História Das Religiões - Origem e Desenvolvimento Da Religião - Tácito Da Gama Leite Filho
May 6, 2017 | Author: anon_919328591 | Category: N/A
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ISTÓRIA DAS RELIGIÕE Q V O IU M E
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Desenvolvim ento da R e l ig iã o A RELIGIOSIDADE PRIMITIVA
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Tácito da gama leite filho
/Todos os direitos reservados. Copyright © 1993 da Junta de Educ Religiosa e Publicações da CBB.
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Leite Filho, Tácito da Gama Origem edesenvolvimento da religião: a reli giosidade primitiva / Tácito da Gama Leite Filho. — Rio de Janeiro: JUERP, 1993 132 p.; 20,5cm (História das Religiões, 1) Inclui bibliografias 1. História das Religiões 2. Religião — história 3. Religião primitiva — mitos 4. Religião primitiva — rituais I. Série II. Titulo CDD 291.09 CDU 291.11
Capa: Nilcéa Pinheiro Código para pedidos: 245016 Junta de Educação Religiosa e Publicações da Convenção Batista Brasileira Caixa Postal 320 — CEP: 20001-970 Rua Silva Vale, 781 — Cavalcânti — CEP: 21370-360 Rio de Janeiro, RJ, Brasil 3.000/1993 Impresso em gráficas próprias.
APRESENTAÇÃO
Depois da boa aceitação de Seitas do Nosso Tempo em seus 7 volumes, eis que, do mesmo autor, temos o prazer de apresentar História das Religiões, em 6 volumes. História das Religiões surgiu a partir da constatação de que algumas obras existentes, quer coleções ou compêndios avulsos, parecem destinarse ao público acadêmico e estudiosos afeitos, além de em muitos casos serem de difícil acesso ao grande público. Nesta coleção, o autor soube estabelecer como seu referencial todos os interessados no assunto, para isso utilizando-se de uma comunicação clara, apesar da complexidade do tema. O método utilizado difere do de alguns autores, quando estabelecem uma comparação entre o cristianismo e outras religiões, embora isso não deixe, indiretamente, de ser feito. O autor vai mais adiante: dentro de uma perspectiva teológico-histórica, visa a apresentar um estudo do fenô meno da religiosidade, com destaque para as principais características das várias religiões étnicas, tendo o cuidado em realçar suas boas quali dades, suas contribuições para a humanidade, ratificar os seus princípios que são verdadeiros e, em contrapartida, também acentuar-lhes os aspectos negativos. Enquanto nos cinco primeiros volumes o autor faz a abordagem através do método fenomenológico, isto é, o estudo das religiões em si, o último volume abordará, da mesma forma, porém criticamente, todas as religiões. Assim, o pesquisador ou leitor deverá atentar para esse volume complementar, o que lhe permitirá formular suas conclusões sobre todo o conjunto da obra. É grande a nossa expectativa como editores, e esperamos que o prezado leitor tenha, através dos livros desta coleção, um instrumental valioso para conhecer melhor a sua fé e os princípios e doutrinas que defende. Ptt Josemar de Souza Pinto Coordenador do Departamento de Publicações Gerais
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SUMÁRIO INTROD UÇÃO....................................................................................
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s CAPÍTULO I - RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE.................... 1. Definindo a religião.......................................................................... 2. Admitindo a universalidade da religião........................................ 3. Compreendendo as origens do sentimento religioso................... 4. Conhecendo os fatos religiosos...................................................... 5. Classificando as religiões.................................................................
13 13 17 18 23 25
CAPÍTULO II - O SER SUPREM O............................................. 1. O Ser Supremo entre os povos primitivos................................... 2. O Ser Supremo na pluralidade....................................................... 3. A morada do Ser Supremo............................................................. 4. A figura do Ser Supremo................................................................ 5. Os nomes do Ser Supremo.............................................................. 6. Os atributos do Ser Supremo.......................................................... 7. O Ser Supremo e a ordem moral................................................... 8. Veneração ao Ser Supremo.............................................................
31 32 34 35 36 37 38 41 43
CAPÍTULO III - CRENÇAS E MITOS....................................... 1. Crenças básicas.................................................................................. 2. Mitos................................................................ ................................... 3. Mitos e símbolos.............................................................................. 4. Xam ã.................................................................................................. 5. Totemismo......................................................................................... 6. Metempsicose.................................................................................... 7. Animismo........................................................................................... 8. Fetichismo......................................................................................... 9. Magia..................................................................................................
51 53 57 61 64 67 73 74 75 76
CAPÍTULO IV - CULTOS E RITOS........................................... . 1. Ritos e símbolos.............................................. ................................ 2. Rito de iniciação.................................................................. ........... 3. Rito funerário........................................ ...............
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4. 5. 6. 7.
Culto aos antepassados.................................................................... Culto à grande deusa mãe.............................................................. Ritual da caça................................................................................... Outras cerimônias e sacrifícios......................................................
92 95 97 99
CAPÍTULO V - SÍNTESE E AVALIAÇÃO.............................. 1. Principais características da religiosidade primitiva.................. 2. Palavras avaliatórias......................................................................
107 109 116
CONCLUSÃO...................................................................................
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INTRODUÇÃO GERAL
Tema algum é tão relevante para o homem de todos os tempos como suas relações com a divindade, que são a base de todas as religiões. Existe no homem um sentimento religioso inato, que se faz presente quando o homem fica indefeso diante dos fenômenos que não compreende e procura a causa última desses fenômenos. O homem procura uma resposta para a origem da vida, para a fome, para a miséria, o medo, a dor, a enfermidade e a morte. Desta busca faz parte a religião, intimamente ligada à vida em todos os seus aspectos. Desde os períodos mais primitivos à modernidade, o ser humano tem revelado suas crenças religiosas, tem desenvolvido seus cultos e rituais religiosos e tem relacionado sua religiosidade com sua vida social, econô mica, cultural, ética e pessoal. “A História das Religiões é a história da humanidade inteira, a história da alma humana desde suas origens, no trabalho incessante das suas aspirações as mais sagradas e das suas neces sidades as mais profundas com a variedade infinita das instituições, das crenças e das práticas pelas quais, através do tempo e do espaço, ela tem procurado satisfazê-la.”1 Se a história das religiões abrange a humanidade inteira e parti cularmente a alma humana, as religiões não podem ser estudadas sob um único aspecto. Enfatizam-se os seguintes: psicológico, no qual se leva em conta a relação da religião com o sentimento, o pensamento e a vontade do homem; sociológico, em que são enfatizados os aspectos sociais, isto é, como a religião pode melhorar a vida coletiva em cooperação com a divindade; literário, em que a religião é estudada como fonte de inspi ração da arte ou da apreciação do que é belo em literatura, música, escultura e arquitetura — o ser supremo é o ideal do belo; a religião pode ser estudada através de seus livros sagrados; ético, que enfatiza o ideal dc conduta como bem supremo para o homem; pessoal, enfatizando os meios que a religião oferece ao indivíduo para sua salvação em coope ração com a divindade; comparativo, que enfatiza as semelhanças e diferenças das religiões, quanto às suas crenças e seus efeitos sobre a vida humana. 9
Além desses aspectos acima mencionados, as religiões podem ser estudadas sob três pontos de vista: teológico — próprio de cada uma; filosófico — em que se procuram as afinidades da razão e da fé, as condições hum anas da gênese e do desenvolvimento da religião, julga-se a respeito do grau de verdade ou desenvolvimento da religião ou falsi dade de um a religião; histórico — em que, prescindindo de toda questão de princípio, estudam-se os fatos, documentos e monumentos oferecidos pelas religiões, coordenam-se e se expõem, oferecendo assim materiais para uma síntese posterior.2 Do ponto de vista histórico, cada religião é estudada ao lado de outros fatores da história, como: geografia, economia, política, cultura, literatura etc. As ênfases mencionadas e os pontos de vista serão todos abordados, de uma forma ou de outra, nesta coleção sobre a História das Religiões. Para se estudar as religiões, são utilizados diversos métodos, tais como: 1. Contato direto — É o método ideal para se conhecer a religio sidade do povo. Mircea Eliade trabalhou e ensinou em várias partes do mundo; é o mais conhecido e influente representante do estudo da história das religiões. No caso das religiões desaparecidas, esse método é impos sível. Outros estudiosos, mencionados durante esse trabalho, utilizaram esse método, mormente nos grupos primitivos ainda existentes em nossos dias. 2. Pesquisa histórica — Esse método objetiva traçar a história do desenvolvimento de cada religião. Tudo o que nela existe tem a ver com sua história. Esse método está sendo por nós utilizado, quando empre endemos uma vasta pesquisa bibliográfica. 3. Contexto universal — Esse método leva em conta cada religião inserida no contexto universal. É aí que aparece seu significado. Estabelece-se o lugar de cada religião na história. Seu representante é Toynbee, historiador e filósofo inglês que, embora agnóstico quanto à religião, reconheceu sua influência sobre as civilizações, particularmente a do cristianismo sobre o m undo ocidental. Quando se realiza um estudo das religiões, podemos desenvolver determinadas atitudes. Vamos conhecê-las e avaliar qual será a nossa atitude em relação a cada grupo religioso: , 1. Condenar todas as religiões como superstições, beatismo ou ignorância. H á quem defina a religião como a soma total de escrúpulos que impedem o livre exercicio de nossas faculdades. 2. Condenar todas as religiões não-cristãs, reconhecendo o valor do cristianismo; sendo assim, admite-se que os sistemas falsos não podem ser considerados como passos progressivos para a verdade. 10
3. Condenar todas as religiões não-cristãs, mas reconhecer que o cristianismo está relacionado com o judaísmo e que a Bíblia relata o desenvolvimento religioso do homem como um todo. 4. Condenar todas as religiões, exceto a própria, seja qual for. 5. Afirmar que todas as religiões contêm alguma verdade, suficiente para seus próprios adeptos. Esta é a posição dos teosofistas e de todos que não crêem na propaganda religiosa. *' 6. Afirmar que todas as religiões contêm alguma verdade, mas não igualmente. Este é o ponto de vista moderno, que procura aprender de todas alguma coisa boa. Nossa atitude, em particular, nesse estudo das religiões, é sem preconceitos, mas sim uma atitude de mente aberta. É preciso que haja precisão científica, isto é, colher todos os fatos possíveis antes de formar generalizações. A apreciação de cada religiosidade deve ser imparcial, isto é, averiguar a satisfação que cada religião oferece aos seus seguidores. É preciso averiguar a importância que cada religião atribui às atividades e ideais humanos. É preciso procurar a unidade que existe entre as várias religiões, isto é, nos seus valores intrínsecos. É preciso aceitar a verdade onde se encontra e mostrar reverência para com as aspirações espirituais dos homens e a verdade de Deus. É preciso assumir uma atitude cristã e examinar tudo, guardando o que é bom. O cristianismo pode ser apre ciado à luz das outras religiões, é outro fato a ser apreciado num estudo como esse. Esta coleção sobre a História das Religiões estará baseada essen cialm ente em obras sérias e bem fundam entadas, cujos autores empreenderam vastas e profundas pesquisas bibliográficas ou conheceram a religião em contato direto com seus adeptos. Será uma abordagem teológico-histórica, visando apresentar as prin cipais características de cada religião, com base em documentos e monumentos, e interpretar esses aspectos, levando-se em conta a época e as circunstâncias geográficas, econômicas, políticas e outras, além do ponto de vista teológico. O objetivo não é mostrar os erros das religiões comparados às verdades do cristianismo, mas levar ao conhecimento de todos os seus aspectos mais relevantes. Parte-se do princípio de que todas as religiões contêm alguma verdade. Reconhecemos o valor do cristianismo; reconhecemos que a verdade está em Jesus Cristo (Jo 8.32); reconhecemos a necessidade de apregoar essa verdade a todos os povos que estão à procura de uma solução para seu problema religioso. Entretanto, não podemos considerar todas 11
as religiões como falsas, sem alguns princípios verdadeiros, a partir dos quais se pode chegar à grande Verdade que é Jesus Cristo. Para se chegar a uma avaliação correta de cada religião, é preciso conhecê-la sob todos os ângulos. É por isso que a presente série apresenta: Vol. I — Origem e Desenvolvimento da Religião Vol. II — As Religiões Antigas Vol. III — As Religiões Vivas, 1 Vol. IV — As Religiões Vivas, 2 Vol. V — As Religiões Vivas, 3 Vol. VI — Fenomenologia da Religião e Pequena História das Here sias Há uma grande variedade de religiões, e obter-se-ão conhecimentos extraordinários e muito importantes para alargar a visão religiosa de todos quantos entrarem em contato com esse mundo maravilhoso da religio sidade humana!
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Citado por STELA, Jorge Bertolaso, Introdução à história das religiões, p. 69. 2. STELLA, Jorge Bertolaso, op. cit., p. 70, 71.
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CAPÍTULO I RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE
As diversas maneiras de abordar a religião dependem de quem a esteja estudando. O antropólogo descreve as crenças e práticas religiosas como encontradas no seio das comunidades vivas; para ele, a religião ajuda a unir as pessoas porque proporciona uma experiência e uma expli cação da vida em comum. O sociólogo subtrai a dimensão social das idéias religiosas; para ele, a religião oferece a maneira adequada de ver o mundo e dá ao homem sentido e finalidade. O historiador descreve a religião em termos de sucesso, como produto de crenças. O teólogo se ocupa das crenças, avaliando as verdadeiras e as falsas, bem como a resposta das pessoas a elas.1 Para se compreender o sentimento religioso da humanidade, é preciso focalizá-lo sob os mais diversos ângulos possíveis, pois desde os tempos mais primitivos a religiosidade esteve vinculada aos costumes, aos relacionamentos e ao sucesso das pessoas. Neste capítulo vamos definir a religião e falar de sua universali dade, suas origens, além de classificar as religiões e abordar os fatos religiosos. 1. D E FIN IN D O A RELIGIÃO O termo religião pode referir-se à natureza religiosa do homem, e seu estudo é mais psicológico, para ser feito em conexão com a apologética (discurso em defesa de determinado ponto de vista) e com a filosofia da religião (reflexão em torno da experiência do sagrado). O termo religiões diz respeito aos sistemas religiosos, com seus prin cípios de interpretação, seus cultos, ritos e locais sagrados. Quando se define a religião, pensa-se nesses dois aspectos do termo, dependendo do estudioso que a está abordando. Subjetivamente, a religião é conhecimento e sentimento de depen dência de um ou vários poderes sobrenaturais, com quem o homem entra 13
em m útua relação. Objetivamente, a religião é o conjunto de atos exte riores através dos quais a religião subjetiva se expressa e manifesta: oração, sacrifício, sacramentos, liturgia, preceitos morais etc.2 Sendo a religião um sentimento subjetivo que se expressa através de atos exteriores, ela está relacionada à psicologia religiosa, que se ocupa dos processos psíquicos religiosos e com as forças da religião. O histo riador forçosamente precisa levar em conta esta interioridade, ainda que não tenha um conhecimento psíquico formal. O historiador das religiões não pode permitir que sua concepção do mundo, sua filosofia e seus juízos de verdade e valor o influenciem quanto aos fatos que observa nas religiões; ele precisa efetuar uma apre sentação objetiva dos fatos religiosos, ainda que leve em conta a interioridade do sentimento religioso nas pessoas que a praticam. Dadas essas explicações iniciais, vejamos como os diversos estu diosos definiram a religião. J. M. Yinger, por exemplo, definiu a religião como “sistema de crenças e práticas por meio das quais um grupo de pessoas luta com os problemas básicos da vida hum ana”. As definições de religião são muito variadas e inúmeras; cada qual reflete o ponto de vista particular daquele que a define. “Algumas defi nições enfatizam o aspecto emocional da religião; outras, o conteúdo ético; outras, o aspecto da adoração, e outras, algumas outras caracte rísticas”.3 E. D. Soper afirmou: “A religião consiste de um certo número de elementos, ela faz demandas sobre a vida total do indivíduo: intelecto, emoções, vontade; a religião é individual e social; a religião é adoração, mas é mais do que adoração; a religião representa todos os valores que dão significado e sentido à vida hum ana. Mas em sua raiz a religião é sempre um a relação consciente dos seres humanos com Deus ou com poderes superiores, qualquer que seja a maneira em que estes são concebidos.“4 Para Copeland, essa definição de Soper é mais ideal do que real, isto é, serve para o mundo das idéias, mas não apresenta toda a realidade, porque nem todas as religiões representam todos os valores que dão signi ficado e sentido à vida humana. / Um outro estudioso da religião, William Newton Clarke, assim a definiu: “A religião é a vida do homem em suas relações super-humanas.” John B. Noss assim se expressou: “O sentimento básico de toda religião é a dependência do homem de algo que está fora de si mesmo.”5 Eles dão uma conotação transcendental à religiosidade do homem, isto é, não a definem em termos do relacionamento do homem com o próximo, mas com o Ser Supremo ou seres supremos. 14
Na definição de religião, como vimos, podem ser enfatizados diversos aspectos, como apontaremos a seguir:6 1. Intelecto — Max Müller: “Religião é uma faculdade ou dispo sição mental que habilita o homem a aprender o infinito sob diferentes nomes e costumes.” 2. Moral — Kant: “Religião é o reconhecimento de todos os deveres como ordens divinas. Religião é a moral impulsionada pela emoção.” 3. Emoção — Schleiermacher: “A essência da religião é o senti mento de absoluta dependência de Deus.” 4. Culto — Allan Menzies: “Religião é o culto prestado a poderes mais altos por necessidade.” Martins Terra: “A religião identifica-se com o culto pres tado ao Sagrado, concebido geralmente com o um Ser transcendente ou então como um Absoluto de algum modo pessoal.”7 5. Realização própria — Albert Reville: “Religião repousa na neces sidade do homem realizar uma harmonia entre o seu destino e as forças contrárias que ele encontra no mundo.” 6. Valores individuais — William James: “Religião são os senti mentos, atos e experiências do homem individual, na solidão, à medida que está consciente de seu relacionamento com o divino.” Aqui se enfatiza o aspecto psicológico, em que a “religião é uma atitude de reação do homem perante a contingência e a relatividade do mundo, que o leva a refugiar-se em um Abso luto transcendente ao mundo.” 7. Valores sociais — Ames: “Religião é a consciência dos supremos valores sociais.” Sociologicamente, “a religião identifica-se com as estru turas criadas pela sociedade: sacerdócio hierarquizado, cultos formalizados, doutrinas dogmatizadas”. 8. Processo de idealização — Stratton: “Religião é a apreciação do mundo invisível ou uma aproximação desse mundo invisível ou ao que parece ser melhor e maior.” 9. Idéia completa — W. A. Brown: “Religião é a vida do homem nas suas relações super-humanas, do poder do qual sente estar dependendo, diante do qual é responsável e com o qual pode comungar.” É no sentido de contato com o sobrenatural que se define etimologicamente a palavra religião. Nas línguas portuguesa, italiana, francesa
e alemã, o termo vem do latim religio e religiónis, que significa fidelidade ao dever, lealdade, consciência do dever, escrúpulo religioso, práticas reli giosas, religião. Cícero (106-43 a.C.) ligou esse termo ao verbo em latim relegere, que quer dizer retomar o que tinha sido abandonado, tornar a revistar, reler, considerar cuidadosamente. Agostinho, por sua vez, iden tificou o termo religio com o termo religare, que significa ligar, apertar, atar. Os estudiosos modernos preferem a segunda opção, porque o termo religio muitas vezes é utilizado como obligatio, isto é, ação de prender-se, de se ligar, de tomar a si uma obrigação. O sentido do termo, como utilizado por Agostinho, denota a depen dência do homem, como diz Turchi, “de um ou mais poderes superiores aos quais se sente ligado e a quem tributa atos de cultos individuais e coletivos”.8 Etimologicamente, pois, o termo religião pode ser compreendido como uma ligação ao Ser Supremo e também como uma obrigação a que o ser humano se submete. “Significa a vinculação consciente do homem à sua origem primeira e fim último, trazida corretamente na vivência de uma determinada crença e um comportamento moral.”9 A religião pode ser considerada como um meio para unir as coisas, distinto de outros meios. Nas diversas definições da religião são expressos os elementos que a constituem, ou seja:10 1. A crença nos poderes superiores, que, segundo os vários graus de religião, podem ser um ou mais, pessoais ou impessoais. 2. O vínculo de dependência (de qualquer gênero e de qualquer sentimento provocado) que liga os homens aos poderes supe riores. 3. O modo prático com que esse liame se explica (qualquer que seja o gênero e a elevação dos atos) e que constitui o conjunto de ritos e práticas, mediante os quais a religião se concretiza nos agrupamentos humanos e exprime os seus sentimentos e necessidades. Uma religião é reconhecida na sociedade que apresenta, em meio à sua cultura, um grupo de crenças, variando o conteúdo e a natureza da experiência religiosa.11 Toda religião reconhece o sagrado, segundo definição de Rudolf Otto, e apresenta o homem dependendo de poderes sobrenaturais ou supramundanos, segundo definição de Schleiermacher. Observamos que, em todas as definições de religião, descreve-se o contato do homem com o sobrenatural. Dependendo desse contato e do conceito do sobrenatural, o ser hum ano vai desenvolver suas atitudes religiosas e refleti-las na comunidade em que vive. 16
Além do contato com o sobrenatural, “nenhum a explicação da reli gião pode ser completa se não se considerarem seus aspectos sociológicos”. A religião é preeminentemente social e é encontrada universalmente em todas as sociedades humanas de que há registro.12 Quando definimos a religião, não podemos levar em conta apenas determinado aspecto, mas todos eles: o emocional, o ritual, o ético e outros. Somente podemos julgá-la quando ela é expressa através dos atos reli giosos e não podemos avaliar a força de sua influência na vida dos individuos e da comunidade. Entretanto, uma coisa é certa: a religião é universal, encontrada em todas as sociedades, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Sobre isso o leitor tomará conhecimento no próximo tópico. 2. ADM ITINDO A UNIVERSALIDADE DA RELIGIÃO O homem é a única criatura no universo que possui uma consci ência religiosa. O sentimento religioso, além de ser próprio do ser humano, é um sentimento universal, isto é, está presente em todas as civilizações de todos os tempos e de todos lugares. N ão se pode afirmar que todos os individuos sejam religiosos, mas em todos os grupos humanos percebe-se a religiosidade, desde os tempos primitivos até à modernidade. A religião tem agrupado, desde os primórdios da humanidade, os homens dos clãs, das tribos e depois das cidades, sob a proteção dc um deus particular e local; a religião é “o liame mais forte, mais misterioso e mais indestrutível”.13 O homem nasceu religioso. Quando se usa o termo religião para se referir a um corpo de doutrinas (religião cristã ou religião indiana), pode-se dizer que uma pessoa mudou de religião. Tomando-se a religião como um fenômeno de caráter universal, porém, não se pode afirmar que alguma tribo ou algum povo não possui religião. Sempre existe alguma prática que se enquadra na esfera religião. São de Plutarco de Cheronéa (50-125 d.C.) as palavras: “Viajando poderá encontrar cidades sem muralhas e sem literaturas, sem reis e sem casas, sem riquezas e uso de moedas, desprovidas de teatros e de giná sios. Mas um a cidade sem templos e sem deuses, que não pratique nem orações, nem juramentos, nem adivinhações, nem os sacrifícios para impe trar os bens e deprecar os males, ninguém jamais a viu, nem nunca a verá.”14 O sentido do sagrado é inato no homem e lança luz sobre as quali dades divinas do mundo percebido, dando conteúdo à idéia de Deus. 17
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O homem se sente irresistivelmente atraído para a realidade religiosa, desde o íntimo do seu ser.15 Diz Mireea Eüade que o homem chega a conhecer o sagrado porque se manifesta aos seus olhos, porque se mostra como algo diferente por completo do profano. Desta oposição nascem todos os tipos de religio sidade do passado e do presente. A questão é saber como um ser humano entra em contato com o sagrado, pois a origem da religião está na origem dessa relação: pessoa e sagrado.16 O ser humano, desde pequeno, entra em contato com objetos e pessoas que o rodeiam. Dessa relação ele vai desenvolver determinadas atitudes. Nesse aspecto entra o efeito da educação sobre a pessoa: ela aprende de sua comunidade, que, por sua vez, aperfeiçoa e amplia os conhecimentos que recebeu dos precursores. O ser humano, entretanto, não aprende só através da educação, mas também através de sua própria experiência, de suas conclusões acerca do mundo que o rodeia.17 “A experiência do sagrado constitui um elemento na estrutura da consciência”, afirma Mircea Eliade, um dos maiores historiadores das religiões.18 Se todo homem possui consciência, deduz-se que a expe riência do sagrado, ou seja, a religiosidade, está presente em seu próprio ser, apesar de não revelá-la sempre. Historicamente, parece estar comprovado que o homem de todos os tempos caracterizou-se por um comportamento religioso, incluindo: a. crença em forças, poderes, deuses sobre-humanos; b. sentimento e atitude de impotência perante esses poderes, manifestados através de um ritual; c. desejo de salvação. Apesar de a experiência religiosa ser universal, não existe uma única experiência, mas múltiplas. “Cada fenômeno religioso constitui uma expe riência sui generis suscitada pelo encontro do hom o relígiosus (homem religioso) com o sagrado. Cada religião favorece um ou vários tipos de experiência religiosa e oculta (...)”19 Desde os primórdios da humanidade é comprovado, conforme nos relata a história auxiliada pela arqueologia, o sentimento religioso do homem. H á várias explicações para essa origem, como será visto a seguir. 3. COMPREENDENDO AS ORIGENS DO SENTIMENTO RELIGIOSO Foi na segunda metade do século 19 que se apoderou de muitos espíritos a obsessão pelas origens (das espécies, da vida na Terra etc), especialmente a partir de Darwin. No campo da etnologia (estudo das 18
culturas primitivas), começam as grandes disputas sobre a origem da religião. O sentimento de religiosidade está ligado à própria atividade do homem. Para tomar conhecimento da origem do sentimento religioso, os estudiosos se baseiam em induções, comparações e hipóteses. Onde aparece a organização de um clã, com a manifestação de um rito sepul cral, aí encontramos o testemunho do sentimento religioso. Pbdemos afirmar que a religião surgiu com o homem. Os estudiosos, como dissemos, baseiam-se em teorias ou hipóteses. Certas teorias têm como base a teoria da evolução de Charles Darwin. Elas afirmam que, enquanto o ser não se tornou humano, não teve religião ou sua religião era muito simples. Depois de um longo processo, chegou ao monoteísmo, isto é, à crença num só Deus. Vamos ver que essas teorias não estão com a razão, como a própria teoria de Darwin não foi comprovada. A primeira teoria acerca das origens da religião foi a mitologia da natureza, principalmente a mitologia astral, isto é, a religião começou quando o homem começou a reverenciar as forças da natureza, adorar os astros. Esta explicação antigamente era simbólica. Outra teoria afirmava que a origem da religiosidade estava nas emoções humanas, como o medo dos espíritos. E. B. Tylor (1832-1917) acreditava que a história das religiões tenha começado com o animismo. Foi a teoria que primeiro recebeu uma boa fundamentação e conseguiu impressionar o mundo científico até os começos do século 20. A partir de conclusões erradas, da observação de fenômenos como sonhos, transes, visões, Tylor achava que o homem primitivo dava alma ao sol, às estrelas, aos rios, ventos e nuvens e lhes atribuía funções especiais. Depois, segundo deduções de Tylor, o homem primitivo teria atribuído aos animais e plantas uma realidade semelhante à sua, come çando a venerar os espíritos dos mortos. Desses seres ou espíritos surgiria mais tarde um politeísmo, isto é, crença em vários deuses. Desse politeísmo teria o homem passado ao monoteísmo.20 Herbert Spencer (1820-1903) buscou a origem da religião no culto aos antepassados, tornando-se os mortos ilustres em deuses; tendo desfru tado do respeito e da reverência em vida, quando morreram provavelmente foram venerados até que se desenvolvesse um culto estabelecido com a noção de sagrado. A teoria de Spencer é chamada de manística, baseada no mana (poder inato na pessoa, que será estudado no capítulo sobre crenças e mitos), e prevaleceu entre os filósofos e sociólogos durante muito tempo. Esse naturalismo não deixa abertura ao sobre natural. 19
O mana é uma “força quase inconsciente, em parte material, condensada erp certos seres, lugares ou objetos, que se poderia captar graças a certós ritos e que constituiria a fonte da energia humana: o seu equivalente encontra-se sem dúvida no ka egípcio e no brahman hindu”.21 R. R. Marett defendeu que, antes da crença nas almas, existia uma “emoção” de terror e admiração perante o mana, teoria que ainda hoje tem adeptos apesar da crítica.22 Robertson Smith (1855) explicou a origem da religião com o totemismo (também será estudado no capítulo sobre crenças e mitos), que fala da descendência ou parentesco com determinados animais e do temor cultural aos mesmos. Em 1890, J. G. Frazer, num amplo trabalho em conjunto, estabeleceu que o totemismo não é religião nem fonte dela, e, sim, um sistema social com sua correspondente ideologia.23 J. G. Frazer afirmava que a magia era anterior ao animísmo. Freud, mais tarde, seguiu a Frazer e a Durkheim, afirmando que a religião possui sintomas de uma neurose coletiva. A transcendência da magia foi percebida de maneira mais pro funda e ampla pelo americano H. J. King (1892), que a assinalou como fonte da religião. Outros estudiosos da religião desenvolveram o pensamento de uma mistura de religião e magia como a primeira forma religiosa. As teorias evolucionistas, enfim, vêem o sentimento religioso desenvolvendo-se gradativamente a partir de um espírito primitivo de adoração à natureza, para o politeísmo e afinal para o monoteísmo. Se a teoria da evolução de Darwin veio trazer confusão acer ca das origens do sentimento religioso, temos a convicção de que o homem não teve origem num ser inferior, e isso é comprovado por diversas diferenças entre o homem e o animal, como apontadas por V. Marcozzi:24 1. A razão — O homem possui a razão e conhece causa e efeito, desenvolvendo-se em civilizações. 2. A moral — É própria do ser humano e está relacionada à religião. Todos os povos possuem um padrão moral. O animal só possui instinto. 3. O sentimento religioso — O homem nasceu religioso; sua reli giosidade é um fenômeno universal. O homem tem alma imortal; o animal só possui vida física. 4. A palavra — Somente o ser hum ano possui a palavra; o animal grita. A palavra é o elemento essencial do juízo e do raciocínio. O grito é uma interjeição. 20
Para derrotar todas as teorias mencionadas até aqui, surgiu um novo pensamento acerca da origem da religião: o monoteísmo primitivo. Quem defende esse pensamento afirma que existem evidências, em tribos contemporâneas que vivem em estado primitivo de cultura, da crença num alto Deus, criador do universo. Originalmente, o homem cria num Deus e, por causa do pecado, sua crença degenerou em politeísmo e outras ' crenças animistas. “(...) Do ponto de vista histórico e cientifico, ninguém pode provar como originou-se a religião”.25 Observa-se que, embora não se possa comprovar cientificamente a origem da religião, “as atividades religiosas de povos tribais de hoje nos ajudam a interpretar as evidências dos tempos pré-históricos (...)”.26 Dentre os estudiosos, encontrava-se Andrew Lang, polígrafo fran cês, que demonstrou, no final do século 19, que as teorias evolucionistas acerca das origens do sentimento religioso estavam incorretas. Chamaram sua atenção determinadas formas de Deus Supremo, exis tentes em povos muitos primitivos. Esse Ser Supremo era reconhecido e reverenciado entre os aborígines como criador, promulgador e sustentador da ordem moral; era um Ser sobremodo bondoso, como um pai. Esse Ser Supremo reconhecido entre povos muito primitivos co mo os australianos não se confundia com os antepassados, com os es píritos ou com deuses particulares elevados. O Ser Supremo encontrado entre os aborígines australianos tam bém instituía os ritos de iniciação para inculcar na sociedade a con duta correta; suas normas eram transmitidas de geração a geração em assembléias solenes presididas pelo próprio Deus Superior.27 W. Schmidt, já no século 20, seguindo o pensamento de Lang, reafirmou o monoteísmo primitivo. Ao estudar alguns grupos humanos primitivos, pôde verificar que acreditavam num Deus criador, eterno, vivendo no céu. O homem primitivo foi monoteísta e as outras formas religiosas derivaram daquela por decadência.28 Comprovou-se que “a crença em deuses superiores é um marco genuíno e característico da religião primitiva incontaminada”29. Esses deuses superiores, ou Ser Supremo, estão em plano superior, à parte dos outros seres e com maior poder. Um povo da África Oriental con sidera Deus como um espírito puro que está em todas as partes, quer dizer, é transcendente e imanente. Os estudiosos perceberam, em povos primitivos, a crença num Deus que, embora invisível, vê e ouve tudo o que acontece, i sensível às súplicas daqueles que o invocam e castiga as más ações, As conse21
qüências das m á s ações podem ser aplacadas mediante a contrição, oração e sacrifíçio.30 Além de )Lang, outros estudiosos têm chegado às mesmas conclusões, e mêsmo que Lang tenha sofrido uma forte oposição seguida de um longo silêncio, em seus dias, a sua concepção de um Deus sublime primitivo é sobremaneira im portante no contexto da religiosidade universal.31 Dos testemunhos arqueológicos e antropológicos, pode-se concluir que o homem primitivo sentia necessidade “de estabelecer relações amis tosas e benéficas com a Realidade viva que governava os fenômenos misteriosos que o rodeavam”.32 Podemos afirmar que o homem primitivo possuía a idéia de uma Providência divina superior a ele e dona de seu destino. Em reação a esse Ser Superior, o homem começou a praticar rituais, a fim de esta belecer relações eficazes com a Fonte de toda bondade e beneficência. Além disso, contava com uma vida além-túmulo. Do começo primitivo vai surgindo o mito e o ritual, a fé e a prática.33 Esse tema será abor dado nos próximos capítulos. Assim, concluímos que as origens do sentimento religioso não estão no animismo, nem no manismo, nem na magia, nem no totemismo, nem no culto aos antepassados, formas degeneradas de religiosidade, mas na crença num Deus superior, todo-poderoso, segundo nos afirmam as Escri turas Sagradas — a Bíblia. O monoteísmo original explica muitos fatos históricos que não se encaixam na hipótese da evolução da religião.34 O m undo antigo de 1500 a.C. revela o homem oferecendo sacrifícios a Deus. A literatura mais antiga, isto é, os vedas sânscritos, descrevem tribos nômades, cujos chefes ofereciam sacrifícios tal qual Abraão da Bíblia. Os vedas são hinos cantados pelos sacerdotes, enquanto a fumaça do sacrifício subia a Deus. Davam-lhe diferentes nomes, mas adoravam-no como o supremo soberano do universo. Quando os nomes de Deus se personificaram, come çaram a se distinguir vários deuses e surgiu o politeísmo. A literatura védica de 1000 a.C. apresenta-se como politeísta, mas a primitiva indica o monoteísmo.35 Como cristãos, cremos que a origem da religião faz parte da própria constituição do homem. O homem é religioso porque Deus o criou para que tivesse comunhão com Ele. A consciência religiosa faz parte da imagem divina no homem e consegue apreender a reve lação de Deus na natureza, na sociedade e no interior de cada ser humano. Entretanto, o pecado alterou essa consciência religiosa. Pode -se afirmar, portanto, que as diversas religiões são o resultado da reve 22
lação divina mesclada com a perversidade hum ana (Rm 1.18-25). Assim, podemos encontrar num a religião, a mais primitiva, elementos verda deiros e falsos. Num estudo como esse, ainda é importante conhecer os fatos reli giosos, isto é, os elementos que caracterizam uma religião, como vamos abordar a seguir. 4. CO N H EC EN D O OS FATOS RELIG IO SO S A fenomenologia religiosa toma por base o fato religioso e se situa no campo da investigação histórica. O fato religioso se traduz por atitudes e costumes característicos, através dos quais podemos observar o acontecimento religioso e seu significado. Para se estudar o fato reli gioso, é necessário o auxílio das ciências auxiliares como as pesquisas dos etnólogos, sociólogos, psicólogos, filósofos e teólogos. A fenomeno logia religiosa pretende estudar e entender o fenômeno religioso no seu modo próprio de ser.36 Os fatos religiosos estão basicamente ocupando nossa atenção no presente volume. Nos próximos capítulos estaremos apresentando O Ser Supremo, as Crenças e Mitos, os Cultos e Ritos e uma Avaliação, foca lizando a religiosidade primitiva. Quando tratamos de fatos religiosos, precisamos nos lembrar que eles se constituem numa vasta série, da qual destacamos os relacionados abaixo:37 Objeto sagrado: céu, terra, estrelas, sol, lua, raio, trovão, vento, montanha, água, fogo, animal, árvores, luz, trevas etc. Lugar sagrado: céu (habitação dos deuses), reinos subterrâneos (habitação dos espíritos maus), cavernas, bosques, montanhas etc. Tempo sagrado: idades do mundo, celebrações cosmogônieas (relacionadas à origem e evolução do universo), festas da natureza, Ritual sagrado: purificatório, propiciatório, de salvação por meio de mistérios. Palavra sagrada: oráculos, profecias, mitos, lendas, revelações em dogmas e leis morais, oração etc. Escritura sagrada: fórmulas mágicas, encantaçõei, livros canôni cos (divinos e infalíveis) etc. Homem sagrado: sacerdote, feiticeiro, profeta, mestre, monge, místico, mártir etc. Sociedade sagrada: matrimônio, clâ, grupo, tribo, império, ordem religiosa. Observando-se esta lista de fatos relacionados às religiões, con clui-se que cada religião possuí seus objetos sagrados, seu lugar sagrado, 23
seu tempo ^agrado, seus rituais, sua palavra de autoridade, seus escritos sagrados, áeus homens sagrados e sua sociedade sagrada. Nesta série sobre as religiões e sua história, vamos detectar, descobrir os fatos religiosos de cada uma e como esses fatos influenciam ou atuam sobre a vida de seus seguidores. A experiência do sagrado está nos elementos constitutivos da religião, cheios de significado e sentido. À medida que o ser humano se envolve com esses elementos religiosos, vai absorvendo seu signi ficado e vai vivendo conforme sua experiência com o sagrado. Falar da experiência religiosa, experiência com o sagrado, sem referir-se aos símbolos, mitos e ritos, é deixar o trabalho incompleto. Julien Ries fala da importância desses elementos num estudo sobre a religiosidade hum ana:38 O símbolo é muito importante na vida do homem religioso, pois fala de certas modalidades não evidentes por si mesmas. O pensamento simbólico vem antes da linguagem e faz parte da substância da vida reli giosa. O homo wligiosus é um hom o symbolicus, isto é, o homem religioso é um homem simbólico. A experiência do mito também é uma experiência do sagrado, pois coloca o homem em contato com o sobrenatural. O mito é como uma história verdadeira, sagrada e exemplar que oferece ao homem reli gioso modelos para sua conduta. O modelo apresentado no mito é realizado pelo homem religioso através do rito ou ritual. Os rituais conferem ao homem religioso uma dimensão de realidade. Os símbolos, mitos e ritos permitem que o sagrado exerça sua função mediadora na vida do homem religioso, que procura o contato com a fonte do sagrado, que é uma realidade transcendente, isto é, além do que podemos ver e ouvir, além do material e humano. Todas as religiões conhecidas apresentam determinadas caracterís ticas que as identificam. Podemos defini-las em três conjuntos, como José Huby:39 1) Um corpo de doutrinas ou crenças quanto à origem e destino do mundo em geral ou do grupo em particular. 2) Um conjunto de regras de conduta em nome de um Poder 2) Um conjunto de regras de conduta em nome de um Poder sobre-humano. 3) Um sistema de ritos e práticas, autorizados ou impostos, cujo objetivo é regular as relações humanas com o transcendental. Só haverá religião onde está presente o Ser transcendente (ou seres transcendentes) que inspira a oração, o rito e o sacrifício. “A religião 24
definir-se-á, deste modo, pelo conjunto das crenças, dos sentimentos, das regras e dos ritos, individuais ou coletivos, que visam [ou: impostos por] um Poder que o homem atualmente considera supremo, do qual, por conseguinte, depende, com o qual pode entrar [ou melhor: entrou] em relações pessoais. Mais brevemente, a religião é a conversação do ho mem, individual e social, com Deus.”40 Em cada religião estarão presentes três elementos essenciais: o dogma, a moral e o culto, dos quais somente o último possui efeitos expressivos, sensíveis e duradouros porque se liga geralmente a objetos materiais e a gestos do corpo, e porque efetua a comunhão do ser hu mano com o ser divino. Os fatos religiosos, ou seja, os elementos constitutivos da religião, vão conceituá-la. Nessa conceituação leva-se em conta o contato do ser humano com o sobrenatural e também os efeitos desse contato em relação a si mesmo e em relação aos outros seres humanos. Admite-se, igualmente, sua universalidade, pois está presente em todos os povos, de todos os tempos. Suas origens estão com a origem da humanidade, já como crença num Ser Supremo, transcendente, do qual o homem depende e a quem cultua e reverencia. A partir dessa visão geral e de outros aspectos, os estudiosos classificaram as religiões, como vere mos agora. 5. CLASSIFICANDO AS RELIGIÕES Não se pode afirmar quantas são as religiões do mundo e existem diversas maneiras de classificá-las. Do ponto de vista tipológico, que é uma classificação abstrata, as religiões podem ser divididas em dois grandes grupos: nacionais e supernacionais.41 As nacionais limitam-se a uma determinada nação e não têm a tendência expansionista, isto é, de fazer adeptos, de atingir outras na ções. O seu objetivo é o bem-estar da nação mais do que a salvação da pessoa. Enfatizam-se as práticas culturais mais do que a fé do indiví duo. Seus livros são de conteúdo ritual e mitológico e não doutrinário ou de valor canônico. São as religiões antigas: grega, romana, egípcia, babilônica, hitita, indiana, persa, arábica etc. As religiões nacionais vi vas são o confucionismo chinês e o xintoísmo japonês. As religiões supernacionais possuem certas características comuns: possuem um fundador (cristianismo: Jesus Cristo; budismo: Buda; islamismo: Maomé; zoroastrismo: Zaratustra; maniqueísmo: Mani). Pos suem o ideal da salvação do homem. Exercitam o proselitismo. Póssuem 25
livros sagrados de valor canônico. Não se pode dizer que todas sejam monoteístas, pois o budismo não o é. Algumas são mortas, como o maniqueísmo e o zoroastrismo (com exceção de pequena comunidade em Bombaim que o pratica). Algumas religiões não se enquadram exatamente nesses dois grupos, como por exemplo o judaísmo. Possui características das reli giões supernacionais, mas não transpôs os limites de sua nação; não faz proselitismo. Uma outra classificação poderia agrupar as religiões do mundo em dois outros grupos:42 religiões monoteístas (judaísmo, zoroastrismo, cristianismo e islamismo) e religiões politeístas (algumas primitivas, egípcia, cananéia, grega, romana, fenícia, babilônica, chinesa, japonesa, indiana, asteca e outras). Além das monoteístas e politeístas, existem as religiões ecléticas ou sincréticas, que reúnem elementos politeístas e monoteístas a um tempo. Existem ainda outras maneiras de se classificar ou agrupar as reli giões do mundo: religiões antigas e religiões modernas. J. Hansenfuss43 distinguiu as seguintes religiões: 1. Naturais ou da natureza (patriarcais) ao nível da família, do clã e da tribo; 2. Nacionais, culturais e legais; 3. Universais salvíficas. A religião patriarcal é o centro de toda cultura hum ana primitiva. Deus é o chefe. À medida que a nação se desenvolve, a religião se lega liza, transforma-se num a função do Estado. As religiões salvíficas se apresentam como meios que o homem precisa para salvar-se das des graças presentes e conseguir a felicidade eterna. Essa classificação de Hansenfuss abrange grande parte das reli giões da humanidade, mas nem sempre a religião se transforma numa função do Estado, isto é, torna-se nacional. G. Mensching44 propõe vários tipos de religião, segundo várias perspectivas: 1. populares e universais; 2. naturais e culturais; 3. dinamistas, animistas e teístas (segundo prestam culto a um poder impessoal, aos espíritos ou a Deus). N a realidade, existem diversas maneiras de se classificar as reli giões. Cada classificação costuma utilizar determinado critério, dentre os enumerados abaixo:45 O critério político determina as religiões nacionais e universais. Bergson melhorou o critério, constituindo duas formas de sociedade, 26
fechada e aberta, às quais correspondem duas formas de religião: está tica (que não progride, não cresce) e dinâmica (que sempre se renova). O critério antropológico utiliza-se da relação entre indivíduo e so ciedade, ou entre liberdade e lei, ou entre espírito e letra. Augusto Sabatier distinguiu a religião do espírito da religião de autoridade. Segun do esse critério, existe a religião que concede inteira liberdade aos seus adeptos, sem regras, e existe a religião que domina a pessoa com suas proibições e normas. O critério genético distingue as religiões naturais e positivas, quer sejam originadas pela razão humana ou pela intervenção de uma auto ridade. Uma dessas variedades é a religião positiva sobrenatural ou re velada, isto é, fundada pelo próprio Deus. Segundo esse critério, existem religiões que nascem com o próprio indivíduo, como no caso do m ono teísmo primitivo. Outras religiões são impostas pelas autoridades, como no caso do cristianismo imposto pelas cruzadas, ao tempo de Carlos Magno. O critério teológico identifica as religiões conforme o número de deuses adorados. As formas da religião, segundo esse critério, são: poli teístas (adoram vários deuses), dualistas (admitem dois poderes opostos: o bem e o mal) e monoteístas (adoram um único Deus), O critério dialético corresponde aos momentos dialéticos do con ceito de religião. Nesse conceito são consideradas três idéias inerentes à religião: Deus, homem e natureza. As religiões são classificadas con forme a ênfase dada a essas idéias: Deus e natureza; homem e natureza; Deus e homem. São as religiões da natureza, a religião da espirituali dade individual e a religião da espiritualidade absoluta. Ao longo desta série sobre a história das religiões, o prezado leitor poderá aplicar esses critérios a cada religião, analisando-a e tirando suas conclusões acerca de sua classificação. Para facilitar o agrupamento das diversas religiões, procuramos reuni-las em religiões antigas ou mortas, isto é, que já não existem, e em religiões vivas ou existentes, destacando num volume o cristianismo. Aliás, foi a partir do cristianismo que começou a preocupação em distingui-lo de outras religiões. No século 18, a teologia apresentou os conceitos de religião natural e religião revelada: “Aqui está a religião re velada, aquela é religião natural; aqui está a luz salutar que Deus fez resplandecer sobre o horizonte da humanidade, porém lá há trevas, há ausência da palavra de Deus, é a noite.”46 Para Jorge Bertolaso Stella, os teólogos cometeram um grave erro, pois deveriam ter distinguido o cristianismo das outras religiões, dizendo que estas são imperfeitas ou menos evoluídas e aquela, completamente 27
evoluída e definitiva. Como foi dito na introdução ao livro, não pode mos, de forma alguma, julgar as outras religiões à luz do cristianismo. Precisamos analisar os fatos religiosos de cada religião, partindo da ex periência de cada grupo e situação, para que possamos identificar seus pontos positivos e negativos. Um dos aspectos bastante positivos é o fato do homem primitivo, comprovadamente, ter desenvolvido a crença no Ser Supremo, tal qual nos afirmam as Escrituras Sagradas: o primeiro homem mantinha co m unhão com seu Criador. “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem tornouse alma vivente (...). Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden, para o lavrar e guardar (...). E ouvindo a voz do Se nhor Deus, que passeava no jardim à tardinha (...)” (Gn 2.7,15; 3.8).
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1.E l m undo de las religiones, p. 14. 2. SCHM1DT, Guillermo. M anual de historia comparada de las religiones, p. 20. 3. COPELAND, E. L. El cristianismo y otras religiones, p. 6. 4. Citado por COPELAND, E. L., op. cit., p. 6. 5 ./b/d, p. 7. 6. Apostila Religiões, p. 3. 7. TERRA, J. E. M, Origem da religião, p. 81. 8. Citado por STELLA, Jorge Bertolaso, Introdução à história das religiões, p. 70. 9. TERRA, J. E. M., op. cit., p. 80. 10. STELLA, Jorge Bertolaso, op. cit., p. 70. 11. MIRADOR, vol. 17, p. 9758. 12. 0 ’DEA, Thomas F. Sociologia da religião, p. 9. 13. AEGERTER, E. A s grandes religiões, p. 11. 14. Citado por STELLA, J. B., op. cit., p. 47. 15. Enciclopédia VERBO, vol. XVI, p. 236. 16. Citado por DORADO, M. R .,in CORREA, Manuel Marin. Historia de Ias religiones, vol. I, P- 3. 17. Ibidem. 18. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas, tomo I, vol. I, p. 22. 19. DELAHOUTRE, Michel, in POUPARD, Paul. Las religiones, p. 17. 20. JAMES, E. O. Historia de las religiones, p. 14, 15. 21. AEGERTER, E., op. cit., p. 14. 22. Citado por TERRA, J. E. M., op. cit., p. 83. 23. SCHMIDT, Guillermo, op. cit., p. 28. 24. Citado por STELLA, J. B., op. cit., p. 15. 25. COPELAND, E. L„ op. cit., p. 9. 26. ANDERSON, Norman. The world’s religíons, p. 11.
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27. JAMES, E. O., op. cit., p. 16, 17. 28. TERRA, J. E. M., op. cit., p. 83. 29. JAMES, E. O., op. cit., p. 17. 30. Ibid., p. 19. 31. ELIADE, Mircea. La búsqueda, p. 173. 32. Ibid., p. 40. 33. Ibid., p. 41. 34. EI m undo de Ias religiones, p. 36. 35. Ibid., p. 36. 36. TERRA, J. E. M„ op. cit., p. 76, 77. 37. Enciclopédia VERBO, vol. XVI, p. 231. 38. In POUPARD, Paul. Las religiones, p. 33, 34. 39. HUBY, José. História das religiões, vol. I, p. 25. 40. Ibid, p. 28. 41. STELLA, J. B., op. cit., p. 74. 42. Ibid, p. 72. 43. Enciclopédia VERBO, vol. XVI, p. 242. 44. Citado por TERRA, J. E. M., op. cit., p. 91. 45. TERRA, J. E. M., op. cit., p. 91. 46. Citado por STELLA, J. B., op. cit., p. 73.
CAPÍTULO II O SER SUPREMO
INTRODUÇÃO Vimos no primeiro capítulo que o sentimento religioso é universal, estando presente em todos os seres humanos, de todos os lugares e de todos os tempos. Essa verdade, se não fosse atestada pelos estudiosos da religião, já está clara na Palavra de Deus, que afirma: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (SI 19.1). Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem somente se realiza plenamente quando busca o seu Criador, quando o reverencia e quando o serve. O que significa a “imagem de Deus” no homem deve incluir as seguintes dimen sões que nos vêm diretamente do relato bíblico. Imagem significa que o homem foi criado para ter relação com Deus, para participar com ele da maravilha da criação e comunicar-se com ele durante sua vida. Imagem significa que o homem é livre para escolher, como outro ser qualquer da criação não pode fazer. A ima gem significa que o homem há de ser criativo a exemplo do Criador. Imagem sig nifica que o homem vive com o desejo pelo eterno, uma espécie de saudade do Criador. Como o peixe foi feito para a água e o pássaro para o ar, o homem foi feito para a eternidade. 1
Não importa a maneira como o homem expressa a sua religiosi dade; entretanto, o ser humano, pelo fato de ser humano, revela sua maior ou menor reverência diante do Ser Transcendental que ele acre dita estar além do visível e do temporal. Essa busca de contato com o sobrenatural, de uma forma ou de outra, é refletida em suas atitudes e ações neste m undo e em suas relações com as outras pessoas. Desde os seus primórdios, o ser humano reconhece a existência e a atividade de um Ser Supremo. Desse reconhecimento surgiram os fatos religiosos, os mitos, os rituais ou cultos, os símbolos. Se inicial mente reverenciava o Ser Supremo, a religiosidade se degenerou em ou tras formas de culto: animismo, totemismo e manismo. 31
As teorias sobre a origem da religiosidade caíram por terra quando se demonstrou que as tribos mais primitivas, existentes em nossos dias, carecem de animismo, de manismo e do totemismo, e têm uma idéia do Ser Supremo. As investigações de Schmidt e outros ilustres cientistas confirmam que a humanidade começou sua vida espiritual por aquilo que se acreditava ser o último escalão da religiosidade.2 O politeísmo é uma forma degenerada da religião, como são face tas degradadas da sociedade o matriarcado, a poliandria (casamento de uma mulher com vários homens) e a promiscuidade. Essas degenerações vieram com o animismo, a magia e pela influência das mitologias austrais (de época posterior à primitiva). Do monoteísmo primitivo temos evidências no povo hebreu, que até hoje nem pronuncia o nome Iavé e não possui imagens de Deus, criador dos céus e da terra. Ainda que a idéia de Ser Supremo fosse vaga, a ciência nos ajuda a aceitar que os povos primitivos eram monogâmicos e possuíam idéias morais elementares.3 1. O SER SUPREMO ENTRE OS POVOS PRIMITIVOS Estudiosos da cultura e da religiosidade primitiva têm pesquisado os povos de cultura primordial (primitiva ou primária), alistando-os da seguinte forma: ' Na África Central: os pigmeus e pigmóides ou negrilhos, (efé, bátuas, bambutos e acas); bátuas, em Ruanda; babongos, na África Equatorial. São os bantos. N a África do Sul: os boshmanoides-San ou bosquimanos. N a América do Sul: os fueguinos (da Terra do Fogo). N a América do Norte: os esquimós, caribus. Na Ásia: os andamaneses, os semangues, na península meridio nal; os aetos, nas ilhas Filipinas. N a Austrália: tasmanianos (extintos).4 Esses povos vivem em sociedades primitivas, onde predomina o patriarcado (a autoridade máxima do pai ou chefe da tribo); onde o povo vive da caça, da pesca, do plantio ou do pastoreio; onde a estru tura da sociedade é a mais simples possível; onde não há contato com o resto do mundo e onde não chegou a influência das descobertas cien tíficas e tecnológicas. As características desses povos atestam seu estado primitivo, quan to às condições econômicas, sociais e religiosas. Vivem da coleta de frutos; não cultivam o campo ou cuidam dos animais, a não ser em 32
condições bem rudimentares. Suas habitações, vestimentas, ferramentas e armas são primitivas. Sua organização social é a mais simples possível, na qual a família monogâmica desempenha papel fundamental e deci sivo. Todas as demonstrações falam em favor da antiguidade etnológica desses povos primitivos e conseqüentemente de sua religião. Vivendo em estado de cultura primitiva, da qual são exemplos os pigmeus da África, alguns povos da Ásia e Oceânia, os esquimós do Alasca e alguns grupos da Austrália e do Brasil, observa-se nesses povos uma religião simples e primária. Entretanto, há evidências da crença num Ser Supremo, solitário, transcendente e criador do primeiro par humano que povoou a terra. “Em todas as religiões Deus é concebido como o Ser Supremo, pessoal, imaginado às vezes antropomorficamente como residente nas alturas, cujos principais atributos são: onipotência, providência, sal vação.”5 Na cultura denominada de bumerangue e que representa uma transição para a cultura tribal, o Ser Supremo é muitas vezes confun dido com o culto do homem primordial; há ênfase e significado especial nos fenômenos naturais que lembram renovação de vida, como: a mu dança da pele das serpentes, as fases da lua, o desaparecimento tempo rário dos animais noturnos etc.6 Na cultura tribal, nômade, ainda existente entre os beduínos do deserto africano e entre as tribos afastadas da Sibéria oriental (tungueses), o pai da tribo é confundido com o Ser Supremo, ou este se identi fica com o Sol, com as aves que voam alto, com animais notáveis pela força, pela fecundidade ou pela astúcia (leão, touro, lobo). Os chefes são celebrados como heróis e começam a ser equiparados a deuses.7 A grande diferença entre a religiosidade primitiva e a das culturas superiores é que nessas há a hierarquização do clero, a formalização dos ritos e a especulação teológica, que levam a certa dissociação entre o culto oficial dos sacerdotes e as crenças populares.8 Nas culturas acima da primitiva, começa a haver uma grande proliferação de divindades, para satisfazer a todas as tendências religiosas. Duas observações importantes devem ser feitas em relação ao Ser Supremo entre os povos primitivos: 1. o Ser Supremo do céu da cultura primitiva não tem como esposa a terra, pois não tem esposa; 2. a idéia da terra como mãe fecundadora de todo ser vivente somente aparece na cultura matriarcal e é uma verdadeira mitologia da natureza.9 Os psicólogos e os historiadores da-religião reconhecem a presença do Ser Supremo entre as culturas primitivas. Eles afirmam que os estu diosos ficam surpresos quando descobrem tal verdade, mas as investiga 33
ções confirmam a crença monoteísta entre os pigmeus da África e entre outros povos que vivem isolados da cultura superior e não foram alcan çados pelo cristianismo. As tribos primitivas estudadas chegaram a ser bem numerosas e viviam distantes umas das outras, cada qual fazendo parte de determinada família racial. Portanto, a crença num Ser Supre mo não poderia ter sido transmitida de um grupo para outro; é uma crença muito antiga, primitiva; é uma crença independente e caracterís tica das culturas primitivas.10 Naturalmente, não podemos afirmar que todos os aspectos abor dados pelos estudiosos da religiosidade primitiva expressem exatamente a forma da religião como era no princípio, um a vez que se passaram mi lênios. Entretanto, os estudos se aproximam notavelmente da religiosi dade primitiva, uma vez que destacam os aspectos mais comuns entre os diversos grupos.11 O Dr. R Guillermo Schmidt escreveu excelente obra, incluindo um estudo minucioso sobre o Ser Supremo na religiosidade primitiva, o qual utilizaremos na exposição deste capítulo.12 2. O SER SUPREMO NA PLURALIDADE O Ser Supremo, entre os povos primitivos, vem mesclado com ou tros seres supremos; estes, no entanto, estão todos subjugados a ele. Com maior ou menor clareza, estes seres superiores aparecem criados pelo Ser Supremo, recebendo dele suas qualidades e suas forças; o Ser Supremo lhes concedeu uma finalidade e um posto, vigiando e regu lando suas funções. Um dos seres que aparece na religiosidade primitiva é o protetor dos animais da caça e do pastoreio. O Ser Supremo lhe teria dado essa incumbência na terra. O papel importante que desempenha o pai da tribo o identifica com o Sol, filho do Deus Supremo; esta idéia se desenvolve com a mito logia solar do círculo totêmico patriarcal. A mãe, nas culturas m atriar cais posteriores, é identificada com a Lua, que, não raras vezes, fundese com o Ser Supremo. Os seres supremos, neste caso, se derivam da importância do pai e da mãe na sociedade tribal. Outra multiplicidade de seres superiores é conseqüência do proble ma da origem do mal, que preocupou os homens primitivos. Se o Ser Su premo é bom e nada tem a ver com o mal moral ou físico, este deve ter outro ser causador, que, nos mitos dos povos primitivos norte-america nos, se opõe ao Ser Supremo, mas cuja origem permanece obscura. 34
Outra fonte da pluralidade de seres superiores encontra-se nas re lações familiares do Ser Supremo. O caso em que o Ser Supremo aparece com mulher e filhos aparece posteriormente, na cultura matriarcal. De qualquer forma, atribuí-se ao Ser Supremo toda caracterização de superioridade, de poder, de autoridade, de benevolência, de onipotên cia e de adoração. Abordaremos alguns temas importantes em relação ao Ser Supremo. 3. A MORADA DO SER SUPREMO O Ser Supremo das culturas primitivas é muito menos unido com a idéia do céu do que nos ciclos culturais posteriores, especialmente o ciclo dos pastores nômades. Nas culturas primitivas cria-se que o Ser Supremo antigamente habitava entre os homens, tendo-lhes ensinado leis morais e sociais. Depois, por culpa dos homens, abandonou a terra e subiu aos céus, sua morada atual. Na maioria dos povos cria-se que o Ser Supremo vivia na terra, juntam ente com os homens. Os algonquinos centro-orientais, os lenapes, os ainus, os samoiedos crêem que ele habita num céu superior, o quarto, sétimo, oitavo e por fim décimo segundo. Entre os centro-californianos do norte e entre os australianos sul-orientais, afirma-se que, partindo da terra, ele encaminhou-se para o oriente. Entre os povos primitivos norte-americanos ensína-se, às vezes, que o Ser Supremo desceu do céu à terra. Ainda que a idéia do Ser Supremo da época primitiva apareça associada à idéia de céu, é clara sua identificação como personalidade própria e não pode ser confundido com o céu material. A base dessa crença e o verdadeiro relacionamento do Ser Supremo com o céu, se gundo a mentalidade primitiva, ainda precisam ser estudados e inves tigados mais. Em estreita relação com o céu, como residência do Ser Supremo, encontram-se o relâmpago e o trovão, apresentando-se como suas armas; o barulho da tempestade é como a expressão de sua ira. Em todo circulo da primitiva cultura ártica e em quase todos os povos primitivos norteamericanos, estas funções são dirigidas às aves do trovão, das quais aparecem quatro, nos quatro pontos cardeais. Os pigmeus costumam oferecer seu próprio sangue como oferenda expiatória, sempre que troveja e relampeja. Com menos freqüência e com menos clareza encontra-se o Ser Supremo associado à chuva, como fonte de fertilidade vegetal e ani 35
mal. Encontramos essa associação entre os pigmeus, da África Central, entre os bosquimanos, os iuins e os camilarói-viradiuris, da Austrá lia. Esta relação é, pois, duvidosa como tendência da religiosidade primitiva. As relações da chuva com a fertilidade do campo somente serão percebidas com intensidade no círculo da cultura agrícola m a triarcal, e as relações com a fertilidade animal, no círculo da cultura nômade patriarcal. 4. A FIGURA DO SER SUPREMO Os dados sobre a figura do Ser Supremo podem ser classificados em dois grupos: em primeiro lugar aqueles que entendem que a figura do Ser Supremo é inacessível aos sentidos naturais do ser humano; em segundo lugar, aqueles que dizem que Deus tem a figura humana; entre tanto, essa figura tem mais a ver com a personalidade do que com os traços e é um a personalidade acima de todas as pessoas. À primeira classe pertencem as expressões dos camilaróis, cujo Ser Supremo, chamado Baiame, não pode ser visto, mas somente pode ser ouvido e sentido. O Ser Supremo entre os fueguinos assemelha-se ao vento, atribuindo-se-lhe uma espécie de invisibilidade. Entre os samoiedos, afirma-se que o Ser Supremo não tem figura. O Ser Supremo assemelha-se a um homem avançado em idade, com longa barba branca (entre os andamaneses). O Ser Supremo apre senta-se na cor das pessoas da tribo: negra (entre alguns semangues). O Ser Supremo é de cor branca como algodão (outros semangues). O Ser Supremo é luz. O Ser Supremo resplandece de pureza ou é semelhante ao fogo (entre os semangues norte-ocidentais, os andamaneses do sul e os algonquinos). A figura do Ser Supremo resplandece como o Sol, mas sua face está sempre coberta e ninguém a viu, exceto o gênio do mal, que a teria visto um a única vez (entre os maidus do norte da Califórnia). Entre os curnais e viradiuris ensina-se que o Ser Supremo está rodeado da glória do resplendor do Sol. De grandeza apocalíptica é a figura de Baiame. Assenta-se no céu junto com sua esposa sobre um assento de rochas cristalinas transparen tes; a parte de baixo do corpo funde-se com o cristal; colunas de cristal resplandecem ao seu redor, nas cores do arco-íris. Entre os samoiedos, o arco-íris é a orla do manto do Ser Supremo. Entre os pigmeus do Gabão, o arco-íris que traz um a tempestade aparece no oriente e é o arco da caça com o qual o Ser Supremo envia as nuvens das tempestades. 36
Em parte alguma encontra-se uma imagem do Ser Supremo; somente se encontra uma identificação dele com o pai da tribo ou com o filho do Sol, como entre os iuins e entre os camilarói-viradiuris. 5. OS NOM ES DO SER SUPREMO O Ser Supremo é designado por muitos e expressivos nomes, somente pronunciados com respeito e por extrema necessidade. São utilizados sinais para referir-se a ele: um sinal para o céu (entre os iuins e os culins). Os mais generalizados são três grupos de nomes que: indicam paternidade, a atividade criadora ou sua residência no céu. Com o nome de pai designa-se ou se invoca o Ser Supremo em todos os círculos de cultura, de modo que esse nome é considerado como o primitivo, característico da antiqüíssima cultura primitiva, ou simples mente pai, ou individualmente meu pai, ou coletivamente nosso pai. O nome pai é encontrado entre os pigmeus da África e entre os bosquimanos; não aparece entre os andamaneses e negritos das Filipinas; mostra-se, sem muita freqüência, entre os semangues. Entre os samoiedos encontramos a expressão “meu pai celestial”. Entre as tribos algonguinas aparece sob as três formas: pai, meu pai e nosso pai. É muito comum a utilização desse nome entre os australianos do sudeste: nosso pai; é a maneira mais antiga, pronunciada por todos, crianças e mulheres, na tribo mais antiga (os curnais), onde é o único nome pronunciado para referir-se ao Ser Supremo. A expressão pai refere-se a uma relação de temor, de íntimo amor e de inteira confiança do homem no Ser Supremo. A identificação fisio lógica só acontece nas tribos onde o chefe é associado ao Ser Supremo. Outro nome para o Ser Supremo é criador, que não está tão divulgado entre os primitivos como a expressão pai, porque a força cria dora não é inerente a todos os seres supremos da época primitiva e não se expressa claramente de todos. Onde a criação é vista como um trabalho realizado por um ser subordinado, especialmente o pai da tribo, este leva o nome de criador. Isso acontece entre os corjacos. Entre todas as tribos de pigmeus parece que não existe a expressão criador para o Ser Supremo; nem existe entre a cultura primitiva ártica, exceto entre os ainus, onde recebe o nome de “divino fazedor dos mundos”. Não aparece essa expressão entre os grupos bosquimanos, fueguinos e entre a maioria dos australianos do sudeste; destes, somente entre os camilarói-viradiuris é chamado de Baiame Criador. O nome criador para o Ser Supremo está mais divulgado entre os primitivos norte-americanos, nas formas: fazedor, criador da terra, criador do mundo. Entre os samoiedos, um dos nomes é criador da vida. 37
Outro nome do Ser Supremo refere-se à sua morada: o céu. A palavra céu, entretanto, não é aplicada unicamente ao Ser Supremo, entre os samoiedos, cultura que se aproxima dos povos nômades pastores. A forma “o de cima” ou “aquele que habita lá em cima” é freqüente nas tribos ao norte da Califórnia central, entre os fueguinos, negritos e bosquimanos. A forma “aquele que está no céu” aparece entre os iuins. Não podemos deixar de lado outros nomes comuns ao Ser Supremo, que muitas vezes são de uma originalidade extrema. Não é rara a expressão “o velho” ou “o velho lá de cima” ou ainda “o muito velho”, indicando a antigüidade do Ser Supremo. “O senhor de cima” aparece entre os corjacos; “o divino senhor do céu”, entre os ainus. O nome Puluga, do Ser Supremo, entre os andamaneses, relaciona-se com a tormenta e tempes tade; o nome Cari, dos semangues, significa trovão. Os índios yoshua, do norte da América ocidental, utilizam o nome Doador para o Ser Supremo. O nome Sila, dado pelos esquimós ao Ser Supremo, expressa a indeterminação e a amplitude do Ser Supremo da cultura primitiva ártica, porque significa céu, tempo, força. Três belos nomes recebe o Ser Supremo dos ainus: Suporte (do universo), Berço das Crianças e Protetor Inspirador. Em muitas tribos algonquinas aparece como O Grande M anitu, significando o grande espírito eminente, não no sentido animístico, mas no sentido de ser invisível, no sentido de personalidade. Entre os iamanas fueguinos são diversos os nomes que recebe o Ser Supremo: O Muito Velho, O Bom Velho, O Mais Alto de Todos, O Mais Forte de Todos e também O M atador Celeste, porque envia a morte. Esse nome — M atador — aparece também entre os maidus do norte da Califórnia central; significa o poder supremo e único sobre a vida e a morte. Outros nomes para o Ser Supremo entre os primitivos são: O Mestre, O Vigilante, O Inspetor, A Força, O Exterior, O Universo, O Onipotente. 6. O S ATRIBUTOS DO SER SU PREM O Os próprios nomes que o Ser Supremo recebe entre os primitivos nos dão uma idéia de seus atributos ou propriedades. Além dos nomes, outros dados nos informam acerca de seus atributos, ou seja: eternidade, onisciência, bondade, moralidade, onipotência e poder criador. Eternidade — A todos os seres supremos é atribuída, com maior ou menor clareza, um a espécie de eternidade. Sobre isso existem algumas notificações mais detalhadas, no sentido de que os seres superiores exis tiam antes dos demais seres ou que existiram sempre e sempre existirão, que nunca morrem: assim o Puluga, dos andamaneses, e o Cari, dos 38
semangues. Quando se fala da morte do Ser Supremo é porque está asso ciado ao pai da tribo. Entre os viradiuris, do sudeste da Austrália, se utiliza a palavra burrambin, que significa eternidade. Onisciência — Esse atributo está relacionado à sua natureza moral, pois o Ser Supremo vigia as ações e omissões do ser humano. Nas tribos do sudeste da Austrália, informa-se aos jovens iniciantes que aquele que tudo vê também castiga. “Nada existe que Irmana não saiba; ele sabe tudo”, dizem os bátuas de Ruanda. Baiame, dos camilarói-viradiuris, conhece os pensamentos do coração. Puluga, dos andamaneses, vê tudo na claridade do dia. Outros seres supremos têm olhos como o Sol e a Lua ou têm orelhas como estrelas; isto quer dizer que vêem de dia e de noite. Entre outras tribos, o Ser Supremo possui olhos como estrelas e vê toda a terra. Os semangues falam de um Ser Supremo onipresente, que está perto das coisas mais longínquas. “Ele está em toda parte e sabe tudo”, dizem outros primitivos. Associados à idéia de onisciência são os seres intermediários, criados para informar o Ser Supremo de todas as coisas em todos os lugares. Em algumas tribos bosquimanas, as aves do céu informam o Ser Supremo. Bondade — Característica marcante do Ser Supremo entre os primi tivos é a bondade. Somente ele é bondoso; dele procede todo o bem do qual os homens em geral desfrutam. Para os californianos, o Ser Supremo quer transformar a existência hum ana num paraíso repleto de prazeres, sem trabalho. Para eles e para os algonquinos, o Ser Supremo não quis a enfermidade e a morte do homem, mas que o homem, quando velho, se banhasse na água da vida e dela saísse rejuvenescido. Vindo a morte, para os algonquinos, o Ser Supremo introduziu as cerimônias da vida, a fim de prolongá-la o mais possível. Outro Ser Supremo ajuda os homens em todas as suas necessidades e perdoa os seus pecados. A compaixão e o pronto ânimo caracteriza outro Ser Supremo (de outra tribo); ele perdoa os arrependidos e retira a punição. O Velho Lá de Cima do norte da Cali fórnia central exige que os homens, em suas necessidades, supliquem ao Ser Supremo cheios de confiança, porque os ajudará. Aquele Que Mora Lá em Cima toma medidas e providências para os homens que devem vir ao mundo. O Ser Supremo dos iamanas é compassivo e bom para com aqueles que lhe dirigem súplicas. Moralidade — Se o Ser Supremo nas culturas primitivas é bondoso, o que é moralmente mau não entra em contato com ele. As tribos que mais acentuam o caráter moral do Ser Supremo contrapõem-lhe o ser que representa o mal e que coloca obstáculos às boas ações do Ser Supremo. at
Este caráter profundamente moral do Ser Supremo tem sua origem no fato de ser ele o legislador supremo da moralidade. Não se pode falar em dualidade (oposição entre duas forças) por que o Ser Supremo bom é muito mais poderoso e importante, enquan to que o ser mau possui um a origem obscura. Essa idéia de moralidade é encontrada entre os primitivos árticos, norte-americanos e entre os algonquinos. Onipotência — O Ser Supremo nas culturas primitivas é dotado de poder ilimitado. “Ele pode ir por toda parte e pode fazer tudo”, dizem as tribos da Austrália sul-oriental ou sudeste. Entre os pigmeus seman gues, o Ser Supremo é mais poderoso do que todos os outros seres, e isto pode ser dito de todos os seres supremos da cultura primitiva: não há outro ser que se compare a ele ou que a supere em poder. Entre as tribos norte-americanas essa onipotência é comprovada simbolicamente em apostas de força efetuadas com o pai da tribo, como: trasladar uma m ontanha ou corrente de rio, dividir um a rocha, cami nhar sobre as águas etc; nestas apostas, o Ser Supremo sempre sai vencedor. A soberania do Ser Supremo é tão enérgica e tão amplamente expressa que todos os demais seres supraterrestres lhe estão sujeitos. Poder criador — A nenhum ser supremo da época primitiva é negada essa virtude criadora. Em alguns casos, há certa incerteza ou obscuridade. Reconhece-se, com maior ou menor clareza, o Ser Supremo como criador em todas as tribos pigméias, entre todas as tribos do sudeste da Austrália e muito especialmente entre os primitivos norte-americanos, além dos algonquinos. Entre os vinebagos algonquinizados e entre os negrilhos do Congo aparece a criação do nada, com toda a clareza e com plena convicção; seus mitos são, antes de mais nada, mitos da criação, e suas cerimônias solenes racionais são representações ou recordações do processo da criação. Reconhece-se o Ser Supremo como criador da terra e do universo entre os pigmeus asiáticos, entre os negrilhos do Congo e entre outros. Ao tirar a terra do mar primitivo, o Ser Supremo o realiza por si mesmo e não através de aves marinhas; é o que aparece no mito autêntico da criação dos arapaos. Quase as mesmas tribos reconhecem o Ser Supremo como criador do homem ou do primeiro par da tribo, que é a forma mais antiga de criação do homem. Muitas vezes se indica o modo e os procedimentos da criação. Ao norte da Califórnia central existem três maneiras de criação: criação de plumas de aves, que podem referir-se ao culto totêmico das aves; criação de paus, que à noite se transformam em homens; criação 40
do corpo humano de barro e inspiração da vida no corpo durante a noite, mediante o suor do Ser Supremo dentro dos corpos de barro. Pode-se demonstrar que a terceira forma é a mais antiga. A formação do corpo de barro e a inspiração da vida pelo Ser Supremo no nariz, boca ou umbigo encontra-se entre os culins, a sudeste da Austrália. Entre os pigmeus do Gabão, o Ser Supremo forma o corpo do primeiro homem de barro úmido e lhe dá a vida mediante sua palavra onipotente. 7. O SER SUPREMO E A ORDEM MORAL Alguns povos primitivos não permitem ver com clareza a rela ção entre o Ser Supremo e a ordem moral. Já entre outros povos e tribos, o Ser Supremo é associado à ordem moral, como acontece en tre os pigmeus, samaiedos, ainus, californianos, algonquinos, fueguinos e australianos do sudeste. Entre esses, ele é o legislador moral. Se o Ser Supremo entre os primitivos é moralmente bom e é a fonte da moralidade, deduz-se que há uma relação dele com a or dem moral. A associação do Ser Supremo com a ordem moral se dá em dois aspectos: ele é o legislador moral e é aquele que vigia e recompensa ou castiga os humanos. A extensão da legislação não é a mesma entre todos os povos. Geral mente, seus preceitos se limitam à observação das cerimônias estabelecidas por ele, às oferendas e orações, à obediência aos anciãos a aos de maio ridade, ao respeito à vida do homem e à omissão de morte injustificada, à moralidade sexual (evitando o adultério, a fornicação, os vícios antinaturais e o ato sexual pré-matrimonial), à honra, à compaixão pelos necessitados, enfermos, fracos e anciãos. Estes preceitos são ensinados aos jovens, nas cerimônias de iniciação ou em outras cerimônias, que são verdadeiras escolas de moralidade, sociabilidade e religiosidade, como as que se praticam entre os pigmeus de Ituri, entre as tribos australianas do sudeste, entre os californianos centrais, os algonquinos e entre os fueguinos. Se em geral a moralidade dos povos primitivos não está em nível inferior, podemos concluir que seguem os preceitos e proibições do Ser Supremo. Esta obediência e submissão da própria vontade é mais notável no que diz respeito à sua vida social e política, pois não reconhecem o domínio da força humana de classe alguma, exceto a autoridade dos pais sobre os filhos de menor idade; não existe entre eles alguém que imponha sobre a coletividade preceitos ou proibições. Como guardião da morali dade, o Ser Supremo possui o atributo da onisciência. 41
Em segundo lugar, está o aspecto da moralidade do Ser Supremo que o faz recompensar e castigar os seres humanos. Vida longa é um prêmio pelo bem moral; morte prematura é uma punição pelo mal moral cometido; por isso, em algumas tribos, todos os velhos são considera dos bons, porque estão vivendo muito tempo. A morte vem pelas en fermidades, trazidas pelos ventos ou pelos espíritos malignos, pois o próprio Ser Supremo é essencialmente bom e não faz mal a homem algum. Ele se serve desses espíritos, para o que foram criados, para trazer as enfermidades ou os acontecimentos que ocasionam a morte; pode servir-se também do tigre ou outros animais selvagens. Entre os semangues e negrilhos do Ituri, o Ser Supremo se serve de seu próprio raio para ferir os malfeitores. A maioria dos povos primitivos aceita a idéia do Ser Supremo premiando ou punindo na outra vida, pois todos os povos primitivos, sem exceção, crêem na existência de outra vida para os homens, de pois da morte. Alguns deles não aceitam uma diferença entre os bons e maus na outra vida. Outrossim, não deixam bem claro como se criou esta vida além. Acham alguns que todos os pecados são perdoados nesta vida. Entretanto, a maioria crê num a diferença entre o bem e o mal na vida de além, havendo maior definição quanto aos bons e maior incerteza quanto aos maus. N a maioria dos casos de que temos conhecimento, os bons vão para o céu, onde está o Ser Supremo; muitas vezes vivem em sua com panhia pessoal, sem a morte, sem -as enfermidades nem as dores, e cheios de toda espécie de prazeres. Muitas vezes aquela vida não é mais do que a repetição desta vida aqui; entretanto, também há casos em que os prazeres carnais são excluídos daquela vida. Entre vários povos crê-se que na vida além não existe procriação. Como caminho para o céu indica-se às vezes a Via Láctea, ou o arco-íris, ou o Oci dente, onde estão as ilhas da felicidade, em alto-mar. Entre os ainus, o céu se encontra sob a terra. Em alguns casos, a sorte dos bons e dos maus é decidida num verdadeiro julgamento perante o Ser Supremo. Entre os andamaneses e os fueguinos, a alma dá conta de si; entre os viradiuris, o Filho do Sol (o chefe da tribo) todas as tardes apresenta os mortos ao Ser Su premo, que pronuncia a sentença sobre eles, ocasião em que o Filho do Sol defende os que não foram completamente maus; entre os ainus, a deusa do fogo apresenta ao Ser Supremo um quadro exato da vida daquele que está sendo julgado. A sorte dos maus é qualificada como castigo doloroso: peregri nar sem descanso entre o fogo e o calor, ou entre o frio; ser excluído 42
da felicidade dos bons ou ficar na escuridão vazia; ser aniquilado. Às vezes, o lugar onde habitam os maus também é o céu, mas separado do lugar dos bons; com maior freqüência o lugar dos maus se encon tra na própria terra ou debaixo dela. Diante dos atributos do Ser Supremo e sua relação com a ordem moral, o ser humano primitivo sente o desejo de venerá-lo de diversas maneiras. 8. VENERAÇÃO AO SER SU PR EM O O Ser Supremo é cultuado por meio do culto oral: orações de louvor, ação de graças e orações impetratórias (súplicas); e também é cultuado por meio do culto real, com sacrifícios e gestos rituais.13 É interessante observar que, nas culturas posteriores à primitiva, não se encontra a veneração aos deuses como entre os povos primitivos. O relacionamento do Ser Supremo com os homens começou no início da humanidade, quando vivia com os homens na terra, ensinando -os. Depois de abandonar a terra, nenhum dos seres supremos se isolou dos homens para permanecer ocioso, sem interesse e sem ação quanto a eles, mas sempre influenciou o mundo e os homens com sua bondade e onipotência, sua vigilância quanto às ações morais e omissões dos homens, com as festas sagradas e consagração da juventude que assiste e finalmente com o julgamento final do homem. Ainda que todas essas relações com os homens não se encontrem em todos os seres supremos com a mesma amplitude e intensidade, a evidência desse relacionamento do Ser Supremo com os homens é visível entre os povos primitivos. Os seres humanos, por outro lado, também entram em relação com o Ser Supremo, dem onstrando sua dependência dele e a grande importância que ele tem para suas alegrias e dores. Demonstram o temor que têm aos seus castigos, que os movem a evitar o proibido e obedecer aos mandamentos; demonstram o respeito e simpatia ao Ser Supremo através dos mitos que se referem ao poder e providência do Ser Supremo; demonstram o respeito ao mencionar o seu nome e ao evita pronunciá-lo desnecessariamente; demonstram o significado que o próprio nome tem para eles: pai e criador. Todas estas coisas são demonstrações de respeito, atos de veneração, dos quais não participa outro ser algum. Além dessas atitudes, há os atos de verdadeira veneração, através dos quais os homens estabelecem uma relação eu-tu, numa religiosidade verdadeira, plena e viva. Oração — Não é fácil identificar a oração entre todos os povos primitivos; para tanto, é necessário considerar duas formas de oração: 43
uma puramente mental, interior, sem palavras, e outra que envolve algum gesto e uma invocação do Ser Supremo. Os dois tipos ou formas de oração são encontrados entre os primitivos. A oração é essencial ao sentimento religioso. Se a religiosidade é universal, pressupõe-se que a oração também seja universal. Assim como as hipóteses quanto à origem da religião são várias, também o são quanto à origem da oração. Entretanto, podemos, rejeitar a teoria de que o encan tamento precedeu a oração ou se transformou nela.14 Para compreendermos a oração em sua essência, é importante reco nhecer dois fatores ligados à oração: o silêncio e o gesto. O silêncio está nos atos de recolhimento, de humildade e devoção, como encontrados entre os indígenas da América do Sul. Os iuins da Austrália, em silêncio, elevam ao céu as armas e as mãos. O silêncio prepara a alma para encontrar-se com Deus. Quanto às mãos em súplica, o costume mais antigo é erguê-las para o alto, para o céu, como procediam os egípcios, babilônicos e assírios. Palavras relacionadas aos gestos e à oração podem ser destacadas: a palavra avéstica namas origina-se de m m (dobrar, curvar); a palavra islâmica salat deriva desalai (curvar a espinha); as palavras niskâte (erguer as mãos) podem tomar o sentido de orar. Certas figuras da época paleotítica, encontradas nos túmulos e consideradas como as mesmas figuras dos mortos em ato de sacrifício ou de oração, parece represen tarem gestos ainda mais antigos da oração. Supóe-se que cobrir o rosto com as mãos quando se ora representa a defesa contra o influxo pernicioso. Estar com a cabeça inclinada, como se vê em antiqüíssimas estatuetas, representa um gesto pré-histórico da oração. Algumas imagens dos templos antigos do Egito mostram que se orava também erguendo uma das mãos e com a outra se apresentava a oferta. Este costume se nota entre os babilônicos e os gregos.15
Existem outros gestos relacionados à oração, como: apoiar as mãos na testa, estender-se no chão, bater as mãos no início e final da oração, bater as mãos para saudar o sol nascente (eves, da África, em orações de agradecimento), bater no peito, colocar uma das mãos na testa (tenelchens, da Patagônia). Menos freqüente é bater a cabeça com as mãos ou cobrir a cabeça com o pó, em sinal de grande aflição. As mãos estendidas e cruzadas sobre o peito é gesto comum entre árabes e turcos. Alguns gestos demons tram o carinho daquele que ora: acariciar o objeto sagrado ou o ídolo, abraçar o altar, beijar o objeto de culto ou tirar os sapatos, em sinal de respeito. Os povos primitivos praticavam a oração puramente interior, como os primitivos esquimós, os algonquinos, os semangues, onde o vidente 44
ora pelos demais, e os bosquimanos. A oração com gestos, reconhecível facilmente, é encontrada também entre os semangues, os iuins e os austia lianos do sudeste, entre outros.16 A oração com palavras somente poderá ser reconhecida quando se tem um conhecimento da língua e quando se vive entre o povo, condições difíceis de se ter em relação aos povos que vivem afastados da civilização. A oração espontânea e sem formas é praticada onde não se avançou para fórmulas fixas de oração. Esse tipo de oração espontânea pode ser encontrado entre os negrilhos das Filipinas e os iamanas da Terra do Fogo, os negrilhos de Ituri, os bátuas de Ruanda e os bosqui manos. Nestas tribos também encontramos dias dedicados à oração com extensas cerimônias, como a liturgia noturna entre os negrilhos das Fili pinas. A mais freqüente é a oração de petição. Existe também a oração de agradecimento entre os pigmeus de Gabun e tribos algonquinas. A sudeste da Austrália encontramos a oração pelos mortos (masculinos) sobre sua tumba, para que sejam recebidos no céu. Os semangues acom panham a oferenda expiatória com uma oração pelo perdão dos pecados. Através de uma observação geral das tribos primitivas, comprovase a existência da oração em todas elas, com exceção dos andamaneses, entre os quais existem algumas cerimônias misteriosas, cujo sentido não podemos determinar, mas que podem ser uma espécie de oração sem palavras, com gestos. O exercício da oração pura entre os povos primi tivos árticos não é freqüente e é bem curta, sendo mais desenvolvido o sacrifício, quase sempre acompanhado de oração. A oração pública, em cerimônias, somente pode ser observada duas vezes: ao final da consa gração dos jovens e no enterro do homem. Dizem os povos primitivos que, devido à grande bondade e justiça do Ser Supremo, não é necessário rogar tanto como fazem os brancos, pois isso não tem muito efeito, como se pode observar na vida dos brancos. Os alagalufes da Terra do Fogo dizem que a oração de petição é inútil porque o castigo imposto pelo Ser Supremo é inevitável e o bem ele o concede sem a petição.17 Outra forma de veneração ao Ser Supremo é o sacrifício, que será tratado com maiores detalhes no capítulo quatro. Ainda podem ser encon tradas as cerimônias solenes, como a consagração da juventude e cerimônias de agradecimento, que podem durar vários dias. No círculo da cultura ártica, em certas épocas importantes do ano, as orações, as cerimônias e os sacrifícios transformam-se em ricas festas nas quais se agradece o auxílio recebido e se pede novo auxílio. A esta categoria pertencem as cerimônias do arco-íris dos pigmeus de Gabun, as ceri 4J
mônias noturnas dos negrilhos das Filipinas, a dança da oração dos selish do interior, as cerimônias de Pano dos semangues, as cerimônias de petição de chuva dos bosquimanos e a cerimônia das flechas, além de outras. Podemos comprovar que, se em diversas tribos, inexiste uma forma especial de veneração, não há tribo em que não se pratique alguma forma de veneração. A forma mais utilizada é a oração, que ainda precisa ser mais estudada para maiores elucidações. Nas culturas primitivas e primárias, entretanto, observam-se as súplicas ao Ser Supremo, como senhor das caças, senhor do céu, “fazedor da chuva”, senhor do rebanho; o objetivo dessas súplicas é o êxito da caçada, a prosperidade das plantações, a descida das chuvas, o bom tempo. Observam-se também ações de graças pelo sucesso da caça, com oferta do produto; ações de graças pelos benefícios durante o ano agrícola, com a oferta dos primeiros frutos; ações de graças pela multiplicação do gado, pela proteção dos pastores e pela preservação contra as feras, com a consa gração do animal e sacrifício de animais primogênitos.18 A ampla difusão da oferenda de primícias é importante neste antiqüíssimo círculo de cultura. Essas atitudes de petição e gratidão, observadas em povos de cultura primitiva e primária, demonstram o que os homens primitivos criam acerca da atuação do Ser Supremo, reconhecendo a sua participação junto à vida humana. H á uma completa dependência do senhor dos céus quanto à prosperidade do campo e ao sucesso na vida. O Ser Supremo também aparece, nas culturas primitivas, como dando vida aos homens; manifesta-se na vida orgânica que está no hálito ou no sangue; manifesta-se na força e no vigor do organismo e manifestase na vida psíquica, no conhecimento intelectual, sensitivo, na vontade e nas emoções.19 Voltamos neste ponto ao tema da imagem de Deus no hornem, abordada no início do capítulo. Vimos a comprovação de que a crença no Ser Supremo foi a primeira manifestação religiosa da humanidade, depois obscurecida pelas práticas posteriores do animismo, totemismo, magia e manismo. “Esta forma primi tiva de monoteísmo está ainda hoje representada pelo oculto dos seres supremos, praticada por muitos povos não civilizados, e especialmente por aqueles que mostram ter conservado melhor as antigas tradições (p. ex., os pigmeus).”20 O Ser Supremo era aceito pelos povos primitivos não somente como fonte explicativa do universo e da natureza, mas como fonte originária e como realidade transcendente para a qual converge ou se dirige a ativi dade espiritual do ser humano.21 46
Paripassu com essa atitude religiosa de reverência ao Ser Supremo, reconhecendo sua superioridade, poder e preocupação com o ser humano, observam-se atitudes mágicas, como: cerimônias para abrir a floresta ao caçador, rituais para tornar um animal protetor de um indivíduo (na sociedade totêmica), rituais de purificação dos campos, invocação de algum protetor extraterreno, cerimônias mágicas para a fecundação dos campos, culto aos ídolos mágicos, liturgia com encantamentos contra os inimigos da fecundidade do rebanho e outras. As cerimônias relacio nadas ao campo e ao rebanho aparecem em culturas primárias, posteriores à primitiva, e essas formas viciadas de religiosidade, isto é, atitudes mágicas como o fetichismo, animismo, totemismo, são fruto de um trabalho fantás tico, sentimental, imaginário, que se opõe à utilização da razão e da boa vontade.22 A conclusão a que se chega, ao estudar a religiosidade primitiva, é que algo imponente impressionou profundamente a alma do homem primitivo, criando e conservando aquela força e unidade de fé; não era algo de natureza apenas subjetiva, pois então não produziria efeitos tão universais. Tratava-se de uma realidade muito poderosa, de uma perso nalidade grandiosa que se colocara em comunicação com aqueles homens, apoderando-se de sua inteligência com verdades luminosas, sujeitando sua vontade com preceitos elevados e nobres e conquistando seu coração com sua bondade e beleza fascinadora. Aqueles povos primitivos concordam com unanimidade surpreen dente que aquele ser que os cativou é o Ser Supremo, criador do céu e da terra e, especialmente, criador do homem. Notamos, no decorrer do estudo da religiosidade hum ana e como resultado da investigação histórico-cultural, que, após a cultura primi tiva, houve três evoluções paralelas independentes, nos três círculos de cultura primária: o matriarcal agrário, o patriarcal totêmico e o patriarcal nômade, cada qual desenvolvendo uma atitude de espírito e uma concepção do mundo peculiares. Dependendo desse desenvolvimento, a religião do Ser Supremo adquiriu diferentes formas.23 É importante termos essa visão geral da religiosidade na cultura primária que, em alguns aspectos, não estava completamente desvincu lada da religiosidade primitiva, especialmente no que diz respeito às práticas mágico-religiosas. Por isso, vamos observar algumas caracterís ticas dos três círculos apontados acima, a fim de compreendermos os próximos capítulos. A cultura dos pastores nômades foi a que melhor conservou a reli gião do grande Deus. O Ser Supremo é apresentado como um ser pessoal, completamente separado do céu material; somente mais tarde começa
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a ser confundido com o céu visível. O Ser Supremo nesta cultura intervém, de variadas formas, na vida hum ana e na natureza; o Ser Supremo é seu senhor e dono, o seu legislador moral, social e político; é o juiz que premia os bons e castiga os maus, até mesmo na vida além. Somente mais tarde o Ser Supremo será desalojado por outros seres superiores. N a cultura dos pastores nômades surge a nova forma de culto com uma espécie de oferenda incruenta: consagração de animais, muitas vezes primogênitos, oferecidos sem derramamento de sangue, isto é, deixados livres, de modo a não serem maltratados ou mortos por alguém. Esta religião teve grande importância para a história das religiões, por ser a religião dos grandes povos conquistadores e dominadores e por ter grande influência nas culturas elevadas, sobre as religiões dos povos lavradores matriarcais e dos povos totemístas, dos quais, infelizmente, sofreu influência negativa posterior. N a cultura agrário-matriarcal, a mulher adquiriu importância econômica e social, começando a surgir o culto à mãe terra e uma forma religiosa de mitologia lunar, onde a Lua é concebida como mulher. O Ser Supremo passa a ser considerado como feminino ou dá-se-lhe por mulher, irmã ou filha, a terra. A mulher passa a ser sacerdotisa do culto. Por causa de sua sensibilidade, acredita-se que seja capaz de relacionar -se com os espíritos, muitas vezes através de meios que excitam os nervos (danças, músicas, sons, bebidas etc). É o xamanismo. Mais tarde, quando os homens desepenham a função de xamã, começam a utilizar vesti mentas femininas ou parte delas. A oferta das primícias vegetais é feita à mãe terra. Surge a magia da fecundação. Sobre o xamanismo e o culto à grande deusa mãe, vejam-se os próximos capítulos. N a cultura patriarcal totêmica, com o aperfeiçoamento da caça coletiva e com melhor armamento, surgiu uma crença mágica ativa. Percebe-se, então, um a relação especial do homem com o Sol e se desen volve a mitologia solar. A oração e o sacrifício ficam submetidos a um grande número de ritos mágicos. A magia alcança um desenvolvimento surpreendente nesta cultura, de modo a se converter na inimiga mais forte da religiosidade primitiva. O Ser Supremo, que se apresentava como fonte de todos os poderes, começa a confundir-se com os seres inanimados; entretanto continua sendo a fonte da vida dos seres viventes, como plantas, animais, homens e espíritos.24 Como fonte de poder na natureza, o Ser Supremo não apresenta um caráter religioso, mas utilitário e até mesmo abusivo. Segundo esse ponto de vista, atribui-se poder medicinal à água, ao fogo, aos talismãs, que são manipulados pelos pajés curandeiros, ou xamãs. Começa a 48
atribuir-se poder aos objetos materiais na natureza (fetichismo) ou utilizam-se as forças chamadas ocultas para efeitos mágicos, como a adivi nhação e a magia branca, cujo objetivo é a utilidade dos indivíduos ou da sociedade. Na ocorrência de abuso dessas forças ocultas, diz-se que houve magia negra e a finalidade é anti social.25 A crença no Ser Supremo como fonte de vida dos seres vivos foi deturpada quando o homem se entregou à prática de diferentes ritos de caráter religioso ou mágico e quando atribuiu a vida espiritual às plantas e aos animais. Não se pode afirmar que a magia antecedeu no tempo o senti mento religioso, pois os estudiosos concordam que a magia e a religião coexistiram sempre. Elas se diferenciam quanto à natureza e função de seus sistemas de idéias e práticas; entretanto, algumas práticas e crenças podem ser consideradas mágico-religiosas, pois a magia e a religião se encontram nelas intimamente entrelaçadas.26 E G. Schmidt, cujo texto utilizamos para grande parte de infor mações sobre o Ser Supremo na religiosidade primitiva, concorda que a magia não pode ser considerada como uma etapa prévia à religião; não há provas que demonstrem haver existido uma etapa pré-animista de crenças mágicas puras, pois a magia e a religião se encontram juntas desde a religiosidade primitiva.27 Com o decorrer dos tempos, pois, surgiram muitos deuses, demô nios, cerimônias e sacrifícios. A corrupção religiosa começou a divinizar o que é imoral e anti-social, e o Ser Supremo começou a ser rejeitado em face dos milhares de outros deuses e espíritos. Acerca das crenças e mitos e dos cultos e ritos que desvirtuaram a religiosidade primitiva, trataremos nos próximos capítulos.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FLAMMING, Peter J. Dios y Ia creación, p. 53. 2. CiD, Carlos & RIU, Manuel. Historia de ias religiones, p. 31. 3. Ibid., p. 31, 32. 4. TERRA, J. E. M. Origem da religião, p. 44. HUBY, José, em Chrístvs— história das religiões, denomina de bantos os africanos mais primitivos. SCHMIDT, E G., em M anual de história comparada de Ias religiones, p. 235, acrescenta os indogermânicos, os índios americanos, e denomina de bumerangue a certa civilização na Austrália e na África. 5. TERRA, J. E. M„ op. cit., p. 53. 6. PIAZA, W. O. Religiões da humanidade, p. 18. 7. Ibid., p. 18. 8. Ibid., p. 19.
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9. SCHMIDT, R Guillermo, op. cit., p. 61. 10. Ibid., p. 204. 11 .Ibid., p. 251. 12. SCHMIDT, R Guillermo, professor na Universidade de Viena, na ocasião. M anual de historia comparada de las religiones (1947) é uma tradução em língua espanhola do texto original em língua alemã, p. 257-286; o mesmo texto foi utilizado por STELLA, Jorge Bertolaso, em Introdução à história das religiões. 13. TERRA, J. E. M., op. cit., p. 53. 14. STELLA, J. B., op. cit., p. 123. 15 Ibid., p. 124. 16. SCHMIDT, P G„ op. cit., p. 272. 17. Ibid., p. 273. 18. TERRA, J. E. M., o p cit., p. 58-60. 19. Ibid., p. 60, 61. 20. Ibid., p. 71. 21. Ibid. 22. Ibid. 23. SCHMIDT, R G„ o p cit., p. 275. 24. TERRA, J. E. M., op. cit., p. 54. 25. Ibid., p. 55. 26. JAMES, E. O. Historia de las religiones, p. 11-14. 27. SCHMIDT, R G., o p cit., p. 196.
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CAPÍTULO III CRENÇAS E MITOS
INTRODUÇÃO No capítulo anterior abordamos a crença inicial dos povos primi tivos num Ser Supremo ou, em algumas tribos, nos seres supremos, possuindo características de superioridade, autoridade, poder, criação e sustentação do universo e do ser humano. Foi o início da religiosidade pré-literária, isto é, própria de um povo que não conhecia a escrita, e que por isso está enquadrado também na pré-história: período histórico que antecede o aparecimento da escrita e do uso dos metais, e que é es tudado por meio da antropologia, da arqueologia, da paleontologia etc. Sabemos que existem religiões pré-literárias, que valorizam a repe tição do mito e do rito (porque não podem transmitir as crenças pela escrita), e as religiões literárias, que desenvolveram mais ou menos um dogma (pela possibilidade da transmissão pela escrita).1 O presente volume está abordando a religiosidade pré-literária, presente num período que vai desde o início da humanidade até o apare cimento da escrita como meio de expressão e da ciência que estuda os costumes, a vida, os monumentos e os restos do homem primitivo. Os conhecimentos religiosos desse período eram transmitidos oralmente, principalmente as crenças e os mitos; eram transmitidos também pelo comportamento imitativo, principalmente os ritos.2 Das idéias religiosas desses povos antiqüíssimos, podemos ter conhecimento apenas do que sobreviveu em seus descendentes mais adiantados, bem como das noções conseguidas através dos monumentos de pedras, das artes nas cavernas, das inscrições em tijolos, pois a duração dos pergaminhos e do papiro, utilizados em épocas bem antigas, é relativamente limitada. Já vimos também no capítulo anterior que povos primitivos, exis tentes ainda hoje em várias partes do mundo, estão sendo estudados para elucidar os costumes e a religião dos primeiros homens da face da 51
Terra; destes povos, os australianos são os mais atrasados em civilização e os mais próximos do estado primitivo.3 Os estudiosos podem lançar mão de três tipos de documentos em seus estudos da religiosidade primitiva: 1.°) Os testemunhos obtidos de civilizações em estado primitivo que existem na África, na Polinésia e na América; 2.°) As crenças subentendidas em formas superiores de religião, como as dos povos da índia e da China; 3.°) Os documentos deixados por grandes civilizações antigas, como as de Roma, Grécia, Babilônia e Egito.4 A arqueologia apresenta materiais considerados pré-históricos que parecem ter relação especial com a religião: cemitérios e urnas funerárias; depósitos de oferendas; representações de divindades, espí ritos e figuras cultuais (ídolos esculpidos, relevos, pinturas); restos de construções com finalidade religiosa, como altares, templos ou bases de colunas. Embora as analogias entre as sociedades pré-históricas, as socie dades primitivas ainda existentes e os objetos arqueológicos sejam vagas, permitem levantar certas pistas sobre as quais basear a inter pretação dos estudiosos da religiosidade primitiva. Três aspectos podem ser observados: 1. Os povos existentes ainda hoje em estado primitivo de civilização nos dão uma idéia do que foram os povos antes de 3000 a.C.; 2. Os túmulos e pinturas, encontrados em cavernas pelos arqueólogos, atestam a crença na vida após a morte, na continuidade ou na renovação desta vida; 3. A psicologia assegura que a religiosidade humana possui fases de desenvolvimento semelhantes ৠfases de cada pessoa: de criança passa a adulto; a criança tem a imaginação acentuada, associa o espiritual ao material, confia intei ramente nos adultos, crê num Ser Superior sem dificuldade. Entre tanto, da mesma forma como não se pode conhecer o pensamento de um bebê, a não ser através de seus atos, assim também é difícil conhe cer, com absoluta certeza, a maneira de crer e de sentir do homem primitivo.5 As deduções feitas pelos estudiosos são válidas para conhecermos algo sobre os mitos, símbolos, totemismo, animismo e magia, que co meçaram a surgir após a crença primitiva no Ser Supremo. Essa reli giosidade não possuía um sistema de crenças organizado, como as re ligiões antigas e as vivas, mas existia o embrião de artigos de fé nela inserido. Embora alguns aspectos variem de clã para clã ou de tribo para tribo, notam-se algumas crenças comuns, cujo elemento mais caracterís tico é o reconhecimento de um ou mais deuses, aos quais o adorador se acha relacionado, quer por medo, quer por necessidade ou por gratidão. 52
Embora existam diversas concepções religiosas, outro aspeclo marcante na religiosidade primitiva é a idéia da regionalidade do sei' divino, tido como condição essencial para unir os adeptos da mesma concepção religiosa. Já vimos, no capítulo anterior, que a religiosidade primária come çou a girar em torno das perspectivas dos caçadores, dos coletores de ve getais, dos pescadores e dos agricultores, isto num ambiente restrito a de terminado local, em torno das sociedades tribais, onde a família era mais importante que outra estrutura social qualquer e onde as forças da natu reza exerciam grande influência sobre a religiosidade. Esse tipo de socie dade ainda subsiste em nossos dias, em diversas localidades, e são delas que se extraem os conhecimentos religiosos sobre suas crenças e mitos.
1. CRENÇAS BÁSICAS Imanência da alma — A alma, como sabemos, refere-se às habi lidades, motivos e capacidades características de um indivíduo. É a maneira da pessoa se apresentar em seu ambiente. Em geral, o homem primitivo crê no princípio animador da pessoa como imortal, isto é, a alma não parece com a pessoa. Crê, também, na imanência da alma, isto é, a alma pertence ao corpo, está estreitamente ligada ao corpo e a certas partes do corpo. A alma está alojada na carne enquanto o corpo vive. Crê ainda que a alma pode deixar momentaneamente o corpo e exercer sobre ele a ação de sua presença. Entre os índios cherokees, por exemplo, durante uma batalha o chefe coloca sua alma na árvore; o inimigo atira, mas ele não é ferido nem morto, a menos que o inimigo descubra que sua alma está na árvore e atira para lá. O conceito de imanência da alma transparece em alguns rituais mágicos de diversos grupos primitivos. Entre os iroqueses é comum a prática da magia exuvial (que faz mudar a pele sem perder a forma), o canibalismo (comer pessoas) e o esfolamento (tirar a pele dos inimigos, mutilar). Para o primitivo, sua individualidade está ligada ao próprio corpo, às secreções e excreções, aos cabelos, pêlos e unhas. Se as práticas mágicas atingem esses elementos, terão efeito sobre a própria pessoa. Essa mentalidade é observada hoje em dia nas práticas de umbanda, quimbanda e espiritismo, percebendo-se sua primitividade. Costumam designar as coisas relacionadas à individualidade da pessoa de pertenças; sua sombra, sua imagem, seu reflexo na água, seu nome, seu corpo, sua* vestes, seus utensílios.
II
O espiritualismo primitivo, embora seja da mesma essência do moderno, é mais grotesco e envolve representações concretas. A alma é associada ao sangue do animal ou ao sopro (do peixe). Observan do a decomposição do cadáver, o homem chega à conclusão de que alguma coisa anima o corpo, assim como a mão anima a pedra ou o instrumento de trabalho. Com a idéia da alma nasce a imagem de um mundo além-túmulo, dos mortos, idéia que pode chegar às noções de paraíso e inferno, como foi apontado no capítulo anterior.6 Assim, o homem primitivo já demonstra que crê numa alma indestrutível. Existem lendas populares que falam de espectro dos que morrem e voltam à vida, graças à aplicação de medicamento com grande poder mágico. Em transe, a alma pode visitar lugares remo tos. Para os ecóis, as almas dos mortos descem ao subsolo para se unir à grande deidade da Terra, Nsi, e somente voltam em casos ex cepcionais. As almas dos que morrem violentamente costumam ron dar pelos arredores por tempo indefinido. Alguns lugares são mais preferidos, como os lagos, evitados pelos nativos, por temer a vin gança das serpentes e dos crocodilos. Os ecóis também costumam descrever uma segunda alma enviada ao bosque para se apoderar de um animal.7 Outros grupos primitivos começam a aceitar a alma transcen dente ao corpo, isto é, essa alma domina o corpo, mas não faz parte dele.8 Os bucauas, da Nova Guiné, possuem a idéia da alma com uma existência independente do corpo. Crêem que uma variedade de entes sobrenaturais afetam a vida dos nativos e pululam pelas praias, rios, bosques e povoados; os considerados espíritos ancestrais são invocados em diversas situações.9 Os tamis, irmãos dos melanésios, distinguem espíritos de falecidos dos seres sobrenaturais de outras categorias. Anuto é identificado como o criador e é descrito sentado sobre a terra e sustentando o céu com a cabeça. A ele dedicam oferendas e culto. Alguns espíritos, segundo a concepção primitiva, pertencem a uma categoria distinta dos homens, animais e minerais; no entanto, apresentam características de pessoas, ainda que num a existência corpórea mais sutil.10 Morte — A morte sobrevêm à pessoa quando a alma abandona definitivamente o corpo. Entretanto, a alma pode estar presente em vá rios lugares ao mesmo tempo e pode aparecer aos vivos, embora habitan do em outro mundo. Os mortos podem reencarnar ou podem desapa recer definitivamente. Esses povos crêem que a alma pode introduzir-se no corpo dos animais ou das crianças recém-nascidas.
Quanto ao espírito dos ancestrais, nem todas as sociedades primi tivas acreditam que os ancestrais interferem na vida das pessoas, isto é, nem todos crêem que os espíritos dos mortos voltam. Para aqueles que aceitam tal idéia, os mortos podem trazer infortúnio ou fazer tra vessuras. Podem ainda ajudar ou punir seus descendentes. Em está gio mais avançado podem ser invocados por seus descendentes.11 Quanto à vida no além, é a crença mais acentuada do homem primitivo. Criam que, no outro mundo, a pessoa leva uma vida seme lhante à que levava na terra. Por isso deviam ser conservados, para lhe assegurar a sobrevivência, túmulos, ornamentos funerários e bens desta vida. Outros criam (e crêem) no outro mundo como um lugar melhor do que esse. A tumba é o elemento mais elementar da expressão religiosa; é universal, isto é, encontrada entre os povos de mentalidade religiosa menos desenvolvida e entre os povos de crenças avançadas, que vão até mesmo ao ateísmo de nossos dias. Através das sepulturas, podemos de duzir que o homem primitivo cria que os mortos conservam sua consci ência no outro mundo, com necessidades semelhantes. O homem primi tivo deixa transparecer que crê na sobrevivência da alma. Embora, se gundo o animismo, todas as coisas possuam espírito, o homem continua tendo um espírito superior. Por isso, a posição do morto, as cores e os apetrechos (pertenças) enterrados possuem um significado simbólico. Por causa do medo das almas, os nativos também costumam empregar a magia relacionada aos seus mortos, como será visto mais adiante. Guy E. Swanson fez um estudo minucioso da religiosidade primi tiva, conforme as sociedades atuais, e ouviu a opinião de etnólogos e antropólogos; chegou à conclusão de que alguns aspectos estudados são especulativos, aparecendo nas sociedades primitivas em maior ou menor grau de evidência. Os aspectos sociais, isto é, as condições em que vivem os povos primitivos influenciam suas religiosidade, ou seja, suas crenças e seus rituais. Este estudioso também confirmou a crença monoteísta dos povos primitivos. Monoteísmo — Aceitam o Deus como a “primeira causa de todos os efeitos e como a condição necessária e suficiente, para uma existência contínua da realidade”.12 Os povos primitivos e alguns povos antigos têm idéia semelhante de Deus. Muitas sociedades simples acei tam a divindade como única criadora do universo. Reconhecem o cui dado de um Deus para com o mundo. Quando aceitam deuses supe riores, estes são responsabilizados por todos os acontecimentos. Esses seres sobrenaturais, também criados pelo Deus superior, controlam a chuva, os ventos e a colheita, conduzindo o caçador à presa e o pes 55
cador ao cardume. Esses grandes deuses não são limitados, afetam a vida de todos os homens religiosos e representam atividades especiais nesta vida. Imagens — O mundo do primitivo é feito de imagens, sempre aceitas como realidades; essas imagens podem ser recebidas quando acordado ou dormindo, podem ser evocadas como presságio ou podem corresponder ás tradições antigas. Natureza e sobrenatureza, natural e sobrenatural são constantemente misturados.13 Se o mundo exterior do primitivo é constituído de imagens, elas são dominadas por forças espirituais. Entre essas forças estão as dispo sições humanas, que podem determinar acontecimentos felizes ou infe lizes. Segundo a mentalidade primitiva, os objetos, os seres, os fenô menos podem ser eles mesmos ou outra coisa diferente deles. Os índios bororos, por exemplo, proclamam-se araras (Brasil). No coração do animismo, como do totemismo, encontramos a idéia da força impessoal, ao mesmo tempo material e espiritual, difun dida por todas as partes e designada como o mana. Os ritos visam de fender-se do efeito do m ana ou assimilá-lo cada vez mais. O sacerdote possui o mana; o santuário é onde o mana se concentra com maior in tensidade.14 A crença de que o homem pode exercer ação sobre os espíritos, através de palavras e atos, denomina-se magia. Sortilégio — N um a degeneração gradativa da religiosidade primi tiva surge o sortilégio, que é a manipulação das forças sobrenaturais contra um a pessoa; é magia negra, geralmente muito usada entre pes soas que estão em íntima relação com as outras. “O sortilégio é um meio potencial para alcançar um poder sobrenatural”, isto é, para adquirir ri queza, derrotar inimigos, conquistar mulheres, ser importante.15 Em alguns grupos primitivos há poucos xamãs ou feiticeiros; em outros, eles são numerosos. Em algumas sociedades primitivas, portan to, o índice de feitiçaria é maior do que em outras. O sortilégio apare ce quando há grandes privações, como forma de alívio, entre os navajos. O feiticeiro domina os poderes sobrenaturais. Se ele falhar, isso é atribuído à habilidade mágica de alguém que interferiu para proteger a vítima ou ao defeito técnico do feiticeiro. Moralidade — Como vimos no primeiro capítulo, não são todos os grupos primitivos que deixam ver com clareza a relação do Ser Supremo com a ordem moral. Por causa desta falta de clareza, a maio ria dos antropólogos vê uma distinção entre religião e moralidade nos povos primitivos.16 Acham eles que a divindade ou as divindades dos primitivos somente se interessam pelos rituais religiosos e não pelo 56
comportamento das pessoas em relação aos outros. Alguns chegam a (ratar seus deuses com leviandade, censurando-os ou enganando-os em rituais e sacrifícios. Entretanto, observa-se que as sociedades primitivas possuem normas que regem seu comportamento ético. As concepções tio mana e dos espíritos trazem em si a presença de sanções sobrena turais de alguma imoralidade.17 Dada essa visão geral sobre as crenças básicas encontradas nos povos primitivos, algumas delas características dos povos primários, isto é, aqueles que vieram depois dos primitivos, vamos abordar alguns mitos e algumas crenças com maiores detalhes, no decorrer deste capítulo. 2. M ITOS Nas sociedades animistas e totêmicas encontramos uma mitologia, um sistema de mitos. No início do capitulo comentamos que as religiões pré-literárias valorizam a repetição do mito porque não podem trans mitir as crenças pela escrita. As crenças, pois, ficaram envolvidas pelos mitos, ao serem transmitidas de uma para outra geração. Os mitos descrevem uma história sobrenatural, pré-histórica, sem uma relação com o passado histórico ou com o presente. Para os primi tivos, o passado longínquo é explicado através do mundo mítico, que ainda exerce sua influência sobre os vivos.18 O mito coloca o homem num mundo fluido, em que animais e homens estão bem próximos uns dos outros. Para Lévy-Bruhl, o mundo do nosso folclore está mais próximo do dos primitivos.19 Vimos no primeiro capítulo que a experiência religiosa não pode ser desvinculada dos símbolos, dos mitos e dos ritos. A experiência do mito também é uma experiência do sagrado, pois coloca o homem em contato com o sobrenatural. O mito é como um a história verdadeira, sagrada e exemplar que oferece ao homem religioso modelos para sua conduta; este modelo é realizado através do rito ou ritual. O mito tam bém auxilia o homem a fazer o contato com o sobrenatural. Há séculos, e até milênios, os mitos não eram questionados, mas admitidos como reais e verdadeiros, sem prova ou discussão, pois não havia o conhecimento que hoje temos ao nosso dispor. Os mitos estão relacionados às cerimônias. Nos rituais em honra aos ancestrais míticos, por exemplo, atores mascarados e em trajes espe ciais dançam ao som de música. Os membros do grupo, vivos, se unem aos desaparecidos ou aos poderes invisíveis; nesse aspecto e na emoção que provocam, observa-se a religiosidade das cerimônias. 57
A arte também está relacionada aos mitos; desenhos, pinturas e esculturas encontradas em lugares considerados tabus, no interior das cavernas, evidenciam operações mágicas. O primitivo imaginava exercer ação sobre os animais que desenhava e esculpia. Assim também as danças, o canto e a música parece que eram processos mágicos.20 Todas as nações primitivas tiveram os seus próprios mitos, de acor do com o grau de civilização. No estudo comparativo das religiões, en contra-se o mesmo mito com nomes diferentes, o que pode comprovar o intercâmbio de idéias religiosas entre os povos.21 Os mitos surgiram da incapacidade de o ser hum ano compreender a existência de seres espirituais, a criação do universo, a origem da vida humana, animal e vegetal, o governo dos astros e fenômenos meteoro lógicos, a regulamentação da sociedade civil e da moral; nos mitos en controu a explicação plausível para esses fatos. Quando os mitos começaram a cair em descrédito, os filósofos procuraram dar uma explicação para o grande poder que exerceram so bre o povo: os mitos serviam para incutir moral e respeito às instituições sociais; os mitos eram recursos imaginativos para explicar a história, pois os deuses eram homens deificados (para algumas religiões); os mi tos existiam por causa da deficiência da linguagem, que faz imputar, a pessoas e coisas, qualidades de outrem, com nome igual ou semelhante. Os mitos não são teorias científicas ou sociológicas sobre os temas da morte, da origem do homem, do sentido da vida, mas são o resultado da reflexão de um grupo sobre essas questões. Os mitos servem para provocar uma resposta no homem. -São como pontes entre o intelecto e a emoção, entre a mente e o coração. Podem explicar também proble mas parciais, como o ódio entre o homem e a serpente, ou para expli car a forma particular de uma m ontanha.22 Nem todos os mitos estão relacionados a crenças religiosas. Alguns não passam de velhas tradições para explicar fatos desconhecidos e ho menagear lendários vultos heróicos. Nesse sentido, Lang observa que, ao lado do elemento religioso superior da crença num Ser Supremo, aparece o elemento mitológico inferior, que são os mitos humorísticos, fantásticos, que se encontram em flagrante oposição com o caráter reli gioso daquela crença; para ele, a crença é o que chamamos de elemento racional e elevado e os mitos são o elemento irracional e degradante.23 Os elementos míticos e as crenças podem ser separados; é nas eta pas mais primitivas que encontramos o elemento religioso em sua maior pureza e relativamente com menos defeitos. Os narradores de lendas logo glamourizaram suas fábulas com cenas de amor, de guerras e de tempestades, surgindo as mitologias. A
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Icrra se transformou na esposa de Deus e surgiram os ritos da fertilida de. Não havendo escrituras nem profetas, aconteceu a degeneração da religião para o politeísmo, gradativamente. “O ressurgir do politeísmo mitológico entre os gregos e arianos é uma prova da invenção dos bár baros, mas não um argumento contra um monoteísmo primitivo.”24 Observamos, pois, que os mitos foram uma necessidade que os povos primitivos tiveram para explicar o sobrenatural e para transmitir suas crenças às outras gerações. Observamos também que nem todos os mitos podem ser relacionados à vida religiosa dos povos, pois apresen tam-se como simples histórias de heróis. Finalmente, os mitos primiti vos se degeneraram em mitologias politeístas. Agora, vamos destacar alguns mitos encontrados entre os grupos primitivos, dos quais os estu diosos tomaram conhecimento. Determinado número de mitos era familiar às populações primi tivas, em primeiro lugar os mitos cosmogônicos e os mitos de origem (origem do homem, da caça, da morte). Mitos da criação — Mircea Eliade cita o mito cosmogônico que apresenta as águas primordiais e o Criador, antropomorfo ou com a forma de um animal aquático, que desce ao fundo do oceano para tra zer a matéria necessária à criação do mundo. Mitos, lendas e ritos rela cionados com a ascensão ao céu e com o “vôo mágico” (as asas, as plumas de aves de rapina, como a águia e o falcão) são encontrados universalmente em todos os continentes. Igualmente difundidos são os mitos e os símbolos do arco-íris e da sua réplica terrestre, a ponte, liga ções por excelência com o outro mundo.25 N a Austrália aparece o Ser Supremo relacionado a uma lenda da criação. Fala-se dele como duma espécie de Criador, chamando-o de pai dos homens e contando o que ele fez. Segundo uma lenda divulgada em Melbourne, Bunjil (o Ser Supremo) criou o primeiro homem da seguinte maneira: com argila fabricou uma estatueta; depois dançou em volta muitas vezes, soprou-lhes nas narinas e a estatueta animou-se e começou a andar. Segundo outro mito, o Criador iluminou primeira mente o Sol; a terra aqueceu-se em seguida e da terra saíram os homens. Ao mesmo tempo, o Ser Supremo fez os animais e as árvores. Ele é considerado o benfeitor da humanidade e continua sendo o provedor da humanidade; está em comunicação com os homens, diretamente ou por intermediários. Um outro mito, encontrado entre populações primitivas, explica que os tubérculos e as árvores que produzem frutos comestíveis (co queiro, bananeira etc) teriam nascido de uma divindade imolada. Num a das ilhas da Nova Guiné, é difundido o seguinte mito: do corpo reta 59
lhado e enterrado de uma mocinha semidivina, Hainuwele, crescem plantas e principalmente os tubérculos. Esse assassínio primordial intro duziu a sexualidade e a morte. A deusa nutre as plantas que dela nas cem e alimenta os homens, estando presente em suas vidas.26 Esse mi to relaciona as plantas alimentares ao sagrado, por derivarem do corpo de uma divindade. Um mito encontrado entre os ecóis fala de duas deidades supe riores, Osaw e Nsi. Viviam juntas no início e criaram todas as coisas deste mundo. Depois se separaram e construíram sua morada: um no céu (Osaw) e outro na terra (Nsi). Osaw é cruel, mandando as tempes tades, os raios e os trovões. Nsi é bondoso, fazendo crescer as colhei tas. O mal é enviado por Osaw, e os poderes benéficos são atribuídos a Nsi.27 Essas duas deidades aparecem nos mitos como amigos e ini migos, ao mesmo tempo; também acredita-se na existência de reservas de poder místico que essas deidades não exploram. Entre os maidus, tribo da Califórnia central, atribui-se grande importância aos mitos relacionados à criação. Os problemas da origem e começo de todas as coisas parece que influenciaram muito a imagi nação dos maidus. Para eles, não basta a explicação de que o mundo estava pronto quando os primeiros seres humanos o habitaram ou que houve uma nova criação depois de um dilúvio, como enfatizam algu mas mitologias. A criação, para eles, é um verdadeiro começo. No co meço de tudo somente existia o mar, tranqüilo, ilimitado, sobre o qual desceu o Criador, vindo do céu claro, ou sobre o qual o Criador e o coiote nadavam num barco. Quanto à origem e primeiro local de resi dência do Criador e do coiote, os maidus nada sabem. Neste mito dos maidus destaca-se a aguda e duradoura oposição do caráter do Criador e do coiote. De um lado está o Criador, sempre digno, benfeitor da humanidade, que se esforça para facilitar a vida dos homens e para fazê-los felizes e imortais. De outro lado está o coiote, sempre em oposição ao Criador, empenhado em prejudicar o homem e em tornar sua vida dura e mortal. O coiote é a maldade personifica da, herói nas travessuras. A razão por que o Criador cede aparente mente às pressões do coiote é porque os homens se deixam seduzir pelo coiote, para segui-lo e afastar-se do Criador. Observa-se que os mitos da criação e da queda do homem não se opõem às narrativas bíblicas, que a seu tempo também foram transmi tidas de geração a geração e, pela providência de Deus e inspiração de seu Espírito, ficaram registradas para os nossos dias e são aceitas pela fé. 60
Ainda em nossos dias, entre os polinésios, o mito cosmogônico serve de tipo para todas as criações no plano biológico, psicológico ou espiritual. Entre os índios navajos, por exemplo, conta-se o mito cos mogônico por ocasião das curas e das cerimônias de iniciação. Nesta ocasião também são feitos desenhos na areia que simbolizam os está gios da criação, a história mítica dos deuses, dos ancestrais e da hu manidade. Ouvindo o mito cosmogônico e contemplando os desenhos, o paciente se transforma numa testemunha da cosmogonia; freqüente mente toma um banho neste dia e ali está recomeçando sua vida, no sentido mais estrito da palavra.28 Mitos e símbolos, pois, relacionam-se principalmente quando existe a preocupação de se conservar o seu significado e de transmiti-lo à nova geração. Vejamos agora a relação entre mitos e símbolos. 3. M ITO S E SÍM BO LO S Os mitos se exprimem através de símbolos. Observando-se os símbolos, entende-se a mitologia que os envolve. Um desses símbolos é um pau, um pilar, um mastro ou outro ob jeto, fincado no chão conquistado pelo grupo ou clã. Não há tribo, nação, povo ou grupo que não utilize essa maneira de ligar o grupo com a terra e também com o céu. Em todas as zonas e tradições da ter ra há a confirmação desse símbolo e da mitologia nele implícita: nas tribos australianas, polinésias, indonésias, da África central, da Amé rica do Sul (grupos mais primitivos) e nas zonas mais evoluídas da índia, Oriente Médio e Mediterrâneo.29 Fincar um mastro no chão tem a ver com o “eixo do mundo” e significa que o grupo ali instalado possui existência e progresso no local; significa “a inserção da comunidade sagrada no espaço e no tempo, o seu enraizamento que atesta a religiosidade como contacto e ligação com o Divino”.30 Do pilar evolui a idéia de templo, onde estão contidos todos os símbolos religiosos, e a idéia do zigurate (torre redonda com diversos terraços) ou da m ontanha sagrada —- elementos que simbolizam a li gação da terra com o céu e a posse daquela terra por determinado grupo. Os símbolos, como os mitos, servem para unir o intelecto e as emoções; integram as dimensões sociais e pessoais da religiosidade, aju dando as pessoas a compartilhar suas crenças. “Em muitas sociedades pri mitivas, o aspecto compartído do símbolo é importante como princípio
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unificador da vida. O sangue, por exemplo, pode simbolizar a vida, a for ça, a fraternidade, ou a família e o grupo mesmo de parentesco.”31 Para explicar a profundidade do ser e a fecundidade ou ainda descobrir as fontes do sopro criador, utilizaram-se da água, do fogo, do ar e da terra. Para Mircea Eliade,32 é inconcebível que as ferramentas não ti veram certa sacralidade e que tenham inspirado episódios mitológicos. O valor mágico-religioso de uma arma sobrevive entre as populações rurais européias e em seu folclore. Foram articuladas mitologias em torno das lanças que se afundam na abóbada celeste e sobem ao céu, ou as flechas que voam através das nuvens, traspassam os demônios ou formam uma corrente até o céu. As ferramentas tiveram seu significado mitológico.33 O rito sepulcral revela a intenção religiosa ligada à sobreviência. A crença na vida após a morte pode ser demonstrada pela utilização da ocra vermelha, que substitui o sangue e simboliza a vida. Enterrar os cadáveres dobrados podia significar o medo de que retornassem ou a esperança de um renascimento (cadáver em posição fetal). Alguns túmulos atestam a crença primitiva na imortalidade. Quando se examina a inumação num povo arcaico de nossos dias, observa-se a riqueza e a profundidade do simbolismo religioso ali pre sente. O morto é enterrado com pequenas pedras verdes, conchinhas e a concha de um gastrópode. As conchinhas representam os membros vivos da família; a concha do gastrópode simboliza o esposo da morta. As oferendas têm sentido sexual (nos mitos, sonhos e nas regras de ca samento, o ato de comer simboliza, entre os cogis, o ato sexual) e cons tituem uma semente que fertiliza a terra.34 ^ A maneira de se enterrar os animais (segundo ossadas encontradas pelos arqueólogos e pinturas em cavernas) demonstra a crença de que o animal pode renascer a partir dos ossos. — O homem primitivo distinguia os cadáveres pertencentes à sua raça única dos da raça dos animais; também demonstrava uma conexão entre o túmulo e o além, uma preocupação em se comunicar com for ças invisíveis e superiores.35 A morte se apresenta, entre os primitivos, como um prolonga mento da vida, demonstrado pela utilização da cor vermelha, o forneci mento do alimento, objetos de uso e instrumentos de trabalho, no rito sepulcral. Não existe a idéia de espírito em oposição à matéria.36 Através da observação das pinturas nas cavernas, compreendem -se as crenças do homem primitivo. As pinturas rupestres encontram-se 62
bem no interior das grutas e cavernas, o que demonstra o caráter nunti noso das mesmas, pela dificuldade de acesso. As pinturas foram feitas em locais tão difíceis que, para observá-las, é preciso engatinhar, deitar de costas ou descer a regiões estreitas. A gravura esculpida na Gruta dos Três Irmãos, celebrizada como o “Grande Mágico” (cabeça de cervo, grandes chifres, cara de coruja, orelhas de lobo, patas de urso, cauda de cavalo e corpo de homem), pode ser interpretado como o “Senhor dos Animais” ou um feiticeiro que o personifique.37 Figuras “em raios X ”, isto é, de esqueletos, têm significado xamânico, pois só o xamã, graças à visão sobrenatural, pode ver o esqueleto. Não se pode determinar a função religiosa das estatuetas femininas. Poderiam representar, de alguma forma, a sacralidade feminina e os poderes mágico-religiosos das deusas. Leroí-Gourhan esclareceu a comple mentaridade dos valores religiosos camuflados sob o sinal “masculino” e “feminino”. Os sistemas que implicam a complementaridade dos dois princípios sexuais e cosmológicos são ainda abundantes nas sociedades primitivas, e vamos encontrá-los também nas religiões arcaicas. E provável que esse princípio de complementaridade fosse invocado ao mesmo tempo para organizar o mundo e para explicar o mistério da sua criação e da sua regeneração periódicas.38
Os valores religiosos com significado masculino e feminino vão aparecer na cultura do matriarcado, onde a mulher começa a assumir grande importância para a sociedade. A complementaridade dos dois prin cípios sexuais, masculino e feminino, diz respeito à manifestação diferente de um mesmo fenômeno, que pode ser investigado ou medido separa damente, mas não simultaneamente. Os dois princípios se complementam na explicação da criação. Observa-se, pois, que as figuras esculpidas também representavam símbolos e estavam relacionadas aos mitos. Demonstraram as crenças do homem primitivo: na imortalidade, na criação, na ressurreição. As pinturas nas cavernas demonstram a função ritual dos sinais e das figuras. Parece evidente que essas imagens e símbolos se referem a certas histórias, isto é, a acontecimentos relacionados com as estações, os hábitos do animal caçado, a sexualidade, a morte, os poderes sobre naturais e de certos personagens (especialistas do sagrado). As pinturas são como um código que significa, ao mesmo tempo, o valor simbólico (mágico-religioso) das imagens e a sua função nas cerimônias referentes a diversas histórias, das quais não se sabe o conteúdo exato.39 Através de seu simbolismo, atesta-se a crença no êxtase xamânico, no qual a alma abandona o corpo e viaja pelo mundo, encontran 63
do seres sobre-humanos e pedindo-lhes ajuda ou bênção. Esse cxtase permite penetrar nos corpos dos homens ou ser possuido pela àlma de um morto ou animal, espírito ou deus. Sobre o xamanismo falar-se-á mais adiante. Os mitos que falam da origem dos animais e das relações religiosas entre o caçador, a caça e o Senhor das Feras, possivelmente estão regis trados nas gravuras das cavernas, em código. Na sociedade primitiva, certamente havia mitos sobre a origem do fogo, que destacam a ativi dade sexual. O céu e os fenômenos celestes e atmosféricos estão envoltos em símbolos e mitos que demonstram a crença no espaço celeste como morada dos seres sobre-humanos: deuses, espíritos e heróis civiliza dores.40 Importantes também são as “revelações” da noite e das trevas, do sacrifício do animal caçado e da morte de um membro da família, das catástrofes da natureza. Essas revelações são feitas através de diversos mitos. À medida que a linguagem se desenvolvia, a força do simbolo da linguagem ou da palavra ia aumentando. Como exemplo, citamos os exercícios preliminares dos xamãs, preparando-se para sua viagem extática ou, em civilizações mais recentes, a repetição dos mantras durante a meditação. “A experiência exaltante da palavra como força mágico-religiosa conduziu às vezes à certeza de que a linguagem é capaz de assegurar os resultados obtidos pela ação ritual.”41 a Pa' lavra possui tal força, é natural que desse ênfase à transmissão oral dascrenças através dos mitos. , 4. XAMÃ Já se falou nas ascensões extáticas dos xamãs e na influência do xamã dentro da religiosidade primitiva. Xamã é a expressão pró pria às populações siberianas, mas encontra-se na Ásia central e na América. Entre as populações da Ásia setentrional e central (esqui mós, tungueses, mongóis), o xamã tem a função de assegurar as re lações entre o mundo dos espíritos e o homem; é equiválente ao fei ticeiro da África Equatorial ou ao mago da Babilônia.42 Para Mircea Eliade, o xamanismo diz respeito à uma técnica de êxtase. O xamã é um eleito que, por meio do êxtasé, alcança o mun do sobrenatual, inacessível aos demais. A intensidáde de sua experi ência o destaca daqueles que não a possuem. O xamã tem acesso ao céu e ao inferno, conhece os espíritos pelo nome e os domina com 64
gestos e palavras. Comparado ao cristianismo, poderia ser identifica do com o monge, o místico ou o santo.43 Para ser xamã, é necessário um a vocação especial, confirmada pela experiência extática. O xamã pode ser eleito pelo clã (como entre os tungueses) ou seguir a vocação pela própria vontade (como entre os altaicos). Pre cisa de uma experiência de êxtase superior ao êxtase neurótico, se bem que muitos xamãs têm uma herança neurótica e manifestam desequi líbrios. Uma vez que manifesta enfermidades nervosas e ataques epiléticos, é considerado eleito desde pequeno. Não basta ser filho de xamã; precisa ser tocado pelos espíritos. Esse toque é manifestado de diversas maneiras: ter visões, cantar enquanto dorme, ficar muito ner voso, ficar inconsciente com freqüência, alimentar-se com ervas e raí zes, ferir-se propositalmente, jogar-se na água e no fogo etc. Se a fa mília observar estes sinais, entrega o eleito a um xamã consagrado para que ele seja instruído.44 Durante o período da instrução do xamã, há estados de êxtase e de lucidez, quando lhe são ensinadas as tradições da tribo, a histó ria dos antepassados, os nomes dos espíritos e a linguagem xamânica. A instrução é imprescindível; é complicada e exige do candidato inteligência e memória incomuns. Se o xamã é um psicopata, já se curou a si mesmo e aprendeu a controlar suas êxtases, dada sua ins trução. Mircea Eliade assim se expressa: Que estejam ou não sujeitos a ataques reais de epilepsia ou de histeria, os xa mãs, os feiticeiros e os homens-médiuns em geral, não podem ser considerados como simples enfermos, porque sua experiência psicopática tem um conteúdo teórico. Se se curam a si mesmos e curam aos demais é, entre outras coisas, por que conhecem o mecanismo — ou melhor, a teoria — da enfermidade.45
Esses aspectos abordados quanto à personalidade do xamã es tão dentro do ponto de vista do homem primitivo, com mentalidade mágico-religiosa. Portanto, não vamos afirmar que os psicopatas, epiléticos, histéricos de nossos dias deveriam preparar-se para serem fei ticeiros ou médiuns. Veja observações no último capítulo. A iniciação xamânica supõe uma ruptura com a vida anterior, significa desfazer-se simbolicamente do corpo anterior e tomar um novo. É o mito da morte e da ressurreição, traduzido pela viagem ao céu e ao inferno. Depois de iniciado, o xamã vê com outros olhos, ouve com outros ouvidos, pensa com outra cabeça, anda com outras pernas e trabalha com outros braços. Quando o candidato é reconhe 65
cido xamã, é considerado como distinto de quem era antes. Em seus êxtases, entra em contato com o Ser Supremo, com espíritos- benéfi cos e maléficos e, às vezes, espíritos de seus antepassados. Conta com esses espíritos em forma de possesão ou de comunhão, e por isso pre cisa conhecer seus nomes e sua linguagem.46 Durante a ascensão extática, o xamã entra em contato com um ser sobrenatural, o seu Deus. Outros homens podem ter outros deu ses, que ocupam um lugar proeminente nos mitos da tribo, mas o xamã só se importa com o seu Deus. Isso acontece entre alguns po vos como, por exemplo, entre os índios cuervos, para quem o Sol ocu pa ainda um lugar de importância, pois se aproxima, mais do que qualquer outro ser, da idéia de um Ser Supremo.47 Entrando em contato com o Ser Supremo ou com outros espíri tos, para tanto o xamã imita animais, cobre-se com disfarces, muitas vezes de aves, para simbolizar que pode abandonar este mundo para identificar-se com o outro. O tambor é um instrumento indispensável nas atuações xamânicas.48 A principal função do xamã é curar os enfermos e dominar os maus espíritos e as almas que perturbam os parentes. O xamã entra em êxtase quando a enfermidade é grave e não é curada mediante outros expedientes. O objetivo do êxtase é buscar a alma errante do enfermo. Outras vezes, o xamã é requerido para diagnosticar e curar os males sociais, como pestes, esterilidade etc, que ameaçam o clã. Às vezes o xamã precisa levar sacrifícios aos antepassadas ou a mor tos recentes, ou precisa acompanhar um defunto que não deixa em pqz sua parentela.49 É eficaz a intervenção do xamã? Cura? Expulsa demônios? Ele atua, na verdade, como um psiquiatra ou psicanalista, influenciando a personalidade dos pacientes. As pessoas, não obstante, aceitam sua in tervenção e a consideram poderosa. Os xamãs modernos provocam seus êxtases mediante o álcool, o fumoi, as drogas e costumam utilizar-se de truques que aprendem na iniciação. Isso acontece nas tribos que entra ram em contato com a civilização. De qualquer forma, o xamã foi au tenticado em cerimônias impressionantes. É um místico e seu prestígio são os êxtases. O xamanismo não é uma religião, mas o xamã representa a mística de uma religião de estrutura arcaica.50 Relembrando as palavras de Mircea Eliade, também as ascensões extáticas dos xamãs, além do simbolismo do võo, contribuem para con sagrar o espaço celeste como fonte e morada por excelência dos seres sobre-humanos.51 66
5. T O T E M IS M O
O totemismo é uma crença mágica que surge a partir da incapa cidade do homem primitivo entrar em relação com o mundo invisível; a partir daí começa a estabelecer com ele um pacto de aliança, válido para si e para a posteridade. Para entrar em contato com os seres invisíveis, o homem primitivo sc utiliza de seres visíveis, através de cerimônias mágicas com troca de sangue, sacrifício e comunhão; o sangue, simbolicamente, estabelece a comunidade da vida. A aliança é feita com a utilização de animais sobrenaturalizados pela presença de um espírito (o espírito do antepassado).52 O totemismo subordina um grupo de homens, chamado clã, a determinada espécie de seres sagrados ou, por vezes, de coisas sagra das, chamadas totens. O termo totem era empregado por alguns ín dios da América Latina, os algonquins, e apareceu pela primeira vez num livro de J. Long (1791). Descobriu-se, em fins do século 19 e prin cípio do 20, que as tribos do Centro australiano conservaram melhor o totemismo.53 Quem fez a melhor síntese sobre o totesmo foi o fran cês Émile Durkheim (1858-1917), que também o apresentou como teo ria para as origens da religião, teoria essa derrotada pela confirmação da crença no Ser Supremo. As idéias fundamentais do totemismo são as de totem, mana e tabu. Totem — Designa a espécie de seres ou de coisas que todos os membros do clã julgam sagrados. É uma classe de objetos materiais, olhados com repeito supersticioso por se julgar que existe entre eles e cada membro da classe uma relação íntima e muito pessoal.54 Na maioria das vezes são animais e mais raramente elementos da natureza. A palavra totem significa “é meu progenitor”. O nome do totem é aplicado a todos os membros do clã, unindo-os de maneira especial. Se o totem do clã é a serpente, por exemplo, os membros usarão o seu nome, dirão que é seu parente, abster-se-ão de a matar, acreditarão estar ao abrigo da sua mordedura etc. Do mesmo modo usam o nome do hipopótamo, do crocodilo, do leopardo, do chim panzé etc. O totemismo supõe uma consciência profunda de pertencer a um clã. Revela o laço de parentesco que existe entre os membros do grupo e o seu totem; esse laço pode ser estendido ao animal ou planta de que se serve a comunidade.55 O totem não é o animal isolado, como por exemplo o corvo, mas toda a espécie. O parentesco do grupo totêmico com o totem correspondente está no sangue. Cid assim se expressa em relação ao parentesco: 67
O homem vê nos animais da espécie totêmica amigos e aliados que o socorrerão fisicamente, ou com seus poderes anímicos, nas situações comprometidas, favore cerão suas aventuras de caça e o avisarão da proximidade do perigo. Em troca, os animais receberão o respeito e cuidados do homem, que se absterá de maltratá-los e de matá-los.56
N a tribo, que é a reunião de grupos totêmicos, todos os seres e coisas são classificados em relação ao totem. O totem da tribo ou fami liar é mais comum do que o individual. Cada clã tem o seu totem (ani mal ou planta) e os membros se sentem tão ligados a ele que o consi deram seu pai, do qual derivam. N a Austrália, a maioria dos totens é de animais e plantas comíveis. Aquilo que era o sustento material pas sou a significar dependência ideológica.57 Em mais de 700 totens iden tificados entre os australianos, apenas 56 são objetos materiais ou fe nômenos naturais, como o vento, o Sol, a água, as pedras, os astros. Os membros do clã costumam dar-se o aspecto exterior do to tem. Se é búfalo, os cabelos são dispostos em forma de cornos; se é tartaruga, a cabeça é raspada, mas seis cachos lembram a cabeça, as patas e a cauda do animal; se é pássaro, usa-se a plumagem do mesmo. As pessoas passam a se considerar como o próprio totem. Para Donini, o totem vai assumindo os aspectos e as exigências cada vez mais pró ximas de um chefe de tribo, humaniza-se e transforma-se em ídolo.58 O totem rege todos os matrimônios do clã, criando os tabus que proíbem o casamento com tótens incompatíveis e prescrevem os compa tíveis. O totemista segue todas as prescrições do totem. O cadáver do animal totem é enterrado com muitas cerimônias. Guarda-se luto por ele, pois afinal é considerado parente, aliado, ancestral. Há ocasiões em que o animal é feito juiz: entre os moxos, do Peru, o jaguar experimenta, testa, os homens bruxos.59 Cada grupo ou clã possui seus objetos rituais, que contém os es píritos dos ancestrais e sobre os quais o totem é desenhado. Nos luga res totêmicos ou sagrados, ao redor de vasos sagrados, realizam-se ce rimônias; a principal delas é a do “intichiúma” — nome indígena que significa fabricação —, que muda de aspecto de acordo com os gru pos e animais. Além do grau de parentesco e intimidade, o totem ainda é o sím bolo, o brasão de um grupo, um verdadeiro brasão, cujas analogias com o brasão heráldico sempre foram observadas. Esse símbolo pode ser de senhado no chão e regado com sangue; pode ser pintado nas tendas, nos botes, nos escudos e até mesmo tatuado no próprio corpo. O totem se transforma numa espécie de divisa, símbolo ou marca, no signo étnico destes homens. 68
O totem pode posuir caráter religioso; em relação a ele, as coisas podem ser consideradas sagradas ou profanas. Certas partes do corpo, com a cabeça e o sangue, são particularmente sagradas. De fato, a instituição do totemismo não se encontra em todas as tribos com as mesmas características e ênfases; há tribos que o ignoram totalmente e outras que só guardam seus vestígios. O totemismo é uma instituição social, baseada num conceito mágico; ele não cria a consci ência religiosa, ou a moral, ou a crença nos espíritos, mas se utiliza delas.60 Outro conceito ligado ao totemismo é o conceito de tabu. Tabu — Tal crença se encontra mais enraizada nos povos primi tivos da Oceânia, principalmente Polinésia, onde também se encontra um vago culto aos antepassados. A idéia de tabu se desenvolve a par tir do totem. O animal que é o totem da tribo ou do clã não pode ser comido, nem caçado, pois é considerado parente daquele clã. Por ou tro lado, o próprio totem, crê-se, estabelece certas proibições para o grupo. O tabu é algo fortemente marcado ou proibido, portanto, tem ca ráter sagrado. O próprio termo é polinésio. Designa os limites, nos cos tumes religiosos e sociais, que separam certas pessoas (reis e sacerdo tes), certas coisas (alimentos e objetos rituais) e certas atividades (re lações sociais) e impõem regras para a aproximação dos mesmos ou para o seu isolamento.61 Tabu designa a instituição em virtude da qual certas coisas e atos são proibidos. O tabu tem uma dimensão positiva e outra negativa: a separação pode ser positiva se seu objetivo é a proteção, a diferenciação ou a for mação da identidade; e pode ser negativa, se é uma forma de controle ou de domínio.62 O objeto, pessoa ou ato considerado tabu está interditado porque produz graves malefícios. Assim, o polinésio considera tudo que é novo e estrangeiro como tabu, por ser perigoso e nocivo. O tabu é considerado contagioso e contaminador; existem, porém, tabus de efeitos purifica dores e santificantes.63 Alguns tabus são permanentes; outros, temporários; uns são de caráter público; outros, particulares. Em geral, as restrições do tabu afetam muito as mulheres. Pesa vam sobre elas tabus alimentares e tabus relativos os períodos impuros (mestruação, gravidez). Nas ilhas Marquesas, por exemplo, as pontes e os caminhos são tabus para as mulheres porque construídos pelos ho mens. R. L. Stevenson observa que, se há muitas proibições para o ho mem, poucas são permitidas para as mulheres; nos Mares do Sul, a 69
mulher não come carne de porco, não se aproxima dos barcos, não ocupa o assento do homem, não cozinha em fogo aceso por “homem etc.64 Entre os aruntas da Austrália, a mulher não pode caçar nem tocar nas armas; mulheres e crianças não devem ver objetos sagrados, as chirungas (pedras sagradas), nas quais residem as almas dos ancestrais e dos vivos. As proibições quanto aos alimentos para as mulheres estão mais relacionados à caça (que os homens obtêm) e não tanto aos vegetais. Vejamos agora alguns exemplos de tabus: Tocar num cadáver ou no rei deixa a pessoa tabu até que se tenha purificado pelas cerimônias especiais. As relações sociais de casamento e alienação de propriedade eram regulamentadas pela influência do tabu. O sangue hum ano ou animal é tabu no mais alto grau. É recolhi do em vasilhas próprias. Por associação, a cor vermelha é tabu; no Ja pão, por exemplo, os lugares públicos privativos do micado são pintados de vermelho; na África, terra e frutas vermelhas são evitadas. O nome da divindade, do rei ou da pessoa morta também são ta bus, sendo proibido pronunciá-los, quer por reverência, quer por temor. Em princípio, é proibido m atar e comer o animal totêmico, colher e comer o vegetal totêmico, a não ser nas cerimônias especiais, solenes, verdadeiras comunhões relacionadas ao totem. É proibido, às vezes, olhar e tocar os objetos sagrados, falar du rante as cerimônias sagradas, trabalhar e às vezes comer nos dias con sagrados às festas religiosas. É proibido unir-se à mulher do mesmo clã. Nas cerimônias de iniciação, estudadas no próximo capítulo, ob serva-se um sistema completo de proibições, em que o candidato se re tira da sociedade, vive no mato, come somente o necessário ou pratica o jejum, não pode falar, distrair-se, lavar-se ou mover-se. Segundo Spencer e Gillen,65 as proibições do tabu classificam-se em três grupos: 1. Relativas a certas pessoas, a certas épocas e a certos lugares. 2. Os que asseguram a melhor alimentação aos anciãos, e por isso a arte de instituir os tabus é guardada, ciumentamente, pelos anciãos. 3. Os que asseguram aos homens, principalemnte adultos, certos alimentos animais, proibidos às mulheres e às crianças. Em algumas tribos, os jovens, as mulheres e as crianças renunciam a alimentos ha bituais durante boa parte do ano. Para neutralizar os efeitos dos tabus são utilizados o fogo e a água, em determinados rituais, porque possuem qualidades purificadoras. 70
A noção de tabu pode ser confundida com a noção de pecado, embora esse não seja castigado imediatamente como acontece com a violação do tabu. No Ocidente, o significado de tabu foi ampliado até se conver ter numa categoria religosa universal, principalmente na obra de J. G. Frazer (1911). O termo passou a designar a dimensão negativa e proibitiva da experiência do sagrado patente nas regras de aproximação ou de isolamento, de pureza ou im pureza, de distinção entre iniciado e não iniciado. R. R. Marrett o define como o aspecto negativo do mana (1921). O tabu é considerado como um sistema de proibições que marca a separação entre o mundo do sagrado e do profano e de limita o permitido e puro do não proibido e impuro na sociedade.66
O uso freqüente do termo na atualidade tem causado tanta con fusão quanto esclarecimento. O utra idéia relacionada ao totemismo é o mana, ou força im pessoal. Mana — A crença do mana está intimamente ligada à idéia do tabu, pois é o poder do objeto proibido ou o poder do chefe que o proí be. O termo mana é melanésio. Designa uma força impessoal, espalhada por todos os lugares e inerente aos símbolos sagrados, aos seres e obje tos sagrados. Qualquer objeto, pessoa ou acontecimento que se com porte de maneira insólita para o bem ou para o mal está investido do poder da ordem sagrada ou transcendente. Codrington assim definiu o mana:67 É uma força, uma influência de ordem imaterial e, em certo sen tido, sobrenatural; mas é pela força física que ela se revela ou então por toda espécie de poder e de superioridade que o homem possui. O mana não é fixado sobre um objeto determinado; pode existir em qualquer espécie de coisasf...) Toda religião do melanésio consiste em alcançar o mana, seja para dele beneficiar-se pessoalmente, seja para fazer outrem dele aproveitar. O mana como uma força mágica reunindo todas as forças misticas, como uma espécie de fluido invisível e onipresente, não existe em povo algum. A crença que se assemelha à força impessoal descrita acima se encontra no mana dos melanésios e no orenda, manitu e wakonda dos índios norte-americanos. O mana não significa exclusiva e especificamente algo religioso, Também não é exato que cada coisa possui o seu mana, como uma es pécie de força psíquica. O mana é uma força superior, especialmente grande e triunfante, que pode ser sobrenatural e mística como também 71
pode ser natural e profana. Não há como estabelecer de que forma a pessoa ou o objeto demonstra que possui o mana, ou se o mana é um fluido ou algo psíquico. Para os indios americanos, quando se usa a expressão wako, fala-se do sentido sagrado do objeto ou da pessoa, isto é, que pertence a um espírito, foi dado por um espírito ou está relacionado a um espírito.68 Para Schmidt, alguns espiritos de fato estão em oposição ao corpo e sepa rados dele, como queria Tylor; entretanto, ele não aceita que em todos os casos e com predominância seja assim. Em numerosos casos trata-se de seres terrestres, nos quais não se efetua a separação dos espíritos, nem consciente nem inconscientemente; são seres indivisíveis, que atuam de forma independente, como pessoas. Observa ainda que o índio de maneira nenhum a faz as separação do pessoal e do impessoal, do corporal e do incorpóreo. Está ele interessado no problema da existência da realidade e considera como existente tudo que pensa, sente ou sonha. Deduz-se dessas idéias que a maior parte dos problemas relacionados com a natu reza dos espíritos, se são pessoais ou impessoais, não tem pertinência.69 Para Durkheim, que fez a melhor síntese do totemismo, existe um princípio comum aos símbolos totêmicos, aos indivíduos da espécie sagrada e aos membros do clã. Dá-se o nome de churinga a esse prin cípio. A cerimônia totêmica se dirige a esse princípio, isto é, enaltece uma espécie de força anônima e impessoal, que está nos seres sem se confundir com eles. Os indivíduos morrem, mas a força continua viva. É como se fosse um deus impessoal, sem nome, sem história, imanente ao mundo e difuso num a multidão inumerável de coisas.™ Os primitivos crêem nessa força impessoal que seriam as virtudes dos seres, principalmente das pessoas, como: inteligência, coragem, auto ridade, saber. Essas forças sobrevivem quando as pessoas morrem, ou melhor, quando seus corpos se decompõem. São denominados de manes ou manas e podem ser úteis ou causar dissabores aos que permanecem vivos. Crendo na sobrevivência de si próprio, o homem primitivo insti tuiu as cerimônias fúnebres. Nessas cerimônias, o primeiro cuidado consiste em fixar a alma da pessoa num habitat que substitua o corpo. Simbolicamente esse habitat é o crânio do defunto, pintado de vermelho, cor de sangue e da vida; o habitat pode ser também um nicho familiar ou até mesmo uma espécie de capela funerária construída de terra, casca de árvore ou de madeira.71 Entre os antigos agricultores latinos da Itália, os poderes associados a determinados lugares ou funções se conheciam por numina. Um estu dioso dessas crenças utiliza o termo “numinoso” não como sinônimo de m ana ou orenda, mas significando uma condição mental única, priva72
(iva da consciência religiosa e comparada às virtudes como bondade, beleza e verdade, enquanto que mana, para ele, é um nome genérico do poder que se atribui às pessoas e objetos sagrados dentro da religião ou da magia.72 Os melanésios e os índios americanos, em todo caso, crêem numa força invisível, que pode ser interpretada como vinda dos espíritos ou dos antepassados ou ainda da própria pessoa. Crêem na atuação e parti cipação das almas neste mundo, e esta crença, em alguns grupos, está ligada ao totemismo. Para alguns grupos primitivos, os ancestrais foram seres totêmicos. Quando morriam, sua alma entrava na região das almas e depois reencarnava. Essa crença nos antepassados não tem sua origem e seu desenvolvimento definidos. Para Mircea Eliade, a crença nos antepas sados já fazia parte do homem primitivo e é solidária com a mitologia das origens; é uma idéia religiosa difundida universalmente, quer ligada ao totemismo, quer não. A influência dos antepassados é mais forte no âmbito familiar e dos amigos, isto é, pequenos povoados, pequenos grupos nômades, esparsas comunidades rurais ou outras unidades menores que uma aldeia. Se a alma sobrevive ao corpo, crêem os primitivos que há a possi bilidade de ela voltar a este mundo. Os que aceitam a reencarnação acreditam que os mortos voltam à vida com os egos identificáveis, isto é, seu caráter, seu comportamento, suas características pessoais perma necem os mesmos. Há casos, entretanto, em que se acredita numa reencarnação sem a preservação da personalidade.73 Se em alguns grupos a idéia de reencarnação não fica bem clara, cies acreditam que, de alguma forma, o espírito da pessoa que morreu continua sua obra em outros corpos vivos e os torna mesmo capazes de reproduzir sua espécie. Entre os índios americanos e os bororos do Brasil, a alma é concenbida como sendo um urso, um cervo, um pássaro, uma serpente, um lagarto ou uma abelha. Com a morte, ela retoma sua forma original e reencarnase em corpo animal. Para Durkheim, foi nessa idéia que surgiu o conceito de metempsicose.74 6. METEMPSICOSE É a crença da transmigração ou metamorfose (mudança de uma forma em outra) ou da licantropia (o homem virar lobo). Homens, animais, plantas e deuses podem mudar de forma ou estado, isto é, a alma pode passar de um corpo para outro. 71
Assim, o homem tem a possibilidade de passar à natureza divina, após várias metempsicoses. Se o homem pode ser deus, por que um deus não pode se tornar homem? A mitologia grega posterior resolverá satis fatoriamente este problema. Essa crença na metempsicose será prolongada às civilizações cul tas, como as da índia e Grécia, e em religiões como o hinduísmo (crença na reencarnação) e o budismo (metempsicose na entidade do caráter até atingir a perfeição do Nirvana ou até a extinção da personalidade). Nos primeiros séculos do cristianismo, surgiu o gnosticismo com a doutrina da transmigração das almas. A teosofia moderna está retomando a mesma crença. Quanto aos primitivos, a crença na metempsicose não está pre sente em todos os grupos. Essa crença é uma degeneração da crença na sobrevivência da alma, que é indiscutível. Segundo o pensamento primitivo, a alma não se habitua às novas condições em que vive; tem saudades do velho corpo e dos bons momentos que nele passou; por isso, deseja voltar e acaba entrando nos objetos de que antes gostara, ou em animais vivos, ou em criaturas humanas — crianças — onde revive a vida anterior por uma espécie de metempsicose, que não é bem definida. 7. ANIM ISM O Já vimos, no primeiro capítulo, que o animismo foi uma das prová veis explicações para a origem da religião. Comprovou-se que tal teoria não é convincente. Entretanto, a crença num princípio superior (força vital ou alma) residindo nos lugares e nos objetos é comum ao povo primitivo. Embora rechaçado como teoria da origem da religião, o animismo subsiste na forma do naturalismo ou culto aos fenômenos naturais, co mo: o Sol, o fogo, a Lua, a chuva, as tormentas.75 A reprodução dos traços fisionômicos na água, a sombra corres pondente de vultos e objetos conhecidos, o eco da voz hum ana e de outros sons, os sonhos maravilhosos — esses e outros fatos sugeriram ao homem primitivo a idéia de uma duplicação espirirtual, uma vez que não conhecia as leis físicas e psicológicas. O animismo é um a ati tude que coloca em toda natureza espíritos mais ou menos análogos ao espírito do homem.76 Cônscios de possuir, além do corpo, uma alma transcendente, achavam que essa mesma alma podia habitar nos astros, nos animais, 74
nas plantas, vento, água e no fogo; chamavara-nas de espíritos, aíri buindo-lhes força e vida pessoal e prestando-lhes culto. Ligadas ao animismo estão as idéias de m ana, tabu, ancestrais míticos, semi-animais, semi-humanos. De alguma forma, o animismo e o totemismo são eneontrados nas religiões, quer em civilizações primi tivas, quer em civilizações mais adiantadas. Muitas superstições de gente m oderna e educada não passam de verdadeira sobrevivência das idéias animistas. 8, FETICHISMO No início, o animismo era denominado de fetichismo, por estar ligado aos fetiches. Do latim facticius (artificial) ou ficticius (imaginário) deriva a palavra feitiço. A língua francesa lhe deu a forma de fétiche e fetíchisme — que se generalizou em todas as línguas européias, inclu sive o português, que utiliza o termo para designar os rudimentos da religiosidade de certos povos da África. Feitiço refere-se a certos objetos sagrados do culto dos africanos, que parecem ser adorados como se possu íssem poderes sobrenaturais. O fetiche pode ser considerado um totem geomórfico, em que o animal é substuído pela figura. O fetiche é uma figura modelada de barro, pedra ou madeira, repre sentando animal ou objeto, ao qual se atribui poder especial. São os próprios objetos, como: penas, peles, ossos, unhas, cabelos, dentes de alguma animal tutelar. Qualquer árvore, rocha ou rio pode ser associado à idéia de fetiche. Existe no fetichismo a concepção antropomórfica das coisas mate riais que, mesmo passivas, crê-se serem dotadas de vontade e poder próprios. Qualquer coisa estranha ou de forma peculiar pode tornar-se um fetiche. Segundo José Huby, que estudou os bantos da África, os primi tivos aceitam duas categorias de espíritos; uma categoria se refere aos manes ou sombras e a outra categoria se refere a espíritos superiores, alguns dos quais são tutelares e outros são arteiros e maléficos. Estes últimos podem possuir os homens e são expulsos por exorcismos adequ ados. Cada um desses espíritos tem nome, exigências, feiticeiro, ritual, cerimônias, sacrifícios próprios. Esses espíritos são os que podem com u nicar virtudes particulares a imagens, figuras, estatuetas que possuam o seu nome. Existem aqueles para o uso do bem e aqueles para o uso do mal. Seus rituais são relacionados à magia e são comuns na África ocidental. Entretanto, o fetichismo não constitui, por si só, a religião doi africanos.77 71
Como já vimos no capítulo anterior, o ponto central do culto dos primitivos é a adoração, em oração, cerimônias e quiçá sacrifícios, de um Ser Supremo, de quem podem proceder diversos deuses terrestres. Próximo a esse culto, e até rivalizando com ele, está o culto aos ante passados que, em algumas tribos, descamba para os sacrifícios humanos. Tanto os deuses terrestres como os antepassados podem habitar tanto nas imagens deles como em objetos ou coisas, chamados de fetiches. Para o verdadeiro fetichista, sua adoração não se dirige ao objeto fetiche como objeto, mas como símbolo das divindades dos antepassados da casa, da comunidade ou da tribo. Não existe, em parte alguma, a adoração ao objeto simplesmente, mas sempre ele está relacionado ao espírito ou à divindade. Tampouco existe apenas o fetichismo, isolado de outras crenças. Schmidt lembra ainda que o fetichismo é mais comum às tribos que não estão num grau de civilização completamente primitiva; são tribos em que sua primitividade começa a se elevar a um a cultura secun dária, como os negros da África ocidental, os polinésios dos Mares do Sul, os drávidas, da índia anterior, e algumas tribos da América do Norte.78 Quando o fetiche passa a servir diversas tribos, pode transformarse em ídolo da nação, levando tal crença ao politeísmo. O homem primitivo crê num ser superior, crê na imanência da alma, na sobrevivência dela, em espíritos que vagam e podem entrar em algum animal, coisa ou pessoa, alguns aceitam a reencarnação ou a transmi gração das almas, aceitam outros os fetiches. A degeneração da religiosidade primitiva em soeiedades posteriores deve-se ao fato da magia sobrepujar a religião. 9. M AGIA Magia é a técnica e a estratégia do animismo. Palavras ditas em voz alta ou cantadas exercem determinada força. Dançar antes da guerra assegura a vitória. A voz tem papel importante na magia: bênção, maldição e encantamento são fórmulas mágicas que expressam o desejo, o pensa mento, a vontade. Magia simpática é aquela que utiliza a participação entre o indi víduo e sua imagem. Quebrar a imagem pode ferir ou destruir o indivíduo. Esse princípio é aplicado na bruxaria. O ato mágico serve para produzir a coisa desejada: invocar a chuva, preparar uma caça feliz. M agia contagiosa é aquela que exerce influência sobre a pessoa a.partir de suas pertenças (pêlos, excrementos, pegadas, vestimentas). 76
A magia está presente em certos objetos, com determinado poder: afastar a desgraça ou produzir a felicidade. São amuletos, feitiços e talismãs. A magia negativa traz a idéia de tabu: proibir certos atos ou coisas para evitar males. Existe a magia boa, praticada pelos chefes e sacerdotes; e a magia má, que causa a doença e a morte. O contrafeitiço é uma ação contrária à magia maléfica. A magia está relacionada ao simbolismo dos objetos e dos rituais, à idéia de tabu, xamã, fetiche. A relação do homem com a natureza pode ser vista sob dois aspectos: a ação dela sobre ele e a ação dele sobre ela. Se atualmente o homem possui técnicas para dominar a natureza, em épocas remotas e civilizações primitivas o expediente foi a magia. Segundo o pensamento mágico, o homem é tentado a interpretar todo processo natural (chuva, vento, tempestade etc) como resultado da ação de uma pessoa, de um espírito. Por isso o primitivo diz à flecha: “Vá e mate” Ele tem medo da novidade, do desconhecido (idéia de tabu) porque confia nos objetos, cujos poderes míticos conhece.79 A imitação das regras da caça, por exemplo, destina-se a favorecer o êxito da própria caça. É a magia imitativa. As representações de animais encontradas nas convernas eram conferidos poderes mágicos. Com o objetivo de facilitar a captura, o animal é desenhado com flechas à sua volta, ferido ou no momento de cair na armadilha — na esperança de transferir a imagem para a realidade.80 Os aborígines australianos, por exemplo, antes de caçar o canguru, dançam religiosamente ao redor de um desenho que representa a presa tão dese jada. Prerrogativa inicial de todos os membros do clã, a magia, aos poucos, vai se localizando em alguns indivíduos, que se consideram dotados de um poder extraordinário. São os xamãs. Xamã ou mágico é aquele que procura adquirir poderes particulares, que lhe permitem entrar em contato com os espíritos dos mortos ou com o espírito do totem. Entre os ecóis há um medo histérico da magia maléfica e por isso é praticada com reservas. Eles crêem em espectros, ou seja, espíritos fami liares ou de mortos queyOs ameaçam. Para espantá-los, utilizam-se de amuletos, lâmpadas acesas ou incenso. Oferecem-lhes sacrifícios para abrandá-los e para que não lhes façam mal.81 Os ecóis também aceitam um poder sobrenatural que cura enfermos, ressuscita os mortos e pode fazer tanto o bem quanto o mal. É o mana ou são os espíritos. Em sua mentalidade mágica, colocam as manifes 77
tações pessoais e as impessoais dos poderes extraordinários na mesma categoria. Existe um número indefinido de agentes com poderes miste riosos; os que adotam a forma pessoal possuem sua efigie e são alvo de cultos distintos, quer familiares, locais ou ligados a fraternidades.82 Entre os bucauas, da Nova Guiné, é forte a crença na feitiçaria. Acreditam nos xamãs ou feiticeiros, que alcançam sua finalidade mediante três condições: recorrer a práticas da magia imitativa, recitar palavras de uma fórmula mística e seguir uma forma ritualizada de conduta. Às vezes utilizam a magia imitativa junto com a contagiosa. A magia é utili zada para garantir o sucesso em diversas áreas da vida. Em certas tribos primitivas, as mulheres transmitem seus encan tamentos mágicos a suas filhas. A magia não pode ser desvinculada da religião. Pode-se dizer que as preces do homem primitivo e do homem moderno constituem uma forma de pressão sobre o mundo exterior. Para Elainchelin, a magia é religiosa e a religião é mágica. N a verdade, a magia e a religião aparecem interligadas no decorrer da história, mas sempre podem ser distinguidas, um a vez que suas origens são diferentes. Se a religião pressupõe a prática da oração para entrar em con tato com o Ser Superior, a magia não acode em oração ao Ser Supe rior, mas atua diretamente sobre o fenômeno em questão: imitando a chuva, consegue-a; com encantamentos consegue a saúde. Apesar da atitude mágica, o homem primário não exclui os poderes supe riores. A religião é um sistema em que o homem reconhece a existência de um ou mais seres superiores, que dirigem o mundo e impõem regras aos homens. Nas religiões mais elevadas, os preceitos constituem a moral, com prêmios e castigos. Na religião, o homem reconhece que não é nada por si mesmo, mas depende da divindade, com a qual se relaciona e se une. Pode-se recorrer à vontade suprema através das orações, das obras e das oferendas.83 A magia é o oposto. Baseia-se em poderes cegos, em energias miste riosas liberadas mediante palavras, ações e objetos que, utilizados corretamente, produzem seus efeitos. A magia não castiga nem premia as ações; permanece indiferente ou se volta contra quem a utiliza, à seme lhança da energia elétrica. Se é suficientemente forte, pode atuar até mesmo contra a vontade dos deuses. A magia, na realidade, é a alteração materialista da religião. Em vez de servir a Deus, o homem tenta subjugá-lo, obrigá-lo a lhe conceder bens materiais. A tendência da magia, própria dos necessitados e cobi çosos-, trouxe a corrupção da religiosidade primitiva. 78
CONCLUSÃO Apesar de diversos estudiosos colocarem as formas de crer primi tivas em escala ascendente, isto é, primeiro o animismo e a magia e depois o totemismo, para surgir mais tarde o monoteísmo, aceitamos o monoteísmo inicial, como apresentado pelas Escrituras Sagradas, a Bíblia, e como largamente comprovado. Aceitamos também a degeneração poste rior em animismo, totemismo, magia, politeísmo, presentes ainda hoje, não só entre tribos primitivas, mas nos povos civilizados. O Ser Supremo é venerado, com orações e sacrifícios, em civilizações que nunca tiveram contato com missionários ou outros povos civilizados. Do estudo de tribos primitivas ainda existentes hoje, das informações fornecidas pela arqueologia e de documentos deixados pelas grandes civi lizações antigas, tiram-se conclusões quanto às crenças e mitos e quanto aos cultos e ritos do homem primitivo. Essas informações nos aproximam o máximo possível daquela mentalidade, ainda que não traduzam exata mente, em todos os detalhes, a religiosidade primitiva, vivida em época pré-histórica, quando não havia a escrita. Ascrenças básicas do homem primitivo são: a imanência da alma, a realidade da morte, as imagens, o sortilégio, a moralidade. Para trans mitir suas crenças às gerações futuras, utiliza-se dos mitos, alguns dos quais coincidem com as narrativas bíblicas da criação, da queda do homem e do dilúvio. À medida que a magia foi sobrepujando o sentimento religioso, a fé primitiva foi sendo minimizada e surgiu a confiança em totens e fetiches; cresceu a influência do xamã, que, mais tarde, nas religiões insti tucionalizadas se transformou em sacerdote. O totemismo, ainda presente em diversas tribos primitivas, envolve os conceitos de tabu, mana e totem. Esses conceitos ficam inter-relacionados com o animismo ou fetichismo, em que os espíritos possuem pessoas, objetos e animais. A magia, em si, significa uma alteração da religião; embora elas estejam interligadas, no decorrer da história, a magia é prejudicial quando assume uma importância e uma influência maiores do que a religião. / Ainda hoje encontramos atitudes mágico-religiosas e atitudes supersticiosas que desaparecerão quando o homem voltar aos primórdios de sua religiosidade, ou seja, à crença e ao culto do único Ser Supremo, nosso Deus e Criador. Para comprendermos melhor como as crenças e o simbolismo primi tivos eram experimentados pelo homem, estudaremos a seguir os cultos e ritos mais comuns. 79
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1. El m undo de Ias religiones, p. 27. 2. Ibid., p. 26. 3. HAINCHELIN, Charles. A s origens da religião, p. 79. 4. ROBINSON, Theodore H. lntroduction a 1’histoire des religíons, p. 58. 5. Ibid., p. 37-43. 6. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 80, 81. 7. LOWIE, Robert H. Religiones primitivas, p. 55, 56. 8. SWANSON, Guy E. A origem das religiões primitivas, p. 102. 9. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 72. 10. Ibid., p. 106. 11. SWANSON, Guy E., op. cit., p. 85. 12. Ibid., p. 45. 13. CHALLAYE, Félicien. Pequena história das grandes religiões, p. 22. 14. Citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 23. 15. SWANSON, Guy E., op. cit., p. 116. 16. Ibid., p. 127. 17. Ibid., p. 132. 18. LÉVY-BRUHL, citado por CHALLAYE, F., op. cit., p. 25. 19. Ibid., p. 26 20. CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 3. 21. KR1SCHKE, G. Upton. Religiões do m undo, p. 29. 22. El m undo de Ias religiones, p. 39. 23. LANG, A., citado por SCHMIDT, P. Guillermo, M anual de historia comparada de Ias religiones, p. 179. 24. El m undo de Ias religiones, p. 36. . 25. EL1ADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas, v. I, p. 45. Em Dioses, diosasy mitos de Ia creadón, M. Eliade narra diversos mitos existentes entre muitos povos. 26. Ibid., p. 58. 27. LOWIE, Robert H., op. c it, p. 60. 28. ELIADE, Mircea. M ito do eterno retorno, p. 76. 29. ADRIANI, Maurilio. História das religiões, p. 24, 25. 30. Ibid., p. 26. 31. EI m undo de Ias religiones, p. 40. 32. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas, v. I, p. 23. 33. Ibid., p. 23. 34. Ibid., p. 30. 35. AEGERTER, Emmanuel. A s grandes religiões, p. 13. 36. DON1NI, Ambrogio. Breve história das religiões, p. 29. 37. ELIADE, Mircea, História das crenças..., p. 36. 38. Ibid., p. 40. 39. Ibid., p. 42. 40. Ibid., p. 46. 41. Ibid., p. 47. 42. DONINI, Ambrogio, op. c it, p. 59. 43. PAL — equipe de redação, Historia de las religiones, p. 26. 44. Ibid., p. 27.
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45. Citado por PAL, op. cit., p. 28. 46. PAL, op. cit., p. 29, 30. 47. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 37 e 39. 48. PAL, op. cit., p. 31. 49. Ibid., p. 33. 50. Ibid., p. 36. 51. ELIADE, Mircea, História das crenças..., p. 46. 52. HUBY, José. Christvs — história das religiões, p. 119. 53. CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 2. 54. HUBY, José, op. cit., p. 119. 55. DONIN1, Ambrogio, op. cit., p. 39. 56. CID, Carlos & RIU, Manuel. Historia de las religiones, p. 20. 57. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 73. 58. Ibid., p. 65. 59. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 88. 60. HUBY, José, op. cit., p. 120. 61. POUPARD, Paul. Diccionario de las religiones, p. 1697. 62. Ibid., p. 1697. 63. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 41. 64. Citado por HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 41. 65. Citados por HAINCHELIN, op. cit., p. 87. 66. POUPARD, Paul, op. cit., p. 1697. 67. Citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 5. 68. SCHMIDT, R Guillermo, op. cit., p. 164. 69. Ibid., p. 164. 70. Citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 5. 71. HUBY, José, op. cit., p. 107. 72. Citado por JAMES, E. O. Historia de las religiones, p. 21. 73. SWANSON, Guy E., op. cit., p. 91. 74. Citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 14. 75. POUPARD, Paul, op. cit., p. 74. 76. CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 17. 77. HUBY, José, op. cit., p. 109. 78. SCHMIDT, R Guillermo, op. cit., p. 72, 73. 79. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 83. 80. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 54. 81. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 56. 82. Ibid., p. 59. 83. CID, Carlos & RIU, Manuel, op. cit., p. 31.
CAPÍTULO IV CULTOS E RITOS
INTRODUÇÃO No primeiro capítulo fizemos referência aos fatos religiosos e à importância de conhecê-los. Além do símbolo e do mito, importantíssimos na vida do homem religioso, devem ser observados os ritos ou rituais ou, se quisermos ainda, os cultos. O modelo apresentado no mito será realizado, concretizado, efetuado através do rito ou ritual; os ritos tornam realidade o que está nas crenças e nos mitos. N a religiosidade primitiva, os ritos não podem ser desvinculados dos mitos e das crenças, pois são a expressão dos mesmos. Observando-se os ritos e os cultos, obtém-se um a idéia das crenças do homem primitivo. Os ritos têm como objetivo regular as relações humanas com o trans cendental. Da veneração ao Ser Supremo e da influência tardia do animismo e do totemismo, decorrem os ritos abordados neste capítulo. Em cada religião estão presentes estes três elementos: o dogma ou crença, a moral e o culto ou rito. O rito ou culto possui efeitos expressivos, sensíveis e duradouros, porque se liga geralmente a objetos materiais e a gestos do corpo e porque efetua a comunhão do ser hum ano com o divino. A veneração ao Ser Supremo originou as orações, os sacrifícios e outras cerimônias solenes, como a consagração da juventude, come morações da criação do mundo, festas de agradecimento. A influência do animismo, totemismo e magia originou o ritual da caça, ritual fune rário, culto aos antepassado» culto à grande deusa mãe e outros. Challaye apresenta a distinção entre o culto negativo, que é a observância das proibições, e o culto positivo, que comporta todo um conjunto de práticas rituais. Os positivos incluem a festa denominada intiquiúma, os ritos miméticos (que mudam conforme o meio), os ritos representativos os comemorativos e os ritos expiatórios. O negativo diz respeito ao rito da iniciação.1 83
Já na remota antigüidade, encontram-se os princípios essenciais de um dos fundamentos do culto positivo nas religiões superiores: a insti tuição sacrificatória. Segundo R obertson Sm ith, “os banquetes sacrificatórios tinham por objeto fazer comungar num a mesma carne o fiel e seu deus, a fim de criar entre ambos um vinculo de parentesco”.2 Para a compreensão dos ritos e cultos é importante observarmos que o fato religioso necessita uma expressão concreta de si mesmo, para que possa ser ele mesmo totalmente; a expressão do fato religioso acon tece em público e na comunhão do homem com outras pessoas. Por isso, o homem expressa sua religiosidade segundo seus sentimentos mais íntimos, mas também impressionado com o seu exterior, com o ambiente, as circunstâncias e as possibilidades. O homem religioso abre-se para a influência de outras pessoas e de outras forças históricas, pois o diálogo com Deus sempre acontece no diálogo com outras realidades históricas.3 Assim, não podemos falar de uma relação autêntica com Deus sem falar da harmonia com a natureza do homem (interior) e sem falar da moralidade, que harmoniza o homem com o seu próximo. “Os que tratam da fenomenologia da religião descobriram um ponto de apoio invariável no rito como uma ação de Deus que comove o homem e como um exercício no qual o homem religioso se expressa e se consuma.”4 O rito fala da ação de Deus e fala da atitude do homem. O rito contém os símbolos, quer desenhados, gesticulados ou falados, como veremos a seguir. 1. RITOS E SÍMBOLOS Nos ritos religiosos sempre existe a procissão com água, como símbolo do mar primitivo da criação, como água da vida, como água da morte; ou os gestos que abençoam o pão, como sustento para a pere grinação no mundo até a pátria de origem, ou a celebração religiosa de acontecimentos importantes, comuns a todos os homens, como nasci mento, matrimônio e morte (denominados de ritos de passagem). Alexander Marshak, citado por Mircea Eliade, fez um estudo das civilizações primitivas e descobriu que, remotamente, já existia um sistema simbólico de notações do tempo, segundo as fases lunares. As cerimô nias sazonais ou periódicas (relativas às estações do ano) eram fixadas com antecedência, com base nesse sistema simbólico. Mircea Eliade observa que o ciclo lunar já era analisado, memorizado e utilizado com finalidades práticas em épocas remotíssimas. Marshak, analisando os meandros gravados em objetos ou pinturas nas paredes das cavernas, concluiu que constituem um sistema, pois apre84
sentam uma sucessão e exprimem uma intencionalidade. Para Lliade, os meandros não significam apenas uma imagem da água, mas denotam traços deixados pelos dedos e por diversas ferramentas para comprovar “um ato individual de participação”, em que o simbolismo ou a mitologia aquáticos exerciam um papel predominante.5 Essas análises confirmam a função ritual dos sinais e das figuras primitivas. As representaçãoes primitivas são como um código que signi fica o valor simbólico (mágico-religioso) das imagens e a sua função nas cerimônias relacionadas às histórias ou mitos. As pinturas encontradas pelos arqueólogos, bem como os rituais observados pelos etnólogos nas tribos primitivas existentes hoje, denotam o seu valor simbólico e sua função nas cerimônias. A cultura dos caçadores deixou registrada uma série de pinturas ou gravuras no interior das cavernas que demonstra acreditarem na inter venção superior obtida por certos ritos. José Huby enumera vários fatos para comprová-lo:6 1. Uma quantidade razoável de gravuras ou de pinturas murais colo cadas ao longo de corredores subterrâneos de até 700 metros de profundidade. Para vê-las é preciso engatinhar, mergulhar, trepar, deitarse por terra, colocar a cabeça debaixo de um rochedo, à luz de lâmpadas rudimentares. Isso demonstra vontade de guardar um segredo, o que se explica somente por um rito mágico. 2. As pinturas ou gravuras sobrepõem-se e emaranham-se, sem cuidado com a estética e prejudicando-as, como se as posteriores não tivessem outro lugar para serem pintadas. 3. As figuras humanas não apresentam os pormenores das figuras de animais, como os olhos, nariz, boca, orelhas. Devia existir um a razão que levasse o homem primitivo a evitar a figuração do homem e que, por certo, não era uma razão estética. 4. Ao que tudo indica, os magníficos objetos do tesouro de Volgu, em forma de folhas de louro, alongadas, eram objetos ofertados em cumpri mento a algum voto ou promessa. 5. As obras de arte deram ocasião a gestos rituais, que também deixaram rastros. Em Tuc dAudoubert, na sala vizinha daquela onde se admiram os esplêndidos bisontes modelados em argila, perto dos chouriços de terra argilosa que provavelmente serviam de modeladores, há vestígios de passos do homem pré-histórico. N a sala só aparecem os calca nhares modelados na argila. Provavelmente, essas marcas referem-se a uma dança. Os dois bisões representam um macho aproximando-se de uma fêmea, e talvez só os jovens, homens ou mulheres, fossem admitidos a contemplá-los, em rito de iniciação. 85
6. Em Cabrerets, junto a uma parede coberta de desenhos préhistóricos representando animais, à altura da cabeça de um homem, a rocha está como que gasta e polida. Nada leva a crer que seja em conse qüência de roçar os ombros pela estreiteza das passagem; é talvez o resultado de carícias de mãos ou dos lábios. 7. Os ursos moldados em argila, da gruta de Montespan, apresentam sinais de golpes, como se, em gesto simbólico, tivessem sido feridos com a ponta da lança, da estaca ou do dardo. Aliás, muitas vezes as gravuras de animais apresentam pontas de setas sobre o dorso, que parecem não apresentar intuito estético. 8. Parece incontestável a existência de feiticeiros, mais precisamente dos xamãs. Muitas figuras apresentam aspectos humanos com máscaras de animais. A mais significativa é a figura encontrada na gruta dos Três Irmãos, já descrita no capítulo anterior. Uma outra figura pré-histórica proveniente de Lourdes é inteiramente análoga. 9. Encontraram-se, muitas vezes, mãos reproduzidas sobre as paredes das grutas, ora marcadas a vermelho e preto, ora cercadas por um a dessas cores. Com freqüência, os dedos estão incompletos; pensou-se em muti lações rituais, bastante prováveis quando só falta uma falange. 10. Nas cenas desenhadas, parece haver a reprodução de uma cerimôniia, como no caso de duas gravuras em osso que dão a impressão de uma procissão de personagens mais ou menos estilizadas ou reves tidas de trajes especiais, tendo na mão e ao ombro um bastão ou palma e dirigindo-se para um bisão. 11. Entre as pinturas rupestres assinadas por Breuil na Espanha, há, por duas vezes, uma personagem que parece sustentar, na extremi dade do braço estendido, um a estatueta, e o gesto parece ser ritual. Num dos casos, a estatueta bem desenhada e o portador, mal desenhado; no outro caso, o portador, um a mulher, está bem desenhado, bem nítido, e o objeto, quase irreconhecível. Parece representarem a atitude de segurar e exibir um símbolo. 12. As pinturas rupestres transmitiram a célebre cena do Cogul, em que nove damas vestidas parecem cercar um homem pequeno e nu, um ídolo. A interpretação é obscura, mas pode ser a representação de uma cerimônia erótica. Para José Huby, dada a relação dessas figuras com costumes veri ficados ao longo da história da humanidade, não há dúvida de que os caçadores foram supersticiosos e religiosos. A influência do sobrenatural sobre a natureza, observada nos símbolos desenhados pelo homem primitivo, bem como a influência do próprio caçador sobre a caça, através de rituais apropriados, têm a ver 86
com uma atitude mágico-religiosa e demonstra que a magia e a religião não podem ser nitidamente separadas. Se o homem religioso depende do Ser Superior para o sucesso nesta vida, ele pode deixar-se influenciar por idéias mágicas, em que utiliza rituais para dominar a natureza. A imitação de regras da caça, num ritual, destina-se a favorecer o êxito da própria caça. Para que um recém-nascido se torne um bom pescador, coloca-se o seu cordão umbilical num barco flutuante. Além desses, existem vários outros rituais mágico-religiosos, que observaremos neste capítulo. 2. RITO DE INICIAÇÃO Visto ser a iniciação a forma principal do culto tribal, os ritos de iniciação estão mais especialmente ligados ao Ser Supremo. Ele é o centro dos ritos de iniciação. Muito freqüentemente, o Ser Supremo é represen tado neles por um a imagem talhada em casca de árvore ou moldada na terra. Dança-se em volta, canta-se em sua honra; dirigem-se-lhe orações. Explicam aos jovens qual a personagem figurada na imagem; revela-se-lhes o seu nome secreto, que as mulheres e os não-iniciados devem ignorar; contam-lhes a sua história, o papel que a tradição lhe atribui na vida da tribo. Noutros momentos, erguem as mãos ao céu, onde julgam que ele habita; ou apontam, para a mesma direção, as armas ou os instru mentos rituais; é uma forma de se pôr em comunicação com ele. A sua presença é sentida em toda parte. Vela pelo neófito, enquanto perma nece recluso na floresta. Atende ao modo como se celebram as cerimônias. A iniciação é o seu culto. O Ser Supremo interessa-se pelos que observam exatamente os ritos e repreende duramente as faltas ou negligências cometidas.7 Como antiga é a crença no Ser Supremo, antiqüíssimo é o rito da iniciação dos jovens à vida adulta, considerado um dos ritos de passagem. “O arcaísmo dos ritos iniciatórios é indubitável”, diz Mircea Eliade. As analogias entre várias cerimônias atestadas nas extremidades do ecúmeno (Austrália, América do Sul e do Norte) testemunham uma tradição comum desenvolvida já no Paleolítico.8 A abordagem dos ritos iniciáticos é genérica, falando de uma reali dade complexa observada entre diversas tribos primitivas, mas que possui pontos comuns e semelhanças, além de seu sentido ser idêntico.7 Entre os bucauas, da Nova Guiné, a cerimônia mais importante é esta, quando os jovens são admitidos aos privilégios dos adultos. Tanto para os jovens como para as moças, as exigências são as mesmas: isola mento, instrução pelos mais velhos, observância de certos tabus e formal 87
promoção a um novo status. É reconhecida sua plena cidadania. O mesmo não acontece com as moças, que simplesmente dão entrada na organi zação das mulheres, sem a importância social da dos hom ens.10 A moça é apresentada solenemente à comunidade; mostra-se que ela é adulta e está pronta para assumir o comportamento próprio das mulheres. Para Eliade, mostrar alguma coisa ritualmente é declarar uma presença sagrada, aclamar o milagre de uma hierofania (revelação sagrada).1' O neófito retira-se da sociedade, deixa de ver as mulheres e os não-iniciados, vive no mato ou na floresta, sob a orientação dos anciãos. Não come a maioria dos alimentos; os padrinhos o alimentam com o estritamente necessário. Às vezes jejua. Abstém-se de falar, de se distrair, de se lavar, de se mover. O objetivo dessa abstenção é um a transformação completa, um segundo nascimento. A partir daí adquire um caráter sagrado e toma parte nos outros ritos. Os dentes dos neófitos podem ser arrancados ou ainda seus corpos podem ser mutilados. Entre os aruntas, é costume os jovens se deitarem sobre um braseiro ardente. Entre os crows, índios norte -americanos, o costume é mutilar o corpo do adolescente neófito, dependurá-lo com um peso e girá-lo intensamente até perder os sen tidos. Tal ato simboliza sua morte. São feitas preces ao Grande Espí rito durante essa cerimônia.12 O rito de iniciação é um culto negativo porque proíbe diversas coisas, com o objetivo de preparar a pessoa para as outras cerimô nias rituais. “O culto negativo é, pois, em certo sentido, um meio em vista de um fim; é a condição de acesso ao culto positivo.” 13 O iniciado “morre” simbolicamente para renascer para uma nova vida, em condições de assumir os compromissos que tem para com o clã. Segundo Donini e Pal, o rito de passagem do jovem para uma categoria mais responsável contém o germe da idéia dos sacramentos, desenvolvidos nas religiões de “mistério” e no próprio cristianismo.14 As mulheres não assistem ao cerimonial da iniciação, apenas trabalham para o seu preparo. Tudo fica envolvido num clima de medo e ameaça, a fim de que se conserve o seu segredo. Na ocasião é contada uma fábula para enganar mulheres e neófitos. Antes do dia da cerimônia propriamente dita, o neófito fica de três a cinco meses recluso num local próprio, trançando esteiras e fazendo flautas. É amedrontado com estranhos ruídos durante todo o tempo, até mesmo no dia de sua circuncisão. Pára abafar os gritos de dor, é ouvida uma música bem estrondosa. Após um banho, o neófito participa da grande festa da iniciação. Segue-se um período de dois ou três meses de convalescença, após o que os adolescentes voltam
ao convívio familiar, com o corpo ornamentado e pintado. A participação num banquete é o fim da cerimônia de iniciação.15 A ocasião tem um significado político e econômico, pois há um intercâmbio tribal, durante o qual todas as desavenças são suspensas e é feito um comércio de porcos. Além desse significado político e econômico, o rito iniciático tende a produzir maior coesão dentro do clã ou da tribo. Essa coesão é forta lecida, durante o ano, com novos ritos e novas cerimônias, relacionados à caça e à colheita. Por outro lado, os tabus também contribuem para a coesão social, essencial nas tribos primitivas. Nas grandes solenidades, a união da tribo é absoluta. O rito de iniciação é denominado entre os bucauas de Festa de Balum, que é concebido como a encarnação dos falecidos ou como um antepassado. Os “mugidores” que são tocados para intimidar as mulheres, recebem, cada qual, o nome de um habitante já falecido do povoado e são decorados com símbolos relacionados à cerimônia. Existe uma quali ficação de santidade ou sobrenaturalismo na cerimônia, embora não fique bem esclarecida.16 O rito de iniciação ou passagem, segundo descrito por Van Gennep, possui três momentos ou um momento triplo:17 1. Rito de purificação ou de separação — quando os neófitos se liberam de sua antiga personalidade (corte de cabelo, circuncisão etc); 2. Rito de iniciação — é a fase mais longa e importante e pode durar vários meses de isolamento, disciplina e de instrução; 3. Cerimônia de incorporação na nova classe — em refeições de comunhão. O neófito muda de nome, dotado de poder mágico e que forma um elemento constituinte da pessoa. É mantido em segredo para não favorecer os inimigos. Assim, o rito de iniciação, muito importante no contexto tribal, inclui as três fases mencionadas e dura diversos meses, incluindo renún cias do neófito, instrução dos mais velhos e festa de apresentação. A partir desse ritual, os adolescentes estão prontos a ingressar oficialmente no clã, asumir responsabilidades de achxltos e participar das outras cerimô nias e rituais da tribo. ^ Um outro rito de passagem é o rito funerário. 3. RITO FUNERÁRIO Como vimos, no capítulo anterior, o homem primitivo crê na imanência da alma, isto é, ela está ligada ao corpo, tanto que as ceri mônias mágicas que atingem cabelos, unhas ou excrementos estarlo 19
atingindo a personalidade toda. Desde os primórdios da raça humana, sepultavam-se os mortos. São gerais as cerimônias que rodeiam a ago nia, a morte, os funerais e o luto. Por mais variadas que sejam, o fim é sempre o mesmo: assegurar o repouso à alma que parte; cumprir os deveres a que faz jus, por meio dos ritos tradicionais, preparando-lhe morada agradável e, se preciso for, vingando-a; impedi-la de voltar a perturbar o repouso da família, quer dando-lhe satisfação com oferen das, libações, sacrifícios, quer expulsando-a por conjurações, gritos, até mesmo injúrias; enfim, purificar-se das manchas e desembaraçarse das influências porventura contraídas nessa ocasião.18 O sepultamento dos mortos confirma, segundo a arqueologia e as pesquisas etnológicas, a preocupação de assegurar a continuidade da existência material; demonstra um a intenção religosa ligada à idéia de sobrevivência. O homem primitivo parece que distinguia nitida mente os cadáveres de sua raça e acreditava num a vida nova após a morte.19 Num túmulo pré-histórico, no lugar da boca e do nariz, havia uma depressão cheia de pó vermelho. É o símbolo da vida; o ocre ver melho permitiria ao defunto respirar. Em outros locais, foi encontrada terra pintada de vermelho, ou ainda o crânio rodeado de vermelho. Ainda foram encontradas inúmeras conchas rodeando cadáveres, em outras sepulturas, com a mesma finalidade. Esqueletos foram encontrados em postura pré-natal, dando a idéia do segundo nascimento ou, segundo os pesquisadores mais me ticulosos, em postura de sono, para que o fantasma não/ molestasse os vivos ou para significar que, após o sono, viveria noVamente, pois os primitivos não teriam conhecimento da posição pre-natal. Outro cadáver encontrado possuía pedras sobre a cabeça para protegê-la e outras ao redor do esqueleto, com utensílios e ossos de diversos ani mais.20 O cadáver era deitado entre duas pedras, com pernas juntas, vestido de sua roupa habitual. Suas armas e objetos eram colocados ao seu lado. Os seus pertences eram pintados de vermelho (vida) e seu corpo untado de ocre vermelho, líquido ou em pó. Ossos desco bertos da Idade da Pedra conservam esses traços. Em outros casos, o defunto era enterrado perto do lar para não lhe faltar o calor necessário; o mesmo objetivo tinham os alimentos, bebidas e estatuetas de animais enterrados com o cadáver. As comidas teriam o caráter de ágape funerário, costume de grande importância em todos os tempos. Essa prática servia para intensificar sua força no outro mundo e renovar a alimentação. As comidas não eram sacrifício re ligioso.21 90
Não há indícios de sacrifícios humanos relacionados à religiosi dade primitiva. Essa prática foi posterior (astecas, maias, fenícios, semitas). O mais comum era o canibalismo, ainda difundido há cem anos no continente africano, na Oceânia e na América meridional, mas extinto hoje na maioria das tribos primitivas.22 Um costume funerário, evidente em achados arqueológicos e rela cionado a costumes australianos, é a dispersão dos ossos para livrar-se dos espíritos e a conservação de certos ossos, pintados e adornados, para servir de amuletos.23 Prática bastante comum entre os povos primitivos ainda existentes hoje é que os membros do clã se ferem e derramam sangue sobre o mortoi, durante o rito funerário. O sangue é considerado o fluido vital e pode reanimar o cadáver. O sangue era associado aos pigmentos vermelhos utilizados no rito funerário e acreditava-se que esses possuíam o mesmo efeito. O professor MacAlister afirma que “a finalidade do rito é muito clara. O vermelho é a cor da saúde, da vida. O morto era chamado a viver novamente em seu próprio corpo, cuja estrutura era o esqueleto. Dentro dos conhecimentos do homem paleolítico, a pintura na cor da vida era o mais próximo da mumificação; representava um intento de fazer o corpo de novo utilizável por seu dono”.24 Culto dos ossos — Acredita-se que havia, entre os primitivos, o costume de extrair o cérebre e comê-lo cerimonialmente, ligado à crença de que é na cabeça que se concentra uma substância anímica de grande potência. Foi encontrado um crânio em disposição ritual, indicando um culto pré-histórico aos crânios.25 Afirma-se que na China, há milênios, existiam rituais em que deca pitavam as pessoas e conservavam cuidadosamente as cabeças humanas. A caça de cabeças é confirmada com o achado de 27 crânios humanos num a cova, unidos a uma ou mais vértebras. Em outra cova estavam seis. Estavam imersos num extrato de óxido de ferro, vermelho. Vinte eram de crianças e estavam decorados com conchas de caracol, nove eram de mulheres e apresentavam colares de dentes de rena. Somente quatro eram de homens, demonstrando que talvez as mulheres e crianças eram vítimas mais acessíveis para os rituais. Ainda outro fragmento de crânio foi encontrado junto com vários ossinhos e pedrinhas dispostos em forma de corpo humano, formando, talvez, um monumento a pessoa notável, cuja cabeça estava sendo venerada.26 O costume de guardar crânios ainda é observado entre os fangues africanos, que conservam os crânios de seus antepassados em caixas, 91
trazidas a determinadas cerimônias; significam o depositário da força acumulada na tribo durante gerações. 4. CULTO AOS ANTEPASSADOS
N a África, o culto aos antepassados é mais difundido do que o fetichismo (culto às efígies talhadas dos seres divinos), mais comum no Oeste. A cerimônia está associada a duas idéias: a iniciação dos jovens e um culto a uma irmandade que utiliza máscaras. Em algumas tribos há sacrifícios cruentos.27 O culto aos espectros e a magia possuem maior expressão na Austrália, associados à iniciação dos jovens e a concepções totêmicas, como o desejo que se multiplique o animal totem. A ausência de um culto aos antepassados é característica marcante na religiosidade primitiva norte-americana, embora haja indícios de um culto ancestral em determinadas tribos. O totemismo australiano não pode ser comparado a um verdadeiro culto, embora alguns autores utilizem a expressão. Ao totem não se elevam preces, mas se dão ordens. A vontade do clã é manifestada através da magia e os ritos são “a expressão de uma sociedade que, de forma mais íntima e dedicada, liga todos os membros entre si e o clã no seu conjunto com o ancestral imaginário, a própria razão de sua existência”.28 Uma observação importante é que o culto aos antepassados não pode ser confundido com o rito funerário ou o culto aos mortos. O primeiro refere-se a pessoas que viveram há muito tem po/não conhe cidas da tribo; esses antepassados estão envolvidos em diyersas crenças mitológicas e perdem sua personalidade natural, transformando-se em totens do clã. Se o culto aos antepassados pode ser observado entre os primitivos que ainda existem, o rito funerário primitivo pode ser conhe cido através das informações arqueológicas. A principal cerimônia dos grupos totêmicos, realizada nos lugares sagrados, é a do intichiúma ou intiquiúma (mencionado na introdução deste capítulo), nome indígena que significa fabricação (aumentar os animais ou plantas totêmicas). É o germe primitivo de todos os ritos de comunhão e é celebrado em honra do ancestral totêmico. Esta cerimônia se desenvolve em três partes:29 1. Ritos de entrada, preparatórios — os homens encarregados d cerimônia, adornados com a aparência do totem, separam-se dos profanos; tornam-se sagrados pelo ato de bater as pedras sagradas umas contra as outras; 92
2. Drama mítico — cujo clímax é o sacrifício; o drama é represen tado e falado, unindo o mito ao rito. O drama representa a viagem dos ancestrais e a vida do animal, ajudando a multiplicação da espécie; 3. Ritos de saída ou de dessacralização, quando os oficiantes se misturam aos demais. Essas cerimônias são acompanhadas de discursos e cantos. Em inúmeras tribos australianas, o inchitiúma é substituído por uma cerimônia mais simples, que lembra as primícias do campo; o animal morto e o cereal triturado são apresentados ao grupo de que são o totem, por outros grupos (sacrificantes). Isso torna possível a in gestão do animal totem. O objetivo é o mesmo: a regeneração mística da espécie animal ou vegetal a que pertence o totem.30 O festival comemorativo de um a pessoa é também um grande acontecimento entre os bucauas, da Nova Guiné. Tribos vizinhas são convidadas e muita carne de porco é distribuída. Todos se enfeitam de forma especial. H á danças, do anoitecer ao amanhecer, quando co meça o banquete. Crê-se que espíritos e muitos outros espectros ab sorvem, de alguma forma, a essência espiritual dos alimentos. Depois do banquete há a participação dos dançarinos, representando uma sé rie de pantomimas que fazem o povo rir. Os atores representam o pa pel dos porcos e das árvores. Quando o morto era pessoa importante, distribuem-se alimentos e objetos de valor.31 Em certos grupos, depois que os anciãos e figurantes comem um pouco de totem, alguns adultos derramam seu sangue sobre o lu gar sagrado, um rochedo, com o objetivo de vivificar os animais to tens que ali residem e expulsá-los em todas as direções. Depois do lu to pelo animal morto, vem a festa, em que a alegria sucede a triste za.32 Nas tribos mais desenvolvidas, o culto anual aos antepassados totêmicos não se limita à representação de atividades fisiológicas do animal para tornar os homens mais aptos a fazê-lo crescer ou a capturá-lo; transforma-se na “celebração de acontecimentos particulares da vida do totem, considerado como o grande progenitor”.33 Em Madagáscar, ilha perto do continente africano, são importantes as tumbas dos antepassados. Em alguns lugares, essas tumbas são gandes edifícios de pedra; em outros lugares, estão localizadas no interior das florestas; em outros, ainda, são covas marcadas com postes enfeitados com baixos-relevos e com crânios de bois sacrificados em honra dos mortos. A tumba dos nobres é particularmente importante. Em algumas tribos, casas de culto especiais com objetos sagrados servem de modelo
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para todas as casas construídas, e muitas aldeias possuem postes sagrados no centro, onde se realizam os ritos.34 Nos momentos de crise, em Madagáscar, são oferecidos sacrifícios aos antepassados e são honrados os lugares sagrados. Entre os africanos de língua banto, nem todos os mortos são consi derados antepassados; somente o são os que deixaram filhos, os que morreram de maneira digna e os que foram sepultados corretamente. Os demais podem transformar-se em espíritos errantes, insatisfeitos, que importunam os vivos de variadas formas. A tumba é importante lugar onde se estabelece o contato com os antepassados através das oferendas de comida e bebida. Existem também as casas dos espíritos ou santuá rios, fora do lugar de habitação dos vivos, onde se estabelece o contato com os antepassados. A relação dos antepassados com seus descendentes faz parte da tradição. Os antepassados transmitem mitos, ritos e outras informa ções, assim como seus próprios nomes e seu próprio ser. A maior parte dos antepassados se relaciona com famílias específicas, mas há também os antepassados comuns, relacionados à origem do clã. O culto aos antepassados é uma construção da racionalidade hum ana, que se nega a aceitar a ruptura entre seus antepassados mortos e sua própria vida presente. Essa idéia está mesclada do sim bolismo da religiosidade primitiva. Com o passar dos tempos, o ante passado vai perdendo suas características concretas e vai se trans formando num gênio ou num semideus. Em vez de ser adorado como deus, ele reaparece na tribo como um totem (lebre, águia, serpente) que concretiza a idéia de vida.35 Às vezes associam o totem ao ani mal que encontram perto da tum ba do antepassado, isto é, aquele animal passa a representar o antepassado. A religiosidade arcaica é sustentada por dois pés: a racionalização da idéia da divindade e a necessidade de entender e solucionar os problemas deste mundo pela ajuda poderosa do xamã. No culto aos ante passados, a figura do xamã é importante para interpretar as mensagens do totem ao clã, devido aos seus conhecimentos sobrenaturais e à sua natureza especial. Já vimos que o culto aos antepassados difere do culto aos mortos, tratado neste capítulo como rito funerário. A história dos antepas sados se acha envolvida em mitos; às vezes se transformam em divin dades e às vezes são pura invenção. Entretanto, o culto aos antepassados começa com o respeito aos mortos, ao cadáver; em tribos primitivas atuais, o mesmo respeito devotado ao cadáver é devotado ao ancião e a mesma concentração 94
devotada num sacrifício religioso. N a Oceânia, a mesma palavra (buo) é utilizada para ancião, deus ou cadáver humano. A morte significa uma passagem para outro modo de vida, neste mundo mesmo (para alguns). Perde-se o medo da alma, porque esta vive em seu próprio mundo, mas há necessidade de dedicar-se-lhe um culto. Surge assim o culto aos ante passados, envolto no simbólico e no abstrato.36 5. CULTO À GRANDE DEUSA M ÃE Os povos primitivos possuíam o conceito da grande deusa mãe, relacionado à fecundidade humana, animal e da terra (ritos de fertili dade). Ela foi venerada de diversas formas e permaneceu envolta com a magia, com as superstições e com o folclore. Ainda hoje há o costume de se falar, até entre os povos civilizados, na mãe natureza ou mãe terra. Esse culto originou-se no Oriente e pode ser identificado através de obras artísticas muito antigas: estatuetas de barro e pinturas, cujas características são: o ventre proeminente, seios imensos, formas e órgãos arrendondados e exagerados. Nas ilhas do Mediterrâneo, por exemplo, destacam-se grandes templos e as figuras da grande deusa obesa de Malta. Na Europa, rendia-se o culto à grande deusa mãe; os fetiches e as tumbas ornamentados com símbolos femininos demonstram a relação que se estabelecia entre a vida, a fecundidade, a morte e a ressurreição.37 As estatuetas podiam ser esculpidas também em marfim, osso e pedra. São denominadas, pelos estudiosos, de estatuetas de Vênus. A interpretação de que eram modeladas segundo a moda do tempo é pouco provável. Acredita-se que representavam a divindade da fertilidade, do crescimento e da fecundidade. Entre os konds, da Ásia, conta-se a história de que Bura, o deus criador, formou a Tari, a deusa terra, como sua companheira. Ela tratou de impedir a criação do homem e do mundo. Tudo era um paraíso no mundo criado, com exceção dos ciúmes de Bura, o que provocou um grave conflito entre os dois. Todos os konds, exceto a minoria, criam que a deusa terra havia ganho a luta, deixando o deus criador em segundo plano; ela ensinou ao homem as artes da caça, da guerra e da agricul tura, em troca de sacrifícios humanos. Este rito cruento continua entre os konds, mas agora sacrificam búfalos como vítimas. M a ç o s das vítimas são enterrados na própria aldeia e em aldeias próximas para colocar em marcha o dom da fertilidade.38 O culto à grande deusa mãe relaciona-se ao sistema políticosocial do matriarcado, que deu maior importância ao papel da mulher como mãe. Essa cultura matriarcal se inaugura, aqui e acolá, onde 95
a agricultura foi suplantando a vida nômade, mas a figura do pai de família nunca foi diminuída de todo e nem o comando do grupo lhe foi tirado. A influência da mãe de família assumiu maior impor tância. A partir dessa concepção, surgiu a divinização da Lua, que influi na agricultura e na menstruação, e da vaca, símbolo da m a ternidade.39 Na sociedade matriarcal, a mulher possuía importantes fun ções como mãe, dona de casa e coletora de raízes. A importância da colaboração feminina na geração de filhos, naquela época mais valiosa do que agora, contribuiu para subordinar a idéia da divin dade masculina à feminina, surgindo assim o culto à grande deusa mãe; os órgãos e funções femininas e maternais se converteram em sinais por excelência da geração da vida, da morte e da existência pós-túmulo (renascimento).40 Para a mentalidade primitiva, a figura da mulher com suas carac terísticas era um símbolo de suas funções, assim como o órgão genital masculino simbolizava a potência de gerar filhos. Tanto era um símbolo que as estatuetas não traziam os detalhes do rosto, como já vimos neste capítulo, em simbolos e ritos. A mulher é a produtora da vida e o homem é o propagador da espécie. Seus órgãos maternos seriam dotados de poder vivificador, semelhante ao sangue, essência vital de todo organismo; isso pode ser deduzido a partir da coloração vermelha dada aos principais órgãos femininos em algumas pinturas e baixos-relevos. Depois da sociedade matriarcal, as funções da deusa mãe se adap taram às necessidades agrícolas e ela aparece como deusa da terra e da vegetação. Esse culto à deusa mãe vai reaparecer mais7tarde em divin dades greco-romanas, como Ártemis, Cibele e Istar. Pode-se estranhar que houvesse um culto à deusa mãe nas culturas primárias. Entretanto, em culturas da Eurásia setentrional, recenteemente estudadas, as mulheres tinham deusas semelhantes do nascimento, que as protegem durante a gravidez e o parto. Muitas tribos siberianas criam num a mãe de animais selvagens, um a senhora que os protege. Outras divindades da fertilidade às vezes eram representadas com cabeças de animais. Pequenas serpentes em torno da deusa in dicam que era uma deusa serpente. Mais tarde, em tempos históricos, a serpente será um símbolo da fertilidade na Europa, Oriente Médio, índia e China (o mesmo que dragão). Outra divindade da fertilidade é o touro com cabeça humana; em tempos históricos estará vincula do a deuses como Baal e Dionísio. Além do culto à grande deusa mãe, característico da sociedade matriarcal, havia o ritual da caça, característico dos povos caçadores.
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6. RITUAL DA CAÇA Através de achados arqueológicos, como pinturas nas cavernas em regiões que hoje pertencem à França e à Espanha, deduz-se que havia um verdadeiro ritual da caça, com o objetivo de conseguir o alimento pela providência divina. As pinturas, em geral, encontram-se em locais inacessíveis, em cavernas tortuosas; como já foi mencionado, esse fato traz o seu simbolismo. Esses locais interiores também sugerem que os animais procedem de debaixo da terra ou que, em algum tempo, viviam nas cavernas. As pinturas deixaram gravadas por milênios as gravuras de cavalos, bisões, elefantes, antílopes e cabras, junto a silhuetas de mãos humanas. Algumas dessas cavernas se transformaram em ponto turístico, iluminadas com luz elétrica e apresentando verdadeiras galerias de arte, embora a arte não fosse o objetivo principal das pinturas, tão-somente, faziam parte de um ritual da caça. Deduz-se isso da dificuldade que os artistas primitivos possuíam em pintar tais figuras, à luz de lamparina a gordura ou tutano, algumas vezes sentados sobre os ombros de ajudantes, para as pinturas em locais elevados, outras vezes engatinhando para as câmaras profundas.41 As gravuras demonstram o seu objetivo de controlar o azar na caça, enfeitiçando os animais reais do exterior. Certos locais eram considerados mais convenientes para a feitiçaria; daí serem encontradas gravuras sobre postas umas às outras. Produzir a morte dos animais através de pinturas de flechas sobre o coração e outros pontos vulneráveis não era a única finalidade do ritual da caça. N um a das cavernas foram encontradas figuras de bisões em argila, próximas de pegadas de calcanhares entrelaçados, sugerindo um a dança sagrada, cujo fim seria a multiplicação da espécie, pois a cena alude clara mente à procriação. Seria um ritual semelhante ao realizado pelos australianos, para favorecer a multiplicação de seus totens. A dança circular é bastante difundida na Eurásia, Europa oriental, Melanésia, índios da Califórnia etc. É praticada nas sociedades de caça dores, para am ansar o animal abatido ou para garantir a multiplicação da caça. Essa dança ilustra a persistência dos ritos e crenças primitivas nas culturas arcaicas contemporâneas.42 Próxima à cena dos bisões foi encontrada um a pintura, com parte gravada na rocha, de uma figura que pode ser interpretada como a de um bruxo, encarnando os atributos e funções dos animais que represen tava, como já foi descrito neste capítulo. Parece que indicava uma 97
irmandade mística dos homens e animais, com o objetivo de prover a alimentação. Isso parece presumir certo número de segredos do ofício exclusivos dos homens; segredos semelhantes são comunicados aos adoles centes nos ritos de iniciação. Em outros locais, foram encontradas figuras semelhantes com máscaras de animais.43 Enfim, parece que algumas cavernas foram reservadas exclusiva mente para os rituais da caça, mantendo um a relação vital com a providência para o sustento da tribo. Dentro desse sagrado recinto, deve riam celebrar diversos ritos, desde a magia cinegética (arte da caça) até um simbolismo misterioso quanto aos perigos da caça. Culto ao urso — Relacionado ao ritual da caça, observa-se em tribos primitivas existentes a súplica ao urso morto, para que não se encolerize; providenciam-se alimentos para o caminho. O objetivo do ritual é asse gurar o êxito em futuras caçadas. Costumam referir-se ao urso como “avô” ou “o velho”. Em outra tribo, limpam os ossos do urso, pintam a pele, conservam-na por meses e depois a penduram num a árvore, envolta em vários tabus. Significa uma oferenda ao chefe dos ursos para proteger os de sua espécie.44 Covas com crânios de ursos enterrados, cobertos com pedras, foram encontradas no que poderia parecer uma tumba normal do urso das cavernas, pois as pedras por cima poderiam ter tido um desprendimento natural. Entretanto, pode relacionar-se a um culto ao urso, objetivando devolver a vida ao animal morto ou persuadir aos de sua espécie a serem úteis ao caçador por terem recebido uma sepultura correta. Encontrando-se um crânio fóssil de um urso pardo, cujos incisivos e caninos haviam sido cerrados ou limados, e os molares eín excelentes condições, comparou-se tal achado ao ritual do urso ou (festa do urso, realizada entre os giliaques e os ainos: antes de abaterem o urso, cortamlhe os caninos e os incisivos com uma espécie de serra, para que este não possa feri-los. Durante a cerimônia, as crianças crivam flechas no animal amarrado, costume comparado a certas gravuras murais da gruta dos Três Irmãos. As interpretações, portanto, podem ser diversas.45 Outro aspecto a considerar quanto ao ritual da caça é o depósito de ossadas. Ele deixa evidente a intenção ritual, que é inquestionável; além disso, há costume paralelo entre os caçadores árticos contem porâneos. O depósito não passa da expressão de um a intenção mágico-religiosa; o significado real desse ato nos vem através das infor mações prestadas por membros dessas sociedades. Os esquimós, por exemplo, atiram ao mar as bexigas das focas mortas, para que estes animais se reconstituam. H á duas explicações quanto à guarda dos crânios e dos ossos longos: podem ser oferendas a um Ser Supremo ou ao Senhor das 98
Feras e pode haver a esperança de que serão recobertos de carne; nesse caso, o animal podia renascer graças ao Senhor das Feras, graças à alma que reside nos ossos ou ainda graças ao fato do caçador lhe ter dado uma sepultura.45 No estudo da religiosidade primitiva, os achados arqueológicos são sempre comparados aos fatos existentes na atualidade, entre povos primi tivos, e dessa comparação são extraídas as semelhanças e tiradas as conclusões. Além disso, determinados costumes e crenças podem reapa recer em culturas posteriores, como por exemplo o renascimento do animal a partir dos ossos, daí não se poder quebrá-los. Essa idéia sobrevive em religiões e mitologias mais complexas. A propósito, lembramos da visão do vale de ossos secos que Ezequiel teve (37.1-8). Pregando aos ossos, eles se revestiram de nervos e carne e reviveram, significando que a Palavra de Deus faz reviver as almas ressequidas pelo pecado. Essa visão se deu num a civilização antiga (hebreus) e demonstra que uma idéia primitiva pode reaparecer em outras épocas. Assim, verificamos alguns cultos e ritos comuns às sociedades primi tivas, dos quais tomamos conhecimento através de achados arqueológicos e do testemunho de tribos primitivas ainda existentes hoje. Além desses, existem outras cerimônias que serão abordadas agora. 7. OUTRAS CERIMÔNIAS E SACRIFÍCIOS Já vimos que os ritos são um meio de comunicação entre os dois mundos: natural e sobrenatural; são a forma de expressão das crenças e dos mitos. O rito e o mito formam um ato completo de culto ou uma grande festa. Nas tribos de cultura primitiva onde faltam os sacrifícios ou oblações, e onde as orações são menos freqüentes, encontram-se bastante desenvolvidas as cerimônias solenes, que se prolongam durante semanas e meses, e que são consideradas como instituídas pelo Ser Supremo e celebradas por seu mandato. Entre elas estão as consagrações solenes da juventude que, em algumas tribos, são para ambos os sexos e não contêm segredos, como em geral são os ritos de iniciação. Sua finalidade é preparar e capacitar a juventude para a organização da família monogâmica, instituída pelo Ser Supremo, e concerder a sabedoria e a virtude social, moral e religiosa da tribo aos jovens; entre várias destas cerimônias não faltam as invocações do nome do Ser Supremo, simples ou acompanhadas de gestos. Entre os algonquinos, na Califórnia central, as festas se transfor maram em recordações para agradecimento, com cerimônias que duram 99
quatro, nove e doze dias, da criação do mundo e do homem, com o fim de trazer o auxílio e a graça de Deus sobre a família, a tribo e sobre o m undo todo. N a cultura ártica, são comuns, em certas épocas impor tantes do ano, as orações, cerimônias e sacrifícios, com ricas solenidades festivas, onde se agradece o auxílio recebido e se pede novo auxílio. A esta categoria pertencem também as cerimônias do arco-íris dos pigmeus, as cerimônias de oração noturna dos negritos das Filipinas, a dança da oração dos selixes do interior, as cerimônias de Pano dos semangues, as cerimônias de petição de chuva dos bosquimanos e a cerimônia das flechas e outras dos vedas. Alguns ritos importantes estão associados ao ano-novo. O mundo velho é ultrapassado e substituído por uma criação renovada pelos deuses, exatamente como no início de tudo. O rito pode incluir cerimônias como a extinção dos velhos fogos de todos os lugares da aldeia, acesos durante o ano, acendendo-se um novo fogo para o novo ano. As cerimônias podem adquirir um clima de festa, havendo um a profunda consciência religiosa da corrupção e das insuficiências dos homens e do mundo e da neces sidade de uma renovação nas fontes da vida.47 Os konds na Ásia, utilizam-se de poderes superiores, adquiridos através dos ritos, para solidificar ou restabelecer as relações na aldeia, no clã ou na família. Muitos ritos seguem o calendário agrícola; outros eliminam os tabus da caça. Alguns ritos visam à ajuda dos antepassados, envolvendo outros clãs, como no caso do matrimônio, da escolha de uma segunda mulher, da destruição de um povoado inteiro com seus ante passados (por causa de peste ou outros acontecimentos). Outros ritos objetivam prevenir-se da contaminação, que pode ocorrer pof um a morte acidental, pela prática do incesto ou por outra coisa; nestes casos, a aldeia inteira fica em quarentena. Ainda existem os ritos para aplacar os deuses ou os espíritos maléficos.48 Entre os australianos, além dos ritos de fertilidade, ritos de iniciação e ritos de multiplicação de alimentos, existe um ritual relacionado à idade do sono (ao passado longínquo), conhecido como corroboree. Neste último, realizam danças acompanhadas de canto, pintam o corpo e preparam o local para a representação. Alguns corroborees são vistos por todos os membros do grupo, e outros, somente pelos homens. Em Madagáscar, próximo à África, diversos ritos estão relacionados à vida familiar: nascimento dos filhos, purificação do parto, menstruação, casamento, morte. O nome é dado mediante a consulta ao adivinho; a mãe se purifica saltando sobre fogo sagrado; os filhos são circuncidados com pouca idade, havendo verdadeiros banquetes na ocasião; as adoles centes vestem roupas de mulher. Além disso, sobem a m ontanha sagrada, 100
consultam o xamã; depois dos funerais, a família toda se banha, corta os cabelos e guarda o luto por muito tempo.49 Ritos agrários — Entre os povos bem primitivos, não se encontram os sacrifícios de animais; a forma predominante, entre os pigmeus, bosquimanos, povos de cultura ártica, tribos algonquinas, onas, é a oferta das primícias, isto é, da primeira caça e dos primeiros frutos ou simplesmente dos vegetais. São alimentos, meios de conservar a vida, que, segundo a crença dos primitivos, pertencem ao Ser Supremo. N a cultura ártica, destaca-se a oferenda de cabeças inteiras e dos grandes ossos de animais de caça, como ursos e renas; entre os negrilhos da África, destaca-se a oferenda do coração e do cérebro. A oferta das primícias não é outra coisa senão o reconhecimento do supremo domínio do Ser Supremo sobre os alimentos, sobre a vida e sobre a morte. Entre os pigmeus, este tipo de oferta é quase o único. Para Guillermo Schmidt, este fato derruba a idéia de que o sacrifício religioso teria se originado da oferta de comida aos mortos, um a vez que as primícias são oferecidas diretamente ao Ser Supremo. A oferta das primícias e a oração se unem a cerimônias solenes e muito significativas, entre os povos primitivos.50 “Os sacrifícios agrários permitem utilizar, sem perigo, os produtos da criação e da terra cultivada.” Além do reconhecimento do domínio do Ser Supremo, existe também o objetivo de conservar a vida dos reba nhos, sua vida nos campos. Sacrifica-se uma parte do rebanho, da colheita, para conservar o todo; depois de oferecer a Deus a parte que lhe cabe, o restante poderá ser utilizado para o bem comum. Essa idéia de sacri ficar a Deus as primícias vai reaparecer entre os hebreus, na índia, na Europa, entre os gregos antigos e entre outros povos antigos.51 Assim observamos que a religião e o rito estão relacionados a situações de angústia social, econômica ou política, ajudando a manter o equilíbrio do grupo. O rito é utilizado também na agricultura para obter a fertilidade da terra, na mudança das estações, na colheita dos frutos; e é utilizado em transações das tribos, antes da guerra, depois da vitória, nas caçadas etc. Os ritos, em geral, variam de simples fatos ligados às atividades de cada dia (caça, agricultura, pesca) a rituais complicados, com festas que duram dias, semanas e meses. Em alguns grupos, a figura do porco tem grande destaque nos rituais e festas. Nos ritos, ainda, a água, o fogo e a comida cozida têm um signi ficado especial, podendo derrotar o mal, segundo a mentalidade mágica. Nos rituais mágicos, a função do xamã é muito importante, pois ele foi preparado para interpretar as mensagens do mundo sobrenatural para a tribo ou o clã. Ele é um especialista ocasional, quanto às suas 10 1
funções religiosas; fora da época dos rituais, ele se dedica às mesmas ativi dades dos homens de sua tribo. O xamã possui o poder de acalmar tempestades, afugentar ou atrair animais de caça, sendo sua função mais importante a cura de enfermidades. Outro aspecto importante é a música, ideal para acompanhar as cerimônias mágicas, porque é através dela que o homem pode expressar seus sentimentos mais íntimos. Junto à música aparece a dança, quer como preparativo para a guerra, quer como parte integrante de algum rito mágico; a dança é comum a todos os rituais primitivos. Ainda mencionamos o aparato externo ou vestimenta especial que acompanha os rituais; nas festas aos antepassados, por exemplo, vestem-se conforme o seu totem; em outras cerimônias, o xamã veste um a roupa toda aparamentada com colares, plumas e tc 52 Quanto aos sacrifícios cruentos, não há indícios deque fossem prati cados a nível de cultura primitiva. Sacrifícios — Num estudo recente sobre os sacrifícios entre os primi tivos, concluiu-se que não há indícios dos mesmos nas épocas bem remotas; surgiram em tempos posteriores e sua interpretação religiosa não é evidente; somente bem mais tarde é que se pode falar, com certa certeza, em sacrifícios.53 Existem pelo menos três teorias sobre a origem do sacrifício. O homem oferece o sacrifício para obter da divindade o uso do fruto da tera ou outros benefícios. O sacrifício tem por objetivo restabelecer a comunhão entre o ofertante e a divindade, renovando-se o parentesco entre ambos e purificando-se o sangue do ofertante, quando ingere o sangue divino e come o animal sagrado, como no totemismo. Ò sacrifício de algo que tenha vida (animal) ou de algo que sustente a vida (primícias) tem por objetivo favorecer a utilização dos frutos da terra (teoria histórico-cultural). Segundo essa interpretação, os elementos mágicos acompanham os sacrifícios totêmicos; os sacrifícios alimentares são próprios da socie dade matriarcal, onde também há o culto dos mortos; a cultura dos nômades dá lugar ao sacrifício humano, junto à escravidão e a antro pofagia.54 Podemos observar que o sacrifício é um a oferta feita à divindade, para entrar em comunicação mística com a mesma e dela obter bene fícios. A oferta pode ser representada pelas primícias da terra ou os vegetais cultivados, como cevada, frutas, outros grãos, bolo de farinha etc, como na cultura primordial, onde havia a oferenda das primícias por ocasião da comida das caças e era obrigação para um membro de cada família. É um sacrifício incruento, pois não pede o derramamento de sangue. A oferta pode ser representada também pelas primícias da caça ou da 102
pesca ou de animais domésticos, como fazem os povos da cultura tios caçadores, que oferecem alguma parte da vítima como sacrifício de gratidão, ou como acontece entre os caçadores. H á quem diga que, na época da cultura matriarcal, podiam ser obser vados sacrifícios sangrentos, inclusive humanos, por causa do fenômeno da renovação da natureza: o grão deve morrer para surgir a nova vida; é o ciclo da morte e da ressurreição.55 Ainda em nossos dias, encontramos exemplos de sacrifícios nas culturas primárias. Entre os polinésios, por exemplo, os sacrifícios cruentos desempenham um papel importante. Em Tonga, oferecia-se um dedo com o propósito de obter o restabelecimento de um parente importante; tão comum é esse rito que é difícil encontrar um adulto com as mãos intactas. Oferecem-se também animais domésticos, como os porcos, que nos grandes festivais são mortos às centenas. Até mesmo o filho do chefe podia ser sacrificado para servir de pedra fundamental de um edifício.56 N a Ásia, os kond-o kui até recentemente praticavam o sacrifício hümano. Em 1835, a Companhia das índias Orientais encontrou tais sacrifícios com a finalidade de satisfazer as necessidades da terra. Criam que os sacrifícios eram necessários para o bem-estar de todos e a ferti lidade da terra. Agora, continua o sacrifício cruento, mas de búfalos. Também em Madagáscar, oferecem-se bois aos antepassados; em ocasiões menos importantes, oferecem-se arroz, mel, cana-de-açúcar etc.57 Já na América do Norte, os sacrifícios cruentos, inclusive de animais, são raros. As oferendas da donzela entre os awnees (Nebrasca) e do cachorro branco entre os iroqueses são exceções notáveis.58 O sacrifício como parte do ritual está ausente em quase todas as tribos primitivas do sudeste da Austrália, da Terra do Fogo, do norte da Califórnia central. Os sacrifícios agrários aparecem em diversas tribos, como já foi observado. Existe uma tribo pigméia que não conhece a oferta das primícias, mas pratica o sacrifício expiatório: com um bambu fazem um a pequena ferida no joelho, misturam o sangue com água, numa vasilha, que acabam jogando para o céu e rogando o perdão para seus pecados; isso acontece quando há tempestade e trovões; chegam a confessar individualmente esses pecados. Os negrilhos do Congo praticam um sacrifício expiatório do próprio sangue junto às ofertas das primicias e outros sacrifícios.59 O sacrifício cruento, para aplacar a ira de diversos deuses, é uma prática bem posterior à cultura primitiva e primária, condenada pelas Escrituras Sagradas, a Bíblia. O sacrifício com finalidade religiosa é inspirado no mito e guiado pelo rito; demonstra os elementos básicos da crença, como purificação, 103
comunhão, regeneração. O sacrifício não pode ser compreendido à luz da teoria animista, totêmica ou mágica, mas sua compreensão necessita de uma análise sociológica. Os aspectos do sacrifício, como a consagração, oferenda, oblação, fundem teorias e rituais. “O aspecto que se destaca na consagração do sacrifício é que a coisa consagrada serve de inter mediário entre o sacrificador e a divindade, a quem geralmente se dirige o sacrifício.”60 As formas de destruição, como o fogo, o sangue, a vítima, repre sentam a devoção daquele que sacrifica, pedindo à divindade que o aceite, o perdoe e o transforme. O sacrifício é um esquema de realização para um a história ante rior à história (pré-história, cultura primitiva) e o é também para uma história depois da história. Em todos os tempos visa o benefício para aquele que sacrifica. O sacrifício, como rito dos ritos, na prática da reli gião, remove a capacidade hum ana de ação e sua insuficiência para produzir a reconciliação do sagrado e do profano. Segundo a Bíblia, o primeiro homem era monoteísta que, após a queda, buscou a reparação com sacrifícios de animais. Somente quando, no transcurso da história, encontramos um sacerdócio institucionalizado e os testemunhos arqueológicos de templos, ídolos e altares, além da divul gação da literatura, pisamos num terreno mais seguro e podemos confirmar os objetivos dos sacrifícios, quer ao Deus Supremo, quer a outros deuses, num a degeneração do monoteísmo original. CONCLUSÃO Concluindo este capítulo, podemos afirmar que os cultos e ritos estão intimamente relacionados aos mitos e aos símbolos. Eles são uma expressão das crenças dos povos primitivos. Em culturas bem primitivas, onde não há animismo nem totemismo, os ritos têm mais um significado social do que mágico, como o rito da iniciação. Já o ritual da caça tem um grande significado mágico. Em geral, os ritos e cultos possuem a finalidade de estabelecer a comunhão entre o homem e a divindade (o Ser Supremo ou outros seres transcedentais), buscando sua bênção e aprovação. Entre os povos de cultura agrária, os sacrifícios se relacionam aos produtos da terra. Entre os da cultura dos caçadores, relacionam-se à oferta de animais, às vezes sacrifícios cuentos. O sacrifício hum ano é raríssimo e aparece somente em culturas tardias. No decorrer da obra não se efetuou uma avaliação de crenças e ritos, o que foi deixado para o último capítulo. 104
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. CHALLAYE, Félicien. Pequena história das grandes religiões, p. 7-9. 2. Citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 8. 3. HEISLBETZ, Josef. Fundamentos teológicos das religiões não cristãs, p. 68, 4. Citado por HEISLBETZ, Josef, op. cit., p. 72. 5. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas, v. I, p. 42. 6. HUBY, José. Christvs — História das religiões, v. I, p. 81-87. 7. Ibid., p. 128. 8. ELIADE, Mircea, op. cit., p. 44, 9. PAL — equipe de redação. História de Ias religiones, p. 20. 10. LOWIE, Robert H. Religiones primitivas, p. 77. 11. ELIADE, Mircea, op. cit., p . 46 — nota. 12. PAL, op. cit., p. 22. 13. DURKHE1M E., citado por CHALLAYE, Félicien, op. cit., p. 7. 14. DONINI, Ambrogio. Breve história das religiões, p. 42 e PAL, op. cit., p. 21. 15. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 78, 79. 16. Ibid., p. 80. 17. Citado por HAINCHELIN, Charles. A s origens da religião, p. 92, 93. 18. HUBY, José, op. cit., p. 106. 19. AEGERTER, Emmanuel. A s grandes religiões, p. 12. 20. JAMES E. O., Historia de Ias religiones, p. 37. 21. CID, Carlos & RIU, Manuel. Historia de Ias religiones, p. 14. 22. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 27. 23. CID, Carlos & RIU, Manuel, op. cit., p. 14. 24. Citado por JAMES E. O., op. cit., p. 36. 25. JAMES E. O., op. cit., p. 39. 26. Ibid., p. 39, 40. 27. LOWIE, Robert H,, op. cit., p. 167. 28. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 73. 29. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 89. 30. Ibid., p. 39. 31. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 82. 32. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 90. 33. DONINI, Ambrogio, op. cit., p. 74. 34. E l m undo de Ias religiones, p. 159. 35. PAL, op. cit., p. 37. 36. Ibid., p. 36, 37. 37. CID, Carlos & RIU, Manuel, op. cit., p. 29, 30. 38. EI m undo de Ias religiones, p. 139. 39. PIAZZA, W. O. Religiões da humanidade, p. 18, 19. 40. CID, Carlos & RIU, Manuel, op. cit., p. 29. 41. JAMES, E. 0 „ op. cit., E 27. 42. ELIADE, Mircea, op. cit., p. 44. 43. JAMES, E. O., o p cit., p 31.
44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60.
LOWIE, Robert H., op. cit., p . 173. ELIADE, Mircea, op. cit., p. 33. Ibid., p. 32, 33. EI m undo de Ias religiones, p. 135. Ibid., p. 139. Ibid. p. 160. SCHMIDT, R Guilhermo. M anual de historia comparada de Ias religiones, p. 273,274. HAINCHELIN, Charles, op. cit., p. 106, 107. CORREA, Manuel M. Historia de las religiones, v. I, p. 17-21. ELIADE, Mircea, op. cit., p. 32. STELLA, Jorge Bertolaso. Introdução à história das religiões, p. 139. PIAZZA, W. O., op. cit., p. 19. LOWIE, Robert H., op. cit., p. 166. EI m undo de Ias religiones, p. 138, 160. LOWIE Robert H., op. cit., p . 166. SCHMIDT, P. Guillermo, op. cit., p. 274. POUPARD, Paul, dir., Diccionario de Ias religiones, p. 1562.
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CAPÍTULO V SÍNTESE E AVALIAÇÃO
INTRODUÇÃO No decorrer desta obra, tratamos dos aspectos gerais sobre religião e religiosidade, entrando na observação da crença mais primitiva: o Ser Supremo, venerado em tribos primitivas existentes ainda hoje em regiões isoladas do mundo. Logo tratamos das características mais evidentes da religiosidade primitiva, quando esta se degenerou em práticas mágicas e supersticiosas; outrossim, essas mesmas práticas se encontram presentes junto à crença no Ser Superior. Pbr que foi utilizado o termo primitivo? O termo selvagem não pode ser aplicado às populações de cultura inferior, pois não vivem em estado errático, sem leis, sem convenções, sem organização familiar e social; selvagens desse gênero nunca os houve. O termo não-civilizado também não se aplica a essas populações, pois não existe agrupamento despro vido de civilização. Por isso foi utilizado o termo primitivo ou primordial, pois designa um estado de civilização o mais simples possivel, o menos avançado, o mais próximo ao homem pré-histórico. Sempre serão civilizações o mais próximas possíveis e nunca exatamente iguais ao homem que iniciou a humanidade, em tempos anteriores à história (esta começou com a invenção da escrita). Nos estudos feitos, nas descobertas interessantes, instrumentos, armas, enfeites, sepulturas, até a conformação das ossadas, relembram certas raças que vivem ainda e podemos ver com nossos olhos, nas florestas da África, na Austrália, nas regiões polares: de sorte que os primitivos da pré-história, pelo menos na Europa, seriam bastante semelhantes aos da história, ou seja, os primitivos contemporâneos,1 Num estudo das religiões em diversos volumes, especialmente neiti que trata da origem e da religiosidade primitiva, enfatiza-se a observaçlo e a apreciação dos fenômenos religiosos, que também estão relacionadoi ao modo de vida dos povos estudados. Pára tanto, é imprescindível l eofltrh I®?
buição dos etnólogos, sociólogos, filósofos e teólogos. Não podemos considerar a religiosidade dos povos primitivos, pré-históricos ou contem porâneos, levando-se em conta apenas um dos aspectos (psicológico, sociológico, filosófico ou teológico), mas todos colaboram para uma melhor compreensão da religiosidade. Para o estudo comparativo das religiões, surgiram diversas escolas, cada qual expressando seu ponto de vista. M artins Terra apresenta as quatro principais e destaca a contribuição da quarta escola.2 A escola antropológica procurou um denominador comum entre as civilizações mais antigas e diversas para encontrar as formas mais simples e originárias da religião, mas apenas encontrou uma concordância em alguns princípios genéricos. A escola pan-babilônica pretendeu colocar as origens da religião no culto dos astros, mas essa opinião não encontrou fundamento. As escolas históricas insistem sobre a necessidade de distinguir a época e a distribuição geográfica para verificar as influências de uma religião sobre a outra, por causa das migrações dos povos. Observando a raça, a língua, o regime econômico, as civilizações, pretendem deter minar as áreas de difusão de cada religião e fixar a ordem cronológica de seu aparecimento. O método histórico-cultural obteve sucesso duradouro e foi aceito, com algumas correções ou variantes, pelos mais autorizados estudiosos contemporâneos. Suas principais propostas são estas: 1. A história das religiões deve ser estudada com base nos da históricos e não em construções psicológicas. 2. Sobre a base histórica agrupam-se todos os os, inclusive os chamados selvagens, em determinados ciclos culturais, cada qual com seus próprios caracteres e sua própria história. 3. Os ciclos podem ser dispostos em quatro planos: primordial, primário, secundário e terciário (observe-se o esquema transcrito neste capítulo, mais adiante). 4. Através do estudo desses ciclos, descobre-se que a primeira forma de religião foi o monoteísmo, obscurecido pelos ciclos posteriores; esta forma primitiva é representada hoje por muitos povos, especialmente pelos pigmeus, que parecem ter conservado melhor as antigas tradições. 5. A religião dos seres supremos nasceu, ou foi apoiada, pela busca de uma causa do mundo, busca essa sustentada pelas exigências éticas. 6. As formas viciadas ou inferiores de religião (fetichismo, magismo, totemismo) são o fruto de um trabalho fantástico e sentimental, que perturba o processo da reta razão e da boa vontade. 108
Como vimos, a escola histórico-cultural classifica os povos primi tivos ou pré-históricos em quatro ciclos ou planos: primordial ou cultural indiferenciado, primário, secundário e terciário:3 1. Cultura fundamental ou primordial (Grundkultur) — é a cultura dos coletores de plantas e caçadores de animais; a família monogâmica possui a estrutura de sipe (clã sem soberania politica). 2. Cultura primária — no matriarcado, a estrutura enfatiza a esposa. Há o cultivo de plantas, a horticultura. A estrutura social é a dos clãs. O patriarcado enfatiza a autoridade e figura do marido. É a cultura dos caçadores e a estrutura social é a dos clãs com os totens. Depois surge a cultura dos pastores, com família patriarcal numerosa e com nomadismo incial. 3. Cultura secundária — onde a horticultura se desenvolve no cultivo dos cereais e há maior estabilidade nas comunidades rurais (cultura colonial). A cultura dos pastores evolui para as migrações expansivas, surgindo os peões de cavalos. Surge ainda uma cultura mista, unindo as culturas agrícolas com as dos caçadores, na qual vigora tanto o matriar cado como o patriarcado. 4. Cultura terciária — as três culturas do ciclo secundário (horti cultura, pastores e mista) unem-se entre si, de diversos modos, e produzem superestruturas. De acordo com estas estruturas e ciclos apresentam-se determinadas características para a religiosidade primitiva, que veremos a seguir, de maneira sintetizada. 1. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA RELIGIOSIDADE PRIMITIVA Levando-se em conta essas estruturas estabelecidas pela escola histórico-cultural, são apresentados os principais aspectos da religiosi dade própria a cada cultura, conforme nos relata Martins Terra.4 Essa abordagem é importante para se compreender, em sintese, o desenvol vim ento da religiosidade prim itiva, em sociedades nôm ades e seminômades, centralizadas na vida familiar ou no clã (grupo de famílias consangüíneas com ancestral comum), cuja atividade econômica não passou da colheita, da caça e da agricultura e do pastoreiro rudimentares (plantio e pastoreio para o próprio clã e não para o comércio). Vejamos, pois, os principais aspectos. A religião na cultura primordial — Concepção da divindade como o Ser Supremo, Deus-celeste, Pai do céu, criador dc todas as coisas. 109
O objeto da fé é o Ser Supremo, como origem do homem e como causa de todo universo. — Invocações filiais do Ser Supremo; orações sob a forma de súplica improvisadas. — Oblação cotidiana no sacrifício das primícias por ocasião da comida das caças. — Princípios fundamentais da lei moral. — Ausência de manismo (culto aos antepassados); não existem sepulturas estáveis por causa da vida nômade instável. — Não prevalecem os conceitos animistas, apesar de alguns elementos míticos e fabuladores (mitos). — Na estrutura mais primitiva, como a dos pigmeus, não se encontra lugar previsto para a magia; os vestígios mágicos devem-se a influência vizinha. — Quanto à mitologia, não será possível afirmar algo com certeza enquanto o complexo mitológico existente atualmente nos povos vizi nhos (banto e não banto) não for pesquisado mais profundamente. Essa cultura fundamental sofreu algumas evoluções significativas: — N a mitologia, o Ser Supremo aparece sob a forma antropomórfica de grande caçador benfeitor. — O culto ao Ser Supremo manifesta-se como culto de um espírito da floresta, dando origem posterior ao totemismo. — Entre os caçadores, aparece a manifestação do rito e culto para a multiplicação dos animais nas florestas; o rito para a reprodução dos animais; o rito de expiação quando o animal é mortó pelo caçador e a purificação para a caça de animais de determinada espécie; culto do urso. — Entre os coletores de frutas e primitivos agricultores aparecem manifestações rituais visando à fertilidade e maturação da vegetação. — Entre os pastores verificam-se os ritos para a fecundidade, para a saúde, o parto ou a multiplicação do gado. A religião nos ciclos primário, secundário e terciário — N a cultura dos caçadores desenvolveu-se a religião solar (a caça é feita de dia); surge a mitologia dos bosques sagrados. Deus é caracterizado como o Senhor dos animais, e pode ser personificado na forma de um animal. É o zoomorfismo religioso. A religião na cultura dos pastores desenvolveu o culto do Ser Supremo no alto do firmamento, longe deste mundo (evolução do teísmo). Há o sacrifício do cavalo, da rena, de bois. Em geral aparece a concepção de um adversário do Criador. Não raro verifica-se um a degenerescência para a magia, com o culto dos espíritos, dando origem ao animismo. Aparece a mitologia cosmogônica da origem do mundo e do homem. 110
A religião na cultura dos lavradores caracteriza se por um acen tuado antropomorfismo e tendência ao animismo. Culto da mãe terra. Culto da vegetação e das árvores sagradas. Mitos etiológicos. Cultos dos espíritos. Personificação das forças da natureza. Práticas e ritos celebrando mitos cosmogônicos. Ritos representado a fecundidade cíclica da mulher, da terra (estações), das fases da Lua. Podemos observar, através dessa síntese, que o povo primitivo venera o Ser Supremo e que, através dos tempos, essa veneração foi obscurecida pelas práticas mágicas do totemismo e animismo. Além dessa caracterizaçãoa da religiosidade primitiva, segundo as diversas culturas, podemos conhecê-la segundo se apresenta nas socie dades primitivas contemporâneas. Observemos também uma sintese dos principais aspectos da religião dos povos espalhados na Oceânia, África, Ásia e América.5 No mundo oceânico — A Oceânia, com a multiplicidade dos seus arquipélagos, dá-nos a impressão de um enorme continente esfacelado pelas vicissitudes cataclísmicas do planeta. Entretanto, a religião, ainda em suas manifestações primitivas, guarda uniformidade em seu conceito fundamenta] da existência de um supremo Criador do universo, mesmo que a população esteja espalhada por muitas ilhas. De modo geral, a idéia de um Ser Supremo domina a fé e a vida dos primitivos; esse ser distribui a justiça, proporciona os bens da vida, dispõe de todos os seres, deve ser obedecido e respeitado, vela pela família, castiga os maus e é brando para com os bons. Qualquer que seja a mani festação exterior do culto desses povos autóctones, qualquer que seja a forma dos seus ritos, a crença em Deus está alicerçada no coração de todos esses povos tão diferentes. Na Austrália, o culto aos antepassados míticos está bem desenvol vido, mas a idéia de um Deus Supremo aparece entre os australianos primitivos a nível mais elevado, recebendo diversos nomes. Possuem também seus objetos tabus e os xamãs. Aqui vivem os aruntas, que possuem ritos originais, de ordinário sangrentos, que visam à iniciação dos jovens em sua religião, desconhecida em seus segredos a outras pessoas não iniciadas. N a Nova Guiné imagina-se o mundo povoado de inúmeros espíritos invisíveis, de antepassados remotos, que se relacionam com as pessoas de hoje; os menires pequenos simbolizam os espíritos ou os ante passados. Aqui vivem os papuas, dados à antropofagia e que acreditam nos maus espíritos e na sobrevivência de uma parte dos indivíduos. Entre os malanésios, raça característica da Nova Zelândia e da Nova Guiné, existe o animismo, e a idéia do Ser Supremo é vaga; a magia tem grande importância; crê-se no mana, força invisível. A Poiinésia (ilhas do Pací
fico, entre a Austrália e a América), já influenciada pelo cristianismo, apresenta a crença num Deus Supremo, Criador, Senhor das alturas, bom e vencedor do mal; no Havaí, há poucos resquícios da religiosidade primi tiva, pela mistura com outros povos, e nas ilhas de Páscoa (próximas à América do Sul), apenas permanecem as grandes estátuas ou menires como recordação de costumes primitivos; são imensas estátuas inaca badas, deixadas pelos antepassados. No continente africano — Do fundo das selvas africanas sobe para os céus um murmúrio de prece. H á mais adoradores sinceros de Deus entre as raças negras do que entre muitos povos brancos e supercivilizados... Os bantos ocupam lugar de destaque, pois dominam grande área do continente. Demonstram sentimentos muito arraigados de respeito ao Supremo Criador e de crença profunda na imortalidade da alma. São considerados monoteístas, pois reconhecem a existência de um ser único, inacessível, Pai e Senhor, a quem tributam um sincero culto, misto de adoração e temor, dirigindo-lhe orações, de preferência ao nascer do sol, por ocasião da morte e em outras cincunstâncias, quando o divino poder mais se manifesta através das grandes fontes de vida. Segundo Livingstone, o missionário, as idéias sobre a existência de Deus e a sobrevivência da alma são admitidas em quase toda a África. Os pigmeus, considerados como os mais primitivos, possuem um a noção clara e distinta do Ser Superior, Senhor de tudo, doador da terra. Não possuem templos, nem cercas, nem cabanas; não possuem fetiches; raramente utilizam amuletos, muito simples; gozam de grande reputação pelas receitas de remédios e processos curativos. Parece que não rendem culto aos astros. Encontram -se muito viva no espírito deles a idéia de o homem vivei neste mundo como em domínio estranho, não se servindo, por isso/sem ritos preli minares de oração e sacrifício, do que a natureza lhes oferece, como as águas, por exemplo. Seu Deus se denomina Puluga, Senhor de todas as coisas. Admitem a distinção entre alma e corpo e celebram funerais dignos dos restos mortais de seus parentes. Ainda na África, os zulus possuem um princípio de mitologia melhor organizado que outros povos africanos; crêem no Espírito Su premo, que é o chefe dos demais e conserva o universo (Uukulunkulu), envolto em mitos; utilizam talismãs e veneram o fogo. Outras popu lações autóctones deixaram se envolver pelas práticas mágicas, como os hotentotes que, embora envolvidos na feitiçaria, esboçam a crença no Ser Supremo. Os bosquimanos são caçadores e pastores atrasadís simos e praticam uma religiosidade bem rudimentar; possuem um vago conceito de um Espírito Superior, que criou o Sol e a Lua, e no de mais crêem na magia dos caçadores. Os congoleses praticam o caniba 112
lismo e crêem no fetichismo; Maramba é uma espécie de deus justi ceiro que castiga os que erram. Os cafres fundamentam suas crenças nos espíritos e em sua relação com os vivos, produzindo doenças e ou tros males; reconhecem um Ser Supremo, a quem denominam de Un chulogu. Em Madagáscar, grande ilha africana, reverenciam o deus supremo Yachar, benéfico. Utilizavam o fetiche Makemba para cuidar do rei e seus dignitários. Nos territórios da Guiné, existe o fetiche Agoyo, de bom agouro; alguns apresentam a idéia do Ser Supremo, comum a quase todos os povos africanos, e identificado como o céu; o espírito mais importante é o Elorei, cultuado para ser aplacado. As tribos ao redor do golfo da Guiné são as mais adiantadas; suas obras de bronze fundido relacionam-se a idéias religiosas; crêem num Ser Supremo, Ovisara, criador do universo e dos homens, de bondade infi nita, tanto que não carece de culto, aspecto comum a muitos povos africanos; oferecem sacrifícios a espíritos malignos e a demônios. No continente asiático — A Indonésia foi invadida pela religiosi dade da índia (bramanismo e budismo) e pelo islamismo (Maomé). Na Ásia primitiva é constante a crença num Deus Supremo celeste e em sua divina esposa, identificada com a terra. Acrescentam-se outras di vindades menores. Os ritos procuram manter a ordem cósmica e in fluenciar magicamente os demônios malfeitores. N a Sumatra, algu mas tribos possuem a idéia tríplice do Grande Deus (o céu, a terra e o mundo subterrâneo), envolto em mitos. No Bornéu, crêem num Deus Supremo desdobrado em raro dualismo: o Batara subterrâneo e o Batara do céu. Os nadju-dajaks também possuem um deus celeste e uma deusa subterrânea; o céu é simbolizado pelo pássaro, e a terra, pela serpente; acrescentam-se numerosas divindades menores, quase todas femininas. Os andamaneses possuem religiosidade vaga, misturada com a mitologia. Os semangues crêem num Ser Supremo e possuem um mito semelhante à árvore da vida. Os bhils da índia possuem a idéia firme de um Deus Supremo, Bhagwan, que possui onipotência, bon dade e justiça; alguns mitos assemelham-se às histórias bíblicas, como a criação e o dilúvio. Os chenchus da índia são monoteístas e adoram a um deus pessoal, Bhagavantaru, criador da alma humana; julga aos homens após a morte; vive no céu; os puros vão para o paraíso. Os ainos do Japão crêem no animismo, mas possuem idéia clara de um Ser Supremo como salvador e protetor. As tribos primitivas da Sibéria e Ásia central são nômades, criam rebanhos ou são caçadores; muitos crêem num Deus Supremo e em deuses menores: o deus da vida, o do destino, o do trabalho e o da morte; entre certa tribos encontramos o mito da árvore da vida; nessas regiões é característico o xamanismo. 113
também encontrado na Ásia em geral, ilhas do Pacífico, África oci dental, região escandinava etc. Os lapões possuem idéias religiosas muito indefinidas. Nas Américas — Os esquimós vivem em regiões frigidíssimas e possuem costumes diferentes dos demais povos; suas crenças se baseiam na idéia de uma outra vida e da existência de seres sobrenaturais, uns bons e outros maus, podendo ser por estes perseguidos e molestados. Praticam uma religião muito simples, xamanista (presença do xamã), com escassos deuses. Possuem o deus principal Sila, resto da primitiva idéia monoteísta do Deus Supremo. Os índios da América do Norte (peles-vermelhas apaches, cherokees, comanches, muskogies, creers, dakotas e outros) possuem a idéia monoteísta do Grande Espírito; possuem o conceito do mana dos primitivos oceânicos e do animismo, com seus fetiches. O totemismo também lhes é comum, produzindo obras de arte estranhas e belas; o Grande Espírito é a origem e o Senhor de todos os seres; praticam alguns ritos astrais relativos ao Sol e à Lua. Acreditam na sobrevivência da alma e na existência de entidades secundárias (espí ritos malignos e benignos). Os índios da América Central e do Sul são influenciados por mitos superiores; através de sua arte, deduz-se que possuem várias divindades guerreiras e idéias da fecundidade e da mor te. No Brasil, algumas tribos ainda nnão entraram em contato com outras civilizações; crêem num a divindade protetora das matas e dos animais, Anhangá; prestam culto ao Sol e à Lua (Guaraci e Jaci); crêem em diversos gênios ou espíritos protetores; são supersticiosos e animistas. Nas Antilhas, a religiosidade resume-se à superstiçãq e à magia, influenciadas pelas idéias africanas; demonstram a crença num deus (Tamoi) que veio à terra para ensinar a agricultura e depois a abando nou. H á o animismo misturado à crença num Ser Supremo. N a Terra do Fogo, as tribos iamatas veneram o Ser Supremo Watauinewa, que aparece na figura de um ancião com poderes sobre a vida e a morte, invisível, que reside no céu, julga os homens — idéias que surpreen dem, pois partem de um povo dos mais primitivos sobre a face da Terra. Dada essa visão geral da realidade primitiva segundo a caracteri zação de cada cultura e segundo cada povo primitivo contemporâneo, destacamos alguns aspectos marcantes. À lista abaixo relacionada possui diversos aspectos, nem todos aplicáveis a todas as religiões primitivas, mas que se constitui numa lista bem representativa:6 1.0 povo primitivo faz a distinção entre o mundo visível ou natural e o mundo invisível ou sobrenatural. Crê num poder ou em poderes dos quais o homem depende. 114
2. Os homens primitivos crêem na possibilidade da comunicação com esses poderes ou espíritos. 3. Destaca-se a crença num Ser Supremo, soberano do mundo, senhor da vida e da morte. 4. Crêem que as atitudes dos espíritos em relação aos homens podem ser influenciadas. 5. Normalmente há uma grande mistura com aquilo que parece magia para o homem moderno. 6. Muitas cerimônias e rituais têm a ver com o material, o mundo natural, ou a fase física da vida. Os ritos, as cerimônias, os sacrifícios, as oferendas, as orações demonstram uma atitude de submissão, de peni tência, de ação de graças e de súplica. 7. Há objetos sagrados que são os tabus. Há prescrições e proibições, que fazem perceber a noção de pecado e de castigo. 8. A dança nos rituais é proeminente. O homem primitivo sente mais a religião do que a idealiza. A dança é uma indicação desse aspecto. 9. Os poderes adorados são, na maioria, poderes da natureza, como o Sol, o céu, a Lua etc, mas freqüentemente animais também são adorados. 10. Há a crença comum de que os espíritos podem habitar em objetos naturais ou artificiais, chamados de fetiches e usados para bons e maus propósitos. 11. H á uma espécie de especialista religioso, o xamã ou curandeiro, que possui o controle sobre os espíritos. 12. Geralmente são encontradas diversas formas de adoração dos espíritos dos antepassados. 13. Freqüentemente são encontradas sociedades secretas com signi ficado religioso variado e onde há separação entre os sexos. 14. Muitos povos primitivos possuem ritos especiais dc iniciação através dos quais os adolescentes passam a participar da vida da tribo. Possuem significado religioso decisivo. 15. Todas as religiões primitivas possuem uma concepção da vida após a morte, mas não possuem um caráter ético. Para alguns estudiosos, há o senso de moral, mesmo não relacionado à religião. Essa abordagem ampla e sintética nos deu uma clara idéia da reli giosidade em seus primórdios. Como já dissemos, não é possível que retrate exatamente a religião como era no princípio do mundo, mas aproxima-se o mais possível dela, pois sua descrição baseia-se nos traços mais comuns encontrados nos documentos arqueológicos, no modo de vida dos primi tivos contemporâneos e no testemunho de documentos de religiões bem antigas, já extintas. 115
A esta altura já é possível traçar algumas considerações à guisa de avaliação e comparação da religiosidade primitiva com outras religiões e seitas de nossos dias. 2. PALAVRAS AVALIATÓRIAS Como foi dito no início deste volume, nossa atitude no estudo das religiões é sem preconceitos. Procuramos colher o maior número possível de dados referentes à religiosidade primitiva, fornecidos por estudiosos de renome, competentes e dignos de confiança. O historiador honesto não pode condenar todas as religiões por avaliá-las à luz de sua própria religião; o historiador honesto há de reconhecer que em cada religião existem certas verdades; sua apreciação será imparcial, averiguando a satisfação que cada religião oferece aos seus seguidores; sua avaliação procura os valores intrínsecos de cada religião. Entretanto, o historiador cristão, apesar de empreender sua busca com honestidade, com impar cialidade, aprecia o cristianismo à luz das outras religiões e reconhece que a Verdade última está em Jesus Cristo, revelação de Deus aos homens, pois crê na Palavra de Deus como inspirada pelo próprio Deus. “Uma das regras básicas do estudo fenomenológico das religiões é evitar o julgamento de outras crenças com critérios próprios.” Essa regra, entretanto, é difícil de ser colocada em prática. Nosso pensamento cien tífico crítico, nossa experiência total de vida, nossas reações emocionais e volitivas estão moldadas por nossos pressupostos cristãos e pela maneira de pensar ocidental. Na maioria das vezes, não temos consciência desses pressupostos; eles passam despercebidos. Temos uma noção personalista de Deus (Deus como pessoa), que outras religiões não possuem; somos monoteístas (um só Deus), quando outras religiões possuem uma infi nidade de deuses; fazemos distinção perfeita entre criação e Criador, enquanto outras religiões admitem o panteísmo (Deus nas plantas, animais e objetos); como cristãos, valorizamos a existência da igreja, quando outras religiões não a possuem.7 Estes são apenas alguns pressupostos cristãos que, inconscientemente, tendem a influenciar o historiador cristão na sua avaliação da religiosidade existente em outra cultura e em outra civi lização. Tanto quanto possível, tentaremos evitar um julgamento parcial e desonesto da religiosidade primitiva, mesmo porque, comprovadamente, ela está fundamentada na crença no Ser Supremo. Os estudiosos comprovaram a crença no Ser Supremo como marco genuíno e característico da religião primitiva incontaminada. Desde os seus primórdios, o ser humano reconhece a existência e a atividade de 116
um Ser Supremo. Vimos no segundo capítulo que, embora recebendo diversos nomes, algumas vezes não pronunciados, o Ser Supremo ê o Senhor do universo, o Criador da natureza e do homem, o sustentador de tudo. São reconhecidos determinados atributos do Ser Supremo: eter nidade, onisciência, bondade, moralidade, onipotência, poder criador, além de legislar a ordem moral e vigiar o ser humano, recompensando-o ou castigando-o. O Ser Supremo é venerado com orações e cerimônias solenes. Os bantos, povo africano classificado entre os mais primitivos, designam Deus como “Aquele que faz, o Organizador, o Criador” ou ainda como “o Poderoso, o Senhor, o Grande”; noutras partes, referem-se ao Ser Supremo como “O do alto, O da luz, O do céu, O do Sol”. A noção de um Ser Supremo do universo está presente em todo o continente negro, embora não haja o mesmo conceito em todos os lugares. Enfatizam-se três fatos relacionados à idéia de Deus entre os bantos: 1.°) Em região alguma dos bantos julga-se que Deus pode ser influenciado por meio de cerimônias mágicas, que se destinam aos espíritos e aos gênios somente; 2.°) Em parte alguma Deus não é representado de forma material nem se supõe que habita numa caverna ou noutro local sagrado; Deus não tem fetiche; 3.°) Em parte alguma Deus é blasfemado.8 Essa noção primitiva de Deus corresponde exatamente à revelação das Escrituras Sagradas, a Bíblia, que apresenta Deus como Criador do universo, onipotente, eterno, que está acima de tudo e de todos e a tudo sustenta. Gênesis, capítulo primeiro, mais parece um hino de louvor a Deus, a quem todas as coisas e criaturas devem sua existência. O Novo Testamento concorda com as afirmativas do Gênesis, quando diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus, Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por inter médio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.1-3). “O qual é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1.15,16). Do ponto de vista teológico, Gênesis apresenta os fundamentos sobre os quais a teologia cristã posterior se edifica: a fonte de toda criação é Deus; a ordem espiritual precede e transcende a ordem material; Deus atua dentro da ordem criada e não à parte dela; a criação é boa; a palavra de Deus inicia toda a nova criação; o homem foi feito à imagem de Deus; a criação foi progressiva.9 Quanto à crença no Ser Supremo, os povos primitivos são os quê mais se aproximam da doutrina cristã de Deus, como Criador e iUltift* tador do universo. Por incrível que pareça, a religião que poderi* (flf
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considerada como a mais afastado do cristianismo, na verdade, está mais próxima dele, em sua forma e em sua estrutura, do que as grandes reli giões asiáticas. Tanto se aproximam que, quando o missionário chega pela primeira vez em seu meio, os primitivos afirmam: “É isto que estávamos esperando.”10 Alguns dos elementos fundamentais das religiões primitivas se encontram no cristianismo. Podemos citar: o amor à terra; consciência profunda da delibidade hum ana e da necessidade de um poder maior para ser feliz; convicção profunda de que não estamos sozinhos no universo e que existe um mundo espiritual do qual procede toda bênção e toda ajuda; convicção de que existe outro mundo além da morte. Nem todos os grupos primitivos apresentam essas convicções, mas elas podem ser vistas em muitas sociedades pré-literárias.11 Ligados à religiosidade primitiva estão os mitos, muito impor tantes num contexto em que não havia a escrita. Os mitos transmi tem as crenças de uma a outra geração. Os mitos são histórias sagra das e exemplares que oferecem ao homem religioso modelos para sua conduta; eles auxiliam o homem a fazer o contato com o sobrenatu ral. Os mitos surgiram da incapacidade do ser hum ano compreender a existência de seres espirituais, a criação do universo, a origem da vida humana, vegetal e animal, o governo dos astros, fenômenos me teorológicos e outros fatos. De uma tribo pigméia tem-se conhecimento de um mito da cria ção que pouco difere da narrativa bíblica do Gênesis. Conta-se que, depois que o Deus supremo criou os homens, viveu entre eles; cha mava-os de filhos e eles o chamavam de Pai. Não se fala de uma es posa junto a Deus, mas da criação do homem. Deus éra bom para. os homens, pois viviam neste mundo sem muito trabalho e esforço, sem necessidade e sem temor. Os animais não eram seus inimigos e os produtos alimentícios iam ao seu encontro. A existência era paradisíaca. Deus não era visível aos homens, mas vivia e conversava com eles. No mito ainda se conta que Deus havia dado um mandamento aos homens, de cuja observância ou infração dependeria seu futuro. Em caso de violação de sua vontade, as penas seriam: a criação se co locaria contra o homem; os animais e plantas se converteriam em seus inimigos; haveria fadiga, miséria, enfermidade e morte, como conse qüência da separação de Deus. Apesar da ameaça, o homem primor dial não passou na prova, transgrediu o mandamento e começou a sentir as conseqüências da desobediência. O homem subiu o rio. En tretanto, Deus não deixou o homem desamparado; providenciou-lhe 118
instrumentos e armas para se defender. N a opinião dos informantes pigmeus, a maior catástrofe que afetou a humanidade foi a separação de Deus da família humana. Com isso, termina o primeiro ato da his tória da humanidade.12 O segundo ato da história da humanidade começa com a busca intensiva do homem ao Deus Pai desaparecido. Os homens não se se param de Deus queixando-se de que ele os haja abandonado na difi culdade, mas, ao contrário, testemunham como todas as fibras de seu coração se sentem atraídos por ele. Este e muitos relatos similares encontrados em muitos povos do mundo coincidem em seus pontos essenciais com o relato de Gênesis. W. Schmidt, citado por Koppers, após estudo detalhado sobre a crença no Ser Supremo entre os primitivos, afirmou que há de se aceitar uma revelação de Deus ao homem primitivo.13 O ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, cremos, tinha a capacidade de compreender a revelação de Deus acerca de si mesmo. Viveu feliz durante um período de seu Criador, mas escolheu o pior caminho e sofreu suas conseqüências. Desobedeceu, pecou e afastou-se de Deus. O Pai, no entanto, veio ao seu encontro, não o abandonou, mas providenciou o caminho para sua salvação, já anun ciada desde os primórdios da humanidade (Gn 3.15). A razão pela qual os mitos e as crenças foram transmitidas de geração a geração, a ponto de chegarem até aos nossos dias (nas socie dades primitivas contemporâneas) deve-se à organização social da fa mília. Como as populações tão simples puderam conservar suas tradi ções religiosas, de que temos um esboço ainda que imperfeito? Certa mente através da família, que entre os primitivos da África e nos de mais povos é o suporte da vida religiosa e que faz corpo com ela: nas cimento, educação da criança, iniciação da adolescência, matrimônio, morte e sepultura — todas as fases da vida familiar são consagradas pela religião; apóiam-se mutuamente, fortificam-se ou enfraquecem-se simultaneamente. Se a família e a religião estão bem constituídas, a tribo progride; se elas se desagregam, a tribo desaparece.14 A organização da família, nas sociedades rudimentares, constitui uma preocupação fundamental; os laços familiares são estreitados sob a autoridade do chefe, o patriarca, que possui seus direitos e deveres, in clusive religiosos. A família é monogâmica, quanto mais primitiva for a tribo; depois, em algumas tribos, ela se tornou poligâmica, embora sujei ta a determinadas leis e objetivando mais produtos, mais relações, mais alianças e maior autoridade. H á a tendência de o patriarca se transfor 119
mar em tirano, nas famílias poligâmicas, minimizando a mulher e sa crificando a criança. Entretanto, não se pode falar em promiscuidade gregária e inconsciente.15 Segundo a concepção cristã, a família é tida em alta conta. Tan to o Antigo como o Novo Testamento exaltam a unidade, a santida de e a responsabilidade da família no que diz respeito à transmissão das verdades sagradas. O povo de Israel sempre deu prioridade à or ganização familiar e foi no seio da família que os valores espirituais do povo foram conservados, quando ainda não havia a lei escrita. Moisés, grande servo de Deus, enfatizou a importância de am ar ao Senhor Deus de todo coração e de transmitir suas palavras aos filhos, assentado em casa, andando pelo caminho, na hora de deitar e na ho ra de levantar (Dt 6.4-7). O sábio Salomão deu vários conselhos aos pais quanto à necessidade de conduzir o filho no bom caminho: “Ins trui o menino no caminho em que deve andar, e até quando envelhe cer pão se desviará dele” (Pv 22.6). Paulo exalta a fé não fingida da mãe e da avó de Timóteo, fato que levou aquele jovem a ser um gran de cooperador no reino de Deus (lTm 1.5). Desde os primórdios da humanidade até os nossos dias, quando a família vem sendo tão bombardeada com novos conceitos morais, é imprescindível a atuação da família cristã, vivendo uma fé não fingi da, ensinando os filhos no bom caminho da salvação e conservando os valores morais e espirituais contidos nas Escrituras Sagradas. Se a família primitiva perpetuou os mitos, isso se deve também à utilização de símbolos. Os símbolos, como os mitos, unem o intelecto e as emoções, fazem a união dos valores sociais e pessoais presentes na religiosidade e ajudam as pessoas a compartilharem suas crenças. Toda religião possui seus símbolos. Um deles é o pilar, cujo significado sim bólico é a união da terra e do céu, do material e do sobrenatural, do homem e Deus. Está presente em todos os cantos da Terra e em todas as culturas, das mais primitivas às mais modernas. Levantar um a colu na era um costume antigo, significando que o grupo ali instalado pos suía existência e progresso no local, devido à sua ligação com Deus. Tal aconteceu com Jacó, após o seu sonho da escada que subia ao céu; co locou a pedra em que reclinara a cabeça por coluna, derramou azeite por cima e reconheceu que Deus ali se manifestara (Gn 28.18,19). Em outra ocasião, ao empreender a grande reforma deuteronômica, o rei Josias colocou-se junto à coluna e fez o concerto perante o Senhor, conclamando o povo a obedecer a seus mandamentos e esta tutos (2Rs 23.3). A igreja é chamada de coluna e firmeza da verdade (lTm 3.15). O próprio templo é uma evolução do símbolo da coluna. 120
Além da coluna ou pilar, outros símbolos são comuns entre nôt até hoje: sangue — símbolo da vida; água e fogo — símbolos da puri ficação (batismo cristão); árvore — símbolo de crescimento etc. Dentre eles, destaca-se a palavra, símbolo para transmitir as crenças; antipmente, utilizava-se a palavra falada; hoje, a palavra escrita está muitíssimo divulgada. A Palavra de Deus, a Bíblia, para nós, cristãos, é a maior fonte de comunicação, inspirada pelo próprio Deus e que nos transmite toda a verdade espiritual necessária para nossa vida (2Pe 1.21; 2Tm 3.16,17). O próprio Jesus Cristo, Deus encarnado, é chamado de Verbo, Palavra, significando a grande e máxima revelação de Deus aos homens (Jo 1.1,11-14). A crença no nosso Deus Criador, como apresentado pelas Escri turas Sagradas e como encontrado entre os mais primitivos povos da humanidade, foi se degenerando por influência do animismo ou fetichismo, da magia e do totemismo. Em algumas sociedades primárias, a crença num Ser Supremo é encontrada junto a práticas mágicas e totêmicas. A supressão progressiva do culto a um Ser Supremo e até o seu desapare cimento em tribos de cultura mais avançada, mas de moralidade mais duvidosa e de espírito mais depravado, tem a ver com o desenvolvimento paralelo, assustador e anormal, das superstições animistas ou mágicas.16 São os aspectos degenerativos da religiosidade primitiva que a afastam do cristianismo, isto é, distinguem-na dele. As diferenças básicas entre ambos são as seguintes: muitos deuses; nenhum a revelação na história (por ser pré-histórica); eficácia mágica do sacrifício e dos ritos; confusão entre magia e religião; deuses e homens pertencendo a um único sistema cósmico e dependendo m utuamente um do outro. Por influência da magia, aparece a figura do xamã, com a função de assegurar as relações entre o mundo dos espíritos e o homem; pode-se dizer que é equivalente ao feiticeiro da África ou ao mago da Babilônia. Em seus êxtases, o xamã é capaz de entrar em contato com o Ser Supremo, com os espíritos benéficos e maléficos e com os espíritos dos antepas sados, para traduzir suas mensagens aos homens. Para tanto, ele imita animais, cobre-se com disfarces. Sua principal função é curar os enfermos e dominar os maus espíritos e as almas que perturbam os parentes. A figura do xamã pode ser equiparada ao pai-de-santo entre os umbandistas, um a vez que lhe são atribuídas as mesmas características e funções. N a realidade, existe a influência da idéia do xamã dos primi tivos africanos sobre a figura do pai-de-santo, uma vez que a religiosidfld# mágica foi trazida pelos africanos para o Brasil. Uma outra influência mágica que atingiu diversas religiões, ineltk, sive as seitas mágico-religiosas do Brasil, são os fetiches. Q ualquif Qttflf
III
estranha pode tornar-se um fetiche; para tanto, precisa receber o poder mágico do xamã ou do pai-de-santo. Entretanto, o fetiche apareceu em sociedades posteriores às mais primitivas e demonstra uma deterioração da religião. Além dos fetiches da umbanda, encontramos ainda hoje os talismãs e amuletos que as pessoas supersticiosas usam para afastar o azar, o mau-olhado ou para dar sorte. Ainda em relação aos fetiches, encontramos os objetos abençoados no seio das seitas neopentecostais: são as rosas abençoadas, a água santi ficada e outros amuletos, muito comuns onde aflora a religiosidade popular de gente simples e carente. ' A crença na comunicação com os antepassados, presente no tote mismo e envolvida tam bém em práticas mágicas, reaparece ou simplesmente se perpetua em religiões posteriores, inclusive no espiritismo e na umbanda. Diversas tribos primitivas acreditam em muitos espíritos e na sua atuação neste mundo; essa idéia aparece nos orixás, cada qual com seus símbolos, vestimentas e exigências. A crença na reencarnação ou na transmigração das almas também se perpetua em outras religiões, inclusive no espiritismo e umbanda. Todas essas práticas mágico-religiosas, sendo uma degeneração da religiosidade pura da fé no Criador Supremo são condenadas pelas Escri turas Sagradas, a Bíblia. O povo de Israel foi proibido de segui-las, havendo a ameaça do castigo aos desobedientes (Dt 18.10-14). No Novo Testa mento, aqueles que se envolviam em práticas mágicas precisaram se converter ao Senhor e abandoná-las (At 19.18,19). , A idéia de tabu relaciona-se com a idéia de pecado. À pessoa que transgredisse o tabu estabelecido pela tribo sofreria conseqüências. Rela cionadas ou não à religiosidade, percebe-se uma legislação entre os povos primitivos quanto à vida do homem, à compaixão pelos necessitados, à omissão de morte injustificada, à moralidade sexual e quanto a outros aspectos. Em muitas tribos essa legislação se acha vinculada à atuação de um Ser Supremo junto ao povo. O tabu, relacionado ao totemismo, designa os limites, nos costumes religiosos e sociais, que separam certas pessoas, certas coisas e certas ativi dades e impõem regras para a aproximação dos mesmos ou para o seu isolamento. No terceiro capítulo, há exemplos de proibições do tabu, clas sificadas em alguns tipos distintos. N a realidade, concordamos com Durkheim, que afirmou não existir sistema religioso sem proibições. Os livros da lei, da Bíblia, trazem todo o sistema de leis e normas que deveriam ser seguidos pelo povo de Israel. A própria idéia de tabu é observável quando o povo de Israel vencia nas guerras; a exemplo, citamos o caso de Jericó, considerada anátem a ao
Senhor: deveria ser totalmente destruída, com exceção de Raabe e fi miliares e da prata, ouro e metais (tesouro do Senhor). Acâ, ha oettsião, foi morto com todos os seus familiares e bens, por ter se apode rado do anátema (Js 6.17-19; 7.24-26). Se a transgressão ao tabu é imediatamente castigada, no caso do pecado o castigo por vezes é demorado. No Novo Testamento, a doutrina do pecado é esclarecida com profundidade, por todos os es critores que tratam do assunto. A mensagem do arrependimento e fé é levada a todos que desejam fazer parte do reino de Deus (Mc 1.4, 14,15; At 2.37-40). Q apóstolo Paulo trata da questão do pecado co mo domínio do material, carnal, sobre o espiritual (Rm 3.23; 8.7; ICo 6.12; Ef 2.3). Dada a incapacidade de o homem viver sem. a transgressão à lei, desde os primórdíos da humanidade, ele busca uma reconciliação com o Ser Supremo através das orações, das cerimônias solenes, dos ritos e dos sacrifícios. Já vimos que, quanto mais primitiva for a tribo, mais pura é sua religiosidade, com a veneração ao Ser Supremo sem sacri fícios sangrentos, mas marcada pela simplicidade da súplica, do lou vor e do agradecimento, presentes nos gestos e nas cerimônias relacio nadas ao fruto do campo. ; A forma predominante de culto nas tribos bem primitivas são os ritos agrários, com destaque para a oferta das primícias: os primeiros frutos e os primeiros animais. No culto a Deus, as primícias são a ele ofertadas como reconhecimento do seu domínio, como agradecimento por sua providência e como forma de conservar a vida dos animais e das plantas, a fim de que a tribo sempre disponha de alimento suficiente. Sacrifícios sangrentos, isto é, oriundos da morte dos animais, são obser váveis em culturas posteriores às mais primitivas; numa degeneração do rito original aparece o sacrifício de pessoas, presente em diversas reli giões do passado e enfaticamente condenado pela moràlidade universal e, principalmente, pelas Sagradas Escrituras, a Bíblia. Já os ritos agrários, com a oferta das primícias, podem ser vis tos na religião de Israel, aqui enquadrados num sistema bem desen volvido, com leis específicas, na presença dos sacerdotes e em locais determinados (Lv 23.9-25). No contexto do povo de.Israel, aparecem também os sacrifícios cruentos, como expiação pelos pecados (todo o livro de Levítico). .. Nos dias de hoje, em diversas igrejas cristãs, principalmente do inte rior do país, onde os membros estão ligados à vida do campo, realizam-M cultos das primícias das safras, cujas ofertas são destinadas aos ne cessitados. ■
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O sacrifício como autoflagelo, presente em poucas tribos primi tivas, ainda pode ser visto hoje em seitas populares, onde a mentalida de do povo ainda está ligada a conceitos religiosos bem degenerados. Alguns aspectos do rito de iniciação dos primitivos podem ser vistos em cerimônias cristãs, como a primeira comunhão dos católicos ou o batismo dos batistas: orientação quanto às normas básicas da re ligião e participação na comunidade, com acesso aos deveres e privilé gios comuns a todos. Outros aspectos do rito de iniciação dos primi tivos podem ser observados no ritual de iniciação da umbanda e simi lares (“fazer a cabeça”): isolamento da sociedade, privação de alimen tos, flagelos. Sempre que a magia, que quer manipular os poderes sobrenatu rais, sobrepuja o sentimento religioso, surgem crenças e rituais mágicos que não condizem com a realidade espiritual do ser humano, como, por exemplo, rituais da caça, culto do urso, rituais funerários, cuulto dos ossos, culto aos antepassados, culto à grande deusa mãe, sacrifícios humanos — rituais esses ligados ao animismo e ao totemismo. Desde a religiosidade primitiva até as religiões ainda vivas hoje, existem os rituais, mais ou menos impregnados pela atitude mágica, com o objetivo de expressar o fato religioso, em público e na comunhão com outras pessoas. Os ritos e cultos expressam gratidão, reconhecimento, solicitam ajuda do Ser Supremo e, quanto mais influenciados pela menta lidade mágica, objetivam interferir no processo sobrenatural atuando sobre o mundo natural. Neste contexto colocam-se os sacrifícios, que também visam a aplacar a ira dos deuses e pagar os pecados. Se na religião de Israel houve necessidade de derramamento de sangue de animais para remissão dos pecados, isto é, da morte do cordeiro, o cristianismo veio libertar o homem dos sacrifícios de animais e do auto flagelo pelo pecado, pois crê no Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29; Hb 9.11-15). Jesus Cristo, Deus feito homem, ofereceuse voluntariamente para remir o homem de seus pecados, concedendo-lhe a certeza da vida eterna (Jo 3.36; 5.24; 10.25,26; 17.3). Que crê no Filho tem a vida; não há necessidade de sacrifícios, autoflagelos, boas obras, rituais funerários, culto aos antepassados: tudo se reduz a nada mediante a fé e a entrega total a Jesus Cristo. Â luz dessa convicção do cristão, surge o questionamento acerca do trabalho missionário. Até que ponto o missionário pode interferir na cultura dos povos, levando-lhes a mensagem salvadora de Jesus Cristo? Do nosso ponto de vista, o missionário precisa contextualizar a mensagem do evangelho o máximo que ele puder. Para tanto, precisa compreender a cultura do povo a quem prega, conhecer suas crenças e mitos, seus 124
cultos e ritos e, a partir daí, abordar o povo com a verdade (|tie é Jr sus Cristo. Em contato com povos primitivos ainda não influenciados pela degeneração da religiosidade do Ser Supremo, o missionário ape nas ampliará sua visão para a realidade de Jesus Cristo, principalmen te vivendo seus ensinamentos. Em contato com povos primários pra ticantes de rituais mágico-religiosos, o missionário sempre iniciará a mensagem das boas-novas com base em crenças e ritos já conhecidos pelo povo: a noção de tabu, a moralidade da tribo, o sacrifício, os di versos rituais, a crença no Ser Supremo. A atitude do missionário nunca poderá ser de crítica aos valores e costumes dos povos, mas sempre de diálogo e compreensão dos mes mos, de simpatia e amizade, de integração e comunicação. O trabalho dos missionários certamente terá sua recompensa quando os nativos chegarem à fé em Jesus e eles mesmos anunciarem aos seus as maravi lhas da salvação, tal qual aconteceu com os tessalonicenses (lTs 1.2-10)! NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1. HUBY, José. Christvs — história das religiões, v. I, p. 100. 2. MARTINS TERRA, J. E. Origem da religião, p. 85, 86. 3. Ibid., p. 42, 43. 4. Ibid., p.44-47. 5. CID, Carlos & RIU, Manuel. Historia de ias religiones, p. 41-46; THIAGO, Arnaldo S. Comentários à história das religiões, p. 258-310. 6. BRADEN, Charles Samuel. The world's religions, p. 29, 30; HUBY, José, op. cit., 140, 141. 7. BENZ, Ernst. Sobre la comprension de las religiones no cristianas.In:ELIADE, Mircea & KITAGAWA, Joseph. Metodologia de Ia historia de las religiones, p. 153, 154. 8. HUBY, José, op. cit., p. 110, 111. 9. FLAMMING, Péter J. Dios y Ia creación, p. 48-55. 10. TURNER, Harold W. In: EI m undo de Ias religiones, p. 168. 11 .Ibid. 12. KOPPERS, Wilhelm. El hombre mas antiguo y su religion. In: KONKí, E. Cristo y Ias religiones de Ia Tierra, v. I, p. 117, 118. 13.Ibid., p. 119. 14. HUBY, José, op. cit., p. 117. 15. Ibid., p. 118. 16. Ibid., p. 133.
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CONCLUSÃO
Destacou-se, no último capítulo, que os termos selvagem e não-civilizado não podem ser utilizados para designar os povos em cultura pré-literária ou pré-histórica. Por isso foi utilizado o termo primitivo ou primordial para referir-se ao povo em estado de civilização o mais sim ples possível. Os povos primitivos contemporâneos não passam de algumas tri bos espalhadas por diversos pontos do mundo, que permaneceram es tagnadas em sua cultura mais primitiva. Por mais que se aproximem da maneira de viver dos primeiros povos existentes sobre a face da Terra, estas formas primitivas não nos podem oferecer toda a vida e toda a riqueza características da primeira religiosidade humana. Não constituem, pois, a forma primitiva da religião, em absoluto. Entretanto, os estudiosos da cultura e da religiosidade primitiva reuniram informações suficientes para estabelecer as principais carac terísticas dos povos primordiais. Esse material, como já foi destacado no decorrer deste volume, foi recolhido das observações in loco das tribos primitivas contemporâneas, das pesquisas arqueológicas e dos remanescentes encontrados em civilizações posteriores e literárias (cap. III). Os dados obtidos são comparados uns com os outros e destacamse os aspectos mais evidentes que caracterizam a cultura e a religião primitiva. O estudo fenomenológico das religiões não despreza a contribui ção dos etnólogos, sociólogos, filósofos, teólogos e historiadores, pois cada estudioso enfatiza determinado aspecto da cultura e da religião, importante no contexto geral. Para se compreender o sentimento reli gioso da humanidade é preciso focalizá-lo sob os mais diversos ângu los possiveis, pois desde os tempos mais primitivos a religiosidade es teve vinculada aos costumes, aos relacionamentos e ao sucesso das pessoas. Pelas mesmas razões, um estudo como este leva em conta a defi nição que cada intelectual dá do termo religião, quer enfatizando os aspectos morais, os sociais, os emocionais, os cúlticos, os individuais 126
ou apenas os ideais. Em todo caso, na definição da religião, levam se em conta os elementos que a constituem: a crença nos poderes supe riores, o vínculo de dependência desses poderes e o conjunto de ritos. Esses elementos estão presentes em todos os grupos humanos, desde os tempos primitivos até à modernidade; daí a universalidade da re ligião. Se o sentimento religioso é universal, os estudiosos buscaram a sua origem e, para tanto, formularam diversas hipóteses: a da mitologia da natureza, isto é, o homem teria começado pela adoração das forças da natureza; a do animismo, segundo o qual o homem teria atribuído os espíritos aos objetos e aos animais, passando ao politeísmo e dele ao monoteísmo; a do totemismo, ou seja, o homem começou adorando seus antepassados, visualizados em animais; a da magia, em que o homem teria iniciado sua experiência religiosa com as crenças e rituais mágicos. Embora não se possa provar, do ponto de vista histórico e científico, como a religião se originou, as atividades religiosas dos po vos primitivos contemporâneos nos ajudam a interpretar as evidências dos tempos pré-históricos. Em muitos povos primitivos, como os bantos na África e os abo rígines na Austrália, encontra-se a crença em um Ser Supremo, Cria dor dos céus, da terra e do homem. A crença em deuses superiores, di rigidos por um Ser Supremo, é um marco genuíno e característico da religiosidade primitiva incontaminada. O monoteísmo original explica muitos fatos históricos que não se encaixam na hipótese da evolução da religião. Através dos mitos encontrados ainda nos povos primitivos de hoje e da observação de seus ritos, conclui-se que eles atribuem determinadas características ao Ser Supremo, ou seja: eternidade, onisciência, onipo tência, bondade, moralidade, poder criador. Cada tribo lhe atribui de terminado nome, havendo aquelas que não o pronunciam durante anos. O Ser Supremo é denominado de Pai, Aquele Lá de Cima, Criador, o Velho, o Senhor de Cima. Seu nome é pronunciado em extrema neees sidade ou são utilizados sinais para referir-se a ele, como um sinal para o céu. O Ser Supremo é venerado através das orações de louvor, ação de graças, súplicas, cerimônias solenes, gestos rituais e sacrifícios. Na cul tura primária, da caça, o Ser Supremo é cultuado com o produto da caçada ou ainda com os primeiros frutos do campo. Através das atitu des de petição e gratidão, os povos de cultura primitiva e primária de monstram sua dependência ao Ser Supremo e reconhecem sua parti cipação junto à vida humana. 127
N a cultura dos pastores, surge uma nova forma de culto com uma oferenda incruenta: o animal consagrado é deixado livre, obser vando-se que não seja maltratado por alguém ou morto. Não se sabe ao certo em que época surgiram os sacrifícios cruentos, isto é, com derramamento de sangue, relacionados à religiosidade. Afirmam os es tudiosos que não são comuns às sociedades primitivas. A cultura dos pastores foi a que melhor conservou a religião do Grande Deus, em tempos posteriores à cultura primitiva. Na cultura primária ainda se destaca a fase matriarcal agrária e a patriarcal totêmica, quando as concepções mágico-religiosas começam a interferir no culto incontaminado ao Ser Supremo. Surge a veneração à mãe terra, com seus fetiches e rituais próprios. Surge o culto aos ante passados totêmicos, relacionados aos animais da fase da caça. A oração e o sacrifício ficam submetidos a um grande número de ritos mágicos. Surgem muitos deuses, cerimônias e rituais; a corrupção religiosa diviniza o que é imoral e anti-social e rejeita o Ser Supremo, em face de milhares de outros deuses e espíritos. Uma vez que, desde épocas bem primitivas, a magia e a religião se encontram entrelaçadas, pode-se afirmar que a deturpação da reli gião acontece quando a magia supera o sentimento religioso. Estudando-se as crenças básicas dos povos primitivos, podemos notar que eles aceitam a imanência da alma, isto é, a alma está inti mamente relacionada ao corpo, enquanto este vive. Entretanto, ela pode deixar momentaneamente o corpo e exercer sobre ele a ação de sua presença. Crêem na sobrevivência da alma e na sua eventual reencar nação no corpo do indivíduo; daí alguns rituais mágico-religiosos. Os primitivos crêem em muitos espíritos ou gênios que interferem na vida das pessoas. Aceitam as imagens dominadas por forças espirituais. Os primitivos ainda aceitam a morte como a separação da alma de seu corpo, mas esta pode estar em vários lugares e aparecer aos vivos. A tumba é o elemento mais elementar da expressão religiosa; através das sepulturas, podemos identificar a crênça na sobrevivência da alma. Degenerando-se a religiosidade primitiva, surgem os sortilégios e a prática da magia como expediente para dominar os poderes sobrena turais, em favor da natureza e dos humanos. Neste contexto aparece a figura do xamã, semelhante a um feiticeiro, que possui o poder de inter ferir no mundo dos espíritos, para buscar a cura da enfermidade, a ex pulsão de maus espíritos, enfim, fazer a comunicação do sobrenatural com o natural. No totemismo destacam-se os conceitos de totem, m ana e tabu. O totemismo subordina um grupo de homens, o clã, a determinada 128
espécie de seres sagrados, os totens; esses seres são aceitos como verda deiros progenitores do clã e este assume as características de seu totem: se for búfalo, os membros do clã dispõem os cabelos em forma de cor nos; se for pássaro, usa-se a plumagem do mesmo etc. O totem, geral mente um animal, é associado ao ancestral morto e, como tal, divini za-se, isto é, pode assumir a forma de ídolo. O totem estabelece os ta bus, que são as proibições ou separações de objetos, pessoas e animais interditados. O mana é o poder impessoal presente no chefe que proíbe ou no animal proibido: o mana é uma força mágica, sobrenatural ou natural. No animismo surgem os fetiches, que são objetos possuídos pelos espíritos ou por um poder sobrenatural. São figuras modeladas de barro, pedra ou madeira, representando animal ou objeto, ou são simplesmente os objetos em si: penas, peles, ossos, unhas, cabelos, dentes de algum animal tutelar ou totêmico. Tanto o totemismo como o animismo não constituem, por si só, a religião dos primitivos. Em algumas tribos essas crenças nem existem; em outras, suas expressões são mais atenuadas; e ainda em outras elas aparecem junto à crença em um Ser Supremo. Dentre os muitos rituais encontrados na religiosidade primitiva, destacam-se: o rito de iniciação, em que os adolescentes são instruídos nos segredos da tribo; rito funerário, que visa a assegurar o repouso á alma que parte; culto aos antepassados, em que todos os membros do clã são ligados entre si e com o ancestral totêmicos; culto à grande deusa mãe, que analtece a figura da mulher, da mãe e a fertilidade; ritual da caça, cujo objetivo é favorecer a multiplicação dos animais; ritos agrá rios, que oferecem as primícias do campo a um Ser Supremo ou aos deuses; sacrifícios que visam a agradar os seres sobrenaturais. Das crenças e ritos dos povos primitivos destacam-se os aspectos em que se identificam com o cristianismo: amor à terra; consciência profunda da debilidade hum ana e dependência a um Ser Supremo; convicção profunda de que não estamos sozinhos no universo; convic ção de que existe um mundo além da morte; convicção de que existe um mundo espiritual. Em outros aspectos, a religiosidade primitiva se degenerou em crenças e ritos mágicos e difere do cristianismo: muitos espíritos e deuses atuando sobre os seres vivos e até mesmo presenles neles; nenhuma revelação histórica; eficácia mágica do rito; confusão entre magia e religião; deuses e homens pertencendo a um único sis tema cósmico; rituais totêmicos. Infelizmente, a pureza da religiosidade primitiva foi mesclada com crenças posteriores, que denegriram a imagem e os atributos de Deus 129
c originaram rituais mágico-religiosos que, cada vez mais, enfatizaram a participação do ser humano na salvação da alma e na manipulação das forças sobrenaturais. Vindo a revelação perfeita e completa de Deus em Jesus Cristo, encontrou a humanidade a resposta para os seus anseios, suas dúvidas e suas angústias. Através de Jesus Cristo, a humanidade volta à sim plicidade da fé e da graça de Deus, “porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2.8).
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' istória das Religiões é um a c o le ç ã o indicada prim ordialmente ao grande público e pesquisa dores do assunto. A c o le ç ã o é constituída de seis volumes assim distribuídos: Volume 1- O rigem e Desenvolvimento da Reli gião Volume 2 - As Religiões Antigas Volume 3 - As Religiões Vivas d? Parte) Volume 4 - As Religiões Vivas (2a Parte) Volume 5 - 0 Cristianismo Volume 6 - Fenom enologia da Religião C o n h e ç a ta m b é m , d o m esm o au to r, a C o le çã o Seitas d o Nosso Tempo, em 7 volumes: Volume Volume Volume Volume Volume Volume Volume
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