórias) florescem com luxuriante vitalidade.
Para completar este quadro da primeira metade do século, não esqueçamos, ao recordar o seu classicismo, de evocar a sua disparidade, ou sejam as suas tendências contraditórias, as suas forças que ainda se afrontam, enquanto ele avança progressivamente para a unificação. Os esercisi, de Scarlatti, as sinfonias de Stamitz, as oratórias de Haendel, as óperas 1 de Rameau, as missas monumentais e as pequenas peças pinturescas para cravo; Pergolesi e a sua Serva Padrona, sim, mas também o seu Stabat Mater; Couperin e as suas Leçons de Ténèbres, sim, mas também os seus Amours Badins; a escolástica alemã, a ordem francesa, a exuberância italiana, a pompa britânica... Ali, onde hoje julgamos ver uma paisagem harmoniosa e aprazível, reinava a própria desordem da vida; essa época é compósita e sobrecarregada. Tem tendência a organizarse, muito simplesmente, e é na segunda metade do século que a ordem se afirmará. De 1750 a 1789 1789
A evolução, que se manifestava tanto nos gostos como nas idéias e nos costumes -e, por consequência, consequência, no estilo estilo musical - afirma-se depois depois de 1750. É a época do rococó e do estilo galante, a época da música amável e da vida descuidada. Esse mundo, que vive os seus derradeiros momentos na euforia, submeteu-se à lei do “bonito”, da qual se notam inúmeras manifestações: igrejas e monumentos, trajos, rendas e fitas, móveis, adornos, literatura e conversas, tudo concorre para enobrecer a futilidade e cultivá-la como se fosse uma virtude. Paradoxalmente, é, contudo, neste quadro que se inscreverão os homens graças a quem a arte musical alcançará o mais elevado nível do classicismo: Haydn e Mozart, em primeiro plano, Gluck logo a seguir e, em volta destes, alguns músicos trabalham no mesmo sentido. Sob uma aparência amável e sorridente, a música de um Haydn ou de um Mozart encerra uma força de que os seus contemporâneos não suspeitam e que o nosso século apenas descobrirá no fim do romantismo: a purificação das paixões humanas, a transcendência dos sentimentos, a luz espiritual que faz planar esta música, eternamente jovem e fresca, por cima das modas e das gerações, pois ela alcança o essencial. No seio da sociedade européia, o músico era um criado. Ao serviço de um rei, de um príncipe ou de um bispo, ele usava a libré do amo e tomava as suas
refeições na copa, compunha o que o amo desejava, casava-se ou viajava conforme a disposição desse mesmo amo. Um bom ou mau amo podia introduzir distinções nesta condição, mas a dependência determinava a sua vida inteira. Nenhuma possibilidade de liberdade, exceto na miséria; não havia para o músico qualquer outra alternativa para além das funções de mestre de capela nalguma corte. Parece que os músicos consideraram como muito natural aquilo a que hoje chamaríamos servidão, uma vez que não podiam imaginar outro destino. Mas o constrangimento imposto pela sua condição, e, para além desta, por uma sociedade inteira, determinou o estilo musical do fim do século. São conhecidas, pelo menos de nome, as “músicas de mesa”, equivalência dos nossos rádios no século XVIII, isto é um fundo sonoro que se ouve distraidamente, que “mobila” o desenrolar de certos atos quotidianos. A condição do músico, dessa forma sujeito à vontade-—e frequentemente aos caprichos — de um príncipe mais ou menos consciente do valor do seu compositor e do interesse da sua música, pode parecer-nos humilhante e, por vezes, mesmo cruel. Para sermos justos, é contudo necessário acrescentar que, alguns príncipes mantinham uma capela musical completa, orquestra e coro, empenhando-se em encorajar o seu mestre de capela e em favorecer a sua notoriedade. Uma coisa compensa a outra. Seja como for, eis a conclusão: a grande ordem clássica, o domínio da forma, o reinado da medida, do equilíbrio e da linguagem intensa. Mas não é tudo: a grande característica da música do século XVIII, Legada pelos séculos precedentes precedentes e que se foi incessantemente precisando porque porque era a consequência do esforço unânime dos compositores e dos teóricos, reside no fato de constituir uma linguagem universal, cujas convenções (feições melódicas e harmônicas, ritmos, períodos, expressão dos sentimentos, etc.) são com preendidas por todos. Como a língua falada, a música música estabelece a sua gramática, a sua sintaxe, o sentido das suas palavras e das suas frases; e todos a perce bem, mesmo que seja apenas superficialmente. Abordamos aqui o problema da inteligibilidade de uma linguagem, para além da sua apreciação: o escritor mais audacioso escreve hoje uma língua relativamente acessível ao leitor, enquanto o compositor moderno se exprime, na maioria dos casos, numa língua aparentemente ininteligível, porque essencialmente pessoal. O problema - e o drama da música atual reside neste fato, neste enigma, nesta incoerência aparente,
cuja coerência só pode ser descoberta com a condição de se aprender a decifrar a língua pessoal do autor. Regressemos ao nosso propósito, que havíamos deixado para tentar fazer sentir a diferença fundamental que separa a clareza, o classicismo, o convencionalismo o século XVIII, daquilo que vai suceder-lhe. Pois esse instante de equilíbrio da música não durará muito tempo. Joseph Haydn (1732-1809) oferece um exemplo tipo do que acabamos de esboçar. Aquele a quem chamaram o “pai da sinfonia”, porque dela nos deu os exemplos mais perfeitos, escreveu com tanta habilidade como sinceridade a música exata que esperavam dele. De caráter feliz e simples, esteve ao serviço dos poderosos príncipes Esterhazy, ilustres em todo o mundo, tanto pela sua fortuna, como pelo seu prestígio intelectual. Haydn devia passar junto desses amos compreensivos e generosos os anos mais belos e mais fecundos da sua vida, a servidão transformando-se, neste caso, em segurança material. E, contudo, a sua disposição irônica, aliada ao seu gênio criador, impediram-no sem pre de se instalar numa amável mediocridade; primeiro, influenciado pelo estilo de Mannheim, em breve despreza a música antiga e transforma-se no que chamaríamos hoje um músico de vanguarda. Haydn aperfeiçoa as suas suas sinfonias ao ponto de as as transformar em verdadeiras arquiteturas; emprega desenvolvimentos desenvolvimentos de temas, efeitos de cambiantes, processos originais de instrumentação: combinações de grupos, oposições dramáticas, solos de instrumentos apoiados pela orquestra, em suma, uma alquimia que frequentemente prefigura a sinfonia romântica. Além disso, introduz na sinfonia esse elemento de que, após ele, Mozart se servirá para enriquecer toda a sua produção: o desenvolvimento da idéia musical. Acabaram doravante os desenhos graciosos, os arabescos de virtuosidade, os motivos simplesmente decorativos. A música sinfônica de Haydn manifesta a ambição de expor, e em seguida desenvolver, uma ou várias idéias, cujo tecido sinfônico é, de certo modo, a vestidura. Por este processo Haydn introduz na música, em parte sem o saber, esse elemento psicológico que se vai transformar “na sua própria essência. A centena de sinfonias que escreveu são quase todas, sobretudo as da idade madura, obras-primas de engenho, de equilíbrio sonoro entre os diferentes grupos orquestrais, de inspiração fluente e sedutora, amiúde sorridente, numa linguagem pura e cristalina.
Assim, sob a amabilidade deliberada, esconde-se uma vigorosa e impulsiva natureza criadora, inteira e totalmente virada para os mais altos valores da arte. Haydn marcou a sinfonia clássica com o seu cunho definitivo; Mozart e Beethoven inspirar-se-ão depois nas suas lições. Christoph-Willibald Gluck (1714-1787), nascido nos arredores de Bayreuth, foi um reformador. A sua música obedece ao classicismo do século, mas o seu vigor, a sua nobreza aliada à simplicidade, desenham com grande exactidão o retrato da sua personalidade sólida, de carácter autoritário, de determinações nítidas, por vezes brutais, tal como diz a crónica. A sua carreira foi intensamente internacional; ao segui-la, julgamos ver um dos nossos artistas actuais, dando a volta ao mundo de avião três vezes por ano e semeando recitais. Está presente nas estreias das suas óperas em Milão, Cremona, Veneza, Londres, Dresda, Viena, Hamburgo, Praga, Nápoles, Roma e Paris, numa época em que as viagens são ainda morosas e difíceis.. E essa mesma ambição que o lança pelas estradas, leva-o também a aproveitar cada estada para fazer abrir na sua frente as portas dos grandes salões e dos palácios principescos, donde pode surgir a glória. Este “rústico de génio”, como frequentemente lhe chamaram, é de origem checa e de educação alemã. Em contrapartida, a sua formação musical é italiana, e se escreveu mais de cem óperas (mas quase nenhuma obra de música instrumental) apoiou-se sempre em assuntos históricos ou mitológicos, gozando de popularidade. Os títulos são Artaxerxes, Demétrio, Demofonte, Demofonte, Sofonisba, significativos; eis, ao acaso: Artaxerxes, Hyper-mestre, Hyper-mestre, Hipólito, As Bodas de Hércules, Antígona, Antígona, Issifilo, A Clemência Clemência de Tito, Telémaco, Paris e Helena, Eco e Narciso.
Por volta dos cinquenta anos e após ter sido chefe de orquestra, organista e diretor teatral, o cavaleiro Gluck, que estudara demoradamente o problema da ópera italiana e meditara meditara sobre a “Querelle dês Bouffons”, toma subitamente uma posição. Solicita do poeta Casalbigi um libreto sobre o tema de Alceste e Admeto (o mesmo poeta já escrevera o libreto de Orfeu); e na dedicatória deste novo trabalho, que ele oferece ao grão-duque de Toscana, Gluck explicase: apenas a simplicidade é válida — escreve ele —, tanto na escolha de um assunto, como na sua expressão dramática e na sua tradução musical, pois a missão da música é secundar a poesia para lhe fortificar a expressão. Por meio deste “regresso à simplicidade”, que é a sua grande idéia, Gluck pretende lutar
contra os dois males que asfixiam a ópera: a sumptuosidade abusiva do espetáculo e os excessos de virtuosidade vocal à italiana (tão ameaçadores como os excessos dos grandes instrumentistas, divindades tirânicas do mundo musical). A reação de Gluck era salutar, pois propunha ao público obras despojadas de artifícios e de excessos ornamentais, cuja pureza e dignidade se opunham, com sugestiva eloquência, à miscelânea de mau gosto que atravancava o repertório lírico. Esta iniciativa de Gluck não foi, porém, inteiramente coroada de êxito: a sua declamação majestosa e solene, o seu recurso sistemático a um helenismo já fora de moda, e até a própria destituição de ornamentos, não deixavam de provocar certo enfado. A arte, neste compositor, é por vezes afetada e o convencionalismo triunfa com demasiada frequência. Seria perfeitamente inconveniente discutir as belezas que iluminam certas páginas de Orfeu, de Armide, de Ifigénia em Táurida e Ifigénia em Aulida, mas estas obras não deixam de revelar algumas fraquezas comuns às composições líricas da época. Notar-se-á com certa surpresa, que Gluck emitiu sobre a música um juízo extremamente audacioso: “A música é uma arte limitada”, disse ele, “e sobretudo na parte que se chama melodia. Na combinação de notas que compõem um canto procurar-se-á em vão um caráter próprio de certas paixões: tal não existe.” Esta é, a duzentos anos de distância, a opinião de Strawinsky, afirmando que a música é, por essência, incapaz de exprimir seja o que for. Esta filosofia da música não pode ser aqui analisada - pois arrastar-nos-ia longe demais - mas é bastante curioso verificar que Gluck nega à música qualquer poder expressivo, negando, portanto, também a sua missão ritual. Por outro lado, esta afirmação explica que Gluck faça da música uma serva das palavras, cuja expressão fortifica. É assim que a famosa ária de Orfeu, J'ai perdtt mon Eurydice, é uma desolação cantada no modo maior, quando o menor é normalmente utilizado para as melodias tristes; e certo crítico pôde dizer que outras palavras se lhe adaptavam igualmente bem. Noutros termos, na opinião de Gluck a música não possui vida nem carácter próprios; ela apenas adquire sentido em função do texto. É evidente que este desdém dos “ornamentos supérfluos que interrompem a acção” alvejava de forma tão nítida a ópera italiana que os adversários de
Gluck suscitaram, tal como no caso de Rameau, uma nova querela: mandaram vir de Itália um rival, Piccini, a quem foi confiada a missão de destronar o “gosto francês”. A despeito do sucesso momentâneo de Piccini, Gluck saiu engrandecido da batalha entre gluckistas e piccinistas. É incontestável que a dignidade do seu estilo exerceu uma influência altamente benéfica na sua época. Orfeu (1762) e Alceste (1767) são as duas obras onde mais nitidamente se marca o alcance da sua reforma. Um destino cruelmente irónico estava reservado a Mozart (1756-1791), um dos génios mais singulares de toda a história da música: após uma infância radiosa, em que foi animado pelos grandes deste mundo, cumulado de admiração e de glória, conheceu na idade adulta as infelicidades de um casamento inadequado com uma mulher frívola e sem inteligência e, em seguida, o desgosto de afrontar a indiferença dos seus contemporâneos, a quem já não interessava depois de passada a idade do menino prodígio. A labuta febril, os excessos de trabalho que se impôs para conseguir ganhar algum dinheiro, os cuidados da luta pela existência minaram a sua saúde já delicada, falecendo aos trinta e cinco anos. Improvisador extraordinário, virtuose do cravo aos oito anos, deu a volta à Europa acompanhado pelo seu pai, Leopoldo, músico também, ao serviço do príncipe-arcebispo do Salzburgo. O processo de Leopoldo Mozart perante a história ainda não terminou: terá ele abusado do talento e das forças do seu filho, ao passeá-lo como se fosse um macaco sábio através de uma dezena de países? Terá ele sido, pelo contrário, um mestre sensato que lucidamente permitiu o desenvolvimento das faculdades desse filho excepcional? Não podemos duvidar que o desejo de lucro e a vaidade desempenharam um papel na sua atitude. A educação musical de Wolfang-Amadeus faz-se ao acaso das viagens; em cada país trabalha com um professor diferente. É sem dúvida este fato que lhe dará mais tarde essa facilidade de pena e essa faculdade de poder escrever “em qualquer estilo”, como ele próprio orgulhosamente declara. As suas obras revelam, de resto, os estilos italiano, alemão e francês e, com a extraordinária es pontaneidade que sempre manifesta, Mozart nunca se preocupará com teorias estéticas: escreve no estilo que melhor convém à obra que aborda e à idéia que pretende exprimir.
A sua produção é considerável: mais de seiscentos números, incluindo óperas, música religiosa, instrumental, sinfônica. Esta produção, onde não se encontra um vestígio de mediocridade, está marcada por um sinal: a graça. Tudo quanto Mozart faz resulta perfeito; possui por instinto o segredo da beleza, da elegância, da leveza, da pureza. Ele “fala justo”. Ele nunca força. O seu encantador sorriso, a sua melancolia pudica, a sua finura, conferem à música o cunho da perfeição suprema. Mas não é tudo: Mozart manifesta também um conhecimento que, poder-seia dizer, completa estas qualidades ou virtudes natas: a sua técnica de compositor é precisa, erudita; a sua pena corre sem hesitações. As idéias surgem, sempre claras, e organizam-se harmoniosamente. Quando escreve um concerto para piano, violino, clarinete, fagote ou trompa, fá-lo com exato conhecimento das possibilidades técnicas do instrumento; e é dentro desses limites bem definidos que ele deixa correr a sua inspiração poética, irônica ou dramática. A grande virtuosidade instrumental é nele resplandecente, mas inteiramente subordinada às leis da forma. É este fato que faz de Mozart - com Haydn - o melhor representante do classicismo. Todas as suas obras instrumentais são baseadas num princípio de geometria sonora que contém idealmente a expressão— uma expressão aérea, situada entre o Céu e a Terra. Nas suas óperas, construídas sobre o modelo italiano (recitativo secco e árias), o convencionalismo do gênero desaparece para dar lugar à espantosa realidade humana. Além destas (Cosi fan Tutte, As Bodas de Fígaro, D. João), escreve óperas sobre libretos alemães (O Rapto do Serralho, A Flauta Mágica). Reencontrando e fixando a forma já utilizada do singspiel, com binação da ópera cômica francesa e da opera Mozart em 1783 buffa italiana, Mozatt não hesita em associar os gêneros no seio da mesma obra (assim as cenas burlescas de Leporello integradas no violento dramatismo de D. João). Mozart levou a ópera italiana à perfeição, como levou à perfeição todas as formas existentes, mas nunca
se esforçou no sentido de as codificar. Pelo contrário, insuflou-lhes uma vitalidade ardente e muitas vezes audaciosa. Sabe-se que Haydn (que Mozart venerava) disse a Leopoldo: “Declaro-vos perante Deus que o vosso filho é o maior músico que conheço.” Não só Mozart foi esse grande músico, como ainda manifestou qualidades completamente incompreendidas, devido às quais teve de arrostar com a má vontade dos seus contemporâneos - as suas qualidades de homem. Ao contrário dos músicos-criados, que aceitavam a sua sorte com bonomia ou resignação, Mozart foi um revoltado, pronto a escoicear nos varais, ironizando ou resmungando a propósito da sua condição ao serviço do arcebispo de Salzeburgo. Após ter sido vergonhosamente expulso dessa casa, onde o seu lugar às refeições era ao lado dos moços de cavalariça, sendo a “parte alta” da mesa reservada para os criados de primeira classe, Emmanuel Schikaneder, o criador do retomou definitivamente a sua papel de Papagueno na Flauta Mágica liberdade e descobriu a miséria. Consciente da sua dignidade e da injustiça do destino, frequentou em Paris os meios que preparavam o terreno onde ia germinar a Revolução. As suas Bodas de Fígaro eram, para a época, subversivas e impertinentes. Na obra de Beaumarchais, primeiro censurada e em seguida dando lugar a inúmeras controvérsias, a sátira social desenvolvia-se em cheio. Trocava dos aristocratas, cujo
papel era pouco brilhante, e admirava-se Fígaro, o plebeu, cuja astúcia valia bem o privilégio do nascimento. As idéias de Mozart não eram apenas pura especulação; fez-se inscrever na maçonaria, que representava para ele uma forma de igualdade humana de que se sentia ávido. Ali, homens da mesma condição dos seus antigos amos poderiam chamar-lhe “irmão”. Foi para eles que escreveu A Flauta Mágica, cujo tema evoca os ritos de iniciação maçônicos. Simultaneamente Mozart afirmavase um cristão sincero; com a sua Música Fúnebre Maçônica e o seu Requiem ou o seu perturbante Ave Verum, ele dava livre curso ao seu fervor e ao seu ideal - um ideal onde o amor de Deus não podia excluir a fraternidade humana. Tanto na sua obra como na sua vida, Mozart revela-se um espírito avançado; transborda do quadro convencional e do preciosismo do seu tempo; encara com olhar lúcido os seus contemporâneos. Reivindicando a liberdade do artista, ele exprime essa liberdade na sua música; a despeito dos contornos banais postulados pela linguagem da época, e de que frequentemente fez uso porque estes lhe eram tão naturais como as imagens familiares da língua falada, a sua obra fervilha de audácias e de surpresas. E se Mozart criança pode ser inteiramente contido nos limites do “estilo galante”, sabemos que Mozart adulto já nada tem de comum com ele: sob o sorriso convencional a sua música torna-se grave; com as suas personagens de ópera atinge as fronteiras do idealismo psicológico. Tinge-se de cores sombrias e trágicas. Nas três últimas sinfonias, no D. João, nos últimos concertos para piano e no Requiem existe uma ordem clássica soberba e infalível, mas também uma grandeza, uma eloquência sacra, uma nobreza perturbante. Nesse momento, Mozart tornou-se no verdadeiro Mozart, isto é o músico cuja obra coroa o século e indica o caminho ao futuro. Assim termina o século XVIII, numa apoteose. Mozart domina a época, mas à sua volta diversos músicos acrescentam a sua pedra ao edifício. Não se deve por exemplo esquecer o napolitano Domenico Cimarosa (17491801), cujo estilo se aproxima do de Mozart. Particularmente hábil na opera buffa, Cimarosa deixou Il Matrimonio Segreto “(Casamento Secreto”), que é uma das mais encantadoras obras-primas do momento. A sua carreira foi brilhante: permaneceu três anos na corte de Catarina II da Rússia, viveu em Viena e em Nápoles e gozou de grande celebridade.
Luigi Boccherini (1743-1805) é hoje apenas recordado por um minuete amável e um brilhante concerto de violoncelo. Caprichos e injustiças da glória: Boccherini, músico cheio de espírito, de fantasia e de originalidade, foi um dos melhores representantes do estilo rococó no fim do século e a sua obra merecia ser também “novamente descoberta”. Na sua música ouvem-se por vezes acentos mais sentimentais do que na dos seus contemporâneos, como se preludiasse à grande explosão romântica. Conheceu uma glória internacional, foi compositor do rei da Prússia, Frederico-Guilherme II, e do infante de Espanha em Madrid, onde regressou e morreu, já esquecido. Citemos ainda o italiano Viotti (1753-1824), que formou numerosos violinistas em França e aperfeiçoou o concerto; Muzio Clementi (1752-1832), que todos os jovens alunos pianistas conhecem e que, pelos seus estudos e sonatas (um tanto descuidadas), enriqueceu a literatura do piano; o espanhol padre António Soler (1729-1783), músico eminente que domina a sua época; Philippe-Emmanuel Bach (1714-1788), interessante autor de sonatas para cravo; e André-Modeste Grétry (1741-1813), oriundo de Liège mas residindo em França, compositor agradável, sensível e elegante, excelente na ópera cómica, na qual introduz, sob uma bela forma clássica, inflexões sentimentais bastante sugestivas. Este último ocupa um lugar importante no século, do qual exprime fielmente a sensibilidade. Célebre em toda a Europa, cumulado de honrarias, a sua reputação sobreviverá à Revolução de 1789. Após ter escrito típicas pastorais, tais como Céphale et Procris ou Zémir et Azor, de que possuímos algumas páginas encantadoras, Grétry comporá obras como a Roseira Republicana, onde surge, de forma flagrante, a ruptura entre o antigo e o no João Domingos Bontempo, vo. Em Portugal, citemos Carlos de Seixas grande pianista e compositor (1704-1742), cravista, organista e compo- português
sitor, que nas suas tocatas, minuetes, fugas, concertos e sinfonias acusa a influência de Scarlatti, e Marcos da Fonseca Portugal (1762--1830), que escreveu uma vasta obra lírica, também dominada pelo estilo italiano, dedicando-se à música religiosa nos últimos anos da sua vida; mas deve destacar-se a figura de João Domingos Bontempo (1755--1842), homem integrado nas ideias liberais e introdutor em Portugal dos princípios da escola de Viena. Grande pianista e compositor, distinguiu-se como virtuose do seu instrumento em Paris e Londres. Fundador da Sociedade Filarmônica de Lisboa, destinada a revelar a nova música, continuou, 'mais tarde, a sua obra pedagógica como professor do então recém-criado Conservatório de Música. Nas suas obras incluem-se sinfonias, concertos, sonatas, variações para piano, música de câmara e coral-sinfónica (Missa de Requiem, dedicada à memória de Camões). Todos estes músicos resumem o século e rematam a evolução que se havia iniciado cento e oitenta anos antes, com o advento do barroco. Se alguns caem já no preciosismo, outros dão à arte clássica os seus mais belos frutos. Essa transparência, essa beleza harmoniosa, essa luz espiritual, não voltará a ser reencontrada, pois 1789 está agora muito próximo. O espaço
de uma revolução
Os anos que rodeiam 1789 vêem a Revolução Francesa preparar-se, eclodir e em seguida organizar-se, para finalmente transmitir ao mundo inteiro a recordação do seu ideal igualitário, quando ela própria já tinha deixado de existir. A história escolheu o honesto Luís XVI e Maria Antonieta para enfrentarem a cólera de um povo. A promoção social da classe burguesa, que se tornara poderosa, a louca inconsciência dos aristocratas, o desenvolvimento do espírito crítico dos filósofos e dos intelectuais, a organização da franco-maçonaria recrutada por Montesquieu, Voltaire, Franklin, alguns príncipes e eclesiásticos, caminham a par da situação cada vez mais miserável do povo. A Revolução será, decerto, um choque social muito importante, mas também o resultado de uma evolução filosófica. Desmorona-se todo o edifício cultural, para dar lugar a um mundo onde os valores antigos já não circulam. Esse mundo enverederá por um caminho diametralmente oposto ao Ancien Regime e instaurará uma filoso-
fia, uma economia, uma política, uma vida social e princípios estéticos que nada devem ao passado e são a sua própria criação. Aplicados à música, os princípios da Revolução traduzem-se da seguinte forma: a arte de salão, destinada a uma elite e feita de eloquência cortês, é banida em proveito de uma música que deverá exaltar o sentimento revolucionário, falar ao povo numa língua simples e emocionante, celebrar os acontecimentos nacionais, glorificar a liberdade conquistada, etc.
1789: o povo de Paris dança em torno da estátua de Henrique IV
À música civilizada de uma sociedade civilizada sucede a música livre de uma sociedade que quer ser livre. É a explosão e o fluir sem freio dos sentimentos, é também o aparecimento de uma arte social, cuja qualidade é muito menos fina do que a precedente, que já não se preocupa com a perfeição formal nem com as maneiras corteses, mas que encara tarefas diferentes: entre outras, a de nutrir o povo de lirismo substancial, de ambições grandiosas e espectaculares. Mas, inevitavelmente, são a grandiloquência, a ênfase e o mais rudimentar sentimentalismo os primeiros a manifestarem-se: este mundo acaba de nascer, com furor e orgulho rejeitou séculos de civilização e ainda não sabe falar a sua própria língua; ou melhor, ainda nem sequer sabe que língua falará. Na realidade, são os músicos alemães do século romântico que traduzirão e exaltarão o estado de espírito gerado pela
Revolução. Na embriaguez da recente vitória, os músicos franceses tentam a ilustração de temas patrióticos: a morte dos tiranos, a festa das mães, a apoteose do trabalho, a carmanhola, o hino ao Ser Supremo. Compositores como Gossec, Méhul, Grétry, Cherubini, Lesuer, escrevem óperas, hinos e cantatas cujos títulos parecem hoje saborosos: Os Verdadeiros Republicanos, O Acordar do Povo, Hino à Fraternidade, Canto do 25 Thermidor, Canto dos Triunfos da República, Canto das Vinganças, etc.
Algumas obras eram tocadas nas praças públicas por centenas de executantes (por vezes perto de um milhar), compreendendo imponentes conjuntos corais; o fragor das trombetas e trombones, o martelar dos tambores, faziam delirar o auditório. Este lirismo coletivo, expressão rudimentar mascarada de exaltação “sublime”, era inevitável a partir do momento em que o compositor se obrigava a exprimir a ideologia do tempo. Mas esta crise de crescimento apenas duraria alguns anos—o espaço de uma revolução. Em breve foi esquecido esse repertório, assim como os músicos que o haviam criado. Alguns destes tinham-se tornado poetas da Revolução com comovente sinceridade (que nem sempre, infelizmente, fazia honra à sua exigência artística); outros souberam associar alguma habilidade ou prudência. Após esta labareda, a música do século anterior terá definitivamente desaparecido. A arte já não será doravante o divertimento tranquilizador reservado a uma fração da sociedade: passional, tumultuosa, tornar-se-á numa das forças profundas que animam o homem, será a linguagem da sua vida psicológica.
VIII - O ROMANTISMO
Uma das consequências da Revolução será a completa transformação do estatuto social do músico. A era dos mecenas e dos príncipes que mantinham uma capela ou uma orquestra terminou; terminou também o tempo do músicocriado-de-libré, que recebia como salário alojamento e refeições. Eis o advento do músico livre, cidadão entre os outros. Esse músico que já não tem amo, oriundo de uma ordem social onde o seu lugar estava fixado, entra agora num mundo onde lhe será preciso lutar para sobreviver; pois ele está perdido no meio da multidão e a multidão não se preocupa com ele. E aqui começa uma história, por vezes dramática, que ainda hoje não terminou: a da solidão do artista na sociedade, uma sociedade à qual ele tem de se impor. As inúmeras vantagens e a incontestável segurança de que actualmente desfruta não solucionam o problema fundamental desta solidão, que atinge sobretudo os criadores mais originais ou mais orgulhosos. As atribulações, por vezes cruciantes, de alguns dos grandes músicos do século passado são apenas variações sobre este tema único: a solidão. Este facto deu até origem a que se formasse uma falsa imagem do artista romântico, espalhando a convicção de que o sofrimento e a miséria fazem parte das provações pelas quais todo o verdadeiro criador deve necessariamente passar. Simultaneamente, o sucesso consagrado pela prosperidade material tornou-se suspeito; não se andou longe de pensar que um artista que consegue alcançar uma posição é um “burguês”, um “comerciante”, um “arrivista”. O romantismo legou-nos muitos preconceitos gerados por essa exaltação da situação antisocial do artista. Na nossa época, a fortuna de um Picasso ou de um Strawinsky, sem falar nos grandes virtuoses, prova que afinal um criador não fica necessariamente diminuído pelo facto de alcançar o êxito e as consequentes vantagens materiais. No que se refere ao plano social, o artista do século XIX vai, portanto, fazer a dura aprendizagem da liberdade. No plano estético produz-se a seguinte “viragem” fundamental: uma vez que a Revolução libertou o indivíduo, a arte vai assumir o rosto do indivíduo; o ideal de uma beleza abstrata e quase anônima vai dar lugar a um ideal que exaltará o homem individual, surgido da coletividade secular. Assim se explica que a música se dramatize, se torne sentimental,
patética; o romantismo de Goethe impregna os corações e o romantismo dos filósofos franceses responde-lhe como um eco. O movimento do Sturm una Drang (tempestade e assalto), que na Alemanha resume as idéias novas, prova que o homem oriundo da Revolução está—como hoje diríamos — consideràvelmente “sensibilizado” pelo seu novo estado e pelos acontecimentos da sua época. É nesta atmosfera que se desenvolve a nova música; centrada no homem e no seu mistério, nos segredos do seu coração, que a ordem do século XVIII tinha prudentemente enterrado. A criação musical é um impulso, uma confidência, traduz as emoções no estado bruto; para atingir esta finalidade ela já não pode utilizar as formas da linguagem antiga. Liberta-se, portanto, completamente, desta e cria formas “livres”, que favorecem a improvisação e de que até só os nomes são significativos: em vez de títulos tais como concerto, sinfonia, sonata ou então allegro, adagio, etc., o que vimos agora? Fantasia, nocturno, balada, rapsódia, prelúdio, poema sinfônico, ou então molto appassionato, misterioso, con tenerezza (com ternura), etc. As indicações de forma cederam o lugar às indicações de sentimentos. Também se modificou um critério de valores: uma obra apreciar-se-á sobretudo pela sua intensidade de expressão e força persuasiva, de preferência às suas qualidades de estilo; aos valores objetivos sucederão os valores subjetivos. A música transpõe o limiar da psicologia, da filosofia, da metafísica; aborda as grandes perguntas formuladas pelo homem a respeito da vida, do amor, da morte, do além, assim como das suas mais íntimas preocupações. Ela dá a essas perguntas respostas inefáveis, para além do raciocínio e da ciência, tornando-se num poderoso meio de conhecimento espiritual: “A música é uma revelação mais alta do que a ciência e a filosofia”, disse Beethoven. Assistimos aqui à mais recente das grandes transformações da música no decurso da sua história: nunca até então fora chamada a desempenhar semelhante papel. O romantismo abre-lhe as portas de um imenso domínio que ela ainda hoje continua a explorar, a despeito das transformações importantes surgidas no século XX; mas não nos antecipemos. É a aventura humana, e nada mais do que esta que se exprime nos lieder de Schubert e Schumann, nos dramas líricos de Wagner, nas sinfonias de Beethoven, nos frescos de Berlioz e Liszt, nas confissões de Chopin.
Ainda falta salientar duas características, para completar a imagem do romantismo; duas características que parecem não ter despertado o interesse dos historiadores da música. Primeiro, o romantismo é triste, ele exprime, antes de mais, a paixão dolorosa e o desespero. Será assim, de resto, que ele esgotará as suas forças. Como explicar esta faceta do romantismo, quando afinal ele surgira de um sentimento de triunfo e de libertação? Nunca se reparou neste paradoxo, contudo bastante claro: se o romantismo se deleita nas lágrimas, é porque ele é um narcisismo. Obsediados pela exploração do “eu” íntimo, os românticos foram as vítimas do seu próprio jogo. Herdeiros dos literatos que desenvolveram a “sensibilidade”, o sentido trágico da vida, imolaram-se literalmente a essa idéia. Todo o narcisismo engendra uma tristeza fatal: o romantismo não podia escapar-lhe. Em segundo lugar, o romantismo é germânico. À parte Berlioz (herdeiro dos grandes compositores de hinos revolucionários e, de resto, rejeitado pela sua geração), a França não produziu um único compositor romântico. É que o movimento romântico -filosófico, literário ou musical- com tudo quanto encerra de irracional, de misterioso de “força obscura”, é próprio da sensibilidade germânica ou eslava e mal adequado para estimular o gênio racional da França. Esta permanecerá constantemente fora do poderoso movimento lírico e expressionista que anima a Europa Central e tal fato explica-se pelas mesmas razões. Os grandes
músicos
Após 1789, a produção musical atravessa um período de confusão. Como já vimos, alguns compositores “alistaram-se” no novo regime; outros porém, por motivos de idade ou de gostos, continuam a escrever, pacificamente, no estilo em que sempre escreveram e, sem dar por isso, atravessam assim a fronteira de 1800. Mozart morreu em 1791, com o mundo que encarnou, mas Haydn, que morrerá em 1809, sobrevive perfeitamente à Revolução sem introduzir qualquer modificação na sua maneira de compor; e Beethoven, que tem dezanove anos em 1789, escreve as suas primeiras obras sob a nítida influência de Haydn e de Mozart, aos quais dedicou um culto. O estilo novo vai porém afirmar-se e a música verdadeiramente gerada pela Revolução será sobretudo a dos românticos alemães, de preferência à dos Méhul, Gossec, Boieldieu, Lesueur, Rouget
de 1'Isle (autor de La Marsellaise, um dos numerosos hinos revolucionários da época, mas um dos raros que sobreviveram). Franz Schubert (1797-1828), nascido em Viena, falecido com trinta e um anos apenas, surge nas suas primeiras obras como o herdeiro de Mozart, de quem tem a delicadeza e o requinte. Clássico sob muitos aspectos, Schubert encontra, contudo, acentos apaixonados e uma intensidade poética que rompem o convencionalismo. Pode ser considerado como o primeiro dos românticos por ordem cronológica, pois nos seus lieder aparece, de uma forma completamente inesperada na música, a anais livre expressão de íntima confissão. Ele introduz assim um elemento novo, em que todo o século se inspirará. O lied, forma essencialmente alemã, é uma melodia acompanhada, onde o texto poético, o canto e seu acompanhamento formam um todo indissolúvel, cuja música sublinha as menores inflexões psicológicas com tanta subtileza como intensidade subjectiva. Existe, portanto, uma profunda diferença entre a melodia clássica, essencialmente objectiva, e o lied romântico. A vida de Schubert foi banal e lamentável: aspirações sentimentais desiludidas, falta de meios (não dispunha de piano e compunha numa mesa), algumas saídas na companhia de amigos bebedores e outras tantas conversas inflamadas sobre a arte; e nada mais. E, todavia, uma prodigiosa fertilidade criadora: mais de seiscentos lieder, peças para piano, obras de música de câmara e sinfonias. O gênio encantador e tão vienense de Schubert não deve fazer esquecer a grandeza que talvez encerrasse e cujo eco transparece nas expressões mais sombrias que por vezes atravessam a sua música. Mas Schubert não teve tempo de ultrapassar a juventude, e essa juventude, como a de Mozart, foi, antes de mais, uma floração radiosa. A par dos improvisos ou das valsas para piano, de um delicioso descuido, existe contudo o Dappelganger (“Sósia”), o Quinteto em Dó (canto do cisne escrito pouco antes da sua morte) e o quarteto A Rapariga e a Morte. E fica-se subitamente surpreendido pela expressão de uma tristeza infinita, por certos gritos de desespero e de angústia, que revelam bem o fundo da sua alma. Ludwig van Beethoven (1770-1827) domina todo o século romântico, de que foi um dos mais poderosos tribunos. A sua música exprime as mais vastas ambições da Revolução; Beethoven é o cantor épico dos tempos novos. É um homem de ideias avançadas, profundamente republicano, exteriorizando (por
vezes com bastante ingenuidade) o seu desprezo por todos quantos usam um título. A sua frase “Não reconheço outra superioridade que não seja a do coração”, define a sua atitude, tal como a resposta que deu, um dia, a certo príncipe: “Homens como vós ha muitos, mas Beethoven há só um.” Muitas das suas obras têm a marca das suas políticas ou das suas aspirações filosóficas e humanitárias; é mediante esta faceta que ele surge como o cantor dos tempos novos e, através dele o novo significado da música transformada em veículo das grandes idéias. Fidelio, glorificação do amor conjugal, mas lamber protesto apaixonado contra a tirania; Egmont, exaltação da resistência à opressão; A Terceira Sintoma monumento erguido em homenagem a um revolucionário libertador -Bonaparte - e, em seguida, A Memória de Um Herói, quando Beethoven, indignado, tem conhecimento de que Bonaparte se fez coroar imperador; a Nona Sinfonia, verdadeira solenidade musical, coroada pelo Hino à Alegria, de Schiller, que Beethoven acrescentou após muitas hesitações e que traduz a lua profunda necessidade de exprimir as suas idéias igualitárias sob a mais intensa forma lírica. Outras páginas, hoje esquecidas e apenas de circunstância, são significativas: em 1813, a sinfonia Vitoria de Wellington; em 1814, um coro guerreiro , Renascença da Alemanha (Germanias Wiedergeburt). Para a tomada de Paris, em 1815, compôs um coro Tudo Está Consumado (Es ist Vollbracht). É evidente que Beethoven conservou a paixão pela política ate a idade madura. O seu orgulho feroz e intransigente e do domínio público; sabe-se que ao passear com Goethe e cruzando-se com alguns nobres que o poeta cumprimenta, Beethoven volta a cara para o lado ostensivamente e, em seguida, censura vivamente Goethe pela sua atitude... Beethoven é de origem flamenga; a sua independência agressiva é característica dessa origem e a sua música também apresenta o mesmo cunho; certos ritmos de danças, por exemplo, certas manifestações de uma alegria rude. Se o seu gênio não tem qualquer necessidade de justificação, pois o génio aparece onde quer, homens como Brueghel, Rubens, Teniers, Permeke, explicam-no, contudo, sem arbitrariedade. Partindo da influência clássica, Beethoven avança rapidamente no caminho do desconhecido e da descoberta. A composição representa para ele uma aventura exaltante; ele agarrará o destino pela garganta e “realizar-se-á” totalmente
na sua música, procurando simultaneamente exprimir o seu ser mais autêntico e atingir um ideal inacessível. Personifica assim o perfeito tipo do artista romântico, com os seus tormentos infinitos, do mesmo modo que personifica a aventura do espírito humano em busca da verdade ou de Deus. Toda a sua vida é um exemplo de heroísmo e de combate. “Nascida no coração, que ela atinja o coração”, disse ele da sua música, manifestando assim o alcance essencialmente sentimental que lhe atribuía.
Beethoven em Viena (desenho de Lyser)
Uma página do caderno de esboços de Beethoven
Conhecem-se as peripécias dramáticas da sua existência, a sua solidão, a sua surdez, o seu temperamento pouco sociável, o seu desprezo pelas contingências, as suas lutas contínuas para conseguir viver mesquinhamente, as suas decepções sentimentais, as suas “bemamadas idéias”, que o consolam de uma amarga verdade. Com o decorrer do tem po, e sem nunca deixar de animar as suas obras de um marulho de paixões, fecha-se cada vez mais na meditação e as suas últimas páginas exprimem os mais sublimes pensamentos. No plano musical, Beethoven faz da sinfonia um vasto fresco efervescente de vitalidade, da sonata uma lon Beethoven ga confissão onde a forma antiga se encontra metamorfoseada; e de toda a sua produção uma intensa busca de vida interior e de meios de expressão incessantemente renovados e adaptados aos seus intentos. A sombra imensa de Beethoven projeta-se até ao nosso século com permanente atualidade. Frédéric Chopin (1810-1849), polaco pela mãe e francês pelo pai, tem o orgulho da primeira e o requinte do segundo. Com uma sensibilidade à flor da pele, sofrendo por tudo quanto o rodeia, acusando com dolorosa acuidade os menores embates da existência, Chopin vive uma infância infeliz na Polônia. Ferido muito jovem por uma primeira decepção amorosa, deixa o seu país aos dezanove anos. A revolução de Varsóvia coincide com a sua partida e fixa então residência em Paris. Exclusivamente preocupado com o piano, leva uma vida mundana, favorecida pelas relações que estabeleceu e lhe garantem um ganha-pão sob a forma de lições às jovens da aristocracia francesa ou polaca emigrada. O seu encontro com George Sand, mulher autoritária e maternal, oferece-lhe um ambiente de vida familiar (George Sand tem dois filhos) e de afectuosa solicitude de que ele necessita, mas que todavia lhe pesa. Rompe essa ligação, que o temperamento de George Sand tornava dificilmente harmoniosa, e naufraga na melancolia e no desalento.
Homem de espírito penetrante, de uma inteligência muito mais viva do que a lenda deixa supor (como o provam as suas palavras e os seus escritos), personalidade forte e original, mas dominada pela sensi bilidade e certo gosto pelo sofrimento que ele não consegue vencer, Chopin levará uma existência aparentemente ociosa e frívola, que criou uma ilusão. Traumatizado pela desilusão do seu primeiro grande Chopin amor por Maria Wodzinska, bem como pelas circunstâncias humilhantes do rom pimento (a jovem, de uma grande família burguesa, obedecera às ordens do pai, que desprezava os artistas), e em seguida pela catástrofe da revolução, do exílio, da separação da família, Chopin chegara a Paris aos vinte anos, já roído pela tristeza e o abatimento. Nunca mais sairá desse estado. A sua saúde alterase e, após anos de provações físicas, morre tuberculoso aos trinta e nove anos. Chopin é vítima de um mal-entendido, pois a sua maneira de viver iludiu, durante largo tempo, a sua natureza profunda. As suas escassas Valsas não devem fazer esquecer que a sua obra, toda ela, está impregnada de orgulho, de sentimento trágico, de revolta, bem como, também, de uma emoção e de um lirismo fascinantes. É necessário considerar a diversidade do seu talento, que sabe ser o de um técnico lúcido e preciso nos seus Estudos, de um poeta bucólico nas Mazurkas, de um sonhador apaixonado nos Nocturnos e de um visionário poderoso, alucinado (um aspecto do seu talento que nunca foi convenientemente observado), nas Baladas, Sonatas e Polacas. Chopin é, com Liszt, o grande descobridor da técnica pianística. O seu estilo absolutamente pessoal, á parte uma ligeira influência italiana (certo coquetismo do ornamento), revela a amplidão dos meios ao seu dispor: melodias flexíveis e ondulantes, encanto de expressão, invenção espontânea, colorida, de infinita variedade, passagens e efeitos pianísticos deslumbrantes, instinto da harmonia enriquecendo o sentido da melodia ou do efeito dramático. Chopin foi um dos primeiros compositores que imaginaram um ritmo complexo,
inesperado, pontuando a frase ou, pelo contrário, possuindo uma vida autónoma e dando nascença à melodia. Chopin tinha vinte anos quando atraiu a atenção pela publicação dos Doze Estudos Op. 10 para piano, páginas que, sob pretexto didático, revelam um talento de uma novidade e originalidade que desorientam. A força insuflada por este adolescente numa tal obra prova de forma eloquente que a indolência em que se comprazia a sua natureza fatalista em nada altera o caráter vigoroso, brilhante, apaixonado da sua música, que já tinha sido escrita quase na totalidade quando a doença o transformou no quadro falsificado que a imaginação popular nos legou. Robert Schumann (1810-1856) é, com Schubert, o grande músico do lied, onde soube verter o melhor de si próprio. De uma sensibilidade aguda, os acontecimentos exteriores refletiam-se nele, tal como em Chopin, com tanta intensidade que a sua vida psíquica se transformou até ao desequilíbrio. As infelizes peripécias do amor que dedicava a Clara Wieck (a irredutível oposição do pai de Clara iria durar sete anos) exasperaram a sua combatividade e as suas faculdades criadoras, arran Robert Schumann cando-lhe obras de expressão pungente; mas uma existência de lutas e de exaltação acabou por acentuar o seu desequilíbrio. A apaziguadora felicidade que Clara lhe iria mais tarde proporcionar já não poderia deter o desenrolar de um processo fatal: alucinações, crises de desespero, hipocondria. Aos quarenta e quatro anos o compositor atirou-se ao Reno, em Dusseldórfia. Salvo, ainda vegetou num estado de semi-inconsciência numa casa de repouso, onde morreu dois anos mais tarde. A música de Schumann vive de uma extraordinária sensibilidade: extravagante, caprichosa, dolorosa, é percorrida por um frêmito perpétuo; não há uma nota que, em intensidade, seja igual à precedente ou à seguinte. É este fator que torna a sua interpretação tão difícil; é necessária uma rara subtileza de intuição
para traduzir a eloquência schumaniana no seu arrebatamento, ora contido, ora veemente, a sua emoção, os seus impulsos, os seus retraimentos, o seu sorriso, por vezes estranhamente crispado. Schumann é um sonhador, um improvisador, o verdadeiro tipo do artista romântico, nutrido de literatura e de poesia nomeadamente a de Richter, hoje esquecida, mas que exerceu profunda influência em toda uma geração alemã. Nas suas obras curtas, de forma livre, Schumann manifesta um gênio radioso: nas suas páginas para piano e nos seus lieder encontram-se algumas das mais comoventes expressões que o amor, a tristeza, a poesia das coisas jamais inspirou à alma humana. Toda a Alemanha romântica, toda a sensibilidade do seu tempo, exprimem-se nesta música. Contudo, este músico-poeta soube também dedicarse a fundo e bater-se pelas suas idéias: durante cerca de vinte anos ele lutou (nomeadamente por meio de artigos publicados na revista musical Neue Zeitschrift fúr Musik) pela boa música contra a má, então representada por músicos de talento superfi Nas vésperas da Revolução Francesa, Ma- cial, mas de êxito fácil, a quem ele dame de Genlis inicia a jovem duquesa de chama os “Filisteus”. A sua luta, Orleães na arte de tocar harpa auxiliada por um grupo de jovens artistas e intelectuais, foi proveitosa para o conjunto da música alemã. Sabe-se também que Clara, mulher admirável e grande virtuose, no decurso das suas numerosas tournées defendeu a música dos jovens mestres da sua época, entre os quais Brahms.
Finalmente, Schumann soube estabelecer com lucidez uma escrita pianística pessoal, de interessantes complexidades rítmicas, e desenrolar verdadeiros “mantos harmônicos”, por vezes próximos da imobilidade, tanto para piano só, como para piano acompanhando os seus lieder, criando assim atmosferas de surpreendente poesia. O húngaro Franz Liszt (1811-1883) participou intensamente no movimento romântico alemão. Ao inverso de um Schumann, de um Schubert, de um Cho pin, Liszt é um triunfador, um homem de sedução irresistível, que alcança numerosos sucessos femininos, conquista um lugar de primeiro plano no mundo musical e se impõe a todos. Liszt é o tipo do artista-herói. Grande senhor, virtuose faiscante que subjuga as multidões, ele dirige-se por instinto para o que requer garbo, bravura, generosidade. Dedica-se Liszt às causas de alguns dos seus colegas com tanto ardor como aos seus próprios assuntos; utiliza as suas relações para auxiliar jovens músicos; entrega-se com entusiasmo à causa de Wagner (que se tornará seu genro). Homem de sociedade, europeu, poliglota, ele leva a classe burguesa a admitir não só a dignidade (o que é elementar), mas também a aristocracia do artista, príncipe da vida intelectual. Desempenha assim um duplo papel: primeiro no mundo musical, pela sua obra, em seguida na sociedade, mercê da sua posição, do estilo de vida que adota e da personagem que impõe, vingando assim, de certo modo, todos os colegas que dispõem de menos recursos. Além disso, e a despeito de hoje se menosprezarem algumas das suas com posições, cujo tom revela o desejo de brilhar, uma verbosidade enfática e um gosto excessivo pela afetação sentimental, seria injusto não reconhecer o valor de diversas Rapsódias e dos dois Concertos para Piano, cujos ricos achados influenciaram Brahms, Tchaikowsky, Grieg e Rachmaninov, pois a música de Liszt (os seus Estudos para piano permanecem de primeira importância) fervi-
lha de novidade, de idéias audaciosas e de engenho técnico. Habituado aos extremos, este homem, para quem a vida foi uma aventura exaltante, resolveu professar no fim da sua carreira tumultuosa e quis morrer tão pobre como nascera. Efetivamente, aquele que conhecera o luxo e semeara o dinheiro com prodigalidade, deixou, ao todo, seis lenços. Desde o princípio do século a ópera italiana tinha sido abandonada em proveito de obras menos convencionais, e é na Alemanha que se manifesta essa renovação. Carl-Maria von Weber (1786-1826), cuja personalidade foi sem dúvida menos forte do que a dos seus contemporâneos, deve contudo ser considerado como o criador da ópera romântica alemã. Ele será o primeiro a romper com os temas tirados da mitologia clássica e a abordar um domínio ainda inexplorado pelos músicos: o da lenda, do mistério, do maravilhoso medieval amado pelos românticos. A sua produção, não obstante ser pouco abundante, revelará uma mina de riquezas que todo o seu século explorará: Freischutz é uma ópera cómica onde intervêm a fantasmagoria e as cenas de aldeia. Euryanthe, “romance de cavalaria em “música”, é um melodrama evocando uma heroína da Idade Média francesa; Oberon, uma mágica onde os A Europa romântica. Um “serão de rapazes”, em homens são protegidos por Paris um rei-feiticeiro. Tudo recheado de um repertório de situações e acessórios hoje um tanto gastos, mas extraordinários para a época: florestas encantadas, trompas mágicas, aparições sobrenaturais, personagens maléficas, raparigas expostas a inúmeros perigos, cavaleiros heróicos, monstros ameaçadores, anéis encantados, etc.
Legenda do desenho acima: 1-Liszt aparece de sotaina. Sorriso altivo. Temporal de aplausos. 2-Primeiros acordes. Volta-se para forçar a atenção do público. 3-Fecha os olhos e parece tocar apenas para si próprio. 4-Pianíssimo: S. Francisco de Assis laia com as aves. O seu rosto torna-se radioso. 5-Raciocínio de Hamlet. Tormento de Fausto. As teclas exalam suspiros. 6-Reminiscências: Chopin, Georges Sand. Bela juventude. Perfumes. Luar. Amor. 7-Dante: o inferno; os danados e o piano gemem. Agitação febril. O temporal faz rebentar as portas do inferno. Bum! 8-Apenas tocou para nós... divertindo-se. Aplausos, gritos e vivas! Desenhos de Jankó, 1873 Carl-Maria von Weber (1786-1826), cuja personalidade foi sem dúvida menos forte do que a dos seus contemporâneos, deve contudo ser considerado como o criador da ópera romântica alemã. Ele será o primeiro a romper com os temas tirados da mitologia clássica e a abordar um domínio ainda inexplorado pelos músicos: o da lenda, do mistério, do maravilhoso medieval amado pelos românticos. A sua produção, não obstante ser pouco abundante, revelará uma mina de riquezas que todo o seu século explorará: Freischutz é uma ópera cómica onde intervêm a fantasmagoria e as cenas de aldeia. Euryanthe, “romance de cavalaria em música”, é um melodrama evocando uma heroína da Idade Média francesa; Oberon, uma mágica onde os Carl-Maria von Weber homens são protegidos por um reifeiticeiro. Tudo recheado de um repertório de situações e acessórios hoje um tanto gastos, mas extraordinários para a época: florestas encantadas, trompas
mágicas, aparições sobrenaturais, personagens maléficas, raparigas expostas a inúmeros perigos, cavaleiros heróicos, monstros ameaçadores, anéis encantados, etc. Todo o romantismo alemão ali se encontra e se Boieldieu (A Dama Branca), Meyerber (Robert lê Diable), Rossini (Guilherme Tell) ou Hérold (Zampa), entre outros, se inspiraram nesse mundo fantástico de Weber, é justo acrescentar que Wagner não teria sido o que na realidade foi se Weber não lhe tivesse aberto o caminho que trilhou. Os processos musicais de Weber servem exatamente as suas intenções. A sua escrita é clara e a sua linguagem fácil de compreender. Introduz na sua orquestra coloridos sugestivos que realçam o efeito cênico e emprega a técnica do leitmotiv, tema musical repetido para evocar sempre a mesma personagem ou a mesma idéia. Será este leitmotiv que Wagner levará a um ponto culminante de complexidade técnica e simbólica. Richard Wagner (1813-1883) é o “gigante” da cena lírica. Após algumas o bras, que podem ser consideradas como ensaios (O Navio Fantasma, Rienzi), Wagner encontra progressivamente o seu caminho com vastas epopéias dramáticas de que ele próprio escreve os textos, inspirando-se nas antigas lendas e na mitologia germânica. Procurando criar relações cada vez mais estreitas entre o texto e a música e realizar em cena uma síntese das artes, Wagner utiliza ao máximo as possibilidades narrativas, descritivas e dramáticas da sua partitura pelo emprego do leitmotiv, que se encontra embutido na trama sinfônica, cada vez que o objeto, personagem ou idéia evocados surgem na ação ou no espírito de um ator. Obras como o ciclo O Anel do Nibelungo, Tristão e Isolda, parsifal dão à arte lírica os seus “monumentos”. Se, por vezes, acusam uma ênfase bastante pesada, uma extensão que se pode julgar excessiva, um abuso de explicações em prejuízo da ação, contêm todavia no seu ritmo lento e majestoso, momentos de grandeza inigualáveis, uma exuberância harmônica, melódica e orquestral que forçam a admiração. Tristão é um dos mais belos cantos de amor jamais lançados sobre a Terra; Parsifal é o poema sublime da abnegação; a Tetralogia ou Anel do Nibelugo (O Ouro do Reno, a Walkiria, Siegfried, o Crepúsculo dos Deuses) é a imensa saga germânica dos deuses entregues às paixões humanas. Não esqueçamos os Mestres Cantores de Nurernberga, evocação anedótica e familiar da época dos Minnesãnger da Idade Média, nem Lohengrin, essa bela lenda das margens do Escalda, igualmente medieval.
Até aos primeiros anos do nosso século, Wagner reinou sobre a música como um déspota, quase involuntariamente, apenas como resultado do seu magnetismo: quase nenhum músico escapou à sua influência. Transbordando da música para entrar no domínio da filosofia, Wagner dá vida a personagenssímbolos onde um povo inteiro se reconhece, alimentando assim uma verdadeira mística racista e nacionalista. O wagnerianismo foi uma fé, uma religião em nome da qual se afrontaram duas gerações de melômanos. Bayreuth foi e ainda é uma peregrinação sagrada. Tendo povoado o universo dramático de uma mitologia sombria, cruel mas cativante, que inflama uma época inteira, tendo dado vida a essa mitologia numa linguagem obsidiante e impondo-se mercê de uma personalidade intransigente, categórica, Wagner não podia ser considerado senão como um deus da música. A sua carreira, contudo, foi semeada de dificuldades de toda a ordem: as suas primeiras obras conheceram o fracasso e a incompreensão. Foi forçado a efetuar inúmeras diligências, decerto vexatórias para Wagner o seu amor-próprio, que era agudo, na es perança de conseguir fazer-se representar na Alemanha. Em 1848, as suas idéias políticas obrigaram-no a refugiar-se em Paris, onde o público fez troça de Tannháuser; finalmente encontrou Luís II da Baviera, o jovem rei que iria protegê-lo e construir Bayreuth, imas a sua posição privilegiada foi combatida pelos que rodeavam o soberano, e Wagner foi forçado a deixá-lo. A sua vida privada conheceu numerosas vicissitudes; foi com Cosima Liszt que encontrou finalmente a felicidade, após um primeiro casamento com Minna Planer e uma demorada paixão impossível por Mathilde Wesendonck. Todos se aproximavam com respeito e veneração deste criador altivo, autoritário, exigente, que apenas concebia vastos empreendimentos. Mantinha à sua volta uma espécie de
corte- e foi no meio dessa glória, finalmente conquistada, que terminou os seus dias. A principal característica da escrita wagneriana é o emprego do cromatismo ou linguagem baseada nos graus cromáticos da escala. Como já vimos no princípio deste livro, o cromatismo opõe-se essencialmente ao diatonismo; este utiliza escalas de sete sons com intervalos francos, produzindo melodias de contornos nítidos, enquanto o cromatismo, baseado na escala de doze sons, emprega intervalos menores; a melodia torna-se assim mais subtil, mais graduada, por vezes também mais lânguida, podendo comparar-se a um desenho de linhas flexíveis e ondeantes. As melodias diatônicas, os acordes perfeitos, a precisão tonal da linguagem de um Haydn ou de um Mozart, por exemplo, provocam uma sensação de clareza, de equilíbrio. Inversamente, a escrita cromática suscita uma tensão, um sentimento de inquietação. Não obstante o cromatismo ter já sido praticado pela maioria dos músicos românticos, Wagner, explorando até ao extremo todas as possibilidades do sistema, vai transformar a linguagem musical. Esta escrita totalmente cromática encontrará a sua floração última no dilacerante lirismo de Tristão e Isolàa, onde o acorde perfeito apenas aparece no compasso final. Assim o drama termina na plenitude da transfiguração e os heróis só alcançam serenidade na morte. Através da obra tão diversa de Chopin, de Schumann, de Liszt, de Berlioz, de Schubert, de Wagner, o cromatismo exprime as necessidades expressivas do século romântico. Pela subtileza das inflexões melódicas e a complexidade dos efeitos harmônicos que permite, foi o veículo ideal da inquietação, do tormento e da paixão do romanSchubert tismo. Revelou uma infinidade de graduações do sentimento e deu a cada um destes músicos a maior, a mais ampla liberdade de expressão pessoal. Félix Mendelssohn (1809-1847) surge como uma personagem isolada no meio do grande turbilhão romântico: pertencendo incontestavelmente à sua
época pela efusão sentimental, o apelo aos temas fantásticos (O Sonho de Uma Noite de Verão), Mendelssohn manifesta contudo uma tradição inteiramente clássica. O seu sentimento musical, feliz e claro, o seu encanto, classificam-no como um dos continuadores de um Mozart ou de um Haydn, dos quais possui ainda o segredo da forma nítida e ligeira e da justa eloquência. Num sentido, Mendelssonh é o Mozart do romantismo. Nascido no seio de uma família de ricos banqueiros, tendo conhecido todas as facilidades da existência, inteligente, amável, fino e generoso, Mendelssohn teve o mérito insigne de descobrir o génio de João Sebastião Bach; foi ele quem, em 1829, revelou a Paixão segundo S. Mateus, esquecida há oitenta anos. Mendelssohn suscitou assim uma corrente de ideias ligando a nova Alemanha à do século XVIII e contribuiu para que o grande compositor de Leipzig fosse colocado no lugar que lhe competia na história. Mendelssohn é o único músico feliz do romantismo; nas suas sinfonias, nas suas peças para piano (Romances sem Palavras, hoje quase esquecidas) e no seu famoso Concerto para Violino exprime um sentimento sorridente numa linguagem intensa, sempre cheia de distinção; mas algumas das suas inspirações evocadoras de mistério, como A Gruta de Fingal ou O Sonho de Uma Noite de Verão, são da melhor veia romântica. O fato de se ter censurado Mendelssohn por não ter escrito uma música violenta, atormentada, e, em suma, mais sujeita à escuridão do instinto do que à clareza do espírito é bastante significativo. Chamaram-lhe frequentemente, com desdém, peralvilho, elegante e superficial. É quanto basta para ilustrar a deformação causada nos espíritos pelo romantismo. Se a maré romântica que invadiu invadiu a música durante um século suscitou obras sublimes, nada justificava que um compositor se deixasse afogar por ela, quando o seu temperamento o levava a manter, no seio da tempestade, a linguagem e a atitude da beleza clássica. O mais grave defeito do romantismo foi certamente o de ter imposto a linguagem da paixão com tanta força que chegou a tornar suspeita a linguagem da felicidade. Na nossa época ainda se torna necessário lutar contra este preconceito, que classifica de “superficial” toda a música que não é convulsa. Com o recuo do tempo, sabemos hoje que, embora Mendelssohn não tivesse atingido os mais altos cumes, d fixou-nos uma obra cheia de sabor e de beleza.
Hector Berlioz (1803-1869) é o único grande músico francês do romantismo, pois a França, como já dissemos anteriormente, é uma nação antiromântica por excelência e onde personalidades como as de Géricault, Delacroix, Victor Hugo ou Berlioz devem ser consideradas (e assim o foram) como gênios isolados, testemunhas do seu tempo, evidentemente, mas nunca porta-vozes da sua geração. Contudo estes homens viveram e sentiram profundamente a revolução romântica. Embora Berlioz lutasse arduamente para fazer executar as suas obras e admitir as suas idéias, sem nunca o conseguir inteiramente, a lenda que fez dele um músico “maldito” não é inteiramente exata. Na realidade Berlioz, que era dotado de um temperamento efervescente, apaixonado, tempestuoso, de uma natureza intuitiva de visionário, era também injusto, exaltado e violento nas palavras, agressivo e pouco sociável. Pelas Berlioz suas atitudes provocantes ele multiplicou as dificuldades em volta da sua música, já difícil de aceitar. Com magnífica audácia (por vezes legítima) assediava os ministérios e os poderosos da época a fim de obter os amplos apoios financeiros de que as suas obras careciam. Conseguiu obter numerosos êxitos nesse sentido, e a sua carreira não foi tão desastrosa como se disse - e ele próprio acreditava. Viagens, compromissos, encomendas sucederam-se, mas o seu temperamento amargo, ainda mais azedado por uma vida privada realmente desastrosa (casamento mal sucedido, aventuras medíocres com uma Harriet Smithson ou uma Maria Recio, de quem a sua imaginação ingênua e romanesca o tornava joguete), concorreu para enegrecer-lhe a ''existência. Deixou notáveis e mordazes artigos de crítica, fustigando com razão os gostos e costumes musicais do seu tempo; as suas palavras poderiam, de resto, aplicar-se com bastante frequência ao nosso.
As grandes obras de Berlioz transbordam de invenção orquestral: ele é praticamente o criador da orquestra moderna e o seu Tratado de Orquestração ainda conserva autoridade. Romântico absoluto, as suas obras Romeu e Julieta, A Danação de Fausto, A Sinfonia Fantástica revelam a sua exaltação, mas também uma poderosa eloquência. A escrita, fraca do ponto de vista da harmonia e da forma, acumula com demasiada frequência incontestáveis imperícias, a propósito das quais um Ravel, severo mas justo, pôde dizer: “Faltava-lhe essa simples profissão, necessária aos mais medíocres.” Mas Berlioz preocupava-se pouco com a profissão; apenas o seu instinto o guiava e este foi frequentemente o mais precioso dos guias. A força sugestiva, que ele desejava fosse “aterradora” (pois o seu vocabulário é sempre hiperbólico), e o brilho da sua orquestra são os elementos mais seguros do seu talento. Soube arrancar aos instrumentos da orquestra sinfônica efeitos de contrastes e de combinações surpreendentes, mercê de uma excepcional aptidão para a “audição interna”, essa faculdade de ouvir mentalmente os sons dos instrumentos que cada compositor deve possuir, mas que nem todos possuem no mesmo grau. A ironia desencantada que Berlioz manifestou na vida e o frenesi que comunicou à sua música dão a medida do seu temperamento, assim como do seu caráter. Berlioz brilha com um clarão singular no seio do seu século, e deu o tom a numerosos músicos atraídos pelo seu mundo fantástico e inquietante. Na obra de todos os músicos que durante três quartos de século formaram a grande escola romântica (as datas dos seus nascimentos situam-se na sua maioria por volta de 1800) reconheceu-se uma característica fundamental: a exaltação dos sentimentos. Ter-se-á notado também que a música, reflexo fiel e íntimo do compositor, oferece um retraio psicológico e preciso de cada um deles. Ao inverso da música objetiva, “não comprometida”, do século anterior, a música romântica acusa na sua estrutura e na sua expressão todas as características do indivíduo, seguindo fielmente a sua evolução interior. De tal forma que a linguagem musical torna-se essencialmente pessoal: é impossível, mesmo para quem esteja apenas superficialmente familiarizado com a música, confundir quatro compassos de Beethoven com quatro compassos de Chopin, quatro compassos de Liszt e quatro compassos de Schumann. A música identifica-se estreitamente com o homem, transmitindo as mais ínfimas graduações por onde passa a sua sensibilidade. Da eloquência poderosa dos grandes tribunos (Bee-
thoven, Wagner, Berlioz, Liszt) às confidências íntimas dos poetas (Schubert, Schumann, Chopin), todo o romantismo se encontra marcado por essa espontaneidade e essa sinceridade total de uma emoção que nada deve represar. O critério do valor de uma obra romântica estabelece-se sobre a força da sua sinceridade. A literatura da época oferece-nos os mesmos tipos de criadores, dos tribunos (Hugo, Schiller, Balzac) aos poetas (Lamartine, Heine), que libertam forças psicológicas eternas, mas até então inexploradas. Contudo, este movimento, que ardeu com chama tão intensa, já se encontra enfraquecido no último terço do século: as grandes vozes calaram-se e o destino “fatal” dos românticos fê-los morrer quase todos jovens. Permanecem Liszt e Wagner envelhecendo, cuja obra se orienta para a meditação. No decurso dês- , sés anos, uma vasta atividade musical nasceu da multiplicação dos concertos e dos virtuoses, que responde ao ideal da Revolução Francesa e faz da música uma arte social, transbordando do círculo restrito onde anteriormente se encerrava. Liszt inaugura o princípio do recital, ou seja do concerto dado por um único executante e que modifica a antiga fórmula em que os concertos eram frequentemente constituídos por uma surpreendente mistura de artistas, instrumentos e géneros. Tal facto representa um passo no sentido de maiores exigências de cultura e de gosto. O Italianismo
Entre as diversas tendências que então coexistiam, é necessário citar a de um Meyerbeer (1791-1864), de talento superficial e frequentemente vulgar, que procura o efeito e o sentimento fácil. Por meios de obras como Robert o Diabo, Os Huguenotes, A Africana, reinou longos anos sobre a ópera francesa, impondo um mau gosto contra o qual se ergueram todos os grandes românticos, impotentes perante os seus êxitos. A mais medíocre miscelânea encontrase reunida nestes melodramas, verdadeiras caricaturas do romantismo, dos sentimentos nobres e do dramatismo musical, e onde abundam absurdidades tão solenes que hoje desencadeiam a hilaridade. Mas não se deve esquecer que, nessa época, o público se apaixonava por estes subprodutos, oferecendo aos seus autores uni tributo de fortuna e de glória. Outros 'músicos representam um italianismo que ainda conserva as suas seduções:
Donizetti (1797-1884), cujas obras A Favorita, Luccia de Lamermoor, Eli xir de Amor ou Don Pascuale apenas perduram mercê de algumas grandes árias de bei canto romântico, que as salvam do desgaste do tempo. Bellini (1801-1835) é uma figura de outra qualidade: graça e finura, encanto e sensibilidade encontravam-se reunidas neste músico para fazer dele um grande compositor. A despeito da brevidade da sua vida não lhe ter, sem dúvida, permitido alcançar a plenitude, legou-nos com Norma, Os Puritanos e, sobretudo, A Sonâmbula (não obstante libretos de um ridículo exasperante) numerosas páginas deliciosas e que figuram entre os clássicos do bei canto. Rossini (1792-1868) encarna o descuido, a alegria, o entusiasmo sonoro e a feliz aceitação da vida. A sua ópera O Barbeiro de Sevilha, escrita aos vinte e quatro anos, no espaço de duas semanas, é uma obra-prima de espírito, uma opera buffa efervescente de malícia e de uma escrita subtil. Outras das suas óperas, escritas com a mesma prodigiosa facilidade, não têm a mesma solidez; mas as suas aberturas, que são quase sempre encantadoras páginas sinfónicas bem cinzeladas, permanecem hoje tão saborosas como no primeiro dia (La Ga zza Ladra, A Escada de Seda, A Italiana em Argel, etc.). Compositor de rara fecundidade, Rossini, que cultivava decididamente a ironia, deixou súbitainente de trabalhar aos trinta e sete anos, quando era rico, famoso e aparentemente feliz com a sua sorte. Fora diretor da Ópera italiana em Paris e intendente-geral da música; escrevera cerca de quarenta obras e atraíra a amizade de homens como Stendhal, Chateaubriand, Musset e Heine. Todavia, após ter o posto o seu sorriso e o seu talento ligeiro ao temporal romântico, afastou-se da cena e passou o resto dos seus dias (trinta e seis anos) num retiro, de onde apenas saiu o muito belo Stabat Mater, retiro que, apesar de não ter sido marcado pela amargura ou pela misantropia, nem por isso deixa de encerrar um enigma. O cepticismo e o epicurismo deste artista de grande envergadura desempenharam, sem dúvida, um papel no acontecimento. Se nunca pretendeu atingir o sublime ou o patético, Rossini soube pelo menos ser um desses raros músicos que conferiram títulos de nobreza artística ao sorriso, ao riso e ao prazer. Mas o maior dos italianos deste período é incontestavelmente Giuseppe Verdi (1813-1901). Não obstante colocar-se ligeiramente à margem da “grande” música, Verdi é um músico considerável; enquanto Wagner havia criado uma mitologia, Verdi cria uma humanidade igualmente vasta; uma
humanidade heróica, romanesca à imagem do século, transbordante de vida e de paixões, uma humanidade vinda da história, da lenda, do romance, onde evolucionam personagens brilhantes, exprimindo-se de acordo com um realismo dramático e declamatório, que fez, e ainda faz, vibrar o público. Este comove-se com as aventuras das belas e infelizes princesas, dos tiranos cruéis mas finalmente castigados, embriaga-se com o espectáculo do amor triunfante e dos grandes sentimentos que exaltam. Pela intensidade da expressão, o dom melódico e o instinto dos efeitos dramáticos, a sedução irresistível de uma escrita vocal que enriqueceu consideràvelmente o bel canto, o melodrama verdiano exerceu, para além das modas, uma influência imensa. A fecundidade de Verdi era inexaurível: partindo de obras sumárias quanto à textura musical e mais preocupado com a expressão do que com o estilo, Verdi aborda, com a idade, um domínio mais amplo; a sua ciência torna-se mais profunda, a sua inspiração eleva-se. Aida, La Traviata, II Trovatore, Rigoletto, Il Vespri Siciliani, Um Bailo in Maschera, Nabucco, Don Carlos, La Fona dei Destino povoam a cena lírica de um repertório que se tornará clássico. Verdi impõe um género, o da grande ópera italiana tal como a conhecemos ainda hoje, tal como a ilustram uma Cai-las ou uma Tebaldi. Renunciando às facilidades do início, Verdi aperfeiçoa a sua maneira de compor e espanta o mundo ao oferecer, com Otelo e Falstaff, escritos aos setenta e quatro e aos oitenta anos, respectivamente, duas obras monumentais, uma das quais atinge o tom da tragédia e a outra o da farsa mais truculenta. Verdadeiro herói nacional, Verdi é, com Wagner, o compositor que mais vigorosamente marcou a história da cena lírica. As escolas nacionais
O romantismo e o acordar do individualismo suscitam, por volta do meio do século, um movimento que se inscreve na lógica das coisas; por sua vez, os povos tomam consciência da sua personalidade, do seu gênio próprio: alargam a noção do individualismo à nação. E o nacionalismo, política muitas vezes nefasta quando provoca os conflitos que conhecemos, teve, pelo contrário, os mais felizes efeitos na arte.
A afirmação do nacionalismo musical é, em primeiro lugar, a procura dos cantos e danças populares, a criação de obras líricas inspiradas em temas nacionais, em suma, tudo quanto evoque a tradição de um país e o caráter dos seus habitantes. Neste caso também existe, portanto, um desvio da música de caráter universal do século anterior para uma arte que pretende ser particular: assim nascem as escolas nacionais, quase simultaneamente, em diversos países da Europa. Q folclore onde elas colhem os seus temas é vasto, rico, ignorado ou há muito descurado. O século XIX descobre aí um tesouro de que a nossa época ainda não esgotou os recursos 1. Será na Rússia que, com Glinka (1804-1857), surgirá pela primeira vez uma música de carácter nacional. Nas suas óperas (A Vida pelo Czar, Rousslan e Ludmilla), Glinka pretende libertar-se da influência italiana dominante na Europa, e muito especialmente na Rússia, desde o princípio do século XVIII. O seu continuador, Dargomijsky (1813-1869), orientar-se-á para o realismo e provocará a formação do “Grupo dos Cinco” em 1856. Cui (1835-1918), Balakirev (1836-1910), Borodine (1834-1887), Rimsky-Korsakov (1844-1908) e Moussorgsky (1839-1881) serão os membros deste grupo, que procurará acordar a consciência nacional, criando uma música a partir de elementos especificamente russos. A linguagem destes músicos, influenciada pelo romantismo alemão mais inteiramente inclinada para a descrição em vez de tender para a expressão pessoal, fará nascer obras de um gênero novo: frescos como Sheherazade, Nas Estepes da Ásia Central, Islamey, estão na origem da música de evocação que mais tarde se reencontrará no impressionismo; os “quadros” pintados por estes compositores (e que não deixam de fazer lembrar o gosto popular pelas cores garridas e a tradição profundamente enraizada dos ícones) o põem-se à música de caráter psicológico que reina então no Ocidente. Pormenor curioso: os “Cinco” são músicos amadores, alguns dos quais renunciaram à sua carreira inicial 1
* Os musicólogos, como já dissemos anteriormente, estabelecem uma diferença entre a música “folclórica” e a música “étnica”. Os caracteres próprios de uma música “étnica”, tanto nos ritmos e melodias como nos temas de inspiração, podem não ser folclóricos na acepção do século XX, isto é, de tradição popular. Para maior facilidade, limitar-nos-emos ao termo folclore, menos científico, mas que abrange a criação artistica popular de um grupo, de uma região ou de um país.
para se dedicarem ao ideal comum. Balakirev tinha feito estudos científicos; com Islamey deixou uma página magistral, de intenso colorido, cujo subtítulo é “fantasia oriental para piano”. O engenheiro Cui, que foi o porta-voz do grupo, tornou-se conhecido com uma ópera, O Prisioneiro do Cáucaso, e numerosas peças para piano. Terminou a sua carreira de oficial de engenharia com o posto de general e escreveu um Tratado de Fortificações notável, ao que parece... Borodine foi médico e químico; deixou uma obra--prima, O Príncipe Igor, e algumas páginas como Nas Estepes da Ásia Central, já citadas. O Príncipe Igor, Ópera inspirada na história russa, influenciará profundamente a produção nacional. Rimsky-Korsakov, oficial de marinha, é o mais erudito de todos; corrigiu as obras de vários dos seus amigos, por vezes mesmo de forma discutível; certos historiadores sustentam a opinião de que, com a sua preocupação acadêmica e didática, Rimsky-Korsakov talvez tenha alterado a frescura de páginas, cujas próprias incorreções afirmavam a originalidade. Magnífico orquestrador, com um sentido agudo da cor orquestral, Rimsky-Korsakov fez neste domínio autênticos achados, que um Strawinsky tomará em consideração (como, por exemplo, em O Pássaro de Fogo). Sheherazade, O Galo de Ouro, Capricho Espanhol revelam um talento criador extremamente original, ao qual a escola sinfónica do século xx muito deve; e sabe-se que Debussy estudou a obra dos “Cinco” com entusiasmo. Moussorgsky, certamente o mais dotado do grupo, foi oficial. Após uma descuidada juventude dourada, mudou subitamente de vida, renunciou às mundanidades e dedicou-se inteiramente à tarefa de criar uma arte nacional. Ao evocá-la, ele faz por vezes lembrar um herói de Dostoiewsky ou o próprio Dostoiewsky: exaltação, misticismo, sarcasmo e ironia, grandiloquência e sinceridade... A despeito de uma formação musical bastante imperfeita, Moussorgsky criou uma linguagem pessoal e adivinhou que as estruturas musicais, tais como repetições, desenvolvimentos, etc., podiam prejudicar o realismo e a veracidade da ação. Reagindo contra esta ameaça de formalismo, a sua música será essencialmente livre e a sua declamação lírica estreitamente adaptada à língua
russa. As óperas (Boris Godounov, a sua obra-prima, Khonantchina) e as melodias de Moussorgsky provam a que ponto ele foi capaz de exprimir a alma das coisas e dos seres do seu país. Note-se que os títulos das suas obras, e as dos seus amigos, evocam sempre um tema ou uma personagem nacional. Temos de classificar isoladamente Ilytch Tchaikowsky (1840-1893), músico atormentado, patético, romântico até ao excesso, pois nem sempre evita a grandiloquência e os efeitos fáceis. Tchaikowsky permanece ligado à música euro péia, alemã em especial; ele não é, portanto, um músico “nacional” no sentido preciso do termo, tal como o definimos, e manteve-se, de resto, afastado dos seus colegas. Hoje verificamos, contudo, que o nitchevo que se manifesta na sua música, o seu misto de nostalgia e de ardor, de exaltação e de desespero, assim como por vezes a sua frescura popular, são tipicamente eslavos. Depois de ser rotulado de cosmopolita, notou-se mais recentemente que a sua música se identificava profundamente com o caráter russo—como o prova a constante popularidade de que goza junto do público soviético. A vida de Tchaikowsky, tal como a dos seus contemporâneos ocidentais, impressionou as imaginações pelas suas infelizes peripécias, a despeito dos seus êxitos profissionais. Dominado por uma melancolia devoradora, passando continuamente do entusiasmo ao abatimento, este músico teve uma vida privada instável e dramática, sendo as suas paixões, frequentemente, mais fortes do que a sua vontade. Uma experiência de casamento terminou com uma separação quase instantânea e que aumentou a sua desorientação. Recebeu o auxílio de uma mulher rica e apaixonada pela sua obra, Nadejda von Meck, que, embora nunca o tivesse conhecido pessoalmente, lhe garantiu toda a vida um rendimento que lhe permitiu dedicar-se à composição. Esta circunstância romanesca será o único acontecimento feliz da sua existência. Vitimado pela cólera, Ilytch Tchaikowsky morreu aos cinquenta e três anos, em 1893. Ainda na Rússia surge-nos Scriabine (1872-1915). Visionário de sensibilidade exacerbada, sofreu sucessivamente as influências românticas de Chopin, Wagner, Richard Strauss e, em seguida, as de Debussy e de Ravel, que marcaram a sua linguagem harmônica. Dirigindo-se para uma metafísica mal definida, para sonhos exaltados (o Poema do Êxtase), Scriabine permanece como um músico singular, de inspiração cativante, e que vai além dos conhecimentos da
sua época. Os seus Estudos e Prelúdios para piano são obras ricas pela forma e pelo conteúdo. Com Bedrich Smetana (1824-1884) e Anton Dvorak (1841-1904) tiveram os Checos dois representantes da sua arte nacional. Smetana é o mais autenticamente popular (A Moldávia, página sinfônica, A Noiva Vendida, ópera de deliciosa frescura campestre). A sua música é viva, espontânea, por vezes ingênua como uma encantadora estampa popular, enquanto a de Dvorak (Sinfonia do Novo Mundo, Concerto para Violoncelo) se torna pesada, devido a uma retórica muito estreitamente tributária de Brahms, que lhe tira espontaneidade, fixando-a entre dois gêneros que não se definem claramente. Dvorak não pôde encontrar a linguagem adequada à música que desejava escrever e que postulava mais simplicidade. Outros conseguiram-no mais facilmente, sem se deixarem influenciar por estilos que lhes eram estranhos, como o norueguês Edvard Grieg (1843--1907), músico menor, mas cujas Danças Norueguesas, certas melodias e o famoso Concerto para Piano (baseado no estilo de Liszt) representam o caráter e a alma do seu país com frescor, candura, uma evidente sedução sentimental e um belo dom de poesia evocadora. Em Portugal, Alfredo Keil (1850-1907) foi o primeiro compositor a tomar a iniciativa de sacudir a influência italiana, profundamente enraizada nesse país, e escrever sobre temas de caráter nacional. Salientaremos a sua ópera Serrana, inspirada no folclore da serra da Estrela. Aipos ele Viana da Mota (1868-1948), grande pianista mas compositor menor, teve também o merecimento de contribuir para a divulgação do folclore nacional, absorvendo-o nas suas obras, de que citaremos, como exemplo, a sua sinfonia Pátria. Considerando o relevo e colorido intrínseco da sua arte popular, os Espanhóis deviam brilhar muito especialmente no panorama das escolas nacionais. Assim, Isaac Albeniz (1860-1909) e Enrique Granados (1868--1916) encontraram instintivamente os meios técnicos adequados à tradução dos caracteres da música popular, do clima e do temperamento espanhóis. Nestes músicos reencontramos, estilizados, o zapateado (martelar de saltos), a longa melopéia do canto flamenco, a imposição dominadora do ritmo, a sensualidade da melodia. As Danças de Albeniz e a sua suite Ibéria (um quadro como A Festa do Corpo de Deus em SeviIha) têm um surpreendente poder evocativo de luz e de cores.
As Goyescas, inspiradas pela obra de Goya, e as Danças de Granados têm um caráter diferente: Granados é mais lânguido, mais rico de harmonias, mais ornamentado. Foi um romântico melancolicamente sensual: morreu aos quarenta e oito anos, no naufrágio do “Sussex”. Manuel de Falia (1876-1964) forma com Albeniz e Granados, de quem foi contemporâneo, o “triunvirato” que revelou ao mundo as riquezas do seu país. Personalidade vincada, grande senhor ascético, ele impõe uma arte toda feita de elegância e de intensidade requintada, de um ardor mais refreado mas igualmente escaldante. A sua expressão do carácter nacional não assenta sobre elementos exteriores, mas sobre uma estilização e uma transposição psicológica que lhe elevam o nível. Áspera, incisiva, animada de um ardor seco, a sua obra ultrapassa o pitoresco e exprime a alma profunda da Espanha. Os bailados O Tricórnio ou O Amor Bruxo, o Retábulo de Mestre Pedro, as Noites nos Jardins de Espanha, para piano e orquestra, o Concerto para Cravo, as admiráveis Sete Canções Populares, verdadeira síntese de uma arte erudita baseada em elementos regionais, são obras que evidenciam a grande qualidade da sua inspiração. Sem avançarmos até à nossa época, em que numerosos compositores exploram o domínio cativante do folclore, lembremo-nos de Liszt, que, nas suas Rapsódias Húngaras utiliza profeticamente os cantos e ritmos populares numa estilização clássica. Neste aspecto é o precursor de Bartok (como o próprio reconheceu). Finalmente, Sibelius (1865-1957) é o grande músico nacional da Finlândia, de que foi o poeta, sem recorrer exatamente a elementos populares, mas evocando a alma do seu povo, os vastos e pacíficos horizontes do país dos mil lagos, a contemplação que estes suscitam e inúmeras coisas familiares aos Fineses. Poder-se-ia facilmente renunciar à Valsa Triste, que se tornou tão famosa, em proveito das Sete Sinfonias, praticamente desconhecidas nos países latinos, mas familiares aos Anglo-Saxões e aos Alemães, pois correspondem ao gosto musical destes povos pelo mistério e o irracional. O público latino prefere uma dialética, uma forma, um dinamismo; quando a música plana, contempla, ou simplesmente impõe uma atmosfera, corre o risco de provocar impaciência. Assim se explica por que certas obras extremamente belas têm dificuldade em passar de um público ao outro.
Esta “descoberta do ouro”, esta súbita revelação de um tesouro popular, iria influenciar toda a produção musical; não há um único país onde este tema não tenha suscitado interesse. Doravante associada à música
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