Hildegard de Bingen - A Consciência Inspirada No Século XII - Régine Pernoud

March 9, 2017 | Author: Isabel Carvalho de Nogueira | Category: N/A
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A consciência inspirada do século XII Tradução de ELOÁ JACOBINA

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Rio de Janeiro — 1996

Título original HILDEGARDE DE BINGEN Conscience inspirée du XIT siècle © Éditions du Rocher, 1994 Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva, 26 — 5? andar 20011-040 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244 Telex: 38462 EDRC BR Printed in Brazil/Impresso no Brasil

preparação de originais ELISABETH LISSOVSKY revisão FÁTIMA FADEL CARLOS NOUGUÉ WALTER VERÍSSIMO

CEP-Brasil Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ P532h

Pernoud, Régine, 1909Hildegard de Bingen: a consciência inspirada do século XII / Régine Pernoud; tradução de Eloá Jacobina. — Rio de Janeiro; Rocco, 1996 — (Gênero Plural) Tradução de: Hildegarde de Bingen : conscience inspirée du XIIe siècle 1.Hildegard, Saint, 1098-1179. 2. Biografia cristã. I. Título. II. Série.

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CDD - 922.2 CDU - 92(Hildegard.)

SUMÁRIO

Introdução............................................................................... 7 O mundo no ano de 1098 ....................................................... 9 Hildegard revelada.................................................................. 17 O Scivias................................................................................. 31 A vida no mosteiro de Bingen............................................... 44 O imperador e a monja.......................................................... 55 O universo e o homem nas visões de Hildegard.................. 69 As sutilezas naturais............................................................... 83 Viagens e prédicas.................................................................. 94 As últimas lutas e a música sacra......................................... 118 Bibliografia............................................................................ 135

INTRODUÇÃO

Em 1982 era lançado o Livro das obras divinas: visões, de Hildegard de Bingen (Albin Michel, ed.), apresentado e tradu­ zido por Bernard Gorceix — o trabalho mais notável, o mais profundo que já apareceu em francês sobre a abadessa renana. Continha um dos escritos da visionária, precedido de um arguto comentário sobre o conjunto de sua obra. O autor, infelizmente, morreria na ocasião do lançamento — uma perda irreparável para todos os que se interessam por uma figura de mulher ainda pouco conhecida entre nós. Fundamental para o conhecimento do século XII, esta monja das margens do Reno que, num eco à voz de são Bernardo, faz ouvir uma voz de mulher, musical, literalmente — a parte musical é o que melhor se conhece hoje das obras de Hildegard —, e de alto alcance. Fundamental porque interveio junto às personalidades mais marcantes do seu tempo, papas e imperadores, e sob muitos aspectos, como dizia Bernard Gorceix, ela representa a consciência espiritual e política desse tempo. Paradoxalmente, porém, é por seus trabalhos sobre medici­ na que ela começa agora a conquistar o reconhecimento público. Trabalhos singulares para a época, pois são os únicos tratados de medicina —ou do que chamamos de ciências naturais —escritos no Ocidente no século XII: a medicina então era mais praticada na escola judaica de Córdoba, a de Maimônides, retomada em parte pelos árabes. Outra faceta, surpreendente, desta monja, para a curiosidade universal. Mas a parte mais fascinante de sua obra é sobretudo a sua “teologia cósmica”, visão do universo ao mesmo tempo ampla e minuciosa, fulgurante olhar atento ao mundo, que as magnífi­

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cas miniaturas do manuscrito de Lucca nos permitem apreender em todo seu esplendor. O presente trabalho, longe de constituir uma biografia de Hildegard, procura apenas focalizar os vários “pólos”, pode-se dizer, de seu pensamento e de sua atividade. Por meio do estudo de sua correspondência, ocupa-se particularmente dos sermões que ela pronunciou em diversas catedrais, e não das menores: Trèves, Colônia, Bambert, Mayence... Foi várias vezes chama­ da a pregarem público, e os clérigos que a escutavam pediam em seguida que ela lhes transmitisse, por escrito, os sermões que havia pronunciado. O que neste nosso século XX talvez seja a nota que mais surpreenda. Como é que uma figura tão extraordinária e tão rica levou tanto tempo para despertar — parcialmente — a atenção, o interesse que merece? E o que nos convence da falta de curiosi­ dade intelectual, cujos indícios estão em nossa cultura geral. Nos Estados Unidos, na Suíça e, naturalmente, na Alemanha, Hildegard de Bingen é bastante conhecida hoje, seja qual for o ângulo de abordagem. Aqui, procuramos trazer alguns traços essenciais de sua obra e de sua pessoa, desejando que outros sejam atraídos por ela, como nós o fomos, e venham a se empenhar nos trabalhos de envergadura que seria necessário desenvolver para torná-la mais próxima de nós; e que um público mais amplo possa usufruir tudo o que ela nos tem a dizer.

O MUNDO NO ANO DE 1098

1098. Um vasto frêmito percorre o mundo conhecido, Ocidente e Oriente reunidos: esse mundo se pôs em marcha, literalmente falando. Não por ordem de César, como nos tempos antigos, quando armadas inteiras eram mobilizadas para defender as fronteiras entre romanidade e barbárie. Não, espontaneamente, multidões se mobilizaram ao apelo do papa na catedral de Clermont, no dia da festa de inverno de são Martinho, 18 de novembro 1095. Urbano II havia exortado os cristãos a socorrer seus irmãos do Oriente e a reconquistar Jerusalém, a Cidade Santa. O decorrer do século só trouxera notícias deploráveis des­ sas regiões orientais. Pouco a pouco foram tomando conheci­ mento de que o lugar santo por excelência, o túmulo do Cristo, local, portanto, de sua Ressurreição, a Anastasis,* havia sido destruído por ordem do califa Hakim: destruição efetivada em 1009 — precisamente a 18 de outubro, as crônicas árabes anotaram cuidadosamente a data —com a determinação de não se deixar nenhum vestígio da rotunda Outrora erguida naquele sítio pelo Imperador Constantino. Contudo, as peregrinações da cristandade aos lugares santos não haviam cessado completa­ mente, apenas fizeram-se mais raras, e os que regressavam contavam toda a sorte de horrores sobre as exações e persegui­ ções de que eram vítimas cristãos e judeus. Ao longo dos anos, a situação só fez piorar. Os turcos seldjúcidas, convertidos ao islamismo, lançaram-se em vagas sobre a Ásia Menor e varre­ * Palavra grega que significa ressurreição e expressa a idéia da ressurreição de Cristo, ou de sua descida aos limbos, em diversos movimentos cristãos. (N. da T.)

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ram os bizantinos, que, em Malazkirt, tentavam abatê-los. Após o quê, atiraram-se sobre as populações armênias, que massacra­ ram selvagemente, e destruíram a capital, Ani. Os sírios não receberam melhor tratamento e a cidade de Antióquia, a despei­ to de suas defesas imponentes, caiu nas mãos dos turcos, em 1084. Multiplicavam-se os apelos de socorro por sobre esse Mediterrâneo, onde os cronistas árabes se compraziam em repetir que os ocidentais já não podiam “fazer flutuar uma prancha”. A resposta ao apelo do papa ultrapassou todas as expecta­ tivas e desencadeou, através da Europa, um movimento de grande amplitude. Viam-se não somente cavalheiros e senhores, grandes ou pequenos, “carregando a cruz”, mas também uma massa de camponeses e citadinos que, precipitando-se em uma aventura cuja extensão mal calculavam, na esteira de alguns pregadores ambulantes (dos quais o mais famoso, na França, fazia-se chamar Pedro, o Eremita), partiam em peregrinação prontos a lutar. ímpeto extraordinário, fatalmente desordenado, que não poderia levar senão à derrota, depois de progredir e sobreviver à custa de pilhagem. Ao contrário, fica-se surpreso com o espírito de organização demonstrado pelos principais senhores, designados por seus pares para assumir a frente do movimento: como na escolha de três itinerários diferentes para a travessia da Europa, com reunião geral marcada em Constantinopla. Nenhum chefe de Estado, rei ou imperador parte com eles. O que já seria suficiente para distinguir o que chamamos de cruzadas (o termo, lembremos, só aparece no século XVII) dos empreendimentos de conquista que, em segui­ da, vão se suceder na Europa. Uma longa marcha: dura três anos. Em 1098, os cruzados detiveram-se em frente à cidade de Antióquia, cujo contorno, dizem, comportava trezentas e sessenta torres. E preciso um ano de esforços e de inúmeros episódios em que se misturam a astúcia e a coragem, para que a conquistem. Ora, já nesse mesmo ano de 1098, os cruzados em marcha começam a construir, em Tarso, uma catedral dedicada a são Paulo, originário dessa

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cidade. Tocamos aí num outro ponto característico desse mundo em ebulição: a paixão de construir. Clermont, cidade em que se realizou o concilio, conta com cinqüenta e quatro igrejas por ocasião da estada do papa Urbano II. Ele, aliás, percorreu um verdadeiro circuito de arte românica em pleno surgimento, pois nessa oportunidade procede à dedicação da igreja de La-ChaiseDieu, consagra o altar-mor da imensa abacial de Cluny, que acaba de ser construída e que, até a reconstrução de São Pedro de Roma, continuará sendo o mais vasto edifício da cristandade; em seguida, vai consagrar a igreja de Saint-Flour, a abacial de SaintGéraud d’Aurillac, a cadetral de Saint-Etienne de Limoges e a abacial de Saint-Sauveur, na mesma cidade; depois, os novos altares da abadia de Saint-Sauveur de Charroux e de SaintHilaire de Poitiers, e ainda consagra solenemente a colegial de Saint-Semin de Toulouse, a catedral de Manguelonne, a de Nímes e um altar na basílica novíssima de Saint-Gilles de Gard — para citar apenas as principais etapas dessa viagem, que os amantes da arte românica, em nossos dias, podem seguir à risca. Essa febre de construir é par da expansão urbana na mesma época; ampliam-se as cidades antigas, as novas se multiplicam, e isso vai durar mais de duzentos anos. A Idade Média dos castelos é também a das cidades, sem falar nos mosteiros que surgem por toda parte. A reforma de Cluny, em 910, deu início a um extraordinário desenvolvimento da vida monástica. Parecia que as invasões dos duzentos anos precedentes tinham aniquila­ do a bela cristandade dos séculos VI e VII, mas ela renascia ainda mais bela das ruínas. Depois da reforma de Cluny, a de Robert de Molesme, com a fundação da abadia de Císter, precisamente nesse ano de 1098, vai renovar, em profundidade, a observância das regras de são Bento e permitir um prodigioso avanço na vida monástica —com o impulso que será dado, pouco depois, por são Bernardo. Os cartuxos, fundados por são Bruno em 1104, e mais tarde os premonstratenses, fundados em 1120 por iniciativa de são Norberto, manifestarão intensamente o ardor espiritual que anima essa surpreendente época.

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li nesse mundo em pleno salto que se situa, em data difícil de precisar melhor, o nascimento de uma menina, em uma família pertencente à nobreza local do Palatinado. Seus pais, Hildebert e Mathilde (Mechtilde, em alemão), são provavelmente originá­ rios de Bermersheim, no condado de Spanheim. Ela é o décimo filho do casal e recebe no batismo o nome de Hildegard. Nascimento, sem alarde, numa família cuja nobreza não se traduz em grandes feitos; nascimento, contudo, que se vai revelar singularmente de acordo com a época rica, efervescente, dessa virada de século. No ano seguinte, em 15 de julho de 1099, os cruzados vão tomar Jerusalém. Uma menina como as outras. Não de todo, porém, pois desde sua primeira infância causa, por vezes, espanto à sua volta. Numa anedota contada tardiamente (nos autos do seu processo de canonização) ela aparece exclamando diante de sua ama: “Vê só que bezerrinho bonito, dentro desta vaca. Ele é branco, com manchas no peito, nas patas e nas costas.” Quando o bezerro nasce, algum tempo depois, constata-se que é exatamente confor­ me a descrição. Hildegard tinha, então, cinco anos. E antes mesmo diz ela: “No terceiro ano de minha existência vi uma luz tal que minh’alma estremeceu, mas por causa de minha pouca idade eu nada pude dizer.” E prossegue: “No oitavo ano de minha existência, fui ofertada a Deus em oferenda espiritual e, até o meu décimo quinto ano, vi muitas coisas e às vezes eu as dizia com toda a simplicidade, de modo que os que me escutavam se per­ guntavam de onde vinha e o que seria aquilo. E eu mesma me espantava porque do que via em minh’alma nem ao menos tinha a visão exterior, e vendo que isso não acontecia a nenhuma outra pessoa, escondi quanto pude a visão que tinha em minh’alma. Ignorei muitas coisas do mundo exterior, porque estive doente com freqüência, ainda no tempo èm que minha mãe me amamentava e mais tarde, o que prejudicou meu desenvolvimento e me impediu de ganhar forças.” Hildegard perguntou se a ama via o mesmo que ela, Hildegard; e tendo recebido resposta negativa, tomou-se de pavor e não mais ousou revelar suas visões a quem quer que fosse. No entanto, às vezes, no curso da conversa, ela falava de

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fatos que iam acontecer e evocava, quando possuída por uma visão, realidades que pareciam estranhas aos que a escutavam. Quando esmaecia a força da visão que a fizera revelar noções muito além de sua idade, ela sentia vergonha, chorava freqüentemente, e calava-se tanto quanto possível. Temendo que lhe perguntassem de onde lhe vinha tal conhecimento, não ousava dizer mais nada. E de pensar que esta criança, de saúde delicada, teria o dom da dupla visão, que ora surpreendia, ora inquietava o seu meio. Alguns psicólogos, atualmente, reconhecem nas crianças uma possibilidade de intuição superior à dos adultos. No caso de Hildegard, parece que desde a primeira infância suas capacida­ des excepcionais teriam impressionado seus familiares. Tam­ bém em nossa época, a mãe de Thérèse Martin, a irmãzinha Teresa do Menino Jesus, muito cedo percebeu na filha certa predestinação. Quando Hildegard fez oito anos, seus pais a confiaram a uma jovem de família nobre, Jutta, filha do conde de Spanheim, para ser educada. Jutta levava uma vida de reclusa no mosteiro de Disibodenberg, perto de Alzey, onde moravam, e tomou a seu cargo a meninazinha que demonstrava tão espantosas aptidões. Era uso bastante comum, na época, confiar uma criança, menino ou menina, a um mosteiro, para receber instrução. Esse em que Jutta de Spanheim abraçara a vida religiosa, era um mosteiro dúplice,* fundado três ou quatro séculos antes por um desses monges irlandeses que, seguindo são Colombano, deixaram sua ilha para semear literalmente a Europa, onde multiplicaram suas fundações. Algumas, como a de Saint-Gall, perto do lago de Constança, sobreviveram sob diferentes formas, até nossos dias. Mais tarde, aliás, Hildegard vai escrever a vida do santo fundador, Disibod. Jutta encarregou-se, pois, da educação desta aluna, pouco corriqueira, que lhe confiavam. Os biógrafos de Hildegard contam que Jutta lhe ensinou os salmos e a tocar o decacordo, * Mosteiro que abriga monges em uma parte e monjas na outra. (N. da T.)

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instrumento com que se lhes acompanhava o canto. Na época, toda educação começava pelo canto, e pelo canto dos salmos. “Aprender a ler” dizia-se “aprender o saltério”. E provável que se aplicassem a reconhecer nos manuscritos bíblicos o texto dos salmos q ue haviam memorizado: uma espécie de método global, pois as palavras já eram conhecidas, e ler e escrever consistia em reconhecer e depois reproduzir, nas tabuinhas, os vocábulos registrados na memória. Hildegard declarou mais tarde que, se aprendera o texto do saltério, do Evangelho e dos principais livros do Antigo e do Novo Testamento, não lhe ensinaram a interpretação das palavras, nem a divisão das sílabas, nem o estudo de casos e tempos. Jutta teria negligenciado um pouco a gramática, dando atenção, principalmente, aos textos. A saúde da aluna continuava frágil. Mais tarde seu biógrafo a descreverá no estilo hagiográfico que se usava então: “Porque os vasos de argila são experimentados na fornalha, e a coragem se aperfeiçoa na enfermidade, as dores de saúde não lhe faltaram e manifestaram-se desde a pequena infância, numerosas e quase continuadas, de modo que raramente se mantinha sobre seus pés.” Hildegard abriu-se com Jutta, que se aconselhou com um monge do mosteiro de São Disibod, chamado Volmar. Esse monge não tarda a se tornar o conselheiro, depois o assistente e o amigo de Hildegard, durante quase trinta anos. E ainda vai fazer as vezes de secretário quando, como veremos, a necessi­ dade o exigir. Uma infância doentia e recolhida, contudo iluminada pelas visões guardadas em segredo, assim foi para Hildegard o início de sua vida nos limites do mosteiro dúplice do Disibodenberg, no vale do Nahe. Quando alcançou a idade requerida, desejou tomar o hábito, tornar-se religiosa entre as que viviam no mosteiro — parecem ter sido bem pouco numerosas — sob a égide de Jutta. Devia ter então quatorze ou quinze anos. A maioridade, para as meninas, era atingida aos doze anos (um pouco mais tarde para os rapazes, quatorze anos). Como sua infância, a adolescência de Hildegard é recolhida: a de tôda monja que segue a regra beneditina.

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Sabe-se mais ou menos como transcorre a vida dos monges beneditinos no interior dos conventos: o dia é marcado pelas horas canônicas — o dia e a noite, pois que, salvo razões particulares ou problemas de saúde, a noite é interrompida pelo ofício das matinas, cantadas pouco depois da meia-noite. A aurora, ou seja, o nascer do sol, para monges e monjas é o momento do canto das laudes, seguido do ofício da prima (primeira hora); vem geralmente a seguir a celebração da Euca­ ristia, a missa, depois da qual, na maiorpartedos conventos, tem lugar o desjejum; segue-se o ofício da terça, que designa, como diz o nome, a terceira hora a partir do nascer do sol (entre 8 e 9 horas, conforme a estação) e um tempo de trabalho até a hora da sexta (de 11 horas a meio-dia), que precede a refeição. O tempo é livre até a nona (geralmente 14 ou 15 horas), quando se retoma o trabalho, manual ou intelectual, coletivo ou individual; a hora das vésperas designa o ofício do fim do dia (18 às 19 horas), seguido da refeição da tarde e de um tempo livre, o recreio, quase sempre usufruído em comum. Costuma haver em seguida uma reunião em capítulo, assembléia de todas as religiosas na pre­ sença da abadessa; após o quê, ao sol poente, é a hora do último canto de ofício, o das completas; então o silêncio deve reinar no mosteiro para permitir a todos o repouso. Ao longo dessas diversas horas, o conjunto do saltério —os cento e cinqüenta salmos — terão sido cantados no espaço de uma semana. Prece, meditação, trabalho encadeiam-se no de­ correr do dia com os preparativos pertinentes ao desenrolar do ano litúrgico: tempo de penitência, como a Quaresma e o Advento, festas cujas principais, como se sabe, são o Natal e a Páscoa, sem falar nas dos santos, numerosas, sendo a mais importante a festa da Virgem, a 2 de fevereiro, dia da Candelária, quando se acendem os círios para celebrar a claridade nova do Cristo, luz das nações, que Sua Mãe apresenta no Templo. Jutta morre em 1136, e parece que o número de religiosas congregadas em torno dela no mosteiro dúplice teria aumentado nesse ínterim. Imediatamente elas elegem Hildegard como

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abadessa. Prestes a atingir seu quadragésimo ano, ainda não sabe que se aproxima do acontecimento decisivo que vai lançála num rumo totalmente novo.

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“Eis que no quadragésimo terceiro ano de meu curso temporal, tôda trêmula de emoção, vi um magno esplendor e ouvi uma voz do céu que me dizia: ‘O homem frágil, cinza da cinza, podridão da podridão, diz e escreve o que vês e ouves. Mas, porque és tímido para falar e pouco hábil para expor e pouco instruído para escrever estas coisas, diz e escreve, não segundo a boca do homem, nem segundo a inteligência de uma invenção humana, nem segundo a vontade de compor humanamente, mas segundo o que vês e ouves de celestes maravilhas vindas de Deus. Repete-as tais como te são ditas, à maneira de quem ouve as palavras daquele que o instrui, e expõe-nas segundo a intenção da palavra tal como ela é intencionada, tal como te é mostrada e tal como te é prescrita. Assim, pois, tu, homem, diz o que vês e ouves. Isto, não à tua maneira, nem à maneira de outro homem, mas segundo a vontade d’Aquele que sabe, vê e dispõe todas as coisas no segredo de Seus Mistérios.”’ Trata-se de uma ordem decisiva, na qual se especifica o papel de Hildegard, identificado ao dos profetas do Antigo Testamento, que são “a boca de Deus”, não fazendo mais do que transmitir o que recebem, sem a preocupação de dar a suas palavras a forma de um discurso nem de ordenar segundo as regras da lógica ou da dialética aquilo que devem transmitir. Hildegard insiste: “E de novo ouvi uma voz do céu dizendo: ‘Diz, portanto, estas maravilhas e escreve-as tais como te são ensinadas e ditas. ’ Isto se deu em 1141, no milésimo, centésimo, quadragésimo primeiro ano da Encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses. Uma luz de fogo, de um brilho extremo, vinda do céu

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abateu-se sobre meu cérebro todo e todo o meu corpo e todo o meu peito, como uma chama, que todavia não queimava, mas inflamava com o seu calor, do modo como o sol esquenta onde dardeja seus raios.” E continua: “Eu havia sentido a força de mistérios e visões desde minha jovem idade, isto é, desde o tempo em que eu tinha cerca de cinco anos, de modo admirável, em mim mesma, até agora; entretanto eu não a tinha revelado a nenhum homem, salvo a alguns poucos homens religiosos, que viviam no mesmo estado em que vivia eu mesma. De outra forma eu teria guardado um tranqüilo silêncio todo esse tempo, até o momento em que Deus quis manifestar-me isto por Sua graça.” Em seguida ela dá detalhes aos quais deveremos voltar: “Não tive as visões em estado de sonolência, nem dormindo, nem em êxtase, nem por meus olhos corporais ou por meus ouvidos humanos exteriores; eu não as percebi em lugares escondidos, mas é estando acordada que eu as vejo com meus olhos e com minhas orelhas humanas, interiormente; simples­ mente, em espírito, eu as recebo em lugares abertos, segundo a vontade de Deus.” Não é sem hesitações que se recebe semelhante mensagem. Hildegard fala de sua ansiedade e insiste no caráter muito nítido, imperioso, pode-se dizer, da ordem que lhe é dirigida: “Como se deu isto? E difícil ao homem carnal sabê-lo, mas o fato é que, passada a idade da juventude, tendo chegado a esta maturidade em que se adquire uma força perfeita, ouvi uma voz do céu dizendo: ‘Eu sou a luz viva que ilumina o que é obscuro. O homem que Eu quis assim e que introduzi admiravelmente, segundo me aprouve, em grandes maravilhas, Eu o estabeleci além desses homens antigos que puderam ver em Mim numero­ sos segredos. Mas Eu o derrubei para que ele não se erga em qualquer exaltação do seu espírito. O mundo não encontrou nele nem alegrias, nem deleites, nem incentivos nessas coisas que Ihe são próprias, pois Eu subtraí dele toda audácia e determinação, ficando medroso e apavorado nos seus sofrimentos. Porque ele sofreu na medula e nas veias de sua carne, tendo o espírito e o sentido contraídos, e sofrendo grandes paixões corporais, de tal modo que nenhuma segurança pôde permanecer nele, mas ele

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pôde se considerar culpado de tudo o que lhe concernia. Porque Eu enclausurei as ruínas de seu coração por medo de que seu espírito se elevasse de orgulho e de glória vã, e para que ele sentisse em todas as coisas medos e dores, mais do que alegria e exultação. Assim, em Meu amor, ele descobriu, em seu espírito, o que lhe abriria o caminho da salvação. E encontrou alguém e o amou, reconhecendo nele um homem fiel e seme­ lhante a si, nessa parte da obra que me diz respeito; isso a fim de que Minhas maravilhas sejam reveladas. E esse homem não se recusou dobrando-se sobre ele, mas indo a ele na elevação da humildade, e, na intenção da boa vontade que encontrou, incli­ nou-se com muitos suspiros. Tu, pois, homem, que recebes, não na inquietude de uma decepção mas na pureza do espírito simples, o que te é dirigido pela manifestação das coisas escondidas, escreve o que vês e ouves.’” Hildegard prossegue: “Mas eu, ainda que tenha visto e ouvido essas coisas, porém porque duvido e porque tenho má opinião, e por causa da diversidade das palavras humanas, todo esse tempo, não por obstinação, mas por causa da humildade, recusei-me a escrever, até que fui forçada no leito de dores em que tombei atingida por um flagelo de Deus, de tal modo que fui afligida de múltiplas enfermidades; eu havia procurado e encon­ trado, graças aos testemunhos de uma jovem nobre e de bons costumes e desse homem que eu havia consultado e procurado em segredo, como eu disse, entreguei-me ao trabalho da escrita. Enquanto o fazia sentindo a grande profundidade da exposição de livros, como eu disse, levantei-me da doença e recuperei as forças. Apenas pude levar a cabo este trabalho consagrando-lhe dez anos. Nos dias de Henrique, arcebispo de Mayence, e de Conrado, rei dos romanos, e de Cunon, abade de São Disibod, no tempo do papa Eugênio, aconteceram estas visões e estas palavras. E eu as disse e escrevi, não segundo uma descoberta do meu coração ou de qualquer outro homem, mas tal como ouvi e percebi os secretos mistérios de Deus. E de novo eu ouvi uma voz do céu dizer-me: ‘Clama, pois, e assim escreve.”’

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A maneira como se exprime a referida visão é bastante surpre­ endente para nós. Logo de início, pelo emprego do termo homo, “homem”, no sentido de criatura humana. O que pressupõe que Hildegard foi chamada a ser realmente profeta, boca de Deus repetindo palavras que lhe são ditadas. E isso ela sustentará por toda a vida, afirmando que nada diz por si mesma, nada que venha dela, e que apenas transmite o que lhe diz “a Luz viva”. Esse prefácio do primeiro livro de Hildegard anuncia clara­ mente o novo rumo de sua vida. Uma virada que é descrita e datada com precisão; ela vai levar dez anos para escrever essa primeira obra, que intitula Scivias, “Conhece os caminhos” (do Senhor). O trabalho se estende, portanto, de 1141 a 1151, apro­ ximadamente. Mas não será sua única ocupação, longe disso; nesse espaço de tempo ela vai realizar vários outros trabalhos, dando início à exuberante atividade que a caracteriza. Alguns manuscritos de Hildegard são ilustrados, entre eles o magnífico volume de sua terceira obra, conservado na Biblio­ teca Governativa de Lucca. Contém dez belas ilustrações de página inteira que reproduzem as visões da monja. Sob a imagem principal, num pequeno quadrado, uma iluminura re­ presenta a própria Hildegard, o rosto erguido para a imagem que derrama sobre sua cabeça uma chuva incandescente. Sentada em uma cadeira de espaldar alto, ela tem nas mãos as tabuinhas, decerto para anotar rapidamente a visão que Ihe aparece e poder descrevê-la depois. Veste uma túnica preta, encoberta por um manto marrom que deixa entrever uma orla branca onde as mangas envolvem os punhos das duas mãos, a que segura as tabuinhas e a que escreve. As tabuinhas, de cera negra, são de formato absolutamente comum, e vêem-se duas colunas em cada uma. Em frente a Hildegard e voltado para ela, está sentado um monge. Ele escreve sobre um códex de pergaminho e segurando um tira-linhas, como era costume na época, enquanto maneja sua pena de ganso. Esse monge idoso é sem dúvida Volmar. Em algumas ilustrações, em especial a primeira do manuscrito de Lucca, há uma jovem em pé, postada atrás de Hildegard. Está vestida com uma longa túnica preta, a cabeça coberta por uma coifa da qual se desprende um véu, também

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preto, que lhe cai de lado. Trata-se provavelmente de Richardis, a religiosa do convento de Bingen, a quem Hildegard dizia amar "como Paulo amou Timóteo”. Tal é a imagem que daqui em diante teremos de Hildegard. O essencial de sua vida, agora, é receber e transmitir o que lhe diz a “Luz viva”. O monge Volmar, seu confessor e, na certa por intermédio de Jutta, seu primeiro confidente, será seu secretário até falecer em 1165. Deve ter sido por ele que os monges do mosteiro dúplice de Disidodenberg foram informados da nova atividade da abadessa e das visões que ela recebia. O que não podia deixar de inquietar as autoridades eclesiásticas, no caso, o próprio abade do mosteiro, Cunon; ele comunica o fato ao arcebispo de Mayence, Henri, responsável pela diocese a que pertence o mosteiro. Apesar dos ecos sem dúvida favoráveis quanto ao conteúdo das visões, tanto um como outro experimen­ tam alguma perplexidade. Ora, justamente nesse final do ano de 1147, ouve-se dizer que o papa Eugênio III vai reunir um concilio em Reims e, em preparação ao concilio, fará realizar um sínodo em Treves. Por essa época, os escritos de Hildegard constituem o início de sua primeira obra, o Scivias. É o momento de submeter aos prelados reunidos e ao próprio papa o trabalho da religiosa visionária. Grandioso cenário para um sínodo, a cidade de Treves, que, hoje em dia gostam de lembrar, é a mais antiga da Alemanha. A Porta Nigra, mundialmente famosa, ainda existe para compro­ var. Ela faz parte das fortificações erguidas por Constantino, que residiu nessa cidade até 316 com sua mãe, Helena, santa Helena no calendário cristão. Naquela época, Treves era impor­ tante metrópole do Império Romano. Ativo centro de comuni­ cações, ponto de confluência das legiões que ali acantonavam para conter os assaltos dos bárbaros nas fronteiras e porto fluvial, na margem direita do Mosela, Treves permaneceu residência imperial até o fim do século IV. No magnífico edifício que é hoje a catedral, ainda se distingue o plano de massa do Dom erguido por Constantino, que constitui o núcleo do edifício. Duas vezes destruído (pelos francos, no século VII, e pelos normandos, no final do século IX), fora reconstruído em

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1037. A vinda do papa seria a oportunidade de engrandecê-lo com um novo coro, a leste. Nessa mesma ocasião, o arcebispo Hillin reavia o que ainda hoje chamamos de Aula palatina, antigo palácio de Constantino, então em ruínas, do qual pelo menos uma parte foi restaurada para hospedar os prelados presentes ao sínodo. Para se avaliar a importância desse sínodo, é preciso ter em mente as infindáveis discórdias ocorridas em terra germânica entre papas e imperadores, porque estes não se resignavam a abdicar de suas prerrogativas e dos hábitos adquiridos na época carolíngia, de intervir na nomeação dos bispos e dos abades dos mosteiros. A reforma promovida pelo enérgico Gregório VII só fora aceita uns vinte anos antes, em 1123, quando do acordo que se denominou Concordata de Worms. Ora, o papa que convocou esse sínodo é um cisterciense, formado em Clairvaux pelo próprio são Bernardo; isso significa que se trata de um pontífice cujo primeiro cuidado no exercício de suas funções ainda é a santidade. O concilio que vai reunir em Reims terá por objetivo confirmar mais uma vez o esforço de reforma da Igreja, mani­ festado a partir de Gregório VII. E, pois, uma assembléia importante essa que se reúne em Treves no final do ano de 1147. A imponente assistência, bispos, cardeais, abades de mosteiros —entre eles o próprio Bernard de Clairvaux, personalidade incontestável no seio da cristandade, forte o bastante para apaziguar os distúrbios provocados alguns anos antes pelo cisma de Anacleto —, presidida pelo papa de Roma, em pessoa, forma um contraste impressionante com a magra figura da pequena abadessa de um obscuro convento das margens do Reno, que se diz agraciada por visões divinas. A pedido do arcebispo Henri, de Mayence, e do abade Cunon, do São Disibod, o papa ordena a dois prelados que visitem pesso­ almente Hildegard e procedam a um inquérito local sobre sua conduta, seus hábitos de vida e seus escritos: o bispo de Verdun, Alberon ou Auberon, e seu preboste, Aldebert. E seguem os dois para São Disibod. O resultado do inqué­ rito é satisfatório e eles levam a Treves a parte já redigida do Scivias. Acontecerá então uma cena extraordinária que, uns

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trezentos anos mais tarde, vai encher de admiração o abade de Spanheim, Jean Trithème —um erudito famoso que reuniu mais de dois mil manuscritos em sua biblioteca e relatou a vida de Hildegard, após ter consultado todas as fontes a ela referentes. “O papa”, diz ele, “leu em público, diante de muitos assistentes, os escritos da virgem; ele próprio, fazendo as vezes de leitor, expôs uma parte muito importante da obra. Todos os que ouviram os termos dessa leitura renderam, cheios de admiração, graças a Deus todo-poderoso.” O papa lendo diante dessa enorme assembléia a obra da pequena abadessa, até então só conhecida pelos que com ela conviviam, é com efeito um espetáculo surpreendente, e se atribui a são Bernardo a conclu­ são que foi a da assistência inteira: “E preciso impedir que se apague uma tão admirável luz animada de inspiração divina.” Foi em seguida a essa sessão que o próprio Eugênio III escreveu a Hildegard. Essa carta encabeça a classificação da correspondência que daí em diante vai constituir um capítulo de considerável importância nas atividades da monja. E a primeira de uma longa lista: a edição da Patrologia Latina, que não é completa, comporta 135 cartas, cada uma com sua respectiva resposta, e não ocupa menos de 240 colunas impressas em tipos muito miúdos. “Nós admiramos, filha”, escreve o papa, “e admiramos além do que se pode crer, que Deus mostre em nosso tempo novos milagres, e isso quando ele derrama sobre ti o Seu Espírito, a ponto de se dizer que vês, compreendes e expões numerosos segredos. Isso soubemos por pessoas verídicas que dizem te haver visto e ouvido. Mas o que deveremos dizer a esse propósito nós, que possuímos a chave da ciência para podermos abrir e fechar e que por inépcia neglicenciamos prudentemente fazê-lo? Felicitamos-te, pois, e nos dirigimos a tua dileção, para que saibas que Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes [Tiago, IV]. Conserva, pois, e guarda essa graça que está em ti, de modo que possas sentir o que te é trazido em espírito, e relatá-lo com toda a prudência, cada vez que o ouvires. [...] ‘Abre tua boca e eu a encherei’ [salmo 70].” Para terminar, ele diz: “O que nos fizeste saber sobre o local que previste para ti, em espírito, que o seja, com nossa permissão e

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nossa bênção e a de teu bispo, de modo que vivas ali regularmen­ te, com tuas irmãs, segundo a regra de são Bento, na clausura desse lugar.” Assim se exprime o papa Eugênio III dirigindo-se a Hildegard. O último parágrafo exige um esclarecimento: em algumas palavras o papa dá sua aprovação à transferência das dezoito religiosas congregadas em torno da abadessa do mostei­ ro de São Disibod para essa localidade, em Bingen, que ela tornará famosa. De fato, desde algum tempo tornava-se evidente que sua comunidade já não cabia no convento. Era preciso pensar em outra instalação. Hildegard falou com o abade e com os frades sobre esse lugar que, dizia, o Espírito Santo lhe indicara. Tratava-se do Rupertsberg, situado aliás a pouca distância de São Disibod —vinte e cinco a trinta quilômetros —, na confluência do Reno com o Nahe, em Bingerbrück, perto do pequeno porto de Bingen, no Reno (tomado e fortificado por Drusus, quando da ocupação romana no final do século I antes de Cristo). A transferência não ocorreu sem dificuldades. Os monges de São Disibod aceitavam mal a saída das religiosas, que de fato desmerecia o dúplice mosteiro. Hildegard nunca tinha visto o Rupertsberg, para onde desejava se mudar —um outeiro que há muito levava o nome de são Rupert, o Confessor, que ali estabelecera domicílio por direito patrimonial, ali vivera com sua mãe, Berta, e ali fora exumado. Seguiu-se um demorado conflito, marcado por incidentes em que o maravilhoso não tardou a se misturar à história. Entre os monges, principalmente um certo Arnold movia implacável oposição à partida das religiosas e incitava os outros a criar obstáculo. Então, certo dia, ele é afetado por um tumor na língua, a ponto de não poder fechar a boca nem articular palavra. Exprimindo-se bem ou mal por sinais, faz-se conduzir à igreja de São Rupert, onde promete ao santo não mais se opor à criação do novo mosteiro e, pelo contrário, contribuir para isso, com seus meios. Imediatamente ele recobra a saúde e é o primeiro a preparar a construção dos prédios, a arrancar as vinhas onde seriam erguidas as casas para receber as religiosas.

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Hildegard, entretanto, estava por sua vez de cama, doente, insensível e pesada como uma pedra. Foram contar ao abade, que, incrédulo, se esforçou para lhe levantar a cabeça ou virá-la de um lado para o outro, sem nada conseguir. Estupefato com o que o redator da Vida de Hildegard chamou de um “milagre insólito”, o abade Cunon compreendeu que a vontade de Deus se expressava dessa maneira e acabou consentindo na partida, que ainda precisava da aprovação dos cônegos da igreja de Mayence — que não a negaram. Assim, “a Virgem do Senhor conseguiu morar com suas irmãs nesse oratório de São Rupert” e nas casas ao redor, onde fundou o novo mosteiro. Fundação que dependia do conde Bernard de Hildesheim, e ele concordou. Além disso, como vimos, o projeto tinha sido aprovado pelo próprio papa. A mudança das monjas deu-se em meio à afluência popular: os de Bingen, cidade vizinha, acorreram em grande contenta­ mento, transbordando-se em louvores à sua chegada, enquanto Hildegard e as dezoito religiosas manifestavam sua alegria dando graças ao Senhor. Foi preciso içar a abadessa num cavalo e sustentá-la dos dois lados, durante todo o trajeto até o Rupertsberg. Assim chegada, ela recobrou as forças e fechou um acordo satisfatório com os frades do São Disibod. O convento do Rupertsberg, vítima das invasões suecas do século XVII, está hoje completamente em ruínas. Das funda­ ções da abadessa resta apenas a segunda, o convento de Eibingen, na margem direita do Reno. Único sobrevivente às destruições suecas, e francesas também, que vitimaram a região. Várias vezes reconstruído, ainda se pode ver o túmulo de Hildegard, bem como os mosaicos modernos inspirados nas visões da monja. Vamos nos demorar um instante nesses lugares predestina­ dos. Trata-se de uma região excepcionalmente bela, que inspi­ rou sempre os poetas, em particular os do movimento alemão do século XIX. Pelas duas margens do rio, de Boppard a Wiesbaden, ecoam nomes sugestivos entrelaçados a toda a sorte de lendas e lembranças históricas. Lendas geralmente tardias, como a da Maüseturm, “a torre dos ratos”, que se ergue sobre uma ilha

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rochosa em frente a Rupertsberg. Contam que um certo Hatto, bispo de Mayence, em tempos de penúria, tinha acumulado reservas de cereais na torre e, exasperado com os lamentos dos pobres que o atormentavam, mandou trancá-los num celeiro ao qual mandou tocar fogo. “Estão ouvindo os silvos dos meus ratos?”, perguntava, escutando os gritos dos pobres. Nessa mesma noite, bandos de ratos invadiram seu palácio; ele se atirou no Reno tentando escapar, mas os ratos o perseguiram e o devoraram vivo. E uma variante da lenda famosa do tocador de flautas que atraía os ratos graças ao som das árias mágicas que tocava; após ter livrado, assim, uma cidade de seus roedores, recusaram-se a pagar o preço combinado pelo serviço; ele volta e, com o canto de sua flauta, atrai as crianças da cidade, que se afogam no rio. Um pouco adiante, em Sankt-Goarshausen, na margem di­ reita, ergue-se o rochedo de Lorelei, que o poema de Heine celebrizou. Lorelei é inseparável da poesia alemã do começo do século XIX. Perto dele encontra-se um outro rochedo, em que a lenda —sempre —vê sete donzelas que o deus do rio enfeitiçou. Ao lado dessas histórias amenas ou trágicas, os vinhedos do Reno, presentes em toda parte, fizeram a fama não só da velha cidade de Lorsch como a de Rüdesheim, onde existe ainda hoje uma profusão de tabernas e cafés ao ar livre; e um museu do vinho num castelo fortificado do século X (Niederbuch). A abadia beneditina de Eberbach, um pouco mais longe, a alguma distância de Wiesbaden, fundada no século XII, logo se tornou o principal centro vinícola da Alemanha, graças às técnicas dos cistercienses, que foram, na Idade Média, notáveis experts em todos os domínios da agricultura. Os vinhos do lugar ainda são famosos, enquanto a igreja, o claustro, o dormitório só atraem turistas. Ainda perto de Rüdesheim, assinalemos de passagem os vinhos tintos de Assmannshausen, uma singularidade da região. Região que, a despeito das destruições, continua eriçada de torres e castelos. As vezes, uma única torre de relógio, como em Burg Rheinfels, que traz à lembrança uma das mais poderosas fortalezas que dominaram o vale do Reno; outras vezes, uma

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torre fortificada, como a de Bacharach, que inspirou Guillaume Appolinaire. Muitas vezes, reconstruções modernas de torres antigas, como em Burg Sooneck, ou em Burg Lahneck, ainda na margem direita; e também —milagre! —, a alguns metros desta última, a torre de Marksburg, que data do século XIII e é a única que ficou intacta. E ainda os castelos, as igrejas, como Braubach, do século XIII, ou Oestrich, do século XII (é verdade que com uma grande restauração na Renascença). Assim, de uma mar­ gem a outra, por uma centena de quilômetros, as lembranças do passado tecem, numa atmosfera ao mesmo tempo medieval e romântica, um painel excepcional de arte e encantamento para a história de santa Hildegard e suas companheiras. Não se pode separar esse ambiente das obras da visionária; está de acordo com a grandeza das revelações que recebia da Luz viva que a habitava. A instalação de Hildegard e das religiosas em Rupertsberg ocorreu por volta de 1148-50. Ela vai escrever as biografias dos santos padroeiros dos dois conventos em que sua comunidade foi sucessivamente implantada. São Disibod, o irlandês que, no século VI, foi se estabelecer nas margens do Reno com, diga­ mos, três companheiros, e deles se tornou abade sem por isso deixar de ser eremita, continuou a viver até sua morte, em torno do ano 700, no isolamento, só se reunindo com seus monges para ler o ofício. Ele fazia parte dessa espécie de imensa cruzada, ou migração, de irlandeses que, no curso da Idade Média, deixaram sua ilha bem-amada e, por espírito de abnegação, foram morar de preferência em lugares desertos, onde levavam vida contemplativa. Mais ou menos na mesma época, são Gall fundava, perto dali, o convento que resistiu até nossos dias, junto ao lago de Constança. Quanto a são Rupert (ou Robert), era um franco, aliás aparentado da grande família dos reis merovíngios. Em 696, foi bispo de Worms; expulso pelos pagãos, ainda numerosos na região, encontra refúgio em Regensburg (Ratisbonne), onde funda uma comunidade em torno da qual logo nascerá uma cidade, que é nada menos que Salzbourg. E volta, finalmente, a sua diocese de Worms para

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morrer, em 718, tendo sido exumado, como dissemos, em Rupertsberg. Essas duas biografias não constituem mais do que uma atividade acessória na vida de Hildegard, tão plena, por sinal; elas recordam, entretanto, a implantação dos dois mosteiros em que sucessivamente transcorreram sua vida, suas preces, suas visões, antes que ela fundasse um terceiro, o de Eibingen, perto de Rüdesheim, dessa vez na margem direita do Reno. Fundação que data, muito provavelmente, de 1165. E preciso considerar o dia-a-dia em Rupertsberg, entre os vinhedos da margem do Reno, num mosteiro ainda em obras ou pelo menos em fase de arrumação, uma vez que Hildegard e suas companheiras se instalaram em acomodações provisórias que só serão concluídas no decorrer dos anos seguintes. E a isso, com certeza, que alude uma passagem de sua Vida (capítulo III) onde ela conta que, após um período de doença, tomou consci­ ência de que precisava, “com meu espírito confortado, cuidar de minhas filhas, não só de suas necessidades corporais como das de suas almas, segundo o que foi determinado por meus mes­ tres” —o que se refere sem dúvida a seu confessor ou simples­ mente à regra beneditina. Algumas monjas demonstravam, de fato, lassidão e desencorajamento. “Eu via com minha visão verdadeira, com muita inquietação, como os espíritos de bronze [maus espíritos] combatiam contra nós. Via que esses mesmos espíritos atacavam algumas de minhas nobres filhas por meio de vaidades diversas e as retinham aprisionadas como em uma rede. Então, instruída por Deus, eu as instruí e as reuni e provi de palavras da Santa Escritura e da disciplina da regra com boas palestras. Mas algumas entre elas olhavam-me com maus olhos, atacavam-me às escondidas com palavras, dizendo que não podiam suportar o duro regulamento da disciplina da regra à qual eu queria constrangê-las. Mas Deus me trouxe consolação em outras boas e corretas irmãs, que me assistiram em todo meu sofrimento, tal como se fez por Suzana [personagem bíblica], que Deus livrou dos falsos testemunhos.” E Hildegard acrescenta: “Apesar de toda a fadiga com atribulações desse gênero, que me debilitaram, pude, todavia,

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levar a bom termo, pela graça de Deus, O livro dos méritos da vida, que me fora divinamente revelado.” As voltas com tais dificuldades, tanto de ordem material como devido à própria conduta das religiosas sob sua responsabilidade, nem por isso Hildegard persevera menos, em Rupertsberg, na tarefa que lhe cabia: a redação de sua segunda obra, O livro dos méritos da vida. Esta, aliás, não era sua única atividade, pois é provável que suas produções musicais a tenham ocupado durante todo o curso de sua existência. Quanto às duas obras que tratam da medicina e das ciências naturais, não há nada nos relatos biográficos que indique a época em que foram realizadas. E já não é possível imaginar a vida das monjas e da própria Hildegard sem conside­ rar os visitantes que desde então se aglomeravam em torno de Bingen. A população local “acolheu-a com grande exultação e divinos louvores”, mas não é somente dos arredores que afluem os visitantes. Como observou Bernard Gorceix, citando a bio­ grafia de Hildegard: “Dir-se-ia que após o sínodo de Treves o mundo católico se pôs em movimento [...] mesmo das regiões mais distantes chegavam peregrinos a cavalo e a pé.” Um desses visitantes despertou particularmente a atenção dos biógrafos da santa —ainda que não citem seu nome (livro II, capítulo III): “O Senhor não somente a assistiu [a abadessa] nas dores das doenças e nos ataques dos demônios, mas também quando ela teve de sofrer o ataque dos homens; e Deus modifi­ cou para melhor o coração de seus adversários, como ela mesma contou a propósito da conversão de um filósofo que a princípio era hostil, não só a ela mas também a Deus, e no qual em seguida se operou uma transformação dirigida pela mão do Altíssimo.” Esse filósofo, cujo nome não é mencionado, talvez fosse um sábio, em todo caso, um não-crente e cético em relação a essa monja de quem se gabavam as luzes. “Esse filósofo, cumulado de riquezas, depois de ter duvidado por muito tempo do que eu tinha visto, veio finalmente a nós e adornou nossa morada de prédios, de benfeitorias e de outras coisas muitíssimo necessá­ rias; com o que nossas almas se regozijaram, porque Deus não as havia deixado no esquecimento. Após um exame minucioso,

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mas esclarecido, perguntou quais eram e onde estavam os escritos desta visão e terminou por acreditar plenamente na inspiração divina. Ele, que antes havia exprimido seu desprezo com palavras cheias de malignidade, tendo feito Deus muito pela justiça em seu coração, voltou-se em nossa direção com grandes bênçãos: da mesma forma que Deus afogou o faraó no mar Vermelho, pois este queria pegar os filhos de Israel. Na admiração desta mudança, muitos acreditaram mais e Deus, por este homem sábio, fez descer sobre nós Sua bênção [...] por isso o chamamos nosso pai. Ele, que antes se havia considerado príncipe, por seu nome, pediu para ser sepultado em nossa casa; e assim foi feito.” Ao contrário desse incrédulo, afinal convencido, muita gente vinha procurar junto à abadessa a paz do coração ou a cura do corpo. Os biógrafos de Hildegard enumeram os diversos casos que pareciam, então, miraculosos aos olhos de todos e que são, com certeza, menos convincentes ao leitor de hoje do que a enorme correspondência por meio da qual ela dispensa seus conselhos, e até admoestações, a todos os tipos de autoridade, fossem espirituais ou temporais. Mas sem dúvida, para compre­ ender a razão e o alcance da influência de uma simples religiosa das margens do Reno sobre o mundo tempestuoso que a rodeia, é melhor fazer como o filósofo que ela menciona e ir diretamente a seu primeiro trabalho. Trabalho que recebeu a aprovação pontifícia, assim como a de são Bernardo —o Scivias.

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É impossível, evidentemente, precisar que passagem do Scivias foi lida pelo papa diante do sínodo de Treves. Pelo menos sabemos que se trata dos primeiros capítulos da obra, os que já estavam redigidos em 1147, porquanto a obra inteira só foi concluída em 1151.0 Scivias compreende três livros: o primei­ ro descreve seis visões de Hildegard, seguidas de comentários feitos por ela; o segundo, sete visões, e o terceiro, treze. A última visão do terceiro livro termina em uma espécie de peça de teatro, ou melhor, de ópera, onde as virtudes são personificadas e sofrem ataques dos demônios; o que mais tarde Hildegard vai retomar numa obra musical, denominada Ordo virtutum. Sem uma certeza, que sempre nos faltará, quanto à passagem lida pelo papa, podemos escolher a terceira visão do primeiro livro do Scivias, muito característica do tom que a autora manterá daí por diante, ou seja, em todo o conjunto de sua obra. “Vi uma esfera imensa, redonda e cheia de sombra, tendo uma forma oval menos larga no topo, mais ampla no centro, retraída na base; tendo na parte exterior um círculo de luz cintilante e embaixo um invólucro tenebroso. E nesse círculo de chamas havia um globo abrasado, tão grande que iluminava toda a esfera. Acima dele, três estrelas ordenadas em fila amparavam esse globo em sua atividade ígnea por medo de que ele tombasse pouco a pouco. E às vezes esse globo subia mais alto e dava mais luz, de tal modo que podia lançar mais longe seus raios de chama. E depois, às vezes descia tão baixo, que o frio ficava mais intenso porque ele havia retirado sua chama. “Mas dessa fonte de chamas que circundava a esfera o vento saía com seus turbilhões, e do invólucro tenebroso que envolvia

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a fonte de chamas, um outro vento, com seus turbilhões, rugia e se espalhava por toda a esfera. Nesse mesmo invólucro, havia um fogo tenebroso que inspirava tão grande horror, que eu não podia olhá-lo, e que, cheio de tumultos, de tempestades e repleto de pedras agudas, pequenas e grandes, agitava esse invólucro com toda a força. E, enquanto ele fazia ouvir sua crepitação, o círculo luminoso e os ventos e o ar ficavam agitados de tal maneira, que os fulgores precediam o próprio estrondo, porque o fogo sentia primeiro a comoção que o tumulto produzia; mas sobre esse mesmo invólucro o céu era puríssimo e nele não havia nuvem alguma. “E nesse mesmo céu eu distinguia um globo de fogo ardente de certa magnitude, e acima dele, duas estrelas, ostensivamente colocadas, que o detinham para que ele não excedesse o limite de seu curso. E nesse mesmo céu muitas outras esferas lumino­ sas estavam colocadas por toda a parte, entre as quais o próprio globo, que, ao transbordar um pouco, enviava sua luz por instantes; e, recorrendo ao primeiro fogo do globo abrasado, restaurava sua chama e a enviava de novo a essas mesmas esferas. “Mas desse mesmo céu saía um sopro impetuoso de vento com seus turbilhões, que se espalhavam por toda a esfera celeste. Sob esse mesmo céu, eu avistava o ar úmido sob uma nuvem que se expandia por todos os lados, estendendo essa umidade a toda a esfera. E estando acumulada essa umidade, uma chuva súbita caiu com muitíssimo ruído. E, quando ela extravasou, suavemente uma chuva fina caiu com levíssimo rumor. Então um sopro com seus turbilhões saiu para se espalhar por toda a esfera. E no meio de todos esses elementos havia um globo arenoso de imensa extensão, circundado pelos mesmos elementos, de tal modo que ele não podia se dissipar nem num sentido nem no outro. E enquanto esses mesmos elementos com os diversos sopros lutavam juntos, eles constrangiam com sua força o globo arenoso a se mover um pouco. E vi entre o Aquilão e o Oriente (o norte e o leste) como que uma grande montanha que mantinha sombras tenebrosas em direção a Aquilão e muita luz em direção ao Oriente. [...]

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“E ouvi de novo uma voz do céu, que dizia: ‘Deus, que fez todas as coisas por Sua vontade, criou-as para conhecimento e honra de Seu nome. Não somente para mostrar nelas as coisas visíveis e temporais, mas para manifestar nelas as coisas invisí­ veis e eternas. O que é demonstrado pela visão que contemplas. A seguir Hildegard explica essa visão. Ela, o objeto descrito no início — a esfera redonda e sombria —, é sinal de Deus. E comenta: “Primitivamente os homens eram rudes e simples em seus costumes; depois, na Antiga e na Nova Lei, tornaram-se mais instruídos e se afligiram e se molestaram mutuamente. Mas no final dos séculos terão de sofrer muitos reveses por seu endurecimento. [...]” E assinala que o invólucro de sombra que envolve a chama designa os que estão fora da fé. “Nessa chama, o globo —de um fogo cintilante, de uma tal magnitude que ilumina toda a esfera — mostra pelo esplendor de sua claridade o que está em Deus Pai, seu Filho único inefável, o sol de justiça abrasado de ardente caridade, possuidor de uma tão magna glória que toda criatura é iluminada pela claridade de sua luz. E o globo de fogo às vezes se inclina mais para baixo [...] para significar que o próprio Filho único de Deus, nascido de uma Virgem, desceu misericordiosa­ mente à miséria dos homens, suportou todas as deficiências corporais e deixou o mundo para voltar a Seu Pai. [...] O que quer dizer: os filhos da Igreja, tendo recebido o Filho de Deus na ciência interior de seus corações, a santidade de Seu corpo elevou-se pela força de Sua divindade e, num milagre místico, a noite do secreto mistério O arrebatou para escondê-Lo aos olhos mortais, porque os elementos estavam a Seu serviço.” Em seguida ela esclarece que um dos sopros de vento é sinal de Deus, que enche o universo de Sua onipotência, e que o outro sopro, impetuoso, que faz fúria com seus turbilhões, vem da cólera de Satanás, de onde “sai a maldade renomada [...] que se espalha em todos os sentidos da esfera porque, nos séculos, os rumores úteis e inúteis se misturam de diversas maneiras entre os povos”. Significa que o homicídio se mistura à avareza, à embriaguez, às mais cruéis perversidades.

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“Mas”, acrescenta ela, “sobre esse invólucro o céu é puríssimo e sem véu porque sob os embustes do antigo enganador a fé luminosa resplandece [...] Ela não vem dela mesma, mas está fundada em Cristo. E no céu vês um globo de fogo ardente, de grande extensão, que designa verdadeiramente a Igreja unida na fé, como demonstra essa brancura de inocente claridade, que forma uma auréola de glória; e acima dela, duas estrelas distin­ tamente colocadas [...] mostram que dois Testamentos, o da antiga e o da nova autoridade, conduzem a Igreja. [...] “Sob esse mesmo céu, vês o ar úmido e, embaixo, uma nuvem branca que se estende em todos os sentidos difundindo a umidade por toda a esfera.” É a imagem do batismo “desvelan­ do ao universo inteiro a fonte de salvação para os crentes. [...] E dele também sai um sopro, com seus turbilhões, que se espalha por toda a esfera, porque, desde a difusão do batismo, que trouxe a salvação aos crentes, a verdadeira renomada, propagando-se pelas palavras —doutos discursos —, penetrou o mundo inteiro [...] entre os povos que renunciaram à infidelidade para abraçar a fé católica”. Enfim, o globo arenoso designa o homem e o mundo criado para o seu uso. Aqui o comentário de Hildegard se faz prece: “O Deus, que fizestes admiravelmente todas as coisas, Vós coroastes o homem com a coroa de ouro da inteligência; e o revestistes com a soberba vestimenta da beleza vísivel; e assim o colocastes, como um príncipe, acima de Vossas obras perfeitas, que dispusestes com justiça e bondade entre Vossas criaturas. Por­ que outorgastes ao homem dignidades maiores e mais admirá­ veis do que às outras criaturas.” Momento de contemplação, em que Hildegard exprime um sentimento que, aliás, se repete em sua obra: o maravilhamento ante a beleza da criação, sentimento familiar à época em que ela vive, o mesmo que é admiravelmente experimentado e expresso na obra de um Hugo de Saint-Victor: “Deus”, diz ele, “não quis somente que o mundo fosse, mas que fosse belo e magnífico.” Um outro aspecto intervém a seguir, quando a visionária esclarece o que significa a grande montanha que se ergue entre o Aquilão, lugar de trevas, e o Oriente, lugar de luz. Aqui é

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evocada a queda do homem “pela horrível mentira do espírito maligno que causa aos condenados as múltiplas misérias da danação”. E lembra essa “espécie de homens que Me tentam de modo opiniático com sua arte perversa, perscrutando a criatura feita para seu serviço e pedindo que lhes mostre, segundo suas vontades, o que eles querem saber. Será que podem, com as especulações de sua arte, prolongar ou abreviar o tempo de vida fixado pelo Criador? Decerto não o podem fazer nem por um dia nem por uma hora. Ou então desviar a predestinação de Deus? De modo algum. Mas, às vezes Eu permito que essas criaturas vos demonstrem vossas paixões e seus sinais distintivos, porque elas Me temem como seu Deus. [...] O insensatos, quando Me votais ao esquecimento, sem vontade de retornar a Mim nem Me adorar, e olhais a criatura para saber o que ela vos vaticina, então renunciais a Mim obstinadamente e honrais a criatura enferma, de preferência a vosso Criador”. O que é condenar todas as experiências de adivinhação. E prossegue: “Mas às vezes as estrelas, com a Minha permissão, manifestam-se aos homens por sinais, como é mostrado por Meu Filho no Evange­ lho, quando Ele diz: ‘Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas.’ O que quer dizer: pela claridade dessas estrelas os homens serão iluminados; e os tempos dos tempos serão demonstrados por sua evolução. Assim, nos tempos últimos, períodos lamentáveis e perigosos manifestar-se-ão nelas, com Minha permissão, de tal sorte que os raios do sol, o esplendor da lua e a claridade das estrelas desaparecerão, às vezes, a fim de comover o coração dos homens.” Em seguida a visionária toma como exemplo a estrela que guiou os Magos para mostrar que, se é falso que o homem tenha uma “estrela particular” para dispor de sua vida, como o povo imbecil, que se engana, se esforça por acreditar, todavia essa estrela resplandeceu “porque Meu Filho único nasceu da gravi­ dez de uma Virgem sem pecado. Mas essa estrela não trouxe nenhuma ajuda a Meu Filho senão a de anunciar fielmente ao povo Sua encarnação, porque todas as estrelas e criaturas que O temem cumprem somente a Minha vontade. Elas não têm absolutamente outra significação, de espécie alguma, para qual­

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quer criatura que seja”. Assim ela combate a astrologia e toda a sorte de adivinhação, tudo o que desvia a piedade do homem e seu sentido do mistério divino: “Não quero que perscrutes as estrelas, o fogo ou as aves, ou qualquer outra criatura que seja, sobre as causas futuras.” E, prosseguindo nos erros e malefícios satânicos, a visionária deixa novamente Deus se dirigir ao homem: “Ó homem, Eu te resgatei pelo sangue do Meu Filho, não com malícia e iniqüidade, mas com a máxima justiça. E contudo Me abandonas, a Mim, o verdadeiro Deus, e segues aquele que é mentira. Eu sou a justiça e a verdade, é por isso que te advirto na fé, exorto-te no amor e acolho-te na penitência, a fim de que, mesmo ensangüentado pelas feridas do pecado, te ergas da profundeza da queda.” Continuando o comentário sobre a visão, ela acrescenta esta exortação, que lhe é ditada pelo esplendor entrevisto: “Ó ho­ mens insensatos, por que interrogais a criatura sobre o tempo de vossas vidas? Nenhum de vós pode conhecer de fato o tempo de vossa vida, evitar ou ultrapassar aquilo que foi determinado por Mim. Porque, ó homem, quando se cumprir tua salvação, seja nas coisas temporais, seja nas espirituais, tu deixarás o presente século para passar àquele que não tem fim. Porque, quando o homem possui uma tão grande força que Me ame com ardor maior que as outras criaturas [...], Eu não separo seu espírito de seu corpo antes que ele tenha podido levar à maturidade seus frutos saborosos, que têm um odor suave. Mas aquele que Eu considere tão débil que não possa suportar meu jugo em meio às tentações do sedutor maligno e na pesada escravidão de seu corpo, Eu o retiro deste século antes que ele comece a murchar com o aviltamento de sua alma; porque Eu sei tudo. Quero dar ao gênero humano toda a justiça para sua salvaguarda, de modo que ninguém possa encontrar desculpa quando Eu advertir e exortar os homens a cumprir as obras de justiça, quando Eu lhes inculcar o medo do julgamento da morte, como se estivessem para morrer, mesmo que ainda tenham muito tempo para vi­ ver...” Na visão seguinte, a quarta do Scivias, a interrogação sobre o destino do homem continua sempre de modo imagético e de

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acordo com as etapas do desenvolvimento da vida humana. “Vi um esplendor imenso e sereno, que irradiava qual muitíssimos olhos, tendo os quatro ângulos voltados para as quatro partes do mundo, que me foi manifestado num grande mistério, designan­ do o segredo do Criador supremo; e nesse esplendor sereno um outro esplendor semelhante à aurora, tendo nele a claridade de um luar purpúreo, apareceu [...] Vi como que uma forma de mulher tendo em seu seio uma forma perfeita de homem, e eis que, por uma secreta disposição do Criador supremo, esta mesma forma manifestou o movimento de vida e uma esfera abrasada, não tendo nenhum traço de corpo humano, possuiu o coração da forma, tocou seu cérebro e se transfundiu por todos os seus membros; e em seguida esta forma de homem, vivificada dessa maneira, ao sair do seio da mulher teve os movimentos igualados aos dos homens sobre essa esfera e mudou sua cor segundo as cores deles.” Em seguida virá o tempo de atribulações para esta forma humana, que a queda expôs a todos os perigos: “Eu, estrangeira, onde estou? Na sombra da morte? Que caminho que eu sigo — a via do erro — e que consolação posso experimentar, a dos peregrinos; de fato eu deveria ter um tabernáculo de pedra mais resplandecente do que o sol e as estrelas, já que o sol posto e as estrelas moribundas não deveriam luzir nele, mas ele estaria repleto da glória angélica, porque o topázio lhe serviria de fundamento e todas as gemas formariam sua estrutura; seus degraus seriam de puro cristal, e seus átrios, revestidos de ouro, porque eu sou o sopro vivo que Deus inoculou na matéria árida; é por isto que eu devia conhecer Deus e amá-Lo. Mas, quando meu tabernáculo [o corpo do homem, tabernáculo do Espírito Santo] compreendeu que podia olhar em todos os sentidos [sinal da liberdade concedida ao homem, da possibilidade de escolha, de seu desejo de escolher por si mesmo o seu bem ou o seu mal], ele se voltou para o Aquilão [Aquilão, lugar do frio e do desespero].” Seguem-se então todas as desgraças da criatura: “Alguns puseram-se a me cobrir de opróbrios, fizeram-me partilhar a lavagem dos porcos, e me enviaram a um lugar deserto, e

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também me deram para comer ervas amargas embebidas em mel. Estenderam-me em seguida em uma prancha, infligiram-me muitíssimos tormentos, despojaram-me de minhas vestes para me ferir muitíssimas vezes, e me deixaram entregue às feras; as serpentes e os escorpiões venenosos, as víboras e seus semelhan­ tes me capturaram e crivaram-me de veneno.” Presa de todos os suplícios, ela chama: “Tu, onde estás, Sião, ó minha Mãe. Desgraçado de mim, eu que me afastei de ti! Mas, quando eu ia derramar sobre ti, ó minha Mãe, minhas lágrimas e meus gemi­ dos, a infortunada Babilônia fez ressoar a tal ponto o rumor de suas águas, que tu não pudeste estar atenta à minha voz. E por isso que procurarei os caminhos estreitos por onde poderei fugir a meus horríveis companheiros e a meu detestável cativeiro. E depois de ter falado assim, fugi por uma vereda estreita onde me escondi, chorando amargamente, numa caverna ao lado do setentrião, porque tinha perdido minha Mãe. E eis que um odor suave, como que proveniente do doce hálito de minha Mãe, inebriou-me com seu perfume. [...] E fui presa de uma tal alegria, que o antro da montanha onde me havia refugiado retumbou com meus gritos de júbilo. [...] Eu desejava subir a uma altura onde meus inimigos não me pudessem descobrir, mas eles me opuse­ ram a um mar tão agitado, que me era impossível atravessar. Havia ali um ponto tão mínimo e tão estreito, que eu não podia transpor. Mas nos confins desse mar erguiam-se montanhas de cumes tão altos, que eu senti a impossibilidade de alcançá-los.” Retomada de pavor, a criatura invoca novamente o poder do Alto. “Então ouvi a voz de minha Mãe, que dizia: ‘O filha, corre, porque, para que voes, asas te foram dadas pelo poderoso doador, ao qual ninguém pode resistir; voa, pois, acima de todas essas contrariedades, com toda a rapidez de tuas asas.’ De novo cheguei diante de um tabernáculo edificado sobre bases indestrutíveis e, penetrando nele, cumpri as obras de luz depois de ter praticado as obras das trevas. E nesse tabernáculo, no norte coloquei uma coluna de ferro não-polido sobre a qual pendurei, aqui e ali, diversas asas que se agitavam como ventarolas; e, tendo encontrado o maná, eu o comi. Mas no oriente construí um forte de pedras quadradas e nele acendi o

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fogo e bebi o vinho doce misturado à mirra. Ao meio-dia, construí também uma torre na qual suspendi escudos de cor vermelha, e nas janelas coloquei trombetas de marfim. No meio da torre verti mel, do qual fiz um perfume precioso com outros aromas, de tal sorte que seu odor poderoso espalhou-se por todo o recinto do tabernáculo. No ocidente, não edifiquei nenhuma obra porque esta parte voltava-se para o século.” Novamente exposta a todas as agressões do ódio e da mentira, a criatura implora a ajuda de Deus: “E ouvi de novo uma voz que dizia: ‘A bem-aventurada e inefável Trindade manifestou-se ao mundo quando o Pai enviou ao mundo seu Filho único, concebido do Santo-Espírito e nascido da Virgem, a fim de que os homens, nascidos em condições muito diferentes e presos pelos elos do pecado, fossem conduzidos pelo Cristo no caminho da Verda­ de.’” E pouco a pouco são dadas as informações necessárias para que o homem se salve. A continuação contém o esclarecimento da visão enunciada antes: “A figura feminina que vês trazendo em seu seio uma forma humana perfeita significa que, desde que a mulher recebe a semente humana, a criança se forma com a integridade de seus membros na célula escondida no seio de sua mãe. E eis que, por uma secreta disposição do divino Criador, esta forma confirma o movimento da vida porque, desde que em virtude de uma vontade misteriosa de Deus a criança recebeu o espírito no seio materno, no momento estabelecido e querido por Deus, ela demonstra pelos movimentos de seu corpo, que vive, como a terra se entreabre e deixa desabrochar as flores de seu fruto quando o orvalho desce sobre ela. De tal modo que é como se uma esfera de chamas, sem nenhum traço do corpo humano, possuísse o coração da referida forma, porque a alma [ardendo no lar da soberana ciência] distingue diversas coisas no âmbito de sua compreensão. E essa esfera não tem nenhum traço do corpo humano porque ela não é nem corpórea nem efêmera como é o corpo do homem, e porque ela lhe dá a força e a vida. E, sendo como que o fundamento do corpo, ela o rege por inteiro. [...] Essa forma humana, assim vivificada no seio da mãe, possui, ao sair, os movimentos que lhe imprime a esfera de

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chamas que está nela. E, de acordo com seus movimentos, ela muda também de cor, porque depois que o homem recebeu no seio de sua mãe o sopro de vida, depois que ele nasceu e manifestou os movimentos de seus atos segundo as obras que a alma cumpre com o corpo, o mérito lhe advém dessas mesmas obras, porque se reveste com o esplendor das boas obras e se cobre com as trevas das más. “Essa mesma esfera de chamas mostra seu vigor conforme as energias corporais, de tal modo que, na infância do homem, ela dá provas de simplicidade, na juventude, de força, e na plenitude da idade [...] ela manifesta a potência de suas virtudes por sua sabedoria. [...] Mas o homem tem em si três veredas [três rumos ou maneiras de ser]. O que é isso? A alma, o corpo e os sentidos, e é por eles que a vida se exerce. Como? A alma vivifica o corpo e mantém o pensamento, o corpo atrai a alma e manifesta o pensamento, mas os sentidos abalam a alma e adulam o corpo. Porque a alma dá vida ao corpo como o sol faz penetrar a luz nas trevas, por meio das duas forças principais que possui: a inteligência e a vontade, que são como seus dois braços.” E, porque rejeita as interpretações simplistas, Hildegard se apressa a acrescentar: “Não que a alma tenha dois braços para se mover, mas ela se manifesta por essas duas forças, como o sol por seu esplendor.” Inteligência e vontade são os dois meios que o homem possui para se manifestar. Mais adiante, depois de ter descrito as possibilidades do ser humano, Hildegard exprime uma vez mais, por meio de suas visões, as tendências do homem: “A alma no corpo é como a seiva na árvore, e suas faculdades são como os ramos da árvore. Como é isso? A inteligência está na alma como o verdor dos ramos e das folhas, a vontade como as flores, o espírito como o primeiro fruto que dela sai, a razão como o fruto perfeito que vem na sua maturidade, os sentidos como a extensão de sua grandeza. E é dessa maneira que o corpo do homem é fortificado e sustentado pela alma. É por isso, ó homem, que compreendes o que és por tua alma, tu, que renuncias à tua inteligência e queres ser comparado às bestas.”

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Após as etapas do destino do homem, vêm os momentos da Revelação que a quinta visão desenvolve, com a imagem da Igreja sucedendo à da Sinagoga: “Vi como que uma imagem de mulher, alva da cabeça ao umbigo, negra do umbigo aos pés, e os pés cor de sangue. Em torno dos pés tinha uma nuvem resplandecente e pura. Privada de olhos e tendo as mãos sob suas axilas, a imagem mantinha-se perto do altar que está diante dos olhos de Deus; mas não o tocava. E no seu coração trazia Abraão; e no peito Moisés; e no ventre os outros profetas, cada qual apresentando seu signo e admirando a beleza da nova esposa. Esta surgiu grande como a torre imensa de uma cidade, tendo sobre a cabeça uma espécie de auréola semelhante à aurora. E de novo eu ouvi uma voz do céu, que dizia: ‘Deus impôs ao povo antigo a austeridade da Lei ordenando a Abraão a circuncisão, em seguida transformou-a numa graça de suavi­ dade, dando seu filho aos que acreditavam na verdade do Evangelho. E mitigou aqueles que foram feridos pelo jugo da Lei. E por isso que vês como que uma imagem de mulher, alva da cabeça ao umbigo: é a Sinagoga, mãe da encarnação do Filho de Deus e que, desde o começo do nascimento de seus filhos até a plenitude de suas forças, prevê os mistérios de Deus, mas não os descobre por inteiro. Porque ela não tem a resplandecente aurora que se manifesta abertamente, mas aquela que olha de longe na surpresa e na admiração. [...] ASinagoga admira a nova esposa, a Igreja, que não se vê ornada com as mesmas virtudes dela, mas rodeada por escoltas angélicas, a fim de que o demônio não possa arruiná-la nem derrubá-la; enquanto a Sinagoga, abandonada por Deus, jaz no vício. [...] Ela tem os pés ensan­ güentados e uma nuvem resplandecente brilha em torno deles, porque, em sua consumação, levou à morte o Cristo, o Profeta dos profetas, e ela mesma, decaída, desmoronou. Mas nessa consumação, a luz da fé resplandecente e pura surge no espírito dos crentes porque, no momento da queda da Sinagoga, a Igreja se ergueu quando a doutrina apostólica, após a morte do Filho de Deus, se propagou por toda a Terra.” Em contraste com a Sinagoga, a Igreja “surge tão majestosa que é comparável à alta torre de uma cidade, porque, ao receber

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a beleza dos preceitos divinos, ela armou e fortificou a nobre cidade dos eleitos. Tem sobre a cabeça uma auréola semelhante à aurora, porque a Igreja manifestou no seu nascimento o milagre da encarnação do Filho de Deus, bem como as virtudes fulgurantes e os mistérios que delas decorrem. [...] Ora, assim como o homem, pela morte do Filho único de Deus, numa era nova, foi arrancado à perdição da morte, também a Sinagoga, antes do Último Dia, atraída pela divina clemência, abandonará a incredulidade e alcançará verdadeiramente o conhecimento de Deus. [...] Assim a Sinagoga precede à sombra da figura, e a Igreja segue à luz da verdade”. Essa grandiosa imagem, a oposição entre a Sinagoga de olhos velados e a Igreja contem­ plando o mistério divino, é familiar à época de Hildegard. Basta lembrar o magnífico portal sul da catedral de Strasburgo, onde essa dupla visão é evocada na pedra; ou ainda, um pouco tardia, essa mesma dupla imagem no portal da catedral de Bamberg: Igreja e Sinagoga resplandecentes de uma beleza semelhante. Esses extratos do primeiro livro do Scivias dão uma idéia do que será o conjunto da obra de Hildegard. Visões de uma poderosa originalidade, ao mesmo tempo ricas e precisas, que evoluem aos nossos olhos com grande requinte de detalhes e cores muito típicas de uma época de grande criatividade. Visões violentas em que todas as descrições parecem levadas ao extre­ mo. Se os temas são bem conhecidos, os da Encarnação, da Redenção e da própria Criação, aqui eles são desenvolvidos com uma força que os renova para além das formulações convenci­ onais, desprovidos de qualquer fraqueza ou de qualquer insipi­ dez; páginas inflamadas, torrentes de imagens pontuadas por interrogações —“Como é isso?” “O que é isso?” —que prolon­ gam as interpretações da vidente para detalhar o sentido e o alcance. Amplas visões, às vezes imbuídas de comparações suntuo­ sas, onde gemas e topázios, colunas de ferro e trombetas de marfim compõem uma espécie de encantamento, às vezes expressando uma simplicidade muito próxima da natureza: “a alma no corpo como a seiva na árvore e suas faculdades como os ramos”. Mesmo as imagens tradicionais e familiares à época,

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como a da Sinagoga e a da Igreja, encontram aqui uma suntuosidade nova: “alva da cabeça ao umbigo, negra do umbigo aos pés, e os pés cor de sangue”. Era preciso no mínimo uma assistência impregnada de imagens bíblicas, familiarizada com as inflexões dos profetas, para ser sensível a essa palavra acesa de verdades fundamentais para o cristão. Compreende-se que são Bernardo tenha reconhe­ cido nela “uma luz radiante”. Hildegard renova para o seu tempo, com uma violência inesperada, a expressão dos misté­ rios que a Bíblia ensina e a Igreja transmite. E assim toda a sua obra lança um olhar novo, ardente e encantador em sua singele­ za, sobre o conteúdo da fé.

A VIDA NO MOSTEIRO DE BINGEN

Quando Hildegard termina o Scivias, em plena instalação do mosteiro de Bingen, que ficará sempre ligado a seu nome, sobrevêm um incidente que traz uma nota humana —seriamos tentados a dizer sentimental —a essa existência fora do comum. Já havíamos mencionado a presença, em algumas miniatu­ ras que representam a visionária, de uma jovem religiosa que se coloca atrás dela, geralmente identificada como sendo Richardis, sua secretária; como Volmar, o monge, ela é inseparável da redação do Scivias. Richardis é filha da marquesa de Stade, que ajudou muito Hildegard na fundação do mosteiro de Bingen, e seu irmão, Hartwig, é arcebispo de Bremen. Parece que ela preenchia junto à abadessa o papel de secretária e a assistia nos diversos ofícios do convento. É a esse título que deve ter participado da redação do Scivias, embora uma participação secundária. Ora, em 1151, a própria Richardis é eleita abadessa de um mosteiro de Saxe, em Bassum, na diocese de Bremen. Ao tomar conhecimento, Hildegard se apressa em escrever à mãe de Richardis: “Não vá subtrair minha alma e fazer com que lágri­ mas amargas rolem de meus olhos, a propósito de minhas caríssimas filhas Richardis e Adelaide [irmã de Richardis].” É muito provável que Hildegard tenha usado de todo o seu prestígio para impedir o afastamento dessas duas jovens religiosas. Mas o arcebispo de Bremen estava visivelmente empenhado nessa transferência e contava, neste caso, com o apoio e aprovação de um outro prelado, que até então apoiara muito Hildegard em sua transferência para Bingen: Henri, arcebispo de Mayence. De modo que a abadessa vê Richardis se afastar, e esse afastamento

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Ihe é muito penoso. Tenta recorrer ao próprio arcebispo Hartwig; diante da recusa, chega a escrever uma carta ao papa Eugênio III. Essa carta se perdeu, assim como a resposta do pontífice, que, aliás, só podia remeter o caso às autoridades locais. Em compen­ sação conservou-se uma carta de Hildegard a Richardis: “Eu amava a nobreza de vosso comportamento, a sabedoria e a pureza de vossa alma e de todo o vosso ser.” Tal afinidade só tornaria dilacerante a separação. Ora, já no ano seguinte, em fins de 1152, Hartwig, o arcebispo de Bremen, escreve a Hildegard para lhe comunicar a morte repentina da irmã. Diz também que Richardis derramara muitas lágrimas por seu primeiro claustro e que havia planejado visitá-la, quando foi colhida pela morte: “Informo-te que nossa irmã, a minha, mais ainda a tua, minha pela carne, tua pela alma, encontrou o destino de toda carne [...] tendo se confessado piedosa e santamente, ungida dos santos óleos após a confissão, comportou-se plenamente como cristã; ela, que por teu claustro chorara muitas lágrimas de todo seu coração, entregou-se ao Senhor, com Sua Mãe e são João, e assinalada com o sinal da cruz, tendo professado a Trindade e a unidade na perfeita fé de Deus, em esperança e caridade, do que estamos certos, morreu no quarto dia das calendas de novembro [28 de outubro]. Rogote, pois, se é que sou digno, tanto quanto o posso, que conserves teu amor por ela, tanto quanto ela te amou, e se parecer que ela tenha cometido alguma falta, não a imputes a ela, mas a mim, tendo em consideração as lágrimas que derramou após ter deixa­ do o teu claustro, o que pode ser confirmado por muitas testemu­ nhas. E, se a morte não a tivesse impedido, assim que lhe fosse dada a permissão, teria ido a ti. E, já que a morte a impediu de fazê-lo, sabe que irei eu render-te visita, se Deus o quiser. [...]” Em sua resposta, Hildegard primeiro rende homenagem ao irmão de Richardis, desejando que Deus conserve Seus olhos fixos sobre ele e o encaminhe no cumprimento de Sua vontade santa. E prossegue: “Quanto a mim, pobre figura minúscula que sou, vi em ti uma luz de salvação. Cumpre agora os preceitos de Deus, que te dá Sua graça e o ensinamento do Espírito Santo. [...] Possa teu olho enxergar a Deus, teu sentido compreender Sua

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justiça; e que teu coração arda do amor de Deus para que tua alma não fraqueje, mas dedique um zelo extremo a edificar a torre da Jerusalém celeste, e que Deus te dê uma ajuda, a saber, a doce Mãe de misericórdia. Sê uma estrela luminosa luzindo nas trevas das noites de homens depravados e sê um cervo que Célere corre à fonte de água viva.” Após ter recordado vigorosamente as necessidades da Igre­ ja do seu tempo, Hildegard prossegue em frases comoventes: “Agora escuta: assim aconteceu com minha filha Richardis, que chamo de minha filha porque minha alma foi plena de caridade por ela, pois que a Luz viva, em uma visão fortíssima, ensinoume a amá-la como a mim mesma. Escuta: Deus guardou-a com tão grande zelo, que a atração do século não pôde retê-la, mas atormentou-a tanto que ela surgiu na sinfonia dos séculos qual uma flor, com sua beleza e seu esplendor. Mas, no tempo em que ela ainda habitava seu corpo, ouvi dizer dela, em visão verdadei­ ra: ‘O virgindade, guarda-te na câmara real.’* De fato ela foi da ordem santíssima das virgens e nelas encontrou companhia, com o que se regozijam as filhas de Sião. [...] E por isso que Deus não quis dar Sua amiga ao amador inimigo, isto é, ao mundo. Agora, tu, ó caríssimo, sentado no lugar do Cristo, cumpre a mesma vontade de tua irmã como exige o dever de obediência; e, assim como sempre foi preocupada por ti, agora o sê por sua alma e faz boas obras segundo o zelo que foi o dela. [...]” (carta X e respectiva resposta.) Impressiona a serenidade que se desprende dessa carta — enquanto a de Hartwig é antes plena de emoção; visivelmente, a abadessa já havia dominado sua tristeza e consumado em si mesma a resignação que solicitava. Esse episódio doloroso situa-se muito provavelmente por volta de 1151, quando Hildegard terminou o Scivias. O redator de sua Vida, com muito menos detalhes do que poderíamos desejar, lança algumas luzes sobre os anos seguintes no convento de * Imagem litúrgica que designa o casamento espiritual da religiosa com o Cristo. (N. da T.)

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Bingen. Surpreende-se ao ver a torrente de boas obras que ela jorrava, como se irrigada pelo rio do paraíso; “e não apenas de toda a vizinhança, mas de toda a Gália tripartida e da Germânia afluíam pessoas de ambos os sexos ávidas de receberem os conselhos e as exortações da abadessa. Muitos vinham também em busca da cura das afecções corporais. E alguns, graças à sua bênção, ficavam livres de seus sofrimentos. Com espírito pro­ fético, ela conhecia os pensamentos e as intenções dos homens, e repelia aqueles que dela se aproximavam com espírito perver­ so ou frívolo, como que para experimentá-la. Estes, não poden­ do resistir ao espírito que falava, eram obrigados, refeitos e purificados, a desistir de seus propósitos tortuosos. E quanto aos judeus que vinham interrogá-la, convictos de sua própria lei, ela os exortava à fé do Cristo com palavras de piedosa admoestação. A todos ela falava, conforme o conselho do Apóstolo, doce e piedosamente, de acordo com o que lhe parecia convir a cada um. A Vida de Hildegard destaca alguns dos milagres que lhe são atribuídos. Trata-se sobretudo de curas de moléstias vaga­ mente descritas. Assim, ela conseguiu debelar a febre de uma parenta que não havia meio de ceder. Ou, então, num mosteiro que não é nomeado, uma serva chamada Berta tinha um tumor no pescoço que a impedia de engolir qualquer alimento, bebida ou mesmo a saliva; um sinal-da-cruz traçado sobre o doloroso inchaço é o suficiente para curá-la. Às vezes Hildegard se contenta em enviar água benta aos que lhe imploram socorro, e as dores se acalmam. E o caso de uma mãe que lhe vem solicitar a cura da filha; a água benta enviada pela abadessa cura também um moço em estado de extrema fraqueza. Algumas dessas curas demonstram como a fama de Hildegard se difundira. E o caso de uma Sibila que lhe escreve da cidade de Lausanne, além-Alpes, querendo se ver livre de um “fluxo de sangue” —o que de fato consegue, após a resposta de Hildegard. Ou, ainda, o de um rapaz de Andernach que, tendo suplicado ao Senhor a intercessão de Hildegard, esta lhe aparece, põe a mão sobre sua cabeça e diz: “Que essa enfermidade se afaste de ti e sejas curado.” Tão logo a visão desaparece, o doente se levanta do leito.

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Um outro milagre, enfim, ocorrido em circunstâncias comoventes, durante uma viagem que Hildegard realizou pelo Reno, a caminho de uma cidade onde fora chamada a pregar. No barco, uma mulher apresenta-lhe o filhinho, que é cego. “Hildegard se lembra de dizer a frase d’Aquele que disse: ‘Vá à piscina de Siloé e lava-te.’ Apanha água do rio em sua mão esquerda e abençoa a criança com a mão direita, derramando-lhe a água sobre os olhos. Imediatamente, com a permissão da graça divina, a criança recobra a visão.” De passagem, recebemos uma preciosa indicação sobre as viagens de Hildegard, a maioria, como veremos, realizadas por via fluvial, de resto, o meio de transporte mais freqüente na época. É em Bingen, sem dúvida entre 1158 e 1163, que a abadessa redige sua segunda obra, intitulada O livro dos méritos da vida. Trata-se de seis visões reunidas num único livro, enquanto o Scivias, com o mesmo número de temas, abrangia três livros. O primeiro trabalho tinha por assunto o Criador e a criatura, como Bernard Gorceix analisa em sua admirável introdução à obra de Hildegard, “o segundo, o Messias e a Igreja, e o terceiro, a história da salvação”. “No segundo texto, O livro dos méritos da vida, a estrutura é monolítica: ao longo de seis visões sucessi­ vas, uma figura humana olha em direção a leste, a oeste, ao norte e ao sul. O universo inteiro num quinto momento. E somente no sexto a figura humana se põe em movimento com as quatro zonas da Terra. Esta figura humana é nada menos que Deus.” Resumindo, o Livro dos méritos constrói a história da salvação por meio do confronto das virtudes e dos vícios, com a vitória da divindade. Finalmente, em 1163, Hildegard escreve seu terceiro e mais conhecido trabalho, O livro das obras divinas, que Bernard Gorceix traduziu e foi publicado em francês em 1982. E em 1165 Hildegard funda um novo mosteiro. Na certa o número de religiosas começava a exceder a capacidade de acomodação do convento de Bingen. Sem mudar de região, é do outro lado do Reno, acima de Rüdesheim, que será aberto esse novo estabelecimento, o de Eibingen. Guardará em seu nome o

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de santa Hildegard, e das fundações em que a abadessa viveu é a única que sobrevive até hoje, uma vez que as outras duas foram completamente destruídas pela invasão sueca do século XVII. E aí, como dissemos, que se encontra o túmulo de Hildegard, e os mosaicos, que reproduzem algumas de suas visões, estão na colegial,* reconstruída no século XVII e reformada em nossos dias. Alguns episódios da vida de Hildegard que conhecemos por sua correspondência chegam-nos com uma ressonância mais pessoal do que os relatos biográficos. E o caso, por exemplo, da cura de Sigewise, uma jovem mulher de Colônia que parecia apresentar um quadro de possessão demoníaca. Sobre esse assunto, cartas foram trocadas entre Hildegard e os monges da abadia de Brauweiler, que tinham tentado sem sucesso libertar a mulher. Sua correspondência demonstra a confiança que depositavam na monja. O abade de Brauweiler dirige-se a ela em termos que testemunham a reputação da abadessa: “Ainda que vosso rosto, senhora muito amada, não nos seja conhecido, a fama de vossas virtudes vos tornaram célebre e, ainda que ausentes de corpo, em espírito, todavia, estamos assiduamente presentes junto a vós. [...] De nossa parte, ouvimos falar de fato sobre o que o Senhor fez em vós, das grandes coisas que realizou em vós, Ele, que é poderoso e cujo nome é santo.” E, pois, pela fama de Hildegard que ele se dirige a ela, implorando conselho a propósito de um caso que não pôde resolver: “Com efeito, certa mulher nobre, há muitos anos obsedada por um espírito maligno, foi-nos trazida por mãos amigas para ser libertada desse inimigo que a ameaça, com o socorro de são Nicolau, sob cuja proteção nos estabele­ cemos. Mas a astúcia e a maldade desse muito ladino e muito detestável inimigo já conduziram tanta gente, aos milhares, ao erro e à dúvida, que tememos muito que daí advenha um grande perigo para a Santa Igreja. De fato todos nós, com muitas outras pessoas, temos nos empenhado, há três meses já, em libertar * Igreja que, embora não sendo sede episcopal, possui um cabido, geralmente nas dependências do mosteiro. (N. da T.)

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essa mulher de diversas maneiras e, não podemos admiti-lo sem desgosto, por causa de nossos pecados, nada conseguimos. Toda a nossa esperança, então, está em vós, depois de Deus. Com efeito, esse demônio, conjurado certo dia, acabou manifes­ tando que essa mulher obsedada não poderia ser libertada senão pelo poder de vossa contemplação e pela grandeza da divina revelação. [...] Pedimos, pois, que vossa santidade queira nos indicar por carta o que, sobre este assunto, Deus vos terá inspirado ou revelado pelas visões.” A resposta de Hildegard, de início, contém conselhos e uma linha de conduta a ser seguida: “Estando afligida de uma longa e grave enfermidade, pela permissão de Deus, mal posso res­ ponder um pouco a vossa consulta; não é de mim que o digo isto, mas Daquele que é: existem diversos gêneros de espíritos malignos. O demônio de que falais tem artifícios que se asseme­ lham aos vícios nos hábitos dos homens. De modo que ele fica à vontade com os homens e até zomba e faz pouco da cruz de Deus, dos santos etc.; tudo isso, que pertence ao serviço de Deus, ele não respeita muito. Não ama e finge que foge disso, como um homem tolo e negligente despreza as palavras e as advertências que lhe fazem os homens sábios; assim sendo, nos livramos deles com mais dificuldades do que de um outro demônio. Não poderá ser expulso sem jejuns, mortificações, orações, esmolas e sem a própria ordem de Deus. Escutai, pois, não uma resposta de homem, mas a Daquele que vive. Escolhei sete boas testemunhas recomendadas pelos méritos de suas vidas, que sejam padres, em nome e por ordem de Abel, Noé, Abraão, Melquisedeque, Jacó e Aarão, que vão oferecer um sacrifício ao Deus vivo; e um sétimo, em nome do Cristo, que será oferecido sobre a cruz a Deus Pai. E para os jejuns, flagelações, preces, esmolas e celebrações de missas, em humilde intenção e em hábito sacerdotal, que venham cobertos com suas estolas contra a paciente e que a rodeiem, cada um deles empunhando um cajado que figura o cajado com que Moisés no Egito golpeou o mar Vermelho e a pedra, segundo o preceito de Deus, a fim de que, assim como Deus ali mostrou milagres com o cajado, esse inimigo muito perverso sendo repelido da mesma maneira,

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Deus seja glorificado. [...] Esse padres serão sete, figurando os sete dons do Espírito Santo, a fim de que o espírito de Deus, que na origem pairava acima das águas e inspirou o sopro da vida na face do homem, afaste do homem fatigado o espírito imundo [•••] •”

Algum tempo depois, os monges da abadia de Brauweiler voltam à carga. O espírito conjurado segundo as indicações de Hildegard, que a princípio, de fato, deixou em paz a pessoa em questão, eis que retoma sua posse. Portanto, pedem permissão à abadessa para levarem até ela a mulher vítima do mau espírito, convencidos de que esta não será curada sem a presença da monja. Embora Hildegard se achasse então gravemente enfer­ ma, a jovem nobre — é sempre assim que a denominam — obsedada pelo demônio é levada ao convento. Vem cheia de desprezo pela velha abadessa, da qual escarnece chamando-a de Scrumpilgarde, jogo de palavras derrisório com o nome de Hildegard. Finalmente, por insistência dos monges de Brauweiler, que fazia vários anos vinham tentando conjurar o demônio que assaltava a mulher, Hildegard resolveu recebê-la: “Ficamos assustadas”, diz ela, “sem saber como poderíamos vê-la e ouvila, ela por quem tanta gente se preocupava há tanto tempo, mas Deus houve por bem nos enviar o orvalho de Sua doçura e pudemos fazê-la entrar e alojá-la na casa das irmãs, sem ajuda de homens. E em seguida nos ocupamos dela sem cessar, a despeito da repugnância ou do pudor da interferência do demô­ nio, por causa dos nossos pecados, e apesar dos nomes vergo­ nhosos e derrisórios com que ela nos queria chamar e do seu detestável comportamento. E percebi que havia três instantes de sofrimento naquela mulher: o primeiro, quando era conduzida de seu quarto ao lugar dos “santos” [o santuário], o segundo, quando as pessoas comuns davam esmolas para ela, e o terceiro, quando, pelas preces do Espírito Santo, ela era obrigada a se afastar [o mau espírito se afastava] pela graça de Deus.” Todo o convento está em prece, numa profusão de jejuns, orações e esmolas, desde o dia da Purificação de Nossa Senhora (2 de fevereiro) até o sábado de Páscoa. “Muitos se tornaram

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mais corajosos na fé, muitos foram levados a um maior fervor e a confessar seus pecados. [...] No sábado santo, no momento em que era consagrada a água batismal, sob o sopro do padre que a derramara na pia com palavras que o Espírito Santo ensinou aos doutores da Igreja e à razão do homem [...], a mulher, que lá estava presente, tomada de um grande terror, pôs-se a tremer tanto que seus pés batiam no chão e a emitir vários sopros do horrível espírito que a oprimia. Imediatamente, em verdadeira visão, vi e ouvi a força do Altíssimo, que revestiu as pias batismais e as reveste ainda, dizer à corja diabólica que obsedava a mulher: ‘Vá-te, Satanás, do tabernáculo do corpo desta mulher, e dá lugar ao Espírito Santo.’ Então o espírito imundo saiu do corpo da mulher em horríveis vômitos e desse momento em diante ela foi libertada e ficou sã dos sentidos, do espírito e do corpo, como vive ainda no século presente. Assim que as pessoas souberam disso, todas, em cânticos de louvor, e muitas, em toda a sorte de preces, diziam: ‘Glória a ti, Senhor’, recor­ dando o exemplo de Jó, sobre o qual Satanás não conseguiu um poder completo. [...] Dessa mulher que foi libertada do espírito maligno Deus não permitiu que a alma fosse atingida em sua boa-fé e que o inimigo se confundisse nela, porque ele não pôde desviá-la da justiça de Deus.” Assim se expressa o texto da Vida de Hildegard; e acrescenta que esta contava a história “doce e suavemente, com toda a humildade, não atribuindo nada a si mesma”. Ao lado dessa história de exorcismo, que pode parecer a alguns pouco verossímil, a correspondência de Hildegard apre­ senta numerosos casos em que a visionária recorre a remédios de simples bom senso e alerta seus correspondentes contra todo exagero, mortificação excessiva etc. E o caso de Hazzecha, cujos distúrbios revelam uma simples instabilidade de caráter, ainda que tenha implorado insistentemente que Hildegard lhe trouxesse a cura. Hazzecha era, ela própria, abadessa de um mosteiro importante onde Hildegard parou, como veremos, a caminho de Colônia, em sua segunda viagem, por volta de 1160. É depois dessa passagem pelo mosteiro que Hazzecha lhe escreve. Visivelmente angustiada, ela comunica à visionária a

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inquietação em que se encontra e quer a todo custo que esta lhe dê uma luz que lhe falta. “Desde que conseguiu”, diz ela, “com o socorro de Deus, ser ajudada pela vossa presença tão desejada e por vossa afabilidade, sinto-me refeita do medo do meu espírito e da primeira provação sofrida. E porque vossa palavra procede, estou certa, não de um espírito humano, mas dessa luz verdadei­ ra que vos iluminou mais do que aos outros homens, retardei até agora a realização do que havia proposto. Quero saber, senhora e irmã caríssima, que tanto desejei ver uma primeira vez —e não o desejo menos agora e, porque não o posso fazer pessoalmente, ligo-me sempre a vós pelo coração —e posto que, não o duvido, a caridade está em vós e vós na caridade, suplico-vos a caridade de não tardar a me escrever o que a Luz viva vos terá manifestado em espírito a meu respeito e que seja digno de ser corrigido ou adotado.” A resposta de Hildegard é curta e sem rodeios: “Aquele que tudo vê diz: ‘Tu tens olhos para ver e olhar a todo o redor. Onde vires sujeira, lava-a e faz verdejar o que é árido, mas também torna saborosos os aromas que possuis. Porque, se não tivesses olhos, poderias ser excusada, mas tu tens dois, e por que não olhas a teu redor graças a eles? Mas tens o discurso fácil em tua racionalidade. De fato, muitas vezes julgas os outros nas coisas pelas quais não gostarias de ser julgada; contudo, às vezes dizes sabiamente o que exprimes. Muito cuidado, pois, ao carregar teu fardo, e junta toda boa obra na bolsa do teu coração, para que não te falte, porque na vida solitária que procuras, segundo teus dizeres, não podereis encontrar o repouso em meio a condições novas, difíceis, desconhecidas por ti, muito piores, então, do que as anteriores e até mais pesadas, como o lançamento de uma pedra. Imita, pois, a rola na castidade, mas procura diligente­ mente uma vinha seleta para que possas ver Deus com uma face honesta e pura.’” Em outras palavras: Hazzecha está tentada a abandonar o mosteiro para levar uma vida solitária, e Hildegard a aconselha a zelar antes por seu estado atual do que a se expor a novas dificuldades que lhe surgiriam no isolamento, podendo levar a

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uma situação ainda pior do que essa em que se encontra. Sem dúvida, Hazzecha demonstra certa instabilidade, ao menos interior, contra a qual Hildegard a previne. Há uma outra carta (não publicada pela Patrologia, mas reproduzida por Peter Dronke) que parece proveniente da mesma Hazzecha, que se propõe tanto levar uma vida solitária como fazer uma peregrina­ ção a Roma. Hildegard novamente a adverte contra essa insta­ bilidade, que só lhe pode ser nefasta. E a exorta a rogar a Deus a Santa discrição: “O filha de Deus, vós, que solicitastes a esta minúscula mulher fósseis mãe no amor de Deus, aprendei a ter discrição, que no Céu e na Terra é a mãe de todas as coisas, pois graças a ela a alma é regulada e o corpo nutrido em uma santa austeridade.” Em outras correspondências, Hildegard insiste várias vezes nessa discrição, à qual é preciso recorrer em todas as coisas, principalmente para evitar os excessos de penitência e de mortificação, que na realidade são erros, “erros diabólicos”. E sabe encontrar sonoridades imagéticas para convencer e tran­ qüilizar seus correspondentes: “Oh! imita a pomba em sua piedade” —escreve ela à abadessa de Santa Maria de Ratisbonne — “quando teu espírito procura com inquietude compreender muitas coisas que não podes alcançar; então fica em repouso e aprende a moderação, porque a pomba também é estável e moderada. Quando te atormentar uma cólera veemente, olha a pura fonte da paciência e logo a cólera se apaziguará e a tempestade cessará e também a onda de ardor impetuosa, porque a pomba é paciência. [...] Vive segundo o exemplo da pomba e viverás para a eternidade.” A uma outra que ela suspeita de praticar excessivas privações recomenda: “Cuidado com o que tiras de tua terra na solidão, para que não a destruas de tal sorte que a viridez [vigor, verdor] das ervas e dos aromas das virtudes venham a gemer, fatigados que estão por força do arado. Vejo com freqüência que, quando se aflige o corpo com um excesso de abstinência, o desgosto surge nele, e pelo desgosto os vícios se multiplicam muito mais do que se tivessem sido contidos com justiça.” Conselhos semelhantes de moderação encontram-se freqüentemente em suas cartas.

O IMPERADOR E A MONJA

Quando estudamos a correspondência de Hildegard, tal como nos é transmitida pela edição da Patrologia, deparamos com uma classificação hierárquica das cartas recebidas e enviadas; primeiro os papas e os bispos; em seguida —o que é surpreen­ dente tratando-se de uma monja — as autoridades políticas, a começar pelos imperadores da Alemanha. Vêm a seguir os altos personagens da vida secular, como o conde de Flandres, depois os abades de mosteiros, os prebostes, os padres, os simples monges etc. e ainda certo número de correspondentes sem títulos, gente simples que solicita seus conselhos ou lhe pede orações. A primeira das cartas que provêm de uma autoridade temporal é a que lhe dirige o imperador Conrado III, de Hohenstaufen. Totalmente absorvido por seu alto cargo e pelas diversas preocupações e solicitações que o cumulavam, fez questão de escrever a Hildegard, porque soube da santidade da sua vida e de que ela era visitada pelo Espírito Santo. Ele assegura sua benevolência por ela e por suas irmãs; em toda a medida do possível ele a socorrerá em qualquer circunstância; e recomenda instantemente às suas preces, a si mesmo e a seu fi­ lho, o qual espera, diz ele, que lhe sobreviva. Na verdade esse filho, Henri, não lhe sobreviverá e é a seu sobrinho, Frederico, que Conrado III vai deixar o império quando morrer, em 15 de fevereiro de 1152. Sua sucessão, aliás, ainda não está regula­ mentada nessa data, e ele pode apenas recomendar aos príncipes eleitores esse sobrinho, que se destina a um reinado glorioso e movimentado.

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É por uma carta de Frederico, já então o novo imperador, que logo saberemos que Hildegard foi convidada a vê-lo em seu palácio de Ingelheim. “Fazemos saber a tua santidade”, escreve ele, “que o que nos predisseste, quando, estando ainda em Ingelheim, pedimos que viesses a nossa presença, nós o temos agora em nossas mãos.” Semelhante entrevista deveria ter merecido passar à história. O imperador Frederico não é outro senão aquele que conhecemos pelo nome de Frederico Barba Ruiva. Eleito em 4 de março de 1152, em Frankfurt, foi coroado em 9 do mesmo mês, em Aix-la-Chapelle, e é provável que essa visita de Hildegard tenha tido lugar ainda no começo de sua ascensão à frente do Império, talvez nesse mesmo ano de 1152. A edição da Patrologia conservou apenas uma dessas trocas de cartas, a do imperador, que transcreveremos parcialmente, e a resposta de Hildegard; mas os redatores de sua Vida não tocam nesse episódio, que deveria forçosamente chamar sua atenção. Difícil imaginar um contraste mais absoluto do que este entre uma paupercula femina (uma minúscula mulher), uma paupercula forma (uma minúscula figura) como ela mesma se descreve, uma pequena pluma carregada ao bel-prazer do vento — imagem favorita com que se autodesigna —, convocada pelo magnífico imperador destinado a entrar na lenda, assim como na história. Ele tem cerca de trinta anos, robusto e solidamente talhado, com os cabelos e a barba de um louro ardente que lhe valeu o apelido de Barba Ruiva. Corajoso, ávido de glória tanto quanto de justiça e já famoso pelas proezas que acaba de realizar no Oriente. De fato, uns seis anos antes, ele participou da expedição destinada a socorrer Jerusalém, a pedido da rainha Melissandra —expedição que não obteve o resultado pretendi­ do, mas durante a qual o desempenho de Frederico valeu sua indicação para outras cruzadas. A entrevista entre o jovem e magnífico imperador e a pequena religiosa, abatida por enfermidades precoces que não cessam de lhe ameaçar a vida, teve por cenário o soberbo palácio de Ingelheim, perto de Mayence, um dos raros palácios imperi­ ais em que os modernos trabalhos de pesquisa permitiram descobrir alguns vestígios da época. Um poeta do século IX,

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Ermold, o Negro, o descrevera outrora, num poema dedicado ao filho de Carlos Magno, Luis, o Pio. Falava de “um palácio imenso, apoiado em cem colunas, com uma profusão de mean­ dros e compartimentos de toda sorte, portas, recantos, alcovas inumeráveis”. Além do mais, era decorado por pinturas que evocavam, na capela, “os atos ilustres de Deus”, ou seja, as cenas do Antigo e do Novo Testamento; e na sala do trono, “os altos feitos dos homens” —as proezas dos soberanos da Anti­ guidade e as do próprio Carlos Magno; tratava-se com certeza de mosaicos vitrificados sobre um fundo em ouro, como os que se conservaram até hoje em algumas igrejas italianas, em Veneza, ou na França, na igreja de Germigny-des-Prés. Ambiente suntuoso, portanto, o que serviu de cenário ao encontro do imperador da barba ruiva com a pequena religiosa, frágil e inspirada. Ela deve ter prevenido seu imperial hospedeiro sobre alguns perigos que o ameaçavam e contra os quais pediu que ele se mantivesse em guarda, já que em sua carta ele se apressa a informá-la sobre o assunto: “portanto, não deixamos de trabalhar com todo o esforço para a honra do reino”. Em seguida ele assegura que, em relação aos assuntos temporais por ela ventilados, ele se propõe a julgá-los com a mais total eqüidade, “sem se deixar conduzir nem pela amizade nem pelo ódio a quem quer que seja, mas unicamente pelo respeito à justiça”. Em sua resposta, Hildegard não se mostra de maneira alguma intimidada com a estatura de seu correspondente. “A pequena pluma que o vento carrega” transmite as palavras que ouviu, diz ela, do Juiz supremo. De início ela observa ser muitíssimo surpreendente que “tu, que és rei, consideres minha pessoa como necessária”. E continua, num procedimento que é habitual tanto em sua correspondência como em suas obras, desenvolvendo uma imagem: “Escuta: um rei ficava em cima de um alto monte olhando os vales para ver o que cada um fazia [...] vigiando para que verdejasse o que era árido, e acordasse o que dormia. [...] Como esse homem deixasse de abrir o olho, eis que surge uma nuvem negra e encobre seus vales. Imediatamente os corvos e outros pássaros se precipitaram. [...] Agora, ó rei, vigia com cuidado, porque todas as tuas regiões estão obscurecidas

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pela turba falaciosa dos que destroem a justiça no negrume de suas faltas. [...] O tu, que és rei, rege com teu cetro de misericórdia os preguiçosos, os erradios, os que têm costumes cruéis. Tens, com efeito, um nome glorioso, já que és rei em Israel; gloriosíssimo é o teu nome. Vê, pois, que o Rei supremo te observa, para não seres acusado de não exercer retamente o teu ofício e para que não tenhas do que enrubescer. Que Deus te livre disso!” Ela o exorta a zelar pelos costumes dos prelados que chafurdam na negligência e na abjeção. “Evita isso, ó rei, sê o soldado, o cavaleiro armado que combate corajosamente o demônio, para que não te disperses e teu reino terrestre não sofra com isso. [...] Despreza a avareza, escolhe abstinência, que esta o rei dos reis ama realmente. Porque é muito necessário que sejas prudente em todas as circunstâncias. Vejo-te, com efeito, em visão mística, vivendo em meio a toda a sorte de atribulações e contrariedades aos olhos de teus contemporâneos; contudo, terás, pelo tempo do teu reinado, tudo o que for conveniente aos negócios terrestres. Cuidado, pois, para que o Soberano Rei não te derrube por causa da cegueira dos teus olhos, que não vêem direito que tens nas mãos o cetro do teu reino. Sê de tal modo, pois, que a graça de Deus não te falte.” Uma carta que faz prever a longa duração do reinado de Barba Ruiva e os conflitos a que estará exposto, frente aos quais lhe serão exigidas retidão e prudência. O tom da correspondência teria fatalmente de mudar depois, com a retomada da luta entre a Igreja e o império, de momentos violentos como quando Frederico depõe o arcebispo de Mayence, fiel a Roma, ou quando as tropas invadem a cidade de Milão. Foram nada menos que quatro antipapas nomeados pelo imperador durante o pontificado de Alexandre III. Hildegard não verá o fim inopinado de Barba Ruiva, que se afogou na Armênia nas águas do rio Selef, no início de uma cruzada empreendida na tentativa de libertar Jerusalém, que fora retomada por Saladino. Esse fim abrupto do grande imperador ocorreu em 1190, quando Hildegard já estava morta havia quinze anos.

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Outro personagem poderoso também consultou Hildegard a propósito da cruzada. Trata-se de Filipe da Alsácia, conde de Flandres. Sua carta infelizmente só pode ser datada pelo próprio título de Filipe de Flandres. Ele sucedeu a seu pai, Thierry, somente em 1168, mas desde 1157 participava do governo do condado, como era costume. A carta foi escrita, forçosamente, antes de setembro de 1177, data em que Filipe de fato viaja para a Terra Santa e desembarca em Acre com um brilhante séquito de cavalheiros. Sabe-se que ele hesitou muito antes de empreen­ der essa viagem —evidente que é nesse período de hesitação que ele escreve a Hildegard. E significativo constatar como esse príncipe poderoso se dirige à abadessa das margens do Reno: “Filipe, conde de Flandres e de Vermandois, à senhorita Hildegard, serva de Cristo, saudação e grande estima. “Vossa santidade terá sabido que estou pronto a fazer tudo quanto souber ser suscetível de vos agradar, porque vossa santa conversação e vossa vida, das mais retas, têm ecoado amiúde em meus ouvidos, em suave renomada. Ainda que eu seja pecador e indigno, amo de todo o coração os servidores e amigos em Cristo e de bom grado os honro com toda a veneração, pensando no que diz a escritura: ‘A instante prece do justo tem um grande valor.’ E por isso que envio à graça de vossa piedade o portador destas cartas, um servidor muito fiel que vos vai falar por mim, miserável pecador; entretanto, eu teria preferido ir a vós e falar convosco como desejara, mas minhas preocupações são tão numerosas e surgem a cada dia, que eu não pude, portanto, interrompê-las. De fato é chegado para mim o momento em que deverei tomar o rumo de Jerusalém; é por isso que preciso de um grande trabalho de preparação a propósito do qual dignai-vos a dar-me vossos conselhos por carta. Creio com efeito que a fama de meu nome tenha chegado com freqüência a vós, assim como a dos meus atos, e por muitos dentre eles preciso da misericórdia de Deus. É por isso que vos rogo e vos suplico, em máxima instância de prece, que aceiteis interceder junto ao Senhor pelo muito infeliz e muito indigno que sou. Peço-vos, pois, que, segundo o que vos for concedido pela misericórdia divina, interrogueis a Deus sobre o que devo fazer e, pelo portador das

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presentes cartas, acedeis em dar-me vosso conselho; o que devo fazer e como, para que o nome da cristandade seja exaltado em minha época, e a dura ferocidade dos sarracenos seja rechaçada; e se me pode ser útil permanecer naquela terra, ou dela regressar. Sobre isso talvez sabereis, no que me concerne, e conhece, e conhecereis pela divina revelação, ou podereis vir a conhecê-lo. “Bem-vinda em Cristo, amada irmã, e sabei que muito desejo ouvir vosso conselho e que deposito a máxima confiança em vossas preces.” A resposta de Hildegard assume um tom solene: “O filho de Deus —porque Ele próprio te modelou no primeiro homem —, escuta as palavras que vi e ouvi em minha alma e em meu espírito, o corpo em vigília, quando, para responder a tua interrogação, olhei para a verdadeira luz.” Em poucas palavras ela recorda o justo julgamento pelo qual Adão foi expulso do Paraíso, e de que maneira aqueles que esqueceram Deus foram tragados pelo dilúvio, e como o Cordeiro dulcíssimo, Filho de Deus, pendurado em cruz, salva o homem apagando todos os seus crimes e pecados. Considerações gerais apropriadas a fazer refletir o conde Filipe, que tinha reputação de homem exaltado e cruel em suas vinganças. A seguir, ela passa aos conselhos mais diretos: “Agora escuta, ó filho de Deus, para que possas olhar a Deus com o olho puro da justiça, como a águia olha o sol, a fim de que teus julgamentos sejam justos e desprovidos da tua vontade própria, por medo do que te seja dito pelo supremo Justo, que deu seu preceito ao homem que a ele recorre pela penitência, em sua misericórdia, por medo de que Ele te vá dizer: ‘Por que mataste teu próximo sem que Minha justiça interviesse?’” Frase bastante contundente, quando se sabe que Filipe fizera morrer a chicotadas um homem chamado Gautier de Fontaines, que encontrara conversando com sua esposa. Hildegard prossegue e diz mais adiante: “Toma, pois, todas as tuas negligências e tuas faltas e teus injustos julgamentos, refugia-te com a marca da cruz em direção ao Deus vivo, que é o Caminho e a Verdade, e que diz: 4Não quero a morte do pecador, mas que se converta e viva.’ E, se vier o momento em que os infiéis se consagrem a destruir a fonte de fé, então resiste

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tanto quanto possas, com a graça de Deus. De minha parte, vejo em minha alma que a inquietude que tens nas angústias de tua alma assemelha-se à aurora que se eleva ao amanhecer. Que o Espírito Santo, então, pela pura e verdadeira penitência, em ti opere e faça um sol ardente para que tu O descubras e sirvas somente a Ele e vivas na Eternidade em completa beatitude.” A continuação da história mostrará que as reservas de Hildegard eram justificadas. De fato, o conde Filipe ia decepci­ onar enormemente os que esperavam por ele na Terra Santa. Em 1177, com certeza não se sabia que estava tão próximo do fim o reino de Jerusalém —cairia dez anos depois nas mãos de Saladino —, mas já se percebia claramente a sua precariedade. O rei de Jerusalém era, então, o jovem Balduíno IV, adolescente ainda, mas com a lepra já manifestando progressos que lhe deixavam pouca esperança de vida e muito menos de descen­ dência. Dois anos antes, pensando em assegurar a sucessão dinástica, ele havia casado sua irmã Sibila, a quem se destinava o reino, com o príncipe piemontês, Guilherme Espada-Longa, filho do marquês de Montferrat. Ora, Guilherme, levado por uma doença epidêmica, morreu em junho de 1177. A chegada do conde de Flandres à frente de uma brilhante armada representa­ va, portanto, uma grande esperança para os barões da Terra Santa. Imediatamente o rei Balduíno lhe oferece a baylie, a guarda do reino, mas —veja-se a pergunta de Filipe a Hildegard — a resolução do conde estava longe de ter sido tomada. Ele a recusou. E também se recusou a participar de uma expedição programada contra o Egito, em conjunto com as forças bizantinas. Expedição que poderia ter bloqueado a estrela ascendente de Saladino, em quem já se pressentia um inimigo prestes a triunfar. Mas Filipe de Flandres não quis se meter. Finalmente, a frota bizantina, reunida na enseada de Acre, cansada das constantes delongas que lhe eram impostas, fez-se ao mar sem ter combatido. Terminada a sua peregrinação, Filipe de Flandres consegue escapar de alguns atentados na Síria, no vale do Orontes, antes de voltar ao Ocidente deixando para trás uma situação das mais inquietantes. Só a tenacidade do jovem rei leproso, que, en­

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frentando o ataque das forças de Saladino dez vezes superiores em número, conquistou contra toda esperança a famosa vitória de Montgisard, asseguraria por mais dez anos, ou quase, a sobrevivência do reino. Quanto a Filipe, tomado de tardios remorsos, retorna à Terra Santa quatorze anos depois e morre diante de são João de Acre, em l2 de junho de 1177. O sol que Hildegard vislumbrara nele demorou a nascer. É incrível como se modifica completamente o tom, quando ela se dirige a são Bernardo — porque Bernard de Clairvaux em pessoa escreveu à abadessa de Bingen e ainda se desculpa pela carta demasiado curta. “Apressei-me a escrever à doçura de tua piedosa caridade, se bem que o faça mais brevemente do que gostaria, que a isso me obrigam múltiplos afazeres.” E prosse­ gue: “Agradecemos a graça de Deus que está em ti e quanto a consideras uma graça e te aconselhamos a te empenhares em corresponder a ela com toda a força da tua humildade e da tua devoção.” E mais adiante ele acrescenta: “E por isso que sempre rogamos e pedimos, de modo suplicante, que diante de Deus faças menção de nós e de todos os que estão junto a nós em companhia espiritual. [...] Rogamos assiduamente por ti, para que sejas confortada no bem, instruída nas coisas interiores, e para que te dirijas àquelas que perduram.” Aessa carta Hildegard responde com uma belíssima missiva, na qual se permite um pouco do que poderíamos chamar de confidências de sua parte. “[...] Eu, infeliz de mim e mais do que infeliz, em meu nome de mulher, desde minha infância vi grandes maravilhas que minha língua não pode proferir sem que o Espírito Santo lhe ensine o modo de dizê-las. O Pai seguríssimo e dulcíssimo, escuta-me em tua bondade, a mim, tua indigna serva, que desde minha infância não vivo em segurança. Em tua piedade e tua sabedoria, compreende em tua alma segundo o que receberes do Espírito Santo, porque as coisas que te foram ditas de mim são desta natureza: sei de fato a inteligência interior do texto que nos expõem os salmos, o Evangelho e outros volumes que me são mostrados nesta visão que toca meu coração e queima minha alma qual chama, instruindo-me no que há de

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profundo nessas obras. Contudo, isto não me ensina as letras da língua alemã, que não conheço. Somente sei ler na simplicidade, não na precisão do texto, já que sou ignorante, não tendo recebido nenhuma instrução de forma exterior, e que é no interior, em minha alma, que sou instruída. Assim te falo porque não duvido de ti e me sinto consolada por tua sabedoria e tua piedade do muito que há de erros entre os homens, pelo que ouço deles.” E conta que primeiro abriu seus “segredos”, como ela os chama, a um monge que a encorajou e tranqüilizou. E prossegue: “Quero, Pai, que pelo amor de Deus tenhas memória de mim em tuas preces. Há dois anos te vi nesta visão como um homem que olha o sol, e isto sem medo, mas com muita audácia, e chorei pelo que sou de tímida e sem audácia. Bom e dulcíssimo Pai, coloca-me em tua alma, roga por mim, que tenho grandes sofrimentos nesta visão, a fim de que eu diga o que vejo e ouço.” A seguir, ela lembra as enfermidades que a debilitam freqüentemente e se dirige de novo a são Bernardo: “Quanto a ti, és a águia que olha o sol.” Pede-lhe que considere suas palavras e termina: “Peço-lhe que as tenha em teu coração de modo que não cesses [...] de olhar a Deus por mim, porque Ele mesmo quer estar em tua alma, e sê forte nos combates em Deus. Amém.” Depois de vermos Hildegard ser convidada pelo imperador e receber uma carta de são Bernardo, que foi a maior autoridade espiritual de seu tempo, não é de admirar que ela se corresponda com os papas da época, os que sucederam a Eugênio III, do qual recebera tão extraordinária confirmação de suas visões e de seus escritos. O sucessor, Anastácio IV, dirige-se a ela em termos da maior admiração: “Nós nos regozijamos no Senhor e nos felicitamos de que o nome do Cristo a cada dia seja glorificado em ti.” E lembra que sabe da grande estima em que a tinha seu predecessor no trono de São Pedro: “Seguindo seu exemplo, nós nos empenhamos em escrever-te e desejamos receber de ti uma resposta, porque procuramos isso que Deus realizou em ti, ainda que sigamos cambaleando em direção aos bens a que aspiramos, tanto por lassitude do corpo como do espírito [...].”

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Certamente não se contava com a resposta da abadessa de Bingen: “Ó personagem, eminente armadura e suma autoridade que és da muito ornada cidade instituída em Esposa de Cristo, escuta aquela que ainda não viveu, mas não se deixa abater pelo que lhe falta. O homem, que face a tua ciência negligenciaste reprimir a jactância do orgulho nos homens confiados à tua proteção, por que não fazes reviver os náufragos que não podem emergir de suas dificuldades se não receberem ajuda? E por que não cortas pela raiz o mal que sufoca as ervas boas e úteis, as que têm doce sabor e odor suave? Negligencias a filha do rei, ou seja, a justiça, que é amada das potências superiores, e que te foi confiada. Permites que essa filha de rei caia por terra, que o diadema e o ornamento de sua túnica sejam rasgados pela grosseria dos costumes estrangeiros desses homens que ladram à maneira de cães e à maneira de galos que, às vezes, tentam cantar à noite emitindo o inepto grito de suas vozes. São simuladores que falam de paz de maneira falsa e entre eles rangem os dentes no íntimo, como o cão que saúda os compa­ nheiros que conhece, sacudindo o rabo, mas morde com todos os dentes o honesto soldado que é útil à casa do rei. [...]” A carta prossegue nesse tom próprio a desconcertar seu destinatário. Ela ousa até ameaçar terríveis previsões sobre os dias futuros: “Escuta agora Aquele que vive e não terá fim: ‘O mundo no presente está no relaxamento, em seguida estará na tristeza e depois no terror, a tal ponto que os homens não temerão ser mortos. Nisto tudo, ora existe o momento da impudência, ora o momento da contrição, e ora o momento de trovões e raios de iniqüidades diversas. [...]” E Hildegard termina com veementes exortações: “Tu, pois, ó homem, já que parece teres sido constituído pastor, ergue-te e corre mais rápido para a justiça, de modo que diante do Médico supremo não sejas acusado de não ter purificado da sujeira o teu rebanho e de não o ter ungido em óleo. [...] Tu, pois, ó homem, mantém-te no caminho reto e te salvarás de maneira que Ele te recolha na via da bênção e da eleição e vivas para a eternidade.” Anastácio IV teve um pontificado muito curto, de julho de 1153 a dezembro de 1154. E pela leitura da carta de Hildegard

1 — Hildegard recebendo a luz divina. Escreve sobre as tabuinhas de cera; atrás dela, em pé, uma jovem religiosa (Richardis); em frente, o monge que foi seu confessor (Volmar).

2 — Primeira visão do Livro das obras divinas: uma “maravilhosa figura com aparência humana... A energia suprema... vida ignescente da essencialidade divina”. Unidade em uma tríplice energia.

3 — A tríplice figura abraça o universo inteiro; um círculo de fogo claro, um outro de “fogo negro”, um círculo de ar úmido, um outro de ar branco, uma segunda camada aérea — traçados com a precisão que caracteriza o texto. Uma figura humana erguida no centro recebe os sopros enviados dos quatro cantos, das cabeças de animais — leopardo, leão. lobo, urso, caranguejo, cervo, serpente, cordeiro —, enquanto os planetas irradiam “em direção às cabeças de animais e à figura do homem”.

4 — Terceira visão: 110 centro do inundo, o homem recebe os ventos “que movem com o sopro de sua energia o firmamento... e o animam de um movi­ mento circular... Os humores encontram-se no seio do homem agitados e transformados". Esta visão do homem no centro do mundo será retomada quatro séculos mais tarde por Leonardo da Vinci. Diz Hildegard: “Na forma do homem está a totalidade da obra que Deus consignou.”

5 — Nesta quarta visão, são evocadas as energias cósmicas: “o humor que escapa do ar tênue suscita na terra a viridez e provoca em toda a parte a germinação.” Mas o ar também pode liberar uma névoa pestilenta. As inte­ rações dos ventos, da água, do fogo equilibram-se mutuamente. Assim, vêse nas diversas partes da terra fecundidade ou secura, segundo as influên­ cias recebidas. Bem antes do século XII, sabia-se que a Terra era redonda.

II-

6 — Esta imagem representa a quinta visão de Hildegard: “a terra representa o homem... Ele é conduzido à salvação de sua alma pelos cinco sentidos que lhe permitem satisfazer a todas as suas necessidades.” As diversas zonas sim­ bolizam as aspirações do homem e suas dificuldades. No texto, as referências ao Apocalipse vêm lembrar o destino do homem com suas zonas de sombras e de luz.

7 — Sexta visão: representa a imagem de uma cidade rodeada por uma dupla muralha; é “a obra estável e firme de Lim a predestinação divina, ora cercada de esplendor, ora de trevas". As coortes angélicas, que aqui apare­ cem, também vão se manifestar nas visões seguintes.

8 — Nesta visão, a sétima, as figuras alegóricas evocam fases da história da salvação: as duas figuras erguidas no alto à esquerda representam a humani­ dade, a anterior e a posterior ao dilúvio; na nuvem, a multidão dos crentes. O conjunto será longamente detalhado no texto do Livro das obras divinas.

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parece que a cristandade não teve por que lamentar essa brevi­ dade. Adriano IV, que lhe sucedeu, foi o único papa de origem inglesa nos anais da Igreja. Hábil e enérgico, era amigo de Jean de Salisbury, o erudito famoso que foi bispo de Chartres. Como seu predecessor, ele também se dirige a Hildegard nos mais elogiosos termos: “Nós nos regozijamos, minha filha, e nos exultamos no Senhor de que o renome de tua virtude tenha se expandido tão longe e tão largamente, que sejas para muitos como um perfume de vida para a vida e que a multidão dos povos fiéis clame em louvores a ti.” E ele a estimula a perseverar: “Pensa, pois, minha filha, que a serpente que fez o homem perder o Paraíso deseja tomar aqueles que são importantes como Jó. [...] E, como sabes que muitos são os chamados e poucos os escolhidos, sê desse pequeno número dos eleitos, de modo a perseverares até o fim nesse colóquio; e instrui tuas irmãs confiadas a tua sabedoria nas obras de salvação para que, com elas, o Senhor ajudando, possas na alegria alcançar Aquele que o olho não viu, o ouvido não ouviu e não atingiu o coração do homem. Desejaríamos receber em tua resposta algumas pala­ vras de recomendação, porque dizem que estás imbuída do espírito dos milagres de Deus, com o que nos regozijamos muitíssimo e te damos a glória da divina graça.” O tom da resposta de Hildegard é bem diferente do que usou para responder a Anastácio IV. Dirige-se a alguém que tem duros combates a sustentar e o previne de que terá de se haver com homens de costumes de ursos e leopardos: “Mas o gládio do Senhor há de matá-los, de modo que se erga entre eles um bom chefe. No momento, recomendo que imponhas um freio aos que te são subordinados e não permitas que falem mal de ti. [...] Atenta, pois, com zelo a quanto exige o estado dos costumes do povo nestes tempos. O Pai dulcíssimo, lembra-te de que és homem na terra e não temas que Deus te abandone, pois verás a Sua luz.” Quanto ao papa Alexandre III, seu pontificado, que começa em 1159, também se anuncia difícil, com o trono de são Pedro sendo disputado por dois pretendentes — alguns querem até recorrerá arbitragem de Frederico Barba Ruiva! Vão se suceder

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quatro antipapas, e um deles canoniza Carlos Magno, numa corte sem rodeios ao imperador reinante, que só se reconciliará com o papa em 1177. Hildegard, por seu lado, atravessa um período difícil e escreve ao pontífice rogando sua ajuda. Alexandre III dirige-se ao preboste de Santo André de Colônia para resolver a divergência e garantir à abadessa a tranqüilidade desejada. Não é preciso dizer mais; todos os poderosos, tudo o que conta no mundo temporal e espiritual, estão presentes na correspon­ dência de Hildegard. Voltaremos ao número e à variedade de seus correspondentes quando tratarmos de suas prédicas. Para encerrar o capítulo, pode ser interessante mencionar as cartas trocadas com outra mística, também alemã, Elizabeth de Schõnau. Parece que ela tem o dom da profecia, mas acha-se à mercê das caçoadas de alguns clérigos, que deturpam suas palavras. “Admito que experimentei recentemente algumas nuvens de perturbação em minha alma”, escreve ela a Hildegard, “por causa de ineptos propósitos de pessoas que dizem muitas coisas a meu respeito que não são verdadeiras. Mas eu suportaria facilmente os propósitos da multidão, se também aqueles que passeiam em hábitos religiosos não confrangessem mais grave­ mente ainda meu espírito. Porque entre eles, movidos por não sei que zelo, há os que transformam em escárnio a graça de Deus que está em mim e não têm medo de julgar imprudentemente coisas que ignoram. Ouço dizer que alguns apresentam por aí cartas escritas segundo o espírito deles, sob o meu próprio nome. Eles me difamam dizendo que profetizei a respeito do dia do Julgamento, o que certamente eu nunca teria a pretensão de fazer, pois que esse evento desafia a ciência de todos os mortais.” E acrescenta que, para evitar qualquer arrogância e na medida do possível, ela mantém oculto tudo o que lhe é ensinado por revelação. Mas viu-se violentamente repreendida por um anjo pelo fato de esconder a palavra de Deus, que lhe fora ditada, “não para ser escondida, mas para ser manifestada em louvor e glória de Nosso Senhor e para a salvação das almas a seu redor.” Segue-se uma espécie de histórico dessa revelação, que se refere ao Julgamento iminente e que lhe foi feita em ocasiões

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muito precisas. No dia de santa Bárbara, durante o advento, ela a comunicou ao abade de um mosteiro, e ele próprio falou aos prelados da Igreja sobre o fato, e a diversas pessoas religiosas, “algumas das quais receberam apenas com respeito; outras, entretanto, agiram bem diferente e falaram sobre isso de maneira desagradável. Deu-se que muitos dos que ouviram falar dessa palavra fizeram penitência durante todo o tempo da Quaresma, em grande temor, e entregaram-se a esmolas e preces. [...] Na quarta-feira antes do dia da Páscoa, após grandes sofrimentos corporais, fui tomada de êxtase e o anjo do Senhor me apareceu e eu lhe disse: ‘Senhor, que é da Palavra que me dirigiste?’ Ele respondeu: ‘Não te aflijas, não te perturbes; se as coisas que te predisse não se deram no dia em que indiquei, é porque o Senhor foi apaziguado pelas satisfações que muitos lhe ofertaram.’ Depois disso, na sexta-feira, pela hora da terça, caí em grande sofrimento, ficando fora de mim, e de novo ele me aparece, dizendo: ‘O Senhor viu a aflição de Seu povo e dele afastou a cólera de sua indignação.’ Eu respondi: ‘Então, Senhor, hei de ser escarnecida por muitos daqueles a quem essa palavra foi divulgada?’ E ele diz: ‘Tudo o que nesta ocasião te acontecer suporta pacientemente e de boa vontade; atenta bem que o Criador do universo inteiro suportou as zombarias dos homens. Agora, Deus experimenta a tua paciência.”’ E, para terminar, Elizabeth de Schõnau acrescenta: “Vede, eu vos expus, Senho­ ra, toda a coisa ordenada, de modo que conhecêsseis minha inocência e a do abade que se ocupa de mim, e para que possais manifestá-la aos outros. Suplico-vos que me façais participar de vossas preces e, segundo o que o espírito do Senhor vos sugerir, que me envieis algumas consolações. A graça do Cristo esteja convosco.” A resposta de Hildegard está à altura da confiança demons­ trada por Elizabeth. Primeiro esclarece que nada vem dela, mas da “ luz serena”, que ela mesma não passa de um “miserável vaso de argila”. E, seguindo o método que lhe é peculiar, começa a recolocar todas as coisas na ordem da criação: “Ervas, plantas e árvores apareceram; o sol também, a lua e as estrelas vieram segundo sua ordem, e os peixes na água e as aves apareceram.

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[...] Mas, enquanto Deus preparava grande ciência para o homem, o homem se exaltou em seu espírito próprio e se afastou de Deus. [...] Ó desgraça, então todos os elementos se confun­ diram nas dificuldades da luz e das trevas, assim que o homem veio a transgredir os preceitos de Deus. [...] Isso até o momento em que o Verbo de Deus apareceu; então o sol da justiça surgiu e iluminou os homens com Suas boas obras de fé e de ações, assim como a aurora aparece primeiro e as outras horas do dia se sucedem até que chegue a noite; e eis, ó minha filha Elizabeth, como se acha mudado o mundo.” E os homens sofrem a sedução da antiga serpente: “Quando essa serpente vê uma gema de valor, logo ruge, dizendo: ‘O que é isso?’ E submete a toda a espécie de miséria o seu espírito, desejoso de voar acima das nuvens. [...] Escuta, portanto, agora: aqueles que desejam cum­ prir as obras de Deus devem sempre compreender que são vasos de argila. [...] Aquele que é do céu, enquanto os outros estão distantes, não conhecem as coisas celestes, mas cantam os segredos de Deus; assim como a trombeta, que não toca por si mesma, mas, quando alguém sopra dentro dela, produz som. Que vistam, pois, a couraça da fé os doces, os misericordiosos, os pobres e os que são infelizes, como o foi o Cordeiro que emite por si mesmo o som da trombeta.” E termina exortando Elizabeth à paciência e à alegria: “Ó minha filha, Deus faça de ti um espelho de vida. Quanto a mim, que vivo nos temores do medo, soando apenas às vezes como um sonzinho de trombeta sob a ação da Luz viva, que Deus me ajude a que eu possa viver a Seu serviço.” Uma e outra podiam compreender-se, conscientes que estavam de tudo receber de Deus na insignificância de suas pessoas.

O UNIVERSO E O HOMEM NAS VISÕES DE HILDEGARD

No manuscrito conservado em Lucca, na Biblioteca governativa, duas miniaturas de página inteira chamam a atenção: elas representam um homem de pé, braços estendidos, destacandose sobre o círculo que simboliza o mundo. Muito curiosamente, essa imagem tornou-se familiar; foi até um pouco vulgarizada, servindo à publicidade de uma empresa (Manpower) — pelo menos numa forma bem mais recente, devida a Leonardo da Vinci. Mais de três séculos antes do nascimento de Leonardo, esta visão do homem, braços abertos sobre o globo da Terra, está presente na obra da pequena abadessa das margens do Reno. Entretanto, quanto mais Leonardo da Vinci é estudado, pesquisado, enaltecido e divulgado, nos tempos clássicos e modernos, mais a obra de Hildegard —e a de sua época em geral — são esquecidas e pouco conhecidas. Acontece que esta imagem, que põe o homem no centro do universo, já era familiar desde o século XII e resume o que Hildegard nos revela em relação ao cosmo. O essencial da obra de Hildegard, sem dúvida o que ela tem de mais tocante, está aí nessa percepção do mundo por meio de suas visões. Sobre esse assunto ela se expressa, sobretudo em sua terceira obra, considerada a mais acabada, a mais completa, a mais extraordinária também, O livro das obras divinas. Hoje felizmente ao nosso alcance, graças ao magnífico trabalho de Bernard Gorceix. Mencionaremos apenas as principais dessas visões cósmicas, que nos revelam um universo acima de tudo aceitável, face às descobertas de nossa época —principalmente quando se pensa na concepção de um universo fechado e

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limitado, que prevaleceu desde o século XVI até o século XIX. Não vamos tentar, porém, esclarecer as possíveis implicações científicas dessas visões. Elas se expressam em um registro totalmente distinto do que é próprio da ciência pura; sua origi­ nalidade, sua força poética tornam-nas por si mesmas cativantes e, acreditamos, suficientes para suscitar interesse. O livro das obras divinas abre-se sobre uma imagem suntuosa que foi, recentemente, reproduzida diversas vezes: a de um personagem de pé, com três cabeças e quatro asas coloridas em tons de escarlate. Essa imagem é acompanhada de um comentário que é essencial citar para introduzir a obra e também para penetrar no conjunto das visões que ela desenvol­ ve. “Contemplei, então, nos segredos de Deus, no coração dos espaços aéreos do Sul, uma figura maravilhosa. Tinha a aparên­ cia humana. A beleza e a claridade de seu rosto eram tais que teria sido mais fácil olhar o sol do que olhar esse rosto. Um grande círculo de ouro cingia-lhe a cabeça. Nesse círculo, um segundo rosto, o de um velho, dominava o primeiro; seu queixo, sua barba roçavam o topo do crânio. De cada lado do pescoço da primeira figura, destacava-se uma asa. Essas asas se elevavam e se juntavam acima do círculo de ouro. A parte extrema da curvatura da asa direita trazia uma cabeça de águia; seus olhos de fogo refletiam qual espelho o esplendor angélico. A parte correspondente da asa esquerda trazia uma cabeça de homem que brilhava como cintilam as estrelas. Os dois rostos estavam voltados na direção do leste. De cada espádua da figura descia uma asa até os joelhos. Uma roupagem que tinha o fulgor do sol a revestia. Nas mãos carregava um cordeiro que brilhava como um dia transbordante de luz. Com o pé, calcava um monstro de aspecto aterrador, virulento e negro, e uma serpente. A serpente trincava com sua mandíbula a orelha direita do monstro. Seu corpo se enrolava em torno da cabeça do monstro, e sua cauda descia até os pés do monstro, pelo lado esquerdo da figura. “A figura falou nestes termos: ‘Sou eu a energia suprema, a energia ígnea. Eu é que inflamei cada centelha de vida. Nada de mortal emana de mim. Toda a realidade, eu a decido. Minhas asas superiores envolvem o círculo terrestre; da sabedoria sou a

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ordenatriz universal. Vida ignescente de essencialidade: pois, se Deus é inteligência, como poderia não obrar? Pelo homem Ele assegura o florescimento de suas obras todas. O homem, de fato, Ele o criou a Sua imagem e semelhança; nele inscreveu com firmeza e medida a totalidade das criaturas. Por toda a eternida­ de a criação dessa obra —a criação do homem —estava prevista em Seus desígnios. Uma vez terminada dita obra, ele retomou o trabalho do homem, a integralidade da criação, a fim de que o homem pudesse agir com ela, da mesma maneira que Deus modelara sua obra, o homem. Assim, pois, sou servidor e sustentáculo. Por mim, realmente, toda a vida se acende. Sem origem, sem término, sou esta vida que idêntica perdura, eterna. Esta vida é Deus. Ele é perpétuo movimento, perpétua operação, e sua unidade se apresenta numa tríplice energia. A eternidade é o Pai; o Verbo é o Filho; o sopro que reúne os dois é o Espírito Santo. Deus a representou no homem: o homem de fato tem um corpo, uma alma e uma inteligência. Minhas chamas dominam a beleza dos campos: a terra é a matéria graças à qual Deus modelou o homem. Se eu penetro as águas com minha luz, a alma penetra o corpo inteiro, como a água com seu fluxo penetra a terra inteira. Se digo que sou ardor no sol e na lua, é uma alusão à inteligência: pois as estrelas não são as inúmeras palavras da inteligência? E, se meu sopro, vida invisível, protetor universal, acorda o universo para a vida, trata-se de um símbolo: o ar e o vento, com efeito, mantêm tudo o que cresce, tudo o que amadurece, e nada escapa aos dados de sua natureza.” “Então ouvi a mesma voz. Do céu ela se dirigia a mim nestes termos: ‘Deus, o criador do universo, fez o homem a Sua imagem e semelhança. Nele figurou toda criatura, superior e inferior. E o animou de tal amor que lhe reservou o lugar do qual fora expulso o anjo decaído. E lhe atribui toda a glória, toda a honra que dito anjo havia perdido juntamente com sua salvação. Eis o que te mostra o rosto que contemplas. A magnífica figura, que percebes ao sul dos espaços aéreos e no segredo de Deus, e cuja aparência é humana, simboliza de fato esse amor do Pai dos céus. Ela é o amor: no seio da energia da deidade perene, no mistério de seus dons, ela é uma maravilha de insigne beleza. Se

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ela tem a aparência humana, é porque o Filho de Deus se revestiu de carne para arrancar o homem da perdição, no serviço do amor. Eis porque esse rosto é de tal beleza, de tal claridade. Eis porque te seria mais fácil contemplar o sol do que esse rosto. A profusão de amor com efeito irradia, cintila de uma luminescência tão sublime, tão fulgurante, que ultrapassa, de maneira inconce­ bível para nossos sentidos, todo ato de compreensão humana que, de hábito, assegura na alma o conhecimento de assuntos os mais diversos. Aqui o mostramos por um símbolo que permite reconhecer na fé o que os olhos exteriores não podem realmente contemplar.’” Hildegard abre suas visões pela Santíssima Trindade; a Eternidade, o Verbo, o Sopro são figuras que aí significam que Deus é Vida e é Amor. A energia suprema, a energia ígnea suscitou a criação do homem, o qual nasce corpo, alma, espírito. Tudo procede dessa vida que libera uma tríplice energia de amor, da qual o homem é reflexo. O conjunto é expresso com uma vivacidade em que a visionária ressalta que ela se encontra no limite daquilo que o homem pode contemplar. Ela mesma, no quadro que a representa sob a imagem de página inteira, tem os olhos extasiados, abertos para esta visão. Uma segunda evocação desenvolve a primeira. E ao mesmo tempo mais complexa e mais detalhada. Retomando a imagem trinária da “visão em forma de ovo”, que havia desenvolvido em sua primeira obra, Hildegard descreve o homem no centro do mundo. E com uma precisão rigorosa: o homem está situado no centro de uma série de círculos, um de fogo negro, o segundo de fogo claro, duas vezes mais largo do que o primeiro; no interior, um círculo de umidade, sob o qual aparece um outro, branco e denso; seis círculos formam assim uma espécie de roda gigante em torno do homem. “No centro do peito da figura que eu havia contemplado no seio dos espaços aéreos do Sul, eis que surgiu uma roda de maravilhosa aparência. Continha os signos que a reaproximavam dessa visão em forma de ovo, que eu tive há dezoito anos e que descrevi na terceira visão do meu livro Scivias. Sob a curva da concha e na parte superior, aparecia um círculo de fogo claro que

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dominava outro, de fogo negro. Esses dois círculos estavam unidos como se não formasse mais que um. Sob o negro, aparecia um que se assemelhava a puro éter, tão espesso quanto os dois primeiros juntos. Em seguida vinha um círculo que era como que de ar carregado de umidade, tão espesso quanto o de fogo luminoso. Sob este círculo de ar úmido, aparecia um de ar branco, denso, cuja consistência lembrava a de um tendão humano; tinha a mesma espessura do de fogo negro. Esses dois círculos estavam igualmente ligados entre si, formando apenas um. Enfim, sob esse ar branco e firme, apresentava-se uma segunda camada aérea, tênue, que parecia estender-se sobre todo o círculo, provocando nuvens, ora claras, ora baixas e sombrias. Esses seis círculos estavam ligados entre si, sem espaço intermediário. O círculo superior inundava com sua luz as outras esferas, enquanto o de ar aquoso impregnava todos os outros com sua umidade. “A figura do homem ocupava o centro dessa roda-gigante. O crânio no alto, e os pés tocando a esfera de ar denso, branco e luminoso. Os dedos das duas mãos, direita e esquerda, esten­ didos em forma de cruz, em direção à circunferência, assim como os braços.” Toda essa visão vai ser sacudida por sopros que emanam dos quatro grupos de cabeças de animais: o leopardo, o lobo, o leão, o urso; em seguida um caranguejo, um cervo, uma serpen­ te, um carneiro. “Acima do principal dessa figura, postavam-se frente a frente os sete planetas: três no círculo de fogo de luz, um na esfera de fogo negro, três no círculo de puro éter. Todos os planetas reluziam em direção às cabeças de animais e à figura do homem. [...] O círculo de fogo luminoso englobava dezesseis estrelas principais, quatro entre as cabeças do leopardo e do leão, quatro entre as do lobo e do leão, quatro entre as do lobo e do urso, quatro entre as do urso e do leopardo. Oito delas ocupavam uma posição intermediária e se assistiam umas às outras: estavam situadas entre as cabeças e enviavam reciproca­ mente seus raios, que atingiam a camada de ar fino. As outras oito, ao lado das outras cabeças de animais, atingiam com seus

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raios as nuvens que se estendiam em frente a elas. Na parte direita da imagem, duas faixas, distintas uma da outra, forma­ vam como que dois riachos que se derramavam sobre a roda e sobre a figura humana. O mesmo acontecia à esquerda: era como um borbulhar de água corrente.” Como vemos, o universo evocado não é absolutamente estático; ações e interações se opõem, e até se equilibram, assim como a energia ígnea é temperada pelo círculo úmido. Percorrem-na, sobretudo, os ventos; a cabeça de leão é símbolo do vento sul, o principal, acompanhado de dois ventos anexos às cabeças de serpente e de carneiro. Esses ventos “mantêm a energia do universo inteiro e do homem, que contêm a totalidade da criatura. Êles a protegem da destruição; quanto aos ventos anexos, eles sopram todo o tempo, ainda que docemente, qual zéfiros. As energias terrivelmente poderosas dos ventos princi­ pais não são solicitadas. Só o serão quando do Julgamento de Deus, no fim do mundo, para que se exerça o último castigo. [...] O vento sul traz a canícula e provoca grandes inundações, o vento norte traz o relâmpago e o trovão, o granizo e o frio”. Na continuação do texto, as paixões que agitam o homem são elas mesmas comparadas aos ventos. Logo que o vento começa a soprar, seja naturalmente, seja em virtude de uma inspiração divina, ele penetra o corpo do homem sem que nada o detenha, e a alma, ao recebê-lo, naturalmente o guia até o interior dos membros, quaisquer que sejam, correspondentes a sua natureza. De modo que seu sopro ora conforta, ora frustra o homem. Depois de enumerar tudo o que influencia o homem na natureza, o sol, a lua, os planetas, Hildegard faz uma observação ao próprio homem: “Quanto a ti, homem, que vês este espetácu­ lo, compreende que estes fenômenos concernem igualmente ao interior da alma.” Essas interações dos elementos naturais com as tendências do homem são reencontradas em outras obras de Hildegard, de cunho francamente medicinal. Aqui essas compa­ rações são levadas ao extremo: “Aos quatro ventos principais correspondem quatro energias no seio do homem: o pensamen­ to, a palavra, a intenção e a vida afetiva. Assim como cada vento pode enviar seu sopro para a direita ou para a esquerda, também

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a alma, escoltada por essas quatro energias, pode, pela ciência natural, atingir a parte que desejar escolhendo o bem ou o mal.” E põe-se a comparar o vento sul, que traz o calor, aos “pensa­ mentos bons e santos, que atiçam, graças ao fogo do Espírito Santo, o zelo de uma piedosa intenção”. Ao contrário, o vento oeste, que é frio, “designa os pensamentos desonestos e inúteis, que não esquentam o fogo do Espírito Santo, e as obras frias e desonestas”. O vento norte é o único “inútil a toda a criatura. Ele também tem duas asas, dirigidas uma para o oriente e a outra para o ocidente. Elas designam no homem a ciência do Bem e a ciência do Mal, graças às quais ele considera em sua alma, como em um espelho, o que é útil e o que é inútil. Assim como o firmamento, superior e inferior, rege a Terra”. Portanto, esse conjunto de visões coloca a tônica numa espécie de unidade cósmica que rege ou influencia, ao mesmo tempo, o homem e o mundo em que ele vive. Assim é que o aquilão, o vento norte, “um vento perigoso, é nocivo a tudo quanto toca; seu frio e sua rudeza atingem também o sopro cálido que desce docemente do sol para depositar o orvalho e que produz na terra toda a viridez dos frutos silvestres”. Abor­ damos aqui uma das noções favoritas de Hildegard, a da viridez, do latim viridis (verde, vigoroso); aplica-se igualmente à natu­ reza e ao homem, designando essa energia interna que faz crescer as plantas e por meio da qual o homem se desenvolve. “Todos esses fenômenos, sublinha Hildegard, estão em relação com a alma. A alma, com efeito, está presente no corpo, como um vento que não se vê e do qual não se ouve o sopro. Aérea, ela exala seu sopro à maneira do vento, seus suspiros, seus pensamentos; sua umidade, veículo de suas boas intenções para com Deus, é o que a assemelha ao orvalho. Como o clarão do sol, que ilumina o mundo inteiro e não esmorece nunca, a alma está toda presente na mínima forma do homem. Seus pensamentos permitem-lhe voar em todas as direções: as obras santas a elevam às estrelas pelo louvor a Deus; as obras más, de pecados, a precipitam nas trevas.” E prossegue detalhando a quarta visão: “A alma razoável profere múltiplas palavras que ressoam como a árvore que

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multiplica seus ramos, e, ass im como os ramos provêm da árvore, as energias do homem jorram da alma. Suas obras, quaisquer que sejam, realizadas em concerto com o homem, assemelham-se aos frutos de uma árvore. A alma, de fato, tem quatro asas: os sentidos, a ciência, a vontade e a inteligência.” Essas considera­ ções de Hildegard no tocante ao homem no seio da natureza levam-na a evocar o tempo da Criação. “Quando Deus conside­ rou o homem, gostou muito dele: pois não o tinha criado a Sua semelhança e segundo a textura de Sua imagem? Que o homem trate de proclamar, com o instrumento de sua voz de razão, a totalidade das maravilhas divinas! Porque o homem é a totalidade da obra divina, e Deus é conhecido do homem, já que Ele o acordou com o beijo do verdadeiro Amor e com a finalidade de celebrá-Lo e de louvá-Lo; mas ainda faltava ao homem uma parceria que lhe fosse semelhante; Deus lhe deu essa parceria no espelho que é a mulher. Esta contém todo o gênero humano a ser desenvolvido na energia da força divina: nessa energia Ele produziu o primeiro homem. Assim, homem e mulher se juntam para cumprir mutuamente a sua obra, porque o homem sem a mulher não será reconhecido como tal e vice-versa. A mulher é a obra do homem; o homem, o instrumento da consolação feminina; e os dois não podem viver separados. O homem designa a divindade; a mulher, a humanidade do Filho de Deus.” Todas essas visões reúnem assim, em uma unidade profun­ da, Deus e sua obra, quer se trate do homem ou do cosmo. E isso o que lhes dá um caráter grandioso. “A alma, quando está no corpo, sente Deus, porque ela vem de Deus, mas, enquanto cumpre sua tarefa nas criaturas, ela não vê a Deus. Logo que deixe a oficina do seu corpo e assim que estiver diante de Deus, ela conhecerá sua natureza e suas antigas dependências corpo­ rais. [...] Aguarda, pois, com avidez, esse último dia do mundo, porque perdeu as vestimentas que ama e que são o seu próprio corpo. Quando o recuperar, ela verá com os anjos a face gloriosa de Deus. [...] ‘O homem é a vestimenta que reveste meu Filho em sua real potência a fim de surgir como Deus de toda a criação e vida da vida.’ [...] Na forma do homem Deus consignou a totalidade de Sua obra” (Quarta visão).

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No seio desse universo, uma grande praça é destinada aos anjos. E a eles que pouco a pouco se consagra toda a sexta visão, que se apresenta de forma sensivelmente distinta das preceden­ tes. Desta vez a visionária percebe “como que uma grande cidade de forma quadrada, cercada por um muro ao mesmo tempo de esplendor e trevas, uma cidade adornada também de colinas e de figuras. No lado leste, erguia-se uma grande montanha de uma pedra branca e dura, que se assemelhava a um vulcão. No seu cume resplandecia um espelho cuja claridade e pureza pareciam até ultrapassar a do sol. Uma pomba surgiu nesse espelho, as asas abertas, pronta a alçar vôo. Dito espelho, que estava no lugar das maravilhas ocultas, projetava um clarão que se elevava e se expandia e no seio do qual se manifestavam numerosos mistérios e diversas figuras. Nesse esplendor, e em direção ao sul, aparecia uma nuvem, alva na parte superior, negra na parte inferior. Acima dessa nuvem, toda uma coorte angélica resplandecia. Uns flamejavam como fogo, outros eram inteiramente claridade, terceiros cintilavam como estrelas”. Essa cidade aparecerá daí em diante em cada uma de suas visões. Entre seus quatro muros, ela encerra numerosos edifícios, igrejas, palácios, colunas, casas comuns, numa ordem que varia de uma imagem a outra. Asexta visão, como dissemos, desenvol­ ve-se principalmente sobre o papel dos anjos. “A multiplicidade de anjos no céu, ao lado de Deus, é um arcano que a luz da divindade penetra totalmente. Arcano obscuro para a criatura que é o homem, a menos que os signos luminosos permitam o seu conhecimento. Essa multiplicidade tem uma razão de ser que está mais ligada a Deus do que ao homem. Só aparece aos homens raramente. Todavia, alguns anjos que estão a serviço dos homens revelam-se por signos quando apraz a Deus: é que Deus lhes confiou funções diversas e colocou-os a serviço das criaturas.” Entre esses anjos, há aquele que “queria existir apenas por si mesmo”, Satanás, e os que ele arrastou em sua queda; mas há sobretudo “a grande coorte angélica, uns qual fogo, outros inteiramente claridade, os terceiros como estrelas. Os anjos de fogo contêm as energias mais vivas, nada os pode abalar. Deus desejou de fato que eles contemplassem sem cessara Sua face. Os

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anjos que são inteiramente claridade, esses são abalados pelo serviço das obras humanas, que são também obras de Deus; essas obras de devoção são apresentadas aos anjos diante de Deus. Os anjos não deixam de considerá-las, e oferecem a Deus seu suave perfume, elegendo o que é útil e rejeitando o que é inútil. Quanto aos anjos que se parecem com as estrelas, estes sofrem com a natureza humana. Eles a apresentam a Deus como um livro, são companheiros dos homens, dirigem-lhes palavras de razão se­ gundo a vontade de Deus; como as boas ações lhes permitem celebrar a Deus, eles se desviam das más ações.” Em outra visão, a sétima, Hildegard volta a “essas duas ordens, a dos anjos e a dos homens”, e assinala que “Deus experimenta uma verdadeira alegria na celebração dos anjos, tanto como nas santas obras dos homens. Claro que o anjo é constante em face de Deus, enquanto o homem é instável: também a obra do homem, em comparação, é muitas vezes deficiente; a celebração angélica nunca o é”. Uma das visões, a quinta, retoma o Apocalipse, que é expressamente citado. A descrição da imagem principal, nessa quinta visão, é bastante diferente das outras. “Percebi o círculo da Terra dividido em cinco setores, um a leste, outro a oeste, o terceiro e o quarto ao sul e ao norte, o quinto no centro.” Cada um desses setores tem o aspecto de um arco estendido. Um deles, o setor leste, resplende de claridade, enquanto o oeste está parcialmente coberto de trevas; o setor sul, este se divide em três zonas, duas que mostram “os castigos e a do meio, nenhum castigo, mas monstros pavorosos que lhe conferem um aspecto aterrador. [...] Em direção a leste, percebi, acima da curvatura da terra e a certa altitude, uma bola vermelha contornada por um círculo cor de safira. Duas asas saíam pela direita e pela esquerda dessas bolas, elevavam-se dos dois lados, depois se encurvavam, ficavam frente a frente, prolongavam-se até a metade da circunferência terrestre, a qual circundavam. [...] Dessa bola partia, até o meio das asas, um caminho sobre o qual cintilava uma estrela luminosa”. Nas explicações que se se­ guem, compreendemos que se trata do globo terrestre, que se acha dividido em cinco zonas; o conjunto, aliás, é uma figura de

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homem. “A Terra representa o homem. [...] O homem é condu­ zido à salvação de sua alma pelos cinco sentidos, que lhe permitem satisfazer todas as suas necessidades.” Em seguida Hildegard se baseia em citações do Apocalipse para evocar os diversos tempos; o de Adão, o do Dilúvio, o da espera do Cristo; enfim, com o cavalo negro, surge o tempo que se seguiu à Paixão do Cristo. Depois vem o cavalo esverdeado, “aquele que designa o tempo durante o qual tudo o que é conforme à lei e à plenitude da justiça de Deus estará em uma espécie de lividez excessiva, sem valor algum. [...] Nesse tempo, haverá por toda parte, na Terra, combates de espada, os frutos da terra desaparecerão, os homens morrerão de morte súbita, os animais darão mordidas mortais nos homens. A antiga serpente regozija-se com todos esses castigos que se abatem sobre a alma e o corpo do homem; ela, que perdeu a glória dos céus, gostaria que o homem também não a atingisse. [...] A serpente se regozija e brada: "Vergonha àquele que fez o homem: o homem renuncia à sua própria forma, rejeita o amor natural, o amor das mulheres. ’ Assim, a sedução diabólica engendra os criminosos e os seduto­ res, o ódio e o crime do diabo, os bandidos e os ladrões; mas é no homossexualismo que o pecado é mais impuro, raiz de todos os vícios. Quando esses pecados se acumularem nas nações, a constituição da lei de Deus cindir-se-á, a Igreja, qual viúva, será ferida. Os príncipes, os nobres, os ricos serão exilados por seus súditos, fugirão de cidade em cidade, a nobreza será aniquilada, e os ricos ficarão pobres. E claro que a antiga serpente e os outros espíritos não perderam em nada a beleza de sua forma, mas não abandonaram a exaltação de sua razão.” Hildegard, aliás, termina essa série de evocações com outra referência ao Apocalipse. “Quando chega o tempo da aurora flamejante, quer dizer, o tempo da plena justiça, graças a meu Filho, a antiga serpente, apavorada, estupefata, diz que foi totalmente iludida por uma mulher, a Virgem. E seu furor se acende contra ela. [...] Mas com a ajuda da terra a mulher se liberta, porque meu Filho recebe dela o hábito de homem, meu Filho, que suportará uma enormidade de opróbrios e de sofri­ mentos a fim de confundir a serpente.”

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Para terminar, recordemos uma das visões mais extraordiná­ rias, a nona: “Vi [...], voltada para o leste, uma figura cujo rosto e pés brilhavam com tal fulgor que meus olhos ficaram ofusca­ dos. Sobre sua túnica de seda branca, vestia um manto verde, ricamente adornado de gemas as mais variadas. Em cada orelha, um pingente, um colar no peito, e nos braços pulseiras, jóias de fino ouro incrustadas de gemas. Mas no centro da zona do Setentrião percebi uma segunda figura. Estranha aparição, erguida. No lugar da cabeça, um esplendor que me ofuscava; no centro de seu ventre, via-se a cabeça de um homem de cabelos brancos, barbudo, seus pés parecendo garras de leão. Tinha seis asas: duas partiam dos ombros, subiam, voltavam-se para trás e juntavamse recobrindo, digamos assim, o esplendor a que nos referimos. Outras duas asas, também fixadas nas espáduas, caíam sôbre a nuca. As duas últimas desciam do quadril aos calcanhares. As asas erguiam-se às vezes como se quisessem abrir-se para alçar vôo. Todo o corpo da figura era recoberto não de penas, mas de escamas, como um peixe. Quanto às asas da nuca, traziam cinco espelhos. O espelho superior na asa direita levava uma inscrição: ‘Caminho e verdade.’ O segundo espelho do meio: ‘Eu sou a porta de todos os arcanos de Deus.’ O espelho na ponta da asa direita: ‘Eu sou a manifestação do bem total.’ O espelho superior da asa esquerda: ‘Eu sou o espelho que reflete as boas intenções dos eleitos.’ Na ponta da asa, acima do quinto espelho: ‘Dize-nos se és mesmo o povo de Israel.’ A figura voltava as costas ao aquilão.” Visão estranha, na qual se misturam figuras inesperadas, como a do personagem recoberto de escamas de peixe, e imagens muito habituais, como a do espelho. Sabe-se que essa é uma metáfora freqüente nos escritos da época. Os espelhos de vidro, invenção da alta Idade Média, tornaram-se de uso corren­ te no tempo de Hildegard. Eles substituem a luz e permitem refletir sabedoria, santidade, o rosto e os traços dos que admira­ mos, donde a grande utilização que tiveram nas letras. Um medievalista alemão contou mais de duzentas e cinqüenta obras intituladas Espelhos. Essa nona visão é explicada por sua própria descrição. A figura radiante “é a sabedoria da verdadeira beatitude [...] seu

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vestido de seda alva é o Filho de Deus encarnado na virginal beleza, que abraça o homem no calor e na suavidade de seu amor”. No que se refere ao manto verde que reveste a figura da sabedoria, a explicação merece ser mencionada: “Se o manto é verde, adornado de pedras preciosas, é que a sabedoria não rejeita essas criaturas exteriores [os animais] cujo espírito morre com a carne, criaturas terrestres, aéreas, que rastejam ou que nadam; ela faz com que cresçam, preserva-as, porque elas protegem o homem da escravidão assegurando seu alimento. Trazem também os ornamentos da sabedoria: é que elas não extrapolam sua natureza, ao contrário do homem, que transgride freqüentemente o reto caminho que lhe é reservado.” Em seguida vem a explicação relativa a outra figura, tam­ bém extraordinária: “No topo da figura, no lugar da cabeça, se a claridade é fulgurante em sua resplandecência, a ponto de ofuscar, é porque nenhum vivente, enquanto carrega o peso do corpo mortal, pode ver a excelência da divindade que tudo ilumina. [...] Porque Deus é essa claridade que não tem começo nem fim. A cabeça de homem que percebes no ventre da figura recorda a presença do antigo projeto de salvação do homem na perfeição da obra divina. Se a figura tem seis asas, é que obramos durante seis dias; é que durante seis dias o homem invoca e celebra a Deus colocando-se inteiro sob sua proteção. As duas asas, que se juntam para proteger a claridade de que falamos, designam o amor de Deus e o amor do próximo. [...] Quanto às asas inferiores, elas designam o presente e o futuro. Atualmente as gerações se sucedem. No futuro haverá o advento de uma vida constante e sem queda; lá pelo fim do mundo isso será anunciado por uma legião de angústias e de prodígios que anunciarão esse fim como um vôo de pássaros. [...] Se o corpo é coberto de escamas, como um peixe, e não de penas, como um pássaro, eis a razão: da mesma maneira que ignoramos como nascem os peixes e como se desenvolvem, como são levados pelas águas correntes, assim também o Filho de Deus nasceu numa santidade perfeita, em uma natureza estranha, distinta da dos outros homens. Em sua justiça perfeita, ele reconduziu o homem aos céus nas asas abertas de todas as suas obras boas.

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[...]” E eis, finalmente, a explicação dos espelhos: Eles lembram “os luminares de diferentes épocas. São em número de cinco: Abel, Noé, Abraão, Moisés, em seguida o Filho de Deus. Todos cinco iluminam tudo o que serve ao homem no caminho da verdade. Mas o Filho de Deus é que abriu, com a Paixão, o fecho das alegrias celestes”. A mesma precisão é encontrada em outros pontos da obra de Hildegard, notadamente em sua corres­ pondência. Os tempos são marcados por ela por meio dessas cinco personagens, evocando as etapas da humanidade até o advento do Cristo. Ela termina essa visão com uma frase que resume sua concepção de humanidade: “Assim, o homem é o fecho das maravilhas de Deus.” No final da nona visão do manuscrito de Lucca, mão desconhecida, talvez do século XIII, copiou estas palavras que ressoam como um intróito à obra de Hildegard: Homo est clausura mirabilium Dei.

AS SUTILEZAS NATURAIS

A obra de Hildegard de Bingen é imensa e diversificada. Aqui mencionamos apenas a parte mais importante: suas visões do universo, o homem no centro do universo criado, a expressão musical e poética de suas setenta sinfonias (e até mais), a riqueza de sua correspondência, que demonstra a confiança que lhe era atribuída tanto pelas autoridades religiosas como pelos podero­ sos seculares do seu tempo. Poderíamos acrescentar ainda atividades mais à margem, como a curiosa elaboração de uma lingua ignota, uma língua e até um alfabeto novo, que ela quis inventar, talvez com a colaboração das religiosas à sua volta, e que redundou em elucubrações bastante bizarras. Essa ocupa­ ção demonstra um espírito de criatividade que pode parecer fora do normal, gratuito, até um pouco fútil, mas que tem um gosto de pesquisa que é muito daquele tempo — tempo em que, na França, Abelardo fala de seus estudos como uma “inquisição permanente” (o termo então significava pesquisa e ainda não estava manchado pela conotação que iria adquirir por volta da metade do século XIII). Nesta existência tão fecunda, é preciso que se fale também de uma atividade que extrapola nitidamente o quadro habitual de estudos e preocupações de uma vida voltada à prece. Não se conhecem mais do que dois trabalhos sobre medicina desenvol­ vidos no Ocidente no século XII: são ambos obras de Hildegard. Ela compôs uma verdadeira enciclopédia de conhecimentos da época, na Alemanha, em matéria de ciências naturais e de medicina. Tanto uma como outra, matérias inesperadas, temos de reconhecer, na obra de uma visionária, de uma mística, que facilmente imaginamos perdida na contemplação do além.

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Não se encontra nada que se compare à sua obra, a não ser a de outra abadessa, a do mosteiro de Santa Odila do Monte Sião, na Alsácia, Herrade de Landsberg. Contemporânea de Hildegard, ela compôs, entre 1175-1178, uma enciclopédia —a primeira de nossa literatura — que chamou de Jardin de délices {Hortus deliciarum). Trata-se de uma seleta de histórias, crônicas e extratos diversos, tirados não só da Bíblia e dos Pais da Igreja mas também de trabalhos de Honorius d’Autun ou do estudo da vida cotidiana, destinada às religiosas do Santa Odila. Há, por exemplo, um capítulo sobre a Trindade, seguido da história da criação, onde os assuntos vão da astronomia à agricultura, da geodésia às vias públicas etc. E dessa obra que os historiadores das técnicas medievais tiraram a maior parte de seu conheci­ mento. O enorme manuscrito de 324 folhas contém 336 minia­ turas.1A proposta de Hildegard, entretanto, ultrapassa a simples descrição. Estabelece relações entre os produtos da natureza e os seres humanos, pesquisa os conhecimentos relativos ao homem, seu equilíbrio, sua saúde. Não deixa de ser um paradoxo que, em nossa época, de imensos progressos da medicina, de descobertas de extrema riqueza que trazem aquisições que parecem irreversíveis nessa área de conhecimento, seja esse aspecto do legado de Hildegard que justamente mais contribua para torná-la conhecida. A me­ dicina hildegardiana vem despertando a atenção do público há bastante tempo e tem suscitado numerosos trabalhos, inclusive na França, onde os mais conhecidos são os de Daniel Maurin.2 Na Alemanha e na Suíça, surgiram vários livros; abriu-se até uma casa de saúde que utiliza os métodos preconizados por Hildegard. E não estaria fora de cogitação uma igual na Bretanha. Com mais freqüência, fundam-se associações de Amigos de 1Uma observação se impõe aqui: o manuscrito de Herrade foi destruído no incêndio da biblioteca de Strasburgo, durante a guerra de 1870; o de Hildegard, que trazia o n° 1 da biblioteca de Wiesbaden, desapareceu na guerra de 1940. Os progressos realizados em matéria de armamentos nos séculos XIX e XX foram pagos com pesadas perdas em matéria científica. 2 Sainte Hildegarde, une médecine tombée du ciei, tomo I, la prévention; tomo II, les remèdes. (Edições Saint-Paul, Paris, Fribourg, 1991 e 1992).

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Hildegard: na Suíça, na Áustria, na Alemanha, na América do Norte (por iniciativa de Bruce Hozeski, na Bali State University, Indiana, atualmente presidida pelo professor Pozzi Escot). A lista completa pode ser encontrada no trabalho dos doutores Gottfried Hertzka e Wighard Strehlowquese intitula Manual de medicina de santa Hildegard.3 O que primeiro surpreende o leitor é a extraordinária amos­ tragem, a diversidade de conhecimentos que as duas obras de Hildegard revelam. Uma, sob o título de Physica, compreende nove livros, dos quais foram publicados quatro com esse mesmo título, pela doutora Elizabeth Klein.4Outros quatro (I, II, IV e IX) foram publicados por Pierre Monat5 —para citar apenas as edições francesas — com o título de O livro das sutilezas das criaturas divinas, que nos parece, aliás, mais adequado à obra. Também o intitulam Livro de medicina simples. O segundo trabalho é designado pelo título de Livro de medicina composta, ou então Causae et curae. O conjunto todo nos deixa estarrecidos com o conhecimento da natureza implicado em uma tal obra. Onde e como Hildegard teria podido adquirir tanto conhecimento, ela, que viveu princi­ palmente no interior de seu mosteiro? Em alguns casos a resposta é óbvia. Assim, quando ela descreve os principais rios da região em que vive, trata-se nítida e muito simplesmente de uma observação pessoal. No livro dedicado aos elementos, ela evoca o Reno, o Mosa, o Mosela, o Nahe, o Glan, o Danúbio, os tantos rios que conhece e pelos quais viajou, sobretudo quando foi chamada a pregar em diversas cidades do império. Ela observa que o Nahe tem um curso inteiramente irregular: “Ora ele corre com impetuosidade, ora com langor. E, porque ele corre às vezes rapidamente, logo se acha bloqueado e logo se detém, de modo que cava seu leito e suas margens com pouca profundidade.” Julga as qualidades de suas respectivas águas e alerta contra a do Reno, enquanto a do Mosela, “tomada na 3 Ed. Résiac. 4 Ed. Société bàloise Hildegarde, 1988. 5 Ed. Jérôme Millon, Grenoble, 1988.

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comida e na bebida e posta em contato com a carne do homem, no banho, ou utilizada para lavar o rosto, deixa a pele e a carne do homem claras e leves”. Também assinala que, se esta água pode ser utilizada no cozimento de carnes, a do Danúbio, ao contrário, “não é boa nem para alimentos nem para bebidas, porque ulcera as vísceras com sua aspereza”. Em compensação, a água do Glan é “sã e boa para preparar alimentos, beber, tomar banho e lavar o rosto”. Aqui transparece sensivelmente o resultado de uma observação pessoal a seu alcance. Contudo, as anotações explicáveis dessa maneira são pouco numerosas, ainda mais levando-se em conta o número e a qualidade dos conhecimentos reunidos nos trabalhos de Hildegard. O que nos leva ao título “sutilezas naturais”, bem adequado à qualidade do saber proposto. Pode-se dizer que, de fato, do ponto de vista médico, alimentar e ambiental, Hildegard nos faz apreciar virtudes ignoradas ao nosso redor: plantas, animais, ervas, madeiras. Sua leitura nos desvenda possibilidades insuspeitadas, poderes secretos que se tornaram bastante estra­ nhos ao nosso mundo, onde tudo é previamente condicionado, embalado, escolhido, classificado. Ela nos convida a perscrutar os arcanos de um mundo dotado de vida misteriosa. Claro que os químicos também o fazem, mas nos revelam apenas o ponto final de suas pesquisas, o resultado. Já Hildegard nos convida a renovar nossa visão. Os ecologistas deveriam interessar-se por sua obra, que parece nos levar pela mão através das imensas reservas da natureza, para nos ensinar a discernir o que os nossos sentidos tardam a perceber. Aliás, o valor sutil, aos olhos de Hildegard, é o valor curativo, benéfico, que as plantas, as frutas, os animais, os peixes etc. podem proporcionar ao homem. Cada elemento da natureza possui, assim, o seu valor, salutar ou prejudicial, que os trabalhos da abadessa nos ensinam a discernir. Naturalmente, o leitor de hoje deve se preparar para alguma perplexidade ao abordar os diferentes capítulos da Physica ou da Medicina composta. Deverá primeiro habituar-se a certos termos, para nós desconcertantes, como, por exemplo, os que permitem uma espécie de classificação sumária do tempera­ mento das plantas, bem como do temperamento humano. Há

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uma qualidade — quente ou fria, seca ou úmida — de cada elemento, numa primeira classificação que, aliás, remonta aos dados aristotélicos. Hildegard acrescenta aí uma noção toda sua, que já tivemos ocasião de entrever: a de “viridez”, essa pujança de vida que a plenitude do viço manifesta, e que ela menciona freqüentemente a propósito das plantas, é claro, mas também a propósito de todas as criaturas vivas. Outro ponto que constantemente causa espanto ao leitor moderno é a ausência de medidas em algarismos. Habituados que estamos a contar e a medir em quantidades precisas, considerar a recomendação: “Cozer vigorosamente o dictamno na água [...] durante o cozimento acrescentar duas vezes outro tanto de barba-de-júpiter e acrescentar urtiga, duas vezes o tanto de barba-de-júpiter, e misturar tudo” é algo de desconcertante... Ou são as dosagens que nos parecem um pouco estranhas, como nesta receita: “Reduzir a pó uma parte de gengibre, uma meia parte de alcaçuz e uma terceira parte feita de zedoária e outro tanto de gengibre; pesar o pó obtido, tomar o mesmo peso de açúcar. Tudo isso deverá pesar mais ou menos trinta peças.” Ou então: “Tomar uma medida de gengibre e um pouco mais de cinamomo, reduzir a pó. Tomar uma porção de sálvia, um pouco menos de gengibre, e funcho, um pouco mais do que de sálvia, bem como tasneira, um pouco mais do que de sálvia; pilar num almofariz etc.” As vezes a quantidade indicada consiste em tomar “na ponta de uma faca”; ou ainda, segundo um hábito comum na época, a medida é meia casca de ovo. De qualquer maneira, estamos muito longe das precisões de nossos dias. Nesse ponto não se pode ser exigente: a Idade Média é um tempo em que os algarismos são pouco familiares, em absoluto con­ traste com o nosso, em que o uso do mícron e do centésimo de segundo tornou-se corriqueiro. Em compensação, em muitos outros pontos o leitor moder­ no sentirá afinidades com as observações de Hildegard. Certa noção de medicina leve está começando a se difundir; diante das inúmeras especialidades decorrentes de uma ciência médica muito desenvolvida —e sem dúvida eficaz —, alguns aspiram a uma visão de conjunto. Pois ficarão impressionados com o

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desejo de equilíbrio que impregna toda a obra de Hildegard, atenta também ao homem, a seus estados de alma, mais do que a suas doenças corporais; ela não separa os dois. Vê-se freqüentemente em suas obras, nas que tratam das plantas, por exemplo, a preocupação de curar a “melancolia”, tanto mais perigosa porque solapa a “viridez”. Funcionalmente, ela provém de má eliminação da bile negra; engendra os maus humores, de onde vêm os distúrbios do metabolismo, que conduzem à depressão. Também é responsável pelos acessos de gota ou ataque de reumatismos, bem como pelas temíveis explosões de cólera. De modo que há uma série de prescrições para eliminar essa bile negra, tão funesta: boas refeições, bempreparadas, ajudam, porque a saúde humana se mantém essen­ cialmente com um sábio regime alimentar; alguns remédios podem agir de imediato, como a rosa, no caso de um acesso de cólera: “Reduzir a pó uma porção de rosa e um pouco menos de sálvia, e, no momento em que a cólera explodir, levar essse pó diante da narina. De fato a sálvia apazigua e a rosa alegra.” Assim toda uma série de remédios e, principalmente, um regime alimentar adequado permitirão eliminar a bile negra. E essa atenção ao detalhe que permite apreender o que é essencial no encaminhamento de Hildegard, seu método, pode-se dizer. Ela não ignora os malefícios da bile negra no organismo, o que significa que tem uma percepção absolutamente correta sobre o papel do fígado no organismo e as conseqüências de seus eventuais desregramentos; uma delas, a cólera desmedida. Pois se pode acalmá-la com o espetáculo de algo belo, que além do mais exale um odor agradável — daí a rosa, que agirá melhor ainda se lhe acrescentarmos a sálvia, de virtudes tranqüilizantes. Tudo isso pode parecer um pouco elementar e até simplista. Mas vemos a preocupação de cuidar do doente mais do que da doença, a atenção dirigida aos sintomas como efeitos de um desregramento interior; a beleza, a harmonia como necessárias ao desabrochar do homem — princípios essenciais ao pensa­ mento de Hildegard. Para ela, o estado natural do homem é a saúde, que só é destruída pelo erro. Recuperar, manter, proteger a saúde, natural ao homem, assegurar o pleno exercício de suas

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capacidades, é questão de vigilância cotidiana, dirigida ao espírito e ao corpo ao mesmo tempo. A natureza é uma reserva inesgotável de elementos, mas é preciso saber discernir, estar atento às “sutilezas” que ela encerra — por conseguinte, ao regime alimentar, que permite preservar o equilíbrio, ou reencontrá-lo se estiver perdido. Esse regime inclui o jejum — jejum moderado, já que autoriza caldo de legumes, suco de frutas e tisanas diversas —, que descontrai o organismo, ajudao a eliminar periodicamente os excessos, a recuperar, portanto, a serenidade. Quanto à alimentação propriamente dita, deve ser relacio­ nada à idade e ao estado geral, adaptada ao indivíduo e à estação. Hildegard recomenda três produtos, em particular, que ela considera inteiramente benéficos e propícios a desenvolver essa “viridez”, que é para o homem o que a seiva é para a planta. Sua escolha não deixa de nos surpreender um pouco. Primeiro, a espelta, cereal quase incomum, que ela assegura ser o melhor. O frumento utiliza-se no pão, sobretudo na forma de “pão comple­ to”, e proporciona boa carne e bom sangue; aos que estão bem de saúde ela também recomenda a aveia, mas ressalvando que é prejudicial aos doentes. O centeio, enfim, faz com que se fique “forte e vigoroso”. Mas nada se compara à espelta —sua análise hoje comprova que contém todas as vitaminas necessárias a uma alimentação equilibrada. A castanha é apresentada como “fruto útil a toda fraqueza que há no homem”. E aconselhável comê-la com freqüência, seja na estação, seja em forma de farinha. Um legume que também proporciona os efeitos mais positivos é o funcho, que “torna o homem jovial, assegura-lhe uma bela cor ao rosto, um bom odor corporal e uma boa digestão.” Quanto às frutas, a melhor para Hildegard é a maçã, sobretudo quando “se torna envelhecida e sua casca se enruga no inverno”. Então ela é boa tanto para os saudáveis como para os doentes; todos serão igualmente beneficiados se a comerem cozida ou assada. Esses são produtos inteiramente positivos, próprios para manter a saúde perfeita e o bom humor; porque Hildegard é muito atenta a “tudo o que alegra o coração do homem”.

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Considera necessário que os alimentos sejam aprazíveis e dis­ postos de maneira agradável; insiste sempre na concordância entre o que a natureza fornece de harmonioso e o benefício que daí resulta para o homem. “O perfume da primeira rebentação de lírios, o perfume de suas flores alegra o coração do homem e suscita pensamentos justos”, escreve ela. Pelo mesmo motivo, aconselha a lavanda, que contribui para “uma sabedoria pura e um espírito puro”. Assim, ela recomenda beber a lavanda em decocção no vinho ou, se isso não for possível, em água com mel: tal bebida, morna, “acalma as dores do fígado e do pulmão”. A maior parte das plantas utilizáveis como remédio prepa­ ram-se em decocção, geralmente no vinho —“um bom vinho, de preferência”. Hildegard também aconselha cataplasmas, aplica­ ções de plantas quentes envoltas num pano de linho, que são colocadas sobre a parte doente, e até na cabeça, porque ela é muito atenta à fadiga do cérebro. Ou então recomenda fazer pequenas bolachas que contenha o remédio indicado: “Quando se tem o cérebro fatigado e, por assim dizer, vazio, reduzir serpilho a pó, misturar com a flor da farinha, em água, fazer pequenas bolachas e comê-las com freqüência, que o cérebro passará melhor”, assegura ela. Propõe um remédio semelhante, à base de noz moscada: “Tomar uma noz moscada, peso igual de canela e um pouco de cravo; reduzir a pó; com esse pó, a flor da farinha e um pouco de água, fazer pequenas bolachas e comer freqüentemente; essa preparação ameniza a amargura do corpo e do espírito, abre o coração, aguça os sentidos embotados, alegra a alma, purifica os sentidos, diminui os humores nocivos, traz bom açúcar ao sangue e fortifica.” Hildegard não se limita, aliás, às dificuldades menores ou às da vida cotidiana; o mesmo funcho, no qual ela só encontra virtudes positivas, é recomendado às mulheres que sofrem durante o trabalho de parto. “Se uma mulher sofre muito durante o parto, cozinhar na água, lentamente e com precaução, ervas perfumadas com o funcho e o ásaro; escorrer a água e colocar as ervas ainda quentes em volta das coxas e no dorso; envolvê-las com um pano de linho, com cuidado, para que a dor desapareça e seu ventre se abra mais facilmente e de modo menos doloro­

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so.” Recomenda a barba-de-júpiter contra a esterilidade mascu­ lina; e também, sem rodeios, a escarola, para “acalmar o desejo amoroso do homem”: “Se um homem tem os rins muito vigoro­ sos, que faça cozinhar escarola na água e durante o banho coloque as folhas assim cozidas e quentes em torno dos quadris; repita freqüentemente, e assim o seu desejo será atenuado sem prejudicar sua saúde.” As mulheres menstruadas recomenda beber infusão de camomila. Aos surdos ela recomenda o uso do marroio: “Cozinhar marroio na água, retirá-lo da água e deixar penetrar o vapor nos ouvidos e colorar o marroio quente sobre as orelhas e a cabeça, que o ouvido assim melhora.” Para a vista, ela aconselha comer dente-de-leão; e também, “quando elas estão verdes, no verão, colocar folhas de feto freqüentemente sobre os olhos, para dormir; elas purificam os olhos e dissipam a névoa da vista”. O feto, de resto, possui todos os tipos de virtudes que ela não deixa de enumerar. Em relação à vista, a medicina mais avançada dos nossos dias não desmentirá uma linha das que se seguem: “Se a água e o sangue diminuem nos olhos de um ser humano por causa da idade avançada ou por qualquer doença, ele deve ir passear num prado de grama verde e observá-lo demoradamente até que seus olhos se umedeçam como se vertessem lágrimas, porque o verdor da relva elimina o que está turvo nos olhos e os torna puros e claros.” Sabe-se hoje em dia que o olho se acomoda a uma distância de trinta metros, o que não se encontra facilmen­ te na cidade, e, portanto, uma temporada no campo diante de um prado verde ajudará o olho a repousar e a se fortificar. Aconselha também a água virgem, “que não foi usada”, e ainda (velho remédio da experiência) “as gotas que caem do lenho da videira na primavera, do amanheceraté antes do meio-dia [...]; é preciso recolhê-las, pela manhã, num pequeno recipiente”. A seiva das folhas novas da macieira também lhe parecem propícias para curar os olhos. “E preciso untar com ela moderadamente as pálpebras, como o orvalho cai sobre a relva. Ou então colocá-la sobre os olhos num pano de linho, em compressa.” Percorrer as obras de Hildegard, quer se trate da Medicina simples ou da Medicina composta, oferece uma imensa varieda­

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de de lições de vida, sem falar na redescoberta de uma dimensão poética da natureza, não fosse pelos próprios nomes (Guillaume Apollinaire evocava-os assim: “a anêmona e a anquilégia”): passamos da verônica oficinal à pilosela ou à aristolóquia; os nomes desfilam como as mil-flores das tapeçarias do século XV: orégano, potentilha ou agrimônia. Percebe-se, ao ler seus livros, que a natureza precisava ser redescoberta em nossos dias; e nossos modernos ecologistas talvez aperfeiçoem seus conhe­ cimentos lendo esses livros. E delicioso saber que, se o luzendro torna o homem triste, a violeta, em compensação, ajuda-o a lutar contra a melancolia. Que a betônica estimula o espírito de conhecimento, e que a vista melhora quando se olha longamente um tufo de tomilho. Que o feto é cheio de virtudes benéficas que ajudam a lutar contra malefícios de toda espécie. Que a mirra afasta os fantasmas, e a garança cura os acessos de febre. Mas não é menos interessante constatar, por meio dessa variedade botânica, que muitas produções desapareceram, cul­ pa sem dúvida de seu baixo rendimento, numa época em que prevalece apenas o critério econômico. Nossas culturas empobreceram-se consideravelmente desde o século XII. Hildegard insiste, por exemplo, nos benefícios da fava; no seu tempo, em que não se conhecia a batata, a fava e a ervilha eram as féculas usuais. “A fava é quente, boa para ser comida pelas pessoas de boa saúde e em plena força; ela é melhor do que a ervilha. [...] A farinha da fava é boa e útil tanto para os que estão bem de saúde como para o doente, porque ela é leve e se digere facilmente.” A ervilha, ao contrário, se é “boa para ser comida por quem é de natureza quente [...], contudo, como é de natureza fria, de nada vale para os doentes, porque durante a digestão provoca-lhes muito fluxo de humores”. No entanto, a ervilha continuou sendo usual em nossa alimentação, enquanto a fava tornou-se rara. Pode-se lamentar também o desaparecimento do açafrão, que foi cultivado até na Inglaterra e já não se encontra senão em raras regiões da Espanha. A cultura do cânhamo foi em geral abandonada, com exceção, infelizmente, da Cannabis indica, de que se extrai o haxixe. Ora, hoje em dia, quando as florestas

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desaparecem para fornecer a enorme quantidade de papel que se consome no mundo, a Cannabis sativa, o cânhamo dos nossos campos, forneceria um papel de excelente qualidade e seria apropriada para guarnecer essas terras que deixamos ao abandono. Ao lermos as obras de medicina de Hildegard, redescobrimos uma parcela insuspeitada de nosso meio ambiente, e não é pequena a surpresa pelo fato de ela nos ser restituída por uma mística que poderia ter se contentado em se deslumbrar ante a descoberta do universo.

VIAGENS E PRÉDICAS

A tão surpreendente personalidade de Hildegard de Bingen também se manifesta em seu estilo de vida. E raro e mesmo excepcional que uma religiosa, tendo escolhido a vida contemplativa, deixe seu convento sem com isso abandonar sua vocação, uma vez que a permanência faz parte dos compromis­ sos assumidos pela monja, ao professar. Algumas religiosas, principalmente as abadessas, tiveram de fundar novos conven­ tos, o que as levou a deixar o primitivo; seria o caso de uma santa Teresa d’Avila, por exemplo. E a própria Hildegard, como vimos, também deixou a comunidade dúplice de Disibodenberg, em 1150, para fundar, próximo a Bingen, o convento consagra­ do a são Rupert; e depois, em 1165, o de Eibingen, do outro lado do Reno — convento que conserva até hoje o nome de santa Hildegard. Bem mais surpreendentes sãs as viagens que realizou com o propósito de pregação. Sem dúvida, a clausura das religiosas no tempo de Hildegard era bem menos severa e restrita do que se tornaria depois, quando a constituição Periculoso, do papa Bonifácio VIII, no final do século XIII —1298, exatamente — iria constrangê-las a uma existência exclusivamente confinada. Tal severidade se vai acentuar ainda mais: nos séculos XVI e XVII, só serão permitidas às mulheres a fundação de ordens de total reclusão. A vida de uma religiosa do século XII transcorre num contexto bem diferente. Mas não deixa de ser um espetáculo curioso, visto à distân­ cia, o desta abadessa que, por quatro vezes, ganha a estrada para fazer pregações. Acreditou-se até que ela teria ido a Paris e a Tours, como registra um dos redatores de sua Vida, mas é

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provavelmente um engano. Quem realizou essas viagens, após a morte de Hildegard, foi Guibert de Gembloux, um dos que referendaram seus escritos. Ele mostra aos mestres das escolas parisienses e das de Tours (como se sabe, a Universidade de Paris ainda não existia) os trabalhos da visionária; é por isso, sem dúvida, que esses escritos ficaram logo conhecidos na França. Jean de Salisbury, o famoso bispo de Chartres, fala sobre ela numa carta datada de 1167 e menciona a grande confiança que lhe testemunhava o papa Eugênio III. No século XII, Vicent de Beauvais não poderia deixar de conhecê-la e a menciona em seu Speculum historiale: “Nessa mesma ocasião”, escreve ele, “havia na Alemanha uma virgem admirável a quem a força divina concedera tais graças que, ainda que ela fosse laica e iletrada [o termo “laica” deve ser tomado aqui em oposição a “clérigo”, aquele que freqüentou a escola], aprendia de um modo maravilhoso, sendo freqüentemente levada não apenas a se expressar mas também a ditar em latim, de tal maneira que, ao ditar, compôs livros sobre a fé católica.” Ora, parece que por meio de um estudo atento da correspon­ dência de Hildegard — reunida com cuidado e editada pela Patrologia latina do século passado —é possível reconstituir os sermões que ela pronunciou em algumas localidades, ou pelo menos descobrir os temas desses sermões. Além da ida a Ingelheim, tudo indica que sua primeira viagem para realizar uma primeira prédica tenha sido a Treves, no ano de 1160, provavelmente por ocasião de Pentecostes. Pouco depois de sua passagem, os prelados da cidade lhe escreveram pedindo que fizesse o favor de lhes transmitir, por escrito, o que havia exposto de viva voz. O pedido lhe foi encaminhado pelo preboste da igreja de São Pedro, ou seja, a cadetral, repleta, diz ele, de todo o clero de Treves. E formula o pedido em termos cheios de respeito, até mesmo de afeição. “Uma vez que, por permissão divina, pensamentos de numerosos corações vos são revelados”, escreve ele, citando são Lucas, “pela vontade divina nós vos amamos com todo o ímpeto de nosso corpo, com toda a devoção de nosso espírito. Sabemos que, de fato, o Espírito Santo está em vós e que por ele

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RÉGINE PERNOUD

vos são manifestadas muitas coisas desconhecidas dos outros homens. Porque depois que partistes de nossa casa, após terdes vindo a ela, há pouco, no dia de Pentecostes, por uma disposição superior em que predissestes que uma ameaça de Deus era iminente para nós, vimos e experimentamos a nossa volta e em nossa casa muitas dificuldades nas igrejas e muitos perigos da parte dos homens, porque havíamos negligenciado, como nos revelou vosso julgamento esclarecido, o apaziguar a cólera de Deus, e, se Sua vingança não se tivesse retirado, graças à misericórdia de Deus, talvez tivéssemos sucumbido de desespe­ ro sob o peso desses mesmos perigos. E, porque Deus está em vós e Suas próprias palavras saem de vossa boca, imploramos vossa dileção profundamente maternal para que nos exposeis o que nos dissestes de viva voz. [...] Que a proteção de Deus esteja sempre convosco, e o que Ele em vós começou que em vós o leve a bom termo.” Pode-se colocar legitimamente a questão dos meios materi­ ais, técnicos, a bem dizer, que Hildegard teria utilizado para ir de Bingen a Treves. Não parece impossível que ela tenha usado a via fluvial, subindo o curso do Nahe até o ponto onde o rio se estreita entre duas rochas escarpadas —na confluência do Idar, na altura de Oberstein — para em seguida pegar a estrada na direção do oeste e alcançar a velha cidade romana. Por mais comodidades que o transporte fluvial oferecesse, o curso do Mosela é, com efeito, muito sinuoso no último trecho, que vai do Reno a Treves; em compensação, Hildegard parece conhecer bem o Nahe, que ela descreve, como dissemos, em sua obra denominada Physica. A cidade de Treves ocupou um lugar de destaque na vida da visionária. Foi onde se realizou o famoso sínodo de 1147-1148, que lhe conferiu o direito de ser, ou de vir a ser, o que ela foi. O passado extraordinariamente rico da cidade serviu-lhe, aliás, de inspiração. Já mencionamos que Treves, nos umbrais dos “rei­ nos bárbaros”, fora o acampamento militar por excelência, local onde se abasteciam os exércitos romanos chamados a fiscalizar os limites do vasto império. A presença romana ainda hoje é comprovada pela Porta Nigra. Quando foi construída, no final

9 — Acima da cidade quadrada, compreendendo casas e edifícios, que em cada uma das cinco últimas visões evoca a presença dos homens, as três silhuetas erguidas sobre uma fonte são: “Amor, Humildade, Paz.” A nuvem que as encima circunda “as ordens dos santos”.

10 — Uma das visões mais extraordinárias, a nona: a cidade parece ameaçada pelas trevas, uma nuvem de fogo e de enxofre dela se desprende, enquanto duas criaturas nos interrogam, uma vestindo um manto verde sobre uma túni­ ca de seda branca, a outra, “estranha aparição: em lugar da cabeça, um esplendor que me ofuscava; no centro de seu ventre, a cabeça de um homem de cabelos brancos, barbudo”; a figura, cujo corpo é revestido de escamas de peixes, tem seis asas; em uma delas, estão dispostos cinco espelhos. Ela evoca, diz o texto, “o Deus todo-poderoso... invisível em sua majestade, maravilhoso por suas energias”.

11 — A décima e última visão se refere às predições do Apocalipse; Hilde­ gard aí descreve a obra de Deus, as contradições da história humana, a pereni­ dade do livro da vida e termina: “Celebremos o Deus todo-poderoso em todas as suas obras antes do tempo e no tempo: Ele é o primeiro e o último,”

12 — “Incipiunt capitula libri Scivias simplicis hominis. Incipiunt capitula prime partis .” Começo do livro Scivias com uma grande maiúscula em ilumi­ nura representando a árvore de Jessé. Século XIII.

13 — Uma visão do mundo com planetas, signos do zodíaco — tudo o que evoca as lutas e os sobressaltos da condição humana.

14 — O Cristo em glória, cercado pelos eleitos; na parte inferior, é mostrada a queda do homem que o anjo expulsa do paraíso.

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