História da Igreja Cristã, W. Walker

March 30, 2017 | Author: Luiz Francisco Ferreira Junior | Category: N/A
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A pi~biica~áo deste livro foi possível graças as contribuiçóes da Evangelisches Missionswerk iii Deutschialid (Hamburgo, Alemanha) e das Igrejas Pro~estantesUnidas na Holanda - Ministérios Globais (Utrecht),

às q~iaisa hsociaçáo de Semi~iários'kológicos Evangélicos agradece.

Associaçáo de Seminários Teológicos Evangélicos I'resideni-e: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de Janeiro) Vice-Preçide~ite:Prof. Dr. Gerson Luis Linden (São Leopoldo) Secretário: Prof. Dr. Nelson Krlpp (Sáo Leopoldo) Tesoureiro: Prof. Gerson Correia de tacerda (Sáo Paulo) Vogais:

Profa. Maria Betânia Arliújo (Recife) Prof. Carlos Getúlio Halbero, ( ~ o r c ohlçgre) ' l'rof. Dr. Paulo Roberto Garcia (Sáo Bernardo do Campo) Diretor Executivo

Prof. Fernando Borrolleto Filho

DA IGREJA CRISTÃ E RICHARD A. NORRIS DAUID W. LOTZ ROBERT T. HANDY

3' edição tradução de Paulo Siepierski

Título original: A Hiitory oj'tbe Christian Chuwh - Charles Scribner's Sons, New York 1959 O . Primeira ediçiío em iírigua portuguesa: ASTE O 1967. Segunda edicáo em língua portuguesa: 1980. Tesccira edi5áo cm Krig~iaportuglicba; AS'l'E (baseada na 4nedicáo em ASTEIjUERP inglês) O 2006. Todos os direitos reservados.

1

1

Direçáo Editora1

Fçrliaildo Boitollçt -

lei de Deus, que era equiparada à sabedoria e portanto tornada a base para inquiriId

ções tanto em questóes cosmológicas e antropológicas como também legais e morais.

ra

Tal sabedoria humana, entretanto, era tida como o resultado da aherrura para a ins-

>.

piraqáo da Sabedoria divina, que era tanto plano de Deus como agente de Deus para

-3

a criação e que é descrita en-i A Sabedoria de Salomáo como "uma emanação da @ria

Id

do Todo-Poderoso . . . o espelho perfeito do poder ativo de Deus e a imagem de sua

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divindade.""

> -

3.

Sabedoria (não diferentemente do logos estóico ou d a Alma-Mundo

platônica) ordena a criajáo, mas ela também busca e reúne as pessoas para a compreensáo e torna-as amigas de Deus. Ela, portanto, também é uma agente de salvaçáo, embora uma agente concebida em uma moldura de pensamento diferente das figu-

-1

ras de salvaçáo da expectativa apocalíptica.

I?

Essas literaturas eram conhecidas e ponderadas não apenas na Judéia e na Palesti-

-3

na mas também na Diáspora, onde se encontrava a grande maioria dos judeus. Sob

35

ra

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' Lucasl:68. Sabcduria de Saloináo 7:17-21 Sabedoria de Saloinão 7:25.

os romanos, o judaísmo era uma "rcligiáo autorizada' (~eli~io licita),mão apenas na Palestina mas também nas cidades gregas e romanas, e a lei romana protegia as comunidades de fazendeiros, artesáos e comerciantes judeus por todo o império. Essa proteçáo era necessária, uma vez que a exclusividade religiosa dos judeus, seus privilégios legais e sua indisposiçáo em participar na vida cívica algumas vezes os tornaram impopulares. Na realidade, os judeus da Diáspora fizeram muitos ajustes ao mundo helenísrico, mais notadamente na questáo da linguagem. Eles falavam grego quase universdmente, até mesmo em suas sinagogas; e por volta da época de Augusto, a versáo grega das Escrituras conhecida como a Septuaginta (L=] foi completada e passou a ser empregada em todo canto. Ademais, as comunidades judaicas da Diáspora entraram em diálogo com a religião pagã. Como resultado, elas náo apenas fizeram conversos (prosélitos) mas reunirarn ao redor de si uma grande nuvem de inquiridores parcialmente judaizados ("tementes a Deus"), que serviram como uma área de recrutamento para grande parre da propaganda ~nissionáriacriscá inicial. Esse diálogo produziu seu mais notável fruto na comunidade judaica de Alexaridria, no Egito, onde, na obra de Fílon (m. ca. 42 d.C.), temas das Escrituras judaicas foram combinados em um notável sincre~ismocom idéias filosóficas estóicas c platônicas. Fílon, um judeu fiel, procurou demonstrar que a Lei - isto é, o Pencaceuco internalizava uma sabedoria que concordava com o que havia de melhor

110

ensino

da tradiqáo filosófica. Para fazer isto, ele utilizou o mécodo de interpreragáo alegórico bem conhecido dos cxegetas helenísticos de Homero, e por esse meio desvelou nas páginas de Moisés náo apenas uma dtica mas cambérn filosófica doutrina de Deus e da cria~áo.De acordo com Fílon, o cosmo é produto da boiidade que emana de Deus. Incompreensível em sua rranscendência, Deus está vinculado ao mundo pelos poderes divinos. Destes, o mais alto é o Logos, que flui do prbprio ser de Deus e é náo apenas o agente pelo qual Deus criou o mundo mas também a fonte de todos os

outros poderes e o modelo último das criaçócs espirituais e visíveis. A descriçáo do Logos por Fílon, port:into, conjuga elementos de muitas fontes: da especulacáo de Sabedoria judaica, das idéias platônicas sobre um domínio inteligível de Formas e da nocão escriturística de que Deus cria arra\r&sde sua Palavra (Logo$). Esse tipo de pensamento, que tem paralelos menos sofisticados nas idéias do Novo Testamento de Palavra de Deus e Sabedoria, provaria ser um modelo eficaz no desenvolvimento da teologia cristá posterior.

PERi000 I

O0 INICIOÀ CRISE 6NDSTlCll

Capítulo 3

Jesus e os Discípulos C3 caminho foi preparado para Jesus por um movimento apocalíptico-messiânico liderado por João Batista, que no pensamento dos primeiros cristãos era o precursor do Messias. De vida ascética, Joáo, na regiáo do Jordáo, pregava que o dia do juízo sobre Israel estava próximo e que o Messias estava prestes a vir. No espírito dos profetas de antigamente, elc proclamava a mensagem: "Arrependam-se, pratiquem a justiça." Ele batizava os discípulos no símbolo da lavagem de seus pecados, e ensinou-lhes uma oração especial. Jesus, é nos ensinado, classificou Joáo como o último, e entre os maiores dos profetas. Alguns dos discípulos de JoSo mais tarde se tornaram

seguidores de Jesus, mas seu movimento continuou a ter uma vida indspendente.'

Está faltando material para uma adequada biografia de Jesus. Os registros dos evangelhos sáo primordialmente testen~unhosdo evento divino de Jesus o Cristo, e seus detalhes rêm sido sem dúvida coloridos pelas diferentes experiências, situaçóes e memórias das primeiras comunidades cristás. Os eruditos estáo assim divididos quanto a exatidão de muitos incidentes registrados nos wangclhos. Náo obstante, a vida t: os ensinos de Jesus salientam-se nas páginas dos evangellios em seus contornos essei-ici315.

Jesus cresceu em Nazaré da Galiléia. Essa terra, embora desprezada pelos habitantes mais puramente judeus da Judéia porque scu povo era de constituiqão racial misturada, era fiel às rradi~óese religião judaicas, ci lar de uma

ousada,

orgulhosa, e particularmerite impregnada pela esperança messi~niça.Ali Jesiis cresceu e aniadureceu atravis de anos de experiências r-iáo registradas. Ele aparencen-iente foi tirado dcssa vida pela pregaçáo de Joáo Batista. Ele foi a Joáo, sendo batizado pelo profeta no rio Jordáo. Com seu batismo veio a coi~viccáode que ele i i a ~ ~sido i a escolhido pcir Dcus para cumprir um papel especial na proclamação do reino a ser crn

breve inaugurado pelo Filho do Homeni ceiestiai. Se Jesus reaimenre se viu como Messias tl. unia questão muito disputada. De quaIquer modo, ele parece ter rejeitado as concepçóes populares do ofício messiánico e ter anrccipado não o triunfo polirico

' Ck: Aros I C): 1-4

mas o sofrimento como seu próprio destino, mesmo enquanto acreditalido que em seu ministério o poder do reino vindouro já escava em açáo.

Após seu batismo - ou, como Maceus precisaria isso,' após a prisáo do Batista Jesus começou um ministirio itineranre de pregação e cura, cuja mensagem era a proximidade do reino de Deus e a conseqüente necessidade de arrependimento e fk. Ele reuniu u m grupo de associados (os Doze, simbolizando a totalidade das tribos de Israel) e atraiu um grupo maior de discípulos menos intimamente apegados. Seu ministério foi breve: durou quando muito três anos, e talvez não mais do que um. Ele despertou a oposição das autoridades religiosas, e sem dúvida de o u ~ r o stambém, porque suas acóes e ensinos fizeram com que ele parecesse um blasfemo crítico da Lei e sua intcrpretaçáo tradicional. Ele viajou para o norte, para Tiro e Sidom, e depois para a região da Cesaréia de Filipe, onde os evangelhos registram que seus discípulos reconheceram sua niissáo messiânica. Ele julgava, entreranto, que não importava o perigo e ele deveria testemunhar em Jerusalém. Para lá ele foi, diante de crescente hostilidade; e 12 foi preso e crucificado, certamente na administracáo do procurador Pôncio Piia~os(26-36 d.C.) e provavelmente no ano 29. Seus discipulos se espalharam para suas casas, mas rapidamenre se reuniram novamente em JerusaIém, na feliz convicçáo de que Deus o havia levantado dentre os mortos.

O reino de Deus, no ensino de Jesus, significava a afirmaçáo manifesta do amor e governo justo de Deus. Consequentemenrc, naqueles que discernein sua proximidade ele demanda reconhecimento prácico da soberania e paternidade de Deus. Isso acontece apenas através de uma reorientaçáo completa de valores e atitudes (arrependimento e fé), que se revela no amor a Deus e ao próximo e é coroada e fortalecida pelo perdáo divino. Viver tia perspectiva do reino vindouro é, como Jesus descreve isso, um negócio custoso e exigente. Ele requer uma vontade de abandonar todos os bens menores, transcender as exigências morais normais da Lei e praticar o perdão ilimitado para com os outros. O cumprimento de tal vida é utna comunháo interminável com Deus e seus santos. Para aqueies, por outro lado, que fracassam em discernir e compreender o reino que está alvorecendo no ministério de Jesus, há apenas destruiçáo. Muito dos ensinos de Jesus encontram paralelo no pensamento religioso de sua

I

dessa manifestaçáo penrecostal é talvez impossível de recuperar. Certamente a noçáo

I

de uma proclamação do evangelho em muitas língiias esrrangeiras é incompatível

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ramento,%omo iambém o C com a impressão dada aos espectadores de que os que

com aquilo que conhecemos como "filar em línguaswde outras partes do Nova Xesfalavam escavam "cheios de virlho novo."- O ponto de maior significaçáo, entretanro, é que esses fenômenos surgiram como mnnifesta evidência do dom e poder de

Cristo. Eles demonsrraram a irlauguraçáo de urna nova era, que o ministério de Jesus havia prometido. Se o discípulo visivelmente reconhecesse sua submissáo pela fé, arrependimento c batismo, o Cristo exaltado, acreditava-se, por sua vez reconheceria 1

o discípulo concedendo-lhe o Espírito; e seu dom atestava a participaqão do discípu-

lo na era vindoura da "restauracão de todas as coisas", promerida lios oráculos de Daiis através dos profetas."

Capitulo 4

A Comunidade Cristá Inicial Na sua fase mais inicial, o movimen~ocristáo tinha seu centro em Jerusalém, onde ele recebeu a forma náo de uma nova retigiáo mas de uma seita ou agrupamento dentro do corpo progeliiror do judaísmo. Presumivelmei~tehavia, desde o inicio, seguidores de Jesus nas cidades e vilas da Judéia e da Galiiéia, mas sobre estes pouco é conhecido. De fato, nosso conhecimento da própria cornui-iidade de Jerusalém C limitado e obscuro, uma vez que os Atos das Apóstolos, nossa única fonte de inforritagáo, deve ser lido com caucela pelo historiador. Ele incorpora tradiçóes antigas e autênticas; mas ao mesmo tempo esri escriro no estilo "criativo" normal das histúrias helenísticas e manipula seu macerial da perspectiva da segunda geraçáo cristã, a qual

já tendia a ver os evenros de quatro ou c ~ n c odécadas anres de sua época conio sendo um tipo de idade dourada da igreja.

'' I Corintius

14:2-19.

Aios 2:I 3, i Atos 3 2 1 .

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PER1000 I

00 INlElO A CRISE GNISTICA

33

O que está claro é que as comunidades originais eram composras de judeus palestinos que, fundamentados na ressurreiçáo de Jesus, proclamavam seu retorno iminente como o realizador do reino de Deus, e que vivinm na antecipaçáo daquele evento. Eles chamavam a si mesmos, aparentemenre, "os pobres"' ou "os santos",' e também, desde bem cedo, "a ekklesia" - i.e., "assembléia" ou "igreja." O que todos esses estilos ou nomes signifkavam era bastante semelhante. A comunidade inicial percebeu-se, cm virtude de sua submissão a Jesus, como a verdadeira "assembléia" de Israel, a comunidade do fim dos tempos que o Senhor reconhecerá quando vier em glória. Que eles se viam simplesmente como judeus, como um Israel renovado, fica evidence pelo fato de que eles eram fiéis tanro no comparecimento ao templo cotrio na obediência a Lei; e sendo assim, eles viviam em paz com as autoridades religiosas em JcrusaIén-i. E desnecessário dizer, essa comunidade possuia suas próprias institui-

ções especiais, que expressavam sua identidade particular. Ela praticava o hatismo, com o qual o dom escatológico do Espíriro Santo estala associado. Ela se remia regularmente para oraçáo, exortaçáo mútua c o "partir do p50"," no qual os hisroriadores têm visto, sem dúvida corretamente, as origens da eucaristia como também uma refeição comuniriíria da comunidade. Ela expressava a f6 que definia sua identidade com expressões do tipo "Jesus é o Messias"' ou "Deus ressuscitou Jesus dentre os r n o r t o ~ . " ~

OS membros fundadores dessa comunidade foram com certeza os Onze (elevados, segundo o livro de Acos, para doze pela eleição de hlatias). Na época em que Atos foi escrito, estes homens estavam sendo chamados "apóscolos", um título que originalr-ilente era aplicado aos missionários itineranres como Paulo. Com exccgáo do caso de Pcdro, enrretarito, e talvez de Joáo, ria verdade nada é conhecido acerca das profissóes ou atividades dos Doze, que desaparecem quase imediacamenre da IOT-

:25

e

: rias

história e m Atos e assim se rornam temas adequados para lendas poscerioreb. Q ~ i a n do I'aulo visitou JerusalCm, a liderança parece que estaTra nas máos de dois ou três "pilares": Tiago o irmáo do Senhor, Pedro e Joáo."

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Gálaras 2.10.

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Itomarios 15:25.

' Aros 2:46. ' C:f. Marcos 8:29. ' Kornaiios 10:9. "Cglatah

23,e cf. 1:18-19.

Os problemas para a comunidade de fiéis em Jerusalém começaram como resultado da incorporaçáo, em sua vida, de judeus da Diáspora de fala grega residentes em Jerusalkm. Houve, sabemos, uma reclamagáo t r z ~ i d apelos fiéis judeus de fala grega conrsa os cristãos locais de fala aramaica. De acordo com Atos 6, a única razão para isso era que os "helenistas" estavam magoados porque "suas viúvas eram negligenciadas na distribuicão diária."' Essa breve disputa foi resolvida através da indica~áode sete helenis~aspara adniinistrarem os recursos comuns da comunidade"

um fato

que sem díivida é responsável peia tradiçáo de que estes sete foram os primeiros

d'laconos. ' Havia contudo nessa situaçáo, aigo mais do que um mero problema administrativo. Isso fica evidente na continuaqáo da narrativa de Atos. Ali Esteváo, o aparente líder dos helenistas, é achado em deba~cpungente com membros de outras sinagogas de faia grega, que o acusavam de falar "palavras blasfemas contra Moisés e Deus."' Como consequêiicia dissa, Estevão é arrastado para diance do sinédrio e eventualmente condenado à morte por apedrejamento. Presumivelmente, então, faltava a Esteváo e seus companheiros de fala grega o respeito pelo templo e pela Lei que os cristãos palestinos habitualmente revelavam, e foram perseguidos não por causa de sua crença em Jesus como o Messias, mas porque fararam como se estivessem preparados, segundo os judeus pensavam, para lanqar fora certas exigências da Lci à luz de sua nova f6. Essa percepcáo da questáo é confirmada por dois outros relatos regiscrados em Atos. Primeiro, C relatado que a morte de Esteváo foi a cena de abertura de "uma grande perseguiçáo

. . . contra a igreja em Jerusaiem",'" contudo ao mesmo tempo 6

deixado evidente que "os apóstoios" não foram afetados por essa perseguição." Em outras palavras, a persegui550 foi seletiva e alcanqou apenas aqueles cristãos - os heleiiistas - que falavam "palavras contra este santo lugar e a Iei."12Acomunidade de fala aramaica foi deixada relativamenre em paz, como a continuaqáo da narrativa em Atos claramente pressupõe. Mas, em segundo lugar, com a dispersáo dos líderes

- Aros 6:l. "tos 63. .Atos 6:J 2. Atos 8 : 1.

" Ibid. '%[os

6:ii

a ~ ~ i u aI o

00 INICIO A CRISE GNÓSTICA

.? 5

heleiiistas que a perseg~liçáoproduziu revelou-se o início de uma nova fase n a vida e missáo da igreja. Pois "eles iam por toda parcc anunciando a palavra"," levando-a para Samária,'" e depois para a Fenícia, Chipre e Antioquia, onde, assim parece, surgiu a primeira ekklesia cristá que misturou gentios e judeus.lí O s helenistas, cntáo, primeiro levaram a mensagem do Cristo ressurreto para a Diáspora. Ainda mais, suas açóes confirmaram a impressão que haviam dado às autoridades de Jerusalém sobre sua aticude para com a Lei. Eles admitiram gentios "tementes a Deus" em sua comunidade, em uma violação à prática ortodoxa.

A comunidade de Jerusalém, entretanto, desfrutou relativa paz, obviamente mantendo sua fidelidade ao rremplo e à Lei e náo tendo, pelo menos por um período, nenhum cnvolvime~itocom a nova missáo ciu com os novos centros de vida cristá cm lugares coma Antioquia e Damasco. Essa paz foi breremenre quebrada sob o reinado de Herodes Agripa I (41-44 d.C.), a quem o imperador Cláudio havia restituído parte do reino de seu avô, Herodes o Grande. Querendo talvez construir uma reputaqáo de entusiasta pela ortodoxia, Agripa mandou executar Tiago ("o irmáo de Joáo") e atirar Pedro na prisáo.'Talvez tenha sido essa breve perseguicáo que provocou a saída de Pedro de Jerusalém e sua subseqüente atividade como um apóstolo missionário. De todo modo, a lideranca da comunidade de Jerusalém ficou com Tiago o irmáo do Senhor, que a exerceu, sugere Atas, juntamente com um corpo de anciáos até sua morte de mártir em cerca de 63."

Capítulo 5

Paulo e o Cristianismo Gentilico A perseguiçáo que resultou no martírio de Estêvzo iniciou o movimento que implantou o cristianismo nas cidades da Diáspora judaica. Mais do que isso, entre-

'' Atos 8:4. '"tos 8:5,2í. l 5 Atos 1 1 :13-20 “Atos 12: 1-3. 17Aros 2I:lS.

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HISIÓRlA OA IGREJA C R I J T ~

tanto, ela produziu em Antioquia aquilo que foi de fato um segundo centro focal de vida cristá. Antioquia era uma cidade de primeira categoria, capital da província da Síria e antiga sede da monarquia selêucida, com uma p n d e populaGáo cosmopolita, iricluindo uma significativa comunidade judaica. Lrí, a mensagem sobre Jesus foi pregada aos gentios "tementes a Deus" e rais pessoas foram admitidas na assembléia criscá sein primeiro se tornarem prosélitos judeus. Uma conseqüência desse desenvolvimento foi que o povo em Antioquia começou a perceber os seguidores de Jesus como um corpo distinto náo apenas do paganismo mas também do judaísmo normativo, e conseqiienternente, foi ali que os membros da igreja primeiro receberam um r6tulo.

A populacão, sem dúvida meio desdenhosamente, chamou-os

"cris-

tãos" - iim termo pouco utilizado pela própria igreja aré cerca da metade do segundo século. Outra consequência de tal deseniolvimento foi, inevitavelmenre, suscitar a qucstáo sobre se as pessoas que não pudessem ser membros da sinagoga poderiam ser membros da ekklesia, o povo escatológico de Deus. Se o governo da Lei fosse iinposto sobre os genrios convertidos a Cristo, a igreja continuaria a ser um agrupamento denrro de Israel; se tais conversos estivessem livres da Lei, a igreja poderia comprecnder a si mesma como tendo uma rnissáo universal. Nesse debate precedente dentro do próprio judaísmo

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-

que já possuía

o papel decisivo seria desempenhado pelo

apóstohi Paulo. Paulo, cujo nome hebreu, Saulo, lembrava o antigo herói de sua tribo nativa de Benjamim, nasceu na cidade cilícia de Tarso. Seu pai aparentemente era cidadáo romano, como também judeu na rradicáo farisaica. Na época da nascimento de Paulo, E r s o era um çencro cultural e inrelccrual de certa imporrância e um centro de ensino estóico. Náo há razão para acreditar, enrretanco, que Paulo, criado em uma família estritamente judaica, tenha recebido uma educaçáo no estilo grego. O idioma grego, podemos estar certos, foi sua língua normal desde a infância, e ele não poderia ter deixado, enquanto jovem, de ficar familiarizado com as generalidades populares do pensamento religioso e moral helenístico. Não obsrante, foi na cradiçáo rabínica que ele foi criado. Atos, de fato, faz Paulo afirmar haver sido ele "criado"

em Jerusalém "aos pés de Gamaliel",' um famoso mestre da Lei. Este pode ter sido o caso, embora isso pareça pressupor que sua família se mudou deTarso, e náo encontramos nenhuma confitmacáo disso em suas cartas, que dáo a impressáo de que

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00 l l l C 1 0 A CRISE GNÓSTICA

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Paulo teve muito pouco a ver com Jerusalém até após sua conversáo. Por outro lado, o relato em Atos é compatível com aquilo que conhecemos das colivicçóes e compromissos originais de Paulo. Ele era dedicado ao ideal farisaico de uma nação formada santa pela estrita observância da Lei de Deus, c ele insisce em que sua própria conduta, mensurada por aquele parâmecro, era irrepreensível. Foi sem dúvida esse ideal

quc motivou Paulo a perseguir a igrrja. Se ele esrew ou náo presente, como Atos afirma que esteve, no apedrejamento de Estêváo em Jerusalém, foi Estêvão o lielenista, quem falou contra a Lei e o tcmplo c quem representou a d i ~ t o r ~ áem o que consistia o cristianismo inicial que teria ofendido Paulo, "ráo exrrcmamente zeIoso"' que era pelas tradiçóes do judaísmo. Portanto, não é surpresa nenhuma o fato de náo ouvirmos nada de qualquer aqáo sua contra a comunidade cristá palesrina em Jerusalém. Contudo o encontramos viajando para Damasco, uma cidade da Diáspnra, para levar disciplina a ser aplicada contra os cristãos de lá (que devem, incidentalmente, ter tido alguma conexáo com a sinagoga). Seu a~iragonisrnoestava direcionado não contra os fiéis como cais, mas conrra aqueles cuja f i ia de mão em máo com uma tendência de torcer as exigências da Lei. Embora as datas da história de Paulo sejam um tanto ou quanto incertas, pode ser que a grande mudança em sua vida tenha ocorrido por volta do ano 35. Viajando para Damasco com urna tarefa di~ci~linadora, ele foi apanhado em um encontro com o Cristo ressurreto, que o chamou para uma inissáo especial. A narureza da expaikncia de Paulo somente pode ser conjcrurada; dos efeitos em sua vida, porém, rijo

pode haver dúvida alguma. Ele se uniu às rnesinas pessoas a quem havia procu-

rado restaurar ao judaísmo por meio de instrumentos disciplinares. Mais do que isso, ele descobriu no Senhor ressurreto de sua visáo o único em quem c pelo qual sua própria identidade era determinada. Ele pode dizer:

.".. e vivo não mais eu, mas

Cristo vive em ~ n i m . Mais " ~ importante de cudo, ele estava convencido de que náo a observância da Lei, mas a cornunháo com o Jesus crucificado e ressurreto era a çon-

diFáo necessária (e suficiente) da participação das pessoas na renovada criaçáo da promessa de Deus. No caso de Paulo, a conversáo mostrou-se imediaramente em ação. Ele relata ter

ido em primeiro lugar para a Arábia - i.e., o território de Nabatéia ao sul de Darnasc», com sua capital em Petra. Lá ele parece ter pregado seu evangelho em alguma medida, uma vez que as autoridades nabarbjas o perseguiram mesmo em Damasco." Três anos após sua conversão, eli fez uma visita de duas semanas a Jeri~salém,"pua visitar Cefas" (Pedra),' e lá ele enconrrou também Tiago, o irmáo do Senhor. Por quase uma década (da qual Aros náo nos diz nada) ele trabalhou na Siria e na Cilícia (província da qual Tarso, de onde era nativo, era a capital), s e m dúvida estabelccen-

da igrejas. Eveneudmcnte ele foi trazido para Antioquia por Barnabé,%rn crista0 judeu helenista cujo lar era em Chipre e que pode ter sido um daqueles espalhados de Jerusalém após o martírio de Escêváo. Naquele momenro, entretanto, a inevitável crise surgiu. Visitantes cristáos de Jerusalém vieram a h r i o q u i a . De acordo com a tradiçáo da igreja de Jerusalém, eles insistiram: "A menos que sejam circuncidados de acordo com o costume de Moisés, vocês náo podem ser salvos." O debate assim ocasionado levou Pa~rlo,Banlabé e * .

Tito, um converrida gentio não circuncidado, a Jerusalém para deliberar com os

líderes da igreja de lá, Paulo descreve a reunião em Gálatas 2:l-10, e um diferente relato do que parece ser a mesma reuniáo é fornecido em Atos 15. Ambos os relatos concordam no resultado geral da reuniáo. Os líderes da igreja de Jerusalém e os iíderes da tiova missão gçntíiica dcancaram um acordo prodigioso. A chamada de pessoas como Paulo e Barnabé foi reconhecida como Icgítirna, e foi admitido que o evangelho pertencia aos gentios canto quanro aos judeus. Assim, haveria duas correntes no empreendimento missionário da igreja; mas as novas congregacóes gentias e seus líderes deveriam "se lembrar dos pobres" - isto t, eles deveriam simbolizar sua cornunháo com a congregacão de Jer~isalémcontribuindo para com ela em suas necessidades mate ri ai^.^ O relato em Atos 15 registra que o concílio apostólico exigiu

que os crisráos gei~iílicns"se abstivessem das contamina~óesdos ídolos, da prostitui+o, do que é sufocado e do sanguev9- em outras palavras, ele emitiu um decreto governando as condições da mesa de comunhão encre cristãos judeus e gentios. Pau-

'

I Corínrios

' Giilaras

11:3L.

1 :lS.

"Aros 11:Lj. Atos 15:l r Gálatas 2:9-10. ' Atos 15:20.

i ~ ~ r o oi o

DO INICIB A CRISE GEIÓSTIGA

39

10, entretanto, indica que o problcrna de comunhao na mesa surgiu somente após a conferência a p ~ s t ó l i c a .e' ~ein nenhum caso suas cartas revelam cor-ihecimencode tal decreto. Bastante possivelnlente, o autor de Atos está atribuindo ao conselho um acordo que se liavia tornado tradicional em seu prbprio cempo.

E com roda probabilidade nesse ponro - depois e náo ar-ires da conferência aposcólica - que Paulo e Barnabé, respondendo à orieiitaqáo do Espírito, saíram cm uma viagem que os levou para Cliipre e depois para Perge, Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe. Esta é a assim chamada "primeira viagem missionásia" descrita em Atos 13 e 14. Quando íie seu retorno dessa viagem, surgiu sm h t i o q i i i a o debate entre Pedro e Paulo sobre a questáo de comer com os cristáos gentios." Essa discordância, desnecessário dizer, náo se referia à questáo basilar de se os gentios poderiam ou náo pertencer ao povo de Deus sem se submeterem à circuncisáo e as outras prescriçcles rituais da Lei. Aquela questao j2 havia sido resolvida. Paulo, entretanto, náo estava disposto a coriceder, mesmo na quesiáo subsidiária da mesa de comuilháo, unia vez que para ele o que estava em jogo era o princípio de que "o homem náo é juslificado por obras da lei, mas pela fé em Cristo Jesus."" Nesse debate, Barnabé, amigo e companheiro de Paulo, ficou do lado de Pedro. O resultado foi que quando Paulo novamente partiu em suas viagens rnissionárias, ele "cscolheu Silas" como seu companheiro, enquanto "Barnabé tornou Marcos consigo e velejou para Chipre."" Então vieram os curtos anos do grande esforço missionário de Paulo "para conquistar a obediêricia dos gentios"'%através da implanta~áodo evangelho em cada regiáo do mundo civilizado, mesmo as mais distantes, como as extremidades ocidei-itais do império romano.lí Sua viagem começou com visitas de retorno &scomunidades que ele já havia estabelecido no sul da Ásia Menor. Ele ficou retido por um período na GaIácia devido a uma doença,16 utilizando a ocasiáo para estabelecer no-vas igrejas ali. Com seus companheiros, entretanto, ele foi orientado a deixar a

Gdaras 2:1 1-13. Gáiataç 2:)1-12, 12 =a'1. tas 2 : 16. Aros 15:39-40. '^ Ronianos 15:18. " Ronianos 15:24. " Gilaras 4:13. lu

"

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40

HISTÓRIA DA IPREJA CRISIÃ

Ásia Menor. De Trôade ele atravessou para a Macedania, e seguiu seu caminho pela ..

- -

magnifica Via Egnatia, que levava para o 0est.c em d i r e ~ á oao mar Adriático e à Itália. Tendo estabelecido comunidades em Filipos e ern Tessalônica (a sede do procônsul romano da Macedônia), Paulo foi desviado de sua rota quando problemas em Tcssalônica o foscaram a partir "durante a noite" e virar levemente em direçáo ao sul para a GrGcia central. A persegui+

o seguiu, entretanto, e ele continuou para o sul

ate o porto marítimo de C o ~ i n r opor via de Atenas. Em C:orinto ele passou dezoito meses pregando e ensinando na casa de Tito Justo, um gentio temente a Deus. De 12, Paulo viajou com dois novos amigos e colegas, os judeus romanos Áquila e Prisciia, para Efeso, riias cle logo os deixou ali para retorilar à Palestina e Antioquia, reaparecendo eiri Efeso depois de outra visita as suas igrejas na Frígia e Galácia. Quando de seu retorno a Éfeso, ele corneqou irm ministério ali de alguns anos dc duraçáo (53?-

56?)'-- um ministério que produziu sua correspondência com os coríiitios e também, com toda probabilidade, suas carras aos Gálaras, aos Filipetises e a Filemom.

A partida de Pauh de Éfeso levou-o dc rolta a Corinco para uma estada de três meses; ali ele escreveu sua carta aos ltomanos, na qual conhecemos os dois projetos que agora goxrcrnavamsuas aqóes. Um deles era levar para a igreja em Jerusalém, como um gesto remediador de agradecimento e solidariedade, a oferta que ele havia colerado de suas novas congregacóes gentias. Ele estava determinado a fazer isso ele mesmo, ainda que estivesse incerto quanto a sua recepqáo pelos judeus c cristáos judeus na Palestina. O segundo projeco era realizar seu plano original de levar o evangelho ks partes ocidentais do império, de forma a saldar sua "dívida, tanto a gregos corrio a bárbaros."'Como acabou acontecendo, foi sua viagem a Jerusalém, oiide no final ele foi aprisionado pelo governo roinano, que em últi~na instância o Icvou a Roma, mas somente apús dois anos de encarceratnento em Cesal-éia c apenas como um homem indiciado. Pouco C sabido sobre os últimos dias de Paulo. Alguns estudiosos cêm argumentado que ele foi solto de sua prisão e realizou outras viagens, mas o peso da evidência é contrário a esta hipótese. A probabilidade C que Paulo cenhn sido executado em Roma algum tempo antes de

64 d.C.

As cartas de Paulo, que circularam e sem dúvida gradualmente foram colecionadas nas igrejas que rle esrabeleceu,

' l5

A r o s 19:s-10. Romanos 1:14.

ao o corpo de literatura cristá mais antigo. A exren-

PEAIOBO 1

DO IRICIOk CRISE GAOSTICA

41

sáo e o grau de autoridade que elas alcançaram estáo refletidos no fato de que gerações posteriores citaram-nas simplesmente como contendo as palavras do "Apóstolo." Junto aos evangelhos, elas têm exercido, em cada geracáo, uma influência mais profunda na piedade e pensamento cristáo do que qualquer outro grupo de escritos.

A razáo para essa influência não está na clareza ou caráter sistemático do pensamento

de Paulo. No sentido moderno, Paulo não foi um teólogo "sistemático", e seus escritos (até mesmo a cuidadosamente planejada e argumentada carra aos Romanos) sáo de natureza pessoal e ocasional. A influência deles está baseada mais propriamente no caráter rico e sugestivo do pensamento de Paulo e ocasionalmente em seu aspecto inacabado c mesmo ambíguo. Não há ambigüidade, entretanto, quanto ao fundamento de seu ensino e prega@o. Ele está naquilo que o próprio autor chama simplesmente de "o evangelho" ou "meu evangelho" (pois isso lhe foi dado por r e v e l a ç ã ~ , ainda '~ que seu conreúdo também fosse um assunto da tradição"). Isso era a boa nova de que em lesus, Deus havia agido ao providenciar salvaçáo para todos os que cressem - uma salvaGáocuja realizacão completa está no futuro mas cujo início pode ser experimentado mesmo no presenre. Esta salvação tinha suas raízes na morce e ressurrciçáo de Jesus - dois evcntos que no pensamento de Paulo se salienta~ramcomo objeto de transcendente significacáo. "Cristo morreu por nossos pecados"", de acordo com as profecias das Escrituras hebraicas; ele "se deu a si mesmo pelos nossos pecados para nos livrar do presente sécrdo mau."" Mais do que isso, "Cristo foi ressurreto dentre os mortos glória do Pai" de forma que, exatamente como ele, os fiéis "possam andar em novidade de vida."" Os cristáos, porranto, unidos com Cristo pela fé e se rejuhilando no dom do Espírito de Deus, aguardam pelo momento em que o Senhor retomará e a obra da salvaçáo será finalizada, quando "nós traremos também a imagem do celestial. No cernc da compreensáo de Paulo deste evangelho está sua convicç5o de que os fiéis esrão de fato unidos a Cristo no Espírito. Os eventos da morre do Senhor para

" Gálaras 1: 12. 2" ?'

Corinrios 1 5 3 .

Ibid.

" Gálatas 1 4 . Romanos "

64.

1 Corintir)~15:49.

HISTÓRIR DA IGREJA GRISTA

42

o pecado e de sua re~su~reiçáo para a nova vida náo sáo simplesmente acontecimentos "objetivos" que têm efeitos no estado de coisas cdsmico. Eles sáo eventos que acontecem no e para o fiel. "Nós fomos portanto sepultados com ele pelo batismo na morte ;-' nosso homem velho foi crucificado com ele . . . a fim de não mais servir1,

iL<

mos ao pecado."'Tonsequentemente, ele diz a seus correspondentes, "cremos que rambém com ele viveremos."" "Vocês devem se considerar mortos para o pecado mas vivos para Deus em Cristo Jesus."'%ssa

idéia de unidade ou identificacão com

Cristo funciona, para PauIo, em duas direções. Por um lado, ela se expressa em sua descricáo da igreja ("os santos") como o corpo de Cristo, animado e feito um pelo Espírito de Deus que vem do Senhor ressurreto. Por outro lado, ela é a fonte de sua comprcensáo do imperativo btico que está coiocado sobre os criscáas. Eles foram, Pau10 insiste, "1ai.ados .

. . santificados . . . justificados no nome do Senhor Jesus

Cristo e no Espírito de nosso Deus."" Por conseqtiincia estáo "unidos ao Senhor"," e esre é um estado de coisas inteiramente em desacordo com umavida imoral. Sendo "o corpo de Cristo e individualmente membros dele", os fiéis devem cultivar as gra-

tas sobre eles despejadas pelo Espírito e, acima de tudo, fazer do maior dom de todos, o amor, seu obietivo.?' Essa convicçáo, entretanto, de que Jesus o Cristo é aquele em quem a salvacão de Deus ~ o d ser e enconrrada inevitavelmente ocasionou um problema para Paulo: o problema do que dizer sobre a Lei judaica, a base do "antigo" pacto. Esta questão foi levantada para ele por uma circunstância concreta - a saber, a afirmaçáo de alguns cristãos de que mesmo os crentes gentios têm que manter a Lei para terem parte no pacto da graça de Deus. Para Paulo isso era embara~osoe, ao final, uma exigência intolerável. Como ele percebia isso em seu papel como alguém a quem Cristo havia

incumbido com uma missão para não judeus, o Cristo crucificado e ressurreco personificava a nova vida para "rodo o que crê"," seja judeu ou grego. Exigir mais do

" Romanos

0:4.

'"ornanos 6:G. Romanos 6:8. Romanos 6: 1 1. "' 1 Corinrios ú:1 I . I Corínrios 6: 17. '' 1 Coríntios 1227-14:l. "'Kornanris 1:16.

'-

''

etilooo I

00 INICIO A CRISE GNÓSTIEA

43

que uniáo com Cristo pela fé era, portanro, questionar a suficiência daquilo que Deus havia feito para a humanidade. Isso era, lia realidade, decair da confianca no alo gracioso de Deus em Cristo. "Separados estão de Crisro, vocês que se justificain pela lei; da graca de~airam."'~Conseqüentemente, Paulo insistia rin que "o homem náo é justificado pelas obras da lei mas pela fé em Jesus Cristo";'" e para provar esse ponto ele apelou para o exemplo de Abraáo, o pai d o povo de Deus, quem "creu a Deus, e isso lhe foi imputado como j ~ s r i q a . " ~Desde ' o início, a intençáo de Deus havia sido trazer redeni-áo para todos através de Cristo como um "dotn Sratuito"'" que necessitava apenas dc aceitação pela fé. Portanto "Deus encerrou a todos debaixo

da desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todo^."^ Nada senáo a graqa de Deus em Cristo vale ou importa, n o fim das coriras. Isto náo significa que para Paulo a Lei é m i . No que se refere ao seu ensino, "a lei é espiritual."" Paulo nunca sugere que o que a Lei inculca está errado ou em colisáo com a vonrade de Deus. Isso significa, enrreranro, que a Lei é preIiminar, "Alei foi nosso aio até que Cristo veio."" Ela é ao mesmo tempo a reaçáo dc Deus ao pecado e a revelacáo d a realidade e poder do pecado.'O Náo obstante, a salvação C "a parte d a lei"," "pois se a justificiicáo fosse pela Iei, entáo Cristo teria morrido em vZo."+' E assim estamos de volra à convicção essencial de Paulo: como com Abraáo, fé "será imputada a ntjs os que cremos naquele que dos mortos rcssuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitado para a nossa j u s t i f i ~ a ~ á o . " ~ ~

'' Gálatas 5:4. '"C;álatas 2: 16. Gálatas 3:G; Romanos 4:3; c cf. Gêncsis 1 5 6 Romanos 6 2 3 . j7Rornarios 11:32; cf. Cálatas 5 4 . l"ornanos 7:14. '"Gálaras 3 ~ 2 4 . '" Gálaras 3:I3; Romanos 7:7. " Roinanos 3:21. "'Gálatas 2:2 1. '' Romanos 4:24-25. '5

"

4'4

HISIIRII OII IGREJA GRIST~

Capitulo 6

O Fim do Periodo Apostólico A proeminência das cartas de Paulo no Novo Testamento e a dedicação do autor de Atos à carreira missionária de Paulo deixam o leitor mediano do Novo Testamento com a impressão de que cristianismo primitivo e cristianismo paulino foram virtualmente de igual exrensáo. Na realidade este náo é o caso. O próprio Paulo fala de igrejas esrabelecidas por outros missionários.' A igreja de Roma estava estabelecida antes de Paulo escrever sua famosa carta de introdução para ela. A assim chamada Primeira Epístola de Pedro se dirige (entre outros) a criscáos no Ponto, lia Capadócia e na Bitínia - províncias às quais a missâo paulina não se estendeu. Os evangelhos de Mateus e de Joáo tesrificam a existência na Síria, e possivelmente na Ásia Menor, de comunidades e rradifóes cristás cujas raízes foram plant.adas bastante independenremente do trabalho de Paulo. As igrejas originais de Jerusalém, da Judéia e da Galiiéia náo deviam nada a missáo paulina. Devemos portanto assumir que o cristianismo primitivo era, canto em seu pensamento como em sua organizaçáo, mais diverso do que uma leitura superficial do Novo Testamento poderia sugerir. Do ponto de vista do historiador, portanto, é uma infelicidade que, para o período apbs as mortes de Paulo e Pedro, os dados para reconstrução do desenvolvimento da igreja sáo esparsos, e difíceis de interpretar com confianp. E possível, entretanto, identificar com razoável cerceza os escritos cristáos que pertencem a este último

terço do primeiro séc~ilo,ainda que nem sempre seja fácil datá-los ou siruar seus locais de origem com qualquer precisão. Ao mesmo tempo, existem referências nos escritos não cristáos que iluminam a história da igreja nesse período. Montando esses vários tipos de evidência, podemos alcançar algumas coi~clusóesbastante gerais sobre a vida da comunidade cristá no último terço do primeiro sécuio. Assim, aprendemos com o historiador romano Tácito que em 64 d.C. um incêndio "mais sério e terrível"' do que qualquer outro que já houvera afligido a cidade de Roma queimou violentamente por mais de uma semana e devastou dez dos catorze

' Konianos 1í:ZO. Atrais 15:35.

PERIOPO I

0 0 INiCIO A CRISL GNOSTICA

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distritos da cidade. Apesar dos esforqos do imperador Nero para oferecer socorro e seu gasto de dinheiro pessoal na reconstruçáo, muitos suspeitaram de que ele havia começado o incêndio de forma a ter a oportunidade de reconstruir Roma em um estilo mais esplêndido. A resposta de Nero para esse rumor foi encontrar bodes expiacórios: "aqueles a quem a populaçáo chamava cristáos, que eram detestados por causa de sua obras vergonhosas." Os cristáos foram aprisionados e juigados, nem tanto por causa do incêndio, cstarnos informados, mas por causa do "ódio à raqa humana"; e eles foram condenados à inorte e executados por mérodos calculados para fornecer diversão sensacionaiista para o púbIico.' Aparentemente, portanto, ao cernpo de Nero os cristáos eram reconhecidos em Roma como um grupo distinto, independente da comunidade judaica, c eram impopulares porque náo se misruravam com os outros mas se mantinham para si mesmos. As autoridades (e a população, no que diz respeito ao assunto) podem cê-10s considerado como uma sociedade secreta ilícira perigosa para a ordem pública. Esse ataque local à igreja de Rorna, conquanto agourento sobre o que viria, teve pouco efeito real sobre o movimento ctistiio, em Roma ou onde quer que seja. De importância muito maior para o futuro da igreja foi a rebeliáo judaica de 66-70 d.C., a qual, embora náo tenha envolvido os judeus da Diáspora, devastou a Judéia e a Galiléia e resultou na queima do templo e na quase desrruiçáo de Jerusalém. Ao

tempo em que essa rebeliáo conlqou, os cristáos de Jerusalém haviam perdido seu primeiro líder, Tiago o irmão do Senhor, que havia sido condenado 5 morte c cxecutado pelas autoridades judaicas. O úriico relaco que temos da sorte da igreja nessa catástrofe vem de EusCbio de Cesaréia, que em seu escrito do quarto sicri10 intitulado

História Ei~lesiústica narra que um oráculo levou os fiéis a migrarem de Jerusalim para a cidade de Pella na Transjordânia antes de começar a luta séria.' Quer aceitemos ou náo este relato, parece provável por uma evidência indireta que os crisráos na Palestina assumiram um posicionamen~oneutro durante a guerra judaica, e que este fato exacerbou o conflito entre sinagoga e igreja e fez com que ficasse cada vez menos possível para os fiéis viver como judeus praticantes e membros da sinagoga. Pela última década do primeiro século, os rabinos que reorganizaram e revigoraram o judaísmo depois da destruiçáo do rernplo haviam inserido nas orações da sinagoga

Anais 15:44. "zs~ória EcIe~zhtica3.5.3.

46

HISTORIA OA IGREJA CRISTÃ

um ailátema que rornwa impossível para um "Nazareno" a participa+o oficiai na

Iiturgia. Esta grande crise na hisrdria do judaísrilo, pois, tevc coIiio uma de suas consequ~nciasa separação da igreja de seu corpo geliiror, mesmo para cristáus de prática e parenrela judaica. Isso significou, portanto, que os cristáos que continua-

vam, como muiros na I'alcstina aparentemenre fizeram, a guardar a Lei c celebrar as frsras judaicas tornaram-se cada vez mais um grupo marginal e anacronico, em disparidade ranco com o judaísmo como com as crescentes igrejas gentias.

O último cerco do primeiro século represenra portanto um período de crise náo apenas para o iudaísrno mas também para o novo movimento cristjo. Os gaildes líderes dos primeiros anos (Paulo, Pedro e Tiago) estavam mortos. Ademais, a igreja estava comeqando a ser notada, inesmo que local e ocasionaimenre, pelas aurorida-

des; e apesar de sua coi-rcínua dependência da liceratur-a, cradiqáo e pensanlento judaico, ela agora se salientava ainda mais claramente da siiiagoga. Não é surpreenderite, além disso, que esse período de problemas e de rransic5o tenha trazido a luz diferenps e debates sérins denrro das próprias comunidades cristãs. Surgiram questões sobre o significado e as implicaiióes práticas de sua mensagem referentes ao Cristo ressurreto. E ~orn~resnsível, porranto, que essa era tenha produzido uma enxurrada significati~ade literatura crisrk e que essa literatura quase uniformemente reflira as necessidades das igrejas em esrabiiirar sua vida e testemunho - definir sua tradiSio e assim estabelecer sua identidade independente. Do ponto de ~+ista do fururo crisi-ão,as contribuiçóes mais significativas para essa literarura sáo os quarro evangelhos, cada um dos quais, em sua maneira distintiva, representa uma tentativa de ajunrar em uma obra única tanto a mensagem apostólica sobre a morte e ressurreição de Jesus como as tradiqóes sobre seu ensino c rninisrério. Cada um deles efetua essa tarefa a partir da opinião tanto de uma comunidade cristá particular ou de Lim grupo de comunidades, como de sei1 próprio editor ou autor, o qual monta a estória de uma maneira que reflete simultaneametite a vida daquela comunidade e sua própria cornpreensáo do sentido do evangelho. Há, náo obsrante, relaqócs tradicionais e literárias entre os quatro evangelhos. Ií. consenso dos estudiosos - questionado por alguns - que Mateus e Lucas simul~aneamenteseguem, revisam e suplemenram Marcos, que assim parece ter sido o representanre da forma original do evangelho, datando-o do período 65-75 d.C. O evangelho de João, uma obra distinta em mais de um sentido, quase certamente náo possui nenhuma relaçáo

PLRIOUD I

DO INICIO h ERISE ENOSTICh

47

literária coni os outros três; não pode haver dúvidas, no entanto, de que ele manuseia e interpreta de sua própria maneira, muitas das mesmas tradiçóes

-

como faz, pelo

menos em parte, o posterior, semignóstico EvaizgeIha de Tomé, o qual representa lima vcrs5o diferente das tradições referentes as declaracóes e ensino de Jesus. O objetivo destas obras foi articular e definir a base e a substância da mensagem cristá por meio do relato da estória de Jesus, conforme os mestres e

cristãos a haviam

tradicionalmenre conduzido; e elas J e faro parecem ter incorporado todas as reincmoraçóes do ministério e ensino de Jesus existentes nas últimas décadas do primeiro século. Entretanto, náo é apenas nos evangelhos que

discernir os esforcos dos

cristáos do final do primeiro século para ordenar suas vidas e definir sua mensagem. Uma variedade de escritos - muitos dos quais reivindicam aucoria apostólica c podem muito bem representar o pensamento de discípulos ou "escolas", na tradicão de um dos líderes originais da igreja - tracarn dos problemas do movimento cristáo e da interpreta~áode sua vida e mensagem. Nesta categoria, por exemplo, estão as cartas atribuidas a Pedro e Tiago, como também alguns escritos paulinos, como as epístolas pastorais e a Carta aos Efésios. O livro dos Atos dos Apóstolos, uma peça que acoinpanha o evangelho de Lucas, pertence a um lugar especial, pois riáo apenas possui sua própria perspectiva teológica como também oferece uma interpretagáo da história inicial do cristianismo calculada para enfatizar a coerência e concordância básica das diversas tradiçóes. Todos estes escritos respondem a necessidades na vida das igrejas, e todos igualmente testificam um progressivo senso de necessidade de uma tradiçáo "apostólica" estabelecida, autoritária, para fornecer u m a base à autocompreensáo das igrejas. O movimento cristáo escava começando a perceber que vivia através da mensagem sobre Jesus, conforme estava baseada em sua própria vida e ensino e proclamada pelo testemunho dos líderes e fundadores das primeiras comunidades.

A Interpretação de Jesus Quesráo de importância crucial para as igrejas do final do primeiro século foi entender Jesus ein e através dos eventos de seu ministério, morte e ressurreicáo. Qual era o significado de sua pessoa e atividades? E quase desnecessário dizer que a reflexão sobre essa questão crisrológica, começou com o mesmo dado que originalmenre inspirou a pregacáo e a fé da comunidade primitiva: a experiência de Jesus ressuscitado. Para os primeiros seguidores do "caminho", essa experiência, acompanhada que foi pelo dom do Espírito Santo,' significou que por Jesus e nele a "vida eterna",' a vida do governo instaurado por Deus, já havia iniciado. O Ressurreto era as "prirnícias" da nos7acriaqáo de Deus? - da re-formaçáo do cosmo. Como tal, ele era também o porrador do reino de Deus, aquele em e através do qual o reino vem e é feito acessível. Era nacural, porranro, que na primeira instância a significância de Jesus tivesse sido expressa em categorias messiânicas. Sua ressurreicáo havia demonstrado que ele era aquele que Deus enviaria para cumprir todas as coisas." Assim Paulo, utilizando aquilo que sem dúvida era uma fórmula tradicional, diz aos cristáos romanos que a boa nova se refere ao Filho de Deus, "que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade, pela ressurreiçáo dentre os mortos";' e em outra carta o mesmo apóstolo explica que a cbarnada dos cristáos é "esperar dos céus a seu [de Deus] Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira v i n d ~ u r a . "Nestes ~ resumos brísicos de sua proclamaçáo, a atenção de Paulo, como aquela dos discursos atribuídos a Pedro em Atos, está cenrrada na ressurreicáo e no esihdton - o dia final do Senhor; a significância de Jesus é vista no fato de que, como a pessoa para quem

;iros 2:3?; J o ã 20:22. ~

' Cf. Aros 1348.

' 1 Corititios 15323. 'Aros 320-21: 10:42. iRomanos 1 :3-4. C' 1 Tcssaionicenae!, 1: 10.

PERIOUOI

00 INICIO

b CRISE 6N6STIEh

49

a ressurreição para a vida verdadeira já aconteceu, ele será o representante designado de Deus - "Cristo" e "Filho" de Deus - no úItimo dia. Como tal, Jesus é o da salvaçáo.

Tal cristologia messiânica também está por trás do uso primitivo dos títulos "Filho do Homem" e "Senhor." Quanto ao primeiro desses títulos, houve e há uma grande controvérsia entre os eruditos sobre a sua origem, his~briae sentido. Pode

haver pouca dúvida, entretanto, que nos evangelhos sinóticos como nbs agora os possuímos, "Filho do Homem" como um título aplicado a Jesus, quer em primeira instância descrever seu papel escatológico como o representante dos "santos do Altíssimo",- que virá "com as nuvens do céu."' Nos evangelhos esse [ítulo também foi, obviamente, associado com sua ressurrei~áoe, de fato, com seu papel como aquele que sofre. Semelhantemente, o estilo "Senhor" parece, em seu uso original, ter denotado Jesus como o Vindouro,' que em virtude de s u a ressurreiçáol" já é mesmo agora o representante exalcado do poder de Deus.

A ressurreiçáo de Jesus, porém, significou mais para os primeiros crisráos do que poderia ser conduzido por declarações sobre sua funcáo messiânica como o personificador e portador do reino vindouro de Deus. O futuro que ele representava como aquele a quem Deus ressuscitara para a nova vida não era, afinal, apenas seu. Era o futuro de todos os fiéis e, de faro, o descino para o qual Deus havia chamado todas as suas criaturas humanas. Mais do que isso: a nova vida realizada no Cristo ressurreto era um dom no qual os fiéis poderiam mesmo agora, através do dom do Espírito, possuir uma parcela prelirninar. Portanto, o Cristo surge no primitivo pensamento cristáo náo apenas como o portador do reino, mas também como aquele em quem os fiéis descobrem sua própria verdadeira identidade, porque eles compartilham a vida dele e encontram suas próprias vidas transformadas nele. Nesse estilo, as epístolas joaninas restificam o senrimento dos cristãos em conformar-se "no Filho"," de estar "nele, que é verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo."" Semelhantemente, o autor de Hebreus insiste em que o "filho do homern" agora "coroado com glória e

' Dailiel 7:18, 22. C(. Marços 14:62. 1 Corintios 16:22; cf. Apocalipsç 22:20. l u Aros 2 ~ 3 6 . " 1 João 2:24. !'Ibid.

ío

HISTORIA DA IGREJA EAISTÃ

honra"'"

náo obstante, da mesma "origem" que aqueles a quem santifica e "náo se

envergonha de chamá-los irrnão~."~%stsresentimento de unidade no Cristo e de participacáo em sua vida náo está em nenhum lugar, entretanto, mais claramente expresso do que nas cartas paulinas. Nelas se diz que os fiéis estáo "em Cristo" - estão batizados "em Cristo Jesus", de forma que no compartilhar de sua morte para o pecado eles também possam vir 3 parrilhar sua ressurreit$io." Paulo pode dizer que não é mais ele quem vive, mas Cristo é quem vive nele,'" e da mesma maneira ele entende que a "vida" dos fiéis "está escondida com Cristo em Deus."': Conseqüentemente, os seguidores de Cristo sáo, coletitqmente, "um corpo em C r i ~ t o " ,e' ~podem aré nzesrno ser chamados sim~lesrnente"Cristo."" Esse mesmo tema toma forma na idéia de Paulo que Cristo é o '(último Adáo",'" o "segundo homem" que i "do céu" e cuja imagem os fiéis devem carregar." Nesse papel, o Cristo é contrastado com o primeiro Adáo, que representa e resume a humanidade como ela está enredada no estado de morte que o

traz. Jesus por sua parte é a pessoa através de quem o

poder do pecado 6 conqiriscado e a "grayd" reina "para a vida etcrna." O Cristo porranto personifica a nova humanidade, c os fiéis entram nessa sua identidade através da f i pela qual eles estáo unidos a ele como seus membros. Claramente, contudo, este retraro de Jesus como o Messias, Filho de Deus e Senhor, por um lado, e, por outro, como o Segundo Adão em quem a identidade da humanidade é concretizada, cetn sentido somente na hipótese em que a totalidade da carreira de Jesus é a obra de Deus, uma aqáo e uma declaração através das quais e nas quais Deus realiza seus propósitos para a humanidade. Porranro, nós encontrainos, cornecando com Paulo, uma tendência para interpretar náo meramente a ressurreiçáo mas também o ministério e a morte de Jesus como eventos que fluem da iniciativa de Deus. Pedro, em Aros, está escrito, declara que foi 'pelo determinado conse-

Iho e presciência de Deus" que Jesus foi executad~.~' Esca declaraçáo, enrretanco,

''Hcbreus 2:(;-8; cf. Salma 8:4-6.

"' Hebrcus 2: 1 1 .

li Romaiios 6:3ss. '"Gálatas 2:20 Colossenses 3:3. '' Romanos 12:5. I'' 1 Corínrios 12:12.

''

O'

i Corínrios 15:47.

" 1 Coríntios 15:49. Atos 2:23.

ptnioao I

00 INlE10 A CRISE GNÓSTIEA

51

meramente repete a convicçáo de Paulo de que Deus "enviou" seu Filho" e o "propôs como propiciaçáo."'"É,

portanto, náo apenas em sua ressurreicáo e seu retorno para

restaurar todas as coisas que Jesus é o Cristo. E rambém na roralidade de seu ministério e em sua morte que ele é o

da atividade redentora de Deus. "Eu

entreguei a vocês", escreve Pauio, "o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras."" Náo é surpresa, entáo, que quando retornamos aos evangelhos, encontramos que o papel e significado que eram inicialmente arribuídos a Jesus à luz de sua ressurrei~ á sáo o agora vistos como tendo pertencido a ele rarnbérn em sua vida e ministério. Em Marcos, o status de Jesus como Filho de Deus já se mostra q~iandode seu batismo nas máos de Joáo - ou seja, logo no início de sua carreira pública. Lucas e h/Iateus, no entanto, levam essa lógica um passo adiante. Seus relatos do nascimento de Jesus deixam cIaro que sua própria presenqa na história humana tem que ser entendida como uma açáo de Deus. Mesmo sua concepcáo no útero de Maria foi obra do Espíriro de Deus, anunciada por uin anjo de acordo com uma profecia de Isaías. No decurso dc scu ministirio, ele é reconhecido por demônios como Filho de Deus, e a eles se apresenta como o "Filho do Homem", que G chamado a cumprir em sua morte o papel do Servo Sofredor, de Isaías. Na tentaqáo, que segue seu batismo, ele é visto no papel do novo Adáo, "tentado", como o ser humano original, "por Satanás" e vivendo "com as bestas selvagens",'" mas triunfando onde seu primitivo sósia havia sucumbido. Portanto, os papéis messiânico e adâmico de Jesus sáo seus desde o início de sua estória. Através de toda sua carreira, entáo, Jesus é a própria personificacáo dos propósitos de Deus, e aquele em quem eles sáo realizados. Esta convicçáo - de que aquilo que Deus é para a humanidade e o que a humanidade é para Deus sáo ambos concebidos e concretizados em Jesus - deu surgimento a outra, e especialmente importante, tendência na cristologia primitiva.

As origens dessa tendência podem também ser encontradas em Paulo. Em sua correspondência aos coríntios, o apóstolo descobre que tem que lidar com um grupo de fiéis que reivindicam possuir uma compreensáo superior do misrério da forma de

" iálacas 4:4.

"- Romanos 3:25.

'' 1 Coríntios 15:3.

'"iarcos

1: 13.

Deus lidar com sua criacáo. Eles têm, ou afirmam rer, uma percepção especial naquela sabedoria transcendente de Deus, que é colocada em prática ria salvaçáo da humanidade. Esses convertidos, correspondencemenre, acham que a pregayáo de Paulo de uin ser humano crucificado é 'ttolice", e o cricicam por não oferecer a suas igrejas uin ensino mais profundo. Em resposta, Paulo diz que "o poder de Deus e a sabedoria de Deus"'- devem ser enconrrados náo em qualquer conhecimento ou realização

humana, mas apenas em "Cristo crucifi~ado."'~ Cristo 6 aquele a quem Deus fez náo apenas "justiça e santificaçáo e redenção" para suas criaturas, mas também "sabedoria. ""1 Em ourras palavras, o Jesus que foi crucificado e ressurreto dentre os mortos personifica e expressa a Sabedoria divina que é ao mesmo tempo mente e propósito de Deus na criação e o "poder" pelo qual Ele realiza seu propó~ito.~" Paulo faz essas afirrna~óes,obviamente, em um conrexto polêmico. Ele identifica Jesus o crucificado como Sabedoria de Deus apenas para poder impedir seus convertidos de buscarem aquela Sabedoria em algum outro lugar. Não obstante, ele assume sua idéia bascanre seriamente a partir do momelito em que a formula. Ela de fato é repetida crn 1 Coríntios 8:6, onde Paulo fala de "um SG Deus, o Pai, de quem sáo todas as

coisas e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual existçm todas as coisas, e por ele nós também." Aqui, a linguagem tradicionalmente utilizada da Sabedoria divina é explicitamente aplicada ao Senhor ressiirreco, e é deixado daro que Jesus é o foco, não apenas para a igreja mas para a tocalidade do cosmo, do poder

e propósito ativo de Deus. Esse tema, contudo, náo 6 ecoado apenas por Paulo. O evangelho de hlateus identifica Jesus em seu minisrério terreno como a presenqa da Sabedoria divina."' A epístola aos Hebreus se inicia com uma passageni que descreve o "Filho" de Deus conio aquele aci-avés do qual o mundo foi criado e quem, como a Sabedoria de Deus, í:o "resplendor da sua [de Deus] glória e a expressa imagem do seu Serbn3:Na epíscola

aos Colossenses, ademais, é encontrado uni primitivo hino crisráo que retrata o Filho de Deus como "a imagem do Deus invisível", em quem 'todas as coisas foram

'-1 Coríntios 1:?4. 'V Corintios 1:23. '"1 Coríiirios 1:30.

X'er I:2. Marrus I I : I 9 . i? Hcbrcus 1 :2-3. "

PERIOBII I

DO INICIO j\ CRISE ENdSTICA

53

na-

criadas" e enl quem "todas as coisas sub~istem."~' O Filho messiânico que foi ressurreto

da

dentre os mortos para ser o portador do reino de Deus é agora visto como a personi-

,110

ficaçáo daquela Sabedoria que tem sido a portadora do governo universal dc Deus

sias

desde o início da criaçáo.

do-

Desse modo, quase inevitaveimente, a lógica desce tema leva para o tipo de

.cá0

cristologia que está formulada no quarto evangelho. Lá também, uma forma da idéia

ri áo

da Sabedoria divina

.do-

surge como logor, a "Palavr;i" de Deus. O Logos pré-existe à própria criaçáo, estando

:TOS

"no principio

[I-

.

Lia A-=

Umd Arz~ssnç50e Destuzdi@o do Falsanzrnre Intitz~Iado"Conhrcinae~to':mas que a íradiçáo tem mais convenientemente denominado Coiztru d s Here~ius.Esta irnportante obra foi completada provat~elntentepor volta de 185. Irenttu faleceu cerca de 200, segundo a tradiqáo como mártir. Ireneu acreditava e argumentava que a tradiçáo-ensino das igrejas como ela era ordinariamente exposta representava a versão autêntica da fé cristá. Foi ele

-iLi-.

.

,

1x2-mas rqa.

quem, de forma apropriada, primeiro desenvolveu o apelo à tradiçáo (a "regra da verdade") e as sucessóes dos bispos e presbíteros que a haviam transmitido, como uma arma contra seus oponentes gnósticos e marcionitas. O grande peso de seu argumento, entretanto, nasceu de um apelo às Escrituras profética e apostólica, as quais, ele estava convencido, iriam elas mesmas refutar o ensino herético dire-

96

HISTJjRIA DA IGREJA

GRISTP

tamente, se fosse dada atençáo ao pleno sentido delas e se suas passagens obscuras fossem compreendidas à luz daquelas cujo significado era óbvio. Na perspectiva de Ireneu, a 'primeira e maior"' das questóes levantadas por Marciáo e os gnósticos surgia da negação que eles faziam que o verdadeiro Deus e o criador do mundo sáo uma e a mesma pessoa. Em resposta, ele insistiu que tanto a regra de fé como as Escrituras conhecem apenas um Deus, o Criador, o qual "contém todas as coisas" enquanto não sendo eie próprio contido ou limitado por coisa a l g ~ m aO .~ Criador chamou o mundo à existência ("do nada"), e o muiido que ele então criou não era nenhuma "Plenitude" espiritual distante mas este cosmo visível. Como o criador imediato do mundo, ademais, Deus náo está distante do mundo mas intimamente presente nele. Por suas próprias "duas rnáos", Logos e Sabedoria, Filho e Espírito, Deus formou a humanidade com amor, adaptando essa criatura de corpo e alma para crescer, para a realizaqáo e maturidade por meio da "recepcáo do Espírito do PaY3 e assim alcançar a imortalidade na contemplaçáo de Deus. O único Deus,

em outras palavras, exatamente porque ele é o único criador de todas as coisas, não é estranho a nada do que criou. Sobre o fundamento desta compreensáo de Deus como o único criador, Ireneu pôde considerar a segunda quescáo que Marciáo e os gnósticos haviam proposto para ele: a da salvaçáo. Repudiando a segregaçáo gnóstica de espírito, alma e carne como "substânciaÇ>lou "naturezas" antagônicas, a crença correspondente de que a carne é incapaz de salvação, Ireneu insiste em que a salvaçáo náo é a correçáo mas a realizaqáo da criaqáo. A humanidade original que Deus fez de terra e imbuiu com x.i'd a é o mesmo "Adáo", o qual no final é realizado na semelhanqa de Deus - o qual é de fato "figura daquele que havia de vir."' Mesmo o pecado e desobediência desta hurnanidade terrestre não a separou totalmeilte de Deus, pois em seu Logos e Sabedoria Deus tem estado em sua constante companhia através da história, instruindo-a e guiando-a para o supremo momenro quando o Segundo (e verdadeiro) Adáo devesse aparecer: o Cristo, em quem a humanidade, tanto carne como alma, está unida ao Logos de Deus. Urilizando Efésios 1:10, Ireneu portanto vê o Cristo como aquele em quem o relacionamento l-iistórico total entre Deus e a humanidade é "resumido" Contra i75 Here.via~2.1 . I

' Ibid., 2.1.2. ' Ibid., 5.6.1.

Cf Rornatios 5 1 4 .

~ c n i o o o11

DA CRISE GNÓSTICA A EONSTRNTINO

97

ou "recapitulado" em todas as suas dimensões - reicerado para ser corrigido e cumprido. O Cristo portanto representa para Ireneu o destino e a verdadeira identidade do Adáo que Deus originalmente criou. Os cristáos seguem, escreve ele, "ao úi-iico Mestre verdadeiro e imutável, o Logos de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, o mediante seu amor transcendente se tornou o que somos, para assim nos transformar naquilo que ele próprio é."' Este destino que o Crisro personifica e rorna possível para a humanidade será finalmente realizado para os fiéis nos últimos dias, quan-

do todas as coisas seráo mara\~ilhosamenterenovadas. Ireneu via a si mesmo acima de tudo como um presenrador e intérprete da tradiçáo, e assim ele era, entretecendo em sua síntese anti-gnóstica temas dos pensamentos paulino e joanino, da rradiFáo de sua nativa Ásia Menor, e das apologias de escritores como Juscino Márcir e Teófilo de Aneioquia. Ao mesmo tempo, como muitos "tradicionaliscas", ele era um ~ e n s a d o rinoxpador. Em seu corifronto com

O

dualismo dos gnósticos e marcionitas, Ireneu agarrou-se a uma visáo: a da unidade da natureza humana e da coiitinuidade da história da salvai;áo em seu caráter, como a obra do único Deus em seu Filho e Espírito.

Capitulo 7

Tertuliano e Cipriano Cerca de três anos após Ireneu ter sido escolhido bispo de Liáo, em julho de 180, ocorreu um evento cujo registro fornece nosso primeiro conhecimento do cristianismo na província da África do Norte: o martírio na capital, Cartago, de doze fiéis da cidade de Scillium. A natureza desse evento é, para o historiador, pressagiosa, pois a igreja norte-africana, do segundo ao quinto siculo, compreendeu-se acima de tudo como uma igreja de mártires. Ela viu a si mesma como uma igreja marcada oposiçáo aos poderes que governam este mundo - como uma eleita cheia do Espírito, cuja esperança escava centrada na viildicacáo futura por Deus das pessoas que re" Contra (1s H ~ l s i n s5 ; picfáci».

iiham sido fiéis a Ele no seio de uma sociedade que O negou. Essa perspectiva esta

manifesta não apenas no relato do testemunho dos mártires de Scillium, mas

tarn-

bém no Martii-iode I'erpétud e Felicidade, que rcgiscra as experiências de um grupo de mártires cartagineses nas perseguicóes desencadeadas pelo imperador Sétimo Severo

(193-21 1). Acima de tudo, porém, ela transpira para nós nos numerosos tratados de Tertuliano, o primeiro escritor cristáo de cerra habilidade a utilizar o latim, e o horriem que deu à teologia latina seu vocabulário e sua agenda básica. Pouco é conhecido da vida de Tertuliano, exccto aquilo que pode ser reunido da cronologia incerta de seus escritos. Ele cra um convertido ao cristianismo, um nativo de Cattago que provavelmenre nunca se afastou muito de casa, c um liornem com uma educaqáo profissional em retorica. Sáo Jer8nim0, escrevendo dois séculos dcpois, afirma que Tertulianri era um presbítero, mas isso é bastante improvávei. Ele eclode no cenário crisrán no norte da África em 197 com o surgimento de sua Apo-

logia, uma imitacjo furiosa da dc Justino Mártir, e parece ter morrido por volta dc 225. Nesse intcrim, ele publicou uma torrente de tratados eloquentes, argutos e controversos sobre doutrina c moral que revelam ter sido ele um debatedor arbitrário e tendencioso mas rambérn um cristáo de espírito radical e inflexível. No ceriie da teologia de Terculiano encontra-se sua preocupaçáo pela pureza e santidade da igreja a autenticidade prática dc sua vida e ensino. A igreja vive pela -

reveiayzo de Deus - "Nos reunimos para ler os livros de Dcus"' - e essa revelaçáo, ceritralizada em Jesus Cristo e seu evangelho, é a lei que governa sua vida. Ao observar essa lei em f i e prática, a igreja e seus meriibros se apropriam das promessas do evangelho e aguardam com confianca "o juízo vindouro."' Naquele dia, o mundo c seus govcrnanecs, os quais têm servido e adorado os dern6nios que se opóem a Deus, veráo, para sei1 espanto, vindicada a verdade que eles rejeitaram, e os fiéis recompensados pelo Dcus cujas palavras estes têm observado. O b s e r ~ ~as a rpalavras de Deus, entretanto, significava para Tertuliano existir sepa-

rado do mundo, o qual tinha o culto idólatra dos demônios construído na própria estrutura de sua vida. Os cristáos oravam a Deus pelo imperador c pela paz e bemestar do império; mas eles compreendiam, também, que "enquanto as naq6es estáo se rcgozijando, nós [crisráos] estamos lamentando."' Na perspectiva de Tertulialio, por-

' 14p~/ogzo3 9 3 . ' Apol(~xiu39.4. j

Sobre ar Espetrícuiuc 28

PER~OOOII

D A CRISE ~ N O S ~ I EAACONSTANTINO

99

tanto, como na dc muitos criscáos antes dele, os fiéis náo tinham nada que ser\' ao exército, ao governo, às insticuiçóes educacionais ou a qudquer negbcio que direta ou indiretamente apoiasse a religião pagã. Eles niio deveriam ter nada a ver com as diversões públicas de qualquer ripo, uma vez que estas, a parte de seu conteúdo iinoraI, eram ce1ebra)óes em honra aos "deuses" do mundo pagáo. Esse espírito rigorista se estendia também a oucros assuntos. Os cristãos batizados eram pessoas cujos pecados cometidos haviam sido perdoados pelo arrependirnen~oe pela lava-

i:,da

gem com água e pelo Espírito Santo; mas tendo sido porranto Iibertos para cumpri-

- :-il.o

rem a vontade de Deus, o resrantc de suas vidas depois do batismo era o esforGode

:om

"competidores para a salvacáo, buscando o favor de Deus."' Como muitos escritores

5

de-

do Novo Testamento,' entáo, Tertuliano não dava nenhuma esperaqa para os fiéis

Ele

que haviam caído etn pecado grave após o batismo. Em seu trarado Sobre a Penitên-

.:?O-

cia ele argumentou que uma (e apenas uma) de tais quedas poderia ser compensada por um "segundo arrependimento." Mais tarde, entretanto, a reflexáo sobre os fracassos dos cristãos, como também a oposiçáo de pessoas das camadas mais altas, direcionararn-no para a posicáo mais severa dos montai~istas,e em seu período montanista ele negou a possibilidade de qualquer arrependimento e rcstauraçáo após o batismo. Não havia espajo na igreja ou na vida criscá para um fracasso sério e deliberado em viver s elos preceicos do evangelho - da mesma maneira que não havia espaç.0 para

tentativa, sob perseguiçáo, para escapar do ~rivilégiodo rnarcí-

rio, o único verdadeiro "segundo arrependimeriro."

O posicionamento de Tertuliano quanto a vida e moral cristá foi acompanhado por seu posicionamento em relação às quesróes doutrinárias. Embora esclarecido quanco à filosofia de seu tempo, ele insistiu quc a fé cristá nada tinha a ver com as rradicóes das escolas filosóficas oriundas de Atenas. Sua rradicáo vinha de Jerusalém

(de Cristo e dos apóstolos) e era mantida, como Ireneu havia argumentado, pelas sucessões de bispos nas igrejas apostólicas. O negócio da igreja era simplesmente manter essa tradição: aderir inqucstionavelmente à "regra de fé'' que era a única chave para as Escrituras. Tertuliano com propriedade empregou sua habilidade com a pena contra os heréticos de sua tpoca. Ele escreveu cinco livros intitulados Corztra

Mal~i20e outro tratado, Contra os ~ l e ~ z t i ~ z i a nDefendeu as. as doutrinas da criacão, da encarnaçáo do 1,ogos e da ressurreiqáo da carne. Sua mais notável contribuiçáo a ' Sobre a Pezitêizciir 6. ' Cf. 1Ichrcus 10:26; 1 João i:16-17.

100

HISTÕRIA OA IGREJA CRISTA

teologia, entretanto, foi feita no tratado Contra P ~ x r d sno , qual ele desencadeou um ataque contra o mestre "monarquiano" o qual havia negado a realidade substantiva do Logos enquanto distinta do Pai (ver II:8). Nessa obra, Tertuliano desenvolveu a forma sistemática mais antiga da doutrina da Trindade, argumentando que há uma "substância" divina que está articulada ou é "administrada" cm três "pessoas" distintas mas contínuas: Pai, LogosIFilho e Espírito. Ao mesmo tempo, ele ofereceu um relato reflexivo da encarnaçáo, explicando que a pessoa de Cristo é uma uniáo de duas "substâncias" distintas, inconfundíveis, divina e humana, em uma única 'pessoa." Essa terminologia - difícil de interpretar por causa das diferenças entre os significados dos tcrn-ios latinos de Terruliano e os de seus derivados na língua portuguesa moderna - se tornou a base de todo o discurso cristológico e trinitário Ocidental e latino posterior. Tertuliano entáo viu a igreja como a sociedade daqueles que viviam sob o governo de Deus no meio de um mundo governado por demônios, e portanto como a sociedade exclusiva na qual o Espírito J r Deus era concedido e a salvaçáo obcida. Para ele como para os escritores do Novo Testamento, essa era a comunidade do fim dos tempos, que deve manter sua identidade e sua pureza para ser a morada do Espírito e eventualmente entrar na "heranca dos santos na luz."6

Na época de Terruiiano e posteriormente, o cristianismo se espalhou com notável rapidez no norte da África e na Numídia, mas na geraçáo após sua morte ela passou por um reste severo, quando os imperadores Décio e Valeriano desencadearam as primeiras perseguições universais às igrejas (ver 1I:lO). Naquele tempo, o bispo de Cartago era Cipriano, um antigo professor de retórica e cuidadoso estudioso de Tertuliano, cuja conversão por volta de 246 o havia levado quase imediatamente a proeminência na igreja. Eleito bispo bem às vésperas das perseguiçóes, Cipriano descobriu ser seu destino guiar as igrejas africanas através da dor, desilusão e divisóes engendradas pelo esforco imperial, em fazer com que os cristáos apostatassem. No final, em 258, ele também foi martirizado, por decapitação, mas náo antes de ter reconsiderado e reinterpretado sua herdada compreensão da igreja i luz de sua resposta à perseguiçáo. Cipriano nunca duvidou de uma premissa básica. Tanto para ele como para Tertuliano, "não há salvaçáo fora da igreja",' pois "aquele que náo tem a igreja como

PERIODO II

DA CRISE ENliSTICA A EONSTANTINO

101

sua Máe náo pode ter a Deus como seu Pai."Vara ele a igreja também era a única arca de salvaqáo. O s eventos das perseguições, entretanto, suscitaram questões sobre como essa premissa deveria ser e~itendida.Em primeiro lugar, um grande número de cristáos procuraram evitar a prisão ou a morte. Eles ou sacrificavam ou entáo compravam certificados fraudulentos (libelh] para assegurar às autoridades romanas que eles haviam sacrificado. Pelos padrões de Tertuliano, tais pessoas haviam simplesmente se colocado fora da esfera da salvacáo. Os bispos africanos, entretanto, sob a pressão de suas próprias consciências pastorais como também dos confessores que reivindicavam autoridade para perdoar e restaurar apóstatas, concordaram cm readmitir à igreja, na condiqáo de penitência "prolongada"", aqueles que haviam procurado certificados fraudulentos. Com esta açáo, porém, eles implicaram que a identidade e sanridade da igreja não poderiam mais ser fundamentadas na pureza e er-

fidclidade de seus membros individuais. Nem mesmo a santidade dos mártires pode-

a

ria compensar o lapso de tantos entre seus irrnáos e irmás. Sobre que, cntáo, estava

-ida.

f~~ndarnenrada a santidade da igreja? Ademais, as perseguiçóes causaram cismas (ver

rim

11: 1O), porquanto grupos em Roma e Cartago formaram corpos separados porque

do

achavam os bispos muito frouxos ou muito rigorosos em seu tratamento dos lapsos.



110

;

Assiin a questão da unidade da igreja surgiu de uma forma aguda. Em quê a unidade :ave1

da igreja estava fundamentada? Os corpos cismáticos (mas admitidamente não heré-

:>SOU

ticos) também eram "igreja"?

-71 as

Cipriano pensava que não. Era sua percep~áoque a igreja estava, em última ins-

3

de

tância, fundamentada sobre os apósrolos a quem Cristo havia comissionado. Portan-

2

de

to eram os apóstolos como um colégio único (coZlegitina: um corpo de "colegas"),

:te

a

exercendo separadamente uma única autoridade náo dividida, o fundamento da igreja

O ofício apostó-

-:ano

e conseqüentemente a base de sua identidade, santidade e unidade.

.

:soes

lico, entretanto, na perspectiva de Cipriano havia recaído sobre os bispos, os suces-

.

No

sores dos apóstolos, que exerciam separadamente a autoridade de um ministério

5

ter

coletivo único. "Há um só Deus e Cristo é uin só, e há uma só cátedra [episcopado]

: res-

fundamentada sobre a rocha, pela palavra do Senhor."" Ein conseqüência, sair da comunháo com o bispo em qualquer local era, muito simplesmente, sair da igreja, a arca da salvacão. Pela mesma medida, sobre o princípio de que "o bispo está na igreja

:

Snhm n IJzidude du Igreja 6. Cipriano, Fpí~~o/u 55(51).6. ' Epístolik 43(39).5.

e a igreja no bispo"," o caráter da igreja como a morada do Espírito de Deus e a Máe dos santos tambtm dependia, conforme a perspectiva de Cipriano sobre isso, da legitimidade, integridade e santidade do bispo. Se o líder c presidente da igreja, o qual ensinava o evangelho, administrava o sacramento do batismo e oferecia a Deus o sacrifício da igreja lia eucaristia, fosse indigno ou impuro, então a própria comunidade deixaria de ser "igreja." Esras perspectivas - as quais de fato tornaram a unidade e santidade da igrcja

dependentes da pessoa do bispo - tiveram conseqüências tanto lógicas como históricas. Em primeiro lugar, elas levaram diretamente ao sistema de governo sinodal pelos bispos, um sistema que Cipriano encorajou e ao qual ele se submeteu. Cada bispo em seu Iocal sucedia à autoridade apostó1ica e por sua vez a exercia. Cada bispo tinha portanto direiro a voz nas preocupaçóes comuns da igreja em sua totalidade, a qual era sovernada apropriadamente náo por qualquer indivíduo mas pelo próprio colégio de bispos. Mesmo o bispo de Roma - quem certamente desfrutava uma dignidade especial e um especial direito à liderança, porquanto sucessor de Sáo Pedro - era não obstante, substantivamente, colega e portanro igual aos seus irmáos. Ao mesmo tempo, a maneira de Cipriano focalizar a sanridade, e desra maneira a identidade da igreja na pessoa do bispo, levou quase ineviravelmence à posição teológica assumida pela igreja donatis~ano quarto e quinto séculos (ver 1II:l).

A Teologia do Logos e o Monarquianismo Roma foi, durante os episcopados de Vítor (189-198), Zeferino (198-217) e Calixto (217-222), a principal arena para um debate sobre as implicacões da teologia do I.ogos, conforme ela havia sido desenvolvida por Justino Mártir e ourros apologistas. O interesse desse debate cnconrra-se menos em qualquer questáo útil do qual ele veio (ele parece ter sido conduzido pela maior parte com excessivo calor e ainda mais confusáo) do que no faro que ele representa um primeiro encontro com

PER1000 II

OA CRISE GNÓSTICA A COISTANTIHO

111.3

problemas, os quais iriam engajar as igrejas na grande controvdrsia rrinitária do quarro século - probiemas em primeira instância sobre a compreensáo cristá de Deus. Náo pode haver dúvida que a teologia do Logos suscitou muitas questóes sérias. Enraizada nas cristologias da sabedoria do primeiro século (ver I:7), ela ~itilizavaas expressões "FiIho de Deus" e "Cristo" para denotar uma figura mediatória a qual era, na frase de Justino, "outro Deus"' junramence com "o único não criado",' o Pai. Essa distinçáo entre Pai e Filho era, insistia Justino, simplesmente de "número" e náo de " ~ o n r a d e " ;o~Logos era como uma tocha acendida dc outra,' divino como seu progenitor era divino. Não obsranre, na descricão de Justino, como mais tarde iia de Tertirliano, a geraçáo do Logos ocorre apenas com uma perspectiva para a criaçáo do mundo. O Filho, portanto, não é co-eterno com Deus; ademais, ele existe para fornecer um mediador entre Deus e o cosmo na criacáo e revelação, como a linguagem dc Joáo 1:3 e 1:18, para náo mcncioriar 1 Coríncios 8:6, parecia sugerir. Assim, a teologia do Logos surgiu para introduzir um "segundo Deus", de modo não compatra

tível com o princípio do monoreísmo; e mais ainda, eia sugeria que o Logos repre-

r10

sentava um grau ou tipo secundário de divindade. Ela "subordinava" o Filho ao Pai. Foi contra a primeira destas implicações da doutrina do Logos - a de uma Jualidade (ou trindade) de seres divinos - que um pequeno movimento surgiu tomando como seu lema o termo grego monn~chiu,que significava (toscamente) "singularidade do

primeiro princípio." Esse "monarquianisrnon cIiegou em Roma, provenienct: da Asia Menor, em duas ondas sucessivas que representavam ponros de vista significativamente diferentes. Ambos foram repudiados por causa da maneira na ¶ual seu monotcísmo estrito os levava a compreender a pessoa de Jesus.

A primeira dessas ondas chegou por 170lta de 190 na pessoa de um ccrto Teódoto, um curtidor de Bizâncio. Este homem, apesar de sua excomunháo por Vitor, encontrou discípulos eriérgicos em um certo Asclepiódoto e outro Teódoto, chamado "o banqueiro", os quais rapidamente estabe1eceram unia igreja cismárica. O círc~ilodeles não foi popular entre os crisráos comuns ern Roma, porque seus membros se deleitavam com o estudo de Ariscóteles e seu comentarista Tcofrasto, para náo mencionar Euclides o marcmático e Galeno o escritor sobre medicina, e praticavam raciUiáio-

granjeou a simpatia, náo simplesmente de Constantinopia mas também do povo e

Ir?

cIero da populaGáo romana da Gália. Quando da morte de Clóvis, o reino franco

1-

esrendia-se até os Pirineus no s~rle altm do Reno no leste (ver IV:2). Havia agora,

.-

-

uma vez mais, um estado católico pocencialrnente poderoso no Ocidente: um fato

\,-L

que haveria de ter efeitos abrangentes no futuro, quando os bispos romanos foram

3s

coinpelidos a se voltarem para a Franca e náo para Constantinopla em busca de

'.A

apoio.

A co~-iversáodos francos também influenciou os outros soberanos

e poiros

gcrtnâriicos, embora o exeriiplo das populações nativas entre as quais eles haviam-se estabelecido, operou ainda mais poderosamente. Os burgúndios abandonaram o arianismo em 517 e tornaram-se parte do reino franco em 532. As conquistas de Jusriniano puseram fim aos reinos arianos dos vândalos e dos ostrogodos. Na Espanha, o rei visigodo, Recaredo, renunciou ao arianismo em 587, um ato que foi confirmado no terceiro concílio de Toledo em 589. Cerca de 530, a conversão gradual dos Iombardos ao cristianismo católico havia começado, embora náo se tenha compretado até cerca de 660. Desta maneira, o arianismo finalmente desapareceu.

Capítulo 6

O Crescimento do Papado O quarto séci~loe a era das invasóes bárbaras viram umdesenvolvimento significativo, tanto na efetiva influência dos bispos de Roma como nas reivindicações efetuadas a Favor deles. As raizes dessa autoridade encontram-se originalmente tanto

na localizaçáo, riqueza e cornposiçáo da igreja rornatia coma também na associação

com os apóstolos Pedro c Paulo em seus anos ii-iiciais. Náo obstante, conforme o rempo passava, as rei~indica~óes da sé romana à primazia foram crescentemente (e no firial exclusivamente) baseadas no tàto aceiro que seus bispos eram os sucessores de Pedro. Isto náo foi nem pretendido nem entendido, entrecanto, como mera reivindicação sobre o passado. A igreja romana era de fato a guardiá das tumbas do apóstolo martirizado e de seu colega, Paulo. O imperador Constantii~oa havia honrado e a eles, construindo dois sanruários: de São Pedro, na colina do VaBcano, e dc

São Paulo fora das muralhas. O espíriro e presença destes ap6stolos, portanto, repousava sobre a igreja romana e, de uma maneira especial, defendia-a. Não é surpreendente, então, que essa igreja fosse vista como possuindo uma autoridade excepcional, não meramente entre as igrejas da Itália meridional, onde ela era reconhecida o direito, mas no Ocidenre em geral e mesmo, até como rendo uma j u r i ~ d i ~ ápor certo ponto, no Oriente.

PERIUUO 111

O EXTAOO IMPERIAL DA IGREJA

129

Quando o papa Dâmaso (366-384) iniciou o costume de nomear a igreja romana .implesmente como "a sé apostblica", ele estava sem dúvida em certo sentido inovanio-a, c ao mesmo tempo, tentando estabelecer u m ponto. Ele queria, por uni lado, risistir na primazia de Roma mesmo entre as igrejas patriarcais e, por outro, protes:ar contra a elevaçáo de Constantinopla, a qual não tinha nenhuma reivindicaçáo à

fu~idaçáoapostólica, sobre Alexandria e Antioquia, as quais tinham tal reivindica{do. Seu ponto náo estava sem justificativa precedente. O status do bispo romano iavia sido reconhecido por Constantino quando este se voltara para o papa Milcíades para julgar as reivindicaçóes donacistas na África; e nos dias de Júlio (337-352), havia sido [acicamenre reconhecido pelos bispos orienrais, os quais solicitaranl a tiprovacão romana das deposic;ões de Atanásio e Marcelo de Ancira. O sucessor de Dimaso, papa Sirício (384-399), embora obscurecido por seu

contemporâ-

neo, Ambrosio de Miláo, exercitou uma autoridade discipIinar náo apenas sobre igrejas na Itália mas ta~iibémsobre aquelas na Gália e Espanha. Quando do final do quarto século, Roma náo meramente reivindicava, mas possuía, um papel e aucoridade especial entrc as igrejas cm geral. Ela era a sé patriarcal senior. Sua palavra era influente mesmo no Oriente. No Ocidente, ela cstuva corrieçando a exercer uma autoridade quase legislativa erii caráter. O s papas do quinto séc~iloexpandiram essa autoridade. Inocêncio I (402-417), embora sua tentativa de interferir em negócios orientais em defesa de Joáo Crisóstomo (ver 111:s) tenha dado ein nada, afirmou coin sucesso o prestígio e autoridade do bispo romano no Ocidence. Ele referiu-se ao bispo romano como "cabeqa e ápice do episcopado",' e, baseando-se nos cânones do concílio de Sárdica, que ele atribuiu ao concílio dc Nicéia, reivindicori uma jurisdição universal.' O mesmo espírito animou o papa Leáo 1 (440-461),chamado "Magno." Ele insistiu na primazia de Pedro entre os apósrolos e ensinou que os papas, como herdeiros de Pedro eiii juízo, herdaram seu papel como governante e mestre supremo, de forma que poderia se dizer que Pedro se pronunciava em e através deles. Foi nesse espírito que ele interveio na controvérsia cutiquiana (ver III:9) com seu Tomo endereqado a Flaviano, bispo de Constantinopla. Este documento foi definitivamente aceito, no concílio de Calcedônia

(451), como dererminance da fé ortodoxa, com o brado, "Pedro falou através de 'Inocênci«, LpistiiZa 37.1. 'InocCiicio, Epístola 2.25.

Leáo." Embora parcialmente frustrado em suas tentativas de afirmar a autoridade romana no Oriente (o cânone 28 desse mesmo concílio de Calcedônia atribuía à sé de Constantinopla honra e autoridade igual à de Roma), Leáo viu sua posição vindicada no Ocidente. No norte da África, Espanha e Gália, ele estabeieceu sua autoridade como o juiz supremo de apelaçáo em questóes de ordem eclesiástica; e sua autoridade foi confirmada ~ e I oimperador Valentiniano 111, que decretou por "edito perpétuo que não será lícito aos bispos da Gália ou das outras províncias . . . fazer qualquer coisa sem a autoridade do venerável papa da cidade eterna."'

A pers-

pectiva popi~lare oficial de Leáo e de seii oficio é revelada ainda mais em um relato antigo da embaixada que ele foi solicitado a liderar até o huno Átila, quando este estava se aproximando de Roma com suas tropas. "O rei", foi registrado, ficou "tão encantado com a presença do principal sacerdote cristão, que deu ordens para desistir da g ~ e r r a . "O~ bispo romano estava se tornando náo apenas o mestre mas tam-

bém o líder e guardiáo do povo cristão no Ocidente. Mais tarde, na disputa com o monofisitismo (ver III:IO), os bispos de Roma regularmente afirmaram sua autoridade contra os esforços dos imperadores orientais, para aplacar os monofisitas da Siria e Egito através da qualifica~áoda doutrina calcedoniana segundo a qual existem "duas narurezas" em Cristo. Esta política levou,

de Félix I11 (483-492), à excomunháo por Roma do patriarca de Constantinopla, Acácio. O cisma resultante - o assim chamado "cisma acaciano" no

foi resolvido em 519 a favor da posiçáo papal. Esse triunfo, entretanto, enquanto demonstrava a importância da sé romana lios negócios eclesiásticos mesmo do império oriental, evidenciava ao mesmo tempo uma alienaçáo crescente entre a5 igrejas ocidental e oriental - uma alienação que foi ressaltada náo muitos anos mais tarde, quando o papa Vigília (537-555) foi conduzido para Constantinopla pelo imperador Justiniano e mantido em virtual encarceramento para forqar seu assentimento àquilo que parecia, aos ocidentais, mais uma tentativa imperial de concessáo aos inonofisiras. O Oriente reconhecia o scacus patriarcal (e o peso político) do bispo romano, mas náo a autoridade universal reivindicada para ele por Leão I e seus sucessores. No Ocidente crescentemente bárbaro, por outro lado, os papas permaneciam, mesmo quando seu poder real era severamente limitado, os símbolos tanto da autoridade apostólica como da tradiçáo romana.

rtiloiaiii

IESTADO IMPERIAL DA IPREJA

181

Capítulo 7

Monasticismo Comecando no final do terceiro século e desabrochando no decorrer do quarto, o movimento que a história rotulou "monástico" (do grego monachos, "soiitário") contribuiu com uma nova dimensáo, tanto institucional como espiritual, para a vida das igrejas. Em muitas maneiras, esse movimento foi uma conrinuaçáo de tendências

já escabelecidas nas comunidades cristás. O batismo, como já vimos, havia sido compreendido tradicionalmente como uma entrada na vida marcada pela renúncia a ordem presente de coisas e dedicaçáo completa à nova ordem manifesta na ressurreiçáo de Cristo. O modelo dessa nova vida, ademais, havia sido discernido no testemunho dos mártires, os quais, como o próprio Cristo, haviam lutado contra os poderes d o mal e triunfado sobre eles através da morte - considerando o mundo e seus valores coisas a serem rejeitadas por causa do reino de Deus. Desde o início, portanto, as igrejas tinha conhecido seus ascetas, os quais, se individualmente ou em grupos domésticos, buscavam, na imitafáo de Cristo e seus mártires, viver a vida cristá em sua plenitude através da sistemática renúncia a todas conexóes com o mundo. Abandonando a busca e posse de riquezas, comprometidos com a continência sexual e dedicados à oraçáo, ao jejum e ao estudo das Escrituras, tais pessoas buscavam viver na presente era como cidadáos da era vindoura. Nesse empreendimento, ademais, eles encontravam encorajamento no ideal helênico da "vida filosófica", uma vida que se afastava da dependência das coisas externas e, através da prárica da virtu-

de, buscava harmonia com a (e conhecimento contemplativo da) realidade última. Mas se o movimento monástico tinha raízes em um ascetismo cristão anterior, ele também diferia dele. Em primeiro lugar, o monasticismo surgiu originalmente entre o carnpesinato, uma classe de pessoas que o cristianismo, até então um movimenro essencialmente urbano, havia apenas começado a alcançar. Seu crescimento inicial acompanhou a conversá0 das popuiacóes náo-helenizadas do interior d o Egito e da Siria. Ao mesmo tempo, o monasticismo foi um movimento de afastamento e retirada. Ele instintivamente buscou o deserto: isto é, procurou separaçáo física e social das cidades e vilas, e portanro também da vida normal das igrejas. Tal afastamento (grego anachorêsis, daí o português "anacoreta") náo tinha um significado único ou

i R2

HISTORIA DA IGREJA CRISIfi

simples. Em parte, refletia uma busca pela solidáo; em parte, era um gesto que dramatizava a rejeiçáo da mundanidade e mesmo desprezo para com a civilizaçáo e a cultura. Mas ele também foi, pelo menos em algumas áreas, uma manifestaçáo da fuga permanente de um campesinato sobrecarregado pelas demandas dos capatazes dos latifúndios e dos colerores de impostos. Uma vez que, ao mesnio tempo, esse movimento de afastamento representava um impulso simultaneamente leigo c popular e persor-iificavaunia revolta irresistível de entusiasmo religioso, o monasticismo criava um problema para as igrejas e seus líderes, os bispos. Ele ameasara, de fato, criar uma organizaçáo separada e paralela da vida cristá. Esse problema foi resolvido somenre quando os próprios líderes das igrejas se tornaram patrocinadores, organizadores e, no final, produtos desse movimento.

O espírito do monasticismo primitivo 6 mais facilmenre estudado em um de seus primeiros e mais influentes líderes, Antônio d o Egito, cuja Kda, escrita por Atanásio de hlexandria, foi uma notável peça de propaganda par.&o rnoviiilento, amplamente lida tanto no Oriente como no Ocidente. Antonio, um homem de linguagem e ascendtncia egípcia tiativa (copta) nasceu por volta de 250. Quando tinha cerca de vinre anos, foi apanhado pelas palavras de C:risro ao jovem rico.' Ele vendeu a heran$a recebida dos pais e assumiu a vida de eremitu na fronteira de sua vila nativa, sob a tuteiagem de um asceta mais velho. Conforrne ele progredia nessa \+ida,gradunlmente embrenhava-se mais no deserto, eventualmenre passando vinte anos ria solidáo das ruínas de um forte perto da costa do mar Vermelho. Durante todo esse tempo, esteve eniajado em uma luta heróica, como aquela dos próprios mirtires, contra os poderes demoiiiacos, aos quais desafiava lios mesmos lugares Jesérticos onde eles habitavam. No nome de (:risco, através de constante esfori;o, jejum e vigília, e por meio de ininterrupcas oraçóes e recitaçóes das Escrituras, ele derrotou essas forças do mal. Quando, nos primeiros anos do quarto s&culo,Antônio emergiu de seu retiro, ele pareceu aos outros náo simplesmente um herói e um homem imbuído de santidade, mas algué~nque representava a natureza humana restaurada à sua glória apropriada. Ele curou os doentes, reconciliou inimigos, e por exemplo e palavra ensinou a sabedoria que havia aprendido. Outros se juntaram ao seu redor, e assim surgiu uma frouxa comunidade de eremitas, em rreinamento sob Antônio para a salvação de suas almas. Durante esses mesmos anos após a abertura do quarro século, outros lídcres e

~riionoIII

O ESIROO IMPERIAL DA t6REJR

183

:ornunidades semelhantes apareceram, primeiro no deserto de Nítria, sudoeste de ilexandria e delta do Nilo, e depois, conforme seu número aumentava, mais para o interior do deserto de Cétis e na área conhecida como "as Celas." Na época em que .Inthnio morreu, em 356, havia provavelmente alguns milhares de ascetas praticando o evangelho de Cristo no deserto. Desse número, entretanto, uma proporcão significativa estava praticando uma forma nova, comunitária, de vida monástica que surgiu no alto (porgáo meridional) Egito sob a lideranca de Pacômio (ca. 230-346). Natural da vila de Chenoboskion, Pacômio, após breve scrviqo como recruta no exército rornano, apresentou-se para batismo e imediatamente assumiu a vida de eremica sob a supervisáo de um ascera mais velha cliamado Palarnon. Por volta de 320 ou pouco depois, obedecendo uma chamada divina, Pacômio estabeleceu uma comunidade monástica organizada na L-iiade Tabenísi. O s membros dessa comunidade viviam uma vida comum estrita

ikoinos bios, daí o português "cenobita"): isto é, eles seguiam um programa comum de trabalho, oraçáo e meditação (i.e., na prática, recitação de memória de passagens das Escrituras); eles comiam juntos e consideravam roda propriedade como comum; e praticavam obediência esrrira aos seus superiores, os quais governavam o mosteiro como um todo e suas nloradias conscituinces de acordo com a R e p que Pacômio, sem dúvida gradualmente, desenvolveu. Com o tempo, a koinoizlLr pacomiana, como ela era chamada, passou a incluir um número de tais centros monásticos (incluindo comunidades de mulheres) e assim constituíram a primeira "ordcm" monástica. EsIas comunidades sustentavam-se arravés de seu trabalho (agricultura e tecelagem, por exemplo) e eram dcdicadas a assistência e encorajamento mútuo na prática do caminho da salvaçáo. Qualquer que tenha sido a tensáo entre eles em princípio, canto o monasticismo eremita de Ailtônio como o cenobirismo de Pacômio persistiram conforme o movimento monástico se espalhava. Na Síria, onde o ideal ascético de vida cristá possuía profundas raízes hisróricas, o impulso eremita parece ter surgido tão espontaneamente como no Egito, mas com uma tendência característica para extremos de autonegacão e excei~tricidadena prática ascécica. Por exemplo, Simeáo o Anciáo (ca. 330-

459), o mais famoso exempIo de tal excenrricidade, foi chamado "Estilita" por que passou trinca anos de sua vida vivendo no topo de uma coluna, onde orava e pregava aos peregrinos que vinham visitá-lo. Tais homens sancos eram 0bjet.o de g a n d e reverência popular na Síria, e o próprio Simeáo foi procurado pelas autoridades imperi-

ais em busca de auxílio na resolu~áode controvérsias acerca dos concílios de Éfeso e Calcedônia (ver III:9). Ao mesmo tempo, o quarto século viu o desenvolvimento na Síria e na Palestina de uma forma nativa da vida cenobítica; o próprio Simeáo, de fato, havia começado sua carreira em um mosteiro em Teleda, norte de Antioquia. Na Capadócia c Ponto e mais tarde na Ásia Menor em geral, o cenobitismo tornou-se a regra. Introduzido por volta da metade do quarto século por Eustátio de Sebaste (ca. 300-ca. 377), a vida monástica nessa regiáo deveu sua disseminaçáo e sua organizaçáo aos esforços de Basílio de Cesaréia (ver X11:4) para promover e alimentar "a vida filosófica." Era convicção de Basílio que a vida cristã completa exigia tanto o amor a Deus como o amor ao próximo. Seus monges, portanto, deveriam imitar a vida da comunidade apostólica de Jerusalém, onde "todos os que criam estavam juntos e tinham todas as coisas em comum."' Desaprovando os extremos de ascerismo que ele havia restemunhado entre alguns solitários, Basílio, como Pacômio, adicionou a obediência às listas de virtudes monásticas. O monge deveria náo apenas viver em comunidade, praticando caridade para com o próximo, mas também renunciar à vontade própria submetendo-se ao governo da comunidade, representado na pessoa do abade. Em adiçáo, Basílio encorajou os mosteiros a se situarem nos limites das cidades, onde eles poderiam ser úteis à população, oferecendo exemplo e instrução como também hospitalidade aos viajantes e cuidado aos doentes e necessirados. Estes princípios e outros Basílio enunciava quando visitava grupos de ascetas para lidar com seus problemas e responder seus pedidos de aconselhamenro. Suas instruçóes receberam forma escrita e foram editadas ainda durante sua vida, e eventualmente foram distribuídas como suas R e p s Maioies e R e p s Menores - as bases do monasticismo grego e russo até o presente. Não foi apenas insticucionalmence, entretanto, que Basílio e sua escola (incluind o Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa) influenciaram o fucuro do monasticismo. Simultaneamente, adeptos e críticos da tradição da teologia platônica oriunda de Clemente de Alexandria e Orígenes, eles forneceram ao movimento asceta uma moldura de operaçáo teórica - uma base teológica e antropológica que poderia ser empregada para mapear o progresso da alma desde o início de sua vida em Cristo no baíismo até a fruiçáo daquela vida em conhecimento contemplativo de Deus. Urna versáo desse ascetismo helenizado e intelectualizado foi levada para o 'Atos 2:44

~ ~ n i o oIIIo

O ESTAOO IMPERIAL 0 1 IEREJA

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Egito por Evágrio Pônrico (346-399), o quaI, após uma carreira em Constan[inopla, onde Gregório de Nazianzo o havia ordenado diácono, foi para o deserto de Nítria em 382. Seu ensino ali conquistou alguns discípulos mas gerou oposiçáo entre os monges coptas, os quais sem dúvida não gostaram de seu heienismo e certamente suspeitaram (náo sem razáo) de que ele estava perigosamente apegado às idéias de Orígenes. A "controvérsia origenista", que começou quando de sua morte e que finalmente figurou na disputa entre as sés de Alexandria e Constantinopla que levou ao exílio e morte de João Crisóstomo (ver III:8), teve o efeito de deixar Evágrio em permanente descrédito (ele foi condenado por origenismo pelo concílio ecumênico de 553); mas ela também espalhou seus discípulos e disseminou seus ensinos, com o resultado que sua compreensão da vida ascética, e do conhecimento contemplativo

de Deus ao qual ela almeja, influenciou significativamente tanto o monasticismo oriental como o ocidental. O ideal monástico foi comunicado ao Ocidente pela primeira vez pelo próprio t a n á s i o e sua Vida de Antiinio, a qual foi rapidamente traduzida para o latim (ca.

.;GO). A indicaçáo mais antiga de instituiçóes monásticas no Ocidente esti ligada ao nome de Martinho de Tours (ca. 335-397), um eremita ao redor do qual uma çotnunidade de anacoretas reuniu-se em Liguge e quem levou esse modo de vida coin ele quando se tornou bispo de Tours. Aproximadamente no mesmo tempo, Eusébio, 3ispo de Vercelli (340-371),introduziu uma nova forma de comunidade monástica ,,rganizando o clero de sua igreja sob uma regra ascética - uma prática posteriormenr- seguida por Agostinho de Hipona. Em

Milão, na década de 380, havia um mos-

rziro de homens bem no extremo da cidade, cuja comunidade era patrocinada e ~spcrvisioriadapelo bispo, Ambrósio; e a vida asceta, senão instituições monásticas :orno tais, foi basrante popularizada por Jerônimo durante sua permanência em

-xoma, 381-384. Quando das últimas décadas do quarto século, comunidades mo:;scicas

parecem estar se multiplicando na Irdia. Na Gália, o movimento monástico

r:;ebeu

encorajamento pelo crescimento gradual, depois de 4 I O, de uma coinunida-

i? na ilha de Lérins no litord dc Cannes, e então, após 4 15, de uma outr:i fundada :sr loáo Cassiano (ca. 360-435), um discípulo de Evágrio Pôntico, em mars se lha. As - .....: ; ; ~ ~ ~e tCon.rênrias as de Cassiano, projetada~para familiarizar os ascetas ociden=:L

com a tradiçáo de monasticismo egípcia, tornaram-se documentos fundamen-

.Lpara o monasticismo ocideiiral.

O estabelecimento contínuo de novas comunidades monásticas na Itália, Gália e

HISTbRIA DA IGREJA CRISTA

186

Espanha, e preocupaçáo pela regulamentaçáo interna de sua vida, levou iio quinto c sexto séculos à multiplicaçáo de regras formais para mosteiros individuais

- um de-

seilvolvimento sem dúvida encorajado pela tradução, por Jerônimo, para o latim, da

Regrtl de Pacômio. Destas regras, uma, a Regm de Bento, iria eventualmente se tornar a norma para o monasticismo ocidental. Ela é quase certamente para ser atribuída a

Benro de Núrsia (ca. 480-ca. 550), os esboços de cuja vida sáo conhecidos dos Dii-

logos do papa Gregório Magno. Originalmente um eremita que morava em uma gruta perto de Snbíaco, ele organizou os discípulos que se reuniram ao redor dele em pequenas comunidades. Eventualmeni-e, ele se mudou para Monte Cassino, entre Roma e Nápoles, onde fundou o mosteiro cenobítico para o qual sua Regra foi projetada. Na composiçáo dessa regra, a qual chama atengáo por sua simplicidade e clareza, Benro sem dúvida baseou-se em sua própria experiência. Ele canlbém conhecia, contudo, uma forma latina das regras de Basílio de Cesaréia e Pacômio, e utilizou um documento quase contemporâneo conhecido como A Regra do Mest~e.

A

concepçáo de Benro de um mosteiro era a de uma comunidade estável, auto-

sustentável, de pessoas dedicadas a seguir a Cristo. Seus membros eram solicitados a renunciar às possessóes pessoais, a praticar continência e a permanecer em sua comunidade para o resto da vida. O principal da comunidade era o abade, o qual deveria ser obedecido implicitamente mas que estava obrigado, por sua vez, a consultar todos os irmãos em questões importantes de interesse comum. As ocupações principais dos monges eram em número de três: adoraçáo a Deus, comunitária no ofício realizado diariamente sete vezes; trabalho manual no campo; e lectio divina - o estudo meditativo da Escritura. Como Basílio de Cesaréia antes dele, Bento era céptico quanto ao valor dos extremos no ascetismo e ainda mais céptico quanto ao individualismo e desarraigamento da tradiçáo anacoreta. Sua Regra era estrita mas náo severa, e insisria no caráter comunitário, mesmo familiar, do estabelecimento monástico, no qual o amor múruo deveria governar. Uma vez que todos os monges tinham que ler para poderem conduzir o oficio divino e estudar as Escrituras, o mosteiro de Bento, como muitos outros desde o tempo do próprio Pacômio, mantinha uma escola cujo propósito primário era ensinar os irmãos a ler; e essa instituiçáo da escola monástica (juntamente com a biblioteca que a prática da lectio divina exigia) iria eventualmcnte, conforme a Idade Média se aproximava, tornar os mosteiros os principais centros de apreridizado na Europa. Cassiodoro (ca. 485-ca. 580), contemporâneo de Bento. o qual foi por um tempo ministro de Teodorico, rei osrrogodo, retirou-se para sua

PERIOD~III

O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA

187

propriedade no si11 da Itália para fundar, no mosrciro de Vivarium, aquilo que ele ssperava vir a ser náo apenas um centro para a vida ascética mas também um ccncro

de aprendizado bíblico e humanístico. Suas expecca[ivas não se realizaram, mas sua associação tipicamente romana e aristocrática da vida "retirada" com o cultivo das lemas foi na verdade profética de uma futura funcáo do n-ionasricismo no Ocidente.

A R e p beneditina disseminou-se muito lentamente, embora desfrutasse do parrocínio d o papa Gregório Magno, que progressivamente utilizou monges como missionários, bispos e embaixadores. No inicio do século scrc na Gália, nos reinados dos sucessores de Clóvis, o impulso inicial para um novo desenvolvimento do monasticismo veio dos mosteiros fundados pelo monge irlandês Colurnbano (ca.

543-61 51, cuja Reg~npdmMonges, introduzida para governar os mosteiros de Aniiegray, Fontaine e, o mais importante de todos, Luxeuil, refletia a vida de seu mosteiro de origem em Ba~igor(no Ulsrer), este mesmo de fundação recente. As raízes do monasticismo irlandês encontram-se na tradiqáo oriental introdiizida por Joáo Cassiano em Provença, daí tendo sido conduzido para a Grã-Bretanha. Tal tradiSáo, entretanto, passou por significativa modificação na Irlaiida, onde, em lima sociedade essencialmente tribal, o mosteiro e seu abadc (em vez de uma corigregaqáo urbana com seu bispo) tornou-se o centro d e rodo trabalho pastoral, e o bispo era frequeritemente o pr6prio abade ou, em alguns casos, um dos monges. Tais mosteiros rnantivcram sua preocupação com a vida ascética, mas também se tornaram centros de esforço missionário, de cuidado pelo pobre e dc aprendizado sagrado c secular, pelos quais o monasticismo irlandês do sétimo e oitavo séculos ficou famoso. Como um resultado do trabalho de Columbano, essa tradição floresceu na Gália e na Itália (oiidc ele fundou o mosteiro de Bobbio). Gradualmente, entretanto, a Regm

de Columbano foi modificada pelo coritato com a de Bento; e no período de Carlos ,Magno e do abade Bento de Aniane (ca. 750-821), quem sistemarizou a regra bencdirina e tornou-a a base para uma reforma mais abrangente da vida monástica, o p d r á o de Bento tornou-se a norma para todo o monasticisrno europeu (ver IV:G).

188

AIST6RIA DA IGREJA CRISTA

Capítulo 8

Ambrósio e Crisóstomo As situaçóes e problemas contrastanres das igrejas no Ocidente e no Oriente quando do final do quarto século, estáo refletidas nas carreiras quase contemporâneas de Ambrósio de Miláo e João Crisóstomo. Estes dois homens foram pregadores e pensadores cujas idéias continuaram a ser influentes na igreja por muito tempo depois de sua morte. Cada um foi convocado, em um momento significativo, a servir como bispo em uma capital imperial. Ambos representaram, de maneiras diferentes, os ideais do crescente movimento ascético. Contudo as questões e circunstâncias que modelaram suas estórias foram significativamente diferentes. Nascido em Trier, provavelmente em 339, Ambrósio era fiiho de um prefeito pretoriano da Gália e foi educado nas escolas retóricas de Roma para uma carreira no serviço imperial. Ele exerceu por um período de tempo nos tribunais romanos, mas eventualmente (ca. 370) foi indicado governador civil da província de Emília-Ligúria, com sua capital em Miláo. IA, quando da morte do bispo ariano Auxêncio em 374, irrompeu uma controvlrsia amarga entre cristãos arianos e nicenos quanto à questáo do sucessor de AuxEncio. Compelido a intervir pessoalmente para manter a paz, Ambrósio encontrou-se aclamado fervorosamente como candidato do laicato niceno. Com alguma relutância, ele acedeu a essa eleicáo informal. Uma vez que naquele momento ele era apenas um catecúmeno, foi primeiramenre batizado, e entáo rapi-

dameme ordenado. Elc marcou essa mudança cm sua vida doando sua propriedade. adotando a disciplina pessoal de um asceta, e assumindo o estudo de teologia com

seu antigo tutor (c posreriormente seu succssor como bispo de Miláo), Simpliciano. Ambrósio deve ser visto em primeira instância como um homem de negócios. t e cuidado de seu rebanho mas tambEm ao bemque se dedicou iiáo s i ~ n ~ l e s m e nao estar da igreja etn geral. Persuasivo, prático, e liomem de autoridade pessoal direriva ele tornou-se o conselheiro e guia de uma sCric de imperadores ocidentais: Graciano

(367-38.1);o irmáo mais jovem de Graciano, colega júnior e sucessor, Valentinianc I1 (375-392); c a opçáo de Graciano para suceder Valente, Teodósio 1 (379-395). C3 objetivo que ele buscou é evidenre: a aliança do estado romano com o cristianismc ortodoxo contra o ariatiisrno, paganismo e judaismo. Foi sem dúvida sob a influéncia de Ambrósio que Graciano em 382 reinoveu o altar (mas 11áo a estátua) da deus:

PEII~IB

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I) E S I A B U IMPERIAL

DA IGREJA

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Vitória do senado romano. Certamente foi sua influência que prevaleceu quando, após a morte de Graciano, os senadores pagáos sob a lideranca de Símaco solicitaram sem sucesso a Valentiniano 11 a resrauraçáo do altar. Foi Ambrósio quem resistiu ao esforço de Justina, mãe de Valentiniano, para obter edifícios eclesiástjcos em Miláo para o uso das tropas godas - e portanto arianas - do imperador. Acima de tudo, foi a percepçáo de Ambrósio que foi refletida na série de editos que Teodósio I publicou após 39 1, ~ r o i b i n d oo culto pagáo. Mas se Ambrósio foi assim um arquiteto principal da íntima aliança entre o estado romano e a igreja cristá no Ocidente, também foi ele quem deu àquela relaçáo o caráter de uma aliança e não de uma identidade. Na percepção de Ambrósio, o imperador era patrono e filho fiel da igreja, mas enfaticamente náo seu governante. N o que se refere aos assuntos internos da igreja - seu ensino e disciplina - a interferência imperial náo era bem vinda: "pois o imperador está na igreja, não acima da igreja."' Assim, quando as tropas de Teodósio I perpetraram um massacre de civis em Tessalônica, em retaliaçáo pelo assassinato de um oficial imperial, Ambrósio exigiu que o imperador imitasse o comportamento do rei Davi no caso de Urias o hitita2 e fizesse penitência pública nas ruas de Miláo. Igreja e estado eram autoridades separadas com esferas de competência separadas.

Náo é apenas como homem de negócios, todavia, que Ambrósio é lembrado. Em sua época e lugar, ele foi um teólogo de importância, não tanto por sua originalidade de pensamento como por sua introdu~áode idéias e idioma gregos no pensamento cristáo larino. Ele apropriou-se desavergonhadamente do labor exegético, reológico e fiiosófico do

assado grego para sua prega550 e reda~áo.Foi essa qualidade erudita

de sua pregação, bem como sua eloqüência, que atraiu o jovem Agostinho dr Hipona e fez com que ele comecasse a repensar sua jovem fé cris~á.A maior e mais influente obra de Ambrósio foi um tratado ético, Sobre as Deue~esdos 12lil-zistras, no qual ele imita uma obra clássica de Cícero no espírito do novo ascetismo cristão. Bem diferente foi a vida daqueIe Joáo a quem geracões posteriores deram o nome

"Crisóstomo", "boca de ouro." Nascido em família nobre (seu pai era um "i\/Zestrcde ioldados" imperial), Joáo foi educado em Antioquia sob a orientaqão do retórico ~ 2 g á oLibânio, e posceriormente, em reologia, sob Diodoro de Tarso. Quando de seu h r i s m o (ca. 370) ele, como muitos outros de seu tempo, assumiram a vida ascética

e até, por uin período de alguns anos, Tornou-se um eremita. Sua austeridade, entretanto, afetou sua saúde, e ele foi forçado a retornar para Antioquia, onde foi ordenado sucessivamente diácono (381) e presbítero (386) e ii-iiciou a carreira de pregacão regular que Ihc conferiu reputaçáo. Orador habilidoso, ele também era exegeta fiel, sinronizado nas ~~eçessidadçs e problemas de seus ouvintes. Ao mesmo tempo, criticava severamente, no espírito de um asceta, as circunsriincias sociais e econômicas da época; expunha os ricos ao ridículo por causa de sua cegueira para com as necessidades dos pobres; argumentava que a

privada fora introdrizida apenas

conlo conseqüência do pecado de Adáo; criticava a vaidade no vestir e o "duplo padrão" de moralidade sexual entre maridos e mulheres. Sua pregação era náo apenas edificante mas em frequentes ocasiões proférica e áspera ao ponto da indiscricão. Em 398, após a morte de Nectirio, um oficial complacente que se havia tornado bispo de Cotistantinopla em 38 1, Joáo foi mais ou menos forcosamenre importado de Antioquia para suceds-10. Em Constantinopla como em Aiitioquia, ele logo conquistou um amplo auditório popular. Náo obstante, teve inimigos nos altos escalões.

A corte imperial do iniperador Arcádio, sob o domínio do eunuco Eurrbpio, não tinha o hábito de ouvir críticas de seu comportamento ou de tolerar um bispo que não se comportasse como um capelão da corte. O ciero de Constantinopla, negligenre nos dias de Nectário, logo ficou inquieto diante da dura disciplina de João. Fora da cidade em si, ademais, hwia temor entre eclesiásticos proeminentes, de que iini bispo forre de Constantinopla tentaria reivindicar a autoridade patriarcal que havia sido atribuída à sé de Joáo pelo segundo concílio ecumênico. Particularmente era este o caso com Teófilo, bispo de Alexandria, n qual ressentiu-se da reduçáo de prestígio que ele e sua igreja sofreram conlo consequê~iciada decisão do concílio, que Constantinopla deveria ser a seguida após Roma. O ressentimento de Teófilo era parrilhado pelas igrejas da Ásia Menor, uma vez que era delas a área sobre a qual o bispo de Constantinopla buscaria natiiralmentc estender sua jurisdição. E, na realidade, Joáo intrometeu-se nos negócios dessas igrejas, depondo uma série de bispos que haviam pago dinheiro (ao bispo metropolitano de Éfeso) por suas ordenacócs episcopais. Enredado, então, nas querelas jurisdicionais das igrejas orientais e envolvido com uma corte que náo apreciava sua dedicaçáo radical à santidade de vida, o destino de Joáo foi selado quando ele interveio na controvdrsia que estava acontecendo sobre os ensinos de Orígenes. Tal controvérsia começara na Palestina com o esforço do bispo

PER1000 111

O tSTIIOD IMPERIAL DA IGREJh

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Epifânio de Salamis (ca. 3 15-403) para extirpar o origenismo da igreja de Jerusalém e dos mosteiros em sua vizinhança. O origenismo havia antes se disseminado para o Ocidente como conseqüência do envolvimento, em lados diferentes, de Jerônimo e Rufino de Aquiléia (ver II1:I 5 ) , ambos os quais haviam sido tradutores das obras de Orígenes para o latim. O bispo Teófrlo de Alcxandria, que havia iio início beneficiado a causa origenista, rendeu-se finalmente à pressão dos monges do deserco da Nítria e proibiu os ensinos de Orígenes, exilando seus defensores para o Egito. Quatro destes exilados, conhecidos como "os irrnáos altos", fugiram para Constantinopla c foram bem recebidos por Joáo Crisóstomo. Teófilo retaliou quase imediatamente, indo para a Ásia Menor e realizando um sinodo (403) em uma propriedade imperial perto de Constantinopla, conhecida como "o Carvalho." O sinodo, composto inteiramente de inimigos de Joáo, depuseram-no; e uma vez que a corte imperial 11áo gostava de Joáo e a imperacriz Eudóxia estava furiosa com a crítica de Joáo à sua ganância e injustica, a corte imperial c o n f i r n o ~oi veredicto. Quase iniediatainente a imperatriz, perturbada por um terremoto e pelo descontentamento da populaçáo, arrependeu-se de sua decisáo, e Joáo foi rapidamente reinstalado; mas a adversidade náo lhe havia ensinado discricáo. Ele logo estava censurando novamente o comportamento da corte e comparando a imperatriz, náo apenas com Jezabel mas até mesmo com Herodias. No final, ele foi exilado para a Armênia. A intervenção do papa Inocêncio I (402-417) náo resultou ern nada, exceto um cisma entre Roma e Alexandria. Crisóstomo morreu em 407, quando viajava para um local de exílio ainda mais distante, vítima não somente de uma corte imperial corrupta mas camb t m das querelas teológicas e jurisdicionais que estavam agitando as igrejas orientais.

Capitulo 9

As Controvérsias Cristológicas Estimulada pelo ensino de Ário e pela resposu do concílio de Nicéia, a controvérsia trinitária foi centrada em primeira instância no starus do LogosiFilho divino sua relacáo com Deus e seu papel na relação de Deus com a ordem criada. Inevitavelmente, entretanto, esse debate também suscitou questóes sobre a pessoa de Cristo,

pois o primeiro axioma da cristologia primitiva era a crença que Jesus o Cristo é o Logos divino "feito carne" - existindo, isto é, em uma maneira humana, ou unido à humanidade. Este axioma não foi questionado por nenhum partido na controvérsia ariana. Náo obstantc, ao levantar a questão da riatureza ou status do Logos, os arianos ao mesmo tempo compeliram as igrejas a refletir mais explicitamente sobre o significado da fórmula,

"Lagos feito carne." A exploração

desse problema suscirou

por sua vez debates sobre a divindade e humanidade de Cristo e o modo de sua relação, e no decorrer desses de'oa~essurgiram duas escolas cristológicas - as assim chamadas alexandrina e antioquena. O conflito entre estas escolas, teológico e político, exigiu três concílios ecumênicos para sua resolu~áoe ainda assim produziu dois cismas permanentes dentro do movimento cristáo. Essa questáo cristológica apareceu primeiramente em um argumento que os primeiros arianos aparentemente usarani para sustentar sua tese que o Logos é uma criatura. Apelando para os evangelhos, eles sublinharam que ali Jesus é uma pessoa que tem fome e sede, chora, exibe ignorância c sofre. A partir destes dados, eles concluíram que o Logos tem o tipo de natureza que está sujeito a todas as limitacóes de um ser humano comum: que, em uma palavra, ele é finito e humano. Atanásio eventualmente seguiu-os nesse argumento, pois acreditava que ele tocava em uma questáo básica. Atanásio insisriu, contra os arianos, em que o Logos tem que ser verdadeiramente, totalmente Deus, argumentando que é somente através da presença graciosa de alguém que seja ele mesmo Deus que a natureza humana pode ser divinizada - eIevada à comunh8o com seu criador e a semelhança dele. Atanásio julgava, resumindo, que a redençáo da humanidade requeria uma presença náo-mediada dc Deus com a humanidade e para com ela, através da qual a criatura poderia vir a participar na vida divina; e para ele, a encarnaqáo do Logos era o "momento" no qual exatamente tal união do verdadeiramente humano e totalmente divino ocorrera. Ao afirmar este princípio, Atanásio ecoava o traço central da totalidade da tiadic;áo alexandrina em cristologia. Ao mesmo tempo, entretanto, ao defender seu princípio ele demonsrrou partilhar com seus oponentes no mínimo duas pressuposiçóes sobre a pessoa de Cristo. Primeiramente, ambos os lados concordavam em que o Logos é o sujeito real, último, de tudo o que Cristo faz ou sofre. Certamente, Atanásio expôs essa convic~áode uma forma cuidadosamente qualificada. Se é verdade, insistiu, que o Logos tem sede ou sofre, isto só é verdade à medida que ele assumiu

~ ~ i l o rii no

O ESTADO IMPERIIL OA IGREJA

I %i

uma maneira humana de ser. Náo C em sua natureza divina peculiar, mas apenas eiri sua natureza humana, que ele é susceríve1 de tais caracteríscicas. Nao obstanre, Aranásio estava certo de que é o Filho divino, e náo alguni outro, a quem tais atributos forani concedidos. Mas entáo, em segundo lugar, ambos os lados habituaiinente referiam-se a essa Iiumanidade que pertence ao Logos de Deus através da encarnagáo como "corpo." Mesmo quando Arnilásio quis concer o ataque cl~ico Cristo - isto E, o Logos encarriado - poderia sofrer de ignorancia, ele parecr nunca rer pensado em atribuir tal ignorância à mente ou alma humana em (;risto, por mais narul.al que ta1 curso pudesse parecer. Parece que imporrantc para ele era a uniáo do Logos com a dimensáo corporal da natureza humana - aquele lado da natureza humana que mais obviamente requer redencão da mortalidade. Aeanásio certamente náo negou um centro de consciência l ~ u m a n oeIii Cristo, mas também ele náo mostrou m~ritoinceresse riisso.

O que estava meramente implícito no pensamento de Ara~iásio,entretanto, tornou-se explícito no primeiro pensador daquela época a desenvolver urna cristologia sistemática - Apolinário, o bispo de Laodictia na Síria (m. ca. 390). Vigoroso deferisor da R nicena, amigo de Atanásio, c a pessoa amplamente rcsponsável pela conversão de Basílio de Cesaréia à posição homoousiana, Apo1in:írio desfrutava do respeito de seus contemporâneos tanto por sua habilidadr como exegeta, quanw por seu modo de vida ascérico. Sua posicáo crisrológica, como aquela de Atanásio, era oriunda de um desejo em afirmar que em Cristo, o Filho divino esri imediatamente presente para transformar e divinizar a mortalidade pecan~inosada criatura humana. Para ele, entreunto, esta convicgáo da uniáo imediata do Logos com humanidade cm Cristo requeria a crença em que o verdadeiro "ego", o verdadeiro princípio-vida, =m Jesus era simplesmente o próprio Logos. Conseqüentemente, náo poderia haver questáo alguma, para ele, da uniáo do Filho divino com um ser humano normal, completo, pois naquela circunstância, insistiu, liaveria duas vontades concorrentes, duns mentes, duas personalidades c por coi~sequênciadois Filhos, humano e divino.

.A ~unidadcdo Cristo seria destruida

e, com sua unidade, a verdade essencial que ele

i. simplesniente, verdadeiramente, "Deus conosco."

A maneira de compreender e afirmar essa unidade, pensava Apolinário, era dizer que, da mesma forma que um ser humano comum é consrituído de espírito, aIma c corpo1 - ou, para usar aquilo que para hpolinirio era linguagem equivaience, inceleci Tessnloniccnses j:21.

194

HISIORII IIA IGREJA GRISTÁ

to, alma animal e corpo - também o Cristo é constituído dos mesmos elementos estruturais, mas com uma diferenqa crucial: "Cristo, tendo Deus como seu espírito isto é, seu inrelecto -juntamente com alma e corpo, é corretamente chamado o ser humano ~elestial."~ Em outras palavras, o Cristo conforme Apolinário o concebia é um organismo único - "uma natureza c~rnposta."~ - no qual "o corpo terreno está entretecido com o Deus supremon4e "o Logos contribui com uma energia especial para o todo",5 porque ele é a única fonte de vida nesse organismo humano-divino. Esta unidade de vida por sua vez significa, como Apolinário ressaltou frequentemente, que "tanto aquela que é corpórea como aquela que é divina sáo predicados do Cristo total."' O problema com este ensino era que ao insistir no deslocamento do espírito ou intelecto humano pelo Logos divino, ele apresentava a humanidade de Cristo como incompleta. Para Apolinário isso pode ter parecido irrepreensível, uma vez que era a "vivificaqáo" e "santifica5áon da carne que ele romou como a coisa essencial realizada pela encarnacáo. Uma vez que a carne humana, a qual ocasiona o pecado por seu domínio do intelecto finito, está em Cristo controlada e animada pelo Intelecto divino (o Logos), e uma vez que nossa carne é por sua vez santificada por sua uniáo com o corpo de Cristo, entáo o "auto-movido intelecto dentro de nós" pode partilhar na destruição do pecado assimiiando-se a Cristo.' Uma vez claramente exposta, todavia, aconteceu que essa perspectiva náo foi amplamente partilhada, e as idéias de Apolinário foram atacadas de diversos lugares. Gregório de Nissa compôs um tratado, Contra Apolinávio. Gregório de Nazianzo insistiu em que visto como náo é meramente a carne que peca, mas também a alma e a mente, fora necessário ao Logos divino assumir uma natureza humana completa, inrelecto como também um corpo com alma: "Pois aquilo que ele náo assumiu náo curou, mas aquilo que está unido ao seu Deus Supremo também está alvo."^ Conforme representado por seu discípulo Vitalis, o ensino de Apolinário foi condenado Fragincnro 25, e m R. A. Norris, Jr., ed. c trad., The Chriitolqicni C o n ~ o v r r(Ph~iadel~hia, j~ 1980), p. 108. Apoliiiário, Fragmento 111, em Lietrmann, H . , Apolliízarir won Laodicea urzdseine Schuie (Tubingen, 1904). ' De unzone 4 em Norris, ed., The Christulogic~lCunt~ueer~y, p 104. De uíiione 5 (ibid., p. 104). "e uiiz'r)~ze17 (ibid., p. 107). - Fragmcnro 74 (ibid., p. 108). Carra 10 1, em E. R. Hardv & C. C. Richardson, The Christology ojthe Later Fdthers (Philadclphia, 1954), p. 218.

~ ~ n i o oIIIo

U ESTADO IMPERIAL DA IGREJA

195

rm 377 por um sínodo romano sob o papa Dâmaso, e depois, dois anos mais tarde,

-.or um sínodo em Antioquia sob Melécio, que concordou com a proposiqáo romana que o Filho de Deus nasceu como um ser humano completo. O concílio de Constantinopla em 381 incluiu o apolinarianismo em sua longa lista de condenaçáo de eilsinos erroneos (Cânone 1). O s principais oponentes de Apolinário, entretanto, foram os representantes da issim chamada escola antioquena, elementos de cuja tradição podem ser rastreados

aré o monarquiano Paulo de Samósata (ver II:8) no terceiro sécuio, passando por Eustátio de Antioquia (ver III:2). Favorecendo uma interpreta~áomais literal das Escrituras do que os seguidores de Orígenes e a tradiqáo alexai~drina,esses antioquenos :ncontravam-se cm uma tradiçáo que havia também regularmente enfatizado o papel do Cristo como "segundo Adão" - como alguém cuja obediência humana reve

um lugar central na obra de salvação. Ainda mais importante é o fato que, como defensores do dogma niçeno da deidade completa do I.ogos, eles estavam preocupados com qualquer linguagem que atribuísse características ou limitaçóes humanas ao Filho divino. Conseqüentemente, a perspectiva de Apolinário que o Cristo total

o

sujeito canro de características humanas co~ilodivinas pareceu-lhes blasfema. Como dguém poderia dizer do Verbo de Deus, se ele foi verdadeiramente Deus, que ele reve sede ou sofreu ou morreu?

Foi este ~roblerna,acima de tudo, que preocupou o presbítero anrioqueno Diodoro, mais tarde (378-394) bispo dc Tarso. Participante no concílio dc Constantinopla, Diodoro foi o ~rofessorde uma geraçáo inteira de pensadores antioqrienos, incluindo João Crisóstorno. Ele utilizava a mesma linguagem teológica dos arianos, de Atanásio e de Apolinário: isto é, falava habitualmente do Cristo como a união do Logos com carne e, pelo menos inicialmente, tinha pouco ou nada a dizer sobre a presenga de uma alma ou personalidade humana em Jesus. Apesar

disso, entreranto, Diodoro insistiu - e não simplesmente contra Apolinário - em que deve haver uma clara disrincáo entre "carnc" por um lado e "Logos" por outro. Eles não poderiam ser concebidos, como Apolinário havia argumentado, constituir uma natureza ou hipóstase ou ousiu. Para Diodoro carne e Logos não compunham uma íinica "coisa." Era apenas à carne, e náo ao Logos, que alguém poderia referir afirmagões como Lucas 2:52: "Jesus crescia em sabedoria e estatura, e no favor de Deus." De alguma forma deve ser o caso que no Cristo existem dois fatores distintos que, embora intimamente unidos, n2o obstanre não estáo fundidos ou identificados. De

HIITflRIA DA IGREJA GRIãTÃ

196

outra forma, parecia, o Logos cessalia de ser verdadeiramente Deus, e a carne, a ser carne. Foi, contudo, no pensamento de Teodoro, pupilo de Diodoro e monge de Antioquia, notável exegeta e eventualmente bispo de Mopsuéstia na Cilícia (392-

428), que a lógica da teologia antioquena tornou-se explícita. Efetivamente condenado no quinto concílio ecumênico (553) coii~oo originadoi- do nestorianismo, Teodoro se opôs 5 idéia apolinariana de que o Cristo é "uma natureza composta" com a noçáo que nele existem dois sujeitos de agáo e predicaçáo - duas "liaturezas" e duas "hipósrases" - as quais ele compreende como sendo o Logos divino e um scr humano completo, "o Homem." O problema, então, era dar um relato aceitável de como o Filho de Deus está verdadeiramente unido com a natureza humana. Para fazer isto, ele empregou a antiga imagem da habicacáo. Por "comprazimento" (eudokia; ver Salmo 147:11) ou graça, ensinava ele, o Logos habitou o Homem desde o exato momento da concepçáo deste - e de uma maneira tão especial e táo íncima de forn-ia a partilhar com o Homem seu próprio status, identidade e dignidade como Filho de

Deus. Desra maneira foi constituído de duas naturezas, umapros~pun- uma "pessoa" no senrido de uma identidade funcional, pública. Essa doutrina da assim chamada uniáo prosópica capacitou Teodoro náo apenas a afirmar que a humanidade de Cristo é completa, mas também a enfarizar o significado de sua obediência humana e sofrimento para a redençáo do restante da humanidade. Ao mesmo tempo a doutrina capacitou ieodoro a lidar claramente com a questão que havia arormentado Diodoro dc Tarso. Porque o Logos e a humanidade sáo duas naturezas, s~ijeitos,ou hipóstases, 1150 pode haver questáo de atribuir as características de um para o outro. Pelo contrário, insis~iuTeocloro,deve-se "dividir as frases" - i.c., em qualquer afiriiiaqáo escriturística por Cristo ou a seu respeito, deve-se referir ao Lngos o que é próprio da divindade c ao Homem o qiie é prcíprio da humanidade. Baseando-se nisso, Teodoro questionou a adcquabilidadc de charnar a Virgem Maria de "Máe de Deus"

(t/jeotokos), um escilo que era popular no Oriente desde no míriimo o início do quarto sCculo. Ter um nascimento humano, argumentou, náo é um atributo próprio do L.ogos cm si, mas somente do ser humano que o Lngos habitava. Se o título theotohos for utilizado, eiitáo, deve ser cnte~ididocm um sentido não literal. Portanto, ao monismo crisroltjgico da tradicáo que fluía de Atanásio e havia encontrado expressáo extrema e excêntrica no ensino de Apolinário, I r o d o r o opôs um dualismo

cristológico igualmente estrico.

v ~ ~ i n eiiro

ser

L

O ESTADO IMPERIAL O& IGREJA

19i

Com a elevacáo, em 428, do monge antioqueno Nestório ao patriarcado de Constantinopla, o debate entre estas duas tradicóes cristológicas entrou em uma

de

nova fase. Ele tornou-se o centro de outro palco na disputa política entre as s&sde

,392-

Alexandria e Constanrinopla. Tendo sido ou náo pupilo pessoal de Teodoro de

nde-

Mopsuéstia, Nesrório acatou e essencialmente reproduziu o ensino de Teodoro. Isso

.mo,

fica evidente mesmo a partir do recentemente descoberto Livro de Hrriiclides de Da-

ma''

masco, o tratamento mais completo de Nestório da questão cristoiógica, mas que foi

:as" e

escrito muito tempo depois de sua deposiçáo e exílio em 431. Naqueia obra, ele

II

ser

refina o senrido dos termos "natureza" e "hipóstase", que Teodoro havia utilizado

f1

de

como sinônimos virtuais, mas ele continua resolutamente a manter a doutrina da

Para

uniáo proçbpica conforme Teodoro a havia ensinado. Certamente, em qualquer caso,

I:

kia;

::,7

r-'aro

foi a cristologia de Teodoro que Nestório trouxe consigo quando, nas pegadas de João Crisóstomo, ele mudou-se de h t i o q u i a para Constanrinopla.

? r ma

Quando de sua chegada à capital imperial, Nesrório encontrou uma controvérsia

:o de

calorosa em progresso sobre o uso do título tbeotokos conforme aplicado à Virgem

i5Oa

Maria. Depois de ouvir os argumentos de ambos os lados, ele pregou um sermso no

riada

qual declarou ser o título inapropriado, pois "aquilo que é formado no útero náo é .

cr1s-

. . Deus." Ele complementou que "Deus estava dentro de quem foi assumido" ( ; . e . ,a

:na e

natureza humana) e que "aquele que foi assumido é formado Deus por causa dAquele

-.

1

~rri-

quc o assumiu"' - uma repetiçáo da dourrina de Teodoro da uniáo prosópica, e na

.

:ado

linguagem do próprio Teodoro. Por fim, Nestíirio disse que preferia o título

.. ou

C/~rzstotokos("mãe do Cristo"). Essas perspectivas foram de grande ofensa àqueles

;tro.

que sustentavam serem o Logos e sua humanidade cáo verdadeiramente unia que o

::na-

que é dito da humanidade tem o Filho divino como seu sujeito últiriio.

3ro-

Correspondei~te~nenre, as declarações de Nestório foram relatadas a Cirilo, o pntri-

::550, . ,,

arca de Alexandria c vigoroso defensor do zbeotokos c da tradiçiáo atanasiana em

_LlS

cristologia. Quando isto aconteceu, Cirilo já estava em conflito com seu colega em

:-ar-

Constantinopla sobre o cxso de alguns monges egípcios que haviam apelado a Kestório

:do

contra uma decisáo de Cirilo. Após analisar, enrreranro, ele resolveu travar sua baca-

;40s

lha com Nesrório sobre a qucstáo doutrinária, pois em sua mente, isso enirolvia um

. ao

problema cenrral da fé cristá e, ao mesmo tempo, oferecia base para urri ataque mais

.

-- -rópria pcregrina~áoespiritual e conversáo, como uma indicação e ilustraqáo da

iiruaqáo universal dos scrcs humanos em relaqáo a Deus. Nessa obra notável, conforele resume seu passado e se volta para o futuro, Agostinho ressoa

ii11-i

tema que

:,rmeará seu pensamento sobre cada problema importante que eIe erifrenraria. Em:'ra o ser humano seja criado para o conhccimen~oe amor de Deus e está "inquieto" L:Z

~icanqiardescanso eni Deus,%el earilbkin está desviado de Deus e perdido em um

z o r falsamente dirccionado. Conquanto essa perversão possa ser descrita, não sc - . ..

t s prestar contas dela. Suas origens na vontade liumana encontram-se mais pro-

738

HISTIRIA DA IGREJA CRIBTI

fundas do que o nível da escolha consciente; da mesma forma, sua retificaçáo depende de um impulso que a escolha humana náo pode de si mesma fornecer. Somente a graqa e amor de Deus, operando em maneiras que nem sempre podem ser discernidas ou compreendidas, podem redirecionar o amor humano e focalizá-lo na fonte última de sua realização - Deus. Este tema, ressoado na estrutura mesma das Gnzssóes,

aparece rainbtm nos estudos mais ou menos contemporâneos que Agostinho faz de Paulo. Tal tema assinala o grau ao qual a atençáo de Agostinho às Escrituras e tradiçáo magisterial da igreja estava levando-o a modificar e qualificar seu neoplatonismo, e sobe à superfície em seu tratamento do problema que iria dominar sua vida e obra pelos quinze anos que se seguiram isua ordenaçáo como bispo - o prohlerna do cisma donarista. Na época de Agostinho, o donatismo (ver III:]) havia estado arjvo n o norte da África por oirenra anos. Sob Donaco o Grande (m. ca. 355) e Parrncniano (ní. ca.

391), o donatismo, apesar da perseguiqáo intermitenrc pelas autoridades imperiais (e de fato parcialmente como resultado dela), floresceu no norre da Afi-ica a ponto dc, quando da época da ordenaçáo de Agosrinho, provavelmente abranger a maioria dos cristãos norte-afi-icanos e ser inquestionavelmente dominante nas cidades e viras dos

dripla~iosda Numíclia. UIII grupo purirario e exclusivisca em espírito, a igreja doriatisca permanecia na rradiçáo de Tertuliano e Cipriano e considerava-se como o único griipo de cristáos no mundo romano que havia mantido o espírito e a tradiçáo da igreja-mártir de anrigamenre. O donatismo via a comunháo católica das igrejas como "envenenada" - nso apenas pelo fato de que ela provinha (como era alegado) de bispos que haviam traído a f6 ao entregar seus livros sagrados na perseguiçgo sob Diocleciano, mas também (e de fato acima de tudo) pelo faro de que ela agora era sustenrada pelas autoridades rorririnas, "o mundo." Dessa forma, para os doriaristas, o grupo carblico simplesmen~enão era "igreja." Ele estam desriruído do Espírito de Deus por causa da impureza e compromissos de seus bispos e clero e portanto estava fora do domínio da salvaçáo. Por esta razão, os donatistas se recusavam a reconhecer os barisinos realizados na comunháo católica, e os católicos que se juntavam ao grupo donatista (e não eram poucos) eram reharizados. Corriam para os donaristas não apenas as pessoas que aderiam à tradicional concepção africana da igreja como um posto avançado moralmente e ritualmente "puro" do reino de Deus, mas também

aqueles, como o campesinato da Numídia, cuja oposiçáo ao 'Lmundo"se originava parcialmente do descontentamento social e econômico. Na época de Agostinho, a

P E R ~ U D O111

O ESTADO IMPIRIAL DA IGREJA

239

oposiçáo entre donaristas e católicos estava náo só estabelecida como amargurada. Nucrido pelas membrias bem cuidadas de ambos os partidos da violência do outro e reforçado por uma recusa mútua de intercurso social ordinário, o cisma permanecia como um dos fatos estabelecidos da vida norre-africana. Como bispo de Hipona, perto de cuja igreja fora erigida a basílica de uma congregaçáo donatista, Agostinho recusou-se a aceitar esta situa~áo.Em parte, sua atitude originou-se de uma profunda antipatia a compreensao donatista de igreja. Conforme sua compreensão, era simplesmente incorreto assumir que a igreja pudesse ser

um corpo "puro." Na rradiçáo dos bispos romanos do terceiro século - e portanto do próprio Cipriano de Cartago - Agostinho via a igreja como um "corpo misto" no

qual o joio e o trigo crescem juntos até o juízo. Mais do que isso, todavia, eIe acreditava que a santidade da igreja - a presença na igreja e para ela, do Espírito de Deus dependia náo (como os donatistas argumentavam) da santidade ou pureza do rninistro que batizava, ceIebrava a eucaristia, oii ordenava, mas simplesmente do gracioso amor do próprio Deus. Portanto, ele insistia em que o verdadeiro e efetivo minisero dos sacramentos através dos quais Deus tocava e reformava vidas liurnanas náo cra o sacerdote humano, o bispo ou presbítero, mas o próprio Cristo, de cujo ministério o do agente humano era meramente um símbolo e canal. A igreja vivia, argumentou Agostinho, náo em virtude de sua própria santidade ou da de seus bispos, mas simplesmente em virtude da graqa de Deus em Cristo. Como os teólogos medievais colocariam isso mriiro mais tarde, os sacramentos eram "válidos" (i.e., objetivamente realizavam o que eles "diziam") não por causa daquilo que o ministro humano era ou fazia (ex opere operantis) mas por causa da execujáo pela igreja da própria ação (ex opere opemto) em dependência da graça pactuada de Deus. Esta crenqa, contudo, de que a igreja vive na graça e pela graça levou Agostinho à convicçáo de que mesmo o grupo donatista era "igreja" em um sentido verdadeiro. Seus batismos e eucaristias não eram sem significado ("inválidos"). Antes, eles eram

incompletos ou ineficicntes. Executados em separaçáo hostil da igreja católica, faltava-Ihes o solo de caridade no quai poderiam gerar o fruro que intcncionavam produzir. O que era necessário, portanto, era a reconciliacáo dos donatistas com o restante da igreja, e Agostinho dedicou-se a esta finalidade. Em cooperação com seu amigo e colega Aurélio, bispo de Carcago, ele procurou primeiro de tudo reformar, fortalecer e unificar as igrejas católicas na África de forma que o mérito da causa destas pudesse ficar mais evidente. Ao mesmo cempo, ele tornou-se um propagandista, compondo

240

HIRÓRIA DA IKREJII CRIXlÃ

panfletos populares (nenhum deles muito impressivo) nos quais partiu para conrestar a versáo donatista das origens e natureza do cisma. Ele tambim buscou ocaçióes públicas e privadas para conduzir discussáo e debate com líderes donatistas, e replicou aos argumentos desres em urna série de longos tratados. Em tudo isso seu objetivo foi tornar a causa cat6lica atraente e persuasiva e assim dissuadir os donatistas de seu separatismo. Entretanto, tais mbtodos náo foram bem sucedidos e a violência donacista contra os católicos t-iáo diminuiu. Gradualmenre, Agostinho foi levado - em parte por seus companheiros bispos e em parte por seu próprio eventual reconhecimento de que uma política de conciiiaçáo era desanimadora - a reconhecer que para o cisma acabar seria necessdrio o uso da pressão da lei romana e do poder policial romano. Portanto, ele juntou-sc àqueles que encorajavam a corte imperial (a qual de forma alguma estava relutante) a legislar contra os donatistas: confiscar propriedades donatistas e impor penalidades legais severas sobre pessoas que persistissem leais ao grupo cismático. Essa polírica foi finalmente colocada ein prática em 41 1, após uma convocacáo em Cartago à qual os bispos donatistas foram chamados a aprcsentar sua causa ou sofrcr as consequências. Agostinho justificou esse apelo ao poder do estado de diversas ii-ianciras.Por um lado, citou L ~ ~ c 14:23 as ("obriga as pessoas a entrar"). Por outro, observou em um viés pragmático que estas penalidades legais ila prática induziram muitos donatistas a retornar ao rebanho católico e qiie, contrariamente à sua expecrativa origirial, eles rapidamente tornaram-se membros bastante normais de suas congregagóes. Conquanto recusasse c prorestasse contra qualquer aplicaçáo da pena de morte aos donatistas, Agostinho náo obstante acreditava que o imperador tinha o direito e, como crisráo católico, o dever de inrervir no interesse da saIvaçáo dos cismáticos africanos. Ao fii-ial, entretanto, a política de perscguiçáo a que ele n o princípio ae opôs mas depois sustentou firme~iiente,náo foi hem sucedida. O movimenro donatista foi mutilado, e muitos de seus

seguidores foram restaurados ao

corpo católico, mas náo olistnnte ele sobrevjveu, desaparecendo apenas

o

Islã conquistou as antigas províncias romanas d o norte da África.

Após 41 I , a questáo donatista saiu do centro da atenção de Agostinho, e sua mente volrou-sc para outros problemas. Uni desces - mais iiiiportantc para o prdprio Agostiiilio c111 seu papel como um aspirante religioso do quc qualquer candente cluestáo pública

- era o término de seu grande trarado Sobre n 7i.indade, o qual ele

havia iiljciado há mais de uma década atrás mas deixado de lado após ter completado

~tciaaaili

O ESTAOU IMPERlAl RA IGREJA

247

uma ifersaodos primeiros quatro livros e do presente Livro 8. Mesmo nestas seqóes,

onde náo há nenhuma indicaçáo de sua posteriormente assim chamada "anaiogia psicológica", está evidente que a quesráo da Trindade havia se rornndn para ele nem tanIo um problema sobre como o teólogo deve descrever Deus mas um problema sobre como a rnenee humana pode se elevar para uma apreriisáo de Deus em sua tríylice forriia. A idéia de Agosririho era que Deus é corihecido e provado niais cerra-

mente no ato de amor, do qual Ele é a Fonte, o Objeto e o Poder. Ao escolher e desejar amor, o ser humano entra na estrutura rii-pessoal do ser e agir de Deus e assim, por um tipo de consciência reflexa, conhece e ama a Deus. Quando ele rerornou,

todavia, após 414, .?I obra que havia deixado inacabada, Agostinho havia Iido (pela primeira vez) as obras de Gregório de Nazianzo e alguns outros tedlogos gregos e havia ruminado a idéia de Gregório que as "pessoas" rrinitárias (hipósrases) sáo definidas e consriruídas por suas relacóes uma para com as outras (ver III:4). Elc então

desenvolveu mais ainda a id6ia de que "Pai", "Filha" e "Espírito" sáo iiomes a50 de seres diferentes mas de inter-relaç6t-S. Era sua convicçso de que as hipósrases divinas náo eram atualizacóes distintas de unia única ousiu (ser, essência) mas antes simples-

mente as maneiras substaritivas rias quais o único Deus está eternamente relacionado consigo mesmo.

Foi nesta conexzo que a "analogia psico16gica" entrou ein cena. Apelando para a doutrina de que os seres humanos sáo criados "segundo a imagem de Deus", e insis:indo em que isso tem que significar c r i a g o segundo a imagem da toralidade da

-. iriridade, Agostinho desenvolveii uma no@o de ser humano como subsistindo em e

;rrav6s de sua própria auto-relacionalidade. Assim. ele pôde argumentar que as pesinas sáo ou se toriiam elas mesmas quando, em cada ação, elas se lembram, conhe-

;eni e descjarn a si mesrnns; e urna vez que essas relacóes de le~nbransa,coriheci~i~eri-

dcsejo sáo maneiras nas qrrais o úilico e mesmo ser é relacionado consigo mes-

ro

-7113.O

relacionamento tripla e a unidade da pessoa náo sáo inconciliáveis mas prcssu-

rsirii um ao 011tr0. Conseqiienterneilte, há uma "indicacáo" (vestigzzim)da maneira

de Deus na manaia h u m ~ n ade ser. Mais imparranre, entretanro, a busca 7. :.?i:!ia por auro-compreensári no final se expressava, conforme Agosrinho a perce:.i. eni toda pessoa referindo-se "acima" de si para o ser de Deus, o original de todo -:: :rirdo 2 porranco o objetivo de roda busca humana. - . . : : i . c15nieilro central nessa idtia de que as 'Pessoas" da Ttiildadc szo relac;óes -.:.,...:. i> nz.; u ~ 1 ~Drus ii e s ~para i si niesnio era urna compreensão parricular do

:i r

+

242

HISIORIA DA 16RUA ERISTÃ

Espírito Sa~ito.Para Agostinho, o Espirito é a expressáo da natureza de Deus como amor - é, de fãto, a relaçáo de amor mútuo na qual o Pai e o Verbo estão um para com o outro. Ele pois falou regularmente do Espírito como procedçndo "do Pai e do Filho": a assim chamada doutrina da "dupla processão." Seu uso dessa linguagem levou eventualmente h inserçáo nas versões latinas d o credo niceno~onsrantino~olitano da expressáoJilioqzte ("e do Filho") - uma mudança ~extualque no final se tornaria uma das principais fontes de conflito entre as igrejas latina e grega nos tempos medievais e modernos. No exato momento em que estava escrevendo seu tratado Sobrea Tn'ndade, entretanto, a queda de Roma diante dos visigodos (4 10) e o consequente fluxo de refugiados da Itália para o norre da África compeliu Agostinho a voltar sua arencáo para uma quesdo pública mais candente. Desde os tempos de Constantiiio, os cristãos tenderam a assumir a perspectiva de que se o império fosse fiel a Cristo e sua causa, Deus iria protegê-lo e salvá-lo - uma perspectiva que o prtprio Consrantino parece ter abra~ado(ver 111:1). Agora, entretanto, com o colapso das defesas de Roma diante dos visigodos, muitos pagáos estavam argumentando que Roma estaria melhor se retomasse para seus aiitigos deuses, sob cuja direFáo ela fora mantida segura. Foi ern

resposta a esse p-oblema que Agostinho assumiu a redação de seu vasto tratado A

Cidade& D~ZLS. Sua resposta, entretanto, foi muito além da abrangência imediata da questão que a provocou. A Ciddde de Deus é menos uma apologia do cristiariisrric, (embora seja isto) do que uma análise da natureza das sociedades humanas e sua reraGáo com Deus na história.

A obra começa com uma crítica da filosofia e religiáo pagás e de sua reivindicaçáo de levar a humanidade 5 sua realizaçáo. A meta apropriada do esforço humano. argumenta Agostinho, é o próprio Deus e a sociedade de seres humanos em comunháo com Deus ("a Cidade de Deus") que será atualizada apenas alem da história. Não há meio, portanto, no qual a ordem estabelecida por qualquer governo humanc possa receber um valor maior do que provisional e passageiro. Roma náo é, e nácm

pode ser, eterna. Mais do que isso: Agostinho está convencido de que os governo; terrenos sáo produtos de um amor faisamenre direcionado; uma ambiçáo egoista por bens visíveis, efêmeros e materiais. Exatamente por esta razão, eles têm sua raiz e r .

um impulso intrinsecamente competitivo e portanto edificados sobre uma base df violência e injustiça. Isto não significa, contudo, que eles náo possam realizar um:

justi~ae uma paz que, embora relativas, parciais e temporárias, são reais: mesn~í

PIRIODO III

O ESThDO LMPERIAL OR IGREJA

243

uma sociedade de ladróes requer e busca algum tipo de ordem. C:oncluailto, entáo, o estado romano e todos os ourros estados, como também as instituições da escravidáo e da propriedade privada, existam somente por causa do pecado, eles são capazes de servir, em sua própl-ia maneira, os propósitos de Deus, 5 medida em que buscareni restringir e controlar os efeitos do próprio pecado do qual emergem. Na providência de Deus, entáo, "a cidade do homem" rem um papel a desempenhar, e os cristãos têm o direito e o dever de cooperar para efetuar, o tanto quanro possível, a paz e a ordem relativas que o amor egoísta e competitivo pode produzir. Entremeados nessa sociedade que busca bens terrenos, entretanto, estáo aqueles que são governados por um amor superior - o amor por Deus, o bem que todos podem partilhar igualmente. 'Tais pessoas compõem a forma preliminar e histtírica da Cidade de Deus, da qual a igreja náo é canto a ~ o r ~ o r i f i c a como ~ á o a antecipaçáo ambígua. Agosrinho náo havia esquecido a posi~áoque assumira na controirérsia donarista. A igreja não t uma sociedade perfeita, mas um corpo no qual sanros e estáo "misturados" (covpz~spernzixtum). Ao mesmo tempo, ela é a sociedade na qual a graça de Deus é visível e çertainenre operando para converter homens e mulheres, de um amor falsamelite direcionado para bens criados e efêmeros, para um amor direcionado para o próprio Deus. E por esra razão a igreja pressagia e

simboliza a sociedade humana redimida, a Cidade "cujo promoror e conseruror é Deus." O renia de A Cidade de Deus, entáo, é o tema dos "dois amores", um dos quais 5 direcionado para o bem efêmern e finito, e outro para o bem eterno e infinito. Esres dois amores produzem dois tipos de sociedades humanas. Ademais, cada um em sua própria maneira alcanqa o bem que almeja. Se a "cidade do homem" - da qual o império romano era o síinbolo, para Agoseinho - náo alcailca uma paz e uma ordem indestrutheis e ereriias; se ela é vulnerável à conquista e destruiçáo, C porque conquisra e desrruiçáo sáo os meios pelos quais seu bem é alcançado e porque esse próprio bem é passageiro. O único valor úlcimo, porque úiiico e duradouro, é Deus mesmo, em quem todos os bens criados esráo eminenremencc contidos e preservados. Portanto, Agostinho relariviza e, de fato, seculariza o estado, negando ambas as idolatrias (pagá e cristá), de sua ordem. Ao mesmo tempo, ele afirma a significância dos bens relativos que o estado alcan~a.Paz e justiça terrenas náo são valores sem importância, ainda que náo sejam, e r i o possam ser, as corporif;caqóes da paz e da justiça da Cidade de Deus.

Capítulo 17

A Controvérsia Pelagiana A afluência de refugiados no norte daÁfrica após a invasáo dos visigodos na Itália trouxe para Agostinho, juntamente com seu quadro de aristocra~asromanos, mais d o que apenas um desviarrim

3

Suas discussóes sobre o significado da queda de Roma

a t e ~ ~ q ádeo Agostinho dos problemas domésticos das igrejas africanas

para os da igreja como pane da história mundial e o estimularam, como já vimos, a compor A

C'iddde de Deus. Ao mesmo tempo, foi a chegada deles que o compeliu a

avaliar, corisiderar c ao final atacar um movimento de reforma religiosa que se estava espalliarido de Rorna atravis da Itália iiicridiorial e Sicília, e que evei~tualine~ite receberia o nome de seu líder, Peligio. Uin asceta hretáo (embora não fosse do clero nem membro de nenhuma çomunidade rnonistica), PeIágio havia se mudado para Rorna por volta de 390. Ali ele circuIou e ensinou nos mesmos círci~losarisrocráticos nos quais Jeroriimo havia procla-

mado as virtudes da vjda ascitica, e n o processo ele conseguiu um grupo cntusiStico c dedicado cie seguidores. Sua mensagem, que parece ter atraído especialmente jo-

veris intelectuais de nascimento nobre, conclamava para um padrso estrito de pei-fci$0

moral para todos cristáos. Angustiado com a lassidáo e indiferença dos fiéis em

Roma, crítico de suas desculpas, e incrkdulo qulinto à rioqáo de que o batisirio gar-:intia a salvacáo, Pelágio declarou que era dever dc todo cristáo alcancar a perfciçáo guardando rodos os mandamentos de Dcus. Esta mensagem dura, reniiiliscêilcia de um rigorisino mais antigo, veio a ser, para muiros de seus ouvintes, também inspirativa, uma vez que Pelágio tamhem insistia e111 que Deus nao reria dado seus mandamentos se náa tivesse fornecido a todas as pessoas a capacidade de cumpri-los. A pcrfei$50 estava verdadeiramente dentro do alcance de ~ o d o s ,pois todos eram dotados

pela cria~ãode Deus - isto é, como um assunto de capacidade natural - com Iiberdade de escolha. Ademais, ha~riafornecido, rias Escrituras e, supremamente, na pessoa

de jes~rs,tanro instrucso na diferenca entre o bem c o mal como exemplos da v-ida vireuosa. Ecluipados, entáo, com o çoriliecimento do bem e com liberdade de cscolha, e atraídos pela promessa de vida ererna para aqueles que obedecessem à voiitade de Deus, ninguém - uma vez em paz com Deus pelo perdão dos pecados - poderia

~ ~ n i o i11 oo

O ESTADO IMPERIAL 0 1 IGREJI

24-7

deixar de ter tanto a induçáo necessária como a necessária capacidade para a perfei$20. Pelágio esperava por um dia quando as virtudes d o asceta - contintncia, castidade e pobreza - pertenceriam a todos os cristãos, e a igreja seria revelada como a sociedade pura e imacuiada que deveria ser. Pelágio encontrou em u m jovem advogado chamado Celtstio um discípulo c compa~lheirovigoroso e inteligente. Fugindo da invasáo dos visigodos, esces dois chegaram em Hipona em 41 O, procurando conhecer Agostinho, outro notAvel defeiisor da vida ascérica, embora alguém cujas atitudcs já haviam perturbado e confúndido Pelágio. O bispo estava ausente da cidade, entretanto, e seus visitantes prosseguiram para Cartago, de onde, um ano mais rarde, Pelágio parriu para a Palestina.

O início da controvérsia pelagiaila, porcanto, foi provocado náo pelo próprio Peligio mas por certos ensinos de Celéstio. Este último permanecera ein Cartago e solicitara a ordenagáo ali, como presbícero. Entrementes, aiém disso, ele envolvera-se em debates sobre batismo e pecado e também sobre a queda de Adáo, e afirmara nocóes sobre estes assunros que sem dúvida presumira serem aquelas idéias de Pelágio o u pressupostas por seu posicionamento. Nós sabemos quais foram elas a partir das acusaçóes que rapidamente foram feitas contra ele por um diácoi-io milanês, I'aulino: ( I ) Adáo havia sido criado mortal e teria rnorrido, quer houvesse pecado ou de AdZo prejudicara apenas a si mesmo, e náo a toda a raga náo. (2)O humana, ( 3 ) 0 s rccCm-nascidos estão naquele cstado no cjual Adáo ssta1.a antes de sua queda. (4) Nem pela rnorce c pecado de ridáo a roralidade da raça perece, ilenl pela ressurreicáo de Cristo a rúraIidade da rasa ressurge. ( 5 ) A Lei Icva ao reino dos céus da mcsnia fúrtna que o Evangelho. (6) Mesmo antes da vinda do Senhor existiram homens sem pecado.' Celéstio nao ne;ou que estas afirrna~óesrepresentavam um relato correco d c suas perspectivas; e não pode haver dúvidas sobre que elas conrradizirim uma rradicáo contínua d o ensino cristáo africano, que jtistificava o batismo infanril, afirmando

que desde a concepçáo as crianças esravam alienadas de Deus por causa de seu envolvimento com o pecado original de Adão. Correspondentemente, um sínodo local condenou seu posicionatnento (41 I ) e recusou-lhe a ordenaçáo. Açostitiho náo esreve preserire ncste sinodo, e conhecia o ensino de Celésrio apenas por relato. Foi gradual e cautelosamenre que ele ericrou nesse debate. Em seus tratados Sobre a Recü~r~prnsa e Remiss2-o dos Pecador (412 ) e Sobre o Espívitü c iz Letra .\yer,

Siiziuc~Rook. p.

46 1.

246

HISTÓRIA DA IGREJA

CRISTA

(412) ele deixou claro o que percebia ser a questáo subjacente. Ele concordou com seus colegas bispos africanos em que o batismo de infantes pressupunha sua participacáo no pecado - pecado "original" de Adáo - mas também indicou que para ele o rema central da quesrão era o da necessidade de graqa. Ele acreditava que tanto o ensino moral de Peligio como as seis proposicóes de Celbtio colocavrim em quescáo a verdade de que é pela graca de Cristo que os seres humaiios sáo salvos - isto 6, pelo Espírito Santo, que irradia o amor de Deus amplamente ein nossos coraqóes.' Para Agostinho, a s a l ~ a ~ ádependia o não da obedihcia externa a modos de comportamento prescritos mas da evocayáo do amor por Deus na alma humana, e tal amor humano somente poderia ser evocado como urna resposta ao amor de Deus. A liberdade da pessoa humana em voltar-se sincerament-e para Deus dependia, entáo, da acáo redentora de Deus. Isso lhe fora ensinado

cxperiêi7cia de toda sua vida.

para náo mencionar siias mediraçóes nas cartas de Paulo e de João. Por trás desta convicçáo encontra-se a consciência de Agostinho do mistkrio do pecado humano, o

quai para ele não era simplesmente ou primordialmente uina questão de desobediência aos mandamentos mas antes de um amor desorientado e erroneamente dirigido. Foi para explicar esse mistério que ele apelou, juntamente com seus colegas africanos, para a idéia da inipIicaçáo de todos os seres humanos no pecado e na culpa dc Adáo - uma culpa que, mesmo no caso das crianças, somente poderia ser removidz pelo batismo.

Em 415, Agostinho tinha perfeitamente claro em sua mente que as pressuposiçóes subjacentes às nocóes de Pelágio e Celéstio consrituíam um "sistema" que negava a própria base da salvaçáo que o Evangelho cristão proclamava. Se Pelágio expiici-

Iamerite sustentava ou não as doutrinas que Agostinho atribuía a ele - ou via ai questóes queAgostinho via - 6 outra questáo. Cedo riaquele ano, portanto, Agosrinho enviou seu discípulo Orósio a Jerôniilio na Palestina (onde Pelágio estava agorr

residindo) para eiicoraj2-lo em sua oposiçáo

ri

Pe'elágio. Jer61iimo náo prccisrirra d~

muito encorajarnento, uma vez que Felágio havia se tornado um protegido do bispc origenist-aJoáo de Jerusaltm (ver III:7). Em Jerusal6n1, contudo, e mais tarde em u r sínodo reunido em Dióspalis (Lida, na Palestina), Pelágio repudiou as ensinos d; Celéstio c assegurou aos bispos reunidos que suas próprias perspecrivas náo possu: am nenhuma das irnplicacões que os africanos haviam visto nelas. O sínodo, face . 'Cf. Romanos 5:5,e Sobre o k$irito r a Letra, 5

vaiono iii

D ESIA00 IMPERIAL OL IGREJA

247

isto recebeu-o na plena cornunháo da igreja.

Agostinho e seus colegas responderam a esse malogro reunindo dois concílios, um em Cartago para a província da África e um em Mileve para a província da Numídia. Ambos unanimemente condenaram a posiçáo pelagiana e apelaram para o papa Inocência 1 (402-417)para a confirmaçáo de suas perspecrirras. O papa concordou eni tern~osvagos e gerais. Seu sucessor, Zósinio (417-418), todavia, pensava diferente. Tendo recebido uina confissáo de fé da próprio Pelágio e um apelo pessoalmente de Celéstio, Zósimo declarou que não encontrava falta alguma neles. Mas dois desenvolvimentos entáo conspiraram para l e ~ ~oa papa r a alterar sua posigáo. O ensino de Celésrio em Roma gerou ali sérios distúrbios públicos entre os cristãos, e náo sem pressáo dos líderes da igreja africana, incluindo Agostinho - o imperador Honório emitiu um documento oficial condenando o peiagianistno e ordenando o exílio de seus seguidores. ZSsimo entáo mudou. de idéia e emiti11uma carta circular, a assim chamada Epistula tractdtovicl, em que ele aprovava a posiçáo africana, a qual

havia sido reafirmada por um concílio em Carrago (418). Desse momento em diante, Roma permaneceu firme contra o partido pelagiano e de fato buscou sua conde-

nacáo, sem discussáo, pelo concílio ecuniênico dc Efeso (43I). Estas decisões náo significaram, contudo, que a controvErsia teológica chegara ao

fim. Em primeiro lugar, Agostinho em seus escritos sobre o assunto havia se movido para uma posii;áo que preocupava muitos que de outra forma apoiaram seu posicionamento contra o pelagianisrno. Agosiinho, ao acreditar que todo ser humano está tão enredado no pecado e culpa de Adáo que a própria natureza humana é corrupta e incapaz de se volrar, por seu próprio esforço, do amor próprio e "concupiscência" para o amor a Deus, passara a enfatizar a eficácia exclusiva da graça divina. Correspondentemente, ele desenvolveu uma forre douerina da predesrinaçáo, conforme a qual C a acáo e escolha de Deus, tomadas sem consideração para com o mérito humano pressuposto, que simultaneament-e iniciam as pessoas no caminho da salvação e as capacitam para nele perseverarem. Ademais, ao mesmo tempo em que ele estava tentando dirimir as dúvidas de alguns de seus amigos sobre as implicacóes desse eiisino {em rratados como aqueie de 427, Sobre n Gmçn r o Livre Arbitvio), Agostinho foi atacado pelo novo líder da causa pelagiana - o brilhante e áspero Juliano, bispo de Eclana, na Itália meridional, cuja maneira de combinar argumentos com ridicularizacóes e ataques pessoais perturbou profuridamente os úlrimos anos de

z%gostinhoe suscitou nele - fugindo de suas características - réplicas amargas. Juliano,

.?-i8

iilsrb~inDA IGREJA GRISIÁ

u m dos dezoito bispos italianos exilados em 4 17 por recusarem-se a condenar PeIágio e Celéstio, riáo era asceca no estilo de seu mestre. Ele se imaginava estar defendendo a bondade da natureza humana e do casamento contra o perverso dualisrno maniqueísta da resrrita posicáo africana representada por Agostinho. O debate entre esses dois protagonistas foi interrompido peIa morte de Agostinho e pela conquista vjndala das províncias romanas d o norte da África.

Capitulo 1s

O q u e a morre de Apsrinho n5o interrompeu foi a continuaçáo da controvkrsia sobre sua doutrina da eficácia exclusiva da graca divina. Nem todos aqueles que defenderam seu posicionaniento curitra Pelágio escavam preparados para aceitar suas idéias predcstinacioniç~asou sua aparente declasaçáo de que a graça é irresisrlvel. Com a conquista vâiidala da Nurnídia e da África, entretanto, a conrrovkrsia sobre as perspectivas de Agostinho foi transferida para o sul da Gália. Lá Joáo Cassiano (ver

IIJ:?), o f~indadore guia de dois mosteiros perto de Marselha e o principal interprete para o Ocidence do espírito do monasticismo egipcio, assumiu a posi~áo- tradiciunalrnente descrita como "semi-pelagiana" -.de que a graça de Deus vem como un-ir: resposta ao "início de urna boa vo~irade"iia pessoa huniaria.] Erri sua perspectiva,

"2

voi-irade sempre permanece livre no homem, e pode taliro negligenciar ou cornprazerse na graca de Deus."' Cassiano acreditava náo que a salvaçáo vinha para as pessoafora da graça, mas que "há sementes de bondade implantadas em cada alma pcl.: hondade do Criador" e que estas sementes, que capacitam os seres hunianos a preterirem Deus acima dos u~rtrosbens, chegam -à sua fiuiqão somente quando "esrimule-

das pela assistência de Deus."WHá na natureza humana, portanto, uina capacidazi para voltar-se para Deus, inas esca capacidade E reaiizada somente pela própria acii

de Deus.

PER~OBO111

O ESTA00 IMPERIAL OA IEREJR

?-i9

Quatro anos após a morte de Agostinho, Vicente, u m monge de Lérins, i-io suI d a Gália, escreveu seu Cornrnonito~i~~m, no qual, sem atacar Agostinho non~inalrncntc, sugeriu que os ensinos deste sobre graça c predcstinacáo eram inova~óesque n5o tinham sustentaçáo na tradicáo católica. "Ademais, na própria igreja carólica", escreveu, "deve-se ter todo cuidado possívei para manterinos aquilo que terri sido crido crn tocia parte, sempre e por todos (qzdnd libiqz~e,~

I ~ O ~ S P I Ygz~odab ~ Y , umizib~~)." E

evidentemente para Vicence, a p o s i ~ á ode Agostinho não seguia tal critério.- C:erca de quarenta anos mais tarde, essa posicáo foi expressa de forma ainda mais explicita por Fausto, abade de Lérins c postcriormente bispo de Riez. Ern seu crarado Sob7.e n

Graça de Dells e o Livre Arbitiio (ca. 474),Fausto iilsistiu cm que o inicio da fé (initiu~z jidei) teni sua raiz n o livrc arbícrio humano, o qual, apesar da realidade do pecado original, tem "a possibiIidade de se esforFar para a salvaçáo." A gra5a é a promessa e advertência divina que inclina o debilitado, nias ainda livrt: arbítrio para escolher o correto. Ela náo é, como queria Agostinho, u m poder interior e rransfor-

mador, que opera ern uni nível mais p r o f ~ ~ n dd o que aquele da escolha consciente. Apesar de sua rcjcicáo de Peligio, então, Fausto em alguns aspectos permaneceu n-iais perco dele d o que de Agosriiiho.

No outro lado d a controvérsia estava l'róspero de Aquirânia (ca. 390-cã. 463), que cedo em sua carreira (pro\~avelmentecomo monge leigo em Marselha) escreveu para Agostinho para riorificá-lo d a oposicáo que suas nocóes estairam suscitando em círculos monásticos na Gália. Autor de obras contra Joáo Cassiano e Vicente de Lérins, Próspero eventualmcntc tornou-se secretário d o papa Leáo I (440-461) e durante seu período nesse oficio compilou um série de resumos das obras de Agosti-

nho. Estes resumos evencualmentc foram utilizados por Cesário (ca. 469-542), um :r-iongc de Lérins que em 502 tornou-se bispo de Arles. E m 529, Ccsário reuniu um ?eqiieno sínodo em Orange, cujos cânoncs assumiram uma significaqáo maior quando Gram aprovados pelo papa Bonifácio TI (530-532). Esre sínodo afirmou uma forma diluída da posicáo agostiniana, qire o próprio Cesirio apoiava. A humanidade está

7.20 apenas implicada n o pecado original de Adão como também perdeu rodo o :ocier de volrar-se para Deus de sua própiia vonrade. "Só desejamos ser libertos ;raças à infusão d o Espírito Santo e sua operação cm nós." É, ademais, "pelo d o m zratuito da graqa, isto é, pela inspiracão d o Espírito Santo", q ~ i cas pessoas t?m "o

250

HISTÓRIA DA IGREJA CRISTd

desejo de crer" e "chegam ao nascimento do santo batismo." Toda bondade humar entáo, é obra de Deus. Por outro lado, o sínodo de Orange em lugar algum afirmc a irresistibilidade da graqa. Pelo contrário, ele afirmou que as pessoas

"resisr

ao mesmo Espírito Santo." A noção de predestinaçáo para a condenaçáo foi cond nada. Mais importante de tudo, entretanto, o sínodo vinculou a recepçâo da gra, ao batisino e insistiu em que o fruto natural desta graca sáo as boas obras. "Crem, também estar de acordo com a fé católica a afirmaçáo de que, uma vez recebida graça no batismo, todos os que foram barizados podem e devem, com o auxílio s ajuda de Crisro, praticar dqLLelas coisas concernentes h salvação da alma, se labur rem fielmente."5 Em outras palavras, a idéia agostiniana de que a graça de De; muda e transforma a vontade do fiel fora afirmada, mesmo enquanto que a forrí estrita das doutrinas agostinianas da predestinaçáo e da graça fora severamente mi dificada. Esras questões n5o foram resolvidas de forma final em Orange. Elas perrn neceram centrais na agenda da teologia latina náo apenas durante a Idade Médi mas também durante a Reforma Protestante e seus desdobramentos.

Capitulo 19

Gregório Magno O período da controvérsia sernipeiagiana (430-529) correspondeu mais ou rn nos ao das controvérsias nestoriana e eutiquiana no Oriente e suas conseqüências r cisma acaciano entre Roma e Constantinopla (ver 1II:lO). No Ocidente, esse perii do foi uma época de deslocamento e colapso tanto para o império como para igreja. As migraçóes bárbaras e o declínio do poder imperial significou que em algmas áreas mais remotas, como a Grá-Bretanha e a Panônia, o cristianismo foi e todos os sentidos e propósitos expulso. Reinos bárbaros foram estabelecidosem gran\ parte da Gilia e Espanha como também no norte da Africa, e a guerra permaner. que acompar-ihou os movimentos destas naçóes devastou cidades e áreas rurais, rc tringiu o comércio e a comunicaçáo, e portanto erodiu ainda mais as bases s o c i i

' Ayer, Source Book, p. 472-474

PER1000 111

O ESTA00 IMPERIAL OR IGREJA

2 71

.mana,

econômica do mundo romano. Os godos, vândalos e burgúndios, ademais, eram

.:rmou

uniformemente arianos, e isto significava que uma barreira religiosa, alem da cultu-

rzsistir

ral e lingüística, os separava da sociedade provincial romana que eles governavam e

:onde-

que, precisamente porque era romana, era dedicada icausa do cristianismo católico.

graca :cmos

O destino político da Gália e Espanha tambtm foi aquele das províncias romanas quando, com o advento (490) dos ostrogodos sob a lideranca de seu rei, Teodorico,

riida a

a totalidade da península foi ocupada e subjugada por uma naçáo bárbara, aos mem-

i

.. .

ea

bros da qual foi atribuído um terço de toda a terra. Teodorico, entretanto - que

kbuta-

governava formalmente como um go\~ernadorsob o iinperador em Constantinopla e

Deus

intituIado "Patrício dos Romanos" - não perseguiu nem peiializou os cristãos cacóli-

Iorrna

cos. E s ~ apolítica era parte de sua continuaçáo do sistema sob o qual a administração

mo-

civil ficava exclusivamente nas máos dos cidadáos romanos, enquanto os negócios

-10

:P

srrna-

milirares ficavam nas mãos dos godos. Assim, Cassiodoro (ver III:7) serviu sob

.iédia,

'leodorico como chefe do serviço civil (m~giste~.oitfcio~u-um) e o filósofo cristáo Boécio

1

(m. ca.

524),membro

do clá aniciano e autor da famosa Consolaçd'o da Filosoja,

tornou-se conselheiro de 'Seodorico e foi elevado à categoria de cônsul em 514.Como rei que governava sob dois povos legalmente divididos (os rgodos náo eram cidadáos romanos), Teodorico parece ter almejado uma romanizaçáo gradual e civilizaqáo de seu próprio povo e para esse fim buscou sua coexistência pacífica com os proviiiciais italianos do império. Ao mesmo tempo, para assegurar sua posi~áomilitar e política, ele construiu aliancas cuidadosas com os reis dos visigodos e dos burgúndios nas fronteiras setenrrionais, procurando criar uma aliança bárbara (e 11

me-

ariana) estável. Não obstante, existiam tensões e hostilidades inevitcíveis, náo apenas entre os

:as no

~erío-

invasores ostragodos e a pop~ilaçáode fala latina da Itália, mas também entreTeodorico

:ara a

e a corte imperial. em Constantinopla. Estas se revelaram na alienaqáo gradual entre

dgu-

o rei osrrogodo e a aristocracia senatorial romana. Tal desenvolvimento foi ocasiona-

.>i em

do em parte pelo menos devido ao fracasso do sistema de alianças de Teodorico. A

:ande

conversão dos francos ao cristianismo católico, sua conquista da Aquitânia aos

.nsnte i.

res-

-;ia1 e

N.T. Boicio, cujo nome latino r r a Anicius Manlius Srveririus, cscrevcu a Consolaçáo da Filosofia quando csrava na prisáo. acusado de r r a i ~ á o Em . sua obra BoCcio argumçnra que a aIina pode alcangar a felicidade Dor meio da ailicào, ao compreender o valor da bondade e meditar sohrc a realidade de Deus. Devedor ranro ao esroicismo como a o neopiatonismt>. Bogcio tarnbCm crnÍriu sentimentos cristãos. Sua obra r r r r c r u rrande influência durante todo o período mçdicval. ^

visigodos, e, finalmenre, a a1ianç.a dos burgúndios com Constantinopla, colocara~n Teodorico c seus sucessores em uma posição de isolamento político. Com razgo, portanto, Teodorico ficou inquiero com a lealdade de muitos de seus funcionários carólicos com mentalidade independente. O próprio Boécio morreu na prisáo sob a acusaçáo de traição, e Cassiodoro por fim afastou-se do serviço público para fundar uma escola e mosteiro. Mais importante ainda, tais tensóes se manifestaram com a determinaqáo do imperador Justiniano em reconquistar a Itália para o império, um empreendimento que foi iniciado dez aiios após a morte de Teodorico (526). Como conseqüência, a Itália foi submetida a uma série de campanhas militares destrutivas que deixaram em seu rastro

fome, doenças e diminuicão da populaçáo. A

própria Roma - que no decurso destas guerras uma vez teve a totalidade de sua deportada - torilou-se uma cidade cheia de ruínas, seu povo táo reduzido em número que muitas partes da cidade foram abandonadas e o mato tomou conta.

A reconquista bizantina, ademais, foi seguida quase imediatamente pela igualmente debilitadora invasão dos pagáos lombardos (568), cujos líderes,

110 final

do sexto

século, controlavam a maior parte da Itália cencral e setentrional, isolando Roma de Ravena, a sede do exarca imperial, como tambdm dos rerritórios bizantinos ao sul. Estes eventos náo poderiam deixar de afetar a vida da igreja na Itália. O papado, como a populaçáo de fala latina em geral, esteve, durante a primeira metade do sexto século, envolvido na luta entre Coilstantinopla e os ostrogodos e tornou-se por um período instrumento de lealdades e partidos políticos conflicantes, perdendo no processo muito de sua aueoridade moral. A sicuaçáo foi modificada, enrretanto, com o advento dos Iornbardos. Com Roma separada da sede do exarca imperial, que crn todo caso estava sem recursos militares suficientes para desafiar o domínio lombardo, O

bispo romano foi forçado a se rorriar o Iíder tanto espiritual como político dos

cristãos em Roma e circunvizinhança, mesmo enquanto mantinha, ou procurava manter, sua supervisáo

geral das igrejas no Ocidcnie.

Exatamente ncsse pon[o na história, chegou ao trono papal um homem que náo apenas aceitou os desafios de sua própria Cpoca, mas também forneceu às igrejas ocidenrais um corpo de escritos que ~iiuitofizeram para modelar o pensamento, piedade e ideal da cristandade medieval: Gregório I, corretamente cngnominado "Magno" e tradicionalmente coilsiderado um dos quatro "dourores da igreja" latinos. Gregório nasceu (ca. 540) em Roma, filho de uma proeminente família senarori-

Paiono III

U ESTADO IMPERIAL OA IGREJA

al. Alcançando a eminência civil ainda jovem, ele tornou-se prefeito (governador) de Roma antes de 573. Atraído para a vida monástica, entretanto, ele se desfez de sua vasta herança, dedicando-a ao cuidado dos pobres c à fundagáo de mosteiros - seis na Sicília e um em Roma, que ocupava o antigo palácio de sua família na colina Ctlia. Gregório entrou nesse mosteiro como um simples monge. Após três anos, contudo, o papa da época fez de Gregório um dos sete diáconos de Roma, responsável pela ad~ninistra~áo de uma regiáo da cidade. O papa Pelágio 11 (579-590) então enviouo a Constantinopla como seu embaixador residente (aporrisa~ixs),onde Gregório serviu com habilidade, embora, curiosamente, sem adquirir um conhecimento do grego. Por volta de 586, ele estava novamente em Roma, agora agindo como abade de seu mosteiro de Santo AndrC. Em 590, ele foi escolhido papa, aceitando a responsabilidade com grande relutância, em um momento quando uma praga estam devastando a cidade. Ele morreu catorze anos depois, em 12 de marco de 604.

Com um sentimento de dever e uma atençáo para detalhes próprios de um magisrrado romano, Gregório buscou cumprir as obrigacóes de seu ofício. Ele cumpriu-as, todavia, no espírito de um fiel cristáo que nos eventos de sua época percebia a evidência de que a era presente estava aproximando-se de seu fim e sabia que havia

sido chamado para cuidar do povo do Senhor em vista do juízo, que esrava chegando em breve para eles como também para ele. Consciente de sua dignidade e das prerrogativas de seu ofício, ele náo obstante coiisiderou-se como "servo dos servos de Deus", em cadeias de amor para admoestar, proteger, e assistir a todos que estivessem sob

sua responsabilidade. Foi em vista de sua missáo pastorai que ele imediatamente passou a reformar a administraçáo das vastas propriedades da igreja romana na Sicília, Itália e Provença Gzendas cuja renda na maioria das vezes era apropriada por bispos locais ou sovernantcs seculares. N o que se refere a Gregório, essas propriedades pertenciam de direito aos pobres, que deveriam ser alimeniados, vestidos e assistidos com a renda delas. Correspondeiitemente, ele indicou representantes pessoais para supervisionar 2

administracáo delas e dedicou muito de seu próprio tenipo, dando instru~óesprc-

~ i s a sobre s assuntos que variavam desde a plariraçáo de lavouras até a alimentaG~o de ;ado. Dessa maneira, ele recuperou parri a igreja romana a renda do "patrirnonio de d o Pedro" e foi capaz de prosseguir e111 sua política de sustencar os desriruídos, os ~i;cluídose oucras vitimas da "insegurança de ilossos tempos."

Ao mesmo tempo, Gregório achou-se compelido a lidar com os lombardos, os

HISTORII DA IGREJA CRISTi

254

quais no exato momento em que ele chegara ao trono papal estavam ameacando a cidade de Roma. Sem consultar o !governador imperial em Ravena, em 592 Gregório efetuou, através do pagamento de tributo, uma trégua com os duques lombardos de Espolero e Benevento e continuou, por todo seu ponrificado, a lidar com as autoridades lombardas nesse estilo independente, pressionando todo o tempo o relutante imperador Maurício a realizar uma trégua geral entre Constantinopla e o reino lombardo - uma resoluçáo que cle percebia ser necessária, náo apenas por causa da debilidade militar do império na Irália, mas também por causa da necessidade de paz para a Itália e seu povo. Da mesma maneira, sua preocupaçáo com o estado corrupto da igreja e seu ministério sob as políticas exploradoras dos governantes riierovíngios (francos) da Gália (ver IV:2), levou-o tanto a se corresponder com os reis merovíngios como advogar um matado de paz permanente entre eles e o imperador. Somente assim, julgava, poderia ser mantido o bem-escar da igreja e de seu povo. Gregcírio assim estabeleceu-se, na busca do cumprimento de suas preocupaçóes pastorais, como um governante virtualmente independente na Itália central e o principal benfeitor do povo comum da Itália. Suas políricas também forneceram um precedente para a decisáo de seus sucessores do oitavo século para renuilciarem k dependência ao império oriental e entrarem em alianp com uma monarquia franca reconstituída. Nem estes empreendimenros políticos nem sua preocupaçáo com a administra-

çiáo das propriedades da igreja romana exauriram as energias de Gregório. Foi ele quem,

Joáo, o Jejuador, patriarca de Constantinopla (582-595), começou a

utiIizar o título "parriarca ecurnfnico", protestou em defcsa tanto do sistema dos cinco patriarcados independentes como das prerrogativas de sua própria sé. Em sua perspectiva, náo havia nenhum bispo que pudesse reivindicar tal título. Novamente, foi Gregório quem, ao saber do casamento do rei saxáo Etelberto de Kent com uma princesa cristá e católica, prontamente despachou missionários para a Inglaterra (ver

IV: I), ganhando assim a Inglaterra não apenas para o cristianismo mas tambCm para a fidelidade ao papado e para seu próprio projeto de uma igreja reformada por meio

da purificaçáo de seu ministério. Nada, na realidade, estava mais perto do c o n ~ á odc Gregório do que a regulamenra~áoc reforma do ofício rninisrerial, a náo ser o aumento e melhoria das instituiçóes monásticas. Naquilo que talvez tenha sido sua maior - e certamente uma de suas mais influentes - obra, a Regi-a Pdsmrdl, o papa expressou seu ideal elevado do bispo cristáo como pastor de almas. Esta obra, traduzida para o grego antes da morte

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PIAIOIIII

O kPIADD IMPERIAL DA IliIIEJR

275

de Gregório e em angio-saxôilico pelo rei Alfredo, o Grande, na século nono, tornou-se, no Ocidente medieval, o traramento padráo de seu rema. A extensa correspondência de Gregório (da qual restam cerca de 850 cartas) mosrra como ele tornou suas idéias em prática quando dirigia os negócios das igrejas itaiianas imediammente sob sua autoridade. Ele náo limitou seu inreresse, todavia, apenas às igrejas da Itália.

Ao limite que a condiçáo das comunicaçóes permitia, Crtgório fez sua autoridade sentida em correspondência com os bispos metropolitanos em outros setores do

Ocidente - Espanka (onde o rei visigodo, Recaredo, renunciou ao arianismo em

5 S 7 ) , Gália (oride ele reest-dbeleceu uni vicariato papal eiri Arlesj, Áhica e ar&mesmo na Ilíria.

Se a Regm Paxtorui foi a contribuiçáo de Gregório à compreensáo ocidental do ofício pastoral, sua Moralem]b (escrita, pelo menos em forma preliminar, enquanto ele residia em Constantinopla) foi seu legado a espiritualidade monástica. Nesta obra, um tratamento alegórico de seu texto, ele lida não apenas com a vida ativa de moraIidade mas também com a vida contemplativa do reino vindouro de Deus, que para ele como para Agosrinho era a meta do esforço humano. De náo menor importância do que a Moral, entretanto, foram os quatro livros de Gregório sobre os Diú-

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logo$ sobw u Vidu e Milagres dos Pais Italiu~zox,uma obra que nos séculos após a morte de seu autor circulavam náo apenas enrre clérigos e monges mas também entre o Iaicato e assim muito fez para formar a picdade medieval popular. Este livro, repleto de estórias de sonhos, visiies e maravilhas que demonstram o poder da sanridade, é uma indicacão admirdvel da forma na qual a fé e vida cristá fizeram seu apelo em uma época de viol9ncia, deslocaciio e declínio cultural. Ele também contém digressóes teológicas nas quais, quando Gregório na realidade interpre~ae funde sua heranqa teológica agosriniana com a fé prárica de sua tradição romana, podem ser discernidas os contornos da piedade e do pensamento medieval posterior. Pode haver pouca dúvida que o pensamento teológico de Gregório revela as 1Emi[ações impostas por sua siruaçáo cultural e histhrica. Pot um lado, seus recursos e equipamento eram insuficientes. Ele pouco conhecia as obras de seus predecessores, ranto gregos como latinos, fora os ensinos de Agostinho (cujos escriros elr havia diligentemente resumido em um momento de sua vida). Por outr-o lado, as circunsrancias dr sua época forneciam pouco encorajamento para grandes empreendimenros especulativos ou críticos. A preocupação de Gregório era com o formato prático da vida cristá e do caminho do ser humano para a nova era do reino de Deus, cuja luz

L 56

HISTORIA DA IGREJA CRISTR

mesino em seus dias estava comecando a manifestar-se. Seu pensamento portanto voltou-se para os remas do pecado, juízo e o sacrificio expiatório de Cristo; e nesses tópicos ele desenvoiveu as conclusóes de Agostinho (senáo as idéias c pcrcepçóes nas quais essas conclusfies estavam enraizadas) de uma maneira essencialmente consoan[c conl a posiqao do síriodo de Orange (ver 1lT;lS). A raça humana está algemada

pelo pecado de Xdáo, coino C evidenciado pelo fato de que coda pessoa é concebida por meio da concupisc?ncia. O indivíduo C resgatado dessa condiçáo pela obra de Cristo, cujos benefícios sáo conferidos no batismo por meio do perdáo dc pecados e do dom do Espírito Santo. Não obstante, deve ser feira satisfaçáo pelos pecados corneridos depois do batismo: nenhum p a d o pode prosseguir sem uma expiaçáo. Os meios essenciais de satishqáo sáo as boas obras realizadas c111 amor, que sáo pos-

sibilitadas

ela g r a p prevenience

de Deus e pela coopera~joda vontade iiumana

com aquela graca. Tal satisfacáo é uni dos tres momentos essenciais de poe~zitfntia (arrependimento, ~enitência),sendo os outros confissáo (reconhecimento de pecado) e contricáo. O pecador que busca reconciliacão com Deus arravés de Cristo C ademais assistido ~ c l eucaristia, a que possui poder expiatório porque nela os beneficios da auto-oferta de Cristo a Deus são aplicados a rodos seres humanos, canto morcos como os vivos.

H;ítambém

cis

o auxílio dos sanros mártires, cujas oraçhes sáo

ouvidas por Dcus. Os ~ e c a d o selos quais náo foi feira satisfaçáo tiesta vida presente seráo purgados nas chamas do purgatório após a morte. Esra idéia da purgaçáo de pecado aphs a morte, táo central na piedade mcdieval posterior, náo foi ino~raçáode Gregório. Cipriano e Agostinho a haviam considerado. Para Cesrírio de Arles isso era um fato certo. Gregório, portanto, ao propor a doutrina do purgatório como iim elcmcnto essencial da f6, estava simplesmente tomando seu lugar em uma tradicáo que se desenrolava e que tinha suas raízes nas antigas discussóes cristás sobre a possibilidade e necessidade de um "segundo arrcpendirnento" (ver 11:1 5 ) . Gregório, cntáo, foi uin teólogo de pouca originalidade. Suas idéias, 1150obstante, foram cruciais em cada ponro para o formara do pensamenro e das instiruiçóes medievais. Nesse aspecto, ele se posiciona ao lado de outros dc sua época que transmiriram, embora de uma forma limirada e restrita, a sabedoria da igreja antiga para as igrejas do Ocidenrc latino medieval. Encre estes deve ser mencionado náo apenas Cassiodoro e Bobçio (cujas traduçóes de Aristóteles esiimuiarain os primórdios da filosofia medieval), mas também Isidoro de Sevilha (ca. 560-636), um quase exato

~ r ~ i o aIIIo

O E S I A 0 0 IMPERIAL DA IGREJA

25;

contemporâneo de Gregório. O Livro dar Seenten~as,de Isidoro - breves declarações doutrinárias - foi o livro-texto da igreja ocidental acé o século doze. Sua obra irititulada

Origens ou Etirnologir*.s abrangia o âmbito quase completo dos conhecin~entosda época, ranto eclesiásticos como seculares, [ornando-se para a Idade média uma das principais fontes de iilformacáo a respeico da Antiguidade. Não obsrante, Gregório Magno se projeta como alguém cuja obra formacou não simplesmente as idéias mas rarnbim a vida e as instituiqões da igreja em uma época de grandes problemas e portanto contribuiu em muito para assegurar sua sobrevivência como uma forca significativa no novo mundo bárbaro. N30 sem justiga Gresório foi descrito para a posteridade como "cônsul de Deus."

Periodo IV A Idade Média e o Encerramento da Controvérsia da Investidura

Capítulo 1

Missões nas Ilhas Britânicas Náo há nenhuma indicação mais marcante da vitalidade das igrejas ocidentais durance os sécuios, quando a autoridade romana estava sendo substituída pela dos reinos bárbaros, do que a força e persistência dos esforços feitos para cristianizar as tribos pagãs que haviam ocupado territórios anteriormente romanos ou territórios imediatamente adjuntos às antigas fronteiras do império. Em nenhum lugar esses esforços foram mais bem sucedidos do que nas ilhas britânicas, cuja conversáo final ao cristianismo romano e carólico redundou para o benefício não apenas do papado mas das igrejas continentais de modo geral.

O cristianisino havia existido na Grã-Bretanha mesmo antes da conversáo de Constantino. Parece ter havido no oeste da Inglaterra um cristianismo céltico, intimamente aparentado com aquele da Gáiia romana, desde um período razoavelmente cedo. Glastonbury, em particuIar, que - como sua IocaIizaçáo perto da desembocadura do rio Severno atesta - era um porto antigo engajado no comércio com a Gália e o Medirerrâneo, aparentemente era um primirivo local sagrado cristão. O cristianismo também existia nas cidades e vilas da ocupação romana. Três bispos bretóes de fala farina estiveram presentes ao concílio de Arles (314). Perto do final do quarto século, as tropas romanas foram gradualmente removidas da Grá-Bretanha (na maioria das vezes por usurpadores imperiais procurando fazer suas fortunas na Gália), com o resultado que os habitant-es da anriga província tiveram que se arranjar sozinhos para rechaçarem as incursóes dos saxóes pagáos na costa oriental da Inglaterra e, no norte, a pressão dos pictos da Escócia. Diferentemente d a Gália e da Espanha, a Grã-Bretanha nunca havia sido completamen[e

PERIO~B IY

A IDADE MEDIA E U ENCERAMEFITO DA EONiRUYERSIA DA INVESTIDURA

259

romanizada, e a partida dos oficiais e das tropas imperiais significou que, no decorrer do quinto século, o país gradualmente reverteu para Litiia organizaçán tribal e as cidades foram lentamente despovoadas, mesmo quando as incursóes dos saxões, anglos e jutos se tornaram em invasão tord e ocupação.

O cristianismo, entretanto, sobreviveu. No livro Histúu'riu Eclesirística da NQ@U Inglesa, de Beda, o Venerável, encorirra~nosque o bispo Germano de Auxerre fez duas visitas à Grã-Bretanha a pedido de seus colegas dali (429 e 444-4451, A primeira dessas teve como objetivo uma acáo contra a propagaçáo do pelagianismo, ernbciIa, como veio a acontecer, ele também fora convocado, como um antigo dux (i.e., general) na Gália, a liderar uma força bretá contra uma in~rasáoconjunta de saxões e pictos no norte. Na época de sua segunda visita, os adversários da Grá-Breranha provenientes do outro lado do niar do Norte haviam começado a ocupar as costas orienta1 e meridional da Grá-Bretanha. No decorrer do século seguinte, os bretóes, e com eles o cristianismo, foram expulsos mais e mais para o oeste, ate evenrualmentc serem confinados a Cornwall, Gales e, no norte, Strathclyde. Mesmo na época de Gerniano, entretanto, os laborcs missionários que iriam resultar na cor-iversáo das ilhas já estavam a caminho. Ncssa obra, n nome mais notável

é o de Patrício (ca. 389-ca. 461), "o apóstolo da Irlanda." Um bretáo cujo local de nascimento permanece tbpico de especulaqáo, Patrício era filho de um certo Calpúrnio, diácono cristáo e homem de categoria curiai em sua cidade nativa. Sequestrado por corsários irlandeses quando jovem e transformado cm escravo, o futuro missionário escapou depois de seis anos e chegou à Gália (raIvez apcís uma visita a sua casa na Grã-Bretanha). Pouco é conhecido de sua carreira nesse período, embora parece que eIe passou alg~imtempo como membro dafarnilin episcopal de Germano

de Arixerre. Em 43 1, o papa Celestino (422-432) enviou um certo Paládio para ser bispo para "os escoceses [i.e., irlandeses] que criam em Cristo", mas Paládio morreu dentro de um ano, e Patrício, agora ordenado bispo, foi enviado L Irlanda em seu lugar. Trabalhando no norte da ilha, em uma sociedade organizada de acordo com territórios tribais, Patricio parece ter conquistado conversas significantcs entre as realezas locais. Ele aparentemente estabeleceu bispados territoriais (mas sobre uma base tribal, uma vez que as "cidades" da sociedade galo-romana náo existiam na Irlanda) e estabeleceu sua própria sé em Armagh. Não há razão para duvidar de que Patrício inrroduziu alguma forma de vida asceta comunitária na Irlanda, mas foi somente após sua morte - e na realidade no

século seguinte - que as comunidades monásticas se tornaram os centros pastorais da igreja irlandesa. Este desenvolvimento pode ser datado de modo grosseiro a partir da fundacáo do mosteiro de Clo~iard,em Meath, por São Finiano (ca. 540), que foi rapidamente seguida por outras fundações tais como Bangor (uma palavra que significa simplesmente "mosteiro"), estabelecido no Ulster por Sáo Congall, e Moville, criaçáo do outro São Fjniano (m. 579). Os abades que governavam tais comunidades normalmente pertenciam às famílias reais de suas tribos e frequenrement.e também eram bispos. Dessa maneira, o episcopado territorial do império romano foi substituído por um episcopado monasticamente baseado, e essencialmente tribal. As comunidades monásticas se tornaram não apenas o foco da obra missionária e pasrorai mas tambtm centros de aprendizagem, das artes e da educacáo. De certa forma contemporâneo do florescimento do monasticismo irlandês, e possivelmenre mesmo uma fonte dele, houve um desenvolvimento paralelo do monasticismo em Gales.

A origem de tal movimento costumeiramerite é atribuída à obra de Santo Iltide (m. ca. 5 3 5 ) , o fundador do mosteiro posteriormente denominado Laniltide ("igreja de Iltide"), que pode ter estado localizado na ilha de Caldey. O sucessor de Iltide como ca. 560), fundador da abadia em líder do monasticismo galês foi São David (j. Menévia (presentemente de Sáo David) e o santo patrono de Gales. Mesmo antes desse crescimento do monasticismo irlandês e galês, entretanto, e na realidade durante os anos da missáo de Patrício à Irlanda, o cristianismo bretáo também se estendeu para o norte em direcáo à Escócia. O líder dessa missáo foi Sáo Niniano. Sobre ele, a Híjtória Eclesiá~ticade Beda, relata que ele era um bretáo nativo que havia sido instruido na fé em Roma. Ele era, como Patrício, bispo ( o que sugere

que já havia cristãos na área para a qual ele foi enviado). Niniano estabeleceu sua se2 em Whithorn (Candida Casa) e trabalhou no território ao norte da muralha de Adriano, onde sem dúvida havia tribos celtas parcialmente romanizadas e parcialmente cristianizadas.

A conversáo da Escócia propriamente dita, porém - ou seja, a área ao norte dos estuários do Llyde e d o Forth - foi obra de monásticos da Irlanda. Desde o seu inicio, o moriasticismo irlandês foi um movimento missionário expansivo. Nós já vimos (111:7) como, caminhando para o final do sexto século, Columbano, um rnonge da abadia de Bangor, em urna longa peregrii~ayáo,estabeleceu casas monásticas (que por sua vez se corliaram centros missionários) na Borgonlia, onde atualmente é a Suiça, e mesmo no norte da Itália. Semelhantemente, São Kiliano (m. ca. 689), de

ptiloeo i v

A IDADE MÉOIA E O ENCERAMENIO DA EONTRIIV~RSIADA INUESTIOURA

261

uma geração posterior, trabalhou na Francônia e Turíngia, estabelecendo a sé de Wurzburg. O primeiro e mais notável desses peregrinos inonásricos irlandeses, enIretanto, foi Columba (521-597). Um produco da abadia em Clonard e membro da família real dos O'Neill de Connaught, Columba esrabeleceu uma comunidade monástica na ilha de Iona, sob o patrocínio e proteçáo do rei de Dalríada (mais ou menos o atual Argyleshire), que era ele próprio, com seu povo, de origem irlandesa.

De Iona, Columba executou trabalho missionário entre os povos pictos da Caledônia, conquistando seus chefes para a nova fé e organizando a igreja lá nas mesmas bases monásiicas que ela possuía na Irlanda.

A obra missionária da comunidade de Iona continuou depois da morte de Columba, e no início do segundo terço do sétimo século ela foi estendida aos colonizadores anglo-saxóes pagáos do nordeste da Inglaterra. A oportunidade para esse desenvoivimenco foi a solicitação do rei Osvaldo da Bernícia (Nortúmbria), que durante sua juventude havia sido criado em exílio entre os escoceses e pictos da Caledônia cristá. Recuperando seu trono em 633, Osvaldo solicitou o auxílio de Iona para a cristianizaçáo de seu povo. A resposta foi a missáo de Santo Aidano (m.

651), que sob o patrocínio de Osvaldo estabeleceu um mosteiro na "Ilha Santa" de Lindisfarne (634),e dali, durante os reinados de Osvaldo (m. 641) e seu irmáo Oswy

(641-670), enraizou o cristianismo na Nortúmbria. Aidano também treinou um grupo de jovens para continuar sua obra, entre eles os irmãos Chad (m. 672),que por fim se tornou parte da missáo, iniciada em 654, ao reino de Mércia e esrabeleceu a sé de I,ichfield, e Cedd, que trabalhou entre os saxóes orientais, para os quais fora zonsagrado bispo em 654. Na época em que a missáo de Aidano e seus sucessores havia sido iniciada, uma missáo enviada pelo papa Gregório Magno já havia chegado no sudeste da Inglaterra 2

sc cstabelecido em Kent e Anglia Orienral. A iniciativa do papa foi calculada para

romar vantagem do casamento de Etelberto, rei de Kent e Bretwalda (rei supremo) Aos territcírios saxóes ao sul do Hu~ribcr,com uma princesa franca cristã, Berta. A xissáo originalmente consistiu de Agostinho, o prior do mosteiro de Santo A~ldré -m Roma, o próprio mosreiro de Gregório, e um pequeno grupo de monges. Che-

:ando em Kenc em 597, Agostinho - um missionário algo relutante, cujo zelo foi 2lantido cm grande parte por um fluxo de correspondência com o papa Gregório conseguiu converter Etelberto, que foi batizado na Páscoa de 601. De acordo com o ,'ano de Gregório, Agostinho deveria estabelecer uma sé metropolitana para si em

L62

HlSTOBlA DA IGREJA E R ~ X T Ã

Londres, com doze bispados sob sua jurisdiçáo. Ainda segundo o plano concebido pelo papa, Agostinho teria jurisdiqáo sobre as igrejas célticas do oeste e, conforme a oportunidade surgisse, estabeleceria uma segunda sé metropolitana em York (no reino de Deira) para o norte da Inglarerra. Estes planos entusiásticos do papa, contudo, náo foram tocalmente realizados. Agosrinho estabeleceu sua própria si náo em Londres mas em Cantuária, onde ele construiu uma igreja e, nas proximidades, um mosteiro. Em 604 ele já havia fundado bispados em Rochester (em Kent) e Londrcs (em Essex). Após sua morte (cm 604 ou 605), entretanto, e depois da morte do rci Etelberto ( G l G ) , uma reaçiáo pagã revelou a falta de profundidade das raízes que a igreja possuía fora de Kent. A missão enviada (625) sob Paulino para York e o reino

de Deira extinguiu-se em 632, quando Edwin de Deira foi morto em combare. Não foi senão até a segunda metade do sétimo século, portanto, e entáo em grande medi-

da por causa do ímpeto missionário oriundo de Ihdisfarne e de uma missáo papal independente para os saxóes ocidentais iniciada por um cei-to Birino (ca. 6351, que a Inglaterra foi conquistada substancialrnence para o cristianismo. Mesmo naquele rnomenro, contudo,

restava

um

problema significativo. Havia

permanente atrito entre os cristáos do norte e do oeste de tradicáo cdirica e irlandesa por um lado c, pelo outro, os novos cristáos saxóes do sul, cujas igrejas náo apenas

:

forani organizadas segundo o padrão continental sob bispos rerritoriais mas também

i

eram conscientemente Ieais a Roma e ao papado. Em parte, esse atrito tinha suas origens na lutri militar mais antiga, e muito Ionga, entre cristáos bretóes e invasores pagáos. Para os brecóes do Ocidente, náo era fácil co~iceberos anglos e saxóes, seus inimigos tradicionais, como companheiros cristáos. Mas o conflito também possuía raízes eclesiásticas. Bastance separados das questócs óbvias e definíveis, como uma diferença sobre a data da páscoa, o caráter e organiza550 peculiares do cristianismo célrico eram diferentes daquele da missáo romana. Felizmente para o futuro do cristianismo nas ilhas britânicas, esse atrito foi fonte de grande irritaçáo para o rei Oswy da Nortúrnbria. Correspondentemente, cle convocou uma conferência ou concílio pata resolver a questão para seu reino. O concílio reuniu-se em 664, em Whitby, no litoral do mar do Norte, onde recentemente (659) havia sido estabelecido sob a orientaçáo da nobre abadessa Sanra Hilda (m. 680) um magnífico mosreiro duplo, com casas para homens e casas para mulheres. Wilfrido, abade de Ripon e mais tarde bispo de York (ele próprio um produto da comunidade céltica em Lindisfarne), defendeu o caso pela lealdade a Roma, enquanto Colman, abade de Lindisfarne, advo-

. . .. .... .

-

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PERIOIO IY

h IOABE MEDIA E 0 ENEERhMENTil DA CI1NIROYfRSIA DA INYESTIDUAA

263

gou a tradiçáo céltica. A questão foi resolvida quando o rei Oswy ouviu que o bispo de Roma era o sucessor e representante do apóstolo Pedro, a quem o próprio Senhor

havia dado as chaves do reino dos céus.' A decisão que resultou dessa descoberta eventualmente trouxe a totalidade da Inglaterra sob a obediência romana, e o cristianismo inglês eventualmente provou ser um aliado principal do papado tanto no estabelecimento como na reforma das igrejas no continente europeu.

O vigor e disciplina desse novo cristianismo célrico-inglês deveu muito à feliz circunsrância que, cm 668, o papa Vitalino indicou Teodoro (ca. 602-690), nativo deTarso, na Ásia Menor, como arcebispo de Cantuária - o primeiro ocupante daquela sé cuja autoridade era reconhecida por toda a Ingiarerra. Teodoro comecou sua incumbência conduzindo visitaçáo sistemática a todas as igrejas sob sua jurisdi~áo. Como resultado dessas viagens de inspecáo, ele se dispôs a reorganizar as dioceses mais antigas e a estabelecer novas dioceses. Ele presidiu o sínodo de Hertford (673), que promulgou leis básicas para o governo das igrejas e constituiu-as em um corpo nacional em uma época onde a soberania política ainda estava dividida. Foi sua política que encorajou a adoção da prática monástica céltica de confissão privada e absolviçáo, que, seguindo o cosrume irlandês, d e impôs sobre pessoas leigas náomonásticas como uma obrigaGáo anual. A capacidade pastoral e organizacional de Teodoro foi revelada acima de tudo no fato de que ele náo favoreceu nem os saxóes nem os celtas, mas reconciliou todos em um único corpo no

as duas rradiçóes se

complementavam e alimentavam uma à outra. O s frutos da decisáo do rei Osmy e da habilidade de Teodoro como governante logo se manifesraram na vida das igrejas inglesas. Elas tinham uma reputaçáo de Iealdade à sé dc Roma e aos padróes que estabeleceram para doutrina e disciplina: um fato atestado pela freqüência de peregrinos anglo-saxóes aos santuários dos apóstolos Pedro e Paulo em Roma, como também pela introduqáo da Regra de São Bento na vida monástica inglesa na época de Teodoro e seus sucessores imediatos. Ao mesmo tempo, o amor pelo estudo que havia caracterizado a tradiçáo irlandesa foi preservado e desenvolvido em uma série de escolas monásticas, das quais talvez a mais brilhante tenha sido a do mosteiro conjunto de Wearmouth elarrow naNortúmbria.

Lá Beda, o Venerável (672-735),estudou e escreveu nos campos da cronologia, grarnstica, exegese bíblica e história. Lembrado acima de tudo por sua História Ecleszás-

ticn dn Naido Iiiglcsa, ele e seus contemporiIneor provocaram um pcqucno

renascimenro de erudi~áoque iria, no final, produzir frurus no ienaçimenro carolingio do século nove no continente.

Capítulo 2

O Cristiaiiismo e o Reino Franco A conversáo de Clóvis ao cristianismo católico em 496 (ver ITI:5) foi um evento decisivo tanto para o futuro reiigioso como político da Europa continental. Sob a lideranca de Clóvis e de seus filhos, os francos conquisraram os antigos terri~órios romanos na Gália c na Aiemanha e criaram o que veio a ser chamado de repuin

F~a!ncorum("rcino dos francos"). Deslocando-se de suas cerras originais entre os rios Reno e Somme, eles primeiramente invadiram e ocuparam a regiáo anreriormente governada pelo dtcc romano Siágrio, aproximadamente a área entre o Somme e o Loire. Depois Clóvis liderou seus seguidores contra os alamanos, cujo reino abarcava o sul e o oeste do Rcno. Finalmente, ele atravessou o Loire na Aquitânia, onde, em Vouillé (Vogladensis) em 507, derrotou os visigodos e assumiu o controle do sudoeste da Gáiia art a linha dos Pirineus. O s sucessores imediatos de Clóvis continuaram a expansão da hegemonia franca. Eles incorporaram a Turingia aos seus territórios e eventualmente, após 532, o reino da Burgúndia, que controlava o vale do Ródano e o oesce da Suiça. Na metade do sexto século, entáo, a dinastia franca ou "merovíngia" dominava a totalidade do que havia sido território romano na Gália e Alemanha. Este domínio era frequentemente dividido entre diversos reis, pois o costume franco ditava que a propriedade d o pai fosse dividida entre todos os seus filhos vivos. Parcialmer-ite em conscquência desse fato, surgiram divisões regionais dentro do império, que tinhain caráter quase político, quase étnico. A primeira destas, Austrásia, englobava a pátria franca ao redor do baixo Reno e cambém a Turíngia e os antigos territórios dos alamanos. A segunda, chamada Nêuscria, tinha seu centro em Paris, onde Clóvis havia feito sua capital, e se estendia ao sul até o Loire e ao norte até o Somme. D e

1 I

importância central menor na histbria política dos francos esravam as regiões meridionais da Aquitânia e Rurgúndia. Apesar destas divisões, entretanto, o reino franco era entendido como sendo um único patrimônio, e de fato, nos últimos anos de Lotaro I (m. 56lj, filho de Clóvis, e durante grande parte do reinado de Dagoberto

1 (623-639), ele teve um único soberano.

Os habitanres galo-romaiios desras áreas náo ficaram descontentes com seus novos conquistadores. Como eles mesmos eram católicos, ficaram felizes em Ter um soberario católico; e de qualquer modo, os imperadores romanos em Coiistanti~io~la deram aos líderes francos reconhecimenro, assistência financeira ocasional c, no caso do próprio Clbvis, o tírulo, ca~egoriae insígnia de cbnsul. Este gesro náo foi um mero símbolo. Clóvis e seus sucessores assumiram o que restava da a d m i n i ~ t r a ~ á o financeira e civil romana na Gália. O r e p z m Fi-dncorum era, e em cerro sentido permaneceu, o representante formal da autoridade e tradição romana. Os francos, adeniais, diferrntemence de seus predecessores, os

náo se mantiveram como

uma casta governante separada, mas se misturaram e se casaram com os povos que eles conquistaram, criando assim o f~ndamenrode iima c~ilr~ira misra para a qnal o latirri vulgar permaneceu, na maioria das antigas províncias roirianas, a língua comum. Eni sua próliria maneira, também, eles fomenraram a disseminação do cristi-

anismo. Valendo-se iiiiciaimence da vitalidade e da liderança cicrical das igrejas gaioromanas n o sul e no ocsre de seus rerrirários, eles apoiaram miss6cs para aquelas áreas do norre e do Icstc onde o paganismo persistia e onde igrejas cristás previamcnrr estabelecidas rinllam sido expulsas ou grandenirnte enfraquecidas pelas rnigracóes

Dárbaras. EIes encorajaram ainda mais o movimento mondsrico, o qual - talvez espe:ialmenre depois da missáo de Culumbano (ver III:7) - rendeu a se rnrnar, como

>;i\.ia sido na Grá-Bretanha, o principal veículo para a disserninacáo do cristianismo. Isto não quer dizer, entreranto, que igreja e soçiedaclc 1130 continuaran, nesse

ri'ino merovíngio, a mostrar sinais de declínio e mesmo desintegracão. A decadência i3S

cidades antigas, como também do çoinércio e da cornunica~áo,coririnuou crn

?asso acelerado. 0 s cencros dc vida verdadeiros tornaram-se propriedadcs rurais rizendas que reiitavani ser, e na prcírics eram, auto-suficienres no que se refere às xccessidades da vida cotidiana. Governadas direta ou indiretamente por um senhor GJS

poderia ser algum magnata ou o próprio rei, tais fazendas proporcionavanl scgu-

:inça tanto para o proprietário como para seus ç ~ r \ ~ ou o s locatários. Ao mesmo temi':).

esse sisteniti senhoria1 encorajava a desccnrrali~a~áo de autaridade e garantia que

HISTORIII DA IGREJA CRISTi

266

poder, assim como riqueza, acompanhariam a posse da terra, uma vez que era a fazenda que produzia nLo apenas ayimento e vestimenta mas também os homens e equipamentos necessários para a guerra quase permanente que marcou a sociedade franca.

Ià1 descentralizaçáo foi encorajada ainda mais pelo fato de que os francos, como todos os povos germânicos, não concebiam o estado como algo que, em suas leis e estruturas, durava independeiiternente de pessoas individuais. Para eles, a ordem política era uma questáo de lealdade pessoal de guerreiros para com seu líder; uma lealdade que tradicionalmente dependia da habilidade do rei para recompensar seus seguidores com os espólios de guerras vitoriosas. Essa comprcensáo da natureza dos laqos políticos teve aigumas conseqiiências no reino merovíngio. Primeiramente, isto significava que os recursos econômicos do "estado" eram identificados como propriedade pessoal ou riqueza do rei - uma situagáo na qual a própria nocão de propriedade "pública", c portanto de taxacáo, era totalmente inconcebível. Isso também significou, portanto, que para assegurar lealdade, os reis merovíngios - uma vez que as oportunidades para novas conquistas se exauriram - tiveram que "beneficiar" seus seguidores com E~zendasde seu domínio real. Esta prática teve o efeito inevitável de enfraquecer o monarca, ainda que tais benefícios fossem tecnicamente garantidos apenas durante o tempo de vida do recipiente. Em tal sociedade - violenta, descentralizada, insegura - as estruturas e maneiras da igreja estavam destinadas a ser afetadas de alguma forma. Um dos desenvolvimentos mais importante, talvez, e conectado com o surgimento do sistema senhorial, foi o aparecimento rnuiro mais frequente de igrejas "proprietárias": i.e., edifícios eclesiásticos construídos ein uma fazenda às custas privadas de um senhor e sustentados por ele com uma dotaçáo para os servicos de um sacerdote. Nesse desenvolvimento, podem ser viscos os inícios d o sistcma paroquial posterior, assim como de muitos debates posteriores sobre o conrrole laico de i n d i ~ a ~ ó clericais. es Os bispos do novo reino continuaram seu hábito antigo de se reunir em concílio para regulamentarem assuntos comuns, embora cais concílios náo testemunhem nem freqüência nem regularidade. Os bispos reagiram a questóes externas como a luta sobre osTrês Capítulos (ver 111:10) e a controvérsia monotelita (ver III: 1I). Crescentemente, porém, as igrejas francas parecem ter-se tornado isoladas, até mesmo da liderança do p p a d o , embora o respeito aos sucessores de Pedro e a prática da peregrinaçáo às tumbas dos apósrolos em Roma náo tenham acabado de forma alguma.

Nos assuntos do reino franco em si, entreranto, a igreja desempenhou um papel cencral e essencial. Para os reis, magnatas, e campesinato igualmente, a proteçáo e ajuda de Deus e dos sancos eram essenciais para a ordem e a jusriqa em um mundo desordenado. O bispo cristão, ademais., ocupava um lugar especial. Defendendo simultaneamente as tradi5óes da ordem romana antiga e as propensóes singulares do

Deus cristáo por jusriya e misericórdia, o bispo era aiternarivarnence magnata político, homem santo, e profeta. Alfabetizaçâo e erndiqáo estavam em grande medida confhados ao clero, pois eram apenas nas casas monásticas, e nos lares episcopais onde os jovens eram educados para o servico como clérigos, que exís~iaqualquer coisa sernelllante a escolas. Progressivamente, portantci, as igrejas e comunidades monásticas eram recompensadas com concessáo de terras pelos ser\'$os inconresrá-

veis que presravam. Isto significou, todavia, conforme o Tempo passava, que os bispos dispunham de recursos que poderiam ser de grande uso para os reis merovingios. Estes, em decorrência, deixaram de lado o anrigo costume da elciçáo dos bispos pelo povo e pelo clero e assumiram para si o direito da iiidicaçáo de bispos, urilizando esse direito, na reaIidade, como uma marieira de conferir benefícios para servidores Ieais. Com frequ2ncia, um govcrnante iria além e permitiria que uma sé permanecesse vaga enquailto ele se apropriava dos I-endimentos dela. Tais práticas - uma expressso natiiral senão inevitável da época - foram uma fonte de pavor para sucessivos papas; mas do tempo de Gregório Magno em diante, os bispos de Roma náo eiveram suces50

em seus esfornoclssmo,portanto, tinha raízes tia rradiqáo criscá e pode ser enrendido, pelo :?-os ds uin ponto de vista, como uma reaqáo religiosamente motivada a uma di piedade popular dominante. Os hisroriadorcs têm ressaltado, ademais, que --' -,, - . - . A

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1.:; .\:;.rior do qual os imperadores isáurios - e o grosso de seus exércitos

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HISTÓRIA DA IGREJA CRISTI

2 74

- eram provenientes, eram áreas onde atitudes iconoclastas podem ter sido esrimula-

das pela presença de judeus e muculmanos, para quem a veneraçáo de imagens era simples idolatria. Infelizmente, quase náo há dados para apoiar esta hipótese, ainda que ela seja piausível. Pode ser, também, que o movimento tenha sido influenciado por correntes de pensamento gnósticas ou maniqueístas; os icoi~oclastasparecem às vezes ter estado à beira de uma espécie de dualismo, opondo "adoraçao em espírito e em verdade" ao uso de representações materiais de Crisco e dos santos. Os monofisitas, também, evidentemente tendiam para o ponto de vista iconoclasta, uma vez que para eles qualquer retrato de Cristo era na realidade uma rentativa, simultaneamente impossível e idólatra, de retrarar a segunda pessoa da Trindade. Tais atitudes e motivaçóes religiosas, entretanto, têm sido rninimizadas por alguns inrérpretes das políticas iconoclastas dos imperadores isáurios. Muitos eruditos têm visto no iconoclasmo uma atitude política disfarçada. Como evidência para esse ponto de visca, eles apontam para o faro de que as principais vítimas do iconoclasmo eram as institui~óesmonásticas, cujo número, tamanho e indeperidência faziam delas um fardo na vida do estado e um obstáculo para a autoridade imperial absolura. Ao mesmo tempo, é evidente que os iconoclastas defendiam uma visão do papel do imperador em uma sociedade cristã que fazia deie a autoridade religiosa suprema, e um elemento na polêmica dos defensores de imagens era um protesro contra a ii~terferência indevida do imperador em assuntos que deveriam ficar reservados aos líderes eclesiásticos. Certamente, esse era um elemento proeminente na atitude do papa Gregório 11, para quem o iconoclasmo, como temos visto, represenrava um duplo

mal: uma nega~áoteológica do ingresso de Deus na ordem natural e histórica, e uma falsa percepgo da autoridade do chefe-de-estado em questões religiosas.

Capítulo 4 -~

-

Os Francos e o Papado A oposifáo de Gregório II às políticas iconoclastas de Leão 111 e Constaritino V foi concinuada por seus sucessores na sé romana, com conseqüências que dificilmenre alguém poderia prever. Foi o destino de Gregório 111 (731-741), em um concílio

reunido em Roma apenas oito meses após sua asce~isão,proclamar a excomunh,Lo de qualquer que profanasse imagens sagradas. Esta atitude, uma reaçáo ao concílio de

730

por Leáo 111, produziu uma resposta imperial imediata. O impera-

dor confiscou as propriedades da igreja romana no sul da Itália e na Sicília e removeu da jurisdição eclesiástica papal as igrejas daquelas regiões, como também dos Bálcás. Contudo, ele não poderia ir, e não foi, além disso. Náo foi feira nenhuma tentativa para impor políticas iconoclastas sobre a própria igreja de Roma, presumivelmente porque Leáo tinha sido convencido por eventos anteriores que ele náo poderia impor sua vontade conrra os papas nos territórios bizantinos na Itália central. Assim, as regióes de Rairená, a Pentápolis, e Roma foram deixadas ria prática a seus próprios dispositivos, embora os papas concinuassern, até 772, a reconhecer formalmente a soberania dos imperadores orientais.

A independência desses territórios, entreranto, era esseilcial para o papado. Somente se garanrissem sua integridade os bispos de R o m poderiam evirar a possibilidade de trocar a dominação do imperador em Constancinopla pela dos reis lombardos

739, aprís alguns anos jogando com o balanço de poder entre os duques lombardos ao sul e o reino lonibardo ao norte, Gregório I11 buscou o auxílio de CarIos hlartelo contra seus inimigos. Ademais, por v o l r ~da em Pavia. Coilseqtienremence, em

rnetade do século, o secretariado papal produziu uma das mais influenres falsifica-

çórs na história: a assim chamada Doaç2o de Cunstmtino. Este docuinento, utilizando a lenda bem conhecida de que o papa Silvescre havia curado o imperador Conscantino de lepra,' pretendia ser uma carta de agradecimento do próprio imperador. Ele atribuía aos bispos de Roma jurisdição sobre os quacro patriarcados de Antioquia, Aícxandria, Consrantinopla e Jerusalém e - ainda mais do que isso - decretava que "a sagrada Sé do bem-avenrurado Pedro deve ser gloriosamente exaltada sobre todo o nosso império e trono terreno."' De interesse mais específico, alegavase que Constantino havia Icgado aos papas "todas as províncias, palácios e distritos da cidade dc Roma e da Itália e das regióes do Ocidente."' Em outras palavras, esse documento (cujo coiiteúdo não fazia mais d o que declarar o que a corte -papal da

época honestamente acreditava ser verdade) não apenas reiterava a reivindicação pa-

pal tradicional a uma autoridade universai na igreja e a crenGa p p a l tradicional de \ i r Gregório deTours, Histúrzu do^ Praizcos 2.3 1, para uma alusáo à est ~ L

Habsburgo (1 273-1 291), que prontamente renovou as concessões que haviam sido

r.i

feitas ao papado anteriormente por Oto IV e Frederico 11.

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A situacão era bastante diferente na França. O poder da monarquia dos Capetos vinha crescendo rapidamente, e em Filipe

[V,conhecido como

"o Belo", a França

encontrou um rei inescrupuloso, obstinado e imbuido dos mais arrogantes conceitos

de autoridade real. O papado era então ocupado por Bonifácio VI11 (1294-1303), um papa que náo perdia para ninguém em suas aspiraçóes à autoridade suprema nos assuntos temporais. Em 1295 a França e sua aliada, a Escócia, entraram em guerra com a Inglaterra, o que obrigou o rei inglês, Eduardo 1 (1272-1307), a buscar o apoio de todos os seus súditos convidando os representantes dos Comuns a tomarem assento no Parlamento, concedendo-lhes assim uma parcela. permanente nos conselhos nacionais ingleses. A guerra também induziu os reis francês e inglês a taxarem seus cleros para poderem pagar suas despesas. Os clérigos reclamaram ao papa Bonifácio, que em 1296 publicou a bula Clericis laicos, lançando a excomunháo sobre rodos que exigissem ou pagassem tais tributos sobre a propriedade clerical sem

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A IDAOE MEDIA POSTERIOR

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permissáo papal. Filipe replicou proibindo a saída de dinheiro da Franca, golpeando assim as rendas do papa e dos banqueiros italianos. Estes úlcimos convenceram Bonifácio a modificar sua posição de forma que o cIero pudesse fazer coi~tribuiçóes voluntárias. Ele chegou até mesmo a permitir que, em casos de necessidade urgente, o rei poderia criar um imposto. Foi uma vitória da realeza. Uma paz relativa reinou entre Filipe e Bonifácio por alguns anos, mas em 1301 a luta recornefou. Filipe acusou de alta traicáo e mandou prender a Bernardo Saisset, bispo de Pamiers, a quem o papa havia recentemente enviado à coroa francesa como núncio papal. Bonifácio ordenou a Iibertaçáo de Bernardo e intimou os bispos franceses, e por fim o próprio rei, a comparecerem a Roma. Filipe replicou convocando a primeira reuniáo conjunta do clero, nobreza e comuns na Franca, denominada Estados Gerais. Em 1302 esse corpo apoiou o rei em sua postura de resistência. O papa respondeu com a famosa bula Unanz sanctam, o ponto culminante das reivindicações papais ?L autoridade jurisdicional suprema sobre os poderes civis. Ela afirmava que os poderes temporais estáo sujeitos à autoridade espiritual, a qual, na pessoa do papa, somente pode ser julgada por Deus. Ela declarava, seguindo a opiniáo de Tomás de Aquino, "que é absolutamente necessário para a salvagáo de cada criatura humana que ela esteja sujeita ao pontífice romano"' - uma afirmacão cujo exato significado tem gerado muita discussão. Filipe respondeu com uma nova assembléia, na qual o papa foi acusado de uma série absurda de crimes, envolvendo heresia e depravaçáo mord, e foi publicado um apelo por um concílio geral d i a n ~ edo qual o papa pudesse ser julgado. Filipe estava determinado a não deixar que isso permanecesse uma mera ameaça. Portanto ele enviou para a Irália Guilherme de Nogaret, seu vice-chanceler, que era um jurista hábil e que havia feito uma aliança com os Sciarra Colonna, uma antiga família inimiga de Bonifácio. Juntos eles reuniram uma força militar e aprisionaram Bonifácio em Anagni, na hora em que ele iria anunciar a excomunháo de Filipe, em 1303. O corajoso Bonifácio náo faria concessáo alguma. Seus amigos logo o libertaram, mas um mês mais tarde ele faleceu. Estes eventos representaram um rude golpe nas reivindicações temporais do papado. Náo porque os partidários de Fiiipe houvessem, ainda que por pouco tempo, aprisionado o papa. Surgira uma nova força - o sentimento nacional - e para ela apelou o rei, rendo obtido êxito, pois contra ela as armas espirituais do papado fo'H. Retrensoii, ed., D O C K ~ dz ~ &qa ~ ~ OCrirtá, J 3" çd. (São Paulo, 1998), p. 194.

43 6

R~ITÓRI

I A IGREJA C R I X T ~

ram de pouca serventia. A realização permanente da esperança papal de governar os

me::

negócios temporais mostrou-se impossível.

çáo :

Mas a seguir viriam coisas piores ao papado. Depois da morte do sucessor de

pro--

Bonifácio, o excelente Bento XT (1303-1304), os cardeais escolheram um francês, Bertrando de Got, que assumiu o nome de CJemente V (1305-1314). Homem de caráter fraco, pouca experiência e saúde debilitada, Clemente não foi páreo para o implacivel Filipe. Eventualmente ele declarou Filipe inocente do ataque sobre

Capi

Bonifácio VIII, cancelou os interditos e excomunhóes e modificou a bula Unam

-

sanctam para agradar o rei. Filipe também forcou o infeliz papa a participar na cruel destruiçáo dos Templários (ver V:l). Em 1309, ademais, após quatro anos de perambulaçáo pelo sul da Franca, Clemente V decidiu residir ern Avinháo - às margens do Rbdano. Avinháo náo pertencia ao reino francês, mas na avaliaçáo popular a acáo de Clemente equivaleu ao estabelecimento do papado na França. A situaçáo complicada cta política italiana teve, sem dúvida, algo a ver com essa transferência, embora não tenha sido senáo no pontificado de Bento XII (1334-1342) que houve uma clara sinalização de que os papas pretendiam permanecer em Avinháo. E assim o papado permaneceu ali de 1309 até 1377, um período de tempo táo semelhance àquele do exílio tradicional dos judeus, que acabou por receber o nome de "cativeiro babilônico" - uma designação empregada pela primeira vez pelo poeta italiano Petrarca (ver V: 15), que partilhava da avaliação concernporânea de que o papado estava encáo cativo da coroa francesa. O tormentoso pontificado de Clemente V também é interessante por assinalar a conclusáo das coleções medievais oficiais de direito canônico. Este conjunto de legislação foi o produto da história da igreja desde os prrmeiros conciIios, abarcando suas decisóes como também os decretos dos sínodos e dos papas. A Idade Média havia vlsto muitas coleçóes, das quais a mais famosa fora o assim chamado Decretum de Graciano de Bolonha, realizada por volta de 1140 (ver V:5). O papa Gregório IX determinara a formação de uma colecáo oficial, em 1234, incluindo os decretos recentes, atualizando-a até a sua época. Bonifácio VI11 publicara uma atudizaqao semelhante em 1298, e Clemente V aumentou-a em 1314, embora sua obra não tenha sido publicada senáo em 1317, sob seu sucessor, Joáo XXII. Esta grande estrucura de jurisprudência eclesiástica, conhecida como o Covpw iuris canonici, abrangia todos os domínios da vida eciesiástica. Embora náo tenha havido mais nenhuma coleçáo oficial até o século vinte, continuou a criação de direito eclesiástico. Final-

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A IDADE MEDIA POSTERIOR

43 7

mente, em 1904, o papa Pio X ordenou a uma comissáo a codificacáo e simplificação de todo o conjunto de direito canônico. Em 1927, seu sucessor, Bento XV, Ir de

--Les, n

promulgou o Codex iuris canonici (cinco "livros" contendo 2.414 cânones).

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23re

Capítulo 12

p:.Zm

rue1 de Iar-

O Papado em Avinháo; Defensores e Críticos do Papado; o Grande Cisma

2r a

;ão

Todos os papas no período em que o papado esteve em Avinháo (1309-1377) foram franceses, e a grande maioria dos cardeais ocupavam sés episcopais francesas.

O mais capaz dos papas de Avinháo foi inquestionavelmente Joáo XXII (1316-1334). A dupla eleicáo imperial na Alemanha, em 13 14, dividira aquele país entre os defensores de Luís, o Bávaro (13 14- 1347) e aqueles de Frederico da Áustria (13 14- 1326). Joáo XXII, apoiado pelo rei Filipe V da França (13 16-1322),julgou que havia chegado o momento para diminuir a influência alem5 na Itália em benefício dos estados papais. Ele negou-se a reconhecer ambos os contendores e declarou, ademais, que o papa tinha o direito de administrar o império durante a vacância. Quando Luís interferiu nos assuntos italianos, o papa excomungou-o, iniciando-se assim uma disputa entre ele e o papado, que durou até sua morte. No decorrer dessa disputa, os eleitores aiemáes publicaram a declaração de 1338, em Rense (confirmada pelo Reichstag em Frankfurt no mesmo ano), que dizia que o chefe eleiro do império náo precisava de nenhuma aprovação do papada para assumir integralmente ou continuar no exercício de seu cargo. Na prática, o império estava totalmente divorciado do papado. Dois frades agostinianos, Giles de Roma (1245)-1316) - cujas idéias constituíram a bula papal Unam sanctam (1 302) - e Jaime de Viterbo (1255?-1308),propuseram durante o pontificado de Bonifácio VI11 afirmaçóes extremadas da plenitude papal de poder em assuntos temporais. Mais tarde juntou-se a eles outro monge agostiniano, Augustinus Triumphus (1243-1 328), que defendia que todos os príncipes governam sujeitos ao papa, o qual pode depô-los quando quiser, enquanto que o

43 8

HISI!jRIA DA IGREJA CRISTÁ

papa não pode ser julgado por ninguém, "pois a decisáo e o tribunal de Deus e do papa são um." Estas reivindicações papalistas ou "hierocráticas" foram refutadas por, entre outros, Joáo de Paris (?-1306), um dominicano francês que argumenrou que a igreja e o estado não estáo relacionadas como superior a inferior, mas como dois poderes autônomos, cada um soberano em sua própria esfera. Outro defensor desse "paralelismo" entre os dois poderes foi o maior de todos os poetas medievais, Dante hlighieri (1265-1321). Em seu tratado em latim, De mo~znrrhia,escrito entre 1308 e

131 1, Danre defendeu que apenas um império universal, especificamente aquele de um imperador romano, poderia produzir o estado de paz essencial para a atividade civilizada. Este poder do império é táo necessário para a felicidade temporal da humanidade como o governo papal para sua bem-aventuran~aeterna. Cada uma destas autoridades é proveniente direramente de Deus, e uma náo deve interferir na esfera própria da outra. Muito mais radical do que Joáo de Paris e Dante foi o principal "apologista real"

t2

da época, Marcílio de Pádua (1280?-13431), que fora educado primariamente em

F"

medicina, náo em teologia. Em 1313, ele tornou-se reitor da universidade de Paris, e

c;.

lá, em 1324, completou o mais notável dos [rarados políticos medievais, Definsor

1

pacis. Suas idéias extremadas levaram ~Marcílio,juntamente com seu assistente, Joáo de Jandun (1275?-1328),a se refugiar na corte do imperador Luís, o Bávaro, cuja proteçáo eles desfrutaram pelo resto de suas vidas. Eles foram excomungados pelo papa Joáo XXII em 1327, e Clemente VI declarou em 1343 que Dejnsor dapaz era

o livro mais herético que ele jamais lera, Marcílio, que era deveras versado em Aristóteles e bom conhecedor de direito canônico, defendeu que a base de todo poder é "o povo",

OU

seja, o conjunto total de

cidadáos (uniriersitasciuium) no estado, e o conjunto total de fiéis (univeisitasjdeli~m) na igreja. Eles são o poder Iegislativo; os govcrnantes políticos e eclesiásticos sáo nomeados por eles e sáo responsáveis para com eles. Os clérigos náo possuem nenhuma jurisdiçáo coercitiva sobre os assuntos temporais. O único dever deles é ensinar, admoestar, reprovar e desse modo conduzir as pessoas à salvaçáo, que é totalmente espiritual. O Novo Testamenro ensina que "bispo" e "sacerdote" são designaçóes equivalentes, embora seja adequado, como um arranjo puramente humano, indicar alguns clérigos superintendentes sobre outros. Essa indicacão náo concede poder espirituaI superior, nem um bispo tem autoridade espiricud sobre outro, nem o papa sobre rodos, exceto como uma primazia de honra tradicional. O Novo Testamento

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5L. L

PERIOBO Y

A IDADE MEDIA PISTERIOR

4.39

do

náo fornece nenhum fundamento nem para os clérigos possuírem propriedades e

30i,

senhorios terrenos nem para ficarem isentos da lei civil. Nenhum sacerdote ou prela-

zue a

do tem autoridade para definir a verdade cristá normativa, promulgar leis eclesiásti-

: dois

cas obrigatórias ou impor interditos e excomunhóes sobre governantes e províncias.

case

Estas ações somenre podem ser feitas pelo conjunto dos fiéis, representados em um

?mte

concílio geral. Tal concílio é a autoridade suprema na igreja, e seus juízos são infalí-

3118 e

veis. Uma vez que o estado cristáo e a igreja cristá sáo coincidentes - Marcílio náo

r:= de

imaginava um estado totalmente secular ou uma divisão

:;dde

execucivo do estado pode convocar concílios, nomear bispos e controlar proprieda-

I hu-

des eclesiásticas. Ali encontravam-se idéias que iriam produzir frutos na época da

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-_;'~as - --

entre

religião e política - o

Reforma, mas eram muito radicais para serem amplamente aceitas em sua própria época. As rei~indica~ões dos papalistas extremados, porém, também iiáo eram tão acei-

:Zd-

tas. Elas estavam longe de ser partilhadas pelos alemáes engajados na disputa com o

i-m

papado pela autonomia política do império, ou pelos ingleses em guerra com a Fran-

e

ça, que consideravam o papado em Avinháo uma toIice do soberano francês. Já em

;--.S. ..... r ....Cii'

1265, o papa Clernen~eIV afirmara o direito do papa de nomear

cargo

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eclesiástico em qualquer lugar da cristandade; este novo princípio foi utilizado quase

:-ia

ilimitadamente por Clemente V e os papas que o sucederam em Avinháo. Tais nomeados eram chamados 'provisores", e a intrusáo de protegidos papais na Inglaterra provocou o rei e o Parlamento a promulgarem em 1351 o Estatuto dos Provisores,

que proibiu todas as provisões papais. Esca lei inevita~~elmence suscitou dispuras entre a autoridade real e a papal, e um outro estatuto de 1353, conhecido como Prilemunire, proibiu apelos para fora do reino sob pena de banimento. Na prática, estes estatutos acabaram sendo letra morta, mas demonstram o crescimento de um espírito na Inglaterra que seria ilustrado ainda mais em 1366, quando o Parlamento revogou a açáo tomada pelo rei Joáo em 1213, por meio da qual ele havia tornado a Inglaterra um feudo papal. Nenhum rraço do papado em Avinháo contribuiu ranto para sua crítica, ou para a oposicáo política e religiosa, como sua tributação opressiva da vida eclesiástica. Tal tributacáo já alcançara proporçóes escandalosas no século treze, mas a situaçáo agravou-se muito quando a transferência do papado para Avinháo diminuiu bastante as rendas provenientes dos estados papais na Itália central, sem diminuir a luxúria ou os elevados custos da corte papal. O s papas de Avinháo desenvolveram um siscema de

administração centralizada que foi o mais sofisticado da Idade Média, e essa poderosa máquina burocrática naquele momento dedicou-se a aumentar as rendas papais. Um meio principal para este fim foi a introduçáo dos "anaces", um imposto de aproximadamente a renda de um ano de cada nova nomeação. Uma vez que a "reserva" de postos para exclusiva nomeação papal foi simultaneamente aumentada imensamente, isso tornou-se uma grande fonte de renda, da mesma forma que o retorno resultante para o papado dos benefícios que ficavam vagos. As taxas para bulas e oucros documentos papais também aumentaram rapidamente em valor e em quantidade. Estas eram apenas uma parte dos impostos papais, e o efeito cumulativo foi a profunda convicção de que a adminisrração papal estava ficando cada vez mais pesada para o clero, e por meio deste, para o todo da populaqáo. Este sentimento foi intensificado pela maneira implacável na qual as censuras eclesiásticas, como as excomunhóes, eram impostas sobre contribuintes delinqüentes. O papado parecia extravagante em seus gastos e agressivo na tributaçáo. Sua reputaçáo em ambos os aspectos pioraria ainda mais até a Reforma. Muitos dos papas em Avinháo, é preciso adicionar, foram homens de bom caráter, e alguns tentaram valentemente administrar os arranjos existentes sem abusar; mas nenhum rompeu rotalmenre com o deletério "sistema de benefícios" que tratava os cargos eclesiásticos (benejctn) como peças de propriedade para serem vendidas, compradas, trotadas, penhoradas e, sobretudo, tributadas. Este sistema era em gran-

- -.. .

de parte uma operaqáo de captaçáo de recursos e portanto tinha pouca preocupaçáo

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intrínseca para com a atividade pastoral da igreja. A centralizacão papal, ademais,

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diminuiu crescentemente a autoridade dos bispos sobre suas dioceses e dessa forma

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esvaziou a diocese local de sua importância [radicional como a unidade básica da

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vida eclesiástica. Logo, a igreja em sua totalidade iria sofrer choques ainda maiores

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devido à sua divisáo em duas, e depois em três, "obediências" papais concorrentes. Em 1367 o papa Urbano V (1362-1370) retornou a Roma, mas em 1370 ele e sua corte estavam novamente em Avinháo. Ele foi sucedido por Gregório XI (13701378), a quem Santa Catarina de Siena (1347-1380) e Santa Brígida da Suécia (1300?1373) rogaram em nome de Deus que retomasse a Roma. O estado anarquizado da cidade, na esteira da revolução popular encabeçada ali em 1347 por Cola di Rienzo (1313-1354), aconselhava cambém sua presença ali para que os interesses papais fossem preservados. Diante disso, ele transferiu o papado para Roma, em janeiro de 1377. Portanto, quando da morte de Gregório XI em março de 1378, muitos dos

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h IDADE MEDIA POSTERIIR

441

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cardeais encontravam-se em Roma. A maioria francesa entre eles gostaria de retornar

>apais.

a Avinháo. O povo romano, porém, estava determinado a manter o papado em Roma,

apro-

e para este fim exigiram um papa italiano. Sob condiçóes tumultuadas, os cardeais

--.-a" de

escolheram Bartoiomeu Prignano, arcebispo de Bári, que assumiu o nome de Urba-

izmen-

no V1 (1378-1389). Um homem sem tato, que dmejava terminar com a influência

-

rssul-

francesa sobre o papado e realizar algumas reformas na corte papal, Urbano VI logo

)urros

suscitou a hostilidade dos cardeais. Quatro meses após sua eleiqáo, doze dos dezesseis

::dade.

cardeais reunidos em Anagni declararam nula sua escolha anterior porque havia sido

z pro-

d i ~ a d a . ~ eviolência la ~ o p u l a re, elegeram o cardeal Roberto de Genebra como papa

~tsada

Clemente VI1 (1378-1394). Alguns meses mais tarde, Clemente VI1 e seus cardeais

:nren-

estavam estabelecidos em Avinháo. O Grande Cisma havia comeqado.

as

Anteriormente houvera muitos papas rivais, mas eleitos por elementos diversos.

ixscia

Mas agora existiam dois papas, ambos devidamente eleitos pela maioria do mesmo

,135

corpo de cardeais. A cristandade latina agora assistia ao espetáculo de dois papas

-710

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digladiando-se e excomungando-se um ao outro. Aparenrernence não havia nenhum ~ o d e que r pudesse decidir entre eles, e os diversos países seguiram a um ou ao outro conforme ditavam suas afinidades políticas. O papa romano era reconhecido na Itália setentrional e central, na maior parte da Alemanha, Boêmia, Polônia, Hungria, Escandinávia e Inglaterra. O papa de Avinháo tinha a fidelidade da França, Espanha, Escócia, Nápoles, Sicília e algumas partes da Alemanha. Foi uma divisão bastante equilibrada. A Europa estava entristecida e escandalizada, enquanto os abusos papais, especialmente a tributagáo, estavam aumentando, principalmente porque duas cortes (cada uma com seu próprio colégio de cardeais) tinham que ser susrentadas. Mas acima de tudo, fora ultrajado o sentimento profundo de que a igreja deve ser visivelmente uma só. E o papado decaiu sobremaneira na consideração popular.

Em Roma, Urbano VI foi sucedido por Bonifácio IX (1389-1404), e este por Inocêncio VI1 (1404-1406), que foi seguido por Gregório XII (1406-141 5). Em Avinháo, Clemenre VI1 foi sucedido por um espanhol, Pedi-o de Luna, que assumiu o nome de Bento XIII (1394-1417).

O Grande Cisma durou por quase quarenra anos, e foi composto pela criação de uma terceira linhagem de papas no infortunado concílio de Pisa em 1409; e náo foi resolvido até que o concílio de Constança (1414-141 8) afirmou sua supremacia jurisdicionai dentro da igreja e depôs, ou induziu à abdicação, os três papas concorrentes, Gregório XII, Bento XIII e João XWII (ver V: 14).

Capítulo 13

WycIif e Hus Por volta de 1400 as duas grandes heresias que anres haviam atormentado a igreja medieval - os cáraros e os valdenses - tinham sido contidas com sucesso. Os cátaros, na verdade, tinham sido praticamente destruídos. Os valdenses, embora uma força ainda a ser considerada, haviam sido isolados e forcados à clandestinidade. Semelhantemente, os cismácicos heréticos dos grupos franciscanos radicais (os

i.:

Fraricelli) e os assim chamados Espíritos Livres já não consrituíam uma preocupaçáo

.-

muito grande. Porém, nessa mesma época, no meio século entre 1375 e 1425, dois novos movimentos heréticos, de proporçóes ameagadoras, surgiram em dois países na

da Europa, Inglaterra e Boêmia - dois países, ademais, que haviam esta-

do marcadamente livres de heresia no passado. Em cada país, a nova heresia foi logo atribuída a um único líder: Joáo Wyclif na Inglarerra e Joáo Hus na Boêmia. Essa arribuifáo cai bem, de modo geral, no caso de Wyclif; Hus, porém, era o herdeiro de uma tradiçáo tcheca nativa de reforma religiosa.

O fato de os ensinos de Wyclif em Oxford terem encontrado um caminho através do continente europeu aré Hus, em Praga, deveu-se em grande parte ao "acidente" de um casamento dinástico. Náo foi meramente fortuito, entretanto, que os dois lideres tivessem muitos pontos em comum. Ambos estavam reagindo aos profundos choques administrados à cristandade latina pelo "cativeiro" do papado em Avinháo e pelo catastrófico Grande Cisma que se lhe seguiu. A igreja em geral foi considerada dolorosamente em necessidade de reforma "na cabeça e nos membros". Assim, não é surpreendente que Wvclif e Hus fossem "moralistas" de coraçáo, ou que a dourrina da igreja se tornasse sua preocupacáo central e a fonre principal de sua heterodoxia. Joáo Wyclif (1 325?-1384)nasceu em Yorkshire em algum ano entre 1320 e 1330. Toda a sua carreira, muitos detalhes da qual são temas de conjecturas, esteve vinculada à universidade de Oxford, onde ele recebeu o grau de bacharel em artes em 1356 e o mestrado em artes em 1361. Por um pequeno período depois disso eIe serviu como mestre no Baliiol College. Em 1361 ele também foi nomeado reitor da igreja paroquial em FiUingham, enquanro continuava a palestrar em Oxford; em 1368, ele trocou essa reitoria peIa de Ludgershall, que era mais perto de Oxford. É possível que

-

~ t i i o o av

R l0hIIE MÉUIA POSIEAIOA

44.3

ele tenha sido eleiro diretor do Canterbury College, Oxford, em 1365, mas o papa logo anulou essa eieiçáo considerando-a irregular. Durante a década de 1360,Wvclif alcançou grande reputacão em Oxford, e em círculos acadêmicos mais amplos, como brilhante palestrante e escritor sobre lógica e metafísica; em 1369, ele havia completado uma obra impressionante, Summn de ente (Sobre o ser). Filosoficanlente, ele era um ultra-realista, um defensor vigoroso da via antiqun contra o nominalismo enrRo dominante. Ele também buscou estudos avançados em teologia, recebendo o grau de doutor em 1372 e fazendo planos para uma Sumnza tbrologzcx em doze volumes. Ele foi profundamente influenciado pela tradicáo agostiniano-platônica, conforme mediada em Oxford por Roberto Grossereste, Tomás Bradwardine e Ricardo FitzRalph

(1 295?-1360). Desapontado em sua expectativa de nomeaçáo para algum cargo eclesiástico elevado, que apareritemente lhe fora promecida pelo papa Gregório XI (13701378), ele ingressou no setvico da coroa como conselheiro teológico, e em 1374 foi nomeado pelo rei Eduardo I11 para a paróquia de Lutterworth. Abdicando à reicoria de Ludgershall, ele serviu na paróquia de 1,utterwor~haté sua morte, embora continuando sua íntima associacão com Oxford até 1381. Em 1374, Iiliyclif foi enviado a Bruges como um dos comissários do rei, para se reunir com os representantes papais naquilo que acabou sendo uma rentativa fútil para resol~~er a disputa sobre "provisores", e sobre o status da Inglaterra como um feudo do papado.

Já no início da década de 1370, WE-clifdefendia idéias sobre "domínio" ou "senhorio" que justificariam, sob cerras condiqóes, a apropriaçáo por parte do estado de propriedades eciesiásticas. Estas idéias sem dúvida eram conhecidas pela coroa na época em que ele ingressou no servico real. Ele desenvolveu completamente essa posiqáo em dois tratados, Sobre o senho~iodivino (1375)e Sobl-e a senhorio civil (1 376), baseados em palestras proferidas em Oxford após seu retorno de Bruges. Deus, declarou Wyclif, é o Senhor supremo, de cujo senhorio depende todo senhorio humano. Deus concede graciosamencç todas as posses e poderes, civis e eclesiásticos, como mordomias, não como "propriedade" permanente mas como "empréstimos" temporários, para serem mantidos somente com a condiçáo de serviço fiel. Urna vez que apenas os justos podem exercer senhorio jussarnente. aqueles eclesiásticos que estão vivendo em pecado mosca1 perdem toda reivindicação a posses temporais. Estas podem ser confiscadas deles justamente pelos governanres civis, a quem Deus tem concedido o senhorio das coisas temporais, ao passo que à igreja Deus tem concedido o senhorio apenas das coisas espirituais. Este ensino, apresentado com toda sincerida-

de e simplicidade, certamente agradou ao inescrupuloso filho de Eduardo 111, Joáo de Gaunt, duque de Lancaster, e a sua turma de nobres rapaces, que esperavam enriquecer mediante a "desconcessáo" da igreja "deiinquente". Tal ensino também agradou a muitos dos comuns, que há muito vinham criticando o clericalismo ganancioso. Da mesma forma, náo desagradou às ordens mendicantes, que tinham sempre, pelo menos em teoria, advogado a "pobreza apostólica". Em fevereiro de 1377, Wyclif foi intimado a se apresentar diante dos bispos reunidos em Londres para exame de suas idéias, mas a proteção de Joáo de Gaunt. e do partido da corte frustrou os procedimentos. Em maio daquele mesmo ano,

Gregório XI publicou uma bula contra Wyclif, ordenando-o a comparecer em Roma dentro de trinta dias; e em janeiro de 1378, o arcebispo de Londres tomou ourros procedimentos contra ele. Todas estas ações, entretanto, resultaram inócuas devido ao apoio real e ao grande suporte popular de que Wyclif desfrutava. Com o início d o Grande Cisma em 1378, Wyclif tornou-se ainda mais radical e amargurado em sua idéias, rejeitando por fim a totalidade da estrutura tradicional da igreja medieval. Praticamente abandonando a cena polírica, ele então dedicou-se ao estudo teológico e a escrever. Em sua obra Sobre a verdade das Escrituvas Sagradas (1378), ele afirmou que a Escritura é "a mais alta autori-

dade para todo cristão e o padráo de fé e de toda perfei~áohumana." Porém ele não repudiou a autoridade interpretativa dos pais da igreja e dos doutores antigos; portanto, ele náo foi um precursor do "só a Escritura" da Reforma. Em seu tratado original Sobre a Igreja (1378) ele definiu a igreja verdadeira em termos agostinianos como "a totalidade dos predestinados" (universitaspr~edestinatorz~m) - um corpo atemporal e genuinamenre espiritual, consequentemente invisível,

do qual Cristo apenas é o cabeça. O papa, por seu turno, é no máximo o cabeça da p o r ~ á oromana da igreja visivel, sendo esta composta tanto pelos eleitos como pelos condenados, que sáo conhecidos apenas por Deus, embora possam ser reconhecidos, em parte, por seus respecrivos "frutos".' Wyclif concedeu em seu 11vro Sobre o poder da papa (1379) que a igreja visível pode muito bem ter u m líder terreno, se tal líder verdadeiramente reproduzir Pedro em pobreza e simplicidade apostólica. Tal papa presumivelmente seria um dos eleitos; mas um papa que se agarra ao poder terreno e é ávido por riquezas provavelmente não é um

dos eleitos e portanto é um verdadeiro anticristo. De qualquer maneira, o papado é de origem humana - foi fundado por Constantino, náo por Crisco - e sua

jurisdiçáo está limitada estritamente as preocupações espirituais. (Subseqüentemente, Wyclif demandou a abolição do papado e a total desapropriaçáo da igreja.) Esses tratados foram seguidos por Sobre a eucdristiu (1380), no qual Wyclif rejeitou o dogma da transubstanciaçáo como ilógica, náo escriturística e infiel ao ensino da igreja antiga. Sua própria idéia positiva, conhecida como "remanência", afirma que mesmo após a consagraçáo o páo e o vinho permanecem substâncias materiais, uma vez que é impossível, tanto para os "acidences" existirem por si mesmos à parte de uma substância, como para qualquer substância realmente existente ser "aniquiladan. O corpo e o sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes nos elementos, náo material ou carnalmente, mas simbólica ou sacramentalmente. O páo e o vinho são portanro "sinais eficazes" do sangue e corpo de Cristo. Embora Wyclif considerasse a pregação muito mais importante do que a observância sacramental, ele permaneceu devoto da eucaristia até o final de sua vida. Náo obsranre, seu ataque sobre um dos mais queridos dos dogmas da igreja, conjugado com sua denúncia das ordens mendicantes como "filhos de Cairn", custou-lhe o apoio de Joáo de Gaunt e do grupo da corte, dos frades e de muitos de seus simpatizantes em Oxford. Esta maré de oposiçáo foi fortalecida por eventos políticos em 1381, pelos quais Wyclif não teve qualquer respofisabilidade. A agieaçáo das classes inferiores, que vinha crescendo na esteira das severas turbulências econômicas causadas pela Peste Negra de 1348-1350, culminou em 1381, em uma grande revolta de camponeses que foi suprimida com muito derramamento de sangue. Os inimigos de Wyclif disseram que suas heresias haviam liberado esse violento episódio.

O resultado foi uma reaproximaçáo entre igreja e estado. Em 1382, Guilherme Courtenay, o novo arcebispo de Cantuária (1381-1396), reuniu um sínodo em Londres, que condenou vinte e quatro proposições seiecionadas das obras de Wyclif, embora este náo tenha sido citado nem condenado nominalmente. Entáo, tendo Wyclif sido abandonado pelo grupo da corte, Courtenay recebeu autorização para prender quem quer que defendesse as pioposiqóes condenadas. Livre para agir, ele rapidamen~eatacou os partidários de Wyclif em Oxford.

O próprio Wyclif, como foi observado, havia-se retirado da arena política

446

HISTÓAIA DA IGREJA E R I S T ~

nos ÚItimos meses de 1378, e no veráo de 1381 havia-se afastado para sua paróquia em Liirrerworth, onde permaneceu sem ser molestado. Estes últimos anos de sua vida foram um período de efer\rescenre atividade literária. Ele completou os volumes finais de sua Summa teológica; produziu uma enchente de panfletos no vernáculo; e trabalhou em seu Opus evangelicum e fi.ialogus, que resumiram seus principais temas teológicos e filosóficos. Ele também forneceu a inspiracão e o ímpeto para a traduçáo inglesa da Bíblia Vulgata. Parece que ele não contribuiu diretamente para a obra de traduçáo, que foi executada c completada depois de sua morre, por um grupo de discípulos em Oxford e em Lutterworth, incluindo NicoIau de Hereford e João Purvey. Wyclif também organizou um imenso conjunto de sermões para uso dos "sacerdotes pobres" que na tpoca escavam propagando o evangeIho entre os pobres. Em suas vestes e conduta, estes evangeliscas itinerantes lembravam os antigos pregadores valdenses ou franciscanos. E improvável que Wyclif tenha-se engajado ativamente na preparação deles. Seiis escritos consumiam suas energias, c sua saúde estava débil. Ele sofrera um derrame em novembro de 1382, que o deixara prcialmente paralisado. Sofreu um segundo derrame em 28 de dezembro de 1384, quando assistia a missa, e faleceu três dias mais tarde. Foi sepultado no cemitério da igreja de Lutrerworth, i.e., em solo sagrado, pois ele náo havia sido excomungado oficialmente. Em 1428 o bispo de Lincoln, obedecendo ao comando do concílio de Constança, em 1415, exumou os restos mortais de WycIif, queimou-os e lançou as cinzas

110 rio

Swifr.

Os seguidores de Wyclif foram chamados "lolardos" (= "murmuradores")

-

um termo zombeteiro, de origem holandesa, que há muito vinha sendo aplicado nos Países Baixos aos bcgardos e às beguinas. O movimento ficou dolorosamente ferido por sua falta de lideranca intelecrual proeminente, após a morte de Wyclif. O s partidários de Wyclif em Oxford foram continuamente extirpados pelo arcebispo Courtenay e seu sucessor, Tomás Arundel (1396-14 14). Até mesmo Hereford e Purvey foram obrigados a se retratar. Contudo, náo obscante a perda de Oxford e da perseguiqáo e prisáo dos pregadores lolardos, o movimento continuou a crescer durante rodo o reinado de Ricardo I1 (1377-1399). A situacão mudou com a ascensão da casa usurpadora de Lancaster, na pessoa de Henrique

IV (1399- 14 13).Ansioso para aplacar a igreja,

O

novo rei foi persuadido a asse-

gurar a passagem, em 140 1, do estaruto anci-heresia, De haeretica comburendo, sob o qual alguns lolardos foram

Henrique IV, porém, poupou os

p ~ i i a o ou

11040E MEDIA POSTERIOR

447

lolardos de alta posição e em grande parte tratou o estatuto como uma formalidade. Mas seu filho, Henrique V (1413-1422), não fez assim, pois cumpriu tal estatuto implacavelmente. Sob ele, o mais notável dos líderes lolardos, Sir João Oldcastle, Lorde de Cobham, um homem dos mais severos princípios religiosos, a quem a tradição e o abuso da dramatizaçáo transformaram na figura de Falstaff,foi condenado, forçado à rebeiiáo e executado em 1417. Com sua morte, a significância política da lolardia na Inglaterra chegou ao fim, embora tenham sobrevivido partidários em vários distritos rurais que continuararn a existir na clandestinidade, até a Reforma. A principal influência de Wyclif seria na distante Boêmia em vez de em sua pátria.

A Boêmia passara por desenvolvimentos religiosos, intelectuais e políticos significativos no século catorze. O imperador do Sacro Império Romano, Carlos I V (1346-

1378), foi também rei da Boêmia e fez muito por aquele país. Em 1344 ele assegurou o estabelecimento de Praga como arcebispado, livrando a Boêmia da dependência eclesiástica de Mainz (Mogúncia); em 1348 ele fundou em Praga a primeira universidade da Europa central. Carlos também era favorável & reforma eclesiástica. Durante e em seguida ao seu reinado, diversos pregadores de poder sacudiram a Boêmia, atacando a crescente secularização da igreja em nome do "evangelho simples". Entre os mais famosos destes estavam o cônego agostiniano austríaco, Conrado de Waldhausen 0-1369), e o morávio Milich de Kromerzis (?-1374).A eles se uniram Matias de Janov (13552-1394)eTomás de Shtirny (1331-1409),que fizeram contribuicóes notáveis para a literatura religiosa popuiar e teológica da Boêmia. Esses pregadores e escritores lanqaram a reforma religiosa tcheca, cujos rraqos característicos foram a pregaqáo no vernacular, reforma moral do clero e do povo, a centralidade na Escritura como a regra de vida, e a demanda por frequente participa~áona Ceia do Senhor. Esse movimento nativo de reforma antecedeu em muito a introdução das idéias de Wyclif na Boêmia. Por meio de Matias de Janov, um erudito renomado, ele também se vinculou aos círculos universitários tchecos em Praga. Politicamente, a Boêmia estava dividida por uma disputa enrre os imigrantes aiemáes e os tchecos nativos. Os tchecos estavam motivados por um forte desejo de igualdade com os governantes alemães. Em 1382, a Boêmia, até então pouco associ-

*N.T. Personagem empçdcrnido, obsceno e inrscrupulosa dc Shakespeare em Henry IV e também em'lCht. Mcrry W7ives ofwindsor.

448

HlSlbRIA DA IGREJA C R I S T ~

ada com a Inglaterra, foi conectada com este país por meio do casamento da princesa boêmia Ana com o rei Rrcardo 11. Estudances tchecos foram atraídos à Oxford e ali se familiarizaram com as doutrinas e escritos de Wyclif, os quais eles logo levaram para sua pátria, especialmente para a universidade de Praga. Entre os professores que abraçaram algumas das idéias de Wyclif estava João Hus, em quem as aspirações nacionais tchecas encontraram um ardente defensor e o movimento nativo de refor-

ma seu Líder mais proeminente. Hus nasceu em uma família pobre, na vila de Husinec no sudoeste da Boêmia, em 1372 ou 1373. Ele estudou na universidade de Praga, onde se tornou mestre em artes em 1396. Em 1400 foi ordenado ao sacerdócio, mantendo ainda um vínculo de magistério com a universidade, onde foi eleito deáo da faculdade de artes para o semestre do inverno de 1401-1402. Em 1409 ele já havia completado todas as exigências para o doutorado em teologia, com palestras sobre a Bíblia e as Sentençm de Pedro Lombardo, mas nunca obteve tal grau, devido às amargas controvérsias de seus últimos anos, que eventualmente o forçaram a deixar o recinto acadêmico e levaram-no à fogueira em Constança. Algum tempo depois de seu ingresso no sacerdócio, o qual ele considerou inicialmente apenas como uma fonte de seguranca econômica, Hus passou por uma conversão mediante o estudo das Escrituras, e tornouse um zeloso defensor da reforma clerical. Em 1402 ele foi nomeado pregador na Capela de Belém, em Praga, a qual era o ceni-ro do movimento de reforma tcheco, e ali ele logo aicanqou imensa popularidade por meio de seus ardenres sermíjes na língua ccheca.

Logo cedo em sua carreira acadêmica, Hus foi um estudante ávido das obras filosóficas de Wyclif, concordando plenamente com seu "realismo", como muitos dos mestres tchecos em Praga. Os mestres alemães, mais numerosos, por outro lado, eram em grande parte seguidores de Occam e da via moderna. As obras teológicas de Wyclif não foram levadas para Praga senáo pouco após 2400, inicialmente por um amigo intimo de Hus e seu seguidor por toda a vida, Jerônirno de Praga (1370?-

1416), que hwia recebido seu mestrado em artes em Oxford. Hus não foi, como é frequentemente pensado, um "simples eco" de Wyclif, embora ele tenha reproduzido constantemente a linguagem de Wyclif em seus sermóes e tratados. Ele deveu tanto ao movimento de reforma rcheco quanto a Wyclif, e sua apropriação da teologia de Wyclif foi criticamente seletiva. Ele aceitou o que considerava ortodoxia incontestável em Wyclif, e passou em siIênc~osobre aquelas idéias que desaprovava. Ele tam-

~ ~ n i o nv o

1l0llUE MEDIA POSTERIOR

449

jém estava disposto a expressar sentimentos ortodoxos nas formulaçóes de Wyclif -

Jma disposiçáo fatal, como os eventos iriam demonstrar. Hus era completamente ortodoxo em seu ensino eucarístico; diferentemente de Wyclif, ele não negou a rransubstanciaçáo. Como Wyclif, ele ensinou que a verdadeira igreja consiste apenas dos pedestinados, dos quais o cabeca é Cristo, não o papa - embora se um papa viver Zorretamente, poderá ser considerado o cabeqa da igreja "particular" de Roma. A vida da verdadeira igreja é de pobreza e simplicidade, semelhante a Cristo. A única

Lei dessa igreja é a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento. Este "princípio da Escritura", como em Wyclif, descartava as tradições extrabíblicas d o direito canônico mas

não negava a autoridade magisterial dos pais e doutores antigos. Em 1403 foram condenados pela maioria dos mestres em Praga quarenta e cinco artigos atribuídos a Wyclif. Os mestres tchecos, entretanto, que eram em minoria, de modo geral defenderam Wyclif. Hus, obviamente, uniu-se à defesa. Entrementes, sua pregaçáo na Capeia de Belém inicialmente teve o apoio do jovem arcebispo,

Zbynek Zajic, de Hasenburk (1401-141 1); mas as cáusticas críticas de Hus em reIa;áo ao clero, e sua identificaçáo com os ensinos condenados de Wyclif, gradualmente xansformaram essa simpatia em oposi~áo.Rapidamente surgiram novos motivos ?ara controvérsia. No Grande Cisma, a Boemia manteve-se com o papa romano, na epoca Gregório XII. Como passo para o fim da cisão, o rei da Boêmia, VencesIau IV 1378-1419), declarou em 1408 seu apoio a uma política de neutralidade entre os Zapas rivais. Hus e os elementos tchecos na universidade apoiaram Venceslau. O ~rcebispoZbynek, o clero alemáo e os mestres alemáes na universidade ficaram com Gregório XII, para o desapontamento do rei. Diante disso, em janeiro dc 1409, 'i2ncesiau modificou abruptamente a constituição da universidade, dando aos aleinães apenas um voto para cada três dados aos tchecos, revertendo assim completarnenre a proporgáo anterior.' O resultado quase imediato foi a separaqáo dos mestres 5

tstudantes alemães, que eram cerca de mil e quinhentos, que naquele mesmo ano

tirabeleceram sua própria universidade em Leipzig. Em outubro de 1409 Hus foi eleiro o primeiro reitor .da universidade após a mencionada modificação. Conse:utnremeni-e, ele ficou por muito teinpo identificado com perfídia e heresia, nas -.entes dos professores de Leipzig, cuja inimizade revelou-se publicamente em

-

,onstança. "C.T. Estc foi o famoso dccrcco de Kutna Hora.

450

RISTÓRIA UA IGREJA CRISTÃ

Entrementes, o infeliz concílio de Pisa (1409)chegava ao fim (ver V: 14). O arcebispo Zbynek agora apoiava seu papa, Alexandre V (1409-1410),a quem reclamo11 da disseminação dos ensinos de Wyclif na Boêmia, e por quem foi designado para extirpá-los. Hus protestou e foi excomungado por Zbynek em 1410, e submetido a investigaçáo pela curia romana. O resultado foi grande tumulto em Praga. onde Hus era mais do que nunca utn herói popular. O rei Venceslau, cujo apoio era crucial, defendeu-o. Em 141 1 e novamente em 1412, o infame sucessor de Alexandre, papa João XXIII (1410-1415), prometeu indulgências a todos que participassem em sua planejada cruzada contra o rei de Nápoles, Ladislau (1386-1414),um defensor do deposto Gregório XII. Hus denunciou essa "cruzada da indulgência", afirmando que o papa não tinha direito de utilizar a f o r p física, que pagamentos em dinheiro náo alcançavam perdáo verdadeiro, e que as indulgências eram supérfluas, uma vez que o perdáo é dado liberalmente àqueles que verdadeiramente confessam e se penitenciarn por seus pecados. O resultado foi uma grande agitaçáo. As bulas papais foram queimadas pela populaqáo. A postura ínregra de Hus, entretanto, prejudicou gravemente sua causa. Ele perdeu muitos dos principais defensores na universidade, incluilido Estanislau de Znojrno e Estêváo Palech; ele foi novamente excomungado; e se indispôs com o rei Venceslau. Praga foi submetida a um interdito papal. Desejando poupar a cidade dessa calamidade, Hus deixou Praga em outubro de 1412, refugiandose com amigos poderosos entre a nobreza no sul da Boêmia. Durante esse período de exílio, além de escrever inúmeros tratados no vernáculo, Hus comp6s sua principal obra, De ecclesiu (Sobre a Igreja), um tratado profundamente em débito com o tratado de mesmo nome de Wyclif, evitando contudo as conclusóes mais radicais de Wyclif. Particularmente, Hus não chegou a abraçar completamente a heresia donatista de que um sacerdote pecaminoso náo tem poder sacerdotal (potestds ordinis), embora ele tenha defendido a posiçáo "semi-donatista" que sacerdotes e prelados ímpios náo possuem autoridade jurisdicional (potestus

iurisdictionis) e portanto não devem ser obedecidos. Por esta razáo, ele apelava seu caso somente a "Deus e Cristo", náo a um papa ou a um concílio eclesiásrico - uma postura claramente herética aos olhos, tanto dos curiais como dos conciliares.

O grande concílio de Conscança (1414-1418) se aproximava, e a confusáo na BoÈmia certamente exigiria sua atenção. Hus foi intimado a se apresentar perante ele e recebeu um "salvo conduto" do Sacro Imperador Romano, Sigismundo (1410-

1437), irmão do rei Venceslau. Embora soubesse que estava arriscando a vida, Hus

PIRIIIOY

4 IDADE MEBIA POSTERIOR

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decidiu partii-, parcialmente porque esrava certo de que poderia convencer o concilio sobre seus pontos de vista. Pouco depois de sua chegada em Constança ele foi aprisionado; o concílio persuadira Sigismundo a desconsiderar o prometido salvo-condu:o. Os mestres demães que haviam sido expulsos de Praga, como também os inimizos tchecos de Hus, fizeram-lhe graves acusaçóes. As acusaçóes de seu outrora colega 2

amigo, Estêváo Palech, receberam peso especial por seus juizes, dentre os quais os

principais eram os renomados Pedro de Ally e Joáo dc Gerson. Em 4 de maio de

1415, confirmando uma agáo que já havia sido rornada por um sínodo romano em

1413, o concílio formalmente condenou Wyclif como herege e ordenou que seus restos mortais fossem removidos de solo consagrado. Hiis, que era entáo tido de modo geral como o discípulo dedicado do heresiarca Wyclif, pouca coisa poderia esperar daquela assembléia. Fundamentado em trinta ensinos errôneos atribuídos a Hus, o concílio exigiu sua submissão completa. Mas o reformador tcheco era do tipo heróico. Algumas das acusaçóes ele rechaçou, afirmando que eram falsas pois baseadas em interpretagóes equivocadas. Outras posi~óesele recusou-se a modificar, a menos que fosse convencido pela Escritura e pelos pais antigos dc que estavam erradas. Ele não submeteria sua consciência ao juízo do concílio. Foi condenado e queimado em 6 de julho de 1415, enfrentando a morte com a mais firme coragem. Enquanto Hus estava encarcerado em Constança, seus seguidores em Praga, em outubro de 1414, começaram a administrar o cálice aos leigos na Ceia do Senhor - uma atitude que Hus aprovava e que logo se tornou no sinal característico do movimento hussita. A notícia da morre de Hus provocou enorme ressentimento na Boêmia, ao qual foi adicionado mais combusiívcl quando o concílio de Constança proibiu o uso laico do cálice e provocou a morte na fogueira, de Jerônimo de Praga, colega e amigo mais radical de Hus, em 30 de maio de 1416.

A Boêmia estava em revolta. Dois partidos se desenvolveram ali: um partido aristocrático, moderado, tendo sua base principal em Praga e conhecido como utraquista (comunháo sub utraque, i.e., tanto no pão como no vinho) ou calistino (do latim calix, cálice), ou simplesmente praguista; e um partido democrático, radical, chamado de taborita, pois sua fortaleza era em Tabor. Os utraquistas proibiam apenas aquelas práticas que julgavam proibidas pela "Iei de Deus", i.e., a Bíblia. Os taboritas repudiavam todas as práticas para as quais náo se podia encontrar garantia expressa na "lei de Deus". As facções enfrentaram uma disputa feroz, mas em 1420 se uniram adotando um programa

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UISTÓRIA DA IGREJA CRI SI^

religioso comum, os "Quatro Artigos de Praga", que exigia a livre pregação da Palavra de Deus, o cálice para o laicato, a pobreza apostólica e uma vida clerical e laica estrita. Juntas elas também resistiram a repetidas cruzadas direcionadas contra a Boêmia. Sob a lideranca de um general caborita que tinha apenas u m olho, e que eventualmente ficou totalmente cego, João Siska de Trocnov, todas as tentativas de esmagar os hussitas foram sangrentamente derrotadas. Os oponentes dos hussitas também não tiveram êxito após a morte de Siska em 1424. Sob Procópio, o Grande, os hussiras conduziram a guerra para além das fronteiras da Boêmia. Era inevitável algum tipo de acordo. O concílio de Basiléia, após demorada negociação, atendeu parte das exigências dos hussitas em 1433, concedendo o uso

do cálice e, até certo ponto, as outras exigências dos Quatro Artigos. O s raboritas, insatisfeitos, resistiram e foram quase totalmente eliminados pelos utraquistas em 1434, na batalha de 1,ipan na qual morreu Procópio. Os utraquistas vence-

dores fizeram então um acordo, a "Compactata", com o concílio de Basiléia, em

1436, através do qual foram restaurados à comunhão romana. Porém, em 1462, o papa Pio 11 (1458-1464) declarou nulo tal acordo. O s utraquistas náo obscante mantiveram seu ~ o d e er a Dieta Boêmia, em 1485 e novamente em 1512, declarou a igualdade total dos utraquiscas com os cat.ólicos. Na Reforma, uina parte considerável abraçou as novas idCias; uns poucos retomaram para a igreja romana. Os verdadeiros representantes dos princípios de Wyclif foram os taboritas e não os utraquiscas. Do movimento hussita em geral, com elementos extraídos dos taboritas, utraquistas e valdenses, floresceu, a partir de cerca de 1458, a

Unitas Fmtr~rm(Unidade dos Irmáos Boêmios), que absorveu muito daquilo que era vital no movimento hussita e tornou-se o ancestral espiritual dos morivios posteriores (ver VII:6). Frequentemenre Wyclif e Hus têm sido chamados precursores da Reforma. Esta designacão é apropriada

110

que se refere ao seu protesto contra os abusos

eclesiásticos, sua exaltaçáo da Bíblia e sua conrribuiçáo à soma total da agitação que por fim resultou em reforma eclesiástica. As doutrinas fundarnencais dos reformadores protestantes, porém, devem muito pouco de sua substância às doutrinas de Wyclif e de Hus, e eles foram muito mais radicais em sua ruptura com o ensino tradicionai. Náo obscante, a medida em que Wyclif e Hus e um g a n d e número de pensadores "ortodoxos" do final da Idade Média, estavam já confron-

raiuis v

A IDADE MEOlA POSTERIOR

453

rando as mesmas questóes centrais que os reformadores protestantes iriam confrontar, eles podem ser corretamenre denominados "precursores" da Reforma. Houve uma continua~áobásica de

embora não de "respostas".

Capítulo 14

Os Concilias Reformadores O cisma papal era o escândalo da cristandade; dar-lhe um fim, porém, náo era fácil. A lógica da Cpoca medieval era que náo existia sobre a terra poder perante o qual o papado fosse responsabilizado. Porém, as pessoas bem intencionadas percebi-

am que o cisma devia ser terminado e que a igreja precisava de reforma "na cabeça e nos membros"

- isto é,

no ~ a p a d oe no clero. As reformas desejadas eram morais e

administrativas, não doutrinárias. Entre os que procuravam seriamente remédio para o cisma estavam os mestres da época, de modo especial os da universidade de Paris.

Ali, em 1324, Marcílio de Pádua proclamara a supremacia de um concílio !geral em seu De-nsorpacis. Marcílio, entretanto, negara toda aucoridade jurisdicional a sacerdotes e prelados e também negara a fundaçáo divina do papado. Estas idéias radicais não encontraram simpatia entre os "conciliaris[as" do final do século caIorze em Paris e em outros lugares, que trabalhavam sobre trddicóes completameníe ortodoxas de teologia e direito canônico para apoiar sua reivindicaçáo básica, de que a da autoridade jurisdicional na igreja reside na totalidade do conjunro de seus mcmbros, conforme reprcsenrado em um concílio geral. O papa, por sua vez, recebe essa plenitude de poder como o "ministro principal" da "corporaçáo" eclesiástica, e deve exercitá-lo sempre para o bem de toda a igreja. O principio conciliarista central da superioridade de um concílio geral sobre o papa foi primeiramente apresentado com rigor acad2mico em matados de 1179 e 1380 por um doutor em direito canônico, o alemáo Conrado de Gelnhausen (13202-1390), entáo residente em Paris, e depois em um tratado de 1381 de outro erudito demão em Paris, Henrique de Langenstein (1 330'-1397).

A idéia de um concilio gera1 como o melhor meio para remediar o cisma - a assim

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A I S T ~ R I ADA IGREJA CRISTÁ,

chamada viu cuncilii - logo conquistou adeptos e não somente na universidade de Paris mas também na grande escola de direito canônico de Bolonha, e até entre os cardeais. No entanto, a solu~áocoiiciliar apresentava muitos problemas, especialmente porque o direito canônico estipulava que a assembléia teria de ser convocada pelo papa. C~nse~uencemente, os líderes em Paris, Pedro de Ailly e João de Gerson demoraram-se para aceitar esse plano. Por outro lado, durante anos foram feitos esforços que redundaram váos para levar os papas rivais a resignarem

- a assim cha-

mada via cessionis. A França, de 1398 a 1403 e outra vez em 1408, retirou seu apoio ao papa de Avinháo sem, no entanto, reconhecer o de Roma, mas seu exemplo praticamente não foi seguido por oucras nacóes. Em 1408 Ailly e Gerson concluíram que um concílio era a única esperança e foram apoiados por Nicolau de Clémanges (1367-1437), ex-aluno e ex-~rofessorda universidade de Paris, e que havia sido secretário de Bento XIII em Avinháo de 1397 a 1405. Agora os cardeais de ambos os papas estavam convencidos da necessidade de um concílio. Reunidos em Leghorn em 1408, em seu próprio nome convocaram uma assembléia desse tipo, a se realizar em 25 de março de 1409, em Pisa. E houve a reuniáo, com a presenca náo só de cardeais, bispos, chefes das grandes ordens, principais abades, mas também de doutores em teologia e direito canônico e representantes de soberanos leigos. Nenhum dos papas esteve presente ou reconheceu sua legitimidade. Os dois foram depostos pelo concílio, acusados de cismáticos e heréticos. Isto foi uma afirmaçáo prática de que o concílio estava acima do papado. Sua ação, entretanto, foi precipitada, pois em lugar de se certificar, como aconselhara Ailly, se o indicado como novo papa seria aceito por todos, os cardeais elegeram Pedro Philarglzi, arcebispo de Miláo, o qual tomou o nome de Alexandre V (1409-1410).

O concílio entáo se dissolveu, relegando a questáo da reforma para um futuro concílio. De algum modo, tornara-se pior a situaçáo do que antes da reuniáo do concílio. Roma, Nápoles e partes consideráveis da Alemanha permaneceram fiéis a Gregório XII. Espanha, Portugal e Escócia apoiaram Bento XIII. Inglaterra, França e partes da Alemanha reconheceram Alexandre V. Agora havia três papas, três admini~tra~óes curiais e três colégios de cardeais. Contudo, apesar de suas falhas, o concílio de Pisa demonstrara que a igreja era uma, e isso alimentou a esperanca de que um concílio melhor poderia terminar com o cisma. Esta assembléia fora convocada pelos cardeais - uma acáo sem precedentes. Dc acordo com o eminente conciliarista Dietrich de

PERIOBO Y

R IDADE MEDIA POSTERIOR

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Niem ( 1 340?-14 18), uma convocaçáo pelo imperador, se possível com o assentimento de um ou mais dos papas, estaria de acordo com a prática da igreja primitiva.

O recém-eleito imperador do Sacro Império Romano, Sigismundo (14 10- 1437), adotou a proposta de Dietrich. O próprio Sigismundo reconhecia como papa Joáo XXIII (1410-1415),um dos mais indignos ocupantes do cargo, que havia sido eleito sucessor de Alexandre V, na linha de Pisa. Sigismundo utilizou as dificuldades de Joáo com o rei Ladislau de Nápoles para conseguir dele uma ação conjunta pela qual o imperador eleito e o papa convocariam um concílio que se reuniria em Constança

em l o de novembro de 1414. E lá se reuniu a mais brilhante e a mais numerosa assembléia da Idade Média. Sigismundo compareceu pessoalmente, e Joáo XXIII presidiu. João esperava conseguir o reconhecimento do concilio. Com esta finalidade leva-

ra consigo muitos bispos italianos. Para neutralizar seus votos, o concílio (composto de patriarcas, arcebispos, bispos, abades, priores, doutores em teologia e em direito canônico e representanres dos soberanos) organizou-se em quatro "naçóes" - os ingleses, os alemães, os franceses e os italianos. Cada "naçáo" tinha apenas um voto, e também foi atribuído um voto aos cardeais. Desapontado com a decisáo do concítio, Joáo XXIII procurou fazer fracassar o concílio, fugindo em marco de 1415. Sob a vigorosa direçáo de Gerson, o concílio, entretanto, declarou em 6 de abril de 141 5, no famoso decreto Haec sancta synodus (ou Sarrosanctil), que "este santo Concílio de Constança ... declara, primeiro, que está legalmente reunido no Espírito Santo, que constitui um concílio geral representando a Igreja Católica e que, portanto, tem sua autoridade imediatamente de Cristo; sendo que todos os homens, de qualquer ordem ou condicáo, incluindo o próprio papa, são obrigados a obedecer-lhe em matérias de fé, de aboliçáo do cisma e da reforma da Igreja de Deus em sua cabeça e em seus membros."' Em 29 de maio o concílio declarou Joáo deposto sob a acusacáo de conduta escandalosa. Em 4 de julho Gregório XII resignou, mas somente após reunir formalmente o concílio sob sua própria autoridade (e desta forma assegurando, pelo menos na sua cabeça, o reconhecimento tácito por parte do concílio da legitimidade da linhagem romana de papas). O concílio livrara assim a igreja dos papas de Roma e de Pisa mediante a feliz afirmaçáo de sua autoridade suprema sobre todos na igreja. E fácil verificar porque seus guias insistiram na plena submissão de Joáo Hus,

456

IISTÓRIA DA IGREJA CRISIL

cujo processo e martírio se deram na época destes eventos (ver V:13). Com o papa de Avinháo, Bento XIII, a coisa foi mais difícil. O próprio Sigismundo viajou até a Espanha para se encontrar com Bento, mas aquele obstinado poi~tífice recusou-se a resignar. O que Sigismundo náo conseguiu com Bento, obteve com os reinos espanhóis, que, juntamente com a Escócia, repudiaram a Bento. Os espanhóis se uniram ao concílio como a quinta "nacáoXe, em 26 de julho de 1417, Bento, ou Pedro de Luna, como mais uma vez passou a ser chamado, foi formalrneilte deposto.

A prudente acáo do concílio, em contraposi~áoà pressa de Pisa, certificara-se de que nenhuma parte considerávei da cristandade apoiasse os papas anteriores. Um dos principais alvos do concílio de Conscança tinha sido a reforma moral e administrativa. Como instrumento de reforma, porém, o concílio foi uma amarga decepgáo, uma vez que os ciúmes e as rivalidades das diversas "naçóes" impediram açáo efetiva. Seu único g a n d e êxito foi ter terminado com o cisma. Em novembro de 1417 os cardeais, juntamente com seis representantes de cada naçáo, elegeram um cardeal romano, Oto Colona, como papa. Escolheu o eleito o nome de Martinho V (1417-1431). A cristandade romana rinha umavez mais uma única cabeca. Em abril de 1418 o concílio foi encerrado com a promessa do novo papa de convocar outro dentro de cinco anos, em obediência a outro famoso decreto do concílio, Frequens (9 de outubro de 1417).

O concíiio de Constança foi uma experiência eclesiástica revolucionária. Ele substiruiu a monarquia papal absoluta pela autoridade representativa de um concílio geral. O papa, embora permanecesse como o executivo da igreja, recebia sua posição e direitos da totalidade dos cristáos agindo por meio de uin concílio geral, que deveria reunir-se em intervaios frequentes. O papa havia se tornado, quando muito, um monarca constitucional limitado. Pareceu por um tempo que esta !grande mudança havia sido realmente obrida. Martinho V convocou o próximo concílio para se reunir em Pavia, em 1423. A praga impediu um grande número de participantes e forçou sua transferência para

Siena, onde, depois de realizar quase nada, foi peremptoriamente dissolvido pelo papa no início de 1424. Com prazer o papa dispensaria mais concílios. Porém as guerras hussitas preocupavam a Europa e Marrinho V, cedendo à pressáo que lhe era feita, convocou em janeiro de 1431 um concílio a se reunir em Basiléia, e indicou o cardeal Juliano Cesarini para presidi-lo como seu legado. Pouco menos de dois meses depois Martiniio V veio a falecer e Eugênio IV (1431-1447) foi feito papa. Insta-

~ t n i o e ev

A IDADE MEDIA POSIERIOR

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lou-se o concílio em julho de 1431, mas em dezembro Eugênio ordenou sua suspensão para que se reunisse em 1433, em Bolonha. O concílio náo atendeu e renovou a declaraçáo de Constança, de que ele era superior ao papa. E assim, praticamente desde o princípio, houve má vontade entre o concílio de Basiléia e o papa. Atentando para o fato de que o ciúme entre as "nações" havia frustrado os planos de reforma em Constança, o concilio rejeitou tais agrupamentos e criou em lugar deles quatro grandes comissões (de reformas, doutrina, paz pública e questóes gerais). Ele começou seu trabalho com enorme vigor e promessa de êxito. Promoveu aparente reconcilia~áo,em 1433, com os hussitas moderados (ver V: 13). A unidade da igreja parecia restaurada. O papa encontrou pouco apoio e, antes de terminar 1433, reconheceu formalmente o concílio. Seu futuro parecia assegurado.

O concílio de Basiléia entregou-se, entáo, àquelas reformas morais e adrninistrativas náo efetuadas em Conscanqa. Ordenou a realizaçáo de um sínodo anual em todas as dioceses; nos arcebispados, de dois-em dois anos. Nestes sínodos seriam examinados e corrigidos os abusos. Dererminou ainda que houvesse um concilio geral de dez em dez anos. Reafirmou o antigo direito da eleiçáo canônica, conrra as nomeações papais. Limitou os apelos a Roma. Fixou em vinte e quatro o número de cardeais e determinou que nenhuma nação tivesse representaçáo maior que um terço no colégio. Extinguiu compietamente as anatas e as outras tributações mais opressivas do papado. Por mais benéfica e necessária que tenha sido esta limitaCáo dos privilégios papais rradicionais, o espírito no qual foi feita era de crescente atitude de vingança contra o papa Eugênio. Foram abolidos quase que completamente os impostos que mantinham o papado, no entanto náo se teve o cuidado de estabelecer meios honrosos de substit~ii-10s.Tal falha náo só aumencou as iras do papado como provocou divisões dencro do próprio concílio. Naqueia altura apresentou-se ótima oportunidade, da qual plenamente se aproveitou Eugênio IV. Sobre ela o concílio agiu t2o erroneamente que arruinou suas boas perspectivas.

O império oriental se encontrava em sua luta final com os turcos conquistadores. Esperando conseguir auxílio do Ocidente, o imperador Joáo VI11 Palacólogo (14251448), juntamente com o patriarca de Constantinopla, José I1 (1416-1 439) e Joáo Bessarion (1395-14721, o sagaz arcebispo de Nicéia, estava disposro a negociar a união das igrejas grega e latina. Tanto o papa como o concílio estavam dispostos a usar essa aproximação em benefício próprio. A maioria do concílio queria que os gregos fossem a Basiléia ou a Avinháo. O papa oferecia uma cidade italiana, o que era

naturalmente preferido pelos gregos. Em 1437 o concílio se dividiu quanto a esta questão, separando-se a minoria, levando consigo a Cesarini e o até entáo fiel conciliarista, NicoIau de Cusa (140 1- 1464; ver V: 17).Eugênio IV entáo anunciou a transferência do concílio para Ferrara para Iá se encontrar com os gregos. A minoria concordou e lá chegou, em marco de 1438, o imperador oriental, acompanhado de muitos prelados. Praticamente o papa saíra vencedor. Acontecimento de tanta relevância como o possível congraçamento da cristandade tirou do concílio de Basiléia, que ainda continuava, muico do seu interesse.

O concílio de Ferrara, trazido para Florença em 1439, assistiu a prolongadas discussóes entre gregos e latinos, cujo resultado final foi a aceitaçáo do primado do papa, mas em termos vagos que pareciam preservar os direitos dos patriarcas orientais. 0 s gregos conservariam suas peculiaridades no culto e o clero continuaria podendo casar. Ao mesmo tempo os gregos reconheceriam a questionada cIáusula do j l i o q u e do credo niceno mas com o acordo de que náo a incluiriam no antigo símbo-

lo. O combativo merropoli~ade Éfeso, Marcos, náo concordou, mas o imperador e muitos dos seus acompanhantes eclesiásricos aprovaram. Entáo a reuniáo das duas igrejas foi jubilosamente proclamada em julho de 1439, na bula Luetentar coeli. Táo feliz desfecho aumeritou o prestígio do papa Eugênio IV. A irreaiidade do acordo náo foi logo percebida. Reunióes com armênios e com certos grupos de monofisitas e nestorianos foram também anunciadas em Florenga ou logo após o concílio. Desde o início, porém, os monges orientais se opuseram. No retorno dos gregos, Marcos de Éfeso se tornou o herói do momento. Bessarion, a quem Eugênio fizera cardeal, teve de fugir para a Itália, onde teria notável papel em servicos literários e eclesiásricos.

Os gregos não receberam do Ocidente nenhuma ajuda militar substancial e a tomaa turcos, em 1453, frustrou para sempre as esperangas da de C ~ n s t a n t i n o ~ lpelos politicas que haviam inspirado os esforqos pela união, em 1439. Nesse meio-tempo, a maioria em Basiléia prosseguiu para atos mais radicais, sob a direçáo do único cardeal que ficara com ela, o hábil e excelente mas ditatorial Luís d'illeman de Arles (1380)-1450).Em 1439 votou a deposiçáo de Eugênio IV e escolheu como seu sucessor um leigo meio-monge, o duque Amadeu da Sabóia, que tomou o nome de Félix V. Por essa época, entretanto, o concílio de Basiléra estava perdendo rapidamente a influência que ainda tinha, no mínimo porque era visto como precipitando um novo cisma papal. Eugênio IV, na verdade, havia triunfado, e foi sucedido em Roma por NicolauV (1447-1455).Félix V abandonou seu impos-

sjvel papado em 1449. O concílio enfrentou da melhor maneiia que

a sua

derrora, escolhendo como seu sucessor Nicolau V, decretando assim sua própria dissolução (1449). Embora a teoria cot~ciliarainda continuasse viva e viria a ser poderosa na +oca da Reforma, o fiasco em Basiléia havia realmente destruído a esperança de transformar o papada em uma monarquia constitucional, ou de efetuar as necessárias reformas por inrermédio da acáo de um concílio. O papado emergiu da resultante era de "resrauraçáo" como uma monarquia que novamente era absolutista em suas reivindica~óes,agora armada com a primeira definiçáa conciliar da primazia papal, ou seja, aqueia do decreto de união Lneterztur. meli, de 1439.

As rei~indica~óes absalutistas, entretanto, uma vez mais encontraram oposicão formidável, náo de concilias eclesiásricos mas das naçóes individuais que se haviam benef ciado do Grande Cisma e da "experiência conciliar". Os reis ingleses, por exemplo, nunca desde o cativeiro do papado em Avinhão tinham rido sucesso e assegurado sua parcela de nomeações e taxas eclesiásticas, e agora esravam determinados a preservar estes ganhos. O mesmo valia para os monarcas franceses. Em 1438 o rei Carlos VI1 (1422-14611, com o clero e a nobreza, adotou a assim chamada Sanção Pragmática de Bourges, pela qual foram legalizadas na França a maior parie das reformas pretendidas em Basiléia, livrando assim a França das opressoras taxas e incerferencias papais. A Alemanha náo teve ranra sorte. Lá, em 1439, os nobres no Reichstag em Mainz adotaram uma "aceiraçáo" que lembrava em muito a "sanqáo

pragmática' francesa; mas as divisões e fraqueza do país permitiram a intriga papai, de forma que essas provisóes forarli de efeito prático limitado pela coricordara de Viena, em 1448. Foram garantidos certos privilégios a príncipes em particular, mas a Alemanha como um todo continuou sob a opressão dos impostos papais. Por todo o período do Grande Cisma e dos concílios, uma nova forca estava assim manifesrando-se - a da nacionalidade. O concílio de Consrança autorizara as "naçóes" a negociar com o papado. A Boêmia havia lidado com sua situação religiosa como uma naqao. A Inglaterra e a França haviam assegurado seus direitos nacionais.

A Alemanha também havia tentado isso. Com o fracasso dos concílios em execurar uma reforma cornplera, as pessoas começaram a se perguntar se o que elas estavam buscando náo poderia ser alcançado mediante a acáo nacional. Esre era um sentimento qiie iria prosperar até a Reforma, e iria influenciar sobremaneira o curso daquela disputa.

Capítulo 15

O Renascimento Italiano e seus Papas; Líderes Reiigiosos Populares O evento intelectual mais notável còntemporâneo do papado em Avinháo e o Grande Cisma foi o início do Renascimento. Esta grande alteraçáo na perspectiva mental foi por muito tempo tratada como sem antecedentes medievais. Presentemente se reconhece que a Idade Média não faltou com atençáo às preocupaçóes ".

individuais" e "humanísticas", que o controle da igreja nunca foi tamanho a ponto

de tornar a sobrenaturalidade totaimente dominante, e que os monumentos literários da antiguidade latina, pelo menos, eram amplamente conhecidos. O reavivarnento do direito romano, começando por volta de 1100, havia atraído atençáo crescente para aquele traço normativo do pensamento antigo, primeiro na Itália e depois na França e AIemanha. Todo o século doze, ademais, havia testemunhado u m reavivamento da lógica e das artes liberais nas escolas, incluindo a redescoberra gradual da totalidade da coleção aristotélica, que culminou nas grandes summae reológicas do século treze, com sua atencáo característica à "natureza" não menos que à "grap". Todavia, quando todos estes elementos sáo reconhecidos, permanece verdadeiro que o renascimento dos séculos catorze, quinze e dezesseis envolveu uma sutil, e cumulativamente da maior significância, mudanca na perspectiva do mundo, na

qual uma ênfase relativamente maior foi colocada na beleza, dignidade e satisfação da vida presente do que em uma vida futura de bem-aventurança ou destruiçáo, e foi atribuido às pessoas mals valor como seres humanos do que como objetos de salva-

ção ou condenação eterna. O meio pelo qual essa transformação foi forjada foi uma reapreciaçáo do espírito da antiguidade clássica, especialmente conforme manifesto nos seus grandes monumentos literários. Aos olhos de seus principais participantes e patronos, o renascimento foi nada menos do que um "renascimento" (italiano,

renascimenro; francês, renaissdnce) da cuitura em geral, e da culcura clássica em particular, após séculos de "trevas" e "barbarismo".

O zelo pela redescoberta e estudo da literatura clássica foi primeiramente exibido na Itália, onde uma cultura urbana sofisticada estava se desenvolvendo desde o final

do século treze. O fundador do "humanismo" renascen~ista(stz~diuhumanitatis, o estudo das artes liberais ou humanas) foi Francisco Petrarca (1304-1374),que foi criado em Avinháo, onde passou a maior parte de sua vida até 1353, quando passou a viver principdmenie em Milão, Veneza e Pádua. Ele era um ávido leitor dos escritores latinos antigos, especialmente Cícero e Sgneca, nos quais modelou seu elegante estilo neo-latino. Ele tambérxz Foi um crítico resoluto da filosofia aristotilico-averroís~a,

e conseqüentemente da teologia escofástica, como inimigas da religião cristá. Sua

rejeiçáo do escolasticismo, portanto, náo implicou uma rejei~áoda fé e piedade cristã; ao contrário, expressou uma preferência consciente pelo clissico sobre a tradiçáo medieval. Em Petrarca encontramos, acima de rudo, a reivindicação insistente de

que os seres humanos e seus problemas, incluindo seu telacionamenro com Deus, deve ser o centro de todo pensamento e filosofia, de tal forma que tais estudos sáo verdadeiramente as "hurnanidades'"(humdnio~a). Para este fim, Petrarca tomou Santo Agostinho como seu guia inrelrctual e saudou Plaráo como o maior de todos os filósofos. Em rodos estes aspectos - sua "eloqüência" ciceroniana; seu antropocentrismo; sua oposição cio escoiasticisrno; sua exalraçáo da "sabedoria" agostiniano-piatônica; e sua convic~áode que a erudição clássica e a fF cristá podem ser reconciliadas - Petrarca surge como a fonte primária do movimento hurnanístico

e o símbolo do ejemento "moderno" na culrura renascetitista. O reavivamento da cultura literária latina, iniciado por Pe~rarca,foi logo acornp n h a d o por um "reavivamento grego", que anrecedeu em muito a queda de Constantinopla em 1453, embora posteriormente tenha recebido novo ímpeto com a chegada de refugiados daquela catástrofe. Já em 1360, um amigo e aliado de Petrarca, Joáo Boccaccio (13 13-2 375), autor do famoso Decumevun, trouxe Leôncia Pilatos da Calábria para Florença para lecionar estudos gregos. Em 1397, o ilusrre erudito bizaritino Manuel Chqsolaras (1355)-1415) foi indicado para a cátedra de estudos gregos na uriiversidadç de FIorença. Eritre seus notáveis estudarites estava Leonardo Bruni (1370)-1444)que, quando posteriormente chanceler de Florença, combinou o amor à erudicáo com a participaçáo ativa na plítica - um "humanismo cívico" que se rosnou um traço peculiar da cultura renascenrista. O concilio de Ferrara-Florença, em 1438-1439, ao juntar gregos e latinos, fomentou grandemente o desejo de dominar os tesouros literários do Oriente. Entre os líderes gregos nesse concílio estavam dois eminentes platônicos: Joáo Bessarion (1403-1472),arcebispo de Nicéia, que foi cardeal na igreja romana no final de sua vida; e George Gemisto Plethon (1355?-

HlSIbRlA OR IGREJA C R I S T ~

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1450),o qual ensinou sobre Platáo em Florença e com isso inspirou o líder populista florentino, Cósimo de Médici (1389-1464),a estabelecer a assim chamada Academia Platônica, em 1462, sob a direção de Marcilio Ficino (1433-1499). Ficino, que se tornou padre em 1473, combinou o cristianismo com o neoplatonismo em uma "teologia platônica", que identificava os seres humanos como o centro de uma grande hierarquia de seres, e Cristo - o Logos divino feito carne como inrermediário entre os mundos material e espiritud. A "filosofia piedosa" de Ficino exerceu uma influência pofunda além dos Alpes em admiradores tais como Jacques LeFèvre dlÉtaples na França e Joáo Coleto na Inglaterra. Coleto, por sua vez, transmiriu-a a Erasmo. Quase tão influente foi outro membro da Academia Platônica, o brilhante jovem filósofo Joáo Pico de Mirandola (1463-1494),cuja Orardo

sobre a dignidade do homem é um dos escritos mais famosos do renascimento. Seu zelo pelo hebraico e pela tradiçáo rníscica da cabaia judaica iria inspirar Johannes Reuchlin e, por meio dele, introduzir os estudos hebraicos no humanismo sei-entrional. Os humanistas do renascimento italiano reviveram a literatura da antiguidade cristã como também da cultura clássica. O convento carnaldolese de Santa Maria degli Angeii, em Florença, tornou-se um centro para o estudo dos pais da igreja grega sob seu superior humanista, Ambrósio Traversari (1386-1439). O estudo da literatura patrística também recebeu as energias de Bessarion, Bruni e, especialmente, Lourenço Valla (1406-1457).Valla, que era primeiramente gramática e filólogo, desenvolveu tamanho senso crítico e histórico agudo, que foi capaz de denunciar a doacáo de Constantino (ver IV:4)como uma falsificaçáo do oitavo século, para demonstrar que os escritos atribuídos a Dionísio o Areopagita (ver 1II:lO) eram espúrios, e para negar que o Credo dos Apóstolos havia sido realmente composto pelos apóstolos. Eie também lançou os fur-idarnentosdos estudos textuais do Novo Testamento com sua comparação crítica da Vulgaca Latina com o texto grego.

O renascimento esteve longe de ser um reavivamento do paganismo. Podemos estar certos, os humanistas, dos quais a grande maioria era composra de leigos, direcionaram muito de seu interesse na modelaçáo de uma nova "moralidade secular" - um ideal de virtude e da vida virtuosa, extraído da sabedoria antiga - que seria direramente relevante para a vida política e comercial dos abastados cidadáos da classe alta das comunas italianas. Contudo, eles náo percebiam nenhuma contradiçáo hndarnental entre a ética cristã e a clássica, e de modo gerd procuravam nas

FERIOIO V

A IDADE MEDIA POSTERIOR

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fontes clássicas corroboraçáo para a verdade do cristianismo. Sua condenação da teologia escolástica - que náo deve ser exagerada, uma vez que muitos humanistas eram na realidade escolásticos "de mente reformada" - raramente envolveu a rejeiçáo da doutrina cristá básica. E os principais filósofos do renascimento - Ficino, Pico e Nicolau de Cusa (ver V: 17) - eram "agostinianos" em sua síntese de cristianismo e platonismo. A cultura renascentista, resumindo, embora primariamente "secular" e "laica", náo era intrinsecamente "irreligiosa" ou "anti-clerical". Aqui não é possíveI identificar, muito menos revisar, as notáveis, frequentemente monumentais, realizações da totalidade do movimento renascentista na pintura, escultura, arquitetura, música e literatura vernacuiar. Mas pelo menos deve ser mencionada, todavia, uma inovasão tecnológica sensacional, ou seja, a impressáo por meio de tipos móveis, que foi introduzida por volta de 1450 por Joáo Gutemberg, de Mainz. Esta invenção aumentou grandemente o público leitor, ao tornar os livros disponíveis em quantidade e a um preço razoável, e isso logo tornou possível a mais ampla disseminaçáo de erudição humanisca e, posteriormente, do ensino da Reforma. Em 1500, mais de duzentas casas de impressáo haviam sido estabelecidas nas terras européias.

Embora Florença fosse a "cidade rainhá' do renascimento, o rnovimen~ofoi influente em muitas outras cidades italianas, não menos em Roma, onde ele encontrou uma série de poderosos patronos entre os próprios papas, cujas cortes, e aquelas de seus cardeais, tornaram-se locais de exposiçáo da opulência renascentista. O primeique fundou a biblioteca ro dos papas do Renascimenco foi NicolauV (1447-1455), do Vaticano e desenvolveu ambiciosos projetos para reconstruir Roma. O próximo papa, o espanhol Alfonso Bórgia, que assumiu o nome de Calixto 111 (1455-1458), não era amigo do humanismo e estava intencionado, séria embora infrutiferamente, a promover uma cruzada para expulsar os turcos da recém-conquistada Constantinopla. Um ocupante mais notável do papado foi Enéias Sílvio Piccolomini, que governou como Pio II (1458-1464). No inicio da vida foi defensor do movimento conciliar, tendo sido participante ativo no concílio de Basiléia, e conquistou renome como escritor humanista de tom decididamente náo clerical. Reconciliado com Eugênio IV, ele tornou-se cardeal, e por fim papa, opondo-se a todas as idéias conciliares que havia defendido no passado; na bula Execabilis de 1460, ele proibiu todos os fucuros apelos do papa a um concílio !geral. Seus esforços perpetrados para instigar a Europa a uma cruzada contra os turcos foram novamente em vão. Apesar

HISIORIA DA IGREJA C R I S T ~

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de sua atitude mutávet e frequentemente egoísta, ele teve a mais digna concepçáo dos deveres do ofício papal que qualquer papa da última metade do século quinze. Pio I1 foi seguido por Paulo 11 (1464-14711, um colecionador de antiguidades e amigo da erudição, que náo obstante suscitou a ira dos humanistas suprimindo a Academia Romana como pagã. Os papas seguintes, de Sisto IV (147 1- 1484) até Leáo X (15 13-

1521), foram patronos das artes e das letras, e !grandes construtores que adornaram Roma e fizeram daquela cidade o cenrro da arte italiana. Entrementes, nos anos seguintes ao concílio de Constanca, os ideais e arnbicóes do papado passaram por uma mudança dramárica. A Itália havia gradualmente se consolidado em cinco grandes estados: Veneza, Milão, Florença, Nápoles (ou reino das Duas Sicílias, como era chamada), e os estados papais (ou estados da igreja) na Itália central. Muitos territórios menores permaneceram fora desses grupos maiores e foram objetos de disputa. A política da Itália tornou-se uma luta caleidoscópica para expandir as possessóes dos poderes maiores e equilibrar uns contra os outros, uma luta na qual intriga, assassinato e duplicidade eram empregados em rima medida quase sem paralelo.

O papado mergulhou totalmente nesse jogo da política italiana. Sua maior preocupaçáo foi manter a independência política e consolidar e expandir os estados papais, o conrrole eferivo dos quais havia sido impossibilitado pela permanência em Avinháo e o Grande Cisma. Começando com o pontificado de Martinho V, o papa escoihido em Consrança, os objetivos e métodos do papado foram iguais àqueles dos outros estados italianos e, quaisquer que fossem suas hesitantes aspirações a monarquia universal, o papado agora tomava seu lugar como apenas um estado entre muitos estados competidores. Seus ocupantes foram reduzidos ao status de príncipes italianos, e o ofício papal tornou-se secularizado como em nenhum outro período de sua história, excero

o século décimo. Com Sisto IV, um ex-superior

geral da ordem franciscana, a ambiçáo política e o nepotismo desavergonhado tomaram controle quase completo da Santa Sé. Sisto guerreou concra Florença, procurou enriquecer e fazer prosperar seus parentes, e empenhou-se em estender os estados papais. Ele construiu extensivamente - a Capela Sistina preserva seu nome - e gastou táo liberalmente que somente o aumento dos imposros papais poderia evitar a bancarrota.

O próximo papa, Inocêncio VI11 (1484-l492),ficou notório pela maneira na qual buscou aumentar as fortunas de seus filhos (ele teve dezesseis), seus gastos extra-

palein v

A IDADE MÉLII~ POSTERIOR

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vagantes e sua venda de ofícios. Ele chegou até mesmo a receber uma pensáo anual do sultáo turco Bajazé I1 para manter prisioneiro o irmáo e rival deste, Djem. O sucessor de Inocêncio, o espanhol Rodrigo Bórgia - sobrinho de Calixto 111 - assumiu o nome de Alexandre VI (1492-1503), obteve o papado subornando os carde-

ais. Embora um homem de imoralidade desenfreada, ele era um bom administrador das finanças papais e possuía dote político considerável. Sua grande preocupaçáo foi fazer seus filhos bastardos prosperarem, especidmente sua filha, Lucrécia Bórgia, através de casamentos vantajosos, e seu filho inescrupuloso e assassino, César Bórgia, ajudando-o a conseguir para si uma principalidade com partes dos estados papais. Seu reinado assistiu ao início d o colapso da independência italiana quando, em 1494, o rei Carlos VI11 da França (1483-1498) invadiu a Itália numa tencativa de assegurar as reivindicações francesas ao reino de Nápoles. Em 1499, Luís XII da França (14981515) conquistou Milão, e em 1503 Fernando o Católico, da Espanha (1479-15 1.6), se apoderou de Nápoles. E a Itália tornou-se o miserável campo de batalha das rivalidades francesas e espanholas. Em tais circunstâncias, não foi fácil proteger e ampliar o poder temporal do papado, mas essa tarefa foi realizada pelo mais guerreiro de todos os papas, Júlio I1

(1503-1513), sobrinho de Sisto IV. As rixosas famílias Orsini e Colonna foram reconciliadas, César Bórgia foi expulso da Itália, as cidades da Romagna foram libertas de seus conquisradores venezianas, e as várias naqóes na Europa foram agrupadas em ligas, com a conseqüência de que os franceses foram, por aquela época, expulsos da Itália. Nesta disputa, Luís XI1 defendeu uma paródia de um concílio geral em Pisa (15 1I), ao qual Júlio respondeu convocando o Quinto Concílio Laterano em Roma. Ele se reuniu de 15 12 a 15 17, mas embora tenham sido ordenadas reformas, ele náo realizou nada de imporrância. Júlio I1 foi indubitavelmente um governante de gran-

de talento, que liderou seus soldados pessoalmente e foi animado por uma vontade de edificar os estados papais no lugar de enriquecer seus parentes. Como patrono da arte e construtor ele está entre os mais eminentes dos papas. Além de iniciar a construçáo da nova basílica de Sáo Pedro, inicialmente sob adireqáo de Donato Bramante (1444-1 5 14), ele comissionou Rafael(1483-1520) para executar os afrescos nos apartamentos julianos e Miguelângelo (1475-1564) para pintá-los no teto da capela Sisrina. Júlio TI foi sucedido por João de Médici, que tomou o nome de Leáo X (15 131521). A todos os prazeres artísticos e literários da grande família florentina da qual fazia parte, ele combinou o amor à ostentaçáo e gastos extravagantes. Muito menos

guerreiro do que Júlio 11, e livre dos vícios pessoais de alguns de seus predecessores,

ele náo obstante estabeleceu como sua meta principal a expansão dos estados papais e o equilíbrio das diversas facções da Itália, domésticas e estrangeiras, para a vantagem política do papado. Em 15 16, por meio da concordata de Boloiiha com Francisco I da França (1 5 15-1547), ele assegurou a abolição da anterior Sanção Pragmática de Bourges (ver V: 14),em termos que permitiam ao rei a nomeação de todos os altos cargos eclesiásticos franceses e o direito de taxar o clero, enquanto que as anatas e outros impostos semelhantes ficavam para o papa. No ano seguinte, iniciou-se uma revolta na Alemanha, cuja gravidade Leão nunca realmente entendeu, mas que iria afastar metade da Europa da obediência romana. Estes foram os papas que represenraram o renascimento italiano, mas eles de maneira alguma personificaram o espíriro real de uma igreja que era para milhóes a fonte de conforto nesta vida e de esperança para a vida vindoura. Nem o papado representou a vida religiosa autêntica da Itália. O Renascimento foi um movimento elitista, influenciando apenas as ciasses instruídas e superiores. As massas respondiam aos apeIos dos pregadores penitenciais e ao exemplo daqueles em quem elas discerniam os atributos de santidade. Durante os séculos catorze e quinze, viveram na cristandade latina cerca de duzentas pessoas às quais a igreja, naquela época ou mais rarde, concedeu beatificaçáo ou santificaçáo. A santidade era, pois, tanto praticada quanro reverenciada.

O pregador mais notável durante o início do Renascimento foi o dominical10 espanhol, São Vicente Ferrer (1350)-1419), natural de Valência. Entre 1399 e 1419, ele efetuou suas grandes jornadas missionárias pela Franqa, Espanha, Itália setentrional, e partes da Suíça, pregando milhares de sermões a grupos imensos de ouvintes, proclamando a irninência do ÚItimo Dia e convocando os fiéis à vigilância e à confiança na cruz de Cristo como sua única segurança. Defensor dos papas de Avinháo durante o cisma, Vicente procurou levar seus companheiros dorninicanos sob a obediência de Avinháo à estrita observância do ideal original de serviço apostólico de São Domingos. Ele ocupa assim um lugar de honra no movimento medieval tardio

de reforma monástica denominado "Observantino". Talvez a maior força religiosa na Itália do século quinze tenha sido o eloqüente pregador e reformador franciscano Sáo Bernardino de Siena (1380-1444), conhecido como "o apóstolo do nome santo" (seu símbolo era o nome de Jesus, circundado por raios de luz radiante). Ele foi responsável por reformas morais em muitas cidades

PEKIDBB U

A IOADE MtDlll POSTERIOR

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italianas, e em 1438 tornou-se vigário geral dos obscrvantes franciscanos na Itália. Ele foi auxiliado em sua reforma da ordem franciscana por seu discípulo, Sáo Joáo Capistrano (1386-1456), outro pregador eioqtiente, que efetuou missóes por toda Itália, Espanha e França e, a partir de 1451, esteve ativo na Europa oriental, em reaçáo aos hussitas e ao avanço dos turcos. Entre os Iíderes religiosos altamente influentes encontramos uma contemporânea de Vicente Ferrer, Santa Cararina de Siena (1347-13801, a mística italiana bem conhecida do final da Idade Média. Ela também foi uma líder prática de negócios, serva dos pobres, doentes e prisioneiros, curadora de querelas familiares, agenre principal no propósito de persuadir o retorno do papado de Avinháo para Roma, denunciadora destemida do vícios clericais, e embaixatriz à qual papas e outros Iíderes ouviam com respeito. Entre seus discípulos escavam muitos dorninicanos, incluindo seu ex-confessor, Raimundo de Cápua (1330)-1399). Em 1380, Raimundo tornou-se ministro geral da ordem dominicana na obediência romana e, começando em 1389, lançou a reforma de sua ordem estabelecendo conventos de observantes dominicanos na Alemanha. Outro discípulo de Sanra Catarina, e também seguidor fervoroso de Raimundo, foi Joáo Dominici (1356?-1419), que estabeleceu conventos reformados na Itália.

Em 1393, ele tornou-se vigário geral dos observantes dorninicanos na Itália; em 1407, tornou-se arcebispo de Ragusa e, em 1408, foi elevado a cardeal pelo papa Gregório XII, do qual ele foi delegado ao concílio de Constança. Um dos convertidos de Joáo, Santo Anronino de Florença (1389-1459), estabeleceu o famoso convento dorninicano de São Marcos em Florença, em 1436, fazendo dele um centro da observância; em 1446 ele tornou-se arcebispo de Florenca. Aquela cidade, e o convento de Sáo Marcos (onde a memória de Sáo Vicenre Ferrer ainda estava viva), produziu um dos maiores pregadores do final do Renascimento, Girolamo Savonarola (1452- 1498). Natural de Ferrara, Savonarola havia sido endereçado à medicina por sua familia, mas uma desilusão amorosa levou-o a pensar na vida monástica. Em Bolonha, no ano de 1474, fez-se dominicano; oito anos depois foi transferido para São Marcos em Florença, 'do qual se tornou superior em 1491, restaurando-o à observância escrita e tornando-o o centro de uma congregação de casas reformadas. De início foi pregador de escasso êxito, mas em 1490 começou a atrair grandes multidóes com poderosos sermóes conclamando ao arrependimento e à conversáo, e adverrindo, em

vagos termos apocalípticos, sobre tribulaçóes iminentes. A invasáo francesa de 1494, que pareceu confirmar o status deste superior ascético como um profeta divinamente inspirado, provocou uma revoluçáo popular contra os Médicis, e Savonarola se tornou o vero governador de Florença, a qual ele procurou transformar em uma cidade penitencial. Muitos de seus habitantes adotaram uma vida semi-monástica. Os carnavais de 1496 e 1497 assistiram à "queima de vaidades": cartas, dados, jóias, cosméticos, perucas e livros e quadros indecentes foram todos entregues às chamas. Durante aqueles anos, a mensagem de SavonaroIa rambém passou por uma mudança notável, tornando-se mais otimista e anunciando Florença como a "cidade de Deus" e "o coração e centro da Itália". Sem dúvida esse apelo ao patriotismo cívico dos florentinos é responsável em parte pelo triunfo momentâneo de seu programa de reformas. Mas ele rambém suscitou inimigos formidáveis. Os partidários do deposto Mtdici odiavam-no, e o papa Alexandre VI, cujo mau caráter e desgoverno Savonarola denunciava, foi um adversário implacável, movido no mínimo pela política próFrança do frade. Agentes papais excomungaram-no em 1497 e exigiram sua puniçáo. Os amigos o apoiaram por um tempo, mas a volúvel populaça voltou-se contra ele.

Em abril de 1498 foi preso e cruelmente torturado; e em 23 de maio foi enforcado e seu corpo queimado pelos governantes da cidade. Bem menos espetacular, embora silenciosamente efetiva, foi a obra em Gênova de uma mulher notável de nobre nascimento, Catarina Fieschi Adorno, conhecida como Santa Catarina de Gênova (1447- 151O). Seguindo uma experiência de conversão extática em 1474, ela dedicou-se a austeridades estritas e vigílias penitenciais, e desfrutou do raro privilégio leigo da comunháo diária. Uma escritora mística de qualidade, seu maior servico foi o cuidado para com os pobres e os doentes desenganados no hospital genovês, d o qual tornou-se reitora. Devido a sua influência, um jovem advogado, Ettore Vernazza, e três de seus amigos fündaram em Gênova, em

1497, a fraternidade religiosa conhecida como o Oratório do Amor Divino, cujos membros buscavam alcançar uma vida de santificaqáo pessoal por meio de exercícios devocionais comuiis e obras de caridade e benevolência. Muitas associações semelhantes foram fundadas em outras cidades italianas nessa época.

Os veios de espiritualidade e reformas emanando destes líderes religiosos, e de movimentos relacionados tais como a D e v o ~ á oModerna na Europa setentrional (ver V:9), desembocaram no ribeiro maior de reavivamento religioso que é conhecido como a Reforma Católica d o século dezesseis (ver V1:ll). Parte da tragédia da

~ t i i e i oV

A 10A0E MEDIA POSTERIOR

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igreja medieval tardia é que por tempo demais os papas permaneceram fora desses movimentos de reforma, náo exercendo nenhuma liderança efetiva neles e, no caso da maioria dos papas renascentistas, exibindo uma vida que era completamente inimiga de "reforma na cabeça e membros".

Capítulo 16

Os Novos Poderes Nacionais O meio século de 1450 a 1500 assistiu a um notável desenvolvimento da autoridade real e da consciência nacional nos reinos da Europa ocidentat. A França, que parecia bastante arruinada pela guerra dos cem anos com a Inglaterra (1337-l453), delas saiu com sua monarquia muito fortalecida, pois tais luras causaram grande prejuízo a nobreza feudal. Durante os últimos estágios daquela guerra, uma jovem camponesa visionária, Santa Joana d'Arc (1412-143 l ) , "a virgem de Orléans", suscitou no povo francês um novo sentimento de identidade nacional. Subseqüentemente, o asruto e inescrupuloso rei Luís IX (1461-1483), quebrantou o poder da nobreza feudal e assegurou para a coroa uma autoridade que até então ela náo possuíra. Seu filho Carlos VIII (1483-1498), foi capaz de dirigir o agora centralizado estado, numa campanha de conquistas externas na Itália quc iniciaria uma nova época na política européia e suscitaria rivalidades que determinariam o contexto político de toda a época da Reforma. O que esses reis buscaram através da centralizaçáo em casa, e mediante conquista no exrerior, foi avançado ainda mais por Luís XTI (1498-15 15) e pelo brilhante e ambicioso Francisco I (1 5 15-1547). A França era agora uma monarquia forte, centralizada, e sua igreja estava em grande parte sob o domínio real. A Concordata de Bolonha, em 15 16, aumentara o controle da coroa sobre as nomeaçóes clericais, sobre os impostos clericais e sobre as cortes eclesiásticas, ao mesmo tempo em que dava ao papa os ambicionados impostos. O papado, pela primeira desde o fim do Grande Cisma, escava disposto a negociar tais acordos para assegurar sua posiçáo política na Itália e recuperar sua primazia sobre concílios eclesiásticos, mesmo ao preço de entregar tacitamente seu controle cen~ralizadoda igreja fora da

HISTÓRIR DA IGREJA CRISIA

470

Itália. Quando a Reforma surgiu, a igreja na Franqa era, sob muitos aspectos, uma igreja do estado. Na Inglaterra, as guerras das Rosas (1455-1485), entre as casas de York e Lancaster, resultaram na destruiçáo do poder da alta nobreza beneficiando a coroa e fornentaram no povo inglês o temor de uma guerra civil e o desejo por um governo forte. O parlamento sobreviveu, e com ele a supremacia da lei, mas o poder de Henrique VI1 (1485-1509), o primeiro rei da casa Tudor, foi maior do que o de qualquer outro soberano inglês no espaço de um século. Tal poder foi exercitado com notável habilidade, mediante uma vasta rede de patronagem real, por seu filho - ainda mais capaz - Henrique VI11 (1509-1 547). Os soberanos ingleses tinham alcanqado, a ~ n d aantes

da Reforma, um alto grau de autoridade em assuntos eclesiásricos, e a igreja na Inglaterra, como aquela na França, era em grande parte nacional ao terminar o século quinze. Em nenhum outro lugar este processo de nacionalizaçáo estava se desenvolvendo tanto quanto na Espanha, onde ele estava assumindo o caráter de um despertamento religioso que faria daquele país um modelo para uma concepçáo de reforma

-

frequentemente, embora de forma náo totalmente correta, denominada Contra-Reforma - que iria por fim manter a fidelidade de metade da Europa à igreja romana purificada. A ascensão da Espanha foi a maravilha política do fim do século quinze.

A

ibérica tinha estado quase totalmente isolada das principais correntes da

vida européia medieval, e sua história era a de uma longa e árdua cruzada para sacudir o jugo r n ~ ~ u l r n a nque o , lhe fora imposto em 71 1. No século treze a iuta resultara no confinamento dos mouros no reino de Granada e na formacáo de quatro reinos

cristãos; Castela, Aragáo, Portugal e Navarra. Estes reinos eram fracos e o poder real estava limi~adopela anárquica nobreza feudal. Uma mudança radical ocorreu em 1469, quando os dois reinos mais proeminen~esda península se uniram, através do matrimônio do herdeiro de Aragáo, Fernando (rei, 1479-1516) com a herdeira de Castela, Isabel (rainha, 1474-1504). E sob o reinado conjunto deles a Espanha ocupou novo lugar na vida européia. Os tumultuosos nobres foram reprimidos, a autonomia das cidades reduzida, e uma eficiente burocracia real estabelecida. Em 1492 Granada foi conquistada e absorvida por Castela. O mesmo ano presenciou o descobrirnenco do Novo Mundo por Colombo, velejando sob os auspícios de Isabel. Esta descoberta logo se transformou em fonte de consideráveis rendas para o tesouro real.

A invasáo francesa da Itálla em 1494 provocou a intervençáo espanhola e por volta

~ t i i n i av

A IDADE MÉDIA POSTERIOR

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de 1503 a Espanha já estava firmemente estabelecida em Nápoles e logo sua influência predominava em toda a Itália. Quando da morte de Fernando em 1516, estas enormes possessões passaram para seu neto, Carlos I, já herdeiro da Áustria e dos Países Baixos, e que logo ostentaria o título imperial de Carlos V. Subitamente a Espanha se tornara a primeira potência européia. Os reis católicos, Fernando e Isabel, dedicaram-se não menos energicamente a controlar e reformar a igreja do que a expandir sua autoridade temporal. Com certeza, nenhuma naqáo com uma história como a da Espanha poderia desejar mudança doutrinária ou ser menos do que dedicada ao sistema religioso do qual o papado era o cabeça espiritual. Entretanto, a Espanha acreditava que as ações papais nos assuntos administrativos deviam ser limitadas pelo poder real, e que essa mesma aucoridade deveria estimular e manter um clero culto, moralizado e zeloso. Estes objetivos eram especialmente caros à devota Isabel, e foram tão bem alcancados que o "despertamento espanhol" serviu de modelo à "Contra-Reforma". Em 1482 ambos os soberanos compeliram o papa Sisto 1V a assinar uma concordata que colocava sob o controle da coroa a nomeaçáo para os altos cargos eclesiásticos. Esta política foi logo desenvolvida de forma a exigir a aprovacáo real para que as bulas papais fossem promulgadas, as cortes eclesiásticas passaram a ser supervisionadas e foram criados tributos para o clero, que beneficiavam o estado. Fernando e Isabel passaram entáo a

reencher os cargos importantes na igreja espa-

nhola com homens não apenas dedicados aos interesses reais mas ainda de verdadeira piedade e zelo pela disciplina. Com essa finalidade contaram ambos com a cooperaçáo de muitas pessoas capazes. Dentre estas, quem mais se destacou foi Goiiqalo (posteriormente Francisco) Ximenes de Cisneros (1436-15 17). Nascido em família pobre da pequena nobreza, Ximenes estudou direito e teologia na universidade de Sdamanca e depois, em 1459, foi para Roma para servir à cúria por um tempo. Em 1465, quando regressou, seus talentos como administrador e ~ r e ~ a d ocombinados r, com sua firmeza de caráter e inteligência, recomendaram-

no ao influente Pedro Gonçalo de Mendoza, entáo bispo de Sigiienza e posteriormente arcebispo de Toledo. Por volta de 1480, Mendoza nomeou Ximenes vigário geral da diocese de Siguenza. Em 1484, entretanto, Ximenes renunciou a todas as honras e tornou-se monge franciscano da mais austera observância, assumindo o nome de "Francisco" e, náo satisfeito, fazendo-se eremita. Mas sua reputaçáo era tal que em 1492, logo após a queda de Granada, a rainha Isabel nomeou o monge asceta

472

HISIORIA

DA IGREJA CRISTÁ

seu confessor particular. Daí em diante sua ascensão na hierarquia eclesiástica foi meteórica. Em 1494, Ximenes tornou-se vigário geral dos franciscanos observanteç em Castela; em 1495, por insistência de Isabel e contra sua recusa, ele sucedeu ao cardeal Mendoza como arcebispo de Toledo e primaz da Espanha, tornando-se dessa forma também o principal ministro de estado $a rainha; em 1507, foi nomeado cardeal e inquisidor geral; serviu também por duas vezes como regente para Fernando e Isabel. Com o apoio da rainha, dedicou todo o poder dos seus altos cargos ao propósito de reformar o clero, tanto secular quanto monástico, especialmente os franciscanos conventuais, cujos mosteiros ele sumariamente passou para os observantes. A totalidade da vida da igreja espanhola ficou sob sua severa disciplina. Mesmo não sendo um grande erudito, Ximenes compreendia a necessidade de um clero culto. Em 1498 fundou a universidade de Alcalá de Henares e a ela destinou boa parte de seus rendimentos episcopais. A universidade, que foi inaugurada em 1508, e a qual Xirnenes equipou com proeminentes eruditos, rapidamente se tornou o cenrro do humanismo crisdo na Espanha. O principal humanista espanhol

da época foi Antônio de Nebrija (1444-1522),a quem Ximenes levou para Alcalá em 15 12. Mesmo se opondo à leitura geral da Bíblia pelos leigos, Ximenes acreditava

que o principal estudo do clero devia ser a Escritura. O mais nobre monumento dessa convicçáo foi a Bíblia Poligioca Complutense (Complutum era o anrigo nome de Alcalá), publicada em seis volumes, cujos trabalhos Ximenes dirigiu de 1502 a

15 17. O Antigo Testamento foi apresentado em hebraico, grego e latim, com o targum aramaico sobre o pentateuco; o Novo Testamento, em grego e latim. O Novo Testamento já estava impresso em 15 14. A honra de imprimir a primeira edição completa do Novo Testamento em grego pertence, portanto, a Ximenes e seus colaboradores. Entretanto, como náo foi obtida permissáo papal para sua publicaçáo senáo em 1520, a editio princeps do Novo Testamento em grego foi a de Erasmo, publicada na Basiléia pelo impressor Joáo Froben em 15 16.

O impulso intelectual dado inicialmente por Ximenes frutificou por fim no reavivamento da teologia de Aquino, iniciado por Francisco de Vitória ( 1 485!-1546), na universidade de Salamanca, e continuado por seus discípulos, os grande teólogos romanistas da luta inicial com o prorestanrismo, Domingos de Soto (1494-1560) e Meiquior Cano ( 1 509-1 560).

A feiçáo menos atraente do caráter de Ximenes é encontrada na disposiçáo com que empregou a força para a conversá0 dos mouros derrotados em Granada. Em

v ~ ~ i e ue o

1IDADE MEDIA POSTERIOR

1492 tinham-lhes sido concedidos generosos termos de paz,

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v elos quais fora-lhes

manter sua reiigiáo e seus costumes antigos. Tdis cermos foram observados até 1499, quando o implacável Ximenes lançou uma campanha sistemática de terror para forçar a conversá0 deles, até que finalmente, em 1502, todo muçulmano com mais de catorze anos de idade que não aceitasse o batismo seria expulso de Castela. Já em 1492, imediatamente em seguida a queda de Granada, Fernando e Isabel haviam decretado a expulsão de todos os judeus professos de seus domínios. Esta expuisáo dos judeus e dos mouros sem dúvida ajudou a unificar a Espanha, mas apenas ao preço da perda de muitos mercadores e hábeis artesãos, como também quadros de intelectuais - um preço que a Espanha mal poderia pagar. (Deve ser observado que os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra já em 1290, e da França em 1306). Uma característica do despertamenco espanhol foi a reorganizaçáo da Inquisiçáo.

O temperamento espanhol considerava uma e a mesma coisa ortodoxia c patriotismo. E por isso julgava que judeus e muçulmanos praticantes, bem como convertidos muçulmanos e judeus relapsos (que sempre eram suspeitos de "hipocrisia"), fossem iáo perigosos para a igreja quanto para o estado. Concordemente, em 1478, Fernando e Isabel obtiveram uma bula do papa Sisto IV estabelecendo a Inquisiçáo, inteira-

mente sujeita à autoridade real e com inquisidores indicados pelos soberanos. Na Espanha, portanto, a Inquisiçáo era uma instituiçáo singularmente "nacional". Dirigida por um conselho real conhecido como a Suprema, ela mostrou ser um instrumento temível, inicialmente sob a liderança do inquisidor geral dominicano, Tomás de Torquemada (1420-1498).A Inquisiçáo espanhola preocupou-se especialmente com a extirpaçáo daqueles judeus e muçulmanos convertidos (os marranos e mouriscos, respectivamente) que supostamente haviam escorregado da fé e com a matiutençáo da "pureza de sangue" (limpieza de sangw) em todos os cargos do estado e da igreja. Ela também iria lidar severamente com os procestantcs espanhóis e todos aqueles suspeitos de "luteranismo". Portanto, ao terminar o século quinze, a Espanha possuía a mais independente igreja nacional na Europa. Nela se desenvolvia mais vigorosamente que em qualquer outro lugar uma renovação moral e inteiectual. Mas tal renovação não estava dcstina-

da a ser permanente. Ao mesmo tempo era uma igreja profundamente medieval na doutrina e na prática e de intoierância feroz para com as heresias e discord%ncias. Era muito diferente a situação na Alemanha. Não havia nenhum movimento em busca de centralização nacional, e faltava ao império qualquer crescimento genuíno

474'

RISTORIA 011 IGREJA CRISI&

de um governo centralizado. A coroa imperial, teoricamente eletiva, foi usada pelos membros da casa austríaca dos Habsburgos de 1438 até 1740. No entanto, o poder dos imperadores residia mais na sua qualidade de proprietários de terras hereditárias do que na sua autoridade imperial. Sob Fredetico 111 (1440-1493),guerras entre os príncipes e as cidades e a desordem da pequena nobreza, cuja vida muito frequent.ement.eera na verdade de salteadores de estradas, lancou o país em confusão tal que o imperador foi impotente para suprimir. Algo melhorou com o popular Maximiliano I (1493-1519). Foi feira uma tentativa para fortalecer a autoridade central por meio de reunióes frequenres do velho Reichstag feudal, o estabelecimento de uma suprema corte imperial (1 495) e um conselho de governo imperial ( 1 500), e a divisáo do império em distritos para melhor preservar a paz pública (15 12).

Houve também esforcas para formar urn extrcito imperial e coletar impostos imperiais. Estas reformas, no entanto, tiveram pouca vitalidade ou efeito duradouro. As decis6es da corte náo puderam ser apjicadas nem os impostos cobrados. O Reickstag estava fadado, na verdade, a desempenhar grande papel nos dias da Reforma, mas era um parlamento confuso, reunindo-se em três câmaras: a dos eleitores imperiais, a dos príncipes leigos e espirituais e a dos representantes das cidades imperiais livres. A pequena nobreza e o povo comum nele náo participavam. Uma característica notável depois de 1461 foi o aumento no número e frequência de reclamações kauamina) formais quanto ao exercício "arbitrário" da jurisdição

tr

fiscalismo papal no império.

As cidades imperiais, que eram cerca de oitenta e cinco no início do século dezesseis, não reconheciam nenhiim poder superior senáo o governo débil do imperador. Elas eram dinâmicas e prósperas, e algumas eram cenrros de arividade humanista, mas no final do século quinze estavam passando por um declínio ecoliôrnico e político. Seu espíriro comercial, e sobretudo sua auro-compreensão tradicional como "repúblicas sacras" soberanas, levou-as a resistir às pretensóes tanto do clero como dos príncipes.

A mensagem religiosa dos reformadores protestantes, com sua doutrina radical da igualdade espiritual do Iaicato e do clero, teria um apelo especid naquelas cidades, táo ciumentas de seus direitos cívicas e iiberdades e tão desejosas de recuperar sua antiga ascendência.

Em nenhum país da Europa estavam os camponeses, e na realidade o "homem comum", em estado de maior inquietaçáo, especialmente no sudoeste da Alemanha.

Ali ocorreram insurreiçóes em 1476 e 1493, seguidas por uma onda de rebelióes entre 1513 e 15 17.Desde o final do século catorze, na esteira da catástrofe demográfica

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I IDADE MEDIA POSIfRIOR

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causada pela Peste Negra e as grandes epidemias que se seguiram em seu encalço, os camponeses tinham sido sujeitos a crescentes limitações em sua liberdade de movimento e direito de livre matrimônio. No processo, eles perderam sua antiga condiçáo de "locatários" e tornaram-se "súditos" ou "servos" de seus senhores leigos e eclesiásticos. Estes estavam fazendo todo esforço para proteger seus próprios interesses políticos e econômicos mediance a vincuiaçáo a eles do campesinato em estrita deperidêiicia pessoal. Tal "senhorio" (Herrschaf2) trouxe consigo maiores impostos, restricóes esfoladoras quanto ao uso dos recursos comuns (bosques, ribeiros, terras comunais), e uma perda da autonomia tradicional das vilas. No início do século dezesseis, camponeses por todo o sul e centro da Alemanha profundamente descontentes, como também os artesáos e os artífices menores em muitas das vilas e cidades, que da mesma forma encontravam-se crescentemente sujeitos aos conselhos municipais oligárquicos e as políticas restritivas das pildas. Contudo, se a vida nacional alemá como um todo estava assim desordenada e dilacerada, grandes porçóes do território alemáo se fortaleciam, desenvolvendo um tipo de vida nacional local semi-independente. Isto era mais verdadeiro na Áustria, na Saxônia eleiroral e ducal, na Baviera, no Brandenburgo e no Hesse. Seus governarites estavam rapidamente desenvolvendo administraçóes centralizadas, e exerciam relativa autoridade sobre os negócios eclesiásticos, controlando a nomeação de bispos e abades, taxando o clero e limitando a jurisdiçáo eclesiástica. Porém, náo obstante a existência de uma igreja cerritorial ou "proprietária" nesses principados, o poder temporal da igreja romana continuava mais forrnidá\~elna Alemanha do que em qualquer outro lugar na Europa, uma vez que mais de um quinto do país estava sob o controle dos poderosos príncipes-bispos, e as ordens monásticas tambtm eram grandes latifundiárias. Tanto os camponeses como os burgueses descobriram ser os impostos destes senhores eclesiásticos particularmente onerosos. Os anos que antecederam à Reforma testemunharam dois matrimônios entre os governantes Habsburgos da Áustria que foram da maior importância para o concexro polírico da época da Reforma. Em 1477, a morte de Carlos, o Temerário, o ambicioso duque da Borgonha, deixou seus territórios na Borgonha e os Países Baixos à sua filha Maria. O matrimônio dela, naquele mesmo ano, com Maximiliano 1 desagradou a Luís XI da França. Este se apoderou da Borgonha superior, planrando a semente da querela entre os reis franceses e os Habsburgos, o que determinou grandemente a

européia até 1756. O filho de Maximiliano e Maria, Filipe,

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WtSTORiA i h IEREJI CRISTA

por sua vez casou-se com Joana, herdeira de Fernando e Isabel da Espanha. Foi assim que Carlos, filho de Filipe e Joana, veio a ser senhor da Áustria, Países Baixos e os vastos territórios espanhóis na Europa e no Novo Mundo - a maior extensão territorial governada por um único soberano desde Carlos Magno. Em 15 19 foi lhe adicionado o título de imperador. Carlos V herdou também a rivalidade dos Habsburgos com os reis da Fransa. Tal rivalidade e a luca por reforma religiosa iriam influenciar uma a outra durante todo o período da Reforma, constantemente modificando a ambas.

5

c.:

Capítulo 17

Humatiismrio ao Norte dos Alpes; Piedade

às Vésperas da Reforma O humanismo renascentista chegou mais tarde nos países ao norte dos Alpes, onde as tradicões culturais e sociais medievais estavam muito mais firmemente arraigadas do que na Itália. A "nova erudiçãon estabeleceu-se pela primeira vez no norte da Europa na última metade do século quinze, e não se tornou uma influência poderosa senáo na última década do século. Suas conquistas foram primeiro na Alemanha do que na Franqa, Ingiaterra ou Espanha. Os eruditos do norte, é verdade, já haviam feito alguns conratos com os humanisras italianos na primeira metade do stculo, mais rnarcadamerite rio caso do filósofo e teólogo alemáo Nicolau de Cusa (1 40 1- 1464). No início um conciliarista convicto, Cusa tornou-se um fervente defensor do ~ a ~ a no d oconcílio de Ferrara-Fiorenca em

1438-1439; foi elevado a cardeal em 1448; tornou-se bispo de Brixen em 1450; e, em 145 1- 1452, serviu como represenranre papal na Alemanha. Neste último cargo procurou reformar a vida clerical e monástica. Quando jovem estudara direito çano~iico,matemática e astronomia por seis anos, em Pádua. Ali sofrera influência

humanista, aprendendo grego e latim clássico e desenvolvendo uma admiracáo perene pelo espírito crítico de Lourenço Valla. Porém mui dificilmente ele pode ser considerado liumanisca, embora em seus escritos tenha expresso uma maneira de pensar que transcendia a do escolasticismo. Suas obras foram primeiramente impressas em

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Estrasburgo, em 1490, e novamente em 1505, em Miláo; a edicáo mais importante delas foi preparada pelo proeminente hurnanista francês Jacques LeFèvre dÉtaples (em três volumes; Paris, 1514). Cusa permaneceu na tradição do misticismo neoplarônico e desenvolveu uma cosmologia e uma teologia filosófica altamente originais, cuja importância integral somente foi percebida nos tempos modernos, em conexão com as idgias de Gio~danoBruno, Leibniz e os idealistas alemães.

A idéia central de Cusa era da sínrese ou identidade dos opostos (coincidentia oppositurum), que ele expôs em seu primeiro tratado filosófico, De docta ignorantia (Sobre a doura ignorância, 1440). Ele via a Deus como a unidade infinita de todas as distinçóes e oposiçóes finitas no universo: porque Deus contém rodas as coisas, ele é o "envolvimento" (complicatio)delas; porque rodas as coisas vêm de Deus, ele é o

"desdobramenro" delas. Esta unidade náo pode ser conhecida pela razáo (ratio) discursiva, mas apenas por uma faculdade da intuicáo ou inteligência (intellectus) um modo de cornpreensáo que equivale a uma "ignoráncia erudita", pois percebe que a coincidência de todas as coisas em Deus transcende nossa razão. Esta unidade

também transcende o poder da linguageni, e assirri pode ser expressa somente por analogias e símbolos (matemáticos). O universalismo filosófico de Cusa levou-o, ademais, a buscar a unidade da fé na diversidade de religióes. Em 1453 ele escreveu um tratado, na forma de um diálogo platônico, sob o título Depace seu concordantza $dei (Sobre a paz ou harmonia da fé). Nesta obra ele comparou o cristianismo com o judaísmo e o isIamismo e chegou a notável conclusáo: há uma reIigiáo na diversi-

dade de ritos, uma verdade resplandecente em sua variedade. A luz de desenvolvimentos posteriores, o pensamento de Nicolau de Cusa pode ser interprerado com uma das primeiras expressões do individualismo e do universalismo modernos. Em sua própria tpoca, porém, seu gênio náo foi reconhecido, e ele não foi então associado com o humanismo. A introdução gradual do humanismo italiano no norte foi devida, em parte, à nova arte da imprensa, a qual forneceu aos crudiros do norre pronto acesso às obras dos humanisras italianos, incluindo suas ediqóes dos textos clássicos. Os humaniscas italianos também viajavam para o norte em diversas atividades - como diplomatas, paiestrantes, emissários eclesiásticos, secretários de corres de principados e de conselhos municipais, e representantes comerciais. Mas os verdadeiros pioneiros do humaiiismo n o norre foram os eruditos itinerantes que adquiriam um amor pelos clássicos na Itália e retornavam para casa cheios de ardor para propagar a nava erudi-

HISTÓRIII DA IPAEJA C R I L T ~

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çáo. Alguns de seus primeiros representantes na Alemanha, porém, eram pouco credenciados para recomendkla aos mais criticas. O mais conhecido dessa geração mal-afamada foi o poeta errante, de vida relaxada, Pedro Luder (1415?-1474), que nos anos após 1454 andava de universidade em universidade, conrendendo com professores conservadores para que eIes concedessein um espaço maior no currículo para a poesia e a retórica clássica. Um "apóstolo" bastante diferente foi Rodolfo AgricoIa (1444-1485), que estudou na Itália por dez anos (1469-1479) e terminou sua vida como professor renomado na universidade de Heidelberg. Agicola foi o membro mais influente da geraçáo mais antiga de humanistas alemães, e realizou enorme esforço para aumenrar o ensino de latim nas escolas secundárias da Alemanha e da Holanda. Um discípulo seu, Alexandre Hegius (1433-1498),dirigiu a escola dos Irmáos da Vida Comum em Deventer de 1483 a 1498 e fez dela o centro principal da educação secundária no norte, do qual Erasmo seria o pupilo mais famoso.

O humanismo também fincou pé nas universidades alemãs, como é demonstrado pela recepção recebida por Agricola em Heidelberg. Outro de seus discípulos, Conrado Celtis (1459-1508),o melhor poeta lírico entre os humanistas alemães, foi por um tempo professor de retórica em Ingolstadc; em 1497, a convite do imperador Maximiliano I, ele foi para a universidade de Viena e lá fundou o Colégio de Poetas e Matemáticos. Essa infiltraçáo humanisca inicial nas universidades praticamente náo

modificou a estrutura de ensino escolástica, pois os recém-chegados normal-

menee limitavam seu ensino a instrução nas Iínguas clássicas. Na primeira década do século dezesseis, entrecanto, o humanismo estava pressionando mais agressivamenre nas universidades de Basiléia, Tubingen, Ingolstadt, Heidelberg e Erfurt. 0 s defensores da nova erudiçáo esravam agora comecando a entrar nos recintos dos teólogos e desafiar os métodos e objetivos do estudo teológico tradicional. O humanismo também encontrou muitos patronos nas ricas cidades mercantis, especialmente Nuremberg, Estrasburgo e Augsburgo. Seus simpatiza~iteseram tão numerosos no final do século quinze que estavam sendo formados círculos de erudiqáo, como a Associaçáo Literária Renana organizada por Celtis em Mainz em 1491, cujos membros se correspondiam, emprestavam suas obras uns aos outros e forneciam assistência mútua. Em 1500 o humanismo estava se rornando um fator vital na vida intelcctua1 ajemá.

O humanismo nortista, apesar de toda sua dívida para com o humanismo italia-

no, náo era uma simples imitação do modeio italiano. Seus principais representantes

ie notabilizaram por sua fusáo especial da erudição clássica com a piedade bíblica

Novo Testamento), uma combinacão que recebeu o nome de "humanismo cristáo". Isto náo quer dizer que os humanistas italianos fossem pagáos ou anri-cristãos ou iub-cristáos; a maioria deles era Ied à igreja. Contudo, em seus escritos acadêmicos e lirerários - suas obras sobre gramárica, retórica, história e poesia, todas baseadas no escudo intensivo dos clássicos gregos e latinos - eles tendiam a evitar a explícita discussão de tópicos religiosos e reológicos. Neste sentido, o tom de seus escritos era predominantemente "secular". Os principais hurnanistas no norte, ao contrário, coniugavam expressamente a erudiçáo bíblica à erudiçáo clássica, recorriavam intencionalmente às fontes da antiguidade cristá como também da antiguidade clássica, e dessa uniáo das "sagradas letras" com as "letras humanas" surgiu um programa abrangente para a reforma da igreja e da sociedade, incluindo a reorientaçáo da piedade popular e da educa$áo teológica. Esse programa de reforma baseava-se no misricismo medieval, no platonismo renascentista e, em particular, na rradiçáo de "interioridade religiosa" derivada da Devotio modevna (ver V:9). Na Alemanha, o melhor do humanismo cristão foi visco em seus dois representanres mais faniosos, Reuchlin e Erasmo. (Erasmo, embora não quisesse ser identificado com nenhum era o iídcr titular dos humanistas demáes.) grupo naciond Johannes Reuchlin (1455-1522) nasceu em Pforzheim, em circunstâncias humildes. Muito cedo ganhou reputaçáo como latinista e, como acompanhante do jovem filho do margrave de Baden, foi enviado à universidade de Paris, cerca de 1472, onde começou a estudar grego. Em 1477 recebeu o grau de mestre em artes, em Basiléia, onde passou a lecionar grego. Ainda ames de sua publicou um dicionário latino (1475-1476), que se tornou bastante popular. Depois estudou direito em Orléans c Poitiers e no fim da vida ocupou posiçóes judiciais. No entanto, seu interesse principal foi sempre acadêmico. Em 1482 esteve em Florença e Roma, a serviço do conde de Wurttemberg, e novamente em 1490 e 1498.Já na sua primeira visita a Florença seu conhecimento de grego causou admiracâo. Lá conheceu e recebeu a influência dos sábios da Academia Platônica (ver V:15), e Pico de Mitandola lhe transmitiu o interesse por doutrinas cabalísticas que aumentaram bastante sua fama na Alemanha. Reuchlin foi considerado o maior conhecedor de grego na Alemanha nos Glrimos anos do século dezesseis, e sua influência na promoção dos estudos dessa língua foi muito frutífera.

Ele estava tomado do desejo renascentista de voltar is fontes e esse desejo o levou - primeiro dos eruditos não judeus na Alemanha - a fazer profundos estudos do

hebraico para poder entender melhor o Antigo Testamento. O fruto de vinte anos desse trabalho foi a publicaçáo, em 1506, de uma gramática e um léxico, Dc rudimentzs

Hebraicis, que colocou os tesouros dessa língua à disposição dos estudantes cristãos. A terrível luta a que esse pacífico erudito foi arrastado por causa desses estudos hebraicos, e com ele toda a Alemanha culta, será vista quando forem tratados os antecedentes imediatos da revolta lurerana (ver VI: 1 ) . Reuchlin náo era protestante. Recusou-se a aprovar a Reforma que comecava e da qual testemunhou até sua morte, em 1522. Prestou porém, inestimável serviço aos estudos bíblicos, e seu herdeiro intelectual seria seu sobrinho-neto Filipe Melanchton, o eminente erudito humanista entre os reformadores luteranos. Desidério Erasmo (1466?-1536),filho ilegítimo de um sacerdote, nasceu em Roterdá ou Gouda. Seus primeiros estudos em Deventer, onde Alexandre Hegius era diretor desde 1483, despertou seu amor pelas letras e apresentou-o à "devoção moderna" - a piedade interior, cristocêiltrica - dos Irmãos da Vida Comum, que também mantinham uma escola em H e ~ t o ~ e n b o s cahqual , Erasmo também frequentou em seguida. Em 1487, a extrema pobreza levou-o a ingressar no mosteiro dos cônegos agostinianos em Sceyn, onde permaneceu por seis anos. Durante este período ele teve oportunidade de estudar os autores clássicos e os humanistas italianos. Porém ere náo tinha inciina~áopara a vida monás~ica,nem para o sacerdócio, para o qual foi ordenado em 1492. Em 1493, ele conseguiu deixar o mosteiro para se tornar secretário do bispo de Cambrai. Em 1495 estava estudando teologia em Paris, no Collège de Montaigu (onde Joáo Calvino e Inácio de Loyola posteriormente ingressariam). Seus quatro anos em Paris deixaram-no com um desprazer permanente pela teologia escolásrica, mas Iá ele também conheceu humanistas franceses como Roberto Gaguin (1433-1 501), professor de direito e ciceroniano entusiasta. Em 1499, um momento decisivo em sua vida, Erasmo visitou a Inglarerra e familiarizou-se com os principais humanistas do reino, incluindo Joáo Coleto e Tomás More, ambos os quais seriam seus amigos íntimos. Coleto, que na época estava ensinando em Oxford a epístoia de Paulo aos Romanos, atraiu o interesse de Erasmo para um esrudo sério da Bíblia c dos pais da igreja. Tal estudo exigia o domínio do grego (que o próprio Colero náo possuis), e assim, em 1500 Erasmo retornou a Paris, e durante os próximos seis anos, em Paris e nos Países Baixos, ele aperfeiçoou

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R 10ADE MÉDIA POSTERIOR

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conhecimento do grego; estabeleceu a base de sua erudiçáo literária, histórica e

ri,ológica; escreveu um número de obras importantes; e começou uma ampla corres2ondência com as principais mentes de sua época. Ele rerornou à Inglaterra para -ma breve visita no inicio de 1506, e entáo, no veráo daquele ano, deixou a Inglater:a

para uma viagem de três anos a Itália. Em setembro de 1506 ele recebeu seu

ioutorado em teologia na universidade de Turim. Ele passou o restante de sua escada - 1,isitando Bolonha, Florença, Veneza, Pádua, Siena e Roma

- realizando estudos

numanistas e de grego, desfrutando da cordial recepçáo que recebeu dos eruditos italianos em todos os lugares. Em 1509 Erasmo retornou à Inglaterra para sua terceira e mais longa visita, residindo com Tomás More e, de 15 11 a 15 14, palestrando sobre grego na universidade de Cambridge. Os anos de 1514 a 1521 foram gastos em sua maior parte na Holanda,

sarticularmenre em Bruxelas e Lovaina, com frequentes viagens a Basiléia, onde o 2ublicador Froben imprimia seus livros, incluindo uma ediçáo grega do Novo Testanento e edições das obras dos pais da igreja. Nessa época, ele era considerado por iodos o príncipe dos eruditos hurnanistas, a figura dominante no mundo literário curopeu. A inimizade dos teólogos expulsou-o de Lovaina em 1521, e pelos próximos oito anos ele residiu em Basiléia. Quando a Reforma foi incroduzida naquela cidade, em 1529, ele mudou-se para Friburgo. Erasrno morreu durante uma visita a Basiléia em 1536. Erasmo foi, acima de tudo, homem de letras que enfrentou os problemas de sua Epoca com destreza absoluta e um comando inigualável do estilo Latino. Criticou de maneira forte o clero e os governances civis sendo, no entanto, movido por propósi:os sinceros. Estava convencido de que a igreja de sua época estava submersa na juperstiçáo, na corrupçáo e no erro, que a teologia fora subvercida por uma dialética contenciosa, infrutífera, e que a vida monástica era muitas vezes ignorante e indigna. Não desejava, porém, romper com a igreja que com tamanha franqueza reprovava. Era muito avesso às dispuras para simpatizar com a revoluçáo luterana, cujos "rurnultos" o desagradavam, e muito não dogmático em sua religião para aprovar o alaque radical de Lutero sobre a doutrina tradicional. Ele era também muito perspicaz para não ver, e muito honesto para náo expor, os males e abusos predominantes da igreja contemporânea e do papado renascentista. Consequentemence, nenhum lado na grande disputa que irrompeu na ÚItima parte de sua vida compreendeu-o inteiramente, e sua memória foi por muito tempo condenada por escritores polêmi-

cos, tanto protestantes como católicos. Erasmo tinha seu próprio programa construrivo de reforma. Ele almejava a renovacâo da igreja e da sociedade por meio da educação e da eloquência - especificamente, mediante um retorno às fontes pristinas da verdade cristá, à Bíblia e aos pais, como cambém i sabedoria ética dos sábios antigos, a serem instiladas através da arte da persuasão por meio de discursos agradáveis. A ignorância, a superstição e a imoralidade também deveriam ser expostas e extirpadas por meio da ironia e da sátira. Ele trabalhou para tais fins, de 1500 até sua morte. Seu Enchiridion MiIjf;IsC b ~ b ~ i z n j (Manual [Adaga] do soldado cristáo), publicado em 1503. foi uma apresentaçáo simples, direta, de um cristianismo sem cerimônias e náo dogmático. cencrado na imitaçáo de Cristo e no deslocamento das coisas sensíveis, visíveis, para as realidades inteligiveis e invisíveis. Seu Moriae Encomium (Elogio à Loucura - 1509), que pâs a Europa a rir, foi uma sátira mordaz dos males de sua época na igreja e no estado. Seu

Colloquzn Fizmiliariu (Colóquios familiares - 1519) eram diálogos vívidos nos quais a veneração as imagens, as peregrinaçóes e observâncias externas semelhantes eram os alvos da zombaria de sua brilhante pena. Sua obra edir-orialfoi da mais alta importância. Em 15 16 veio a primeira ediçáo de seu Novo Testamento Grego, acompanhado por uma nova traduçáo larina e notas críticas. Esta fui a publicaçáo pioneira do texto grego, pois a de Ximenes ainda estava inacessível (ver V: 16). Esta obra foi seguida por uma série de trabalhos sobre os pais gregos e latinos - Jerônimo, Origenes, Basílio, Cirilo, Crisósrorno, Irineu, Ambrósio e Agosrinho, nem todos inteiramente de sua pena, mas todos de seu impulso, que colocou o conhecimento acadêmico sobre o cristianismo primirivo em um novo plano e assim auxiliou profundamente a Reforma.

O Enchiridion é a apresentaçáo mais completa da teologia positiva de Erasmo, a qual ele chamava "filosofia de Cristo" (philosophia Christi). O cristianismo é descrito conio uma religião universal, essencidmsrite ética, antecipada pelos fildsofos da an-

tiguidade e alcan~andosua expressão completa no Serrnáo do Monte, de Crisro. Esta religiiio t inrerior e espiri~ual,o "culto do invisível" no meio da vida no mundo, e é animada pelo amor de Cristo e a decisão dc seguir suas pegadas. O pensamento erasmiano era pois "otimista? na raiz, visco que o conhecimento da verdade impóe a capacidade de executar a verdade, embora a graça divina também deva assistir, com essa finalidade. As diferenças evidentes entre Erasmo e Lutero sobre as questões cardeais de "pecado e graça' e a liberdade do arbítrio humano conduziriam à famosa

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A IOAOE MÉUIR POSTERIOR

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troca literária entre eles de 1524-1525 (ver V1:2) e a uma separação decisiva dos caminhos entre o humanismo erasmiano e o solafideísmo luterano. Contudo Lutero e os outros reformadores protestantes defendiam muito em comum com Erasmo e os humanistas cristãos, e permaneceram em dívida para com eles, sobretudo em sua preferência educacional pela Bíblia e pelos pais da igreja em detrimento dos doutores escolásticos, e em seu cultivo das línguas bíblicas e clássicas. A influência de Erasmo também pode ser vista na teologia sacramental de reformadores como Zuíngiio e Ecolampádio, que chegaram à Reforma por meio do humanismo e que defenderam o princípio erasmiano básico de que a vida do espírito não é nutrida pelas coisas corpóreas, externas, incluindo o corpo físico de Cristo (ver VI:3). Ademais, muitos dos reformadores católicos do final do século dezesseis foram herdeiros do programa

de reforma erasmiano, ainda que não fosse político admitir isso. Assim, ainda que ele tenha-se tornado um "herético" para ambos os lados na época de sua morte, o trabalho incansável de Erasmo produzira muito fruto. Embora o hurnanismo tenha exercido uma influência maior na Alemanha no início do século dezesseis do que em qualquer oucro país além dos Alpes, os mesmos impulsos estavam presentes em outros lugares. Os esforços de Francisco Xmenes na Espanha já foram observados (ver V: 16). Mas é necessário complementar, entretanto, que sua erudição humanista era de caráter principalmente filoIógico e que foi usada no serviço de uma ortodoxia católica militante, tanto que a igreja e a cultura espanhola se mostraram extremamente resistentes às idéias erasmianas. Assim, na Espanha a nova erudiçáo apoiou a teologia antiga. Na Inglaterra, o estudo sério de grego e dos clássicos foi introduzido na década de

1490 em Oxford por Guilherme Grocyn (1446?-1519) e Tomás Linacre (1460)-

1524), ambos os quais haviam estudado na ItdIid. Quem se tornou o líder dos humanistas crisMos na Inglaterra foi Joáo Coleto (1467?-1519), que ouvira as palestras de Grocyn e Linacre em Oxford. Sob a influência deles, ele foi para a Itália em

1493 e lá desenvolveu um interesse apaixonado pelo misticismo neoplatônico, como apresentado pelos platônicos florentinos. Quando de seu retorno à Inglarerra em

1496, ele começou a ensinar as epístolas paulinas em Oxford, e nessa condição direcionou Erasmo para os estudos bíblicos. Coleto não era um classicista notável. Sua principal contribui~áofoi introduzir um método histórico e literário de interpretaçáo dos textos paulinos, siruando-os em seu contexto histórico e examinando sua estrutura retórica para então expor seu conteúdo espiritual. Segundo sua avalia-

çáo, os teólogos escoiásticos haviam contaminado a "doutrina de Cristo" com sua "filosofia profana". Colero também se esforçou para melhorar o nível acadêmico e moral do clero, e com este objetivo fundou a escola de Sáo Paulo em Londres em 1508. Muiro mais humanisra e homem de letras do que Coleto foi seu amigo Tomás More (1478-1535), que era taientoso em grego como também em latim clássico. Foi enquanto residia na casa de More em Londres, em 1509, que Erasmo escreveu seu

Moride Encornium (Elogio à Loucura, que também pode ser traduzido como "Elogio a More"). A Utopia, de More (15 16), foi a mais famosa das priblicaçóes humanistas inglesas. O servi~oreal e a controvérsia religiosa consumiriam suas energias no final de sua vida, a qual terminou em martírio (ver VI:9).

O principal representante do humanismo criscáo na França foi Jacques LeFèvre d'É1aples (Faber Stapulensis, 1460i-15361, que passou seus anos mais ativos em Paris ou nos seus arredores. Homem modesto e bondoso, sua reflexlio religiosa foi nutrida náo apenas pelo neoplatonisino de Nicolau de Cusa (cujas obras ele publicou) e Marcílio Ficino (a quem se afeiçoara em uma de suas crês viagens à Itália), mas também por seu entusiasmo pela teologia mística de Dionísio, o Areopagita, Ricardo de Sáo Vítor e Raimundo Lulo. Ele ingressou na corrente central do humanismo cristáo determinado a recuperar o sentido original dos livros bíblicos mediante o método gramárico, em oposiçáo a exegese alegórica dos mestres medievais e suas disputas dialiticas sobre textos isolados. Em 1509 ele publicou o Psnltehum quincuplex, uma exposição crítica dos Salmos baseada ein uma comparaçáo filológica de cinco versóes latinas diferentes. Em 1512, apareceu sua rradu$áo das epístolas paulinas, acompanhadas por um comentário no qual negava o mérito justificante das boas obras e defendia que a salvação t um dom gracuiro de Deus. Mais tarde, escreveu comentários dos quatro evangelhos (1522) e das Epístolas Católicas (I 524). Ao mes-

mo tempo (1 523-1 525), publicou a traducáo francesa das versóes da Vulgata, do Novo Testamento e do Saltério. Embora LeFrève tenha sido atraído pelos primeiros escritos dos reformadores protestantes e frequentemente tenha sido suspeito de "luteranismo", ele náo teve inrenqáo de romper com a igreja romana. Ansiava por uma reforma religiosa, principalmente fundamentada na Bíblia, mas dentro dos limites da igreja escabelecida. Agregou ao seu redor um grupo de dedicados pupilos, destinados a uma participação muito diversificada no embate da Reforma: Guilherme Briçonnet, seria bispo de

~ a l o i ov

A IDADE MEDIA POSTERIOR

485

Meaux; Guilherme Budé, especialista em grego, colaboraria na fundacão do Collège de France; Luís de Berquin, morreria como mártir protestante; e Guilherme Farel, que seria o intrépido reformador da Suíça francófona. Em parce como resultado da ênfase humanista nas fontes, porém mais ainda em conseqüência da invencáo da imprensa, a segunda metade do século quinze presenciou uma ampla distribuiçáo da Bíblia, na Vulgata e em traducóes. Antes de 1500 foram publicadas nada menos do que noventa e duas ediSóes da Vulgata. A primeira Bíblia alemá completa foi impressa em 1466; daí até 1522 apareceram vinte e duas ediçóes. O Novo Testamento foi impresso em francês em 1477, e a Bíblia completa dez anos depois. A Bíblia espanhola foi impressa em 1478, mas foi proscrita e queimada; apareceu outra tradução em 1492. Foram impressas em 1471 duas versóes italianas independentes. Nos Países Baixos, o Antigo Testamento com exceção do Salrério foi impresso em 1477, e os Salmos em 1480. Duas Bíblias tchecas aparece-

ram em 1488 e 1489. Embora i ~ á otenha havido Bíblia impressa na Inglaterra antes

da Reforma, estavam em circulação muitos manuscritos da Bíblia de Wyclif.

A Idade Média náo presenciou nenhuma proibicáo universal e absoluta de traduçóes vernaculares da Bíblia e de seu uso por clérigos ou leigos. Porém, frequentemente foram feitos esforços ao nível diocesano local para restringir a leitura da Vulgata e das tradu~óesvernaculares pelos leigos e por sacerdoces com má formação, uma vez que tal uso "privado" das Escrituras era considerado uma fonte primária de heresia. Portanto, a questáo central cercando o aumento da leitura da Bíblia no meio século antes da Reforma era o problema da interpretaçáo bíblica, nâo da autoridade bíblica como tal. A igreja medieval jamais havia negado a autoridade norsnativa da Escritura para a fé e a vida cristá, mas essa autoridade estava vinculada à interpretacão dada a Escritura pelos pais, pelos concílios eclesiásticos, pelos doutores reconhecidos e pelos pronrinciamentos oficiais dos papas. A auroridade da Escritura, resumindo, estava inseparavelmente ligada à tradição magisterial da igreja e com a própria autoridade da igreja como fiadora da "apropriada" interpretaçáo e utilizacáo da Bíblia. A crescente familiaridade com a Bíblia suscitou inescapavelrnente a questão de se a tradicáo magisterial da igreja era em rodos os pontos fiel às Escrituras em si. Os husnasiistas cristáos, por meio de sua convocaçáo para uma interpretaçáo histórico-literal da Bíblia e um retorno aos "pais antigos", efetivamente erodiram a autoridade interpreraciva dos doutores escoiáscicos e dos exegetas medievais "alegorizadores". Ficou para Lutero e os reformadores prorestantes concluir que a

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RISTIRIA DA IGREJl CIISTÁ

totalidade da tradiçáo magisterid da igreja estava sujeita a erro, e na prática havia frequentemente errado, quando julgada pelo ensino das Escrituras, somente. A radicalidade do "só a Escritura" (sola scriptura) da Reforma está portanto no fato de ter quebrado a suposta coerência e congruência entre Escritura e tradiçáo, da Bíblia e da milenar autoridade interpretativa da igreja. A Bíblia, possuidora de clareza suficiente em sua mensagem central de salvaçáo pela graça mediante a fé, somente, foi declarada como sendo sua própria intérprete.

A crescente disponibilidade de Bíblias impressas

-

sobretudo de Bíblias

vernaculares e de edicóes parciais dos Salmos, dos Evangelhos e das Epistolas eventualmente possibilitou que a posição radical dos reformadores se apresentasse confiável a um grande número de clérigos e de leigos, que agora podiam ler a BíbIia por si mesmos e aplicar seu "teste" ao ensino e prática da igreja. Ainda mais influenre foi a pregaçáo popular dos reforrnadores, que expunham as Escrituras versiculo por versícuio aos seus ouvintes, sem recorrer i s tradicionais "glossas", e assim equipavam as pessoas a compararem a igreja contemporânea com a igreja do Novo Testamento e determinar o que era "cristianisino verdadeiro" na base exclusiva da "Palavra pura". N o início da década de 1520, a Biblia redescoberta havia-se tornado uma força revolucionária. Seria equivocado concluir, entretanto, que a piedade popular às vésperas da Reforma já estava em um estado de rebelião contra a igreja romana. Pelo contrário, aquela piedade, sobretudo na Alemanha, notabilizava-se por sua "igrejice"

-

i.e., sua lealdade a doutrina, as instituiçóes e aos sacramentos da igreja medieval.

A devoção popular, ademais, escava passando por uma notável intensificaçáo: a Baixa Idade Média foi u m período de "despertamento" religioso. Muito dessa piedade, é certo, foi marcada por uma frenética preocupacáo com as formas externas de religiáo, motivada em grande medida pela miséria da existência, pelo temor da morte e do diabo, e por uma aspira~áoansiosa pela certeza da salvaçáo. Muito na vida popular da Alemanha, ao final do século quinze, tendia a aumentar o sentido de apreerisáo. A ilusáo da feitipria, 'embora náo fosse de forma alguma nova, estava se espalhando rapidamente. Uma bula do papa Inocêncio VIII, em 1484, declarou que a Alemanha estava repleta de feiticeiras, e os inquisidores alemáes, Jacó Sprenger e Henrique Kramer, publicaram seu dolorosamente célebre Mulleus rnale$carum (O martelo dos malfeitores), em 1489. Era uma superstição que adicionava medo à vida quotidiana, e seria compartilhada

~ ~ s i n ui o

A IDADE Mf DIA PDSTERIOR

187

pelos reformadores náo menos do que por seus oponentes romanos. Os anos de

1490 a 1503 foi um período de fome na Alemanha. O perigo turco estava tornando-se arneaqador. A inquietação social geral já foi mencionada (ver V:lG). Todos estes elementos contribuíram para o desenvolvimento de um sentimento da realidade e proximidade do Dia do Juízo, e da necessidade urgente de se fazer as pazes com Deus e assegurar-se da bem-aventurança da vida vindoura. Esta situação ajuda a explicar o fortalecimento da importância dada à venda de indulgências, à veneraçáo dos santos, ao pagamento de missas pelos mortos e à realizaçáo de peregrinaçóes. Alguns dos peregrinos mais ricos viajavam para a Terra Santa, outros iam a Roma, mas o santuário de peregrinação mais popular no estrangeiro era aquele de Sáo Tiago em Compostela (Santiago de Compostela), na Espanha. Os santuários alemáes também viviam abarrotados, e eram feitas grandes coleções de relíquias, notadamente pelo eleitor da Saxônia, Frederico o Sábio (1486-1 525), mais tarde protetor de Lutero, que as exibia em sua igreja no castelo em Wittenberg. Paralelamente a este espírito religioso externo e confiante nas obras, a Alemanha revelava uma corrente de piedade bastante diferente, marcada por uma interioridade silenciosa e singela simplicidade que via a essência da religião na relaçáo da alma individual com Deus. Esta corrente alimentava-se na tradiçáo do misricisrno alemão (dominicano) e da Devatio moderna, que em meados do século quinze havia alcançado uma influência extremamente ampla. Aqui, tam-

bém, ~ o d e - s eencontrar um desejo ~ r o f u n d opela certeza da salvação diante da morre e do juízo divino - exceto que a bem-aventurança deveria agora ser alcançada náo pela multiplicaçáo de obras piedosas, ou por um formalismo religioso exagerado, mas pelo cultivo das virtudes interiores da humildade, caridade e sujeiçáo a inevitável vontade de Deus. Durante esse período, houve também um crescente sentimento da responsabilidade leiga pelo bem-estar da igreja. Os governantes territoriais e os conselhos municipais buscavam melhorar a qualidade do clero e reformar os mosteiros. Nas cidades autônomas da Alemanha e da Confederaçáo Suíça, ademais, há muito vinham sendo feitas tentativas para assegurar o controle sobre as instituiçóes eclesiásticas locais, para regular o clero secular e monástico e para reivindicar de diversas outras maneiras para o laicato, enquanto tal, um lugar central na vida religiosa da comunidade.

HISTbRIh Dh IGREJA ERtSTí

Portanto, não seria a uma época morta que Lutero falaria, mas a uma época agitada. por uma elevaçáo na devocão religiosa e uma profunda aspiraçáo por consolaçáo religiosa. Os povos europeus eram, no geral, ainda leais à igreja romana, mas também estavam buscando naquela igreja satisfaçáo para seus anseios mais profundos e por liderança efetiva em uma época de fervente inquietaçáo, temores apocalípticos e numerosos problemas náo resolvidos.

Periodo VI A Reforma Capítulo I

O Desenvolvimento de Lutero e os Prirnórdios da Reforma A Alemanha no início do século dezesseis era em muiros aspectos o pais mais "igrejeiro" da Europa. As irrupções heréticas da Baixa Idade Média haviam sido contidas com êxito. Embora a hierarquia eclesiásrica e as ordens monásticas continuassem a ser objetos de ampla crítica, o anticlericalismo virulento tinha pouca evidência. A autoridade papal permanecia maior na Alemanha do que em qualquer oucro grande país europeu, exceto a Itália. A devocão e a piedade leiga, conquanto permi-

rindo freqiienremente excessos dos mais selvagens, ainda fluia por canais tradicionais. As peregrinações e as missas pelos mortos eram mais populares do que nunca. A veneraçio dos santos, e~~ecialrnerite da Virgem Maria e de sua rnáe, Santa Ana, havia aumentado dramaticamenre. Havia muitas coleçóes de relíquias e a venda de indulgências se multiplicava. Eram construídas muitas novas igrejas, capelas e santuários. Leigos piedosos faziam doaçóes para o sustenta de pregadores, visando à pregaçáo regular, nas principais vilas e cidades. A participação nas fraternidades religiosas alcançava novas alturas. A literatura de origem ortodoxa era lida avidamente. Portane que a Alemanha (ou qualquer outro país europeu, no que se to, não se ~ a d dizer refere a essa questáo), estava em 1500 em um estado de revolucáo incipiente contra o governa e o poder venerável da igreja romana.

Abaixo da superfície, entretanto, havia forres correntes de descontentamento e desavença. A ruína da igreja era s r u fiscalismo. O papado renascentista invariavelmente vivia além de seus meios e frequentemente estava à beira da bancarrota, especialmente porque precisava de imensas somas para manter sua posiçáo polícica na Itália. Para enfrentar suas despesas, a Cúria papal criava novos e mais opressivos impostos, taxas e multas que pesavam por demars sobre o clero mais alto que, por sua vez, passava-os para o clero inferior e, por fim, para o Iaicato. Roma tornou-se um

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AISTBRIA

DA IGREJA GRISAI

sinônimo, especialmente na Alemanha, para venalidade e avareza. O fiscalismo trazia consigo, e constituía, fraquezas morais como a simonia clerical, o nepotismo, o pluralismo, o absenteísmo e a concubinagem. Os clérigos paroquiais, em particular, estavam em uma situaçáo terrível: com formaçáo mínima, frequentemente miseravelmente pobres e normalmente vivendo com concubinas (pelas quais pagavam uma multa anual para seus bispos), sua disposiçáo de ânimo, náo surpreendentemente, era muito baixa. Ainda que esses abusos e deficiências náo fossem novidades irem fossem, talvez, maiores do que nos períodos precedenres, a percepção deies como intoleráveis por um laicato cada vez mais alfabetizado e educado era um desenvolvimento agourerito.

O "despertamento" religioso da Baixa Idade Média, como aquele do século doze, suscitou enormes expectativas. A igreja institucional náo esrava sendo amea~adapelo secularismo ou pela indiferença para com a religiáo, mas por exigências de que ela se conformasse verdadeiramente à "igreja pura, apostólica" retratada no Novo Testamento. As pessoas zelosas não queriam menos mas "melhor" religião, que para eles normalmente significava "mais bíblica". O antigo clamor por "reforma na cabeça e nos membros", retrocedendo até o movimento conciliar do início do século quinze, recebeu dos humanistas cristáos no início do século dezesseis, liderados por Erasmo, nova aceitacão e vitalidade. Os humanistas imaginavam uma renovação moral e espiritual da cristandade latina por meio da incuicaçáo das letras sacras e humanas

-a

Sagrada Escritura e as artes liberais. Esse retorno "às fontes" (adfontes) das culturas clássica e crista - esse programa de "reforma por restauraçáo" - era comum tanto aos humanistas como aos reformadores protestantes e também determinava a percepção geral das classes cultas nas vilas e cidades. A ironia é que a igreja romana, no meio de uma nova onda de devoçáo religiosa, deixou de exercer a liderança moral e espiritual nos escalóes mais elevados e foi incapaz, no nível

de nutrir e guiar a pieda-

de leiga que estava germinando.

A religiáo popular às vésperas da Reforma, ademais, tinha um caráter paradoxal. Ela parece ter sido mais severa do que encorajadora. A nova devoçáo manifestava um cresceirte sentimento de temor diante das Últimas Coisas: a irnaginaçáo da morte, dores purgatoriais e o juízo universal no Último Dia engendravam uma preocupa~áo ansiosa pela salva~áopessoal. A igreja ensinava que o destino eterno de uma pessoa seria determinado por quáo efetivamente ela havia se apropriado das graças sacramentais da igreja para que pudesse apresentar obras verdadeiramente meritórias -

p~nbnpFI

I)

REFQRMA

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uma vez que apenas uma fé ariva em obras de amor podesia ser uma fé salvífica. Porem, essa correlaçáo tipicamente medieval de graça e mérito abria as consciências sensíveis para uma dúvida corrosiva: Será que eu realmente realizei obras que agradaram a Deus? Será que eu fiz o suficiente para estar seguro da aceitação divina! Tam-

bém hb forte evidência de que a totalidade do sistema sacramen~alda igreja, sobrerudo o sacramento central da penitência, era experiencjado pelos fiéis como mais opressor do que libertador, no mínimo porque os benefícios espirituais oferecidos pela igreja estavam muito frequentemente vrnculados a quesróes monetárias e propósitos políticos.

Está evidente que uma mensagem de consolacão religiosa para a consciência ansiosa, especialmente uma que também apresentasse esperanca de alívio para os abusos eclesiásùcos, exerceria um apelo poderoso em círcuIos amplos. Assim, tal mensagem arrastaria em sua esteira uma multidáo de pessoas que, por motivos tanto espirituais como materiais, sen~iam-semagoadas com a igreja romana. Conquanro seja verdadeiro, entretanto, que as pessoas tenham aderido à Reforma protestante por causa de motivos diversos, como era de se esperar em uma sociedade na qual religiáo

e polirica eram virrualmenre inseparáveis, tambim está claro que a Reforma alcan$ou grande sucesso popular porque ela atendeu, ou prometeu atender, às necessidades de muitas pessoas que aspiravam seriamente às consolações da religiáo cristá. Estas pessoas não eram inimigas ferozes da igreja medieval: eram perseguidores sinceros da salvação que procuravam auxílio na igreja e, nela não encontrando, voltavam-se contra a religiáo rradicional e seus representantes com roda a fúria de um amor desiludido. Um importante prelúdio à Reforma em círculos intelecruais alemáes foi uma

querela envolvendo um dos mais pacíficos e respeitados dos humanisras, Johaanes Reuchlin (ver V: 17). Em 1509, um recém-convertido do judaísmo chamado Pfefferkorn foi apoiado por Jacó Hochstraren (1460-1527),o inquisidor dominicano em Colônia, enquanto Reuchlin, em resposta a uma inquiri~áodo arcebispo de Mainz (Magúncia), defendeu a literatura judaica como desejável a náo ser por pequenas exceçóes, instou um conhecimento mais compieto de hebraico e advogou uma discussáo amigável com os judeus ao invés de confiscar os livros deles. O resultado Ioi uma controvérsia tormentosa. Reuchlin foi acusado de heresia e processado por Hochstraten. O caso foi apelado a Roma e até 1520, quando foi decidido contra Reuchlin.

492

HISTÕRIA Dh IGREJA CRISIÃ

Os defensores da nova erudiçáo consideraram todo o procedimeilto como um ataque ignorante e injustificado contra a erudicáo e correram em defesa de Reuchlin. Foi desse círculo humanista que procedeu uma das sátiras mais bem sucedidas de todos os tempos - as Cartas de Homens Obscuros, de Crotus Rubeanus (1480?-1539)) c Úlrico von Hutten (1488-1523), publicadas entre 1515 e 1517. Fazendo-se passar por cartas escritas pelos oponentes de Reuchlin e da nova erudiçáo, as CUY~US foram amplamente ridicularizadas devido à sua latinidade bárbara, crivialidade e ignorância. Elas criaram, sem dúvida, a impress5o de que o grupo oposto a Reuchlin era hostil ao aprendizado e ao progresso. 0' resultado do caso Reuchlin foi unir os hurnanistas alemáes e traçar uma linha divisória entre eles e os conservadores; dentre os quais os dominicanos eram os mais proeminentes. Em 3 1 de outubro de 15 17, enquanto essa disputa estava em seu ápice, um professor monástico em uma universidade demá recentemente fundada e relativamente desconhecida, realizou de uma forma que náo era nem incomum nem espetacular, um protesto contra um abuso eclesiástico. Tal protesto encontrou resposta imediata e disparou a maior de todas as revoluções na história da igreja cristá. Martinho Lutero, que foi quem realizou esse protesto, é uma das poucas pessoas de quem se pode dizer que a história do mundo foi profundamente alterada por seu trabalho. Sem ser nem um organizador nem um poíitico, e muito menos um revolucionário autodeclarado, ele persuadia as pessoas pelo poder de uma profunda fé religiosa, fruto de uma. confiança inabalável em Deus e de relações diretas, pessoais, com Deris. Estas traziam uma certeza de saivaçáo que náo deixava lugar para as esmeradas estruturas hierárquicas e sacramentais da Idade Média. Objeto de ataques cáusticos por parte de detratores católicos romanos durante séculos, Lutero é hoje amplamente reverenciado em círculos católicos como um homa religioszks genuíiio e como um parceiro digno no diálogo teológico - uma mudança no~ávelque tem surgido a partir do movimento ecumênico moderfio e da pesquisa histórica desapaixonada. Porém, seja reverenciado ou oposto, ninguém pode negar que Martinho Lutero ocupa um lugar preeminente na história da igreja. Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483 em Eisleben, onde seu pai trabalhava em uma mina de cobre. Seus pais eram de piedade simples, convencional; náo há nenhuma evidência de que eles tenham tratado seus filhos com severidade indevida ou os sobrecarregado com excessivas exigências religiosas. O pai, um homem ambicioso de origem camponesa, mudou-se com sua família para Mansfeld poucos meses

rteioio v i

R REFORMA

493

após o nascimento de Martinho, e Iá alcançou respeito cívico e considerável prosperidade na atividade mineira e ficou determinado a dar a Martinho (o segundo dos oito filhos) uma educaçáo que o levasse à carreira em direito. Após estudos preparatórios em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach, Martinho Lutero ingressou na universidade de Erfurt em 150 1, onde ficou conhecido como um estudante diligente, amigável e amante da música. E r h r t era naquela época a mais humanisticamente avançada das universidades alemás, e Lutero ficou sob a influência do novo movimento. Embora nunca tenha se tornado um humanista no sentido completo do termo, Lutero partilhou de fato do entusiasmo do movimento pelo estudo das línguas antigas, especialmente a grega, e de sua crítica baseada na Biblia e nos escritos dos pais da igreja à teologia escolástica.

O jovem Lutero sentia fortemente aquele sentimento profundo de pecaminosidade e ansiedade que era a pedra fundamental do reavivamento religioso na época na Alemanha. Seguindo à sua graduação como mestre de artes em janeiro de 1505, ele ingressou na escola de direito em maio. A morte súbita de um colega de classe marcou-o profundamente, assim como o retorno para Erfurt de uma viagem à sua casa. Nessa oportunidade ele escapou por um triz de um raio - como conseqüência, fez

um voto a Sanca Ana de tornar-se monge. Para o desgosto de seu pai, ele rompeu com seus estudos em direito e, ein I7 de julho de 1505, ingressou no mosteiro dos eremitas agostinianos em Erfurt, confiante de que a vida monástica era o caminho mais seguro para a salvaçáo de sua alma. A "congregaçáo alemá" dos frades agostinianos, recentemente reformada por André Proles (1429-1 503) e entáo sob a supervisáo de João Staupitz (1460?-1524), desfrutava de merecido respeito popular e representava o melhor do monasticismo medieval. A ordem agostiniana valorizava muito a pregaçáo e o estudo da Bíblia, e contava entre os seus o famoso erudito agosriniano do século catorze, Gregório de Rimini (ver V:8), a quem Lutero consideraria com elevada reverência como o único teólogo escolástico livre de qualquer mancha de pelagianismo. Os tratados antipelagianos do próprio Agostinho também seriam, obviamente, importantes para o desenvolvimento teológico de Lutero. E seria Staupitz, em especial, quem mais influenciaria Lutero, a ponto deste dar-lhe o crédito por ter iniciado a Reforma. Lutero rapidamente conquistou reconhecimento na vida monástica. Em 1507 foi ordenado ao sacerdócio e no ano seguinte estava em Wittenberg, por ordem de seus superiores, ensinando ética aristotélica e preparando-se para um futuro magisté-

rio na universidade que ali fora estabelecida em 1502 pelo eleitor da Saxônia, Frederico

111, o "Sábio" (1486-1525). Aii bacharelou-se em teologia em 1509, mas foi enviado no mesmo ano de volta a Erfurt para estudar para o grau de setentiarius, ou expositor licenciado daquele famoso compêndio medievd de teologia, as Sentença de Pedro Lombardo. De novembro de 151O a abril de 15 11 fez memorável viagem a Roma, cuidando de negócios de sua ordem. De volta novamente a Wittenberg, que passou a ser daí em diante sua casa, recebeu o grau de doutor em teologia em 1512 e tornouse o sucessor de Staupitz como professor de Bíblia da universidade. Ele logo iniciou uma série de preleçóes exegéticas dos Salmos (15 13-15 15), de Romanos (15 15-15 1G), de Gálatas (1516-1 51 7) e Hebreus (15 17-15 18j. No decorrer de seus estudos doutorais, e em prepara580 para suas primeiras preleçóes, Lufero familiarizou-se com todas as tradições exegéticas, místicas e escolásticas da teologia medieval, como também com a nova erudiçáo humanista de Jacques Lefèvre d'Étaples, Reuchlin e Erasmo (ver V. 17).Ao se enfocar as tentações espirituais (Anfechtungen) de Lutero no mosteiro, frequentemente é negligenciado que ele era um teólogo brilhante e erudito de primeira qualidade. Suas habilidades práticas foram reconhecidas com sua nomeaçáo, em 15 12, para diretor de estudos em seu próprio convento e, em 1515, para vigario distrital responsável por onze mosteiros de sua ordem. Ele já havia começado a prática da pregação regular antes disso, primeiro em seu próprio convento (151 1) e depois (1514) na igreja de Wittenberg, em cuja atividade ele revelou dons notáveis desde o início. Portanto, em sua ordem ele possuía a reputaçáo de monge de piedade, erudição, dedicaçáo e zelo singrilares. No entanto, apesar de todo o rigor monástico, Lutero náo encontrava paz de espírito. Seu sentimento de pecaminosidade diante de um Deus santo e justo esmagava-o, e náo fora aliviado, antes agravara-se, pela prática da penitência e das obras ascéticas. Staupitz auxiliara-o ressaltando que a verdadeira penitência comesa náo com temor de um Deus punitivo, mas com amor para com Deus. Mas se Lutero pode dizer que Staupitz abriu seus olhos peia primeira vez para o EvangeIho, a clarificação de sua visáo foi um processo lento e gradual. Até 1509, Lutero dedicou-se aos últimos escolásticos, os teólogos nominalistas - Occam, Ailly e Biel. Lutero deveu a eles sua habilidade dialética, sua desconfiança de uma razão especulativa que rranscende os limites da revelaçáo, e talvez também sua ênfase na vontade de Deus como a única base de salvaçáo (pois conquanto os nominalistas deixassem espaço para as obras meritórias tanto antes como depois da justificação do pecador, eles em última

~tniouaui

A REFORMA

495

. . :cerrco ::,iado

parte de Deus). Em 1510, entretanto, o estudo que Lutero estava fazendo de Agosti-

:xitor

nho e dos agostinianos do fim do período medieval estava lhe abrindo novas pers-

?edro

pectivas, levando-o a uma hostilidade rapidamente crescente em relação à predomi-

instância vinculavam o valor salvífico de tais obras à graciosa aceitaçáo delas por

7

-toma,

nância de Aristóteles na teologia e em retaçáo à teologia nominalista como um "novo

>assou Iirnou-

peiagianismo".

ziciou

de que a salvaçáo é um novo relacionamento com Deus, alicerçado não em qualquer

ij16), i dou-

obra meritória humana mas na confiança absoluta na promessa divina de perdão por

Ao tempo em que Lutero estava ensinando Romanos, ele já se havia convencido

causa de Cristo. A lei de Deus, com seu rigoroso comando para se viver em santidade

t

com

diante de um Deus santo, náo foi dada como um meio de salvação mas existe para

':

ram-

convencer os pecadores de seu pecado, para humilhar o orgulhoso e esmagar o h ~ p ó -

.:amo

crita. O Evangelho, com sua mensagem radical de que "Deus justifica o ímpio" pela

: mos-

fé a parte das obras,' sustenta os pecadores que se arrependem e os reconcilia com

iiro de

Deus. A pessoa redimida, portanto, ainda que náo deixando de ser pecadora, já está

~rnea-

graciosa e plenamente perdoada, e desse novo e jubiloso relacionamento com Deus

para

em Cristo agora flui a nova vida de voluntária conformidade à vonrade de Deus. A

i cçado

fé, entendida como a firme confiaqa do coração (jducia cordis) na misericórdia de

:jll)

Deus por causa de Cristo, está assim aciva nas obras de amor - náo como fruto de

'.

:r-elou

compulsáo porque a salvaçáo dependa de tais obras, mas como fruto de gratidão

:do de

porque a salvaçáo já foi usseguvada. O amor é o fruto espontâneo da fé e está direcionado para o bem do próximo; náo é uma condiçáo para a aceiraçáo de alguém

?az de

diante de Deus. Conseqüentemente a fé, não o amor (como na teologia escolásrica),

:sma-

é o vínculo que une a alma a Deus.

obras 2. não

Aqui estava uma re-ênfase no aspecto mais importante do ensino paulino, uma vez que Lutero, como Paulo, fazia da salvação essencialmente um relacionamento

-utero clari-

pessoal correto com Deus (ou seja, com o próprio Deus como "Graça Náo-Criada",

.e aos

relacionamento correto é a rnjsericórdia imerecida de Deus demonstrada nos sofri-

a rians:orno x a as LtLma

mentos de Cristo em favor da humanidade. Cristo carregou nossos pecados; e a n6s

t'. eu

e não com as "graças criadas" dos sacramentos da igreja). O alicerce e penhor desse

é imputada a própria justiça de Cristo e, em fé, entramos em uma união viva com

ele. Alguns dos místicos alemáes, especialmente,Tauler, com sua religião cristocêntrica, R o m a n o s 1:17;4:5.

ajudaram Lucero a chegar h conclusâo de que essa confiança transformadora náo é, como ele havia suposto, uma obra na qual podemos participas, mas é totalmenre a dádiva de Deus a pecadores humildes, auto-acusado~es.

O desenvolvimenro de Lutero foi ral que no início de setembro de 1517 ele preparou uma D i s p ~ zContl'd ~ ~ a Teologia Escolksra'ca - novenra e sere teses apresentando um ataque verdadeirarnence radical sobre praticamente a roraiidade do escolasticisrno medieval, incluindo a VZLZ antiguitl (tornistas e ~ S C O ~ ~como S E ~também S) a viu moder-

na (occamisrds). Ele agora declarava que a ênfase norniilalisra rtilficrre quod zrr se est - o ensino que Deus infalivelmente infundiria graca naquelas pessoas que, em um

estado de natureza, fizeram o bem que podiam - era absurda e pelagiana, na realidade pior do que pelagiana (ver V:8). Ele também condenou os primeiros escolásricos por

ensinarem que pecadores justificados cooperam em sua salvaçáo mediante a realizaçáu de obras meritórias dentro de um estado de graça {ver V:7). Pzra Lutero, qual-

quer conversa de "mérito" no tema da justificacáo era blasfêmia e heresia (pelagiana). Assim, ele subverteu o fundamento de rudo o que considerava jrisrificaç.áo pelas obras no ensino tradicional da igreja. Lutero não chegou a estas idéias por meio de um larnpejo súbito de iluminação. Sua famosa "irrupçáo evangdlica", que os estudiosos tem procurado datar com precisáo falaciosa, estendeu-se por um periodo de anos. desde suas primeiras palestras sobre. Salmos eni 3 5 13- 15 15 até seu segundo curso sobre Salmos que se iniciou no final de 15 18. Duranre esse período, sua posi~áoassumiu clareza e certeza crescentes, no mínimo por causa de seu envolvimento na controvérsia sobre as indulgências e seu ulterior julgamento diante das autoridades eclesiásticas. Conquanto em 151515 16 Lutero ainda pudesse falar da fi que justifica aquele marcado pela humikdade,

no início de 1519 esrava ensinando consisrentemenre que o pecador P justificado (aceito, absoIvido, perdoado) diante de Deus

fisomente - isto é, pela depend6n-

cia e confiança absoluta no Evangelho do perdão gracioso, a "Palavra de Deus". No início de 1517 Lutero náo estava só. Na universidade de Wirtenberg, sua oposição ao arisroteiismo e ao escolasticismo, em favor de palestras sobre a Bíblia e os pais da igreja, encontravam muita simparia. Seus colegas, André Bodenstein de Karlstadr (1480-1 54 I), que, ao conrrsrin de Lurero, havia sido educado na vi~~zntiqua, t. NicoIau

von Amsdorf ( 1483- 1565), agora se tornavam seus sinceros correligioná-

rios. A universidade logo rornou-se a ponta de lança da Reforma luterana. No final de 1517 Lucero sentiu-se compelido a falar contra um abuso gritante. O

L

~ r a l o i oui

A REFORMA

497

papa Leáo X (1 513-1 52 1) pouco antes havia emitido uma dispensa permitindo que Alberto de Brandenburgo (1490-1545)ocupasse ao mesmo tempo o arcebispado de Mainz, o arcebispado de Magdeburgo e a administraçáo do bispado de Hdberstadt.

A dispensa dos regulamentos da igreja contra "pluralismo" (múltiplos ofícios) cusrara uma grande soma a Alberro, a qual ele tomara emprestado da casa bancária Fugger, de Augsburgo. Para poder pagar esse empréstimo, também foi concedido a Alberto partilhar metade da renda em seu distrito da venda de indulgências que o papado estava emitindo, desde 1506, para a construcáo da nova basílica de Sáo Pedro e que ainda hoje é um dos ornamentos de Roma. Um dos comissionados para essa arrecadação foi João Tetzel(1470- 15 I?), um eloqüente monge dominicano, que, desejando os maiores resultados possíveis, descrevia os benefícios das indulgências nos termos mais grosseiros. Lutero mesmo náo tinha nenhum conhecimento das transacóes financeiras entre Alberto e o papa. Suas objeções ao procedimento eram pastorais e teoldgicas: as indulgências criavam um falso senso de segurança e portanto sáo destrutiva~do verdadeiro cristianismo, o qual proclama a cruz de Cristo e do cristáo, não libertacão de castigo merecido. Quando Tetzel se aproximou da Saxônia eleitoral - ele náo recebeu permissáo para entrar, embora muitos membros da congregaçáo em Wittenberg tenham atravessado a fronteira para comprar cartas de indulgência - Lutero pregou contra o abuso das indulgências e preparou suas memoráveis "Novenra e cinco teses". Em 31 de outubro de 1517 ele enviou cópias delas para o arcebispo Alberto de Mainz e para o bispo Jerônimo de Brandenburgo, em cuja jurisdi~áoencontrava-se Wirtenberg. Se Lutero naquele dia também afixou ou náo suas teses na porta da igreja d o castelo em Wittenberg, que servia como painel de afixação dos boletins da universidade, é tema de controvérsia entre os historiadores, embora seja bastante possível que ele realmente tenha feito isso. Consideradas em si mesmas, é de se admirar qual o motivo que fizeram das noventa e cinco teses a fagulha que iniciou a explosáo. Elas foram escritas em latim e planejadas para o debate acadtrnico. O tom e conteúdo delas sáo muito menos incitantes do que as noventa e sete teses de Lutero de setembro de 15 17, náo obstante Lutero estar agora atacando uma fonte lucrativa de renda eclesiástica e também estar tocando em questões bastante sensíveis sobre a autoridade papal. Suas teses, entretanto, não negavam o direito do papa de conceder indulgências. Elas questionam a extensáo das indulgências ao purgatório, e tornam

evidente os abusos permitidos pelo ensino corrente - abusos que elas implicam que seriam repudiados pelo papa quando este fosse informado. Conquanto as teses estejam longe de expressar a totalidade do pensamento de Lutero, elas demonstram certos principios que teriam conseqüência revolucionária.

O arrependimento náo é um simples ato de penitência, mas uma constante mudança de coração e mente que se estende por toda a duraçáo da vida da pessoa. O cristáo ao invés de evitar, busca a disciplina divina. O verdadeiro tesouro da igreja náo sáo os méritos superabundantes de Cristo e dos santos, sujeitos ao controle papal, mas "o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus", oferecido graciosamente por pregadores fiéis a pecadores arrependidos.' Na situação de agitação social em que se encontrava a Alemanha, foi um evento do maior significado que um líder religioso respeitado, embora humilde, tivesse falado corajosamente contra os abusos econômicos, teológicos e pastorais associados com o sacramento da penitência. Dentro de semanas, as noventa e cinco teses, traduzidas para o alemáo, espalharam-se dentro do império de norte a sul e leste a oeste. Os agentes primários nessa disseminação foram as irmandades humanistas nas cidades alemás, entre cujos quadros Lutero encontrou seus primeiros afiados fora de Wittenberg. Lutero náo havia previsto tal rebuliço. Logo surgiu um formidável oponente na pessoa do hábil polemista Joáo Maier de Eck (1486-1543), professor de teologia na universidade de Ingolstadt e antigo amigo de Lutero, que respondeu com um tratado circulado manuscrito e intitulado Obelisci. Sendo acusado de heresia, Lutero defendeu sua posição em um sermáo intitulado "Graça e indulgência", e replicou a Eck com seu próprio manuscrito náo publicado cujo título era Asteriri. No início de

1518 o arcebispo Alberto e os dominicanos fizeram chegar a Roma acusa~óesformais contra Lutero. O resultado foi que o superior geral dos agostinianos, Gabriel della Volta, recebeu ordem para encerrar a disputa, e Lutero foi convocado a se apresentar diante do cabido geral da ordem que se reuniria em Heidelberg em abril de

1518. Lá, em suas importantes "Teses de Heidelberg", Lutero argumentou contra o livre arbítrio e o controle de Ariscóteies sobre a teologia e esboçou os traços principais de sua "teologia da cruz". Lá ele também coliquistou novos seguidores, dentre os quais os mais imporcances foram Martinho Bucer (1491-1551) e Joáo Brenz (1499-

' J. ~elikane H. T.Lehmann, eds., L í ~ t h t W ~ jO T ~ 55I volumes , (St.

Louis e Philadelphia, 1955-1976), 31:31

(tese 62). Doravante, essa obra sçrá mencionada como "Lutberi Works".

~tnlonovi

1 REFORMA

499

1570), que mais tarde se tornaram os reformadores de Estrasburgo e Würctemberg, respectivamente. Por volta dessa mesma ocasiáo, Lutero também enviou a seu editor uma defesa mais elaborada de sua posiçáo diante das indulgências, as Resolzttiones ou

Exp fdndçáes. Lutero náo desejara discussáo com o papado. Parece que estava certo de que o papa veria, como ele via, os abusos das indulgências. Mas o curso dos aconcecimentos não lhe deu outra escolha senáo a defesa firme de suas opiniões ou a submissão.

Em junho de 1518 o papa Leáo X comissionou seu censor de livros e supervisor do palácio papal, o dominicano Silvestre de Prierio (1456.)-1523), a escrever uma réplica a Lutero, a qual ele produziu rapidamente. Prierio afirmou que "a igreja romana é representada pelo colégio dos cardeais e, além disso, é virtualmente o sumo pontífice", e que "aquele que diz que a igreja romana náo pode fazer o que na realidade está fazendo com respeito às indulgências, é herege".' Lutero foi entáo intimado a comparecer a Roma dentro de sessenta dias. Essa intimaçáo e a réplica de Prierio chegaram a Lutero no início de agosto. Seu caso teria terminado com sua sumária condena~áonáo tivesse tido ele a poderosa proteçáo de seu príncipe, o eleitor Frederico. Até onde Frederico simpatizava

com as crenFas religiosas de Lutero em qualquer momento é incerto, mas, em todo caso, ele se orgulhava de seu professor de Wittenberg e era contrário a enviá-lo a Roma, onde ele encontraria uma quase certa condenagáo. Sua habilidade potítica conseguiu que a audiência de Lutero fosse feita perante o representante papal no Reichstag, em Augsburgo. Este representante era o culto comentador de Aquino e teólogo de fama na Europa, cardeal Tomás de Vio (1469- 1534), conhecido como Cajetano devido ao lugar de seu nascimento (Gaeta). Cajetano já havia recebido instruções secretas do papa para náo debarer com Lucero e, caso esre não se retratasse, conseguir sua prisáo utilizando

meio disponível. Sob pressáo de Frederico,

Cajetano. subseqüentemente solicitou a Cúria que adotasse uma política mais conciliadora, e lhe foi permitido conceder a Lutero uma audiência sem debate. Os dois realizaram três reunióes de 12 a 14 de outubro de 15 18. Cajetano ordenou que Lucero se retratasse, especialmente das críticas à capacidade do poder papal de conceder indulgências. Lutero negou-se, e a 20 de outubro retirou-se de Augsburgo,

Wer B. J. Kidd, ed., Documents Illurtralive oftbe Continental Refirmation (Oxford, 19 1 1; reimpressáo, 19701, pp. 3132.

tendo apelado ao papa "para ser melhor informado". Não satisfeito com isso, em novembro Lutero apelou de Wittenberg a um h t u r o concílio geral. As poucas chances que teria de uma audiência favorável em Roma sáo demonstradas pela bula publicada no mesmo mês por Leáo X, definindo as indulgências no sentido em que Lutero as criticara. Enquanro isso, fora instalado em Wittenberg como professor de grego um jovem erudito e sobrinho-neto de Reuchlin, Filipe Melanchthon (1497-1 560), que viria a estar intimamente ligado a Lutero nos anos subseqüentes. Nunca houve maior contraste entre duas pessoas. Melanchthon era tímido e retraído, mas sem rival na erudi~ á o Sob . a forte impressão da personalidade de Lutero, ele dedicou sua apreciável capacidade, quase desde sua chegada a Wittenberg, ao progresso da causa luterana.

O imperador Maximiliano estava então claramente no fim de sua vida - de fato, morreu em janeiro de 15 19 - e pesava a ameaca de tumultos numa acirrada eleiçáo de seu substituto. O papa Leso X, como príncipe italiano, observava com desagrado a candidatura de Carlos da Espanha ou a de Francisco da Franqa, como incentivadoras

da influência estrangeira na Itália. Por isso buscou agradar ao eleitor Frederico, a quem gostaria que fosse o escolhido. Não era, pois, hora de agir contra o professor protegido de Frederico. Encáo Leáo enviou ao eleitor seu camareiro, o saxônio Carlos von Miltitz, como seu núncio, portando uma rosa de ouro, um expressivo presente do alto apreço papal. Miltitz ufanou-se de tal forma a imaginar que poderia sanar a questáo, e foi muito além de suas atribui~óes.Seguindo sua própria iniciativa ele repudiou Tetzel e ceve uma entrevista com Lutero de 4 a 6 de de janeiro de 1519. Lutero concordou em p a r d a r silêncio sobre as questóes em disputa se seus oponentes fizessem o mesmo, submeter o caso, se possível, a bispos alemáes eruditos, e escrever uma humilde carta ao papa. Porém, era impossivel qualquer acordo concreto. O colega de Lutero em Wittenberg, André Karlstadt, contrariando Eck, sustentara em 1518 que o texto da Bíblia deve ser preferido até mesmo à autoridade de toda a igreja. Eck exigiu um debate público que Karlsradt aceitou. E Lutero foi logo levado à luta, propondo defender que a supremacia da igreja romana não tinha apoio nem na história nem na Escritura. O grande debate se realizou em junho e julho de 15 19 em Leipzig. Karlstadt, que era um debatedor diligente, teve apenas sucesso moderado em sua defesa diante

do esperto Eck. O ardor de Lutero fê-lo sair-se melhor, mas a habilidade de Eclr levou Lutero a declaracão devastadora de que sua posiçáo, sob alguns aspectos, era a

FERIOIOYI

A REFORMA

501

mesma de João Huss e que o respeitado concílio de Constança incorrera em erro condenando-o. Para Eck, isso pareceu um triunfo forense, e eie pensou que a vitória era sua, declarando que quem negava a infalibilidade de um concílio geral era "pagáo e publicano". A posigo a que Lutcro havia sido conduzida era, de fato, significativa. Na verdade, foi muito importante essa declaragáo a que Lutero foi levado. Ele já rejeitara a inerrância e autoridade final do papa e agora proclamava a falibilidade dos concíiios gerais. T a ~ passos s implicavam no rompimento com a totahdade do sistema medieval de autoridade, e pareciam permitir apelo final apenas às Escrituras. Eck sentiu que toda a controvérsia agora poderia chegar ao fim rapidamente mediante uma bula papal condenatória, a qual, então, procurou conseguir. Essa bula, Exszkrge domine, foi publicada em 15 de junho de 1520.

Lutero estava agora verdadeiramente no auge da batalha. Suas próprias idéias estavam se cristalizando rapidamente. Partidários hurnanistas, como Úlrico von Hutten, ajuntavam-se a ele como o

comandante num conflito nacional com

Roma. O próprio Lutero, conquanto renunciando à força Hsica, estava corne~andoa

considerar sua tarefa como uma liberta@o espintuai da Alemanha de um sistema de controle papal que ele estava começando a considerar como o anticrisro. Ele também detaltiou as i~iiplica~óes diretas, de sua doutrina da junificaçáo ~ e i fi a somente, para a vida cristá de serviço à sociedade. Em seu substancioso tratado de maio de 1520,

Das B o a O~YLZS, Iatero primeiro identificou a fé em Cristo como "a primeira, mais etevada e mais preciosa de todas as boas obras", porque sornence a E pode tornar a consciência pecaminosa segura diante de Deus e libertar a vontade para o amor genuíno para com o próximo. Em seguida ele afirmou a bondade essencial dos negócios e ocupaçóes normais da vida e denunciou aqueles que "definem as boas obras tão estieitamente de forma a fazerem-nas consistirem apenas em orar na igreja, jejuar e dar e~rnolas".~ Essa vindica~áoda vida cotidiana no mundo como o melhor campo para o serviço a Deus, ao invés da fuga rnonástico-ascética do mundo, seria uma das mais importantes contribuições de Lucero ao pensamento protestalire, como também um dos mais significarivos afastamentos das concepcóes anrigas e medievais de "perfeiçáo cristã". A grande realizacáo de Lucero no ano de 1520 foi o preparo de três obras que fizeram época. O primeiro desses tratados foi pubiicado em agosto e intitulado À

HISIÓBIA DR IGREJA ERISIÁ

502

Nobrezd Crz~t2da N&%uAlemá. Escrito com ardente convic~áo,por um mestre da língua alemá, de imediato se espalhou pelo império. Nesse trabalho declarava que os três esteios que sustentavam o poder papal haviam sido derrubados. A prerensa superioridade do estado espiritual sobre o temporai é infundada, pois rodos os crentes são sacerdotes por causa do batismo. Esta verdade do s ~ e r d ó c i ouniversal solapa o segundo esteio, aquele do exclnsivo direito papal de interpretar as Escrituras; e solapa também o terceiro esteio, aquele que diz que apenas o papa e ninguém mais pode convocar um concílio reformador. "Um concílio verdadeiro, livre", para reformar a igreja deve ser convocado pelas autoridades temporais. Daí Lutero passou a ctaçar irm programa de reforma, sendo suas sugestóes mais práticas que teológicas. O desgoverno, as nomea~óese a taxaçáo papais deviam ser frenados, os cargos desnecessários abolidos, os interesses eclesiásticos alemáes colocados sob um "primaz da Alemanha", o casamento do clero permitido, os tão numerosos dias santos reduzidos para o interesse da produçáa e da sobriedade, a mendicância - inclusive a das ordens mendicanres - poibida, os botdéis fechados, a luxúria restringida e a educação teológica nas universidades reformada. Náo é de admirar que o efeito da obra de Lutero fosse profundo. Ele verbalizara o que homens sensaros de há muito vinham pensando* Dois meses depois Lutero publicou em latim seu Cativeiro Babilônico da Igftja. Nesta obra ela tratou de questóes da mais alta impor13.ncia teológica, mormente os sacramentos, e acacou fortemente o ensino da igreja romana. Limitando o nome de sacramento "àquelas promessas [de perdão] que têm símbolos a elas anexadas", Lutero defendeu que a Escritura reconhece apenas dois desses sacramentos como rendo sido instituídos por Crisro mesmo: o batismo e a ceia do Senhor.' Embora a penitência (contrição, confissáo, absolvição) náo tenha um símbolo exterior, ela cercamente tem um certo valor sacramental como um retorno diário ao batismo, e Lutero queria que a confissáo pivada fosse mantida pois esta era "uma cura sem igual para as

O que é cenrral a todos os sacramentos não é o simbolo (sacrarnentum) em si, mas a palavra divina de perdáo (a rei sacramenti) que deve ser recebida em fé. A luz disso, os votos monásticos, as peregrinaçóes e as obras meritó-

consciências

rias são considerados como substitutos criados pelas pessoas para o perdáo dos peca-

' Ibid., 3(;:124.

' Ibid., p. 86.

'

rulnioul

A REFORMA

'

503

dos gratuitamente prometido à fé, no batismo. Ademais, Lutero criticou a nrgaçáo do cálice aos leigos, expressou dúvidas quanto à transubstanciação e, especialmente, rejeitou a doutrina de que a missa é um sacrifício oferecido a Deus. Ele declarou que OS

ou~rossacramentos romanos - confirmaçáo, matrimônio, ordens clericais e extre-

ma unçáo - náo tèm valor sacramental na Escritura. Uma das maravilhas da tempestuosa carreira de Lutero é que ele foi capaz de escrever e publicar, simulcaneamente a esses tratados intensamente

e en-

quant-o a bula papal estava sendo publicada na Alemanha, sua terceira grande obra de 1520, Sobre a Liberdade C~istd'.Nela apresentava, com serena confianqa, o paradoxo da existtncia cristã: "O cristáo é um senhor perfeitamente livre de todos, náo estando sujeito a ninguém. O cristáo é um servo perfeitamente obediente de todos, estalido sujeiro a todos".' O cristáo é livre porque está justificado

fé somente,

não mais sob a lei das obras, e está em uma nova relação pessoal com Cristo. É servo porque está obrigado pelo amor a colocar sua vida em conformidade com a vontade de Deus e se tornar auxiliar de seu próximo. O prefácio dessa obra, uma "carta abertP' ao papa Leão X, é documento bastante curioso, transpirando boa vontade para com o pontífice pessoalmente, mas repleto de denúncias quanto a corte papal e suas pretensões para o papado, no qual o papa é representado como "estando como um cordeiro no meio de lobos". Embora a visáo de Lutero subseqfiencemente haveria de se aclarar e se expandir, sua concepção teológica do Evangelho cristáo em 1520

já estava assim praticamente completa em suas linhas gerais. Entrementes, Eck e Girolarno Ateander (1480-1542), como núncios, chegavam à Alemanha com a bula papal. Sua publicagáo iiáo foi permitida em Wittenberg e sua recepçáo em grande parte do país foi mais com indiferença ou mesmo hostilidade. Aleander, porém, conseguiu publicá-la nos Países Baixos e buscou a queima dos livros de Lutero em Lovaina, Liége, Antuérpia e Colônia. Em 10 de dezembro de 1520 Lucero replicou queimando a bula papal e o dire~tocansnico, na presença aprovadora de esrudantes e cidadãos de LVittenberg e sem oposição das autoridades civis. Estava evidente que parcela considerável da Alemanha estava em rebeliáo eclesiástica, e a situa520 exigia a aten~áodas mais altas autoridades do império. Ein 28 de junho de 1519, enquanto se desenrolava o debate de Leipzig, Carlos V (1500-1558), o neto de Maxirniliano, foi escolhido para ascender ao trono do Sacro ' Jbid.,

31:344.

HISTnRIA DA IGREJA

504

CRISTA

Império Romano. A eleiqáo de Carlos - já herdeiro da Espanha, dos Países Baixos e dos territórios austríacos da casa de Habsburgo, e senhor de uma parcela considerável da Itália e dos recém-descobertos territórios de além-Atlântico - fez dele o líder de um território mais vasto do que qualquer oucro governante europeu desde Carlos Magno. Na Alemanha, no enranto, sua autoridade era bastante limitada pelos poderes territoriais dos príncipes locais. E na época Carlos ainda era jovem e desconhecido, e ambos os partidos nas lutas religiosas da época alimentavam !grandes esperanças de conquistar seu apoio. De fato, ele era um católico romano zeloso, do tipo de sua avó, Isabel de Castela, partilhando das idéias reformadoras dela, desejoso de melhoras na moralidade, educaçáo e adrninistracáo clericais. Ele, porém, náo nutria simpatia alguma por qualquer desvio no sistema doutrinário ou hierárquico da Idade Média. Parcialmente para regularizar seu governo na Alemanha, parcialmente para preparar-se para a guerra iminenre devida às pretensóes rivais da França e da Espanha na Itdia, Carlos convocou uma assembléia do Reichsrag para janeiro de 152 1 em Worms. Embora houvesse muitos outros assuntos, todos sentiam que a soluçáo do caso de Lurero era da maior importância. Aleander, o núncio papai, insistia numa pronta condenaçáo, especialmente depois que a bula papai de excornunháo, Decetponttjcem

rornanum, fora publicada em 3 de janeiro de 1521. Visto que Lutero já escava condenado e excomungado pelo papa, o Reichstag não teria outra obrigacáo, urgia Aleander, senão tornar efetivo tal juízo. Por outro lado, Lutero tinha amplo apoio popular, e seu príncipe, o eleitor Frederico, um mestre na intriga diplomática, era de opiniáo de que Lutero náo havia tido uma audiência adequada. Frederico e outros nobres achavam que ele devia ser ouvido pelo Reichstag antes deste tomar uma resoluçáo. O imperador vacilou entre as duas opiniões, convencido de que Lutero era um herege abominável; mas, bastanre político, percebeu náo ser conveniente opor-se táo frontalmente aos sentimentos dernáes nem perder a possível vantagem de fazer do destino do herege uma alavanca capaz de trazer o papa para o seu lado na luta com a Franca.

O resultado foi que Lutero foi intimado a comparecer em Worms, sob a proteqáo de um salvo-conduto imperial. Desde Wittenberg sua viagem praticamente decorreu sob ovaqáo popular. Em 17 de abril de 1521 Lutero compareceu ante o imperador e o Reichstag. Uma pilha de seus livros lhe foi mostrada, e lhe perguntaram se ele se retrataria deles ou náo. Lutero pediu tempo para refletir. Foi-lhe dado um dia, e na tarde seguinte ele estava novamente diante da assernblbia. Ali reconheceu que, no

~ a l o rda discussão, usara expressóes duras contra pessoas; mas quanto à substância ,o que escrevera náo tinha do que se retratar, a menos que fosse convencido de seu

trro "pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara"."

imperador, que riáo

xodia crer houvesse tamanha temeridade capaz de negar a infalibilidade de um concílio geral, cortou a discussáo. Não é certo, mas é bem possível, tenha Lutero exçlarnado: "Náo posso fazer outra coisa. Aqui estou. Deus me ajude. Amém". Estas ~alavrasexpressam no mínimo a essência de sua determinacão inabalável. Dera um orande testemunho histórico à veracidade de suas convicçóes, diante do mais alto rribunal de sua nacáo. E dera prova cabal de sua destemida coragem.

O juizo de seus ouvintes ficou dividido, mas se ele perdeu o imperador e os prelados devido a sua forre e, como pareceu-lhes, infundada afirmaçáo, deixou impressão favorável a muitos nobres alemáes, incluindo o eleitor Frederico. Este principe, embora considerando Lutero por demais arrevido, confirmou sua determinaçáo de que náo viria dano algum ao reformador. Contudo, o resultado pareceu uma derrota para Lutero. Um mês após haver partido a caminho de casa, ele foi formalmente posto sob interdiçáo imperial, embora não antes que muitos dos membros do Reichstag tivessem partido. Ele deveria ser preso a fim de ser punido e seus livros queimados. Tal interdito nunca foi formalmente anulado, e até o fim da vida Lutero esteve debaixo da condenaçáo imperial como herege e rebelde. Se a Alemanha estivesse controlada por uma forte autoridade central, a carreira de Lurero logo teria terminado em martírio. Nem mesmo um edito imperial, entrecanto, podia ser executado contra a vontade de um forte governante territorial, e Frederico, o Sábio, mais uma vez salvou Lutero. Náo querendo sair abertamente em defesa de Lutero, fez com que máos amigas o prendessem quando este regressava a Worms e, ein segredo, o levassem ao castelo de Wartburgo, perto de Eisenach. Durante meses seu esconderijo foi desconhecido; mas qlie estava vivo e participando do destino da luta, sua pena brilhante logo o demonstraria. Seus ataques às práricas romanas aumentaram de intensidade. No entanto, o fruto mais durável desse período de retiro forçado foi sua rraduçáo do Novo Testamenro, iniciada em dezembro de

1521 e publicada em setembro do ano seguinte. Lutero náo foi de forma alguma o primeiro a traduzir as Escrituras para o alemáo, mas as primeiras versóes haviam sido feitas da Vulgata e eram de expressáo dura e

506

118IÓRIA DA IGREJA CRISTZ

grosseira. A obra de Lutero náo era meramente a partir do grego, para o qual as obras de Erasmo forneciam a base, mas era também idiomática e fácil de ler. Essa tradução determinou em muito a forma de linguagem que marcaria a futura literatura alemá aquela da chancelaria saxônica da época - elaborada e polida por um mesrre da expressão popular. Poucos serviços maiores do que essa tradução foram prestados ao desenvolvimento da vida religiosa de uma naçáo. Mas nem com toda sua deferência pelas Sagradas Escrituras como a plavra de Deus escrita, deixava Lutero de ter suas normas próprias de crítica, isto é, a relativa clareza com que um livro bíblico tescemunhava de Cristo e da justificaçáo pela graça mediante a fé somente. Julgados por esses padróes, a ele pareceu que Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse eram de valor inferior e náo pertenciam "aos verdadeiros e seguros livros principais do Novo Testam e n t ~ " Mesmo .~ na pr6pria Escritura havia diferenças em valor.

No mês em que Lutero comqou seu trabalho como tradutor - dezembro de 1521 - foi publicado em Wictenberg um pequeno volume escrito por Melanchthon, os

Luci communes, ou Pontos Cardeais da lèologid. Pode-se dizer que com ele começou a apresentação sistemática da teologia luterana. Seria ampliado, desenvolvido e modificado em muitas ediçóes posteriores.

Capítulo 2

Separaçóes e Divisões A permanência de Lutero em Wartburgo deixou Wittenberg sem a sua poderosa liderança, mas a revolução eclesiás~icaali prosseguiu adiante sob a orientaçáo de seus companheiros. Na primeira metade de 1521 se juntaram a seus primeiros companheiros na universidade - Karlstadt, Amsdorf e Melanchthon - outros dois, Joáo Bugenhagen (1485-1558) e Justo Jonas (1493-1555). A responsabilidade da liderança ficou com o ousado e impulsivo Karlstadt.

As atividades de Lutero ainda não haviam provocado nenhuma mudan$a no cul-

' Ibid., 35:394.

~ t ~ i o nvia

h REFORMA

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to público nem na vida monástica, mas estavam se formando rapidamente exigências para tais mudanças. Em outubro de 1521 um monge impetuoso, colega de Lutero, Gabriel ZwilIing (1487?-1558), em outubro de 1521, estava denunciando a missa e instando o abandono dos votos clericais. Logo teve muitos seguidores, especialmente no mosteiro agostiniano de Wittenberg, onde vários monges entáo renunciaram a seus votos. Com igual zelo Zwilling logo passou a atacar as imagens. No natal de

I521 Karlstadt celebrou a ceia do Senhor na igreja do castelo sem vestes clericais, sem oferenda sacrificial, sem elevaGão da hóstia e oferecendo o cálice aos leigos. A confissão auricular e os jejuns foram abandonados. Karlstadt ensinou que todos os ministros deveriam se casar e, em janeiro de 1522, ele mesmo contraiu matrimônio. De imediato começou a se opor ao uso de quadros, de órgãos e do canto gregoriano no culto público. Sob sua direçáo, o governo da cidade de Wittenberg extinguiu as antigas irmandades religiosas e confiscou seus bens, decretou que os ofícios religiosos seriam em alemão, condenou quadros nas igrejas e proibiu a mendicância, ordenando que os verdadeiramente necessitados fossem socorridos com os recursos da cidade. Em 27 de dezembro de 1521 a comoção pública aumentou com a chegada de três pregadores radicais de Zwickau, Nicolau Srorch, Marcos Tomás Stkbner e Tomás Drechsel. Estes "profetas" diziam ter inspiração divina direta, opunham-se ao batismo infantil e anunciavam o fim iminente do mundo. Essa rurbulência, seguida por um ataque popular às imagens, muito desagradou ao eleitor Frederico, o Sábio, e provocou protestos dos príncipes alemães e das autoridades imperiais. O governo da cidade pediu a Lutero seu recorno. O eleitor pessoalmente proibiu-o de retomar, por questões políticas, mas não obsrance em 6 de marco de 1522 Lutero estava uma vez mais em Wittenberg. Oito dias de prega~áo demonstraram seu poder. Proclamou que o Evangelho consiste no reconhecimenro do pecado, no perdáo através de Cristo e no amor ao próximo. As alreraçóes que havram provocado o tumulto tinham motivos exteriores. Só deviam ser efetuadas conslderando-se os fracos. Assim Lutero dominou a situação. Karlstadt perdeu toda sua influência e teve que deixar a cidade. Muitas das mudangas foram, momentaneamente, abandonadas e a velha ordem do culto em grande parte restabelecida. Assim Lutero revelou atitude decididamente conservadora. Opunha-se niXo apenas aos rornanistas, como até entáo, mas também aos partidários da revoluçáo que estavam se movendo, como lhe parecia, por demais rápidos. As divergências no próprio par-

ido reformista haviam começado. No entanro, náo se pode duvidar da sabedoria de

Lutero. Sua atua550 fez com que muitos dos governantes demáes o olhassem com simpatia; corno alguém que, mesmo coridenado ein Worms, era rtoalme~iteuma forsa no estabelecimento da ordem em tempos tumultuosos.

De importância especial

foi a conrinuaçáo do apoio de seu príncipe eleitor, sem o qual sua causa, mesmo nesse momento, naufragaria rapidamente. Entrementes, o imperador estava preocupado com a guerra contra a FranGapelo controle da Itália, a qual o manteria ausente da Alemanha de 1521 a 1530. Era impossível uma interferência de sua parte na Reforma. O papa Leão X morrera em dezemhro de 1521 e fora sucedido pio antigo tutor de Carlos V, agora com o cítulo de Adriano VI. Era este um homem de estrita ortodoxia medieval, mas plenanenre consciente da necessidade de reforma moral e administrativa na corte papal. Seu curto ponrif;cado d e apenas vinte meses foi um esforço 1amentavelment.einfrutífero para conrroIar os males dos quais ele acreditava que o movimento herético de Lurero era castigo divino. A simpatia por Lutero estava se espalhando rapidamente, náo sd na Saxonia mas cambénl em cidades da Alemanha. Em novembro de 1522, Adriano

enviou ao Reichstag reunido em Nuremberg um núncio com um Breve, solicitando a aplicaçáo do edito de Worms conrra Lurero, mas admitindo que havia muitas falhas na administra~áoeclesiástica. O Reichstag respondeu corn a dectaraçáo de que o edito era impossível de ser cumprido, e exigiu um concílio para a reforma da igreja,

que se deveria reunir na Alemanha denrro de um ano. Enquanto isso, somente deveria ser pregado o Evangelho santo, verdadeiro, puro e genuíno. Ademais, o Reichstag renovou as velhas queixas contra os desgovernos papais. Não obstante a forma dessa postura do Reichstag, cla foi na verdade uma vitória para Lurero e sua causa. Parecia que a Reforma conseguiria o apoio de ~ o d a iiacáo alcrná.

Sob esras circunstâncias favoráveis, congregaçiies "evangélicasn (i.e., aquelas que reivindicavam ser "reformadas de acordo corn o EvangeIho") estavam se formando rapidamente em muitas regiões da Alemanha, ainda que sem constitui~áoou ordem

de culto fixas. Lutero estava agora convencido de que tais associaçóes de crentes tinham pleno poder para indicar e depor seus pastores. Também sustentava, porem, que os governantes temporais, coma membros condut,ores da comunidade cristá e portanto como "bispos de emergência", tinham o grande dever de velar pelo Evangelho. As experihcias de Lutero com os camponeses rebeldes, e as necessidades da organizaçáo concrera da igreja dentro de extensos territbrios, logo fizeram Lutero abandonar essa "ecIesioiogia autonoma" em favor de urna crescente dependència do

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Estado, embora continuasse a defender que o exercício de funções espirituais pelos principes era apenas u m expediente temporário. Para satisfazer as exigências do novo culto evangélico, em 1523 Lutero publicou sua Ovdern do Culto Público, na qual acencuava o lugar central da pregaçáo; sua

Fórmula dd Missa,na qual, embora ainda utilizasse o latim, excluía as implicações sacrificiais, recomendava a parricipaçáo dos leigos tanto no cálice como no pão, e solicitava aos adoradores o emprego de hinos populares; e sua Ordem de Batismo,na qual apresentava um breve ofício batismal em alemão. O abandono das missas privadas e das missas pelos mortos, com suas tarifas, trouxe um sério problema para o sustento do cfero. Lutero pensou em resolvê-lo com salários tirados de um fundo comum provido pela municipalidade. Ele defendia que era permissível grande liberdade em pormenores do culto, desde que a "palavra de Deus" fosse mantida no centro. As diversas congregaçóeç reformadas, portanto, logo mostraram muica varia-

çáo, embora a rendência para o uso do alemão tenha crescido rapidamente. O próprio Lutero publicou uma Missa Alema, em 1526. Ele considerava a coi~fissáoprivada deveras desejável para preparar o cristáo para a ceia do Senhor, porém, não deveria ser obrigatória. Comparada ao desenvolvimento da Reforma em outros lugares, a atitude de Lutero em questóes de culto foi bastante conservadora. Seu princípio era que "o que náo é contrário à Escricura é pela Escricura e vice-versa". Porcanro, eie reteve muito dos costumes tradicionais, como o uso de vestes, o altar, o sinal da cruz e o emprego ilustrativo de imagens. Nos anos seguintes à dieta de Worms, a Reforma espaIhou-se rapidamente em quase todos os territórios da Alemanha, sobretudo nas vilas e cidades. Durante esse período, tudo o que era "revolucionário" era imediatamente chamado de "lurerano", tanto pelos próprios revolucionários como por seus oponentes católicos. O nascente movimento evangélico, entretanto, estava longe de ser homogêneo, e seu crescimento era desordenado, escondendo profundas diferenças sob o riome de pregaçáo, reforma litúrgica e ação política "luteranas". Em 1524 e 1525, as fissuras dentro do movimento comecaram a ficar aparente, e seus efeitos foram limitar a Reforma e fazer de Lutero líder de um partido ao invés de líder de uma naçáo.

A primeira destas separações veio da parte dos humanistas, encre os quais Lutero tinha encontrado seu primeiro quadro de defensores. O líder admirado dos humanistas, Erasmo, tinha pouca simpatia pela doutrina de Lutero da justificaçáo somente pela fé. Segundo seu pensamento, a reforma viria peIa educação, pela rejei-

$50 da superstiçáo e pelo retorno às "fontes" da verdade crisrá. Os escritos tempestuosos de Lutero e o tumulto popular cada vez mais lhe pareciam odiosos. Como os humanistas de forma geral, ele estava alarmado com o declínio na procura das universidades aiemás, que tivera início com o surgimento da controvérsia religiosa, e com a diminuiçáo d o inreresse em questões puramente eruditas. Ainda que frequentemente instado, relutou por muito tempo em atacar Lutero. Mas por fim, na segunda metade de 1524, desafiou a negaçáo do livre arbítrio defendida por Lutero na questão da salvação. Em sua obra cuidadosamente arrazoada intirulada Diatribe

de libero arbitrio, argumentou, baseado no exame de relevantes passagens da Escritura, por uma interpretacão ética e náo dogmática da religião. Sua conclusão era que a doutrina da igreja medieval tardia, que afirmava tanto a liberdade humana de decisáo por Deus como a necessidade de graça auxiliadora, era preferível ao extremismo predestinacionista de L u ~ e r o ,porque evitava ranto o maniqueísmo como o pelagianisrno, Um ano mais tarde Lutero replicou com seu tratado De servo arbitao (Sobre a Escravidão da Vontade). Nele Lutero acompanhava de perro o esboço de Erasmo e procurava refutá-lo parte por parte. Sobre a base do restemunho da Bíblia, ao qual considerava claro e único, afirmou a dependência absoluta da humanidade para com o Deus onipotente e soberano e seu gratuito dom da graça. Declarou-se a favor da predestinaçáo e náo hesitou em afirmar doutrinas que raiavam ao dererminismo. O rompimento entre Lutero e Erasmo era incurávei. Conquanto muitos dos hurnanistas mais velhos tenham abandonado Lutero, muitos dentre os jovens continuaram com ele e tornaram-se líderes locais do movimento evangélico. Lutero parecia, para alguns na Alemanha, apenas um meio reformador. Entre tais radicais estava seu antigo companheiro Karlstadt, o qual, tendo perdido toda sua influência em Wittenberg, adotou idéias e práricas ainda mais radicais e, arrebanhando muitos seguidores em Orlarnunde, praticamente desafiou Lutero e o governo da Saxônia. Negava o valor da instruçáo, vestia-se e vivia como camponês, destruía imagens e rejeitava a presenGa física de Cristo na Ceia. Ainda mais radical foi Tomás Munczer (1488?-1525), que dizia ter revelacão direta mediante visões e sonhos e denunciava tanto os rornanistas como os luteranos como "estribas" que suprimiam a "palavra interior" por meio de sua dependência servil da letra da Escritura. Ex-sacerdore católico romano, Muntzer fizera um estudo bastante abrangente da Bíblia, dos pais da igreja e dos místicos alemães, e no início fora seguidor de Lutero. Em 1521-

1522 trabalhara como um ardente pregador evangélico primeiro em Zwickau e de-

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7ois na Boêmia, onde pretendera construir "a nova igreja apostólica", convicto de que a igreja havia há muito caído de sua pureza original devido à traiçáo dos eruditos :dos sacerdotes. Em

1523 tornara-se ministro em Allstedt, cidade na Turingia, onde

oferecera uma interpretaçáo do Evangelho e um programa de reforma que rompia abertamente com as idéias de Lutero. Muntzer defendia um espiritualisrno completo que sujeitava a Bíblia ao teste da experiência religiosa: apenas aquele que é possuído pelo Espíriro pode compreender corretamente as Escriruras. O Espírito é concedido apenas aos eleitos, àqueles que nasceram novamente por meio da passagem pelo abismo do desespero e que tomaram sobre si a cruz do "Cristo amargo". Consequentemente, o batismo interior do Espírito é o verdadeiro batismo; o batismo exterior na água é desnecessário. Müntzer era homem de grande originalidade. A ordem de culto bem elaborada que ele desenvolveu para Allstedt em 1523 foi a primeira liturgia protestante no vernáculo. Pregador constrangedor, ele esforsou-se para estabelecer uma igreja "pactuada" dos eleitos que provocaria uma nova ordem social de justiça e amor. Opondo-se ao "boa vida de Wittenberg" - isto é, à recusa de Lutero em extrair de sua redescoberta do Evangelho uma nova lei, quer para a moral como para a vida social - ele defendia uma revoluçáo sangrenta, se necessária, para derribar injustiça cometida tanto por príncipes como por sacerdotes. Náo foi supresa, pois, que no devido tempo ele tenha assumido uma posição de liderança na revolta dos camponeses. Lutero opôs-se veementemence a Muntzer e a Karlstadt, e a homens como eles, chamando-os de Schwi2'rmer (fanáticos, entusiastas). A presença deles indicava uma ruptura crescente nas forças de reforma. Ainda mais séria foi uma terceira separaçáo - aquela causada pela grande revolta dos camponeses, que conduziu Lutero a um conflito aberto com todos os revolucionários sociais e arruinou seu prestígio como líder popular. A condisáo do campesinato alemáo na Baixa Idade Média era de crescente perda de liberdade e sua conseqüente inquietação, especialmente no sudoeste da Alemanha, onde o exemplo de melhores condiçóes na vizinha Suíça instigava o descontentamento (ver V: 16). O ataque luterano à autoridade espiritual tradicional e à pregaçáo evangélica da "liberdade cris~á"e da

"justiça divina" contribuíram, sem dúvida, para o surgimento da revoIta dos camponeses. Iniciada no extremo sudoeste da Alemanha em maio e junho de 1524, a insurreiçáo já havia atingido proporçóes formidáveis no início do ano seguinte. Em fevereiro de 1525 os camponeses da Suábia, apoiados por um significativo número de

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HIST6RIA OA IGREJA CRISTA

burgueses e artesãos pobres, apresentaram doze artigos, exigindo que cada comunidade tivesse o direito de escolher e depor seu pastor; que os grandes dízimos (sobre grãos) fossem usados para o sustento do pastor e para as outras despesas da comunidade e abolidos os pequenos dízimos (sobre animais); que a servidáo fosse extinta; que as reservas para caça fossem limitadas e as florestas aberras aos pobres, e que o trabalho compdsório fosse regulamentado e devidamente pago; aluguéis justos fossem estabelecidos; nenhuma nova lei fosse criada; as terras comuns devolvidas às comunidades das quais haviam sido tomadas, e abolidas as taxas sobre espólios. No inicio, Lutero procurou ver as injustiças de ambos os lados. Em sua Admoest a ç h à- Plaz de abril de 1525, ele reconheceu que os doze artigos continham muita

coisa justa e correta, e culpou principalmente os príncipes e os senhores pelo descontentamento dos camponeses, denunciando aqueles como "tiranos selvagens e ditatoriais".' Aos seus olhos, porém, toda revolução política era rebelião contra Deus, e ele considerou as exigências econômicas e sociais dos camponeses, feitas em nome da Bíblia e da "lei divina", como uma interpretacão equivocada (carnal) do Evangelho. Quando a rebelião, mal dirigida, caiu em excessos maiores de violência e pareceu tornar-se anarquista, Lutero volrou-se contra os militantes camponeses com violento panfleto, Contra a CoYJLZ de Camponeses Assafsinos e Ladróes, exigindo que os príncipes os esmagassem pela forca das armas. A derrota de Francisco I da Franqa diante do exército imperial, nas proximidades de Pavia, em 24 de fevereiro de 1525, permitiu aos príncipes alemães dominar a revolta. A insurreição camponesa foi aniquilada em espantosa carnificina durante maio e junho de 1525. Muntzer, a quem Lutero erroneamente via como o líder ideológico de toda a revolta, foi capturado, torturado e decapitado logo após a batalha de Frankenhausen em 15 de maio de 1525, na qual foram mortos seis mil camponeses. A revolta dos camponeses foi uma linha divisória na história da Reforma, assinalando o fim de seu período de crescimento descontrolado. Daí em diante, o movimento ficou sujeico à supervisáo mais próxima das autoridades civis, que foram obrigadas ou a suprimi-lo ou a esrabelecer novas ordens eclesiásticas evangélicas em seus territórios. A Reforma, ent-retanto, embora cerramente tenha perdido parte de seu apelo às massas, não deixou de ser um movimento popular espontâneo, como fica evidente por sua introdução em muitas cidades alemás durante a década seguinte. A

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iniciativa por reforma normalmente vinha dos comuns e das guildas de artesáos, náo dos "patrícios" urbanos ou dos próprios magistrados - um fato que contradiz a antiga crença de que a revolta dos camponeses resultou na completa alienacão das classes inferiores da causa de Lutero. Não obstante, no final de 1525 já estavam claramente traçadas as linhas divisórias dentro dos quadros dos reformadores; endurecida a oposição à Reforma, no mínimo porque os defensores da "fi antiga" apontavam para a insurreiçáo civil como o resultado inevitável da rebelião eclesiástica. O progresso da Reforma agora dependia de sançóes autoritárias e ordens eclesiásticas compulsórias. Entrementes, o papa Adriano VI falecera em setembro de 1523 e fora sucedido por Júlio de Médici como Clemente VI1 (1523-1 534) - homem de caráter respeitável mas com pequena percepçáo da import$ricia das questões religiosas, e, na política, primordialmente um príncipe rerritorial da Itália. Clemenre enviou como seu legado ao novo Reichstag reunido em Nurernberg, no início de 1524, o rnui hábil cardeal Lourenço Campeggio (1474- 1539). Pouco obteve Campeggio no Reichstag. Este prometeu cumprir o edito de Worms contra Lutero "tanto quanto possível" e exigiu uma "assembléia !geral da naçáo alemã", a se reunir em Espira (Speyer), no final do ano. Mesmo ausente o imperador conseguiu frustrar essa reunião. O êxito

de Campeggio foi muito maior fora do Reichstag. Em virtude de seus esforços, em 7 de julho de 1524 foi formada em Ratisbona (Regensburg) uma liga para apoiar a causa romana. Reunia o irmão do imperador, Fernando, os duques da Baviera e um número de bispos do sul da Alemanha. Enquanto Roma assim se fortalecia no sul da Alemanha, a causa de Lutero recebia importantes adesóes. A principd delas foi, em 1524, a do conde Filipe de Hesse

(1 5 18-15671, o mais hábil político dentre os príncipes luteranos. Ao mesmo tempo, Alberto da Prússia, gráo-mescre dos cavaleiros teutônicos, Jorge de Brandenburgo, Henrique de Mecklenburgo e Alberto de Mansfeld demonstravam decidido interesse na causa evangélica. Em 1524 também foram ganhas as importantes cidades de Magdeburgo, Nuremberg, Estrasburgo, Augburgo, Esslingen, Ulm e ourras de menor importância. Nos dias tenebrosos da revolta dos camponeses morreu ( 5 de maio de 1525) Frederico, o Sábio, o cauteloso protetor de Lutcro. Sucedeu-o seu irmáo João, "o Constante" (1525-1532). A mudanqa foi favorável a Lutero, pois o novo eleitor era lutcraiio ativo e declarado. Durante esses meses também, em 13 de junho de 1525, Lutero casou-se com uma ex-freira, Catarina von Bora (1499-1552). Esta união

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UlST6RIA DA IGREJA CRISTÁ

demonstraria alguns dos aspectos mais atrativos do caráter do reformador.

A supressão da revolta dos camponeses deixara os príncipes e as cidades como as verdadeiras forças dirigentes na Alemanha, e cornbinaçóes políticas eram feiras entáo pró e contra a Reforma. A liga católica de Ratisbona já foi mencionada. Outra liga de católicos, no norte e na centro da Alemanha, foi instituída pelo duque Jorge da Saxônia e outros príncipes católicos, que se reuniram em Dessau em julho de 1525. Como resposta, Filipe de Hesse e o novo eleitor João da Saxônia organizaram em Torgau uma liga luterana. A vitória imperial em Pavia, em fevereiro anterior, resultara no aprisionamento do derrotado Francisco I, rei da França. A guerra pendera decisivamente a favor do imperador, e seus frutos pareceram assegurados pelo rratado de Madrid de janeiro de 1526, pelo qual Francisco obtinha a liberdade. Os dois monarcas se comprometeram a conjugar esforços para extirpar a heresia. As perspectivas do luteranismo eram realmente das piores possíveis. O iuteranismo deve principalmente ao papa o afastamento do perigo. Clemente VII, sempre mais príncipe italiano que eclesiástico, estava bastante alarmado com o aumento do poder imperial na Itália. Entáo formou uma liga italiana contra o imperador. A ela se filiou o rei francês em maio de 1526. Francisco I repudiou o tratado de Madrid e agora a Liga de Cognac reunia a França, o papa, Florença e Veneza contra O imperador. Os êxitos

de Pavia pareciam perdidos. A guerra deveria ser reencetada. As máos do imperador estavam por demais ocupadas para interferir nas lutas religiosas da Alemanha. Foi assim que, quando o novo Reichstag se reuniu em Espira, em meados de 1526, ainda que as instruções imperiais proibissem dteraçóes em macéria religiosa e

determinassem a execução do edito de Worrns, os Iuteranos foram capazes de instar que a situaçáo mudara desde que fora avaliada pelo imperador quando suas ordens foram emitidas da Espanha. O avanço assustador dos turcos, que resultaria na desasrrosa derrota do rei Luís I1 da Hungria em 29 de agosto de 1526, em Mohács, também aconseihava união mili~ar.Portanto, o Reichstag declarou que, até a reuniáo de um "concílio ou uma assembléia nacional", cada um dos governanres territoriais do império deveria "viver, governar e conduzir-se conforme sua esperança e confianfa em responder a Deus e a sua majestade imperial".' Isto foi, sem dúvida, uma mera acomodafáo para o momento. Mas as cidades e os príncipes luteranos imediatamente interpretaram como uma autorizaqáo plena-

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A REFORMA

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mente legal para ordenarem suas constirui~óeseclesiásticas como bem lhes parecesse.

A sombra disso, a organizaçáo de igrejas territoriais luteranas foi entáo rapidamente efetuada. Já antes do Reichstag de 1526 alguns passos haviam sido dados nesse sentido. Além dos limiccs do império, Aberto de Brandenburgo (151 1-1568), o gráomestre dos cavaleiros teutônicos na Prússia, em 1525 transformara seu cargo num ducado hereditário, sob a soberania da Polônia, e trabalhou empenhadamente pela Iuteranizaçáo do território. Na própria Saxônia eleitoral, o eleitor Joáo estava planejando um controle governamental mais ativo dos assuntos eclesiásticos, e Lutero publicara em 1526 sua Missa ALmd e Ordem do Culto Divino, antes do Reichstag. O decreto do Reichstag entáo muito fortaleceu essas tendências. Na Saxônia, que de uma forma gera tornou-se o modelo para a cria~áode igrejas territoriais luteranas, o eleitor nomeava "visitadores" para investigarem a doutrina e conduta cíericais, baseados em artigos confeccionados por Melanchthon em 1527 e ampliados no ano seguinte. Foi abolida a antiga jurisdi~áodos bispos, o terrirório dividido em distritos, cada um sob um "superintendenten com autoridade espiritual mas não administrativa sobre o ministro paroquial e, por sua vez, responsável ante o eleitor. O clero indigno ou recalcitrante foi expulso, a uniformidade do culto assegurada e confiscadas a propriedade monástica, as dotações de altares e fundaqóes similares, em parte para benefício de igrejas e escolas paroquiais, mas em parte maior para o tesouro eleitoral. Numa palavra, a igreja luterana estatal, rendo a mesma exrensáo que o território da Saxônia e como membros rodos os habitantes batizados, substituiu a antiga igreja governada pelo bispo. Outros territórios da Alemanha evangélica também foram organizados da mesma forma. Para auxiliar na instrução religiosa do povo, que uma década de confusão reduzira a condicóes deploráveis, em 1529 Lutero preparou dois catecismos, dos quais o Catecismo Menor t um dos mais nobres monumentos da Reforma. Tal desenvolvimento das igrejas territoriais pode ter lugar gracas às favoráveis condi~óespolíticas. O imperador rinha uma [remenda e custosa guerra pela frente; a recompensa da vitória seria o domínio da Itália. Seu irmáo, Fetnando, fora coroado rei da Hungria em 3 de novembro, e desde entáo escava em luta com os turcos. Era impossível uma interferência efetiva na Alemanha. Mas em 6 de maio de 1527 um exército imperial contendo muitos soidados alemáes conquistou Roma, encerrou o papa Clemente VI1 no casteIo de Santo Ângelo c subme~eua cidade a todo tipo de barbárie. Embora a boa sorce pareceu estar voltada para a França na primeira parte

de 1528, antes do final daquele ano as forças imperiais tinham imposto seu domínio.

O papa foi compelido a fazer a paz com o imperador, em Barcelona em 29 de junho de 1529, e a França abandonou a luta pela paz de Cambrai, em 5 de agosto seguinte.

A guerra que se travara desde 1521 estava terminada e Carlos V, agora, poderia dedicar sua atenção a supressão da revolta luterana. Os chefes luteranos, por sua parte, náo tinham sido totalmente bem sucedidos. Enganados por uma trama de Oto von Pack, oficial da Saxônia ducal, o landgrave Filipe de Hesse e o eleitor Joáo da Saxônia foram convencidos de que os católicos pretendiam atacá-los. Filipe determinou se anrecipar ao suposto golpe e estava se armando para isso, em 1528, quando se descobriu que a carta na qual Pack baseava sua informação era falsa. O resultado do "incidente Pack" foi o agravamento das relações entre os dois gandes partidos eclesiásticos.

Em tais circunstâncias era inevitável que quando a próxima dieta imperial se reunisse em Espira, em fevereiro de 1529, a maioria católica fossefortemente hostil para com os inovadores luceranos. Esse Reichstag enráo ordenou, por decisão da maioria, que não poderia mais haver nenhuma mudança eclesiástica, que o culto romano fosse permitido em todos lugares e que as autoridades e ordens religiosas romanas teriam permissáo de desfrutar plenamente de seus direitos, propriedades e rendas anteriores. Isso teria sido na prática a aboliçáo das igrejas territoriais luteranas. Impotenres para derrotarem essa legislação, os poderes civis lutcranos representados no Reichstag apresentaram em 19 de abril de 1529, um protesto formal, o Prote~tatio. Este documento é de importância histórica pois dele nasceu o nome do partido Protesrante. Sustentavam-no Joáo, da Saxônia eleitoral, Filipe de Hesse, Ernesto de Luneburgo, Jorge de Brandenburgo-Ansbach, Wolfgang de Anhdt e as cidades de Estrasburgo, Ulm, Constança, Nuremberg, Lindau, Kempten, Memmingen, N6rdlingen, Heilbronn, Isny Sáo Galeno, Reudingen, Weissenburgo e Windsheim. As perspectivas protestantes eram assustadoras. A situaçáo exigia uma uniáo defensiva e Filipe de Hesse se propôs a consegui-la. Nessa conjuntura crítica a causa da Reforma estava ameacada pela divisáo entre os reformadores da Saxônia e da Suíca e pela rápida expansão dos anabatistas.

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II REFORMA

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Capítulo 3

Úlrieo Zuínglio e a Reforma Suíqa A Suíqa, embora nominalmente parte do Sacro Império Romano, desde longo tempo era praticamente independente. Seus treze cantóes, todos repúblicas autônomas, estavam reunidos numa fraca confederaçáo. O pais, como um todo, era considerado o mais livre da Europa. Seus filhos tinham grande fama como soldados e por isso eram muito procurados como mercenários, principdmente pelos reis franceses e pelos papas. Ainda que a condiçáo educacional geral fosse baixa, o humanismo penetrara nas maiores cidades, e nas primeiras décadas do século dezesseis sua sede principal era Basiléia. A reforma suíça teria suas origens no humanismo, na autonomia local, na resistência ao domínio eclesiástico e na indignação para com os impostos monásticos, especialmente onde os mosteiros eram grandes latifundiários. Úirico (Huldreich) Zuínglio, principal reformador da S u í p de língua alerná, nasceu em primeiro de janeiro de 1484, em Wildhaus, onde seu pai era o magistrado da aldeia e se encontrava em boa posiqáo. Um tio, deáo de Wesen, colocou-o no caminho da cultura, o qual ele continuou em Basiléia e depois em Berna. Ali foi orientado pelo humanista Henrique Wolflin (Lupulus), de 1496 a 1498. Durante dois anos (1500-1 502) estudou na universidade de Viena, onde Conrado Celtis desfrutava de grande fama no conhecimento dos clássicos. De 1502 a 1506 continuou os escudos na universidade de Basiléia, onde se graduou como bacharel em artes em 1504 e recebeu o grau de mescre dois anos depois. Em Basiléia foi aluno do humanisca

%más Wyttenbach (1472-1526). Dele guardou grata memória por ter-ihe ensinado a autoridade exclusiva da Escritura, a morte de Cristo como o preço único do perdáo e a inutilidade das indulgências. Com tal ensino Zuínglio naturalmente tornou-se humanista, ansioso em investigar as antigas fontes da fé criscá e crítico daquilo que os humanistas geralmente consideravam superstiçáo. Em 1506 Zuínglio foi nomeado pároco de Glarus, onde permaneceu pelos próximos dez anos. Durante esse tempo capacitou-se em grego, começou a esrudar hebraico e assimilou os escritos de Erasrno. Também, estudou cuidadosamente os clássicos, a Bíblia (utilizando a partir de 1516 a edição de Erasmo do Novo Testamento grego) e os pais da igreja. Ademais, tornou-se pregador influente e membro

respeitado de um pequeno grupo de eruditos liumanistas, opôs-se ao emprego dos suíços como mercenários, exceto peio papa, de quem recebeu uma pensão em 1513. Como capelão, acompanl-iou os jovens de sua paróquia em várias campanhas icalianas. ZuíngIio estava patrioticamente convencido do mal moral do servi50 mercenário. A França, porém, desejosa de alisrar soldados suíços, trouxe tanta perturbaçáo à sua paróquia de Glarus que ele, sem resignar ao posto, transferiu em 1516 suas atividades para o sanruário de peregrinaçáo de Einsiedeln. A mudança aumentou-lhe a reputação como pregador e estudioso. Ali também opôs-se vigorosamente à venda de indulgências pelo monge franciscano Bernardo Sanson. Nesse momento ele já havia se [ornado um dos melhores eruditos em grego ao norte dos Alpes, como também um diligente estudioso de hebraico. Mais tarde, Zuínglio atribuiu a esse retiro em Einsiedeln, sempre procurando não admitir qualquer dívida para com Lutero, sua aceitaçáo da posição evangélica. As evidências que sobreviveram indicam, porém, pouco mais do que um humanismo biblico erasmiano. Em 1518 ele prontamente aceitou a nomeaqão como capelão papal. Nessa época, sua vida privada não estava livre de recriminaçóes pela quebra do voto de castidade. Sua oposição ao servi50 militar aos estrangeiros e sua fama como pregador e erudito provocaram sua eleição, em dezembro de 15 18, pelo cabido da igreja Grande Minster em Zurique, para sacerdote remunerado, cargo este que assumiu no primeiro dia de 15 19. Zuínglio imediatamente começou uma exposiçáo versículo por versículo de todos os livros da Bíblia, iniciando com o evangelho de Mateus, sem recorrer a interpretação [radicional (escolástica). Em setembro de 1 5 19, atacado pela peste bubônica, esteve às porcas da morte. Essa experiência forçou-o a sério autoexame e despertou-lhe intenso senso de missão divina. Em 1520 sua vida espiritual foi aprofundada ainda mais pela perda de um irmáo querido. Nesse mesmo ano renunciou à pensáo papai. Em 1521 passou a estudar cuidadosamente os escritos de Lutero. Continuou a pregar vigorosamenre contra o recrutamento de mercenários,

de forma que o conselho municipal de Zurique por fim (janeiro de 1523) proibiu essa prática. Embora Zuínglio tenha estado, porranto, por muito tempo movendo-se rumo à Reforma, foi em 1522 que sua vigorosa obra reformadora teve início. É interessante notar que a primeira questáo em debate surgiu náo de uma preocupação com a certeza pessoal de salvaçáo, como com Lutero, mas da convicção de que apenas a

PERIODU YI

A REFORMA

519

Bíhlia, interpretada evangelicamente, era obrigatória aos cristáos. Em março daquele ano alguns cidadãos quebraram o jejum quaresmal, citando a afirma$áo de Zuínglio sobre a auroridade exclusiva da Escritura em questão de justificação. Ele, entáo, no púlpito e com a pena, saiu em defesa deles. O bispo de Constança, em cuja diocese encontrava-se Zurique, enviou uma comissão para reprimir a inovaçáo. O governo civil d o cantáo decidiu que o Novo Testamenro náo impunha jejuns, no entanto

seriam observadas por amor à boa ordem. A importância dessa decisão contemporizada estava em que as autoridades civis praticamente rejeitavam a jurisdicáo do bispo e assumiam o controle total das igrejas de Zurique.

Zuínglio acreditava que a autoridade eclesiástica finai era a comunidade (Gemeinde) cristH, a assembléia local de fiéis sob o sznhorio exclusivo de Cristo

2

das Escriruras

divinameilte inspiradas qrie testemunham a redençáo efetiiada por ele. Essa autoridade é exercida em benefício da comunidade mediante os órgáos do governo civil devidamente constituídos agindo de acordo com as Escrituras, Só é permissível ou obrigatório aquilo que a Bíblia ordena ou cuja autorizacão específica possa ser encontrada em suas páginas. Conseqüentemente, a atitude de Zuíngiio para com as cerimonias e ordem do culto antigo era muiro mais radical que a de Lutero. A situaçáo em Zurique era tal que o governo cantonal introduzia gradativamente as mudan-

ças que Zuínglio, como fiel intérprete da Escritura e líder popular natural, persuadia aquele governo a sancionar, no minimo porque, ao permitir as mudanças propostas na

reiigiosa, teria sua autoridade aurnen~ada.O conselho municipal,

correspondentemente, ordenou um debate público, em janeiro de 1523, 1x0 qual a Bíblia deveria ser o fiindamento exclusivo. Zuínglio preparou para esse debate sessenta e sete breves artigos, afitmando que o Evangelho náo tira sua autoridade da igreja e que a salvaçáo é pela fé somente, e negando o caráter sacrificial da missa, o caráter salvífico das boas obras, o valor intercessório dos santos, o caráter obrigatório dos votos monásticos e a existência do purgatório. Declarou, ainda, ser Cristo o único cabeça da igreja e defendeu o casamento das clérigos. No debate, assiseido por

mais de seiscentas pessoas, o conselho declarou Zuínglio como vencedor contra seus oponentes romanistas, afirmando que náo ficara provada nenhuma heresia contra ele e que ele náo era nenhum inovador, julgado pelo padráo escriturístico. O conse-

lho também ordenou que Zuínglio continuasse pregando e que todos os outros deveriam pregar apenas o que poderia ser sustentado pelos evangelhos c pela sagrada

Escritura. Isso foi um retumbai~tetriunfo pessoal para Zuíilglio, e efetivamelite

720

HIST~RIA DA IGREJA GBISIÃ

garantiu a Reforma em Zurique, embora náo introduzindo-a "oficialmente". Tensões crescentes dentro da cidade, incluindo algumas manifestaçóes de iconoclasmo, levaram entáo Zuíngiio e seu ministro associado, Leo Jud (1482-1542), a proporem outro debate público para lidar especificamente com a questão da missa e do uso de imagens. Por ordem do conselho esse segundo debate foi realizado em outubro de 1523 e assistida por cerca de novecentas pessoas. Zuíliglio e Jud ataca-

ram a veneraçáo de imagens ("ídolos"), negaram o caráter sacrificial da missa, afirmaram a base bíblica para a comrinháo dos leigos em ambos os elementos e demandaram que os culros fossem realizados no vernáculo. Esse debate, como o primeiro, foi um triunfo para Zuínglio, mas o concílio andou caucelosamenre. Ele votou para que fossem mantidas a missa em latim e a comunhão em um elemento, e permitiu apenas a rernoçáo silenciosa de imagens, cuja propriedade fosse privada, das igrejas.

O conselho também nomeou uma comissáo de catorze, incluindo Zuíngiio e Jud, para deliberar sobre as questóes. O próprio Zuínglio defendia essa política de açóes graduais; "caminhando devagar", ele certa vez escreveu a Jud, "alcançaremos nossos objetivos". Entretanto, outros seguidores mais radicais da reforma queriam que as mudancas se realizassem muito mais rápido, sem esperar pelos magistrados, e assim ficaram desiludidos com a lideran$a de Zuínglio (ver VI:4).

As mudan~asdecisivas, assinalando uma ruptura clara com Roma, veio em 1524 e 1525. Em junho e julho de 1525, por ordem do conselho, grupos de trabaihadores removeram

ela força quadros, estátuas e relíquias das sere igrejas da cidade e cesca-

ram o órgáo com uma parede na Grande Minster. Ein dezembro daquele ano os mosreiros foram dissolvidos, cncontrando pequena resistência, e suas propriedades disposras para propósitos educacionais e socorro aos pobres. A niissa coi~siriuouate a semana santa de 1525, quando também foi abolida, embora náo sem pesada oposiçáo da minoria católica no conselho. Em seu lugar foi instituído um culto simples

no vernáculo, com comunháo em ambos os elementos em memória da última ceia.

A transformação estava completa. A jurisdicão episcopal fora abandonada, os cultos eram realizados em aiemâo, o sermáo rornara-se cenrral e as doutrinas e cerimônias características da velha ordem haviam desaparecido. Zuínglio explicou e justificou essas mudanças em sua principal obra teológica: Comentdrio Sobre a E~dadeime rs

Falsa Religzúo (1 525). Enrremenres, em 2 de abrii de 1524, Zuínglio casara publicamente com Ana Reinhard, uma viúva com quem já havia se casado secretamente no início de 1522.Durante todo esse tempo, os papas não interferiram efetivamente

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nos assuntos religiosos da cidade, principalmente porque precisavam do apoio militar de Zurique, o maior dos estados suíqos e até então a única fonte confiável de tropas mercenárias na Confederaçáo Suíça. Zuínglio, naturalmente, acompanhava com atenção a sorte da revolução ecIesiástica em outras partes da Suíça e nas regióes alemãs limítrofes, auxiliando ao máximo que podia. Basiltia foi gradativamente conquistada para a causa evangélica, especialmente por Joáo Ecolampádio (1482-153I), que ali trabalhava continuamente desde 1522. Em Basiléia a missa foi abolida em 1529. Berna, o maior dos cantóes suíços, foi ganho para a Reforma em 1528, após muito trabalho evangélico preliminar, por um debate público em que Zuíngiio teve papel principai. Sáo Galeno, sob o hurnanista Joaquim von Watt, conhecido como Vadianus (1484-1 55 I), também foi ganha, como foram os cantóes de Schafkausen e Glarus e as cidades de Constança e Miilhausen na Aisácia. A decisáo de Berna pelo protesrantismo zuingliano foi de extrema importância. Ela evitou que Zurique com seu zuingiianismo ficasse isolada dentro da Confederaqáo Suíça e por fim possibilitou a obra de Joáo Calvino evitando que Genebra caísse sob o domínio dos duques católicos de S ~ b ó i a(ver VI:7). De importância comparável foi a inclinaçáo de Estrasburgo, cidade do sul da Alemanha, pelo ponto de vista zuingliano e não pelo luterano. Naquela cidade, o movimento evangélico, iniciado em I521 por Mateus Zell (1477-1548), fora conduzido adiante vigorosamente a partir de 1523 por WoIfgang Kopfel, ou Capito (1478-1 541) e pelo hábil e pacífico Marrinho Bucer (149 1-1 55 I), porém, só se completou em 1529. Zuínglio e Luteso estavam de acordo em muitas questóes, mas tinham temperamentos distintos e suas formaqóes religiosas e intelectuais tinham sido bastante diferentes. Lutero começara sua carreira como escolástico medieval tardio, frade agosriniano e professor universitário de Bíblia, e chegara à sua ruptura evangélica a partir de profundas luras religiosas no mosreiro. Zuínglio, pároco e pregador da cidade, havia percorrido a senda dos humanistas, embora seu humanismo erasmiano fora constantemente aprofundado, e por fim transformado, por seu estudo de Paulo e de Agostinho e por sua experiência de pecaminosidade e sofrimento. Conquanto ele também aprendera muito com os primeiros escritos de Lutero, suas ênfases eram diferentes das de Lutero. Para Lutero, a vida cristã era de liberdade em perdáo e reconciliação com Deus. Para Zuínglio, ela era muito mais uma vida de conformidade à vontade de Deus segundo estabelecida na Bíblia.

Em ponto algum da doutrina cristá a divergência entre Zuínglio e Lutero era

522

H i S I ~ R i A0A IGREJA ~RISTR

mais visível que na interpretação da ceia do Senhor, e essa divergência por fim romperia as fileiras evangilicas. Para Lutero, as palavras de Cristo na ÚItima ceia: "Este é o meu corpo", eram literalmente verdadeiras; conseqüentemente, ele ensinava que o corpo e o sangue de Cristo estão "realmente" ou "substancidmente" presentes no pão e no vinho consagrados e sáo recebidos verdadeiramente por todos que partilham dos elementos - pelos fiéis para a salvação mediante o perdáo de seus pecados, pelos incrédulos para sua condenacáo. No entanto, desde 1521, um advogado holandês, Cornélio Hoen, sustentava que a interpretaçáo apropriada seria: "Isto signz$ca o meu corpo". A tese de Hoen chegou ao conhecimento de Zuínglio em 1523, e para ele confirmava a compreensáo simbólica das palavras para a qual já se inclinava. Desde então negou qualquer presença física de Cristo na ceia. Cristo, por certo, esrá presente espiritualmente, não no pão e no vinho mas nos corações dos fiéis, que recebem, apenas eles, os benefícios da ceia. Os elementos sáo assim sinais visíveis e exteriores de uma graça espiritual e interior, já presente, e portanto "comer" é equivalente a "crer" (edereest credere). A ceia é uma r ~ f e i ~ ácomum o de agradecimento e lembrança e une a assembléia de crentes em uma confirmação comum de lealdade a seu Senhor. Por volta de 1526, essas interpretações rivais tinham provocado uma amarga controvérsia através de panfletos, na q u d tomavam parte Lutero e Bugenhagen de um lado e Zuinglio e Ecolampádio de outro, com seus respectivos partidários. A mais importante obra de Lutero foi sua [Grande] Conjssú'o a Respeito da Ceia do Senhor

(1528).Ambos os lados demonstraram pouquíssima caridade. Para Zuínglio, a afirmaçáo de Lutero sobre a presença física de Crisro era um remanescente irracional da supersti~áocatólica. Um corpo físico só pode estar em um único lugar, e o corpo de Crisro - desde a Assunçáo - está no céu. Coisas fisicas, ademais, náo podem c o n m ou conduzir realidades espirituais. Para Lutero, a interpretacão de Zuínglio era uma exaltacáo pecaminosa da razão sobre as 'palavras simples" da Escritura e uma negat ã o da realidade da Encarnaçáo de Crisro. Ele procurou explicar a presença física de

Cristo em dez mil altares simultaneamente apelando à doutrina cristológica tradicional da "comunicaçáo de atributos" (communicatioidiornatum) - i.e., que as qualidades da natureza divina de Cristo, incluindo ubiqüidade, eram comunicadas à sua natureza humana. Lutero estava preocupado, também, em defender que o fiel participava na totalidade do Cristo divino-humano e em evitar qualquer desrnembramento da pessoa de Cristo. Ele declarou que Zuínglio e seus seguidores náo eram cristáos, ao passo que Zuínglio afirmou que Lutero era pior do que Eck, o defensor romano.

~reioonvi

A REFORMA

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As idélas de Zuínglio foram acolhidas náo apenas na Suíça de fala alemã mas em muitas partes do sudoeste da Alemanha. O partido romano se deleicava com essa evidente divisáo das forcas evangélicas e encorajava ativamente mais divisões entre os protestantes suícos e os alemáes mediante a ênfase nos elementos católicos ("ortodoxos") no luteranismo. ZuíngIio era o melhor dotado poliricamente dentre os reformadores, e desenvolveu planos de vasto alcance que, no fim, nada resultaram. Os antigos cantóes rurais de Uri, Schwyz, Untenvalden e Zug eram fortemente conservadores e se opuseram

às mudanças em Zurique. Lucerna os acompanhava, formando com eles um forte partido romano. Por volta de abril de 1524 haviam constituído uma liga para resistir à heresia. Em maio de 1526, a Confederaçáo Suíça reuniu-se para um debate religi-

oso em Baden. Zuínglio foi convidado, mas náo atendeu ao convite. Em seu lugar foi Ecolampádio, que defendeu habilmente a posicão evangélica. Nessa época, todos os cantóes, exceto Zurique, ainda eram oficialmente catóricos, e o resultado do debate foi um triunfo católico. Zurique estava, por enquanto, isolada. Entretanto, depois que Berna tornou-se oficialmente protestante em fevereiro de 1528, as cidades reformadas de Zurique, Constança e Berna formaram uma "Aliança Civica Cristá" em junho daquele ano - uma liga formidável à qual se vincularam mais tarde Sáo Galeno em 1528 e Biel, Mulhausen, Basiléia e Schaffhausen em 1529. N o início do ano seguinte também dela passou a fazer parte Estrasburgo. No entanto, essa liga ainda era muito menor do que o desejado por Zuínglio. Com o passar do tempo, essa liga tornou-se fator divisor da unidade s u í p pois os canróes conservadores romanos formaram em oposicáo à "Uniáo Cristá" e, em 1529, firmaram aliança com a Áustria.

As hostilidades haviam começado. Porém, o auxílio austríaco ao p r t i d o romano era insuficiente, e a 25 de junho de 1529 foi feira a paz entre os dois parcidos, em Kappel. Seus termos foram muito favoráveis a Zurique e aos zuinglianos. A aliança com a Áustria foi abandonada. Zurique estava então no ápice de seu poder e era por todos considerada como a cabeFa política da causa evangélica. Todavia a paz fora apenas uma trégua e quando, em 1531, Zurique pretendeu forçar a pregaçáo evangélica nos cantóes romanos mediante um embargo no envio de alimentos para eles, mais uma vez a guerra era certa. Zurique, apesar dos conselhos de Zuínglio, não havia se preparado convenientemente para a luta. 0 s cancóes romanos agiram rapidamente. Em I I de outubro de 1531

derrotaram os homens de Zurique na batalha de Kappel. O próprio Zuíngiio foi

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HIRIRIA OI IGREJA CRISTÃ

descoberto entre os que estavam gravemente feridos. Após recusar as ministraçóes de um confessor, ele foi morto e seu corpo esquartejado, queimado e misrurado com estrume, para impedir que suas cinzas fossem recolhidas e se tornassem relíquias protestantes. Na paz que se seguiu Zurique foi forçada a abandonar suas alianqas, e cada cantáo teve o direiro total de regular seus assuntos religiosos internos. O progresso da Reforma na Suíça de língua alemá estava interrompido permanentemente. Zuínglio foi sucedido na liderança da igreja de Zurique, embora náo em suas arnbiqóes políticas, pelo hábil e conciliador Henrique Bullinger (1504-1575). O movimento suíço, como um todo, seria modificado e amplamente desenvolvido pelo gênio de Calvino. As igrejas que dizem ser filhas espirituais dele, e por conseguinte parcialmente de Zuínglio, receberiam por fim o nome de "Reformadas", para se distinguirem das "Luteranas".

Capitulo 4

Os Anabatistas Foi dito acima, quando falamos de Karlstadt, que alguns dentre os que trabalharam com Lurero no início concluíram ser ele apenas meio reformador. Isto também aconteceu, com intensidade ainda maior, com Zuínglio. Enrre os que estavam mais na vanguarda a favor das inosraçóes em Zurique encontravam-se Félix Manz (1500!-

1527), sacerdote erudito e filho de um cônego da Grande Minster, e Conrado Grébel

(1498-1526),descendente de uma das famílias mais proeminentes da cidade e, como Zuínglio, educado como hurnanista nas universidades de Viena e Basiléia. Eles, juntamente com outros, concluíram por volta do fim de 1523, que Zuínglio era um falso profet.a que havia falhado em apiicar o tesce bíblico a rodas práticas religiosas em Zurique e que esperava pelas lentas autoridades seculares para executar as reformas comandadas incontinenti

palavra de Deus. Esse elemento radical ficou em

evidência pela primeira vez durante o segundo grande debate, em outubro de 1 523, quando conclamou à imediata aboliFáo das imagens e da missa - passos que as autoridades ainda não estavam preparadas para tomar.

PERIOIB VI

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Um dos mais hábeis participantes nesse debate foi Baltasar Hubmaier (1480?1528), doutor em teologia pela universidade de Ingolstadt, onde havia sido aluno e depois colega de João Eck, o oponente de Lutero. Em 1521 Hubmaier tornou-se pregador em Waldshut, no extremo norte da Suíga. Convertido às idéias evangélicas pelos escritos de Lutero em 1522, exigiu, com êxito, reformas em sua cidade. Já em maio de 1523 esrava com dúvidas quanto ao batismo infancil e discutiu sobre isso com Zuínglio, o qual, nessa ocasiáo, segundo o testemunho de Hubmaier, simpatizara com ele. Sua critica se fundamentava na falta de base escriturística para o batismo infantil. Em 1524, Grébel e Manz chegaram à mesma conclusão, mas só no começo de 1525 puseram a teoria em prática. Suas críticas levaram, em 17 de janeiro de 1525, a um debate público com Zuínglio.

O resultado foi que o conselho da cidade ordenou em 18 de janeiro que todas as criancas nao batizadas fossem apresentadas para batismo no prazo de oito dias alguns pais haviam postergado deliberadamente - e também ordenou o fim de prega~ á não o autorizada e de reunióes ilícitas para culto. Isso pareceu aos dissidentes uma determinaçáo por um poder terreno contrária à Palavra de Deus. Ao anoitecer de 2 1 de janeiro de 1525 um pequeno grupo se reuniu em uma casa pertencente à mãe de Felix Manz. Depois de orarem, Jorge Blaurock (1492?-1529),um ex-sacerdore casado, levantou-se e solicitou a Conrado Grébel que o batizasse. Grébel assim o fez, e entáo Blaurock batizou outros quinze. Exatamente nessa mesma hora o conselho estava emitindo uma ordem exigindo que Grébel e Manz parassem de propagar suas idéias e banindo seus companheiros que não fossem cidadáos de Zurique - entre eles Guilherme Roubli (1484?-1559), sacerdote de Wytikon, e Ludovico Hatzer (1500?1529). Na semana seguinte estes homens, agora agindo abertamente contra a decisáo das autoridades, efetuaram reunióes de avivamento na aldeia de Zollikon, perto de Zurique. Eles conduziram reunióes de oraçáo em casas particulares. Aqueles que experienciaram regenera~áo,cerca de trinta e cinco, foram batizados por afusáo. Tendo assim instituído o batismo de fiéis, passaram a celebrar sua particrpaqáo na comunhão de Cristo pela observâiicia simples da ceia do Senhor. No domingo de páscoa de 1525 Hubmaier foi batizado por Roubli em Waldshut. Através destas açóes decisivas, os dissidentes formaram uma comunidade separada, uma "igreja reunida" de "fiéis genuínos". Seus oponentes os apelidaram de "anabatistas", ou rebatizadores. Esse título era tanto impreciso quanto preconceituoso,

li-

uma vez que eles reconheciam apenas um batismo, aquele para adultos somente, e porcanto negavam a validade de seus batismos na infância. Eles chamavam a si mesmos simplesmente "irmáos" e "irmãs". Contudo, o nome tradicional, entendido adequadamenre, é convenienremente aplicado a esse nodvel movimento da época da Reforma. Zuínglio se opôs a esses primeiros anabatistas (ou Irmáos Suíqos, como eles são normalmente denominados no presenre) encarniçadamente, mas pouco conseguiu para demovê-los de sua posi~áo.Grébel e seus companheiros diferiam dele a medida que percebiam ser o tesre de fé cristá um discipulado de Cristo que, sustentavam, tinha que ser experimentado através de um renascimento ou despertamento espiritual e demonstradò em uma vida de santidade. A verdadeira igreja de Deus, correspondentemente, é constituída náo de rodos os cristãos

professas, que ingressaram na igreja por meio do batismo na infância, mas apenas pelos fiéis convictos, que receberam o batismo quando adultos em piena consciência de fé e que agora exibem em suas vidas os frutos palpáveis da fé. Conseqtientemente, os anabatistas recusaram-se a ter qualquer parte em igrejas estatais inclusivas do ripo que Zuínglio estabelecera em Zurique e que foram desenvolvidas em outros cenrros da Reforma. Suas crenças os impeliram, ao invés, a se estabelecerem aparrados em comunidades livres e em seus próprios conventículos. Portanto, foram os primeiros a praticar a separacão completa enrre igreja e estado. Uma vez que a fé é voluntária, o uso de força em questóes religiosas é inadmissível - uma posicáo que implicava no abandono da exigência secular de uniformidade religiosa como a garantia de ordem e paz ~ ú b l i c a Foi . principalmente por causa desse náo conformismo que foram perseguidos. Seu sectarismo foi interpretado como expressão de hostilidade à sociedade organizada, no mínimo porque se recusavam, baseados no Sermáo da Montanha, a fazer juramentos e participar de qualquer forma de serviço militar - solapando assim dois fundamentos da vida política contemporânea. Em suas próprias mentes, entretanto, eles simplesmente escavam levando o biblicismo de Zuínglio à sua conclusáo lógica e estavam realizando nada menos do que uma resrauraçáo do crisrianismo primitivo. Em

7 de março de 1526 o conselho de Zurique ordenou que os anabatistas

fossem afogados, parodiando horrendamente a crença deles. Esse castigo eventualmente foi aplicado pela magistratura de Zurique a quatro Fessoas. O primeiro

v ~ a l o i sui

A REFORMA

527

mártir anabatista no cantáo foi Felix Manz, que foi afogado no rio Limmat em 5 de janeiro de 1527. Grébel escapou de sorte semelhante só porque morrera da praga pouco tempo antes. Enquanto isto, Hubmaier estava reunindo uma g a n d e comunidade anabatista em Waldshut. Mas seu maior triunfo na propagaçáo de suas idéias foi alcanqado com a pena. Segundo ele, a Bíblia era a única lei da igreja e, conforme o teste escriturístico, a ordem correta do desenvolvimento cristão era a proclamaçáo da palavra, o arrependimento, a fé, o batismo e as obras - estas úlcimas indicando uma vida vivida com a Bíblia como sua lei. Entretanto, WaIdshut logo foi envolvida na revolta dos carnponeses e partiihou do fracasso desse movimento. Hubmaier teve que fugir e a cidade voltou a ser católica. Preso e torturado em Zurique, escapou para Augsburgo e daí para a Morávia, onde propagou com muito êxito o movimento anabatista. Estas perseguiçóes tiveram o efeito de espalhar a propaganda anabatista pela Alemanha, Suíça e Países Baixos. Logo o movimento tomou grandes proporções. Nas partes ainda católicas do império, a propaganda anabatista praticamente substituiu a luterana. Os governantes territoriais no início procuraram parar o movimento criando leis contra ele, exatamente como as autoridades de Zurique haviam feito. Fernando da Áustria foi o primeiro a agir assim e seu irmáo, o imperador Carlos V, o apoiou (4 de janeiro de 1528). Mas apesar do fato de que muitos anabatistas tenham sido vítimas dessas

eles se tornaram mais e mais preocupantes para as autori-

dades. Entáo as dieras de Espira (1529) e de Augsburgo (1530), a assembléia dos territórios alemáes, tanto católicos romanos como protestantes, aplicaram sobre eles

a velha lei romana contra a heresia. Doravante, a membresia em qualquer grupo anabatista seria punível com a morte. Nos territórios católicos romanos, particularmente na Áustria e na Baviera, essa lei recém-proclamada foi executada com extrema severidade. Nos rerritórios evangélicos os anabatistas não foram tratados como hereges, mas como sediciosos. Náo querendo se conformar à ordem eclesiástica estabelecida, tinham oportunidade de emigrar. Porém, se se recusassem a partir e continuassem a professar publicamente sua fé, seriam considerados perturbadores da paz e

unidos com prisáo ou morte. Somente em Hesse, Wurttenberg e Estrasburgo

foram evitados cais "julgamentos sangrentos".

A expansão do movimento anabatista partiu de três centros: Suísa, sul da Alemanha e Morávia. Quando Zurique começou a suprimi-lo, os primeiros convertidos levaram sua fé a outras partes da Suísa. Logo foram estabelecidas congregaçóes

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HISTÓRIA iih IGREJA ERISTÃ

anabatistas pelos aiciplanos dos Alpes. Uma prova de que cresceram bastante é a atitude que as autoridades públicas tomaram contra elas. Em 29 de dezembro de 1529 o conselho da cidade de Basiléia preparou um debate público entre pregadores evangéiicos e porta-vozes dos anabatisras e terminou proibindo o movimento. Em 1530-1 531 três fiéis foram executados e muitos outros exilados. No cantáo de Berna realizou-se um longo debate com vinte e três anabariscas, de 10a 9 de julho de 1532, em Zofingen. Também ali o resultado foi a condenaçáo pública. Entre 1529 e 1571 ocorreram quarenra execuçóes públicas de anabatistas. A situaçáo era parecida nos cantóes de Appenzell e de Aargau. Grisons e a regiáo ao redor de Chur [ornaram-se o centro principal da propaganda anabatista na Suíca. O principal agente ali foi Blaurock, até ser

na fogueira no Tirol em 6 de setembro de 1529. Por

muiro tempo os grupos anabatistas continuaram muiro ativos ali, como se pode ver pela correspondência de Bullinger, sucessor de Zuínglio, um de seus mais ardentes opositores escritores. De Graubunden os secrários estiveram em contato permanente com amigos e simpatizantes na Morávia e na Itália superior, especialmente Veneza. No iriício Augsburgo foi o principal centro anabatista alernáo. Foi ali que Hubmaier batizou Hans Denck (1 500?-1527) em maio de 1526. Ele, por sua vez, pouco depois barizou Hans Hut, que passou a organizar uma congregação que cresceu rapidamente, conquistando até mesmo membros de famílias aristocratas (em março de 1527 batizou Eitelhans Langenrnantel). Em 20 de agosto de 1527 um grande número de anabatistas do sul da Alemanha e da Austria realizaram um sínodo (mais tarde denominado "sínodo dos Mártires") em Augsburgo, sob a liderança de Denck, principalmente para lidar com as idéias apocalípticas de Hut. Este se dizia um apóstolo ou divinamente enviado, afirmando que a perseguiçáo aos sanros seria seguida

ela destruiçáo do império pelos turcos. Depois disso, os sanLos seriam reunidos

e

todos os sacerdotes e governantes indignos seriam por efes destruídos, depois do que Cristo visivelmente reinaria sobre a terra. A maioria rejeitou estas idéias e Hut prometeu guardá-las para si. O sínodo decidiu enviar evangelistas à Áustria, Baviera, Worms, Basiléia e Zurique. Quase todos os enviados em breve sofreram a morte dos mártires. Hut foi aprisionado em Augsburgo em setembro de 1527. Ele morreu por causa das queimaduras sofridas quando sua cela se incendiou acidentalmente. Seu corpo foi queimado publicamenre no dia seguinte,

7 de dezembro de 1527.

No encerramento do sínodo Denck se dirigiu para Ulm e Nuremberg e daí para Basiléia, onde morreu devido à praga. Foi uma das mais importantes figuras entre os

rtiioio vi

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sectários. Com cultura humanista, em 1524 tornara-se o reitor da famosa escola de São Sebaldo, em Nuremberg. Ele era bastante respeitado, mas foi dispensado de seu posto em 1525 quando expressou simpatia pelas idéias espiritualistas de Muntzer. Embora ele entáo tenha se juntado aos anabatistas em Augsburgo, provavelmente atraído pelo ideal de discipulado cristáo e pacifismo deles, suas idéias eram as de um espiritualista contemplativo. Antes de sua morte, parece que ele rompeu todo contato com os sectários pois rejeitava toda organizacáo visível da vida cristá. Sua fé repousava sobre uma luz interior superior a toda Escritura. Ele encontrava em Cristo o mais elevado exemplo de amor e defendia que o cristáo podia viver sem pecado. Seus escritos, marcados por uma bela interioridade cristá, demonstram que seu pensamento foi nutrido pelas tradiçóes de platonismo cristáo e misticismo, especialmente a "teologia alemá". De 1526 aré 1533 Estrasburgo foi o principal centro anabatista alemão. Ali existia desde 1524 uma comunidade anabatista autóctone, fundada pelo jardineiro e pregador leigo Ciemente Ziegler. A parcir de i 526 também existia uma comunidade de refugiados de Irmãos Suíços dirigida por Miguel Sacrler, ex-monge de Sao Pedro em Friburgo, que havia sido expulso de Zurique no final de 1525. Ele era altamente considerado em toda parte por causa de sua profunda piedade cristá. Os pregadores de Estrasburgo, especialmente Capiro c Mateus Zell e sua esposa Cacarina, foram muito seus amigos. Bucer, que via nos anabacistas uma ameaça à comunidade cristá unificada, pensava que a persuasão poderia convencê-los a abandonar seu sectarismo. No final de 1526 Denck foi de Augsburgo para E s ~ r a s b u r ~e oconquistou muitos seguidores. Em 22 de dezembro Bucer travou com ele um debate público. Como resultado, Denck foi mandado embora da cidade pelo conselho, e entáo foi para Worms e de lá voltou para Augsburgo, onde em 1527 participou do supramencionado Sínodo dos Mártires. Pouco tempo depois do banirnento de Denck de Estrasburgo, Sattler partiu voluntariamente. Em 24 de fevereiro de 1527 ele presidiu um sínodo de Irmãos Suíqos em Schleitheim, reunido para combater aberraqóes internas ao movimento (os "falsos irmáos") e resistir aos desafios do exterior. O sínodo adotou sete artigos de fé, provavelniente redigidos na essência por Sattler. Essa "Confissáo de Schleitheim" - uma declaraqáo representativa das convicçóes anabatistas evangélicas - afirma o batismo dos fiéis. A igreja é considerada como composta unicamente de associacóes locais de criscáos regenerados e batizados, unidos como o corpo de Cristo pela observância comum da ceia do Senhor. Sua única

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HISTORII DA IGREJA CRISIÃ

arma é a excomunháo (o banimento). E exigida absoluta rejeição de toda "servidáo da carne" - uma desaprovaçáo dos excessos antinomianos que apareceram nas bordas do movimento anabatista. As formas de culto das igrejas romana, luterma e zuingliana são explicitamente repudiadas como náo cristás. Os deveres do pastor - que agora é considerado como um ministro estabelecido ao invés de um evangelista itinerante são claramente definidos. Sua principal responsabilidade é ler as Escrituras e ensinar e admoestar à luz delas, conduzir na oraçáo e presidir a Ceia, em cuja capacidade ele disciplina e bane em nome da igreja. Conquanto o governo civil seja tido como uma necessidade neste mundo imperfeito, os cristãos náo devem participar nele; náo devem portar armas ou usar a força, nem devem fazer qualquer tipo de juramento. Estas eram idéias que seriam reapresentadas em proporções variadas, mais tarde, por batistas, congregacionais e quacres. E, por meio destes, teriam grande influência no desenvolvimento religioso da Inglaterra e dos Estados Unidos. Logo após o sínodo, Sattler foi aprisionado pelas autoridades austríacas e queimado na fogueira em Rottenburgo em 21 de maio de 1527. Sua esposa foi afogada oito dias depois.

A comunidade anabatista em Estrasburgo continuou a florescer, principalmente porque novos líderes sempre vinham abrigar-se na cidade. Durante algum tempo a figura principal foi Pilgram Marpeck (1495?-1556),engenheiro tirolês que chegou em Estrasburgo em setembro de 1528 e conquistou muitos seguidores. Entre dezembro de 1531 e janeiro de 1532 participou de numerosos debates orais e escritos com Bucer, e logo depois disso foi mandado partir da cidade. Por um tempo ele montou seu quarteI general em Ulm, mas em 1544 passou a residir permanentemente em Augsburgo. Marpeck foi o principal formulador e organizador dos anabatistas do sul da AIemanha desde o início da década de 1530 até sua morte em 1556. Marpeck defendeu suas convic~óesem escritos bem trabalhados, os quais só recentemente têm vindo à luz. Neles procurou justificar as doutrinas anabatistas baseado em um biblicismo estrito. Em 1542 escreveu uma espécie de catecismo, sob o título Vermahnung oder Tdufiiichlezn, e durante a última parte de sua vida completou sua

maciça "Réplica" (I/emntwortung)a Gaspar Schwenckfeld (1489-1561), o principal porta-voz de um espiritualismo evangélico entre os reformadores radicais.

A partir de 1533 o governo de Estrasburgo tomou medidas mais severas contra os sectários (aprisionamento), principalmente porque Melquior Hofmann (1495)-1543) introduziu entre eles um apocalipsismo fanático. Este estranho homem nascido na Suábia e curtidor de profissáo, caíra sob a influência da causa de Lutero em 1522.

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Entâo tornara-se pregador leigo, apresentando suas confusas idéias durante suas viagens pelos países bálticos, Sutcia, Dinamarca e Holsrein. Nesses lugares esteve sempre em conflito com sacerdotes catíilicos romanos e pregadores luteranos. Em junho de 1529 apareceu em Estrasburgo e lá fez contato com os anabatistas, submetendose ao rebatismo. A oposição destes às igrejas territoriais levou-o a desenvolver uma forma original de ap~cali~ticismo, a qual expôs em conexão com o livro do Apocalipse de Joáo. Ele agora considerava Lutero, o "apóstolo dos começos", como um Judas. Proclamando a si mesmo "apóstoIo do fim", predisse que o Juízo Final seria em

1533, a partir de Estrasburgo e abarcar-ido o mundo inteiro. Depois que sua prisáo foi ordenada escapou da cidade em abril de 1530 e dirigiu-se para Emden, na Frísia Oriental, onde arrebanhou muitos seguidores (os "Melquioritas"), enchendo-os com a expectativa de que triunfariam enquanto os demais pereceriam pela violência. Quando esses seguidores experimentaram perseguição severa nas mãos das autoridades católicas, Hofmann ordenou a suspensáo dos batismos de fiéis por dois anos (a Pausa), e retornou a Estrasburgo, a "nova Jerusalém", no final de 1531. Novos mandados de prisáo o forçaram a Fugir da cidade no início de 1532. Retornou uma vez mais em meados de 1533, e em maio foi submetido a duas audiências judiciais e mantido sob suave detençáo. Foi então examinado detalhadamente por Bucer durante o decorrer do importante sínodo de Estrasburgo de 10 a 13 de junho de 1533. Hofman foi sentenciado a prisáo perpétua e permaneceu preso até sua morte em 1543, mantendo-se firme em suas convicções e na sua esperanca até o final. Na Morávia os anabatistas encontraram refúgio nas grandes propriedades dos senhores de Liechtenstein. Em julho de 1526 Baltasar Hubmaier foi para Nikolsburgo e transformou a paróquia luterana local de fala alemá em uma congregaçáo anabatista. Milhares de refugiados, principalmente da Áustria Superior e do Tirol, estabeleceram-se lá e formaram várias comunidades. Hubmaier era o principal líder deles - o "patriarca de NikolsburgoV- aré que, em julho de 1527, foi entregue às autoridades austríacas. Foi queimado na fogueira em Viena, em 10 de março de 1528, e poucos dias mais tarde sua esposa foi afogada no Danúbio. Houve muitas divisóes entre os Irmáos Morávios. Em maio de 1527 realizou-se um gande debate em Nikolsburgo entre Hans Hut e Hubmaier. Hut esperava o fim do mundo para 1528 e defendia um pacifismo radical. Hubmaier argumentou pela necessidade de governo civil e defendeu a submissáo a tal governo, incluindo o dever de prestar serviço militar e pagar impostos. Eie também defendeu que um magisrra-

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do pode ser expressamente cristão, e aprovou tanto a guerra justa como a pena capital. (Em todos esses aspectos, Hubmaier náo era um anabatista típico.) Os irmáos que ficaram do lado de Hut deixaram Nilrolsburgo, sob a lideran$a de Jacó Wiedemann, e fundaram uma comun~dadeem Austerlitz, em 1528, que cresceu rapidamente e logo contava vários milhares de membros. Eles desenvolveram uma ordem social comunista (comunidade de bens). Foram um dos poucos grupos entre os anabatistas a fazer isso, embora uma acusaqáo padráo contra estes, em todos os lugares onde foram perseguidos, é que todos eles haviam abolido a propriedade privada.

A comunidade de Austerlitz por sua vez sofreu muitas divisóes e separaçóes, até que o apóstolo tirolês Jacó Hutter organizou-as firmemente, de 1529 a 1536, quando também ele sofreu morte de mártir queimado na fogueira em Innsbruck. Entretanto, ele deixou os "Irmáos Hutreritas" tão bem organizados economicamente que foram capazes de manter sua ordem comunista até 1622 na Morávia, até 1685 na Hungria e de 1770 a 1874 na Ucrânia. Entre 1874 e 1877, grupos de hutteritas migraram da Rússia para a América do Norte e estabeleceram comunidades em Dakota do Sul e Monrana e, mais tarde, em Manitoba e Alberta. Os sucessores imediaros de Hutter foram uma linha de bispos vigorosos: Hans Arnon (1536-1 542); Pedro Riedemann (1542-1 556), que em 1540 escreveu um livro notável intitulado

RcchenrchaJZ (Relato de fé), uma das mais impressivas exposiçóes da fb. e prática anabatista; Pedro Walpot (1556-1578) e Claus Braidl (1585-161 1). Ao final da era da Reforma, existiam congregações anabatistas, fora da Morávia, na Suíça, no Paiatinado, na Holanda, na Frísia, na Prússia e na Polônia. Nas décadas de trinta e quarenta estavam ativos também no Hesse e na Saxônia, os principais territórios luteranos. Filipe de Hesse procurou tratá-los com brandura. Os que foram presos e não quiseram abjurar, foram banidos. A pena mais severa imposta a eles foi a prisão. O Iíder mais radical entre os anabatistas de Hesse foi Melquior Rink, antigo assoc~adode Tomás Muntzer. Ele passou os últimos dez anos de sua vida no cárcere, onde morreu cerca de 1540. Um dos mais notáveis fatos na história do anabatisrno em Hesse foi um debate que Bucer realizou com alguns deles, por ordem do landgrave, de 30 de outubro a 2 de novembro de 1538, em Marburgo. Foi uma das raríssimas ocasiões em que os fiéis anabatisras sentiram-se compelidos a se renderem aos argumentos de seus oponentes e abandonarem sua fé. Na Saxônia e na Turíngia os anabatistas foram suprimidos vigorosamente. Lutero,

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que injustamente os identificou com Karlstadt e Muntzer, o "Schwdrmer", os considerava pervertedores da fé, porque, em sua opiniáo, criam na salvagáo pelas obras e pela lei. O gerairnente pacifico Melanch~honfoi feroz inimigo deles. Tinha-os como contrários à ordem política e social. O maior opositor literário dos anabatistas na Saxônia foi Justo Menius. Entre 1530 e 1544 publicou vários escritos contra eles, sendo os principais

'RDoutrina e o Segredo dos Anabatistas Refutados pela Bíblia"

e "Do Espírito dos Anabatistas".

If. um fato bastante notável que todas as obras posteriores dos reformadores estabelecidos - por exemplo, o "Comentário Sobre a Epíscola aos Gálatas" de Lutero, publicado primeirarnenre em 1535, e a "Instituiçáo" de Calvino - expunham a fé evangélica por um lado em oposiçáo ao catolicismo romano e, por outro, contrastando com os anabatistas.

Capítulo 5

O Estabelecimento do Protestantismo Alemão O término feliz da guerra com a França e a reconcilra~áocom o papa Clemente VI1 deixaram Carlos V livre, em 1529, para finalmente interferir efetivamente nos assuntos da Alemanha. O Reichstag de Espira, naquele ano, alarmado com o progresso do luceranismo e a expansão dos anabatistas, e consciente das mudanças nos objerivos do imperador, proibira novos avancos luteranos, e praticamente ordenara a restauraçáo da autoridade episcopal romana. A minoria luterana protestara. Nessa situaçáo ameaFadora, Filipe de Hesse procurara formar uma liga defensiva de todas as forfas evangélicas da Alemanha e da S u í ~ a .Os principais obstáculos foram as diferenças doutrinárias entre os dois partidos, mas Filipe esperava que uma conferência pudesse harmonizá-las. Ainda que Lutero fosse contrário, por fim concordou. Assim, em lo de outubro de 1529, no casteIo de Filipe em Marburgo, Lutero e Meianchthon se encontraram face a face com Zuínglio e Ecolampádio. Estavam todos eles acompanhados de alguns dos líderes menores de ambos os partidos. Bucer e outros representantes de Estrasburgo também par~iciparam.Nos dias que se segui-

ram transcorreu o "colóquio de Marburgo". Lutero estava um pouco desconfiado da solidez dos suíços no que se refere às doutrinas da Trindade e do pecado original, mas o verdadeiro ponto de diferença foi a presença corporal de Cristo na ceia (ver VI:3). Lutcro sustentava com firmeza a interpretaqáo literal das palavras: "Este é o meu corpo". Zuínglio apresentou o argumento comum de que um corpo físico náo pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Era impossível um acordo. Zuínglio lembrou que ambos os partidos eram, antes de tudo, irmãos em Cristo. Lutero, porém, declarou-se incapaz de aceitar alguém como irmão na fé a menos que houvesse unanimidade em todos os artigos "Tendes um espírito diferente do nosso", no básicos de fé. Sua famosa obsen~a~áo: entanto, não foi dirigida a Zuínglio, mas a Bucer. Contudo, Filipe não queria deixar a esperança numa liga defensiva esvanecer dessa forma e assim persuadiu Lutero a redigir quinze artigos de fé. Houve acordo em catorze, mas no décimo quinto, referente à ceia, as diferenqas apareceram pois

concordararn em tudo, exceto no ponro sobre a natureza da presença de Cristo. Esses artigos de Marburgo foram assinados por ambos os lados, mas com a ressalva de que "cada lado deveria demonstrar amor cristão pelo outro até onde a consciência permitisse".' Lutero e Zuínglio se retiraram de Marburgo, cada um certo de que fora o vencedor. Os luteranos agora estavam decididos a ingressar em confederações políticas somente na base de acordo confessional. Os "Ai-tigosde Schwabach", preparados por Lutero e seus companheiros de Wittenberg, provavelmente em junho de 1529, e urilizados por eles em Marburgo, serviriam para t a l propósito. O eleitor da Saxônia e o margrave de Brandenburgo-Ansbach fizeram então desses artigos o teste da con-

federa@~política. Das grandes cidades do sul da Alemanha, apenas Nuremberg estava disposta a aceitá-los. A liga defensiva dos evangélicos que Filipe desejara era impossível. Os luteranos e os suíços seguiriam seus caminhos, pois a divisáo era permanente.

Em janeiro de 1530 o imperador enviou da Itália, onde se encontrava para ser coroado pelo papa, uma convocaçáo para o Reichscag se reunir em Augsburgo. Com inesperada amabilidade, e declarando ser o acerto das diferenças religiosas o princi~ a objetivo 1 da reunião, prometeu ouvir com benevolência todas as representações. Quando o Reichstag se reuniu em 20 de junho os luteranos estavam prontos com sua

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confissáo. Os teólogos de Wittenberg já haviam redigido, em meados de 1529, uma declaração de suas crenqas nos Artigos de Schwabach, e suas criticas das práticas romanas estavam expressas nos assim chamados Artigos de Torgau de maio de 1530. Melanchthon elaborou a Confissáo de Augsburgo, tendo como base essas duas listas anteriores de artigos, e ela foi lida em alemão diante do imperador e dos representantes no ~eichstagem 25 de junho de 1530. Ela trazia as assinaturas do eleitor Joáo da Saxônia, de seu herdeiro Joáo Frederico, do margrave Jorge de Brandenburgo-Ansbach, dos duques Ernesto e Franz de Brunswick-Luneburgo, do landgrave Filipe de Hesse, de Wolfgang de Anhalt e dos representantes de Nuremberg e Reutlingen. Antes do encerramento do Reichstag, as cidades de Heilbronn, Kempren, Weissenburgo e Windsheim também assinaram essa confissáo. A Confissão de Augsburgo foi obra principalmente do suave e conciliador Melanchthon. Ainda que informado do curso dos acontecimentos, Lutero, continuando sob a interdiçáo imperial, náo pôde ir a Augsburgo e permaneceu nas proximidades, no castelo de Coburgo. Melanchthon continuou a revisar a confissáo até o dia

de sua apresentaçáo; desejoso de sarar o cisma, ele fez diversas concessóes aos romanistas. Entretanto, não era só o espírito conciliador que o movia. Seu propósito era demonstrar que os luteranos, longe de estarem introduzindo uma nova doutrina, náo haviam se afastado da igreja Católica, ou mesmo $a igreja romana, em nenhum aspecto vird e essencial, conforme revelada em seus primeiros escritos. Tal concordância é afirmada expressamente, e muitas das heresias antigas são cuidadosamente repudiadas nominalmente. Por outro lado, as posi~óeszuinglianas e anabatistas sáo energicamenre rejeitadas. A autoridade exclusiva da Escritura não é afirmada explicitamente em nenhum lugar. O papado náo é condenado categoricamente em nenhum lugar. Não são mencionados o sacerdócio universal dos crentes, o purgatório

e a transubstanciaçáo. Apesar disso, Melanchthon imprimiu um tom completamente evangélico à confissáo como um todo. A justificaqáo pela fé é feita o fundamento de toda doutrina e vida. As marcas evangélicas da igreja são evidenciadas. Sáo rejeitados a invocação dos santos, o sacrifício da missa, a negaçáo do cálice aos leigos, os votos monásticos e a prescrição de jejuns. Lutero declarou-se satisfeito com a confissao, embora ressaltando que ele náo podia "andar táo gentilmente e suavemente" como MeLanchthon. Zuínglio enviou ao imperador uma vigorosa exposiçáo de suas idéias, a Rutio Fidei, a qual recebeu pouca atençáo. Fato mais significativo foi a apresentaçáo em 9

de julho de uma confissão conjunta das cidades do sul da Alemanha simpáticas ao zuinglianismo (Estrasburgo, Constança, Memmingen e Lindau) - a Confessia

Terrupolitand. Em grande parte saída da pena de Bucer, nela foi defendida uma posiçáo intermédia entre os zuinglianos e os luteranos. O cardeal Campeggio, que era o representante papal, aconselhou que a confissáo de Augsburgo fosse examinada pelos teólogos romanos presentes em Augsburgo. Tal conselho foi aceito pelo imperador. O principal dentre esses especialistas era Eck, o antigo oponenre de Lutero. Os teólogos católicos prepararam uma refutaçáo, que lhes foi devolvida pelo imperador e pelos príncipes católicos como demasiado polêmica. Por fim, em 3 de agosto foi apresentada ao Reichstag, mas em forma bastante abrandada. Como o imperador ainda esperava por uma reconciliacão, foram nomeadas as comissóes do conclave. Porém, sua obra foi em váo - para o que muito contribuiu a firmeza de Lutero. A maioria católica declarou que por decisáo do Reichstag os lureranos haviam sido completamente refutados e que lhes fora dado até 15 de abril de 1531 para se conformarem. Ademais, ainda segundo a maioria católica, o Reichscag decidira que seria tomada uma a ~ á oconjunta contra os zuinglianos e os anabatistas e que um concílio geral se reuniria dentro de um ano para sanar os abusos na igreja.

Um tribunal imperial reconstituído decidiria os casos de secularizaçáo em rermos favoráveis aos carólicos. Os luteranos prorestaram, que sua confissáo não havia sido refutada e chamaram atenção para a Apologia, ou defesa da confissáo, de Melanch~hon.Esta fora por ele preparada apressadamente em resposta a refuraçáo romana. Essa Apologia, reescrira e publicada no ano seguinte (1531), tornou-se uma das obras clássicas do luteranismo. Tal situaçzo exigia uma uniáo defensiva. O próprio Lutero, que dissera ser pecado opor-se pela força ao imperador, agora estava disposto a deixar a legalidade de tal resistência à decisáo dos advogados. Os príncipes luteranos se reuniram em Schmalkalden no dia de natal e lançaram as bases de uma liga. Bucer, que se esforqava ininterruptamente pela união, persuadiu Esrrasburgo a aceitar a Confissáo de A~~gsburgo - um exemplo que teve grande influência sobre outras cidades do sul da Alemanha. Finalmente, em 27 de fevereiro de 1531, a Liga de Schmalkalden estava completa. A Saxônia eleitoral, Hesse, Brunswick, h h d t e Mansfeld uniram-se em pacto defensivo com as cidades de Esrrasburgo, Constança, Ulm, Reudingen, Memmingen, Lindau, Isny, Biberach, Magdeburgo, Bremcn e Liibeck.

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5.37

Ainda que a posiçáo de Carlos V pudesse parecer forte na superfície, na realidade náo era tanto assim diante dessa oposiçáo unida. Os principes católicos tinham ciúmes uns dos outros e do imperador. O papa temia um concílio geral. A França merecia atençáo. O dia fatal - I 5 de abril de 1531 - transcorreu sem a temida ameaça.

ri morte de Zuínglio, em Kappel em outubro de 1531, privou o evangelismo suíço de seu vigoroso líder e fez pender o protestantismo do sul da Alemanha para uma uniáo mais chegada com Wittenberg. O início de 1532 trouxe novo perigo a todo o império - a invasáo dos turcos. Em i 529 eles haviam sitiado Viena e, diante de seu avanço, as diferenFas religiosas, pelo menos em certa medida, deveriam ser postas de lado. Em 23 de julho de 1532 o imperador e a liga de Schmalkalden assinaram a paz de Nuremberg. Por ela todos os processos em andamento sobre secularizaçáo seriam retirados, e assegurada a paz aos protestantes até que se reunisse um concílio geral ou, ao menos, um novo Reichstag. Pouco depois Carlos V partiu da Alemanha para a Itália e a Espanha, só rerornando em 1541. Ainda que precária, a situaçáo dos protestantes melhorara bastante, e a consolidaçáo das igrejas nos territórios protestantes concinuou sem interrupçáo.

O luteranismo também estava conquistando rapidamente novos rerritórios. Por volra de 1534 já haviam sido ganhos Anhalt-Dessau, Mecklenburgo, Pomerânia, Hanôver, Frankfurt e Augsburgo haviam sido ganhos. Ainda de maior importância foi a conquista para o luteranismo em 1534, por Filipe de Hesse, do ducado de Wtirttemberg Tirou-o Filipe de Fernando, o irmão do imperador, e restituiu-o a seu duque Úlrico, mosivado em grande parte pelo ciúme que os católicos tinham da casa de Habsburgo. A morte do duque Jorge, em 1539, foi seguida pelo triunfo do luteranismo na Saxônia ducal. No mesmo ano foi obtida a adesão cautelosa do Brandenburgo eleitoral a Reforma.

Essa expansáo do luteranismo foi auxiliada por um rrágico episódio ocorrido em

1534- 1535 c que privou o anabatismo de sua influência na Alemanha - a revolu~áo de Munster. Os anabatisras, em geral, eram pessoas pacíficas, de grande retidão religiosa e paciente persistência nas perseguicóes. O episódio de Munster náo foi típico deles como um todo. Porém, havia surgido entre eles iíderes radicais como Melquior Hofmann (ver V1:4).Ademais, durante a década de 1525 a 1535, os anabatistas evangélicos pacifistas ainda não estavam claramelite distintos dos anabatistas revolucionários e dos espiritualistas revolucionários como Tomás Müntzer.

A pregaçáo apocaliptica de Hofmann obteve muitos discípulos nos Países Baixos.

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HIST~RIADA IEREJA E R I S T ~

Um deles, Joáo Mathys, padeiro em Harlem, apresentou-se como o profeta Enoque, e logo espalhou uma mensagem fanática por rodos os Países Baixos e partes vizinhas

da Alemanha. Diferindo de Hofmann, que esperava que o poder de Deus instaurasse a nova era, Mathys pretendia inaugurá-la pela força. O descontentamento democrático popular proporcionou-lhe sua oportunidade. Em parte alguma esse novo ensino foi mais influente do que em Munster, na Vestfália, onde Bernt Rothmann, um pregador Iuterano, aceitara as idéias anabatistas em janeiro de 1534. Pouco depois lá chegou M a t h ~ se, também um alfaiate de Leyden, Joáo Bockdson. Agora se dizia que Deus rejeitara Estrasburgo devido a sua incredulidade e escolhera em seu lugar Munster como a nova Jerusdém. Para lá acorreram radicais em grande número. Em fevereiro de 1534 ganharam o controle da cidade e expulsaram os que não aceitaram a nova ordem. O bispo de Munster sitiou a cidade.

Em abri1 Mathys foi morto em combate. Joáo de Leyden foi procIamado rei. Foi estabelecida a poligamia e declarada obrigatória a comunidade de bens. Os oponentes foram eliminados seivagemente. A luta, ainda que manrida heroicamente, não tinha esperança de vitória. O bispo, com o auxílio de tropas católicas e luteranas, tomou a cidade em 25 de junho de 1535. Os líderes sobreviventes foram cruelmente torturados e executados. Para o anabatismo alemáo isso foi uma catástrofe. Popularmente julgou-se que esse fanatismo fosse característico dos anabatisras e por isso seu nome tornou-se infâmia.

O movimento anabatista foi resgatado e purificado de seu radicalismo por meio da lideranca do sábio e pacífico Menno Simons (1496-1 561). Natural da Frísia, fora ordenado ao sacerdócio católico em 1524. Apesar das crescentes dúvidas sobre o bacismo infantil e a transubstanciaçáo, ele permaneceu em seu ofício sacerdotal até janeiro de 1536, ¶uando o desastre em Munster despertou sua preocupação pastoral pelos desorientados melquioritas, as "ovelhas sem pastor", e ele então assumiu o ministério anabatista, para o qual foi ordenado no início de 1537. Menno dedicouse a reabilitar o movimento e reunir seus remanescentes dispersos no norte. Ele e seus seguidores, denominados "menonitas", conseguiram estabelecer congregaç6es nos Países Baixos e no norte da Alemanha, nas quais foi restaurada a forma mais antiga de anabatismo evangélico. Os ensinos básicos de Menno foram resumidos em seu

influente livro de 1540 intituiado Fundamento da Doutrinu Cristã. Carlos V jamais deixara de esperar e trabalhar por um concílio geral que sanasse as divisões na igreja e efetuasse reformas. Nada conseguira de Clemente ViI. Paulo

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111 (1534-1549), sucessor de Clemente, mesmo não sendo religioso de todo o coraçáo, compreendeu melhor que Clemente a gravidade da situação criada pela Reforma. De imediato fez cardeais Gaspar Contarini (1483-1542), Jacó Sadoleto (1477-

1547), Reginaldo Pole (1500-1 558) e João Pedro Caraffa (1476-1 5 59). Todos eram homens desejosos de reformas na moral, na educaçáo e na administração e que, em

1537, apresentaram ao papa longas recomendacóes para melhoramentos eclesiásticos. Paulo 111, de fato, convocou um concílio geral a se reunir crn Mântua em maio de 1537. Mas uma nova guerra (1536-1538) entre Carlos V e Francisco I da Franca impossibilitou a reuniáo do concílio. Carlos tinha colocado seu coracão no concílio e exigido dos líderes protestantes reunidos em Schmalkalden em fevereiro de 1537 que concordassem em participar. A ordem imperial os colocara em posiçáo difícil.

Há muito tempo eles falavam de um concílio geral, e já em 1518 Lutero pedira a convocaçáo de tal assembléia. Mas eles percebiam claramente que eram minoria e portanto se recusavam a participar em um concílio numa cidade italiana e sob o domínio do papa. Carlos percebeu que naquela altura era impossível um concílio. Entáo expcrimentou realizar reunióes de discussão. Tais reunióes foram realizadas em Hagenau em junho de 1540; em Worms um pouco mais tarde, no mesmo ano; e em Ratisbona (Regensburgo) em abril de 1541. Do lado protestante tomaram parte, em uma ou mais reunióes, Melanchthon, Bucer, Calvino e outros; do lado católico, Eck, Contarini e também outros. Por um momento parecia que poderia ser alcançado um acordo sobre a questão central da justificaçáo, mas a previsáo mostrou-se ilusória. As diferenças eram por demais profundas para um acordo. Ficou claro para Carlos V que o caminho para a conciliação estava bloqueado e que os protestantes náo parricipariam num concílio geral, a menos que primeiro fosse reduzida sua forca política e militar. A uniáo dos inreresses protestantes náo era menos perigosa à autoridade imperial em assuntos políticos. Ela estava rompendo a pouca unidade que ainda havia no império. Carlos, então, vagarosamente e com muita hesitacáo, foi desenvolvendo seu grande plano. Convocaria um concílio. Pela força, reduziria o poder do protestantismo de modo que os protestantes aceitariam tal concílio, como árbitro final. Daí, o concílio faria aquelas mínimas concessóes necessárias à reuniáo da cristandade e corrigiria os abusos condenados tanto por católicos como por protestantes. Para a realização desse plano, primeiro devia assegurar três coisas: se possível, dividir politicamente a liga de Schmalkalden; afastar o

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que, mesmo privada, não pode ser qualificada de secreta. Um pregador da corte realizou a cerimônia, e Melanchthon, Bucer e um representante do eleitor da Saxônia formaram entre as testemunhas. Ainda que tenham procurado guardar o caso em segredo, isso logo mostrou-se impossível. Lutero aconselhara "uma sóiida mentira", mas Filipe declarara decididamente: "Não mentirei".

O escândalo foi grande, tanto entre católicos como entre protestantes. A bigamia era proibida pela lei do império. Um príncipe bígamo perderia sua coroa. Os demais príncipes evangélicos náo defenderiam o ato de Filipe ou prometeriam proteçáo às suas conseqüências. O imperador viu nisso sua oportunidade. Em 13 de junho de

1541 conseguiu um acordo com Filipe, como preço de náo piores conseqüências, mediante o qual o landgrave nem pessoalmente nem como representante da liga de Schmalkalden faria alianças com estados estrangeiros. As esperançosas negociaçóes com a França, Inglaterra, Dinamarca e Suécia, que aumentariam em muito o poder da liga de Schmalkalden contra o imperador, riveram que ser abandonadas. Pior ainda, Filipe teve que prometer náo auxiliar o duque Guilherme de Cleves, simpacizaiite da causa evangélica, cujos direitos sobre Gelders o próprio Carlos disputava. Como o eieitor da Saxônia era cunhado de Guilherme e estava determinado a ajudá10, o resultado foi uma grave divisáo na liga. Tal divisáo revelou suas consequências desastrosas em

1543 quando o imperador derrotou Guilherme, incluiu Gelders per-

manentemente entre suas possessóes e obrigou o duque a repudiar o luteranismo. Essa derrota pôs a perder a esperançosa tentativa de garantir o arcebispado de Colônia para a causa protesrante.

A sorte também favoreceu Carlos no restante de seu programa. Em 1542 Paulo

I11 foi persuadido a convocar um concílio geral a reunir-se em Trento, cidade então pertencente ao império, mas praticamente iraliana. A guerra obrigou a um adiainento, mas em dezembro de

1545 por fim cornecararn suas sessóes. Estas teriam trans-

curso agitado e cheio de interrupções até 1563 (ver Vi:ll). Carlos conseguiu no Reichsrag de Espira em

1544, com vagas e indefinidas promessas, o apoio passivo e

mesmo alguma ativa cooperacão dos protestantes para as guerras contra a França e os turcos. A campanha contra a Franqa foi rápida. O imperador, aliado com Henrique

VI11 da Inglaterra, aproximou-se de Paris, mas, para surpresa da Europa, fez a p x ~ com o rei francês, aparenternenre sem obter qualquer vantagem de seu cerco milirar. Na realidade, porém, ele eliminara no futuro próximo a possibilidade de ajuda Francesa ao protesrantismo alemão. Os turcos, ocupados com uma guerra na Pérsia e

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HISIORIA DA IEREJA

ERISTA

enfraquecidos por disputas inrernas, fizeram trégua com o imperador em outubro de

1545. Tudo parecia ter trabalhado conjuntamente a favor de seu golpe contra o protestantismo alemão. Foi quando as perspectivas da causa protestante estavam assim se entenebrecendo que Lutero morreu durante uma visita à sua cidade natal de Eisleben, em 18 de fevereiro de 1546. Seus ÚItimos anos estiveram longe de ser felizes. Desde muito sua saúde estava abalada. As disputas entre os reformadores, para as quais contribuíra ativamente, o angustiavam. Acima de tudo, magoava-o profundamente o fracasso da pura pregaçáo da justifica~áoexclusivamente pela fé em transformar a vida social, cívica e política ao seu redor. Estava confortado pela vida feliz no lar e pela plena confiança em seu evangelho. A obra que iniciara ultrapassara a capacidade de um homem em controlá-la, por mclhor dorado que fosse. Ele não era mais necessário. Sua memória, no entanto, deverá sempre ser a de uma das figuras titânicas na história da igreja. Antes de entrar na guerra, Carlos conseguira dividir ainda mais os protestantes. A Saxônia ducal tornara-se toralmente protestante sob o duque Henrique (1539-1541), mas seu curto reinado foi sucedido por seu jovem filho Moritz (1541-1553). De grande habilidade polirica, Moritz era um tipo difícil de avaliar, porque em uma época dominada por motivos religiosos declarados, ele não se preocupava nada com as questóes religiosas envolvidas e tudo com seu próprio progresso político. Embora fosse genro de Filipe de Hesse e primo do eleitor da Saxônia, Joáo Frederico (1532-

1547), Moritz enrrara em arrito com o eleitor e não estava em boas relaçóes com Filipe. Entáo, em junho de 1546, o imperador conseguira secretamente seu apoio pela promessa de transferir para ele a dignidade eleiroral de seu primo no caso de ter êxito na guerra, e outras concessóes importantes. Assim, plenamente preparado, o imperador declarou Joáo Frederico e Filipe sob interdito por deslealdade ao império - Carlos desejava que a guerra parecesse política e náo religiosa. A liga de Schmalkalden

não havia se preparado adequadamente. A defecqão de Morirz foi um grande golpe. Ainda que no início a campanha tenha sido favorável aos proresrances, em 24 de abril de 1547 a Saxônia eleitoral foi esmagada na batalha de Mtihlberg sobre o Elba, nela sendo aprisionado Joáo Frederico. Filipe viu a causa perdida e se rendeu ao imperador. Ambos os príncipes foram encarcerados. Moritz recebeu o rítulo de deitor e a metade dos territórios de seu primo. Politicamente, o protestantismo estava esmagado. Somente algumas cidades do norte, sendo a principal Magdeburgo, e

i~niomnvi

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543

alguns príncipes menores também do norte ainda ofereciam resistência. Entretanto, fato curioso, o imperador que acabara de esmagar politicamente o proresrantismo, nunca estivera em piores relaçóes com o papa do que entáo. Paulo 111 ajudara-o no começo da guerra, mas se retirara, temeroso de que o vitorioso imperador se tornasse por demais forte. Carlos desejava que o concílio de Trento fosse devagar até que ele tivesse tornado os protestantes dispostos a reconhecer o concílio. Queria que o concílio fizesse pequenas concessóes, suficientes para acalmar os preconceiros protestantes. O papa, por sua vez, queria que o concílio definisse rapidamente a fé católica e se dissolvesse. Em abril de 1546 o concílio já tornara um acordo algo dificd de ser alcançado ao definir a tradição como sendo fonte de autoridade em matéria de fé. Para diminuir a influência imperial, em março de 1547 o papa declarou o concílio transferido para Bolonha. O imperador negou-se a reconhecer tal transferência e disse não estar sujeito às resoluçóes cridentinas já ~omadas. Tinha que ser encontrada alguma maneira de acordo religioso sob o qual a Alemanha pudesse viver até a reparação do cisma, que Carlos esperava que o concílio eferuasse. Portanto, o imperador nomeou uma comissão para preparar um "Ínterim". Tal documento era essencialmente romano, embora concedendo o cálice aos leigos, permitindo o casamento do clero e limitando ligeiramente os poderes do papa. Os príncipes católicos recusaram-se a aceitá-lo. O papa o denunciou. Carlos teve que abandonar a esperança de fazer dele um programa de uniáo temporária, mas conseguiu sua a d o ~ á oem 30 de junho de 1548, pelo Reichstag em Augsburgo, como aplicávet aos protestantes. Ele logo passou a fazer cumprir esse Ínterim de Augsburgo com mão de ferro. Moritz da Saxônia prestara rais serviços à causa imperial que uma modificaçáo, conhecida como Ínterim de Leipzig, foi permitida em seus territórios. Tal Ínterim afirmava a justificaçáo pela fé somente, mas restabelecia muito do governo e usos romanos. Melanchthon o aceitou com relutância, considerando suas partes romanas como "adiaphora", ou matéria não essencial. Por essa fraqueza ele foi asperamente atacado pelos desafiadores luteranos da inconquistada Magdeburgo, principalmente por Matias Flacius Illyricus (1520-1575) e Nicolau von Arnsdorf (1483-

1565). Muiro fez Flacius para manter o luteranismo popular nesses tempos sombrios, mas as amargas querelas entre os teólogos luteranos haviam c ~ m e ~ a d o . Superficialmente, parecia que Carlos estava se aproximando de seu objetivo. O papa Paulo 111 morrera em 1549 e fora sucedido por Júlio 111 (1550-1555), que se mostrava mais acessível ao imperador. O novo papa convocara o concílio para se

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HISTdRIA LIA IGREJA G R I ~ T Ã

reunir de novo em Trento, e diversos teólogos protestantes realmente compareceram perante ele, em 1552. Na realidade, porém, a Alemanha estava profundamente desgostosa, os protestantes gemiam sob o jugo imperial e os príilcipes catblicos estavam enciumados do crescente poder de Carlos e de sua aparentemente bem sucedida tentativa de garantir a sucessão imperial para seu filho, que mais tarde ficaria famoso como FiIipe I1 da Espanha. Moricz da Saxônia náo se conformava em ver que seu sogro, Filipe de Hesse, ainda conrinuasse na prisão. Além disso, percebera que já obtivera tudo o que podia esperar do imperador e que, uma vez que seus súditos eram profundamente luteranos, somente como líder luterano contra o imperador sua arnbicáo sem limites poderia alcanqar outras recompensas.

O pretexto que Moritz encontrou para levantar um exército foi lançar uma campanha, em nome do imperador, contra a desafiadora Magdeburgo. Foram feitos acordos com os príncipes luteranos do norte da Alemanha. O auxílio do rei Henrique I1 da França (1547-1559) fol assegurado pelo preço da entrega à França das cidades limítrofes alemás - Merz, Toul e Verdun. Carlos sabia do plano mas náo tomou medidas adequadas para impedi-lo. O golpe foi dado com rapidez. Henrique invadiu a Lorena e tomou as cidades cobiçadas. Moritz marchou rapidamente rumo ao sul, quase capturando o imperador, que escapou fugindo de Innsbruck. Toda a estrutura que Carlos erguera com canto trabalho ruiu como um castelo de cartas, não tanto ante a força do luceranismo, mas anre a independência territorial dos príncipes. Em 2 de agosto de 1552 o tratado de Passau terminou a breve luta. Por esse tratado, o acerto da questáo religiosa ficava para o próximo Reichstag, que só pôde se reunir rrês anos depois. As rivalidades entre os príncipes perturbavam a Alemanha. Moritz perdeu a vida em

1553 em luta contra o indisciplinado margrave

Alberto de Brandenburgo. Carlos escava consciente de que náo queria tolerar o protestantismo mas que tal tolerância era inevitável. Então, deu a seu irmáo Fernando (eIeito imperador apenas em 1580) plena autoridade para cuidar do caso. O Reichstag se reuniu em Augsburgo. Os luteranos exigiram plenos direitos e a posse de todas as propriedades eclesiásticas já secularizadas ou ainda a serem. Pediram tolerância para os Iuteranos nos territórios católicos, mas não a concederam aos carólicos em territórios luteranos. Estas exigências exí-remas naturalmente encontraram resistência. O resultado foi um acordo, a paz de Augsburgo, de 25 de setembro de 1555. Por suas disposicóes, foram dados a católicos e Iuteranos direitos iguais no império - os outros evangélicos náo foram reconhecidos. Cada príncipe leigo determinaria qual das

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.54.5

duas fés seria professada em seu território - os súditos não teriam o direito de escolha - e apenas uma fé seria permitida em cada território. Este foi o princípio normalmen-

te def nido como cuius vegio, eius religio. No que se refere às propriedades e terricórios

eclesiásticos, foi acordado que a situa~áoao Tempo do tratado de Passau, 1552, seria a norma. Todos os que estavam na posse dos luteranos ficariam com eles. Porém, a partir de entáo se um governante espiritual católico se tornasse protestante perderia sua posiçáo e propriedades. Dessa forma foi assegurada aos católicos a posse permanente dos territórios espirituais não perdidos até 1552. Esta era a "reserva eciesiástica". As pessoas insatisfeitas com a fé do território onde viviam teriam pleno direito de emigração e justa venda de seus bens - um grande avanço em relação à puniçáo por heresia, mas a opção era apenas entre carolicismo e luteranismo. Dessa forma o luteranismo alcançou pleno estabelecimento legal. A AIemanha estava dividida permanentemente. O sonho de Lutero de purificaçáo de roda a igreja alemá se desvanecera, da mesma forma que a concepção católica de unidade visí~~el. Os primeiros líderes desapareciam rapidamente. Lutero morrera nove anos anres. Melanch~honviveria até 1560. Carlos V abdicara de sua posse dos Países Baixos em

1555 e da Espanha um ano depois, e se recolhera a San Yuste na Espanha, onde morreria em 1558.

Capitulo 6

Os Países Escandinavos Dinamarca, Noruega e Suécia estiveram nominalmente reunidas sob um soberano dinamarquês desde a formaçáo da uniáo de Kalmar em 1397. A partir de 1460 Schleswig-Holstein rambém esteve debaixo do domínio dinamarquês. A coroa não era poderosa em nenhum desses países. Em todos eles os membros do alto clero eram impopulares, opressores, frequentemente nascidos no exterior e sempre em disputas com a nobreza. Em parte alguma da Europa a Reforma seria táo amplamente política. No início da Reforma o trono dinamarquês estava ocupado por Cristiano I1 (15 13-1523), déspota escIarecido e simpático ao Renascimen~o.Ele acreditava que o

p n d e mal de seu reino encontrava-se no poder nas mãos dos nobres e dos eclesiásticos. Com o objerivo de limitar o poder dos bispos mediante a introduçáo do movimento luterano, ele trouxe em 1520 um pregador luterano chamado Martinho Reinhard, o qual se mostrou ineficaz. Karlstadt serviu como conselheiro em 1521, ainda que por pouco tempo. Parcialmente inspirada por este, uma lei de 1521 proibia apelos a Roma, reformava os mosteiros, limitava a autoridade dos bispos e permitia o casamento do clero. Entretanto, sua execução foi impedida por forte oposição, e as classes privilegiadas, provocadas de muitas maneiras por Cristiano 11, reagiram depondo-o em 1523 e estabelecendo no trono a seu tio, Frederico I (15231533). Embora simpático ao luteranismo, Frederico foi forçado pejos partidos que o fizeram rei a prometer respeitar os privilégios dos nobres e a impedir qualquer pregaçáo herética. Mesmo assim, o luteranismo penetrou no país. A parrir de 1524 o luteranismo teve um propagandista acatado entre o povo, Hans Tausen (1494-1561), que fora monge e estudara em Wiccenberg. Em 1526 o rei Frederico nomeou Tausen seu capeláo. Nesse mesmo ano o rei tomou para si a confirmação das nomeações para o episcopado. Uma lei de 1527 legalizou essa iniciativa real, concedeu tolerância aos luteranos e permitiu o casamento do clero. Essas mudanças foram apoiadas por grande parte da nobreza, que o rei conquistara dando cobertura aos seus ataques aos direitos e propriedades eclesiásticos. Em 1530, o mesmo ano da Confissáo de Augsburgo, Tausen e seus cooperadores apresentaram ao l ar lamento dinamarquês os "Quarenta e três artigos de Copenhague". No ano anterior tinha sido publicada e muito bem

recebida uma tradução dinamarquesa por Cristiano Petersen, do Novo Testamento.

Na ocasiáo em que os artigos foram apresentados, nenhuma decisáo foi tomada; no entanto o luteranismo fez notáveis progressos até o falecimento de Frederico, em

1533. A morte de Frederico deixou rudo em confusáo. A maioria da nobreza apoiava o mais velho de seus dois filhos, Crisciano I11 (1536-1559), luterano confesso; enquanto que os bispos apoiavam o mais jovem, Hans. Seguiu-se um período insano de guerra civil do qual Cristiano 111 emergiu vitorioso. Os bispos foram aprisionados, sua autoridade abolida e as propriedades eclesiásticas confiscadas pela coroa. Cristiano entáo solicitou ajuda de Wittenberg. João Bugenhagen, companheiro de Lutero, chegou em 1537. Sete novos superintendentes luteranos foram nomeados pelo rei, mas conservaram o título de "bispos". Estes superintendentes foram orde-

P E R ~ D ~VID

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547

nados pelo próprio reformador alemão, que era ele mesmo superintendente de Wittenberg. A igreja dinamarquesa foi, assim, reorganizada conforme o sistema luterano.

A Noruega era um reino separado mas estava sujeita ao rei dinamarquês por causa dos termos da união de Kalmar. A Reforma praticamente náo chegou ao país durante o reinado de Frederico I. Nas lutas que se seguiram, o arcebispo Olaf Engelbrektsson de Trondheim, chefe do clero norueguês, liderou um partido moderador e fugiu do país quando da vitória de Cristiano 111. A Noruega foi feita província dinamarquesa, e a nova constituição religiosa luterana dinamarquesa foi introduzida nominalinente. No entanto, Cristiano 111 foi muito negfigente quanto à pregação e superintendência na Noruega. A conseqiiência foi que a Reforma, imposta de cima, demorou muito para ganhar a simpatia A mesma história se pode contar a respeito da distante possessáo dinamarquesa da Islândia. A Reforma viajou vagarosamente para lá. Em 1540 o bispo Gisser Einarsen de Skálholt, educado na Alemanha e simpático ao luteranismo, comesou uma reforma luterana conservadora. Nesse mesmo ano foi publicada uma versão islandesa do NovoTestamcnto. Em 1548 uma forte reaçáo católica, liderada pelo bispo Jon Aresen de Holum, tentou quebrar o jugo dinamarquês. Mas em 1554 a rebelião foi dominada e o luteranismo estabelecido obrigatoriamente, e por muito tempo recebeu pouca aceitaçáo popular. A reforma da Suécia esteve em grande parte vinculada à l u ~ anacional pela independência. Cristiano I1 da Dinamarca encontrara feroz resistência aos seus esforços para conquistar o trono sueco. Seu principal cooperador ali foi Gus~avoTrolle, arcebispo de Upsala. Gustavo procurou aprovacão pelo papa Leão X da excomunháo de seus oponentes, ainda que tal oposicáo fosse simplesmente política. Em 1520 Cristiano I1 tomou Estocolmo e fez acompanhar sua coroaçáo como rei da Suécia de um ato de tremenda crueldade. Reuniu os nobres, que de nada suspeitavam, para a cerimônia, s mandou matá-los como hereges excomungados. O Banho de Sangue de Estocolmo levantou a Suécia em rebelião contra Cristiano 11. O líder dessa revolta foi o vigoroso Gustavo Vasa. Em 1523 os dinamarqueses foram expulsos e Gustavo coroado rei 1523-1560). Enrremenres, a doutrina luterana estava sendo ensinada por dois irmãos que em i519 haviam retomado de um período de estudos em Wittenberg - Olaf (1493)1552) e Lars Peterson (1499-1573).Ambos trabalhavam em Strengnas, e Jogo con-

verteram o arquidiácono Lars Andersson (1482-1552). Em 1524 o rei Gustavo estava definitivamente a favor desses líderes. Andersson (Laurentius Andreae) tornou-se seu chanceler c Lars Peterson professor de teologia em Upsala. Em 27 de dezembro de 1524, em Upsala, houve um debate enrre Olaf Peterson (Olavus Petri), enráo pregador em Estocolmo, e o campeáo romano Pedro Galle. Tal debate pareceu uma vitória aos reformadores. Em 1526 OLavus Petri publicou sua traduçáo sueca do Novo Testamento (com o auxílio de seu irmão ele também traduziu o Anrigo Testamento, e toda a Bíblia em sueco foi publicada em 1541). Em parte o apoio do rei provavelmente foi devido às suas convicqóes religiosas, no entanto náo menor parte foi motivada pela extrema pobreza da coroa, que Gustavo pensava ser possível remediar unicamente por extensa confiscação dos bens da igreja.

O rei deu o

decisivo no mês de junho de 1527. Na diera de Vasteras,

ameaqando abdicar, o rei exigiu e obteve a entrega a coroa de todas as propriedades episcopais ou monásticas que o rei julgasse desnecessárias às obras propriamente religiosas. Ele obteve também a dcvoluçáo aos nobres de todas as rerras isentas de impostos que eles haviam doado a igreja desde 1454. Por fim, também exigiu a pregacão da "pura palavra dc Deus". Foram feitas provisóes para a reorganização da igreja sob a autoridade real. Embora senhor da igreja sueca e também de posse de grande parte das propriedades eclesiásticas, Gustavo empregou seu poder na religiáo com moderaqáo. Muitos dos antigos prelados abandonaram o país. O ofício episcopal foi mantido, se bem que agora os bispos eram nomeados pelo rei. Em 1528 foram consagrados novos bispos, seguindo os ritos antigos, pelas máos do bispo Pedro Magni, de Vasteras, que fora consagrado na época do catolicismo. Foi, pois, por meio dele que se considerou a sucessão aposeólica ter sido transmitida ao episcopado luterano sueco. Em 1529 o sínodo de Orebro tomou ourras medidas reformadoras. Nesse mesmo ano foi publicada uma ordem de culto sueca, e em 1531 a "Missa Sueca". Ainda nesse ano Lars Peterson foi sagrado arcebispo de Upsala, embora sem jurisdiçáo sobre os bispos seus colegas - eles permaneceram sob o poder real. Muitos do baixo ciero aceitaram a Reforma e foram man~idosem seus cargos. Porém, tais modificações introduzidas pelo poder real estavam longe de alcançar imediata aceitaqáo popular e a Suécia demorou a se tornar totalmente evarigélica. Seu tipo de luteranismo era muito conservador na dourrina e na prática. A reforma na Suécia ocasionou a da Finlândia, entáo incluída na monarq~iiasueca. A igreja sueca passaria por um período de reacáo romariizanre, especialmente no reinado do

filho de Gustavo, Joáo I11 (1568-1592), que terminaria em 1593, quando o sínodo de Upsala formalmente adorou a Confissáo de Augsburgo como o credo oficial da Suécia.

Capitulo 7

A Reforma na Suíça Fracófona e em Genebra antes de Calvino A cidade mais force no norte da S u í ~ aera Zurique, enquanto que no sul a mais poderosa era Berna. Esta vivia em consranre rivalidade com os duques de Sabóia, mormente pela posse dos territórios franctfonos nos arredores do lago de Genebra (o Pays de Vaud). A aceitaçáo do protestantismo por Berna em

7 de fevereiro de

1528, levou o governo da cidade a procurar introduzir a Reforma nos distrixos de~endentes,estimulando a pregaçáo de Guilherme Farel (1489-1 565). Farel era natural dc Gap, província francesa de Dauphiné. Quando estudava em Paris, caiu sob a influência do reformador humanista Jacques LeFèvre d'Étaples, e em 1521 estava pregando sob os auspícios do reformador moderado Guilherme Briçoilnet, bispo de Meaux. Orador de ardente veemência, intensa seníimcntalidade e voz muito forre,

de tanto pregar a Reforma logo teve de deixar a FI-ança. Em 1524 se enconrrava em Basiléia novamente pregando a Reforrns, com ral impetuosidade que rermino~iexpulso da cidade. Os meses seguintes foram um período de perambulacáo, durante o qual visitou Escrasburgo, onde conquisrou a amizade de Bucer. Em novembro de 1526 Farel iniciou seu rrabalho em Agle na Suíqa francófona, onde o governo de Berna o defendeu, ainda que esta náo estivesse totalmente comprometida com a Refor~ila.Coiii a vitória completa das novas idéias em Berna, a obra de Farel progrediu rapidarnerite. Aigle, Ollon e Rex adotaram a Reforrtia erxi .,778, destruindo imagens e pondo fim à missa. Depois de tentar em váo converter Lausana, iniciou em novembro de 1529 tempesi-uoso acaque a Neuchârel, que por F n resultou na irnplantaçáo da Reforma ali. Em 1530 coiiseguiu o mesmo ein Morat. ?iirEm, em Grandson e Orbe que, como Morat, estavam sob o governo conjunto da

protesrante Berna e da católica Friburgo, ele conseguiu apenas a tolerância para ambas as formas de culto. Em setembro de 1532 foi convidado a participar de um sínodo dos valdenses, nos altipianos dos Alpes Cocianos. Essavisita resultou na aceitação da Reforma por grande número de valdenses. Esres foram subseqüentemente atendidos por um companheiro de Farel, Pedro Olivétan (1506?-1538),cuja craduçáo francesa da Bíblia seria publicada em 1535. Em outubro de 1532 Farel fez uma tentativa fracassada de pregar a Reforma em Genebra. Em todo lugar ele enfrentava oposiçáo com indômita coragem, por vezes com risco da própria vida e até sofrendo ofensas físicas. Ninguém, no entanto, conseguia ficar indiferente a sua presença marcante. Seu principal colaborador era o gentil Pedro Viret (15 11-157 I), o futuro reformador de Lausana. Quando da chegada de Farel em 1532, Genebra estava engajada em consolidar uma revoluçáo política que ocorrera durante a década de 1520. Situada numa rota comercial principal através dos Alpes, Genebra era uma comunidade mercantil ativa, conscie~itede seus interesses e liberdades e de padróes morais mais relaxados, apesar de seus numerosos mosteiros e estabelecimentos eclesiásticos. As liberdades genebrinas se mantinham com grande dificuldade diante dos abusos do poderoso duque de Sabóia. Q ~ ~ a n ddoo início do século dezesseis, três poderes compartilhavam o governo da cidade e das aldeias adjacentes: o bispo; seu vicedominus, ou administrador ~emporal;e os cidadáos, que se reuniam anualmente em uma Assembléia Geral e elegiam quatro "síndicos" e um tesoureiro. Além da Assembléia Geral, os cidadáos eram !governados por um Pequeno Conselho de 25 membros, do qual faziam parte os "síndicos" do ano corrente e os que haviam servido como tais no ano anterior. Quesróes políticas mais amplas eram discutidas pelo Conselho dos Sessenta, nomeado peto Pequeno Conselho. Em 1527 foi criado o Conselho dos Duzentos, cujos membros incluiam o Pequeno Conselho e outros 175 eleitos por ele. Os agressivos duques de Sabóia tinham nomeado o vicedominus desde 1290 e controlado o bispado desde 1444. A luta, pois, era pela liberdade dos cidadáos concra os interesses da casa de Sabóia, representados pelo bispo e pelo vicedominus. Em 1519 um grupo de cidadáos revolucionários, conhecidos como os Eidguenotes (Ezdgenossen,"confederados"), que eram a favor de uma alianca suíça contra a casa de Sabóia, fizeram uma aliança com a católica Friburgo. Porém, o duque Carlos I11 de Sabóia prevaleceu e o patriota genebrino Filiberto Berthelier foi decapitado. Em 1525 os revolucionários retomaram seus esforços, sob a liderança de um exilado

genebrino, Besançon Hugues. Em I526 Hugues negociou uma aliança com Berna e Friburgo. A Assembléia Geral ratificou os tratados e Genebra ficou entáo em segurança no campo político suíço. Em agosto de 1527 o bispo Pedro de la Baume abandonou a cidade, a qual náo podia mais controlar, e se vinculou totalmente aos interesses da casa de Sabóia. A autoridade do vicedominus foi repudiada, e os poderes tradicionais do bispo e de seu agente foram assumidos pelo Pequeno Conselho e pelo recém-formado Conselho dos Duzentos. O duque Carlos atacou a corajosa cidade, mas Berna e Friburgo vieram em seu auxílio em outubro de 1530, e ele teve que se comprometer a respeitar a liberdade genebrina. Até entáo, havia pouca simpatia pela Reforma em Genebra, mas Berna estava ansiosa para ver a fé evangélica estabeiecida ali. Berna, na verdade, pretendia controlar o destino religioso de Genebra assim como sua revoluçáo política. A agita~áo protestante não se iniciaria na cidade senão em junho de 1532, quando foram afixados cartazes criticando as pretensóes papais e apresentando a doutrina reformada. Mas Friburgo, a outra aliada de Genebra, era firmemente católica, e o governo de Genebra repudiou quaisquer inclinaçóes para o "luteranismo". Como já foi observado, Farel e seus colaboradores, Pedro Olivétan e Ancônio Saunier, chegaram em Genebra em outubro de 1532, sob os auspícios de Berna. Contudo, náo conseguiram se estabelecer e foram obrigados a deixar a cidade. Um mês mais tarde, Farel enviou seu colega Antônio Froment (1508?-1581)à Genebra, onde este foi contratado como mestre-escola e dessa forma propagou a doutrina reformada. Froment reuniu um grande número de seguidores e em l o de janeiro de 1533 teve a ousadia de pregar publicamente. O resultado foi uma grande cornogáo popular e ele teve que abandonar a cidade. Na páscoa do ano seguinte havia protes[antes em número suficiente para se atreverem a celebrar a ceia do Senhor. Farel retornou em dezembro, e em janeiro de 1534 ele e Pedro Viret, que também fora enviado por Berna, realizaram um debate público com Guy Furbity, um frade dominicano erudito e o principal defensor local da causa romana. O debate rerminou em um g a n d e tumulto. Em março, Farel e seus seguidores, agora um grupo ~onsiderável,apoderaram-se de uma capela monástica para ser urilizada como local pregação.

O governo genebrino estava em situaçáo difícil. Friburgo, sua aliada católica, .

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rtrgia que Farel fosse silenciado. Berna, sua aliada protestante, insistia na prisáo de !-lrbity, que acusara os genebrinos de serem fantoches de Berna. A magistratura

552

HISThRIA DR IGREJA CRISIA

puniu 'Furbiry e rompeu relaFóes com Friburgo. Assim, Berna restou como única aliada suíça de Genebra. Entáo o bispo exilado, agindo em acordo com o duque de Sabóia, armou tropas para atacar a cidade e sitiou-a. Esta açáo fortaleceu sobremaneira a oposição genebrina, e forneceu a Farel e Viret a oportunidade de avançarem sua causa vinculando o pro~estantismoà luta de Genebra por independência. Em l o de ourubro de 1534 o Pequeno Conselho declarou vago o bispado, ainda que Genebra esrivesse longe de ser predominantemente protestante. No início de 1535, Farel prevaleceu sobre os síndicos e conseguiu a autorizaçáo para um debate público entre os lideres protestantes e o clero católico, mas o bispo proibiu a participaçáo deste. Farel e Virer prevaleceram facilmente sobre os poucos porta-vozes romanos no debate, que cornou a maior parte de junho. Encorajado por seu sucesso, eles se apoderaram da igreja de La Madeleine em 23 de julho e em 8 de agosto da catedral de Sáo Pedro. Grupos iconoclastas pilharam as igrejas. Dois dias

mais tarde o governo da cidade suspendeu a missa. Os cônegos da catedral e a maioria dos sacerdotes, monges e freiras abandonou a cidade. Em 31 de maio de 1536 a obra foi completada por uma decisão da Assembléia Geral, expressando sua determinação de "viver nesta santa lei evangklica e palavra de Deus" e abolir "todas as missas e outras cerimônias e abusos papais, imagens e ídolos". Enrrementes, o duque de Sabóia pressionava Genebra com ferocidade. Por um tempo, Berna recusou-se a enviar auxílio, mas por fim, em janeiro de 1536, veio poderosamente em socorro de Genebra. Esta viu desaparecer o perigo de Sabóia, apenas para ser ameaçada pelo controle de Berna. Porém, a coragem de seus filhos mostrou-se a altura do desafio, e em 7 de agosto de 1536 Berna reconheceu a independência de Genebra. Agora a cidade estava iivre. Ela aceitara o protestantismo, embora mais por causas poiíticas que reIigiosas, e suas insrituiçóes religiosas tinham que ser reorganizadas. Farel sentia-se incapaz para a tarefa, e em julho de 1536 constrangeu um jovem francês seu conhecido, em trânsito na cidade, a permanecer e auxiliar na obra. Este amigo era João Calvino.

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~ t n l o o oui

A REFORMA

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Capítulo 8

Joáo Calvino Joáo Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, cidade na Picardia cerca de noventa quilômetros a nordeste de Paris. Seu pai, Geraldo Cauvin, alcancara por seus esforços o posto de secretário do bispado de Noyon e procurador do cabido de sua catedral. Geraldo desfrutava da amizade da poderosa família nobre dos Hangest, que fornecera, no rempo dele, dois bispos a Noyon. Joáo Caivino teve relações muito chegadas com os jovens dessa família, e através dessas relaçóes aprendeu as maneiras da sociedade polida, que poucos reformadores tiveram. Pela influência do pai, Calvino recebeu os benefícios de certos cargos eclesiásticos em Noyon e nas suas proximidades; o primeiro deles quando ainda náo tinha doze anos de idade. Nunca, porém, foi ordenado ao sacerdócio romano. Provido assim de recursos, em agosto de 1523 Calvino pode ingressar na universidade de Paris, estudando primeiramente no Collège de Ia Marche, onde por um tempo desfrutou da notável instruçáo em Iatirn dada por Maturino Cordier (1479-

1564), a quem ficou devendo as bases de seu estilo literário briihante. Ele entáo prosseguiu em seu curso de artes no semi-monástico Collhge de Montaigu, onde foi educado na filosofia aristotélrca e na lógica nominalista, possivelmente pelo teólogo escocês Joáo Major (1470-1550), e graduou-se como mestre em artes em 1528. Enquanto estudante granjeou muitas amizades sólidas, noradamente na família de Guilherme Cop, médico do rei e entusiasta adepto do humanismo. Geraldo destinara o filho à teologia e ao sacerdócio, mas em 1527 esrava com problemas com o cabido da catedral de Noyon e resolveu que seu filho estudaria direito. Conseqüentemente, Calvino entáo ingressou na universidade de Orléans, onde Pedro de i'Estoile (1480-1537) gozava grande fama de jurisra. Depois, em 1529, foi para a universidade de Bourges, a fim de ouvir André Alciati (i493-1 550). Corno seu interesse pelo humanismo era muito forte, tanto em Orléans como em Bourges ele coineçou a estudar grego, com o auxílio do erudito alemáo Melquior Wolmar (1496-15611, o qual ficou seu amigo para o resto da vida. Calvino obteve sua licenciatura em direito, mas a morte de seu pai em 1531 deixou-o livre para decidir o que queria, e ele entáo continuou seus estudos do grego e iniciou hebraico

--

no Collège de France, instituiqáo humanista f~lndadaem 1530 pelo rei Francisco I em Paris. Nessa época, Calvino trabalhou com afinco em seu primeiro livro, o Cornentdrio ao Tratado de Sêneca Sobre

d

Clemência, publicado em abril de 1532. Era

uma maravilha de erudição, e mui marcado por um profundo senso dos valores morais. Entretanto, nessa obra Calvino náo demonstrou nenhum interesse pelas questóes religiosas da época. Era simplesmente um humanista entusiasta e profundamente culto. Não foi, no enranto, por falta de oportunidade em conhecer as novas doutrinas que Calvino ainda náo fora atingido pela luta. Woimar, seu tutor, estava comprometido com a Reforma, como também estava Pedro Roberto (1506?-1538),parente de Calvino e seu colega de estudos em Orléans, conhecido como Olivétan pois, de táo estudioso, queimava o óleo até o meio da noite. O humanismo, ademais, promovera na Franga, como em toda parte, um movimento reformisra. Seu mais alto representante há muito tempo era Jacques LeFèvre d'Étaples (1460?-1536),que por alguns anos após 1507 fixara residência no mosreiro de St. Gerrnain des Prés, em Paris, e se cercara de notável grupo de discípulos. Entre estes encontravam-se Guilherme Briçonnet (1470-1534), o ativo líder do partido reformador francês e, a partir de I 5 16, bispo de Meaux; Guilherme Budé (1467-1540), que persuadiu o rei a hndar o Collège de France; Francisco Vatable (i-1547), o professor de hebraico de Calvino

nessa instituição; Geraldo Roussel (1500)-1550), amigo de Calvino e mais tarde bispo de Oléron; Luís de Berquin (1490-1529), morto na fogueira por causa de seu protestantismo; e Guilherme Farel, cuja ardente carreira como reformador já foi observada. Muitos humanistas, tais como a família de Cop, cuja amizade Calvino desfrutara em Paris, simpatizavam com estes homens - nenhum dos quais, exceto os dois últimos mencionados, rompeu com a igreja romana. Eles tinham o valioso apoio de Margarida d'Angoulême (1492-1549), a hábil e popular irrnii do rei Francisco e rainha de Navarra a partir de 1527. Ela, por fim, se tornaria protestante em segredo.

Os livros de Lutero rapidamente penetraram na França e foram lidos nesse círculo. Porém, poucos dos seus componenres sentiram a gravidade da situação ou estiveram dispostos a pagar o preço total da Reforma. Assim, no círculo erudito em que Calvino se movia náo havia ignorância de quais eram as questões principais. Elas apenas ainda náo tinham se tornado importantes para ele. Em algum momento entre a primeira parte de 1532, época da publicação do seu primeiro livro, e o início de 1534, Calvino passou por aquilo que mais tarde chama-

~ ~ s i o nvio

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ria de uma "súbita conversão". (Alguns eruditos datam essa conversá0 tão cedo quanto

1528-1530, mas nesse caso seria necessário explicar a ausência de algo distintamente protestante no comentário de Calvino sobre Sêneca). Nada se sabe ao cerco dos pormenores dessa experiência, mas em seu centro estava a convicção de que Deus, em sua providência secreta, dera uma nova direçáo à vida de Calvino e estava subjugando e tornando malcável seu coração empedernido. Desde aí a religiáo passou a ocupar o primeiro lugar em seus pensamentos. Sambem se ignora até que ponto já nesse momento ele pensava em romper com a igreja romana. Ele ainda era participante do círculo humanista em Paris, cujos líderes eram Roussel e seu amigo íntimo Nicolau Cop. Em 10 de novembro de 1533 Cop proferiu seu discurso de posse como reiror da universidade de Paris, e nele pediu reformas, usando linguagem emprestada de Erasmo e Lutero. É improvável que Calvino seja o autor desse discurso, como alguns têm defendido; mas, por certo, ele simparizava com os sentimentos ali expostos. O discurso suscitou grande comoção, e o rei Francisco se pôs a agir contra os "luteranos". Cop e Calvino tiveram de procurar refúgio e este último foi se abrigar na casa de um amigo em Angoulême, Luís du Tillet. Entáo Calvino começou a sentir, cada vez mais, a necessidade de romper com a anciga comunlláo, e isso o levou a Noyon, em

4 de maio de 1534, a fim de renunciar aos benefícios que lá detinha. Mas a França estava ficando muito perigosa para ele, especialmente depois que Antônio Marcourt afixara suas imprudentes teses contra a missa, em outubro de 1534. Assim, em janeiro de 1535 ele encontrava-se em segurança na protestante Basiléia. Os cartazes de Marcourr foram seguidos pelo recrudescimenro das perseguições, sendo uma das vítimas o amigo de Calvino, Estienne de Ia Forge, comerciante parisiense. Francisco I namorava o auxílio dos prorestantes germânicos na luta contra Carlos V e daí, para justificar a perseguiçáo na França, publicou em fevereiro de

1535 uma carta aberta acusando o protestantismo francês de objetivos anárquicos que governo algum poderia tolerar. Calvino sentiu que devia defender seus caluniados companheiros. Entáo rapidamente concluiu uma obra iniciada em Angoulême e publicou-a em março de 1536 - Instituiçáo da Religiáo

- prefaciando-a com

uma carta ao rei francês. Esta carta é uma das principais obras literárias da era da Reforma. Cortês e digna, é uma apresentaçáo tremendamente vigorosa da posição protestante e uma defesa de seus aderentes contra as calúnias do rei. Até então nenhum protestante francês falara com tanta clareza, controle e vigor. Com ela seu

autor, de vinte e seis anos de idade, passou imediatamente a ser o líder do protestantismo francês.

A Instztuiçúo,projetada como um catecismo de seis capítulos, eventualmente se desenvolveu em um volumoso tratado de oitenta capítulos na ediçáo final de Calvino, de 1559. Mas mesmo em 1536 já era a apresentaçáo popular mais ordenada e sistemática da doutrina e da vida cristá que a Reforma produziu. Pertencendo à segunda geracão de reforrnadores, Calvino náo almejava ser um pensador "criativo". Ele reconheceu rapidamente que sua obra não poderia ter sido feita sem o trabalho anterior de Lutero. Do reformador alemão ele se apropriara dos conceitos de justificação peia

fé e dos sacramentos como selos das promessas de Deus. Também extraiu muito de Bucer, principalmente as ênfases desre na glór'ia de Deus como sendo o objetivo para o qual todas as coisas são criadas, na predestinaçáo como doucrina da confiança crisrá e nas conseqüências da eleição divina como um esforço vigoroso para uma vida de conformidade com a vontade de Deus. Mas tudo está sintetizado e aclarado com uma habilidade própria de Calvino. Para Calvino, o conhecimento humano mais elevado é o de Deus e de nbs mes-

mos. Náo temos desculpas, pois a natureza nos dá conhecimento suficiente por meio do testemunho da consciência. Porém, apenas as Escrituras podem fornecer conhecimento salvifico adequado, que o testemunho do Espírito no coraçáo do leitor crente atesta como a própria voz de Deus. Estes oráculos divinos ensinam que Deus é bom e a fonte de toda bondade em codos os lugares. A obediência à vontade de Deus é o dever primeiro do ser humano. Como foi no princípio criado, o ser humano era bom e capaz de obedecer à vontade de Deus; perdeu, no enranto, tal bondade e capacidade na queda de Adão e agora é, por si mesmo, absolutamente iiicapaz de bondade. Por isso, nenhuma obra humana é meritória diante de Deus, e todos os seres humanos encontram-se em estado de ruína, merecendo táo somente condenação. Alguns, porém, mediante a obra de Cristo, sáo imerecidamente resgatados dessa condição desamparada e desesperada. Cristo pagou a pena devida pelo pecado daqueles pelos quais morreu. No entanto, o oferecimento e a recepçáo desta satisfaçáo foi um ato livre da parte de Deus, de maneira que seu motivo é o amor de Deus. Tudo o que Cristo fez é inútil até que se rorne posse pessoal do indivíduo. Essa apropriação é efetuada pelo Espírito Santo que atua quando, como e onde quer, criando arrependimento e fé - uma fé que é, como para Lutero, uma união vital entre o crente e Cristo. Essa nova vida de fé é salvaçáo, mas salvacáo para a justi~a.O fato

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de que agora os crentes realizam obras agradáveis a Deus é prova de que entraram em união viva com Cristo. "Náo somos justificados sem obras, náo obsrante, náo somos justificados pelas obras".' Assim Calvino deixa lugar para uma concepçáo das "obras" táo exigente como qualquer proposta pela igreja romana, embora muito diferente em relaçáo ao cumprimento da salvaçáo. O padráo estabelecido diante do cristão é a lei de Deus, conforme contida nas Escrituras, não como base de sua salvação mas como expressão daquela vontade de Deus que o cristão, como um indivíduo já salvo, se esforgará para cumprir. Esta ênfase na lei como o guia da vida cristã era peculiaridade de Calvino. Isso faz o calvinismo sempre insistir no caráter, ainda que na concepçáo de Calvino a pessoa é sdva para o caráter e náo pelo caráter. A vida cristá é nutrida, sobretudo, pela oração. Umavez que todo o bem provém de Deus, e os pecadores são incapazes de iniciar ou resistir a sua conversáo, conclui-se que a razáo por que alguns sáo salvos e outros

É absurdo indagar uma razáo para tal náo, é a escolha divina - eleigáo e co~idena~áo. escolha além da vontade completamente deterrninanre de Deus. Para Calvino, porém, a eleiçáo (predestinaçáo) nunca foi um tópico de especulaçáo mas sim uma doutrina de conforto crisráo. O fato de Deus ter um ~ l a n ode salvaçáo para cada pessoa, individualmente, seria uma inabalável rocha de confiança, não somente para alguém convicto de sua própria indignidade, mas ainda para alguém cercado por forças adversas, ainda que representadas por sacerdotes e reis. Isso faria do crente um cooperador de Deus no cumprimento da vontade deste mesmo Deus. Para a manutenção davida cristá, três instituicões foram divinamente estabelecidas: a igreja, os sacramentos e o governo civil. Em última análise, a igreja consiste de "todos os eleitos por Deus";' mas isso também denota adequadamente "a totalidade da humanidade. . . que rende cutto ao único Deus e C r i ~ t o "Porém, .~ náo pode haver igreja verdadeira "onde mentira e falsidade alcançaram pr~eminênciá'.~ O Novo Tesrainento reconhece como oficiais da igreja apenas pastores, mestres, presbíteros e diáconos, que assumem sulis responsabilidades com o assentimento da congregaçáo a quaI servem. Sua "vocaqáo" é dupla: a secreta disposiçáo efetuada por Deus e a

i>utitlii@~, 3.16.1 (cdiçáo de 1559). (Cf. J.T. McNeill, scl., e E I,. Butrlcs, tr. Calvin: institutes ofthc C-hristian Religion, 2 vois. [Philadelphia, 1 9601.) .:5id., 4.1.2. :bid., 4.1.7. :31d., 4.2.1.

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HISTÓRIA DA IGREJA CRISTL

"aprovacão do povo". Assim Calvino dava voz à congregação na escolha de seus dirigentes, ainda que as circunstâncias em Genebra o levariam a considerar que ali essa voz fosse a do governo da cidade. Semelhan~emente,Cdvino reivindicava para a igreja jurisdição total e independente em assuntos de discipli~iaaté ao ponto da excornunháo. Ela náo poderia ir além; mas isso era a retenção de uma liberdade que todos os demais líderes da Reforma haviam entregue à supervisáo do estado. Entretanto, o governo civil rinha a incumbência divinamente outorgada de cuidar da igreja, ~ r o t e ~ e n d o -de a falsa doutrina e punindo os ofensores para cujos crimes a excomunháo era insuficiente. Calvino reconhecia apenas dois sacramentos - batismo e ceia do Senho~.Com referência à candente questão da presença de Cristo, ele se coloca~~a, como Bucer, entre Lutero e Luínglio, mais perto do reformador suíço na forma e do alemão no espírito. Como Zuínglio, negava qualquer presença física de Cristo; no entanto, afirmava em termos mui claros uma presença real, ainda que esp~ritual,recebida pela

fé. "Crisro, a partir da substância de sua carne, infunde vida em nossas almas, de fato, difunde sua própria vida em nós, ainda que a carne real de Crisro não ingresse em nós".j Quando da publicação da Instituiqáo,no início de 1536, Calvino visitou rapidamente a corte de Ferrara, na Itália, certamente procurando proclamar a causa evangélica perante sua compatriota de mente liberal e hospitaleira, a duquesa Renata. Sua permanência ali foi breve, seguida de rápida visita a França para acertar seus assuntos financeiros e depois continuar para Estrasburgo com seu irmáo e sua irmá. Os perigos da guerra levaram-no a se desviar para Genebra, em julho de 1536, e ali o ardente apelo de Farel, como já vimos (ver VI:7), persuadiu-o a ficar.

A obra de Calvino em Genebra começou de forma bem modesta, como preletor da BíbIia, e apenas um ano depois é que foi nomeado pregador. No entanto, exercia !grande influência sobre Farel. Seu primeiro trabalho ein conjunto foi auxiliar os ministros e as autoridades civis de Berna a es~abeleceremde forma efetiva a Reforma por todo Vaud e em Lausana, que acabavam de cair sob o controle de Berna. Em Lausana, Pedro Viret foi nomeado pastor, cargo que desempenharia até 1559. Calvino manteria amizade íntima com ele. Cdvino e Farel então procuraram alcançar três alvos na própria Genebra. Em janeiro de 1537 apresentaram ao Pequeno Conselho

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uma série de recomendações da autoria de Calvino. Nelas era proposta a celebraçáo mensal da ceia do Senhor. Para um preparo melhor, o governo da cidade nomearia "certas pessoas de boa conduta" para cada parte da cidade. Elas, juntamente com os ministros, informariam à igreja quais os indignos que deviam ser disciplinados até ao ponto da excomunháo. Foi esta a primeira tentativa de Calvino de fazer de Genebra uma comunidade modelo e, ao mesmo tempo, de afirmar a independência da igreja em sua própria esfera. A segunda tentativa foi a adoçáo de um catecismo composto por Calvino. A terceira, a imposiçáo de um credo, possivelmente de autoria de Farel, a todo cidadão. O Pequeno Conselho adotou essas recomendações, mas com modificaçóes consideráveis.

O êxiro da obra de Calvino foi logo ameaçado. Ele e Farei foram injustamente acusados de arianismo por Pedro Caroli, entáo ministro em Lausana. Eles defenderam sua ortodoxia, mas antes foi dada grande publicidade ao assunto. A nova disciplina e a exigência de aceitação individual do novo credo logo suscitaram acerba oposiçáo em Genebra. Tal oposiçáo foi forte o suficiente para alcancar uma decisáo do Conselho dos Duzentos, em janeiro de 1538, pela qual a ceia não seria recusada a ninguém. Esta decisáo arruinava o sistema disciplinar de Calvino. No mês seguinte a oposi~ãotriunfou nas eleições na cidade e resolveu encerrar a questáo. A liturgia de Berna era algo diferente daquela entáo em uso em Genebra. Há muito Berna queria que sua liturgia fosse adotada em Genebra, e a oposiçáo conseguiu pelo voto tal adoçáo. Calvino e Farel consideravam de pouca importância a diferença entre as liturgias de Berna e Genebra, mas Ihes pareceu uma violação da liberdade da igreja a imposiçáo pela autoridade civil da iiturgia de Berna, sem que fossem ouvidos os ministros. Ambos recusaram-se a ceder e foram entáo banidos, em 23 de abril de

1538. Sua obra em Genebra parecia haver terminado em fracasso total. Após vá tentativa de serem restaurados em Genebra pela intervencáo das autoridades da Suíça protestante, Farel encontrou um pastorado em Neuchâtel, onde desde encáo fixou residência, e Calvino, a convite de Bucer, foi se refugiar em Estrasburgo. Sob muitos aspectos, os três anos que ali viveu foram os mais felizes de sua vida. Ali pastoreou uma igreja de refugiados franceses e foi preletor de teologia. A cidade lhe concedeu honrarias e o fez um de seus representantes nos debates que Carlos V promoveu entre protestantes e católicos. Com isso Calvino ganhou a amizade de Melanchthon e de outros reformadores alemáes. Em 1540 casou-se com Idelete de Bure, que seria sua fiel companheira até 1549, quando ela morreu. Também enquan-

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HISTORIA DA IGREJA ERISTA

to em Estrasburgo, ele encontrou tempo para escrever náo apenas uma ediGáoampliada da lmtituiçúo, mas também seu Cornenthl-to Sobre Romanos, que foi o início de uma série que o colocou na primeira fila dos exegetas reformadores, e sua brilhante

Réplica a Sadoleto, uma defesa magistral dos princípios protestantes. Entrementes, ocorreu uma revoluçáo em Genebra mas Calvino náo teve qualquer responsabilidade nela. O partido que conseguira a expulsão de Calvino fez em

1539 um tratado desastroso com Berna, que causou sua derrota no ano seguinte e a condenação dos negociadores do tratado como traidores. O partido favorávei a Calvino estava de novo no poder, e seus líderes desejavam seu retorno. Ele foi persuadido, embora com dificuldade, e em 13 de setembro de 1541 estava novamente em Genebra, praticamente senhor da situaçáo. Calvino conseguiu prontamente a adoçáo de sua nova consrituiçáo para a igreja genebrina, as Ordenanças Ec~esiásticas,agora muito mais precisas que as recomendações aceitas em 1537. Mas apesar de seu retorno triunfal, não alcançou a aceitação total das Ordenanças, como era seu desejo. Elas declaravam que Cristo instituíra em sua igreja quatro ofícios - pastor, mestre, presbírero e diácono - e definiam os deveres

de cada ofício. O s pastores deveriam se reunir semanalmente para debates públicos, exame dos candidatos ao ministério e exegese; tais reunióes ficaram popularmente conhecidas como a Congregação (Congrégatz'oion).Os mestres, ou doutores, seriam responsáveis pela instruçáo dos fiéis na doutrina verdadeira e comporiam o quadro

de professores do sistema escolar de Genebra, o qual Calvino considerava essencial para a educaçáo religiosa da cidade. Aos diáconos eram atribuídos o cuidado dos pobres e a supervisáo do hospital. Os presbíteros eram o coraçáo do sistema de Calvino. Eram doze leigos, escolhidos pelo Pequeno Conselho, dois dentre seus próprios componentes, quatro dentre os Sessenta e seis dentre os Duzentos, e sob a presidência de um dos síndicos. Eles, juntamente com os ministros (que em 1542 eram apenas nove), formavam o Consistório (Consistoire),que deveria reunir-se toda quinta-feira e era o encarregado da disciplina eclesiásrica. Eles poderiam, se necessário, excomungar os que não se arrependessem; se a ofensa exigisse pena maior, deveriam remeter o caso as autoridades civis. Para Caivino, nenhum direito parecia ráo vital a independência da igreja como esse da excomunháo, e por nenhum lutou ranto, até seu estabelecimento final em 1555. Além dessas Ordenanças, Calvino preparou um novo catecismo muito mais eficiente e introduziu uma liturgia baseada naquela de sua congregaçáo francesa em

Estrasburgo, a qual, por sua vez, era na essência uma traducáo da liturgia em uso geral naquela cidade alemã. Ao formulá-la para Genebra, Calvino fez grandes modificaçóes para adaptá-la aos costumes ou preconceitos da cidade. Esta liturgia combinava de modo apropriado orações fixas e oraçóes espontâneas. (Calvino ' náo era contrário às oraçóes fixas escritas, como mais tarde passaram a ser seus descendentes espirituais na Inglaterra e na América). A lirurgia também proporcionava lugar central ao canto congregacional. O próprio Caivino preferia uma celebraçáo semanal da ceia do Senhor, e as Ordenanças propunham uma celebra~áono mínimo mensal, mas o conselho estabeleceu o número de quatro por ano. Sob a direçáo de Calvino - ele náo tinha nenhum outro cargo senão o de ser um dos ministros da cidade, cujo número havia aumentado para dezenove em 1564 muito foi feito pela educaçáo e incremento do comércio, mas toda a vida genebrina estava sob a supervisáo consranre e minuciosa do Consistório. Calvino queria fazer de Genebra o modelo de uma comunidade cristá perfeita. Sua postura evangélica rigorosa atraiu grande número de refugiados, muitos deles pessoas de posiçáo, culcas e ricas, principalmente da França mas também da Itália, Países Baixos, Escócia e Inglaterra. Elas logo se tornaram em fator muito importante na vida genebrina. O próprio Calvino, e todos os seus ministros associados, eram estrangeiros. Praticamente desde o início houve oposicáo ao seu governo e por voira de 1548 se tornara mui séria. Era constituída por dois elementos: os que se aborreciam com qualquer tipo de disciplina; e, muito maior, os descendentes das antigas famílias genebrinas que consideravam que Calvino, seus ministros cooperadores e os refugiados eram estrangeiros que estavam impondo um jugo estranho sobre uma cidade de heróicas tradiçóes de independência. Este último partido, conhecido como os Libertinos, estava sob a lideraqa do síndico Arni Perrin, que fora um dos mais vigorosos defensores de Calvino.

O período de luta mais áspera foi de 1548 a 1555 - do momento em que alguns dos habitantes mais antigos começaram a remer que fossem politicamenre desbancados pelos refugiados, até que estes, dos quais praticamente todos eram ardorosos defensores de Calvino, alcançaram o que se temia: colocaram Calvino numa posiçáo inabalável. Embora sua fama aumentasse constantemente fora de Genebra, duranre todo esse período Calvino permaneceu em grave risco, o de,ter sua obra destruída na própria cidade. Muitos foram os conflitos, mas dois se salientaram. O primeiro foi o criado por

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RISTÕRIA DR IGREJA CAISIii

Jerônimo Bolsec (?-1584), ex-monge carmelita em Paris, na ocasião médico protestante em Veigy, perto de Genebra. Bolsec acusou Calvino de erro, em uma reunião da Congregaçáo, ao afirmar a predestinaçáo, ou seja, que sua doutrina na realidade tornava Deus a causa de pecado. Isso era um ataque ao cerne da base da autoridade de Calvino, pois sua segurança em Genebra apoiava-se unicamente no fato de que todos o consideravam um intérprete fiel das Escrituras. Em outubro de 1551 Calvino levou a acusaçáo de Bolsec ao governo da cidade. O resultado foi o julgamento de Bolsec. Foram pedidas as opiniões de outros governos suí~os,e ficou evidente que eles não davam tanta importância quanto Calvino à predestinaçáo. Foi com dificuldade que ele conseguiu o banirnenro de Bolsec, e o episódio levou-o a uma insistência ainda maior sobre a importância vital da predestinaçáo como verdade cristã. Quanto a Bolsec, terminou retornando à comunháo romana e vingou-se de Calvino escrevendo uma biografia grosseiramente caluniosa. Com dificuldade, pois, Calvino mantinha sua autoridade quando, em fevereiro de 1553, as eleiçóes, que por alguns anos tinham sido muito equilibradas, penderam decididamente em favor de seus oponentes. Sua queda parecia inevitável, mas foi salvo e posto no caminho da vitória definitiva devido a seu confronto em Genebra com Miguel Servetus ( I 5 11-1553), cujo caso forma o segundo daqueles aqui mencionados. Servetus era espanhol, quase da mesma idade que Calvino, e homem sem dúvida de grande gênio, ainda que excêntrico. Em 153 1 publicara seu De Trinitatis

Emribus (Sobre os Erros da Trindade). Forçado a esconder sua identidade, estudou medicina em Paris sob o nome de Villeneuve e é considerado como tendo antecipado a descoberta da circulaçáo sanguínea por William Harvey. Estabeleceu-se em Vienne, na França, onde medicou muito, vindo a ser o médico pessoal do arcebispo, mas também trabalhou secretamente em seu CbristianismiRestitutio (Restituição do Cristianismo), que publicou no comeGo de 1553. Segundo sua opiniáo, a doutrina nicena da Trindade, a cristologia de Calcedônia e o batismo infantil eram as principais causas da corrupçáo da igreja. Já em 1545 comecara irritante correspondência com Calvino, cuja Instituicão criticava com desprezo.

A identidade e autoria de Servetus foram reveladas às autoridades eclesiásticas romanas de Lyon por Guilherme de Trie, amigo de Calvino. E o mesmo Trie, pouco depois, forneceu outras provas obtidas com o próprio Calvino. Servetus foi condenado à morte na fogueira, mas antes do cumprimento da senrenqa escapou da prisáo, em Vienne. Por motivos inexplicáveis dirigiu-se a Genebra, onde foi preso em agosto

de 1553. Sua condenaçáo entáo tornou-se um teste de força entre Calvino e a oposição. Esta não ousou sair abertamente em defesa de um herege tão notório, mas opôs a Cahino o máximo de dificuldades que pôde. Já Servetus, como tinha muita esperança em um resultado favorável, exigiu que Cdvino fosse exilado. Exigiu, também, que os bens de Calvino lhe fossem adjudicados. O processo terminou com a condenaçáo de Servetus à morte na fogueira em 27 de outubro de 1553. Ainda que se tenham erguido poucas vozes de protesto, principalmente a de Sebastião Castellio (1515-1563), de Basiléia, muita gente concordou com Melanchthon, que isso fora "feito corretamente". Por mais odioso que o processo e seu trágico fim possam parecer aos observadores posteriores, para Calvino foi uma grande vitória. O evento livrou as igrejas suíças de qualquer imputaçáo de fdta de ortodoxia com referência à doutrina da Trindade, ao passo que os oponentes de Calvino arruinaram-se por terem dificultado a puniçáo de alguém a quem o sentimento geral da época condenava.

A situação melhorada de Calvino logo se tornou evidente. As eleições de 1554 lhe foram francamente favoráveis e as do ano seguinte ainda mais. Em janeiro de 1555 obteve o reconhecimento permanente d o direito d o Consistório proceder à excomunháo sem a interferência governamental. Nesse mesmo ano o governo, agora de ampla maioria calvinista, esforçou-se em fortalecer sua posiçáo mediante a concessáo do direito ao voco a um número considerável de refugiados. Uma pequena revolta à tarde de 16 de maio de 1555, promovida pelos adversários de Calvino, foi usada como motivo para executar e banir seus líderes como traidores. Daí em diante o partido favorável ao reformador passou a ser senhor único de Genebra. Berna era ainda hostil, mas eni 1557 Emanuel Filiberto, duque de Sabóia e vitorioso sobre os franceses em Sr.-Quentin, a favor da Espanha, achou-se capaz de reivindicar para si o ducado, cuja maior parte estava entáo em mãos francesas. Esse perigo comum tanto a Berna como a Genebra suscitou uma "alia~içaperpétua" entre as duas cidades em janeiro de 1558, na qual pela primeira vez Genebra estava em pé de igualdade

com sua antiga aliada. Assim, livre dos mais angustiantes perigos, na cidade e no exterior, Calvino coroou sua obra em Genebra com a fundaçáo em 1559 da "Academia Genebrina" - na verdade, a universidade de Genebra, como desde há muito se tornara. Ela imediatamente tornou-se no maior centro de erisino teológico das comunhóes reformadas, afora a luterana, e o grande seminário de onde centenas de ministros foram enviados náo somente para a França, mas também para os Países

Baixos, Inglaterra, Escócia, Alemanha e Itália.

A influência de Calvino se espraiou para muito além de Genebra. Gracas à sua Instituição,seu modelo de governo eclesiástico em Genebra, sua academia, seus co-

rnencários e sua constante correspondência, ele moldou o pensamento e iiispirou os ideais do protestantismo da França, dos Países Baixos, da Escócia e dos puritanos ingleses. Sua influência penetrou na Poiônia e na Hungria, e antes de sua morte o calviliismo já estava se enraizando no sudoeste da Alemanha. Seu sistema preparava pessoas fortes, certos de que foram eleitos para ser colaboradores de Deus na execuçáo da sua vontade, corajosos na luta, exigentes quanto ao caráter, confiantes de que Deus dera nas Escrituras a norma de toda conduta humana correta e culto apropriado. Os discípulos espirituais de Calvino, nas mais diversas terras, possuíam uma marca comum. Essa foi a obra de Calvino, o domínio da mente sobre a mente, e certamente, ao rempo de sua morte em Genebra, em 27 de maio de 1564, ele merecia a qualificação de "único reformador internacional". Calvino não deixou sucessor de igual estatura. A obra crescera demasiadamente de forma que uma só pessoa não poderia mais dirigi-la. Mas em Genebra, e em certa medida em suas atividades além dos limites de Genebra, seu manto caiu sobre os dignos ombros de Teodoro Beza (1 5 19-1605), homem de espírito mais conciliador e maneiras mais gentis, mas dedicado aos mesmos ideais.

Capítulo 9

A Reforma Inglesa A história da Reforma na Inglaterra é a história da protestantizaçáo gradual da população e da igreja inglesa, um processo que se estendeu pelos reinados de Henrique

VI11 (1509-1547) e seus três filhos e sucessores, Eduardo VI (1547-1553), Maria (1553-1558) e Isabel I (1558-1603). A ocasiáo imediata, embora náo a causa suficiente, da Reforma inglesa for a "grande questão" do divórcio entre Henrique e Catarina de Aragáo, que por fim levou à separação da nação da obediência romana e à drástica diminuição da riqueza e privilégios da igreja. Nesse aspecto, a Reforma foi em gran-

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de parce uma açáo do estado, imposta de cima por um soberano obstinado, seus hábeis ministros e um parlamento complacente. Ao mesmo tempo, essa rebeliáo política foi encorajada e eventualmente transformada por um movimento autóctone de reforma eclesiástica e dissensão religiosa popular que antecedeu aos planos e problemas matrimoniais do rei. Quando Henrique VI11 iniciou seu reinado, a igreja na Inglaterra estava assolada por muitas fraquezas evidentes, tanto em suas estruturas como em seus quadros. Os prelados eram, no geral, servos reais, nomeados por sua dedicacão c presteza a coroa e porque os emoiumenros dos altos cargos eclesiásticos tornavam suas nomeações praticamente sem custo para o erário real. Por sua formação, eles eram mais juristas civis do que teólogos, uma circunstância que ajuda a explicar sua virtual unanimidade ao lado de Henrique quando este rompeu com o papado. O "carreirismo" dos bispos e do alto clero - sua busca por ascensáo e enriquecimento mediante patrocínio real e serviço civil

-

naturalmente abrigou os abusos do pluralismo, absenteísmo e

simonia, e, perigo ainda maior, deixou as paróquias nas mãos de párocos com formaqáo deficiente e normalmente sem recursos. Enquanto o clero paroquial estava assim

mal equipado para executar suas funcóes pastorais vicais de ensino e pregação, o clero monástico, com algumas exceçóes notáveis, havia abandonado a observância estrita de suas regras e já não era mais modelo exemplar para a espiritualidade leiga.

Os primeiros anos do reinado de Henrique assistiram a um reavivamento dos lolardos (ver V: 13), que permitiu que poderosas correntes de anticlericalismo oriundas do exterior se instalassem no país e fossem agucadas ainda mais. Os leigos se ressentiam profundamente das pesadas taxas financeiras impostas pela igreja e sua jurisdição coercitiva tanto sobre as propriedades como sobre as almas deles. Assim o neololardismo e o anticlericalismo serviram como tra~npoiirnpara o protestantismo, da mesma forma que o humanisnio inglês, com sua insistente demanda por reforma eclesiástica e sua crítica bibliocêntrica dos abusos. O humanismo chegara na Inglaterra no final do século quinze e encontrara defensores influentes entre alguns do alto clero e nos círculos aristocráticos e da corte. Joáo CoIeto (14671-1519), que em

1504 tornara-se deão da catedral de Sáo Paulo em Londres, já em 1496 proferira conferências em Oxford sobre as epístolas paulinas em tom plenamente hurnanisra, e em 1508 fundara novamente a Escola de Sáo Paulo. Em 1512 ele pregou um famoso sermão na Convocação do Clero, no qual censurou "o modo de viver mundano e secular dos sacristãos e sacerdotes" e estabeleceu um programa de reforma. O

próprio renomado Erasmo ensinara em Cambridge durante os anos de 15 1 1 e 1514, tendo primeiro visitado a Inglaterra em 1499 e novamente em 1506 e feito muitos amigos ali, incluindo Joáo Fisher (1459?-1535),bispo de Rochester, e o famoso Sir Tomás More (1478-1535). Mas as amplas esperanças por uma reforma eclesiástica e civil "erasmiana" gradual logo se despeda~aram,por causa da infiltraçáo na Inglaterra dos escritos revolucio~iáriosde Lutero. Estes já estavam circulando em 15 19-1520 e começaram a influenciar alguns dos jovens professores da universidade, e também aos mercadores em Londres e em outros portos que mantinham comércio com o norte da Alemanha. Iniciando-se por volta de 1520, um grupo de professores de Cambridge reuniam-se naTaverna Cavalo Branco, apelidada de "Pequena Alemanha", para debater as novas doutrinas. Entre os interessados na discussão residentes em Cambridge no início da década de 1520 estavam os líderes da primeira geraqáo de protestantes ingleses: Roberto Barnes (1495-1540), Tomás Bilney (1 495?-1531), Hugo Latimer (1485?-1555),Joáo Frirh (15032-1533), Miles Coverdale (1488-1568), Tomás Cranmer (1489-1556), Nicolau Rrdley (1500?-1555), Mateus Parker (1504-1575) e calvez rambém Guilherme Tyndale (1495?-1536) - cinco dos quais se tornariam bispos e todos com exceção de Coverdale e Parker seriam martirizados por sua fé. Tyndale, que morreu marririzado em Vilvorde, perto de Bruxelas, foi o mais notável desses primeiros protestantes. Por volta de 1522, tendo resolvido traduzir o Novo Tesr~mentopara a língua inglesa mas não encontrando apoio de Cuthbert Tunstall, bispo de Londres, para tal projeto, foi para o continente. Lá visitou Lutero em 1524, e no ano seguinte publicou em Colônia e Worms uma esplêndida traduçáo baseada no texto grego de Erasmo e também bastante dependente da Bíblia alemã de Lutero. Em 1526, cópias dessa sua tradução estavam chegando na Inglaterra, onde as autoridades tentaram em váo impedir. Ela recebeu recepçáo especialmente cordial

em Londres, enrre os mercadores e entre os numerosos grupos de lolardos que da mesma forma defendiam uma estrita "religião da Bíblia". A confluência do "antigo lolardisrno" com o "novo luteranismo" virtualmente garantiu a hostilidade dos líderes da igreja inglesa ao ensino de Lutero e às bíblias no vernáculo. Fisher e More, os

mais proeminentes erasmianos do reino, logo rornaram-se os mais salientes antiiuteranos do país. Porém, como veremos, por toda a década de 1530 o próprio arcebispo de Cantuária e principal ministro de estado do rei Henrique acalentou forres simpatias pelo luteranismo e pelo protestantismo continental e assumiu a lidetanga

PERIBBO YI

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56.7

na execuçáo de uma prote~tantiza~áo moderada da igreja inglesa, apesar do crescente conservadorismo do rei e suas políticas reacionárias. Henrique VI11 era um homem de notáveis qualidades intelectuais e força de realização, lia bastante e era muito interessado na teologia escolásrica, simpatizante do humanismo e popular entre o povo. Porém, era egoísta, obstinado e dado a espasmódicos atos de terror. Na primeira parte de seu reinado contou com o auxílio de um excelente diplomata, Tomás Wolsey (1474?-1530),que em 1509 Tornara-se seu conselheiro

articular. Em 1514 Wolsey foi alçado a arcebispo de York, e em 1515 foi

nomeado chanceler pelo rei e cardeal pelo papa Leáo X. Em 1518 o papa rambém o nomeou representante ou enviado especial da Santa Sé. Assim, Woisey exercia grande poder canto na igreja como no estado, ao preço, enrretanto, de vincular ainda mais intimamente ao papado sua própria sorce e a da Inglarerra. Henrique, por sua vez, era um dedicado filho da Santa

Sé. Quando os escritos de Lutero começaram a

circular na Inglaterra, seu uso foi proibido, e Henrique publicou sua Mrmaçáo dos Sete Sacramentos contra Lutero em 1521. Com isso recebeu de Leáo X o título de "Defensor da Fé". Henrique casara-se em 1509 com Catarina de Aragáo, filha de Fernando e Isabel de Espanha, e viúva, embora o casamento houvesse sido apenas nominal, de Artur, seu irmáo mais velho. A dispensa autorizando esse casamento com a esposa d o irmáo falecido fora concedida por Júlio 11 em 1503. Henrique e Catarina tiveram seis filhos, mas apenas Maria sobreviveu. Por volta de 1527, se náo antes, Henrique passou a expressar escrúpulos religiosos sobre a vaiidade de seu matrimônio, dizendo que a Escritura (Lev. 20:21) proibia expressamente o casamento com a viúva de um irrnáo. Em todo caso, os motivos de Henrique não eram meramente sensuais. Se fossem, ele poderia muito bem ter se contentado com suas amantes. Entretanto, a guerra das Rosas havia acabado há pouco, em 1485, e a falta de um herdeiro homem, legítimo, caso Henrique morresse, provavelmente reacenderia a guerra civil. Uma vez que náo sra provável que Catarina tivesse mais filhos, Henrique queria outra esposa. Wolsey apoiou a pretensão d o rei em se divorciar pois esperava que Henrique se casasse com uma princesa francesa e assim se deslocasse mais firmemente do lado espanhol para o francês na política continenral. Henrique, entretanto, rinha outros planos. Desde 1525 ele estava cada vez mais completamente apaixonado por Ana Bolena, dama de sua corte e irmã de Maria Bolena, sua amante. Seguiu-se uma ~omplicadanegociaçáo na qual Wolsey esforqava-se ao máximo utilizando seus po-

deres de representante papal para conseguir o divórcio do rei, enquanro Catarina comportava-se com firmeza e dignidade, embora fosse tratada com crueldade. A anulação do casamento provavelmente teria sido conseguida com o papa Clernen~e

VI1 (1523-1534), não fora o curso da política européia, que deixou o imperador Carlos V vitorioso na guerra e submeteu o papa à política imperial (ver VI:2). Carlos estava determinado a náo deixar que Catarina, sua tia, fosse repudiada. Henrique, furioso com o fracasso de Wolsey no controle da jurisdiçáo papal, despediu-o do cargo de chanceler em meados de 1529. O grande cardeal morreu em 29 de novembro de 1530, no caminho para Londres para ser processado por traiçáo. Wolsey fora sucedido como chanceler por Tomás More em outubro de 1529, o qual imediatamente Iançou uma campanha de perseguicáo contra os suspeitos de heresia, conduzindo à fogueira, entre outros, Tomás Bilney e João Frith - os primeiros mártires protesrantes na Inglaterra. E n d o Henriqiie, ainda impedido de obter seu divórcio, gostou da sugestáo de Tomás Cranmer, na época ensinando em Cambridge e nesse período fortemente inclinado ao protestantismo, que fossem ouvidas as opiniões das universidades européias. Isso foi feito em 1530, com sucesso apenas parcial; mesmo a antipapal Wittenberg defendeu a legitimidade do matrimônio do rei com Catarina. Não obstante, havia começado uma amizade duradoura entre o rei e Cranrner que teria tremendas consequências. Agora estava fora de questão uma açáo favorável do papa. Entáo Henrique resolveu apoiar-se no sentimento nacional de hostilidade ao poder estrangeiro e na sua de ameaqas, ou para romper com o papado totalmente ou então para ameaçar o controle papal de forma a aicançar seus desejos. Em janeiro de 1531 acusou a

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totalidade do clero de violação do velho estatuto de Praemunire (1353), por terem

r

reconhecido a autoridade de Wolsey como representante papal - autoridade que o próprio Henrique reconhecera e aprovara. Ele náo apenas extorquiu grande soma como preço

elo ~ e r d á omas , ainda obteve a declaraçáo das convocaçóes (dos cleros

de York e Cantuária) na qual o clero reconhecia que eIe era "o único protetor e líder supremo da igreja e do clero da Inglaterra". Foi adicionada a essa declaração, por insistência do clero, a frase qualificadora "até onde a lei de Cristo permite", Entáo, em 15 de maio de 1532, em seguida a uma solicicaçáo da Casa dos Comuns ao rei ~ e d i n d oo controle rcal da totalidade da legislaçáo eclesiástica, as convocaçóes co~icordaram relutantemente, na assim chamada Submissáo do Clero, a não fazerem

rslona vi

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nenhuma nova lei eclesiástica sem a permissão do rei e remeterem todos os estatutos existentes para revisão por uma comissão de clérigos e leigos aprovada pelo rei. No dia seguinte, Tomás Mote renunciou ao seu cargo de chanceler. Mais para o fim de

1532, o parlamento sancionou uma lei proibindo o pagamento de todas as anaras a Roma, exceto com o consentimenro do rei. Em janeiro de 2533 Henrique casou-se secretamente com Ana Bolena, que sabia estar @vida. Em mar50 seguinte o

arl lamento aprovou uma decisão legislativa crucial,

a Lei de Restriçáo de Apelos, que proibia qualquer apelo a Roma tanto em questóes espirituais como temporais. Tal lei virtualmente abolia a autoridade papal na Inglaterra. Entrementes, Henrique utilizara a proibiçáo condicional das anatas para obter do papa CIemente VI1 a confirmaçáo de sua indicará0 de Tomás Cranmer como arcebispo de Cantuária. Cranmer foi consagrado em 30 de março de 1533; em 23 de maio este reuniu urn tribunal e formalmente declarou inválido o casamento de Henrique com Catarina e em 28 de maio declarou o casamento com Ana Bolena

totalmente legal. A nova rainha foi coroada em primeiro de junho e em 7 de seteinbro teve uma filha, a princesa Isabel. Enquanro transcorriam esses eventos, em I 1 de julho de 1533 Clemente VI1 preparou uma bula ameaqando Henrique de excomunháo. A resposta do rei foi uma série de leis promulgadas pelo parlamento em 1534, pelas quais foram proibidos quaisquer pagamentos ao papa e anulados todos os juramentos de obediência ao papa, licenças romanas e oucros reconhecimentos da autoridade papal. Ademais, rodos os bispos seriam eleitos por nomeaçáo do rei. Em maio de 1534 as convoca~ G e sformalmente repudiaram a supremacia papal. Em 3 de novembro de 1534 o

parlamento aprovou a famosa Lei da Supremacia, pela qual Henrique e seus sucessores eram declarados "a única cabeça suprema [na terra] da Igreja da Ing1acerrau,sem cIaúsulas restritivas, e com pleno poder de reprimir "heresias" e "abusos".~Esta ieí não concedia direitos espirituais como a ordena~áoe a adminisrra~áode sacramentos, mas no resrante ela praricamente colocava o rei no lugar do papa. O rornpirnento com Roma foi completo. Estas leis náo ficaram de forma alguma apenas no papel.

Em maio de 1535, alguns monges de uma das mais acaradas ordens na Xnglacerra - os cartuxos - foram executados de modo bárbaro por negarem a supremacia do rei. Em 'anho e julho, o bispo Jaáo Fisher e o ex-chanceler Sir Tomas More foram decapita3 B ~ r c n s o nrd., , Documentos da ifleja Cristi?,3" ed. (Sáo Paulo, 179X), p. 332

dos pela mesma ofensa. Porém, entre o alto clero, apenas Fisher aceitou o martírio; o restante surpreendentemente seguiu complacentemente ao rei.

O gênio por trás da legislação mais crucial promulgada pelo assim chamado Parlamento Reformador de 1529-1536 foi Tomás Cromwell (1485?-1540),um homem de origem humilde, por vezes soldado, banqueiro e mercador, a quem Wolsey havia utilizado como agente comercial e parlamentar. Em 1531 Cromwell era membro do conselho privado, em 1534 tornou-se o principal secretário do rei e em 1535 o rei o nomeou vice-regente e vigário geral para negócios eclesiásticos. As idéias de Cromwell sobre a igreja e o estado deviam muito à obra Defensor pacis, de MarsíIio de Pádua (ver V:I2). Ele também tinha genuína inclinaçáo reiigiosa para o luteranismo e demonstrava zelo especid pela tradução da Escritura no vernáculo. Ele náo foi de forma alguma um "Maquiavel inglêsn.Ademais, embora frequentemente tenha-se mostrado cruel e ocasionalmente se tornado um instrumento voluntário de procedimentos corruptos, foi um homem de princípios muito além do que as noções tradicionais do "Cromwell cínico e inescrupuloso" permitem visualizar. Ele náo era totalmente subserviente ao rei, nem procurou fazer de Henrique um monarca absoluto. Bastante conhecedor da lei comum, Cromwell era um excelente estrategista parlamentar e trabalhava consiscenternente através da Casa dos Comuns para alcançar

seus objetivos. A transformação política da Inglaterra em um reino governado pelo rei agindo no e através do parlamento deveu-se, em grande parte, à ação de Cromwell. Os reformadores henricenos mais importances encontraram nele seu principal patrocinador e o homem melhor equipado, por capacidade e posicáo, para traduzir a teoria em prática.

Um dos principais planos de Cromwell foi assegurar uma dotação permanente para a coroa, que necessariamente envolveria uma exploração em larga escala dos recursos eclesiásticos. Em toda parte a Reforma foi marcada por confiscos da riqueza

e propriedades eclesiásticas. Crornwell, Cranmer e seus reformadores colaboradores, ademais, eram contrários ao monasticismo em termos religiosos. Em 1535, correspondentemente, Cromwell nomeou uma comissáo para visitar os mosteiros e relatar suas condiçóes. As visitas foram executadas apressadamente, e o relatório submetido ao parlamento em 1536, embora náo sem base factual, apresentava um retrato unilateral da decadência e corrupçáo monástica. O parlamento entáo adjudicou ao rei, "seus herdeiros e cessionários para sempre", todos os estabelecimentos monásticos cuja arrecadação anual fosse menor do que duzentas libras. O número de esta-

pr~lneov i

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5.71

belecimentos alcan~adospor essa medida foi cerca de trezentos, dos quais cerca de oitenta conseguiram isenções temporárias. Logo, entretanto, os estabelecimentos maiores se dissolveram "voluntariamente", o último dos quais em 1540. O número total de mosteiros dissolvidos na Inglaterra e em Gales entre 1536 e 1540 foi cerca de oitocentos. Por volta de nove mil monges, frades e freiras foram erradicados.

A dissolucáo náo suscitou nenhuma oposiçáo significativa, nem das ordens religiosas nem do povo em geral. Virtualmente todos os oficiais reais que assurnjrarn a liderança na divisão e venda das terras outrora pertencentes aos mosteiros eram eles próprios leigos católicos proeminentes. No final de 1536 e início de 1537 irromperam quatro revolcas no norte da Inglaterra, conhecidas coletivamente como a Peregrinaçáo da Graça, mas foram rapidamente suprimidas. Embora permeadas por conservadorismo religioso, suas origens eram amplamente econômicas e seus objetiVOS

seculares; elas náo foram "guerras religiosas" a favor dos mosteiros ou da monar-

quia papal. Também não há evidência sólida de que a dissoluçáo tenha provocado grandes catástrofes sociais e econômicas, tais como inflaqáo desenfreada, cerco nocivo de terras ou aumento predatório do aluguel de terras. As raízes das crises agrárias que acossaram a Inglaterra durante a década de 1540 eram muito anteriores à dissol u ~ ã odos mosteiros.

A morte de Catarina de Aragáo em janeiro de 1536 aliviou em parte a ameaça de intervenção de Carlos V no governo de Henrique. Aquela altura, I-Ienrique estava enfastiado com Ana Bolena e não perdoava o fato de ela não conseguir dar-lhe um herdeiro masculino. Ademais, Cromwell suspeitava do partido de Bolena no canse-

lho privado do rei. Ela foi acusada de adultério em maio de 1536 e decapitada no dia dezoito desse mesmo mês. U m dia antes Cranmer declarara nulo e inválido o casamento dela com Henrique. Em 30 de maio Henrique casou-se com Jane Seymour,

que lhe deu o tâo desejado filho em 12 de outubro de 1537. Apenas doze dias depois do nascimento do menino, que recebeu o nome de Eduardo, Fane morreu. Conforme se desenvolvia a oposiçáo de Henrique a Roma, a opiniáo protestante se espalhava encre uma minoria considerável das classes alta e média, e até mesmo conquistava um forte, ainda que cauteloso, grupo de adeptos na corte. A família Seyrnour, da qual Henrique retirara sua terceira rainha, é um exemplo notável. No final da década de 1530 a Reforma na Inglaterra já era muito mais do que um mero ato do estado. Cromwell e Cranmer também promoviam ativamente a causa protestante, segundo as circunstâncias Ihes permitiam. A atitude religiosa de Henrique,

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H18TÓRIA OA IEREJA GRIãIÃ

entretanto, continuava aquela da ortodoxia católica, exceto que substituíra a autoridade do papa pela sua própria. Em 1535 e 1536 Cronwell enviara emissários a Wittenberg para debates doutrinários com os líderes luteranos, com o objetivo de levar a Inglaterra para a órbita da liga de Schmalkalden, mas Henrique não queria nada com uma fórmula de fé distintamente protestante. Em 1536, principalmente em resposta à premente necessidade da igreja inglesa por uma defini$áo de sua doutrina, o próprio Henrique redigiu os assim chamados Dez Artigos, no quais efetuou sua concessáo mais extrema ao protestantismo. O s padróes de autoridade de fé sáo a Bíbiia, os três credos ecumênicos e os quatro primeiros concílios ecumênicos. Sáo definidos apenas três sacramentos: batismo, penitência e a ceia do Senhor; os outros náo sáo mencionados nem positiva nem negativamente. Justificaçáo implica fé em Cristo apenas, mas a confissáo e absoiviçáo e as obras de caridade também são necessárias. Cristo está fisicamenre presente na ceia. As imagens devem ser veneradas, mas moderadamente. O s santos devem ser invocados, mas náo porque "nos ouviráo antes do que Cristo". As missas para os mortos sáo desejáveis, mas a noçáo que o "bispo de Roma" pode livrar uma alma do purgatório deve ser rejeitada.

Um evento muito mais importante dessa época, promovido cuidadosamente por CromweIl, com o auxílio de Cranmer, foi a p r o d u ~ á ode bíblias em inglês. Em 1535, Miles Coverdale, entáo no exílio, produziu a primeira Bíblia completa em inglês e conseguiu imprimi-la no exterior, provavelmente em Zurique, de onde foi levada para a Inglarerra e ali reimpressa naquele mesmo ano. Em 1537 apareceu uma segunda Bíblia vernacular completa, traduzida por Joáo Rogers (1500)-155 5); impressa em Londres, ficou conhecida como a "Bíblia de Mateus", pois Rogers utilizara o pseudônimo de Tomás Mateus. Cranmer chamou a atençáo de Cromweli para essa traducáo, e este conseguiu em agosto de 1537 a permissão do rei para que ela pudesse ser vendida no reino. Imediatamente após, ele também licenciou a venda da Bíblia de Coverdale, mais barata. Em 1538 Cromwell urgiu aos bispos a promoção da leitura da Bíblia entre os leigos e ordenou-lhes que fixassem uma data na qual todo pároco deveria ter uma Bíblia em inglês disponível para leitura pública em sua igreja. Náo satisfcito com as novas traduc;óes, entretanto, Cromwell solicitou a Coverdale uma revisáo completa. O resultado foi a pullicagáo em abril de 1539 da obra-prima

de Coverdale, a assim chamada BíbIia Grande, a qual Cranmer adicionou um famoso prefácio para a segunda e d i ~ á ode 1540. A disponibilidade e imensa atracáo da Bíblia vernacular mostrou-se de extrema importância para a Reforma inglesa, princi-

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palmente por colocar a igreja contemporânea diante do espelho do cristianismo neocestamentário original.

A publicaçáo de bíblias vernaculares foi auxiliada pela impressão, em 1544, de uma litania em inglês preparada por Cranmer, a qual daí em diante, por ordem real, passou a ser utilizada nas igrejas. A litania foi a primeira peça dos projetos de Cranmer para um livro de oração inglês, que tomou suas energias de 1540 a 1547 e que produziria Rutos apenas durante o próximo reinado. Desde o início de 1536 a obra do rei Henrique decorria livre de interferência estrangeira em virtude de Carlos V e Francisco I estarem novamente em guerra de

1536 a 1538. Advindo a paz em junho de 1538, aumentaram sobremaneira os riscos para Henrique. O papa exigiu uma ação conjunta da França e da Espanha contra o rei rebelde. A diplomacia de Henrique e os mútuos ressentimentos desses países cvitaram o ataque. Ao mesmo tempo, Henrique deu vários passos impor~antescom o fito de diminuir tais perigos. Ele queria demonstrar ao mundo que era um católico ortodoxo, salvo com referência ao papa, e queria definir dc uma vez por rodas a fé da igreja inglesa. Assim, em junho de 1539 o parlamento aprovou a Lei dos Seis Artigos. O documento afirmava como credo da Inglaterra uma estrita dourrina da transubstanciaçáo, cuja negaçáo seria punida com a morte na fogueira. Repudiava o casamento do clero e a comunháo tanto no páo como no vinho. Ordenava a observância permanente dos votos de castidade e recomendava as missas privadas e a confissão auricular. Tal lei, conhecida como "chicote sangrento de seis tiras", vigorou até a morte de Henrique. Na frente política, Cromwell insistia em que Henrique fortalecesse sua posiqáo com um casamento do agrado dos protestantes alemães e que o unisse com os adversários do imperador Carlos V. A escolhida foi Ana de Cleves, irmá mais velha do duque Guilherme de Cleves e da esposa de João Frederico, eleitor da Saxônia. O casamento se realizou em 6 de janeiro de 1540. Quando a viu pela primeira vez, Henrique ficou insatisfeito, náo se sentindo atraído por ela. Ao concrário, achou-se incapaz de consumar o casamento e pouco tempo depois solicitou dispensa. Cromweil procrastinou, entretanto, pois sabia que a escolha d o rei recairia sobre Catarina Homard, sobrinha de Tomás Howard, duque

de Norfolk, o poderoso líder da maioria católica no conselho privado. O principal diado de Norfolk no conselho era Estêváo Gardiner ( 1 4 9 0 ? - 1 5 5 5 ) , bispo de \Yrinchester. Cromwell estava agora, pela primeira vez, seriamente fora de compasso com o rei, cuja postura religiosa, adcmais, pela influência de Norfolk e Gardiner,

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HISTÓRIA DA IEREJA C R I S T ~

estava ficando cada vez mais reacionária. A queda de Cromwell foi notavelmente súbita. Ele foi preso em 10 de junho de l i 4 0 e condenado sem julgamento, por um decreto parlamentar de confisco de bens e perda de direitos civis, sob a acusaçáo fabricada de heresia e traição. O maior e mais leal servo do rei foi decapitado em 28 de julho de 1540. Um pouco antes, em 10 de julho, Cranmer declarara inválido o casarnenco de Henrique com Ana de Cleves, e a ex-rainha foi consideravelmente compensada por sua perda com terras da coroa. Em 9 de agosto Henrique casou-se com Catarina Howard; mas em novembro de 1541 a nova rainha foi acusada de aduldrio. Desta vez as acusaçóes eram verdadeiras; ela foi decapitada em fevereiro de

1542. Em julho de 1543 Henrique casou-se com Catarina Parr, que ceve a felicidade de viver mais do que ele. Henrique morreu em 28 de janeiro de 1547 e foi sucedido por seu filho, que governou como Eduardo VI (1547-1553). Quando da morte de Henrique, o

art tido reformador no conselho privado e na

corre estava em ascensáo. A família Howard, a última forrdeza do catoIicismo, pcrdera prestígio por causa do fim infame da quinta rainha de Henrique e arruinou-se ainda mais devido ao aventurismo negligente de Henrique Howard, conde de Surrey e filho do duque de Norfolk, que foi decapitado por rraisáo em

19 de janeiro de

1547. O próprio duque teria ido para o paríbulo em 28 de janeiro, não fosse a morte do rei Henrique naquele mesmo dia. Norfolk permaneceu na prisáo por todo o novo reinado. O bispo Gardiner também foi para a prisáo, em junho de 1548, e perdeu sua sé em 1551. O partido protestante era comandado por Eduardo Seymour, conde de Hertford, irmão de Jane Seymour e tio do novo rei. Esse partido rambém desfrutava do apoio de Cararina Parr e seu círculo, que defendiam o humanismo erasmiano e o tipo de reforma cautelosa proposto pelo arcebispo Cranmer. A ascensão ao poder pela facçáo Seymour, conjugada com a evidente dedicasão do jovem rei Eduardo à religiáo da Reforma, possrbilitou que pregadores zelosos e publicistas trabalhassem abertamente pelo afastamento da igreja inglesa do catolicismo romano e henriceno para um protestantismo completo. A maioria dos protestantes fervorosos que estavam em arividade durante esses anos ideviarn muito mais aos reformadores suícos e do sul da Alemanha - Bucer, Zuínglio, Bullinger e logo também calvino - do que a Lutero e aos teólogos luteranos. No final do reinado de Eduardo a Inglaterra havia se tornado um país protestante, pelo menos no que se refere às deciaraçóes oficiais de fé

e prática. Quando subiu ao trono Eduardo VI tinha apenas nove anos de idade. Por isso o

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governo era exercido pelo conselho privado, sob o controle de Hertford, que fora entáo nomeado protetor do reino e duque de Somerset. Soldado capaz mas político indeciso, Somerset tem sido descrito tradicionalmente como um idealista e amigo dos pobres, embora avaliações mais recentes sublinhem sua ambição desmedida e cobiça impiedosa. De qualquer forma, ele exerceu um con~roieautocrático do estado por dois anos, durante os quais avançou-se um protestantismo mais radical. Em

1547 o parlamento aboliu a legislaçáo existente sobre heresia e também as severas adições feitas por Henrique às antigas leis sobre rraiçáo, revogou a Lei dos Seis Artigos, removeu todas as restrições à impressáo, leitura e ensino das Escrituras e ordenou que o cálice fosse oferecido aos leigos. Nesse mesmo ano ocorreu o último grande confisco de terras eclesiásticas - a dissoluçáo das "chantries", isto é, capelas com parrirnônio para rezarem missas pelas almas de seus fundadores. Também foram confiscadas as propriedades das capelas livres, das igrejas colegiadas, dos hospitais (abrigos) e das fraternidades e corporaçóes religiosas. No início de 1548 foi ordenada a remoçáo das imagens das igrejas. Em 1549 se tornou legal o casamento de sacerdotes. Logo se deu uma grande confusáo e, como medida para avançar as reformas e assegurar a ordem, o parlamenro promulgou em 21 de janeiro de 1549 a Lei de Uniformidade, pela qual seria universal na Inglaterra o uso de um livro de oraçáo comum. Tal livro, conhecido como o Primeiro Livro de Oraçáo de Eduardo IV, foi em grande parte obra de Cranmer, baseado nas liturgias medievais da Inglaterra. Cranmer usou também um breviário romano revisado, cuja publicação se dera em

1535 pelo cardeal Fernandez de Quifiones, e o Consultatio, de tendências luceranas, que foi uma experiência de Hermann von Wied, arcebispo de Colônia, ~ublicado em 1543. O Livro de Oraçáo, de 1549, mantinha muitos pormenores do culto antigo, tais como oraçáo pelos mortos, comunháo nos sepultamentos, uncáo e exorcismo nos batizados, e unção dos enfermos, coisas que logo foram abandonadas. As vestes medievais também sobreviveram por dgum tempo. Na eucaristia, as usadas na concessáo dos elementos ao comungante implicavam que o corpo e o sangue de Cristo eram realmente recebidos. Entrementes, Sornerset estava atrapalhado com perturbaqóes políticas. Para neutralizar o crescente poder da França na Escócia ele procurou a uniáo das duas casas reais britânicas por meio do casamento do rei Eduardo com a princesa escocesa Maria Stuart, que seria "rainha dos escoceses". Para reforçar seus planos, invadiu a

Escócia e infligiu-lhe terrivel derrota em 10 de setembro de 1547, em Pinkie, com o que, no entanto, seu alvo principal foi frustrado. Os irados chefes escoceses apressaram-se em noivar Maria com o herdeiro da França, posteriormente Francisco 11, fato da maior importância para a reforma escocesa. Maria foi levada para a França e um poderoso exérciro francês ocupou a fronteira norte da Ingiaterra. A fútil campanha escocesa de Somersec também causou imensos gastos financeiros, que a naçáo mal poderia suportar em uma época de inflaçáo severa e descontentamento rural. Embora o parlamento tenha feito alguns esforços para impedir o cerco de terras comuns, uma série de levantes de camponeses convulsionaram o sul da Inglaterra em 1549. O mais sério desses ocorreu em Norfolk, sob a eficiente liderança do mercador Roberto Ket, cujas forças eventualmente foram derrotadas por Joáo Dudley, conde de Wanvick. Somerser calculara erroneamente ao deixar de ir ele mesmo ao campo de batalha, confiando a lideranca a Warwick. Os rumul~ose as revoltas de 1549 serviram para desacreditar o governo de Somerset. Tendo perdido o apoio de virtualmente todos os membros do conselho privado, o protetor foi derrubado por um golpe de estado em outubro de 1549, O líder e beneficiário último dessa conspiraçáo foi o conde de Wanvick, que em fevereiro de 1550 emergiu como sucessor de Somerset, embora ele nunca tenha assumido o título de protetor. O caráter de Warwick, que em 1551 tornou-se duque de Northumberland, permanece um mistério. Ele salvara Somerset da execução na época do golpe, no entanto, por fim tramou sua decapitaçáo ( 1 552), em parte, deve ser dito, porque Somerset procurou sempre minar o poder de seu ad~rersário.Um retrato idealizado de Somerser tem promovido uma percepçáo de Northumberland como extremamente inescrupuloso, avarento e tirano. Diferentemente de Somerset, entreranto, ele procurou exercer um governo corporativo por meio do conselho privado, e seu regime efetuou importantes reformas administrativas e financeiras. Seu protestantismo tem sido assumido como puramente político, porém ele parece ter beneficiado os reformadores mais extremos por convicçóes pessoais, assim como considerações de governo. Apoiado pelo leal rei protestante, seus três anos de goveriio testemunharam a transformação da igreja inglesa em um corpo protesrante de caráter visivelmente reformado (suíço).

O Livro de Oração, de 1549, náo era popular. A oposicáo conservadora ao livro reve papel proeminente nas rebeliões de 1549 em Devon e Cornwall. Os protestantes julgavam que ele mantinha por demais os usos romanos, uma atitude que o pró-

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prio Cranmer logo passou a parrilhar. Estas críticas eram apoiadas por um número de eminentes refugiados protestantes do continente que desde o final de 1547 eram bem-vindos na Ingiaterra: os italianos Pedro Martire Vermigli, ou Pedro Mártir (15001562), e Bernardino Ochino (1487-1564); o reformador polonês Jan Laski, ou Joáo Lasco (1499-1560); e o mais influente de todos, Martinho Bucer, de Estrasburgo, que em 1559 escreveu um livro conhecido como a Censura para mosrrar o que estava errado com o Livro de Oraçáo, de 1549. Cranmer e seus colaboradores, correspondentemente, efetuaram uma revisáo do Livro de Oraçáo, que foi republicado sob uma nova Lei de Uniformidade em abril de 1552. Nesse Segundo Livro de Ora$20, foi abolido muito mais do antigo cerimonial. As oraçóes pelos mortos foram omitidas; a mesa de comunhão substituiu o altar; na ceia, passou a ser usado o páo comum, em vez da hósria especial; foram postos de lado o exorcismo e a unção; as vestes medievais foram expressamente proibidas e apenas requerido o uso da sobrepeliz; e foi introduzida uma nova fórmula para a entrega dos elementos eucaríscicos que harmonizava com a concepçáo zuingliana da ceia. Cranmer estivera há muito ocupado na preparaçáo de artigos da religião. Em 1552 esses artigos foram submetidos, por ordem do conselho, a seis teólogos, entre os quais estava Joáo Knox. O resultado foi os Quarenta e Dois Artigos, que foram autorizados em 12 de junho de 1553 pela assinatura do jovem rei, menos de um mês anres de sua morte. Eles eram ainda mais decididamente protestantes em tom do que

o Seguildo Livro de Oração, embora fossem direcionados contra o extremismo protestante - especificamente, aiiabatismo - como também contra o catolicismo tradicional. Durante 1552, Cranmer também produziu uma revisáo abrangenre do direito canônico - a Reformatio Legum Ecclesiasticarum, mas essa obra digna de louvor não conseguiu conquistar aurorizaçáo nem do rei nem do parlamento. Entrementes, desde 1550, as vagas no episcopado eram preenchidas por reformadores sinceros, de forma que o episcopado eduardiano possuía um caráter fortemente protestante. Northumberland sabia muito bem que seu poder e sobrevivência pessoal dependiam da vida do rei e da inanutensáo de MariaTudor longe do crono. Em meados de

1553, estava evidente que o frágil Eduardo escava morrendo de tuberculose. Yorthumberland então adotou um plano desesperado, muito possivelmente a mando do próprio Eduardo, que certamente desejava manter a igreja inglesa protestante.

O testamento dc Henrique VIII, em sua forma final, deixara a coroa para Eduardo, \laria e Isabel, nesta ordem, e nomeara os herdeiros Grey de sua irmá mais nova,

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HIIIÓRIA OA IGREJA CRISTÍ

Maria, como sucessores residuais depois do fim da linha Tudor direta. Em 11 de junho de 1553 Eduardo deseidou suas meia-irmãs e estabeleceu a sucessão em Jane Grey, esposa do filho mais velho de Northumberland, Guildford Dudley, e neta de Maria, irmá de Henrique VIII. Cranmer consentiu relutantemente com esse plano táo impensado. Eduardo VI hleceu em 6 de julho de 1553.

A trama de Northumberland falhou completamente. Northumberland, em um equívoco espantoso, deixou de prender Maria, que escapou desimpedida. Mesmo as partes mais protestantes do país, como a cidade de Londres, ficaram do lado de Maria. O povo claramente preferia paz, unidade e sucessão legítima ao invés de guerra civil. Em pouco tempo, Maria estava segura no trono e Northumberland foi decapitado. Ele abjurou a seu protestantismo no patíbulo. Gardiner foi solto da prisáo, restaurado à sua sé de Winchester e tornou-se chanceler. Cranmer e os principais bispos protestantes foram levados para a prisáo. No final de 1553 o parlamento legitimou Maria ao deciarar válido o casamento da mãe dela com Henrique VIII.

A legislaçáo eclesiástica do reinado de Eduardo VI foi revogada, e o culto público foi restaurado às formas do úlrirno ano de Henrique VIII. A Lei de Supremacia de 1534, enrretanto, náo foi imediatamente revogada. Por mais odioso que fosse a Maria, ela procedeu com cautela no inicio, guiada pelo conselho de Simáo Renard, o embaixador do primo dela, o imperador Carlos V, que náo queria nenhuma a ~ á precipitada o ate que Maria estivesse a salvo, casada com seu filho Filipe, que logo seria Filipe II da Espanha. Este casamento, no qual Maria colocava seu coração mas Filipe via apenas como um dever dinástico, ocorreu em 25 de julho de 1554. O enlace foi deveras impopular pois era considerado uma ameaça de domínio estrangeiro.

A reconciliaçáo com Roma fora até aquele momento postergada, embora tenham sido destituídos os bispos e outros clérigos de tendência reformista. Entre o final de 1553 e meados de 1555, cerca de oitocentos protestantes, tanto clérigos como leigos, se refugiaram no continente, principalmente nas cidades alemãs e suíças de Emden, Frankfurt, Estrasburgo, Basiléia, Zurique e Genebra, onde foram treinados no protestantismo reformado. (Os estados luteranos se mostraram pouco hospit-aleiros a esses exilados marianos, considerando-os heréticos em suas crenças sacramentais e também temendo repercussões políticas.) Uma das mais importantes realizações dos exilados foi a produ~áoda assim chamada Bíblia de Genebra, publicada naquela cidade em abril de 1560. Essa Bíblia inovadora, com seu tempero calvinisca, tornouse a Bíblia mais largamente utilizada durante o reinado de Isabel, sem rival até a

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publicação da Versáo Autorizada em 16 1 1. Enquanto a Reforma inglesa assim se preservava pela fuga, a restauração mariana do catolicismo procedia vagarosamente na Inglaterra, retardada em parte devido ao receio muito disseminado de que as propriedades eclesiásticas confiscadas seriam tomadas de seus possuidores atuais. Sob a garantia de que essa não seria a política papal, o cardeal Reginaldo Pole (3500-1558), primo de Henrique VIII, foi admitido na Inglaterra como representanre papal. O parlamento votou a resrauracáo da autoridade papal e, em 30 de novembro de 1554, Pole absolveu a naçáo de heresia e restaurou-a à obediência romana. O parlamento então passou a renovar as velhas leis contra a heresia e a abolir a legislacáo eclesiástica de Henrique VIII, assim restaurando a igreja à posição em que estava em 1529, salvo no referente às suas e ~ - ~ r o p r i e d a des, que a lei confirmou a seus aruais possuidores. Uma severa perseguição começou repentinamente. A primeira vítima foi Joáo Rogers, tradutor da Bíblia, queimado em Londres em 4 de fevereiro de 1555. A atitude do povo, que o aclamou quando ia para a fogueira, foi de mau presságio para essa política. Não obstante, antes do fim do ano, mais setenta e cinco pessoas tinham morrido na fogueira em vários lugares da Inglarerra. Dentre elas as mais notáveis foram os ex-bispos Hugo Latirner de Worcesrer e Nicolau Ridley de Londres, cuja heróica atitude no dia da morte - 16 de outubro - em Oxford causou profunda impressão. Outra vítima importante naquele ano foi Joáo Hooper, ex-bispo de Gloucester e Worcester. Hooper era um homem cujos princípios resolutamente zuinglianos ou "suíçost' assinalaram-no como protótipo dos puritanos posteriores. Maria e Gardiner estavam especialmente determinados a atacar o maior do clero protestante, o arcebispo Cranmer. Embora homem de consciência e princípio, Cranmer náo era do mesmo conteúdo heróico do qual eram constituídos Latirncr, Ridley, Hooper e Rogers. Em 25 de novembro de 1555 ele foi formalmente excomungado por sentença em Roma e pouco tempo depois Pole foi feito arcebispo de Cantuária em seu lugar. Cranmer agora se encontrava anre um dilema intolerável. Ele defendera sinceramente, desde sua nomeação por Henrique VIII, que o rei era a suprema autoridade da igreja da Inglaterra. Seu protestantismo era verdadeiro, mas a nova soberana era católica romana. Naquela hora de angústia ele se submeteu e declarou que reconhecia a autoridade papal conforme estabelecida peja lei. Maria não pensava em poupar o homem que declarara sua máe adúltera e ela própria bastarda. Cranmer tinha que morrer. Mas esperava-se que por uma abjuraçáo pública do pro-

testantismo antes de morrer ele desacreditaria a Reforma. Tal esperanga quase se concretizou. Cranmer assinou nova retrataçáo, negando por inteiro o protestantismo. Mas no dia de sua execução em Oxford, 21 de março de 1556, ele recobrou coragem. Repudiou totalmente suas retrataçóes, deciarou sua fé protestante e manteve sua máo ofensiva, que assinara as submissões que agora renunciava, nas chamas até se consumir. Filipe deixara a Inglaterra em setembro de 1555. Sua ausência, conjugada com a circunsdncia de Maria não ter filhos, influiu de tal modo em sua mente que ela passou a pensar que náo fizera o bastante para satisfazer o juízo de Deus. Daí as

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perseguiçóes persistirem sem minimizar até sua morte, em 1558. No total, foram queimadas perto de trezentas pessoas, muitas delas oriundas do sudeste da Inglaterra

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e a grande maioria pertencente às classes trabalhadoras. Enrre elas estavam mais de

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cinqüenta mulheres e uma grande proporgáo de jovens. Comparado com o tributo dos sofredores nos Paíscs Baixos, o número total de mártires marianos foi pequeno, embora a história inglesa não apresentasse nenhum precedente para mortes na fogueira em tal amplitude e o sentimento inglês ficou profundamente revoltado. Esses martírios - rapidamente celebrados no imensamente popular Atos e Monumentos

(1563) de Joáo Foxe (15 16-1587) - provavelmente fizeram mais pela expansáo do sentimento anti-romano do que todos os esforços governamentais anteriores, e revelam que a Reforma havia lançado raízes muico mais profundas entre o povo comum do que frequentemente se pensa. Ademais, o processo de mudança teológica e litúrgica iniciado na década de 1530 sob Croinweil e Cranmer, conduzindo a consolidagáo do protestantismo sob Eduardo VI, provou ser irreversível. Maria náo podia retroceder a roda da história, e suas políticas pareciam cada vez mais anacrônicas. O último ano de sua vida tambtm assistiu à entrega de Calais aos franceses, a última possessáo inglesa no continente, e um potente símbolo da grandeza nacional passada. Quando Maria faleceu, em 17 de novembro dc 1558, poucas horas antes do cardeal Pole, seu reinado estava desacreditado e não houve crise alguma na ascensão de Isabel ao trono. Isabel 1 (1 558-1603) foi por muiro tempo percebida como ilegítima, embora seu lugar na sucessáo fora assegurado pelo parlamento ainda quando Henrique VIII vivia. Ela se tornou protestante necessariamente, tanto por nascimento e educaçáo como pelas negagóes romanas do casamento de sua mãe. Porém, durante o reinado de Maria, quando sua vida correu perigo, ela se conformou ao ritual romano. Con-

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quanto ela renha mantido em segredo suas convicçóes religiosas mais ínrimas e certamente náo fosse favorável ao extremismo protestante, desde o início ela dernonscrou preferência por uma resoluçáo não católica da questão religiosa. Sua ascensão ao trono teve o apoio de Filipe I1 da Espanha, que logo se tornaria o seu mais acerbo inimigo. Por mais carólico que fosse, Filipe era bastante político para náo desejar ver a França, a Inglaterra e a Escóciasob o governo de um só par real, e se Isabel náo fosse a rainha da Inglaterra, entáo Maria, "rainha dos escoceses" e esposa do príncipe que

em 1559 se tornaria o rei Francisco I1 da Franca, ascenderia por direito ao trono inglês. Em suas primeiras medidas após subir ao trono, Isabel desfrutou, também, do auxílio de um dos mais cautos e lúcidos estadistas que a Inglaterra jamais produziu, Guilherme Ceci1 (1520-1598), mais conhecido como Lorde Burghley, a quem ela imediatamente nomeou como secretário particular e que seria seu

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selheiro até cquando ele morreu. Outra grande vantagem de Isabel é que eIa se sentia totalmelite ingiesa e se identificava profundamente com as ambiçóes politicas e ccoii6micas da naçáo. Essa qualidade representativa levou muitos - os quais a teriam combatido se considerassem apenas as posturas religiosas - a se reconciliarem com seu governo. Ninguém duvidava de que ela colocava a Inglaterra em primeiro lugar. Isabel agiu cautelosamente com suas mudanças, de forma a satisfazer os ativistas protestanres na Câmara dos Comuns, os quais, conforme se mostrou mais tarde, forçavam a rainha a se mover mais rapidamente do que ela pretendia. Em 29 de abril de 1559 o parlamento aprovou nova Lei de Supremacia, mas sob forte oposição dos bispos rnarianos na Câmara dos Lordes. Por essa lei eram rechaçados a autoridade do papa e todos os pagamentos e apelos a ele. Porém, foi feita uma m u d a n ~ ade título significativa por insistência da própria Isabel. Em lugar do antigo "Suprema Cabeça", cão desagradável aos católicos c muito pouco aceitável aos protestantes militantes, ela seria agora designada "Governadora Suprema" da igreja na Inglaterra

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pressão muito menos censurável mas que, na prática, significava a mesma coisa. Os testes para a heresia seriam agora as Escrituras, os quatro primeiros concíiios gerais e as decisões do parlamento. Enquanto isso, uma comissão estivera revisando o Segundo Livro de Oração de Eduardo VI. Conquanto a própria rainha pareça ter defendido o Primeiro Livro de Oraqáo de 1549, ela náo teve opçáo senáo aceirar uma versão modificada do Livro de Oraçáo de 1532, que tinha sido santificado pelos mártires nas fogueiras. As modificações introduzidas conformavam-se ao gosto conservador tia rainha e ranibém ajudavam a tornar o riovo ot'ício rriais aceitável aos católicos

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Rl816Rl~DA IGREJA CRISTA

moderados. A oração contra o papa desapareceu, o mesmo acontecendo à deciaraçáo de que a genuflexáo na ceia náo implicava em adoraçáo (uma declaração, conhecida como "Rubrica Negran, que fora adicionada ao Livro de Oraçiio de 1552 por insistência de Joáo Knox). A questão da presença física de Cristo no sacramento foi propositadamente deixada indefinida pela simples combinação das fórmulas de entrega dos elementos nos dois livi-os de Eduardo.

A Lei de Supremacia foi seguida imediatamente pela Lei de Uniformidade, que ordenava que todo o culto depois de 24 de junho de 1559 fosse prestado de acordo com a nova liturgia, e estabelecia que os ornamentos da igreja e as vestes dos seus ministros seriam aqueles do segundo ano de Eduardo VI. Essa "Rubrica dos Ornamentos", que assim preservava as vestes tradicionais, provocou a vigorosa oposição dos exilados marianos, que enráo retomaram 5 Inglaterra e den~reos quais os principais bispos isabelinos eram recrutados. Esta assim chamada Controvérsia das Vestes demonstra que o puritanismo, definido arnplamenre como o esforço para purificar a elemento nas origens da igreja igreja e sua liturgia de "papismo", foi um angiicana. Todos os bispos da época de Maria, exceto dois, recusaram-se a fazer esse jurarnenIo de supremacia. Enrre o baixo clero, no entanto, foi pequena a resistência, não chegando a duzentos o número dos que se rebelaram. Novos bispos deviam ser nomeados, e ~MateiisParker (1504-I575), ex-capeláo da máe de Isabel, foi eleito arcebispo de Cantuária, conforme o desejo de Isabel. Parker, como Cranmer, era erudito e reservado; como alguém que não se havia exilado, ele era também um protestante de idéias moderadas. Sua sagra~áoapresentou dificuldades, uma vez que os bispos marianos se recusaram a participar, mas na Inglaterra havia os que tinham sido ordenados ao ofício episcopal na época de Henrique VI11 e Eduardo VI. Parker foi consagrado em 17 de dezembro de 1559 por alguns deles - Guilherme Barlow, João Scory, Miles Coverdale e Joáo Hodgkin. Assim inaugurado, logo ficou estabelecido um novo episcopado anglicano. Foi intencionalmente postergada uma definição do credo, além da implícita no Livro de Oracáo. Em 1563, porém, os Quarenta e Dois Artigos de 1553 foram em parte revisados e agora, como osTrinta e Nove Artigos, se tornaram a deciaraçáo de fé da igreja da Inglaterra. E assim, por volta de 1563, a resoluçáo isabelina estava completa. Mas também estaara ameaçada por dois lados: Ruma, rendo o papa excomungado Isabel em 1570 e urgido seus súditos a deporem-na; e, com potencial ainda mais explosivo,

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reformadores mais diligentes que desejavam ir mais longe e que logo foram denominados puritanos. Uma característica notável da Reforma inglesa é que ela náo produziu nenhum destacado líder religioso - nenhum Lutero, Zuínglio, Calvino ou Knox. Nem tarnpouco, antes d o começo d o reinado de Isabel, manifestou qualquer despertamento espiritual considerável entre o povo em todos os níveis da sociedade. Viria um grande reavivamento da vida religiosa da Inglaterra, cuja história inicial coincidiria com o reinado de Isabel, mas que nada deveria diretamente à. rainha.

Capítulo 1 0

A Reforma Escocesa No inicio d o século dezesseis a Escócia era um país pobre e atrasado. Suas condiçóes sociais eram feudais. Seus reis tinham pouco poder. Sua nobreza era turbulenta. Sua igreja era relativamente rica em terras, possuindo cerca da metade do pais, mas as posiçóes eclesiásricas eram utilizadas em grande parre para a coloca~áodos filhos mais moços das casas nobres e, assim, muito das propriedades eclesiásticas estava nas máos dos nobres leigos. A fraca monarquia normalmente se apoiava na igreja contra a nobreza laica. As universidades fundadas no século quinze em St. André, Glasgow e Abecdeen eram muito fracas, quando comparadas com os centros culturais do continente. Os estabelecimentos monásticos no gerd escavam em declínio, e as igrejas paroquiais estavam sujeitas a uma negligência escandalosa, com quadros com pouca formaçáo e vigários muito mal pagos. Era desejada por quase todo mundo uma reforma de tipo disciplinar, nas "maneiras e moralidade". Quando a Reforma se estabeleceu na Escócia em 1560, houve uma preocupação em primeiro lugar com a reestruturaçáo completa da política eclesiástica; as questóes teológicas e litúrgicas receberam atençáo secundária.

O motivo determinante de muito da história política da Escócia nessa época era o temor do domínio ou anexação peia Inglaterra, o que a levou a vincular seu destino ao da França. Três derrotas dolorosas inflingidas pela Inglaterra - Flodden (15133, 5olway Moss (1542) e Pinkie (1547) - aumentaram esse sentimento de antagonismo,

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UISTÓRIA DR IGREJA ERISII

mas também demonstraram que mesmo a superioridade militar inglesa náo podia conquistar a Escócia. Por outro lado, a Escócia aliada à França era um grande perigo para a Inglaterra, perigo que se tornou mais sério ainda quando esta rompeu com o papado. Por isso tanto a Inglaterra como a França procuravam formar dentro da Escócia partidos e facGóesa elas favoráveis. A poderosa família dos Douglas pendia totalmente para a Inglaterra, enquanto a dos Hamilton inclinava-se para a França. Este país também tinha fortes partidários no arcebispoTiago Beaton 0 - 1 539), de St. André, o primaz da Escócia, e em seu sobrinho, o cardeal Davi Beaton (1494?-

1546), seu sucessor na mesma sé. Ainda que o rei Tiago V (reinou de 15 13-1 542) fosse sobrinho de Hcnrique ViII, e seu nero Tiago VI se tornasse Tiago 1 da Inglaterra em 1603 e unisse as duas coroas após a morte de Isabel, Tiago V lançou sua sorte com a França, casando-se sucessivamente com uma filha de F~anciscoI e, depois que ela morreu, com Maria de Lorena, da poderosa família católica francesa dos Guise. Deste último consórcio, táo importante na história do país, nasceu Maria, "rainha dos escoceses" ( 1 542-1 587).

Não demorou muito após o início da Reforma e já havia manifestações protestantes entre os escoceses. Parrício Hamilton (1 504?-1528),que visitara Witcenberg e estudara em Marturgo, pregara a doutrina Iuterana e foi queimado em 29 de fevereiro de 1528. A causa progrediu lentamente. Houve outras execuções em 1534 e 1540. Porém, em 1543 o parlamento escocês autorizou a leitura e tradução da Bíblia. Foi apenas uma fase efêmera devida à influência inglesa, pois em 1544 o cardeal Beato11 e o partido francês estavam fazendo forte repressáo. O principal dentre os pregadores desse tempo foi Jorge Wishart (15 13?-1546),queimado por ordem do cardeal Beaton em 2 de março de 1546. Logo depois, em 29 de maio, o próprio Beaton foi brutalmente assassinado, em parte por vinganca pela morte de Wishart e em parte por hostilidade à sua política francesa. Os assassinos se apossaram do castelo de Beaton em St. André, e ali reuniram seus simpatizantes. Em 1547 um perseguido pregador protestante, ao que parece convertido por Wishart e certamente seu amigo, e de nenhuma anterior notoriedade, refugiou-se junto a eles e se tornou seu mestre espiritual. Era João Knox, que viria a ser o herói da reforma escocesa. Nascido em Haddington ou seus arredores, entre 1505 e 15 15, o início da carreira de Knox foi obscura. Ele fora ordenado ao sacerdíicio, mas quando Wishart foi preso ele estava com o mártir e preparado para defendê-lo. As forças francesas enviadas para dominar os rebeldes no castelo de St. AndrC forçaram sua rendiCáo. Knox

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foi levado para a Franqa e durante dezenove meses sofreu o destino cruel de um escravo de galé. Solto por fim, dirigiu-se para a Inglaterra em 1549, entáo sob governo protestante em nome de Eduardo VI. Ali tornou-se um dos capeláes reais e em 1552 rejeicou o bispado de Rochester. A subida de Maria Tudor ao trono o obrigou a fugir em 1554. Porém, os refugiados ingleses aos quais primeiramente se juntou em Frankfurt se dividiram por causa de suas críticas ao Livro de Oração de Eduardo, e ele entáo foi para Genebra. Lá se tornou ardente discípulo de Calvino e trabalhou na versáo genebrina da Bíblia em inglês, que mais tarde seria tão querida pelos puritanos ingleses. Foi durante esse período de exílio que h o x desenvolveu suas idéias revolucionárias sobre o direico de o povo comum pegar em armas contra governantes idólatras, ímpios - idéias das quais Calvino náo compartilhava. Entrementes, a Escócia se afastara mais do que nunca da Inglaterra por causa da derrota em Pinkie, em 1547. Maria, "rainha dos escoceses", fora prometida ao herdeiro do trono francês e enviada à Franca em 1548, para ficar em segurança. Sua mãe, Maria de Lorena, da família dos Guise, se tornou regente da Escócia em 1554. Para g a n d e parte dos nobres e do povo da Escócia a dependência à Franfa era táo odiosa quanto a submissáo à Inglaterra. Protestantismo e independência nacional pareciam estar unidos, e nessa dupla luta Knox seria o líder. Em 1555 ele se atreveu a voltar ao seu país e lá pregou durante seis meses. A situação, porém, ainda náo estava madura para a revolta e Knox retornou a Genebra para pastorear a igreja de refugiados de fala inglesa. Ele plantara, no enrailto, semente frutífera. Em 3 de dezembro de 1557 alguns nobres protestantes e antifranceses na Escócia fizeram um pacto para "estabeiecer a mui bendita Palavra de Deus e sua congregaçáo". Mais combustível foi posto nessa dissidência com o casamento de Maria Stuart com o herdeiro da França em 24 de abril de 1558. A Escócia agora parecia prodncia da França, pois se desse consórcio nascesse um filho, ele seria governante de ambos os países. E a ligaCáocom a França ficou mais assegurada por um acordo assinado por Maria, na ocasiáo mantido secreto, de que se ela morresse sem herdeiros a Escócia passaria para a França. Antes do final de 1558 Isabel era a rainha da Inglaterra, e Maria, "rainha dos escoceses", a denunciou como usurpadora ilegítima e se proclamou ocupante por direito, do trono ingiês. Nestas circunsrâncias, os defensores da independência escocesa e do protestantismo aumentaram rapidamente e foram formando um partido. AIém disso, seria possível contar com o auxílio de Isabel mesmo que ele significasse apenas segurança para

a soberana inglesa. f i o x compreendeu que chegara a hora e em 2 de maio escava novamente na Escócia. Nove dias depois pregou em Perth. A turba destruiu os estabelecimentos monásticos da pequena cidade. Naturalmente a regente considerou isso ato de franca rebeldia. Ela tinha ao seu dispor tropas francesas, e os dois lados logo se prepararam para a luta. Suas forças eram equilibradas e o resultado ficou indeciso. Para desgosto de Knox, em vários lugares da Escócia igrejas foram destruídas e propriedades monás~icassaqueadas. Em 10 de julho de 1559 morreu Henrique I1 da França e o esposo de Maria, Francisco 11, o substituiu no trono. Reforços franceses foram logo enviados à regente na Escócia. As coisas pioraram muito para os reformadores. Por fim, em janeiro de 1560, chegou auxílio da Inglaterra. Em 11 de junho de 1560 a regente morreu e sua causa pereceu com ela. Em 6 de julho foi assinado um tratado entre a França e a Inglaterra pelo qual os soldados franceses seriam retirados da Escócia e seus parrícios excluídos de todos os postos importantes no governo escocês. A revolução triunfara com o apoio inglês, mas sem comprometer a independência da Escócia, e Knox fora seu inspirador.

O partido vitorioso levou seu triunfo ao parlamento escocês. Em 17 de agosto de 1560 foi adotado como credo do reino uma confissão de fé calvinista, em sua maior parte preparada por Knox. Uma semana mais tarde o mesmo parlamento aboliu a jurisdição papal e proibiu a missa, sob pena de morte na terceira reincidência. Ainda que o rei e a rainha, na França, hajam negado sua aprovaçáo, a maioria da naqáo se pronunciara. Knox e seus companheiros passaram então a completar sua obra. Em dezembro de 1560 se realizou uma reuniáo tida como a primeira "Assembléia Geral" escocesa. Em janeiro seguinte foi apresentado ao parlamento o Primeiro Livro de Disciplina. Era um notável documento que procurava aplicar o sistema elaborado por Calvino a todo um reino, ainda que se estivesse longe de um sistema "presbiteriano" completamente desenvolvido. Em cada paróquia haveria um ministro e anciãos exercendo suas hnçóes com o consenrimenro da congregaçáo. Ministro e anciãos formavam a junta disciplinar - mais tarde chamada "sessão" - com poder de excomunháo. Nas cidades maiores haveria reunióes para discussáo e dessas discussóes sairiam os "presbitérios"; sobre grupos de ministros e congregações haveria sínodos e acima de tudo estaria a "Assembléia Geral". As necessidades da época e o estado incipiente da igreja levaram a criação de duas novas instituiçóes: "leitores", em lugares onde não houvesse ministros ou fosse deveras grande o trabalho; e "superintendenres", sem autorida-

PER~OIO VI

A REFORMA

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de espiritual mas com poderes administrativos para supervisionar a organização de paróquias e recomendar candidatos ao ministério. Além desses traços eclesiásticos, o

Livro apresentava apreciáveis esquemas para a educação nacional e atendimento aos pobres. Knox queria que a igreja, a educacáo e os pobres fossem mantidos pelas propriedades da amiga igreja. Nisso, no entanto, o

Livro encontrou resistência por

parte do parlamento, que náo adotou essas propostas financeiras, ainda que muitos dos seus membros as tenham aprovado. Aos poucos a constitui~áoeclesiástica entrou em vigor, mas os nobres se apossaram de tal forma das cerras eclesiásticas que a igreja se tornou uma das mais pobres da cristandade. Porém, essa relativa pobreza deu-lhe um caráter democrático, o que a faria baluarte do povo contra os abusos dos nobres e da coroa. Todas as práticas sem apoio na Escritura foram eliminadas. O domingo foi o único dia santo que permaneceu. Knox preparou o

Livro de Ordem Comum para a

direção do culto público, por vezes chamado "Liturgia de Knox", o qual foi aprovado em 1564 pela Assembléia Geral. Ele estava em grande parte baseado naquele da congregaçáo inglesa de Genebra, que por suavez, estava calcado no modelo de Calvino. Ele permitia, entretanto, ainda mais o uso de orações espontâneas, sendo as fórmulas dadas tidas como modelos cujo emprego exato não era obrigatório, embora a ordem geral e o conteúdo do serviço estivessem bem definidos. Em breve Knox se viu compelido a defender o que ganhara. O rei Francisco I1 da França faleceu em 5 de dezembro de 1560, e em agosto seguinte Maria voltou para a Escócia. Sua situação de jovem viúva despertava simpatias, que eram aumentadas pelo seu g a n d e charme pessoal. Ela náo era mais rainha da França e os que haviam apoiado o protestantismo não por questóes religiosas mas pela aspiraçáo de independência nacional, bem poderiam pensar que o grave perigo da dominação francesa, que os levara a aceitar a revoluçáo religiosa, havia passado. No início Maria portouse com grande prudência. Mesmo náo fazendo segredo de sua fé - ela mandava realizar a missa em sua capela, para a furiosa desaprovaçáo de Knox, então ministro de São Giles em Edimburgo e admirado

residentes daquela cidade - ela não inter-

feriu no acordo religioso estabelecido em 1560. Maria empenhou-se em assegurar seu reconhecimento como herdeira de Isabel ao trono inglês, coisa que esta náo pensava em conceder. Maria contou com os sábios conselhos de seu meio irmáo, Tiago Scuart (153 1?-1570),que viria a ser conde de Moray, e que fora um dos líderes dos "Lordes da Congregaçáo". Ela procurou, com entrevistas pessoais habilidosas,

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IIISTÓAIA DA IGREJA

CRISTX

ganhar Knox. Este, porém, se negou a qualquer acerto e permaneceu a alma do partido protestante. Não obstante, as perspectivas se tornaram sombrias para ele. Maria ganhava amigos. Os nobres protestantes estavam divididos. A missa era cada vez mais utilizada. Knox tinha boas razóes para temer que Maria entregasse a Escócia a um rei católico, consorciando-se com algum importante príncipe estrangeiro. Foi seriamente discutido um casamento com o filho de Filipe II da Espanha. A n d a mais alarmante para a causa protestante na Escócia e na Inglaterra foi o casamento de Maria, em 29 de julho de 1565, com seu primo Henrique Stuarr, Lorde Darnley (1545-i567), por quem ela se apaixonara. A reivindicação de Darnley ao trono inglês era semelhante a da própria Maria. Ele era popular entre os ingleses católicos, e ainda que houvesse passado por protestante na Inglaterra, agora se confessava catóiico. O casamento aumentou o perigo para Isabel dentro de sua párria e fortaleceu o partido católico na Escócia. Moray, que se opusera ao consórcio, foi expulso da corte e logo exilado, enquanto Maria ia submetendo, um a um, os senhores protestantes que simpatizavam com ele. Assim Maria perdeu seu conselheiro mais sábio. Até aqui Maria agira com muita astúcia, mas entáo o protestantismo escocês foi salvo pelos erros e falta de auro-controle dela mesma. Darnley era desagrável e depravado. Mudaram os sentimentos de Maria para com ele. Por outro lado, os ciúmes dele foram despertados

elos favores que Maria dispensava a Davi Riccio, italiano

que ela empregara como secretário estrangeiro e a quem os senhores protestantes consideravam inimigo. Daí, então, Darnley e alguns nobres protestantes fizeram uma trama e a 9 de marco de 1566 arrastaram Riccio da presenca de Maria e o assassinaram no palácio de Holyrood. Maria se portou com grande astúcia. Dissimulando sua fúria, conseguiu com Darnley os nomes de seus cúmplices na trama e exilou os que praticaram o assassinato. Já aos demais participantes na trama, acolheu-os novamente. Obviamente, eles sabiam que ali estavam devido a tolerância dela. Em 19 de junho de 1566 nasceu o filho de Maria e Darnley, o futuro Tiago VI da Escócia e Tiago I da Inglaterra. Maria jamais parecera tão segura do trono escocês como agora. Na verdade, Maria nunca perdoara seu marido, e agora voltava-se para um nobre protestante, Tiago Hepburn, conde de BothweIl (1536?-1578). Borhwell era rude e licencioso, mas valente, leal e guerreiro; suas qualidades contrastavam com as do fraco esposo de Maria. Ele começou a tramar para tirar Maria de Darnley. Ainda hoje se discute qual participação teve a própria Maria em toda essa trama. Darnley, que convalescia de varíola, foi levado por ela de Glasgow para uma casa nas proximidades de Edimburgo, onde Maria ficou com ele durante parte de sua última tarde.

~t~ionnui

A REFORMA

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Na madrugada de 10 de fevereiro de 1567 a casa foi pelos ares, e o corpo de Darnley foi encontrado nos escombros. A opiniáo pública acusou Bothwell do assassinato, e era crença generalizada que Maria também teria participado. Em todo caso, ela curnulou de honras a Rothwell e ele foi absolvido por uma farsa processual. Em

24 de abril Bothwell encontrou Maria numa de suas viagens e fê-la prisioneira utiIizaildo a forqa - com a coriiv6ncia dela mesma, coriforttie geralrner-lte se dizia. Ele era casado, mas sua esposa se divorciou dele em 3 de maio, acusando-o de adultério. No dia 15 desse mesmo mês ele casou-se com Maria, segundo o rito protestante. Táo vergonhosas tramas provocaram generalizada hostilidade na Escócia e tiraram de Maria, sob aquelas circunstâncias, a simpatia dos carólicos na Inglaterra e no continente. Na Escócia, protestantes e car6licos juntaram suas forças contra ela. Em

24 de julho de 1567 foi obrigada a abdicar em favor de seu filho de apenas um ano de idade e nomear Moray como regente, e ficou presa no castelo de Lochleven. Em 29 de julho João Knox pregou o sermão na coroaqáo de Tiago VI. Cotn a queda de Maria, rriunfou o protestanrismo, que foi entáo definitivamente estabelecido pelo parlamen~oem dezembro. Maria escapou de Lochleven em maio de i 568, mas Muray derrotou os partidários dela, e ela entáo fugiu para a Inglaterra, onde seria o centro das intrigas católicas até sua execuçáo par conspirar contra a vida de Isabel, em fevereiro de 1587. A ardente carreira de Knox chegava ao fim. Morreu a 24 de novembro de 1572, tendo influenciado não apenas a religiáo mas o próprio cará~erda naçáo, mais do que qualquer outra pessoa na história escocesa. A obra de Knox foi continuada por André Melville (1 545- 16231, que lecionara em Genebra como colega de Beza desde

1568 atd seu regresso à Escócia em 1574. Ele foi o reformador educacional das universidades de Glasgo~ve Sr. André. Mas ainda mais se d i s r i i ~ ~ ucomo i u aperfeiçoador do sistema presbiteriano na Escócia e seu vigoroso deferisor contra os abusos episcopais e reais deTiago VI. Este o obrigou a passar no exílio os dezesseis últimos anos de sua vida.

Capitulo 1 I

,A Reforma Católica e a Contra-Reforma Em meados do século dezesseis o crescimento sólido do protestantismo, muitas 7-ezes espetacular, suscitara uma reacáo poderosa da igreja romana. Começando com Paulo III ( 1 534- 1549), os papas direcionaram esforços de roda a igreja para represar a revolta protestante, corrigir os abusos eclesiásticos mais gritantes, codificar o ensi-

í9a

UISTÓRIA

DA IGREJA CRI SI^

no eclesiástico normativo contra os hereges e cismáricos protestantes, e recuperar territórios perdidos. Essa reaçáo defensiva à ameaqa protestante é adequadamente chamada Contra-Reforma; contudo, essa denominação náo é de forma alguma adequada a [odos os fatos e, tomada isoladamente, conduz a um retrato histórico parcial. Pois ao lado dessa resposta negativa ao protestantismo pode-se observar movimentos espontâneos de reforma católica que ou antecederam a Reforma protestante ou se originaram independentemente dela. Esses movimentos, no

estáo em

continuidade com os esforqos do fim do período medieval que buscavam renovaçáo religiosa pessoal e reforma institucional, conforme evidenciado em fenômenos como a Devotio modernd, concil~arismo,humanismo cristão, pregaçáo penitencial, programas de reforma monástica oriundos dos meios observantes e a fundaçáo de fraternidades relrgiosas. Sob essa luz, pode-se falar com razáo de uma Reforma Católlca autóctone do século dezesseis, cenrrada na esperança de alcançar uma reforma completa "na cabeça e membros". Com toda probabilidade, entretanto, essas correntes de re~iovaçáo espiritud náo reriam conseguido o apoio ativo de papas e prelados - não teria sido "institucionalizada", por assim dizer - náo fosse o profundo choque provocado em toda a igreja pela Reforma prorestante. Ademais, a necessidade urgente de conter e contra-atacar o protesrancismo delineou em grande parte o curso no qual transcorreriam essas correntes. Portanto, Reforma e Contra-Reforma católicas estiveram intimamente unidas. Os dois centros princrpais dos quais o reavivamento católlco se irradiou foram Espanha e Itália, embora a renovaçáo espiritual em ambos os países tenha tido grande dívida para com tradiçóes de espiritualidade mais antigas nos Países Baixos e na Alemanha.

Já foi observado (ver V16) que uma geração antes do rompimento de Lutero com Roma, a Espanha estava testemunhando um vigoroso esforço por reforma liderado pela rainha Isabel e pelo cardeal Francisco Jiménez de Cisneros. Tal esforço combinava zelo por um clero paroquial melhor treinado e maior nível moral, reforma dos mosteiros de acordo com as linhas dos observantes e estudos bíblicos baseados nos princípios do humanismo cristão, com dedicaçáo inabalável à ortodoxia tradicional e repressáo da heresia pela Inquisicáo espanhola. A vida espiritual renovada da Espanha também se expressaria em um grande florescimento de misticismo quietisra, envolvendo novas técnicas de oração meditativa; em uma teologia escolástica

\

~ r s l o ivii

1 REFORMA

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renovada, envolvendo um reavivamento do tomismo; e não menos na fundação da mais influente das novas ordens religiosas, a Sociedade de Jesus - desenvolvimentos que seráo vistos mais tarde neste capítulo. Esse "despertamento espanhoP foi de grande importância para a Reforma católica e a Contra-Reforma. Não obstante, o catolicismo rejuvenescido também foi muito influenciado por fontes italianas autóctones de reavivamento religioso. Durante os últimos anos do século quinze e o primeiro quartel do dezesseis, foram estabelecidas na Itália muitas fraternidades religiosas ou "oratórios". Estas associaçóes meio-leigas, meio-clericais, eram dedicadas ao cultivo de uma intensa piedade pessoal e a realizaçáo de obras de caridade, especialmente o cuidado dos orfáos e dos incuráveis (pessoas sofrendo com a nova doença, sífilis). A mais famosa destas associações, de caráter predominantemente leigo, foi o Oratório do Amor Divino, fundado em Gênova em 1497 por Ettore Vernazza, um discípulo e biógrafo de Santa Catarina de Gênova (ver V: 15). Em algum momento entre 15 14 e 15 17, Vernazza estabeleceu uma filial do oratório em Roma. Seus líderes incluíam Caetano de Thiene (1480-1547), sacerdote dedicado e oficial da cúria, posteriormente canonizado (como São Caetano); e Joáo Pedro Caraffa (1476-1559), bispo de Chieti, diplomata papal e posceriormence papa Paulo IV (1555-1 559). Em 1524 Caetano e Caraffa e dois outros membros do oratório romano fundaram a assim chamada Ordem Tiatina em Roma, para a qual Caraffa escreveu uma regra em 1526. Essa era uma ordem de "clérigos regularesn, de sacerdotes, isto é, que professavam os votos monásticos, viviam em comunidade sob um superior e buscavam aperfeiçoar suas próprias vocacóes sacerdotais e elevar o padrão de vida clerical em geral. O nume oficial deles era "Clérigos Regulares da Providência Divina", mas eram popularmente conhecidos como "Tiatinos", segundo o bispado de Caraffa em Chieti (= Theate, em latim). Todos os primeiros membros da ordem doaram suas propriedades e abdicaram de seus benefícios. Sua pobreza, estrito ascetismo e obras de caridade para os doentes e destituídos Ihes conquistaram grande respeito popular. Sua influência como a sementeira da reforma católica foi muito desproporcional em relação ao seu reduzido número. Muitos dos primeiros líderes do reavivamento católico na Irália tinham íntima ligaçáo com os oratorianos e os tiatinos. Isso foi marcadamente verdadeiro em relacão ao senador e embaixador veneziano, Gaspar Contarini (1483-1542), que de 1530 a 1535 foi membro de um grupo reformador zeloso em Veneza que incluía Caraffa

(após o saque de Roma em 1527 os tiatinos mudaram paraveneza); Gregório Cortese (m. 1548), o abade do mosceiro beneditino de São Jorge Maior; e o inglês Reginaldo Pole (1500-1558), erudito humanista e primo de Henrique VIII. Já em 1516, Contarini escrevera um tratado sobre o ofício episcopal (De oficio episcopi), que apontava o caminho para a renovação espiritual do episcopado - uma das necessidades mais urgentes do dia e subseqüentemente a base da Reforma católica. O ideal de Contarini corporificou-se em Joáo Mateus Giberti (1495-1543), o bispo reformador de Verona de 1524 até sua morre, que também era um dedicado defensor dos tiatinos.

A partir de 1527, quando ele passou a residir em sua sé após catorze anos de serviço exemplar na Cúria, Giberti exerceu a mais íntima supervisáo de seus clérigos para assegurar que eles cuidariam fielmente das almas. Suas ordenancas serviram como padrão para muito da Legisla~áodisciplinar do concílio de Trento, e seu exemplo inspirou o famosíssimo bispo pastoral da igreja pós-tridentina, Sáo Carlos Borromeo (1538-1584), arcebispo cardeal de Miláo a partir de 1560. Ainda outro reformador episcopal com ligaçóes com os tiatinos, que ele mesmo pode ter sido membro do oratório romano, foi Jacó Sadoleto (1477-1547), o erudito bispo de Carpcncras que renrou rrazer os genebrinos de volra para o aprisco carólico romano e a quem Calvino endereçou sua famosa Réplica (ver VI:8). Outras duas ordens de clérigos regulares foram estabelecidas na Itália por volta da mesma época que os tiatinos: os "Clérigos Regulares de Sáo Paulo", fundada em Miláo em 1533 por Santo Antônio Maria Zaccaria (m. 1539) e dois colaboradores, e conhecida popularmente como os barnabitas, pois possuíam a igreja de São Barnabé em Milão; e a ordem dos somasquis, fundada em 1532 em Somasca no norte da IsáIia por Sáo Girolamo Aemiliani (m. 1537). Os barnabitas e os somasquis, como os tiatinos, estavam movidos por motivos de sancificaçáo pessoal, reforma do oficio

sacerdotal e caridade ativa aos pobres e aflitos, especialmente as vítimas miseráveis das guerras no norte da Itália. As associações religiosas de mulheres também desempenharam um papel importante no reavivamenro católico. A principal destas foi um grupo de mulheres solteiras e algumas viúvas que se reuniam em Bréscia em 1535 sob a direçáo de Santa Ângela Merici (14742-1 540). Essas "Ursulinas", assim chamadas por causa de sua dedicaçáo à lendária Santa Úrsula, viviam em suas próprias casas e cultuavain em suas próprias igrejas paroquiais, mas comprometiam-se a liderar uma vida de abnegaçáo em obediência aos superiores e em arividades de caridade, sobretudo a educa-

v ~ i i n o ovi

A REFORMA

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çáo religiosa de moças. O bispo de Bréscia aprovou a fundação em 1536, e ela logo espalhou-se por todo o norte da Itália, especialmente em Milão, e posteriormente na Fran~a.Embora Ângela pretendesse que sua fundacão fosse uma associação leiga sem votos monásricos e clausura, a companhia gradualmente rransformou-se em uma ordem completa. Comecaram a usar hábiros em 1546; os votos simples e a vida comunitária foram introduzidos em 1572; e em 1612 as ursulinas de Paris passaram a praticar clausura estrita e realizar x70tos solenes segundo a regra modificada de Santo Agostinho. Os conventos ursulinos se multip~icaramrapidamente, especialmente na França e n o Canadá, e alcançaram proeminência na educaçáo de moças. Entre os membros mais famosos da ordem estava Maria Guyard ("Maria da Encarna~áo",1599-1672), uma mística notável que fundou o convento em Québec em 1639.

A mais importante dessas novas ordens religiosas fundadas na Itália no século dezesseis, e atrás apenas dos jesuítas em termos de influência, foi a dos capuchinhos

(Capuccini, assim chamados por causa de seu distinro hábito rústico com um capuz de quatro pontas, ou capuccio). A ordem foi fundada entre 1525 e 1528 (quando ela recebeu autorizaçáo papal) por Mateus de Bascio (149j?-1552) e crês companheiros - os irmáos Ludovico e Rafael de Fossombrone e Pauio de Chioggia. Todos os quatro

eram franciscanos observantes que queriam retornar à letra da regra original de Sáo Francisco (ver V:4).Daí, eles se comprometeram com a pobreza absoluta, com a mortificaçáo física extrema, com uma vida de oraçáo ordenada, com a pregação itinerante de caráter moral e evangélico simples e com obras de caridade entre os doentes e os pobres. Mateus foi o primeiro a decidir e a assumir esse tipo de vida, enquanto que Ludovico foi o organizador do movimento. Apesar da oposiçáo dos temiam a perda de seus memsuperiores dos observantes, que c~m~reensiveimente bros mais dedicados, os capuchinhos alcançaram uma organização separada e experimentaram u m crescimento fenomenal. Já eram cerca de setecentos por volta de 1535 e ao redor de dois mil e quinhentos em 1550. Depois de 1572, quando foram permitidos estabelecimentos fora da Itália, a ordem rapidamente experimentou uma expansáo mundial. Estas forças de renovaçáo religiosa emanando principalmente da Itália e da Espanha alcançaram um controle significativo do papado pela primeira vez durante o pontificado de Paulo I11 (1 534-1 549), embora Adriano VI (1 522-1 523) tenha exibido

um zelo verdadeiro, embora ineficaz, por reforma durante seu breve e infeliz reina-

194

IISTÓRIA DA IGREJA C R I S I i

do. Em contraste, nem Leão X (1513-1521) nem Clemente VI1 (1523-1534) perceberam a gravidade da situaçáo, e ambos revelaram-se incapazes de colocar suas responsabilidades como lideres da igreja acima de suas ambições políticas e preocupaçóes dinásticas como príncipes italianos. Paulo 111, entretanto, embora não isento de crítica por causa de lapsos morais antes de assumir as ordens sacerdorais e por utilizar seu cargo para enriquecer os membros de sua família, esteve muito mais alerta do que seus predecessores para os perigos que ameaçavam a igreja interior e exteriormente. Logo no início de seu pontificado ele nomeou alguns reformadores sinceros para o colégio de cardeais. Entre estes estavam Contarini, Caraffa, Sadoleto e Pole; subseqüentemente, Cortese rarnbém foi elevado, embora Giberti tenha recusado a honra. Em 1536, atendendo ao pedido de Conrarini, Paulo I11 nomeou todas estas pessoas, mais outros três, para uma comissão responsável pela apresentaçáo de reformas em preparaçáo para um concílio geral da igreja. Em 1537 a comissáo submeteu

seu relatório claro e direto, o Consilium de emendanda ecclesia, que idenrificava a venalidade dos papas e dos cardeais como a principal causa de deserção na igreja, Paulo 111 adotou algumas das propostas do relatório visando a eliminar os abusos mais sérios na Ciiria. Ao passo que Caraffa era um homem de devoçáo inflexível ao dogma medieval, Contarini e Pole tinham considerável simpatia pela doutrina da jusrifica~áode Lutero, assim como Girolamo Seripando (1492-1563), o superior geral dos frades agostinianos. Náo obstante, esres homens, cujas idéias sobre justificação foram no final rejeitadas no concilio de Trenro, escavam muiro distantes de idéias verdadeiramente protestantes. Enrretanto, havia um número considerável de pessoas na Itália principalmente membros de ordens religiosas, mulheres aristocráticas e humanistas de origem clerical - cujas simpatias os levavam bem mais longe. Eram particularmente numerosos em Veneza, onde foi impressa em 1530 a tradu~áoitaliana do Novo Testamento realizada por Antônio Bruccioli, e dois anos depois toda a Bíblia. Já foi mencionada, em relacáo a Calvino, a hospitaiidade de Ferrara sob a duquesa

Renata (ver Vl:8). O mais imporranre desses grupos era o que se reunia em Nápoles, ao redor de Joáo Valdés (I 500?-1541), individuo natural de Castela e humanista erasmiano que fora para Roma em 1529 a serviço de Carlos V e se estabelecera permanentemente em Nápoles em 1534. Embora tenha rnorrido como católico devoto, Valdés enfatizava a autoridade exclusiva da Escritura e dos pais da igreja, e cultivava uma piedade interior, mímica, que náo atribuía nenhuma importância es-

PERIOUO VI

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sencial aos ritos e sacramentos da igreja. Seu discípulo, Benedito de Mântua, escreveu por voIta de 1540 Os Beneficias da Morte de Cristo, o mais popular dos livros procedentes deste círculo. Entre os amigos de Vddés encontrava-se Pedro Marrire Vermigli (Pedro Mjrtir,

1500-15621, prior do mosteiro de São Pedro, em Nápoles - cujo pai fora admirador de Savonarola - e destinado a ser professor de teologia protestante em Estrasburgo e Oxford. Também Bernardino Ochino (1487-1564), o pregador mais proeminente na Itália de sua época, vigário geral da ordem dos capuchinhos de 1538 a 1541, mais tarde prebendário protestante de Cantuária, pastor em Zurique e, por fim, forcado a se tornar andarilho em virtude de suas idéias excêntricas, morrendo entre os anabatistas na Morávia. (A apostasia de Ochino em 1542 quase provocou a desrruiçáo da ordem dos captichinhos.) Outro amigo desse grupo era um sobrinho de Caraffa, Galeazzo Caraccioli, marques de Vico, que mais tarde seria í n ~ i m ocolaborador de Caivino em Genebra. Esses evangélicos italianos estavam, porém, desorganizados e sem auxílio dos príncipes, exceto o mui cauteloso apoio que lhes era dispensado em Ferrara. Também não consegúiram muitos seguidores entre o povo comum. Eram uma planta exótica na Itália, e o mesmo pode se dizer dos poucos protestantes que havia na

Espanha. O papa Paulo 111 vacilou durante algum tempo entre o método conciliatório advogado por Conrarini, que participou das reunióes de Ratisbona (ver W:5) conio legado papal; e o de Caraffa, que pedia severa repressão das divergências doutrinárias e defendia reforma moral e administrativa. Finalmente se decidiu por este, e sua

decisão passou a ser política de todos os seus sucessores. Ante o apelo urgente de Caraffa, em 21 de julho de 1542 Paulo III reorganizou a Inquisiçáo romana, seguindo priticipalmence o modelo espanhol, e essendeu sua autoridade a toda a cristanda-

de. No entanto, seu estabelerirnenro concreto, obviamente, se deu somente onde recebeu apoio de autoridades civis amigas. Por causa dela, rapidamente desapareceu o incipiente protestantismo italiano. Assim foi forjada uma das principais armas da Contra-Reforma. Muito mais importante foi o despertamento do zelo missionário com que o gênio da Espanha conrribuiu para inflamar o enrusiasrno católico. Sob qualquer ponto de vista cor11 quc seja encarado, Santo Itiácio de Loyola (1491- 1556) é um dos pri~icipais vultos da época da Reforma. Ifiigo de Ofiez g. Loyola nasceu de família de nobres cavaleiros no norte da Espanha. Depois de servir como escudeiro na corte do

rei Fernando, fez-se soldado. Demonstrou sua intrepidez quando Pamplona foi sitiada pelos franceses, em 1521. Mas durante o cerco foi ferido gravemente nas pernas e isso o incapacitou para o serviqo militar. Durante seu lento restabelecimento leu as traduqóes espanholas das vidas dos santos e da Vida de Cristo,de Lodolfo, o cartuxo (ver V:2). Ele decidiu que seria cavaleiro de Cristo e da Virgem. Em 1522, após se recuperar, até certo ponto, peregrinou para o satituário mariano em Montserrat, depôs suas armas sobre o altar da Virgem e trocou suas vestes de cavalaria pelas de um mendigo. De lá seguiu para a cidade vizinha de Manresa, onde permaneceu por quase um ano (março de 1522 a fevereiro de 1523). Ali refletiu sobre A Imitaçúo de

Cristo de Tomás de Kempis, submeteu-se às penitências mais severas e experimentou uma série de arrebatamentos e visões extraordinários. Inácio escreveu, ainda sob a impressáo imediata de suas experiências místicas em Manresa, o primeiro rascunho de seus Exercicios Espirituair, um livro notável que atingiria sua forma final em Roma em 1541. (0[exco latino do original espanhol foi publicado pela primeira vez em Roma em 1548.) Esse não é um livro destinado à leitura para edifica~áoreligiosa mas para ser utilizado experimentalmente sob a liderança de um diretor espiritual, tal uso culmina~idoem um aro voluntário, a saber, a escolha de uma nova forma de vida.

E, portanto,

uma obra projetada para guiar as

pessoas à realizaçáo de seu destino eterno sob a vontade de Deus. No interesse da salvacáo de suas almas e para a glória de Deus, elas são levadas a fazer uma escolha deliberada a favor de Cristo, abandonar seus pecados e assumir uma atitude de "santo desinteresse" para com esre mundo para poderem utilizar todos os bens deste mundo para a glorificaqáo de Deus. Resumindo, o cristão é levado a se submeter inteiramente a Deus e a se tornar membro totalrnenre disciplinado da igreja, pronto a servi-la obedientemente. Assim, na espiritualidade de Inácio, a obediência ao sofrimento de Cristo e à sua igreja (hierárquica) ocupa o lugar central que a fé na misericiirdia não merecida de Deus para a glória do Cristo crucificado ocupa na religiáo de Lutero. Aqui pode ser visto um ponto relevante de conrraste entre as Reformas católica e protestante.

Em 1523 Inácio foi como peregrino a Jerusalém, disposto a servir a Cristo como missionário entre os muçulmanos, mas os franciscanos residentes, aos quais ele tentou se juntar, consideraram-no perigoso e o enviaram de regresso. Convencido de que para fazer a obra que desejava era necessário instrução, Inácio ingressou numa classe de rapazes em BarceIona (1525) e logo prosseguiu para as universidades de

Ncalá (1 526-1527) e Salamanca (1527). Sendo um líder naco, reuniu companheiros com as mesmas idiias e com eles praticou seus "exercícios". Isto suscitou suspeitas por parte da Inquisiçáo espanhola e ele passou um tempo na prisáo. Em 1528 ingressou no Collège de Montaigu, na universidade de Paris, justamente quando Calvino o deixava. Ali náo fez nenhuma demonstraçáo pública, mas congregou ao seu redor um punhado de amigos e discípulos dedicados - Pedro Lefèvre, Francisco Xavier, Diogo Lainez, Alfonso Salmerón, Nicolau Bobadilla e Simão Rodriguez. Em 15 de agosto de 1534, em uma pequena capela em Montmartre, Paris, estes companheiros fizeram voto de ir pregar em Jerusalém para a conversáo dos turcos, ou, não sendo isto possível, colocarem-se totalmente à disposiçáo do papa. Logo se junraram a eles outros três recrutas: Claúdio Le Ja>: Pascoal Broee e Joáo Codure. Em 1537, após completarem seus estudos, os dez companheiros se reuniram em Veneza para cumprir seu voto, mas Jerusalém estava isolada pela guerra e por isso resolveram se oferecer ao papa. No inicio de 1539 Inácio os convocou a Roma, e em junho consorciaram-se em uma "Companhia de Jesus", visando a servir como professores de crianças e analfabetos, como pregadores populares, como capeláes nos hospitais e como líderes de missóes ou retiros. Além de seus votos de castidade e pobreza, já feitos em Montmartre, eles fariam voto de obediência ao papa, para irem onde quer que ele os enviasse. (Não se deve pensar que a companhia foi fundada especificamente para combater o protes~antisino,embora na década de 1550 esta tenha se tornado uma de suas tarefas principais. A visáo de Inicio estava originalmente voltada para o mundo m ~ ~ u l m a neoXavier , já estava contemplando o trabalho nas Índias). Mesmo com a oposiçáo eclesiástica, Paulo I11 foi levado pela acitude favorável de Contarini e a habilidade de Inácio a autorizar, em 27 de setembro de

1540, a Sociedade de Jesus, na bula Regzmini rnilit~zntirecclesiae. A consti~uiqáoda sociedade ainda estava indefinida, salvo que teria um líder a quem era devida total obediência e que trabalharia onde tal líder e o papa determinassem. Em abril de 1541 Inácio hi escolhido como o primeiro superior geral da ordem, funÇáo que desempenharia até sua morte em 31 de julho de 1556.

A constituiçáo dos jesuítas foi-se desenvolvendo aos poucos, sendo completada de fato somente após a morte de Inácio. Entretanto, suas linhas principais são devidas a ele. Na liderança está um superior geral vitalício, a quem é devida obediência absoluta; ele, por sua vez, é vigiado por quatro assistentes eleitos pela ordem e que podem depô-lo, se necessário. Sobre cada distrito há um provincial, nomeado pelo

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UISTÓRIA DA IGREJA CRISTh

superior geral. A admissão formal na sociedade requer um rigoroso noviciado de dois anos, seguido pelo "escolasricado", um período de extensão indefinida dedicado aos estudos nas humanidades, filosofia, teologia, etc. O escolástico faz os votos simples de pobreza, castidade e obediência; se aceito como membro da sociedade, é ordenado e então passa outro ano de preparação espiritual, conhecido como "terceiro noviciado" ou "terceiranato". Depois disso, ele é incorporado na sociedade ou como "coadjutor espirirual formado", para ser empregado em funçóes puramente espirituais, ou como membro totalmente confesso que assume solenemente os três voros tradicionais. Neste último caso, com o tempo poder-lhe-á ser permitido fazer um quarto voto, aquele de obediência direta ao papa. O grupo que governa a socie-

professas do quarto voto". Visando ao serviço pastora1 desimpedido, os jesuítas não estáo obrigados a horas fixas de culto ou trajes, dade é composto de todos os "pais

como os monges, e também náo estáo obrigados a nenhuma recitaçáo comum do ofício divino - uma ruptura revolucionária com a tradição moilásrica. Todo membro

é disciplinado pelo uso dos Exercicios Espiritzldts de Inácio. Solitário e em silêncio, interrompido apenas pela liturgia e pelas comur-iicaqóescom seu diretor, aquele que se está exercitando passa quatro semanas em rneditaçáo ordenada sobre os principais fatos da vida e obra de Cristo e sobre a guerra cristá contra o mal. O direcor, por sua vez, adapta a cécnica às necessidades e capacidades particulares daquele que se está exercitando.

Em resumo, a sociedade que Inácio construiu foi um instrumento maravilhoso, combinando o individualismo renascentista - cada indivíduo indicado e treinado para seu próprio trabaIho específico - com o sacrificio da vontade e completa obediência ao espírito e aos objetivos do todo.

A Sociedade de Jesus se espalhou rapidamente na Itália, Espanha e Portugal, atingindo cerca de mil membros quando da morte de Inácio. Teve, porém, dificuldades para se estabelecer na França e na Alemanha. Por volta da segunda metade do século dezesseis tornara-se a força individual mais poderosa no reavivamento católico e a guarda avançada da Contra-Reforma. Seus principais meios eram a pregação, o confessionário, suas ótimas escoias - não para o povo em geral, mas para os nobres e ricos

- e suas missões esrrangeiras. Sob a influência dos jesuítas, a confissão e a comunháo se tornaram mais frequentes nos países católicos. E, para auxiliar o confessionário, a prática moral jesuíta foi gradualmente se desenvolvendo, principalmente após a morte de Inácio, e de modo especial na primeira parte do século dezessete, numa forma que

~ t n l a i aVI

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provocou críticas não apenas dos protesrantes mas também de muitos católicos (ver

VII:16). Naturalmente, sendo uma sociedade de caráter internacional, cujos membros estavam ligados a seus superiores por consranres relarórios e cartas, logo também se tornou uma força na vida política. Juntamente com a Companhia de Jesus, o concílio deTrento deve ser classificado como a agência primária da Contra-Reforma e Reforma católica. Esse concílio teve uma história bastante errática. Ansiosamente desejado por Carlos V e relutantemente convocado por Paulo 111, por fim se reuniu ernTrento em dezembro de 1545. Em março de 1547 a maioria italiana o transferiu para Bolonha, onde continuou a se reunir até setembro de 1549. Mas em maio de 155I retornou a Trento, onde a minoria espanhola permanecera por todo o tempo. Em 25 de abril de 1552 foi suspenso por causa do sucesso da revolta protestante chefiada por Moritz da Saxônia contra o imperador (ver VI:5). Só em janeiro de 1562 tornou a se reunir novamente e completou sua obra em 4 de dezembro de 1563. No cotal, o concilio realizou vinte e cinco sessões durante seus três períodos principais. No primeiro período (1545-

1547), quando foram tomadas as decisóes doutrinárias mais importantes, nunca houve mais do que setenta e dois votantes presentes; no último período (1562-1563), o número aumentara para mais de duzentos. O direito de votar esteve limirado aos bispos, aos superiores gerais das ordens e aos abades influentes. A votação foi por indivíduos, não (como no concílio de Constan~a)por na~óes.Em todas as vezes, portanto, a maioria escava nas mãos dos italianos e representava o desejo papal de que definiqóes dourrinárias precedessem as reformas. Por outro lado, os bispos espanhóis, igualmente ortodoxos na fé, apoiaram vigorosamente o desejo do imperador de que as reformas viessem antes que a doutrina. Finalmente concordou-se que doutrina e reforma seriam discutidas simultaneamente, mas rodas as decisóes teriam que ter a aprovaçáo do papa, fortalecendo assim a supremacia papal na igreja. Voz nenhuma teve mais influência no concílio do que as dos peritos teológicos do papa, os jesuítas Diogo Lainez (15 12-1565) e Alfonso Salmerón (I5 15-1585), e a influência deles apoiou firmemente o espíriro antiprotesrante, Os decretos doutrinários do concílio de Trento foram claros e definidos em sua rejeiçáo das crenças protestantes - pelo menos naquilo que assumiam ser a posiçáo protestante - ainda que frequentemente se mostrassem indecisos em relação a temas de discussáo nas controvérsias medievais. A ju~tifica~áo não é pela fé somente, assim declarou o concílio, mas pela fé formada por obras de caridade, e portanto a salvação

depende de u n a justiça adquirida, inerente, náo de uma justi~aimputada, forânea.

A Escritura e as tradi~óes"apostblicas" sáo igualmente fontes de verdade divina e devem ser recebidas com igual reverência. Apenas a igreja tem o direito de determinar o verdadeiro sentido e a correra interpretação da Escritura. A Vulgata Latina é o texto sagrado e canônico. Os sacramencos são sete e não dois (ou três). O sacramento da penitência envolve obras de sa~isfa~áo, como também contrição e confissão, e implica o poder da igreja de conceder indulgências. A missa envolve a rransubscanciaçáo dos elementos consagrados, é um sacrifício propiciatório verdadeiro que re-presenta de uma maneira não sangrenta O auto-oferecimento de Crisro no altar da cruz, e beneficia náo apenas os fiéis vivos mas também as almas dos fiéis que partiram no purgatório; daí, é recomendada a prática de "missas privadas". O cálice náo deve ser oferecido aos leigos, e o larim deve permanecer como a lingua

li túrgica. Nestes e noutros decretos assemelhados, o concílio fechou totalmente a porta, em rodos os aspecros, para qualquer acordo ou modificacão da doutrina medieval e rejeitou todas as

doutrinas protestantes por completo. A pesquisa erudita

mais recente tem demonstrado, entreranto, que os decretos tridentinos foram cuidadosa e cautelosamente formulados, não foram tão insistentemente hostis ao protestantismo como por logo tempo se acreditou, e estão abertos a interpretações que tornam possível o diáiogo ecumênico e a aproximagáo teolbgica. Em seu concexco imediato, entretanto, eles foram vistos como barrando qualquer possibilidade de re~oncilia~áo entre os dois grandes campos confessionais. Embora as reformas efetuadas em Trento estivessem longe de satisfazer os desejos de muicos na igreja romana, elas estabeleceram uma base sólida para a renovacáo do ofício pastoral da igreja e, com isso, de sua vida espiritual. A principai dessas reformas foi a restaura~áoaos bispos de poderes efetivos de supervisão em suas sés, como também a clara delimitação de suas responsabilidades pastorais. Desse momento em diante, o bispo seria "delegado da Sé Apostólica" em sua prdpria diocese, possuiria (pelo menos em teoria) suficiente autoridade para prevalecer sobre aquelas numerosas isencóes do controle episcopal que foram a ruína da igreja medieval e para limitar o poder excessivo até entáo exercido pela Cúria, legados e núiicios. Essa autoridade seria reforçada pela realizacão de sínodos provínciais regulares e de visitas paroquiais anuais. Ademais, os bispos ficaram obrigados a pregar regularmente e a residirem em suas sés, e impedidos de possuir mais de um bispado. O clero paroquial, da mesma

~tnroanui

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forma, deveria ensinar claramente o que é necessário para a salvaçáo e ser modelo de dedicados pastores de almas. Para essa finalidade, o concílio, naquilo que foi talvez seu cânone mais importante, ordenou a criaçáo de seminários - "sernen~eirasperpétuas de ministros para o culto a Deus". O bispo de toda diocese onde não houvesse universidade deveria fundar um desses seminários para o preparo de clérigos dignos.

Além de sancionar legisjaçáo reforrnadora para as ordens religiosas e emitir regulamentos para evitar casamentos clandestinos, o concílio também aprovou um catálogo de livros proibidos, que seria ~ r e ~ a r a dpelo o papa, seguindo o exemplo deixado por Paulo TV em 1557. Resultou dessa última açáo, a criagáo em Roma em 1571, por Pio V (1566-1572), da Congregaçáo do Índex, para a censura de publicaçóes.

A melhor defesa da posição romana até encáo, o De locis tbeolugiris libriXi(, foi fruto de Melquior Cano (1509-1 560), influente teólogo dominicano espanhol em Trento. A teologia, ensinou ele nessa obra publicada três anos após sua morte, está baseada na autoridade. A autoridade da Escritura repousa no poder da igreja de depurar e aprovar, o qual determina o que é e o que não é Escritura. Mas como a doutrina cristã não está, de forma alguma, contida em sua totalidade na Escritura, a tradiçáo, transmitida e depurada pela igreja,

t outra fonte autorizada. Cano fora

pupilo e posteriormente sucessor de Francisco de Vitória (1485?-1546)na universidade de Salarnanca. Ele era, assim, um dos principais representantes do "novo escolasticismo", iniciado por Vitória, que fez da Sumina theoiugiae deTomás de Aquino o texto teológico básico, ao invés das Sentenças de Pedro Lombardo, e que se empenhou em purificar a teologia moral e dogmática de todos elementos altamente especutativos e fundamentá-la exclusivan~entena Escritura e nos pais da igreja.

O resultado de todas estas influências foi que por volta de 1565 estava reavivado um catolicismo diligente e vigoroso em todos os níveis da vida da igreja, principalmente nos mais elevados. Os papas eram agora predominantemente homens de vida estrita e zelo reformador, enquanto a própria Roma se tornou uma cidade mais séria, muito mais eclesiástica que na época da Renascenca. Estava muito difundido um novo espírito, tenaz em sua oposiçáo ao prorestanrismo, profundameilte conservador em sua teologia, mas comprometido com reformas administrativas amplas e pronto a lutar ou sofrer por sua fé.Ante este zelo renovado, o protestantismo dém de parar de fazer novos

avances teve suas conquistas na Renânia e no sul da Alemanha

deveras abaladas. O catolicismo começou a ter esperancas de reconquistar tudo o que perdera.

A recuperação católica de um sentimento de segurança ficou especialmente evidente, ao nível da erudição, nos escritos do gande debatedor jesuíta natural da Toscana, Robcrto Belarmino (São Roberto Belarmino, 1542-1621). Ele se uniu aos jesuítas em 1560, tornou-se professor no colégio romano jesuíta em 1576 e foi eleito cardeal em 1597. Sua obra Debates Contra os Hereges de Nossa Época (3 volumes, 1586-1593) foi de longe a defesa mais impressiva do catolicismo tridentino contra a Reforma protestante em termos históricos e racionais. Um defensor igualmente famoso da legitimidade histórica do ca~olicismoromano foi César Barônio (15381607), membro e posteriormente superior geral do oratório romano de São Filipe de Néri (ver abaixo), eleito cardeal em 1596 e bibliotecário do Vaticano no ano seguinte. Sua obra, Annales Ecclesidstici (12 volumes, 1588-1607), foi dirigida especificamente contra a Historia Ecrlesiae Christi (13 volumes, 1559-1574), preparada pelo teólogo luterano Matias Flacius Illyricus (1520-1575) e seis colaboradores e conhecida como as Centlirias de Magdeburgo, porque cada volume cobria um século de história da igreja. Estas duas obras monumentais eram preconceiruosas e estavam pobremen~edispostas; porém o acesso de Barônio aos arquivos do Vaticano capacitou-o a apresentar material muito mais novo e expor as muitas imprecisóes dos centuriões de Magdeburgo, particularmenre seu manuseio de textos originais.

O tema persistente corrente por toda a Reforma Católica foi a busca por um clero mais digno. Esse objetivo inspirara Caetano de Thiene e os tiatinos no início do século dezesseis, e não era menos central na obra de Filipe de Néri (Sáo Filipe de Néri, 1515-1 595) e seus "oratorianos" no final do século. Natural de Florença, educado pelos dominicanos no convento de São Marcos, onde a memória de Savonarola ainda vivia (ver V:15), Néri foi para Roma em 1533 e logo dedicava-se a vigílias solitárias de oraçáo e obras de caridade em favor dos peregrinos e convalescentes. Ele foi ordenado ao sacerdócio em 155 1 e sua ulterior atividade como confessor e líder de exercícios vespertinos regulares em oraçáo, conhecidos como "oratórios", rapidamente lhe conquistou reputação popular como o "apósrolo de Roma". A Congregaçáo do Oratório (oratorianos) surgiu dessas atividades. Era uma ordem de sacerdotes seculares, vivendo em comunidade sem votos, que o papa Gregório XiII (15721585) aprovou formalmente em 1575. Os oratorianos procuravam conduzir as pessoas a Deus mediante oraçáo, cultos de pregaçáo, confessionário e, náo menos, atrações de boa música. O "oratório" do século seguinte desenvolveu-se dos cânticos (laudi virituali) efetuados nos exercícios devocionais dos oratorianos. O composi-

rtnronn vi

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603

tor de miliros desses cânricos, e o refo~rnadorda miísica eclesiásrica católica, Joáo Palestrina (1525?-1594),foi ele próprio um dos penitentes de Néri.

Em 1611 foi estabelecida em Paris por Pedro de Bérulle (1575-1629) a congregacáo francesa dos oratorianos, e logo ela se espalhou por toda a França e Holanda. Enquanto o oratório romano de Filipe Néri era constituído de casas independentes, o oratório francês de Bérulle - aprovado oficialmente pelo papa Paulo V (1605-

1621) em 1613 sob o nome "Oratória de Jesus Cris~o"- tinha uma organizaçáo centralizada governada por um superior geral. O oratório dedicava-se especialmente ao treinamento de sacerdotes nos seminários fundados de acordo com a legislaçáo tridentina. O próprio Bérulle ficou mais conhecido por sua ardente devoção à natureza Iiuniana iie Jesus, a Cristo enquanto Deus eticarriado, revelada em sma obra mais famosa, As Grandem-r deJe-mu (1 623).

O reavivamento católico caracterizou-se ainda mais por um novo florescimento de piedade mística, no qual, como em muitas outras coisas, a Espanha esteve à frente. A feiçáo principal dessa espiritualidade era um quiecismo de auto-renúncia - uma elevaçáo da alma em coiltempIa~áoe ora550 silenciosa a Deus - até que se concluísse

que fora aIcancada uma uniáo no amor divino, o u no êxtase de uma revelacáo interior. A oraçáo é possível apenas na base da auto-renúncia, esquecimento total do eu, pois Deus somente pode encher a alma que se esvaziou de tudo o que é criado. Os principais representantes dessa piedade foram Teresa de Jesus de AviIa (Santa Teresa,

I 5 15-1 582) e seu discípulo, Joáo da Cruz de Fontiveras (Sáo Joáo da Cruz, 15421591). Teresa deixou uma desci-icáo abrangerite, embora desconexa, da vida de .oraçáo em O CfimPnhoda Pe$~i~Jo(1565) e O CasteIo Izterjor (1577), enquanto que as obras líricas de João da Cruz - A Subida do Monte Carmelo, A Noite Tenebrosa da Alma, O Cântico do EspÉ~ito,A Chama Viva do Amor - fornecem uma afirmação integrada da totalidade da doutrina mística e são obras-primas literárias. (Suas obras foram primeiramente publicadas em 1618, na forma de uma edicáo resumida, em

,Qlcdá; uma ediçáo crítica do texto autêntico foi pblicada em 19 12-19 14.) Esses dois grandes místicos espanhóis uniram a vida contemplativa com a ativa. Deve-se a eles o aprofundarnento da reforma da ordem carmelita na Espanha, ou seja, o estabelecimento de numerosas casas de carmelitas descalços, frades e freiras totalmente comprometidos com os rigores ascéticos de sua regra original (ver V:4).

A disserninacáo do misricismo teresino deveu-se principalmente a Pedro de Bérulle, mas também a Francisco de Sales (Sáo Francisco de Sales, I567-1622), nominal-

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HISTflRIA DA IGREJA CRISTÁ

mente bispo de Genebra desde 1602, a cujos esforços sáo devidas as conquistas de partes da Sabóia próximas a Genebra, e sua discípula, Joana Franpise Frémiot de Chantal (Santa Joana de Chantal, 1572-1641). A celebrada obra de Francisco de Sales, Introduçúo à Vida Devota (1609), levava a vida contemplativa para fora do convento e, baseada em uma noçáo otimista dos poderes da vontade humana, afirmava que a

religiosa não está menos ao alcance da pessoa leiga ordinária do

que ao monge e à freira. Ali estava uma nova ênfase bem distinta na piedade católica, ou seja, que a vida de devoqão é algo relativamente fácil, desde que nutrida pelos sacramentos, especialmente pela comunháo frequente, e conduzida por um diretor espiritual competente. Em 1610 Francisco de Sales e Joana de Chantal fundaram em Annency a Ordem da Visitaçáo (também conhecida como visicandinas ou irmás salesianas). Era originalmente uma congregação de mulheres contemplativas engajadas na visitaqáo aos doenres e aos pobres; mas em 1618 tornou-se uma ordem religiosa formalmente constituída com votos solenes, dedicada à educação de meninas.

O zelo católico também se revelou, com resultados significativos, nas obras das missões no estrangeiro. Estas foram principalmente empresas das ordens mendicantes, de modo especial os dominicanos e os franciscanos, com quem a Sociedade de Jesus partilhou zelosamente os labores desde o momento de sua fundaçáo. A cristianizaçáo da ArnCrica do Sul, da Central, de grandes porqóes da do Norte e rambém das Filipinas é devida a essas ordens. O mais famoso desses missioilários foi o antigo companheiro de Inácio, Francisco Xavier (Sáo Francisco Xavier, 1506-1552). Nomeado missionário para

3

fndia

Portugal, embarcou em Lisboa em

elo próprio Inácio, a pedido do rei João I11 de 7 de abril de

1541, chegou em Goa em maio de

1542 e iniciou uma carreira de vigorosa atividade. Fazendo Goa sua base de operações, ele pregou no sul da Índia, Malaia e nas Molucas. Em 1549 penemou no Japáo e começou uma obra que estava alcançando grandes proporcões quando as autoridades do país severamente a reprimiram, em 1614. Xavier morreu eni I. 552, justamente quando ia entrar na China. Sua obra foi mais exploradora do que formadora, mas

ele abriu muiras portas e seu exemplo foi de contagiosa influência e de longo alcance.

A obra que Xavier pretendera fazer na China foi iniciada em 1583 pelo jesuíra Maeeus Ricci (1 552-1610). Entretan~o,seu desejo de ser "tudo para com todos" levou-o a transigir com o culro dos antepassados, um afrouxamento ao qual os missionários de outras ordens católicas, especialmente os dominicanos, se opuseram

vigorosameiite. Na Índia, os primeiros conversas eram quase inteiramente dentre os sem castas ou dentre as castas inferiores. O jesuíta Roberto de Nobili (1577-1656) deu início em 1606 em Madura a um trabalho visando as casras superiores, reconhecendo as distinçóes entre as castas e dessa forma se acomodando ao sistema social indiano. Foi grande seu êxito aparente, mas seus métodos suscitaram uma torrente

de críticas e, por fim, foram proibidos pelo papado em 1744 (embora em 1623 Roma tenha se recusado a condenar Nobili). Provavelmente a mais famosa experiência das missões dos jesuítas tenha sido no Paraguai, onde iniciaram sua obra em

1583. Em 1610 começaram a reunir os nativos em "reduções", ou aldeias, todas construídas da mesma forma, onde os moradores eram mantidos em paz e aprendiam os elementos da religião e as artes industriais, mas eram conservados numa estrita dependência semi-infantil dos missionários. O sistema ruiu com a expulsáo dos jesuítas em 1767, e deixou poucos resultados permanentes. As rivalidades entre as diversas ordens r a vontade de supervisionar mais efeciva-

menre os esforços missionários, levaram o papa Gregório XV (162 1- 1623) a fundar em 1622 a Cong~~gutLo de (ZropdgundaFide. Através deia todo o campo de atividade missionária poderia ser inspecionado e supervisionado por Roma.

Disputas Confessionais na França, nos Paises Baixos e na Inglaterra As rivalidades dinásticas entre a Franca e a Espanha, com suas conseqüências políticas e militares, possibilitaram o desenvoIvimento da Reforma e facilitaram a divisão da Alemanha entre luteranos e católicos exarada em 1555, na paz de Augsburgo - um acordo precário no qual calvinistas (e anabaiistas) não tiveram lugar. Henrique

I1 (1547- 1559) sucedera a Francisco I na França e Carlos V cransfeerira para seu fillio Frlipe II (1556-1598) a soberania sobre a Esyanha, Países Baixos e os territórios espanhóis na Itilia e no Novo Mundo. Conrinuaia, porém, a velha rivalidade. No início Filipe alcançou na guerra mais êxito que seu pai, e suas virórias em Sr.-Quenrin,

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HISTbRIA D I IGREJA CRISTA

em agosto de 1557, e em Gravelines, em julho de 1558, obrigaram a França a assinar o tratado de Cateau-Cambrésis, em 2 de abril de 1559. Esse tratado foi um dos eventos mais importantes na história da Europa. A França desistiu da longa luta pela hegemonia na Itdia e experimentou um declínio agudo em seu destino mediante décadas de contendas civis e guerras religiosas. A Espanha tornou-se a primeira potência na Europa e foi amplamente capaz de induzir a França, debilitada e dilacerada pela guerra, a acompanha-la, ou pejo menos a náo se opor a seus interesses. Embora as seculares disputas dinásticas entre Habsburgos e VaIois tenham diminuído após 1559, a Europa não desfrutou de tranqüilidade. Pelo contrário, as relacóes internacionais foram novamente exacerbadas por disputa e divisões confessionais, sobretudo pelo feroz conflieo entre o calvinismo militante e o catolicismo reavivado.

O ano de 1559 restemunhou a fundação da Academia Genebrina (ver VI:8), da qual seriam enviadas centenas de dedicados ministros e evangelistas para toda a Europa, sobretudo para a França e os Países Baixos. Assim, Genebra sob Calvino e Beza tornou-se o centro de uma missáo protestante internacional, visando a conquis~aros povos ainda "náo convertidos" da Europa para a fé reformada afastando-os do "papismo" e da "idolatria". O protestantismo militante se via confrontado, porém, por um catoiicismo muito mais unido e poderoso do que o fora em qualquer tempo.

O líder desse catolicismo contra-reformado era Filipe 11, da Espanha. Homem austero, culto, metódico, trabalhador e infinitamente paciente, Filipe dirigiu todos os seus esforços para manter a ascendência hispano-habsburga na Europa e a soberania absoluta em seus territórios dinásticos. Unido em desconfortável alianca com o papado pós-tridentino, que se irritava sob sua inesca~áveldependência da monarquia espanhola, Filipe também se considerava indicado por Deus para extirpar a detestávef "heresia" protestante de seus territórios, para obstaculizar o avanço desta na França e para reseaurar a cris~andadccomo um todo à "verdadeira" fé católica. O s trinta anos seguintes, a era da "preponderância espanhola", seriam o período de maior perigo na história do nascente protestantismo. Talvez o momento em que o perigo chegou ao auge renha sido durante o ano de 1559, quando, após a morte de Henrique 11 no mês de julho, a coroa passou a Francisco I1 (1559-1560), cuja esposa era Maria, "rainha dos escoceses", e também pretendente ao rrono da Inglaterra. Mas mesmo o ardente catolicismo de Filipe não estava disposto a ver combinaqáo táo perigosa para a Espanha como a França, Escócia e Inglaterra sob um só par real. Daí, então, auxiliou Isabei a assegurar sua ascen-

p ~ n i o i ovi

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são ao trono.

A influência de Calvino penetrava cada vez mais na França, e os protestantes franceses ou "huguenotes", como ficaram conhecidos após 1552, se multiplicavam, apesar de severa perseguição. Em 1559 eram fortes o suficienre para reunir seu primeiro sínodo geral em Paris, no qual adotaram um credo fortemente calvinista preparado por Antônio de Ia Roche Chandieu e uma constituiçáo presbiteriana baseada nos princípios eclesiásticos de Calvino. No início da década de I560 havia por volta de duas mil congregações hupenotes e talvez cerca de um milhão e meio de seguidores (embora tais estimativas variem amplamente). A grande maioria provinha das classes dos artesáos e profissionais, principalmente nas vilas e cidades do sul da França. A vitalidade política apresentada peio partido residia em seus membros oriundos

da aristocracia, incluindo alguns dos nobres mais eminentes da regiáo. A morte de Henrique I1 e a ascensáo de Francisco I1 ao trono tornaram a família dos Guises, tios da nova rainha, todo-poderosa na corte. Os Guises eram da Lorena, e muitos nobres franceses os consideravam estrangeiros. Essa família, extremamente católica, tinha como líderes principais os dois irmáos, Carlos, "cardeal da Lorena", e chefe do clero francês como arcebispo de Rheims, e Francisco, duque de Guise e considerado o melhor soldado da França. Oposta a essa família estava a de Bourbon, a cuja frente estavam Antônio de Vendôme, "primeiro príncipe do sangue" e rei titular de Navarra, homem de espírito débil e vacilante, e seu irmão Luis, muito mais capaz, príncipe de Condé. A casa de Châtillon também era contrária aos Guises. Seu chefe era Gaspar de Coligny (15 19-1572), conhecido como almirante Coligny, homem íntegro e calvinista devoto.' Estes eminentes nobres, em grande parte, foram levados a abraçar o protestantismo por serem contrários à centralização do poder na monarquia. Assim, representavam a hostilidade da antiga nobreza feudal aos avanços reais sobre suas "liberdades" tradicionais. Estima-se que por volta de 1560 a metade dos nobres franceses tenham abandonado sua fidelidade a Roma. Seja como for, os interesses de muitos dos aristocratas franceses coincidiam com os dos humildes calvinistas da classe média no desejo de que as coisas mudassem de rumo, especialmente quando se intensificou a persegui~áoaos huguenotes sob o governo de Francisco 11, dominado pelos Guises. O primeiro passo para uma revoluçáo foi dado em

N.T. Coligny participou da expediiáo fraiicesa que tentou estabrlecer uma colônia na baía da Guanabara, em 1555. Os frailceses foram expuisos por Mem de Sá em 1564.

março de 1560, quando a mal planejada "Conspiração de Amboise" fracassou na tentativa de prender o jovem rei e entregar o governo aos Bourbons. Condé, que participara da trama, teria sido executado se Francisco I1 náo tivesse morrido a 5 de dezembro de 1 560.

A ascensáo de Carlos IX (1 560-1 574))irmáo do falecido rei, introduziu um novo partido na confusa luta. Os Guises perderam muito de seu poder na corte, mas ainda continuavam como os líderes dos interesses católicos na França, e iniciaram negocia ~ ó e secretas s com Filipe I1 da Espanha, clamando para que ele liderasse uma cruza-

da internacional contra o calvinismo. Essa perspectiva, que Filipe não poderia acalentar seriamente, foi suficiente para trazer o inconstante Antônio de Navarra de volta para o aprisco católico. Agora a principal influência sobre o novo soberano, que ainda não tinha onze anos de idade, era a de sua máe, Catarina de Médici (1 5191589). Hábil e inescrupulosa, sem qualquer paixão religiosa em particular, ela estava disposta a preservar a dinastia dos Valois, representada por seus três filhos sobreviventes. EIa estava determinada a evitar uma guerra civil sangrenta e a manter os direitos da coroa, mediante uma política de reconciliacão religiosa e política. Era auxiliada por um estadista de visáo ampla e conciliatória, Miguel de I'Hôpiral (1 507-

1573), que se tornara chanceler da França em 1560. Então Catarina procurou a reconciliaçáo das duas grandes facções da nobreza, libertou Condé da prisão, permiriu um debate público enrre teólogos católicos e prorestantes, em Poissy, em setembro de 156 1 - no qual Beza tomou parte imporrance. E logo em seguida, em janeiro de 1562, publicou um edito permitindo aos huguenoces liberdade para culto público fora das cidades muradas, e de culto privado dentro delas. O colóquio de Poissy e o Edito de Tolerância marcaram o nível mais aito da onda do protestantismo francês. Em vez de se submeter a essa política de moderacáo, o partido católico resolveu provocar a guerra. Em l 0de março de 1562 o duque de Guise, em seu caminho para Paris com suas tropas, permitiu que elas atacassem uma p n d e congregação huguenote em Vassy (uma vila murada na Champagne), ila hora do culto. Foram mortos ou feridos bem mais de cem huguenotes. Esse "Massacre em Vassy" foi seguido por três guerras sangrentas entre huguenotes e católicos - 1562-1563, 1567-1568 e 15681570 - com breves tréguas entre elas. Antônio de Navarra foi ferido c morreu (1562); o duque Francisco de Guise foi assassinado por um protestante (1563); e Condé foi capturado em batalha e imediatamente morto (1 569). Restou Coligny a frente da causa huguenote. No geral, os huguenotes se mantiveram firmes, e a inveja da influ-

~ t n i o i oul

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ência espanhola auxiliou a causa deles, tanto que em agosto de 1570 foi feita a paz de St.-Germain-en-Laye. Por ela foi dada liberdade de culto completa aos nobres, foram permitidos ao huguenotes do povo comum dois locais para culto em cada divisão governamental da Franca e foram cedidas para o controle huguenote, como garantia, quatro cidades fortificadas (La Rochelle, Cognac, Montauban e La Charité). O s huguenotes haviam se tornado, na realidade, um estado armado dentro do estado. Nessa altura, a situação na França se tornou muito complicada pelo curso dos acontecimencos nos Países Baixos. As origens das causas da agitaçáo naquela região eram muito mais políticas e econômicas que religiosas, ainda que na luta a religião fosse constantemente assumindo maior importância. Os Países Baixos, que Filipe 11 recebera em 1555 de Carlos V, seu pai, eram um grupo de dezessete províncias, ciosas de seus direitos locais, predominantemente mercantis e manufatureiras, e dispostas a reagir contra tudo que interferisse nos costumes estabelecidos ou que perturbasse o comércio. O luteranismo ali chegara logo em seu início, mas fora amplamente superado pelo anabatismo entre as camadas mais inferiores da popuIaçáo. Por volta de 1561, quando a confissáo belga foi esboçada por Guy de Brts, o calvinismo estava rapidamente fazendo conversos entre a classe média, especialmente nas vilas manufatureiras das provincias do sul (Artois, Hainault, Brabant, Flandres). A nobreza, entretanto, ainda náo fora alcançada, e em 1562 os calviniscas ainda eram uma pequena minoria da populaçáo. Carlos V, embora resistindo com tenacidade às incursões do protestantismo, respeitara amplamente os direitos e privilégios dos estamentos provinciais e da classe governante nos Países Baixos. Filipe 11 náo se portou assim. Ele resolveu estabelecer ali a mesma uniformidade política e religiosa que a da Espanha. Em 1559 ele nomeou como regente sua meia-irmá Margarida, duquesa de Parma (1522-15861, com um coriselho consultivo de três membros, entre os quais a figura domiiiantc era seu leal ministro, Antônio Perreirot, mais conhecido como cardeal GranveIle (1 5 17-1586). Esse conselho praticamente usurpou o poder do antigo Conselho de Estado, no qual participava a alta nobreza. Em 1560, Filipe conseguiu do papa a reconsticui~áototal da geografia eclesiástica dos Países Baixos, por meio da qual foram criadas onze novas dioceses e três novas arquidioceses. Esse arranjo libertou as dioceses (originariamente em número de quatro) dos Países Baixos da supervisáo estrangeira (pelos arcebispos de Reims e Colôiiia). Isso, no entanto, suscitou amarga oposiçáo, já que

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HISTQAIA DA IGREJA CRISTA

rodos os novos prelados foram nomeados por Filipe, enquanto que os nobres estavam acosrumados há muito tempo a colocar seus filhos mais jovens nesses oficios Iucrativos. Além disso, Filipe estava lançando mão de todas as forças, incluindo a Inquisição local, para esmagar a heresia - uma atitude que desagradou profundamente a populaçáo em geral, especialmente a classe mercantil, porquanto prejudicava o coínércio e fazia emigrar os trabalhadores. Daí, nobres e comerciantes ficarem deveras revoltados. O s principais dentre os oponentes a essas mudanças eram tr2s importantes nobres: os condes católicos de Egrnont e Hornes; e o maior de todos os magnatas dos Países Baixos, Guilherme de Nassau, príncipe de Orange (1533-1584), nascido luterano mas agora, pelomenos nominalmente, católico, e que viria a ser calvinista em 1573 e o herói da independência holandesa. Estes homens forçaram a demissão de GranveIle em 1564, e Filipe passou a ver neles o principal obstáculo a seus planos. Ao invés de conceder qualquer tolerância, exigiu a execuçáo dos decretos do concílio de Trento e puniçáo mais rigorosa da heresia. Nesse momenco, a nobreza menor, incluindo o irmão mais novo de Guilherme de Orange, Luís de Nassau (1538-1574), entrou em acáo. Eles redigiram uma petiçáo de protesto, pedindo mudança na poiítica relisiosa, e a apresentaram iregente em 5 de abril de 1566. O apelido zombcteiro de "Mendigos" (Ies Gucux), dado aos signatários nessa ocasiáo, logo tornou-se o nonie reverenciado do partido de oposicão. Nesse exato momento, ademais, a população se rebelou, impelida pelas más condições econômicas e pela fome. A pregaçáo calvinista foi ouvida abertamente nas vilas e cidades do sul, e no início de agosto de

1566, irrompcram tumultos iconoclastas. Dentro de seis scmanas haviam se espalhado por todo o país, e ceilcenas de igrejas foram saqueadas e destruidas. Tais excessos, normalmenrc realizados contra a vontade dos ministros calvinistas, ofenderam a opiniáo moderada e fizeram com que muitos dos nobres, tanro catúlicos como protesrantes, deixassem de se opor ao regime espanhol. Guilherme de Orange, incapaz

de maneer a unidade da frágil coalizáo de aristocratas e comuns, de católicos, calvinistas e luteranos, afastou-se para sua residência na Aiernanha, em abril de 1567. Mal se iniciara, a revolta parecia acabada. ~ M a r ~ a r i de d a Parrna estava novamente no conrrole, e a repressáo severa náo parecia nem necessiria nem recomendável. Porém, para Filipe, cais acoiltecimentos eram

uma rebelião política e religiosa intoleráve.ei. Entáo ele enviou seu brilhante mas brutal general Fernando ÁIvarez, o duque d'Alba (1508-1 i82),com um excelente exér-

PER~ODOYI

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cito espanhol com nove mil soldados. Alba chegou em Bruxelas em agosto de 1567 e imediatamente iniciou a "reconquista" dos Países Baixos. Margarida, que aconselhara rnoderaçáo, cedeu em favor de Parma no final do ano. Durante os seis anos de governo (1567-1573) de A b a , foram executados mais de mil "rebeldes", iricluindo Egmont e Horncs (em 5 de junho de 1568). Em maio de 1568 o exilado Guilherme

de Orange lançara uma invasáo dos Países Baixos a partir da Alemanha, mas foi facilmente repelido por A b a . Este, firmemente no controle, passou a introduzir, em 1569, um sistema de taxacão cxageradamente pesado, inclui~idoum imposto perrnanente de dez por cento sobre vendas e exportações. Esse imposto, que foi visto como levando os Países Baixos à ruína econômica, alienou completamente a classe mercantil. Assim, as medidas repressivas de Mba deram nova vida à causa naçionaiisra. Não obstarite, esse triunfo parecia completo; o país aparentenlente fora forcado i submissáo. A oposic;áo que apareceu veio dos "Mendigos do Mar", corsários nômades holandesa, flamengos e franceses que viiihaiii pilhando os navios espanhbis navegando para os Países Baixos desde 1568. Eles eram comandados nominalmente por Luís dc Nassau e receberam de Guilherme de Orange em 1570 status semilegal. Guilherme ainda estava na Aernariha tentando conseguir apoio dos príncipes protesranres. Até o início de 1572 os Mendigos da Mar tiveram refúgio incer~ogarantido nos portos ingleses.

Em abril de 1572 os Mendigos do Mar, tendo sido enviados das baías inglesas em março, atacaram e capturaram o porto sem defesas de Brill. Pouco tempo depois, capturaram Flusliing, e dentro de poucos meses as pro\rínci;w da Holanda e da Zclhndia estavam quase completamente sob seu controle, uma vez que foram auxiliados por militanres calvinistas e simparizantes orangiscas. O ressentimento provocado pelo reino de terror caiiibém ajudou a assegurar no mínimo o apoio passivo da populaçáo

em geral. Em julho as principais cidades da Holanda, Zeliindia, Frísia e Utrecht reconheceram Guilherme de Orange como seu s~adhold~i(vice-rei).As províncias do norce no geral estavam scm defesas, pois Xlba rerirara suas guarnições para o sul, onde Luís de Nassau e seus aliados estavam conduzindo a irnrasáo de Hainault com [ropas huguenotes da França, enquanto Guilherme de Orange estava avançando sobre Brabame a partir da Alemanha. No início de agosco de 1572 o rei Carlos IX da França estava preparado para enviar um exército de quinze mil homens contra o ameaçado Alba. O governo espanhol nos Países Baixos estava entáo no maior perigo. Desde a paz de Sr.-Germain em 1570, os huguenotes e os adversários da Espanha

na Franca trabalhavam para reviver a velha política que fazia da França rival em vez de aliada da Espanha. Foi planejada assistência imediata aos rebeldes neerlandeses, que seria recompensada pela cessáo de alguma p o r ~ á oterritorial. Ninguém foi mais favorável a isso que Coligny cuja influência sobre Carlos IX era muito grande. Para aumentar a reconciliaçáo dos partidos franceses, foi arranjado o casamento de Henrique de Navarra, filho protestante do falecido Antônio de Navarra e da rainha de Navarra, Joana d'Albret, calvinista dedicada, com a irmá de Carlos IX, Margarida de Valois. Nobres hupenotes e católicos e seus acompanhantes se reuniram para as bodas, em 18 de agosto de 1572, na fanaticamente católica Paris. Catarina de Médici passou a ver com crescente receio a influência entáo exercida por Coligny sobre seu filho, o rei. O que ela entáo fez provavelmenre foi motivado por ciúme macernal e, sobretudo, pelo temor de que a guerra com a Espanha para a q u d Coligny estava conduzindo o rei viesse a ser desastrosa para a coroa francesa. Aparentemente, o que ela queria no início era assassinar Coligny. Nisso contava com a total simpatia de Henrique, duque de Guise, filho do assassinado Francisco, que erroneamenIe acusava Coligny pelo assassinato do pai em 1563. Em 22 de agosto de 1572 falhou um atentado contra a vida de Coligny, deixando-o apenas ferido. Esse fracasso levou Catarina ao pânico, pois ela se inimizara com os huguenotes sem privá-Ios de seu líder. Assim ela e seus partidários opraram por uma chacina geral, para a qual o grupo de Guise e os fanáticos parisienses forneceram abundantes recursos. Em 24 de agosto, dia de Sáo Bartolomeu, a sangrenta tarefa começou. Coligiiy foi morto, e com ele um grande número de vítimas que tem sido avaliado diferentemente, mas alcançando no mínimo três mil em Paris e várias vezes esse número em toda a Franca. Henrique de Navarra salvou sua vida abjurando o protestantismo.

Em Madrid e Roma a notícia foi recebida com regozijo. A causa católica fora salva de grande perigo. A política francesa fora revertida. 0 s planos de intervençáo militar nos Países Baixos foram eliminados. Porém, Cararina e os catúlicos militantes náo obtiveram nenhuma vantagem na F r a n ~ apois , a retomada da guerra civil era o resultado previsível dos acontecimentos de agosto de 1572. A quarra, quinta, sexta e sétima guerra huguenote (1572-1573, 1574-1 576, 1577 e 1580) seguiram sua trajetória de destruição e miséria, mas os huguenotes não Foram suprimidos. Carlos IX morreu em 1574 e foi sucedido por seu perverso e indeciso irmão, Henrique I11 (1574-1589). Escava se desenvolvendo uma divisão entre os próprios católicos. Desde muito havia pessoas, ainda que de religião católica, que sentiam

raloio ui

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escarem as prolongadas guerras arruinando o país e fomentando intrigas estrangeiras, especialmente por pane da Espanha. Esse grupo, conhecido como os Politiques, criam que devia ser alcançado algum tipo de paz com os huguenotes, de fato, que a religiáo em primeiro isso era inevitável. Por outro lado, havia os que coloca~~am

plano, e estavam dispostos aver a França ~ransformadaem mero apêndice da Espanha, desde que o catolicismo triunfasse. Esses, desde algum tempo, vinham organizando associaçóes em várias partes do país para sustentarem a igreja romana. Em 1576 todas elas foram agrupadas numa Liga Católica (ou "Uniáo Sacra"), encabeçada por Henrique de Guise e apoiada pela Espanha e pelo papa. A formacáo da Liga ernpursou os PoLitiqu~scada vez mais para Lima aliança com os huguenores, os quais encontraram seu líder político em Hcnrique de Navarra, que rctornara à sua fé prorescance em 1576.

A chacina de Sáo Bartolomeu salvou Alba e fez Guilherme de Orange perder a esperança de pronta expulsáo da Espanha dos Países Baixos. Os dois anos que se seguiram foram de intensa luta, na

GuiIherme foi a alma da oposiçáo. A princí-

pio, o comando de Alba pareceu invencível. Mons, Mechlin, Zutphen, Naarden e Haarlem caíram todas ante as forças espanholas, mas náo puderam tomar Alkrnaar, em outubro de 1573. Alba solicitou sua demissiio e, em novembro, foi substituído

por Luís de Requeséns (1525)-1576).A política espanhola, no entanco, não sofreu modificasáo substancial. Em abril de 1574 Luís dc Nassau foi morto em Mook, perco de Nijmegen, ocasião em que as rebeldes Foram derrotados compleramente.

Mas em outubro a heróica defesa de Leyden foi vitoriosa e tornou-se evidente que o norte dos Países Baixos náo poderia ser conquistado pelas for~asencáa disponíveis à Espanha, principalmente porque ela mostrava-se incapaz de alcarqar o controle do mar. Requeséns morreu em março de 1576 e em

4 de novembro daquele ano as

tropas espanholas, sem seu comandante, se descontrolaram e saquearam Antuérpia. Morreram mais de sete mil cidadãos e soldados durante onze dias de pilhagem e Iilassacre. A reaçáo a tudo o que era espanliol foi suficiente para unir as províncias do sul e do norte na assim chamada Pacificaç50 de Ghenr, em 8 de novembro de 1576. Essa Pacificaçáo conclamava a expulsão das tropas espanholas, a suspensáo dos editos de Filipe 11contra as heresias e a liberdade de culto para os calvinistas na Holanda e na Zelândia, desde que eles se abstivessem de atividades anticatólicas fora de seus territórios.

O novo comandante espanhol, o meio-irrnáo de Filipe, Dom Joáo da Áuçrria

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HISI6RIA DA IGREJA C R I S T i

(1547-1578), nada podia fazer senáo aceitar a pacificaçáo. Contudo, a parcida das tropas espanholas em março de 1577 náo Trouxe a paz religiosa. O calvinismo tinha defensores entusiastas nas vilas e cidades de Brabant e Flandres, e em 1577 e 1578 veemente pregaçáo calvii~ista,combinada com descontenramento social popular, convulsiono~ias províncias do sul em uma série de levantes que lembraram os distúrbios içonoclastas de 1566. A classe governante das províncias francófonas dos valóes do sul passou a desconfiar, até mesmo a desprezar os líderes do norcc holandês c seus zelosos pregadores calvinisras. Em janeiro de 1579 as províncias dos valóes se uniram na Liga de Arras para a proteqáo de sua fé catcílica e da ordem social. As províncias do norte responderam naquele mesmo mês com a União de Utrecht. Protestantes migraram do sul para o norte aos milhares, enquanto muitos católicos se mudaram para o sul. Os planos de Guilherme de Orange para a uniáo dos Países Baixos estavam-se desmanchando diante da intolerância e partidarismo religiosos. Entrementes, Dom Joáo da Austria morrera desiludido e amargurado, em outubro de 1578. Seu sucessor foi seu sobrinho e filho de Margarida de Parnia, Alexandre Farnese ( I 545-1 592), príncipe e mais tarde duque de Parma, gerierai e es~adistade apreciável talento. As coisas logo comeqaram a melhorar para a Espanha. Por meio de diplomacia astuta e sucesso militar, Parma conseguiu consolidar a auroridade real nas províncias dos valóes, onde montou sua base de operaçóes para a recuperação espanhola dos Países Baixos. Por fim, ele salvou as dez províncias do sul para a Espanha e para o catolicismo; a Bélgica de nossos dias é seu legado. As sete províncias do norte (HoIanda, Zclândia, Utrechc, Gelderland, Frísia, Overijssel c Groningen), juntamente com Flandres e Rrabant, declararam sua independência da Espanha em 158 1. Embora Flandres e Brahant tenham sido reconquisradas por Pasma nos quatro anos

seguintes, as províncias do norte conseguiram mancer sua liberdade náo obsrance as dificuldades, incluirido o assassinato, ein 10 de julho de 1584, de Guilherme de Orange por um fanático da realeza. (Em 1580 Filipe I1 declarara Guilherme proscrito e estipulara um prêmio para sua morre,) Duranre essa lura as igrejas calvinistas dos Países Baixos esriveram se organizando. O primeiro sínodo nacional se reunira em 1571 fora do território neerlandês, em Emden. Dois anos depois Guilherine de Orange abraçara o calvinismo. Em 1575 ele fundou uma universidade em Lcyden, logo famosa por sua erudjçáo em reologia e nas ciências. A igreja reformada dos Países Baixos, como a da França, era de constituicáo presbiteriana, ainda que o grau de sua independência do controle estatal te-

tiroa ao vi

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nha motivado longa controvérsia e variado nas diferentes províncias. A severidade da luta pela independência nacio~lal,o desejo de obter auxílio de todos quantos deles ernm amigos e o espírito mercantil levaram os protestantes dos l'aíses Baixos, por volta d o início do sécuio dezessete, a um grau de tolerância maior do que em qualquer outro lugar na cristandade da época. Na verdade, aos católicos não era permitida a realização de cultos públicos ou o exercício de cargos políticos, mas tinham direito de residência c trabalho. Em 1577 Guilherme de Orange concedera aos anabacistas direito de culto, coisa que jamais haviam tido em qualquer outro lugar. Esse grau de tolerância, ainda que parcial, logo fez dos Países Baixos um refúgio para os oprimidos por motivo religioso e contribuiu para o fortalecimento da n a ~ á o . Porém, a morte de seu líder, Guilherme de Orange, trouxe grande perigo para os neerlandeses. Sentindo que sozinhos náo poderiam se manter, ofereceram o governo dc seu país primeiro a Henrique I11 da França e depois a Isabel da Inglaterra. Anibos recusaram. Em fevereiro de 1585 Bruxelas se rendeu diante de Parma, e em agosto foi a vez de Antuérpia. Alarmada com o êxito espanhol, Isabel enxriou em dezembro de 1585 um exército sob o comando dc seu favorito, o conde de Leicester. Sem a permissáo dela, Leicester aceitou o título de governador geral, mas seu governo foi

um fracasso, tanto diplomática como militarmente, e ele recornnu à Inglaterra em

1587. Tinha-se a impressáo de que o coiriando habilidoso de Parma venceria as províncias rebcladas, mas nesse exato momento Filipe solicitou seus préstimos para uma empresa ainda niaior. O rei espanhol resolvera nada menos que a conquista da Inglaterra.

Filipe auxiliara Isabel no início do reinado dela por motivos exclusivameiite políticos. Cedo, porém, tais motivos deixaram de exis~irc Filipe tornou-se inimigo dela, vendo na "Jesabel inglesa" a líder daquele protestantismo que se compromorera a exterminar. A primeira parte do reinado de Isabel esteve surpreendentemente livre de

incomodas por parte de seus súditos católicos. Porém, Maria, "rainha dos escoceses", era a hcrdeira do trono e tornara-se um cencro permanente de conspiração após sua fuga para a Inglaterra, em 1568. Em 1569 irrompeu uma rebelião católica no norte da Inglaterra ("o Levante do Norte"), insuflada pela Espanha, mas foi rapidamente dominada. Em 25 de fevereiro de 1570 o papa Pio V emitiu sua extraordinária bula,

Regnuns in excelsis, declarando Isabel excomungada e deposta. Em 1571 foi descoberta a assim chamada conspiração Ridoifi - devido a um banqueiro italiano residetite na Inglatcrra - que visava ao assassinato de Isabel e ao casamento de Maria com o

duque de Norfolk, o primeiro nobre do reino. A trama falhou completamente. O parlamento reagiu declarando crime de alta traição qualquer ataque à pessoa de Isabel, à sua ortodoxia ou à sua legitimidade ao trono. Norfolk foi executado em 1572. Durante os primeiros anos de Isabel os católicos ingleses surpreendentemente receberam pouco auxílio ou direçáo espiritual de Roma e seus seguidores no continente. Para remediar esta situaçáo, Guilherme Allen (1532-1594),hábil exilado inglês feito cardeal em 1587, fundou um seminário em Douai, Flandres, em 1568, para preparar missionários para a Inglaterra. Seus estudailtes logo comeqaram a ir para lá, chegando a mais de duzentos e cinqüenta por volta de 1585. Sua obra era quase inteiramente es~irirual,mas mesmo assim as autoridades inglesas viam-na com hostilidade. Agravou-se a situaçáo quando, em 1580, os jesuítas iniciaram uma pe-

quena missáo sob a liderança de Roberto Parsons (1546-161O) e Edmundo Campion

(1 540-1581). Esre foi preso e executado, embora náo tenha intentado nenhum movimento político. Parsons, porém, escapou para o continente, atraiu Allen para seus ~ l a n o se comecou uma série de intrigas para provocar uma invasáo espanhola da Inglaterra, um levante católico nesse país e a morre ou a deposição de Isabel. Seu trabalho trouxe muita infelicidade para seus companheiros católicos na Inglaterra. Hoje sabemos que muitos dos sacerdotes que atuavam na Inglaterra náo possuíam desígnios traidores, mas na época isso náo foi ~ercebido.As autoridades inglesas consideraram todos comti inimigos públicos, e executaram tantos quantos seus espiões conseguiram descobrir. Mas pelo esforço desses sacerdotes foi preservada a igreja romana na Inglaterra, enibora a um custo assombroso. Durante o reinado de Isabel foram executados 183 sacerdotes e leigos.

Em 1586 novo plano foi preparado contra a vida de Isabel - a conspiraqáo de Babington - !oi qual os espióes ingleses descobriram que Maria, "rainha dos escoceses", escava pessoalmente envolvida. Como conseqüência, ela foi decapitada em 8 de fevereiro de 1587, após muita indecisáo por parte de Isabel. Entáo Filipe se resolveu a invadir a Inglaterra. Embora há muico reIutante quanto a entrar em guerra contra Isabel, ele ressentira-se bastante da intervenção inglesa nos Países Baixos sob Lcicester, em 1585, e também as incursões sernipiratas que Sir Francis Drake conduzira contra estabelecimentos espanhóis no Caribe e no golfo do México naquele mesmo ano com a autorizacão de Isabel. Ademais, antes de sua execuçáo Maria nomeara Filipe como seu sucessor ao trono inglês, e Filipe tinha então motivo para se apresentar como vingador da rainha martirizada e defensor da Iegitimidade. E, náo menos im-

aion no vi

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portante, a conquista da Inglaterra restauraria o catolicismo ali e na Escócia, capacitaria Parma a submeter os rebeldes Países Baixos e deixaria Filipe livre para interferir decisivamente na Franca.

O plano de Filipe era reunir uma grande esquadra em Lisboa e enviá-la para portos nos Países Baixos. Lá, as tropas experientes de Parma seriam embarcadas em balsas e cruzariam o canal escoltadas por navios e invadiriam a Inglaterra. A "Grande Armada" deveria partir em 1587, mas em abril daquele ano Drake conduziu sua famosa incursáo em Cádiz, destruindo muitos navios e mantimentos e assim postergando a aventura por um ano. Por fim, em 28 de maio de 1588, a "invencível" armada de cento e trinta navios e trinca mil homens zarpou de Lisboa. A batalha na qual estava presres a se engajar foi um confronto entre velhas e novas táticas navais. A estratégia espanhola era se aproximar dos navios inimigos e abordá-los. Seus pleóes eram lentos e difíceis de manejar, seus canhões atiravam pesado mas eram de curto alcance. Os navios ingleses eram maiores, mais velozes, mais fáceis de manobrar e armados com mais canhões que, embora mais leves, atiravam com maior precisáo e cinharn maior alcance. Portanto eles eram capazes de impedir a aproximaçáo e abordagem e castigar os desajeitados vasos espanhóis com artilharia mortífera. Em 31 de julho feriu-se o combate, defronte de Plymouch. Seguiu-se uma semana de luta veloz, subindo o canal da Mancha. Perseguida implacavelmente, a armada não conseguiu se unir com Parma na costa flamenga, uma vez que os Paises Baixos não possuíam porto com águas profundas para receber os galeões espanhóis (uma falha fatal no plano de Filipe, a qual ele náo prestara atenção apesar da objeção bem informada de Parma). Em 8 de agosto, após a esquadra espanhola em Calais ter sido dispersada por um terrivel ataque dos navios ingleses, os restantes dos vasos enfrentaram os navios ingleses, muito mais numerosos, em intensa baralha defronre de Gravelines. Sem esperança de vitória, o remanescente da armada fugiu para o norte, procurando escapar para a Escócia e a Irlanda. Tempestades completaram sua dest r u i ~ á odurante a retirada. Metade de seus navios e dois terços dos homens não retornaram. A Inglaterra foi a rocha na qual a empresa imperialista de Filipe e suas visóes de um catolicismo restaurado se despedaçaram. Náo apenas a sua armada caiu diante da artilharia e da marinha inglesa, como também nunca ocorreu o levante católico que ele esperava que acontecesse na Inglaterra durante o decorrer da batalha, e que homens como Allen e Parsons haviam predito tão confiantemente. Enquanto as grandes esperanças de Filipe eram assim desfeitas em 1588, ele se

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agarrava, táo tenazmente como nunca, ao plano de erradicar o protestantismo da França e manter esse país fraco e dividido. A morte do único irmáo sobrevivente de Henrique 111, o duque de Anjou, em 1584, deixara o huguenote Henrique Bourbon de Navarra como próximo herdeiro do trono. Para evitar cal sucessáo, Filipe e a liga católica fizeram em janeiro de 1585 um tratado secreto pelo qual quando da morte de Henrique 111 a coroa passaria ao tio de Henrique de Navarra, Carlos, cardeal Bourbon. Em julho de 1585 Henrique III foi forcado pela liga a retirar dos huguenotes todos os direiros, e em serembro uma bula de Sisto V (1 585-1590) declarou Henrique de Navarra incapaz de ocupar o trono. Disso resultori a oitava guerra huguenote

(1585-1 589) - tambem conhecida como "Guerra dos Três Henriques", por causa de Henrique 111, Henrique de Guise, o líder da liga, e Henriquc de Navarra. Paris era inteiramenre devorada a Henrique de Guise. E m 12 de maio de 1588 seus habitantes obrigarain Henriquc 111 a deixar a cidade. O fraco rei náo via como resistir às exigências da liga e de seu autoritário chefe e, em 23 de dezembro, fez com que Henrique de Guise fosse traicoeiramente assassinado. Catarina de Médici morreria treze dias depois. Heiirique de Guise foi sucedido na liderança da liga por seu irmáo Carlos, duque de Mayenne. Henrique 111 envio fez um acordo con-i Henrique de Navarra, e juntos estavam sitiando Paris quando Henrique 111, o último dos Valois, foi apunhalado

por um monge fanático e inorreu no dia seguinte, 2 de agosto de 1589. Mas Henriquc de Navarra, ou, como ele agora se tornava, Henriquc IV da Franca (1589-1610), ainda não estava nem um pouco seguro em seu novo trono. A liga foi derrotada em Iviy, em março de 1590, mas Parma e suas tropas foram novamente convocados dos Países Baixos, desta vez para "salvar" a França. Eles impediram que Henrique caprurasse Paris em 1590 e Rouen em 1592. Entrementes, as forças espanholas invadiram a Bretanha c o Languedoc. Só após a morte do brilhante Parma, em 3 de dezembro de 1592, é que Henrique IV realmente governou. Então, por questóes puramente políticas, Henrique IV se declarou católico, sendo recebido na igreja romana em 25

de julho de 1533, embora o acordo com o papa náo fosse concluído senáo mais de dois anos depois. Embora sujeita à crítica moral, essa atitude de Henriquc agradou à grande maioria de seus súditos e trouxe paz ao conturbado país. Mas Henrique também não se esqueceu de seus antigos companheiros. Em abril de 1598 foi publicado o edito de Nanres. Por ele, os huguenotes eram admitidos em todas as Funções públicas, o culto público era permitido onde existira em 1597, exceto em Paris, Rheims,

PERIDOOYI h REFORMA

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Touiouse, Lyon e Dijon, e os filhos dos huguenotes não podiam ser for$ados a receber instruqão católica. Como garantia, algumas cidades fortificadas foram entregues aos huguenotes. Em maio de I598 a guerra franco-espanhola, declarada por Henrique IV em 1595, foi encerrada pejo tratado de Vervins, basicamente nos mesmo terinos do tratado de Cateau-Cambrésis de 1559. Filipe I1 morreu em 13 de setembro de 1598, com setenta e um anos de idade. Ele não apenas náo conseguira conquistar a Inglaterra como sua intervenção militar na França capacitara os rebeldes holandeses a retomarem a ofensiva, sob Maurício de Nassau (1 567-1625), o jovem filho de Guilherme dc Orange. Eles consolidaram seu controle sobre as Províncias Unidas e garantiram a independência holandesa.

Em seguida ao edito de Nantes, as igrejas h~rgucnoresentraram cm seu período mais próspero. Completaram sua organizaçáo, e floresceram suas escolas em Sedan, Saumur, Montauban, Nimes e em outros lugares. Elas formavam uma corporat;áo política armada dentro do estado. Como tal, foram contrapostas pela política cencralizadora do cardeal Richelieu, o

ministro de Luís XIII (1610-1643).

Em 1628, Ihes foi tirada a fortaleza de La Rochelle, após resistência de catorze meses, e terminou sua semi-independência politica. Seus privilégios religiosos foram preservados pelo Edito de Nimes, em 1623, inas sofreram crescentes ataques dos jesuítas e outras influêricias católicas no decorrer do século. A revogação do Edito de Nantes, ein 1685, por Luís XIV (1643-171 5), reduziu os huguenotes a uma igreja persegui-

da, mártir, que seria proscrita atC as vésperas da Revoluqáo Francesa. Ta1 revogagáo também lançou ccrca de trezentos mil huguenotes no exílio, para o benefício da Inglaterra, Holanda, Prússia e América.

Capítulo 13

As Controvérsias Religiosas Alemãs e a Guerra dos Trinta Anos A desgraça do luteranismo foi náo ter outro laço de uniáo entre seus representar-ites nos seus vários territórios que um acordo na "pura doutriria", e que diferenças de interpretaçáo eram tidas como incompatíveis com a comunhão cristá. A concepçáo

luterana original da fé como a firme confiança do coraçáo na misericórdia de Deus gratuitamente prometida por causa de Cristo tendeu a se transformar numa noção mais intelectualizada da fé como "um assentimento pelo qual se aceita todos os artigos da fé" - uma definição apresentada uma vez por Melanchthon. O resultado foi o desenvolvimento gradual de um novo escolasticismo protestante. Durante a década de 1530 a influência teológica de Melancbthon tornou-se ainda mais dihndida e aguda do que a do próprio Lutero. Os discípulos de Melanchthon, por sua vez, exerceram uma influência determinante na segunda geração do luteranismo. Influenciado pelo pensamento humanista, Melanchthon aos poucos se afastou de sua concordância inicial com Lutero, diferindo em alguns aspectos de seu famoso colega. Quando da edição de 1535 de seu Loci communes, ele chegara a modificar a doutrina de Lutero sobre a liberdade humana e a ensinar que a fé salvifica é o resultado das operações conjuntas da palavra proclamada, o Espírito Santo, e a vontade humana - um ponto de vista que geralmente recebe o nome de "sinergismo". Ele também defendia que as boas obras são "necessárias para a vida eterna", não como a base da salvagão mas como sua evidência indispensável - uma postura que mais tarde abandonaria, mas que seria retomada por alguns de seus pupilos. Com referência à Ceia do Senhor, Melatichthon chegou a pensar que Lutero vinculara exageradamente a "presença real" de Cristo aos elementos sacramentais; sem chegar de todo à posição de Calrino (ver VI:?,), ele defendeu que Cristo é dado "não no páo, mas com o pão", enfatizando dessa forma a recepção espiritual em vez da física. Esses traços mais recentes do pensamento de Melanchthon foram incorporados em sua edição de 1540 da Confissão de Augsburgo, a assim chamada edição Variata ou "alterada". Tais diferenças nunca trouxeram rompimento com Lutero, em parte graças à generosa afeição deste para com seu amigo mais moço, e em parte graças à cautela de Melanchthon em suas expressões. Não obstante, essas diferenças por vezes levaram Melanchthon a se sentir constrangido diante de Lutero nos derradeiros anos da carreira desse reformador e ainda causariam muitos problemas nas comunhóes luteranas. Um dos principais moti\~osdo mal-estar foi o consentimento relutatite de Melanchthon ao Ínterim de Leipzig, em 1548 (ver VI:5). Para ele, muitas práticas romanas entáo restabelecidas eram "não essenciais" (adiaphora). Para Matias Flaciui Illyricus e Nicolau von Amsdorf, vivendo em segurança em Magdeburgo, nada podia ser "não essencial" naquela época. Ambos atacaram Melanchthon veementemen-

PEB~OIOYI

A REFORMA

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te, no que foram apoiados por João Brenz (1499-1570), que liderou a oposição ao Ínterim na Alemanha meridional. Esta foi a "Controvérsia Adiaforista". Esse racha logo aumentou quando os príncipes da antiga linhagem eleitoral da Saxônia, agora privados do poder eleitoral, julgaram que Melanchthon, ao permanecer em Wittenberg, agora em poder de Moritz, o mesmo que lhes espoliara o poder eleitoral, era culpado por desertar uma família que o apoiara fielmente. Eles elevaram a escola de Jena a universidade, em 1558, e nomearam Flacius para uma de suas cátedras. As universidades de Jena e Konigsberg foram os principais centros da oposição "gnésio-luterana' ("luteranaverdadeirá') a Melanchthon e seus defensores "filipistas". Surgiram outras disputas teológicas, entre elas a "Conrrovérsia Osiandra" e a "Controvérsia Majorisra'. André Osiander (1498-1552) provocou a oposição de ambos os partidos luteranos, como também a de João Calvioo, ao ensinar que a justificação é uma questão de o pecador não simplesmente "ser declarado justo" mas realmente "ser feito justo" mediante a permanência substancial do Cristo divino no pecador. Jorge Major (1502-1 574) afirmava, em profunda concordância com a antiga postura de Melanchthon, que é impossível ser salvo sem boas obras, uma vez que estas são necessárias para conservar a justificação pela fé. Em 1552 ele foi aracado veementemente por Amsdorf, que chegou a afirmar que as boas obras sáo danosas e prejudiciais à salvação. No mesmo ano Joaquim Westphal (1510-1574) lançou um feroz ataque à doutrina de Melanchrhon sobre a Ceia do Senhor, dizendo-a "criptocalvinismo", ou calvinismo furtivamente introduzido. Não é de se admirar que pouco antes de sua morte, ocorrida em 19 de abril de 1560, Melanchthon tenha expresso sua disposicão em partir para escapar "da raiva dos teólogos" (rabies theologorum). A situaçáo protestante na Alemanha foi rumulruada ainda mais pelo avanço vitorioso do calvinismo no sudoeste. Frederico 111 (1559-1576), o primoroso eleiror do Palatinado, depois de estudar os debates sobre a Ceia do Senhor, decidiu adotar a posiçáo calvinista quando se tornou eleitor em 1559. Em 1262 os jovens teólogos Gaspar Olevianus (1536-1587) e Zacarias Ursinus (1534-1583) prepararam para os territórios de Frederico o notável Catecismo de Heidelberg - , em 1562 - uma das exposições mais amavelmente brandas e empiricas do calvinismo. O eleitor o adotou em 1563. Mas o calvinismo não tinha proteção alguma sob a Paz de Augsburgo de 1555, e logo náo somente os católicos como também os luteranos protestaram contra sua tolerância. Os debates dentro do luteranismo continuaram com grande intensidade. Em

1573 o eleitor Augusto da Saxônia (1533-1586), tendo assumido a tutela dos jovcns príncipes da Saxônia ducal, onde predominavam os oponentes "gnésio-luteranos" de Melanchthon, expulsou os seus representarites mais radicais. Até então a Saxônia eleitoral, com suas u~liversidadesde Wittenberg e Leipzig, havia seguido a tradiçáo de Melanchthon ou "filipista". Agora, em 1574, o eleitor Augusto acreditava ter descoberto em seus próprios domíiiios uma propaganda calvinisra aré então insuspeita sobre a Ceia do Senhor. Ele mandou para a cadeia alguns de seus principais teólogos, sendo que um deles chegou aré mesmo a ser torturado. "Filipismo" e "criptocalvinismo" forani reprimidos com rigor. No entanto, essa luta cáustica deu origem em 1577 ao último grande credo luterano, a Fórmula de Concórdia. Ela foi preparada por alguns teólogos irêtiicos, dos quais os principais eram Jacó Andrea (1528-1590) de Tubingen, Martiriho Cheninitz (1522- 1586) de Brrinswick e Nicolau Selnecker (1532-1592) de Leipzig. Em junho de 1580, ocasiáo do quinquagésirno aniversário da apresentaçso da Confissáo de Augsburgo, ela foi publicada no Livro de Co?zcóudia,junramente com os outros "símbolos" ou declarajóes confessionais luteranos - os três credos ecumênicos, a Coiifissáo de hugsburgo (inaíterada), a Apolugi;z da Confissáo de Augsburgo, os Artigos de Sclimalkalden e os Catecismos Pequeno e Grande. O volume recebeu as assinaturas aprobatórias de cinqüenta e um príncipes, dos representantes de trinta e cinco cidades e de mais de oito mil ministros. hlguns príncipes e cidades luceranos negaram-se a subscrever a Fórmula de Concórdia, mas ela, sem dúvida alguma, representava a grande maioria da Alemanha lutcrana. Ela rejeitava as posi~óesextremadas tanto dos "gnbsio-luceranos" como dos "fiiipistaç", ao passo que mantinha a interpretacáo lurerana mais estrita sobre todos os pontos controvertidos. Embora a Fórmula continuasse em concordância substancial com o pensamento d e l u t e r o , era consideravelmente mais "escolástica" em seu mttodo e forma de argumento do que as próprias obras teológicas de Lutero. Assim, pode-se dizer que a Fórmula inaugurou o período da alta ortodoxia luterana, que teria sua exposição clássica na monumental obra Loci theologici (9volumes, 1609-1622) de Joáo Gerhard (1582-1637). Esca obra distinguiu-se por seu extenso uso do mécodo dialético. Sob essa repressáo os "íilipistaç" se voltaram cada vez mais ao calvinismo, e este airançou ainda mais na Alemanha. Nassau juntou-se ao Palatinado em 1577, Bremen por volta de 1581, Anhalt em 1597 e parte de Hesse no mesmo período. A casa eleitoral do Brandenburgo se tornou calvinista em 1613, ainda que muitos dos habi-

PERIOOO VI

A REFORMA

62.3

tantes dessa regiáo continuassem luteranos. Essa mudanca frequentemente foi acompanhada pela manutençáo da Confissão de Augsburgo. Não obstante essas igrejas "reformadas" alemás terem se tornado calvinistas na doutrina e no culto, a disciplina característica de Calvino teve pouca acolhida entre elas. Na ocasião da Paz de Augsburgo em 1555, a Alemanha era um pais esmagadoramente protestante. A igreja católica romana desaparecera da maior parte do país e estava em siruaqáo dcsesperadora. Praticamente todos os governantes seculares tinham se tornado protestantes, mas dois terços dos príncipes eclesiásticos no Reichsrag, bem como o iniperador, continuavam católicos, e eles forneceriam a base política para o reavivamento católico ria Alemanha e no império. O protestantismo na Alemanha, ademais, alcancara sua máxima expansáo ~erritorialpor volta de 1566. Desse momento em diante comecou a declinar. O catolicismo reavivado da Conrra-Reforma ficou cada vez mais agressivo, liderado pelos jesuítas e apoiado por príncipes zelosamente católicos, como os duques da Baviera. O protesrancismo, dividido confessional e politicamente, não podia oferecer resistência unificada. Na Raviera, o duque Alberto V (1 550-1579) aplicou vigorosainentc o princípio

cuius ~egio,eius reIigio para dominar a nobreza e o povo protestante do lugar. Em

1572 o abade de Fulda de modo idêntico buscou reprimir o protestantismo em seu terrirório monástico. Por algum tempo encontrou bem sucedida resistência, mas por fim alcancou seu objetivo a partir de 1602. Sob a lideran~ados jesuítas, foram efetuados progressos católicos semelhantes em muitos hispados nos quais os habitantes haviam abracado as idéias evangélicas. Logo o protestantismo [ambém foi suprimido nos cerritiirios pertencentes às três grandes arquidioceses de Mainz, Trier e Colônia, cujos príncipes-bispos contavam-se entre os sete eleitores imperiais. A disputa mais séria deu-se em Colônia, cujo arcebispo, Gebhard Truchscss, decidiu se casar, em 1582, e abraçou o protescanrismo. Pouco auxilio recebeu dos príncipes protestantes. E m 1583 ele foi forçado a deixar sua sé estrategicaniente situada, e o território foi totalmente restaurado ao catolicismo. Na Áustria e na Boêmia a situa@O

se [ornou progressivamente desfavorável para o protestantismo; e ali, como em

todas as partes do irnpdrio, a propaganda jesuíta fez muitos conversas. Essa propaganda era agressiva e confiante de que por fim triunfaria. As relacóes entre protestantes e católicos eram permanentemente tensas.

Um fato ocorrido ern 1606-1607 aumentou substancialmente essa animosidade. A pequena cidade imperial de D o n a u w ~ r t hera na sua quase totalidade protestante,

mas lá sobrevivera um mosteiro benditino, e os monges estavam decididos a recuperar a cidade ao aprisco católico. Uma de suas procissóes religiosas, em 1606, terminou em tumulto. A mando imperiar, o hábil duque católico da Baviera, Maximiliano

Bi-:

(1597-1651), ocupou a cidade e deu início à repressáo do culto evangélico. No

O

Reichstag de 1608, em Ratisbona, os territórios católicos exigiram a rcstiruiçáo de

nz:.

todas as propriedades eclesiásticas confiscadas desde 1555. Essa reivindicaçáo estava

Pr:.

de pleno acordo com a legislação da Paz de Augsburgo; mas no transcurso de duas

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gera~óesa popuIago de muitos desses distritos tinha se tornado predominanternen-

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te protestante.

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Sob tais circunstâncias, alguns príncipes protestantes formaram em 4 de maio de

p ri

I608 uma "uniáo" defensiva, chefiada pelo eleitor calvinista Frederico IV, do Palatinado (1583-1 6 10). Ela logo foi contraposta por uma "liga" de príncipes católicos, formada em 10 de juIho de 1609 e liderada por Maximiliano da Baviera. Os

hirr

fortes estados luteranos do norte da Alemanha náo quiseram ingressar na uniáo, e o imperador também náo ingressou na "liga". Se Henrique IV da França estivesse vivo,

t bem possível que a guerra tivesse se iniciado naquela ocasiáo, uma vez que o rei francês aliara-se com a uniáo para um projetado ataque sobre os Países Baixos espanhóis; mas seu assassinato em 161O, c a incerteza da sucessão imperial na Alemanha, retardou-a por algum tempo.

O verdadeiro início da assim chamada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi provocado na Boêmia. Esta era, em 1609, amplamente protestante. Essa maioria protestante então arrancou de seu rei meio demente, o imperador Rodolfo I1 (1576-

1612), um diploma - a "Carta de Majestade" - concedendo alto grau de tolerância religiosa. Rodolfo foi sucedido, como rei e como imperador, por seu irmáo Matias (rei 161 1-1613; imperador 1612-1619), mas ele náo tinha filhos e em 1617 seu primo, Fernando de Estíria, defensor inflexível da Contra-Reforma, conseguiu ser reconhecido

estados boêmios como sucessor de Matias. As violações católicas

da "Carta de Majestade" aumentaram, e em 3 de maio de 1618, um grupo de nobres protestantes insatisfeitos lançou os dois regentes católicos, que representavam o ausente Matias, por uma alta janela do castelo Hradczany, em Praga. Tal fato - conhecido como Defenestra~áode Praga - levou a Boêmia a se revoltar, e começou a guerra. No início, foi ela favorável aos insurretos boêmios e, depois da morte de Matias em 1619, eles eiegeram como seu rei o eleitor calvinista do Palarinado, Frederico V

(1610-1632). Na mesma semana, Fernando de Estíria foi eleito imperador, com o

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prnlowui

A REFORMA

nome de Fernando I1 (1619-1637). Frederico encontrou pouco apoio fora da BoSmia, enquanto Maximiliano da Baviera e uma força espanhola dos Países Baixos vieram em auxílio de Fernando. Sob o comando do general valáo João Tserkales, conde deTilly (1559-1632), essa combinação católica esmagou as forças boêmias na baralha de Montanha Branca, perto de Praga, em 8 de novembro de 1620. Frederico fugiu do país. A Carta de Majestade foi anulada, as propriedades dos protestantes boêmios foram em

parte confiscadas,

para o proveito financeiro dos jesuítas, e a Contra-Reforma posta em vigor com máo de ferro na Boêmia e Morávia. Entre os que se enriqueceram pela aquisição das propriedades confiscadas estava alguém destinado a desempenhar grande papel na história posterior da guerra, Albrecht v011 Wallenstein (1583- 1634). A uniáo foi dissolvida. Então foi a vez de os protestantes serem semelhantemente reprimidos na Áusrria. Entrementes, tropas espanholas, sob o comando de Ambrósio Espinola, invadiram o Palatinado em 1620. Logo seguiram para lá Tilly e o exército da liga católica.

O território foi conquistado, o catoiicismo imposto e, em 1623, o cítulo eleitoral de Frederico, com boa parte do Palatinado, foi transferido para Maximiliano da Baviera.

O noroeste da Alemanha, onde muitos bispados haviam se tornado possessóes protestantes desde a Paz de Augsburgo, ficou enráo ameapdo pela guerra, e os reve-

-5 tõi

ses já sofridos pelo protestantismo despertaram a atenção de potências protestantes

-. . ..~ioria

estrangeiras. Porém, ninguém fez nada de efetivo a não ser Cristiano IV da Dinamar-

i 5-6-

ca (1588-1648), a quem a Inglaterra e os Países Baixos protestantes enviaram peque-

. :.-~ncla

no auxílio. O imperador Fernando pensou ser rrernenda a animosidade do rei dina-

';latias

marquês e assim ordenou a Wallens~einque organizasse um novo exército e ficasse

.

.-.

seu

como cornandante-em-chefe imperial. Este notável aventureiro, nascido protestan-

:;u

ser

te, era agora nominalmente católico e na época o nobre mais rico da Boêmia. Líder

r:dicas

nato, organizou um exército no qual náo havia restriçáo de raça ou credo, simples-

.:obres

mente a exigência de capacidade na luta e lealdade ao comandante-em-chefe. Rapi-

T .O

au-

:onhe-

damente ele organizou uma forta de grande eficiência. Em 2 5 de abril de 1626 Wallenstein derrotou o exército protestante comandado

guer-

pelo conde Ernesco de Mansfeld, na ponce de Dessau sobre o Elba. Ele perseguiu as

liatias

tropas derrotadas cruzando a Silésia até a Hungria, para onde elas se haviam retirado

.srico V

na vá esperança de montar uma poderosa resistência em conjunto com o inimigo do

;om o

imperador, o calvinista Bethlen Gabor, príncipe da Transilvânia. Em 27 de agosto de

.

i

636

HISTORIA DA IGREJA CRISTíI

1626 Cristiano TV da Dinamarca foi batido por Ti1Iye o exército da liga católica, em Lutter. Essas vitórias católicas prosseguiram em 1627 e 1628. Caíram primeiro Hanôver, Brunswick e Siiésia, e depois Holstein, Schleswig, Pomerânia e Mecklenburgo. Wallenstein, porém, não conseguiu capturar o porto de Stralsund, no Báltico, pois este foi socorrido pelos suecos. Diante disso, Wallenstein achou ser prudente fazer a paz antes que o capaz rei da Suécia, Gustavo Adolfo (1 6 1 1- 1632), pudesse interferir na guerra. Dessa forma, mediante um tratado em maio de 1629, foi concedido a Cristiailo IV conservar seus territórios sob a condiçáo de náo mais

interferir na política alemã. Os católicos estavam decididos a colher os frutos de suas vitórias. Em 6 de março de 1629 o imperador Fernaildo emitiu um "Edito de Restiruiqáo", ordenando a devolução aos católicos de todas as propriedades eclesiásticas que tinham passado i s mãos protestantes desde 15 52, a expulsão dos protestantes dos territórios governados por católicos, c o não reconhecimenro de qualquer grupo protestante, exceto os luceranos,

assim os calvinisras de quaisquer direitos. Os eventos dos pri-

meiros anos seguintes impecliram a plena execução desse edito, mas cinco bispados, ceni mosteiros e centenas de igrejas pnroquiais foram, por um rernpo, assim transferidos. E muito mais teria sido transferido se as vitórias carblicas tivessem continuado, e se os católicos náo tivessem brigado entre si pelos espólios. Essas disputas, e os ciúmes da lisa, encahecada por Masrimiliano da Baviera, provocados pela grande ampliação do poder imperial efetuada por Wallenstein, fizeram com que a liga exigisse, e obtivesse, a sua demissáo. Em setembro de 1630 o imperador se viu compelido a despedir o seu general mais capaz. Ainda antes da dernissáo de Wallenstein, ocorrera um fato da máxima importância mas cujas consequ~riciasnão foram patentes de imediato. Em junho de 1630 o rei Gusravo AdoIfo da Sukcia desembarcara com um pequeno exército ria costa alemá. Dois motivos o levaram a interferir na guerra. Indubitavelmenre vinha como defensor da fé protestante; mas também desejava fazer do Báltico um lago sueco e, daí, via nos ataques imperiais aos portos alemáes no Báltico imediata ameaça ao seu próprio reino. No caso de que esses portos fossem tomados por uma potência hostii, a Suécia correria grave perigo. Gustavo rapidamente conseguiu expulsar da Pomerânia as tropas imperiais, mas marchou devagar por falta de aliados. Em janeiro de 1631, entretanto, fez um tracado com a Franca, entáo sob a magistral liderança de Armando du Plessis, cardeal Rtchelieu (1585-1642), ministro de Luís XIII. Por esse trata-

~ t i i a o ovi

A REFORMA

62;

do, a Sutcia conseguia considerável ajuda financeira c Richelieu renovava a histórica hostilidade da França contra os Habsburgos da Espanha e da Áustria. Renascia a antiga política francesa de auxiliar os inimigos dos Habsburgos para o proveito da moriarquia francesa, inesmo que tais inirriigos fossem protestanres. O próximo passo importante e difícil de Gustavo era conseguir a alianca do Brandenburgo que, embora protestante, era imperialista, e da Saxônia, que era neutra. Em 20 de maio de 1631 TilIy tomou Magdeburgo, praticamente destruindo a cidade com fogo e tratando seus habitantes com brutal ferocidade. Essa perda de uma fortaleza procestance foi seguida, em junho, pela alianca entre Gustavo e o eleitor do Brande~ihrir~o, e em agosto, pelo abandono pela Saxônia de sua neutralidade e imediata uniáo com os suecos. Em I7 de setembro de 1631, com pequeno auxílio da Saxônia, Gustavo derrotouTiíly em Breicenfeld, perto de Leipzig.

O poder imperial no norte da Alemanha desintegrou-se, e o rei sueco marchou vitoriosamente até o Keno, estabelecendo-se em Mainz, enquanto o exército da Saxônia tomava Praga. Em tal aperto, o imperador convocou de novo Walienstein para que formasse um exircito, c em abri1 de 1632 esse general estava à frente de forca rcdobrada. Enráo Gustavo marchou contra Maxi~nilianoda Baviera, derrotou Tilly numa baralha perto de Doi~auworth,na qual esse coniandante foi mortalmente ferido. A capital bávara, Munique, teve que se render ao rei sueco. Enrrementes, Wallenstein expulsara de Praga o exército da Saxônia, e marchara ao encontro de Gustavo. Os dois exércitos se posicionarani um diance do outro perto de Nuren~berg.Após algumas semanas de hesitaçáo, Wallenstein se dirigiu para o norte com o fito de esmagar a Saxônia. Gustavo o seguiu e o derrotou em Lutzen, perto de Lcipzig, em

16 de

novembro de 1632, em árdua batalha na qual Gustavo perdeu a vida. Sua obra, porém, permaneceu. Fizera do Edito de Restitujçáo letra morta no norte da Alemanha, e sua memória é guardada com carinho pelos protestantes alemães.

A direçáo dos assuntos suecos passou para o capaz chanceler Axel Oxenstjerna, ainda que o melhor general protestante fosse agora Bernardo de Saxe-Weimar (1604-

1639). Em novembro de 1633 ele capturou Ratisbona, importante cidade no sul da Alemanha, e rompeu a linha do Danúbio para o avanço protestante. Enquanto isso, Wallenstein ficara relativamenre inativo na Boêmia, cm parte temeroso das grandes tropas espanholas enviadas para a Alemanha meridional, e em parte conspirando com a Saxônia, Suécia e França. Náo se pode saber exatamente a que ele tinha em

mente, mas o mais provável é que almejasse assegurar para si mesmo a coroa da Boêmia. Seu fracasso em reconquistar Ratisbona foi a última gota que fez transbordar a desconfiada hostilidade do imperador, e em 25 de fevereiro de 1634 ele foi assassinado por alguns de seus próprios oficiais, em conseqüência da intriga imperial. Em 5 e 6 de setembro de 1634 Bernardo e as tropas suecas foram completamente derrotados em Nordlingen por um exército composto de tropas imperiais e espanholas. Essa batalha foi táo decisiva como a de Breitenfeld, cerca de três anos antes. Breitenfeld demonstrara que a Alemanha setentrional náo podia ser conquistada pelos católicos, Nordlingen demonstrava que a Alemanha meridional náo poderia ser vencida pelos protestantes. A guerra, pois, tinha que terminar e em 15 de junho de 1635 o imperador e a Saxônia acertaram a paz, em Praga. O dia 12 de novembro de

1627 foi estabelecido como data normativa. Todas as propriedades eclesiásticas ficariam por quarenta anos em poder daqueles que naquela data estavam de posse detas, e seu destino final seria decidido por um tribunal formado igualmente por juízes

católicos e protestantes. Privilégio algum foi mencionado para os calvinistas. Nas semanas que se seguiram, a maior parte da Alemanha protestante ratificou tal acordo. Porém, não haveria paz para a desventurada terra. A guerra continuaria por mais treze anos, táo selvagem como dantes. Seu objetivo inicial foi praticamente abandonado e ela se converteu em luta travada em solo alemão com o apoio de partidos aiemáes, para o engrandecimento da Espanha, França e Suécia, na qual a Franga levou a melhor parte. Fernando I1 foi sucedido por seu filho, Fernando I11 (1637-

1657),mas a mudança não alterou a situagáo. A Alemanha faltavam líderes de verdade, sendo a única exceçáo Frederico Guilherme, o "Grande Eleitor" ( 1640- 1688) do Brandenburgo. Mas se ele teve êxito no aumento de suas possessóes territoriais, era jovem demais para influir no curso da guerra. Por fim, depois de inúmeras negociaçóes, foi alcançada a Paz de Vestfália em 27 de outubro de 1648. A Suécia estava firmemente estabelecida no litoral alemáo do Báltico. A maior parte da Alsácia passou para a França. Foi formalmente reconhecida a antiga independência da Suíça. O Brandenburgo recebeu o arcebispado de Magdeburgo e os bispados de Halberstadt e Minden como compensaçáo pela desistência, a favor da Suécia, sobre parte da Pomerânia. Maximiliano da Baviera manteve seu título de eleitor e parte do Palatinado, enquanto o restante deste foi restituído

r~nleioui

1 REFORMA

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a Carlos Luís, filho do infeliz Frederico V, para quem foi criado um novo título eleitoral. O acordo religioso foi mais importante. Nesse acordo, a habilidade do "Grande Eleitor" conseguiu a inclusao dos calvinistas, os quais, com os luteranos, foram considerados um só partido, em oposiqâo aos católicos. Os calvinistas alemáes, por fim, alcançaram plenos direitos. O Edito de Restituiçáo foi totalmente abandonado, e o ano de 1624 tomado como norma. Qualquer propriedade eclesiástica naquele ano em mgos de católicos ou protestantes, com eles permaneceria. Ainda que vigorasse o direico de um soberano leigo determinar a religiáo de seus súditos, ele foi modificado por uma provisão que dizia que no território onde, em 1624, existira cutco religioso dividido, cada parte continuaria na mesma proporçáo daquele ano. Ficou acertado entre luteranos e calvinistas que a norma seria a data da paz, e que no caso de futura mudança do governante leigo para uma ou outra forma de protestantismo isso náo afetaria seus súditos. Por outro lado, por insistência do imperador, náo se deram privilégios aos protestantes na Áustria e na Boêmia.

A paz a ninguém agradou. O papa a denunciou. Mas todos estavam cansados da guerra, e a paz teve o p n d e mérito de traçar as fronteiras entre catolicismo e protestantismo, tosca mas aproximadamente, onde de fato estavam. Como tal, revelou-se essencialmente perrnanence, e com ela pode-se considerar encerrado o período da Reforma no continente. Para a Aíemanha, a Guerra dos Trinta Anos foi um duro e tremendo mal. O país havia sido revolvido, durante uma geracáo, de um extremo ao outro, por exércitos rapinantes e sem lei. A população decaíra de dezesseis milhões para menos de seis. O comércio e a indústria foram destruídos. Acima de tudo, a vida intelectual estagnara, a moral se tornara áspera c corrupta, a religião fora gravemente prejudicada. Um século após o término da guerra, suas devastadoras conseqüências ainda não tinham sido sanadas. Poucas evidências de vida espiritual foram percebidas nesse terrível período de guerra. Contudo, pertence a essa época grande parte da obra de Paulo Gerhardt (1607-1676), talvez o maior dos hinólogos lutcranos. Sua obra reflete a confiança da piedade sincera em meio a tensáo da guerra. Nos primeiros anos da guerra, t-ambém, tiveram lugar as principais atividades do influente místico protestante, Jacó Bohme (1575-1624), de Gorlitz.

Capítulo 14

Socinianismo A época da Reforma apresentou uma série de desvios da ortodoxia tradicional com referência a pessoa e obra de Cristo. Embora tais desvios náo fossem característicos dos anabatistas em geral, suas primeiras manifestacóes se deram entre anabatistas como Luís H a ~ z e er Hans Denck. As idéias radicais de Servetus e seu rrrígico fim já foram observados (ver VI:8), inas esse engenhoso pensador não fundou nenhuma escola de discípulos. O s principais anti~rinitáriosda kpoca vieram da Idlia, onde elenrentos do anabatismo c do espiritualisrno se misturaram com o espírito racionalisra do humanisnio italiano formando um quesrionarnento radical da doutrina cristã ortodoxa. Durante a década de 1550, alguns dos principais radicais italianos poderiam ser encontrados em Genebra uu nos seus arredores, onde havia urna grande e ilustre coilgregaqáo de refugiados protesrantes italianos. Entre os membros dessa diáspora italiana que ficaram profu~idamenteinquietos com a execuqáo de Servecus em 1553, e que em diferentes graus se identificavam com suas idéias, estavam Maceus Gribaldi (1506)-1564) c Joáo Valentino Ge~itile (1520?-1566). Gribaldi, famoso professor de direito civil em Pádua e depois em Tubirigen e Grenoble, foi reprovado publicamente por Calvino em 1555 por causri de seus erros. Gentile chegou a Genebra por volta de 1556, foi aprisionado em 1558 acusado de possuir idéias heréticas, fez uma retrataçáo pública humilhante (consciente da sorte de Serverus), e, depois de uma carreira itinerante que o levou à Polônia

de 1562 a 1564, foi decapirado em Berna em 1566. De muito maior irnporrância foi o medico piernonrês Jorge Biandrata (15 15)-1588),que passou um ano em Genebra como presbítero da congregacáo iraliana, mas achori prudente mudar-se para a Polônia em 1558. Lá foi médico das famílias que governavam o país e a Tiansilvânia. Nesta última região auxiliou a fundar uma comunhao unitária que, em 1571, obteve reconhecimento legal por decreto do rei Joáo I1 Sigismundo da Hungria (1 540-1571) um marco na história da tolerância religiosa lia Europa. O principal aliado de Biandraca nessa obra notá~relfoi Francisco Dávid (1 5 I O?-1579), sucessivamente o

superintendente das igrejas luteranas, das calvinistas e das unitarianas naTransiivânia, que em 1565 comeqara a pregar abertamente contra a doutrina da Trindade.

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O s que estavam fadados a dar seu nome ao nascente movimento anti-trinitário foram os dois Sozzinis, tio e sobrinho. Lélio Sozzini (Socinus, 1525-1562) era de importante familia de juristas de Siena e ele próprio estudante de direito. Convertido ao protestantisino rio início da década de 1540, passou muito de seu tcmpo viajando pela Europa. Viveu por um ano (1550-155 1) em Wittenberg, desfrutando da amizade de Melanchthon apesar de sua percepcáo "espiritualizante" dos sacramentos. Foi bem acolhido em Basiléia e Genebra, mas por fim fixou residência em Zuriquc, onde faleceu. A execuçáo de Serverus chamou sua atencáo para o problema da Trindade, mas suas especulaçóes não se tornaram públicas durante sua vida. Seu sobrinho, muito mais influente, Fausto Sozzini ( 1 539-1604), tambim natural de Sieria, residiu em Lyon de

156l a 1563, com viagens a Genebra e Zurique em 1562.

Em Zurique reuniu as aliotaçóes de seu falecido rio e, sob sua influência, escreveu em Lyons sua Explicatio do prefácio do evangelho de Joáo. Fausto residiu novamente na Itália de 1563 a 1574, conformando-se exteriormente à igreja romana. Em 1574 estabeleceu-se em Basiléia, onde escreveu seu maior tratado, DeJesu Chi-isto servdtore

(1 578, publicado na Polônia em 1594). Nessa obra, como cm seu anterior E~cpliratio, Fausto rejeitou a divindade "natural" de Cristo em favor de uma divindade e um governo mundial concedido pelo Pai ao Filho na Ascensáo, em retribuiçáo de seu ofício como Servo de Deus justo e sofredor. Em 1578 ele foi para a Transilvânia, por insistência de Biaiidrara (que estava entáo envolvido em amarga querela com D5vid devido à insistência deste de que Crisro i ~ á udeve ser adorado nem lhe serem endereçadas as oracoes). Fausto foi para a Polônia em 1580, entzo o país mais tolerante na Europa, e ali residiu até sua morte em 1604. Graças aos labores de Fausto Sozzini e oucros na Polônia, os protestantes antitrinitários - a assim chamada Igreja Reformada Menor - co~isolidou-scconsidcravelmente e exprimiu suas crenças de forma efetiva no Catecismo Kacoviano. Publicado em Raków em 1605, a cidade da qual tomou seu nome e na qual os "Irmáos Poloneses" tinham sua sede, esse catecismo foi redigido por um grupo de discípuios de Fausto. Ele é uma notável combinacáo de arrazoados racionalistas e cru sobrenaturalis~no.A base da verdade C a divinamente inspirada Escritura, mas a confian$a no Novo Testamento está baseada primeiramente nos milagres que acompanharam sua proclamaçáo e especialmente no supremo milagre da ressurreiçáo. O Novo Testamento, assim confirmado sobrenaturalmente, C a garantia do Antigo. O propósito de ambos é mostrar ao entendimento humano a senda para a vida eterna.

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UlSTbRlA OA IGREJA E R I S T ~

Ainda que neles haja coisas acima da razão, nada há de valor contrário à razão. O livre arbíerio humano é afirmado, e sáo negados o pecado original e a predestinaçáo.

O dogma eclesiástico daTrindade náo é nem bíblico nem racional. A única fé que as Escrituras exigem é a crença na existência de Deus e de que Ele é gaiardoador e juiz.

O ser humano 6 mortal por natureza e náo pode por si mesmo encontrar o caminho para a vida eterna. Daí Deus ter lhe dado a Escritura e a vida e o exemplo de Cristo.

O próprio Cristo era homem mortal, mas náo homem ordinário. Mediante seu nascimento miraculoso da Virgem Maria, eie era o Primogênito de Deus e portanto dotado de sabedoria e poder. Ele revelou perfeitamente a vontade divina e deu o exemplo da vida moral perfeita, selada com sua morre penosa. Deus portanto levantou-o dos mortos e, na Ascensáo, atribuiu-lhe uma divindade adotiva e fê-lo coregenre do mundo. Consequen~emence,Cristo agora é digno de oração e invocação.

A vida cristã consiste em alegria em Deus, oracáo e açáo de gracas, renúricia do mundo, humildade e paciência permanente. Suas conseqüências sáo o perdáo dos pecados e a vida eterna. A Ceia do Senhor deve ser observada como um ato de comemoraçáo da morte de Cristo. O batismo náo tem valor regenerador, náo é apropriado às crianças, e quando muiro é um riro pelo qual os conversos ao cristianismo sinalizam publicamente sua adesáo a Crisco como seu Mestre. (Fausto negava a utilidade do bacismo para quem já nasce cristão; após sua morre, enuetanto, o batismo de fiéis por imersáo tornou-se uma marca característica do socinianismo.) Tudo no socinianismo, portanto, estava centrado na vida moral do crente. A saivaçáo náo é pela fé somente, mas pelo correto conhecimento e prática obediente do caminho prescrito escrjturalmente para a vida eterna - o caminho de obediência ativa à lei de Deus revelada e exemplificada de forma suprema por Jesus Cristo. Em sua ênfase na fé-como-conhecimento, o socinianismo revelava sua afinidade com desenvolvimentos aparentados na ortodoxia reformada e luterana. Em sua nega~áo da justificação s o h j d e , como também em sua rejeiqáo dos milenares dogmas trinitários e cristológicos, o socinianismo rompeu decisivamente com o cristianismo reformado clássico.

O socinianismo foi banido da Polônia em 1658, principalmente devido aos esforqos dos jesuítas, mas encontrou adeptos na Holanda e mais ainda na Inglaterra, onde teria influência considerável.

PERIBIO YI

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Capitulo 13

Arminianismo Na última década do século dezesseis e nos primeiros anos do dezessete, a igreja reformada nos Países Baixos (as Províncias Unidas) foi dilacerada por uma amarga controvérsia centrada nas questões da predestinaçáo e da adequada relaçáo entre igreja e estado. De um lado estava o grupo dos calvinistas estritos, defendendo a doutrina da predestinaçáo incondicional por Deus dos eleiros e dos réprobos desde antes da fundação do mundo, e afirmando o direito da igreja governar-se completamente, embora buscando o estado para proreçáo e manucençáo. Estes "alros" calviiiistas defendiam, portanto, a poiítica eclesiástica genebrina de "não interferência" dos magistrados nos negócios espirituais, e na teologia representavam em p n d e parte as idéias de Teodoro Beza (15 19-1605), sucessor de Calvino em Genebra. Beza assumira e desenvolvera a doutrina da predestinaçáo de Calvino, dando-lhe uma precisão lógica e ordenaçáo sistemática que náo se encontra no próprio Calvino, e tornando-a o centro do sisrema

teológico. Muitos desses calvinistas influenciados por Genebra eram

refugiados do sul dos Países Baixos e náo estavam inclinados a tolerar qualquer desvio daquilo que assumiam ser a verdadeira fé "reformada". Do outro Iado estava o

grupo dos "arminianos", que defendiam que a predesrinaçáo diz respeito apenas ao homem em seu estado de queda ou pecaminoso, náo ao homem enquanto não criado, e que o decreto divino de eleição e condenaçáo está baseado no conhecimento prwio que Dcus tem do comportamento das pessoas. Eles também defendiam que os magistrados cristáos sáo táo responsáveis pelo cuidado espiritual da igreja como o

sáo por seu bem-estar temporal; conseqiientemente, tais magistrados podem emitir leis relativas à política eclesiástica e podem participar lia nomeaçáo e supervisão de ministros.

O líder deste último grupo, continuamente cercado por seus adversários, era Jacó Harmenszoon (Jacobus Arrninius, 155311 560-1 609). Ele tem sido descriro frequentemente como humanista ou racionalista, mas é muito melhor vê-lo como encontrando-se na tradicáo dos reformadores protestantes holandeses autóctones que pouco ou nada deviam ao calvinismo gxebrino. Tais reformadores eram a favor de

uma igreja inclusiva, que náo insistisse sobre definiçóes credais precisas nem se preocupasse com teologia "especulativa", e que buscasse o magistrado cristão para orientação em todos os aspectos da vida eclesiáscica. Entre esses reformadores holandeses mais antigos c não dogmáticos, que foram nutridos por uma piedade bíblica visando a uma religião "purificada", estavam Dirck Coornhert (1522-1590) e Gaspar Coolhaes

( I 534-1615). Arminius, natural de Oudewarer, na Hoianda, recebeu instruçso primária em Utrecht, possivelmente na Gmosa Escola Sáo Jerônimo, fundada no stí.culo quinze pelas Irmáos da Vida Comum. Em 1575 ele perdeu sua mãe, irmãos e parentes quando Oudewater foi devastada por tropas espanholas. O s amigos ajudaram de forma que ele pôde continuar seus estudos na universidade de MarLurgo e, de 1576 a 1581, na universidade de Leyden. Esta última instituiçáo fora fundada por Guilherme de Orange em 1575, e Arminius esteve entre os primeiros estudantes a se matricularem nela. Depois ele foi enviado, as custas da Corporaçáo dos Mercadores de Arnsterdam, para Genebra, e ali estudou sob Aeza - de quem discordou desde o início - de 1582 até 1586, com um ano de estudo em Basiléia (1 583-1584). Após uma viagem à Italia, ele retorriou para os Países Baixos em 1587, e no ano seguinte irigressou em um pastorado que durou quinze anos em Amsterdam, conquistando no~oricdadccomo pregador e pastor de espírito irênico. Embora ele fosse muito considerado por seus paroquianos e pela magistratura de Amsterdam, suas idéias logo susciraram a ira de seu companheiro clerical Perrus Plancius (1552-1622), calvinista rigoroso que alcancara fama (e riqueza) como cartógrafo da Companhia Holandesa das indias Orientais. Em 1603 Arminius foi escolhido para suceder o esrimado Franciscus Junius (1545-1602) corno professor de ceologia em Leyden, onde permaneceu até a morte. Dentro de um ano após sua chegada em Leyden, Ar-minius foi envolvido em uma áspera disputa com um colega teólogo, Franciscus Gornarus (1563-1641), reprcscntante extremado da idéia "supralapsariana" de predescinaçáo, em contrário à posiçáo "sublapsariana" (ou "infralapsariana"). Essa questão dizia respeito à "ordem" do "decrero" divino de predesrinaçáo. Deus decretava eternamente a eIeiçáo e a não eleição das pessoas e entáo permitia a queda como um meio pelo qual esse decreto absoluto pudesse ser execueado (rz~pmIapsum)? O u Deus permitia que a queda ocorresse e apenas entáo decretava a eleição e a náo eleiçáo das pessoas (sub ou i n f i Lnpsum)?O próprio Calvino náo trabalhara sobre esse tema, náo oferecendo nenhuma "ordem

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dos decretosn. Essa tarefa ficou para Beza; e ele, como Gomarus, ensinava que Deus decretara erernamente salvação e condenaçáo sem levar em consideracão o homem enquanto criado, muito menos enquanto caído. O decreto eterno, absoluto de Deus -

sua soberania todo-determinante - tem que ter prioridade sobre, e informai; todas

as outras consideracóes antropológicas e teológicas. Arminius, de sua parte, náo era nem supralapsariano nem s ~ ~ b l a ~ s a r i acnnisso o, residia um de seus principais distariciamentos do "alto calvinisnio".

A primeira posi-

çáo, a seu ver, fazia de Deus o autor do pecado, enquanto arnbas as posições deixavam de dizer o que é decisivo. EIe ensinava, ao invés, que Deus primeiro nomeara Jesus Cristo como o Redentor e Salvador do pecado, e que os crentes sáo predestinados para a salvaçáo somente em Cristo. O primeiro e absoluto dccrero dc Dcus, portanto, teve Cristo somente como seu objeto, e a predestinacão tem que ser discutida apenas nesse contexto cristológico. Daí, a predestii-iagán das pcssoas não ser absoluta mas condicional à sua aceicagáo ou rejei~áode Cristo. O u seja, Deus determina salvar aqueles a quem prevê que iráo crer em (:risco e perseverar na fé, enquanto deseja condenar aqueles a quem prevê que não iráo crer em Cristo e perse\~eraráo na dcscrenqa. (A presciência de Deus é portanto a base da prede~tina~áo, e náo o contrário). Nesse contexto, Armínio tinha que deixar cspaqo para a escolha humana, isto é, para um ato de crer da parte das pessoas que são salvas e, da mesma forma, para um ato de rejcivar a oferta de salvação de Deus da parce dos condenados. O ato de crer, entretanto, somente ti possí~relpor causa da graGa divina, e não pode ser ccinsiderado meritório; fora de tal graça, o arbítrio humano está aprisionado ao peca-

do e assim, abandonado a si mesmo, resiste ao Espírito Santo e rejeita a graça de Deus oferecida no Evangelho. Portanto, a graça capacira a pessoa a cooperar no ato

de crer, mas tal cooperacão é o resultado de renovação pelo Espírito Santo, náo o meio para a renovação. Essa noção de "graça cooperante", por mais quc circunscrita, náo tinha lugar no calvinismo estrito, mas era similar ao "sinergisrno" esposado por Filipe Melanchthon em seu período posterior (ver VJ:13). Depois da morte de Arminius, em 1609, a direçáo do pareido "arminiano" coube a seu amigo íntimo e pregador da corte, Joáo Uitenbogaert (1557-1644), c a Sirnáo Biscop (Episcopius, 1583-1643), discípulo e amigo de hrminius, que pouco depois

se tornaria professor de teologia em Leyden. Em 1610 eles e mais quarenta e dois ministros, agindo em resposta a um pedido anterior dos Estados da Holanda, redigiram uma declaraqáo de sua fé intirulada "Rcmonscrance", a qual deu ao grupo o

nome de "Remonstrantes". Contrariando a doutrina calvinista da predestinaçáo absoluta, ela ensinava uma predestinaçáo baseada na presciência divina do uso que as pessoas fariam dos meios de graca. Combatendo a doutrina de que Cristo morreu apenas pelos eleitos, ela afirmava que Ele morreu por todos, ainda que ninguém receba os benefícios de Sua morte, exceto os crenres. Era acorde com o calvinismo na negaçáo da capacidade de as pessoas chegarem ao arrependimento e a fé por si mesmas - tudo depende da graça. Consequenremenre, os arminianos náo eram pelagianos, embora essa acusação tenha sido repetida constantemente contra eles. Em oposiçáo i doutrina calvinista da graça irresistível, ensinavam que a graça pode ser rechaçada, e mostravam incerteza com referência ao ensino calvinista da perseveranqa, defendendo que era possível que as pessoas

perder a graça uma vez recebida.

Desde a época de sua irrupqáo pública n o final de 1604, a controvérsia arminiana

-

apesar de seu caráter acadêmico e abstruso - suscitou conflitos por

todas as províncias protestantes dos Países Baixos, uma vez que a teologia estava intimameiite vinculada

política. Os arminianos eram apoiados por Joáo van

?i

Oldenbarneveldc (1547-16 19), líder civil da província da Holanda e o personagem dominante nos Estados Gerais das Províncias Unidas; e pelo eminente jurista e historiador, Hugo Grotius (1 583-1645), autor de duas obras famosas - De jure belli acpncis (1625), que lhe rendeu o título de "fundador do direito internacionaIn, e De veritirte religionis chri~tilrnne(1'622), na qual ele propôs uma nova teoria da obra expiatbria de Cristo. Oldenbarneveldt, Grotius e os arrninianos eram tolerantes religiosa e teologicamente, politicamente republicanos, e defensores do direito de a magistratura exercer jurisdicáo tanto civil quanto eclesiástica. Eles também eram a favor de uma trégua com a Espanha no permanente conflito cnrrc norte e sul. (Em 1609, a assim chamada Trégua dos Doze Anos foi de fato assinada.) Eles foram opostos pelo stndholdei. Maurício de Nassau (1 567-

1625), filho de Guilherme de Orai-ige e notável líder militar das Províncias Unidas, que desejava se estabelecer como soberano no norte e visava a reconquistar da Espanha as províncias meridionais. C o m ele escava a grande maioria dos calvinisras (os "contra-remonstrantes"}, que apoiavam seus olijetivos bélicos, eram fortemente anti-católicos, eram a favor da centralizacão do governo e insistiam em uma política eclesiástica presbiteriana. Em julho de 16 18 Maurício utilizou a milícia para efetuar um golpe de estado nas principais cidades da Holanda, substituindo os magistrados simpatizantes dos remonstrantes por aqueles favo-

PERIOIB VI

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ráveis aos contra-remonstrantes. Oldenbarneveldt foi acusado de traição e decapitado em 1 3 de maio de 1619. Grotius foi condenado à prisáo perpétua, mas fugiu da prisáo com a ajuda de sua esposa em 1621. Entrementes, fora convocado um sínodo nacional pelos Estados Gerais, agora "purificado" da influência arminiana, para decidir a controvérsia. A assembléia se reuniu em Dorr (atual Dordrecht) de 1 3 de novembro de 1618 a 9 de maio de 1619. Além de representantes dos Países Baixos, também participaram delegados da Inglaterra, Escócia, Palatinado, Nassau, Hesse, Bremen e Suíça. Os remonstrantes estavam presentes apenas como acusados; náo tiveram assento. O sínodo de Dort, como era de se esperar, condenou o arminianismo e adotou noventa e três "cânones" rigorosamente calvinistas, que juntamente com a Confissáo Belga e o Catecismo de Heidelberg tornou-se a base doutrinária da igreja reformada holandesa. Em 23 de abril de 1619 foram adotadas cinco séries de artigos que afirmavam especificamente os "cincos pontos" do calvinismo em réplica ao armiilianismo; (1) eleição absoluta, incondicional; (2) expiacáo cuja eficácia é limitada aos eleitos; (3) depravacão total do "homem natural"; (4) irresistibilidade da graGa; e (5) perseveranga final dos eleitos. O sínodo, entretanto, náo adotou as idéias supralapsarianas de Gornarus.

Em conseqüência do sínodo de Dort, os arminianos foram proibidos de pregar e muitos fugiram do país; mas quando da morte de Maurício, em 1625, c a ascensão de seu irmáo Frederico Henrique (1625-1647), que favorecia os remonstrantes, as medidas contra eles ficaram só no papel. Muitos dos rernonstrantes retomaram, ainda que sua fé náo tenha recebido reconhecimento oficial senáo em 1795. Nos Países Baixos, a associaçáo cresceu vagarosamente; ela existe atualmente como a Irmandade Reinonstrante ou Igreja ReformadaRemonstrante. Seu tipo de piedade em sua pátria foi predominantemente intelectual e ética, e foi um pouco influenciada pelo sociilianismo. O arminianismo teria influência maior na Inglaterra do que em sua pátria e provaria, na pessoa de Joáo Wesley, sua possibilidade de associa~áocom um tipo de piedade ráo calorosa e emotiva como qualquer interpretaqáo da crença cristã pode exibir.

6 38

HISTÓRIR i l h IPREJA CRISTR

Capítulo 16

Anglicanismo, Piiritanismo e as Igrejas Livres na Inglaterra, Episcopalisrno e Presbiteriaiiismo na Escócia A posição da rainha Isabel I da Iilglaterra, no começo de seu reinado, era exrremarriente difícil. Suas relaqóes com os católicos romanos já foram consideradas (ver

VI:12). Estarido seus súditos longe da unidade religiosa e ela enfrentando conspiraçóes internas e inimigos no exterior, foi somente com manobras políticas extremamente habiiidosas que ela coiiseguiii giiiar sua iiau com êxito. Seus

problemas se

ampliaram com as divisóes que foraiii surgindo, logo após o início de seu reinado, enrre os que concordavam com o seu rompimento com Roma. Tais dificuldades aumencavam airida mais, à medida que decorria seu reinado, pelo despcrtamento da vida religiosa popular que estava transformando uma riaqáo que outrora permanccera espiritualmente apática, na época das mudanças efetuadas por Henrique VIII, Eduardo V1 e Maria. Isabel procurou fazer com que sua resolucáo dos conflitos religiosos fosse, dentro do possí\~l,de fiicil acriraqáo. A igreja, em seu clero c ofícios, se pareceria ao antigo culto tanto quanto o sentimento prorestante pudesse tolerar. Com poucas exceçóes, todo o clero paroquial se conformou. Isabel, de bom grado, deixaria o clero em paz em suas igrejas desde que ele ficasse quiero, embora náo se pudesse confiar neie nem em sua cordial aceitaçáo do protestantismo, nem em sua capacidade para pregar ou em seu zelo espiritual. A atitude de Isabel foi sábia, do ponto de visra político. Por

causa dela, a Inglaterra foi poupada de guerras como as que devastaram a França e a Alemanha. Desde o comeco, todavia, a rainha se viu face a face com um protestantismo mais agressivo, que náo considerava a idéia dela de uma igreja ampla, nacional, abrangcnce, suficientemente "reformada". Muitos dos que foram exilados no tempo de Maria sofreram a influência de Genebra, Zurique ou Frankfurt e voltaram cheios de admiraçáo por um protestantismo radical. Em sua maioria eram pessoas tomadas de profundo zelo reiigioso, e com as quais Isabel teria que contar no seu conflito corn Roma. Mas a rainha pensava que, se eles conseguissem introduzir as rnudai~qasque deseja-

vam, agitariam a situacáo que, com dificuldade, era mantida em paz. D o ponto dc vista religioso, eram facilmente cornprecnsíveis as aspiraçóes de tais pessoas. Para elas, a Bíblia era a autoridade básica, suplantando toda a pretensáo da igreja de ser intérprete ou guardiá da tradiçáo detentora de auroridade. Queriam banir dos ofícios o que criam ser remanescente da superstição romana e desejavam para cada paróquia um pregador zeloso, espiritual. Em particular, eram conrrários às vestes clericais prescritas, achando que perperuavani na mente popular a idtja do ministério como um estado espiritual de poderes peculiares e consequenremente náo col-icorde com o sacerdócio de todos os crentes. Também se opunham à genuflexáo para a recepçáo da Ceia do Senhor, dizendo que tal atitude implic.ava adoraçáo da presença física de Cristo nela, e a execuçáo d o sinal da cruz no batismo, por considerar isso urna supcrstiçáo. Ademais, combatiam o uso de aliancas 110 casamento, tcndo-o como continua~áodo co~iceitodo matrimdnio como um sacramento. Em virtude desse desejo de purificar a igreja, no início da década de 1560 estas pessoas passaram a ser chamadas "puritanos". Em 1563 os puritanos procuraram assegurar seu programa de reformas através da convoca~ãodo clero da provincia de Cantuária, o corpo legislativo da maioria da igreja da Inglarerra; mas foram vencidos por apenas um voto. Muicas puritanos já haviam começado a adotar práticas mais simpies no culro e a usar roupas comuns. Sob a direGáode tourenco Humphreu (1527-1590j, presidente do Magdalen College, Oxford, eTomás Sampson (1517-1589), deáo da Igreja de Cristo, Oxford, ambos exilados no tempo de Maria, teve início acalorada discussão puritana sobre o uso das vestes obrigatórias - 3 "Conrrovérsia Isabclina sobrevestes".

A universidade de Çarnbridge muito simpatizava com

OS

pul-itarios. Mas iiesrc as-

sunto a política da rainha se opunha com vigor a qualquer m o d i f i ~ a ~ á Assim, o. em

1566 o arcebispo Mateus Parker publicou seus "Anúncios",' exigindo que rodos os pegadores obtivcssem novas 1icenç.a~dos bispos; proibindo sermões provocadores de coiitrovérsias; exigindo 3 genufIexáo na comunháo; prescrevendo minuciosaiiiente

as vestes clericais. Diante dessa regulamei~taçáo,vitrios clérigos puritanos foram

privados de seus cargos, inclusive Sampson, que ficou preso durante algum tempo. Uma nova questáo surgiu entre aqueles que haviam aprendido nos centros refor-

H. Gec r W. J. Hardy, eds., L)ocu~nciztiJIluftrdtiue qf-Eiiglijil C77urc.h H i ~ t n r(Londres, ~ iS96), pp. 467jyj.

mistas do continente que qualquer culto para o qual náo se encontre base bíblica é um insulto à divina majestade. Eles começaram a questionar se um sistema eclesiás-

tico que depóe minisrros que se recusam a usar vestes e adotar cerimônias impossíveis de se demonstrar peia Escritura é o que Deus deseja para a igreja. Além disso, uma vez que liam seu Novo Testamento com óculos genebrinos, alguns puritanos 1á encontravam um padráo definido de governo eclesiástico totalmente diferente do existente na Inglaterra. Conforme esse padráo, a disciplina era mantida por anciáos, os ministros oficiavam com o consentimento da congregaçáo e havia paridade espiritual essencial entre os que, como disse Calvino, as Escrituras, ao descrevê-los como Foi "bispos, presbíteros e pastores", "empregam essas palavras como ~inônimas".~ essa mesma convicçáo quanto h igualdade essencial dos que exercem funçáo espiritual que fortaleceu o ~resbiterianisrnoescocês em sua longa luta com a "prelazia", ou governo eclesiástico episcopal.

O representante e líder desse desenvolvimento dentro do puritanismo foi Tomás Carmright (1 5352-1603). Em 1569, como professor de divindades na Universidade

de Cambridge, advogou a nomeaçáo de anciáos para a disciplina nas paróquias, a elei~áode pastores elos membros dessas comunidades, a abolição dos ofícios de arcebispos e arcediagos e a equiparação essencial entre o clero. Isso era presbiterianismo prático, e daí em diante os puritanos mais radicais avançaram no rumo presbiteriano.

Os argumentos de Cartwright suscitaram a oposição daquele que viria a ser o principal inimigo dos primeiros puritanos, Joáo Whitgift (1530-1604). Contra a afirmaçáo de Cartlvright do presbiterianismo de jure divino, Whitgift longe estava de defender autoridade similar para o episcopado. Para ele essa era a melhor forma de governo eclesiástico, mas negava que nas Escrituras houvesse modelo explícito, e afirmava que neIas rnriiro é deixado ao juízo da igreja. Em 1572, Whitgift conseguiu por fim que Carnvright fosse expulso da universidade, da qrial, cerca de dois anos

anres, fora removido do

Desde entáo Cartwright viveu errante e perse-

guido, a maior parte do tempo no continente, labutando infatigavelmente pelo progresso da causa puritana presbiteriana. extreAs mudanças pleiteadas por Carnvright foram apresentadas num mado mas de grande apelo popular, intirulado AdmoestaçZo ao Parlamento, escrito por dois ministros londrinos, Joáo Field 0-1588) e Tomás Wilcox (1549?-1608).

PER1000 UI

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h47

Whitgift escreveu uma réplica a esse panfleto, a qual foi, por sua vez, replicada por Carnvriglit. Alguns puritanos eram mais moderados que este último, e achavam que eram necessárias relativamente poucas alteraçóes na constituiçáo eclesiistica em vigor. Para eles, cerimônias censuráveis podiam ser abolidas, o Livro de Oração revisa-

do, anciáos instituídos nas parbquias e os bispos mantidos como presidenrcs das igrejas de cada diocese organizada como um sínodo, pvimi intevpaves. Mas o espírito presliteriano crescia, e na década de 1570 foram feitos vários experimentos presbiterianos dentro da estrutura eclesiCstica em vigor. Foram realizadas reuniões de ministros e leigos piedosos para prega~áoe discussáo - reunióes denominadas "profetizantes". Em alguns casos - primeiro em Wandsworrh, perto de Londres, em 1572

-

congrega~óesvoluntariamente se organizaram numa espécie de presbitério

paroquial. A posiçáo prcsbireriana foi exposta pela publicaqáo em 1574 de Uma Declavaçáo Completa e Chrn da Disciplina Eclesidstica, por um ex-professor de

Cambridge, Walter Travers (1548?-1635).Tudo isso foi auxiliado pela ascensáo ao arcebispado de Cantudria, quando da morte de Parker em 1576, de Edmundo Grindal

(1 5 19)-1583). Elc simpatizava com os puritanos e foi suspenso por suas conscientes objecões às ordens da rainha de proibir as reunióes "profetizantes". Cartwright e seus companheiros puritanos se opunham a qualquer separação da igreja da Inglaterra. A idéia deles era introduzir o mais possível a disciplina e a prática puritanas e esperar que ulteriores reformas fossem feitas pelo governo. Tal cxpectativa não parecia sem fundamento. A constimiçáo e o culto da igreja do país haviam sido alterados quatro vezes no decurso de uma geração. Náo poderia haver em breve uma quinta mudanca para um modelo que os puritanos julgavam ser mais bíblico? Eles iriani agiíar e esperar. Foi esse, no geral, o programa dos puriranos. Entretanto, havia alguns que achavam tal espera injustif~çável.Estes queriam estabelecer logo o que lhes parecia escriturístico. Eram os "separatistas", dentre os quais surgiriam os proponentes da polírica congregacional. Em 19 de junho de 1567 as autoridades de Londres capturaram e aprisionaram alguns dos membros de uma congregaçáo separatista, ostensivamente reunidos para um culto e cclebraçáo de um matrimônio. Esse grupo achara que não podia seguir livremente a Palavra de Deus dentro da estrutura da igreja da Inglaterra e escoIhera seus próprios dirigentes, sendo ministro Eùcardo Fitz. Além desse grupo

- "l'lumber's

Hall" - havia outros grupos

não-conformistas, mas no primeiro período puritano as atividades separatistas foram de caráter fugaz e temporário.

O primeiro defensor realmente notável das idéias separatistas na Inglaterra foi Roberto Browne (1 550?-1633),estudante em Cambridge nos tempestuosos tempos do breve professorado de Carnvright, onde se graduara em 1572. Começando corno puritano presbireriano progressista, por volta de 1580 adotou príncipios separatistas e, juntamente com seu amigo Roberto Harrison, fundou em Norwich uma congregação independenre, cm 158 1. Foi preso várias vezes por causa de sua prcgaçáo. Ele e a maioria de sua congregagáo buscaram segurança em Middelburg, nos Países Baixos. Browne publicara ali, em 1582, um grande volume contendo três tratados. Um, dirigido contra os puritanos que desejavam permanecer na igreja da Inglaterra, apre-

Nizguém, e senta seu ataque no título: h t a d o Sobre ztma Refoorrna sem E~pel-arpo~

Sobre n Impiedade Daqueles Pregddores que Núo se Re$rvzul-do . . . Até que o Magiltrddo as Ol-dene e Obrigue. Outro, Livro queilp~esentaa Kda e Comport~~narnto de Todos os VEi.dddei~osCYiStZos, descrevia a verdadeira igreja como formada de crentes reunidos por s u a própria vontade. De acordo com Browile, a única igreja é o agruparnento local de crentes com Cristo por experiência, unidos a Ele e uns aos outros por um pacto voluntário. Igreja assim tem Cristo corno sua cabeça imediata, c é por oficiais e leis por Ele designadas. Cada uma é autônoma e escolhe um pastor, um mestre, anciáos, diáconos e viúvas, conforme determina o Novo Testamento; mas cada membro C responsávei pelo bem-es~ardo todo. Nenhuma igreja cem autoridade sobre outra, mas todas se devem auxiliar fraternalmente.

O congregacionalismo de Rroxvne se assemelha em certos aspectos às idéias anabatisras (ver VI:4). Mas náo houve nenhum rrabalho anabatista organizado na Iilgla~erra,senáo no século seguinte. Browne náo demonstrou nenhuma dívida consciente para com os anabatistas, nem rejeirou o batismo infantil. O separatismci inglês surgiu principalmente de dentro do movimento puritano. Browne náo permaneceu como seu principal defensor por muito tempo. Sua permant.ncia na Holanda foi curta. Sua igreja era cheia de turbulência e, após algum tempo na Escócia, ele retornou para a Inglaterra, onde sc conformou à igreja estabelecida, ao menos exreriormenre,

em outubro de 1585, e passou o longo resto de sua vida, de 1591 a 1633, no ministirio daquela igreja. Enrrementes, quando Grindal era arcebispo, muitos do principal grupo de ministros puritanos, que haviam permanecido na igreja estabelecida, deixaram de usar, no todo ou ein parte, o Livro de Oração. Foi enfatizada a efetivaçáo de "Santa Disciplina" - Waiter Travers preparou uma segunda obra sobre esse tema, para servir de

Q E R I ~ J ~VIU

A REFORMA

6-93

guia i prática puritana. Porém, Grindal foi sucedido na sé de Cantuária, de 1583 a 1604, por Whitgift. Calvinista na teologia, era rigoroso quanto à disciplina, c nesse sentido recebia caloroso apoio da rainha, a

era de

implacável hostilidade para

com o movimento puritano. Wliitgifc publicou de imediato ordens impondo total aprovaçáo e uso do Livro de Oraqáo, determinando vestes clericais e proibindo todas as reuniões religiosas privadas.' E desde entáo a ináo da repressão caiu pesadamente sobre os puritanos. Acirrou-se esta hostilidade pela publicação anônima de uma sátira contra os bispos. Era grosseira e injusta, mas extremamente espirituosa e irritante. Era claramente de origem puritana, ainda que

náo aprovada por eles.

Publicada em 1588-1589 c conhecida como "Panfletos de Marti~ihoPreladerrado

[ M q ~ ~ l a t rseu ] " autor jamais foi plcnamence ideiitificado, ainda que as probabilidades apontem jó ShrocIcmorton (1545- 160 I), leigo puritano. Alguns têm suspeitado de Joáo Pcnry (1553-1593), patiflctlirio galês.

A afirrnagáo pilritana e separatista do caráter divino dc seus sistemas estava entáo rapidame~itefortalecendo uma mudança de atitude lios líderes de seus oponentes, os anglicanos. Ricardo Bancroft (1 544-1610), que seria o sucessor de Whicgift como arcebispo, em seu sermáo pregado elii 1589 em Paul's Cross, Londres, tião só concienou o priritanismo como afrrrnou o direitojui-r divina do cpiscopado. Adriano Saravia

(1531-1613}, teólogo varão residente na Inglaterra, defenderia a mesma idéia um ano mais tarde. Da mesma forma Tomás Bilson (1547-1 61 G ) , que em breve seria bispo de Winchestel; em seu Governo Pe?pétuo da Igreja de (,'i-isto, cm 1593. h/Ienos extremado foi o erudito Ricàrdo Hooker (1 553)-1600), em suas Leis de Pulíticn Ecle-

siáftict~,publicadas em 1594 e 1597. Cria ele que o episcopado estwa firmado na Escritura; mas seu principal argumento a favor do episcopado era a sua razoabilidade

essencial, concra o biblicisino extremado dos puritanos. Estavam lanqados os fundamentos de um partido da alta igreja.

A repressáo ao puritanismo e ao separatismo foi deveras auxiliada pelo 'Ilibunal da Suprema Comissão. Desde o tempo de Heniique VI11 era expediente favorito do rei controlar assuntos ou

cclesiásticos por meio de comissões nomeadas para

investigar e julgar sem estarem sujeitas aos processos ordinários da lei. O sistema se desenvolveu gradualmente. Isabel o ampliou e o firmou; mas ele só se tornou uma comissáo eclesiástica totalmente eficiente quando Baricroft tornou-se um de seus

644

HISTÓRIA DA [GREdA CRISTA

membros, em 1587. Por volta de 1 592 alcançara plenamente seus poderes. A presunção de culpabilidade era contra o acusado, e a natureza das provas era indefinida. Esse tribunal podia examinar e aprisionar em qualquer lugar da Inglaterra, e se tornara o braço direito da autoridade episcopal.

O separatismo arrefeceu depois da volta de Browne à igreja da Inglaterra, mas logo reapareceu. Em 1587 Henrique Barrow (1550)-1593),advogado londrino, e o clérigo João Grcenwood (?-1593) foram presos por promoverem reuniões separatistas em Londres. Da prisáo faziam sair secreramente manuscritos que apareciam como tratados impressos na Ilolanda, atacando tanto os anglicanos como os puritanos e defendendo princípios separatistas escritos mais radicais que os de Browne. Conquistaram vários adeptos, inclusive o ministro puritano Francisco Johnson (1562-

1618). Em 1592 foi organizada em Londres uma congregaçáo separatista, rendo Johnson como pastor e Greenwood como mestre. Em 6 de abril do ano seguinte Barrow e Greenwood foram enforcados por negarem a supremacia da rainha em assuntos eclesiásticos. No mesmo ano o parlamento aprovou uma tei proclamando o banirnenco de rodos que desafiassem a autoridade eclesiástica da rainha, recusassem frequentar a igreja ou comparecessem a qualquer "conventículo" onde se realizasse outro culto que náo o legal.5 Por causa dessa lei, muitos da congregação de Londres foram compelidos a se refugiar em Arnsterdam, onde Johnson, após ter sido solro, coneinuou como seu pastor enquanto Henrique Ainsworrh (1571-1623) tornou-se seu mestre. Os anos finais do reinado de Isabel também presenciaram o início de uma reagâo ao calvinismo dominante. Em 1595 surgiu uma controv&rsiaem Cambridge, onde Pedro Baro (1 534-1599) defendia as doutrinas liberais de Arminius. Tal discussão propiciou a pubIicaçáo, sob os auspícios de Whitgift, dos fortemente cajvinistas "Artigos de Lambeth",' mas a tendência de criticar o calvinismo, assim iniciada, aurnentou. A oposiçáo completa ao puritanismo seria mais e mais característica do partido anglicano.

O longo reinado de Isabel findou em 2 4 de marco de 1603. Sucedeu-a o filho de Maria, "rainha dos escoceses", Tiago 1 (1603-1625). Ele já ocupava o trono escocês desde 1567, como Tiago VI. Todos os partidos religiosos da Inglaterra \Firam ' com

" Ibid., pp. 492-498. P. Schaff, çd., C r e d !f Christriidom, 6 a cd., 3 volunirs (Nova Iorque, 1319), 3:523.

i

~ a r o i nui

1 REFORMA

645

esperança sua ascensão. Os católicos por causa de seu parentesco, os puritanos presbiterianos por causa de sua formaçáo e os anglicanos por causa de suas altas concep~óessobre o direito divino e sua hostilidade para com o governo presbiteriano, que se desenvolvera em suas longas lutas para manter o poder da coroa na Escócia. Apenas os anglicanos acertaram quanto ao seu caráter. Sua frase favorira era: "Sem bispo náo há rei." Nas pretensóes e na açáo náo era mais arbitrário que Isabel, mas o país suportaria de um governante popular e admirado muitas coisas que o magoariam se o soberano fosse aiitipático, indigno e náo representativo. Quando de sua viagem a Londres, em abril de 1603, Tiago I recebeu a "Petiçáo Milenária".b Era assim chamada porque dizia representar mais de um milhar de ingIeses, embora náo levasse nenhuma assinatura. Era uma exposicáo mui moderada das aspiraçóes puritanas. Dela resultou, em janeiro de 1604, a realizaçáo de uma conferência em Hampton Court entre bispos e puritanos, estando presente o rei. Além do próprio soberano, o ~rincipaldefensor do anglicanismo foi Bancroft, entáo bispo de Londres. Náo foi concedida nenhuma das grandes rnudaqas que os puritanos desejavam, exceto uma nova tradução da Bíblia. Daí apareceu a versáo "Aucorizada" ou "King James", em 1611. Os puritanos receberam ordem de se conformar. Essa vitória anglicana foi seguida, em 1604, pela promulgaçáo, com o apoio real, de uma série de cânones que tornavam lei eclesiástica muitas das declaracóes e práticas contra as quais os puritanos faziam objeções. O principal inspirador disso foi Bancroft, que cm breve sucederia a Whirgift na sé de Cantuária (1604- 16 10). Os puritanos se alarmaram sobremaneira, mas Bancroft no governo foi mais generoso do que suas declarações e atitudes anteriores ~ o d e r i a mdar a entender, e apenas um número relativamente pequeno de ministros foram realmente excluídos. O anglicanismo também se fortalecia pela ineihoria gradativa da formacão e zelo de seu clero, para a qual

Whitgift e Rancrofc muito concribuíram - sendo notável exemplo o erudito, piedoso e eloquente Lancelote Andrewes (1555-1626) feito bispo de Chichester em 1605. O sucessor de Bancroft no arcebispado foi Jorge Abbot (161 1-1633), pessoa de poucas simpatias c calvinista acirrado. Era impopular entre a maioria do clero e caiu

em desgraça na última parte do seu episcopado. Os anglicarios sentiram a perda de líderes hábeis como Whitgift e Bancroft e, em tal circunstância, não apenas o puritaC . I,. Manschreck, ed., il Histor~uj'lhristiailiq: Headinys in tbr Histor~uf tlie C~hurchfiov2the Reformatioir the Prejenb (Grattd Rupids, MI, l < ) S l ) ,yp. 137-198.

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6 (6

HISTORIA DA IGREJA GRISTA

nismo mas também o separarismo fizeram grandes progressos.

Um movimento separatista cujas últimas conseqüências foram de largo alcance ceve seu início logo no princípio do reinado de Tiago I, quando Joáo Smyth (1 570!1612), ex-clérigo da igreja es~abelecida,adotou princípios separatistas e se tornou pastor de uma congregação em Gainsborough. De imediato conseguiu aderentes nos distriros rurais adjacentes, e uma outra congregaçáo se formou na casa de Guilherme Rrclvster (156Oj-1644), em Scroohy. O jovem Guilherme 13radford (1590-1657) era membro dessa congregaçáo. Ele desfrutou da direçáo do erudito e amável Joáo Robinson (1 5751-1 625), que era, como Smyth, ex-clérigo da igreja da Jnglarerra, e como ele tambkni cria que o separatismo era o único caminho lógico. Sentindo o peso da oposição, os meinbros da congregação de Gainsborough, liderados por Smpth, exilaram-se em Amsterdarn, provavelmente ein 1608. A congrega: assim como eram suas ênfases no caráter cornprobatório dos milagres e na demoilstraçáo mecânica da existência divina (cuja força a ceoria da evolucáo esvaziou bastante desde entáo). Náo obstante,

é agradável notar que o pensamento de Paley de "fazer o bem à humanidade" o levou à ferrenha oposição à cscravidáo humana. O deísmo exerceu, de muitas formas, uma

influencia maior pela sua provocacáo à apologia cristá por um lado, e à filosofia céprica por outro, do que por seus esforços diretos. No geral, o deísmo inglês foi um deísmo cristão, cauteloso, cuja influência em !grande parte restringiu-se apenas às classes superiores. Mas foi acompanhado por um deísmo anticristão radical que, embora com poucos seguidores, era aguerrido em seu acaque ao cristianismo organizado. Peter Annet (1693-?) usou uma espécie de crítica bíblica crua e iconoclasta em seu ataque. Pouco antes d o fim do século o deísmo anticristáo contou com uma poderosa apresentação popular nos escritos apaixonados e militantes de Thomas Paine (1737-1809), filho de

um quacre inglês. Sua obra Sentido Comum (1776) prestou grande serviço à revoluçáo americana; seu livro Direitos do Homem ( 1 79 1) não foi menos efetivo na defesa dos princípios subjacentes à revoluçáo francesa. Em seu outro livro, Idade

da Razáo (1794-1796), o deísmo foi apresentado em sua forma anticrisrá mais agressrva.

O deísmo inglês influenciou o desenvolvimento d o racionalismo em outros

lugares - na Alemanha, porém mais diretamente na França, onde teve muitos adeptos e se tornou moda entre as classes elevadas. O principal desses deístas foi François Marie Arouet ou, como ele mesmo se chamava, Voltaire (1 694- 1778). Familiarizara-se com o deísmo durante sua estada na Inglaterra, de 1726 a 1729, s sofrera a influência dos escriros de Peter Annet. Em Volraire a França do século

dezoito teve sua mente mais perspicaz. Não sendo filósofo, era fútil, egoísta, mas ?ossuía verdadeiro bdio à tirania, especialmente à perseguicão religiosa. Nincuém jamais aracou a religião organizada com tão inexorável ridículo. Tal dispu-

r: estava, por necessidade, mais amplamente radicada na França que na Grá3retanha. Neste último país fora alcançado certo grau de tolerância religiosa e -ra permitida g a n d e divergência na interpretaçzo religiosa. Na França, domina-:a o catolicismo romano dogmárico. A disputa, pois, era entre deísmo ou ateís30de

um lado, e um único tipo afirmativo de cristianismo de ourro. Volraire

Era verdadeiro deísta em sua crença na existência de Deus e de uma primitiva rsligiáo natural que consistia de uma moralidade simples, e em sua rejeiqáo à

ve do que dependesse da autoridade da Bíblia ou da igreja. Não há dúvida que i u a obra influenciou extensa e significativamente o espírito francês naquelas di-

reqóes que se revelariam na revolução francesa.

O deísmo afetou o século dezoito amplamente. Ele foi essencialmente o credo de Frederico, o Grande, da Prússia (1740-1786); de José 11, do Sacro Impbrio Xornano (Áusrria, 1765-1790); e do marquês de Pomba! (1699-1782), o maior sjradista português do século. Nas colônias inglesas da Amtrica do Norte a conrrovérsia deísta foi acompanhada com grande interesse, e as crês principais posi;ões racionalistas tiveram vultos nativos. Os pastores de Massacliusetts, Ebenezer S a y (1696-1787) e J o n a t h a n Mayhew (1720-1766) eram basicamente iobrenaturalistas racionais, enquanto Benjamin Franklin (1706-1790) e Thomas -Tsfferson (1743-1826) eram essencialmente deístas. O deísmo anticristáo foi ex~ r e s s opelo autor de A Razáo, Único Oráculo d o Homem (1784), Ethan Allen 1737-17891, general revolucionário, e 1764-1806).

elo expedicionário cego, Elihu Palmer

686

iisrónin O4 IGREJA CRlSTh

Uiiitarismo na Inglaterra e na América Já foi assinalado que as idéias antitrinitárias no continente foram representadas por alguns anabatistas (ver Vi:4)e peíos socinianos (ver VI:14). Ambos os tipos penetraram na Inglarerra. Em 1575, no reinado de Isabei, foram queimados "batistas arianos" provenientes dos Países Baixos. No reinado de Tiago

I, Bartholomew

Legate (1 575?1612) c Edward Wightrnan (?-1612),defensores de idéias sernelhantes, entraram para a história como os ÚItimos ingleses queimados por motivos religiosos, em 1612. Com as conrrovérsias da época da guerra civii, idéias anritrinitárias se fizeram mais evidentes. Com John Biddfe (161 5-1662), formado em Oxford, o sociniunismo ceve o representante mais culto, que foi preso várias vezes. O grande poeta puritano, John Miltoli (1608-1674), inclinou-se para o arianismo nos últimos anos de sua vida. O principal convertido de Biddle foiThomas Firinin (1632-1697), leigo londrino, que cooperou na publicacão de rracados anàtrinitários. Surgindo o século dezoito, com suas tendências racionalistas tanto no círculo ortodoxo como no deísta, e sua inclinaqáo para ver na moralidade a essência da religiáo, essas tendências ariticrinitárias foram grandemerite fortalecidas. Em 1702 o ministro presbiteriano Thomas Emlyn (1 663-1741) publicou Invesriga~áona Escritura Sobre Jesus Cristo, livro muito lido. Em 1712, Samuel Clarlce (3675-1729), pároco de Sáo Tiago, Westmirlster, e considerado o mais filosófico dos clErigos angiicanos, publicou seu livro inritulado Doutrina Bíblica da Trindade, no qual procurou demonstrar as idéias arianas através de cuidadoso exame do Novo Testamento. Foi porém, entre os dissidentes, especialmente os presbiterianos e os batistas gerais,

quc as idéias antirrinitárias conquistaram o maior número de seguidores. Em 1717 Joseph Hallett (169 1i-1 744) e James Peirce (1674)-1726), ministros presbirerianos em Exeter, procuraram uma posicáo intermediária entre a ortodoxia e o arianismo.

O mais erudito dos dissidentes do século dezoito, Nathaniel Lardner (1684-1768), adotou idéias similares, e o movimenro se espalhou. No

os congregacionais e

os batistas particulares foram pouco afetados; seus membros aumentaram em númelo ultrapassando os presbiterianos que, quando ro à medida que o s é c ~ ~ transcorria, da Lei de Tolerância, eram o grupo mais numeroso denrre os não conformistas.

P E R ~ O O OVII

O ERtSTIANISMO MODERNO

687

As tendências arianas prepararam o caminho para o desenvolvimerito de um unitarismo organizado separadamente na Inglaterra. O movimento precipitou-se quando um clérigo da igreja oficial, Theophilus Lindsey (1723-1 808), que tinha adotado urna postura unitarista, fez circular uma petiçáo, que colheu cerca de duzentas e cinquenta assinaturas, solicirando que os clérigos fossem desobrigados de subscrever os Trinta e Nove Artigos, mas dessem sua fidelidade somente as Escritu-

ras. Em 1772 o parlamento se recusou a recebê-la. No ano seguinte Lindsey se retirou da igreja oticial e em 1774 fundou, em Londres, uma igreja unitarista. Joscph Priestley (1733-18041, clérigo dissidente, químico notável, descobridor do oxigtnio, simpácico às revoluções americana e francesa, que passou os úitimos dez anos de sua vida na Pennsylvania, estava intimamente ligado a Lindscy. Em 1779 o parla~nento emendou

3

Lei de Tolerância, substituindo a requerida aceitaçáo da parre doutriná-

ria dos Trinca c Nove Artigos por uma profissão de f6 nas Escrituras, e em 1813 rejeitou todas as açóes penais contra os que negavam a li-indade. Esse unitarismo inglês mais antigo era formal e inteIectua1, direto em sua rejeicáo dos "credos compostos pelos homens" e em sua insistência da salvacáo pelo caráter. Foi quase sempre competente in~eIectualmente,mas teve pouca influência na vida religiosa popular.

O unitarisrno inglês teve algum resultado, produzindo um movimento semelhante na Nova Inglaterra, ainda que este também tenha surgido devido às seneralizadas tendências racionalistas do século Jezoiro. A presença dc Priestley e dc Williarn Hazlitt (1737-1820) nas colônias ajudou a precipitar sua emergência conio um movimento independente. King's Chapel, a igreja episcopal mais antiga na Nova Inglaterra, se tornou

3 primeira

igreja abertamente unitarista, em 1787, sob a direção dc

seu pastor, James Freeman (1759-1835). Muitos congregacionais simpacizararn com o unitarismo pois,

em reaqáo ao Grande Desperta~nento(ver VIS),as

influências arminianas estavam se espalhando, e as idéias anti-trinitárias eram cautelosamente acalentadas por alguns. Mas as igrejas congregacionais estairanl estabelecidas legalmente, e qualquer surto de controvérsia teológica era temido, pois estava fican-

do cada vez mais difícil defender as igrejas estabelecidas em uma época que assistia ao progresso das liberdades. Náo foi senáo no século dezenove que a controvérsia entre os grupos ortodoxo e liberal irrompeu abertamente, provocando o cisma unitarista (ver VIL: 15).

688

HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ.

Capitulo 5

O Pietismo na Alemanha Já foi mencionado o desenvolvimento de um luteranismo escolástico (ver VI:13). Ainda que baseado nas Escrituras, ral desenvolvimento assumia a forma de uma interpreracáo dogrnática fixa, rígida, exara e que exigia conformidade intelectual. Ademais, enfatizava a pura doutrina e os sacramentos como sendo os elementos

suficientes da vida cristá. O relacionamento vital enrre o crente e Deus que Lutero ensinara, fora substituído em g a n d e parte por uma fé que consistia na aceitacão de uin todo dogmático. O papel do leigo era inteiramente passivo: aceitar os dogmas que lhe eram assegurados serem puros, ouvir sua exposiçáo do púlpito, participar dos sacramentos e partilhar nas ordenancas da igreja - isto era a essência prática da vida cristá. Exisriam algumas evidências de uma piedade mais profunda, da qual os hinos da época sáo ampla proxra. Também, sem dúvida, poderiam ser encontrados muitos exemplos individuais de profunda vida religiosa, mas a tendência geral era externa e dogmática. Esta era a tendência frequentemenre inritulada, embora apenas parcialmenre correta, "ortodoxia morta". Em certos aspectos esse protestantismo escolástico era mais estreito do que aquele do período medieval, pois fora involuntariamente influenciado pelo espírito racionalisra contra o qual Iutara, de forma que se tornara parecido com as novas correntes racionalistas, tanto na têmpera como no método. Daí ele participar nas reacóes contra o racionalismo.

O pietismo foi um rompimento com essas tendências escolásticas, uma afirmação da primazia do sentimento na experiência cristá, uma defesa da participaçáo ativa dos leigos na edificaçáo davida cristá e uma ênfase numa atitude ascética estrita para com o mundo. Várias influências conrribuíram para o surgimento desse movimento, e é difícil rastreá-Ias todas com precisáo. A melhor abordagem para uma compreensão do contexto e da natureza do reavivamento pietista é por meio de sua figura central, Philipp Jacob Spener (1635-1705), um dos vultos religiosos mais notáveis do século dezessete e no qual o ensino e o exemplo pietista tiveram sua fonte imediata. Spener nasceu em Rappoltsweiler, na Alta Alsácia, e foi educado em Estrasburgo, onde se tornou versado na exegese bíblica e presenciou uma disciplina eclesiástica e

QERIOIO YII

O CRISTIABISMO MODERNO

687

um cuidado com o ensino catequético que iam muito além do que era normal na

maioria dos círculos luteranos. Estudos posteriores em Basiléia e Genebra aproximaram-no das ênfases reformadas mas sem afastá-lo do luteranismo. Seu desenvolvimento mental e espiritual foi modelado por muitos fatores. Em Estrasburgo Spener estudou cuidadosamente a teologia de Lutero. Ali foi especialmente estimulado por um livro escrito por um simpatizante do misticismo, Johann Ari~dt(1555-1621), intitulado Erdadeiro Cristianisnzo, que fora publicado entre 1605 e 1609. Não está claro o quanto a poesia religiosa de Paul Gerhardt (1607-1676) o teria impressionado. Também não se sabe o quanto ele deve àquele movimento nas igrejas reformadas, algumas vezes denominado "Pierismo Holandês" ou "Precisianismo Holalldê~'.Os líderes desse movimento, que tem sido identificado com o puritanismo inglês, pois este o fertilizou profundamente, foram Willem Teelinck (1579-1 629), Gisbert Voet

(1 589-1677) e Jodocus van L o d e n ~ t e ~(1620-1 n 677). No entanto, náo hrí dúvidas de que Spener foi bastante influenciado pelos escritos puritanos, muito especialmente pela tradu~áoalemã de um livro muito lido de Lewis Bayly (2-1631) intitulado A Prdticd da Piehde e por algumas obras traduzidas de Richard Baxrer (1 6 15- 169 1). Em 1666 Spener passou a ser o principal pasror na próspera cidade comercial de Frankfurt. Sentia a necessidade de disciplina eclesiástica mas achava-se impedido, pois toda autoridade escava nas rnáos do governo da cidade. Utilizando a liderança

que lhe era permitida, rapidamente melhorou a instrugao catequética. Sua primeira inovaGáoiniporrante se deu em 1670, quando reuniu

em

sun

própria casa um peque-

no grupo de pessoas com idéias semelhantes para a leitura da Bíblia, oracáo e discussão dos sermóes dominicais

-

tudo com o intuito de aprofundar a vida espiritual

daí pierismo. individual. Estes círculos receberam o nome de ~aiie~iapietatis, Tais planos para o cultivo de uma vida cristá mais férvida foram expostos por Spener em seu livro Pia desideria, de 1675. Ele descreveu os principais males da época como sendo a interferência do governo, o mau exemplo das conduras indignas de alguns clérigos, as interpretaçóes controversas da teologia e as bcbedices, a imoralidade e o egoísmo dos leigos. Ele propôs como meio de reforma a forma~áode círculos nas diversas congregações - ecclesiolae in ecclei-ia - para a leitura da ~ í b l i ae, visto qrie todos os crentes sáo sacerdotes (um ensino luterano que estava praticamente esquecido), para mútua vigilância e auxílio. O cristianismo é muito mais vida do que conhecimento intelectual. A controvérsia a ninguCm aproveita.

E desejável um

melhor preparo dos clérigos; deve ser exigido deles um conhecimenro experimental

690

HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA

da religiáo e uma vida condigna. Deve ser praticado um novo tipo de pregaçáo, destinada a edificar a vida criscã dos ouvintes, ao invés de ser principalmente coniroversa ou exibidora das habilidades de argumentar do pregador. O ímico cristianismo genuíno é aquele que se demonstra na vida. Seu comeqo normal é uma rransforma-

çáo espirit-ual, um novo nascimento consciente. Spener também revelou certas tendências ascéticas, semelhantes às dos puritanos ingleses, inculcando moderaqxo no comer, beber e trajar, condenando o teatro, as d a n ~ a se os jogos de cartas, que o luteranismo da época considerava como "coisas indiferentes". Os esforços de Spener encontraram forte oposiçáo e despertaram enorme conrrovérsia. Ele foi falsamente acusado de heresia ¶uando, indicando certo afastamento intencional dos padrões luteranos, mas verdadeiramente no sentido de que seu espírito c ideais eram inteiramente distintos da ortodoxia luterana da época. Sua obra envolvia um deslocamento de ênfase dos credos para as Escrituras. Seu sentimento de que, se "o coracáo" esriver correto, as diferenças de interpretaqão intelectual serão

de importância scciindária, foi ferreamente combatido por aqueles que enfatizavam a "doutrina puraJ'. Indubita\relmente, Spener popularizou a familiaridade com a Bíblia e enfraqueceu a autoridade das normas confessionais como a forma lógica final daquilo que as Escrituras rinham a ensinar. Uma conseqüência desse estudo bíblico foi preparar o caminho para uma investigaçáo da natureza e história das Escrituras. Spener melhorou sobremaneira a instrucáo religiosa dos jovens e alcançou seu propósito de irirroduzir uma vida cristã popular mais ativa e ardorosa, fundamentada nas Escrituras. Em Frankfurt, alguns de seus discípulos, apesar de seus prorestos, afastaram-se do culto e dos sacramentos da igreja. Conseqüentemente, as reunióes de Spener suscitaram a oposiçáo policial, e foi com aiegria que ele recebeu, em 1686, convite para ser o pregador da corte, em Dresden. Entrementes, o movimento pietista tinha alcançado a universidade de Leipzig. Em 1686, um dos instrutores mais jovens, August Hermann Francke (1663-1727), e alguns companheiros, fundaram ali um colLegium philobiblicum para o estudo das Escrituras. No início seus membros eram instrutores, seu método era científico e tinha a aprovaqáo das autoridades universitárias. Mas ein 1687, quando se encontrava em Luneberg e estava escrevendo um sermáo sobre Jorio 20:31, Francke experimenrou o que considerou como um novo nascimenro divino. A estada de alguns meses com Spener, em Dresden, completou sua aceitaçáo do pierismo. Em 1689 Francke estava de volta em Leipzig, palestrando para os estu-

dantes e para o povo da cidade, com grandes audiências. Logo a cidade se agitou.

Um decreto do príncipe-eleitor de imediato proibiu a reuniáo dos cidadáos em "coiivenrículos". Sem díivida, as conferências de Francke levaram aIguns alunos a iiegligçnciar outros estudos e a assumir uma atitude crítica. Sob a dire$áo de um professor de teologia de Leipzig, Johanil Benedict Carpzov (1633-16991, as aiitoridades da universidade limitaram o trabalho de Francke. Carpzov tornou-se Lim dos mais encarnicados oponentes de Franclce. A posicáo deste ficou muito incômoda, e ein i690 ele aceitou um corivite para ser "diácono" em Erfurt. Entrementes, a senda de Spener em Dresden náo era fáciI. O clero da Saxônia considerava-o estrangeiro; as duas universidades da Saxônia, Leipzig c Wittenberg, se opunham a ele. Suas reuniões para edificaçáo espiritual provocavam críticas. C1 príncipe-eleitor, Joáo Jorge 111 (1647-169I), se ofendeu por que Spener repreendia pastoralmente suas bebedeiras. Quando, pois, recebeu de Berlim um convite do príncipe-eleitor do Brandemburgo, Frederico I11 (1688-1701), que se tornaria o rei Frederico I da Prússia (1701-1713), Spcner o aceitou de bom grado. Ainda que jamais tenlia conquistado seu novo soberano para o pietismo, deIe recebeu muito apoio, e seus anos em Berlini, onde permaneceu até a morte, foram os mais fclizes e

bem sucedidos de sua vida. Enquanro em Berlim, Speiier pôde prestar o seu maior serviço ao pietismo. Christian Thomasius (1655-1728)

-

racionalista no sentido de Locke, crítico da

teologia altamente divisiva da época, criador da jurisprudência alem& o primeiro a si~bstituiro latim pelo alemáo como língua de ensino universitário, defensor da tolerância religiosa, cCptico quanto às bruxarias e inimigo do emprego judicial da tortura - fora expulso de Leipzig em 1690 por causa da hostilidade dos rcólo,=OS. Era grande sua popularidade entre os estudantes. Thomasius náo foi um pietista, embora tenha condenado as perseguicões aos pietistas e feito todo o possível para auxiliar Francke na sua disputa com as autoridades de Leipzi~.O príncipe-elciror do Brandemburgo, há muito desejoso de ter sua própria universidade, aproveitou o exílio de Thomasius para fundar uma em Halle, que foi iiiauguruda formalmente em

1694 e nela Thomasius dirigiu a faculdade de direito até sua morte. Enquanto isto, a enérgica introducáo por Francke, em Erfurt, de práticas pietistas despertara a oposi@o do clero da cidade. A hostilidade de Carpzov o perseguiu, e em 1691 ele foi expulso pelas autoridades. Spener entáo buscou junto ao príncipe-eleitor a nomeação de colegas que sinipatizavam com o pietismo, enue eles Francke. Este foi nome-

ado para lecionar em Halle e para pastorear a aldeia próxima de Glaucha. Desde o princípio Francke dominou os métodos e a instrução teológica em Halle; embora att 1698 não fosse formalmente membro do corpo docente de teologia, ele fez de Halle um centro do pietismo. Francke era dotado de imensa energia e gênio organizador. Sua paróquia de Glaucha era um modelo de fidelidade pastoral; suas conferências na universidade eram exegéticas e experimentais; e sua combinação da cátedra e da prática paroquial era altamente benéfica para seus alunos. Em 1695 ele inaugurou uma escola para crianças pobres c mais arde rima escola preparatória, a Paedagogium, e uma escola de latim. Estas fundacóes educacionais, todas dirigidas no espírito pietisia, conquistaram p n d e renome; na ocasião da morte de Francke elas contavam com duas mil e duzentas crian~as.Ele também fundou uma Casa de Órfãos, a qual, ao tempo de sua morte, abrigava cenco e trinta e quatro crianças. Estas instituições, muitas das quais continuam até hoje, foram iniciadas praticamente sem recursos; Francke sinceramente cria que elas eram mantidas pelas respostas às oraçóes. Vinham donativos de todas as parees da Alemanha. No entanto, sem duvidar da fé de Francke, é justo assinalar que ele entendia da arte de conquistar amigos e de conseguir publicidade honesta. Foi alro o número de pessoas da nobreza que foram patronos dessas instituições. Pode-se dizer que foi quase sua uma outra organizacáo: o Instituto Bíblico, fundado em 1710 por seu amigo Carlos Hildebrando, Freiherr von Canstein

(1667-

1719), para a publicaçáo das Escrituras e sua circuiaçáo de maneira econômica. Tal instiruto tem tido uma história notável. Uma característica importante destas atividades em Halle foi o zelo por missóes ali despertado. Numa época em que os protestantes em geral ainda não reconheciam sua obrigacáo missionária, Francke e seus companheiros estavam desperros para ela. Quando Frederico IV (1699- 1730) da Dinamarca desejou enviar os primeiros missionários prorestantes à Índia, estabelecendo-os em Tranquebar em 1706, entáo possessáo dinamarquesa, foi encontrá-los entre os alunos de Francke, em Halle Bartholomaus Ziegenbalg (1638-1719) e Heinrich Plutschau (1678-1747). Durante o século dezoito náo menos que sessenta missionários saíram da universidade de

HalIe e suas institui~óesassociadas para o estrangeiro. O mais famoso dentre eles foi Christian Friedrich Schwartz (1726-1798), que trabalhou na Índia de 1750 até sua morte. Por certo, o nome de Francke merece lugar de destaque no rol dos líderes da obra rnissionária.

PERIDIO YII

O CRISTIANISMO MOOERRO

693

A influência do pierismo também se fez sentir nas igrejas reformadas alemãs da regiáo do baixo Reno, onde uma fusáo de ênfases pietistas luteranas e reformadas foi demonstrada por Theodore Untereyck (1635- 1693) e Joachim Neander (1650?-1680).

O fermento pietista penetrou nas igrejas luteranas da Noruega, Suécia e Dinamarca, nelas estimulando bastante o zelo religioso entre o povo; e muitos dos colonos alemáes na América foram profundamente afetados pelo movimerito. Na Alemanha, quando da morte de Francke em 1727, o pietisrno já alcançara sua marca mais elevada. Ele náo produzira mais nenhum líder da mesma habilidade que Spcner e Francke, embora continuasse a se espalhar pela Alemanha, principalmente em Wiirttemberg, sob a direção de Johann Albrecht Bengel (1687-1752). E difícil fazer um cálculo estatístico, já que os pietistas não se separavam das igrejas luceranas; mas é fora de dúvida que o pietismo afetou a Alemanha ampla e perenemente. Ele promoveu um tipo mais vital de piedade, melhorou em muito a cpalidade espiritual do ministério, da pregaçáo e do preparo cristáo da mocidade, expandiu a participação do laicato na vida da igreja e aumentou substancialmente a familiaridade do povo com a Bíblia e o estudo devocional das Escricuras. Seus defeitos foram sua insistência em uma conversão consciente por meio de esforço como o único mttodo normal de entrada no reino de Deus, sua atitude ascética para com o mundo, ilustrada pela severa repressáo de Francke quanto aos divertimentos das crianças em suas instituiçóes, seus juízos censuradores considerando como irreligiosos aqueles que náo eram pietistas, e sua negligência dos elementos intelectuais na religião. O pierismo produziu muito poucos líderes intelectuais. No geral, entretanto, a avaliaçáo do pietismo é amplamente favorável. Ele prestou relevante serviço para a vida religiosa da Alemanha protestante. Um fruto do pietismo merecedor de referência foi a contribuicáo de valor feita à incerpretaçáo da história da igreja por um dos seus adeptos mais radicais, Gorcfried Arnold (1666-1714). Ele era amigo de Spener e foi por breve tempo professor em Giessen, mas depois disso passou a viver em relativo retiro em Quedlinburg. Desde a Reforma, a história da igreja era polêmica e considerava que deveriam ser rejeitados todos os pensadores a quem a igreja de sua própria tpoca rejeitara. Em seu livro

Unparteiiscbe Kircben und Ketzer-Histoire de 1699 e 1700, Arnold introduziu uma nova concepçáo. Ele lera muito sobre os hereges da antiguidade e concluíra que ningutm deve ser considerado herege porque no seu cernpo foi tido como tal. A pessoa deve ser julgada pelos seus próprios méritos, e mesmo as idéias dos chamados

674

HISTORIA DA IGREJA

CRI SI^

hereges têm seu lugar !-ia his~óriado pensamento cristão. Uma pessoa que concebe uma idéia valiosa corre sempre o risco de levar sua interpretação até o extremo. Assim foi com Arnoid. Ele concluiu que tem havido mais verdade nos hereges do que na ortodoxia. Mesmo assim, com ele a história da igreja deu um passo adiante de decidida importância.

Capítulo 6

Zinzendorf

Mor avianismo

Um dos mais ilodveis resultados do despertamei-ito pietista, ainda que loiige estivesse de receber a aprovação dos pietistas ern geral, foi a reconstituiçáo dos Unitas Fratrum ou, como eles ficaram conhecidos, os Irmáos Morávios, sob a direçáo do conde Nicolau Ludovico von Zinzcndorf. Zinzcndorf nasceu cm Dresden, cm 26 dc maio de 1700. Seu pai era alto oficial da corre eleitoral da Saxônia e amigo de Spener, c morreu pouco depois do nascin-ienco de Zinzcndorf. Sua niáe casou-se novamenre, e o menino um tanto solitário e introspectivo foi criado por sua avó, a baronesa pietista Henriquera (:atariria von Gersdorf. Desde berii jovem, Zinzendorf já apresentava o traqo que dominaria sua vida religiosa - apaixonada devoção pessoal a Cristo. Dos dez aos dczcsscte anos estudou no Paedagogizím de Francke, em Halle. O rigor ali imperanre não lhe agradava, mas aos poucos passou a apreciar o zelo de Francke, e sua natureza religiosa foi despertada em 1715, quando de sua primeira comunháo. h insistência da família para que ingressasse no funcionalismo público o levou a Wittenberg de 1716 a 1719 para estudar direito. Ainda que pietista decidido,

suas experiências em Wittenberg abrandaram seus sentimentos anteriores para com o luteranismo ortodoxo. Ein 1719 e 1720 fez longa viagem à Holanda e à França, entrando em contato coni várias personalidades notáveis e manifestando claramente seus princípios religiosos, ainda que com bastante tato. Ao retornar, passando por CasteIl, enamorou-se de uma prima, mas julgando que o conde Henriquc XXIX von Reush riilha a preferência, abandonou suas pretensões, certo de que Deus o chamava para alguma obra. I'or fim, em 1722, casou-se com a irmá do conde Henrique,

priinoo v11

O CRISTIANISMO MODERNO

Erdmuth Dorothea, que foi para ele uma esposa bastante harmoniosa. Os desejos de seus parentes o levaram a ingressar no serviço do príncipe-eleitor, em Dresdcn, em 1721. No entanto, ele estava interessado primeiramente no cultivo

da "religiáo do coraCáon, no sentido pietista, entre seus amigos de Dresden, e ainda mais em suas propriedades de Berthelsdorf, situadas a cerca de cem quilômetros a leste de Dresden, onde, como senhor, nomeara para o pasrorado seu amigo Johann Andrcas Rothe. Ali, de maneira totalmente acidental, haveria de descobrir sua voca-

çáo.

A Unitas Fratrum (ver V:13) na Boêmia e na Morávia enfrentava dias difíceis. Parte dela se refugiara na Polônia, onde mantinha sua existência contínua, mas sob dificuldades cada vez maiores. Seus membros persuadiram o pregador calvinista na corte de Frederico 111 em Berlim, Daniel Ernst Jablonsky, que estava conectado com a Unitas Fratrum tanto por ascendência como pelo contexto, a aceicar a ordenaçáo ao episcopado, em 1699. As conseqüências da Guerra dos Trinta Anos tinham sido catastróficas para o protestantismo tcheco, e ele persistia na Boêmia e na proví~lcia vizinha da Morávia apenas secretamente e sob perseguiqáo. Já em 1722 os sobrevivences de fala alerná da Uniras Fratrum, residentes no norte da Morávia, cornecaram a buscar refúgio na Saxônia, sob a liderança de um carpinteiro, Christian David

(1690-175 I). Zinzendorf deu-lhes perinissáo para fundarem uma aldeia em sua propriedade em Berthelsdorf, a qual denominaram Herrnhut, e onde se reuniram em grande número. A eles se ligaram muitos pietistas germânicos nativos e outros entusiastas religiosos. No início, Zinzendorf prestou pouca atençáo a esses colonos, afora lhes dar asilo, mas crn 1727 cornecou a dirigi-los espiritualmente. No começo a tarefa foi dura. O s refugiados estavam divididos c seu aIvo cra formar uma igreja separada, enquanto o de Zinzendorf e Rothe era incorporá-los na igreja Iuterana oficial da Saxônia, ainda que com reuniões adicionais especiais, segundo o plano de Spener dos rolligiid pietatis. Por outro lado, os costumes locais facultavam que uma aldeia organizada tivesse governo secular e fizesse suas próprias leis. Conforme esse costuine, em 1727, Herrnhut escolheu "anciáos" para sua direqáo secular. Zinzendorf, como senhor da propriedade, tinha certos direitos indefinidos de governo, e tudo isso foi selado por um ofício de comunhZo de tal poder espiritual, em Bertlielsdorf em I3 de agosto de 1727, qric csra data é geralmente reconhecida como a do reilasciinento da Unitas Fratrum, atualmente frequentemenre conhecida como a igreja morávia.

636

HISIÓRIA D A IGREJA

CRISTA

Logo se desenvolveu uma organizaçáo espiritual a partir dessas instituições governantes da aldeia de Herrnhut, originariamente seculares. Surgiu, a partir dos anciáos, um comitê execurivo de quatro pessoas, que em 1730 passou a exercer funqóes ministeriais. Formou-se um presbitério gerai, do qual o primeiro moderador foi Leonhard Dober (1706)-1766), que retornou do campo missionário em 1734 para assumir suas funções. Para Zinzendorc a sociedade de Herrnhut passou a ser vista como uma milícia de Cristo, para impulsionar sua causa no país e fora dele - um novo monasticismo protestante, sem votos ou celibato mas ligado a seu Senhor pela oracão e culto diário. A partir de 1728 os jovens eram separados da ~ 'a dfamiliar ordinária, e cada faixa etária era colocada sob estrita supervisáo. As crianças eram criadas separadas de seus pais - conforme a maneira da Casa de Órfãos, de Halle. A comunidade tentou até mesmo regulamentar a escolha dos cônjuges nos casamentos.

O ideal era aqueie de uma comunidade separada do mundo mas pronta a enviar forSas para trabalhar em qualquer parte do reino de Cristo. N o entanto, duas tendências trouxeram confusáo a esse piano. O elemento morávio aspirava a ver o estabelecimento de uma denominaçáo separada, um reavivamento completo da antiga Unitas Fratrum. Zinzendorf, porém, estava firme na idéia de uma ecclesioln in rcclesz'a. Ele desejava manter os morávios como parte da igreja lucerana oficial, apenas como um grupo especial dencro dela, no qual se fomentaria uma vida espiritual mais ardente, uma "religiáo do coracão". O movimento logo encontrou muica oposiçáo, náo apenas dos luteranos ortodoxos, mas cambém dos pietistas, tanto em virtude das peculiaridades de Herrnhut como por causa de sua tendência separatisra. No geral, aos poucos os sentimentos separatistas se tornaram majoricários, embora sem abolir de todo a outra tendência.

A disposiqáo dos morávios de irem a qualquer lugar servindo a Cristo deu ao movimento um impulso missionário que ele jamais perdeu. Nenhum grupo protestante rem estado toa consciente do dever missionário e nenhum esteve tão consagrado à obra, proporcionalmente ao seu número. Umaviagem a Copenhague para assistir à coroaçáo de Cristiano IV (1730-1746), da Dinamarca, pôs Zinzendorfem contato com naturais das Índias Ocidentais dinamarquesas e da Groenlândia. Zinzendorf retornou a Herrnhut inflamado de entusiasmo missionário. O resultado disto foi que Leonhard Dober e David Nitschmann (1696-1772) iniciaram uma missáo nas Índias Ocidentais em 1732, e Christian David e outros, no ano seguinte, na Groenlândia. Dois anos mais tarde um concingenre apreciável, liderado por August

Gottlicb Spangenberg (1704-1792), começou a trabalhar na Geórgia. Jablonsky ordenou Nirschman~ibispo - o primeiro da moderna sucessáo morávia - para esta obra missionária, em 1735. Entrementes, o relacionamento entre Zinzendorf e o governo da Saxônia foi se rornando bastante tenso. As autoridades austríacas se queixavam, sem fundamenro, de que eIe cstava atraindo seus súdiros. Renovaram-se as queixas eciesiásiicas e a 20 de março de 1736 ele foi banido da Saxônia. Zinzcildorf encontrou oportunidade para trabalhar em Ronneburg, n o oeste da Alemanha, e nas províncias bálricas. Em 1737 foi ordenado bispo por Jablonsky, em Bcrlim. Em 1738 e 1739 viajou para as índias Ocidentais; em 1741 se encontrava em Londres, onde a obra morávia se desenrroivia já h i vsrios anos. Em dezembro desse ano escava em Nova Iorque e na véspera do natal deu o nome de Belém à colônia que os morávios da Geórgia estavam começando na Pennsylvania - cidade fadada a se tornar a sede do movimento na América. A peregrinacáo de Zinzendorf na América foi muito ativa. Eie esforçou-se para reunir as forças protestantes alemás espalhadas na Pennsylvania numa unidade espirirual que ficaria conhecida corno a "Igreja de Deus no Espírito". Iniciou missões entre os índios, organizou sete ou oito congregacóes morávias e fundou escolas. Foi estabelecido o ministério itinerante, sob a superintendêi~ciade Peter Bohler (17121775). Zinzendorf embarcou em janeiro de 1743 para a Europa e em dezembro de 1744, Spangeiiberg ficou responsável, como bispo, por toda a obra na América. O mais famoso missionirio morávio entre os íildios foi David Zeisberger (1721-1808), que trabalhou encre os creeks da Geárgia a partir de 1740, e entre os iroqueses desde 1743 até sua morte. Assim Herrnhut se tornou uma coirneia de atividade rnissioiiária. Foram iniciadas missões no Suriname, Guiana, Egito e África do Sul. Em 1771, depois de várias tentativas, foi es~abelecidauma missáo permanente no Labrador. Os nomes de seus primeiros campos missionários demonstram uma característica do esforço morávio. Eram em sua maioria lugares difíceis, que exigiam paciência e devocão cspcciais, e esse traço caracteriza os labores missionários morávios até o presente. Entrementes, embora Zinzendorf fosse contrário ao separatismo, o moravianismo esrar7ase tornando cada irez mais uma igreja. Ele foi reconhecido como tal pelo governo da I'rússia, ein 1742. I'or volra de 1745 a igreja morávia estava inteiramente organizada, com bispos, presblteros e diáconos, ainda que seu governo fosse, como

H I S I L h I A DA IGREJA CRISTÃ

698

ainda permanece, mais presbiteriano que episcopal. O parlamcnro inglês, mediante uma lei de 1749, reconheceu-a como "uma igreja protestante episcopal antiga". Zinzendorf, porém, náo abandonou sua teoria de uma ecclesiola in ecclesia. E111 1747, após negociaçóes com as autoridades da Saxônia, foi suspenso o seu banimento, e no ano seguinte os morávios aceicararil a Confissáo de Augsburgo. E m 1749 a igreja morávia foi reconhecida como parte da igreja oficial da Saxônia, com seus ofícios próprios. Nessa época o moravianismo escava desenvolvendo uma mui bela lirurgia e uma hinologia muito rica. Essa igreja sempre foi pequena, mas sua influência disseminou-se amplamente por meio do evangelismo da "diáspora" na Europa. As sociedades religiosas sob os auspícios rnorávios influenciaram muitas pessoas sem pertur-

bar o vínculo dclas com as igrejas oficiais regulares. Enquanto Zinzendorf esteve banido, ele e alguns morávios desenvolveram certas peculiaridades teológicas e cultiirais que se tornaram motivo de merecidas críticas. Sua ênfase na morte expiatória de Cristo tomou direcáo errada, centrando-se em uma concentraçáo e um jogo de paiavras mórbidos sobre o sangue e as feridas do Crisro crucificado. Essa tendência fan~asiosae sentimental foi encorajada pelos morá~riosna Wetteravia, onde o movimento estava centralizado em Ronneburg, Marienborn e Herrnhaag, durante o período do banimento, e pelo filho de Zinzendorc Christian Renatus (1727-1752). A insistência de Zinzendorf em que os cristáos devem tornar-se criancinhas para entrar no reino de Deus provocou a expressão de rnuica infantilidade. Escas peculiaridades alcanqararn seu auge entre 1747 e 1749, mas no !gera1 foram se corrigindo por si mesmas. O próprio Zinzendorf as abandonou. Este período é denominado pelos morávios como "tempo de joeirar". Estas tendências devem ser consideradas quando muito como máculas no cariter daquele que pôde dizer, como poucos podem, de sua devoçáo a Cristo: "Tenho uma paixão Elc."

A vida de Zinzcndorf de 1749 a 1755 i-raiiscorrçu principalmente na Inglaterra. Seus bens haviam sido gastos sem reservas com os morávios e agora ele estava quase em bancarrota. Suas dividas foram encampadas, como era justo, peios morávios e foram sendo saldadas aos poucos. Tal necessidade financeira levou ao desenvolvirnenco constitucional dos morávios. Foi estabelecido um diretdrio colegiado, que se transformou numa junta de governo, supervisionando os assuntos morávios, e as tâuas pagas pelas diversas congrega~óesprovocaram um sínodo geral onde elas se faziam representar e que se reunia a intervalos regulares.

PERIOBO YII

O C R I S I I A N I S M O MOOERNO

699

Zinzcndorf passou os últimos anos de sua vida principalmencc eni arividades pastorais. Gastara prodigamente sua vitalidade e perdera a esposa e seu único filho. Morreu em 9 de maio de 1760, em Herrnhut. A Unicas Frarrum, pela qual Zinzeiidorf ranto fizera para renovar e inspirar, estava agora firmemente estabelecida como a igreja morávia, tanto que sua morte não trouxe abalo maior. Por felicidade, a dircgáo prática da igreja morávia recaiu sobre Spangenbcrg, mandado retornar da América para Herrnhut, em 1762. Ele a dirigiu até sua morte, 30 anos depois. Náo possuía o gênio e o entusiasmo de Zinzendorf, mas tinha igual devoqáo, grande senso prárico e alra capacidade de organizaçáo. Sob sua lideran~asábia e vigorosa o moravianismo se fortaleceu e cresceu; o que provocava crítica foi corrigido. Sua obra foi tranqüila, náo aparatosa, mas totnlr-ileiltemeritória. h igreja morivia assumiu seu lugar de respeiro entre as famílias da cristandade, exercendo ampla influência através de scu zelo missionário e trabalho na diispora.

Capítulo 7

O Reavivamento Evangélico na Grá-Bretaiiha; Wesley e o Metodismo As tendhcias no pensamento c na vida religiosa da Inglaterra

110

início do século

dezoito já foram assinaladas (ver VII:3). O ttrrnino das lutas do século anccrior fora marcado por generalizada letargia espiritual tanto na igreja oficial da Inglaterra como nas dissidentes. O racionalismo penetrara em rodas as classes de pensadores religinsos, de modo que mesmo entre os ortodoxos o crisrianismo se assemelhava mais a um sistema de moralidade apoiado por sançóes divinas. Joseph RutIer (ver VII:3) pode ser um caso típico. Suas probabilidades áigidas podem ter convencido alguns intelectos, mas só alguns poucos foram levados 2 ação. Havia pregadores capazes, mas o sermão caracrerístico era um ensaio descolorido sobre as virtudes morais. A obra dc alcance evangclístico era mínima. A condiçáo das classes inferiores era de indigência espiritual. Os divertimentos populares eram grosseiros, o analfabetismo era generalizado, a lei era aplicada de modo brural e as prisues eram antros de doen-

HISlbRIA DA IGREJA

700

CRIOTI

ças e iniqüidade. Nunca o alcoolismo prevaleceu tanto na vida inglesa como naquele período.

Além disso, a Grá-Bretanha estava às vésperas da revolução industrial que a transformaria, no último terço do século dezoito, de país agrícola em industrial. James Watt (1736-18 19) patenteou o primeiro motor a vapor eficiente em 1769. James Hargreaves (?-I 778) patenteou a máquina de fiar em 1770. Richard Arkwright (17321792) inventou o fuso mecânico em 1768. Edmund Cartwright (1743-1823) invenrou o tear mecânico em 1784. Josiah Wedgwood (1730-1795) tornou as olarias Staffordshire operacionais a partir de 1762. A s mudanças industriais e sociais e os problemas delas decorrentes foram da maior imporrância e implicaram em reajustes de imensas conseqüências práticas para a religiáo. No início do século dezoito náo faltavam homens e movimentos ansiosos por melhorar as coisas. Williarn Law náo foi apenas um vigoroso oponente do deísmo. Seu livro intitulado SCrio Apelo à Vida Devota e Santa (1728) influenciou profundamente John Wesley, e permanece um dos monumentos da literatura exortativa inglesa. O congregacional Isaac Watts (1674-1748), há muito esquecido como ceólogo, com justiça tem sido chamado o fundador da moderna hinologia inglesa. Seus Hinos (1707) e Os Salmos de Davi Imitados na Linguagem do Novo Testamento

(1719) puseram abaixo os preconceiros então existentes, em ambos os lados do Atlântico, nos círculos de língua inglesa náo clericais, conrra o uso de tudo quanto náo fosse passagens rimadas da Escritura. Tais hinos expressam piedade profunda e vital. Foram feitos alguns

esforces

combinados sigiiificativos em favor de uma vida

religiosa mais fervorosa. Dentre eles se contam as "sociedades religiosas", sendo a mais antiga delas aquela formddd em Londres por um grupo dc jovens, por volta de

1678, para oraçáo, leitura das Escrituras, cultivo de uma vida religiosa, comunháo freqiienre, auxíiio aos pobres e aos soldados, marinheiros e encarcerados, e encorajarnenro da pregaqáo. Elas se propagaram rapidamente. Por volta de 1700, só em Londres havia cerca de uma centena, e também podiam ser encontradas em muitas partes da Inglaterra e aré na Irlanda. Em 1702 uma delas foi organizada em Epworth pelo pai de John Wesle): Sarnuel Wesle. Em vários sentidos elas se pareciam aos collegia pictatis de Spener (ver VTI:7) mas não havia um Spcncr para impulsioná-las. Eram compostas quase exclusivameilte por membros comungantes da igreja estabelecida. Muitos do clero consideraram esse movimento como "entusiasta", ou, como hoje se diria, "fanático". A partir de 17 10 ele declinou muito, mas as socieda-

PER~OIE YII

O ERISIIIINISMO MODERRO

701

des iriam permanecer e desempenhariam u m papel importante no início do rnetodismo. Tais esforços, no entanto, tinham apenas influência local e parcial. O grosso do povo inglês estava em letargia espirirual ainda que cegamente consciente d o pecado e convencido da realidade da futura puniçáo e recompensa. Náo haviam sido despertadas as emoçóes da lealdade a Cristo, da salvaçáo por seu intermédio, de uma fé transformadora presente. Era necessário o apelo por um zelo espiritual vívido, mais dirigido a convencer o coração do que ponderar sobre prudência ou sobre frígida argumentacão lógica. A profunda transformação efetuada na Inglaterra, cujos resultados fluíram em benéficas correntes para todos os territórios de língua inglesa, foi primordialmente resultado do "reavivamento evangélico". Os primeiros sinais de um despertamento apareceram no começo do século dezoito. Na Escócia, sob a liderança de Ebenezer (1680-1754) e Ralph Erskine (1685-1752), cresceu um movimento evangélico nos primeiros anos do século; por volta de 1714 Ebenezer foi forçado a pregar num campo adjacente à sua igreja, para poder acomodar as rnultidóes. Três anos depois, uma obra puritana anônima d o século dezessete, provavermente de autoria de Edward Fisher, A Essência da Teologia Moderna, voltou a ser publicada por incentivo de um zeloso pregador popular, Thomas Boston (1677-

1732),de Ettrick. A despeiro da censura formulada em 1722 pela Assembléia Geral, os "Homens Essenciais", com seu ardente espirito evangélico, granjearam muita simpatia. Eles organizaram "sociedades de oração" que também lembravam os collegia pietatis de Spener. Em Gales, Howel Harris (1714- 1773) e Daniel Rowlands (171 3-

1790) foram líderes de um reavivamento que irrompeu em meados da década de 1730. Mas somente com o surgimento de seus rrês grandes líderes - John e Charles Wesley e George Whitefield - o reavivamento evangéIico cresceu como poderosa maré. Durance quatro décadas ele avancou em rrês vertentes específicas mas intimamcnce relacionadas, todas ligadas à igreja oficial da Inglaterra: as sociedades metodistas sob a orientaçáo dos irmãos Wesley, os metodistas calvinistas sob Whitefield e os Evangélicos Anglicanos, estes trabalhando junto a linhas paroquiais mais tradicionais. Náo foi senáo em 1779 que as primeiras separacóes formais de quaisquer dessas vertentes ocorreram na igreja da Inglaterra.

Os pais dos irmáos Wesley eram descendentes de náo-conformistas. Seus dois avós estavam entre os clérigos expulsos em 1662. O pai, Samuel Wesley (1662-1735), preferira o miriistério da igreja oficial e fora, desde 1696 até sua morte, pároco da

igreja campesina de Epworth. Homem de zelosa disposicão religiosa mas pouco prrírico, escrevera a Vida de Cristo ein Verso e um comentário do livro de Jó. A mãe, Susanna (Anncsley), era mulhcr de norávcl fortaleza de caráccr, sendo, como seu marido, anglicana devota. O s filhos tinham muito dos pais, calvez mais da forca materna. Num lar de dezenove filhos, dos quais oito morreram na infância, forcosamente a regra era trabalho duro e estrita economia. John era o décimo quinto e Charles o décimo oitavo dessa grande ninhada. John Wesley nasceu em 17 de junho de 1703 e Charles em 18 de dezembro de

1707. Ambos foram salvos com dificuldade de um incêndio na casa paroquial, ein 1709. Ia1 faro deixou impressão indelével na mente de John, que desde entáo se considerou literalmente "um tiçáo arrancado do fogo". Em 1714 John ingressou na Charrerhouse School, em Londres e, dois anos após, Charles iilgressou na Westrninster School. Os dois meninos se distinguiram como estudantes. Ern 1720 John ingressou rio Christ Church College, Clxford, para onde Charles foi seis anos depois. O progresso incclectual de John foi tamanho que, em 1726, foi nomeado membro do Lincoln College. Para ser candidato a tal honraria John teria que estar nas ordens sacras e, eiitáo, em 25 de setembro de 1725 foi ordenado diácono. Com sua ordenaçáo começaram as liitas espirituais que só terminariam com sua conversão, em 1738 e, quiçá, em cerro sentido, se prolongariam além dessa data. Enrre 1726 e 1729 Johil \Vesley foi a maior parte do tempo assisrente de seu pai. Em 22 de setembro de 1728 foi ordenado sacerdote. Durante siia ausência de Oxford,

na primavera de 1729, Charles Wesley e dois colegas es~udantes,Rohert Kirkham e William Morgan, organizaram um pcqueno clube, principalmente para levarem avante seus estudos, mas que logo mosrrou-se ideal para a leitura de bons livros e para a cornunháo frequente. Quando de seu retorno a Oxford, em novembro de 1729, John Wesley se tornou o líder do grupo que de imediato atraiu ourros estudantes. Sob sua direçáo, o grupo procurava realizar os ideais de William Law de uma vida consagrada. Em agosto de 1730, pela influência de Morgan, começaram a \'~sltarOS '

'

encarcerados na prisáo de Oxford. O s membros do grupo jejuavam. Seus ideais eram altamente igrejeiros. Os universitários zombavam deles. C h a n ~ a v a no~grupo de "Clube Sanco" e, por fim, algum estudante enconrrou um apelido que pegou, os "metodisras" (nome que já fora usado no século anterior). Esravam, porém, ainda muito longe do que seria o metodismo. Ainda forrnavam um grupo que lulava penosamente pela salvaçáo de suas próprias almas. Como eram eritáo, mais se assemelhavam ao movi-

~ ~ n i o ouiio

O ERISTIAIISMD MODERNO

mento anglo-católico do século dezenove que ao metodismo histórico.

O clube recebeu uma importante adesáo no começo de 1735 na pessoa de George Whitefield. Nascido em GIoucester em 16 de dezembro de 1714, filho de um esr-alajadeiro, ele crescera pobre, ingressando em Oxford em 1733. Uma grave moIéstia na primavera de 1735 provocou uma crise em sua experiência religiosa. Ele emergiu dessa crise com alegre certeza de paz com Deus. Enl junho de 1736 Whitefield buscou e recebeu ordenacão episcopal, e imediatamente, embora bastante jovem, iniciou sua maravilhosa carreira de pregador. Nenhum pregador anglo-saxáo do século dezoito exibiu tal poder no púlpito. Homem basicamente sem espírito denoininacional, numa época em que tal espírito era geralmente intenso, ele estava pronto a pregar em qualquer lugar e em quaiquer púlpito que lhe fosse entregue. Por vezes duvidava da genuinidade de experiências religiosas diferentes da sua, mas era de natureza profundamente simples e altruísta. Sua mensagem era o Evangelho da paz e da graca perdoadora de Deus por meio da aceitação de Cristo pela fé, e a conseqüente vida de servi50 em alegria. Seus poucos sermóes impressos dão escassa idéia do sru poder. Um tanto dramático e

de voz maravilhosamente ex-

pressiva, ele dominava grandes auditórios nos dois continentes. Passo~igrande parte dc seu ministério ativo na América do Norte. Em 1738 esteve ria Geórgia. No ano seguinte voltou à América e sua pregaçáo na Nova Inglaterra, em 1740, foi acompanhada pela maior cornoçáo espiritual jamais vista ali. Náo foi menor seu êxito nas colônias centrais, ainda que ali e na Nova Inglaterra houvesse grande divisáo de opiniões sobre o valor espiritual permanente de sua obra. Os anos de 1744 a 1748 viram-no novamente neste lado do Atlântico e também os de 1751 e 1752 e, ainda, os de 1754 e 1755. Sua sexta visita foi de 1763 a 1765. Em 1769 retomou para seu último giro de prega~áo,e faleceu a 30 de setembro de 1770, em Newburyport, Massachusetts. Ele havia se entregado sem restrições ao serviço das igrejas americanas de todas as famílias protestantes. Náo foi um organizador. Não deixou nenhum grupo com seu nome, mas despertou milhares. Nenhum dos dirigentes do Clube Metodisra estava destinado a pcrmanecer por muito tempo em Oxford, nem o seu movimento a ter muita influência na universidade, que estava entáo em declínio tanto acadêmico quanto religioso. A morte de seu pai, em 25 de abril de 1735, deixou os irmáos Wesley menos apegados ao lar, e ambos conseguiram colocação como inissionirios para a nova colônia da Geórgia, cuja colonização fora iniciada em 1733 pelo gcneral Oglethorpe. Embarcaram em

70,;

HISTÓRIA DA IFREJA CRISIA

outubro de 1735. Durante a viagem mantiveram-se constantes nos exercícios religiosos e no auxílio aos demais viajantes. No navio havia um grupo de vinte e seis

c':

morávios, chefiados pelo bispo David Nitschmann. A animosa coragem dessa gente

Ei 1

durante uma rempcstade convenceu John Wesley de que os morávios tinham uma

C.

confiança em Deus que ele náo possuía. Muito aprendeu com eles. Pouco depois de

l r.-

chegar a Savannah encontrou-se ele com Spangenberg (ver VXI:6), que lhe fez esta

0;

embaraçosa pergunta: "Você conhece Jesus Cristo?" Wesley respondeu: "Sei que Ele

C o salvador do mundo". Ao que Spangenberg replicou: "Cerro. Mas você sabe que Ele o salvou?" Na Gcórgia, os Wesleys trabalharam com afinco, mas tiveram pouco êxito. Charles Wesley retornou ao país natal em 1736, desgosroso e enfermo. Mas John permaneceu. Demonsrrou então seus dotes linguísticos dirigindo ofícios em ale~náo,francês c italiano. Em 1736 fundou em Savannah uma pequena sociedade para o cultivo da

vida religiosa mais fervorosa. Trabalhou infatigavelmeilte, ainda que com pouca paz de espírito ou conforto para os outros. Era observador zeIoso da Alta Igreja. FaltavaIhe tato. Caso digno de atencáo foi o de Sophie Hopkey, uma mulher sob todos os aspectos digna de ser sua esposa. A ela e aos amigos dela ele deu motivos para crerem que sua intençáo era casar-se com ela, mas oscilava entre o celibato clerical e a possibilidade dc contrair matrimônio. Uin resto de supersticáo que Wesley sempre conseivou, levava-o a resolver assuntos imporrantes pelo primeiro versículo da Escritura lida ao acaso ou lancando sortes. Neste caso recorreu ao último método, e a resposta foi adversa. Assim Wesley naturalmente chamou sobre si o ressentimento da moca e de seus parentes. Melindrada, ela logo casou-se com outro pretendente. O marido proibiu que ela conrinuassc a participar das discussóes religiosas íntimas de Wesley. Entáo este achou não estar Sophie preparada adequadamenre para receber a comunháo e negou-lhe o sacramento. Os amigos dela acusaram ser isto o aro de um pretendente desgostoso. Chegava ao fim a influência de Wesley na Geórgia. Iniciararnse processos contra ele. Entáo decidiu voltar à pátria. Em l o de fevereiro de 1738 John Wesley estava de volta à Inglaterra. Em sua viagem para o exterior temera a morte. Em seu amargurado desapontamento só podia dizer: "Tenho bela religiáo de verão". No entanto, era pregador de grande poder e labutava incansavelmente. Caíra em muitos erros, mas não naqueles que demonstrassem falta de consagraçáo cristá. Felizmente para o seu ailgustiado esrado de espírito, na semana em que John retornou os dois irmáos entraram em íntima relacáo com um morávio, Peter Bohler,

que, viajando para a Geórgia, ficara em Londres até maio. Ensinava Bohler a f&de completa auto-entrega, a conversá0 instantânea e a alegria na fé. Antes de partir, Bohler organizara Lima "sociedade", depois conhecida como "Sociedade Fetrer-Lane" e da qual John Wesley foi um dos membros fundadores. Porém, nenhum dos dois irmãos ainda encontrara a paz. O que Charlcs Wesley denominou sua "conversão" ocorreu-lhe em 21 de maio de 1738, quando ele estava acometido de grave enfermidade. No dia 25, a experiência transformadora ocorreu a John. Conforme ele relata, naquela noite ele fora de má vontade à reuniáo de uma "sociedade" anglicana na rua Aldersgate, em Londres, e ouviu a leitura do

de Lutero ao Comentário a

Romanos. "Cerca de quinze para as nove, enquanto ele [Lutero] descrevia a transformagão que Deus opera no çoraçáo por meio da fé em Cristo, senti meu coraçáo estranhamente aquecido. Senti que confiava em Cristo, em Cristo apenas, para a salvação; e me foi dada a certeza de que Ele tirara meus pecados, os iiieus mesmos, e

me salvara da lei do pecado e da morte." Náo pode haver d w i d a quanto 3 alta significação desta experiência. Ela determinou dai em diante a crenca de LVesley quanto ao caminho normal para a entrada na vida crisrá. Foi a luz de toda sua visão teológica. Entretanto, foi de certa forma gradualmente, mesmo depois desta experiência, e por meio da pregacáo e observaçáo duma obra semeIhance nos outros e pcla comunháo com Deus, qiie ele alcançou plena liberdade do temor e alegria complera na fé. John Wesley resolveu conhecer mais os morávios, que o rinham ajudado atb ali. Menos de três semanas após sua convcrsáo viajou para a iilernaiilia. Lá ciicontrou-se com Zinzeildorf, em h/larienborn, ficou duas semanas em Herrnhut e em setembro i 1sy.

de 1738 estava de volta em Londres. Foi uma grande visita para Wesley. Viu muito o

3u-

que adniirar, mas nem tudo Ihe agradou. Percebeu que Zit~zendorfera tratado com

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excessiva deferência e que a piedade morávia náo escapava às limitaçóes subjetivas.

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Ainda que devesse muito aos rnorá~rios,lVesley era por demais ativo em sua atitude

-38

religiosa, niuito pouco místico, deveras interessado nas grandes necessidades do pró-

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de - ,

ximo para ser cabalmente morávio. John e Charles entáo passaram a pregar nas oportunidades que Ihes apareciam.

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No encanto tiveram muitos púlpicos fechados ao seu "entusiasmo" e falavam princi-

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palmente nas "sociedades" em Loi~drese cni seus arredores. No comego de 1739

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Whitefield iniciara seu trabalho em Bristol, e lá, em 17 de fevereiro, comecara a

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pregar ao ar livre aos mineiros dc carvão de Kiilgswood. Fez amistosas relações com

Howel Harris, o qual, desde 1736, trabalhava com g a n d e resultado como pregador leigo em Gales. Whitefield então convidouJohn Wesley a i r a Bristol. Hesitava Wesley em pregar ao ar livre, mas a oportunidade de proclamar o Evangelho aos necessitados era irresistivel, e a 2 de abril ele começou em Bristol o que viria a ser seu costume

por mais de cinqüenta anos, enquanto as forcas lhe permitiram. De imediato Charles seguiu o exemplo d o irmáo. Ainda que não possuindo o poder dramático de WhitefieId, John Wesley era um pregador por poucos igualado quanto ao efeito sobre o povo - sincero, prárico, desremido. Atacado, principalmente no início de seu ministério, e frequentemente em risco dianre da vioiência popular, náo se assustava com perigo algum, nenhum distúrbio o abatia. Sob sua pregagáo, como sob a de Whitefield, eram frequenres as notáveis manifestacóes físicas. Homens e mulheres choravam, desmaiavam, tinham conuuIsóes. Aos dois pregadores isto parecia obra do Espírito de Deus ou a resistência visível do diabo. Esras manifestações, e o desagrado que frequenten-iente despertavam, foram responsáveis por g a n d e parre da oposicáo que esses pregadores encontrax7arnpor parte do clero regular. O s dons de John Wcsley como organizador eram notáveis. Porém, a criacão do metodismo foi gradual - sendo uma adaptação dos meios às circunstâncias. Em 1739, em Brisrol, ele fundou sua primeira "sociedade" realmente nierodista e lá também

comeqou a edif;cacáo da primeira capela, a 12 de maio desse ano. No fim desse mesmo ano adquiriu em Londres uma velha fundicáo que se tornou a primeira capcla naquela cidade.

Até entáo, em Londres, os netod distas se haviam unido à sociedade morávia FetterLane, mas os ideais de Wesiey, no entanto, o estavam afastando do moravianismo. Esta separaçáo agravou-se quando, em oucubro de 1739, Philipp Heinrich Molther (17 14-1780), recém-enviado por Zinzendorf, afirmou em Fetter-Lane que se alguém

rinha dúvidas náo ~ o s s u í averdadeira fé e devia abster-se dos sacramentos e da oracão, aguardando em silêncio que Deus renovasse sua esperança religiosa. Tal ensino encontrou pouca simpatia diante da esforçada atividade de Wesley. A Sociedade FecrcrLane dividiu-se. Wesley e seus amigos se retiraram, e a 23 de juIho de 1740 fundaram na fundicão uma "Sociedade Unida", puramente merodista. Wesley continuou amigo de alguns morávios, mas desde entáo os dois movimentos ficaram separados um do outro. Wesley não tinha desejo nem intençáo de romper com a igreja da Inglaterra. Por isso náo fundava igrejas, mas usava o expediente das antigas sociedades religiosas,

que agora consisriam apenas dc pessoas convertidas. Estas sociedades estavam divididas em "bandas" ou grupos desde o início, para o cultivo mútuo da vida cristã. Este era um expediente morávio, mas a experiência iogo ensinou a Wesley algo mais eficiente. Pouco após a orga~lizaqãoda sociedade de Bristol, Wesley adotou o plano de conceder "carteiras da sociedade" àqueles que considerava suficientemente capacitados a serem membros plenos e a receber outros em carácer probatório. Tais carreiras eram renovadas rrimestralmcnte e proporcionavam uma maneira rápida de jocirar a sociedade. A dívida sobre a capela de Bristol levou a um arranjo ainda mais importante. Em 15 de fevereiro de 1742 os membros foram divididos em "classes" de cerca de doze pessoas, cada classe tendo um líder encarregado de colerar semanalmente um penny de cada membro. Esse sistema foi introduzido em Londres a 25 de março. Suas vantagens para a supervisão espiritual e múma vigilsncia de imediato foram mais evidentes do que seus miritos financeiros. E pronto se rorriou um dos traços característicos do metodismo, ainda que as antigas "bandas" cambém continuassem por bastante tempo. Wesley preferia que codos os pregadores fossem ordenados, mas poucos dentre os cléi-igos simpatizavam com o movimento. Desde 1738 Joseph Humphreys, um pregador leigo, o auxiliava, mas o emprego de leigos náo foi grande até 1742, quando Thomas MaxfieId começou regularmente esse trabalho, que logo ocupou muita gente. Com o crescer do movimento surgiram outros oficiais Ieigos: "mordomos" para

cuidar das propriedades, mestres para as escolas, "visitadores de enfermos" para a visitaçáo de doentes. No princípio WesleY percorria rodas as sociedades, localizadas mormente nas regióes de Londres e Bristol. Entretanto, logo a tarefa se tornou graiide demais. Eni 1744 ele reuniu os pregadores em Londres - o que foi a primeira das "conferências ar-iuais". Dois anos apiis o campo foi dividido em "circuitos", com pregadores itinerantes e dirigentes mais fixos para "ajudarem principalmente num lugar". Em pouco, um "assistente", depois chamado "superinccndente", foi encarrcgado de cada "circuito". Através de apropriadas p ~ b l i c a ~ ó eWesley s, sc esforcou por auxiliar o desenvoivimento intelectual de seus pregadores leigos, procurando que

estudassem na medida do possível. Foi em vão que buscou obter para eles ordenaçáo episcopal; mas náo permitiu que homens náo ordenados administrassem os sacramentos. Ainda que teologicamente Wesley permanecesse sobre a base comum da tradicional doutrina evangélica e considerasse suas sociedades como integrantes da igreja da

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MISTORIA D A IGREJA E R ~ S T Ã

Inglaterra, duas questões conduziram a enorme controvérsia. Uma foi sobre a perfeiçáo. Wesiey cria ser possível que um cristáo alcançasse retos morivos governantes - o amor a Deus e ao próximo - e que cal alcance traria liberta~áodo pecado. Conforme o cauto e sóbrio critério de Wesley, isso era um alvo antes que um resuitado obtido com freqüência - diferente do que julgavam alguns de seus seguidores. Ninguém foi mais positivo do que ele de que a salvaçáo se evidencia em uma vida de obediência ativa, zelosa, à vontade de Deus.

A segunda disputa referiu-se à predesrinaçáo. Wesley, como no geral a igreja da Inglaterra de seu tempo, era arminiano. Porém, herdara dos pais uma antipatia especial em relacáo ao calvinismo, o qual lhe parecia restrito ao esforço rnoral. Whirefield era calvinista. De 1740 a 1741 houve uma troca de cartas candentes entre os dois evangelistas. Náo obstanre, as boas relacóes pessoais entre ambos não demoraram a ser restabelecidas quase plenamenre. Whirefield encontrou apoio, em 1748, em Selina, Condessa de Huntingdon (1707-1791), viúva rica, convertida ao metodismo, mas possuidora de forre caráter dominante para permitir a direção insistente de Wesley. Qriis ela ser o seu próprio Wesley e, como ele, fundou e supcrvisionou sociedades e capelas - a primeira em Brighton, em 1761 - iniciando assim a "Conexáo de Lady Huntingdon". Ela mesma no-

meou Whirefield seu capeIáo. Sua "Conexão" era calvinista. Em 1769 a conrrovbrsia sobre a predestinacáo renovou-se com intensidade. Na confcrência de 1770 Wesley assumiu forte posiçáo arminiana e foi defendido por scu dedicado discípulo, o suíço John William Fletcher (1729-1785), que se estabelecera na Inglaterra e aceitara um cargo lia igreja oficial, em Madeley, onde fez obra nocivel. O resulrado da controvérsia foi confirmar o caráter arminiano d o metodismo weslcyano. No entanto, a "Conexão de Lady H u n ~ i n g d o n de metodistas caIvinistas deve ser considerada como u m movimento paralelo, não hostil. Seu espíriro fundamental era essencialmente o mesmo dos irmáos Wesley

O mecodismo ~ v e s l e ~ a rcresceu io consideravelmente. John tinha muitos arnigos e assistentes, mas poucos i~iriinoscom os quais pudesse compartilhar suas responsaliilidades. Seu irmão Charles o acompanhara por algum tempo em suas viagens, mas não ~ i i r h aa constituiqáo de ferro de john. Charles raramente viajou depois de

1756.Trabalhou eni BristoI e dc 1771 aré sua morte, em 29 de marqo

de 1788, pregou em Londres. Sempre foi mais conservador e anglicano que John. Sua grande obra foi escrever hinos, não apenas para o metodismo mas para toda

itnioia vir

O ERISTIIINISMO MODERNO

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a cristandade de língua inglesa. Em 1751 John casou-se com a viúva Mary Vazeille e fez um consórcio infeliz. Entáo se dedicou de maneira ainda mais irrestrita ao seu trabalho. E sobre todas as diversas preocupa~óesdo inetodismo exerceu autoridade sábia mas absoluta. Naturalmente, conforme as sociedades cresciam e se multiplicavam os pregadores, aumentava a pressáo para a concessão de autoridade para a administraçáo dos sacramentos. A isto Wesley resistiu por muito tempo, mas como eram poucos os homens ordenados por via episcopal, a forga dos eventos tornou esta pressáo irresistível, apesar da insistência de WesIey de que seu movimento estava no interior da igreja oficial. Wesley granjeou muitos simpatizantes que permaneceram na igreja oficial da Inglaterra. Tais anglicanos evangélicos concordavam no geral com sua ênfase religiosa - conversão, fé confianre, vida religiosa demonstrada em obras ativas a favor dos outros. Por outro lado, adotavam pouco dos seus métodos peculiares e, no geral, se distinguiam teologicamenre por um moderado calvinismo mais que

pelo arminianismo. Whitefield era o pai espiritual d e muitos deles. Não muito bem orgariizados, se desenvolveram no

evangélico dentro da igreja da

Inglaterra. Pioneiro nesse rumo foi Williarn Grimshaw (1708- 1763), vigário de Haworth, que passou pela experiência da conversáo cm 1734, a quaI o transformou e o levou ao caminho evangélico. Manteve-se em boas relaçóes com Wesley e Whitefield. Notável entre os evangélicos foi John Ncwton (1725-1807), excomandante de navio negreiro. Convertido, se tornoti dos mais prestimosas pregadores, primeiro em Olney e depois como pároco dt: Sainr Mar!. Woolnoch, em Londres. Seus hinos demonstram sua fé alegre e confiante. Outro evangélico renornado por seus hinos foi Augusrus Toplady (1740- 1778), autor de "Rocha dos Séculos". Thomas Scott (1747-1821), sucessor de Newton em Olne]; ficou mais conhecido por sua Bíblia da Família com Anoracóes, um comentário de imensa popularidade em an-ibos os lados d o Arlânrico. Richard Ceci1 ( 1 748-1 8 10), no

fim da vida foi um dos mais influentes pregadores em Londres. Joseph Milner (1744-1797), fez de Hull um haiuarte evangélico e teve muita influência por meio de sua História da Igreja de Cristo, continuada após sua morte por seu irmáo Isaac. Nesta obra deu ênfase ao desenvolvimento das biografias cristãs mais que às disputas dentro do cristianismo. Isaac Milner (1750-1820) foi por muito tempo professor ein Cambridge e ajudou a dar o toili grandemente evan-

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HISTORIA DA IGREJA CRISTÃ

gélico assumido por essa universidade, trabalho continuado ali por Charles Simeon (1759-1836). Não faziam parte das fileiras clericais vários que foram instrumentos para a difusáo das idéias evangélicas. Um destes foi William Coxvper (1731-1800), o maior dos poetas ingleses da metade final do século dczoiro e amigo íntimo de Newton. Com Hannah More (1745-1833) o evangelismo teve uma defensora pessoalmente relacionada com os meios literários, artísticos e teatrais de Londres. Foi escritora de rratados e estdrias de grande popularidade e filantropa generosa e abnegada. Os anglicanos evangélicos permaneceram dentro da igreja da Inglaterra, mas as duas correntes mrtodistas por fim dela se separaram. Em 1779 a Condessa de Huritingdon e seus companheiros saíram da igreja da Inglaterra; e com o rcmpo a conexão se tornou na Igreja Metodista Galesa. Os metodistas wesleyanos sepa-

raram-se da igreja oticial aos poucos c, por fim, somente após a morte de John Wesley (1791), que desejava que seus seguidores evitassem a separa~áo.Porém, tinham sido dados dois importantes passos em 1784. Em 28 de fevereiro, por um "Ato de Declaraç.áoWWesley cuidou para que o movimenro con[iiluasse após sua morte, nomeando uma "Conferência" de cem membros para zeIar pclas propriedades e assumir a dircgão do rnovimeilto. Foi u m passo adiante na direção do aurogoverno do rnerodismo. Em l o de setembro WesIey juntou-se a outros presbíteros da igreja da Inglaterra para ordenar presbíteros e u m superintendente para a An-iCrica (ver V11: 10). Na verdade, isso foi uma ruptura com a igreja da Inglaterra, ainda quc Wesley não tenha considerado dessa forma. A separação final dos metodistas wesieyanos está, talvez, melhor assinalada pelo "Plaiio de Pacificacáou, de 1795, que estabilizou a eritáo igreja independente. Wesley coilservou suas forcas e se manteve em contínua atividade quase até o fim. Faleceu em Londres a 2 de marco de 1791, tendo feito uma obra que rcvo-

lucionou prof~indamentea condiçáo religiosa das classes inferior c média da Inglaterra e ainda dc modo mais amplo afetou a América. N a Escócia, as separaçóes reais da igreja presbiteriana oficial ocorreram mui-

to mais cedo,

em virtude do sistema "patronaIn pelo qual o patrono

podia forcar a nomeação de um minisero para uma congregagáo relutante (ver V1:16). Em 1733 Ebenezer Erskine, de StirIing, denunciou tal limitaçáo do poder de escolha do minisrro por parte da congregacão. Seu sínodo o disciplinou, e ele e vários companheiros foram depostos pela Assembléia Geral, em 1740.

O Grande Despertamento O movimento de maior influência e o mais transformador na vida religiosa da Amirica no século dezoito foi o Grande Desperrarnento, um reavivarncnto que teve muitas fases e se estendeu por mais de cinquenra anos. Iniciado num rcmpo em que os modelos tradicionais criscáos náo demonstravam muita eficácia, e numa época de expansáo do racionalismo e de confusáo cultural, o despercamento náo apenas levou a tremendo impulso da vida criçtá, riias ainda transformou os conceitos sobre a maneira de se entrar nessa vida de tal modo que afetou profuiidamentc a maioria das igrejas americanas. Ncsce aspecto o Grande Dcspertamento foi análogo ao pietisrno na Alemanha e do desperramcnco evangélico na Grã-Bretanha. Eiifarizou uma rnudança transformadora, regenerariva, uma "cons~ersáo",como a maneira normal de entrada na igreja. Difundiu amplamente uma noção de igreja que enfatiza sua imporrancia como um grupo de crisráos que riveram a experiência da cc~nversáo;a atengáo primeira náo escava no preparo crisráo. Moralidade esrrita e piedade sisicera caraccerizarani o movimento como um todo. Sua influência difundiu uma compreensáo evangélica de religiáo não apenas entre igrejas diretamente afetadas mas tarnbém entre outras d e n ~ m i n a ~ õ cembora s, em todo canto o movimenro fosse considerado controverso. Ao fornecer novas compreensóes da autoridade religiosa e novos princípios de açáo, o Grande Despertamenro ajudou as comunidades protestantes a se ajusrarcm às realidades de seu tempo c fornecerem uma nova apologia da fé diante dos desafios da religiáo racional. Sob sua influência, a vida educacioria1 foi estimulada e novas faculdades foram fundadas. Sendo um movimento intercolonial, o despertameiito ajudou a colocar as coliinias em relaçáo mais íniima e assim indiretamente auxiliou no preparo do caliliriho para a RevoluFáo Americana.

Os primeiros sinais do Grande Despertamento surgiram na década de 1720 nas congregações da Igreja Reformada Holandesa no Vale do Raritan, em Nova Jersey. Forrnalisrno e perda de vitalidade caracterizavam muitas das congregaçóes reformadas; muitos dos holandcscs se satisfaziam em considerar suas igrejas como símbolos de sua nacionalidade e herariça. Mas um jovem pascor, Sheodore J. Frelinghuysen

(1691-174S),que se familiarizara com as ênfases puritanas na Holanda, onde fora

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HISTORiA OA IGREJA E R I S T ~

deixou suas marcas permanentes nela.

O Grande Despertamento chegou a Nova Inglaterra quando u m reavivamenro notável varreu a cidade de Northampton, Massachusetts, em 1734-35. Chamou muita atencáo, especialmente quando seu líder, Jonathan Edwards (1703-17581, pastor em Northampton, descreveu-o lium clássico reavivaiista - Narratiua$el da sz~rp~eendente

obra de Deus convertendo muitas centenas dealinas... (1737). O reavivamento irrompeu novamente em 1739, espalhando-se amplamente na Nova Inglaterra. Os líderes congregacionais foram auxiliados no trabalho por Gilbert Tennent e George Whitefield, este último entáo no auge de seu entusiasmo juvenil- Por toda parte multidóes se amontoavam para ouvi-lo; seus sermões provocavam desmaios e gritaria. Conforme o des~ertamentose disseminava, centenas de pessoas eram transformadas para sempre. A condiçáo espiritual de muitas comunidades era modificada. Mas o despertamento na Nova Inglaterra foi tão controvertido como aquele ocorrido nas colônias centrais. Whitefield frequentemente considerava como não convertidos aqueles que náo concordavam com ele, e alguns que foram influenciados por ele tornaram-se ainda mais censuradores e impiedosos. O reavivamento foi perturbado ainda mais pelas atividades divisionistas do instável James Davenport (17161757), que pregava discursos prolixos, vazios, sem preparo, nos quais atacava, citando nomes, muitos dos ministros dirigentes, considerando-os como não converridos. . . Formaram-se Igrejas congregacionais separadas. Em protesto, as "Velhas Luzes", sob

a liderança do pastor da Primeira Igreja de Boston, Charles Chauncy (1705-1787), atacou as "Novas Luzes", que viam nos reavivamentos uma obra de Deus. A reaçáo contra o des~ertamentocontribuiu para a difusão do arminianismo e, por fim, do pensamento unicário entre o congregacionalismo. Foi tamanha a reaçáo contra o reavivamento que depois da metade do século o despertamento já não era mais uma forca potente nas igrejas congregacionais oficiais, embora continuasse bastante forte entre os batistas, que entáo estavam se espalhando rapidamente na Nova Inglaterra, aproxirando-se grandemente dos exemplos do despertamenro.

O Grande Despertamento espalhou-se também nas colônias do sul, contribuindo ali para o desenvoIvirnento dos grupos dissidentes. Nas décadas de 1740 e 1750 o presbiterianismo se difundiu rapidamente na Virginia e no sul, principalmente pela ardente pregaçáo de Samuel Davies (1723-1761). Logo depois de 1750, foram iniciados, através de reavivalistas da Nova Inglarerra, reavivamentos entre os batistas na Virginia, os quais, diante da resistêricia dos batistas regulares, organizaram muitas

PERIOUU vil

O CRISTIANISMO MOOERNO

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igrejas batistas separadas. Estes rcavivamentos provocavam elevado entusiasmo emocional, e as perseguições por parte das autoridades coloniais serviam apenas para incrcmentar a causa. Embora seja verdade que se possa dizer que o Grande Uespertamento, enquanto fenômeno intercolonial de grandes propor~ócs,tenha terminado quando os interesses da revoluçáo tornaram-se muito absorventes, nos meios bacista e metodista os traços do despertamento conrinuaram muiro fortes.

O metodismo demorou a chegar na América - a obra náo começou antes de 1766. Por volta desse ano Philip Embury (1728-1773) e Robert Strawbridge (?1781) cornecaram atividades merodistas em Nova 101-que e Maryland, respectivamente. Um dos primeiros dentre os vigorosos pregadorrs leigos foi o capitáo do exército britânico 'rhomas Webb (1 724-1796). Em 1769 IYesIey enviou o primeiro dos oito missionários ieigos oficialmente nomeados. O único deles que permaneceu ativo no rnctodisrno americano durante e após a revoluçáo foi Francis Asbury (1745-

1816). Durante a dtcada de 1770 o metodismo cresceu rapidamente principalmeiite em Maryland e Virginia, como um movimento de sociedades frouxamente ligadas a igreja da Inglaterra, exatameme como na mãe pátria. Em 1773 foi realizada enl Filadklfia a primeira conferência metodista americana. O crescimento continuou durante a revolução e diversos pregadores leigos nativos ingressaram no movimento. Exceto nas sociedades tnetodistas, houve pouco interesse nas igrejas episcopais no despercamento. No sul, a corrence racionalista era forte (latitudinarianismo), no norte a tendência alta-igreja dos missionirios da Sociedade Propagadora do Evangelho náo era receptiva ao reavivarnenro. O mais importanrc episcopal cva~i~élico foi Devereux Jarratt (1733-180 I ) , pároco em Virginia, que fora convertido pela pregaçáo da Nova Luz presbiteriaila mas que se ligara à igreja da Inglaterra porque Wesley e Whitefield estavam nela. Ele auxiliou sobremaneira as sociedades metodistas antes de elas se organizarem como igreja independente, em 1784. As organizações luteranas não foram aferadas muito diretamente pelo Grande Despertamento. Seu crescimento nesse período foi devido principalrnence a afluência de colonos germânicos. Havia entre eles, porém, considerável sentimento pietista. Seu preeminente líder, Henry Melchior Muhlenberg (171 1-1787), fora esrimulado a vir às colônias pelos dirigentes de Halle. Ele representava iim equilíbrio entre as ênfases pietista e ortodoxa, e era ativo na organizacão de novas igrejas entre os alemáes luteranos, os quais se haviam tornado o maior grupo religioso na Pennsylvania tios meados do stculo dezoito. Em 1748 organizou o primeiro sínodo luterano a ter

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HISTÓRIA D A IGREJA

CRISTA

existência permanente. O espírito pietista esteve muito mais em evidência entre algumas das organiza~óesalemãs menores. Das discussões provocadas pelo Grande Desperramento surgiu na Nova Inglatcrra a concribuiçáo mais considerável que a América do século dezoito fez à teologia a obra de Jonarhan Edwards e sua escola. Nascido em 1703 no lar de um pastor, em Connecticur, Edwards se graduou em Yale, em 1720. Apds rápido pastorado presbiteriano em Nova Iorque, tornou-se tutor em Yale. Eni 1727 tornou-se pastor associado em Northampton, depois pastor tirular quando morreu seu avô, Solomon Stoddard ( 1 643-1 729). Intelecrualmente brilhante, Edwards lia amplamente as obras filosóficas e científicas de sua bpoca, mergulhando nos escritos de Locke e Newton. Cedo convencido da clássica ênfi~secalvinista na soberania de Deus e na prede~tina~áo, Edwards firmou corajosamente sua posiçáo teológica, usando como gráos para o seu moinho as mais rcccnces descobertas da Idade da Ilazáo. Líder nos reavivamentos, ele defendia aquilo que sentia ser o verdadeiro reavivamento, ou seja, uma obra de Deus, contra aqueles que, de um lado, rejeitavam todo emocionalisrno em religião e

os que, de nutro, o expioravam. Em 1746 apareceu o Gatado a Respeito da5 Emo~óes

Rel&iosi?s, uma defesa teológica do que Ed~vardscria ser genuíno reavivamento. Nesta obra ele utilizou iloqóes psicoIógicas, em parte derivadas de Locke. Pastor e eclesiástico, era defensor dos mais altos padrões para os membros da igreja, crendo que somente os santos - os verdadeiramente eleiros

- deveriam ser membros

em plena

comunhão. Quando agiu rendo como base esta convicqáo, náo mais permanecendo ria posição mais frouxa, foi demitido de seu púlpito em 1750. Isto a dcspeiro do cuidadoso tratado sobre o assunto, aparecido no ano anterior, Qualzj$caçóes Rrqzie~ida

para a Plena Comunhão. Ent50 Edwards se tornou missionário entre os índios, em Stockbridge, Massachusetts, onde achou tempo para dedicar seus conhecimentos teoiógicos e filosóficos à defesa do calvinismo contra o arminianisrno, termo sob o qual caracrerizava as tendências reológicas liberais do século dezoito. Em seu Trntddu Sobre o Avbi-

trio (1754) sustentou que conquanto todos os homens tenham capacidade natural para se voltarem para Deus, falta-lhes capacidade moral - isto é, a inclinaçáo - para fazê-lo. Esca inclinação determinante é o dom transformador da graça de Deus, embora sua falta náo seja desculpa para o pecado. Teólogo sistemático, Edwards planejou uma obra maciça apresentando por completo sua posiçáo. Na realidade, terminou apenas uns poucos fragmentos dela, embora alguns de seus tratados anteriores

p ~ i l o e ovil

O ERISTIANISMO MOOERNO

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devessem, aparentemente, ser encaixados nela. Um dos fragmentos foi A Natareza da

fiudadeiva X-~tude,publicado postumamente, em 1765. Segundo seu pensamento, virtude t amor ao Ser i~~teligente em geral. Mas Deus possui infinitamente a maior parcela da existência, ele

t infinitamente o maior Ser. Assim, a verdadeira virtude

deve consistir essencialmente e radicalmente rio supremo amor a Deus. Ta1 virtude verdadeira náo pode ser encontrada através da razão e do entendimento, pois é feita

de afeições e disposiçóes; ela surge da ascendência da suprema paixão, amor, sobre o amor a s i próprio. "Benevolência desinteressada" é uma de suas provas, e é totalmente um dom de Deus. Mas a obra sistemática dr Edwards ficou incompleta. Convocado a ocupar a ~residtnciade Princeton, submeteu-se à vaciilacáo durante uma epidemia de varíola, contraiu a doença e morreu poucas semanas depois dc assumir o cargo. As idéias de Edwards foram defendidas por um grupo de seus seguidores: Joseph Rellamy (171 9-1790), Samuel Hopkins (1721-1803),Jonathan Edwards, Ir. ( 1 745-

1801) e Nathaniel Emmoris (1745- 1840). Estes reólogos eduardianos deram o tom da discussão rcológica na Nova Inglarerra por nluitas dicadas: eles continiiaram a debater as questões q u e Ed~vardshavia suscitado, polemizando com os velhos calvinistas, seguidores da teologia federal ou pactual. Embora os eduardianos fossem eruditos competentes e trabalhadores esforcados, faltavam-lhes a criatividade pottica e a amplitude de perspectivas que caracterizaram o mestre. Hopkins, parricularmente, lidou com algumas das posturas eduardianas com lógica inflexhrel. Porém, ao acentuar o tema da "benevolência desinteressada", inconscien~emencepreparou o caminho para algumas das mudanças teológicas do sCculo dezenove. Embora a obra desses eduardianos tenha ocorrido depois que o Grande Despertamento alcancara seu ápice nas igrejas congregacionais da Nova Inglaterra, eles verdadeiramelite apresentaram e defenderam um calvinismo evangélico que foi influente nos desenvolvimentos posteriores na América (ver VII: 15).

A experiência americana de des~ertamentoteve certa influência no Canadá. Um Grande Despertainenro emergiu na Nova Escócia na década de 1770, em continuacão histórica com os congregacionais separatistas de Connecticut, vários dos quais haviam migrado para a província mais ao norte. Esse despertamento foi liderado por um homem de Rhode Island que fora para a Nova Escócia ainda menino, Henry

Alline (1748-1784). Familiarizado com os relatos clássicos de conversá0 nos escritos puritanos evangélicos, ele respondeu ao chamado para pregar imediatamente após

sua própria experiência de convicgáo em 1775. Ele elaborou uma "teologia de despertamcnto" distinta, a qual proclamava em viagens de pregaçáo itinerante, provocando intensa resposta, especialmente entre a classe dos trabalhadores. As idtias de Alline sobre a igreja foram marcadas decisivamente pelo congregacionalismo separacista; porém, as congregaçócs da Nova Luz que resultaram de seus esforços reavivdistas náo se mostraram estáveis, c algumas, como suas similares em Connecticut, foram mais tarde reconsi-icuídas como igrejas batistas. Assim, na Nova Escócia como na Nova Inglaterra, os batistas freqlientemence ceifaram a seara do G r a n d e Despertamento.

Capítulo 9

O Impacto do Reavivamento Evangélico; o Surgiriieiito das Missóes Modernas Na Inglaterra, o impacto do reavivamento evangélico foi sentido muico além dos limites dos seus arraiais. Sua influência sobre os grupos náo-conformistas mais aiitigos foi estimula~~te, ainda que náo uniforme. Tais grupos estavam ein si~uagáode decadência na primeira metade do século dezoito. Seus líderes, no início, olhara111 de esguelha para lVesley e WhirefieId, mas conforme o reavivamento prosseguia, os mais joveils se enrusiasmavam com ele. Foi este o caso principalmente entre os congregacionais, que foram quem mais se beneficiaram com o reavivamento. Sua pregacáo foi vivificada, seu zelo reanimado e seu número aumentou rapidamente. Conseguiram muitas adesóes entre os despertados pelo metodismo, mas que não se adaptaram à disciplina mctodista. Outros Ihes vieram de paróquias da igreja oficial. Por volta de 1800 os congregacionais ocupavam na IngIaterra posiçáo muito diference daquela de um século antes. Os bariscas particulares também usufruíram desse crescimento, assim como os batistas gerais, apesar da considerável influência d o pensamento ariano. Em 1770 uma ala evangélica separou-se como Batistas Gerais da Nova Conexáo em proresto contra a tendência unicária. Os presbicerianos, por outro lado, quase não foram afetados pelo despertamento. O arianismo e o socinianismo

P~RIOBO YII O CRISTIIINISMO MODERNO

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dominavam entre eles, e seu número diminuía. Os quacres também náo foram rnuito afetados pois os métodos reavivalistas eram muito estranhos ao seu espírito para lhes impressionarem.

O movimento metodista tinha ampla visáo filantrópica, e os evangélicos dela compartilhavam. O metodismo, sob a Iideran~ade Wesley, visava auxiliar financeiramente os seus pobres, conseguir empregos, cuidar dos enfermos, estabelecer escolas e salas de leitura e eliminar a rudeza e a violência das classes inferiores.

O despertamento do no\~oespírito do hurnanirarisrno teve um dos seus mais nobres representantes em John Howard (1726-1790), latihndiário pacífico, religioso, interessado em escolas e casas-modelo, que participava de cultos em congregações congregacionais e batistas. Howard foi nomeado delegado geral de Bedford, em

1773. Ele ficou muito chocado com a sujeira física c moral das prisóes, cujos oficiais eram mantidos não por salários mas pelo que podiam extorquir dos encarcerados. Ainda mais, os presos náo estavam convenientemente separados, nem os absolvidos eram posros em liberdade enquanto não quitavam suas dívidas. Diligcnre em tudo que fazia, Howard visitou praticamente todas as prisóes inglesas e em 1774 apresentou ao parlamento os horríveis resultados de sua investigacáo. Ele entáo empreendeu tarefa semelhante na Escócia, na Irlanda e no continenre europeu. Muito ficou por fazer, mas bem merece ele o título de "pai das reformas nas prisões". Seus últimos anos foram dedicados a esforços náo menos abnegados para determinar métodos corretos para impedir a propagaqáo da peste. Sua dedicaçáo lhe custou a vida no sul da Rússia. Henry Venn (1725-1797), pároco de Huddersfieid, e seu filho John (1759- 18 13), pároco de CIapham, reuniram ao redor de si um grupo que se distinguiu pela dedicação às boas causas. Esse grupo, formado principalmente por abastados leigos anglicanos evangélicos, foi cognominado "Seita de Clapham". Seus membros influenciaram sobremaneira na eliminaçao da escravidáo na Grá-Bretanha e nos seus domínios. Este mal j i fora severamente condenado por John Wesley. Também os quacres

já tinham se oposco vigorosamente conrra a escravidáo. No começo do século dezenove a gente de Clapham liderou a vitoriosa campanha para acabar com a escravidáo.

Zachary Macaulay (1768-1 838), pai do famoso historiador, certa vez embarcou num navio negreiro para ver por si mesmo a condiçáo dos escravos. O Iíder mais eficiente nessa cruzada foi um dos mais preeminentes leigos evangélicos, Wiliiam Wilberforce (1759-1833). Rico, popular e membro do parlamento, "converteu-se" em 1784 pela

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HIST6RIA DA IGREJI\ ERISTÃ

instrumentalidade de Isaac h/Iilner. Em 1797 pubIicou Esáo real do ststerna religioso que prevalece entre os oist~ospro@jsosnas classes alta e média nc~tepais,contrastada com o verdadeiro crijtirlnimo. Tornou-se esse tratado um dos mais populares escritos evangélicos. Em 1787 Vlrilberforce iniciou a longa Iuta de sua vida contra a escravidão, o que resultou na aboli~áodo tráfico de escravos, em 1807, e da própria escravidão em todos os domínios britânicos, em 1833. Ao desenvolver seus esforços religiosos, humanos c beneficentes, evangélicos de vários tipos frequenremence trabalhavam juntos em sociedades \~olundrias.O movimento de reavi~arnenrodeu grande impulso à difbsáo de literatura cristá. Wesley publicou constantemente por meio da Sociedade Promotora do Conhecimento Cristão, fuiidada em 1699 (ver V11:2). Em

1799 foi formada ein Londres uma entidade

interdenominacional denominada Sociedade de Folhetos Religiosos. O pietismo dera o exemplo de uma publicacão ampla e barata da Bíblia por intermédio da fundaçáo do baráo Czanstcin, em Halle, em 1710 (ver VII:5). Em 1804 foi fundada em Londres a Sociedade Bíblica Brirânica e Estrangeira pelo empenho dos evangélicos. Logo apareceram organizacóes similares ria Irlanda, Escócia e Estados Unidos (ver VII: 15). Por sua obra foi possível uma grande d i ~ ~ u l g a ~ das á oEscrituras. Aigum tipo de ensino religioso para as crianças é provavelmente táo velho quanto a reiigiáo organizada, e a época da Reforma valorizou sobremaneira a instruçáo cacequética. Ainda que renracivas tenham sido feitas anreriormente, os primeiros esforqos sistemáticos e bem sucedidos, em larga escala, visando a alcançar os pobres e analfabetos com a educaqáo cristá foram por meio das escolas dominicais. Foi seu fundador, em 1780, Robert Raikes (1 735-18 1 L), leigo evangéiico da igreja oficial. Na falta de instruçáo púbIica, cuidou em dar aos analfabetos possibilidade de estudarem, e também conhecerem os fundamentos cristãos, por in~ermédiode professores pagos. Isso no único dia que as crianças tinham livre, o domingo. Também era obrigatória a freqüência à igreja. Raikes era proprietário do GLoucester Journal, no qual publicava notícias dessas atividades. A iniciativa se propagou com g a n d e rapidez. Wesley e os náo-conformistas a apoiaram. Foi organizada em Londres uma Sociedade Promotora das Escolas Dominicais, em 1785. Sociedade semelhante surgiu em Filadélfia, em 1791. Ainda que o crescimento do movimento tenha sido táo rápido quanto permanente, ele náo deixou de receber oposiçáo por parte do clero, em parte por ser novidade e, em parte, por causa de sua "profanaçáo" do domingo. A instruçáo secu!ar logo decresceu e o professor pago deu lugar ao líder voluntário.

~ r r i o i ovil

O CIISTIANISMO MODERNO

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Nenhuma outra institui~áocristã chegou a ficar táo amplamente integrada na vida da igreja moderna. Uma das conseqüências mais imporrances do reavivamento evangélico foi o surgimento das modernas missóes protestantes. O desen\~olvimentodas missóes católicas romanas na época da Reforma fora rápido e frutífero (ver VI: l l ) . Mas a falta de conratos geográficos somada a certos problemas internos e convic~óesteolcigicas, muito retardou esforços protestantes equivalentes. Entretanto, logo após as conquistas holandesas no século dezessete, o trabalho começou elii Ceiláo, Java e Formosa. A primeira organizacáo rnissionária inglesa para o estrangeiro, a Sociedade para a Propagaçán do Evangelho na Nova Inglaterra, surgiu por uma lei do parlamento, em

1649. Sua c r i a ~ á ofoi a resposca ao trabaiho de John Eliot entre os índios de Massachusetts (ver VII:2). Ela patrocinou a impressão da Bíblia Indígena de Eliot, bem como de outras obras. A Sociedade para a Propagacão do Evangelho em Terras Estrangeiras foi organizada em 1701 (ver VI1:2). O pietismo alemão produziu de 1705 em diante as missóes hdle-danesas (ver VII:5}. Em 1732 começou a norável atividade rnissionária dos morávios (ver VI1:6). Os quacres também fizcram alguns

empreendimentos missionários. O interesse pelos povos não cristãos surgiu na Grá-Bretanha em conseqüência das viagens de descobrimento realizadas no Pacífico, pa~rocinadaspelo governo inglês, pelo capitáo James Cook (1728-1799), desde 1768 atC sua morte. Tais descobrimentos despertaram o zelo missionário de William Carey (1761-18340, rim sapateiro e mais tarde pregador batista, que revelaria ser pessoa de notável talento para línguas e botânica tanto quanto possuidor de inextinguível dedicaçáo missionária. O resultado em forma escrita de seu pensamento sobre missões foi sua I ~ v e s t i g ~ ~ ~ o

Sobw a Obrigacão dos Cristúos de Empregaiem Meios para n Conversão dos PagZos, de 1792. Este livro e um sermáo de Carep sobre Isaías 54.2 ievaram à organizaqáo da Sociedade Batista para a Propaga~áodo Evangelho entre os Pagãos. Carey foi seu primeiro missionário e suas cartas da Índia foram ~ o d e r o s oesrímulo para outros empreendimentos missionários. Em 1795 foi formada a Sociedade Missionária Londrina, como empresa incerdenominacional, principalmente pelos esforços de David Bogue (1750-1 825), ministro congregaciona1 de Gosport, e Thomas Haweis (1734-

1820), pároco evangélico de Aldwinkle. Seus primeiros missionários foram enviados a Taiti, e m 1796. P o s ~ e r i o r m e n t eessa sociedade tornou-se u m a enridade congregacional. O crescente senso da obrigação rnissionária levou à organizacáo da

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H I S I I R I I DA IGREJA C R I S I h

Sociedade Missionária da Igreja em 1799, representativa da ala evangélica da igreja oficial, por insrrumencalidade de John Venn, pároco de Clapham, e Thomas Scott, publicador da Biblia da Fanzilid. A Sociedade Missionária Metodista Wesleyana da Inglaterra foi fundada em 1817-18. Depois de pequenas tentativas locais na Escócia

já a partir de 1796, foram fundadas em 1825 as juntas de missões da igreja da Escócia. Esse aprofundamento da obrigação missionária bricânica despertou amplo interesse em outros países. O começo do século dezenove veria a organização de inúmeras sociedades missionárias, tanto denominacionais como interdenominacionais, nos Estados Unidos e na Europa continental (ver VII:14, 15).

Capitulo 1 0

A Época da Revolupáo nos Estados Unidos Treze das colônias inglesas na h é r i c a do Norte tornaram-se livres da mãe pátria, fazendo-se nacão independente, na última metade do sCculo dezoito - época da revolução na América. A acençáo de muita gente passou do vivo interesse religioso que caracterizou o Grande Despertamenco para uma longa série de fatos políticos e militares de absorvente preocupacáo. O crescente atrito encre as colônias e a coroa levou ao irromper da revolucáo em 1775, à declaraçáo de independência em 1776, à destruidora guerra que se esre~ideuaté 1783 e % extensa discussáo sobre a estrutura da nova nação, que só rerminou com o estabelecimento do governo sob a constituição dos Estados Unidos em 1789. A filosofia revolucionária, em sua atitude para com a religiáo, tendia para o racioi~alismo,minimizando o prestígio das igrejas. Muitos dos líderes políticos eram influenciados pelo deísmo da Inglaterra ou da França (ver

VIM). Assim, por mais de uma geracão as pessoas ficaram absorvidas pelo pensamenro e pela a ~ á oda re~roIuçáo,e a religiáo atraiu menor atençáo geral do que anteriormente.

O faro de maior importância para a religiáo nesse período da América foi a conquista da liberdade religiosa. Isro foi um passo revolucionário, pois representou um distanciamento radical dos princípios de uniformidade e oficializaqáo que haviam

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HISTDRIII DA IGREJA GRISIA

Connecticut; em 18 19 em New Hampshire; e em 1833 em Massachusetts. Ao nível nacional, os vários fatores combinaram-se para promover liberdade religiosa desde o começo. O artigo VI da Consti~uiçáoafirmava que "nenhuma prova religiosa jamais será exigida como qualificaçáo para algum ofício ou cargo público nos Estados Unidos". A primeira emenda (1791) a Constirui~áodeclarava que o "Congresso não legislará oficializando religiáo, ou proibindo o livre exercício dela ..." Assim, os modelos de oficializaqáo e uniformidade foram abandonados, e, com o d e ~ a ~ a r e c i m e n rda o última igreja oficializada, rodas as igrejas sobreviveram como associa~óesvoluntárias, iguais perante a lei. A obtenqáo da independência pelos americanos trouxc novos problemas sobre rodas as denominaçóes. Algumas delas que tinham sido ramos das igrejas européias agora precisavam se reorganizar sobre bases independentes. Neill-iuma comrinháo na América sofreu tanto com a revolucáo como a igreja da Inglaterra. Muitos de seus ministros c membros, especialmente no norte, simpatizaram com a máe párria, e saíram da iuca arruinados. Seu próprio nome náo parecia nada patriótico, e então foi sugerido o de "Episcopal Protestarite" numa conferência de clérigos e leigos de Maryland! em novembro de 1780. Dois anos mais tarde, Rrilliam White (1748-1836), pároco da Igreja de Crisro, em Filadélfia, e ardoroso partidário da independência americana, traqou um plano segundo o qual seria organizada a igreja Episcopal Protestante Americana, independente do estado e do controle eclesiástico inglês, com corpos representativos compostos náo apenas por clérigos mas também por leigos. Parecia-lhe remota a possibilidade de conseguir um episcopado americano. D e acordo com as sugestões de Whire, reuniu-se na cidade de Nova Iorque uma convençáo voluntária, representando oito esrados, em outubro de 1784, e convocou a primeira convençáo geral a se reunir em Filadélfia em setembro de 1785. Enquanto isso, o clero de Connecticut se mantivera à parte e escolhera Sarnuel Seabury (1729-1796) como seu bispo. Ele viajara para a Inglaterra, em junho de 1783, para a sagraqáo episcopal. Mas vendo a impossibilidade de ser consagrado pelos bispos ingleses por falta de licença do parlamento, Seabury foi buscar sagracâo episcopal junto aos bispos escoceses "nonjuror", em Aberdeen, em novembro de 1784.

A convenção geral de 1785 adorou uma constituição para a Igreja Episcopal Protestante nos Esrados Unidos, obra em grande parte de William White. Eia cambbm solicitou aos prelados ingleses a consagração de bispos para a América.

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HISIÓRIA UA IGREJA CRISÃI

como também Coke, "superintendentes". Mas Asbury conhecia a mentalidade americana e sentiu que os pregadores leigos deveriam reunir-se para livremente aceirarem o plano de Wesley e elegerem a ele e a Coke como superintendentes. Assim, começando a 24 de dezembro de 1784, a "Conferência do Naral", reunida em Baltimore, fez exatamente aquilo, formando a Igreja Episcopal Metodista. Asbury foi ordenado diácono, ancião e superintendente em dias sucessivos e uma dúzia de outros pregadores foram ordenados anciáos. Foi preparada uma disciplina. Coke e Asbury, com forre contrariedade de Wesley logo comeqaram a chamar a si mesmos "bispos", rítulo que se Tornou oficial em 1787. A primeira conferência geral se reuniu em 1792, dirigindo a expansão da nova igreja, totalmente independente e em franco crescimento.

A dcpendkncia das igrejas reformadas holandesa e alemã para com a Holanda vinha há muito declinando, e o rompimento completo dos l a ~ o sfoi apenas uma formalidade, em 1792 c 1793, respecrivamente. 0 s ca~ólicosromanos, obviamente, náo se tornaram independentes, mas redefiniram suas rçlaqóes e alcançaram unia organização nacional. Ainda eram insignificante minoria ao Tempo da independência americana, mas sua posição melhorou muito e m consequê~iciada crescente tradicão de liberdade religiosa e da atividade patriótica de muitos deles durante a revolucáo. Tinham estado sob os cuidados do vigário apostólico de Londres, mas com a independknçia isso náo era mais possíveI. E m 1784 o rnui respeitado John Carroll (1735-1815), de Maryland, foi nomeado prefeito apostólico para os Esrados Unidos por PioVI

(1774-1799). Logo ~roblernasinrernos fizeram com que fosse altamente recomendável ter um bispo, mas os carólicos americanos receavam ser submetidos a um bispo estrangeiro, e os sacerdotes solicitaram a Roma o direito de eleger seu próprio bispo. Tal solicicaçáo foi atendida, e em 1790, na Inglaterra, Carroll foi corisagrado bispo de Baltimore. N o ano seguinte, na catedral desta cidade, reuniu-se o primeiro sínodo católico romano dos Esrados Unidos. Em 1808, ainda sob Carroll, BaIrimore se cornou sede de arcebispado, enquanto bispados foram criados em Nova Iorque, Boston, Filadélfia e Bardstown (Kenrucky). No ano em que Carroll faleceu, os alicerces do catolicismo romano nos Estados Unidos esravam firmemente lançados e o número de sacerdotes passava de uma cenrena, embora a imigraqáo que tanto aumentaria essa igreja ainda fosse coisa do futuro.

Os morávios também mantinham íntimos lacos com o centro europeu em

Herrnhut. Em 1775, de fato, fora adotada uma nova política de centralizacáo, de forma que os morávios americanos ficaram mais do que nunca dependentes d o controle de além-mar. Esta foi uma acitude infeliz, pois os chefes estrangeiros continuaram a pensar em termos das igrejas oficiais européias e náo compreenderam a oportunidade oferecida pela liberdade no cenário americano. O impacto dos morávios logo diminuiu. Náo foi senão no século dezenove que a Igreja Morávia Americana tornou-se autônoma.

Algumas das denominações - Congregacional, Batista, Quacre - já eram independentes, e a revoluçáo náo as afetou diretamenre quanto à sua organizaçáo. Os presbiterianos também estavam organizados independentemente, mas aproveitaram a oportunidade para se reorganizar. Durante a década de 1780 redigiram uma nova constituiçáo, que proporcionava espaço para uma estrutura totalmente presbiteriana, encabeçada por uma assembléia geral, q u e se reuniu pela primeira vez em Filadélfia, em 1789. O s luteranos também haviam sido aurônomos, mas durante a época revolucionária começaram a se organizar. Muhlenberg (ver VI1:X) preparou, em 1762, uma consrituiçáo modelo para sua congregaçáo em Fiiadélfia. Por ela, todos os dirigentes seriam escolhidos pela própria congregaçáo. Ficaram, assim, delineadas as duas feições características básicas da polícica luterana americana - congregacional com respeito à congregacáo local, presbiteriana com respeito h posiçáo dos minisrros no sínodo. O sistema sinodal se difundiu vagarosamente. Em 1786 foi organizado o seg~indosínodo, o ministério de Nova Iorque. U m terceiro sínodo logo sc formou na Carolina do Norte.

Em 1820 foi organizado um sínodo geral, mas apoiado apenas por uma parte dos luteranos. A questáo da nacionalidade e rensóes teológicas impediram os luteranos de afcancar qualquer unidade nacional. Uma nova organizaçáo religiosa se desenvolveu na América durante o períod o da luta pela independência nacional - a dos universalisras. A crença na salva-

ção de todos apareceu ocasionalmente na América, no século dezoito, como em ourras partes. O pai do universalismo organizado foi John Murray (1 74 1- 18 15), que fora rocado pela pregação de Whitefield na sua pátria, a Inglaterra, c pcios escritos de James Relly (1722)-I778), que passara da posiçáo de um dos pregadores de Whitefield para a de advogado da salvaçáo universal. Foi corno discípulo de Relly que Murray chegou a América, em 1770. Iniciou, entáo, um ministCrio itinerante, principalmente na Nova Inglaterra. Calvinista moderado, Murray

cria que Cristo pagara por inteiro não só os pecados do restrito grupo dos eleitos, mas dc todos, c quc no juízo todos receberiam imediata bem aventuranca, quando toda incredulidade na misericórdia de Deus desapareceria. Para os que crêem plenamente, bem aventurança prometida por Deus começa agora.

O universalismo recebeu novo impulso quando, em 1780, Elhanan Winchester (175 1- 1733, ministro batista em Filadélfia, independentemente de Murray adotou idPias universalis~as,que defendia com eloquência. Diferentemente de Murray, suas opinióes gerais eram arrniniaiias. A salvaçáo é baseada na livre submissáo final de todos a Deus, mas no caso dos sem arrependimento isto náo se dá até

que seus espíritos sejam purificados por sofrimentos prolongados, embora não eternos. Ainda mais influente foi Hosea Baliou (1771-1852), por muito tempo pastor em Boston. Murray e Winches~erforam trinitários. Ballou era ariano e foi nesta direçáo que rumou o universalismo americano. O propósito da expiação era moral - demonstrar o amor de Deus pelos homens. O pecado traz castigo, aqui ou após a morte, até que os homens se volrem d o pecado para Deus. Cerca de 1790 os uni\~ersalisraseram suficien~ementenumerosos para realizarem uma convenção em Filadélfia. Três anos mais tarde foi organizada uma nova convencáo na Nova Inglaterra, a qual se reuniu em 1803, em Winchester, New H a m p h i r e . Ela adotou um credo breve que afirmava os princípios básicos J a nova denominaçáo. O s primeiros convertidos ao universalismo eram prcdominantemente das mais humildes camadas sociais.

A época revolucionária americana foi significativa para a religião, uma vez que as correntes de vida e pensamento que tinham sido movidas pelo Grande Despertamento confluíram com outras forças para assinalar uma rransiçáo para a liberdade de crenca. Isso implicou em um novo contexto para as igrejas, no qual modelos voluntários para sobrevivência e crescimento tinham que ser adorados por todas. A oficializacão da religiáo que por catorze séculos marcara a cristandade foi abandonado a nível nacional, com profundas conseqüências para a vida religiosa não apenas na naçáo recém-independente mas para bem além dela, uma vez que esse "experimento vivo" era atentamente observado.

Capitulo 1 1

O Iluminismo (Arifldarung) Alemão

A Inglaterra avançara muito em seu desenvolvimento deísta, racionalista e unitário antes d o aparecimento do metodismo. Lá, as duas correntes marchavam paralelamente. Se o despertamento evangélico fora, teologicamente, em parte um retorno a conceitos doutrinários mais antigos, fora mais ainda um apelo aos fortes e profundos sentimentos religiosos da naçáo. Na Alemanha, o pietismo, com sua tônica

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senti-

mento, precedeu o Iluminismo (AufRlaruzg), embora continuasse a correr paralelamente a este último

ele começou a se desenvolver. O pietismo rompera o

domínio da oitodoxia confessional, mas nzo produzira líderes teológicos quc tomassem o lugar dos antigos reólogos dogmáticos. O espírito crítico, racionalista, do século dezoito, as obras dos deístas ingleses e seus oponentes, a radica1 modificação popular do deísmo na França - tudo isto invadiu a Alemanha e encontrou o campo intelectual praticamente estéril. O resultado foi o rápido crescimento do Iluminismo, como ele mesmo se denominou. Fortemente racionalista, abrigava muitas nuanqas de opiniáo. Mais do que na Inglaterra ou na França, por meio de sua obra crítica e construtiva, o Iluini~lismopreparou o caminho para significativa m u d a n ~ ana teologia que, no siculo dezeno~re,haveria de se espraiar amplamente nos países protestanies. As especulaçóes de Leibniz (ver VII: 1) foram por demais profundas para produzirem poderosa impressáo em sua própria época, embora mais tarde tenham tido enorme efeito. Thomasius (ver VII:5) semeara um espírito racionalista, mas sem criar um sistema. Sua influência foi marcada pelo desei~voli~imento de uma atitude ~riental,tanto que não é por acaso que ele tem sido cha~iiadoo "abridor do caminho do Ilun~inismo".Seu grande protagonista, no entanto, foi Christian Wolff (1679-

1754). Não sendo um gênio criativo, Wolff incorporou e expressou de tal forma o pensamento informe c inarticulado de sua época que sc tornou o líder filosbfico e teológico de duas gerações de coniparriotas. Perito em matemática, como muiros dos filósofos do seu século e do precedente, começou ensiilando matemárica em Halle, eiri 1707. A i sua filosofia rapidamente se deserivolveu, em íntima conexáo

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HISTORIA DA IGREJA ERISTÃ

com a de Leibniz, cujos profundos pensamentos, porém, Wolff nunca captou. Ele ensinava que somente é verdade aquilo que pode ser demonstrado pela certeza Iógica, semelhante a matemática. Assim, a verdade deve ser deduzida racionalmente do conreúdo inato da mente - a "razáo pura". Tudo o que procede da experiência é meramente contingente e confirmatório. O mundo é composto de uma infinidade de substâncias simples, cada uma dotada de força, embora náo com todas as qualida-

des das mônadas de Leibniz (ver VII: 1). Os corpos são agregacóes desras subsrâncias. O mundo é uma gigantesca máquina, regida por leis mecânicas. A alma é aquilo que em nós está consciente de si mesmo e de outros objetos. Ela está dotada com as capacidades de conhecimento e de desejo. A realização completa destas capacidades é o prazer; a incompleta é o sofrimento.

Posto que o mundo é contingente, deve ter uma causa. Conseqüentemente, Deus existe e fez o mundo. As leis de toda acáo e pensamento racional nos fornecem os atributos divinos. Uma vez que realiza~áocompleta é o mais elevado aIvo de todo ser, tudo o que almeja a realizacá0 completa de nós mesmos e dos outros homens deve ser vrrtude. Por conseqüência, os princípios da ação correta estão corporificados, como com os deístas, na constituicáo fundamental divinamente ordenada do homem. Wolff náo negava que houvesse reveIaqáo, mas declarava que ela náo poderia conter nada em desacordo com a razáo. Ele achava que os milagres sáo possíveis, embora improváveis, e cada milagre implicaria dois atos de igual poder: a interrupçáo da ordem natural e sua restauração depois do evento. A opinião de Wolff com respeito ao ser humano era otimista. Este marcha, individual e socialmente, para uma realizaçáo mais ampla. Tudo isto significava um distanciamento da teologia

anterior, tanto a ortodoxa como a pietista. E tal distanciamento se apresentava aos seus dias com a conclusividade de uma demonstracão lógica. Embora Wolff permirisse algum espaço para a rcvclaçáo c o milagre, para ele os objetos apropriados para a consideracão religiosa náo sáo nem a revelaçáo sobrenatural nem o resgate sobrenatural do pecado e da ruína, mas Deus, religiáo natural, moralidade implantada originalmente e progresso rumo à perfcicáo individual e racial. Também o ser humano náo é um ser desesperado ou incapaz, como na teologia anterior. As idéias de Wolff suscitaram a hostilidade de seus colegas pietistas de Halle. Em 1723 eles buscaram sua demissáo junto ao rei Frederico Guilherme I (17 13-1740).A decisáo real, mesmo para eles, foi surpreendentemente severa: foi ordenado a Wolff que deixasse a universidade dentro de quarenta e oito horas ou seria enforcado. Ele

PERIOBD YII

O CRISTIANISMO MODERNO

,:3 1

encontrou refúgio em Marburgo, e mais tarde Frederico, o Grande, restaurou-o honrosamente à sua cátedra em Halle, em 1740. Sua obra, entrementes, se convertera em propriedade pública. A ela pouco pôde adicionar nos catorze anos que ainda passou em Halle até sua morte. Seu pensamento se rornou o de grande parte da Alemanha. Terminara o domínio do pietismo em Halle. Menos radical, mas influente no auxílio à nova aticude do pensamento alemão, foi Johann Lorenz von Mosheim (1694?-1755),professor em Helmstedt e finalmente em Gottingen. O mais admirado pregador do scu tempo, senhor de brilhante estilo em latim e em alemáo, foi basicamente um sobrenaturalista racional. Não nutria simpatias pelo dogmatismo dos ortodoxos. As ênfases dos pietistas náo suscitavam sua rcaçáo; nem podia ele apoiar o racionaiismo extremo de Wolff. Perscrutou muitas ireas do pensamento religioso, e sua influêricia, no geral, fiavorcccu a difusiio do Iluminismo. Sua contribuicão principal, porém, foi no campo da história. Sua

instrtzitionesHisto~iaeEcclesiasticize, publicada pela primeira vez em 1726 e em forma i h a l em 1755, abarcou toda a história da igreja. Em seu Comlizentirrii de rebus Ch~i~tinnorum ante Co~stizrztinum(1753), tratou dos primeiros séculos de forma mais ampla. Bem merece Mosheim o título de 'pai da moderna hisrória da igreja". Ele almejava se livrar de toda parcialidade partidária, e o conseguiu em grande rnedida, às custas de certa insipidez. É sua a primeira histbria da igreja a almejar relatar os eventos exaramente como acor-itecerarn,sem uma causa a defender. Como tal, e por motivo de sua er~idicáoe estilo, sua obra lhe sobreviveu por longo tempo.

O racionalismo mais extremado também encontrou seus representantes na Alemanha. Hermann Samuel Reimarus (1694-1768),por muito tempo afamado professor de línguas orientais em Hamburgo c líder dos círculos eruditos da cidade, na juventude viajara pela Inglaterra e lá adotara idéias deíscas. Muito escreveu em defesa delas, mas suas obras só foram publicadas depois de sua morte por intermédio de 1,essing entre 1774 e 1778, como fragnientos encontrados na biblioteca de Wolfenbiittel - daí Fudgmentos de Wolfenbiittel. Esta pubIicaçáo provocou imensa discussáo. Como para os deístas, também para Reimarus tudo o que é verdadeiro é aquela religião natural que ensina a existência de um Criador sábio, uma moralidade original e a imortalidade - tudo isso verificável pela razáo. O mundo mesmo é o único milagre e a única revelaçáo; quaisquer outros são impossíveis. Os escrirores da Bíblia nem sequer foram homens honestos, mas impelidos pela fraude e pelo egoismo. Um curioso comentário sobre as condi~óesdo pensamenro na Alemanha é que

os escritos de Reimarus, embora deveras criticados, não tenham sido menos valorizados por outros como uma defesa da religião contra o materialismo e o ateísmo. Cotthold Ephraim Lessing (1729-1781),a quem se deveu a publicaçáo dos escritos religiosos de Reimarus (embora ele riáo concordasse inteiramente com Reimarus), eminente dramaturgo e crítico artístico e literário, partilhando um lugar entre os escritores clássicos com Goethe e Schiller, apresentou em sua Educaçáa da Rapz Hu-

mana (1780) uma teoria muito plausível. Da mesma forma que o indivíduo passa pelos sucessivos estágios da infância, juventude e maturidade, assim tanibérn a raça humana. As Escrituras foram dadas por Deus para satisfazerem a estas necessidades.

A in8ncia é impulsionada por recompensas e castigos imediatos. O Antigo Testamento t um iitrro ditrino de preparo para as pessoas nessa condição, com promessas de vida longa e bênçáos temporais pela obediência. A j~iiren~ude está pronra a sacrificar a tranqüilidade presente e os bens menores pelo êxito e felicidade no futuro. Para ela, ou para pessoas nesse estágio, o Novo Testamento com sua presente autoentrega e eterna recompensa, é um guia adequado. Mas na maturidade, o que governa é o dever, sem esperança de recompensa ou temor da punicáo como motivacáo. Seu guia C a razão, embora talvez Deus ainda possa enviar mais alguma reveIacâo em seu auxílio. A obra de Lessit-ig difundiu amplamente, na Alemanha culta, o sentimento de que a religião cristá histórica perrencia a um esrágio passado do desenvol~ i m e n t ohumano ou a um estágio inferior presente.

C1 resulrado do IIuminismo foi uma difusão ampla da idéia que somente eram de valor nas Escrituras as verdades da religião natural e sua moralidade, despidas do milagroso ou do sobrenatural. Jesus fora um mestre moral mais que centro particular

de f6. Isro era racionalismo e caracterizou muito o mais vigoroso pensarnenro teológico da Alemanha desde 1800, e continuou forte no século dezenove. A ortodoxia confessional e o piccismo prosseguiram paralelamente ao racionalisrno, ainda que com decrescente apelo intelectual e muito daquilo que se poderia chamar semiracionalismo. Contudo, a época também se carac~erizoupor forte polêmica contra o supersticionismo, por um gratide desenrolvimento da beneficrncia popular e voluntária, e pela irnplemeriracáo da irisrrugáo do povo.

O século dezoito cambém foi marcado, e em Iugar algum tanto quanto na Alemanha, pela ar-r~pliac;ão dos estudos textuais e históricos da Bíblia, os quais deram início ao moderno período do criticisnio.

0 erudito inglês John Mil1 (1645-1707),p~ibli-

cou um testamento grego, baseado em cuidadosa comparaqáo de manuscritos, rio

praioso YII

O CRISTIINISMO MODERNO

73.1

ano de sua morte. Jean le Clerc (1657-1736),educado em Genebra, depois arminiano em Amsterdam desde 1684 até sua morte, granjeou fama como exegeta por seus intentos em explicar o ensino das Escrituras sem preconceitos dogmáticos - abordando-as não em busca de textos de prova, mas seu real significado. Johann Albrecht Bengel (ver VII:5), por muito tempo diretor do seminário teológico em Denkendorf, em Wurtcemberg, homem de inclinacão pietista, foi o primeiro a reconhecer que os manuscritos do Novo Testamento podem ser agrupados em famílias e a estabelecer a regra crítica, normalmente aceita, que deve ser preferida a leitura mais difícil em detrimento da mais fácil. Seu Gnomon, ou Índice, do Novo Testamento (1742), foi o comentário mais notável até encáo produzido. Nada, diz ele, deve ser lido na Escritura se lá náo estiver, e nada que Iá está que possa ser esmiuqado pela mais rígida aplicaçáo dos princípios gramaticais deve ser omitido. Wesley fez disto a base de suas

N o t a S o b e o Novo Testanzento (1755). Na mesma época, Johann Jakob Wetatein (1693-1754), de Basiléia e Amsterdam, despendeu quase a vida inteira trabalhando em seu Novo Testamento Grego com Diversas kr.iantes, publicado em 1751-1752. Assim, a crítica textual e a exegese sadia progrediram muito. Deve-se a Jean Astruc (1684-1766), real professor de medicina em Paris, o anúncio, em seu Conjeturds (1753), do caráter composto dc Gê?zesi,.. Em 1781 a teoria conquistou o apoio fundamental de Johann Gottfried Eichhorn (1752-1827), mais tarde professor racionalista em Gottingen, por vezes chamado "fundador da crítica do Antigo Testamento". Mas foi somente na parte final do século dezenove que a. descoberta de Astruc alcançou extenso reconhecimcnco. Em Johann August Erncsti (1707-1781), professor em Leipzig desde 1742, a Alemanha ceve um mestre que náo apenas auxiliou sobremaneira aquele despertamento do pensamento e ideais clássicos que influenciou a vida intelectual alemã no final do século dezoito, rnas também aplicou à interprcração do Novo Testamento os mesmos princípios que aplicava a literatura clássica. O sentido deve ser determinado pelos mesmos métodos gramaricais e históricos tanro em u m campo colilo no outro. Rcimarus em seu sétimo Fragmenro, publicado por Lessiilg em 1778, pela primeira vez submercu a vida de Crisro a rígidos métodos historiográficos, iguais aos que se aplicavam a história secular. Sua total rejeiláo do sobrenatural, do mítico e do lendário deixori suas conclusóes bastance estéreis, mas ele suscitou questóes de método e conclusáo que desde então têm constituído em grande parte os problemas dessa área de pesquisa. Johann Salomo Semler (1725-179 I), professor em Halle a partir de

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HISTÓRIA DA IGREJA G R I S T ~

1752, teve formaçáo pietisra mas tornou-se na maturidade um racionalista conservador. Sua importância residiu nos rumos que indicou mais que nos resultados clue obteve. Ele separava as verdades permanentes da Escritura dos elementos devidos às épocas ern que foram escritos os diversos livros e negava igual valor a todas as partes da Escritura. A rcvelacão, ensinava, esti na Escricura, mas nem toda a Escritura é revelaçáo. Os credos da igreja eseáo em crescimento. A história da igreja é um desenvolvimento. Em particulal; fez distinçáo entre os grupos pctrinos, judaizantes, e os grupos paulinos, antijudaicos, na igreja primitiva. Esta distincáo desempenharia um grande papel nos debaces posteriores.

Capitiilo 12

Tendências no Pensamento Protestante Alemáo no Século Dezenove Nada parecia mais característico da primeira metade do século dezoito que o domínio da "razão", ou senso comum. O espírito da época era não emocional, intelectual. EIc efetuou tremenda obra no questionamento daquilo que fora aceito por tradição, na eliminacá0 de velhas supersticóes e abusos, e na exigência de legirimidade do que quer que almejasse ter autoridade. Porém, era frio e parcial. Conforme o século dezoito rranscorria, levantava-se contra tal espírito imensa oposiyáo. As reivindicaci7>esdo sencimento se afirmavam, expressas em um "retorno à natureza" que era muitas vezes uma natureza fruto apenas da imaginacáo, mas acompaniiado por um renovado apreco

elo ciássico e elo medieval, e por um reavivamento do senti-

do do sobrenatural na religião, freqiiencemente vago e obscuro mas que criava unia atmosfera totalmente diferente na qual eram afirmadas as reiviildicaçóes das pessoas de serein sencimento, ao invés de simples pensamento. Seu primeiro e mais eficiente apóstolo foi Jean Jacques Rousseau (1712-1778), mas o movimento se manifes~ounão apenas lia Franca como em coda a Europa. Em nenhum lugar se evidenciou tanto como na Alemanha. Lessing dele participou. Seus mais notáveis representarices literários foram Johann Wolfgang von Goethe (1749-

1832) e Johann Christoph Friedrich von Schiller (1753-1805). O velho racionalismo náo foi varrido de cena, mas modelos radicalmente diferentes de vida e pensamento, geralmente referidos sob o termo genérico "romantismo", disputaram mais equilibradamente a preferência.

No século dezoi~o,a filosofia parecera ter levado a um beco sem saída. Leibniz ensinara que todo conhecimento era uma elucidaçáo do que estava contido inatamcnte na mônada. Wolff afirmara o poder da "razão pura" de fornecer as únicas certezas. Por outro lado, Locke ensinara que tudo procede da experiência, e embora Hume tenha duvidado de toda conclusáo baseada em causa e subsrância, ele considerava, como Locke, que todo conhecimento se fundamentava na experiência. As rendências inglesas e alemãs pareciam mutuamente excludentes. Seria obra de Kant combináias e superá-las sobre uma nova base, que viria a ser o ponto de partida da filosofia moderna, e dar ao sentimento um valor que nenhum dos grupos anteriores havia reconhecido. Por um lado, Kant foi o clímax e o cumprimento da religiáo racionalis~a, iluminista. Mas por outro lado, foi também crítico do Iluminismo, desnudando suas fraquezas e lirnitaqóes, solapando assim sua influência e revelando a necessidade de novas abordagens, as quais apareceram no início do sCculo dezenove. Emanuel Kant (1724-1804) era naturd de Konigsberg, onde passou toda sua vida. Sua ascendência paterna, segundo acreditava, era escocesa. As primeiras influências que recebeu foram pietistas. Em 1755 começou a lecionar na universidade de sua cidade. Foi lento o seu desenvolvimento. A princípio, ateve-se h escola de Leibniz e de Wolff, mas começou a questioná-la após estudar Hume, ainda que náo tenha se tornado discípulo dele. Rousseau influenciou-o sobremaneira com a "descoberta da natureza do homem profundamente escondida". Em 1781 surgiu a obra de Kant, que marcou época, Critica da Razão Pura - um golpe disparado principalmente contra a então dominante filosofia de WoIff. Rapidamente se seguiram seus tratados formativos e seu pensamento logo se tornou poderoso na Alemanha. Cerca de 1797 sua força física e mental começou a declinar e terminaria em iamentável ruína. Homem de estatura fisica pequena, jamais casou, de retidáo moral severa, dedicou-se à sua tarefa com singular simplicidade e fidelidade.

O sistema de Kant é, em muitos aspectos, uma teoria do conhecimenro. Como Locke e Hume, ele sustentava que algo em nosso conhecimento, ou algum estímuio - a "percepcáo"

-

vinha de fora da mente. Como Leibniz e Woiff, ele assegurava que

a mente possui certas qualidades intuitivas, transcendentes no sentido de que não

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llt~TORl.4 OA IGREJA CRISTi

procedem da experiência, e quc condicionam e dáo forma ao que vem de fora. Tempo e espaço constituem a estrutura na qual as percepqóes são ordenadas. A mente classifica o que lhe vem de fora de acordo com suas próprias leis, que sáo as "categorias". Portanto, o conhecimento é o produto de dois elementos - percepçáo vinda de fora, a quaI recebe forma segundo as leis da mente. Esres dois elemenros fornecemnos experihcia; fornecem-nos porém, conhecimento iiáo do que as coisas são em si mesmas mas somente daquilo que nossas mentes fazem do que lhes veio de fora. É intelectualmente iinpossível deinons[raçóes a partir da "razáo pura", como Wolff procurara Fazer, de Deus, da religiáo natural e da constituição do universo. Náo podemos demonstrar a natureza destas existências rais como são em si mesmas. A natureza pode ser estudada como o reino da lei exata, mas a lei é simplesmente aquela do riosso próprio pensamento. Conquanto o conhecimento absoluto daquilo que esrá além da experiência seja inatingível por processos meramente intelectuais, o ser humano tem consciência de um sentimento de obrigação moral quando pergunta o que deve fazer. Este terna ff Quando o ser humano responde Kant abordou em Critica da RazZo P ~ d t Z ~(1788). à pergunta sobre como se conduzir, ele sente dentro de si um "imperativo categári-

co" - imperativo porque C urna ordem; categbrico porque é incondicional. É agir de ta1 modo que os princípios da acáo possam se tornar em princípios de lei universal; numa frase, "Faze o que deves". Esra lei moral inrerna é a mais nobre das possessóes I-iumanas, interpretando os seres humanos como personalidades e náo como máquinas. Nesse "iniperativo categórico" estáo unidos três postulados, ou pensamentos inseparáveis. O mais evidente é que, se o ser humano deve cumprir seu dever, é porque ele pode. Conseqüentemente, tem que ter liberdade. E a liberdadc nos dá um vislumbre de um reino supra-ser-isorial de propósito moral - uma esfera de ordem moral. O segundo pos[ulado é o da imortalidade, para conceder oportunidade total para o eu alcancar o bem mais elevado. Intimamente ligado a este está o tercciro postulado. A virtude deve resultar em felicidade, mas a experiência náo produz esta uniáo. Conseqüentemente, sua realizaçáo exige um poder que possa unir os dois. O terceiro postulado, por conseguinte, é Deus, cuja existência na "razáo pura" é apenas uma hipótese; nos postulados da razáo prática, porém, se rorna uma convicqáo. Quando Kant apresentou suas idéias reIigiosas, baseando-se na razáo prática ao invés de basear-se na razáo pura o u teórica, era a conilecida fé racionalisra d o Iluminismo que estava apresentando. Sua Xeligizo Dent~odos Limites d ~ Razúo i So-

vtiinoo uii

O CRISTIANISMO MODERNO

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mente (1793), enfatizou a moralidade como o primeiro conceúdo da razão prática e reduziu a religião praticamente à ética ceísta. O ma1 e o imperativo categórico lutam pela obediência do homem. Quem é governado por este princípio do bem moral - o imperativo categórico - agrada a Deus, é um filho de Deus. O mais belo exemplo desta &liação é Cristo. A igreja irivisiveI é a união ideal de todos quantos obedecem à lei nloral. A igreja visível é uma união para desenvolver esca obediência. Sua completa racionalizaçáo será o reino de Deus. A c o n t r i b ~ ~ i ~deá oKant à teologia cristã iiáo foi sua interpretação racionalista das doutrinas, mas sua vindicaçáo dos profundos sentimentos do homem como bases da convicgáo reIigiosa prática e conduta moral. Os românticos logo desenvolveram este pensamento em rumo bastanre diferente do de Kant.

A interpretaqáo histbrica da Bíblia recebeu um impulso drcisivo por parte de Johann Gottfried von Herder (1744-1803),que na juvenrude foi amigo chegado de Goethe, e que sofreu, em concato pessoal com Kant, a influência deste. Herder foi valoroso defensor do movimento romhtico. Desde 1776 até sua morte foi prepdor da corte em Wcimar. Scu Eqirito da Poesia Hebi-aicu surgiu em 1782- 1783. Sua

Filosofix dn HHói*iu dn H~~mnnidade, em 1784-179 1. A religião, especialmente o cristianismo, é a corporificacáo do que é mais profundo nos sentimentos da humanidade. As Escritiiras devem ser enteiididas iluz das idtias e sentimentos das épocas em que foram escritos os vários livros. Elas são, por coiiseguinte, essencialmente literatura religiosa. Nas Escrituras deve ser distinguido o verdadeiro e permanente do temporário e Iocal. Dcscc movimento romântico surgiu o teólogo alemão mais influente do início do século dezenove e cuja obra tem modelado o pensamenro religioso muito alkm dos limites de sua terra natal - Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). Filho de um cape150 do exército da Prússia, foi educado pelos inorávios, caiu sob a influência das idéias de Wolff e Semlei; e depois foi grandemente impressioliado por Platáo, Spinoza, Kant e o romantismo. Em 1796 tornou-se capeláo hospitalar em Berlim, eiltáo centro do Iluininismo, e ali publicou, em 1799, seu notive1 L)i.i~.z~i-so~

sobre a Religzao. Tais discursos eram endereyados aos "desdeiihadores cultos" da religião. Nclcs apresentou seus pensamentos fundamentais, profundamente influenciados pelas correntes românticas. De 1804 a 1807 foi professor em Halle, quando se escabeleceu uina vez mais em Bcrlirn, tornando-se, pouco depois, psscor da Igreja da Trindade. Em 18 10, ao ser fundada a U~iiversidadede Berlim, foi nomeado profes-

HISTOAIA DA IGREJA CRI SI^

218

sor de teologia, posro que ocupou até falecer, em 1834. Em 1821- 1822 apresentou suas idéias enráo amadurecidas em A Fé Cristn' Segundo os PrincQior da Ipqa Evnngé-

lica; a segunda edição definitiva apareceu em 1830. A significaçáo principal de Schleiermacher está em que incorporou em seu próprio sistema os resultados de tendências anteriores, deu à teologia nova base e i pessoa de Cristo um significado em grande parte desconhecido em sua Cpoca. Tanto a or~odoxiacomo o racionalismo tinham tornado a religiáo essencialmente a aceita+O

de um sistema intelectual e uma regra de conduta externamente irnpositiva. Para

os ortodoxos, a religiáo se baseava na aceitaçáo das verdades da revelaçáo e na obcdiência à vo~itadede Deus. Para os racionalistas, era o assentimento da teologia natural e da moralidade universal determinada pela razão. Ambos os grupos, no século dezoito, consideravam a religião e a moralidade principalmente como meios para assegurar a felicidade na imortalidade; também para Kant, a religiáo era um tipo de acáo moral. Para Schleiermacher, a religiáo pertence ao reino do "sentimento", não como emoçáo mas como um sentido, gosro e intuicáo para o infiniro. Em si mesma, a religiáo não é nem um corpo de doutrinas, reveladas ou racionalmente abonadas, nem um sistema de conduta, ainda que ranto a crença como a conduta nasçam da religião. Schleiermacher romou muito de Spinoza, Leibniz e Kane. Em nossa experiência as antíteses do múltiplo e cambiante contra um princípio cie unidade e permanência. Estas antíteses nos dão o Absoiuto e eterno - Deus, sem o qual tudo seria caos - e o mundo, sem o qual tudo seria vazio. O Absoluto está em tudo. Deus está, portanto, imanente em seu mundo. O homem é, em si mesmo, como para Leibniz, um microcosmo, um reflexo do universo. Quando concrastado com o que é universai, absoluro e eterno, sente-se finito, limitado, temporário - numa palavra, dependente. Este sentido de dependência é a base de toda religiáo. Schleiermacher ensinava que a piedade subjacente aos grupos religiosos não é nem conhecimento nem aqáo, mas uma deterrninagáo de sentimento ou de autoconsciência imediata.'

O alvo de todas as religiões é lançar uma ponte sobre o abismo entre o uiiiversal e o finito, colocar o homem em harmonia com Deus. O valor de cada religiáo reside no grau de realizacáo deste resulrado. Conseqüentemente, as religióes náo devem ser

~~riooo v11

O CRISTIANISMO MOOERAD

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divididas em falsas e verdadeiras, mas quanto aos seus relativos graus de eficiência. Todos os progressos em religiáo na história são reve1ai;ões em um sentido verdadeiro, uma plena manifestacão à consciência humana do Deus imanente. De todas as religiões já conhecidas pelo homem, o cristianismo 6 a rnelior, pois é a cjue mais cabalmente alcança o alvo de todas elas. Seus

são os mais fundariienrais de

todas as religiões: pecado e perdão, separaqáo e reconciIiaçáo. Na religião cristá, a pessoa de Cristo é o elemento central. Ele mesmo é a reconciliacão do finito com o universai, do temporal com o eterno - a uniáo de Deus com o homem. E ele, entáo, o Mediador desta reconciliação com outros. Consequentemenre, Schleiermacher foi profundarne~itecristoc6ntrico. A vida assim unindo o temporal e o eterno - hurnanidade e Deus - agora é imortal. Uma imortaIidade eni duraçáo é uma grande esperali$a, mas a verdadeira imortalidade é uma

de vida mais que uma simples

questão dc duracáo. As doutrinas sáo relatos das afcicóes religiosas expressas em discurso; elas sáo definições e interpretacóes de experiências religiosas fundamentais, mas estas explicacóes têm apenas um valor relativo e secundário. Elas sc tem modificado e podem modificar-se novamente. Sáo simplesmente as formas pelas quais a verdade duradoura se expressa de tempo em tempo. Segundo as idéias de Schleiermacher, a moralidade é o resultado da compreensão correta daquilo de que cada ser humano é parte - a família, a comunidade, o estado, o mundo. Tal visão mais ampla da parte humana nestas relauóes expulsará o egoísmo e o egocentrismo. A moralidade não é religião, nem a religião é moralidade; mas a religião é a amiga indispensável e defensora da moralidade. Ela faz insistentemente a pergunta: "O que deve ser, à luz da consciência crisrãi" Schleiermacher foi condenado pelos ortodoxos da sua época como muito radical e pelos racionalistas como muito visionário, mas ningiiém influenciou tanto, ou mais diversamente, o pensamento religioso nos círculos protestantes no século dezenove.

O sistema de Kant continha duas dificuldades evidentes. Negava o poder dos processos intelectuais em fornecer o conhecimento das coisas como elas são em si mesmas, e nRo explicava como os processos mentais sáo nccessariamence os mesmos em todos os indivíduos. Johann Gottlieb Fichte (1762-18 14), Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775- 1854) e principalmente Georg Wilhelm Friedrich Hegcl

(1770-1831), procurando, sob a influência do romantismo, esclarecer estas duas

dificuldades, desenvolveram a corrente filosófica denominada idealismo. Hegel era natural de Stuttgart e educado em Tubingen. Lecionou em Jena, com poucos resultados, de 1801 a 1807. De 1 808 a 18 16 foi diretor do gymriasium de Nurnberg Em 1818 foi indicado para o professorado em Berlim, onde sua fama cresceu rapidamente até ser considerado o maior fiibsofo de seu tempo na Alemaiiha. Morreu de cólera, no auge de sua reputaçáo e atividade. Para Hegel, o universo é um desenvolvimento constante do Absoluco - isto é, Deus - por meio de luta e esforço. O Absoluto é Espírito, e seu desenvolvimento está de acordo com as leis pelas quais a Mente pensa de si mesma logicamente. Simultaneameilre um pensador dialético que buscava permancntemenre a reconciliaçáo de contrários eili uma unidade mais elevada e um filósofo preocupado com padróes tríades, que ele desenvolveu de maneiras diversas e complexas, Hegel ocasionalmei~te urilizava a terminologia tese-antítese-síntese, que era muito mais utilizada por Fichte.

Um dado movimento, a cese, procede numa direção até encontrar oposiçáo ou sua limitação, a antítese. As contradições náo são simplesmente aparentes ou acidentais, mas necessárias.' A tensáo dialética é superada quando tese e antítese se juntam em uma uniáo mais elevada, a síntese. Por exemplo, concra "idéia", a tese, está "natureza" como a antítese - mas as duas se juntam em síntese mais elevada na "humanidade", que é a uniáo da mente com a matéria. Posro que tudo o que existe C o Absoiuto desenvolvendo-se de acordo com as leis de todo pensamento, as leis do pensamcnto sáo as leis das coisas; e visto que nosso pensamento é um fragmento daquele do Absoluto, a medida que for verdadeiro nos fornecerá verdadeiro conhecimento das coisas fora dc nossas mentes e 6 o mesmo em rodas as mentes, uma vez que é parte do único Absoluto. Visto sermos porcóes do Absoluto aicariçando consciência, o dever do espírito finito é perceber sua relaçáo com o Absoluto, e cal percepçáo é a religiáo. De fato, a rcligiáo pode começar no sentimento, como dizia

Sclileiermacher; mas para ser verdadeira, deve [ornar-se em conhccirnento verdadeiro. Assim, toda religiáo é uma tentativa para conhecer Deus. Dentre as diversas religióes o crisrianismo é a percepçáo mais cornpleca. Deus está sempre se esforçando em se revelar, mas este esforço externo sempre tem que ser efetuado através dos três estágios t~eçessáriosdo desenvolvimento. Assim, o Pai é a unidade divina - a tese. Ele se objetiva no Filho - a antítese. O amor que os une é o Espírico Santo - a síntese. O qbid., pp. 88-91

PIRIOBO YII

O ERISTIANISMO MODERNO

74'1

processo completo nos dá a Trindade. Assim também com a encarnaçáo: Deus é a tese; ele se distingue da humanidade finita, a antítese; ambos se juntam na síntese mais elevada, o Deus-homem. O sistema de Hegel muito fez para substituir a antiga distincáo aguda entre o divino e o humano pelo sentimento de sua unidade fundamental, táo predominante na teologia protestante do século dezenove.

A amplitude, o poder e a engenhosidade da síntese de Hegel granjearam-lhe grande popularidade; seu sistema se tornou o mais influente nos meios filosóficos do seu tempo e causou grande impacto no mundo do pensamento em geral. Embora Hegel tenha sido filósofo da religião e não reólogo, sua abordagem influenciou profundarnencc a teologia. Suas idiias logo foram fortemente desafiadas, mas concinuaram a atrair intérpretes, csyecialmente na Inglaterra e na América, por toda a última mera-

de do século dezenove. A teoria do desenvolvirnen~ode Hegel teve importante aplicacão na crítica do Novo *I-estamentona obra de Ferdinand Christian Baur (1792-1860), professor em Tubingen de 1826 até sua morte e fundador da escola de teoIogia deTubingen. Baur contribuiu sobremaneira para a hi~torio~rafia e história da igreja e para o desenvolvimento da teologia histórico-crítica. Ele rejeitou a escolha entre racionalisrno e sobrenaturalismo e buscou ao invés superar a antítese entre eles. Os tracos essenciais dc sua interpreta~áobíblica foram esboçados em sua apreciaçáo dos partidos na igreja de Corinto, ~ublicadaem 1831, e foram ~ubse~uenrerneiire desenvo~vidosnuma

série de brilhantes estudos que conquistaram muito discípulos. Suas pesquisas prepararam-no para aceitar muito da obra de Hegel por volta de 1835; ele interpretou o progresso hisrórico através dos três estágios da tesc, antítese e sintese. Semler (ver

VI1:l 1) j5 ensinara a exisdncia dos partidos petrino (judaizantc) c paulino na igreja pri~iiitiva.Estes se tornaram os elemer-iros da tríadc hegeliana. O cristianismo, assim ensinou Baur, coineçou essencialmcnte como judaísmo messiânico. Esta - a tese - era a posiçáo dc rodos os apóstolos originais. A antítese necessária surgiu na forma do

cristianismo paulino. As perspectivas pctrina e paulina lutaram aré meados do segundo século. A síntese inevieávcl veio eventualmente com a primitiva igreja católica, que reverenciava tanto a Pedra quanto a Paulo, inconsciente do quanto eles esti\-eram em séria oposicáo.

O uso mais debatido feito por Raur desta reconçrrugão da histhria inicial da igreja foi iluina revisão na datacáo dos livros do Novo Testanlento. Eles tinham que rcvelar os preconceitos dos vários aspectos desse desenvolvimento - ou seja, tinham

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HISTORIA DA IGREJA CRISTÁ

que demonstrar "tendências". Aplicando esse teste, Baur considerori somente Romanos, Gáiatas e Coríntios como cpíscolas genuinamente paulinas, pois eram as únicas a apresentarem resquícios do conflito. As demais não revelam a luta e conscquentemente devem ser datadas posteriormente, quando cal luta já era uma história esquecida. O Livro do Apocalipse era do início e judaizante. Em 1847 Baur direcionou sua pesquisa para os Evangelhos, uriiizando o mesmo método. Mateus revela tendências judaizanccs e portanto é o mais antigo. Lucas provavelmente é uma reelaboraçáo do evangelho de Marciáo (ver I1:2). Marcos tentou ocultar o conflito e é pos~crior, segundo Baur, enquanto Joáo é náo só irênico como também revela familiaridade com as coiltrovérsias da segunda metade do segundo século. A maior parte do Novo Testamento, portanto, foi escrita no sezundo sécu1o.

A discussáo de Baur suscitou inúmeros defensores e antagonistas. Seu efeito último sobre a pesquisa neotescamentária foi muiro frutífero. Estes debates aumentaram sobremaneira o conhecimento da igreja primitiva e de sua literatura. Seus resultados, poi-em, rêm sido a melhor resposta às próprias teorias de Baur. Ele não tinha uma compreensão adequada do significado de Cristo no desenvolvimento da igreja primitiva. Houve diferenças importantes encrc o cristianismo judaico e o paulino, mas reduzir as reações intelectuais do cristianismo nascenrc a rais diferencas apenas é muito simplismo. Houve muiras outras instâncias de diferenqa. Acima de rudo, um crescenrc conhecimento do segundo seculo e uma apreciaçáo de sua armosfera, impossível ao tempo de Baur, tornam inconcebível que os livros que ele atribuiu ao segundo sCculo possam,

elo menos na sua maior parte, ter sido escritos naquela

época. Eles não são daquele s&culonem de seu ambiencc. No tempo em que Baur cornecou seu trabalho, e durante a geração seguinte, os terílogos alemáes escavam divididos em crês grupos principais. Num extremo se cnconcravam os racionalistas, conrinuasáo do tipo do fim do século dezoito. Dentre eles, nenhum tcvc maior infl~iênciaque Heinrich Eberhard Gocelob Paulus (1761-

1851), professor em Jena desde 1783, e depois, na parte final de sua longa vida, como professor em Heidelberg (1 8 1 1-1 844). Inimigo de todo sobrenaturalismo, sua

Vicia deJesus (1 828), é típica da dureza do racionalismo daquele período. Ele explica a caminhada de Crisro sobre as águas como um engano dos discípulos, que o viram no meio da névoa andando as margens do lago. A alimenraçáo dos cinco mil foi possível gracas à generosa liberalidade com que Cristo distribuiu o pouco alimento que tinha, assim despertando a generosidade dos que entre a rnultidáo possuíam

despertado por um terremoto, retomando aos seus discípulos.

A ortodoxia confessional do modelo mais inflexível teve notável representante em Ernst Wilhelm Hengstenberg (1 802-1 869), professor em Berlim desde 1826 até falecer. De início, esteve sob a influência racionalista, depois foi líder, por algum tempo, nos meios pietistas. Em 1840 se tornou vigoroso defensor da ortodoxia luterana, enfatizando teorias mais antigas da inspira~áoe autoridade da Bíblia. Resistindo tanto às perspectivas idealistas como às racionalistas, a ortodoxia confessional procurou restaurar a doutrina e ordem característica da primitiva ~grejaluterana, ou seja, "repristiná-la". Frequentemente o movimento esteve aliado com o conservadorismo político; em Bcrlim, a influência de Friedrich Julius Stahl (1802-

186I), professor de direito, conduziu vigorosamei~tenessa direçáo. E m Mecklenburg, l h e o d o r Kliefoth (18 10- 1895) e F. A. I'hilippi (1809- 1892) afirmavam que pureza de doutrina é o sinal da verdadeira igreja e que, uma vez que a igreja luterana tem em suas confissões de fé a verdade completa, ela é tal igreja. Entre os dois extremos havia uma escola "mediadora", pofundamente iiifluenciada por Schleiermacher, partilhando de sua calorosa inclinagáo para o sentimento cristão, talvez até mais intensificada e, como ele, dedicada forternence ao Cristo pessoal, porém disposta a aceitar muitos dos resultados da crítica, e~~ecialinence com referência i inspiracáo e narrativas bíblicas. Um dos mais influentes dentre estes teólogos "mediadores" foi Johann August Wilhelm Neander (1789- 1850). De origem israelita, seu nome original era David Mendel. O nome pelo qual é conhecido ele o tomou ao ser batizado, em 1806, para indicar seu novo nascimento. Aluno de Schleiermacher, em Halle, foi pela influência de seu mestre que chegou ao professorado, em Berlim, em 1813, o qual desempenhou com distinqáo até a data de sua morte. Neander voltou sua atençáo para a história da igreja, escrevendo uma série de notáveis monografias. Em 1826 p~iblicouo primeiro volume de sua Históriu da Re-

lkiáo e da Igreja C~zsrás,obra em que trabalhou até o fim da vida. Notável pelo exaustivo uso das fontes, a cotlccp~áode Neander de história da igreja era a de uma vida divina em crescente domínio sobre a vida dos homens. Esta vida se manifesta em indivíduos. Por isso a obra de Neander foi uma série de admiráveis retratos biográficos. Sua fraqueza estava na demasiada ênfase sobre a influência de indivíduos e sua pequena apreciaçáo da vida insritucional ou corporativa da igreja. Mesmo assim, colocou a história da igreja sob nova perspcctiva. 'I'áo significativos quanto seus

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HISTÕRIA DA IGREJA

ERISTI

escritos foram a influência do interesse pessoal de Neander por seus alunos e sua confianca cristã ingênua, inocente. "O coracáo faz o teólogo", frase com frequência em seus lábios, expressa seu caritcr. Poucos homens foram pessoalmente mais prestimosos ou mais queridos. Semelhante influência pessoal teve Friedrich August Gortreu Tholuck (17991877), que em 1823 tornou-se professor em Berlim, e então ocupou a críredra em Halle desde 1826 até sua morte. Embora simpatizatite do pietismo, aceitava o criticismo bíblico em muitos de seus aspecms. Tholuck conseguiu levar Halle do racionalismo dominanre desde a época de Wolff para o evangelismo que a caracterizou no século dezenove. Foi notável pegador. Sua gentileza para com os estudantes ingleses e americanos era inesgothel. Teologicamente, ele resistiu 2s influências filosóficas idealistas e enfatizou a experiEncia especificamente cristá do pecado e da regeneracáo e as doutrinas da queda e do pecado original.

Um terceiro representanre proeminente da escola "mediadora", teologicamente o mais importante, foi Isaac August Dorner (1809-1884), estudante em Tubingen de 1827 a 1832 e instrutor ali, em 1834. Depois de prestar servicos em várias universidades alemás, encerrou sua carreira como professor em Berlim, de 1862 até sua morte. Dentre suas primeiras publicaçóes, a mais imporcante foi Doutrina da Pessoa de

Gisto (1839). Sua teologia completa foi formulada na totalidade no fim de sua vida, em Sisnrnu

dizs Doutri~ia~ da Fe'(1879-1881). Teologia e filosofia são consanguineas,

mas ambas se corporificam lium desenvolvimento histórico progressivo. A crença cristá encontra assim sua ~ o n f i r m a ~ ána o consciência cristá, a qual, por sua vez, reconhece a validade da experiencia espiritual registrada nas Escrituras e tem tido sua progressiva clarificaçjo na história cristã. A doutrina central do cristianismo é a encarnaçáo. Nela Crisro C a revelaçáo do que Deus C e do que a humanidade pode tornar-se. Dorner também teve muita influência na Crá-Bretanha e na América. Uma forma distintiva da escola mediadora foi a teologia de Erlangen. No conrexto de um reavivamento religioso na Francônia e do t-ieopietismo de Tholuck, Adolf von Harless (1 806-1 879), que fora educado sob Tholuck em Halle e que passara por profunda experiência de conversão, comecou a cnsinar em Erlangen em 1833. Três fatores estavam encrelacados em seti ensino: experiéncia, Escritura e confessiondisino. Esta postura ganhou plena expressão com seu sucessor em Erlangen em 1845, Johann Christian Konrad von Hofmann (1810-1877), que buscwa afirmar velhas verdades de uma no.ipa marieira, misrurando teolo~iareavivalisra e o experimentalisrno de

PERIOIIO VII

O CRISTIANISMO MODERNO

74;

não era possível solucionar as diferenças do cristianismo primitivo em dois partidos profundamente antagônicos; havia muitas nuanças de opiriiáo. O cristiai~ismonáo veio a um mundo vazio, mas a um contexto cheio de idéias religiosas, filosóficas e institucionais. As verdades simples, primitivas do cristianismo foram profundamente modificadas por estas idéias, principdinente entre os gentios, resultando nas instituiçóes e teologia da primitiva igreja católica. Ritschl defendeu o pleno uso dos instrumentos da crítica histórica para a compreensão da comunidade primiriva cristã e do Jesus histórico. Acentuando a centralidade de Jesus e a natureza da igreja do primeiro século, Ritschl conseguiu muitos seguidores entre os eruditos protestantes, canto na Europa como na América. Ritsclil comecou a ensinar na universidade de Bonn, em 1846. Em 1864 se tornou professor cm Gorringen, onde ficou até o fim de sua vida. Ali publicou sua e Rec~ncilia~iío ( 3 volumes, principal obra teológica, A Dozltrirza CizstJ dajztstzjcac~?~

1870-1874). Ritschl teve poucos discípulos pessoais, mas a irifluência propagadora de seus escritos foi enorme. Ritsclil foi muito influenciado pela afirmação de Kant do sentimento moral como base da certeza prática e de sua i-iegacáodo conhecimento intelectual absoluto, e pela asserqáo de Schleiermacher de que a consciência religiosa é o fundamenro da convicçáo. Porém, no seu entender, a afirmacão de Schleiermacher do valor normativo da consciência religiosa era por demais individual. A verdadeira consciência não é a do indivíduo, mas a da comunidade cristá, a igreja. Esta consciê~iciatambém não é fonte de conheciinento especulatii~oabstrato. Ela trata de reiacioiiamentos eminentemente práticos, pessoais - aqueles com Deus e a comunidade religiosa, pecado e salvação. Conseqüentemente, a teologia filosófica especulativa ou "natural" não tem valor algum. A filosofia pode fornecer, como com Aristóreles, uma "causa primeira", mas está longe de ser um Pai amoroso. lá1 revelação prática 110s é feita somente através de Cristo. Esta revelaçáo nos chega por intermédio da consciência dos primeiros discípulos. E por isso, o Antigo Testamento, revelando a base religiosa deles, e especia1ment.c o Novo Testamento, regisrrando a consciêncja que eles tiveram de Cristo e seu Evangelho, são de supremo valor. Para afirmar a cuilsciência religiosa registrada no Antigo e no Novo Testamento, não C preciso nenhuma teoria da inspiracáo, apenas a pesquisa histórica normal. Ainda que R~tschltenha assim rejeitado a metafísica como auxiliar da verdade cristá, ele utilizou basrante uma teoria do conhecimento advogada pelo filósofo Rudolf

PER~OUUYII

U CRISTIANISMO MODER110

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Na década de 1890, no entanto, a abordagem ritschliana foi desafiada pela escola

da "história das religióes". Esta escola procurou u~iiversalizara abordagem histórica i religiáo coIocando o cristianismo em seu contexto com as outras religiões do antigo Oriente Próximo. O que Ritschl fizera táo eficazmente tra5ando o desenvolvime~zto histórico da doutrina cristã ela procurou fazer com os começos do cristianismo mesmo, acusando Rirschl de provincialismo, por náo seguir totalmente seu próprio método. Seu expoente mais notável foi Ernst Troelrsch ( I 865-1923). Sua obra histórica foi brilhante, cspecialmenre seu Ensinos SocidLs dds Igi-ejds GistJs ( 1 9 1 2), mas o relativismo da escola ReligionsgPschichtliche contribuiu para a crise do Iiberalisiilo.

Capítulo 1 3

O Protestantismo Inglês no Século Dezenove A vida religiosa inglesa nos primeiros anos do sécuIo dezenove foi dominada pelo despertamento espiritual do reavivamento evangélico, o qual provocou muita separa@ da igreja oficializada (ver VII:7). Nessa igreja, o zelo reavivado era representad o pelo partido evangélico, que no século dezenove tornou-se o partido cia "igreja baixa", cm oposição às ênfases reavivadas da "alta igrejan. Os evangélicos, como os metodistas, estavam ativamente entregues a obras de atividade prárica e missionária (ver VII:9). 0 s anglicanos evangélicos aumentaram sua importância em assuntos eclesiásticos alcançando seu primeiro bispado em 1815 , e por volta da metade do sEculo formavam o principal partido da igreja, com .grande vitalidade entre os leigos. Mas o século dezenove também presenciou o surgimentu de um novo movimento liberal, o da "igreja ampla", e o reavir7amento da tradicáo da alta igreja.

O impulso do movimento da igreja ampla surgiu da insatisfação com as elaborações teológicas da época. Iiitelectualme~ite,todos os partidos lia igreja da Inglaterra, no inicio do século, permaneceram presos às discussóes deveras provincianas do século anterior. A teologia era encarada na mesma forma racionalista-um sistema de demonsrraçáo inrelectual, ou de revelacáo impositiva, ou ambas combinadas. Entrecanro, as agitações das novas forças intelectuais já se faziam sentir. A poesia inglesa

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HISTORIR DA IGREJA GRISTA

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florescia magnificamente no dealbar do século. O romantismo, táo forte como na Alemanha (ver VII: 12j, estava comecando a produzir uma atmosfera intelectual inteirameilce diversa daquela da tpoca precedente. As novelas de Sir Walter Scotr são exeniplos conhecidos dessa nova sit-uaçáo. Desenvolvia-se um novo humanitarisrno, em grande parte devido ao reavivarnento merodista, que se manifestaria em múltiplos movimentos reformistas. Seguramente, todas as tendências afetariam o pensamento teológico e os ideais religiosos. Provavelmente, a força mais estimulante no pensamento religioso do primeiro quarcel do século dezenove foi Samuel Taylor Coleridge (1 772-1834), eminente como poeta, crítico literário e filósofo. No início inclinado para o iieoplatonismo, ao eFudar na Alemanha em 1798-1799 familiarizou-se náo apenas com os mesrres da literatura gerniânica nias ta~iibémcom o pensamento de Kant, Fichte e Sclielling e com um panorama filosófico entáo bastante desconhecido na Inglaterra. Cloleridge jamais formulou um sistema cornplero. Sua obra de maior valor foi Auxílios à ReAexáo

(1825). Contra o racionalismo de raley (ver V11:3), afirmava uma disrinçáo entre "razáo" e "eiitendimento". Para ele, "razáo" era um poder de percepqáo iricuiriva, uma "introspeçáo", pela qual as verdades religiosas sáo percebidas diretamente. Essa "razáo moral" tem a "consci2nciaMcomo sua associada, a qual t um mandato incondicional, e rem conio postulados a lei moral, um legislador divino e urnavida futura.

A certeza religiosa esti portanto baseada náo em provas externas mas na consciência religiosa. É por isso que ele foi denominado o "Schleiermacher inglês". Sob muitos aspectos, Coleridge foi o precursor da maneira de pensar da igreja ampla; mas com sua ênfase na igreja como uma instituiçáo divina, mais elevada e mais nobre do que qualquer coisa "estabelecida por lei", ele preparou o caminho para o parcido da alta igreja.

A obra de Coleridge em seus aspeccos religiosos foi continuada por Thomas Arnold (1795-1842), que iniciou seu famoso rnagisttrio em Rugby em 1828. Homem de fé crisd

e simples, sua disposicão em auxiliar seus pupilos era enorme. Suas

idéias eram muito semelhantes as de Herder (ver VII:12). A Bíblia é uma lireratura que deve ser entendida à luz das épocas em que foi escrita. No encanto, sua verdade divina chega até nós.

A crítica bíblica foi impulsionada, de forma muito moderada, por Henry Hart Milman (179 1-1868), deão desde 1849 da catedral de São Paulo, Londres. Ele aplicou os métodos críticos ao Antigo Testamento em sua História dos judeus (1829).

~ r ~ i o eviro

O CRISTIANISMO MODEANO

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Sua obra mais valiosa foi História do cristianismo latino (1855). Mesmo náo querendo ser contado entre os da cscoia da igreja ampla, John Frederick Denilson Maurice (1805-1 872) deveras contribuiu para sua expansáo. Filho de um ministro unitário, aceitou a igreja oficial e se tornou capeláo do hospital Guy, em Londres. Em 1840 foi nomeado para uma cátedra no King's College, da qual foi retirado por causa de suas idéias, em 1853. Um ano depois fundou o Colégio dos Trabalhadores, e foi promotor do surgimenro de um movimento socialisca criscáo.

Em 1866 foi nomeado professor em Cambridge. Segundo o pensainenro de Maurice, Cristo é o cabeça dc ~ o d a humanidade. Ninguém está sob a maldiçáo de Deus. Todos sáo seus filhos, os quais não necessitam de qualquer reconciliaç.áo senão a de reconhecerem a paternidade divina, com o amor e o serviço filiais a que tal reconhecimento naturalmente leva. Presumivelmente todos serão, em última instância, levados ao lar de Deus e ninguém se perderá para sempre. Não muito distante da teologia de Maurice encontramos Frederick William Robertson (1816-18531, pregador notável. Educado sob influência evangélica, ao passar por um periodo de intenso questionamento deslocou-se para a posicáo da igrcja ampla. De 1847 até sua prematura morte foi ministro ein Brighton. Nenhum sermáo inglês do século dezenove exerceu canta influência em ambos os lados d o Atlântico quanto os dele. A verdade espiritual deve ser discernida espiritualmente em vez de comprovada intelectualmente. A nobreza da humanidade de Cristo atesta e conduz à fé em sua divindade. Charles Kingsley (1 8 19-1875), romancista e reitor de Eversley, influenciou sobremaneira a difusão das idéias da igreja ampla. Da mesma forma Arthur Penrhyn Stanley (18 15- 188 I ) , deáo dc Westminster; Frederic William Farrar (183 1-1903), deáo de Cantuária; e AIfred Lord Tennyson (1809-1 892), cuja obra In Memoriam

(1850), é por inteiro um poema da igreja ampla. Em 1860 dois eventos causaram grande cornoçáo. O primeiro foi a publicação de Ensaios e Estudos, nos quais um grupo de eruditos de Oxford procurava apresentar o cristianismo à luz da ciência e do criticismo histórico contemporâneos. O segundo foi o processo de John William Colenso (1814-1883), bispo de Natal, África do Sul, por sua crítica do Pentateuco, publicada em 1862. 'lkês eruditos de Cambridge, Brooke Foss Westcott (1825- 190 I ) , Joseph Barber 1,ightfoot (1828- 1889) e Fenron John Anthony Hort (1 828-1 892), deram importante contribuiçáo a erudiçzo bíblica. A critica textual do Novo Testamento grego de Westcott e Hort, publicada em 188 1, depois de cerca de trinta anos

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HISTIIRIA DA IGREJA C R I S I I

de estudioso labor, se tornou padrão. O movime~itoda igreja ampla nunca foi, estritamente falando, um partido, e seus seguidores não eram muitos, mas sua influência sobre o pensainenro religioso inglês foi enorme. Movimento altamente significativo, profundamente devoto e intensamente autoconsciente dentro da igreja da Inglaterra, nesse período, foi o de Oxford,* que deu surginiento ao partido anglo-católico. Tal movimento deu nova vida e direção à tradição da alta igreja, que se tornara um tanto árida. Nos primeiros anos do segundo quarto do sécuio dezenove ocorreram várias importantes rupturas nos priviltgios exclusivos da igreja oficial. Os Atos de Prova (ver VI:16) c de Corporacão foram abolidos em 1828. Os catcílicos romanos puderam, entáo, ser eleitos para a Câmara dos Comuns e para a maioria dos cargos públicos, em 1829. A revo1uc;áo de julho de

1830, na França, estimulo~ia r e i v i n d i ~ a ~ por á o reformas na representação parlamentar; estas triunfaram após acirradas lutas, em 1832, transferindo assim o poder da pequena nobreza rural para a classe média e deste modo aumentando a influência náo-conformista. Para muitos clCrigos conservadores pareceu que os alicerces da igreja e do estado estava111 sendo abaiados. Eles se dispuseram a levantar a própria questão

da natureza da igreja. Ela ií: uma instituição divina essencialmente inalterável, ou pode ser alterada, como ocorreu muitas vezes depois da Reforma, por determinacóes governamentais? A forma que sua resposta Tomou seria determinada, em grande parte, pelo reavivamento romântico de interesse no primitivo c medieval. Durante essas discussóes, virios clérigos jovens, em sua maioria ligados ao Oriel College, Oxford, foram levados a dar os passos que inauguraram o "Movimento de Oxtòrd", como é geraIrnente chamado. Provavelmente, o mais influente do grupo, enquanto sua breve vida náo findou, foi Richard Hurrell Froude (1803-1 836). Para ele, a igreja está de posse da verdade, da qual foram repudiados pelos reformadores importantes elementos concedidos no período primitivo. Pareciam-lhe imperiosos o reavivamento do jejum, do celibato clerical, da reverência pelos santos e dos "costumes católicos". Inrimamenre associado com Froude estava John H e ~ i r yNewman

(1801-1890), homem de grande capacidade inrelectual e oratória, cujo preparo inicial fora evangélico, mas que passara a compartilhar dos sentimentos de Froude. Um terceiro do grupo de Oriel foi John Keble (1792-1866), de ascendência "nonjuror", e já conhecido como autor do volume mais popular de poesia religiosa publicado no século dezenove, O Ano Cristáo (1827). Cordialmente simpatizava com o movimenro um erudito de Cambridge, Hugh James Rose (1795-1838), fundador do

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O CRISTIANISMO MOOERN0

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British Magazine, em 1832, para itlcremeiltar a fé na autoridade divina e iniurabiiidade da igreja. Para rodos eles o curso dos recentes fatos políticos parecia amearador. O começo formal do movimento é geralmenre associado com o sermão de Keble em Oxford, em 14 de julho de 1833, intitulado "Apostasia Nacional". Em setembro desse ano Keble formulou os princípios que ele e seus companheiros afirmavam. O meio para a salvação C a recepçáo do corpo e sangue de Cristo na eucaristia, a qual só é validamente administrada por aqueles que se encontram na sucessão apostólica.

Esse é o tesouro da igreja - igreja esra que dcvc ser restaurada em todas as formas à pureza dos seus indivisos sécuios iniciais.

No mesmo mês Newman iniciou a publicaqáo dos famosos Panfletos para a Época. Em 1835 esses associados já haviam conquistado o apoio de alguém que, junto com Nelvman, e sozinho após a desercio deste, seria n líder, Edward Bouverie Pusey (1800-1882). Homem de grande zelo e piedade, Pusey estava táo absol~ita~nente ligado ao movimento anglo-católico como seu cabeça que esse movimento cambém foi denominado "puseismo". Para ele, era o reavivamento do cristianismo primitivo. Foram publicados novenca desses Panfletos, dos quais Newman escreveu ou edi[ou pelo menos vinte e oito. Keble, Pusey, Froude e outros também colaboraram. Para Newman, a igreja da Inglaterra era a ponte áurea, a via media, entre o prorescantismo e Roma. Mas à medida em que os panfletos iam aparecendo, os escritores enfatizavam cada vez mais aquelas doutrinas e práticas que, ainda que cercamente anrigas, csráo popularmente identificadas com Roma. Assim, Pusey ensinou a natureza regeneradora do batismo e o aspecto sacrificial da ceia do Senhor. A confissáo era recomendada, mas deveria haver reservas quanto ao riso da Bíblia e da proclamação das verdades religiosas. Foi o nonagésimo Panfleto, de autoria de Newman, publicado em 1841, que levantou a maior controvérsia. Newman afirmava que os Trinta e Nove Artigos não procuravam ensinar outra coisa além da f t catblica e não estavam em conflito com o catolicismo romano genuíno, mesmo em sua forma tridentina. Poucos cruditos ou clérigos podiam aceitar essa interpreraçáo, que parecia totalrncntc equivocada, e o bispo de Oxford proibiu a continuaçáo dos Panfletos. Newman estava no ápice de sua influência quando foi publicado o nonagésimo panfleto. O movimento anglo-católico contava com centenas de seguidores entre o clero. Newman, no encanto, tinha dúvidas quanto à catolicidade da igreja da Inglaterra e, em 9 de outubro de 1845, submeteu-se a Roma. Centenas de clérigos e leigos o seguiram na comunháo romana, dentre os quais o mais nocável era Henry Edward

754

HISTÓRIA DA IGREJA CRIST%

Atanning (1808-1892), que passou para Roma em 185 1 e foi feito cardeal em 1875.

O restabelecimento do episcopado diocesano católico romano na Inglaterra, em 1850, $0 papa Pio IX, vago desde a Reforma, causou g a n d e agitaçáo. Manning tornouse defer-isor ultramontano extremado das pretensões papais, diferentemente de Newman, que sempre foi moderado e que, mesmo sendo o mais eminente dos catjlicos romanos ingleses, só chegou ao cardinalato em 1879. Estas passagens para Roma terminaram o Movimento de Oxford como tal, mas o parrido anglo-católico que dele emergiu resistiu à tempestade sob a capaz lideran~a de Pusey, e rapidamente amadureceu tornando-se um elemenro importante dentro da igreja oficial. Conforme suas modificaçóes doutrinárias eram aceitas, preocupava-se cada vez mais com o "enriq~lecimentoV da liturgia por meio da introduçáo de costumes que o

abandonara. Estas mudanças encontraram muita

oposicáo popular e legal, mas as modificações desejadas pelos ritualistas foram largamente asseguradas. Qualquer avaliagáo do movimento anglo-católico será equivocada se deixar de reconhecer seu profundo zelo religioso. Ele náo apenas trouxe uma nova ênfase católica ao culto e à teologia da igreja, mas também demonstrou genuína dedicacão aos pobres, aos abandonados e aos sem igreja. Ele muito fez para reconquistar a presenq da igreja nas classes inferiores. Em 1860 foi organizada a Uniáo da Igreja Inglesa, para apoiar a fé e ea prática da alta igreja e para expandir a influência desse significativo movimento de despcrtamenro dentro da igreja da Inglaterra.

A igreja oficial protestante da Irianda, paralela à da IngIacerra, sempre uma anomalia, pois o governo apoiava uma igreja da minoria da população, perdeu a posicáo de oficializada em 1869. Sua marcha, porCm, não foi muito alterada pela mudança.

O século dezenove foi marcado por firme expansão e crescente proliferaçáo do náo-confor~nismo,para o que a influência evangélica foi forte. Provavelmente, logo no início do século o número de náo-conformistas arivos passou a ultrapassar o de angiicanos praticantes. O metodismo, por exemplo, quadruplicou de 1800 a 1860, ainda que tenha perdido gente com as faccóes cismáticas. Os outros grandes e crescentes grupos não-conformistas eram os congregacionais e os batistas, enquanto os quacres e os unitirios permaneciam como pequenas minorias e o presbiterianismo era reavivado, principairnente por causa dos migrantes oriundos da Escócia. A vita-

lidade náo-conformista estava nas classes médias. Os náo-conformistas produziram pregadores de grande poder e tinham seus eruditos e trabalhadores sociais, mas foram menos importantes que a igreja da Inglaterra em erudiçáo e no trabalho entre os

sem igreja.

De grande importância na vida inglesa foi a firme diminuicáo das proibicóes que pesavam sobre os náo-conformistas. Em 18 13 os unicários foram beneficiados pela aboli~áode atos penais contra os que negavam a Trindade. Como já foi mencionado, os Atos de Prova e de Corporacáo caíram em 1828. Em 1836 foi permitido realizar casamentos em lugares de culto dissidente. Os não-conformistas livraram-se das taxas em benefício da igreja oficial em 1868. Em I871 foram abolidas todas as provas religiosas nas universidades de Oxford, Cambridge e Durham, excero para os crirsos de teologia. Em 1880 foram permitidos cultos durante sepultamentos em terreno

eclesiástico. Na última metade do século os não-conforinistas se beneficiaram do que tem sido denominado "Segundo Grande Desperramento Evangélico" e cujo principal ttaqo foi a obra do evangelista americano Dwighc L. Moody (1837-1899). Os anglicanos evangélicos também se beneficiaram desses despertamentos posteriores, e seus centros em Mildinay e Keswick os auxiliaram.

O s náo-coriformistas náo somente se expandiram nesse século, mas raitibém produziram rnuicos novos grupos. Três movime~itostêm interesse especial. Edward Inring

(1792-1834),era um pregador presbiteriano escocês em Londres de eloqüência e tendências místicas. Por volta de 1828 se convenceu dc que os "dons" da era apostólica seriam restaurados se houvesse fé sufkie~ite.Ainda que não os reivindicasse para si, dois anos depois pensava que suas esperanqas escavam sc cumprindo cm outros. Em 1832 foi deposto de seu ministério presbiteriano. Logo depois, sur,'0iu a convicçáo entre seus seguidores de que seis apóstolos tinham sido chamados por profecia, e

em 1835 o r-iúnlero foi elevado para doze. Esse grupo assini liderado tomou o nome de Igreja Católica Apostólica. Em I842 foi adotado um ritual elaborado. O s apóstolos eram considerados como órgãos do Espírito Santo. Durante muito tempo foi aguardada a iminente vinda de Cristo, mas o último apóstoio morreu em 1901. A igreja se espalhara para a Alemanha e os Estados Unidos. Um segur-ido movimenro surgiu da reaçáo contra a falta de espiritualidade na igreja oficial, nos primeiros anos do século. Reuniram-se na Irlanda e no oeste da Inglaterra grupos de "irmáos" dizendo que os úiiicos vínculos entre eles eram a ft e o amor cristáo. Seu crescimento considerável foi devido ao empenho de John Nelson

(1800-1882), ex-clérigo da Igreja da Irlanda (anglicana). Ele rrabdhava nos arredores de Plyrnouth, por volta de 1830, e por isto seus seguidores são geralmente deno-

756

HISTORIA UA IGREJA CRISTh

minados "Irmãos de PlymouthV.Julgam eles que todos os crentes sáo sacerdotes e, dai, devem ser rejeitados todos os ministérios formais. Os credos devem ser abolidos.

O Espírito Santo guia todos os verdadeiros crentes e os une na fé c no culto segundo o modelo apostólico. Os Irmáos eram guiados por um sistema de interpretaçáo bíblica miienarista conhecido como dispensacionalismo, no qual o tempo era dividido em uma sCrie de dispensaçóes (normalmente sete). Embora houvesse variaqóes em detalhes, a úitima dispensaçáo, imediatamente vindoura, era geralmente compreendida como o miIênio, no qual Cristo retomaria e a monarquia davídica seria 1-maurada em Israel. Ainda que declaradamente rejeirassem todo denominacionalismo, os "irmãos" logo se viram compelidos a criar aros de discipiina e se dividiram em pelo menos seis grupos. Darby foi um propagandista infatigável. Por seus esforços os "irmãos" foram implantados na Suíça, França, Alemanha, Canadá e nos Estados Unidos. Entre seus preemincnrcs seguidores estavam George Muller (1 805- 1898), cujos notáveis orfanatos em Bristol eram sustentados, segundo sua própria opiniáo, principalmente pela resposta direta às orações; e Samuel Prideaux Tregelles (1 8131875), eininentc estudioso do texto grego do Novo Testamento.

O mais importante destes novos grupos foi o Exército da Salvação. Seu criador, William Booth (1 829-1912), era ministro da Nova Conexáo Metodista e, depois de bem sucedida obra de reavivamento em Cardifc iniciou trabaího semelhante em Londres, em 1864. Disso rcsultou, em 1878, uma orgatiizaçáo de aspccIo militar, com obediência militar, que em 1880 recebeu o nome de Exército da Salvaçáo. Sempre engrijado decididamente na filantropia prática tanto quanco na evangelizaçáo de rua, a obra filantrópica se desenvolveu em p n d e escala a partir de 1890, quando Booth publicou A Saída na Trevosa Inglarerra. Apesar de sua forma milirar autocrática, o Exército da Salvação é, sob vários aspectos, unia igreja. Acusado de ocasionais arbitrariedades, tem feito imensa obra beneficente a favor dos necessitados e delinqucntcs e tem abrangido todos os ~ a í s e sde língua inglesa, assim como a França, Alemanha, Suíga, Itália, países cscandinavos e Oriente. Na segunda metade do século dezenove, cristáos ingleses de várias denominações e tradições ficaram cada vez mais preocupados com os agudos problemas sociais da época. Os evangélicos h; rnuiro estavam envolvidos em atividades beneficentes e movimentos reformistas, enquanto eclesiásticos como Maurice e Kngsley foram pioneiros do socialismo cristáo em meados do século. Mas ao se aproximar o fim do século, foi surgindo amplo interesse por justiça social e pelas questões sociais. Nos

,778

HISTDRIA IIA IGREJA CRISTÃ

Estado uma terceira parcela, e a mais ativa. No entanto, o exemplo dos separatistas acabou provocando o despertamento do zelo na própria igreja oficial. Em 1874, foram abolidos por lei os direitos do patronato, que eram a origem das divisões.

O vigor do evangelicalismo britânico se refleriu tanto na igreja oficial como na

ed~

náo-conformista na grande onda inissionária do protestantismo do século dezenove.

mt.:

Os evangilicos de língua inglesa foram os lideres nas missóes protestantes no fim do século dezoito e mantiveram essa liderança por todo o "Grande SCculo"' da expansáo missionária protestante. A rápida expansáo das missões no estrangeiro no século dezenove levou o prorestantismo praticamente a todas as naçóes do globo, tornandoo de alcance verdadeiramente universal. Esta campanha missionária teve como centro a Inglaterra, com os Estados Unidos logo a seguir. Seu início ao apagar das luzes do século dezoito j5 foi assinalado (ver VI1:9). No decorrer do século seguinte a cruzada cresceu firmemente em extensáo e complexidade, e continuou a organizacáo de agências missionárias dos mais ~ariadostipos.

O movimento foi dirigido por um grupo de famosos missionários pioneiros, seguidores do exemplo de Wiiliam Carey, o primeiro dos missionários mociernos. Aqueles oriundos da Grá-Bretanha se dirigiram principalmente, embora de forma alguma exclusivamente, para aquelas regiões do mundo onde o império britânico possuía territórios. Na Índia, o anglicano Henry Marryn (178 1- 18 12), esforçou-se tanto no trabalho missionário que veio a falecer prematuramente. O primeiro missionirio no estrangeiro da igreja da Escócia, Alexander Duff (1806-1 878), se devotou cspecialmente à obra educacional, procurando atrair as classes cultas da Índia. Samuel Marsden (1764-1838), outro anglicano de formacão evangilica, trabalhou por mais de quatro décadas visando a implantar o cristianismo na Austrália, Nova Zelândia e ilhas do I'acffico. ~ a & r i c a ,Robert Moffat (1795-1883) e David Livingscone (1 8131873), ambos escoceses a serviço da Sociedade Missionária de Londres, levaram o evangelho ao sul daquele continen~e.Esta mesma sociedade também enviou Robert Morrison (1782-1834), em 1807, como o primeiro missionário protestante a Cl-iina. Os esforEos desses pioneiros, embora heróicos, num primeiro momento náo parece Terem dado muitos frutos; sua incumbência era abrir as portas, fundar escolas e pontos de apoio e, sobretudo, rraduzir as Escrituras. Foram seguidos, porém, por C) [ermo f;>ipop~ilarizadopclo prcçrniner~reIiistorisdi~rde missões, Kcnnçih Scott Latour-crtç. Na sua obra de srre voli~niri,A Historq' ofthe Expunsio?~of Chi-iitil~ni~ (NovaIorquc, 1337-4í),rle ronia tr?s volumes par:$ clicgar até 18 15. e enráo trCs para cobrir o pcríodo 1815-19 1.4, o "Grande Siculo".

Capitulo 14

O Protestantismo Continental no Século Dezenove Aquilo que provavehente foi o desenvolvimento mais significativo no protestantismo continental no século dezenove - os movimentos do pensamento cristão na Alemanha

-

já foi apresentado. Mas também houve importantes [endências na vida

das igrejas, pois nesse tempo ocorreram manifestacóes de vida que, ultrapassando consideravelmente os limites confessionais e nacionais, estenderam-se pelas igrejas

760

HISTÓRIA DA IGREJR CRISTA

cristás no continente europeu. Esse despertamento no século dezenove teve diversos aspectos. De in-iportância especial, no inicio do século, foi o "Réveil", ou seja, o emergir de correnres evangélicas c pieristas remanescentes de despertamenros anrcriores. Mas ao lado dessa ressurgência também podem ser observados movimenros de renovaçáo enfatizando eiemeritos românticos, sacramentais e confessionais. Os diversos aspectos do despertamento do século dezenove podem ser classificados como igreja baixa, igreja ampla, alra igreja e confessional.

Na Alemanha, o despertamento comeqou no estado central da Prússia, durante a ocupaçáo napoleônica. O teólogo Schleiermacher, pregador na Igreja da Trindade, em Berlim, Icvou o povo a sc aprofundar na tradicão cristá de há muito obscurecida. Nas décadas de 1820 e 1830 se tornou influenrc um movimen~omais pietista, langado

elo Evurzgelische Kzrche~/zeitzingde Hengstenberg. Este defendia firmemente a

infalibilidade da Bíblia e a aliança, na polícica alemá, dos cristáos com o partido conservador feudal (ver VII: 12). Outra corrente dentro do despertamento foi intensainenre confessional. Em parte foi uma reaçáo contra a Uniáo Prussiana de 1817, na qual as igrejas luterana e reformada foram unidas segundo a voncade do rei Frederico Guilherme I11 (1797-1840). Uniões semelhantes foram criadas em alguns outros cstados alemães. Mas os luteranos ortodoxos fiCis, que alimentavam forte hostiIidade contra os calviniitas, recusaram-se a participar em tal uniáo. Esses "Velhos Luteranos" foram muico perseguidos e náo foi senão na década de 1840 que obtiveram permissáo para emigrar. Quando porém, ~ u d e r a msair, muitos se dirigiram para os Escados Unidos com o objetivo de formar sínodos conservadores como os que estabeleceram em Buffalo c Missouri. No cnranto, nem todas as tendências fortemente confessionais podem ser encontradas entre os Velhos Lureranos. O próprio Hengstenberg rompeu com o movimenro piecista por volm de 1840 e se fez defensor da ortodoxia Iuterana estrita. E era comum semelhante atitude. Em conexão com tal rendência confessional havia um movimento de alra igreja. Nele encontramos como vultos centrais Wilhelm Loehe (1808-1872), da Baviera, e Theodor Kliefoth (ver VII: 12), de Mecklenberg. Esses "Novos Luteranos" buscavam acentuar a transmissão objetiva da graca salvífica de Deus através de pessoas e instituiçóes e reviver antigas rradi~óeslitúrgicas.

A viralidade emanada dessas correntes de desperrarnentos encontrou aplicacão na "missão interna", múltiplos esforços de evangelizaçáo e beneficentes remanescentes das atividades em Halle nos primeiros dias do pierismo. Johann Hinrich Wichern

(1808-188 I), educado sob auspícios pietistas, fundou em 1833 um lar para meninos

~tuionovil

O CRISTIANISMO MOOEANO

76 1

abandonados. Devido a sua capacidade organizacional expandiu-se uma vasta rede de centenas de agências para alcan~armaririheiros, desempregados, prisioneiros e crianças abandonadas. Foram feitos, sobretudo, strios esforços para alcanFar as massas por meio de escolas dominicais, missões urbanas, albergues e distribuiçáo de literatura. Muitos leigos ingressaram no movimento e foram organizadas ordens de diaconisas. A missáo interna foi apoiada por protestantes influenciados por vários dos elementos do despcrtamcnto, mas seu caráter pietista permaneceu forte. Ela também encontrou incisiva resposta no sul da Alemanha e na regiáo do baixo Reno, onde a tradiqáo reformada continuava força ponderável. C ) desperramento tambéíil atingiu o protestantismo escandinavo. Na Dinarnar-

ca, a resposra aos vários aspectos do reavivamento estimulou uin período genuinamente criativo. A ênfase pietista com sua "missão interna" foi bem acolhida na igreja luterana oficial. A tendência mais aberta aos motivos româ~iticos,mais "igreja ampla", foi representada pelo bispo J. P Mynster (1775-1854), pregador da corre, profcssor de ceologia c primaz da igrcja da Dinamarca. O aspecto "alta igreja" foi represeritado por Nicolai Frederick Severin Grundrvig (1783-1872), que tomou como base o Credo dos Apóstolos e acentuou a tradicáo viva e o foco sacramental da igreja.

Um dos produtos desse período criativo - Soren Kierkegaard (1813-1 835) - reagiu fortemente contra o cristianismo que conhecia. Eilfatizando os aspectos paradoxais e existenciais da fé cristá, Kierkcgaard causou pouca impressão em seu tempo, mas foi redescoberto no século vinte.

O aspecto pietista do despertamenro se fez sentir especialmente na Noruega. Hans Nielsen Hauge ( 1771- 1 824), evangelista leigo itinerante, atacou a frieza da igreja oficial e por causa disto ficou preso por quase uma dtcada. Mais tarde, o it-iovimento que inspirara foi levado pelos esforqos de Gisle Johrison (1 822-1894) à intinia rejaçáo com a igreja luterana oficial. Tanto a ênfase confessional quanto a clerical estive-

ram evidentes na obra deste professor de teologia da universidade de Christiana. O reavivamento também teve uma diversidade de aspectos na Suécia, mas a influência de Henrik Scharrau (1757-1825), pasror na cidaiie de Lund, foi especiaimente importante. No princípio sob influência morávia, ele desenvolveu uma tendência sacramental e de alta igreja, enfatizando a antiguidade da tradiSáo da igrcja c a presença real na eucaristia.

A influência do despertamenro protestante do século dezenove foi também senrida fortemeilte nas igrejas reformadas do continente. No final do século dezoito, o

impacto do racionalisrno fora muito grande nas comunhóes calvinistas da Suíça, Franca e Holanda. O início do reavivarnento pode ser traçado, ern parte, ao movimento evangélico na Escócia, pois Robert Haldane foi instrumenro esrimulador de um despertamento na França e na Suíça francesa, em 18 16. Um notável converso hs novas ênfases foi H. A. César Malan (1787-1864), que se tornou importante evangelista itinerarite e escricor de muitos hinos. Nos Países Baixos, Isaac de Costa (1798-1860), um judeu convertido, foi vulto importante do reavivamcnto. Como na Inglaterra, as correnres reavivalistas produziram uma rede de sociedades voluntárias para a realizacáo de empreendimentos e.r~angelísticos,missionários e beneficentes. E em todos esses países, os expoentes do "Réveil" encontraram a oposiçáo dos líderes eclesiásticos de tendências racionalistas e assim ficaram afastados das posições

de comando. Na Holanda, a rensáo entre o racionalismo e o despertamento, neste caso representado por um jovem pastor, Hendrik de Cock (1801-1842), que também defendia o alto caIvinismo e a adesão estrita às afirmações do sínodo de Dort (ver VI:I5), levou a uin cisma. Q ~ i a n d odc Cock foi deposto, em 1834, muitas congregaçóes deixaram a Igreja Reformada Holandesa oficial e fundaram a Igreja Reformada Cristã. Muitos evangélicos, no entanto, permaneceram na igreja oficial. Outra separaçáo da igreja oficial ocorreu sob Abraham Kuyper (1837-1920), um pastor que por voita de 1870 era o Iíder do grupo dos calvinistas estritos. Quando as tentativas para o retorno da igreja oficial à condiçáo estabelecida pelo sínodo de Dort fracassaram, Kuyper liderou a formacáo daquela que foi popularmente denominada Igreja Reformada Livre (1886). Ele 11áo foi apenas um notável pregador e profícuo escritor, mas também político e estadista acivo no governo (primeiro ministro de 1901 a 1905). Ele foi professor de teologia sistemática na Universidade Livre de Amsterdá durante os últimos quarenta anos de sua vida. Na Suíca, Alexander Vinet (1797-1847), o "Schleiermacher do protestantismo francês", liderou uma separação. No início Vinet não se agradara do que considerava a imperfeiçáo do Réveil, mas foi atraído pela ênfase dos evangélicos mais moderados e pelas correntes românticas e ficou perturbado pelo empenho dos racionalistas em reprimir os evangélicos. Assim, esposou o Réveil e tornou-se sincero defensor da separaçáo entre igreja e estado. Em 1846 desempenhou papel principal arrebanhando separatistas da igreja oficial, entre os quais encontrava-se a maioria dos ministros e muitos dos professores de teologia de Lausaila, para formar a Igreja Livre de Vaud.

As igrejas do conrinente, estimuladas pelas correntes de despertamento, muito

764

HISTÓRIA DA 16REJA CRISTÃ

para os luteranos aceitarem as conseqiiências políticas de uma ética social e abdicou do ministério. Entrernen~es,Lim "evangelho social", de natureza algo acadêmica, era defendido por certos tedlogos liberais como Harnack e Hermann (ver VII:12).

O cristianismo social encontrou solo mais fértil nas igrejas reformadas. Destacaram-se como líderes do movimento Leonhard Ragaz (1868- 1945), defensor do pacifismo, das cooperarivas e das escolas e estabelecimentos populares; e Hermann Kutter

(1863- 193I), autor de Elrs Devem! (1905), uma interpretacão teológica do socialismo que também influenciou o desenvolvimento do cristianismo social na Inglaterra e nos Estados Unidos. Embora o interesse das massas cristãs nas questões sociais nunca tenha ~ l c a n ~ a do ograu que os líderes cristáos sociais esperavam, ocorreram mudancas significativas na maneira em que os protestantes confrontavam os problemas sociais, e desde entáo as formas de pensar estritamente individualistas foram permanentemente alteradas.

Capítulo 13

O Protestantismo Americano no Século Dezenove Assim como a história do prorescancismo no século dezenove na Grã-Bretanha c no continente comeqou com um de~~ertamentci evangklico, ig~ialmentea história da religiáo nos Estados Unidos, no mesmo período. Na América, as correntes de reavivarnento pierisra, evangelísrica c de igreja baixa tornarain-se amplamente dominantes 11a vida da igreja. Embora I-iou~essealgumas evidências indicadoras dos outros aspectos do seavivamento britânico e do continental, e ainda que algumas comunhóes tenham resistido à maré reavivalista, no geral uma concepção evangélica da

fé cristá cuja knfase característica era a conquista de almas deu o tom ao prorescanrismo americano. Sob a influência de líderes articulados que partilhavam das tradiqóes pietista e evangélica, Lima experiência de conversão consciente c frcquentemeiite emocional passou a ser vista, em larga inedida, coino a maneira normal de ingresso

na vida cristá. A simação interna - a vida da igreja esteve relativamente em maré

r~iloiovii

O CRISTIANISMO MOOERNO

,765

baixa durante o período revolucionário, e na abertura do novo século os membros da igreja perfaziam menos de dez por cento da populaqáo - enfatizava a necessidade de despertamento. A situação externa - um país que aproximadamente tripIicara seu território e quintuplicara sua população em cinqüenta anos

-

desempenhava sua

parte em atrair a atençáo cristá para a conquista de conversos. Comeqando bem no fina1 do século dezoito, um poderoso despertamento do interesse religioso agitou o país. Na Nova Inglaterra, o que por vezes tem sido chamado o "Segundo Grande Despertamento", deu seus primeiros sinais já em 1792. Em 1800 o despertamento estava no auge. Líderes congregacionais resolveram que certos excessos que provocaram o declínio do Grande Despertamento anterior não se repetiriam. Em suas igrejas, portanto, estes novos reavivamentos eram um tanto restringidos, rçalizando-se principalmente segundo os padrões normais da vida da igreja. O brilhante presidente de Yale, T i m o t h ~Dwighr (1752- 1817), se destacou na lapidaçáo da teologia que sublinhou as novas cruzadas re.avivaIiscas. Ljirnan Beecher

regador congregacional, e Nathaniel W. Taylor (17861858), teólogo de YaIe e protegido de Dwight se destacaram na execuqáo da obra. O

(1755-1863), o agressivo

dcspertamento de forma alguma ficou limitado às igrejas congregacionais, pois os batistas floresceram na atmosfera do despertamento, e os mctodistas, buscando uma base segura na Nova Inglaterra, utilizaram livremente práticas reavivalistas.

O despertamento também empolgou os estados do meio da cosra atlântica, o sul e a fronteira. Os habitantes da costa leste fizeram sua parre visando à expansáo do reavivamento para o oeste. Em 1801 a Assembléia Geral Congregacional de Cnnnecticut e a Assembléia Geral Presbireriana formaram um "Plano de Uniáo", promoveiido a fusão virtual destas denominacóes nas áreas de fronteira. Logo as outras associaçóes congregacionais da Nova Inglaterra aderiram ao plano e foram implantadas muiras igrejas "presbigacionais", principaImenre em Nova Iorque e Ohio. Mas frequentemente os moradores rio oeste ficavam impacientes diante das remicóes do reaviva~nentono leste e ressentidos com a ênfase no clero culto. Foi nos estados froi~teiri~os do Tennessec e do K c n t u c k ~que ocorreram as manifestaçóes mais eniocionais e espetaculares do despertamento. Ai comeqaram, em 1800, as "reunióes de acampamento", e ali os reavivamentos, especial~nenteno início, foram marcados por grirarias emocionais e manifestaçóes físicas. No geral, porém, o novo movimento de reavivamento, que por dtcadas continuou enrre altos e baixos, foi menos marcado pcir esses sintomas de exalta$áo exagerada do que os despertamentos

766

HiSTdRiA DA IGREJA CRISIÃ

do século dezoito. O impacto do reavivamerito ficou evidente no declinio da "infidelidade", na elevaçáo do nível moral na fronteira e no firme crescimento das igrejas batista, metodista e presbireriana. Um produto do despertamento, fadado a se tornar o expoente maior d o reavivamento através de uma longa carreira, foi um jovem advogado do interior do estado de Nova Iorquc, Charles Grandison Finney (1792-1875). Convcrrido em 1821, dedicou-se a viagens evangelísticas, e apesar da falta de preparo universitário ou teológico formal, foi ordenado pelos presbiterianos. Logo ocorreram grandes reavivamen~ossob sua intensa e fervenre pregaçáo. Ele organizou os métodos reasrivalistas em um modelo ordenado que ficou conhecido como os "novos meios". O s meios - tais como "horas impróprias" para culcos, reuniões "prolongadas", uso de linguagem acre e coloquial, referência por tiome a indivíduos nas oraçóes e nos sermóes, reuriióes dc exame, o "banco dos aflitos" - obviamente, náo eram realmente novos. 4 novidade era a integração deles em um sisecma desenhado para dar resultados. A eficlícia dessa abordagem foi demonstrada espetacularmente no reavivamento de 1830-1 83 1 em Rochester, Nova Iorquc. hpcsar da oposi~áodaqueles que temiam ' as o emocionaiismo da fronreira e os "novos meios" de evangeiizaqao, Finney i111'a d lu cidades do leste. Seus métodos já testados logo foram amplamente aceitos e copiados. A intensidade e frequêlicia dos reavivamentos declii~ouna década de 1840, mas reacendeu-se novamente num crescendo em 1857-1858, quando um reavivamenro de arnplirude rlacional arrastou milhares para as igrejas. Reuniões diárias para oraqáo, frequentemente em horas incomuns, e liderança leiga foram traços característicos desse ápice na história dos rea~ivamentos. Entrementes, a partir do início do século, as energias produzidas pelos reavivamentos eram canalizadas para causas evangélicas por intermédio de uma rede cm conseance expansão de sociedades voluntárias. Frequentemente a organizaçáo começava no nível local, depois as pequenas unidades se reuniam em sociedades eseaduais e, por fim, as grandes sociedades nacionais completavam o modelo. Quer a preocupação destas sociedades voluntárias fosse por missóes nacionais ou por missóes estrangeiras, elas frequentemente seguiam linhas denominacionais. Assim, qua~ido um grupo de estudantes do Williams College, sob a liderança de Samuel J. Milis (1783-18 18), ofcreccu seus serviços às autoridades congregacionais como missionários na Índia, foi precipitada, em 18 10, a formacáo da Junta Americana de Comissários para Missões Estrangeiras. Era uma sociedade basicamente congregacional, ain-

PERIODO YII

O ERISHANISMO MODERNO

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da que presbiterianos e reformados tenham-na apoiado por algum tempo. Ela enviou seus primeiros cinco missionários em 1812. No caminho para a Índia, dois deles, Adoniram Judson (1788- 1850) e Luthcr Rice (1783- 1836), concluíram que o batismo de adultos por imersáo era a maneira bíblica. Isto, por sua vez, precipitou a organizaçáo da Convenção Missionária Geral da Denominacáo Batista nos Estados Unidos para Missóes Estrangeiras. Outras denominações também fundaram sociedades missionirias: os presbiterianos em 18 17, os metodistas em 18 18, os episcopais

cm 1820. A Sociedade Missionária Nacional Americana foi instituída em 1826 para implemcntar o Plano de União. Também foram organizadas sociedades voluncárias para a discribuiçáo de bíblias e folheeos, para a promocão de interesses educacionais e escolas dominicais e para a direção de esforcos reformistas e beneficentes. As sociedades nacionais geralmente eram iiáo denominacionais, buscavam o apoio de evangélicos de diversas origens. Dentre elas se contavam a Sociedade Americana de Educacáo (fundada em 1815), a Sociedade Bíblica Americana (em 18 16), a União Americana de Escolas Dominicais (em 18 17-1824), a Sociedade Americana de Folhetos (em 1825). Seu modelo de organizaçáo foi conscientemente influenciada pelo exemplo britânico. Na década de 1 830 tais agências cresceram rapidamente em ramanho e aumentaram sua assistência e eficácia. Suas reunióes anuais, os "aniversários de maio", passaram a ser realizadas

simultaneamente, na cidade de Nova lorque. Seus membros e diretores eram em parte os mesmos, de modo a formarem o que foi denominado "império benevolente". Seu controle estava em grande parte nas mãos de um grupo de leigos abastados, predominantemente presbiterianos ou congregacionais, dentre os quais se destacavam os irmãos Arthur (1786-1 865) e Lewis (1788-1873) Tappan. Tais pessoas reconheceram o poder de Finney engajaram-no em suas cansas e quando sua má saúdc exigiu a diminuicáo de suas viagens, chamaram-no para um pastorado em Nova Iorque. Ein 1834 e 1835 Finney publicou suas Cozfivências sobve Reuvivamentos Re-

ligiosos, apresentando seus comprovados métodos de promover reavivamentos. Em 1835 ano ele foi para o novo Oberlin College, em Ohio, onde, como professor de ceologia e depois presidente, se tornou, sem demora, o principal expoente e o maior teórico do reavivameilto americano. Sua volumosa obra, Confirências sobre Teologia

Sistemá~ica,publicada pela primeira vez em 1846-1847, apresentou uma teologia de reavivamento, na qual a prova para qualquer dourrina seria se ela contribuía ou não para a salvacão. Finney foi um líder com muitos seguidores - exércitos de reavivalistas

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HISTbRIA DA IGREJA CRISTA

congregacionais mais antigas e de vários homens ilustres do leste de Massachusetts. Mas os ortodoxos, estimulados pelo ativo Lyman Beecher, que em 1826 sc rornou pastor da Hanover Street Church, em Boston, renovaram o uso dos reavivamencos e conseguiram restringir o avanco dos unitários e limitá-los, em grande medida, ao leste da Nova Inglaterra. Náo houve nenhuma separa~áoaberta em Connecticur, mas os calvinistas conservadores remiam que a teologia de New Haven tivesse ido longe demais na modif i c a @ ~do calvinismo para adequá-lo ao reavivamento e confrontar as objeçóes unitárias. Dai, em 1833 foi organizada uma nova associaqáo ministerial "orrodoxa", e no ano seguinte foi fundado um novo seminário em Hartford. No entanto, ambos os grupos em Connec~icutcontinuaram a usar reavivamentos. Horace Bushneli (1802-

1876), pastor brilhante, criticou ponderadamente o sistema de reavivamentos na sua publicacáo mais influente, aparecida pela primeira vez em 1847, Educayáo Gistá. Nela ele insistia no suave desdobrar da natureza cristá da criança, sob influências apropriadas, como a maneira normal de ingresso no reino de Deus, em vez da conv e r s á ~esfotcada que as tradiqóes pietista e merodista consideravam como a única experiência legítima. Teólogo capaz, Bushnell muico fez para mudar a ênfase do dogma exato, demonstrável ao intelecto, para o sentimento religioso, agitando o coraqáo e a mente das pessoas. Tais idéias, influenciadas pelo romantismo e refletindo a obra de Samuel Taylor Coleridge (ver VII:13), foram apresentadas em livros como Deus em Clj-isto (1849) e A Aidtu~rvezne o Sobrenaturul(1857).

Os presbiterianos também foram lacerados pela controvérsia. Aqueles que, frequentemente oriundos de conrexto escoro-irlandês, defendiam firmemente os padróes confessionais e as tradicóes de um ministério culto, ficaram preocupados com os reavivalistas da fronteira, cujas posturas doutrinárias e padrões de ordenaçáo eram mais frouxos. As tentativas para refreá-los, porém, apenas conduziu ao cisma. Em 1803, Barton W. Stone (1772-1844) levou um grupo de presbiterianos evangélicos a abandonar o sínodo do Kentucky. Essas "Novas Luzes" Iogo abandonaram qualquer denorninaçáo "sectária", desejando ser conhecidos simplesmente como "crisráos". Alguns anos mais tarde, tenrativas para disciplinar reavivalistas presbiterianos de Cumberland (Kenrucky) provocaram um rompimento

explícito e a formaçáo do

que veio a ser a Igreja Presbiteriana de Cumberland. Alguns dos grupos presbirerianos menores também foram atingidos pelo cisma. Thomas Campbell (1763-1854),ministro presbiteriano da separacáo do norce da Irlanda, foi para a América em 1807 e

vtnroon vil

O ERISTIANISMO MODERNO

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começou a trabalhar no oeste da Pennsylvania. Sua disposiçáo em acolher à comunhao presbiterianos de rodos os matizes provocou críticas e ele foi disciplinado pelo Presbitério Separado de Chartiers. Campbell sentiu-se no dever de protestar contra tal sectarismo e afirmar como

de todo discipulado cristáo apenas os ccrnios

Iircrais da Bíblia, conforme ele os entendia. Ele rompeu com os presbiterianos separados mas continuou a trabalhar no oeste da Pennsyl~ania,anunciando como seu princípio: "Onde a Escritura fala, nós iamos os; onde ela cala, nós calamos." Ele não planejara uma nova denominacáo, mas a união de todos os criscáos sobre essa base biblica, sem provas adicionais de crença ou rito. Em agosto de 1809 Campbell orgaiiizou a Associagáo Criscá de Washington - assim chamada pois se originou no condado de Washiilgton, na Penn~~lvania - e preparou para ela a "Declaraçáo e Aiocuçáo", que desde entáo rem sido considerada como um documento f~indamentaldaquilo

que seria conhecido como o movimento dos Discípulos. No mesmo ano, o filho de Campbell, Alexander (1788-1866), foi para a América e logo superou seu pai em fama, como defensor dessas idéias. A despeito de seu desprezo para com o sectarismo, os Campbcll organizaram uma igreja eni Brush Run, P e n n ~ ~ l v a n iem a , maio de 181 1. Desde o inicio celebravam a ceia do Senhor todos os domingos. Mas surgiram dúvidas quanto aos fundamentos bíbIicos do batismo infanril. Em 1812 os Canipbell e alguns de seus acompanhantes foram batizados por irnersáo. Um ano depois a igreja de Brush Run se filiou à Associaçáo das Igrejas Batistas de Redstone. Porém, logo surgiram pontos de desacordo com os batistas. O s C:ampbell discordavam do calvinis~noestrito dos baristas. Para eles, o Antigo Testamento tinha muito inenos autoridade que o Novo. Para os batistas o batisino era u m privilégio do pecador já perdoado; para os Campbell era uma coildiÇáo para o perdáo. Ademais, os Can~pbell,sem serem sob nenhum aspecto uni~ários,foram influeiiçiados até certo ponco pelo pensamento d o Iluminismo, e se recusavam a empregar outras expressões que náo as bíblicas com refcrgncia ao Pai, ao Filho e ao Espírito Sa~ito.O resulrado foi se afastarem dos batistas, afastamenro que se pode dizer foi complerado c n ~1832, quando os seguido-

res dos Campbell se fundiram com a massa dos acompanhantes de Barton Stone para formarem os Discípulos de Cristo. Talvez fossem na época virite c cinco mil, mas

antes

do fim do século já passavam de u m 1niIháo.

A perda dos reavivalistas mais extremados dos principais grupos presbicerianos de forma alguma encerrou a tensão quanto ao reavivamento dentro daquela cornu-

RlSTÓRlA DA IGREJA CRISTA

7.72

nháo. O s presbiterianos da "Nova Escola" que simpatizavam com a teologia de New Haven e trabalhavam sem restrições com o império benevolente, foram fortalecidos pela aplicaçáo do Plano de União, que trouxe pessoas de formação congregacional à jurisdiçáo presbiteriana. Em 1837 os presbirerianos da "Velha Escola" estavam suficientemente fortes para expulsar da igreja os presbitérios suspeitos, assim dividindoa em duas. A tensáo teológica e a controvérsia qlianto às sociedades voluntárias, as quais náo se encontravam sob o controle direro da igreja, foram motivos centrais na divisáo.

A Sociedade dos Amigos também se dividiu. Joseph John Gurney (1788-1846), um quacre inglês, lidcrou um movimento evangélico favorecendo algumas ênfases e técnicas reavi\raIistas. Elias Hicks (1 745-1830), de Long Island, foi a figura central da reação liberal. A "Grande Separagáo" ocorreu em 1828-29, terminando em grupos isolados - "ortodoxos" e "hicksistas".

A ressurgência do reavivamento também produziu controvérsia nos círculos luteranos. A principal voz no luteranismo na primeira metade do século dezenove foi Samuel Simon Schmucker (1739-1873). Ele favorecia um "luteranismo americano", no qual caberiam algumas práricas reavivalisras. O s luteranos de inclinasáo cotifcssional ficaram perturbados, e o Sínodo Geral (ver VII:10) no qual Schmucker era preeminente, padeceu com dissensões e rompimentos, especialinentc quando as ondas de imigrantes alemães e cscandinavos traziam muitos lutcranos que julgavam estarem as igrejas americanas afastadas da verdadeira tradi~áoluterana. Como a imig r a ~ ã ofortaleceu a reapari~áoconfessionai, declinou a influência de Schmucker. Em 1867 o Sínodo Geral eilconrrou rivai no Concílio Geral, e o semiiiário de Schmucker em Gettysburg (fundado em 1826) foi igualado pelo de Mounc Airy, Pennsylvanilia

( 1 864). O vulto central no desenvolvimento posterior foi Charles Porterfield Krauth (1823-1 883), aumr de A Rrfirilzo Co~zsei.vado~-a e szia Yéoiogin (1871). Ern algunias denominacóes náo ocorreu cisma declarado por causa do reavivamento, mas houve considerável tcnsáo interna. Nas igrejas reformadas alemás houve fori-eresistência por parte dos expoentes cio "sjsierna do cacecisrno" a expansáo do "sistema do rea~livarnenro".Preeminentes entre aqueles cram o teólogo lohn X! Nevin (1803-1 886) e o historiador eclesiástico Philip Schaff (18 19- 18931, do seininário de hlercersburg, Pennsylvania. Mas a teologia de Mercersburg fez pouca cuntribuiçáo direta; sua significação mais ampla foi redescobcrta somenre

110 século

vinte. Na Igreja Episcopal Protestante homre pouco reavivamento do tipo vigente,

PERIOIO YII

O CRISIIARISMO MOOERMO

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mas havia um forte partido da rendência igreja baixa, evangélico. Nesse p r t i d o , o bispo Alexander Viets Griswold (1 766- 1843), da diocese do leste, foi muito importante. O s primeiros anos do século assistiram ao ressurgimento do partido da tendência alta igreja, sob a liderança do bispo John Henry Hobarr (1775-1830), tendência que se fortaleceria com o surgimento do anglo-catolicismo (ver VII:13). A Igreja Episcopal era pequena nesse tempo, mas cresceu continuamente no decorrsr do século dezenove, especialmente nos centros urbanos. O s cismas denominacionais mais sérios do século dezenove ocorreram em conexáo com a luta concra a escravidáo. A crescente antipatia para com a escravidáo conduziu à orgairizaçáo da Igreja Me~odistaWesleyana da América em 1843, baseada rio princípio de que nenhum membro poderia possuir escravos. A questão estava porranto no primeiro plano quando a Conferência Geral da Igreja Metodista Episcopal se reuniu em 1844, e logo surgiu uma disputa sobre a rnanutengáo de um bispo possriidor de escravos. O s sentimentos nortista e sulista estavam irremediavvelmente divididos. A conferência adotou um relatorio permitindo a divisáo da igreja, resultaildo disso a constituição, em 1845, da Igreja Metodista Episcopal do Sul. Na mesina época, uma divisáo sernelhai~reseparou os batistas do norte e do sul. A Convetqáo Batista do Estado do Aiabarna exigiu, em 1844, que a Junta de Missóes Estrangeiras não fizesse discrimina~áocontra os possuidores de escravos na nomea-

çáo de missionários. A Junta declarou que não tomaria neiihu~iiaatitude que implicasse apoio à escravidáo. O resultado foi a divisão das igrejas r a formação da Convenção Batista do Sul, em 1845. Conforme a Guerra CiviI (1 861-1865) se aproximava, outras igrejas sc dividiam.

A Içrcja Presbiteriana da No7.a Escola se dividiu em 1857 e a Velha Escola eni 1861. As duas alas s~llistasse fundiram em 1864 sob a designac;áo de Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, e as duas alas nortistas se u~iirariiem i 869-70 sob o nome de

Igreja I'resbiteriana 110s Estados Unidos da Amtrica. A Igreja Episcopal Protestante esteve dividida apenas durante a guerra, tornando a se unificar quando ela terminou. As igrejas auxiliaram suas respectivas regiões durante a gucrra. Ap6s a luta, a grande maioria dos cristáos negros se tornaram membros de seus próprios grupos organizados independentemente,

a Convenção Batista Nacional e as igrejas

Metodista Episcopal Africana e Mtrodista Episcopal Africana dc Sião, um pouco menores. hlçunias das priiicipais deriornina~óesbrancas possuíam expressivas minorias negras, c houve corisiderivcf aumento n(i nú~iierode seitas negras, especialmerite

nas áreas merropolicanas.

A fundacão de muitos novos seminários e faculdades foi estimulada pelo despertamento religioso, pelas controvérsias e pelo surgimento de novas denomina-

cões. O séciilo dezenove presenciou o início de c e n t e n a s d e faculdades denominacionais, inuiras de vida efêrnera. O propósito principal destas escolas era auxiliar no preparo de homens para o ministério. Mas a necessidade por preparo para o ministério ainda mais especializado era sentida cada vez mais. Em 1784 a Igreja Reformada (Holandesa) instituiu o preparo ministerial, o qual mais tarde desenvolveu-se em um seminário teolcigico em New Brunswick, New Jersey. E m 1794 os Presbiterianos Associados (depois Unidos) começaram a instrucáo teológica n u m seminário que mais tarde se fixaria em Xenia, Ohio, de onde tirou seu nome, e finaIrnente em Pittsburgh. Os luteranos fundaram uma insrituiçáo similar em 1797, localizada cm Harnvick, Nova Iorque. Em 1807 os rnorávios fundaram uma escola teológica em Nazareth, Pennsylvania, posteriormente transfcrida para Bethleliem. O seminárici teológico melhor equipado e, em ~niiitosaspectos, o iniciador dc uma nova era, foi aquele fundado e m 1808 pelos congregacionais em Andover, Massachusetts. Quatro anos depois os presbiterianos fundaram u m seminário em Princeton, Nova Jersey Os congregacioriais fufuiidaram o Seminário Teológico de Bangor, no Maine, em 18 14, e cinco anos depois, sob a influência unitária, foi aberta a EscolaTeolbgica da Universidade Harvard. O s bacisras iniciaram um seminário em Hamilton, Kova Iorque, em 1820, enquanco os presbiterianos fundaram uma escola cm Auburn, Nova Iorque, na mesma tpoca. Em 1822 os congregacionais abriram a

Escola ?eológica da Univrrsidade E l e . Assim as ilistituicóes para o prcparo ministeria1 se multiplicaram rapidamente e por volta de 1860 haviam aumentado para cinqüenta. Na primeira parte d o século dezenovc, no clima emocional estimulado pelo dcspertamcnco, surgiram vários movimentos que representavam signiiica~iirosafastamentos ou distorcóes d o modelo protestante evangklico. Uni desenvolvimento peculiar da interpretaqáo profttica foi o de William Millcr (1782-1849), fazendeiro batista de 1.05s. Hampton, Nova Iorquc. Iniciando em 1831, ele pregou assiduamente, afirmando, baseado em cálculos feitos no livro de Dunicl, que a segunda vinda de Cristo e a inauguracáo do seu reino milenário ocorreria entre 1843-44. Ele conquistou milhares de seguidores. A despeito do fracasso de sua prediçáo, em 1845 seus discípulos realizaram uma conferência geral de adventisras, como a si mesmos se

rriloeo vil

O CRISTIANISMO MODERNO

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denominavam. Grupos de seus discípulos perduram aré hoje, alguns deles aderindo à observância do sétinio dia. O mais notável dentre estes foi formalmente organizado

em 1863 como Adventistas d o SPtimo Dia. A fé adventista, muitas vezes combinada com ênfases pentecostais ou perfeccionistas (santidade), teve papel importante na formação de novas seitas na América, no fim do século dezenove e início do sécuio vinte. O movimento que posteriormente se tornou conhecido comoTesternunhas de Jeová, fruto peculiar do ensino adventista, começou no final da década de 1870, sob a liderança de Charles Taze Russell (1852-1916). Um movimento nutrido na atmosfera reavivalista do "super ardente" interior d o estado de Nova Iorque, mas que logo assumiu seu próprio e altamente peculiar rumo foi o mormonismo. Foi fundado por Joseph Smith (1805-1 844), que dizia ter desenterrado nas ~roximidadesde Manchester, Nova Iorque, em 1827, um volume de folhas de ouro, o Livi-o de Mármon. Tal livro era um complemcnco da Bíblia, escrito com letras misteriosas que Smith pode traduzir utilizando óculos mágicos, mas cujo original foi arrebatado por um anjo. Nesse livro Smirh é proclamado profeta. A primeira igreja mórmon foi organizada enl 1830, ein Fayette, Nova Iorque. Mais tarde a maioria de seus membros foram recrutados nas cercanias de Kirtland, Ohio, onde Brigham Young (1 801 -1877) se filiou a essa igreja. Em 1838 os líderes mórrnons se mudaram para Missouri, e em 1840 fundaram Nauvoo, Illinois. A despeito do

Livra de Mó~monprescrever a monogamia, Smith proclamou ter recebido uma revclaçáo, em 1843, estabelecendo a poligamia. A hos~ilidade~ o p u l a rculminou com seu assassinato no ano seguinte, pela multidão enfurecida. Então a igreja ficori sob a liderança de Brigham Young, organizador e líder da maior capacidade. Sob seu coniando os mórmons seguiram para Salt Lake, em Utah, e ali estabeleceram uma comunidade de g a n d e ~ r o s ~ e r i d a dmaterial. e Em rirtude da pressáo governamental, a poligamia foi oficialmente abandonada em 1890. Os mórmons têm-se revelado missionários infatigáveis, recrutando muitas pessoas na Europa e implailrando sua igreja 110s mais diversos países. Seu sistema de supervisáo econômica e social tem sido nocável. Seu sistema teológico ímpar está baseado em três fontes de r e ~ e l a ~ áao : Bíblia, o Livro de Mórmon e os livros registrando as revelaçóes progressivas diretas, alegadas como tendo sido recebidas de Deus por Joseph Smith, especialmente o "Doutrinas e Pactos". Além da principal Igreja de Jesus Crisro dos Santos dos Últimos Dias, com sede em Salt Lake City, Utah, há um grupo muito menor com sede

em Xndependence, Missouri.

HISTÓRIR DA IGREJA C R I S I I

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N o período entre a Guerra Civil e a Primeira Guerra Mundial, a ênfase reavivalista d o protestantismo americano continuou vigorosamente. O evangelisca leigo Dwight

L. Moody (1837-1899) foi seu expoente mais notável. Organizador infatigável e pregador agressivo, Moody foi uma força poderosa na vida protestante. Scus mCtodos de reavivamei~toforam largamente copiados e seu entusiasmo missionário contribuiu

significativamente para o crescime~itocorirínuo da obra missionária n o

es-

trangeiro. hlas a atmosfera intelecrual d o final d o século dezeiiove era de rápidas m u d a n ~ a s ,e muitas novas opinióes desafiavam frontalinente as idiias acalcritadas pelos protestanres conservadores. O impacto das re\~oluçóesno pensamento cieritífico e histórico estava reE~zetidoos concei~osdominantes da natureza do mundo e de

sua história. Aqueles que foram educados nas noçóes bíblicas tradicionais sobre a Criação foram ahaIados pelas novas idiias oriundas dos geólogos por um lado c, por outro, d a crítica bíblica. Muitos protestances reagiram apegando-se com rigidez ainda maior às suas noqóes de infalibilidade bíblica. Eles esrabelecerzm uma série de iniporrantes conferencias bíblicas para defendererii suas opiniões: Niagara, Winoria e RockY Mouritaiii. C m i-csuriiu popular de suas nocóes tornou-se conhecido como a i Escritura, a divindade os "cinco pontos d o Lndanieiitalisrno": a iilerrância ~ ~ c r bda de Jesus, o nascimento virginal, a expiaqáo subsíieutiva e a ressurrei~áofísica e o retorno corpórco de Cristo. A causa conservadora foi forcalccida por conferencias profhicas, pela fiindacáo de cscolas bílilicas e pelas atividades de inúmeros rcavil. I'iscas itineranres. No final do século de7eno~ee início do vinte, surgiram diversos movimentos ~eolo,rricarncntecoriseri~adoresque engendraram novas famílias denominacionais nos Esrailos Unidos e, por irirerr-nédio de seus empreer-idirnentos n~issionários,rambém cni outros países. A rradiqao merodista no início afirmava a possibilidade de perteicão na vida cristá (lrer VII:?); conforme esra ênfase declinava no stculo dezenove, eriirii forriiadas diversas reunióes de acampamento para santit:cacáo

[iinliness],

enfarizando rigor moral e o p o s i ~ á oàs tendkncias libcrais. K a década de 1850, virios dos merodisras da sanrificaqáo [inetudistas h o l i i i t j ~ ]junramctit-e , com oucros di: contcsros denominacioliais diferentes, forrnarani corigregacóes separadas que se fundiI-am em várias combirlagóss fòriliaildo um arco de dcnominaçóes de santificayao, sendo a mais numsrosa a Igreja d o Kazareno. O Exército da Salvaçáo (ver VII:13), que chegara aos Estados Cnidos pro.i~enientcda Inglarerra eir1 1880, foi outro notável grupo de sa~itifica~áo, engajado principalnie~ireno ministério aos moradores em

~ ~ n i o v11 oo

O CRISIIANISMO MODERNO

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favelas. As igrejas da santificaçáo forneceram, no início do século vinte, muitos dos líderes de outro movimento, o penrecostal. O s dois movimentos eram semelhantes em configuracáo - biblicismo conservador, pré-milenarismo, moralidadc rigorosa e cura

fé - mas a doutrina pentecostal peculiar da descida do Espírito Santo evi-

denciada pela "glossolalia", ou falar em línguas, rapidameilce distinguiu nitidamente o novo movimento. Rapidamente, também, o movimento pentecostal ultrapassou numericamente as igrejas de santificaçáo. Uma série de reunióes de reavivamenco conduzidas por um evangelista negro, William J. Seyinour (?-1923),na rua Azusa, em Los Angeles a partir de 1906, forneceu um i n ~ p u l s opara a escalada d o pentecostalismo em um fenômeno dc ahrangência mundial. Ali muitos receberam o que sinceramente acreditavam ser o batismo do Espírito Santo, uma "terceira bênç5o" além da justificaçáo e da sa~itifica~áo. O rcavivamento perdurou por três anos, e atraiu centenas e depois milhares de vários pontos dos Esrados Uilidos. Muicos que se tornariam líderes no novo movimento pentecostal receberam a terceira bênçáo ali; entre eles havia tanto brancos como negros. C o m o fora o caso ein muitos reavivamentos anteriores, os relatos do que estava acontecendo variavam consideravelmente e o iriovimenco se tornou alta~iientecontroverso. Alguns acreditavam que era obra do Espírito Santo, enquanto outros julgavam ser um absurdo emocional. Pessoas do exterior também foram atraídas para a rua Azusa e o pentecosraIismo logo se tornou um fenômeno mundial chegando 5 Europa, Ásia, hfrica e América do Sul.

Em seus primeiros anos como um movimento crescente nos Estados Unidos, o movimento náo estava nitidamente definido; muitos daqueles tocados pela agicaçáo pentecostal permaiieceram no início em suas antigas igrejas. Logo, porém, comeqaram a se formar igrejas penrecostais que depois se dividiram em um arco de denomi-

naqóes sob a influência de três controvérsias, duas teológicas e uma salientemente racial. A partir de 1910, muitos pentecostais passaram a rejeitar a doutrina da tercci-

ra bênçáo e a ensinar que a santificaçáo niío estava separada da juscificaçáo mas que ambas eram parte do ato de conversão baseado na "obra completa de Cristo

110

Calvário", de forma que o batismo no Espírito Santo era a segunda - e última

-

bênçáo. Estas novas idéias se difundiram rapidamente, e conduziram à formaçáo, em

1914, das Assembléias de Deus, que logo se tornariam no maior grupo pcnrecostal dos Estados Unidos. A nova denominaçáo Iogo foi dilacerada por uma segunda controvérsia teológica que surgiu quando alguns começaram a ensinar que os apósí.010~ batizaram seus conversos em nome de Jesus apenas, e que há apenas uma personali-

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HISTOR1A DA IGREJA CRISTd

dade ein Deus, Jesus Cristo, sendo os termos Pai e Espírito Santo somence rículos. Essc movimento Jesus Apenas, ou Nome de Jesus, cujos seguidores romperam com a trinitária Assembléias de Deus para formarem as Assembléias Pentecostais do Mundo, eventualmente se desenvolveram em uma faniília de denomina~óes.A terceira cotitrovérsia foi principalmente racial quando o movimento que no início fora bastante interracial sucumbiu aos limites de cor. Entre o crescente número de grupos pentecostais trinicários, por exemplo, as Assembléias de Deus permarieceram amplamente brancas, enquanco que a Igreja de Deus em Cristo, liderada por Charles H. Mason (1866-1961), tornou-se uma igreja negra. O primeiro entre os principais dos grupos Jesus Apenas, as Assembléias Pentecostais do Mundo, no início era interracial, mas em 1924 os brancos se retiraram para outros grupos. Enquanto muitos protestantes foram assiiri orientados para padrões religiosos conservadores, outros reagiram de maneira completamente diferente, procurando reter a orientaçáo evangélica, mas refazendo sua fé de modo a ficar em sintonia com o pensamento cicnrífico e histórico da época. Extraindo muiras de suas idtias do movimento de Ritschl na Alemanha e do movimento de igreja ampla na Inglaterra (ver VII: 12), rravaram longas batalhas para a aceitaçáo do pensamento evolucionista

e da maneira crítica de abordar a RíbIia. Muitas seminários defenderam a abordagem liberal; a "orcodoxia progressiva" de Andover, por exemplo, revelou ser apenas uma cransicáo para o liberalismo.

Unia série de julgamentos de heresias marcou o surgimento da teologia liberal. Especialmente importante foi a deposição do professor Charles A. Briggs (184 1-

1913) do Union Theological Seminary, de Nova Iorque, pela Assembléia Geral Presbireriana, em 1893. Durante a luta, o Union rompeu seus laços com os presbiterianos e se apresentou como defensor da linha liberal. No início do século vinte os liberais haviam conquistado seu lugar em muicas denomina~óes.Nas décadas seguinres, conservadores militantes fizeram um

esforce decidido para expulsj-

10s através da amarga controvérsia fundamentalista-modernista. Por volta de 1930, praticamente fracassados, procuraram se reunir em igrejas independentes e denominacóes dissidentes. O s fundamentalistas riveram como líder o professor presbiteriano

J. Gresham Machen (1881-1937) e os liberais o ministro batista Harry Emerson Fosdick (1878-1969).

O período de 1865 a 1914 presenciou crescente reconhecimento da obra feminina nas igrejas protestantes. 0 s congregacionais fundarairi, em 1868, uma Junta Fe-

P E R ~ UII ~ ~ ~ D

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minina de Missóes Estrangeiras. Seguiram-nos a Igreja Metodista Episcopal, no norte, em 1869; os presbiterianos do norte, em 1870; e a Igreja Episcopal Protestarite, em 1871. Organizacóes similares para as rnissóes nacionais e esrrangeiras se tornaram praticamente universais no protestantismo ariiericano. Há muito tempo as mu-

lheres eram clcgíveis nas conirençóes representativas das igrejas batista e coligregacional.

Em 1900 elas obtiveram o direito de ser eleitas às conferências gerais mcrodistas. Algumas denominaçóes as ordenaram ao ministério, principalmen~ebatistas, congregacionais, discípulos de CIristo, unitários e universalisras, como também os novos grupos de santifrcaçáo e pentecostais.

O mesmo período também foi marcado por cresccntc atençáo por parte das igrejas à sua mocidade. O movimento não denominacional Esforco Criscáo foi fundado pelo congregacional Francis E. Clark (1852-1927), em 1881. As denomitiacóes adotaram a idéia, e em 1889 foi organizada

elos metodistas a Liga Epworth; em 1891

foi formada a União da Mocidade Batista; e em 1895 foi estabelecida a Liga Luterana, para jovens lureranos.

Um aspecto imporrante da vida religiosa depois da Guerra Civil foi o contínuo aumenro na demarida por iim ministério culto liaqueles grupos que formalmente

haviam demonstrado pouco interesse por tal preparo. Essa demanda foi acompanhada por provisáo constantemente crescente, uma vez que os antigos seminários teológicos continuamente ampliaram suas instala~óes,aumentaram o nú~ilerode seus docentes e estenderam scus currícuios. Ao mesmo tcmpo, foram fundados muitos novos seminários. Em 1900 funcionavam mais de cem cscolas teológicas protestantes.

No final do stculo dezenove, os movimentos religiosos que têm sido denornina-

dos "Novo Pensamenro", "Cura pela Mente" e "Harrnonista" exerceram considerável influência dentro de muitas igrejas protestantes, e também provocaram a formacão de alguns novos grupos religiosos.' Not3vel entre eles foi a Igreja de Cristo (Ciencista), ou Ciência Cristã. Sua fundadora, Mary Baker Eddy (1821-19 10), que fora por muito tempo assolada por enfermidade, afirmara que, após uma qucda no gelo em 1866, ela fora curada extraordinariamente e conduzida à descoberta de como estar

em boa saúde e como curar outros. Em 1875 ela publicou a primeira ediçáo de

'Ver Sydney E. Ahlsrroni, A Re(fior4i Hi~toryIlftbeA~n?ricniaPeopir ( L \.olumes, Gardrn Civol. 2 , cap. 60, pp. 528-548, "Harmonia1 Rcligion since the Larer Ninetrenth Crncury".

NY,1375),

780

HISTÒRIA DA IGREJA CRISTn

Ciê~cidr Sadde com Chave para as E~ci.zturas.Naquele mesmo ano foi organizada uma sociedade Cisncia Cristá e em 1879 a nova igreja recebeu alvará de funcionamento em Boston. Ela espalhou-se para outras cidades e nações, alcançando um tamanho estimado em cerca de cem mil membros quando da morre de sua fundadora. Surgiram diversos outros movimentos algo similares, alguns deles ramifrcacóes da Ciência Cristá. Em 1889 Charles e ~ M ~ r tFillnlore le fundaram a Escola de Unificaçáo do Cristianismo, em Kansas Ciry, Missouri. Buscando aprofundar a vida de oração e sua eficácia nas igrejas c na sociedade maior, a Unificaqao no início resistiu se desenvolveu em uma a se tornar rima nova igreja; não obstante, ela ~a~arosarnence denominacão autônoma. O s anos finais do século dezenove presenciaram o despertar de profundo interesse social por parre de muitos cristáos. O "evangelho social" foi promovido por líderes como os ministros liberais Washington Gladden (1 836-191 8) e Wdter Rauscheiibuscl~

(1 861- 19 18). Ele valeu-se do cristianismo social da Grá-Rretanha e do continente europeu (ver VII: 13, 14), como tambim do perisarnento social de vanguarda americario. No começo do século dezenove o proces[antismo expressara suas preocupacões sociais principalmente e m termos individuais, insistindo ein beneficência e reforma moral. O evangelho social, porém, centrou-se nos aspectos corporarivos da vida moderna c na consecução da justiqa social. Dedicava g a n d e atençáo às relaçóes entre capital e trabalho, c o movimento influiu na diminuigo do número de horas diárias de trabalho. Devotado à edifrcaqáo do reirio de Deus na terra, o evangelho social foi especialmente imporrante na vida e obra dos presbiterianos, batisras e metodistas do norte e entre os congregacionais e episcopais. Devido iinfluência do cristianismo social, foram adicionados cursos de Crica social aos currículos dos seminários e cstabelecidos nas denominacóes departamentos de acáo social. Foram estabelecidas, sob auspícios protestantes, diversas instituiçóes sociais em áreas marginalizadas; foram construídas muitas igrejas insritucionais para prestarem senriço social às massas urbanas. A ênfase social foi fortemente sentida no campo missionário, onde as missões agrícolas, médicas e educacionais se expandiram.

PER~OUOYII

O EAISTIANISMO MODERMO

Capítulo 1 6

O Catolicismo Romano no Mundo Moderno Nos meados do século dezessete a Contra-Reforma perdera sua força. Tal força residira no poderio espanhol e no zelo dos jesuítas. A Espanha saíra da Guerra dos Trinta Anos despojada de seu poderio. 0 s jesuítas, embora mais poderosos que nunca nos conselhos da igreja cacólica romaria, haviam se tornado mais mundanos e

conservado pouco do seu primitivo zelo espiritual. Nenhum dos papas dos séculos dezessete e dezoito foi homem com capacidade de iiderança. Diversos, como Inocêncio

Xi (1676-1 689), Inocêncio XII (1691-1700) ou Bento XIV (1740-1758) possuíam excclçnte caráter e intenção, mas náo sabiam liderar. A vida da igreja católica era de debilidade crescente diante das pretensóes cada vez maiores dos governas ci1.i~católicos. Não era mais possível um ataque realmente eficaz ao protestantismo, exceto quando este existia em países predominantemente católico-romanos, como na Fran-

ça. Na Franca do século dezessere, a posiçáo catblica foi fortalecida pela consecucáo de um alto nivel de piedade carólica. Em 161 1, Pedro dc Bérulle (1 575-1629) fundou a Congregacáo do Oratório francesa, p n d e inspiradora de espiritualidade. A obra de BérulIe influenciou hndadores de novas ordens e uiitores de escritos espirituais como Sáo Francisco de Sales (1567-1622) e São Vicenre de Pauln (1576?-1660). Sob Luís XIV (1643-1 71 5 ) a monarquia francesa buscou uma polírica ditada pelo absolutismo real. Contrariamente i s pretensões papais, Luís XIV reivindicou a posse pela coroa de toda renda dos bispados vacances e favoreceu, em 1682, a proclamaçáo das "Liberdades Galicanas"

elo clero francês. Segundo elas os governantes

civis tinham plena autoridade em assuncos temporais, os concíIios gerais eram superiores ao papa, os costumes da igreja francesa limitavam a interferência papal e o papa não era infalível. Isso provocou uma controvérsia que foi resolvida em 1693, e com tal sabedoria que o rei manreve as rendas discutidas, mas concordando em ser menos insistente na afirmaÇáo das liberdades galicanas, embora ~ u d e s s e melas ser mantidas e ensinadas. Com respeito a seus próprios súditos, a política de Luís XIV foi determinada por sua concepçáo de unidade nacional e pela influência jesuita, especialment-e após seu casamento com Madame de Maintenon, em 1684. Um ano depois ele revogou o

AISTORIR DA IGREJA CRISTI

782

edito de Nantes (ver VI:12) e declarou ilegal o protestantismo, sujeito hs mais severas

penas. O resultado final disso foi desastroso para a França. Milhares de seus cidadáos mais industriosos emigraram para a Inglaterra, Holanda, Alemanha e América. As antigas aliancas coni potências protestantes foram rompidas, o que contribuiu sobremaneira para os fracassos milirares dos últimos anos do reinado de Luís XIV.

A influêricia jesuíta provocou desasrre semelhanre ao opor conjuntamente o rei e o papa ao jansenismo. Cornelius Jansen (1585-1638), bispo deYpres, católico sincero, era agostiniai~oextremado e estava convicto de que as interpretaçóes jesuítas sen~ipela~ianas com referência ao pecado e i graça deveriam ser combatidas. Sua obra principal, Augustinus, foi publicada em 1640, após scu falecimento. O livro de Jansen foi condenado pelo papa L'rbano Vi11 (1623-1644), em 1642. As idiias de Jansen, no entanto, tiveram muitos defensores enrre os católicos mais prof~~ndamente religiosos da França, principalmente no convento de monjas de Port Royal, perto de Paris.

C)

adversário mais influenre dos jesuítas foi Blaise Pascal (1623-1662),

especialmente com suas Cartas Provinciais (1656-1657). Luís XIV apoiou o combate dos jesuítas ati jansenismo c perseguiu seus seguidores. Em 1710 foram derribados os edifícios de Port RoyaI. O jansenismo encontrara novo líder de capacidade em Pasquier Quesnel (1634-1719), que teve de procurar refúgio na Holanda. Seu comenrário devocional, Reflexóes Morais no Novo Testamento (1687-1692), levantou forte oposição jesuíta. Devido aos esforcos dos jesuítas, em 1713 o papa Clemente

XÍ (1700-1721). através da bula Lrnigenirus, condenou cento e uma das afirmacóes de Quesnel, algumas tiradas literalmente de Agostinho. Louis de Antoine de Noailles (1651-1729), cardeal arcebispo de Paris, protestou e apelou para um concílio geral. Esta oposicáo, porém, foi em váo. 0 s jesuítas, apoiados pela monarquia francesa, acabaram triunfando.

Em parte de~ridoa esta conrroxrérsia jansenisca e em parte por causa das querelas entre os jesuítas c o clero romano mais antigo, ocorreu uma divisáo em Utrecht, Holanda. Dela resultou, em 1723, uma pequena igreja independente, denominada Igreja Católica Jansenista, ainda hoje existente, com um arcebispado em Urrecht e bispados em Haarlem e Devcnrer. Para a França a expulsáo dos huguenores e o triunfo dos jesuítas foram grandes iilfelicidades. Enquanto na Inglaterra, Alemanha e Holanda era possí~~el grande diversidade de inrerpreraqóes religiosas, dentro dos limites d o cristianismo, na Franca do século dezoito a escolha era apenas entre o romanismo do estreito cipo jesuíta,

~ t i l o n ovil

O GRISTIRNl~MOMOOERNO

7~7-3

que muitos dos seus mais nobres filhos condenavam, e a maré rapidamente crescenre do novo racionalismo de um Voltaire e seus acompanhantes (ver VIX:3). Milhares preferiram este último, e as conseqüências destrutivas ficariam e\'1'd entes no tratamento recebido pela igreja durante a R e v o l u ~ oFrancesa. No século dezoito, em ourras partes nos meios católicos europeus, se desenvolvia um sentimento correspondente ao espírito galicano francês. Na Alemanha tomou forma conciliar, e foi denominado "febronianismo", do pseudfinimo "Justinus Febronius" adotado pelo seu expoente mais articulado, Nicholas von Honrheim (170 1-1 790), bispo auxiliar de Trier. N a Áustria, mmou forma monárquica, e foi denominado "iosefismo", nome oriundo da política cclesiástica do imperador José 11 (1765-1790). Na úItima metade do século dezoiro ocorreu a maior catástrofe dos jesuítas. Ainda que proibido por sua própria constituição, eles haviam se engajado sobremaneira no comércio colonial; sua influência poIítica era notória e enfrentavam a hostilidade

do racionalismo radical da época. E nesse racionalismo tiveram o inimigo mais determinado. O poderoso ministro do rei José de Portugal (1750-1777), o marquês de Pombal (16'99-1782), simpatizava com o racionalismo. Ele ficou irritado com a resist6ncia dos jesuítas à sua política no Paraguai e se opôs ao princípio jesuíta do livre comércio. Em 1759 determinou a deporcaçáo, com máo de Ferro, de todos os jesuítas dos ecrrirórios portugueses. Também na França aumentava o sentimento conrra

os jesuítas. A força dominante no governo francês era a do duque de ChoiseuI (1719-

1785), simpatizante do iluminismo. Contava ele com a ajuda de Madame de Pompadour, a amante de Luís XV (17 15-1774). Uma grande parte do clero francês também era hostil aos jesuítas. Em 1764 foram suprimidos na França. Espanha e Nápoles os expulsaram em 1767. Os governantes desses territórios forçaram o papa Clemente XIV (1769-1774) a abolir a ordem, em julho de 1773. Esres fatos atestavam a debilidade do papado. O s jesuítas continuaram existindo na Rússia não católica romana e na Prússia protestante. Quando irrompeu a tremenda tempestade da Revoluçáo Francesa, eIa varreu muitos dos privilégios da igreja, da nobreza, do trono e antigas instituiçóes análogas. O s líderes revolucionários estavam tomados do espírito racionalista. Consideravam as igrejas como clubes religiosos- Em 1789 as terras da igreja foram declaradas propriedade nacional. Os mosteiros foram abolidos em 1790. Neste mesmo ano a Constituiqáo Civil do Clero derribou as antigas divisóes eclesiásticas, tornou cada "depar-

784

HISTORII D A IGREJA CRISIA

tamenro" um bispado e estabeleceu que as eleiçóes de todos os sacerdotes seriam feitas pelos eleitores legais de suas comunidades. A constituic5o de 1791 outorgou liberdade religiosa. Encáo, em 1793 ocorreu em La Vendée um levante rcalista e católico; en-i represália os lideres jacohinos pediram a extinçáo do cristianismo. Foram decapitados cenrenas de clérigos. Dcpois que passou o "Terror", em 1795, mais uma vez foi proclamada a liberdade religiosa, ainda que o estado, como tal, não civesse reiigiáo. Ele era, na reaIidade, forrcrnenre anticristáo. Com as conquistas fran-

parcr

cesas, esra situagáo se estendeu aos Países Baixos, ao norce da Itália e h Suíça. Em

pros:

1798 os exércitos franceses fizeram de Roma uma república e o papa Pio VI (1775-

adz

1799) foi levado prisioneiro para a França, onde morreu. O s fatos militares de 1800 levaram ieleigáo de Pio VI1 (1 800-1 823) e à restauraqáo dos Estados da Igreja (ver 1V:4).Napoleáo, ao subir ao poder, ainda que ele

cão

mesmo fosse desprovido de sentimento religioso, reconheceu que a maioria do povo

o ir.:

francês era católica romana e que a igreja poderia ser usada por ele. O resultado foi,

pul: I

em 180 1 , a Concordaca com o papado c os Artigos Orgânicos de 1802. Pela primei-

aníi:

ra, a igreja entregava todas as terras confiscadas ainda não em poder do governo.

$0

Aquelas em posse do governo lhe foram restituídas. As i~omeaçóesde bispos e arce-

r2.r.

bispos seriam feitas pelo papa, mas por indicasão do estado. O baixo clero seria

nac :

nomeado pelos bispos, inas o estado tinha o poder de veto. O clero seria pago pelo

taci.

tesouro público. Pelos Artigos Orgânicos, nenhum decreto papal seria publicado

rai-

nem nenhum sínodo francês se reuniria sem aucoriza~ãogovernamental. Ao mesmo

red~..

tempo, foram garantidos aos protestantes plenos direitos religiosos e assumidos pelo estado o pagamento de seus ministros e o controle de seus negócios. Napoleáo, que se coroou imperador em 1804, logo entrou em questão com Pio VII, anexou os Estados da Igreja em 1809 e manteve o papa em prisão desde essa data até 1814. A Concordata de Napoleáo governaria as relações da França com o papado por mais de um século. Desenhada para submeter a igreja católica francesa ao controle do governo, o que foi conseguido no período de Napoleáo, ela também acabou fazendo com

que o clero francês considerasse o papa como seu único apoio contra o estado. Ao ignorar os antigos direitos locais, ela na verdade arruinou as pretensóes galicanas i liberdade parcial e abriu a porta jquele espírito ultramoncano que caracterizou o catolicismo francês por todo o sécuIo dezenovc. As guerras dos períodos republicano e napoieônico resultaram em importantes m u d a n ~ a sna Alemanha. Em 1803 os antigos territórios eclesiásticos praticamente

L

Chrr cor.

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~ ~ n l o ov11 o

O CRISTIANISMO MOOERNO

7%

deixaram de exisrir, e foram divididos entre os estados seculares. Em 1806, Francisco 11 (1792-1835) abdicou do título de Sacro Imperador Romano. Já tornara o de Imperador da Áustria. Foi o desaparecimento de uma venerável insrituiyáo, o Sacro Império Romano, que, na realidade, desde muito era apenas uma sombra, mas que esrava ligada às lembranças medievais da relaqáo entre estado e igreja.

A queda de Napoleáo em 3 8 15 foi seguida por uma reaçáo universal. O antigo parecia de valor por causa de sua antiguidade. Passariam anos antes que o verdadeiro progresso eferuado pela época revolucionária se manifestasse. Esta reaçáo foi auxiliada pelo surgimerito do romantismo com scrr novo apreço pelo medievo e peia rejeiçáo daquele espírito do século dezoito, que dominara na rcvoluçáo. Franpis Rcné de Chateaubriand (1768-1848), em seu Gênio do Cristianismo (1802), detnonstrou como o catolicismo poderia se beneficiar das correntes românticas, e contribuiu para o início de um rcavivainen~ocatólico. O papado se beneficiou com todos esses impulsos c logo desenvolveu uma vitalidade maior do que tivera durante os cem anos anteriores. Uma evidencia caracterisrica dessa nova posicáo do papado foi a restauração dos jesuítas, por Pio V11 em agosto de 18 14, os quais rapidamente reconquistaram sua antiga ascendência nos conseihos papais e suas vastas atividades, ainda que 1150 recuperassem também seu poder político anterior. Eles têm, por sua vez, se destacado no desenvolvimento e apoio da autoridade papal. Ao mesmo tempo, a restauraqáo do poder da igreja carólica romana foi acompanhada e possibilitada por um reavivarnento verdadeiro da piedade que continuou a caracterizá-la no séc~ilovinte.

O desenvolvimento romano durante o século dezenove foi no rumo da afirmação da supremacia papal, chamada ultramontanismo - isto é, "além dos monees", do ponto de vista da Europa setentrional e ocidenral - ou seja, italiano. A p o s i ~ ã o ultramontana com sua glorificação da posicáo do papa e do rei, foi fortalecida pelos escritos dos "três profetas do t.radicionalismo": Joseph Marie de Maistre (1754-1821), Louis Gabriel Arnbroise de Bonald (1754-1840) e, especialmente, Hugues Félicité Robert de Lamenilais (1782-1854). 0 s jesuítas contribuíram poderosamente para essa tendencia de exaltar o papado acima de todo eclesiasticismo local ou nacional. Leáo XTI (1823-1829), o sucessor de Pio VII, foi reacionário, condenando, como seu predecessor, a obra das sociedades bíbiicas. Gregório XVI (1831- 1846) foi patrono da erudiçáo, mas reacionário com referência aos ideais políticos e sociais modernos. Essa postura essencialmente medieval e a recusa de encontrar-se com o mundo moderno levou à formaçáo, na primeira metade do século dezenove, de partidos cleri-

786

HISTORIA DA IGREJA CRISTÁ

cais e anticlericais nos países católicos, cujas contendas grandemente determinaram a política destes países. Uma tencariva da pane do brilhante Lamennais para formar uma aliança entre o catolicisino e o liberalismo, principalmente nos países onde o

cacolicismo era minoria, somente provocou sua condenaçiáo por parte de Gregório.

O pontificado de Pio IX ( 1 8 4 6 - 1 8 7 8 ) ilustra muito bem as teridências ultramontanas. Começando seu pontificado no momento em que os Estados da Igreja escavam à beira da revolta porque os principais cargos políticos eram ocupados por clérigos, no início foi reformador político. PorCm, a tarefa mostrou-se muito elevada para ele, que adorou uma estrutura poIitica reacionária que exigia que ele buscasse o apoio de soldados estrangeiros e desagradasse o povo com seu governo político. Em matéria de religiáo, ele estava sinceramenre convencido de que o papado era uma instituição de origem divina i qual o mundo moderno poderia recorrer para a solucáo de seus complexos problemas religiosos. E desejou deixar isto evidente. Em dezembro de 1854, após consultar os bispos da igreja católica, proclamou a imaculada conceiqáo da Virgem - isto é, que Maria não partilhou da mácula do pecado original.

A questáo estivera em discussZo desde

a Idade Média, mas o balanço

da opiniáo

católica no século dezenove era esmagadoramente favorável à idéia aprovada pelo papa. E eie a elevou, com sua decisáo, a dogma de fé necessário. Em 1864, um sílabo de erros preparado sob os auspícios papais coildcnava muitas

coisas às quais muitos católicos se opóem, mas também repudiava muito daquilo

que constituía o fundamento dos estados modernos, como a separaçáo entre a igreja e o estado, a escola laica e a tolerância de diversidade religiosa, e concluía condenando a afirmaçáo de que "o pontífice romano pode e deve reconciliar-se e concordar com o progresso, o liberalismo e a civilização como ultimamente apresentada."

O fato culminante do pontificado de Pio IX foi o Primeiro Concíiio do Vaticano. Inaugurado a 8 de dezembro de 1869, com uma assistência notavelmente grande provinda de todo o mundo católico romano, seu resultado mais importanre foi a afirma@, em I8 de julho de 1870, da doutrina da infalibilidade papal, por quinhentos e trinta e três votos concra dois. Ela está longe de aiirmur que todos os pronunciamen[os papais são infalíveis. Para que um pronunciamento papal seja considerado infalivel, o papa rem que expor, em seu cargo oficial, "a revelaçáo ou depósito da fé entregue atravis dos apóstolos." "O pontifice romano, quando fala ex cathedra, isto é, desempenhando o ofício de pastor e mestre de todos os cristáos, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina referente à fé ou

P E R I O D ~v[[

O ERISTIABISMO MODERNO

78

I

à moral a ser seguida pela igreja universal, pela divina assistência a ele prometida

atravis do bendito Pedro, é possuidor daquela infalibilidade com a

o divino

Redentor queria que sua igreja fosse dotada." Portanto, o concílio selou o triunfo do ultramontanismo. Foi a vitória do rnonarquismo papai e a derrota da teoria da supremacia de um concílio geral, que parecera tão grande no século quinze (ver V:14) e neo ficara sem representantes desde então. Essa definição, embora sendo, indubiravelmente, o resultado lógico de séculos de desenvolvimento papal, encontrou considerivel oposição, especialmente na Alema-

nha. O mais eminente dentre os que recusaram a se conformar foi o notável historiador de Munique, Johann Joseph Ignaz von Dollinger (1799-1890); mas náo obstante ter sido excomungado, ele náo quis iniciar um cisma. O que recusou fazer, outros realizaram, e o resultado foi a organizaçáo dos Católicos Antigos, que receberam ordenacão episcopal da Igreja Jansenista de Utrcchr. Sua difusáo tem sido principalmente na Alemanha, Suíga e Áustria, mas também podem ser ericonrrados em paíscs de língua inglesa. Entrementes, a maré da unidade nacional italiana esteve subindo. A guerra contra a Austria, travada conjuritan~entepelo reino da Sardenha, sob Vitório Emanue111 (1849-1878), e pela Franca, sob Napoleáo I11 (1852-1870), com o coricurso de italianos encusiastas liderados por José Garibaldi (1807-1882), resultou em 1861 no estabelecimento do reino da Icália, sob o governo de Virório Ernanuel, e na inclusáo nele da maior parte dos antigos Estados da Igreja. Em virtude da política uitramontana de Napoleáo 111, Roma e seus arredores foram preservados para o papa. Ao estourar a guerra entre a França e a Alemanha, em 1870, as tropas francesas foram retiradas. E em 20 de setembro de 1870 Vitório Einanuel se apoderou de Roma, e seus habitantes, por cento e trinta e três mil voros contra mil e quinhentos, foram a favor da anexacáo à Itália. O governo italiano assegurou ao papa os privilégios de um soberan o e a posse absoluta do Vaticano, Latráo e Castel Gandolfo. Assim terminaram os

Estados da Igreja, a mais antiga soberania secular sem interrupção ainda existente na Europa. Pio IX protestou e se declarou "prisioneiro do Vaticano", e excomungou Vitório Emanuel. Por meio século, ar6 que a Concordata com Mussolini resolvesse a "Questão Romana" em 1929, o papado recusou-se a aceitar a perda de suas possessóes temporais. Isto, no entanto, teve suas vantagens. Despertou simpatias para com o papa, e as coiitribui~óesvindas do mundo católico mais do que cobriram as perdas financeiras. Libertou o papado de uma tarefa secular para a qual escava mal prepara-

do e que o expunha a acusações bem fundadas de má administraçáo. Deu ao papado oportunidade desimpedida para desenvolver suas funções espirituais e, por fim, aumentou seu prestígio moral. Tais vantagens, no entanto, não ficaram logo evidentes. Por muitos anos pareceu que a igreja estava em retirada ante as forças do mundo moderno, reclusa dentro de seu próprio círculo. Na Itália, por exemplo, Pio IX proibiu aos católicos italianos participarem na vida política do reino da Itália. A conseqüência dessa política de non expedit foi em g a n d e medida forralecer a irifluência de radicais e socialistas. Na Alemanha, na década de 1870, ocorreu a KuIcurkampf,* que lançou a igreja católica contra o estado de Bismarck. Na luta, frequentemente os católicos foram afastados dos seus costumeiros contatos e fontes de rendas, e forgados a consolidar seus interesses de modo diverso. Pio IX foi sucedido por um papa estadista, Leáo XIII (1 878-1903). Este pôs fim aos conflitos enrre o papado e o govilrno imperial alemão. A igreja vencera, mas ao aparenre custo de se ter tornado algo como uma fortaleza sitiada. Leáo instou aos catGIicos franceses para que apoiassem a república, mas os efeitos do caso Dreyfus** deveras atrapalharam seus esforços, e a luta entre igreja e estado na França chegou ao clímax sob seu sucessor. Na Irália, ele continuou a buscar a restauraçáo dos Estados da Igreja, e a tensão entre estado e igreja continuou. No entanto, ele desenvolveu uma política de g a n d e significaçáo para o futuro. As reia5óes entre trabalho e capital e o interesse dos operários prenderam sua atenção. Sua famosa encíclica de 1831,

Rerum novarum, despertou profundo interesse católico com referência às questões

de justiqa social. Leáo insistiu na formacão de uma rede, sob liderança clerical, de associaçóes católicas de finalidade social, beneficente, econônlica e política. Este modelo de "Agáo Católica" se tornou importante fonte de vitalidade no século vinte. Leáo era inclinado para a erudição, recomendava o estudo das Escrituras e declarou que Tomás de Aquino

(V7)era a norma do ensino católico romano. Abriu os tesou-

N.T kírlrtrrkrrmpf't.a designacão dada ao conflito enrrr o zciverno alcmão, liderado por Bismarck, e o ~ a ~ a pd elo o controle de rscolas c tiorneaciies eclesiábticas enrrc 1872 c 1887. Bismarck apro\,ou uina legisiacáo procurando rornpt-r a autoridade e a influencia da igreja cardica no império alzmãv, mas posteriormente fòi forcado a recuar. " N.T. Em 1894 um oficial do çxi.rcito Francès, Alfred Dreyfus, de asccnd2iicia judia, foi acubadu falsameiirc de ter passado segredos militares para os alemães. Seu julgamento, sua prisão e siia posterior reabilitaçáo cm 1906 caiisaraiii g a n d e crise polirica na França, suscitando senrimcnros anrimilitlires e anrisemiras

rtiloeo v i l

fl CRISTIAMISMU MOOEANO

789

ros do Vaticano aos historiadores. Procurou a reuniáo das igrejas romana e ortodoxa, embora tenha declarado, em 1896, que as ordens ariglicanas não tinham validade alguma. Foi um papa hábil e zeloso, que reinou num tempo difícil da vida da igreja. Como para as missóes protestantes, o século dezenove cambérn foi um "grande século" para as missóes católicas romanas, ainda que estas tenham demorado alguns anos mais para desabrochar e não cenharn sido ráo iniportanres. A Franca foi a principal base missionária e sua f o r p propulsora, noradamente monges e clérigos, foi fortalecida por n o t á ~ e aumento l no número de monges servindo como missionários. Muitas ordens e sociedades, algumas recém-formadas, participaram no mo\rimento.

Os jesuítas restaurados retomaram rim papel missionário de importância, seguidos oblatos, padres do Espírito Santo, lazarisras, mariscas, dorninicanos, franciscanos, capuchinhos, padres brancos e muitos outros. Novos movimentos para auxiliar as missóes, tal como a Sociedade para a Propagação da Fé, fundada em 1,yon em 1822, despertaram um novo interesse missionário da parte do laicaro. Leigos humildes foram convidados a orar por missóes codos os dias, e a contribuir semanalmente com pequenina quantia. Em 1914 já haviam sido fundadas perto de duas centenas de organizações para solicitarem auxílio do laicaco. Iniporrante desenvolvimento nas missóes católicas rio século dezenove foi um papel sobremaneira aumentado das mulheres, principalmente freiras. No fina1 da década de 1870, mulheres de cerca de scssenta congregaçóes respondiam por mais da metade dos aproximadamente sessenta mil missionários católicos. No final do século contavam-se cerca de cinqüenta e três mil mulheres encre o total, que aumentara para setenta mil. O impeto missionário reacendido, reviveu as minorias católicas na Índia, que em 1870 passavam de um milhão, conduzidas por vinte e um bispos e novecentos sacerdotes. Na Indochina, apesar da perseguicáo, o número de católicos aumentou de cerca de trezentos mil em

1800 para perto de um riiilháo, cerca de cinco porcento da populaqáo, quando da Primeira Guerra Mundial. Na África ao sul do Saara, as tribos anirnis~asprimitivas foram mais facilmente atraídas para o cristianismo do que aquelas de tradição budista, islâmica ou hindu, de forma que em 1914 havia mais de um milhão de católicos na faixa leste-oeste que corta a África central, e outros quinhentos mil rias ilhas, principalmente Madagascar e Maurício. Pio X (1903-1914) contrastou, em muitos senridos, com Leáo XI1I. Esce era nobre, Pio era de origem humilde. Leáo XIII era senhor de g a n d e habilidade diplomárica e ampla visáo. Pio X era um fiel sacerdote paroquial cuja paróquia se tornara

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HIDTORthDA IGREJA ERISTÃ

mundial. Ele foi convocado a lidar com duas questões de extrema dificuldade. A primeira era sobre as relações entre igreja e estado, na França. Apesar dos esforços de Leáo XIII, a maioria dos catúlicos franceses eram tidos como sem enrusiasmo para com a república. Há tempos as relacóes vinham piorando mais e mais. Em 1901 as ordens religiosas que não estaipanl sob o controle do estado foram proibidas de se dedicarem ao ensino. Como algumas se recusassem a obedecer, em 1903 foram extintos vários mosreiros e conventos c confiscadas suas propriedades. Em 1904 o presidente da Franca, Loubet, fez uma visira oficial ao rei da Itália, em Roma. Pio X, considerando o soberano italiano como possuidor ilegal de Roma, protestou. A França retirou seu embaixador jlinto h corce papal e logo depois rompeu toda relacáo diplomática. Em dezeiribro de 1905 o governo fi-aiicês decrerou a separaqáo entre igreja e estado. Foi suprimido todo auxílio governamental tanto a católicos como a protestantes. Todas as igrejas e outras propriedades eclesiisticas foram declaradas pcrtcnceiites ao estado, para serem arrendadas a associaçóes locais, que prestariam contas ao estado, para o culto. Seria dada preferência àquelas associa~óesrepresentantes da fé que por último tivessem ut~lizadoa propriedade em questáo. Embora niuitos bispos franceses se mostrassem prontos a formar tais associaqóes, Pio X as proibiu. O resultado foi um impasse. A manutenção da igreja teve de ser conseguida por meio de contrihuiçóes volundrias. Seria somente na década de 1920 que a igreja alcanqaria base legal na França.

O segundo problema foi causado pelo aparecimento dos "modernistas". Apesar do crescimento do ultramontanismo, a crítica histórica moderna, a investigacáo bíblica c as concep~óescientíficas de crescimento por meio de dese~ivoIvirnentotinham encontrado seguidores, ainda que poucos, na comunhão romana. A alguns homens sinceros e pensadores parecia ser imperativa alguma reinterpretacáo do catolicismo em termos do mundo intelectual moderno. Dentre eles se contaram Herman Schell (1850-1906), na Alemanha; Alfred Loisy (1857-1940), na França; George Tyrrell (1861-1909), na Inglaterra, e um grande grupo na Itália. O modernismo não esrava restrito a nenhum país. Pio X saiu a campo contra tai movimento. Por meio de

um decreto, Lamentabili, e de uma enciclica, Pascendi, ambos de 1907, o modernismo foi condenado e foram tomadas severas medidas para sua repressáo. Loisy efirrell foram excomungados. A impressão de que o cacolicismo esrava se afasrando do mundo moderno foi aprofundada.

O período da Primeira Guerra Mundial, durante o qual foi papa Bento XV (19 14-

~tnioeov11

O ERISTIANISMO MODERNO

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1922), preseiiciou notável progresso nos destinos católicos. As instituiqóes católicas de caridade prestaram bons serviços na luta. O renovado prestígio moral e espiritual do papado entáo começou a ser levado em conta. Roma resistira ao desenvolvimento cultural do século dezenove, mas quando esse desenvolvimento entrou em crise durante e depois da guerra, a postura da igreja pareceu menos anacrônica. As organizações da Açáo Católica deram ao catolicismo romano um instrumento efetivo para crescimento e sobrevivência em sociedades pluralistas.

O poiltificado do capaz e culto Pio XI (1922-1939) foi assinalado por franco reavivamento católico. Em seu tempo se tornou claro um renovado interesse teológico, um sigilificativo movimento litúrgico e um permanente interesse missionário. A "Questão Romana" foi finalmente resolvida em 1929 pelo tratado de Latráo, pelo qual o papa aceitou a perda dos antigos Estados da Igreja, em troca de grande soma, e recebeu para si o domínio da cidade do Vaticano. A igreja procurou consolidar suas novas conquistas na Europa por meio de uma série de concordatas com diversos governos, inciuindo acordos com a Itália fascista (1929) e ahlemanha nazista (1933). Quando estes governos quebraram seus compromissos, Pio protestou com duas vigorosas encíclicas, Non abbiamo bisogno (1931) e Mit brennender Sorge (1937). Ele foi defensor da Açáo Católica, posteriormente redefinida como o "apostolado leigo".

O catolicismo romano nos Estados Unidos aumentou continuamente no decorrer do século dezenove e início do vinte, pois as ondas de i~iiigranrestraziam milhóes de católicos aos portos da América. Na primeira metade do século dezenove um dos principais problemas internos foi o desejo de algumas diretorias leigas de paróquias

católicas de terem a prerrogativa episcopal de nomeagáo e destituição de seus pastores. Este "diretorismo" ["trusteeism"] provocou cismas, que em alguns casos perduraram por vários anos, mas por fim os bispos controlaram totalmente a situaçáo. O principal problema externo foi o recrudescimento do sentimento anti-católico, agravado pela chegada na década de 1840 de católicos irlandeses sobremaneira militantes. Entrementes, foi feito um esforço vigoroso, por meio do desenvohimento de escolas paroquiais, de instituiçóes de caridade e da imprensa caróíica, para assegurar a lealdade dos imigrantes que chegavam.

A segunda metade do século foi um período de naturaiiza~áoe americanizaçáo para a igreja católica. A convocação do Primeiro Concílio Plenirio em Baltimore, em 1852, foi um passo para a consolidaçáo das conquistas católicas e para assegurar

um lugar maior na vida nacional. Naquela época os católicos somavam perto de dois mill-ióes - o maior grupo reIigioso individual no país. O vulto central nesse período foi James Gibbons (1834-1921), sagrado bispo em 1868, arcebispo em 1877 e clevado ao cardinalato em 1886. Muito fez para tornar sua igreja familiar à América e amenizar a hostilidade contra os católicos. Acreditava que a separação entre igreja e estado era o melhor para a Arnkrica e a defendeu calorosamente. Lutou pelos direitos dos trabalhadores, ao Tempo cm que o deslocamento das principais fontcs de imigraqáo para o sul da Europa lançava um número ainda maior de pessoas de formaçáo católica nos centros urbanos. Houve aqueles qut: temeram que a igreja católica romana rios Estados Unidos estava se tornando muito americana nessa época de Gibbons, e em 1899 uma carta papal -Testem benevoletlriae - advertiu contra tal perigo.

O catolicismo dcançou a maioridade na América no início do século vinte. Em 1908 a igreja americana foi tirada da jurisdicáo da Sagrada Congregaçáo para a Propagaçáo da Fé, encerrando sua condição de campo missionário. A participaçáo de caeólicos na Primeira Guerra Mundial eliminou

dúvida quanto ao seu

"americanismo" e ainda serviu para abrandar as tensões que perduravam entre grupos ttilicos. h i t m ciisso, o CoilcíIio Catdlico Nacional para a Guerra (1917) demonstrou ser instrumerito efetivo de consolidaqão e progresso e por isto foi mantido como ConferEncia Católica Nacional para o Bem-Estar, instrumento da hierarquia e o centro dinâmico da "Aqáo Católica" nos Eseados Unidos. A viealidade crescente do catolicismo romano na América foi acompanhada por certa crescente resistência da parre ranro de protestantes como de "outros" americanos.

Capitulo 17

As Igrejas Orientais nos Tempos Modernos' A impressáo de muitos ocidentais de que o cristianismo oriental tem tido uma história rotineira nos tempos modernos, por certo reflete apenas o fato de que o

'Esta s q á o está hascada subscancialmenre em material preparado para a segunda ediçáo inglesn (1959) pelo f a l t ~ i d oDr. Edwatd R. Hardy, ciirdo na Berkeley Divinity School em New Haveii.

PERIOOD VII O ERISTIANISMO MODERNO

79.3

estudo da história da igreja oriental tem sido negligenciado n o Ocidente. N a verdade, a história é de tensão e conflito, muito disto provenie~itede pressóes políticas. A "Uniáo Florentina" (ver V: 14) foi rapidamente repudiada pelas maiores igrejas orientais. O metropolita grego, Isidoro de Kici: foi expulso

tentou proclamá-la

e m Moscou, e a partir de 1448 a igreja russa se tornou totalmenre autônoma. E m Constantinopla, a Uniáo perdurara até a queda da cidade diante dos turcos em 1453, mas fora definitivamente repudiada por um sínodo em 1472. O impt'rio turco contiriuou a se expandir; em seu ápice em meados d o século dezesseis incluía a maior parte da península baIcânica, dorigava-se até a Hungria, dominava o mar Negro e abrangia a Ásia Menor, a Arrnênia, a Geórgia, o vale d o Eufrates, a Síria, a Palestina, o Egito e a maior parte da costa setentrional da Afi-ica. Devido a uma diversidacie de razóes, incluindo a compulsáo política e militar, muiros cristãos se convcrrcram ao islamismo. Eriquaiiro súditos dos sultóes, os fiéis ortodoxos foram organizados como uma comunidade serni-autônorna, a "Rum Millet" (Na@ Romana). O s patriarcas exerciam u n ~ aautoridade muito maior sobre seus rebanhos d o que no tempo dos imperadores cristáos, algumas vezes abusando de seus poderes civis. Sujeitos a pesadas exigências e frequentemente depostos, perderam urna igreja anriga após outra até se estabelecerem a partir de 1603 na igreja de São Jorge, no distrito de Pha~iar,em Istambul. Outros prelados orrodoxos se tornaram dependentes do patriarcado ecuinêilico, airida que as igrejas strvia e búIgara tenham manrido certa autonomia até seus patriarcados serem suprimidos, em 1766-1767.A partir de 1461 um parriarca armênio em Istambul ceve posiqáo semelhante como representante civil dos monofisitas. Depois de 1453 o principado moscovita substituiu o império biiantino como o maior estado orrodoxo. Certos eclesiásticos proclamaram a teoria de que, uma vez

q u e 3 Antiga Roma se fizera herética e a Nova Roma fora conquistada, Moscou, c0111 seus príncipes e prelados ortodoxos era a Terceira Roma, quc jamais cairia. Mosreiros como o p n d e Troitsky 1;avra (Mosteiro d a *li-indade),perto de Moscou, f ~ ~ n d a d o por Sáo Sérgio no séciilo catorze, tiram os principais centros de piedade, eruciiSão c

vida cclesicistiça. Uma interessante controi~érsiamtriiástica se lei-antou n o fim d o século quinze entre os "iláo possuidores", liderados por Nil Sorssk!; cliie enfarizavam a vida de oracáo e a pobreza monástica ao prec;o J c liinicarem as atividades ao que era estritarnerice religioso, e os "possuidores", chefiados por Josepli de Volokolamsk, que aceitavam respoilsabilidades sociais e políticas e acolhiam a riqueza e a propriedade

como uma maneira de cumpri-las. A concessão da categoria de patriarca aos metropolitas (1589), como a anterior tomada do tírulo de czar pelos grão-duques, apenas deu reconhecimento formal a uma situacão já existente. Nos séculos dezesseis e dezessete as igrejas orientais tiveram que chegar a um acordo com as influências ocidentais, tanto católicas como protestantes. Lutero e outros reformadores recorreram ao exemplo oriental de um catolicismo não romano. Mas quando os teólogos de Tiibingen iniciaram correspondência com o patriarca Jeremias I1 (1 574-1 584), as respossas deste demonstraram claramente a divergência da igreja grega para com o ensino luterano sobre autoridade, fé, graça e sacramentos. Sob circunstâncias obscuras, o notável Cirilo Lucar (cinco vezes patriarca entre 1620 e 1638) publicou uma confissáo de caráter fortemente reformado, enquanto na Uniáo de Brest (1596), o metropolita de Kiev e outros preIados no que era então território polonês aceitaram os terinos florenrinos - autonomia local e independência litúrgica, submissáo à autoridade romana, em última instância, em questões de doutrina e disciplina. Por causa da palavra russa unya, essa igreja da Ucrânia ("território fronteiriço") é popularmente chamada Uniata, denominaçáo por vezes aplicada (ainda que impropriamente) a outros ricos orientais católicos. Sob Pedro Mogila, que se tornou metropolita em 1632, Kiev retornou à comunháo ortodoxa. Seus Confissáo e Catecismo são documentos de importância nessa controvérsia, que terminou coni os decretos do sínodo de Belém, reunido sob a direçáo do patriarca Dositheus de Jerusalém, em 1672. Embora substancialmente ortodoxos, esses "livros confcssionais" revelam em sua forma uma influência ocidental. Mogila também empregou métodos ocidcncais em sua Academia Teológica de Kiev (que passou a ser território russo após 1665), onde o idioma em que se ministrava o ensino não era o grego nem o eslavo, mas o latim. Por todo o século dezoito as escolas teológicas russas, organizadas segundo o modelo de Kev, seguiram este sistema. Outras igrejas "uniaras" foram organizadas na esfera de influência de potências católicas iprimciro Portugal, mais tarde França e hustria, bem como a Polônia). X Etiópia esteve em uniáo formal com Roma de I624 a 1632. Na Índia, os cristáos sírios dc Malabar sofreram considerável larinizaçáo sob o arcebispo Menczes e missionários jesuítas (sínodo de Diamper, 1599). Em 1653 uma grande parte renunciou a comunhão romana e mais tarde conseguiu a sucessáo episcopal atravts dos jacobitas

sírios, uma vez que os nestorianos, com os quais estiveram ligados no passado, estavam fora de alcance. Parte dos nestorianos se uniu com Roma no século dezesseis

p ~ i i n n ava

O CRISTIANISMO MOOERNII

79s

como "caldeus", e também uma seçáo dos ortodoxos sírios (aos quais o nome árabe do grupo rodo, "Melquita", ou realista - isto é, bizantino - ficou restrito)

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século

dezoito. Outros grupos "uniatas" paralelos emergiram no Egito, Síria e h m ê n i a . Na Rússia, a igreja foi foco de lealdade nacional duranre as guerras c invasócs no "Tempo de Angústia" que veio após a extinçáo da anriga dinastia de Rurik. A defesa de 'I'roitskj7 Lavra contra os poloneses, em 16 12, foi um dos momentos decisivos do período. Quando, em 1613, comecou a nova dinastia coiri Miguel Romanov, seu pai, que fora forcado a fazer votos monásticos durante as guerras, praticamente reinou com ele como patriarca Filareto. O patriarca Nikon (1652-1GGG), vigoroso ao ponto da violência, introduziu reformas práricas que incluíram a correcáo, a partir do grego, dos Iivros de ofício. Nikon foi deposto com a aiiu6ncia de outros patriarcas, mas as reformas permaneceram. O s opoiientes foram obrigados ao cisma, como Crentes Antigos (niais proprian~cnreRicualisras Anrigos) ou separatistas (Raskolniki).

A importância da Iiturgia na fé e na vida ortodoxa enrijeceu sua leaidade aos pormenores do rito e do cerimonial, o que representava para eles a estrita ortodoxia da Rírssia. As reformas ocidentalizantes de I'edro, o Grande, intensificaram a diferenp.

As seitas russas formam três grupos: (1) os Crcnt-esAntigos, dos quais alguns (popovtsi) aceitaram sacerdotes oriundos da igreja oficial, os quais asseguraram seu próprio episcopado de forma irregular por meio de um bispo grego, em 1849, enquanto outros (bezpopovtsi, isto é, "sem sacerdotes") afirmaram que a apostasia destruíra as ordens da igreja e se limitaram aos ritos que os leigos podem administrar, usando vinho e crisma consagrados perenizados por diluicáo; (2) uma variedade de grupos extremados ou excêntricos, alguns guardando remanescentes de paganismo ou de antigas heresias - sendo o mais conhecido o grupo dos pacifistas dukhobors ("lutadores espirituais") que migraram para o Canadá; e (3) dcsdc o século dezenove grupos protestantes que se introduziram na Rússia e agem de diversas maneiras. Planejando organizar a a d m i n i ~ r r a ~ áda o igreja nas Iinhas de um departamento governamental, Pedro deixou vago o patriarcado depois de 1700, e em 1721 o substituiu pelo "Santo Sínodo Governante". Ta1 sínodo era formado de alguns bispos e outros clérigos convocados pelo imperador, que também indicava seu secretiírio e executivo leigo, o "ober-procuror". Em inglês é geralmente chamado procuraror [procurador], mas o cítulo bárbaro, nem mesmo bom alemão, exprcssa o caráter revolucionário da instituição. O patriarca, que poderia parecer rivalizar com o czar, foi assim substituído por uma a d m i n i ~ t r a ~ claramente ão sujeita ao czar. Embora a igreja

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HISTfiRIA DA IGREJA CRISTI

oficial não estivesse sem notáveis exemplos de piedade, erudiçáo, caridade e zelo missionário, a mais profunda devoção fluiu em canais extra-oficiais. O século dezoito preseilciou uma renovação da velha tradiçáo monástica de sóbria piedade e direçáo espiritual entre os monges do Monte Aros, um dos quais, Paisi Velichkovsky (1722-1794), mais tarde abade na Moldávia, nas poximidades da fronteira russa, levou essa tradiçáo de volta para a vida da igreja russa. Dois santos canonizados pela igreja russa representam a mesma tendência, de certo modo comparável à reaçáo pietista contra o prorescantismo oficial - o bispo Tikhon Zadonsky (1724-1783) e o eremita das florescas do norte, Serafim de Sarov (falecido em 1835). Um dos "anciãos" (startsi), ou diretores espirituais, do mosteiro de Optina, perto de Moscou, é retratad o no padre Zossirna ein Irmãos Karamazov dc Dostoievsliy.

O surgimento do nacionaIisrno e movimentos intelectuais e espirituais modernos confrontaram as igrejas orientais com novas situações. A tradicional união íntima entre o povo e a igreja se expressou em novas formas. A revolução grega se originou no mosteiro de Megaspelaion, no PeIoponeso (e o patriarca Gregório V, ainda que tenha formalmenre condenado os insurretos, foi enforcado como líder grego defronte de sua residência, em Phanar, em 1821). Com a independência política, a igreja da Grécia renovou sua vida intelectual e assumiu autonomia eclesiásrica, reconhecida pelo patriarca de Constanrinopla em 1851. Atitude semelhan~efoi tomada na Sérvia, na Romênia e na Bulgária. Em 1870 o exarca búlgaro reivindicou jurisdiçzo sobre os búlgaros em todos os lugares, mesmo em Istambul; isto foi condenado como "filetismo (talvez 'supernacionalismo'), a heresia do nosso século", e produziu um cisma entre gregos e húlgaros, de 1872 a 1945. h vida da igreja nos Bálcás conrinua a estar desafortunadarnenre en\~ol\ridaem conflitos nacionais.

Na Síria, os cristãos áralies tornaram-se inquiecos sob hierarcas gregos. Desde 1898, os patriarcas de h t i o q u i a cm Damasco tèm sido sírios, mas o

de

Jerusalf rn conriilua ser controlado pela Irmalidade do Santo Sepulcro (quase inteiramente grega). O interesse missionário auxiliou a promover a educagáo moderna no Oriente T)róxi~no,mas ao preço de novas divisóes eclesiásticas. A obra dos católicos orienrais foi ampliada por riiissionários latirios, e pcquenos grupos protestantes se irirrtiduziram entre os gregos, os armênios e os sírios, c surgiu uma grande igreja evarigéiica entrc os coptas. N a fndia, os missionários a~iglicanosda Sociedade Missionária da Igreja trabalharam por algum tempo entre os crisráos sírios, sendo o resultado final de sua influhcia a separaçáo de uma ala mais evangdica com o nome

de Igreja Mar Thoma.

A reaçáo contra influências ocidenrdizanres, quer religiosas ou anti-religiosas, levou à apresentação da ortodoxia tradicional em formas mais vigorosas e acualizadas. Tendências ocidentalizantes e estritamente ortodoxas têm competido nas faculdades de teologia dos Bálcás e entre os pensadores crisráos na Rússia. No final do século passado a igreja grega foi estimulada pelo vigoroso embora excêntrico teólogo Ieigo ultra-ortodoxo, Apóstolos Makrakis. Desde então, organizações voluntárias muito têm feito para reavivar a pregação, organizar a educa~áoreligiosa e encorajar a atividade social da igreja; a Irmandade Zoe, uma fraternidade de theologoi (isro é, graduados em reologia) celibatários, formada por leigos e clérigos, é a mais conhecida delas. Na Rússia, os eslavófilos voltaram-se para as ~radiçóescorporativas e espirituais da ortodoxia, em oposição tanto à estagnaçáo da repriiriida e repressora igreja oficial (sendo a pior época sob Nicoiau I, 1825-1855) como às tendências seculares de reformadores e revoiucionários. O leigo Aieixo Khomiakov (1804-1860) f01' um dos primeiros líderes da escola. Outros foram menos eclesiásticos mas igualmente religiosos em suas preocupações, tais como o novelista Fiodor Dostoievsky (18211881) e o filósofo Vladimir Soloviev (1853-1900), c~ijoanelo pela unidade espiritual o levaram a exigir o direito de entrar na comunhão romana sem abandonar seu lugar n a rnilenar Igreja Ortodoxa. Ele acreditava que a ortodoxia russa expressava idealmente sobornost ("unidade" ou "comunidade"), que combinava a unidade e a liberdade derivadas do amor de Deus. Ao mesmo tempo mísrico, fiiósofo, teólogo, ~ r o f e t ae moralista, ele procurou inccrprccar a fé cristá de tal maneira a torná-la relevante àqueles que a haviam abandonado e dar-lhes a esperança de que a verdade de Cristo pode regenerar a humanidade e reformar o mundo. A atividade missionária serni-oficial da igreja russa, muicas vezes lierdica, foi no mínimo encorajada por causa de seu possível efeito na consolidaçáo do irnpbrio ou no alargameiiro de sua influência, corno na obra da Sociedade Imperial Palestina e o patrocínio de um mosteiro russo no monte Atos. Mas houve também trabalho missionário que foi além de coiiexóes políticas no Alasca, posto avançado russo até 1867, e sob o bispo Nicolau de Tóquio, (no Japáo, 1860-1312), fundador da Igreja Ortodoxa Japonesa. As guerras c revolu~ócsdo século vinte rrouxerairi novas alterações. Depois das guerras balcânicas, tnuiras das dioceses da "nova Grkcia" foram efetivamente transferidas da jurisdiçáo de C o n ~ t a n t i n o ~para l a a de Atenas. Um pouco mais tarde, a igreja albanesa se tornou autônoma. Depois da Primeira Guerra Mundial, sérvios e

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HISTORIA DA IEREJA E A I S T i

romenos, que esriveram sob jurisdiqóes separadas no impirio austro-húngaro, foram restaurados aos seus países de origem e igrejas ilacionais; o patriarcado sérvio foi restabelecido em 1920 e a igreja romena elevada à categoria de patriarcado em 1925.

A jurisdigáo direta do patriarca ecumênico foi reduzida aos arredores de Istambul pela troca de populaçóes entre gregos e turcos em 1923. Mas as paróquias gregas da Europa c da América per~naneceramsob sua jurisdiçáo, e seu primado indefinido entre os hierarcas ortodoxos é afirmado de tempos em tempos. Na década de 1920 houve considerável abalo (e mesmo cisma) causado pela adogão por gregos, sírios e romenos do calendário gregoriano, levemente rneIhorado, para as fesras fixas - ainda que por amor à unidade, todos ortodoxos continuem seguindo o calendário juliano para o cálculo da páscoa.

A transformacão da Rússia de impçrio ortodoxo para escado marxisra foi um golpe na igreja co1npar5vel aqueIc da conquista islârnica. Em 19 17 uma assemblf ia eclesiástica reunida em Moscou reviveu o patriarcado e, por outro lado, planejou a Iibcrdadc da igreja. Mas a mudanga de igreja oficial para igreja perseguida foi rápida sob o regime bolchevisra. Ainda que, em princípio, o governo soviético tolerassc "a profissão religiosa e a propaganda aliti-religiosa", ele ativamente promoveu esta e quase não pernliciu aquela. Muitos bispos e sacerdotes desapareceram na prisão ou

no exílio, moscciros foram dissolvidos e a maioria das igrejas fechadas, a adrninistra-

çáo eclesiástica foi dificultada c durante alguns anos os grupos reformistas radicais, comumente chamados "Igreja Viva", receberam relativo encorajamento como mais um fator de divisão. Mas a igreja sobreviveu no coração dos fiéis e seus líderes conse~ u i r a mmanter alguma forma de organização. Em 1923 o patriarca Tikhon proçlamou sua lealdade política ao regime e lhe foi permitida certa liberdade até sua morte em 1925, apbs a qual o metropolita Sirgio se tornou o guardiáo do trono patriarcal. Seguiram-se períodos de pressão anci-religiosa alternados com outros de relativa calma, atC que a indubiclivel lealdade dos orrodoxos russos para com seu país na Segunda Guerra h,íundiai levou a uma relacáo mais acomodada. Em 1943 foi permitida uma eleição patria~cal,e sob Sérgio e seus sucessores Meixo (1944-1970) e Pimen

(1 971- ), a igreja russa tem funcionado mais normalmente. Sáo fornecidas instaiacões para suas atividades denrro da esfera estritamente religiosa (culto, e instrução nos lares, quando solicitada) e foram restabelecidas certas institui)óes - alguns mosteiros e conlrentos, seminários e as academias teoiógicas em Troicsky Lavra, Leningrado e Kiev. Obviamenre, espera-se da igreja e de seus líderes manifesta lealdade

PERIOBI YII

O CRISTIhHISMO MOOERNO

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política, e os líderes marxistas ainda esperam que a religião desapareça com o tempo, mas abandonaram os ataques frontais. A igreja da Geórgia foi absorvida pela russa depois que o país foi anexado em 1801 (é devido parcialmente a esta situação, que trouxe ressentimento, o descontentamento encontrado em suas escolas eclesiásticas, como naquela em que o futuro José Stálin estudou), mas em 19 17 ela novamente se tornou autônoma, sob seu próprio patriarca católico [universal] e como tal foi reconhecida pela igreja russa, em 1944. Outras igrejas na Uniáo Soviética têm posição semelhante à do patriarcado ortodoxo - os Crentes Ancigos (pelo menos os popovtsi), os armênios (cujo patriarca católico [universal] reside em Etchmiadzin, na ArmGnia Soviética), os batistas russos e os Luteranos das repúblicas bálticas. Na década de

1920 as igrejas ortodoxas de áreas formalmente russas mas entáo independentes foram reconhecidas como autônomas pelo patriarca ecumênico. Tal auronomia foi extinta na Escônia (exceto para as congregaçóes no exílio) e Letônia, mas sobrevive na Polônia e na Finlândia. Na Ucrânia, uma igreja autocéfala (isto é, que pode escolher seu próprio líder) se formou durante o breve período de independência durante a revoluçáo, e essa igreja hoje sobrevive apenas entre os ucranianos dos Estados Unidos e Canadá. O s russos ortodoxos fora da Rússia podem ser classificados em três grupos principais. Alguns permanecem leais ao patriarcado eni assuntos eclesiásticos. Outros seguem a orientação de um grupo de bispos exilados, inicialmente encabeçados pelo metropolita Antônio de Kiev, que afirmam que T k h o n e seus sucessores sáo escravos do regime soviético e que a Igreja Ortodoxa Russa fora da Rússia é a verdadeira herdeira de suas tradiçóes. Seu sínodo ficou por muito tempo estabelecido em Karlovcsi, na Iugoslávia, mas após a Segunda Guerra Mundial transferiu-se para Munique e depois para os Esrados Unidos. O terceiro grupo procura evitar erivolvimento político insistindo na autonomia em assuntos de administração e de governo eclesiástico, pelo menos no momento presenre, enquanto permanece leal às tradiçóes da ortodoxia russa. O principal grupo de russos ortodoxos nos Estados Unidos, cujo nome no passado era Igreja Católica Grega Ortodoxa Russa da h é r i ca do Norte mas a parrir de 1965 passou a se chamar Igreja Ortodoxa na América, pertence a este grupo, como também uma importante seqão da igreja russa na Europa Ocidentai. Nesta última, foi estabelecido em Paris, em 1925, um importante centro teológico e eclesiástico, a Academia de São Sérgio, liderada durante muitos anos pelo notável teólogo Sérgio Bulgakov (1 871- 1944).

P[UIOPO Y I ~

O CRISTIANISMO MODERNO

ROI

organizacionalmente. Também há uma prelazia armênia na América e grupos de paróquias assírias e sírias jacobitas.

Um notável representante ecumênico da ortodoxia no Conselho Mundial de Igrejas e no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs dos Escados Unidos foi o teólogo e histo-

riador Georges Florovsky (1893-1979). Nascido na Rússia, ele ensinou por mais de vinte anos na Faculdade Teológica Orcodoxa de Paris antes de ir para os Estados Unidos em 1948, onde ensinou no Seminário Ortodoxo Sáo Vladimir, no Union Theological Seminary (Nova Iorque), universidades Columbia e Harvard e Princeton Thcological Seminary Autor e conferencista prolífico, desempenhou um importante papel ecumênico ao representar sua tradiçáo para outras. Até recentemente, o maior grupo de católicos orientais eram os remanescentes da Uniáo de Brest na Galícia (depois da partilha da Polônia, a Gdícia ficou austríaca, mas voltou a ser território polonês em 1918) e os aparentados rutenos carpatianos (anrigarnente na Hungria, mas na Checoslováquia a pareir de 1918). As dioceses uniatas na Polônia russa foram reunidas à igreja russa em 1840 e 1875. Famoso líder entre os ucranianos da Galícia foi André Szepticky (metropolita de Lvov, 19001944), um dos catdlicos orientais que se esforçou em representar dentro da obediência papal o espírito menos formalizado da piedade cristá oriental. A ocupaçáo soviética destes territórios em 1946 foi acompanhada pela reunião dos ucranianos e rurenos carpatianos ao patriarcado de Moscou, e a "Unia" ucraniana sobrevive principalmente nos "exarcados apostólicos" estabelecidos nos Esrados Unidos e no Canadá por imigrantes da Galícia e da Rutênia carpatiana que a ela permaneceram leais. Confiantes na verdade de suas próprias tradiçóes, os cristáos orientais, náo obstante, têm sido capazes de estabelecer contatos fraternos com outros sempre que a relaçáo riáo seja turbada por controvérsia ou proselieismo. Intercâmbios amistosos de várias espécies têm sido efetuados desde o skculo dezessete - mais frequentemente, embora de forma alguma exclusivamente, com a comunhão anglicana, e desde 1870 com os Católicos Antigos, que chegaram por via diferente à posicáo muito semelhante das igrejas ortodoxas. As igrejas orientais têm participado do movimento ecumênico desde as conferências de Estocolmo e Lausana de 1925 e 1927 - passo preparado pela encíclica sinodal de 1920 (publicada pelo sínodo de Constantinopla durante vacância no patriarcado), que instava uma conferência entre as igrejas sobre assuntos de interesse prático. A igrqa russa infelizmente não pôde participar em tais discussóes nas dicadas de 1920 e 1930. Mas seu interesse ficou patente na conferência de Mos-

cou, em 1948, na celebraçáo do quinto centenário de sua autocehlia, e na qual participaram muitas das igrejas ortodoxas não gregas - embora as imediatas decisóes tenham tido aspecto rígido, sendo os itens mais importantes a denúncia da polírica do Vaticano, a negaçáo em cooperar com o Conselho Mundial de Igrejas e a reserva de juízo sobre as ordens anglicanas, que haviam sido reco~ihecidascondicionalmente pelo patriarcado ecumênico e por diversas outras igrejas ortodoxas entre 1922 e 1935.

Em 1961, entretanto, a Igreja Ortodoxa Russa tornou-se membro do Conselho Mundial de Igrejas, de forma que quase todas as principais igrejas ortodoxas nacionais amodfalas entraram em plena filiaçáo naquela organização ecumênica.

Capítulo 18

O Movimento Ecumênico A história da igreja cristã tem sido permanentemente marcada por dois grandes impulsos - expansáo e integraçáo. No século dezenove, especialmente no mundo protestante, expansáo foi o rema dominante. No século vinte, porém, os movimentos no rumo da integraçáo e consolidacáo têm sido os mais importantes. O interesse na reintegraçáo da cristandade se tem manifestado de muitos modos. O termo "movimento ecumênico" é genérico, e se refere a um conjunto de movimentos e tendências visando a reuniáo, nem todos inteiramente consistentes uns com os outros. Da maior importância nos assuntos protestantes, o movimento ecumênico também tem envolvido a maioria das igrejas ortodoxas orientais. A Igreja Católica Romana por muito tempo náo tomou nenhuma parte oficial em discussóes ou atos ecumênicos.

A encíclica Mortalium Animos (1928) declarou que o único caminho pelo qual a união da cristandade poderia ser fomentada seria "pela promoçáo da volta à única verdadeira Igreja de Cristo daqueles que dela estáo separados", o que implicaria na aceitaçáo por parte destes da "infalibilidade do pontífice romano no sentido do Concílio Ecumênico Vaticano com a mesma fé com que crêem na encarnaçáo de Nosso Senhor". Essa atitude intransigente manteve fechada a porca à participacão católica no movimento ecumênico até que ocorreu uma dramática reversão durante o pontificado de Joáo XXIII (ver VII: 19).

~ ~ n í n vil oi

O GRISTIANISMO MODERNO

903

O movimento ecumênico se tornou notável no século vinte, mas suas raízes históricas vêm de mais longe. Na verdade, começam no século dezesseis. Foi no século dezenove, entretanto, que foram iniciados movimentos específicos em meia dúzia de áreas d a vida e pensamento protestante q u e desabrocharam e m agencias interdenominacionais mundiais e estimularam algumas unióes orgânicas de igrejas no século vinte.

A primeira, e de certo modo a mais importante dessas áreas, foi a esfera missionária. Nos campos missionários, os males das competi~óesdenominacionais e a nçcessidade de coordenaçáo se tornaram especialmente óbvios. O ímpeto missionário do século dezenovc desde o comeqo teve muitas feições interdenominacionais, pois muitas das sociedades missionárias recebiam auxílio de crisráos por intermédio de canais supradenominacionais. Desenvolveram-se, desde cedo, reuniões de missionários VIsando à cornunháo e à discussáo. AS primeiras dessas reuniões em escala mundial se realizaram em Nova Iorque e em Londres em 1854, seguidas por outras a intervalos irregulares. A oitava na série de reunióes foi a Conferência Missioniria Mundial, reunida em Edimburgo em 1910. No entanto, o rema diferiu das anteriores, porquanto muitos dos que deIa parciciparam não o fizeram apenas como indivíduos profundamente interessados, mas também como delegados oficiais das várias sociedades missionárias. Um dos aspectos da assembléia foi sua rota1 preparagáo com antecedência, incluindo a c i r c ~ l a ~ ãpreliminar o de volumosos estudos cuidadosamente preparados. Representantes de igrejas missionárias ou mais jovens estiveram presentes, dando boa impressáo de si mesmas. Em Edimburgo, muitas pessoas que desempenhariam importantes papéis em várias áreas do desenvolvimento ecumênico no século vinte receberam inspiraçáo e direção. Aquela conferência assinalou o momento decisivo na história ecumênica. Seu comitê de continuaçiio, criado para preservar as conquistas alcançadas em Edimburgo, desenvolveu-se até chegar ao Conselho Missionário Internacional, e m 1921. Seu primeiro presidente foi o leigo metodisca norte-americano que presidira Edimburgo, John R. Mott (1865-1955). O s membros do Conselho eram principalmente organizaçóes missionárias interdenominacionais nacionais e regionais, tais como o Comitê das Missóes Evangélicas Alemás (fundado em 1885), a Conferência de Missóes Estrangeiras da América do Norte (1893), e a Conferência de Sociedades Missionárias da Grá-Bretanha e Irlanda (19 12). Ela encorajou o desenvolvimento de conselhos cristáos nacionais nos países das igrejas mais jovens, especialmente na Ín-

dia, China, Japão, Congo e no Oriente Próximo. Esse período de crescente coopera~ á missionária o foi também período de rápida transrnissáo de incumbência no empreendimento missionário, de forma que em meados do século vinte cerca de noventa por cento do pessoal em campos missionários protestantes eram nacionais do país em que a missáo estava operando. A crescente significação das igrejas mais jovens se refletiu nas conferências do Conselho Missionário Internacional emJerusalém (1928) e Madras (1938). Na primeira, os líderes destas igrejas constituíam cerca de um quarto dos delegados, na segunda já eram pouco mais da metade.

A segunda área de crescente atividade ecumênica foi aquela referente ao trabalho com a mocidade e a educagáo cristã. Agência pioneira, náo denominacional, de considerável significaçáo ecumênica foi a Associacão Cristá de Moços, fundada em Londres por George Williams ( I 821-1905) em 1844, e que desde entáo se espalhou pelo mundo. A Alianp Mundial das ACMs foi organizada em 1855. Naquele mesmo ano também foi criada, em Londres, a Associaçáo Cristá Feminina, e sua Aliança Mundial formada em 1894. Outro importante movimento entre os jovens foi o Movimento de Esrudanres Voluntários para Missóes Es~ran~eiras, originado em 1886, numa t Massachusetcs. das conferências de veráo de Dwighr L. Moody em M o u i ~ Hermon, john R. Mott foi seu organizador, e por muitos anos seu presidente. Sob sua direqáo, foi criada ern 1895 a Federa$áo Mundial de Estudantes Cristáos, na Suécia. Os movimentos de estudantes cristáos de vários países se caracterizaram pelos aspecros profético e pioneiro; eles serviram como campo de preparo para homens e mulheres que mais tarde se tornariam importantes nas várias áreas da vida ecumênica. Tais organizações mundiais de estudantes eram predominantemente movimentos leigos, e o movimento Educação Cristá Mundial teve também fortes características leigas. As convencóes mundiais de escolas dominicais começaram a se reunir regularmenre a partir de 1889. E a Associa$io Mundial de Escolas Dominicais se formou em 1907. Em 1 9 2 4 se transformou numa federacáo de agências nacionais e interdenominacionais de educaçáo crisrã, e, posteriormente, foi rebatizada primeiro como Conselho Mundiai de Educação Cris~ã(1947) e depois como Associa~áode Escolas Dominicais (1950). A terceira área de desenvolvimento ecumênico foi a da federação para serviço cristáo e acáo ética comum; área que veio a ser denominada "Vida e Obra". Pioneiro nesse rerreno foi Samuel S. Schmucker (ver VTT: 151, que publicou em 1838 seu

Apelo Fmterno hs Igej~fi Americanas: Com um Plano pm-rr U7ziáo Católica sob Princlrpi-

PERiBiP uii

O GRISTIIINISMO MODERNO

805

os Apostólicos. Era um plano nacional no qual as denominações existentes, praticamente intactas, se tornariam ramos da Igreja Apostólica Protestante. Embora a época náo estivesse nem um pouco madura para uma séria discussão de planos como esse, eles contribuíram para o anelo por alguma unidade maior. Uma das primeiras expressóes organizacionais nessa área, embora composta inteiramente de indivíduos interessados, foi a Aliança Evangélica, organizada em Londres em 1846. Ela parrocinou conferências mundiais e serviu como porta-voz da opinião evangélica. Foi ativa especialmente na defesa da liberdade religiosa, e muito fez nesse terreno. Mas não tinha relações oficiais com as comunhões e o decorrer do século mostrou serem desejáveis tais relaçóes. O último importante secretário do ramo americano da Aliança Evangélica (organizado em 1867) foi Josiah Strong (1847-1 916), mas ele resignou em 1898 pata tomar parte ativa na organização d o Conselho Federal das Igrejas

de Cristo na América. Finalmente fundado em 1908, tinha como membros cerca de trinta denominaçóes americanas, incluindo multos dos principais grupos cristáos.

Os objetivos proclamados do ConseIho Federal eram: (1) expressar a comunhão e unidade católica da igreja cristã; (2) unir os grupos criscáos da América em servi~o por Cristo e pelo mundo; (3) encorajar a comunhão devocional e o conselho mútuo relativo à vida espiritual e às arividades religiosas das igrejas; (4) conseguir uma influência maior conjugada das igrejas de Cristo em todos os assunros referentes is condições morais e sociais do povo, de forma a promover a aplicação da lei de Cris~oem todas as reiacões da vida humana; e ( 5 ) cooperar na organizacão de ramos locais d o Conselho Federal a fim de promover seus objetivos nas comunidades locais. Em

1950 ele se fundiu com aIgumas das oucras agências interdenorninacionais dos Estados Unidos - aquelas interessadas nas missóes nacionais e estrangeiras, na educafáo religiosa e missionária, na educacão superior, na administração e n o trabalho feminino - para formar o Conselho Nacional das Igrejas de Cristo nos Esrados Unidos. Foram formadas organizações similares em outros países, como, por exemplo, em

1905, na Franqa; em 1920, na Suíça; em 1942, na Grá-Bretanha; e em 1944, no Canadá. No cenário mundial, a abordagçm federativa teve como seu maior de[ensor Nathan Soderhfom (1 866-1931), pastor e erudito luteraiio sueco, posteriormente arcebispo de Uppsala. Veterano d o Movimento de Estudarices Cristáos, estaira convicto de que as igrejas podiam servir junras em ações iticas comuns a despeiro de

dife-

renqas doutrinárias. Sua energia impulsionadora conduziii a primeira Conferência

806

HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA

Universal Cristá de Vida e Obra, em Estocolmo, em 1925. A conferência fez rápido reconhecimento das necessidades sociais do mundo, apelou à consciência cristá mundial e indicou possíveis rumos de progresso. O comicê de continuaqáo rransformou-se no Conselho Mundial Cristáo de Vida e Obra, em 1930. Este convocou uina segunda reunião mundial, a Conferência sobre Igreja, Comunidade e Estado, reaIizada em Oxford, em 1937. As bases teológicas de ação ética, que tinham sido consideradas por alto em Esrocolrno, foram cuidadosamente examinadas, e foi dada atericão ao específico papel da igreja no mundo.

A quarta área da atividadc ecumênica foi, em certo senrido, a mais precária, por envolver o confronro franco nas diferencas doutrinárias cruciais. Normalmente não é necessário ral confronro direto nas demais áreas. As primeiras discussóes ecurnênicas

protestantes no século dçzesseis fracassaram em questóes como "fé e ordem", e havia hesitação em retomá-las novamente. Porém, nenhum propósito específico para a unidade cristã, em qualquer sentido amplo, poderia evitá-las. Por exemplo, quando o episcopal norte-americano IVilliam Reed Huntington (1838-191 8) procurou apresentar os "essenciais" mínimos do anglicanismo como base para encontros de discussão, ele apontou quatro itens: (1) as Santas Escrituras como a Palavra de Deus; (2) os credos primirivos como a regra de fé; (3) os dois sacramentos instituídos por Crisro; e (4) o episcopado histórico como a pedra angular da unidade de governo eclesiáscico. Aprovado com pequenas moditicaçóes pela Câmara dos Bispos da Igreja Episcopal Americana e pela Conferência Anglicana de Lambeth, na década de 1880, esse "Quadrilátero Chicago-Lambeth" demonstrou claramente o quão central eram as questões de fé e ordem nas discussões sobre unidade. Um bispo missionário episcopal americano, Charies H. Brent (1862-1929), alcanqara uma nova visáo em Edimburgo, em 19 1O - a visáo de uma igreja reunida, mas isto somente se realizaria por meio da discussão de questóes doutrinárias que ~ i n h a msido omitidas em Edirnburgo. Ele desafiou sua própria comunhão a tomar a frente na área de "fé c ordem". Após anos de preparo, a primeira Conferéncia Mundial de Fé e Ordem se reuniu em Lausana, em 1927. Acima de quatrocentos delegados representaram mais de cem grupos religiosos. Foram amplamente discutidas algumas das mais graves quesrócs existentes entre as comunhóes e, surpreendentemente, foram descobertos grandes pontos de conraro, e prevaleceu o espírito de amizade. Um comitê de continuaçáo levou avanre o movimento, coilvocando a próxima conferência para Edimburgo, em 1937. O coilclave preparou ilotávei declaracão intitulada "A Graça de Nosso Senhor

ituiono vir

O ERISTIANISMO MODLRNII

807

Jesus Cristo", prefaciada com a afirmaçáo: "neste assunto náo há motivo para que se mantenham as divisões entre as igrejas." Mas em relação a ministério e sacramentos, foram reveladas divergências muito profundas, indicando assuntos que exigiam mais esclarecimentos. Não obstante, pareceu que no geral ficou aceito que, no âmbito doutrinário, as concordâncias entre as igrejas cobriam talvez oitenta e cinco por cento do terreno. Apareceram muitas sugestões para a unificaçáo de "Vida e Obra" com "Fé e Ordem'' num Conselho Mundial. As duas conferências planejaram se reunir em seqüência em 1937, e ambas votaram pela integraçáo. Assim, em 1938, foi preparada em Utrecht uma estrutura provisória para um conselho mundial. A "Base" adotada para o conselho foi: "o Conselho Mundial de Igrejas é uma comunhão de igrejas que aceitam nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador." Na lideranca desses movimentos estava William Temple (I88 1-19441, entáo arcebispo de York e mais tarde

(1942) de Cantuária. Filósofo e teólogo, Temple tivera papéis importantes nos movimentos de estudantes cristáos, no Conselho Missionário Internacional, em Vida e Obra e em Fé e Ordem. Agora se tornava presidente do comitê provisório do ConseIho Mundial de Igrejas "em processo de formaçáo". Durante os difíceis anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o comirê desempenhou um papel ativo a partir de sua sede em Genebra, assistindo as missóes que tiveram cortados seus lasos com suas igrejas de origem, cuidando de prisioneiros de guerra e auxiliando refugiados. Ele serviu especialmente como um elo entre as igrejas cristás da Alemanha e as de outras nações, durante o

de poderio de Hitler.

Quase imediatamente após os nazistas terem tomado o poder na Alemanha em

1933, as igrejas foram pressionadas a se conformar com as orientacóes militaristas e anti-semitas do Terceiro Reich. Muitos cristãos apoiaram o Terceiro Reich; mesmo depois que seu verdadeiro caráter ficou evidente, a oposição eclesiástica demorou a se desenvolver e ficou dividida entre aqueles que lutaram ativamente contra ele e aqueles que se engajaram em resistência passiva. Ambos os grupos participaram no movimento da Igreja Confessante, que foi apoiado por cerca de dez por cento das congregaçóes das igrejas protestantes da Alemanha e que afirmaram sua oposiqáo teológica ao nazismo na DecIaraçáo de Barmen, de 1934. O estado respondeu com restriçóes aos programas eclesiásticos e com perseguiçáo; em 1937 houve prisões em massa de líderes tanto de leigos como de clirigos, incluindo o famoso Martin Niemoller (1892-1984), pastor luterano que fora comandante de submarino na Pri-

meira Guerra Mundial. Quando a Segunda Guerra Mundial irrompeu em 1939, aumenrararn as restriçóes e perseguições conforme Hitler procurava esmagar toda oposição; a grande maioria dos pastores apoiando a Igreja Lonfessante foi convocada para o exército. O comitê provisório do Conselho Mundial de Igrejas acompanharam de perto esses desenvolvimentos e deram o apoio que podiam às igrejas sitiadas. Ele manteve elos entre aqueles engajados na luta da igreja na Alemanha e os de ourros países durante a guerra.' As semenIes para posterior cooperaçáo ecumênica entre protestantes e católicos foram acalentadas quando corajosas pessoas no clandestino movimento de resistência aos nazistas aprenderam a confiar umas nas outras e a trabalhar conjuiltamente; dianre de esmagadoras ameacas em cornum, as inimizades históricas entre estas tradicóes tornaram-se menos imporrantes.

O que fora interrompido

i ela guerra por fim chegou à realização completa em

1948, em Amsterdã, quando cento e quarenra e cinco igrejas de quarenta e quatro países participaram na finalizaçáo da organizaçáo do Conselho Mundial, aprovando a citada "Base". Deixou-se claro que o conselho náo reria autoridade constitucional sobre as igrejas que o compunham. Filiaram-se muitos dos maiores grupos protestantes da Europa e das ilhas britânicas, a maioria dos da América e da Australásia, algumas das comunhões ortodoxas e muitas das igrejas jovens da Ásia e da África. O Conselho Mundial continuou a manter ligação íntima corri as alianças mundiais da Associaçáo Cristá de M o ~ o se da Associaçáo Cristá Feminina, e com a Federasão Mundial de Estudantes Cristãos. As conferências mundiais da Mocidade Cristá reunidas em hmsterdá em 1939, em Oslo em 1947 e em Travancore em 1952 foram iniciadas conjuntamente por estas organizações mundiais.

Na segunda assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em Evanston, Illinois, em 1954, os delegados de cento e sessenta e uma igrejas determinaram "crescer juntas", mesmo quando cerras diferencas teológicas sobre a natureza da esperança cristá ~ i e r a ma lume. A terceira assembléia, reunida em Nova Déli, Índia, em 1961, admitiu muitas novas igrejas, elevando o total de membros para cento e noventa e oito. Entre as recém-chegadas estavam a Igreja Ortodoxa Russa e outras igrejas ortodoxas eslavas, juntamente com várias igrejas de países do "terceiro mundo", incluindo dois grupos pentecoscais. Ourro importante passo naquela assembléia foi a fusão

'Ver Ruth Rousç e Stephen C. Keil, eds., A Histoij of'the Ecr~nrrí~ic/iiMoueme~t, 15 17-1948, 2a ed (Pliiladclphia, 191;7), pp. 708-711.

do Conselho Missionário Internacional com o Conselho Mundial.

A quinta área de interesse ecumênico é a da uniáo orgânica da igreja. Algumas das unióes específicas já ocorridas se deram dentro de uma mesma confissáo ou dentro de uma família denominacionai. Dencre estas, destacam-se as reunióes ocorridas dentro do presbiterianismo escocês. As igrejas Separada Unida e do Alívio (ver VII:7) se fundiram sob a denominaçáo de Igreja Presbiteriana Unida, em 1847. Em 1900 esta se uniu com a maioria da Igreja Livre da Escócia, resultado do rompimento de 1843, para formar a Igreja Unida Livre da Escócia. Uma pequena minoria da antiga Igreja Livre (os "Wee Frees") se negou a participar da uniáo. 0 s direitos de padroado, motivo original das divisões, tinham sido abolidos por lei em 1874, mas foram necessários muitos anos de discussão para abrir o caminho para uma uniáo maior. Em 1921 o parlamento aprovou uma lei permitindo à igreja autonomia legislativa em todas as questóes de dourrina e prática sem interferência do estado. Mas tal lei cambém declarava ser dever da naçáo render reverência a Deus e se esforçar para promover o seu reino. Em 1929 foi consumada a uniáo, e noventa por cento dos presbiterianos do país - provavclmente mais de dois terços da populaçáo - se tornaram membros da igreja oficial, a Igreja da Escócia. Nos Estados Unidos, têm ocorrido diversas reuniões denorninacionais. Em 1918, entre os Iuteranos, o Sínodo Geral e o Conselho Gera1 se juntaram ao Sínodo Unido do Sul para formar a Igreja Luterana Unida. Em 1930 os sínodos de Buffalo, lowa e Ohio se aglutinararn para estabelecer a Igreja Luterana Americana. Uma série de uniões no início da década de 1960 deixou praticamente todos os luteranos nos Estados Unidos em três grupos principais: a Igreja Luterana na América (incluindo as igrejas Unida e Augus~ana),a Igreja Luterana - Sínodo de Missouri e a Igreja Luterana Americana (incluindo as igrejas Americana, Evangélica e Luterana Livre). A Igreja Presbiteriana, nortista, uniu-se com a maior parte da Igreja Presbiteriana de Cumberland em 1906, e em 1958 uniu-se com a Igreja Presbiteriana Unida para formar a Igreja Presbiteriana Unida nos Estados Unidos da América. Em 1983 esta igreja uniu-se com a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, sulista, para formar a Igreja Presbiteriana (EUA). A Igreja Metodista resultou da reuriiáo em 1939 da Igreja Merodista Episcopal, da Igreja Metodista Episcopal do Sul e da Igreja Metodisca Protestante (que

HISIÕRIA DA EREJA CRISTÃ

RIO

um século antes havia se separado do maior grupo de mecodistas). E m 1946 dois grupos de origem metodisra alemã se uniram para formar a Igreja Evangélica Unida dos Irmáos. Esta igreja, por sua vez, juntou-se com os metodistas em 1968 para formar a Igreja Metodista Unida. A Igreja Unitária uniu-se com a Igreja Universalista para formarem a Associaçáo Universalista Unitária, em 1961. Também têm ocorrido unióes de igrejas acima das linhas denominacionais, ou seja, unióes transconfessionais. No Canadá, o início do protestantismo fora múltiplo, o que provocara uma organizacáo muito complexa. O século dezenove foi um período de consolidaçáo denominacionai. No presbiterianisrno houve nove unióes, culminando em 1875, quando quatro grupos se juntaram para formar a Igreja Presbiteriana do Canadá. O metodismo assistiu a oito uniões, chegando ao auge em

1884, quando também quatro grupos se congregaram para constituir a Igreja Metodista do Canadá. Muitos pequenos grupos congregacionais se uniram quando três tendências se juntaram em 1906 e 1907. Mas num país de vasto território e esparsa populaçáo, era imperiosa a necessidade de uma uniáo prorestanre mais ínrima, e o movimento por uma igreja unida comecou na virada para o século vinte. Foi traçada uma "Base de União" a parrir dos padróes presbiterianos e dos Vinte e Cinco Artigos Merodistas, e um plano de governo que combinava características das diversas cradiçóes. De imediato ficou patente que anglicanos e batistas não podiam ser incluídos e que considerável minoria presbiteriana se opunha à uniáo. Somente após longos anos de labor e mui amargos debates foi que a Igreja Unida do Canadá se tornou realidade em 1925; um pouco mais de um tergo de presbiterianos ficando de fora. Em países de igrejas mais jovens ocorreu uma das mais relevantes unióes, envolvendo grupos congregacionais, presbiterianos e episcopais. Em 1908 a Igreja Unida d o Sul da Índia (ver VII:13) fora o fruto da uniáo de missóes presbiterianas e congregacionais. Era isto apenas o começo. Logo metodisras e anglicanos entraram em negociaçóes visando a união, negociações que levaram anos. A concordância básica que abriu caminho para a uniáo maior foi a de que todos os ministros no momento da uniáo seriam aceitos com iguais direiros e posiçáo, embora as congregacóes fossem salvaguardadas da imposição sobre si de ministros para cujo tipo não estivessem preparadas para aceitar. Daí, por trinta anos, todas as ordenacóes seriam feitas por bispos com a assistência de presbíteros. Em 1947 a Igreja do Sul da Índia foi estabelecida. Cinco bispos anglicanos foram reeleitos e nove novos bispos foram

p ~ n i o o oUII

O CRISTIANISMO MOOERRO

SI1

eleitos e sagrados. Assim, um milháo de cristãos indianos forain congregados numa comunháo independente, indígena.' Nos Estados Unidos, a formaçáo da Igreja de Cristo Unida formada em 1957 juntou quarro tradições denominacionais diferentes.As igrejas Congregaciond e Cristã (esta última originada no movimento reavivalista de fronteira do início do século dezenove) tinham se unido em 1931. Em 1934 fora a vez da Igreja Reformada Alemá e a Associação Evangélica (formada na década de 1840 quando grupos de imigrantes

germanófonos pietistas de tradiçáo l~iteranae reformada começaram a trabalhar conjuntamente) se unirem como Igreja Reformada e Evangélica. Os esforcos para trazerem essas duas uniões recentes para a formacáo da Igreja de Cristo Unida encontraram forte oposiçáo por parte de minorias, mas em 1961 a uiliáo de 1957 foi ratificada pela esmagadora maioria das congregaçóes de ambos os lados. Com o tempo, é possível que uma igreja unida ainda maior venha a se desenvolver. Em 1962, comecou a funcionar a Consulta sobre União Eclesiástica. Ao final da década esrwanl participando nove denominações, incluindo aquelas de formas de governo episcopal, conectivo e congregaciond, e envolvendo três comunhões negras de origem metodista.

A sexta área da atividade ecumênica tí: a de f o r n ~ a ~ ádeo associa~óesou comui~hóesdenominacionais mundiais.

AS

vezes, estas parecem operar na interseçáo de

propósitos de outras áreas do interesse ecumênico, mas em geral permanecem no princípio de que organizações como o Conselho Mundial de Igrejas não podem ser mais fortes do que as igrejas que as constituem. Em certos aspectos, a Conferência de Lambeth dos Bispos Anglicanos (1867) foi a primeira dessas organizacóes denominacionais mundiais, embora como uma reuniáo de bispos ela 6 bastante diferente das outras, exceto talvez a Conferência de Bispos Católicos Antigos (1889).

Em 1875 foi formado o que posteriormente seria a Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, e depois o Conselho Mundial Metodista, em 1881; o Conselho Congregacional Internacioiial, em 1891; a Aliança Batista Mundial, em 1905; a Federaçáo Mundial Lucerana, em 1923; a Convençáo Mundial das Igrejas de Cristo, em 1930; a Associacáo Internacional do Cristianismo Liberal e Liberdade Religiosa, em 1930; e o Comitê Mundial para Consulta dos Amigos, em 1937. Muitas dessas orgaliizaçóes iniciaram relações de consulta com o Conselho Mundial e têm sido

'Para uiii resumo dos diversos planos para unióçh c rcuni6ec de igrejas entre 19 10 r 1952, incluindo tanto aquelas que se coniplcraram corno aquelas ainda cm andarnçnto, ver ihid., pp. 496-505.

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AISTÓRIh DA IGREJA CRtSTh

chamadas "comunhões cristás mundiais".

O mundo protestante foi influenciado no stculo vinte não apenas pelo movimento ecumênico mas também por um reavivamento teológico. No dealbar do século vinte a atençáo prestada aos assuntos teológicos era geralmente mínima. Mas logo após a Primeira Guerra Mundial surgiu nova atençáo à teologia bíblica e sistemática na Europa. Os mais poderosos porta-vozes da nova ceologia "dialética" ou "de crise" foram H. Ernil Brunner (1889-1 966) e especialmenre Karl Barth (1886-1968), pastor e teólogo reformado, autor da influente obra intitulada Dopatica Eclejihtica (13 volumes, 1932-1967). Criticando as escolas de Schleiermacher e Ritschl por seu subjetivismo e relativismo, Barth colocou gande ênfase na diversidade de Deus, na centralidade da revelaçáo e na natureza pecadora do homem. Suas muitas obras têm provocado controvérsia, mas têm conrribuído para uma discussáo séria e ampla das questóes teológicas. O renascimento teológico foi estimulado ainda mais pela resistência da igreja ao totalitarismo nazista. Na Alemanha, a Declaracão de Barmen de

1934 iilsistiu em que Jesus Cristo é a única palavra de Deus a que os homens devem ouvir, confiar e obedecer. Nos Estados Unidos, começou uma mudança na atmosfera teológica na década

de 1930, quando o "realismo cristão" criticou o que percebia como suposicóes idealisras e ilusóes utópicas em muito da teologia americana, e mediou as novas correntes teológicas no cenário americano. As figuras centrais nesse desenvolvimento foram os irmáos Niebuhr e Paul Tillich. A busca persistente por uma base teológica sólida para a ética social levou Reinhold Niebuhr (1892-1971) a produzir obras da maior importância, especialmente A Natt~vezae Destino do Homem (194 1-1943). H. Richard Niebuhr (1894-1962) conjugou análises éticas, sociológicas e teológicas em sua vida de labor criativo; uma obra característica foi Crirto e Cultura (1951). Tillich (18861965) chegou à América como refugiado da Alemanha de Hitlcr e tornou-se influência importante nos mundos teológico e intelectual; seu pensamento maduro está apresentado nos três volumes de sua Teologia Sistemdtica (195 1- 1963).

O movimento ecumênico, especialmente quando este foi centralizado no Conselho Mundial de Igrejas, refleriu as contribuições teológicas destes e de outros teólogos biblicamente orientados, e por sua vez serviu como transmissor delas. Um renascimento litúrgico também estava ocorrendo no mundo protestante, modificando significativamente os níveis de compreensáo e prática no culto. Diversas comunhóes revisaram suas liturgias, enquanto as igrejas livres tenderam a incorporar cer-

s~nioinvir

O CRISTIANISMD MODERNO

8 13

tos elementos litúrgicos em seus cultos. O interesse de vários eruditos católicos e protestantes em estudo bíblico e reforma Iitúrgica auxiliou a preparar o caminho para uma notável contribuicáo ecumênica na década de 1960.

Capitulo 19

A Igreja no Mundo Em muitas áreas do mundo imediatamenre após a Segunda Guerra Mundial, as igrejas cristás, especialmente no Ocidente, pareciam estar institucionalmente bastante estáveis. O estabelecimento das Naçóes Unidas (1945) fornecera um fórurn internacional para lidar com as tensóes entre as naçóes e manter a paz. Embora a paz logo fora tensionada pela "guerra fria" entre o comunismo e as potências ocidentais, as igrejas estavam esperançosas de avanço contínuo.

A Igreja Católica Romana, sob a liderança de Eugênio Pacelli, que tomou o nome de Pio XII (1939-1958), manteve visivelmente sua postura centralizada e conservadora. Pio XII manteve em sua essência a postura tomada por Pio IX no final do século dezenove: a igreja permaneceria em sua fortaleza, prociamando suas verdades a um mundo em desordem, procurando evitar a fragmentaçáo diante de forças hosris. Pio XII trabalhou pela paz em rempo de guerra; sentiu-se inibido de condenar abertamente o Holocausto na Afemanha que estava destruindo milhões de judeus europeus por temer tornar a situaçáo pior para eles c para os católicos. Sua oposi~áo ao "ateísmo marxista" levou-o a recusar qualquer contato com os estados comunistas, e eie proibiu a cooperaçáo de católicos com rais regimes. Náo teve nenhum interesse no movimento ecumênico, nem permitiu que catblicos participassem no Conselho Mundial de Igrejas. Certo da autoridade magisterial da igreja católica em questões de lei natural e moralidade, falou e escreveu sobre uma ampla variedade de tópicos. Líder austero e isolado, fez uso eficiente dos meios de comunicacóes modernos, e tornou-se uma figura familiar na igreja e no mundo de sua época. A promulgaçáo em 1950 do dogma da assunçáo corpórea ao céu da Virgem Maria foi consistente com o espírito das tendências dominantes na igreja no século dezenove, ao

questionarnento das formas ocidentais de culruar a Deus, organizar igrejas e formu-

lar teologias. Emergiu bruscamente uma convicçáo no "terceiro mundo" que as nacóes ricas da Europa e da América do Norte, tanto capitalistas como comunistas, especialmente os Estados Unidos e a União Soviética, ficavam cada vez mais ricas enquanto as naçóes pobres ficavam relativamente cada vez mais pobres. O egoísmo institucional e a complacência de muitas igrejas ocidentais sofreram ataque considerável, c-anto do interior delas mesmas como do exterior, pois havia uma crescente convicção de que as igrejas deveriam demonstrar uma preocupaçáo muito maior do que até entáo com o sofrimento das pessoas mais pobres e menos poderosas do mundo, muitas das quais eram negras ou pardas ou amarelas.

A crescente sensibilidade às injustiças e desequilíbrios do mundo, combinada com a crescente irritaqáo quanto ao uso da forca militar, levou a uma crítica mais profunda das barl-eiras institucionais entre cristáos católicos, ortodoxos e protestantes, pois elas dificultavam a colaboraqáo eficiente visando ao bem-estar humano. A colaboração entre católicos e protestantes em oposiçáo ao totalitarismo na dt'cada de

1930 fornecera alguns precedentes que náo foram esquecidos. Foi frequentemente expressa uma aspiraçáo por renovaçáo e reforma em níveis mais profundos que o reavivamento da religião no pós-guerra alcançara; emergiram insatisfagóes com os estilos de piedade e organizaçáo tradicionais na igreja. Surgiu considerável crítica, tanto aberta como dissimulada, especialmente entre os leigos e os jovens.

O ímpeto para renovacão e reforma na Igreja Católica Romana, entretanto, veio inesperadamente de cima. Quando Ângelo Giuseppe Roncalli foi elevado ao ponrificado em 1958 e tomou o nome de João XXIII1 (1958-1963), muitos acharam que sua administração seria "zelosa". Mas como diplomata eclesiástico, ele tivera considerável experiência com movimentos sociais e políticos de vários tipos. As f u ~ i ~ ó e s que lhe foram atrjbuídas na Bulgária, Turquia, Franga e Alemanha colocaram-no em contato com os mundos ortodoxo e não-católico e com muitos tipos de agrupamentos políticos. Como papa, ele manifestou uma determinaçáo em guiar sua igreja para uma reconciIiaçáo de seus padróes de fé e vida diante das necessidades do mundo, e também para genuínas reiagóes ecurnênicas com oucras igrejas cristãs. No início de

' Nerihilm papa utilizara o nomeloáo drsdc 1415, q u ~ n d oo primriro Joáo YXIII, um dos três papas riuais no final do grande cisma, desonrara o nome e Cora drpostii n o concilio de Consrança (ver \':14). Ao selecioná-lo, o papa Joáo restaurou para o papado um nomr que rem sido muito quçrido na história cristã e usado por mais papas do que qualquer outro tiorne.

81 6

HISIÓRIA DA IGREJ1 CRISTA

1959 ele anunciou que convocaria o Vigésimo Primeiro Concílio Ecumênico (Vaticano 11), o qual reuniria os bispos da igreja romana de todas as partes do mundo. Em 1960, ele estabeleceu o Secretariado para a Promoqáo da Unidade Cristá e

L:-. I--:

nomeou o cardeal Augustin Bea (1881-1968) como seu chefe, criando assim um

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canal efetivo para diálogo com outras igrejas. O papa nomeou cinco observadores oficiais para atenderem a terceira assembléia do Conseiho Mundial de Igrejas, e convidou comunhóes protestantes e ortodoxas para enviarem observadores ao Vaticano

11; muitas aceitaram o convite. A preocupaçáo de Joáo XXIII com as necessidades humanas e os problemas mundiais se refletiu em duas notáveis encíclicas. Mater et mugistra (1961) foi uma atualizaçáo d o ensino social catdico na t r a d i ~ á oda Rerum novarum e

Quadmgesimo anno, publicada no septuagésimo e trigésimo aniversários, respectivamente, destes documentos. Pacem in terrts (1963) foi dedicada ao estabelecimento de condições que poderiam conduzir à paz tiniversal em verdade, justiça, caridade e liberdade. Ela declarou que "todos os homens sáo iguais em sua dignidade natural" e conclamou o final da corrida armamentista, enfatizou a crescente interdependência das economias nacionais e instruiu os católicos a trababarem com pessoas de oucras crenças para o bem-estar comum. Após riiais de três anos de preparagáo, iniciou-se o Vaticano I1 em 11 de o u ~ u b r ode 1962, na basílica de Sáo Pedro, em Roma. Logo ficou evidente que a desejada "atualiza~ão"(agiornamento) da igreja não seria fácil, pois forças progressivas e reacionárias entre os mais de dois mil bispos presentes discordavam em muitos particulares. O espírito de reforma e ecumenismo de fato irrompeu durante a primeira sessão, embora o concílio tenha sido suspenso em 8 de dezembro sem resultados finais apreciáveis. Joáo XXIII faleceu no mês de junho seguinte. Seu sucessor, Giovanni Battista Montini, Paulo VI (1963-1978), determinou-se a completar e i m ~ l e m e n t a ro concílio, que se reuniu por três sessóes mais, a cada outono. O papa Paulo não emergiu como a figura carismática que fora seu predecessor, mas seu interesse na reconciliação com outros foi dramatizada pela sua jornada à Terra Santa no inicio de 1964, duranre a ¶ual ele encontrou-se com o patriarca de Consranrinopla. Um resultado desse encontro foi a publicaçáo, em

7 de dezembro de 1965, de

declarqóes idênticas de Roma e de Conscantinopla lamentando as palavras ofensivas e gestos repreensíveis de ambos os lados quando dos tristes eventos da sepa-

raqáo de 1054, e removendo as sentenças de excomunháo.

A primeira obra completa do Vaticano I1 foi a Constituiqáo sobre a Sagrada L i ~ u r ~ iEdificando a.~ sobre o trabalho do movimento litúrgico, ela proporcionou a revisão do rito da missa colaborando para sua celebração mais comunitária. Outros dezesseis textos foram adotados pelos padres do concilio, variando em tamanho desde a Declaraçáo sobre o Relacionamento da Igreja com Religiões Náo Cristãs, que tinha pouco mais de mil palavras, até a Constituiçáo Pastoral sobre a Igreja no Mun-

do Moderno, de mais de vinte e três mil palavras. A primeira se referia primariamente à sensível área das relaqóes judeo-cristãs e tem sido criticada como parcialmente frágil e algo obscura. Ela de fato deplorou toda forma de anti-semitismo e toda discriminaçáo ou molestamente por causa de raqa, cor, condiçáo de vida ou religiáo, e encorajou o diálogo com membros de religióes náo cristãs e cooperaqão com eles visando ao bem comum. A Constituiçáo Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno foi direcionada náo apenas aos fiéis mas a "toda a humanidade", e conscientemente dirigiu a igreja ao serviço da família humana. Ela instruiu o clero e o laicato a coiaborarem em um ministério de servi~o,do qual possa emergir um mundo mais humano e misericordioso, apesar dos aspectos desumanizantes da sociedade tecnológica. Muitas nuanqas das "encíclicas sociais" ecoaram no texto. Uma das tarefas incompletas do Vaticano I fora a conclusáo de uma Constituiqáo sobre a Igreja - o fim abrupto daquele concílio deixara apenas os capítulos sobre o papado aprovados. Entrementes, foram produzidas algumas declaraçóes significativas, especialmente a importante encíclica de Pio XII, Mystici corpovis Cbrzstz' (1943). Houve muito preparo na eiaboracáo da Constituiçáo Dogmática sobre a Igreja do Vaticano 11; o rascunho foi revisado várias vezes durante as sessóes. Amplamente considerado como a obra-prima do concilio, o texto afastou-se de ênfases hierárquicas e juridicas para uma posição mais bíblica, histórica e dinâmica. De importância central foi a ênfase na colegialidade, no papel sacerdotal de rodos os bispos que, com o papa, formam coletivamente um "colégio" responsável pela direção da igreja. Um capitulo final sobre a Virgem foi colocado nesse texto de forma que a mariologia não ficasse isolada dos outros temas teológicos e eclesiológicos. Afirmando os vários títulos que têm sido concedidos a Maria pela igreja, a Constituiqáo sobre a Igreja decla-

I'ara os rrxtos adorados pelo concílio em rraduçLo inglesa, ver Ausrin Flannzry, ed., Kzticarz CounciiIL The Conciliar andPost-Conrilinu Documen~j(Wilrningtun, DE,1975).

RIR

nrsrd~inon IRREJA ciisrií

rou que "eles nem tiram nem adicionam nada à dignidade e eficácia de Cristo, o único Mediador" (111, 62)

.'

Pastoral e ecumênica, essa constituição abriu o caminho para diálogo frutífero

SCLZ

ec2:do :r

com teólogos ortodoxos, anglicanos e protestantes. Algumas de suas posiçóes foram

2

rapidamente impiementadas; no início da sessão final do concílio, Paulo VI instituiu

esc:-

um Sinodo de Bispos, no qual representantes do episcopado do mundo inteiro se

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reúnem regularmente em Roma.

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O Vacicano I1 produziu outro documento teológico fundamental, a Constituição

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Dogrnática sobre a Revelacá0 Divina. Seu texto foi muito informado pela erudiçáo

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ecumênica geral sobre a revelacão e sua transmissáo, afastando-se de atitudes anteri-

sob:;

ores para com as Escrituras e a tradijáo como "fontes de revelaqáo". Ela utilizou

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seriamente os modernos métodos de interpre~açáobíblica ao manter o tom de uma

cão :

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-

encíclica de visáo avançada de Pio XII, Divino aflante Spiritu ( 1943). Para ela, a

C

revelaqáo é a rnanifestacáo por Deus de si mesmo, de sua vontade e intenções, publi-

sc;:

cament-e concedida à liurnanidade. A Escritura contém a revelação na forma de um

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registro escrito, juntamente com relatos de seus efeitos e das reaçóes humanas a ela.

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Os escritos bíblicos sáo lidos e interpretados pela comunidade viva da igreja em sua

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contínua tradição de compreensão e explanaçáo sob a liderança do magistério guia-

coz- L.

do pelo Espírito Santo. O documento finalizou enfatizando a importância de fácil

.[a::

acesso à Escritura por [odos os fiéis, por ~raduçóescorretas e apropriadas. "E se, dada

r12 I '

a oportunidade e a aprovaçáo da autoridade da Igreja, essas traduçóes forem produ-

nc z.

zidas em cooperacão com os irmáos separados, todos os cristáos seráo capazes de

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utilizá-las" (VI, 22). Uma conseqüência desse juízo foi a aprova~áopara uso católico

ms.-.:

da Revised Stizndard Ersion [Versáo padráo revista] da Bíblia, que fora preparada

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principalmente por erudicos protestantes.

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Para o mundo não católico, o Decreto sobre Ecumenismo do concílio foi de

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particular interesse. Até o pontificado de Joáo XXIII, o ecurnenismo católico signifi-

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cara em grande medida labor para o retorno de todos os crist-áospara a Igreja Caró-

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lica Romana, e essa comunhão não vinculou-se oficialmente a muitos aspectos do

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movimento ecumênico. O Decreto sobre Ecumenismo assinalou formalmente uma

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reviravolta e colocou a Igreja Católica Romana honestamente no movimento

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' As rcfcrkncias cntrc paríntesçs ao final d a citaçáo dc um tcxto 6ornecem o número do capítulo c da secár) d o documrnro do qual a ciraçáo foi extraída.

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2.

PER~II~O '111

Iú. O

O CRISTIANISMO MODERIO

819

ecumênico, convocando os fiéis a assumirem participaqão ativa na obra de ecumenismo. Admitindo que as divisões entre os cristáos foram o resultado de pecado em ambos os Iados, o texto referiu-se àqueles fora da igreja romana como "igrejas e comunidades separadas" que padecem de certos defeitos de doutrina, disciplina ou cstrurura mas náo obstante "iláo estão de forma alguma destituídas de significância e importância no mistério da salvação" (I, 3). A cooperaçáo dos catóIicos com elas deve ser encorajada especialmente em regiões onde está ocorrendo evolução social e técnica, e deve ser empreendido diálogo em assun[os de fé. Sob certas circunstâncias especiais, a oraçáo corporativa é considerada desejável. O comentário protestante sobre esse decreto foi geralmente favorável, embora tenha havido certa inquietação em referência à contínua tensão entre seu sincero espírito ecumênico e a pressuposição de que a Igreja Católica Romana é a única igreja verdadeira. Originariamente uma parte do rascunho do Decreto sobre Ecumenismo era uma seçáo que se tornou a Declaracão sobre Liberdade Religiosa. Ele detonou no concílio um debate incenso, vigoroso, por vezes emotivo, pois afirmava posiçóes sobre iiber-

dade religiosa que tinham sido rejeitadas em cxpressóes como o Sílabo de Erros. A declaração inequivocamente afirmou que "todos os homens devem ficar imunes à aia-

coerção da parte de indivíduos ou de grupos sociais e de qualquer poder humano, de

5cil

tal forma que em assuntos religiosos ilinguém seja forgado a agir de maneira contrá-

Lada

ria às suas próprias crenças" (I, 2). Ela declarou que a liberdade religiosa tem sua base na dignidade da pessoa, que pode ser conhecida tanro pela razáo humana através da experiência histórica como pela revelacáo. O documento contribuiu significativamente para uma nova franqueza nas relaçóes católicas com outras igrejas e nos negócios seculares. Mas ao abrir um tópico para atençáo contínua - o significado teológico da liberdade cristã - o decreto com o tempo poderá produzir ramificações inesperadas.

A maioria dos outros documentos conciliares foram decretos lidando em grande parte com assuntos prácicos da vida da igreja, tais como o ofício episcopal, a formaçáo sacerdotal, a renovaçáo da vida religiosa, o ministério e a vida dos sacerdotes, as rnissóes e a educação. Em 6 de dezembro de 1965, o concílio foi formalmente encerrado. Profeticamente, a última mensagem do concílio foi para os jovens do mundo, que nele devem viver "em um

das mais gigantescas transformaçóes jamais

realizadas em sua história." Eles foram exortados a abrir seus coraçóes às dimensões do mundo, a colocar suas energias ao serviço de seus irrnáos, a construir com entusi-

820

HISTÕAIA DA ICREJI CRISTA

asmo um mundo melhor do que o que receberam de seus pais.

O Vaticano I1 recebeu muita atençáo da imprensa; foi um grande evento no mundo como na história eclesiástica. Seu impacto rapidamente começou a ser sentido, dentro do aprisco e no movimento ecurnênico. A reforma litúrgica veio rapidamente, com o uso bastante intensivo do vernáculo na missa. As estruturas das hierarquias nacionais foram reorganizadas em várias instâncias. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi organizada em 1966 a Conferência Nacional dos Bispos Católicos; ela ficou responsável pela Conferência Católica dos Estados Unidos, a conrinuaçáo da Conferência Naciond para o Bem-Escar. -.

Mais dramática foi a rápida escalada de contatos ecumênicos entre católicos e

>r:

outros cristáos. Em 1965 foi estabelecido um "grupo de trabalho" conjunto entre o

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Secretariado para a Promoçáo da Unidade Cristá e o Conselho Mundial de Igrejas.

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Foi iniciada a representaçáo católica na Comissáo Fé e Ordem do Conselho Mundi-

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al, e discutida publicamente a possibilidade de filiaçáo formal da Igreja Católica

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Romana ao concílio.

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Em vários países, dependendo da situação, desenvolveram-se manifestaqóes paralelas. Nos Estados Unidos, foi criado um grupo de trabalho conjunto entre o Conse-

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lho Nacional de Igrejas e o Comitê Episcopal para Assuntos Ecumênicos e Interreligiosos. Esta última agência tem sido responsável pelo início de diversos diá-

cl .r1

logos teológicos bilaterais entre católicos e representantes de outras tradicóes: batis-

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tas, discípulos, episcopais, luteranos, metodistas, reformados, presbiterianos e orto-

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doxos. Várias paróquias e dioceses católicas se junraram ou começaram a cooperar

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com conselhos regionais de igrejas, os quais algumas vezes foram reorganizados para

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..

responder às novas necessidades. Em níveis locais, os diálogos entre católicos e ou-

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tros leigos cristáos se desenvolveram impressionantemente.

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As mudanças memoráveis no catolicismo suscitaram, de fato, alguns problemas sérios. Muitos dos fiéis ficaram desnorteados com as mudanças e perturbados pelo

desaparecimento de costumes anrcriores. Outros tiveram suas esperanças por rejuvenescimento e liberdade elevadas tão alto que o reformismo burocrático que foi oferecido pareceu demasiadamente lento e autoritário; alguns desses derivaram para igrejas "livres" ou "clandestinas", enquanto outros abandonaram a fé.

O papa Paulo reafirmou a postura tradicional da igreja sobre controle de naralidade na encíclica Hurnanae vitae (1968), na qual foram absolutamente proscritas rodas as formas artificiais de controle de natalidade, apesar do fato de que a opiniáo

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P E R ~ O ~YIIE

O CRISTIANISMO MOOERN0

821

da maioria de uma comissão especial que fora convocada para fornecer orientaçáo era a favor de mudanças. Muitos teólogos e leigos católicos objetaram fortemente contra a encíclica, argumentando que ela não estava de acordo com as expectativas geradas pela Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno. Uma nova liberdade estava sendo expressa na igreja; declaraçóes mesmo das mais altas fontes escavam sendo lidas criticamente. Também estava havendo tensáo sobre a regra do celibato clerical; alguns esperavam que a regra milenar pudesse ser relaxada. Milhares deixaram o sacerdócio e as ordens religiosas. Apesar das diferenças de opiniáo quanto a quão distante e rápido a igreja poderia ser renovada, o Vaticano 11 simbolizava que fora dado um novo passo significativo que os observadores consideravam praticamente irreversível. A determinação em focar os complexos problemas mundiais contemporâneos inevitavelmente significava que surgiriam muitas novas rerisóes. Executar um amplo programa de reforma em uma época de turbukência mundial, quando muitos desejavam a segurança do familiar e do permanente, enquanto outros estavam ansiosos para experimentar o revolucionário, provou ser difícil. A igreja ao final de uma dtcada de mudancas espantosas encontrava-se em um período de teste dos mais difíceis em sua história. De cerca forma é mais difícil resumir as tendências nos mundos protestante e or~odoxona tempestuosa década de 1960, porque náo houve nenhum centro para as diversas comunhões envolvidas - grupos com tradições e estilos bastante diferentes espalhados pelo mundo, muitos deles desdobrados em estruturas nacionais autônomas. Houve uma tendência observável durante a década para major preocupaçáo com o mundo, para o serviço àqueles em necessidade e àqueles incapazes de falarem efetivamente por si próprios. O deslocamento para um envolvimento com o mundo secular expressou-se em diferentes maneiras, muitas delas controversas. Nas reunióes ecumênicas a atenção ao mundo e seus problemas absorvia cada vez mais atençáo. Isso náo significou que questões de teologia e dc governo da igreja fossem negligenciadas.

O Conselho Mundial sempre se esforc;oupara manter os interesses de vida e obra e de fé e ordem em equilíbrio criativo. Nos primeiros doze anos de sua vida, muitos equhocos históricos entre as igrejas filiadas tiveram que ser vencidos, e foi necessária uma ênfase considerável em questões teológicas e eclesiológicas. Continuou a ser dada muita atençáo a tais assuntos na década de 1960, porém mais ainda foi dedicada às demandas de ministério e serviço ao mundo. A mudança foi sentida no início da

8.22

HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ

década. Na terceira assembléia em Nova Dtli, as familiares questões teológicas sobre a natureza d a igreja e sobre a realização de unidade eclesiástica foram muito debatidas. Uma das três seçóes principais da assembléia considerou "tesremunho", e uma parte importanrc de seu relatório foi inri~ulada"Remodelando a CornunidadeTestemunhá'. A s e ~ á osobre "unidade" aprovou o famoso parágrafo que se tornou conhecido como a "Declaraç.ão de Nova Déli": Cremos que a unidade, que é tanto a vontade de Deus como uma dádiva para sua igreja é feita visível quando todos em todos os lugares q u e sáo barizados em Jesus Cristo e o confessam como Senhor e Salvador sáo trazidos pelo Espírito Santo em UMA comunháo completamente leal, defendendo a fé apostólica, pregando o evangelho, partindo o páo. reunindo-se em oragáo comum e rendo lima vida corporariva alcançando com testemunho e serviço a rodos e que ao mesmo rempo esráo unidos com a totalidade da comunhão crisrá em rodos os lugares e todas as épocas de tal forma que minisrério e membros sáo aceitos por todos, e que todos podem agir e falar conju~iramenrequando a ocasiáo assim o exigir para as tarefas às quais Deus convoca seu povo. Muitas das preocupagóes teológicas dos primeiros anos d o Conselho Mundial estavam refletidas nesse parágrafo; a seção do comentário sobre clc fazia muitas referências a discussóes eclesioiógicas anteriores.

O fato de que a terceira assembléia aconreceu na Índia ajudou a dramatizar as questóes de fome e pobreza em diversas partes d o mundo. A seção sobre "serviqo" insistiu em que muitas das formas cristãs familiares de filantropia e serviqo estavam tão ultrapassadas que eram de pouca valia na sociedade contemporânea. Foi declarado, assim, que tinham que ser encontradas novas formas de expressar a obediência da igreja serva no mundo moderno.

A inspiração teológica para muito d o impulso em direção ao "crisrianismo rnundano" n o Conselho Mundial e seus membros, foi extraída e m parte considerável da obra inacabada de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), jovem teólogo alemão que foi martirizado na prisáo nos meses finais da Segunda Guerra Mundial. Aiguns dos defensores d o "ecumenismo secular", especialmente entre os líderes mais jovens das igrejas, estavam impacientes com os estilos mais antigos das discussóes de fé e oordem. Estas foram continuadas, mas sobre uma base mais ampla e mais diversificada.

A quarta Conferência Mundial sobre Fé e Ordem foi realizada em Montreal em 1963, com a parricipaçáo plena de teólogos ortodoxos, a presença de observadores católicos e a contribuiçáo de evangélicos conservadores aos debates.

~ ~ i l e vil ao

O ERISTI/iNISMO MODERND

R23

A mudanqa na ênfase evangélica para o serviço ao mundo tornou-se mais pronunciada conforme transcorria a década. Em 1966, o departamento de Igreja e Sociedade do Conselho Mundial patrocinou uma conferência em Genebra, "Cristãos nas Revoluçóes Técnica e Social de Nossa Época." Foi uma reunião singular pois nela houve maior número de participantes provenientes da África, Ásia e América Latina do que em qualquer conferência anterior desse tipo. Também foi a primeira grande conferência ecumênica na qual a maioria dos parricipantes eram leigos. A nova postura ecumênica católica romana foi demonstrada pela presença de observadores oficiais e diversos palestrantes principais. Outras denominações não afiliadas ao Conselho Mundial se fizeram representar. A perspectiva do "rerceiro mundo", crítica d o desequilíbrio de poder pelo qual a Uniáo Soviérica e os Estados Unidos exerciam tal controle decisivo sobre o mundo inteiro, foi apresentada vigorosamente.

O vasro abismo entre as nações ricas e as nações pobres, entre os desenvoividos e os subdesenvoividos, foi dramatizado de diversas maneiras; tal situaçáo, concordou-se, náo deveria continuar, especialmente diante do fato de que agora estavam disponíveis os meios tecnolbgicos para fornecerem o suficiente para todos. Houve muita discussão sobre a relação entre a natureza revolucionária do evangelho e a revoluçáo social no mundo contemporâneo. AIguns defendiam a participaqáo cristá na atividade revolucionária, envolvendo violência se necessário. O relatório de uma seção observou que em alguns casos onde pequenas elites governam as custas do bem-estar da maioria, os cristáos devem participar em movimentos políticos que operem para a realizaçáo de uma ordem social justa o mais rápido possível. Em tais casos, declarou o relatório, os cristáos náo precisam descartar a p ~ z o roi uso de métodos revolucionários, pois "pode muito bem ser que o uso de métodos violentos seja o único recurso daqueles que desejam evitar o

da vasta violência es-

condida que a ordem existente envolve."" No geral, a conferência concordou em que a igreja deve estar do lado da revoIuçáo social contra stria injusti~a,embora ela estivesse dividida sobre o uso apropriado

de violência na revoluçáo. Foi enfatizado que o papel dos cristãos e das igrejas é trabdhar dentro das ordens seculares para humanizá-Ias, reformar a sociedade para o bem do ser humano. Eles trabalham sempre a partir de uma perspectiva cristá, sensí-

" ~ a l R. Alhrechr e M. 143.

Thomas, eds., Tbe Worfd Confirence un Church andSocieq (Genebra, 1967), p.

824

HISTORIA DA IGREJA GRISTi;

veis ao juízo divino sobre os negócios humanos. O grupo de trabalho em teologia e ética social explicou que "o discernimento pelos cristãos do que é justo e injusto, humano e desumano nas complexidades da transformaqáo política e econômica, é uma disciplina exercida em permanente diálogo com os recursos bíblicos, a mente da igreja através da história até hoje, e as melhores noçóes da análise social científica. Mas ela permanece uma disciplina que almeja náo um sistema teórico de verdade mas a açáo na sociedade humana. Seu objerivo não é simplesmente compreender o mundo mas responder ao poder de Deus que o está re~riando."~

h decisóes de uma conferência sob os auspícios do Conselho Mundial $20 de narureza basranre diferente daquelas de um ConcíIio Vacicano. As reunióes sáo, em cornparaçáo, muito breves (a conferência de Genebra durou duas semanas), e somente participam poucos oficiais de alto escaiáo das igrejas. Consequenternente, tais reunióes não

falar oficialmente pelo Conselho Mundial ou por suas igrejas

afiliadas. Mas ao falarpam elas, a conferência de Genebra revelou um forte interesse emergente nas igrejas pelos sérios problemas sociais, econômicos e políticos contemporâneos. Nas questões raciais, foram reafirmadas as declaraçiies inequívocas das assembléias e conferências anteriores do Conselho Mundial contra todas as formas de segregaçáo e [email protected]. As igrejas foram instadas a resistir, aberta e ativamente, i perpetuacáo do mito da superioridade racial que encontra expressão nas condiçóes sociais e no comportamento humano corno também nas leis e nas estruturas sociais. Um ponto alto da reuniáo foi um sermáo por Martin Luther King, Jr. (1929-

1968), proeminente líder não violento do movimento por direitos civis nos Estados Unidos. Fundador da Conferência da Liderança Cristá do Sul, King desempenhou um papel importante no aumento do apoio ecumênico e eclesiástico à comunidade negra na América em sua busca por justica. Impossibilitado de estar em Genebra por causa dos tumulros em Chicago, o sermáo de King, rejeitando a violência sem senrido e ressaltando a ironia de uma naqáo fundada no princípio da liberdade ter que passar por uma permanente luta pelos direitos humanos, foi gravado e enviado para Genebra a tempo de ser apresentado no culto. Menos de dois anos depois, King, mártir cristáo moderno, morreria no campo de batalha pelas mãos de um assassino. Uma convergência importante do interesse católico, prorestante e ortodoxo pela i

Ibid., p. 201

i ~ n i a o ouii

O CRISIIIINISMO MODERNO

825

igreja no mundo foi dramarizada pela Conferência de Beirute sobre Cooperaçáo Mundial para o Desenvolvimento, realizada em 1961. Planejada e concretizada conjuntamente pela Igreja Católica Romana e pelo Conselho Mundial de Igrejas, ela reuniu especidistas nos problemas políticos e econômicos mundiais para desenvolver uma

"estratégia para desenvolvimento" consisrenee com uma análise teológica.

As bases para discussão foram o relatório de Genebra e uma encíclica de Paulo Vi sobre desenvolvimenro e ajuda ao terceiro mundo, Popularum prog~essio(1 9671, na q u d foi defendido que "uma nova palavra para paz é desenvolvimento." As decisões da conferência inscaram os cristáos a serem politicamente ativos em uma base ecumênica de maneiras relevantes a situaçóes locais parriculares, maneiras que poderiam incluir lobies, marchas, assembléias e outras formas de pressão para realçar a responsabilidade governamental para com as nações subdesenvolvidas. Foi recornendado que fosse mantido o comitê exploratório conjunto da Igreja Católica Romana e do Conselho Mundial, fundado no ano anterior, sobre Sociedade, Desenvolvimento e Paz (SODEPAX).

A quarta assembléia do Conselho Mundial, em Uppsala, Suécia, em 1968, continuou muitas dessas linhas de pensamento e ação. Naquele momenro, o Conselho incluía como suas afiliadas muitas das maiores e diversas das menores igrejas protestantes e ortodoxas e desfrutava uma cooperação crescente com o catolicismo rornano, fornecendo assim uma arena que espelhava as várias tendências e tensóes das igrejas. A assembléia de Uppsala aceitou o relatório da conferência de Genebra de 1966 e respondeu favoravelmente as recomendações da recém-interrompida conferência de Beirute. Caracteristicamente procurando manter um equilíbrio criativo entre as preocupações teológicas e a atenção à aqáo e ao servi50 no mundo, essa assembléia dedicou mais tempo e energia a esta úrtima. Assuntos como guerra e paz, direitos hunianos, participação plena das mulheres nos negócios da humanidade, objeçáo consciente seletiva à guerra, racismo, refugiados, justiça econômica, nacionalismo e regionalismo, estruturas e taxas internacionais, fome no mundo e descnvolvimento mundial foram discuridos e destas discussócs foram esbocadas recomendacóes. Em uma declaraqáo adotada pela assembléia, uma secáo afirmava que "ser complacente diante da necessidade do mundo é ser culpado de heresia prática."Ws W o r r n a ~ C;oodall, i

ed., Thc Upprala Rrport> 1968 (Genebra, 1?68), p. 51

HISTORIA I A IGREJA CRISTA

826

membros do Conselho Mundial foram instados a cooperar ativamente em todos os

Áfri::

níveis com igrejas náo membros, grupos não eclesiásticos, representantes de outras

um -

religiões e pessoas de boa vontade em todos os lugares para o bem da humanidade, e

ársz;.

a contribuir sacrificialmente para o desenvolvimento. A intervençáo militar america-

te c:

na no Vietná foi criticada rispidamente, tanto por americanos oponentes da guerra

aurc;

como por outros. Os jovens participantes em Uppsala recordaram aos delegados

tas r-:

enfaticamente que estavam impacientes com os relatórios altissonantes seguidos por

radizr

quase nenhuma açáo e cansados da timidez e da atitude "a vida é assim mesmo",

rep:,

diante do tratamento injusto e desumano despendido a grande parte da populaçáo

berii.

humana.

IOei;r

A quarta assembléia foi um aconrecimento vibrante, com grande freqüência, algo tempestuoso. As assembléias anteriores não ficaram sem seu drama, mas seu

C51d-.;

odni

x,

tom foi mais calmo que desta vez com seus discursos francos e encontros dissonantes. Os esforços para servir às necessidades do mundo de maneiras rele-

dor

vantes introduziram algo da turbulência do mundo na vida da igreja.

UT.C

Como foi descrito, tais reuniões refletiram muitas das preocupações premen-

líder

tes e rumos dominantes da igreja cristã em todo o mundo. Em muitas áreas,

dor : .

evidentemente, as igrejas cristãs continuaram seu caminho praricamente sem ser

o

influenciadas pelo que era dito nas assembléias mundiais, pois elas estavam lu-

dc

tando com problemas peculiares de suas próprias situaçóes. Em muitas congregaçóes na Europa e na América, houve pouca conscientizaçáo real das necessidades do mundo ou mesmo dos problemas circunvizinhos; ao invés, houve uma focagem institucional interna, por vezes misturada com uma nostalgia pelos dias anteriores mais calmos. Em muitos países sob o domínio comunista, em geral a religião organizada continuou a declinar, porém revelou surpreendente persistência, frequentemente em formas menos tradicionais. Estavam-se desenvolvendo associaçóes ecumênicas regionais para lidarem com as relacões eclesiásricas em áreas particulares - a Conferência Cristá do Leste Asiático foi fundada em 1959; o comitê de continuaçáo da Conferência das Igrejas do Pacífico naquele mesmo ano; a Conferência de Igrejas da África em 1963 e a Conferência de Igrejas Européias no ano seguinte. Na África, continuou a proliferação de movimeritos proféticos independentes, alguns aparentados com as correntes dominantes da vida cristã, outros movendo-se fora de qualquer coisa reconhecidamente cristá. No final da década de 1960, foi noticiado que na

c': 1 :

v~ironouii

O ERISTIANISMO MODERNO

827

África ao sul do Saara havia mais de duas mil igrejas independentes com mais de u m milháo de seguidores. Mas para muitas das igrejas da África, corno em outras áreas, houve crescente relac~onamentocom o movimento ecumênico, juntamente com rima clara determinação para encorajar o desenvolvimento d e padrões

autóctones de culto e organizacão cristã. No pensamento teológico, houve rnuitas novas tendências na década de 1360; algumas delas, especialmente a teologia radical da "morte de Deus", atraíram por breve tempo arençáo considerável. Mais represenrarivos foram os esforcos para estruturar teologias da esperanca e da libertaçáo. Tais esforços, informados pela longa história de reflexão bíblica e teológica e moldados nos cadinhos do encontro da igreja com o mundo moderno, estavam-se movendo no fluxo de vida que cem fluído através de alguns dos períodos criativos da história da igreja. Na década de 1970, o ressurgimento d o protestantismo evangéiico conservador com sua ênfase tradiciorial na Bíblia, em missáo e evangelizaçáo tornou-se uma das principais tendências. O aTranFo comecara em décadas anteriores; um líder destacado foi Carl F. H. Henry (1912- ), teólogo americano e editor fundador do periódico Christianip Taduy em 1956, que dez anos mais tarde presidiria o Congresso Mtindial de Evangeliza~áorealizado em Berlirn, com a participacão de perto de mil e duzentas pessoas provenientes de mais de cem nações. Depois, em 16-25 de julho de 1974, foi realizado em Lausana, Suíca, o Congresso Inrcrnacional sobre Evangelizaçáo Mundial, com o dobro de participantes, provenientes de mais de cento e cinqüenta naçóes e de cento e trinta e cinco denominaçóes protestantes, metade deles do terceiro mundo. O proeminente evangelista americano, William F. (Billy) Graham (1918- ) pronunciou a palestra de abertu-

ra sobre o tema do congresso, "Para que o mundo ouca Sua voz", e no encerramento declarou que estava satisfeito com o "Pacto de Lausana" que fora completado durante o encontro. Tal pacro afirmava "a inspiracáo, veracidade e autoridade divina das Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos em sua totalidade como a única Palavra de Deus inerrante em tudo o que afirma, e a única regra infalível de fé e prática." Expressando penitência tanto pelo triunfalismo como pela intransigência na e x e c u ~ á oda tarefa missionária n o passado e

negligên-

cia em assuntos de preocupaçáo social, o pacto declarava que " e ~ a n ~ e l i z a ç áeo envolvimento sócio-político são ambos partes de nosso dever cristáo." Ele reconhecia que se iniciara uma nova era missionária mas reafirmava que a salvaçáo

estava disponível apenas pela fé em Jesus Cristo.'

A virada conservadora foi ilustrada ainda mais peto crescimento co~itínuodas denominações pentecostais, especialmente nas Américas e África. Uma o b ~ referencial a sobre essas igrejas reportou que as Assembléias de Deus (ver V11:15) se tornaram uma grande denominaçáo, com cerca de um milháo e trezentos mil membros no final da década de 1970, enquanto que o número total de grupos pentecostais (muitos deles bastante pequenos) crescera para cento e trinm8Também se desenvolveram movimentos carismáticos ou neopentecostais dentro de muitas das igrejas mais antigas nos Estados Unidos, ~rincipalmentea episcopal, a luterana, a metodista, a presbiteriana e a católica romana.

O ressurgimento do evangelicaiismo conservador provocou um debate considerável nos círculos ecumênicos sobre a maneira em que missáo e evangelizacáo deveriam ser entendidas e conduzidas.Wiversas igrejas representadas nos encontros de Berlim e Lausana eram rambém membros do Conselho Mundial de Igrejas, onde estava evidente um espectro mais amplo de t.eologias de missão e evangeliza~ão. Quando o Conselho Mundial se reuniu no ano seguinte em Lausana, ocorreram encontros entre evangélicos conservadores e aqueles que enfacizavam mais tanro o diálogo com os seguidores de outras religióes como os movimentos e teologias de libercaçáo.

A quinta assembiéia do Conselho Mundiai de Igrejas se reuniu em Nairobi, Quênia, de 23 de novembro a 10 de dezembro de 1975, congregando seiscentos e setenta e seis delegados com direito a voto (quase a metade provenientes do terceiro mundo) oriundos de duzencas e setenta e uma igrejas afiliadas, mais um grande grupo de consultores, observadores, pessoal de apoio e imprensa. Foi dada considerável aten@o às teologias da liberta~áo,com sua preocupação com os pobres e oprimidos, e aos insuficientemente representados (incluindo as mulheres) tanto na igreja como no mundo. Particularmente, eclodiu acentuado debate sobre o Programa de Combate ao Racismo do Conselho Muníiial, desenvolvido como resultado das decisóes

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stniiia vir

O CRISTIANISMO MBDEBIO

829

feitas em Uppsala. Tinham sido feitas diversas dotaçóes a várias organizaçóes envolvidas ativamente na resistência ao racismo, alguns dos subsídios indo (para propósitos humanitários) para grupos engajados em a ~ á oviolenta. Embora apenas uma pequena porcentagem dos fundos fluindo através do Conselho Mundial (aqueles doados especialmente para esse propósito) tenha ido para o programa, que fora conduzido por quatro dos duzentos e setenta e cinco funcionários do conselho, isso tornou-se uma questáo simbólica de grande importância. As tentativas feitas do plenário para limitar o fundo especial, tentativas estas que uniram pessoas representando diversas perspectivas, foram decisivamente derrotadas pela mesa condutora da assembléia. Embora o Conselho tenha perdido alguns membros por causa da maneira como ele conduziu seus interesses em libertaçáo e hurnaniza~áo,tidos por alguns como muito políticos, o número de afiliados continuou a crescer depois da assembléia, totalizando mais de trezentos em 1983, quando a sexta assembléia se reuniu em Vancouver, Canada.

Em Nairobi, foram considerados muitos outros assuntos; por exemplo, as preocupaçóes ecumênicas históricas por uma maior unidade dos cristáos receberam vigorosa expressáo, e houve muita discussáo do conceito de que "a igreja una deve ser pensada como uma comunháo conciliar de igrejas locais que estejam elas próprias verdadeiramente unidas."'O A presenqa evangélica conservadora esteve especialniente evidente na seçáo da assembléia que produziu um relatório intitulado "Confessando Cristo Hoje", relatório cuja forma final foi recebida unanimemente pela assembléia.

A reuniáo em Nairobi também aprovou a continuaçáo dos diálogos com representantes de outras religiões; naqueles travados com os judeus, por exemplo, vinha send o discutida a trágica história das relacóes judeo-cristás através dos siculos, incluindo atençáo às cruzadas, à inquisiçáo e ao holocausto. Embora as rclacóes entre o Vaticano e o Conselho Mundial tenham permanecido cooperativas na dkcada de 1970, diminuiu a possibilidade de filiacáo da Igreja Catblica Romaria ao conselho. Parte da rea~áodentro da igreja contra o que foi visro como excessivo zelo ecumênico e excessiva mudanca teológica foi liderada pelo papa Paulo VI e por muitos que tinham sido lideres proeminentes do agiornamento. A tendência não era para o ttadiciona1isrno anterior, mas ao invés, na direcáo de uma posição centralista e de uma centralização de autoridade, uma tendência que conti'O

David M . Pariin, ed., B~eakirigBdr~iers:Airiroi,;, 1975 (Loridrrs. 1376), p. 60.

830

HISTORIA DA IPREJA C R I S T ~

nuou após a morte de Paulo VI em 1978. Albino Luciani, o patriarca de Veneza, foi eleito papa e tomou o nome de Joáo Paulo, mas faleceu após apenas algumas semanas no cargo. Ele foi sucedido pelo primeiro papa náo italiano em mais de quatro séculos, o polonês Karol Wojtyla, arcebispo metropolitano de Cracóvia, que tomou o nome de Joáo Paulo I1 quando de sua eleicêo em outubro de 1978. Logo ficou claro que o novo papa era um líder forte determinado a trazer nova vida e direção clara aos negócios católico-romanos. Homem capaz, brilhante, salien-

1. oi:

te, ao mesmo tempo hábil em Iínguas e em filosofia e administrador que aprendera

A. O b

tou entusiasmo entre os católicos e conquistou a admiração de multidóes que eram

BEY-i BETTI 8 R:.,-: CRO i i ed. ::'i DO'?: H.457: KIDI L17-z L .-

de outras persuasões. Náo obstante, ele procurou restaurar firmemente a ordem en-

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tre seu rebanho sobremaneira espalhado, pressionando por padróes claros de doucri-

XLIC

como guiar os fiéis em um país sob o governo comunista, Joáo Paulo II dedicou seus talentos para revigorar e estabilizar sua igreja, e ao mesmo tempo demonstrar preocupacáo pelos outros. Uma série de viagens a lugares como México, Brasil, Polônia, Irlanda, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Índia e diversos países da África e da América Latina causaram grande agitaçáo; sua personalidade carismática desper-

na e disciplina, afirmando o celibato ciericnl e opondo-se a ordenaçáo de mulheres. Suas visitas aos vários santuários da Virgem chamaram novamente a atenção para um tipo de piedade cuja popularidade desvanecera nas décadas precedentes. Sua abordagem ecumênica foi sincera mas cautelosa; sem comprometer as doutrinas católicas, ele expressou interesse pela restauraqáo pIena da unidade, demonstrando uma preocupacão particular nas relaFóes mais próximas com a ortodoxia oriental.

A longa história da igreja cristá é um panorama de luzes e sombras, de realizaqóes e fracassos, de conquistas e divisões. Apresenta a vida divina maravilhosamente rransformando as vidas de homens e mulheres. Também apresenta aquelas paixóes e fraquezas de que é capaz a natureza humana. Em todas as épocas suas tarefas têm parecido quase invencíveis. Elas jamais foram maiores do que agora, quando são confrontadas por uma interpretacáo materialista da vida, e quando a ameaça da guerra atômica póe em perigo a própria existência da civilizaçáo. No entanto, cristão algum pode contemplar o que a igreja já fez sem passar a ter confiança no seu f~lturo.Suas mudanças podem ser muitas, e grandes as suas lutas. Mas a poderosa máo de Deus que a tem guiado até aqui, levá-la-á a um serviço ainda maior na promoçáo do reino do seu Senhor, até o cumprimenro de Sua promessa de que quando fosse levantado atrairia todos a Si.

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