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POESIA TODA / HERBERTO HELDER
AUTOR:
Helder, Herberto, 1930-
PUBLICAÇÃO:
Lisboa : Assírio & Alvim, 1990
DESCR. FÍSICA: 575 p. ; 24 cm ISBN:
972-37-0252-5
DEP. LEGAL:
PT -- 34018/90
CDU:
821.134.3-1"19/20"
ÍNDICE
A COLHER NA BOCA (1953-1960) Prefácio Tríptico I - «Transforma-se o amador na coisa amada» com seu II - Não sei como dizer-te que minha voz te procura III - Todas as coisas são mesa para os pensamentos O amor em visita O poema I - Um poema cresce inseguramente II - A palavra erguia-se como um candelabro, III - Às vezes estou à mesa: e como ou sonho ou estou IV - Nesta laranja encontro aquele repouso frio V - Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria VI - Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina VII - A manhã começa a bater no meu poema. Fonte I - Ela é a fonte. Eu posso saber que é II - No sorriso louco das mães batem as leves III - Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta IV - Mal se empina a cabra com as patas traseiras V - Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa, VI - Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo Elegia múltipla I - Como se poderia desfazer em mim tua nobre cabeça, essa II - Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta III - Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. IV - A colher de súbito cai no silêncio da língua. V - Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam VI - São claras as crianças como candeias sem vento, VII - Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus As musas cegas I - Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas. II - Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada III - Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio IV - Mulher, casa e gato. V - Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira VI - É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto VII - Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar. VIII - Ingoro quem dorme, a minha boca ressoa. Narração de um homem em maio POEMACTO (1961) I - Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar. II - Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
III - O actor acende a boca. Depois, os cabelos. IV - As vacas dormem, as estrelas são truculentas, V - As barcas gritam sobre as águas. LUGAR (1961-1962) Aos amigos Para o leitor ler de/vagar Lugar I - Uma noite encontrei uma pedra II - Há sempre uma noite terrível para quem se despede III - As mulheres têm uma assombrada roseira IV - Há cidades cor de pérola onde as mulheres V - Explico uma cidade quando as luzes evoluem. VI - Às vezes penso: o lugar é tremendo. VII - Pequenas estrelas que mudam de cor, frias Lugar último Teoria sentada I - Um lento prazer esgota a minha voz. Quem II - Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada III - A minha idade é assim — verde, sentada. IV - Quando já não sei pensar no alto de irrespiráveis irrespiráveis V - Muitas canções começam no fim, em cidades VI - É a colina na colina, colina Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio O BEBEDOR NOCTURNO (1961-1966) Poemas do Antigo Egipto Poemas do Velho Testamento Enigmas maias Enigmas astecas Poesia mexicana do ciclo nauatle Hino órfico à noite (Grécia) Três canções do Epiro Poemas zen O mistério de Ameigen (Irlanda) Oração mágica finlandesa para estancar o sangue das feridas Canção escocesa Quatro poemas árabes Poemas arábico-andaluzes Canções de camponeses do Japão Quinze haikus japoneses Poemas indochineses Canções indonésias Canção da Cabília Canções malgaxes Canção tártara Cinco poemas esquimós
Poemas dos peles-vermelhas COMUNICAÇÃO ACADÉMICA (1963) A MÁQUINA LÍRICA (1963) Em marte aparece a tua cabeça A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe A menstruação, quando na cidade passava Em silêncio descobri essa cidade no mapa Mulheres correndo, correndo pela noite. Era uma vez toda a força com a boca nos jornais: Todas pálidas, as redes metidas na voz. Tinha as mãos de gesso. Ao lado, os malJoelhos, salsa, lábios, mapa. A MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS (1963) HÚMUS (1966) CINCO CANÇÕES LACUNARES (1965-68) Bicicleta Canção despovoada Canção em quatro sonetos Um deus lisérgico Os mortos perigosos, fim. OS BRANCOS ARQUIPÉLAGOS (1970) ANTROPOFAGIAS (1971) Texto 1: Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão Texto 2: Não se vai entregar aos vários «motores» a fabricação do estio Texto 3: Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé Texto 4: Eu podia abrir um mapa: «o corpo» com relevos crepitantes Texto 5: «Uma devassidão aracnídea» se se quiser Texto 6: Não se esqueçam de uma energia bruta e de uma certa Texto 7: Tenho uma pequena coisa africana para dizer aos senhores Texto 8: Nenhuma atenção se esqueceu de me cravar os dedos Texto 9: Porque também «isso» acontece dizer-se que se lavra Texto 10: Encontro-me na posição de estar freneticamente suspenso Texto 11: «Estudara» muito pouco o comportamento das paisagens Texto 12: Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu ETC. (1974) COBRA (1975-76) E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta A força do medo verga a constelação do sexo.
Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno. A parede contempla a minha brancura no fundo: As folhas ressumam da luz, os cometas escoam-se O espelho é uma chama cortada, um astro. O rosto espera no seu abismo animal. Ele queria coar na cabeça da mulher aprofundada A doçura, a febre e o medo sombriamente agravam Tomo o poder nas mãos dos animais — quer dizer: Amo este verão negro com as furnas de onde se arrancam EXEMPLOS (1977) 1. A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou 2. Eis como uma coisa como que nos interessa: destruir os textos. 3. Esta Ciência selvagem de investigar a força 4. Esta é mãe central com os dedos luzindo, 5. Não se pode tocar na dança. Toda essa fogueira. O CORPO O LUXO A OBRA (22-23.XI.77) DE "PHOTOMATON & VOX" (1978) (é uma dedicatória) (a carta da paixão) (similia similibus) (vox) (walpurgisnacht) (a morte própria) FLASH (Abril, 1980) Nenhum corpo é como esse, mergulhador, coroado Astro assoprado, sombria ligeireza, dom: eu sei. Queria tocar na cabeça de um leopardo louco, no luxo Adolescentes repentinos, não sabem, apenas o tormento de um excesso Não te queria quebrada pelos quatro elementos. Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas Um espelho, uma trama de diamante onde a cabeça A CABEÇA ENTRE AS MÃOS (1981) De antemão Mão: a mão Todos os dedos da mão Onde não pode a mão Demão AS MAGIAS (1986-87) — Um poema (Iniji) que não é como os outros — (J.M.G. Le Clézio) — Iniji — (Henri Michaux) (lugures, Ásia Central)
(Pigmeus, África Equatorial) (Dincas, Sudão) — Dança e encantação — (Gabão) — Noutra margem do inferno — (Robert Duncan) — Canto das cerimónias canibais — (Huitotos, Colômbia Britânica) — o coração — (Stephen Crane) — À Serpente Celeste, contra as mordeduras — (Pigmeus, África Equatorial) — Mulher cobra negra — (Gondos, índia Central) — Serpente e lenço — (José Lezama Lima) (índios Comanches, EUA) — Na cerimónia da puberdade feminina — (índios Cunas, Panamá) (Austrália) — Os grandes feitiços — (Biaise Cendrars) — Figos — (D.H. Lawrence) — A Príapo — (Tivoli, Roma) — Juventude virgem — (D.H. Lawrence) — A Grande Rena Louca — (Colômbia) As trompas de Ártemis — (Robert Duncan) — Encantação — (México) — Canto em honra dos ferreiros — (Mongólia) — Os ferreiros — (Marie L de Weich) — As coisas feitas em ferro — (D.H. Lawrence) — A identidade dos contrários — (Edouard Roditi) (Conde de Saint-Germain) ÚLTIMA CIÊNCIA (1985, revisto em 1987) 1 – Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura 2 – Os animais vermelhos, ou de ouro peça a peça: 3 – Há uma árvore de gotas em todos os paraísos. 4 – Mulheres geniais pelo excesso da seda, mães 5 – Gárgula.
OS SELOS (1989) Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos? Astralidade, zonas saturadas, a noite suspende um ramo. Ela disse: porque os vestidos transbordam de vento. A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou Entre temperatura e visão a frase africana com as colunas de ar São estes — leopardo e leão: carne turva e Os lugares uns nos outros — e se alguém está lá dentro com grandes Entre porta e porta — a porta que abre à água e a porta aberta A poesia também pode ser isso: Uma razão e as suas palavras, não sou leve não tenho Podem mexer dentro da cabeça com a música porque um acerbo clamor Doces criaturas de mãos levantadas, ferozes cabeleiras, centrífugas pelos olhos para
HERBERTO HELDER POESIA TODA [1953-1989] A COLHER NA BOCA
PREFÁCIO Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo. Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis. — Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras. Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo. Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes — pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar. Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória e absorvente melancolia e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos. Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes, ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos. — Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração, uma beleza contra a força divina? Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar. Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações. — Estas casas serão destruídas. Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo, vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes iluminações. Falemos de casas. É verão, outono, nome profuso entre as paisagens inclinadas. Traziam o sal, os construtores da alma, comportavam em si restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas, imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros — comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar. Só um instante em cada primavera se encontravam com o junquilho original, arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração. — E as casas levantavam-se sobre as águas ao comprido do céu. Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e obsessiva — tudo isso está longe da canção que era preciso escrever. — E de tudo os espelhos são a invenção mais impura. Falemos de casas, da morte. Casas são rosas para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança nos abandona para sempre. Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente até uma baía fria — que talvez não exista, como uma secreta eternidade. Falemos de casas como quem fala da sua alma, entre um incêndio, junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza.
TRÍPTICO I «Transforma-se o amador na coisa amada» com seu feroz sorriso, os dentes, as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida. O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas. Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque. É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas. Transforma-se em noite extintora. Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga. Que transforma a coisa amada. Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito do amador. Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador, dá-lhe o grito dele. E o amador e a coisa amada são um único grito anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito de amador. E ela é batida, e bate-lhe com o seu espírito de amada. Então o mundo transforma-se neste ruído áspero do amor. Enquanto em cima o silêncio do amador e da amada alimentam o imprevisto silêncio do mundo e do amor.
II Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço e o coração é uma semente inventada em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão como se toda a casa ardesse pousada na noite. — E então não sei o que dizer junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes se despenham no meio do tempo — não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura. Durante a primavera inteira aprendo os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço — e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer coisa extraordinária. Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor. que te procuram.
III Todas as coisas são mesa para os pensamentos onde faço minha vida de paz num peso íntimo de alegria como um existir de mão fechada puramente sobre o ombro. — Junto a coisas magnânimas de água e espíritos, a casas e achas de manso consumindo-se, ervas e barcos altos — meus pensamentos criam-se com um outrora lento, um sabor de terra velha e pão diurno. E em cada minuto a criatura feliz do amor, a nua criatura da minha história de desejo, inteiramente se abre em mim como um tempo, uma pedra simples, ou um nascer de bichos num lugar de maio. Ela explica tudo, e o vir para mim — como se levantam paredes brancas ou se dão festas nos dedos espantados das crianças — é a vida ser redonda com seus ritmos sobressaltados e antigos. Tudo é trigo que se coma e ela é o trigo das coisas, o último sentido do que acontece pelos dias dentro. Espero cada momento seu como se espera o rebentar das amoras e a suave loucura das uvas sobre o mundo. — E o resto é uma altura oculta, um leite e uma vontade de cantar.
O AMOR EM VISITA
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite. Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento. Mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios, com o peso lúbrico e triste da boca. Seus ombros beijarei. Cantar? Longamente cantar. Uma mulher com quem beber e morrer. Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave o atravessar trespassada por um grito marítimo e o pão for invadido pelas ondas — seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. Ele — imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento de alegria e de impudor. Seu corpo arderá para mim sobre um lençol mordido por flores com água. Em cada mulher existe uma morte silenciosa. E enquanto o dorso imagina, sob os dedos, os bordões da melodia, a morte sobe pelos dedos, navega o sangue, desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. — Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, mulher de pés no branco, transportadora da morte e da alegria. Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra. Com uma flecha em meu flanco, cantarei. E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, cantarei seu sorriso ardendo, suas mamas de pura substância, a curva quente dos cabelos. Beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro pescoço de planta, onde uma chama comece a florir o espírito. À tona da sua face se moverão as águas, dentro da sua face estará a pedra da noite. — Então cantarei a exaltante alegria da morte. Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva. — Porém, tu sempre me incendeias. Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido. — Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. Entontece meu hálito com a sombra, tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco. E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra — invento para ti a música, a loucura e o mar. Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, a inspiração. E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. Vou para ti com a beleza oculta, o corpo iluminado pelas luzes longas. Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos transfiguram-se, tuas mãos descobrem a sombra da minha face. Agarro tua cabeça áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou aquilo que se espera para as coisas, para o tempo — eu sou a beleza. Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza. Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti que me vem o fogo. Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua noite e loucura, não há vindima ou água em que não estivesses pousando o silêncio criador. Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos originais. Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo. Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha. Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida - e eu nisso demorei meu frágil instante. Porém teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor. As coisas nascem de ti como as luas nascem dos campos fecundos, os instantes começam da tua oferenda como as guitarras tiram seu início da música nocturna. Mais inocente que as árvores, mais vasta que a pedra e a morte, a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, tinge a aurora pobre, insiste de violência a imobilidade aquática. E os astros quebram-se em luz sobre as casas, a cidade arrebata-se, os bichos erguem seus olhos dementes, arde a madeira — para que tudo cante pelo teu poder fechado. Com minha face cheia de teu espanto e beleza, eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos. Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz. Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem. Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura. És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, que te alimentas de desejos puros. E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo. Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo. — Para consagração da noite erguerei um violino, beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua. Oh teoria de instintos, dom de inocência, taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes. Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho, o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela, onde o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida ingénua e cara, o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. Bom será o tempo, bom será o espírito, boa será nossa carne presa e morosa. — Começa o tempo onde se une a vida à nossa vida breve. Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência. E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas, a morte que não beijo, a erva incendiada que se derrama na íntima noite — o que se perde de ti, minha voz o renova num estilo de prata viva. Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira, eu estou no fruto como sol e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto. — E as aves morrem para nós, os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste. Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma, que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? — No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue. Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante. — Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural, devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz. As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente a nossa vida. As sombras que rodeiam o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo — aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso, no peixe, no cubo, no linho, no mosto aberto — no amor mais terrível do que a vida. Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite. Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres. Correm em mim o lacre e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento. Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso. Em cada espasmo eu morrerei contigo. E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha. Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto, rios imaginados, espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite. Ó meu amor, em cada espasmo eu morrerei contigo. De meu recente coração a vida inteira sobe, o povo renasce, o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras. Ó pensada corola de linho, mulher que a fome encanta pela noite equilibrada, imponderável — em cada espasmo eu morrerei contigo. E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. Bichos inclinam-se para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar. Tua voz canta o horto e a água — e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo. Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo.
O POEMA I Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, rios, a grande paz exterior das coisas, folhas dormindo o silêncio — a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as casas deitadas nas noites e as luzes e as trevas em volta da mesa e a força sustida das coisas e a redonda e livre harmonia do mundo. — Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. — E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
II A palavra erguia-se como um candelabro, a voz ardia como um inesperado campo de giestas. E nós sustínhamos em nossos dois ombros o fulgor e a tristeza divina. Quando os arbustos eram bichos iluminando as regiões do céu e ao rés da terra as pedras cantavam e os mitos davam a forma das coisas. Quando colhíamos o espanto nas mãos dolorosas e em frente ao povo íamos cantando a fábula e o próprio rosto do milagre. Quem se assenta à nossa mesa? — dizíamos. — Quem sobre a mesa coloca um beijo sem peso e sem mácula? Nada existe que não seja inocente, e o hálito perpassa à flor dos lábios, a força da memória deu a alma ao vinho e o imponderável ao primeiro sorriso. Toda a casa acaba a noite, cria a auréola em torno do objecto, enche cada instante de um poder obscuro. A delicada taça partia-se nas mãos — sangue: um sinal, um símbolo. E cantar era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta loucura. Cantar era uma razão de morte e de alegria. Desfaziam-se as pálpebras na jovem carne, na esfera da luz, ou na ressonância e volúpia do tempo. E a mão procurava o punhal, a boca beijava a laje nua. Do braço divino sumia-se o fogo e o archote corria sobre as águas ou no coração da sementeira. E era então o fogo aquilo a que o beijo, em sua graça, firmemente aspirava. Nenhuma vida tanto se gastou que não seja visitada, nenhum deus é tão grande que se não perca na substância da sombra. — Uma flor e um grito, um copo e um breve minuto, ou a aurora cortando o peito, ou o primeiro respirar de um pensamento.
Cantar onde a mão nos tocou, o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo. Cantar na mesa, na árvore sorvida pelo êxtase. Cantar sobre o corpo da morte, pedra a pedra, chama a chama — erguido, amado, aprendido.
III
Às vezes estou à mesa: e como ou sonho ou estou somente imóvel entre a aérea felicidade da noite. O sangue do mundo corre e brilha. Porque a minha carne se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna. Ocupo-me nos símbolos, e gostaria que meu coração entontecesse lentamente, que meu coração caísse numa espécie de extática e sagrada loucura. E enquanto estou só e o céu rodeado de lírios amarelos, e animais de luz, e fabulosos órgãos de silêncio, descansa sobre os meus ombros seu doce peso antigo — eu penso que haveria uma palavra vingativa e pura, uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse primeiro na voz ou na claridade ou na tenebrosa fantasia, e que depois me ferisse na minha própria morte, sob a intensa profusão celeste. Penso que deve existir para cada um uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse virgem de sentido e que, vinda de um ponto fogoso da treva, batesse como um raio nos telhados de uma vida, e o céu com águas e astros caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada exaltação. Que palavra seria, ignoro. O nome talvez de um instrumento antigo, um nome ligado à morte — veneno, punhal, rio bárbaro onde os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes luas impassíveis. Um abstracto nome de mulher ou pássaro. Quem sabe? — Espelho, Cotovia, ou a desconhecida palavra Amor.
Sei que minha vida estremeceria, que os braços sonâmbulos iriam para o alto e queimariam a ligeira . noite de junho, ou que o meu coração ficaria profundamente louco. E nessa loucura cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito, e cada nome seria iluminado por todos os outros nomes da terra, e tudo arderia num só fogo, entre o espaço violento do mês de primavera e a terra baixa e magnífica. Com grandes dedos eu tocaria as trémulas campânulas dos signos, e beijaria as rodas excitadas do ar. Ferveriam os pequenos vulcões dos frutos. Dentro dos tanques tombaria a água infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar à mesa da fantasia nocturna seria para um homem, sob a abóbada da cabeça, como o espírito caído dentro da forma e a forma incrustada, como uma lâmpada, na inspiração da cabeça. — Cada boca pousada sobre a terra pousaria sobre a voz universal de outra boca.
IV Nesta laranja encontro aquele repouso frio e intenso que conheço como um dom impossuído. Do ouro terá a luz interior, terá a graça desconhecida daquilo que mal pousa na mesa, no mundo. — Passar nocturno da água que o sangue mudamente imita. Ilha cercada de todos os lados por uma inumerável, inominável sede humana. Esta laranja lembra-me uma alta solidão que nem pode ser nossa, de tão pura. Lembra-me ainda uma urna fechada como gelo, onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse numa fonte oculta. Onde os veios amarelos, batidos ao longo do silêncio pelas pequenas espadas dos raios, se movessem, quem sabe até que inapercebido, louco, tão vivo coração de poema. Laranja com facas e garfos em volta, ainda recebendo gota a gota a sua árvore — laranjeira de espírito desconhecido, irmão de chuva, irmão de uma noite vagarosamente purificada. Laranja encontrada entre dois momentos inimigos, ao meio como um grito que bate em cheio entre os ossos e as veias fulminadas. Doada à poesia que esperava, entre a rigorosa visão e a experiência desmedida da carne. Se a mão se atreve pela confluída laranja, sobe ao ombro o puro sentimento de ligação ao mundo. São as manhãs impossíveis da terra, o subjacente e livre fogo da noite, as águas a urdir o peixe que vai nadando até se consumar em lento lírio. Cerraria sobre esta laranja que aparta a inocência da treva daquilo que o espírito caiou como luz indivisa — sobre ela cerraria a boca, como se a sepultara num silêncio plantado
de muitas presenças fortes como sal. — Talvez todo o enigma materno me fosse dado de inspiração através da língua, por confusos órgãos, a todo um corpo tenso e apto aos segredos e às delicadas subtilezas da terra. Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção vertiginosa, e tudo fosse entrando como sabedoria pelo corpo evocativo, e cada gesto fosse depois a íntima unidade deste Poema com as coisas. Laranja apaixonadamente.
V Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria masculinidade. Era talvez um cego escorrer de sangue pelos anéis e flores do corpo. Sei unicamente que era a força da tristeza, ou a força da alegria da minha vida. Havia também outra coisa a que se deveria dar um nome belo e lento. Algo que se cercava de lágrimas como uma árvore se vai cercando de folhas inúmeras. Tudo isso começava a aparecer nas vozes e inspirações como uma ardente confusão. Era primeiro uma virtude. Depois, este vagaroso acender da noite. O sangue despenhava-se nas lagoas e grutas da carne. Hoje eu sabia que era a tristeza, a tristeza — um poder mais jovem que os demais. Esquecia de novo os nomes, e todo me circundava de uma torrente silenciosa, de uma cítara fortemente anunciadora. Nunca se deve dizer que um rosto perde as suas brasas quando se inclina sobre a penumbra de uma fonte, sobre um instrumento rápido. Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se enlouquecer eternamente. Ou porque a colher pode ligar a terra à violência do espírito. — Lá estariam sempre as grandes arcadas de fogo, as portas, a loucura das pontes celestes aonde a invenção chega como um frio arrebatamento. Havia essa espécie de vocação implorativa, a doçura do corpo subtilmente preso por crateras e picos ao tumulto das sombras. Eu abaixava-me e tomava como nos braços essa criança ignota. E porões enchiam-se de água, eu seria em breve um afogado. Tudo me inspirava nessa noite abrupta, entre o começo e o fim do mundo. Como pode um coração absorver tanta matéria, tanta inocência da terra? Se era uma criança, sua vida circulava indecisamente; se eram os mortos, a distância tornava-se infinita. Apenas a minha força se dobrava um pouco, e um novo calor corria nas palavras adormecidas
e degelava as mãos que se cobriam de um sentido impenetrável. — Essa forma amparava-se no sexo repleto de espinhos e espelhos, e era uma espécie de retrato sem névoas, um eixo, um grito, uma louca morte onde começassem a girar as inspirações misteriosas.
VI Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina a harpa e a loucura desperta a pura espada em pleno sangue. Ó vasto, amargo e límpido mês interior onde a graça se toca do fogo e o corpo se torna o cândido e longo varão de música. Escada de seiva entre arbustos de estrelas e cubos de sal perpetuamente ardendo. — Por ti, mês feliz de confusão e génio, eu levanto minha húmida boca até ao ar e ao vinho, levanto minha obscura pedra por vias de tormento e instinto até ao barro vermelho do céu, ao espasmo violento e sagrado das palavras. Mês por onde subo fundamente agitado em meu coração de argila, em minhas veias de pequena infância espantada e grata. E subindo me incendeio e consumo. Mês das mãos purificadas. Delicado mês para uma corola de nuvem, um vivo transporte entre coxas e mamas. Em lama e areia se descobre o pensamento, se perde a memória, se possui uma estreita palavra virgem e extrema. Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda música. Arde, vinho. Carne, ave, grande mar, grande estátua fria, grande sorriso desfeito na face da solidão. Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz das catedrais de resina e o flanco terrível e doce das montanhas e o amor irmão da morte e da alegria. Mês do poema, substância de Deus servida como ceia e primeira pedra no espaço da minha angústia, do meu encanto. Mês da aliança, tempo tremendo da inocência onde a lua desce suas raízes ferozes e a morte anuncia seus primeiros sinais de glória.
— E eu dormia. O sangue atravessava a noite como cantando baixo. Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam no linho com o tremor comprido das veias. Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia, vibrava na testa como o beijo da loucura. — Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto, o perdão nascia das formas, e por todas as coisas corria o sopro alucinado e redentor de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra.
VII A manhã começa a bater no meu poema. As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores líricas. Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas, o rodopio das rosáceas do meu poema batido pela revelação das coisas. Os finos ramos da cabeça cantam mexidos pelo sangue. Talvez eu enlouqueça à beira desta treva rapidamente transfigurada. Batem nas portas das palavras, sobem as escadas desta intimidade. É como uma casa, é como os pés e as mãos das pessoas invasoras e quentes. Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só, deitado de costas, com o nariz que aspira, a boca que emudece, o sexo negro no seu quieto pensamento. Batem, sobem, abrem, fecham, gritam à volta da minha carne que é a complicada carne do poema. Uma inspiração fende lírios na minha testa, fende-os ao meio como os raios fendem as direitas taças de pedra. Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa, uma visita do sangue cheio de luzes interiores. Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem levitante, as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias. É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados do poema. É Deus que rola e a morte e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal à beira do povo que até mim separa os espinhos das formas e traz sua pureza aguda e legítima. — Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais pequenos cravos de ouro ou peixes delicados de música fria. — Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.
O poema dói-me, faz-me feliz e alto. O povo traz coisas para a sua casa do meu poema. Eu acordo e grito, bato com os martelos dos dias da minha morte a matéria secreta de que é feito o poema. — A manhã começa a colocar o poema na parte mais límpida da vida. E o povo canta-o enquanto crescem os campos levantados ao cume das seivas. A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida do mundo.
FONTE I Ela é a fonte. Eu posso saber que é a grande fonte em que todos pensaram. Quando no campo se procurava o trevo, ou em silêncio se esperava a noite, ou se ouvia algures na paz da terra o urdir do tempo — cada um pensava na fonte. Era um manar secreto e pacífico. Uma coisa milagrosa que acontecia ocultamente. Ninguém falava dela, porque era imensa. Mas todos a sabiam como a teta. Como o odre. Algo sorria dentro de nós. Minhas irmãs faziam-se mulheres suavemente. Meu pai lia. Sorria dentro de mim uma aceitação do trevo, uma descoberta muito casta. Era a fonte. Eu amava-a dolorosa e tranquilamente. A lua formava-se com uma ponta subtil de ferocidade, e a maçã tomava um princípio de esplendor. Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento perdeu-se e renasceu. Hoje sei permanentemente que ela é a fonte.
II No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. Que balouçam. Que são puras. Gotas e candeias puras. E as mães aproximam-se soprando os dedos frios. Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões e órgãos mergulhados, e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais. Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado, vendo tudo, e queimando as imagens, alimentando as imagens, enquanto o amor é cada vez mais forte. E bate-lhes nas caras, o amor leve. O amor feroz. E as mães são cada vez mais belas. Pensam os filhos que elas levitam. Flores violentas batem nas suas pálpebras. Elas respiram ao alto e em baixo. São silenciosas. E a sua cara está no meio das gotas particulares da chuva, em volta das candeias. No contínuo escorrer dos filhos. As mães são as mais altas coisas que os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos, porque os filhos estão como invasores dentes-de-leão no terreno das mães. E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, e atiram-se, através deles, como jactos para fora da terra. E os filhos mergulham em escafandros no interior de muitas águas, e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos e na agudeza de toda a sua vida. E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa, e através dele a mãe mexe aqui e ali, nas chávenas e nos garfos. E através da mãe o filho pensa que nenhuma morte é possível e as águas estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca da mãe que toca a mão pressentida do filho. E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo, e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
III Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta agora entre águas e silêncios. Nada te acorda — nem as folhas dos ulmos, nem os rios, nem os girassóis, nem a paisagem arrebatada. — Espero do tempo novo todos os milagres, menos tu. Corres somente no meu sangue memoriado e sobes, carne das palavras outra vez imperecíveis e virgens. — Do tempo jovem espero o vinho e o pólen, outras mãos mais puras e mais sagazes, e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude inteligente. — Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola do canto. Mas tu estarás mais branca com a boca selada pelas pedras lisas. E sei que terei o amor e o pão e a água e o sangue e as palavras e os frutos. Mas tu, ó rosa fria, ó odre das vinhas antigas e limpas? Do tempo novo espero o sinal ardente e incorrupto, mas levo os dedos ao teu nome prolongado, ó cerrada mãe, levo os dedos vazios — e a tua morte cresce por eles totalmente.
IV Mal se empina a cabra com as patas traseiras na lua, e o cheiro a trevo no focinho puro, e os cornos no ar arremetendo aos astros. E sobre a solidão das casas, entre o sono e o vinho derramado, curvam-se os ágeis cascos de demónio. E o sonâmbulo desejo do coração absorve tudo ao alto numa vertigem tenebrosa. E quando o esplendor invade as bagas venenosas, o silêncio dos dedos docemente o procura. Então as veias mudam a conjunção suspensa do sangue que ascende e que mergulha. Uma estreia feroz queima a fronte de apolo. E as mandíbulas, os pés, a invenção, a loucura, o sono secreto, a beleza terrível espalham sobre nós a branca luz violenta. Um dia começa a alma, e um caçador atinge a cabra fremente no flanco com uma flecha viva. Cantamos devagar o espírito dos livros. E brilha toda a noite, no sangue espesso e maduro do bicho maravilhoso, o dardo do caçador. Um dia começa o amor louco. Porque a cabra é uma coisa materna e antiga. À noite o trigo irrompe da terra. E sob a nossa boca roda a imagem do mundo, rosácea abstracta, ou rosa aglomerada e ardente. Na penumbra das casas as mulheres respiram — surdas, lentas, cegas de beleza. E no sono as palavras são mortalmente confusas. — Mal se levanta a cabra sobre as letras puras, sobre a forma árdua e amarga da melancolia.
V Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa, formosura inclinada sobre a cinza descerrada e o frio dos retratos. Espero que a seiva ascenda a um puro gosto de reaver tua grave cabeça de mãe com platina entre a aragem. Que se inspire na seiva o vermelho de uma face adormecendo no vinho, acordando para o início das primaveras. Peço que os dedos não esqueçam o pão e a tristeza e a boca vibre como um pensamento na substância de um instante carnal, irremovível. E se morrer é a alta vocação das manhãs marcadas pelas uvas — peço, mãe um dia composta sobre a veemente confusão das forças e dos números, que resguardes entre as descuidadas dobras de pedra o fulgor de onde plátanos e aves recebiam a doce e dolorosa vida da beleza. Rente ao tempo que nos cobria de previsão e silêncio, arrefecem os sentidos sobre o teu rosto selado. Pequena e imensa coisa no alto das águas, no fundo de sementes desmemoriadas — mãe engolfada no leite renascente, para ti se elevam os lábios tocados pelo sumo incompleto, o sono da próxima incontida primavera. Tudo o que se diga está vivo na frescura de um coração novo. Por isso o ouro, o inseguro passo de um dia que traz a morte em sua intensa juventude, roça a forma do espírito em que tu mesma te buscavas — quente e rápida em nós, no equilibrado idioma de fomes e sorrisos que nunca se decifram. Num lugar onde a sombra é gémea do fogo irrevelado, não há morte que se não destine a um escarlate
de rosa. Nunca se adormece que não seja para ler um estuante anúncio nas pálpebras que se apagam. Nasces da melancolia, e arrebatas-te. Como os bichos nascem da matéria dos seus dias, como os frutos vacilam no bojo das auroras e se embebem até que o tempo os faz violentos, cerrados, palpáveis.
VI Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo onde rolam os cálices transparentes da primavera de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras ou descubro o teu nome como uma paisagem, só há grutas virgens onde os candelabros se apagam. Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me, vertiginosa e triste, através das palavras. No outro lado da mesa estás inteiramente morta. Parece que sorris de leve no meu pensamento, mas sei que é apenas a solidão espantada. Como pudeste morrer tão violenta e fria, quando os meus dedos começavam a agarrar-te a cabeça inclinada dentro das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos onde procuro afogar-me como uma criança nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras, perdidos um no outro, sorrindo como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna. Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa da cidade da minha infância. Tu desapareceste. É um erro das musas distraídas. Não há guindaste que te levante do coração das águas onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível, ou recolhida na tua carne rápida, ou ligeiramente tocada pelo ardor de uma existência pura. Conheço grandes casas onde não habitas, flores que cheiro, tarefas silenciosas que cumpro humildemente, e luzes, instrumentos de música, laranjas que devoro sentindo o gosto da vida desde a garganta às mais finas raízes das vísceras. Tu desapareceste. Imagino que seria possível tocares porventura a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente que eu estremecesse nas traves da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus ombros até que as lágrimas na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse perdido entre os pilares e os túneis das cidades ressoantes. Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira, e os olhos delicados de mulher restituída, e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado — talvez pudesses salvar-me como uma palavra pode salvar um pensamento, ou uma breve música pode acordar do abismo inocente da noite um instrumento encerrado nas cordas extenuadas.
ELEGIA MÚLTIPLA
I Como se poderia desfazer em mim tua nobre cabeça, essa torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo brilhante gelo nocturno? É pela cabeça que os mortos maravilhosamente pesam no nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais temos medo de sorrir, as armas lavradas, as liras que estremecem e pendem sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre e vê sua confusa e grave geografia, as fontes livres de onde os pensamentos crescem como a folhagem iluminada das antigas idades do ouro. Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo, procuro colocar-me num ponto irradiante da terra, olhar de frente com toda a inspiração do meu passado, e estar à altura dos mortos, na zona esplêndida e vasta da sua nobreza — receber essa espécie de força indestrutível que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias, de que as rosas bebem o jeito aéreo e a boca a delicadeza misteriosa. Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande arco das eras com os fogos rápidos presos como campânulas, e a fixa vontade do homem ardendo e gelando no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se que as mãos corram, deslumbradas da sua grande luz nas águas. Existe um nome suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça dos mortos — a tua cabeça antiga como o verde nas pedras ou o movimento das corolas frias, essa cabeça sumptuosa rodeada de estreitas víboras — sobe do meu coração até que a minha cabeça seja a possessiva, doce cabeça dos mortos.
II
Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta formosura do ouro. E se acordo e me agito, minha mão entreabre o subtil arbusto de fogo — e eu estou imensamente vivo. Se com a neve e o mosto dei ao tempo a medida secreta, na minha vida tumultuam os rostos mais antigos. Não sei o que é a morte. Enchia com meu desejo o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore abismada e cantante. E a beleza é uma chama solitária, um dardo que atravessa o sono doloroso. Nada sei dos mortos. Deixaram em mim os pés sombrios, um súbito fulgor de ausência. — De mim, vivo e ofegante, sei uma flor de coral: delicada, vermelha. Porque morrem assim no interior do vinho quando se extasiam e cantam? Porque escurecem os ombros onde as videiras se derramavam e subiam as escadas? Um a um vão nascendo meus pensamentos nocturnos, e eu digo: porque morrem os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam sobre a mesa como seres imortais? E agora é a minha vida que assombrada se fecha. A vida funda e selvagem. Porque um dia, como se apaga a labareda de um cacho. o brilho se apagará onde estava a minha letra. Dançarei uma só vez em redor da taça, festejando a última estação. Hoje nada sei. Correm em mim os mortos, como água — com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência. E digo: não refulgia a carne quando a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão? Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento? Ei-los em mim, os mortos longos, e digo: se havia tanto ouro dentro e fora deles, porque se extinguiram? Nada sei dos mortos. Um dia hei-de ser como espuma absorta em volta de um coração, e dele se erguerá uma onda de púrpura,
um amor terrível. — Porque era de ouro firme, e ressoava.
III Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. O orvalho da muita manhã. Corria de noite, como no meio da alegria, pelo orvalho parado da noite. Luzia no orvalho. Levava uma flecha pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado loucamente por um caçador de que nada se sabia. E era pelo orvalho dentro. Brilhava. Não havia animal que no seu pêlo brilhasse assim na morte, batendo nas ervas extasiadas por uma morte tão bela. Porque as ervas têm pálpebras abertas sobre estas imagens tremendamente puras. Pelo orvalho dentro. De dia. De noite. A sua cara batia nas candeias. Batia nas coisas gerais da manhã. Havia um homem que ia admiravelmente perseguido. Tomava alegria no pensamento do orvalho. Corria. Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas. Que têm os olhos cegos como sangue. Este corria, assombrado. Os mortos devem ser puros. Ouvi dizer que respiram. Correm pelo orvalho dentro, e depois estendem-se. Ajudam os vivos. São doces equivalências, luzes, ideias puras. Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar — a morte é passar, como rompendo uma palavra, através da porta, para uma nova palavra. E vejo o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição através das portas de outros corpos. Como uma qualidade ardente de uma coisa para outra coisa, como os dedos passam fogo à criação inteira, e o pensamento pára e escurece
— como no meio do orvalho o amor é total. Havia um homem que ficou deitado com uma flecha na fantasia. A sua água era antiga. Estava tão morto que vivia unicamente. Dentro dele batiam as portas, e ele corria pelas portas dentro, de dia, de noite. Passava para todos os corpos. Como em alegria, batia nos olhos das ervas que fixam estas coisas puras. Renascia.
IV A colher de súbito cai no silêncio da língua. Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos puros. E sei que não é uma flor aberta ou a noite cercada de águas extremas. Paro por esta monstruosa, ingénua força da morte. — A colher envolvida pelo silêncio extenuante da minha boca, da minha vida. Que faço? Bem sei como se alimenta um homem, e tímido e arguto alimenta a sua irónica inspiração solar, a inocente astronomia de ossos e estrelas, veias e flores e órgãos genitais — para que tudo se construa docemente, com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados, sorrindo fixamente como as crianças na lírica, tenebrosa densidade da carne. A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo, manso, ponderado — uma beleza evocativa e confusa. Eis: sou um homem que instante a instante ganhava um sabor de perene sentido, uma duração de sombra extasiada, laboriosa, inclinada no grave centro da primavera — a sombra das minhas mãos. A colher subia como um instrumento da criação, firme subia nos dedos como que invocando, unindo os fragmentos do espírito, a mímica na sugerida integridade da pessoa colocada na doce integridade do tempo. Mas paro. Cai no silêncio da língua a colher que era — quem sabe? — música, intimidade, sinal fortuito de uma essência, um génio interior. O puro roer devagar roerá a colher na mão e a boca na colher, e no sangue imóvel o pudor da imagem onde
coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam na assimetria festiva e sagaz das invenções. — Cai no silêncio da língua a colher tão brusca.
V Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam sobre a minha vida. Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites do mundo. Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção devastadora. Oh feroz mundo puro, oh vida incomparável. Cantam, cantam. Abro os olhos debaixo das águas silenciosas, e vejo que a minha lembrança é mais remota que tudo. Cantam friamente. Não posso ouvir cantar. Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê como bebe no anónimo da estação. O sangue escorrega por ti quando é altura de rosas. Ouve: não te maravilha a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas? — Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico de um nome extremo. Não cantem, não floresçam. Não posso sentir encher-se assim a vida como uma canção fria e uma roseira tão espalhada em mim. Pode ser que fosse ilesa esta época do ano, e minha existência de repente se tomasse por todo esse fervor. Vejo minha ardente agudeza escoar-se até à maturidade confluente de um minuto de verão. — Estaria eu completo para a morte? Não, não cantem essa lembrança de tudo. Nem roseira na sangrenta delicadeza da carne, nem o verão com seus símbolos de feroz plenitude. Gostaria de pensar cada um dos meus dedos, esta cítara descida dentro da obra. Toda a tristeza como uma vida admirável enchendo a eternidade. As frias canções despovoam-me, e as roseiras tornam desavindas as rosas recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme alui-se-me o uno sangue. Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio do que se não sabe. Não se canta e floresce. Ninguém amadurece no meio da sua vida. Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo, e a alta tristeza purifica os dedos. Porque um homem não é uma canção fria ou uma roseira. Não é um fruto como entre folhas inspiradoras. Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha sobre ele, mas onde o corpo arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro como um sacrifício antigo. — Por sobre frias canções e roseiras aterradoras, minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso de uma grande vida. Pode ser que tudo esteja bem no plural de um mundo intenso. Mas o amor é outro poder, a carne vive de sua absorta permanência. Esta vida de que falo não se escoa, não alimenta os superlativos diários. É única e perene sobre a escondida fluência dos movimentos. — Uma roseira, mesmo incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha. Por detrás da noite de pendidas rosas, a carne é triste e perfeita como um livro.
VI
São claras as crianças como candeias sem vento, seu coração quebra o mundo cegamente. E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, pelo terror dos dias, quando em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param junto à eternidade. As crianças criam. São esses os espaços onde nascem as suas árvores. Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo, as crianças esmigalham-se. Seu sangue evoca a tristeza, tristeza, a tristeza primordial. — Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram pelos séculos entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes e o olhar infinito de quem não possui alma. Seu grito remonta ao verão. Inspira-as a velocidade da terra. As crianças enlouquecem em coisas de poesia. Escutai um instante como ficam presas no alto desse grito, como a eternidade as acolhe enquanto gritam e gritam. — É-lhes dado o pequeno tempo de um sono de onde saem assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta. Dali a vida de um poema tira por um lado apaixonadamente; por outro, purificação. Nelas se festeja a imensidade dos meses, a melancolia, a silenciosa pureza do mundo. Quem há-de pensar para as crianças, sem ter espinhos nas vozes desertas até ao fundo? É vendo-se aos espelhos, no seguimento da noite, que as crianças aparecem com o horror da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes crianças vigiadoras — cantando, pensando, dormindo loucamente.
Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas que a vingança não afaste. As crianças invasoras percorrem os nomes — enchem de uma fria loucura inteligente as raízes e as folhas da garganta. Aprendemos com elas os corredores do ar, a iluminação, o mistério da carne. Partem depois, sangrentas, inomináveis. Partem de noite noite — extremas e únicas. — E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente. Loucamente.
VII Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti, amanhã morrerei. Talvez eu comece a morrer na tua mão direita, alterosa e quente na minha mão sufocada. Agora mesmo na europa começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida percorrida por um álcool penetrante, é a imediata atenção ao misterioso trabalho da idade. Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais sombrios da carne, sobre um vasto segredo. Será apenas isto, um ponto móvel da eternidade, isto — a sufocação veloz e profunda da vida inteira na minha garganta? E depois o acender das luzes, bruxelas como uma câmara de archotes e ao alto as ameias enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande memória aquilo que acaba na violência triste do poema. Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia partem rios. Por detrás das cortinas, despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho vinte e nove bocas urdindo a falsa doçura da confusão. Os países constroem a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante a loucura masculina da minha vida. Pensa um pouco na beleza ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível das pessoas ou o seu respirar que arde e brilha e se apaga à superfície das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso rapidíssimo que jamais desaparece do silêncio, na candeia que cobre com agulhas de ouro os escombros dos lírios. E por cima de tudo estende a tua pequena mão eterna. Cai tu própria na treva quente da minha cega mão masculina de vinte e nove anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta cheia de sangue actual — amanhã morrerei.
Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas velozes, pedras que pareciam imortais. Eram casas que se levantavam sobre o meu coração. Vi que tomavam animais feridos, flores imaturas, objectos breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam alguma coisa eterna. Era gente de vinte e nove anos que se despedia dolorosa pormenorizada violentamente de uma parte da sua carne, a parte mais iluminada da sua carne de vinte e nove anos. Amanhã morrerei.
AS MUSAS CEGAS I Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas. Em noites assim eu extinguiria minha alma cantando humildemente. Fecharia os olhos sob os anéis dos astros, e entre os violinos e os fortes poços da noite descobriria a ardente ideia da minha vida. Em noites assim amaria o fogo da minha idade. Cantaria como um louco este grande silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos e a cândida e ligeira arquitectura de uma vida. Bruxelas com as traves da minha cabeça e uma grinalda de carvões em torno dos testículos de um homem bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro derramando o seu baixo e aéreo sangue, a sua dor, o lírico fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos. Era tão pura a ideia de que o tempo começava depois do verde e fértil e exaltado mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto ardia, a vida esperava com suas torres vibrantes, seus grandes lagos límpidos. E eu adormecia e sonhava um homem em voz alta, um vidro incandescente, uma fina flor vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta a ideia de cantar sem fim, até que a voz consumisse esta garganta sombreada de estreitos vasos puros. — Cantar fixa e fria e intensamente sobre a minha rasa luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios de bruxelas do mundo.
II Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada pelas vozes. E enquanto dorme o leite, a minha casa pousa no silêncio e arde pouco a pouco. No círculo de pétalas veementes cai a cabeça — e as palavras nascem. — Límpidas, amargas. Eis um tempo que começa; este é o tempo. E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas, é o pensamento que verga de flores actuais e frias. A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro. E estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado de seivas, para a noite que estremece fundamente. Melancolia com sua forma severa e arguta, com maçãs dobradas à sombra do rubor. Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando com a primeira música de água. Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído, com esta coroa recente de ideias, esta mão que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa onde o coração se consome devagar. Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera de minúsculas folhas eternas como uma árvore. Degrau a degrau devorei a alegria — eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas desvairadas, entre jarros transbordando húmidos astros. Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer com os olhos queimados pelo poder da lua. Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe procuro no meu silêncio uma outra forma dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é a casa ligeira colocada num espaço de profundo fogo. E apagaram-se as luzes. — Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra, espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora. Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo. E não chames mais por mim, pensamento agachado nas ogivas da noite. É primavera. Arde além rodeada pelo sal, por inúmeras laranjas. Hoje descubro as grandes razões da loucura, os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas. Há lugares onde esperar a primavera como tendo na alma o corpo todo nu. Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego que principia. — É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar.
III Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio poço dos sons. Ela não dormia, estava a meu lado, era uma gruta onde a música um instante se torna imensa. Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês das musas, a penumbra da sua vida estava coberta de ervas puras. Não dormia. Durante o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho onde as brasas da cabeça principiam a girar. Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas. Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento, eu era profundo e fecundo. O sangue passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos ardiam em mim, nessa monstruosa noite da criação. Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar na minha confusão. Eu era um homem e tinha na boca o ofício de sorrir o fluxo encantado das imagens. E tinha as palavras que um homem tem para acender, como fogueiras, nas margens cantantes e frias das águas do mundo. Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas do rosto, minha dor e idade de homem, debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste, e poderoso e vazio como uma guitarra, uma coluna de obscuridade que dormia, que não podia jamais dormir entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite que iria e viria sobre a paisagem de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos e ocos. Às vezes eu levantava um braço que deixava arder ou pensava como era forte a torrente do meu silêncio. Pensava como poderia desfazer-se a carne sem que eu gritasse. A minha voz era esplêndida.
Os mortos poderiam erguer os corpos submersos na grande ideia universal, poderiam ouvir a minha voz tão límpida de terrível alegria. A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam as aves, os montes atingiam as corolas celestes, nunca deixavam de correr as águas que atravessam os povos mais puros do mundo. Era tenebroso e doce que a loucura me viesse deste lugar, que fosse uma árvore sustentando a minha idade. Chegava um dia em que ela devia ser obscura, e o meu coração ressoava. Minha dor de homem de novo se inclinava sobre as formas mudas. Porque a terra trabalhava para acender aquela cidade, porque ela mesma cantaria então, iluminada e humilde debaixo da noite rolante, da estupenda noite inspiradora. Mas somente para mim o vento circulava com seus archotes rápidos rápidos Minha cabeça estremecia contra a almofada de fogo, e o sangue despedaçava as portas, e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se batidos pelos raios. Sabia-se agora como havia razão no oculto movimento da fantasia, como essa força chegava de nada e era força no próprio e puro enigma da minha vida. Porque a obra era então — mais que o mundo e as fontes e os leitos dos poderes — eu, um homem disposto sobre si como a luz se dispõe sobre a luz e as palavras são em si mesmas dispostas no renovo das palavras. Sobre a sombra de um mês confuso e rápido, eu era um homem — e um homem beija a sua própria boca.
IV Mulher, casa e gato. Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça da casa, uma luz violenta. Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia pensa-a, enquanto o gato imagina a elevada casa. Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto, e a casa e o homem que eu vou ser são minuto a minuto mais concretos. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso da mulher da luz. Dentro da casa, o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras. Eu próprio caio na mulher, o gato adormece na palavra, e a mulher toma a palavra do gato no regaço. Eu olho, e a mulher é a palavra. Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne concreta da mulher. A luz ilumina a pedra que está na cabeça da casa, e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra. Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante) a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra. Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra. Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher com seu gato, pedra, peixe, luz e casa. A mulher da palavra. A Palavra. Deito-me e amo a mulher. E amo o amor na mulher. E na palavra, o amor. Amo, com o amor do amor, não só a palavra mas cada coisa que invade cada coisa que invade a palavra. E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente passa a mão da mulher no gato
dentro da casa. No mundo tão concreto.
V Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira e a eternidade das mãos. Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas lâmpadas, todas as coisas. As coisas que são uma só no plural dos nomes. — E nós estamos dentro, subtis, e tensos na música. Esta linguagem era o disposto verão das musas, o meu único verão. A profundidade das águas onde uma mulher mergulha os dedos, e morre. Onde ela ressuscita indefinidamente. — Porque uma mulher toma-me em suas mãos livres e faz de mim um dardo que atira. — Sou amado, multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto — e doado às coisas mínimas. Na treva de uma carne batida como um búzio pelas cítaras, sou uma onda. Escorre minha vida imemorial pelos meandros cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre. E de repente eu sou uma torre queimada pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra. E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra. — Porque me amam até se despedaçarem todas as portas, e por detrás de tudo, num lugar muito puro, todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio. Essa mulher cercou-me com as duas mãos. Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue, acendo-lhe as falangetas, faço um ruído tombado na harmonia das vísceras. Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente. Sou eterno, amado, análogo. Destruo as coisas. Toda a água descendo é fria, fria. Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes sóis que se quebram entre os dedos, as pedras caídas sobre as partes mais trémulas da carne, tudo o que é húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo — não é nada que se diga com um nome. Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo. E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo lírio a lírio todo o sangue interior, e a vida que se toca de uma escoada recordação. Toda a juventude é vingativa. Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura. Um dia acorda com toda a ciência, e canta ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe pelos frutos, ou a lenta iluminação da morte como espírito nas paisagens de uma inspiração. A mulher pega nessa pedra tão jovem, e atira-a para o espaço. Sou amado. — E é uma pedra celeste. Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se desse quente silêncio. Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive. Depois levanta-se com os olhos imensos e incendeia as casas, grita abertamente as giestas, aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado. Amam-me, multiplicam-me. Só assim eu sou eterno.
VI É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto à terra nocturna. Junto à terra transfigurada. Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo sem fim circunda suas raízes leves. É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina os meus espinhos frios, a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna. Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, bate os seus martelos contra um milhão de estrelas. É uma coisa estupenda a primavera que trabalha nas caveiras dos cavalos enterrados. E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. Inspiro-me na primavera com suas grutas de água atenta, e amo a loucura — a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror. Tenho medo de erguer a voz mais alto que o meu coração onde uma candeia concentra um grande silêncio. A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. Que a tristeza me ajude, que me ajudem os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, todos os mortos, todos os que amam entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas. Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — e a obra está nas mãos. Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, fundo-me no verbo interior da primavera como o vermelho se funde na flor futura. Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. Cantavas o que já se não quebra com o uso das vozes. Porque tu eras a minha água salgada. Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam e a rutilação ascende pelas veias. Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. Primavera, como cresces. Desespero ou alegria, como correm nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, evocar tuas colinas de sal, mistério. Tudo em volta da primavera e da noite com uma porta no coração para passar num tremendo silêncio. Ressuscitar uma vez com a cara extrema junto a líquenes inocentes. Entre os meses saber de um só que pede a mudez aterradora. A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras evaporam-se, reaparecem em espírito mastigando giestas. Primavera é uma palavra numa língua demasiado estrangeira. Uma coisa enorme, sem música. Falo tão devagar que mal distingo a noite sobre a terra da minha garganta onde os animais passam lentamente inspirados. Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes, e o sangue alimenta a loucura devagar, devagar — como quem ressuscita.
VII Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar. Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois, ressoando violentamente pelos corredores e paredes e pátios desta própria casa que eu sou. Que eu serei até não sei quando. É uma doce pancada à porta, alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Uma pancada breve, breve — e eu estremeço como um archote. Eu diria que cantam, depois de baterem, que a noite se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Escuta: que a noite vagarosamente se queima como a minha face. Essa criança tem boca, há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Um novo instrumento, uma taça situou-se na terra, e há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia, uma flor, uma pequena lira, podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo — um novo instrumento rodeado pelas campânulas inclinadas, por ligeiras pedras húmidas, pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo as grandes cabeças sonhadoras. Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva. Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me tantas vezes dos mistérios dessa porta. Porque então é muito estreita com seus espelhos detrás, com o vestíbulo frio. Mas é tão belo uma criança ainda enevoada, uma criança que ascende como uma grande música desta rede de ossos, deste espinho do sexo, da confusa pungência, escuta: da pungente confusão de um homem restrito com a sua vida tão lenta. Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos. Às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens, e as virilhas em chama. É a minha vida. Mas essa criança
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta o meu coração. No outono eu olhava as águas lentas, ou as pistas deixadas na neve de fevereiro, ou a cor feroz, ou a arcada do céu com um silêncio completo. Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se a ciência na minha carne atónita. Escuta: cada vez a minha vida é mais hermética. Essa criança tem os pés na minha boca dolorosa. Se ela um dia adormecer com cerejas junto ao pequeno respirar, e sonhar estes imensos arcos que os séculos vão colocando sob os astros — e se de tudo a sua cabeça estremecer como numa loucura, com altos picos em volta, com enormes faróis acendendo e apagando — escuta: se essa criança imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente para que ela invente o seu próprio rio sem nome — será ainda que do meu sangue se erguem finas raízes, e o tenebroso tumulto das minhas sombras está no fundo, no fundo da sua ingénua vida, da sua terrível vida sem remédio. Se ela morrer, escuta, será que a minha boca diz lá em baixo essas majestosas e violentas palavras dos poemas. Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Ela dorme. Escuta: a sua vida estala como uma brasa, a sua vida deslumbrante estala e aumenta. Se um dia os archotes incendiarem essa boca, e as faúlhas cercarem o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta: a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.
VIII Ingoro quem dorme, a minha boca ressoa. Despedir-se dos meses é uma nova tarefa, um ofício inquieto. Às vezes na noite vejo as casas pequenas, as rosas que se voltam para o subterrâneo e subtil ruído da seiva. Penso nas mulheres de pálpebras descidas, no seu espírito expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem silenciosamente dentro da sua inocência. Às vezes na noite ainda jovem, mas que principia a engolfar-se no seu doce hermetismo — tantas vezes penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde se encontra alguém com as cegas mãos escorrendo para o fundo o sangue de uma imensa inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses é um ofício inquieto. As luzes, as mesas, as armas antigas, os jardins debruçados nas violas paradas. Não sei o que há tão veloz e tão firme na base de um homem. Às vezes vejo que é uma invencível doçura, um espanto colorido em redor de uma casa, uma raiva generosa nas mãos iluminadas. Mas no fundo, no fundo, é a boca desmanchada que sangra devagar. Ignoro quem dorme, é um ofício novo e louco. uma tarefa perene do coração sobre quanto se ignora. Minha boca ressoa. Os próprios meses ressoam como espelhos ardentes, como telhados, cúpulas, livros, como objectos ardentes. Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre uma vida eu perguntaria se era a força de uma vida. Porque os ossos e as veias vão de corpo para corpo, e despedir-se de tudo é um ofício inquieto. Tudo isto é uma musa, um poder, uma pungente sabedoria. As rosas que há nas palavras, as palavras que estão no alto como fungos luminosos, as palavras que gravitam em baixo
no instável momento que avança e recua ao pé da eternidade — as mãos rodeando uma lâmpada, essas mãos docemente cobertas de sangue — tudo isso disposto para a inquietação de um ofício. Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco. Partem-se, aqui e ali, alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer do princípio ao fim. É instantâneo, eterno. Mas é o homem que recebe a inspiração violenta. Ignoro quem dorme, a minha boca está no fundo, móvel, coberta de sangue, a minha boca ressoa como as cavernas de um barco, a minha boca da minha vida é um ofício. O meu ofício de despedir-me um pouco engolfado na loucura. A minha tarefa inquieta de pôr a vida na sua oculta loucura. Tudo isso canta nas galerias dos meses ornados de delgados mastros acesos. E despedir-se dia a dia desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas é um mester ainda jovem, algo que se aprende lentamente com as mãos e a garganta e a testa e o marulho das águas que correm profundamente em lugares inacessíveis, sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça coroada de violinos. É um violento ofício, e no fundo desse ofício violento e puro, a boca está coberta de um perturbado sangue masculino.
NARRAÇÃO DE UM HOMEM EM MAIO Estou deitado no nome: maio, e sou uma pessoa que saiu violenta e violentamente para o campo. Um homem deitado entre os malmequeres rotativos do mês atravessado pelo movimento. É a noite aproximada com o livro dentro. Deitado sobre bocados de estrelas no pensamento. Era a casa absorvida na manhã embatente. Livro da poesia arrebatada. Poesia da mulher emparedada no amor e o homem emparedado na destruição do amor. É agora o leitor com a atenção corrupta sobre o livro. O livro que arde nos ossos do leitor afogado no poema arrebatado. Estou estendido como autor na ligeira palavra que a noite molha e os ventos sopram como se sopra uma brasa. Um homem que saiu de casa, com toda a magnífica violência do amor. É o tempo revelador. Agora inteligente deste lado, contra o lado exemplar de maio aglomerado Espécie de primavera comburente. A dor total. O livro. O pensamento do amor. A experiência. E a vida ardente do autor. Deitei-me também no campo de outras coisas. Com discurso. Com rigoroso segredo. Vi o caçador levantar o arco-íris e atirar, fechada, a morte ao cabrito primaveril. E tudo calei como experiência de um sono inspirado. Vi a ressurreição, maio infestado. Ouvi passar o ciclista da primavera
sobre o ruído da ressurreição. Conheci a existência do roubador, o ciclista que penetra no exemplo da fábula. Estou deitado em meio campo de uma espécie de despedida. Meio campo de maio, e outro meio de pessoalíssima vida. São coisas que já não estão mais do que na maturidade da idade. Fiz comércio. Indústria. Dor. A garganta lavrada pelo canto. Ia a bicicleta com o seu poeta que punha a mão no poema da bicicleta. E iam todos — poema, bicicleta, poeta e mão — por sobre o coração da terra e a ressurreição da primavera. Ganhei a minha idade concluída. Cacei. Ou plantei. Ou cortei. A vida vida. Havia o movimento com a sua bicicleta e a canção com o seu poeta. A vida merecida. Vejo ervas movimentadas e estreias paradas. E a consumação das coisas universais. Geram-se de novo as coisas universais. A pureza. A natureza da pureza. A própria natureza das coisas universais. Da dor sei o amor. O amor do ardor. Sei mais do que posso saber da matéria do amor. Fico deitado no campo revolucionário: a paciente brutalidade da primavera é como a brutalidade delicada da paixão. O violentamente demorado amor, e a sua ressurreição. Já estivera deitado ao lado das mulheres. Elas paravam completamente como caçadores ou bichos fascinados. Não tinham pensamento nem idade. Era a força do corpo. O movimento. Estou neste lado desse lado do corpo. Sei o poema
do conhecimento informulado. Respira monotonamente uma estrela entre os ossos. Estrela levemente destruída. Roída pelo louco rato lírico da idade. Estou no pensamento. Parado no movimento de uma vida. Mexo a boca, mexo os dedos, mexo a ideia da experiência. Não mexo no arrependimento. Pois o corpo é interno e eterno do seu corpo. Não tenho inocência, mas o dom de toda uma inocência. E lentidão ou harmonia. Poesia sem perdão ou esquecimento. Idade de poesia. 1953-60
POEMACTO I Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar. Uma vara canta branco. Uma cidade canta luzes. Penso agora que é profundo encontrar as mãos. Encontrar instrumentos dentro da angústia: clavicórdios e liras ou alaúdes intencionados. Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro. Cantar o sangrento nevoeiro. O amor atravessado por um dardo que estremece o homem até às bases. Cantar o nosso próprio dardo atirado ao bicho que atravessa o mundo. Ao nome que sangra. Que vai sangrando e deixando um rastro pela culminante noite fora. Isso é o nome do amor que é o nome do canto. Canto na solidão. O amor obsessivo. A obsessiva solidão cantante. Deito-me, e é enorme. É enorme levantar-se, cegar, cantar. Ter as mãos como o nevoeiro a arder. As casas são fabulosas, quando digo: casas. São fabulosas as mulheres, se comovido digo: as mulheres. As cortinas ao cimo nas janelas faíscam como relâmpagos. Eu vivo cantando as mulheres incendiárias e a imensa solidão verídica como um copo. Porque um copo canta na minha boca. Canta a bebida em mim. Veridicamente, eu canto no mundo. Que falem depressa. Estendam-se no meu pensamento. Mergulhem a voz na minha treva como uma garganta. Porque eu tanto desejaria acordar
dentro da vossa voz na minha boca. Agora sei que as estrelas são habitadas. Vossa existência dura e quente é a massa de uma estrela. Porque essa estreia canta no sítio onde vai ser a minha vida. Queimais as vossas noites em honra do meu amor. O amor é forte. Que coisa forte que é a loucura. Porque a loucura canta minada de portas. Nós saímos pelas portas, nós entramos para o interior da loucura. As cadeiras cantam os que estão sentados. Cantam os espelhos a mocidade adjectiva dos que se olham. Estou inquieto e cego. Canto. A morte canta-me ao fundo. É um canto absoluto. Imagino o meu corpo, uma colina. Meu corpo escada de estrela. Nata. Flecha. Objecto cantante. Corpo com sua morte que canta. Imagino uma colina com vozes. Uma escada com canto de estrela. Imagino essa espessa nata cantante. Uma que canta flecha. Imagino a minha voz total da morte. Porque tudo canta e cantar é enorme. Imagino a delicadeza. A subtileza. O toque quase aéreo, quase aereamente brutal. Ser tocado pelas vozes como ser ferido pelos dedos, pelos rudes cravos da planície. Ser acordado, acordado. Porque cantar é um subterrâneo. Depois é um pátio. Imagino que as vozes são escadas. Vozes para atingir o canto. O canto é o meu corpo purificado. Porque o meu corpo tem uma sua morte tocada incendiariamente. A morte — diz o canto — é o amor enorme.
É enorme estar cego. Canta o meu grande corpo cego. Reluzir ao alto pelo silêncio dentro. O silêncio canta alojado na morte. Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
II Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. Falo, penso. Sonho sobre os tremendos ossos dos pés. É sempre outra coisa, uma só coisa coberta de nomes. E a morte passa de boca em boca com a leve saliva, com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. As pessoas imaginam seus próprios campos de rosas. E às vezes estou na frente dos campos como se morresse; outras, como se agora somente eu pudesse acordar. Por vezes tudo se ilumina. Por vezes sangra e canta. Eu digo que ninguém se perdoa no tempo. Que a loucura tem espinhos como uma garganta. Eu digo: roda ao longe o outono, e o que é o outono? As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento. Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas. — Era uma casa — como direi? — absoluta. Eu jogo, eu juro. Era uma casinfância. Sei como era uma casa louca. Eu metia as mãos na água: adormecia, relembrava. Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade. Apalpo agora o girar das brutais, líricas rodas da vida. Há no meu esquecimento, ou na lembrança total das coisas, uma rosa como uma alta cabeça, um peixe como um movimento
rápido e severo. Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada. Há copos, garfos inebriados dentro de mim. — Porque o amor das coisas no seu tempo futuro é terrivelmente profundo, é suave, devastador. As cadeiras ardiam nos lugares. Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento como seres pasmados. Às vezes riam alto. Teciam-se em seu escuro terrífico. A menstruação sonhava podre dentro delas, à boca da noite. Cantava muito baixo. Parecia fluir. Rodear as mesas, as penumbras fulminadas. Chovia nas noites terrestres. Eu quero gritar paralém da loucura terrestre. — Era húmido, destilado, inspirado. Havia rigor. Oh, exemplo extremo. Havia uma essência de oficina. Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras, com suas maçãs centrípetas e as uvas pendidas sobre a maturidade. Havia a magnólia quente de um gato. Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura. Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa. As mãos tocavam por cima do ardor a carne como um pedaço extasiado. Era uma casabsoluta — como direi? — um sentimento onde algumas pessoas morreriam. Demência para sorrir elevadamente. Ter amoras, folhas verdes, espinhos com pequena treva por todos os cantos. Nome no espírito como uma rosapeixe. — Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores. Porque havia escadas e mulheres que paravam minadas de inteligência. O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar. O leite cantante. Eu agora mergulho e ascendo como um copo. Trago para cima essa imagem de água interna. — Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema. Ou o poema subindo pela caneta, atravessando seu próprio impulso, poema regressando. Tudo se levanta como um cravo, uma faca levantada. Tudo morre o seu nome noutro nome. Poema não saindo do poder da loucura. Poema como base inconcreta de criação. Ah, pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade. Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção. Com alguma ironia furibunda. Sou uma devastação inteligente. Com malmequeres fabulosos. Ouro por cima. A madrugada ou a noite triste tocadas em trompete. Sou alguma coisa audível, sensível. Um movimento. Cadeira congeminando-se na bacia, feita o sentar-se. Ou flores bebendo a jarra. O silêncio estrutural das flores. E a mesa por baixo. A sonhar.
III O actor acende a boca. Depois, os cabelos. Finge as suas caras nas poças interiores. O actor põe e tira a cabeça de búfalo. De veado. De rinoceronte. Põe flores nos cornos. Ninguém ama tão desalmadamente como o actor. O actor acende os pés e as mãos. Fala devagar. Parece que se difunde aos bocados. Bocado estrela. Bocado janela para fora. Outro bocado gruta para dentro. O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano. O actor estala como sal queimado. O que rutila, o que arde destacadamente na noite, é o actor, com uma voz pura monotonamente batida pela solidão universal. O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa, a subtileza da forma, e precipita a verdade. De um lado extrai a maçã com sua divagação de maçã. Fabrica peixes mergulhados na própria labareda de peixes. Porque o actor está como a maçã. O actor é um peixe. Sorri assim o actor contra a face de Deus. Ornamenta Deus com simplicidades silvestres. O actor que subtrai Deus de Deus, e dá velocidade aos lugares aéreos. Porque o actor é uma astronave que atravessa a distância de Deus. Embrulha. Desvela. O actor diz uma palavra inaudível. Reduz a humidade e o calor da terra a confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro. O actor acende o livro. Levita pelos campos como a dura água do dia. O actor é tremendo. Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor. Como a unidade do actor. O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo. E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo. É um nome que provém ultimamente do Nome. Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece. O actor é o grande Nome cheio de holofotes. O nome que cega. Que sangra. Que é o sangue. Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia. Corpo que treme de melodia. Ninguém ama tão corporalmente como o actor. Como o corpo do actor. Porque o talento é transformação. O actor transforma a própria acção da transformação. Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se. O actor cresce no seu acto. Faz crescer o acto. O actor actifica-se. É enorme o actor com sua ossada de base, com suas tantas janelas, as ruas — o actor com a emotiva publicidade. Ninguém ama tão publicamente como o actor. Como o secreto actor. Em estado de graça. Em compacto estado de pureza. O actor ama em acção de estrela. Acção de mímica. O actor é um tenebroso recolhimento de onde brota a pantomima. O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas. O actor vê fulminantemente como é puro. Ninguém ama o teatro essencial como o actor. Como a essência do amor do actor. O teatro geral. O actor em estado geral de graça.
IV As vacas dormem, as estrelas são truculentas, a inteligência é cruel. Eu abro para o lado dos campos. Vejo como estou minado por esse puro movimento de inteligência. Porque olho, rodo nos gonzos como para a felicidade. Mais levantadas são as arbitrárias ervas do que as estrelas. Tudo dorme nas vacas. Oh violenta inteligência onde as coisas levitam preciosamente. O campo bate contra mim, no ar onde elas dormem — vacas truculentas, estrelas apaziguadas estrelas — e a inteligência, afinal selvajaria celeste sobre a minha respiração. Eu penso mudar estes campos deitados, criar um nome para as coisas. Onde era estábulo, na doce morfologia, fazer com que as estrelas mugissem e as poeiras ressuscitassem. Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas, que minha inteligência se torne terrífica. Unir a ferocidade da noite ao inebriado movimento da terra. Posso mudar a arquitectura de uma palavra. Fazer explodir o descido coração das coisas. Posso meter um nome na intimidade de uma coisa e recomeçar o talento de existir. Meto na palavra o coração carregado de uma coisa. Eu posso modificar-me. Ser mais alto que a corrupção. Campos abanados pelo silêncio. Alguém como eu mergulhando no que é o obscuro das vacas dormindo. Estrelas giradas, de repente mortas sobre mim. Penso alterar tudo, recuperar agora as colinas do mundo. Falando de amor, eu falo do génio destruidor. Falo que é preciso criar a velocidade das coisas. Que é preciso caçar flores, golpear estrelas,
meter o sono nas vacas, desentranhar-lhes o sono, dar o sono às estrelas. Enlouquecer. Que é preciso recriar o criar, meu Deus, ser truculento. Ser simples e não o ser. Abandonar os campos, rodopiar a inteligência, a crueldade. Abro a porta para não esquecer esta absurda tarefa. Esta tão particular necessidade. Porque agora deixei totalmente de ser puro. Levanto-me para dar de comer quentes estrelas às vacas. Sou tão puro, meu Deus, tão truculento. É preciso principiar. Digo baixo o nome. Corto os pés das estrelas. Deixá-las na sua seiva estremecente. Digo baixo que é talento envenená-las. Minha alegria furibunda é a pureza do mundo. E é tão belo agarrar com os ossos que há dentro das mãos na ponta de um nome, e desdobrá-lo. Arrancar essa alma apertada. Porque eu sei o estilo de uma alma precisamente original. Corto as estrelas das vacas. Trago candeias para os campos extraordinários. Porque eu bato na porta com meu júbilo furioso. O amor acumula-se. É para dar o ardor em doce dissipação. Deus não sabe e sorri, esmigalhado contra o muro humano. Respiro, respiro. As coisas respiram. Esta oferta masculina vocifera na treva. Criar é delicado. Criar é uma grande brutalidade. Porque eu sou feliz. Durmo na obra. Só eu sei que a loucura minou este ser inexplicável que me estende nas coisas. A loucura entrou em cada osso, e os campos são o meu espelho.
Esta imagem perfeita arromba os espelhos. Os nomes são loucos, são verdadeiros.
V As barcas gritam sobre as águas. Eu respiro nas quilhas. Atravesso o amor, respirando. Como se o pensamento se rompesse com as estrelas brutas. Encosto a cara às barcas doces. Barcas maciças que gemem com as pontas da água. Encosto-me à dureza geral. Ao sofrimento, à ideia geral das barcas. Encosto a cara para atravessar o amor. Faço tudo como quem desejasse cantar, colocado nas palavras. Respirando o casco das palavras. Sua esteira embatente. Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas. Colocado no ranger doloroso dos remos, dos lemes das palavras. É o chamado rio tejo pelo amor dentro. Vejo as pontes escorrendo. Ouço os sinos da treva. As cordas esticadas dos peixes que violinam a água. É nas barcas que se atravessa o mundo. As barcas batem, gritam. Minha vida atravessa a cegueira, chega a qualquer lado. Barca alta, noite demente, amor ao meio. Amor absolutamente ao meio. Eu respiro nas quilhas. É forte o cheiro do rio tejo. Como se as barcas trespassassem campos, a ruminação das flores cegas. Se o tejo fosse urtigas. Vacas dormindo. Poças loucas. Como se o tejo fosse o ar. Como se o tejo fosse o interior da terra. O interior da existência de um homem. Tejo quente. Tejo muito frio. Com a cara encostada à água amarela das flores. Aos seixos na manhã. Respirando. Atravessando o amor. Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite. Se me cai a mão, o pé. A atenção na água. Penso: o mundo é húmido. Não sei o que quer dizer. Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa como não saber nada. É ser puro, existir ao cimo. Atravessar tudo na noite despenhada. Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água, da carne. Como para cantar nas barcas. Morrer, reviver nas barcas. As pontes não são o rio. As casas existem nas margens coalhadas. Agora eu penso na solidão do amor. Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar, o que acompanha o amor. Acompanha o amor algum peixe subtil. Uma estranha imagem universal. O amor acompanha o amor. É preciso uma existência de uma dureza lenta. As barcas gritam. A água é geral sobre a cara que respira. Posso falar às mãos. Posso extremamente falar às palavras. É nas palavras que as barcas gemem. Nelas se estabelece o rio. Falo da minha vida quente. Palavras — digo — é tão quente a noite que atravessamos. Barcas quentes. Geral calor no meio da carne. E agora o rio tejo acende-se no meio de muitas palavras. Amor da vida do tejo com a minha grande vida pura. Com meu amor completo como um rio. 1961.
LUGAR
AOS AMIGOS Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, com os livros atrás a arder para toda a eternidade. Não os chamo, e eles voltam-se profundamente dentro do fogo. — Temos um talento doloroso e obscuro. Construímos um lugar de silêncio. De paixão.
PARA O LEITOR LER DE/VAGAR Volto minha existência derredor para. O leitor. As mãos espalmadas. As costas das. Mãos. Leitor: eu sou lento. Esta candeia que rodo amarela por fora, e ardentescura por dentro. Candeia tão baixa-viva Sou lento numa luminosidade como em meio de ilusão. Volto o que é um rosto ou um esquecimento. Uma vida distribuída por solidão. Sou fechado como uma pedra pedríssima. Perdidíssima da boca transacta. Fechado como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una reduzida a. Pedra. Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida a. Um dia de louvor. Proferida lenta. Escutada lenta. — Todo o leitor é de safira, é de. Turquesa. E a vida executada. Devagar. Torna-se a infiltrada cor da. Pedra do leitor. Volto para essa pedra absoluta. Relativa à minha pedra. Minha pedra pensada com a forma de. Uma lenta vida elementar. Leitor acentuado, redobrado leitor moroso. Que entende o relato sem poros, o mês atroz dealbado sobre a pedra sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa. Pelas pálpebras paradas. Pelos cerrados lábios até às raízes. E cai com seus dedos em meus dedos. E espera devagar. Leitor que espera uma flor atravancada, balouçando baixa sobre. Mergulhados filamentos no terror devagar.
Mas que espera. Doce. Contra o hermético movimento do mundo. E que o mundo movimenta contra. As ondas de Deus auxiliado auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas muito lentas, amargas ondas muito. Antigas, ignoradas, corridas. Sobre a primitiva face do poema. Leitor que saberá o que sabe dentro. Do que sabe de mais selado. E esperará dias e anos dobrado, leitor. Varrido pelo movimento dos dias. Contra o movimento nocturno do. Poema devagar. E que espera. E para quem volto. Muitas coisas sobre uma coisa. Volto uma exaltante morte de Deus. Auxiliado auxiliar. O espírito, a pedra. Do poema. Leitor à minha frente. Vindo do mais difícil lado das noites. Ainda tocado e molhado de suas flores aniquiladas. Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso meu sono. A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação. A solidão. Trémula devagar. Leitor: volto para ti. Um livro que vai morrer depressa. Depressa antes. Que a onda venha, a onda alague: A noite caída em cima de teus dedos. De encontro à cor de encontro à. Paragem da cor. Este livro apertado nas estrelas da boca, estrelas. Aderentes fechadas. Por fora leves às vezes, presas. Para eu batê-las durante o tempo. Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso tempo. O tempo leitor de um. Autor. Ou um livro e um Deus com ondas de um mar mais pacientes. — Ondas do que um leitor devagar.
LUGAR I Uma noite encontrei uma pedra oh pedra pedra! verde ou azul, de lado, como se estivesse morta. Encontrei a noite como uma pedra inclinada sobre o meu corpo puro, profundo como um sino. Vi que havia em mim um pensamento inocente, uma pedra quando se entra na noite pelo lado onde há menos gente. Ou era um sino de um futuro maior silêncio, tão grande silêncio para se habitar só em gestos. Aí eu poderia erguer-me na ponta dos pés e ficar para sempre: chama que a noite viesse alimentar com sua própria matéria que se queima. Noite — — lenha para nossa leveza humana. Encontrei uma coisa caída, talvez madura, um pouco metida pela terra dentro. Alguma coisa dessas coisas da imobilidade, objecto executado pelo sono, onde eu passava os dedos apavorados e doces. Som ou degrau que eu beijaria, elevando-se da terra, não como uma árvore ou uma mulher desenvolvida em sua atmosfera de doçura e dolorosa exaltação. Alguma coisa subida de raízes mais milagrosas, que se não exprimia com a brevidade subtil de folhas, ou a quente agudeza de dedos espalhados. Algo não levantado inteiramente da obscuridade de uma vida sepulta, e não jacente por sobre o qual milhares de estrelas rolassem as asas de gelo. Uma coisa numa existência demorada entre o êxtase e a força sombria das estações. Encontrei uma pedra pedra que não era uma colina com o mês de março em volta.
Nem era a boca materna aberta debaixo dos rios lisos. Uma coisa para se encostar a cabeça, oh não para morrer. Para alguém subir e de onde não era possível gritar. Uma pedra sem folhas, um sino sem pensamento. Encontrei algo que não andava pelos montes nem seria atravessado por uma flecha. E não sangrava. Que não se ouvia se cantava. Talvez fosse fria ou vivesse abrasada sobre a ilusão. Era verde na noite quando se vem de longe, ou azul, ou verde pelo milagre que não existe. Ou então era clara de certas flores que se dobram. Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada, no meio de um silêncio global. Encontrei em mim essa clareira desarrumada na seiva, como se um poço distante ressoasse, ou como se os dias se fossem aproximando da minha idade triunfante. e eu me calasse e movesse o rosto aberto pela luz para a abstracta violência da solidão. Encontrei um animai adormecido, uma flor hipnotizada, uma viola ferozmente taciturna. Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era tão escura na infância grande. Encontrei uma verde pedra cravada no mundo das pessoas, à entrada da candura, tão admirável pelo azul da terra dentro. Uma coisa incompreendida no instante de morrer para a frente. Encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse um homem morto entre palavras. Campos de cevada inspirados no fogo que batiam nas costas das minhas mãos, aldeias inteiras cantando sua pureza quase louca. Encontrei depois o lugar onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém que se saiba. Uma pedra pedra seca, uma vida entre muitos dons.
Com as raízes de quem divaga. Uma pedra sem som como quem se move sobre os alimentos. Encontrei como quem arrasta para a noite um símbolo pesado e ardente. Ou a ideia da morte mais leve que o coração sem nada do amor. Se me perguntam, digo: encontrei a lua, o sol. Somente o meu silêncio pensa. — Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira.
II Há sempre uma noite terrível para quem se despede do esquecimento. Para quem sai, ainda louco de sono, do meio de silêncio. Uma noite ingénua para quem canta. Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou que varre as pedras da cabeça. Que mexe na língua a cinza desprendida. E alguém me pede: canta. Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio: canta até te mudares em azul, ou estrela electrocutada, ou em homem nocturno. Eu penso também que cantaria para além das portas até raízes de chuva onde peixes cor de vinho se alimentam de raios, raios límpidos. Até à manhã orçando pedúnculos e gotas ou teias que balançam contra o hálito. Até à noite que retumba sobre as pedreiras. Canta — dizem em mim — até ficares como um dia órfão contornado por todos os estremecimentos. E eu cantarei transformando-me em campo de cinza transtornada. Em dedicatória sangrenta. Há em cada instante uma noite sacrificada ao pavor e à alegria. Embatente com suas morosas trevas. Desde o princípio, uma onda que se abre no corpo, degraus e degraus de uma onda. E alaga as mãos que brilham e brilham. Digo que amaria o interior da minha canção, seus tubos de som quente e soturno. Há uma roda de dedos no ar. A língua flamejante. Noite, uma inextinguível inexprimível noite. Uma noite máxima pelo pensamento. Pela voz entre as águas tão verdes no sono. Antiguidade que se transfigura, ladeada por gestos ocupados no lume.
Pedem tanto a quem ama: pedem o amor. Ainda pedem a solidão e a loucura. Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria. E eles querem dizer: tu darás a tua existência ardida, a pura mortalidade. Às mulheres amadas darei as pedras voantes, uma a uma, os pára-raios altíssimos da voz. As raízes afogadas no nascimento. Darei o sono onde um copo fala fusiforme batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro. Dá-nos tua ardente e sombria transformação. E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes, lentamente uma sobre a outra. Quando se esclarecem as portas que rodam para o lugar da noite. Noite de uma voz humana. De uma acumulação atrasada e sufocante. Há sempre sempre uma ilusão abismada numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo do cruzamento do fogo. Prodígio para as vozes de uma vida repentina. E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama sentam-se e dizem: ama-nos. E ele ama-as. Desaperta uma veia, começa a delirar, vê dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado pela vida quimérica das pedras. Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas. Ele arranca os dedos armados pelo fogo e oferece-os à noite fabulosa. Ilumina de tantos dedos a cândida variedade das mulheres amadas. E se ele acorda, então dizem-lhe que durma e sonhe. E ele morre e passa de um dia para outro. Inspira os dias, leva os dias para o meio da eternidade, e Deus ajuda a amarga beleza desses dias. Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza.
Porque não haverá paz para aquele que ama. Seu ofício é incendiar povoações, roubar e matar, e alegrar o mundo, e aterrorizar, e queimar os lugares reticentes deste mundo. Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio da noite aparecente, votar a vida à interna fonte dos povos. Deve instaurar o corpo e subi-lo, lanço a lanço, cantando leve e profundo. Com as feridas. Com todas as flores hipnotizadas. Deve ser aéreo e implacável. Sobre o sono envolvida pelas gotas abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas pedras. Sobre o interior da respiração com sua massa de apagadas estrelas. Noite alargada e terrível terrível noite para uma voz se libertar. Para uma voz dura, uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída. Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som. E se as mulheres colocam os dedos sobre a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante, ele não deve ser como o maior violino. Ele será o único único violino. Porque nele começará a música dos violinos gerais e acabará a inovação cantada. Porque aquele que ama nasce e morre. Vive nele o fim espalhado da terra.
III As mulheres têm uma assombrada roseira fria espalhada no ventre. Uma quente roseira às vezes, uma planta de treva. Ela sobe dos pés e atravessa a carne quebrada. Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus — e mistura-se nas águas, no sonho da cabeça. As mulheres pensam como uma impensada roseira que pensa rosas. Pensam de espinho para espinho, param de nó em nó. As mulheres dão folhas, recebem um orvalho inocente. Depois sua boca abre-se. Verão, outono, a onda dolorosa e ardente das semanas, passam por cima. As mulheres cantam na sua alegria terrena. Que coisa verdadeira cantam? Elas cantam. São fechadas e doces, mudam de cor, anunciam a felicidade no meio da noite, os dias rutilantes, a graça. Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas e uma suavidade amarga — as mulheres tornam impura e magnífica nossa límpida, estéril vida masculina. Porque as mulheres não pensam: abrem rosas tenebrosas, alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual. São altas essas roseiras de mulheres, inclinadas como sinos, como violinos, dentro do som. Dentro da sua seiva de cinza brilhante. O pão de aveia, as maçãs no cesto, o vinho frio, ou a candeia sobre o silêncio. Ou a minha tarefa sobre o tempo. Ou o meu espírito sobre Deus. Digo: minha vida é para as mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres fundamentais que cantam de encontro aos sinistros muros de Deus. As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram a boca e o ânus e a mão vermelha lavrada sobre o sexo. Espero que o amor enleve a minha melancolia. E flores sazonadas estalem e apodreçam docemente no ar. E a suavidade e a loucura parem em mim, e depois o mundo tenha cidades antigas que ardam na treva sua inocência lenta e sangrenta. Espero tirar de mim o mais veloz apaixonamento e a inteligência mais pura. — Porque as mulheres pensarão folhas e folhas no campo. Pensarão na noite molhada, no dia luzente cheio de raios. Vejo que a morte se inspira na carne que a luz martela de leve. Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura veemente da ilusão, nelas — envoltas pela sua roseira em brasa — vejo os meses que respiram. Os meses fortes e pacientes. Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens. Vejo meu pensamento morrendo na escarpada treva das mulheres. E digo: elas cantam a minha vida. Essas mulheres estranguladas por uma beleza incomparável. Cantam a alegria de tudo, minha alegria por dentro da grande dor masculina. Essas mulheres tornam feliz e extensa a morte da terra. Elas cantam a eternidade. Cantam o sangue de uma terra exaltada.
IV Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente. Onde às vezes param e são morosas por dentro. Há cidades absolutas trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres. Lugares límpidos e depois nocturnos, vistos ao alto como um fogo antigo, ou como um fogo juvenil. Vistos fixamente abaixados nas águas celestes. Há lugares de um esplendor virgem, com mulheres puras cujas mãos estremecem. Mulheres que imaginam num supremo silêncio, elevando-se sobre as pancadas da minha arte interior. Há cidades esquecidas pelas semanas fora. Emoções onde vivo sem orelhas nem dedos. Onde uma paixão bárbara, um amor. Zona que se refere aos meus dons desconhecidos. Há fervorosas e leves cidades sob os arcos pensadores. Para que algumas mulheres sejam cândidas. Para que alguém bata em mim no alto da noite e me diga o terror de semanas desaparecidas. Eu durmo no ar dessas cidades femininas cujos espinhos e sangues me inspiram o fundo da vida. Nelas queimo o mês que me pertence. Olho minha loucura, escada sobre escada. Mulheres que eu amo com um desespero fulminante, a quem beijo os pés supostos entre pensamento e movimento. Cujo nome belo e sufocante digo com terror, com alegria. Em quem toco levemente levemente a boca brutal. Há mulheres que colocam cidades doces e formidáveis no espaço, dentro de ténues pérolas. Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão. Dentro da minha idade, desde a treva, de crime em crime — espero a felicidade de loucas delicadas mulheres. Uma cidade voltada para dentro do génio, aberta como uma boca em cima do som. Com estrelas secas. Parada. Subo as mulheres aos degraus. Seus pedregulhos perante Deus. É a vida futura tocando o sangue de um amargo delírio. Olho de cima a beleza genial das suas cabeças ardentes: — E as altas cidades desenvolvem-se no meu pensamento quente.
V Explico uma cidade quando as luzes evoluem. Quando é assaltada pelos gestos devotados. Explico um espaço solene e unido por virtude do fogo infantil. Com a boca sobre um casulo de som, uma criança é sempre livre e encerrada. Explico uma cidade através de brilhos interiores. De pedras raras viradas na palma da mão. Cidades são janelas em brasa com cortinas puras, praças com a forma da chuva. Quartos. Jarras. Rostos como girando sobre gonzos. E por dentro de tudo a morte ou a loucura. Estátuas encarnadas cheias de sangue. E o silêncio dobrado para a frente na força da luz. Cidades existem entre as mães que contemplam as flores e as folhas do sono. A criança branca e prolongada para dentro como no fundo de uma estampada idade do ouro. Cidades são aposentos fixos quer na cabeça, entre brasas, quer no gosto, na audição. Barulho de passos, profundidade, devotamento misterioso. É o girassol do talento materno amando o movimento por cima brilhante. Ao longo de sons sempre passaram mulheres apaixonadas, separando os pés sobre frígidas gotas. Mulheres partindo, chegando, voltando o corpo na luz suspensa e inteligente. Mulheres cheias de uma atenta suspeita. Vergadas para o fundo de uma existência dura e pura. Cidades que se envolvem de ecos e em cuja solidão extraordinária
as mulheres batem seus dedos cândidos. Sua sinistra fantasia. Tiradas dos limbos segundo um ardente princípio de ilusão. Amadas por Deus e entrando na corrupção de Deus. São quentes e frias, colocadas sobre moventes comoções antigas. Metidas pelo espanto dentro, enterradas até ao livre espírito e ao terror. Fábulas de comércio. Imagens delicadas de uma suave indústria. Cidades dotadas de uma inteira falta de intenção. Abertas a ligeiras canções tenebrosas e, sobre as graves canções, fechadas como pedras frias. Na noite impressa nos dois lados e, pelo mais escuro lado antigo, a revelação. Cada cidade é uma vingança anterior onde a beleza passa vestida de mulher. Beleza lembrada e relembrada em seu circuito ardente. Escoada, esquecida. E logo ressurrecta. Tão próxima. Cidades vazias de cócoras contra a noite, ao lado de uma enorme ressurreição. E os arquitectos deslocam-se, unindo nos dedos a pedra encurvada. Ouvindo o som contra o som. Imaginando uma paixão espantosa no sono. E agarrando-se às vozes, como as vozes brilhantes se agarram à língua para fora. Arquitectos fechados sobre as mãos com instrumentos que se voltam no ar. Principiando a queimar-se. Isolando concepções geladas que entram na terrível purificação universal. E então levanta-se o exemplo dos violinos. E eis o que se ama: o som. Arco ligado que leva a música
em louvor das fêmeas. As cordas, as chaves, a caixa soante dos vivos e dos mortos. Lírica antropologia.
VI
Às vezes penso: o lugar é tremendo. É sobre os mortos, além da linguagem. Lugar que se transforma rodando contra a boca. Em certos dias, habitado por crianças de uma infelicidade obscura, sobre o verão. Por duros e belos peixes entre as mãos perfurando o sono de Deus. E eu trago uma criança com um ombro mergulhado no sangue, e o outro ombro metido no sono triste. Que pensa sempre, dentro de suas águas, e é ameaçada por uma intraduzível beleza. Muitas crianças caminham para o silêncio de uma semana ambígua, quando o verão anda de um lado para outro e se desarruma por dentro. O verão começa pelas partes mortas. Ao longe, nas fronteiras da ilusão. Crianças básicas fazem de mim uma rosa iracunda, e atiram-na contra a boca de Deus. Para diante, através das águas estivais. Não queiram viver em mim, quando entram como espelhos as vozes virgens. Ou morrer, se as colinas se aproximam tão perto do rosto, e estremecendo com muitas vozes. Tão respirando, as colinas que se toldam como povos embriagados. Eu digo: não desejem amar-me, morrer de mim. Porque destruo com a boca o beijo transformado. Morro em todas as pessoas que a delicadeza consome. Digam-me devagar quais os vocábulos alarmantes. Uma história de crianças com folhas dispersas é sempre uma história de morte. Embora a doçura levede sua alma cega, crianças, eis como digo: são uma musa devoradora. Estão ligadas a toda a grande idade, à terrífica fantasia do tempo.
Porque falam no esgotamento e, enquanto dormem, sonham com seu ombro fendendo o sangue, entrando no poder de Deus. Tenho uma criança profunda em todos os lugares. Desabitai-me a beleza que bati na pedra, abaixado e louco. E que a mulher se desabite da solidão que tive, enquanto falei ao alto, inspirado pelo assassínio do amor. Desabitai-me da minha fome e da neve onde fui brilhante brilhante. Brilhante como o trigo escorrido nos dedos. Como os pés sugeridos em volta da cinza. A tristeza do verão é um modo de saber. Ou ser puro. Ou estar afastado. É preciso abandonar-se no meio da tarefa, enquanto o crime é o autor, embebido. Conheço crianças esgotantes pelo sono onde acordam. É preciso que Deus se liberte dos meus dons. Que se não perca em minha fabulosa ironia. Também vi crianças empurradas nos meses. Pela leveza da luz, empurradas crianças supremas. Vi-as da mais subtil matéria, com cerejas, com mãos. Porque Deus é tão leve como a água atravessada. Água que iracundos peixes rompem em todos os lugares. Porque um poema alude ao mistério. E eu ia pelo ar de um canto de devotamento, eu amava e amava. E então levanto de mim próprio, contra a inspiradora confusão, as mãos de crianças preciosas caídas em sangue. Mãos que Deus exerce no sono. Deixai às crianças minhas zonas primitivas. Minha terna loucura. Deixai-as virar a alma para o lado, de cara contra uma fria onda. Em mim é que nascem e vivem com nomes castos, e esquecem.
E de repente se lembram, e se esquecem de tudo. Porque são delicadíssimas. E verdadeiras. Abandonai-me no mês de Deus aberto, com as crianças sorrindo com grãos de sal. Esse Deus sobre as patas ao lado de catedrais difusas. Onde encosto meu rosto da cor assaltada das lágrimas. Cor de quando tudo pára. É a minha voz que se ouve para diante da noite, voz tremente e limpa. Voz acocorada depois numa obra obscura. Voz bebida em si própria. Meu sangue percorre os mortos que me beijam no escuro com sua boca de barro fechado. O sangue passa por toda a doçura. Os mortos tremem, luzem com o dom em mim voltado para a sua solidão. E criam, em cadeia, a mãe descida em silêncio, mais remota por detrás dos dons. Um galho de sangue bate contra seus ouvidos. Mãe afogada em poeiras interiores. E chegada então ao cimo da escada. Olhando pelos meus dons dentro, olhando o meu dom. Olhando toda a minha força, ela ao cimo de uma escada terrível, olhando dentro de uma doçura mortal a solidão dos meus dons. Olhando inteiramente. Deixai-me em todos os lugares, em cada mês que principia. Casulos e campânulas são imagens misturadas. Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos. Não me sabem as crianças, e eu sei todas as crianças num poema prédio em chamas. Nos meus dons. E então penso: o lugar é terrível.
VII
Pequenas estrelas que mudam de cor, frias pêras ao alto de raízes queimadas, ainda doces, profundamente cor de turquesa — eu tudo sei. Como a época leve que entra, como as crianças que despertam e sorriem lapidarmente, e morrem sem que se note, na própria clareira viva do seu sorriso. A onda que envolve os peixes, e dos peixes absorve o rápido estremecimento — eu tudo sei. Porque mudo, queimo-me. Porque as ondas me batem na boca. Pequenas estrelas passadas de cor para cor, pêras que rolam de um degrau para outro degrau de amadurecimento. Enquanto estou deitado sob o céu brutal, e a noite avança terrivelmente plácida. E por baixo a terra vive, abstracta e espalhada. Quero dizer: eu tudo sei. Junto aos ossos em gelo bate uma veia que sobe, quente; que em silêncio ascende e bate na língua: — Eu amo o pão que amadurece no fogo. Amo a ideia que a morte alimenta agora na noite. Cinza sobre pepitas. O açafrão nas pedras encarnadas. Cerro os olhos para ouvir durante toda a noite, e todo o mês, e recomeçando no interior da minha vida — o sangue. Amarga e difusa loucura do sangue cercado pelo mundo — eu tudo sei. Humildade e esgotamento e, quando a boca estremece, tarefa e depois solidão. Sei como se pensa obscuramente. Vejo que a luz se encurva nos campos de urtigas, e a mão se encurva na luz. A mão que retém a faca e desliza sobre a mesa ao encontro do pão maduro. Porque eu amo a fome.
E eis que todo esse puro tempo passado se levanta, enquanto respiro debaixo da luz. Com a dor dentro, levanta-se; com um forte delírio e a luz imensa — e eu sei. Ouçam: é neste país onde cheiro um ramo de sal, a terra pútrida. Amo a penumbra de uma cara, a brancura parada de um sorriso no meio da água profundamente esquecida — sei tudo, tudo. Que nada existe e as coisas nascem no tocar de minha mão inundada. E é preciso esperar enquanto se morre, e fica o campo sob o céu que se queima preciosamente. Tenho agora a idade — e sei tudo. Digo: minha alegria é tenebrosa. E eu desejaria levantar-me levemente sobre as paisagens que se enchem de chuva apaixonada. Desejaria estar em cima, no meio da alegria. e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse a melancolia da minha inocência. Tanto desejaria ser destruído por um lento milagre interior. Cegar com o rosto contra um ramo abrupto de relâmpagos. Eu sei. Quero dizer: eu amo essa morte no meio da luz, entre crisálidas e gotas, à noite, de dia — quando o mês se extingue num supremo amadurecimento.
LUGAR ÚLTIMO Escrevo sobre um tema alucinante e antigo. Esquecimento que me lembrasse agora para sempre como uma roseira. Como que escrevo assim com um grito maravilhoso dentro da carne, terrivelmente. Nas pancadas da boca. — Sei cantar devagar, de pé, a enlouquecer muito. Respirando, sangrando tanto. Sei cantar com estrelas iradas. Há uma elevada mulher com flores na boca e no ânus. Contra mim, contra minha divagação. Penso: a flecha ama a onça. A morte ama o que morre. Pensei ainda pela pancada dentro: a mulher ama o homem. E quando brilhavas debaixo da minha luz espantada, também pensei: eu amo-a. Porque mexeste nos meus nomes desde o nascimento. Contei-te pelas pétalas coloridas, e agora o meu amor é puro puro louco louco. E o que dorme dorme do que é forte. Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava. Era uma luz molhada. Estava ao cimo como lágrimas, estava com folhas à tona da idade. Passou uma delicadeza, uma mulher que ficou. Existiu um campo transviado. Uma alagada adivinhação. Por cima abruptamente uma — pancada na noite dos órgãos. A noite é não ter amor senão em luzes. Como uma pedra sobre a boca. A pedra sente a boca, a solidão sente o homem. Digo que um homem beija
interiormente a boca. Mas era uma mulher que morria, uma mulher que nascia agora altamente. Um lúcido campo morto. Passou, transferiu-se, reviveu sobre a minha cabeça. Atravessava-a uma flecha. Era uma cabra silvestre uma cabra azul uma cabra colorida pela ira e a doçura e pela altura saltada de uma cabra entrevista nos grandes céus loucos. Era caçada pelo caçador do amor. Era com os cascos e os malmequeres. Com a delicadíssima boca humana. Os veios de ouro. Era como as belas mamas brancas. Quente como as urtigas. Era deitada cor de violeta. Uma mulher retumbante com todo o silêncio. Dormia contra mim. Ela vigiava, corria no ar. Quebrava no ar. Era a mulher tão pura. — Anos e anos de viagem sideral com os pés iracundamente azuis. Sou eu, como um retrato de cabeça para baixo. Conheci-me cantador em estado de amante. Tive o desviado ofício de canteiro. Fiz uma catedral. Morri acocorado. Eu era um amante com ofício de poeta cego. Um dia transformei-me na mulher que amava. Em tantos anos não ignoro como tudo amadurece. Neste lado de agora vejo: os cravos batem no ar que bate na roupa que bate nas pedras. E penso: houve uma quinta, quarta, uma terça, uma segunda-feira, uma sexta-feira. Bocados exaltados por cima.
Porta extática debaixo dos raios. Sábado era um dia de ardente vileza. Um domingo de amor ou de exemplo. Eu era um amante que era uma semana de lado: ou era a chuva amada por uma misteriosa velocidade, ou o sol que a lentidão apaixona por dentro. Eu era uma mesa com tantos anos sentados para comer-me em estado de pêra inclinada. Eu fui um amante numa torre ao meio da praça. Eu fui parado e unido. Quantos anos iracundos. Cantadores. E se a roupa molhada bate sobre a minha cabeça, e nela se embebe a luz penetrante — é preciso transformar-me. Fui amante como um cão. Fui de divagação em divagação a lua lua. Eu ladrava de cima. Eu era a baixa lua lua onde os pântanos caíam em êxtase. Perdi todas as mãos, e na derradeira mão transformei-me na morte. Batem os levíssimos nomes como pedras no ar, mais verdes, como crisântemos abrindo-se e depois fechando-se. Crisântemos — digo — virtuais. Com tantos tantos anos delicados iracundos de todas as cores. — Celebro agora os dias da sombra de onde sagrada a loucura se levantava. Quando os cantores eram tomados pela embriaguez soturna, e falavam alto com as ondas à volta. E eu lembro a entrada desses dias retumbantes, quando alguém entoava em sonhos as fontes da ilusão. E a idade avançava por dentro da aguda alegria, por dentro e a gente gritava que era alto tão tão alto — o amor. Celebro a tecelagem, as mãos sombria-
mente embebidas no trabalho. E por cima de tudo as pedras rosas da cabeça, os cestos, as liras, o pão. E em baixo o sangue bate acendendo e apagando. E eu agora sei tudo, e esqueço muito devagar. Também com força uma mulher aperta os pés sobre a minha boca. E eu pareço pensar no ar. Pareço dormir entre gotas frias. Ou então também pareço vir vergado e louco debaixo do estuar celeste. Nas noites onde cerrados os girassóis esperavam a ressurreição. Ou nos dias levantados sobre as melancolias mais fortes. Quando a mulher era levada pela interior fantasia do seu próprio encerramento. Noites oh noites tantas e tantas noites oh tantas noites seguidas intactas, despedaçadas, regeneradas como noites para dentro e para fora, debaixo da chuva. Enlouquecendo. E cantando o corpo, as voltas, os terrenos, os fetos do corpo, e as achas aproximadas e brilhantes do corpo humano. E talvez seja este o último exemplo de amor e a imemorial noite lancinante, solidão. E eu me transmude na zona de uma idade antiga, e Deus fale de em mim no puro alto da carne. E uma onda e outra onda e outra e outra e outra onda e onda batem em sua belíssima deserta altíssima voz. E não sabemos escutar o barulho, nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio, oh nem deliramos nos enormes inóspitos campos de Deus.
TEORIA SENTADA I Um lento prazer esgota a minha voz. Quem canta empobrece nas frementes cidades revividas. Empobrece com a alegria por onde se conduz, e então é doce e mortal. Um lento prazer de escrever, imitando cantar. E vendo a voz disposta nos seus sinais, revelada entre a humidade dos corpos e a sua glória secular. Uma dor esgota a idade, com cravos, da minha voz. E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida de uma inconcebível magnitude. Ou somente de uma voz. Um lento desprazer, uma solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima, como um silêncio, o antigo de minha voz. O que digo é rápido, e somente o modo de sofrer é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal o que agora digo, e só as mãos lentamente levantam o álcool da canção e a formosura de um tempo absorvido. Digo tudo o que é mais fácil da vida, e o fácil é duro e batido pela paciência. Porque a terra dorme e acorda de uma para outra estação. Porque vi crianças alojadas nos meus melhores instantes, e vi pedaços celestes fulminados na minha paixão, e vi textos de sangue marcados desordenadamente pelo ouro. Porque vi e vi, na saída de um dia para o começo da primeira noite, e no despedaçar da noite. E porque me levantei para sorrir e ser cândido. E porque então estremeci com a rapidez das palavras e a quente morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil para dizer e eu tão dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse: um prazer, um pesado prazer de cantar a vida, consome a única voz de uma vida mais sombria e mais funda. E eu mudo sobre este campo parado de cravos, quando a lua rebenta, quando sóis e raios crescem para todos os lados do seu fulminante país. Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus vales o eco, e sentir a alegria de sua expressa existência. Alguém chama por si próprio, sobre mim, em seus terríficos confins. E eu tremo de gosto, ardo, consumo o pensamento, ressuscito dons esgotados. Escrevo à minha volta, esquecido de que é fácil, crendo só no antigo gesto que alarga a solidão contra a solidão do amor. Escrevo o que bate em mim — a voz fria, a alarmada malícia das vozes, os ecos de alegria e a escuridão das gargantas lascadas. Para os lados, como se abrisse, com a doçura de um espelho infiltrado na sombra. Fiel como um punhal voltado para o amor total de quem o empunha. Alguém se procura dentro de meu ardor escuro, e reconhece as noites espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo, e vejo as mudanças e o imóvel sentido do meu amor, e vejo minha boca aberta contra minha própria boca num amargo fundo de vozes universais. Alguém procura onde eu estou só, e encontra o campo desbaratado e branco da sua solidão.
II Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada de noites fabulosas. Mergulha os polegares até onde a laranja pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois renasce. Alguém descasca uma pêra, come um bago de uva, devota-se aos frutos. E eu faço uma canção arguta para entender. Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas, as línguas que devoram pela atenção dentro. Eu queria saber como se acrescenta assim a fábula das noites. Como o silêncio se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo uma canção para ser inteligente dos frutos na língua, por canais subtis, até uma emoção escura. Porque o amor também recolhe as cascas e o mover dos dedos e a suspensão da boca sobre o gosto confuso. Também o amor se coloca às portas das noites ferozes e procura entender como elas imaginam seu poder estrangeiro. Aniquilar os frutos para saber, contra a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua solidão — é devotar-se, esgotar a amada, para ver como o amor trabalha na sua loucura. Uma canção de agora dirá que as noites esmagam o coração. Dirá que o amor aproxima a eternidade, ou que o gosto revela os ritmos diuturnos, os segredos da escuridão. Porque é com nomes que alguém sabe onde estar um corpo por uma ideia, onde um pensamento faz a vez da língua. — É com as vozes que o silêncio ganha.
III A minha idade é assim — verde, sentada. Tocando para baixo as raízes da eternidade. Um grande número de meses sem muitas saídas, soando estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas. A minha idade espera, enquanto abre os seus candeeiros. Idade de uma voracidade masculina. Cega. Parada. Algumas mãos fixam-se à sua volta. Idade que ainda canta com a boca dobrada. As semanas caminham para diante com um espírito dentro. Mergulham na sua solidão, e aparecem batendo contra a luz. É uma idade com sangue prendendo as folhas. Terrível. Mexendo no lugar do silêncio. Idade sem amor bloqueada pelo êxtase do tempo. Fria. Com a cor imensa de um símbolo. Eu trabalho nas luzes antigas, em frente das ondas da noite. Bato a pedra dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte. E uma raiz seca, canta-se no calor. É uma idade cor da salsa. Amarga. Imagino dentro de mim. Trabalho de encontro à noite. Procuro uma imagem dura. Estou sentado, e falo da ironia de onde uma rosa se levanta pelo ar. A idade é uma vileza espalhada no léxico. Em sua densidade quebram-se os dedos. Está sentada. Os poentes ciclistas passam sem barulho. Passam animais de púrpura. Passam pedregulhos de treva. É para a frente que as águas escorregam. Idade que a candura da vida sufoca, idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado as nações celestes. Que imita por um lado a terra quente. Trabalhando, nua, diante da noite.
IV Quando já não sei pensar no alto de irrespiráveis irrespiráveis montes, e ouço muitas vozes por dentro, e as estrelas se desdobram à volta, então. E já não sei como posso imaginar por baixo das traves da cabeça por baixo das traves rijas do céu, quando então. Não sei como não posso fechar em duas conchas essa pérola, essa dureza preciosa e feroz envolta pelo frio, quando já não sei pensar. Irrespiravelmente como então. Quando já nada sei menos ser o mais puro dos cantores que pararam diante dos montes direitos abrasados. Dos que se calaram. Dos cantores. O mais puro dos cantores fulminados. Quando já não sei falar, e acabo. Quando então irrespiravelmente puro por este lado, por aquele, por outro mais novo lado. Quando digo: não sei. E os montes compridos então para cima e eu em baixo irrespiravelmente digo: não sei como: pensar, respirar, dizer, saber. Então irrespiravelmente quando puro e não sei. E acabo.
V Muitas canções começam no fim, em cidades estranhas. Sei que a felicidade dos meses é ao meio e a força de um homem é ao meio da vida pura. Mas são muitas as canções que começam no fim. É no fim que secamente falam do ardor ao meio da cidade e da existência que se volta para si, de rosto — tremente e verde de sua ilusão. Canções cada vez mais no seu fim, tão secas voltadas imenso para trás. Para onde é todo o poder. Conheço horríveis canções cor de coisas transtornadas. Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos agudos abertos em torno do sexo. Começam no fim do seu pensamento. São para morrer na véspera, com um lento pavor no coração e o povo atónito por todos os lados. Porque o povo não sabe que um homem morre antes da sua última canção.
VI É a colina na colina, colina das colinas frias. Colina devagar por ela acima, brotando sobre a raiz da colina. Oh fria raiz deitada na pedra sinistra fria da raiz da colina. Na húmida treva pedra vazia, na alegria abstracta dos fogos, das águas oh sombrias. Colina profunda, colina de colina muda. Mexendo nos fogos, nas águas extremas vazias, nas massas nocturnas unas — respirando. Batendo os leves pêlos nas gotas frias das águas, e as pesadas estrelas nas veias sombrias. Colina acocorada na raiz ríspida da colina, feroz por ela abaixo, ladeada pelas paredes direitas da melancolia. É a colina na colina. Depois para cima, colina das colinas amargas estremes. De alegria para cima, na audácia das brutas assimetrias. Colina de pé sobre as visões, as culpas, os crimes — batendo os pés unidos na boca aberta das mães sinistras e vazias. Colina na colina nas colinas das ilusões quentes, duras, puras, sombrias. Colina em baixo e para cima. É a colina em cima com árvores redondas, vivas, rápidas e oh frias. Arvorezinhas da colina, vazias.
RETRATÍSSIMO OU NARRAÇÃO DE UM HOMEM DEPOIS DE MAIO
Retratoblíquo sentado. Retratimensamente de/lado, no/acto conceptual de/ver quantos vivos quantos dando folhas sobre os mortos de topázio. Mãos agora, veloz rosto, visão pura. Esquerdo ao/lado, fogo junto à cabeça. E mais fogo à/direita por/detrás da mão estreita pegando no ar como num livro. Julgo ser eu. Eu às/portas do sono, e não se sabe se venho do sono, oh nem se me empolgo numa ilusão sombria. Eu oh nem se me entro para um sonho extenuante. Sono empurrado de inspiração terrena. Retratobliquamente livre e martelado em sua leveza. Com algum espinho meio/visível perto da cabeça. Como se a cabeça fosse uma rosa venenosa, ou coisa inclinada e dolorosa. Para ser defendida ou ferida no/acto da exaltação. Retrato frio. Num grau de ausência, num degrau de alucinação. Frio nas fronteiras do concreto, e ardente perto perto. Por/cima, nuvens de cinza revoltada. Em/baixo, fruta aberta. Fundos de paisagem veemente e incompleta. Imaginativa, a roupa; e as pregas, precipitadas. Que cheiraria a suor um/pouco, e a tabaco. Por/cima do colarinho vago o caloroso sorriso de ironia é quasexacto. Boquimpura contínua — mente/regenerada pelo amor e, pelo amor, tornada soturna e abrupta. Morte ao/meio como alta alta desarmonia. Que os poderes oh confundia.
Ou talvez toda a força se movimente para o centro do retrato. E a morte se urda do próprio modo como a carne alimenta o silêncio compacto no/meio do retrato. Talvez este ser se abisme em seu núcleo central. E toda a figura se levante, na arquitectura da cadeira, por virtude desse nó ou núcleo trágico. Assim como uma pura concepção em/torno de um delírio vingativo e transacto. Qualquer coisa no retrato ressalta do espírito de um homem que foi assassinado. Há um punhal implícito. Sangue desdobrado. A cadeira é alta e existe dentro do fogo. O sexo suposto está masculino. O livro entreposto à vida e à visão é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído pela beleza. Este homem não fala, porque se fez pedra extrema fechada. Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada até ao terror. Não tem amor senão do amor. É um homem devastado pelo pensamento da alegria. Deus vive nele um tempo obscuro de esquecimento. Este homem mora nas coisas miúdas transpostas, comparadas, alvitradas, justapostas. Vive em/arco. Pensa em/espírito de fogueira. Tem toda a mão queimada até ao silêncio atroz. Rodearam-lhe a voz. Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira. Se adormecesse, deveria ser acordado. Ou deveria recostar-se na cadeira, ca — ir em sua/própria fantasia calma. Não há nele vida celeste, nem malícia de alma. Há uma assimetria insondável, um destino ou desatino casto e demorado. Por isso é que está de/lado.
Existe, ao/centro, uma força assombrosa. Nele tudo ousa. Vai morrer imensamente (ass)assinado. 1961-62.
O BEBEDOR NOCTURNO poemas mudados para português
POEMAS DO ANTIGO EGIPTO
ODE DO DESESPERADO A morte está agora diante de mim como a saúde diante do inválido, como abandonar um quarto após a doença. A morte está agora diante de mim como o odor da mirra, como sentar-se sob uma tenda num dia de vento. A morte está agora diante de mim como o perfume do lótus, como sentar-se à beira da embriaguez. A morte está agora diante de mim como o fim da chuva, como o regresso de um homem que um dia partiu para além-mar. A morte está agora diante de mim como o instante em que o céu se torna puro, como o desejo de um homem de rever a pátria depois de longos, longos anos de cativeiro.
EXORCISMO Oh vai, vai dormir, e vai aonde estão as tuas belas mulheres, sobre cujos cabelos se verteu a mirra e sobre cujos ombros se verteu o incenso fresco.
FRAGMENTO DO CAIRO Quando eu a cinjo e ela me abre os braços, sou como um homem que regressa da Arábia, impregnado de perfumes. *
Desço o rio numa barca, ao ritmo dos remadores. Com um feixe de canas ao ombro, vou para Mênfis, e direi a Ptah, senhor da verdade: «Dá-me esta noite a minha amada.» Este deus é como um rio de vinho, com seus maciços de canas. E a deusa Sekhmet é como se fosse a sua moita de flores. E a deusa Earit, seu lótus em botão. E o seu lótus aberto, o deus Nefertum. — E a minha amada será feliz. Levanta-se a aurora através da sua beleza. Mênfis é um cesto de tomates posto frente ao deus de rosto puro. * Bom é mergulhar, bom, ó deus meu amigo, é banhar-me diante de ti. Adivinhas-me quando se molha minha túnica de fino linho real. E juntos entramos nas águas, e à tua frente eu saio das águas, agarrando entre os dedos um estupendo peixe encarnado. — Olha para mim. * Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor, que metade da minha cabeleira se desfaz, quando corro ao teu encontro. Para que me vejas sempre igual e bela diante de ti, eu componho os meus cabelos.
POEMAS DO VELHO TESTAMENTO SALTÉRIO SALMOS 137, 88, 22, 42, 57, 69 e 139 (Segundo montagem de Jean Grosjean) Sôbolos rios que vão por Babilónia, sentados chorámos as lembranças de Sião, e nos salgueiros pendurámos as harpas contra o vento. Porque nos pedem cânticos e alegria. — Entoai, dizem eles, as canções de Sião. Mas como em terra estranha elevaremos um canto ao Eterno? Que me seque a mão direita se te esquecer, Jerusalém! E a língua paralise se abandonares as câmaras da memória, se Jerusalém não for a mais alta alegria. Lembra-te, Ó Eterno, de quando gritavam na terra de Jerusalém: — Devastai-a até às raízes! Feliz daquele que em suas mãos erguer teus filhos e na pedra os esmagar, ó devastadora filha de Babel! * De dia grito e gemo à noite, à tua frente: abre-te aos meus soluços. Que te atinja minha dor. Bêbeda de infortúnio, a minha vida rola. Estou deitado junto aos mortos e fechado no silêncio, perdido entre aqueles de quem se perdeu a memória. A tua fúria me lança nos lugares tenebrosos, contra mim desencadeias teus turbilhões obscuros. Apartaste de meu lado os que eram os amigos. Ao cativo sem esperança o choro consome os olhos. Digo o teu nome nas trevas, estendo-te as mãos incansáveis — mas que esperas tu dos mortos? que te importam sombras idas?
Louvam-te acaso a graça na perdição do abismo? Conhece-se o que é justiça na noite do esquecimento? Cada manhã meu clamor se levanta para ti: porque afastas tua face do cerco da minha voz? Moribundo desde a infância, eu sofri os teus terrores, teus espantos me esmagaram. Rodeado pelas ondas, já me afundo sob as vagas. — Minhas mãos abrem-se e fecham no grande país das trevas. * Meu Deus. meu Deus, porque me abandonaste e te afastas dos meus gritos? Brado em vão e sem repouso. Encho os dias e as noites com as vozes desta angústia, e o teu silêncio me cerca. Chamavam por ti os antigos, e os apelos ecoavam em tuas altas escarpas. Eu porém sou como um verme — a vergonha do meu povo. Escarnece quem me vê: — Confia no teu Senhor, porque salva aqueles que ama. Foste tu quem me tirou do ventre de minha mãe, tu que eras o meu Deus desde o fundo da matriz. Oh, não te afastes mais de mim, quando a angústia me rodeia. Inumeráveis me envolvem os touros de Basã. Leões que abrem as bocas para me dilacerar. E os meus ossos desconjuntam-se. Derrete-se meu coração como cera contra as chamas. Seca-se a boca de argila. Ladra o tumulto dos cães. Sangrando de pés e mãos, rolo sobre um chão mortal. Espalharam os meus ossos, dividiram minha túnica: não te afastes mais de mim, ó grande força celeste! Arranca aos cães e ao gládio esta vida singular. Toma-a às garras dos leões e aos altos cornos dos búfalos. * A gazela brame correndo para a água, e corre a minha alma para ti. Quando verei Aquele de que tenho tanta sede? Cresce-me o pranto se me perguntam onde está o Deus vivo.
Triste, lembro-me de haver caminhado para ti, entre os gritos delirantes de um povo na sua festa. Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia? Porquê gemer e não cantar Aquele onde se apoia a tua face? Sobre os montes do exílio tua lembrança me enlouquece. O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes caem sempre sobre mim, no fragor das cataratas. Nascia-me de ti um canto tumultuoso, longamente agora esqueço nesta inspiração das lágrimas. — Onde está o Deus vivo? — perguntam-me os frios de coração. E eu pergunto onde está o meu Deus vivo. Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia? Porquê gemer e não cantar Aquele onde se apoia a tua face? Onde está o Deus vivo, que se não esgota o tempo das trevas? Sobre os montes do exílio, tremo e peço que revele a sua luz. Que eu mencione em minha cítara um Deus de alta presença. Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia? Porquê gemer e não cantar Aquele onde se apoia a tua face? * Piedade, ó Deus, piedade! Agacho-me debaixo da sombra das tuas grandes asas. Em ti espero a passagem dos flagelos. Alto Senhor abrindo-se sobre mim, resguarda-me dos devoradores. Oh, sê fiel à tua fidelidade! Porque a minha alma está deitada entre os leões, entre fogos e flechas. Urde-se o canto no silêncio do coração. Despertai a glória da manhã, ó cítara e alaúde! Sê fiel à tua fidelidade! Ergue-te, ó Deus, pássaro terrível, sobre todos os céus. Levanta a tua glória sobre as raízes da terra. Que se embaracem nas redes os que me lançaram as redes da sua malícia. Que se envolvam nas suas próprias trevas.
Toldam-se as nuvens em tua graça. Oh! sê fiel à tua fidelidade! Ergue-te, ó Deus, pássaro terrível, sobre todos os céus. Levanta a tua glória sobre as raízes da terra. * Salva-me, ó Deus, sobem-me as águas até à alma. Mergulho no lodo profundo, afundo-me no abismo das águas. Minha vida queimou-se na espera do Senhor. Tu conheces, ó Deus, toda a minha loucura. Mas que ela não atinja aqueles que te esperam. Por ti eu conheci o tempo da confusão, e uma face tenebrosa se encostou à minha face. Eu agora sou estranho em casa de minha mãe, eu agora já não caibo na minha própria casa. Devorou-me o amor da tua Casa longínqua. Faço a conta aos inimigos como se contam cabelos. Tornei-me para eles numa coisa fabulosa. Nas canções dos bebedores o meu nome passa e passa como uma sombra maligna. Que tu conheces, ó Deus, toda a minha loucura. Mas devorou-me o amor da tua Casa longínqua. Levanta-me do abismo das muitas águas profundas, tu que sabes toda a angústia. Alimentaram-me a fel, deram vinagre a beber. Faz com que tombem à mesa e que a cegueira os fulmine. E em sua casa vazia e em sua deserta cidade, o teu furor os calcine! Volta a folha do teu livro, e o seu nome se dilua. Mas a mim, que tu vergaste pelas máquinas da dor, levanta-me do abismo das muitas águas profundas. Que me devorou o amor da tua Casa longínqua. * Tu me sondas. Senhor, e me conheces. Sabes quando me sento e me levanto, de longe tu escrutas as menores intenções, reconheces minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho. Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim. Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas costas, e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro. — Oh, tua ciência é a mais prodigiosa. Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito? Acho-te nos campos celestes e nas funduras da treva. Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas, agarra-me a tua mão que jamais me deixará. E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim, para teus olhos as noites nada mais são do que luz. Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne, quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe. Maravilho-me ao pensar no enigma criado. De há muito já decifravas labirintos da minha alma, e vias erguer-se a máquina dos meus ossos obscuros. Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto. Ainda antes do tempo fixaras os meus dias. Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar? Que se estendem pelo tempo como na terra as areias. Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto. Tu me sondas, Senhor, e me conheces. Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim. Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta, dá-me o caminho secreto para a tua eternidade.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS, DE SALOMÃO
Sulamite Beije-me ele com os beijos da sua boca. Amor melhor do que o vinho. — Delicado é o aroma dos teus perfumes; e teu nome, unguento que se derrama. Por isso te amam as virgens. Leva-me contigo, corramos juntos. O rei levou-me para as suas câmaras. — Tu serás o nosso júbilo, a nossa alegria. Cantaremos teu amor mais que o vinho. Cheio de razão é o amor de quem te ama.
PRIMEIRO POEMA Sulamite Sou morena mas bela, ó raparigas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como os pavilhões de Salomão. Não olheis meu rosto bronzeado: foi o sol que me queimou. Os filhos de minha mãe viraram-se contra mim, mandaram-me guardar as vinhas. Porém, eu não guardei a minha própria vinha. Diz-me, tu a quem ama o meu coração: onde apascentas o rebanho, onde o recolhes ao meio-dia? Para que eu não erre, cara velada, como uma vagabunda, entre os rebanhos dos teus companheiros. Coro das raparigas de Jerusalém Se o não sabes, ó mais bela entre as mulheres, segue as pegadas dos rebanhos, apascenta os cabritos junto às tendas dos pastores.
Salomão Comparo-te à minha égua, atrelada ao carro do Faraó. Inalterável em sua maravilha se conserva teu rosto ao meio das arrecadas, e o pescoço com seus colares. Longos pingentes de ouro e esferas de prata, para ti. Sulamite Enquanto o rei se assenta à sua mesa, exala o meu nardo o seu perfume. O meu amado é como um ramo de mirra cravado entre meus seios — cacho de ligustro nas vinhas de En-Gaddi. Salomão Como és bela bela, minha amada, como és bela. Teus olhos são duas pombas. Sulamite Como és belo belo, meu amado, como és belo. Verde de folhagem é o nosso leito verde. Salomão As traves da nossa casa são de cedro, os forros em madeira de cipreste. Sulamite Eu sou a rosa de Saron, o lírio dos vales. Salomão Como o lírio no meio dos cardos, assim é a minha amada entre as outras raparigas. Sulamite Como a macieira entre as árvores de um pomar,
assim é o meu amado entre os homens. — Sentei-me à sua sombra, coberta pelos grandes frutos da sua árvore. Levou-me o meu amado pelas câmaras da festa, e era o amor o estandarte que ele abria sobre mim. — Dai-me bolos de passas, reanimai-me com maçãs. Porque eu estou doente de amor. O seu braço esquerdo está debaixo da minha cabeça, o seu braço direito aperta-me fortemente. — Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém, pelas gazelas, pelas corças dos campos, não acordeis, não acordeis o meu amor, antes que ele o deseje.
SEGUNDO POEMA Sulamite Ouço o meu amado. Ei-lo que chega, correndo pelas montanhas, saltando sobre as colinas. O meu amado é semelhante a um veado jovem. Ei-lo de pé, junto às paredes, espreitando às janelas, olhando pelas grades. Ele ergue a voz. — «Vem, meu amor. Passou o inverno, acabaram-se as chuvas. As flores afogam a terra. Eis o tempo das alegres canções. Cantam as rolas no nosso país, e as figueiras formam os seus primeiros frutos. As videiras em flor desprendem-se em aroma. Vem, meu amor. Pomba escondida nas fendas dos rochedos, nos secretos lugares das escarpas — mostra-me o rosto, deixa-me ouvir a tua voz. Porque a tua voz é clara, e admirável é o teu rosto.»
Não tardou, porém, que eu encontrasse aquele a quem ama o meu coração. Não o deixarei agora, enquanto o não levar à casa de minha mãe, à frente daquela que me gerou. — Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém, pelas gazelas, pelas corças dos campos, não acordeis, não acordeis o meu amor, antes que ele o deseje. Os irmãos de Sulamite Apanha-nos as raposas, as raposinhas que destroem as videiras, porque as nossas videiras estão em flor. Sulamite O meu amado é meu e eu sou dele. Ele apascenta um rebanho entre os lírios. — Antes que se levante a brisa da manhã e se rasgue a noite, volta, corre como um veado sobre as montanhas da aliança. De noite, no meu leito, procurei aquele a quem ama o meu coração. Levanto-me agora, e vou pela cidade. Em vão o procurei. Pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama o meu coração. Em vão o procurei. Acharam-me os guardas que fazem a ronda da cidade. — «Vistes porventura aquele a quem ama o meu coração?»
TERCEIRO POEMA Sulamite Quem é que sobe do deserto como uma coluna de fumo, vapor de mirra e de incenso, vapor de todos os perfumes exóticos?
Eis a liteira de Salomão, rodeada por sessenta guerreiros de estirpe, nata dos guerreiros de Israel. Todos valentes na guerra, trazem à cinta as espadas, por causa das ciladas nocturnas. O rei Salomão mandou construir um trono para si em madeira do Líbano. Fez-lhe de prata as colunas, de ouro o dossel, e o assento de púrpura. O fundo é uma marchetaria de ébano. — Vinde ver, ó raparigas de Sião, o meu amado trazendo o diadema que lhe pôs sua mãe no dia dos esponsais, no dia da alegria do seu coração. Salomão Como és bela bela, minha amada, como és bela. Teus olhos são duas pombas, atrás do véu. Tua cabeleira é um rebanho de cabras, descendo pelas vertentes de Galaad. Teus dentes, rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do bebedouro, duas a duas, sempre juntas. Teus lábios, um fio de escarlata; e mansas, as palavras que dizes. Os pomos do teu rosto são como romãs cortadas. No meio das tranças, levanta-se teu pescoço, semelhante à torre de David, edificada para pendurar os broquéis e os escudos redondos dos guerreiros. Teus seios são como duas corçazinhas gémeas pastando por entre os lírios. — Antes que se levante a brisa da manhã e se rasgue a noite. irei à montanha da mirra, à colina do incenso. Como és bela bela, minha amada, e pura.
Vem comigo do Líbano, meu amor, comigo do Líbano. Abaixa teus olhos dos cimos do Amana, dos cimos do Samir e do Hermon, covil de leões, montanhas de leopardos. Arrebataste meu coração, minha irmã, minha amada, arrebataste meu coração, com um só dos teus olhares, com uma única pérola do teu colar. Magnífico é o teu amor, minha irmã, minha amada. E o cheiro dos teus perfumes, melhor que todos os bálsamos. Teus lábios, ó minha amada, destilam mel virgem. Leite e mel na tua língua. O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do Líbano. Horto fechado és tu, minha irmã, minha amada, horto fechado, fonte secreta. Floresces como um pomar de romãzeiras, no meio dos aromas raros: o nardo, e o açafrão, e o cinamomo, e a cana, e as árvores do incenso, e a mirra, e o aloés — com os perfumes mais finos. Ó fonte que fecundas os jardins, poço de águas vivas, ribeira descendo do Líbano. Sulamite Levanta-te, vento norte; corre, vento sul. Batei no meu jardim, e que os aromas se espalhem. Entre o meu amado no seu jardim e prove seus frutos pesados. Salomão Eu entro no meu jardim, minha irmã, minha amada, eu colho a minha mirra e o meu bálsamo. Eu entro no meu jardim, eu como o mel e o favo, eu bebo o vinho e o leite. — Comei, amigos. Bebei, embriagai-vos, ó amados.
QUARTO POEMA Sulamite Eu durmo, mas o meu coração vela. Ouço baterem à porta. «— Abre, minha irmã, minha amada, minha pomba, minha eleita. Que a minha cabeça está coberta de orvalho, meus cabelos estão cheios das gotas da noite.» «— Já despi minha túnica, como a tornarei a vestir? Já meus pés lavei, como os sujarei de novo?» Já o meu amado passa a mão pelo postigo: e de súbito estremecem-me as entranhas. Levantei-me da cama para abrir ao meu amado, e de minhas mãos se desprendia o perfume da mirra, de meus dedos se desprendia o perfume da mirra virgem sobre o fecho da porta. Eu abri ao meu amado, mas ele já partira. Meu coração estremecera à sua voz, e agora procurava-o, e ele tinha desaparecido. Agora chamava-o, e ele não respondia. Encontraram-me os guardas que fazem a ronda da cidade. Espancaram-me e feriram-me, e roubaram-me o manto — os guardas das muralhas da cidade. — Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém, que se virdes o meu amado lhe digais que estou doente de amor. Coro das raparigas de Jerusalém Que tem o teu amado mais que os outros, ó mais bela entre as mulheres? Que tem o teu amado mais que os outros, para que assim te lamentes? Sulamite O meu amado é puro e forte, o melhor entre dez mil. Sua cabeça é de ouro virgem;
seus cabelos, palmas negras, asas de corvo. São pombas os olhos, pombas na agua de um tanque, pombas banhando-se em leite, pousadas nas águas. As faces, canteiros de aromas, maciços perfumados; e os lábios, lírios escorrendo mirra virgem. Esferas de ouro, as mãos — esferas com pedras de Tarsis. E as pernas são brancas colunas de mármore sobre bases de ouro limpo. Ele é como o Líbano, único como os cedros do Líbano. E a sua voz é branca, e tudo é magnífico. Assim é o meu amigo, o meu amado, ó raparigas de Jerusalém. Coro das raparigas de Jerusalém Para onde foi o teu amado, ó mais bela entre as mulheres? Que caminho tomou ele, que o procuramos contigo? Sulamite O meu amado desceu ao seu jardim, aos canteiros perfumados, para colher lírios, para nos jardins apascentar o seu rebanho. Eu sou do meu amado e ele é meu. Ele apascenta o seu rebanho entre os lírios.
QUINTO POEMA Salomão Tu és bela, minha amiga, como Tirça, esplêndida como Jerusalém. Terrível como um exército debaixo dos estandartes. Afasta de mim teus olhos, que me fascinam. Tua cabeleira é um rebanho de cabras deitado nas encostas de Galaad. Teus dentes, rebanho de ovelhas tosquiadas
que sobem do bebedouro, duas a duas, sempre juntas. Os pomos do teu rosto são como romãs cortadas. São sessenta as rainhas e oitenta as concubinas, e é sem número o número das raparigas virgens. Única porém é a minha amada, a minha eleita. E é a única de sua mãe, a amada filha de sua mãe. Viram-na as raparigas, e chamaram-na bem-aventurada, e celebraram-na rainhas e concubinas. Coro das raparigas de Jerusalém Quem é que aparece como a aurora, grande como a lua, branca como o sol, terrível como um exército debaixo dos estandartes? Salomão Desci ao jardim das nogueiras para ver os rebentos do vaie, para ver se a vinha rebentara, se as romãzeiras estavam em flor. — Não sei, mas transportou-me o desejo para a cabeça dos carros do meu povo. Coro das raparigas de Jerusalém Volta, volta, ó Sulamite, volta, volta, para que nós te contemplemos. Salomão Porque olhais para a Sulamite, como se dançasse ao som de um coro duplo? Que soberbos são teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe. A curva das tuas coxas é como um colar, obra das mãos de um artista. Abre-se teu umbigo como uma taça redonda, em teu ventre, montículo de trigo cercado de lírios. Teus seios parecem duas gazelinhas gémeas;
e o pescoço, uma torre de marfim. Teus olhos são as piscinas de Heshbôn, junto à porta de Bat-Rabbin. E o teu nariz é como a torre do Líbano, sentinela voltada para Damas. E a tua cabeça ergue-se semelhante ao Carmelo, e as tuas tranças são como a púrpura. Um rei está fascinado pela tua cabeleira. Como és bela bela, como és bela, ó amor, ó delícias. No teu impulso, és como a palmeira — teus seios são cachos de tâmaras. Sejam teus seios como cachos de uvas; teu hálito, perfume de maçã; tuas palavras, um vinho delicado. Sulamite Como corre nos lábios dos que dormem, assim pertence o vinho ao meu amado. E eu pertenço ao meu amado, e é para mim que se dirige o seu desejo. — Vem, meu amor, partamos para os campos. Passaremos a noite nas aldeias, e pela manhã iremos aos vinhedos. Veremos se já rebenta a vinha, e os pâmpanos florescem, e as romãzeiras estão em flor. Então eu te farei o dom de mim mesma. As mandrágoras libertam o seu perfume, e os melhores frutos estão diante da nossa porta. Para ti, meu amado, eu guardarei os frutos, os verdes frutos, os frutos já maduros — para ti os guardarei, ó meu amado. Fosses tu meu irmão. Poderia beijar-te, sem surpresa de ninguém. Irás comigo a casa de minha mãe, e tudo me ensinarás. Dar-te-ei a beber um vinho perfumado, o meu licor de romãs.
O seu braço esquerdo está debaixo da minha cabeça, o seu braço direito aperta-me fortemente. Salomão Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém, não acordeis, não acordeis o meu amor, antes que ele o deseje.
CONCLUSÃO Coro das raparigas de Jerusalém Quem é que sobe do deserto apoiada ao seu amado? Salomão Acordei-te sob a macieira, no mesmo sítio onde tua mãe te concebeu. Põe-me como um selo em teu coração, como um selo no teu braço. Porque o amor é forte como a morte, o amor único mais forte que a eternidade dos mortos. As suas feições são como flechas de fogo, uma chama de Deus. As grandes águas não poderão extinguir o amor, nem submergi-lo os rios.
ENIGMAS MAIAS — Filho, quais são as bocas tristes por onde as canas se lamentam? — Os buracos da flauta. * — Filho, viste acaso duas pedras verdes com uma cruz ao meio? — Os olhos do homem. * — Filho, e o papagaio que levanta a saia, e tira a capa, e a camisa, e o chapéu, e os sapatos? Filho, passou acaso por ti? Talvez tivesses passado tu por ele, pela alta pedra que se levanta à entrada do céu, e está na porta da muralha. Quando por lá passaste, viste porventura avançarem para ti homens como touros inclinados? — A pupila e o par de olhos. * — Filho, viste as velhas que traziam ao colo os enteados e outras crianças? — Pai, estão aqui enquanto como, e não os posso deixar. O polegar e os outros dedos. * — Filho, por onde passaste há um riacho. — Pai, esse riacho está em mim. É o sulco ao meio das minhas costas. * — Filho, vai buscar uma mulher de Jalisco que tenha os cabelos em desordem e seja muito bela e virgem. Que lhe dispo o vestido e o saiote, e ficarei feliz de vê-la assim. O seu perfume será de terra, e um turbilhão será a sua bela cabeça. — É a tenra espiga de milho verde cozida debaixo da terra. * Ele ganha e, contente, leva consigo a pedra vermelha com que sonhou. O orvalho do céu com que sonhou.
ENIGMAS ASTECAS — Um espelho numa casa feita com ramos de pinheiro? — O olho com a sobrancelha. * — Uma velha com cabelos de feno branco, velando à porta da casa? — A meda de milho. * — Uma pedra branca de onde saem plumas verdes? — A cebola. * — Uma coisa que caminha, levando à frente plumas vermelhas, seguida por um bando de corvos? — O incêndio das savanas. * — Uma coisa que tem sandálias de pedra e se levanta à porta de casa? — Os pilares laterais da porta. * — Uma coisa que vai pelos vales fora, batendo as palmas das mãos como uma mulher que faz tortilhas? — A borboleta voando.
POESIA MEXICANA DO CICLO NAUATLE
ELOGIOS
I Deitada, repousa a flor. Deitado, além, repousa o canto. Lapido esmeraldas, derreto o ouro: e eis o meu canto. Engasto esmeraldas: eis o meu canto. O homem inclina-se para polir o canto como uma turquesa. E o deus faz brilhar o escudo de plumas de quetzal. Imitas o pássaro verde-azul, o pássaro de fogo. Embriaga-se teu coração: absorve a flor da pintura, o canto pintado. E abres agora as asas de quetzal. Ondulas com tuas plumas de arco-íris, ó pássaro de colo vermelho e plumagem cor de malva. Bebe o mel. A grande flor perfumada apareceu na terra. II No pórtico de flores, no corredor de flores, canta o cantor e eleva seu canto puro: «Chegaram os pássaros diferentes: o pássaro azul, o pássaro amarelo, o pássaro de ouro e cor-de-rosa o maravilhoso pássaro da luz.» Na casa do deus levanta-se agora o canto admirável. Bracelete, fino unguento, esmeralda brilhante, ouro, flauta acordada. Eis o que o teu canto é para mim. Belas são as tuas virgens flores. Colares de luzentes e redondas pedras de jade, enorme plumagem de quetzal, arco de finíssimas plumas, ouro, flauta acordada. Eis o que o teu canto é para mim. Belas são as tuas virgens flores. III És uma flor vermelha de milho queimado. Abres na terra do México tuas pétalas ardentes. As borboletas do mundo libam em ti o mel vivo, e em ti libam o mel os pássaros semelhantes às águias roubadoras. Tua casa verde refulge como um grande sol —
a casa de aquáticas flores de jade. Flores espalham-se, soam os guizos. Príncipe, são os teus guizos. És uma flor encarnada de plumas: abres na terra do México tuas pétalas ardentes. E teu perfume caminha pelo mundo, espalha-se entre a multidão. Uma pedra de jade rolou na poeira, nasceu uma flor: o teu canto. Esplende o sol somente quando na terra do México levantas tuas flores virgens.
CANTO DE ITZPAPALOTL Ireis à região das piteiras selvagens, para colher os cactos e as piteiras selvagens, para erguer uma casa de piteiras selvagens. Ireis à região onde é a raiz da luz, para atirar os dardos: águia amarela, tigre amarelo, serpente amarela, coelho amarelo, veado amarelo. Ireis à região onde é a raiz da morte, para atirar os dardos: águia azul, tigre azul, serpente azul, coelho azul, veado azul. Ireis à região das sementes húmidas, para atirar os dardos sobre a terra florida: águia branca, tigre branco, serpente branca, coelho branco, veado branco. Ireis à região dos espinheiros bravos, para atirar os dardos sobre a terra violenta: águia vermelha, tigre vermelho, serpente vermelha, coelho vermelho, veado vermelho. E depois de atirar os dardos e atingir os deuses, o amarelo, o azul, o branco, o vermelho, águia, tigre, serpente, coelho, veado — colocai sob a sua protecção os veladores do deus antigo — o deus do tempo.
HINO A NOSSA MAE A divindade posta sobre os cactos sumptuosos: nossa mãe, borboleta de obsidiana. Ei-la, terrível, nas nove planícies, devorando corações de veados. Tu és a nossa mãe, ó rainha terrestre: com tuas plumas novas e tua argila fresca. E quebraram-se as flechas nos quatro orientes: rainha súbito transfigurada em corça. E viemos para ver-te por sobre os campos áridos.
NASCEMOS PARA O SONO Nascemos para o sono, nascemos para o sonho. Não foi para viver que viemos sobre a terra. Breve apenas seremos erva que reverdece: verdes os corações e as pétalas estendidas. Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal.
CELEBRAÇÃO DA CIDADE DO MÉXICO I Estende-se a cidade em círculos de esmeralda: extraordinária México, oh plumagem ardente. Por toda a parte passam em barcos os guerreiros, através da nação, como bruma florida. Ó ser que dás a vida, aqui é o teu lugar. Aqui é que se ergue o teu grande louvor, através da nação, como bruma de pétalas. Brancos salgueiros e gladíolos brancos — cidade do México. Desdobra as tuas asas, ó garça-real azul. Desdobra as tuas asas e a tua cauda redonda, porque vives na cidade como uma verdade profunda, como neve florida.
Reina a cidade entre nenúfares de esmeralda, sob a esmeralda do resplendor solar: e os príncipes regressam como neve florida. Ó ser que dás a vida, aqui é a tua casa. Aqui é que ressoa o teu grande louvor. Sobre os brancos salgueiros e os ciprestes brancos, passas voando, ó garça-real azul. Através da nação desdobras as asas soberbas, a tua cauda redonda. Que viva para sempre nesta cidade profusa o deus em quem se apoiam o alto céu, a terra funda — ele, o rei da vossa mortal tristeza. E erguem-se os gritos antes da batalha. O guerreiro faz crescer a aurora através da cidade florida. E todos regressam sob os leques de plumas, sob as caudas abertas de assombrosas pedrarias. — Nas mãos do deus, um suspiro de tristeza dobra o guerreiro como um arco.
HINO ÓRFICO À NOITE (Grécia) Cantarei a criadora dos homens e deuses — cantarei a Noite. Noite, fonte universal. Ó forte divindade ardendo com as estrelas, Sol negro, invadida pela paz e o tranquilo e múltiplo sono, ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias. Mãe do sonho, e Consoladora, onde as misérias repousam as campânulas de sangue, ó Embaladora, Cavaleira, Luz Negra, Amiga Geral, ó Incompleta, alternadamente terrestre e celeste, ó Arredondada no meio das forças tenebrosas, leve afastando a luz da casa dos mortos e de novo te afastando tu própria. A terrível Fatalidade é a mãe de todas as coisas, ó Noite Maravilhosa, Constelação Calma, Ternura Secreta do Tempo, escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena, e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.
TRÊS CANÇÕES DO EPIRO
CANÇÃO DA LARANJA VERMELHA Disseram-me que estás doente, laranja vermelha. Estás doente da garganta, e eu estou mal da cabeça. — Sobre as lajes em volta da igreja, estavam sentadas três raparigas atando os cabelos com fitas verdes. Três túmulos se abriram e deles saíram três belos rapazes. Ó coração doloroso, consola-te a ti mesmo — dores iguais a essas já o mundo viu muitas. Coração doloroso que não estás só no mundo.
DIÁLOGO DE MARINHEIROS — Quem viu a árvore de cor verde? — Rapariga dourada de olhos sombrios. — Coberta de lindas folhas de prata. — De olhos sombrios e sombrias sobrancelhas. — Com ouro acumulado lá no cimo. — Raparigas em lágrimas. — E aos pés uma fonte fria, fria. — Onde a sede faz perder toda a memória. — Sobre a água me inclinei para beber água fria. — Oh, o amor que me queima. — Para beber água fria, para tirá-la com as mãos. — Pudessem os meus lábios tocar os olhos sombrios. — Lenço bordado de seda, caiu-me o lenço na fonte de água fria. — Toda a minha alegria, lenço bordado de seda. — E lá longe onde o bordaram cantavam belas raparigas, muito jovens, muito belas, três raparigas virgens, cantando, semelhantes às cerejas de maio.
O DESEJO Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. No céu podia tecer uma nuvem toda negra. E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, e a fímbria do mar, e o meio do mar, e vermelhas se volveram as asas da águia que desceu para beber, e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas. Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo. Uma maça, uma mantilha de ouro e uma espada de prata. Correram os rapazes à procura da espada, e as raparigas correram à procura da mantilha, e correram, correram as crianças à procura da maça.
POEMAS ZEN Para poder caminhar através do infinito vazio, a vaca de aço deve transpirar. * A verdade é como um tigre que tivesse muitos cornos, ou então como uma vaca a que faltasse o rabo. * De tarde o galo anuncia a aurora, brilha o sol vivamente à meia-noite. * As palavras não fazem o homem compreender, é preciso fazer-se homem para entender as palavras. * Se tirares água, pensarás que as montanhas se movem; se levantares o véu, verás a fuga das falésias. * Cantam à meia-noite os galos de madeira, e os cães de palha ladram para o céu límpido. * Se acaso vires na rua um homem iluminado, não o abordes com palavras, não o abordes com silêncio. * Conduz o teu cavalo sobre o fio de uma espada, oculta-te como puderes no meio das labaredas. * Há tantos anos vive o pássaro na gaiola que hoje pode voar por entre as nuvens. *
Quando o peixe se move, turvam-se as águas; quando o pássaro voa, uma pena. * No fundo das montanhas está guardado um tesouro para aquele que nunca o procurar. * As colinas são azuis por elas mesmas; por elas mesmas, brancas são as nuvens. * Sentada calmamente sem coisa alguma fazer. aparece a primavera, e cresce a erva. * Os rochedos levantam-se no céu, o fogo brilha no fundo das águas. * Colhe flores, e as tuas vestes ficarão perfumadas; tira água, e a lua estará nas tuas mãos. * O vento pára, as flores caem, um pássaro canta — a montanha conserva o seu mistério.
O MISTÉRIO DE AMEIGEN (Irlanda) Eu sou o vento que sopra à flor do mar, sou vaga do mar, o bramido do mar. Sou o boi das sete lutas, ave de rapina sobrevoando as falésias, e dardo solar. Eu sou o que navega, o inteligente. Javali sangrento. Lago na planície violenta. Sou palavra de ciência. Espada viva abrindo a noz das armaduras. Eu sou o deus que implanta o fogo na cabeça, e espalha a luz pelas montanhas, e que anuncia as idades lunares, e ensina ao sol onde morrer.
ORAÇÃO MÁGICA FINLANDESA PARA ESTANCAR O SANGUE DAS FERIDAS Pára, sangue, de correr, de ressaltar aos borbotões, de me inundar como torrente, de me brotar sobre o flanco. Como contra uma parede, imóvel como uma sebe, lírio marinho direito como espadana na espuma, como pedra no talude e o recife na corrente. Sangue, sangue, se o desejo te faz correr com tal força, circula dentro da carne, abraça-te aos ossos vivos. Belo, belo que é correr na obscura pele compacta, sussurrando nas artérias, murmurando contra os ossos. Pára, sangue, de correr sobre a fria terra morta. Não corras, leite, no chão, sangue inocente no vale, beleza humana entre a erva, oiro de heróis na colina. Desce fundo ao coração, bate surdo nos pulmões, desce, desce fundamente aos órgãos vivos do corpo. Não és rio que se escoe, nem calmo lago parado, nem fonte que brote assim, nem barca velha com rombos.
CANÇÃO ESCOCESA «Porque escorre o sangue pela tua espada, Eduardo, Eduardo? Porque escorre o sangue pela tua espada, e porque estás tão triste, oh?» «Oh, porque matei o meu melhor falcão, minha mãe, minha mãe, oh, porque matei o meu melhor falcão, e no mundo não há outro nenhum assim, oh!» «O sangue do teu falcão não era assim tão vermelho, Eduardo, Eduardo, o sangue do teu falcão não era assim tão vermelho, porque me mentes, oh?» «Oh, porque matei o meu corcel ruão, minha mãe, minha mãe, oh, porque matei o meu corcel ruão, que era delgado e tão ágil, oh!» «Esse corcel era velho e possuis outros corcéis, Eduardo, Eduardo, esse corcel era velho e possuis outros corcéis, porque me mentes, oh?» «Oh, foi meu pai quem eu matei, minha mãe, minha mãe, oh, foi meu pai quem eu matei, que a maldição me cubra para sempre, oh!» «Que penitência farás pelo teu crime, Eduardo, Eduardo? Que penitência farás pelo teu crime, dize-me, ó filho, oh?» «Embarcarei para longe, bem longe, minha mãe, minha mãe, embarcarei para longe, bem longe, irei por sobre as águas do mar, oh!» «E os teus castelos e torres, que é que deles farás, Eduardo, Eduardo? E os teus castelos e torres, que é que deles farás, que eram tão altos, tão belos, oh?» «Que fiquem de pé, e que tombem depois, minha mãe, minha mãe, que fiquem de pé, e que tombem depois, e no mundo não reste nenhum sinal, oh!»
«Que deixas à tua mulher, e que deixas aos teus filhos, Eduardo, Eduardo? Que deixas à tua mulher, e que deixas aos teus filhos, se te aventuras ao mar, oh?» «Deixo-lhes a terra toda para que nela mendiguem, minha mãe, minha mãe, deixo-lhes a terra toda para que nela mendiguem, que nunca mais os verei, oh!» «E que deixas tu à tua mãe extremosa, Eduardo, Eduardo? E que deixas tu à tua mãe extremosa, que fica sem ti, oh?» «A maldição do inferno, eis agora o que te deixo, minha mãe, minha mãe, a maldição do inferno, eis agora o que te deixo, que o meu crime é o teu, oh!»
QUATRO POEMAS ÁRABES DIVISA Conhecem-me os cavalos e a noite e os desertos traiçoeiros e a guerra e as feridas e o papel e a pena. (Al-Moutanabbi)
ORNATOS O vinho cor-de-rosa é bom, ó companheiros. Sim, eu voltei, e melhor do que o vinho é o regresso. Dai-me esse vinho antigo no seu vestido de vidro, jacinto flamante no interior de uma pérola. Cinzela nele a água ornatos cor de prata, ramalhete de círculos evanescentes que me livraram, eles, das chamas do inferno — o que não posso negar e humildemente agradeço. (Ibn Al-Mou’tazz)
DECEPÇÃO Disseram que a minha Layla vive em Tayma, quando os barcos do estio aí lançam as âncoras. Eis porém que se esgotaram os meses de verão. Porque a arrasta o exílio de lugar em lugar? (Djamil)
TUDO O OUE É NOVO É BELO De tudo o que é novo nasce um novo prazer, mas eu sei que não é boa a jovem morte. Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar, nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas. (Al-Houtay’a)
POEMAS ARÁBICO-ANDALUZES A LEITURA Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto. (Ben Ammar)
A NOZ É uma envoltura formada por duas peças maravilhosamente unidas: pálpebras que o sono fecha. Quando as separa uma faca, surge uma pupila que o esforço de olhar torna convexa. E o interior é comparável ao interior de uma orelha, com suas pregas e esconderijos. (Abu Bakr Muhammad Al-Qutiyya)
A BERINGELA É um fruto de forma esférica, gosto vivo, alimentado nos jardins peia abundância das águas. Cingida pela capa do pecíolo, é um coração encarnado de cordeiro nas garras de um abutre. (Ben Sara)
O DEDAL Dedal dourado como o sol: todo se ilumina, se lhe bate a luz de uma estrela. Modelou-o o ourives com esmero, até torná-lo vivo como o próprio ouro. É um pequeno capacete picado pelas lanças, a que um golpe de espada tivesse arrancado o elmo. (Abu-L-Abbas Ahmad Sid)
A AÇUCENA As mãos da Primavera edificaram, no cimo dos caules, os castelos da açucena; castelos com ameias de prata onde, em volta do Príncipe, os guerreiros empunham espadas de oiro. (Ben Darrach Al-Qastalli)
A LUA A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas. E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta se veste com o papel branco. (Ben Burd El Nieto)
O RIO Belo deslizava o rio no seu leito, e melhor seria nele mergulhar a boca do que mergulhá-la numa boca de mulher. curvado como uma pulseira, rodeado pelas flores como uma Via-Láctea. Estreitava-se às vezes até parecer um pesponto de prata numa túnica verde. Cercavam-no os ramos como pestanas em volta de uma pupila garça. O vento batia nos ramos, ondulava o ouro do crepúsculo sobre a prata da água. Enquanto na margem eu distribuía vinho dourado cujo reflexo mordia as mãos dos convivas. (Ben Jafacha)
O NADADOR NEGRO Nadava um negro num lago, através de cujas límpidas águas se viam as pedras do fundo. Tinha o lago a forma de uma íris azul de que o negro era a pupila. (Ben Jafacha)
CAVALO ALAZAO Era um cavalo alazão, e à sua volta a batalha acendia-se como um tição de coragem. As crinas eram cor da flor da romãzeira e as orelhas tinham a forma das folhas de mirto. No peito, ao meio da cor vermelha, abria-se uma estrela branca, como as bolhas claras que nascem numa taça de vinho rubro. (Ben Jafacha)
OS JARROS Pesados eram os jarros, mas quando os encheram de vinho puro, tornaram-se leves, e quase levantaram voo com sua carga preciosa, do mesmo modo que os corpos se aligeiram com os espíritos. (Idris Ben Al-Yaman)
CAVALO BRANCO Alvo como luz quando o sol se levanta — orgulhoso avançava, ajaezado com a sela de ouro. Vendo-o caminhar atrás de mim para a guerra, disse alguém: «Quem pôs bridas à aurora com as Pléiades e selou o relâmpago com o crescente lunar?» (Abu Salt Umayya)
BOLHAS Quando o encheram de vinho, inflamou-se o jarro, vestindo-se com uma túnica de chamas. E maravilharam-se os olhos, quando ao de cima vieram as bolhas: Granizo sobre vivas chamas, granizo que nascia do próprio coração das brasas. (Abu Zakariyya)
A BARCA Lá vem a barca como um nadador de pernas rígidas, rápida como um falcão que se abate sobre um peixe-voador. Parece também uma pupila que contempla o ar, as pálpebras cercadas pelas pestanas dos remos. (Abu-L-Hachchach Al-Munsafi)
ROSAS Desfolharam-se as rosas sobre o rio e, passando, espalharam-nas os ventos, como se o rio fosse a couraça de um guerreiro rasgada pelas lanças, por onde corresse o sangue das feridas. (Ben Al-Zaqqaq)
RIO AZUL Múrmuro, um rio de pérolas corre transparentemente. Grandes árvores o cobrem de sombra ao meio-dia, e a flor das águas é cor de ferrugem. Guerreiro com loriga, envolto em sua túnica de brocado, estendido à sombra da bandeira. (Muhammad Ben Galib Al-Rusafi)
CENA DE AMOR Enquanto a noite arrastava a cauda negra, dei a beber à minha amada vinho sombrio como pó de almíscar. E estreitei-a contra mim como um guerreiro estreita a espada, e semelhantes a talins as suas tranças pendiam dos meus ombros. E, quando levemente adormeceu, afastei-a de mim. Afastei-a do meu peito, para que não adormecesse sobre uma almofada palpitante. (Ben Baqi)
A CEGONHA Emigrante de outras terras, que anuncia o tempo, que desdobra as asas de ébano, e despe o corpo de marfim, e ri claro com bico de sândalo. (Galib Ben Ribah Al-Hachcham))
BOLHAS Troca-me a prata pelo oiro do vinho — digo eu ao copeiro. — Dá-me vinho novo. Vinho para a minha dor. E logo ao cimo sobrenadam, como espuma, as bolhas: brancos dedos de um bebedor petrificado, na mão retendo eternamente a sua taça. (Ubada Ben Ma Al-Sama)
VISITA DA MULHER AMADA Vieste um pouco antes de soarem os sinos cristãos, quando o crescente lunar se abria no céu, como a branca sobrancelha de um velho ou a curva delicada de um pé. E, apesar da noite, o arco-íris brilhou no horizonte, o arco de múltiplas cores, cauda enorme de pavão. (Ben Hazm)
CANÇÕES DE CAMPONESES DO JAPÃO ARROZAL DE MADRUGADA Às quatro da manhã, arranco ervas daninhas do arrozal. Mas que é isto: orvalho do campo, ou lágrimas de dor?
LÍRIO O corpo deitado do meu amante, vi-o eu esta manhã: na planície do quinto mês, um lírio aberto!
AS TRÊS CLARIDADES A Lua a leste, a oeste as Pléiades, o meu amado ao meio.
AMOR MUDO Ardendo de amor, as cigarras cantam: mais belos porém são os pirilampos, cujo mudo amor lhes queima o corpo!
QUINZE HAIKUS JAPONESES Ervas do estio: lugar onde os guerreiros sonham. * Um cuco foge ao longe — e ao longe, uma ilha. * Primeira neve: bastante para vergar as folhas dos junquilhos. (Bashó) * Libélula vermelha. Tira-lhe as asas: um pimentão. (Kikaku) * Pimentão vermelho. Põe-lhe umas asas: Libélula. (Correcção de Bashô) * Pelo meio do arrozal vou até à ameixoeira — para ver o seu perfume. * Pirilampos sobre o espelho da ribeira. Dupla barragem de luz
* Festa das flores. Acompanhando a mãe, uma criança cega. (Kikaku) * Casa sob as flores brancas. Onde bater? Mancha sombria da porta. (Kyorai) * Crescente lunar. O tubarão esconde a cabeça debaixo das vagas. (Shikô) * A lua deitou sobre as coisas uma toalha de prata. Azáleas brancas. * Monte de Higashi. Como o corpo sob um lençol. (Ransetsu) * Caracol, lento, lento, lento — sobe o Fuji. * Um cuco
cuja voz se arrasta sobre as águas. (Issa) * Ah, o passado. O tempo onde se acumularam os dias lentos. (Busson)
POEMAS INDOCHINESES
CANTOS ALTERNADOS
Uma Rapariga Sou como uma peça de seda cor-de-rosa, ondulando no mercado. Não sei em que mãos irei cair. Meu corpo é como um poço aberto no meio do caminho; nele alguns lavam o rosto, lavam nele outros os pés. Tivesse este rio uma medida de largo, que eu faria uma ponte, amigo, com um cordão do meu corpete. Um Rapaz Rapariga que levas água com um balancim de junco, dá-me um balde dessa água para regar o plátano. Sobre o plátano mais belo, sobre o plátano mais verde, a fénix virá pousar. Amo-te, primeiro por teus cabelos em rabo de galo. Segundo, amo-te pelo modo como falas. Terceiro, amo-te por causa do teu rosto admirável. Quarto, amo-te pelos teus vestidos, que são da cor do teu rosto. Quinto, amo-te porque trazes ganchos nos cabelos e trazes na mão um leque da China. Sexto, amo-te por causa dos teus cabelos verdes. Sétimo, amo-te porque teus pais um dia te puseram no mundo. Oitavo, amo-te por causa dos teus olhos de fénix que me olham profundamente. Nono, amo-te porque vamos estar unidos um ao outro. E amo-te, em décimo lugar, porque é a mim unicamente que te desejas unir para sempre.
UMA RAPARIGA RESPONDE A PERGUNTAS Cresce o bambu ao lado do pagode. O búfalo sai de manhã à procura de alimento. Quando nasce, o nabo é muito pequeno. Canta o galo no pátio dos Três Palácios. A candeia é mais fresca e mais bela do que a flor. Teu rosto é vermelho como a pele do sol.
Para edificar o templo é que serve esta madeira. A prece do bonzo deve ser murmurada noite e dia. A pimenta é pequena e ardente. Embora minúscula, é hábil a moeda à porta do juiz. Mascando bétel, pode criar-se a união. Serei talvez pouco bela, mas melhor do que as fadas da montanha.
CANÇÕES INDONÉSIAS Perdi uma pérola na erva. Pérola perdida que guarda o seu oculto oriente. — O amor àquela que amo um dia se perderá: pérola de orvalho que morre e que fulgura. * Formigas vermelhas no bambu vazio, vaso repleto de essência de rosas — se a luxúria enche o meu corpo fundo, apenas minha amada o pode esvaziar. * Ouve-se a água bater no coração do coco verde, e enquanto amadurece, o dúrio guarda os seus segredos. Eu sei porque te quero nas minhas mãos, mas tu ignoras porque te queres na minha boca. * Abre o fruto de odor inquietante, e nunca, nunca mais te poderás saciar. Os caroços escorregam como ovos debaixo dos teus dedos. O sumo é forte e doce como o alho e o leite. * Aos milhares voam os pombos um apenas vem pousar na minha cerca. — Eu queria morrer na ponta da tua unha, queria ser enterrado na palma da tua mão. * Se até vós subir o movimento das águas, querereis um com o outro vos banhar? — E se até vós subir o movimento da morte, querereis um com o outro vos banhar?
CANÇÃO DA CABÍLIA Leve, aparece na dança — e ninguém lhe sabe o nome. Vai e vem entre os seus peitos um amuleto de prata. Mergulha fundo na dança. Tilintam em seus artelhos muitas argolas de prata. — Foi por ela que vendi um pomar de macieiras. Ela cai dentro da dança, e abrem-se ao meio os cabelos. — Foi por ela que vendi o meu olival antigo. Vai até ao centro da dança. Cintila, vivo, um colar. — Foi por ela que vendi o meu campo de figueiras. E no coração da dança todo um sorriso a enflora. Foi por ela que vendi um milhão de laranjeiras
CANÇÕES MALGAXES A terra é um palácio que olha para cima, o céu é um palácio que olha para baixo. — Passarei por cima de todas as águas, em busca da mulher sete vezes tão bela. E se o rei se diverte com as suas terras todas, eu divirto-me feliz com as filhas dos homens. * Tem o irmão primogénito um odor vivo de fruta, e o mais novo tem um fresco aroma de folhas, e há na casa talvez como que um cheiro de Rei? — Não, é o amor que tenho pelo meu amado que espalha pela casa como que um cheiro de Rei. * És uma fruta dourada, uma banana madura. Se uma borboleta te roça, eu não me afasto de ti. — Todo aquele que morre por amor da sua amada é um pequeno caimão que a própria mãe devora, e que regressa ao ventre de que tem toda a ciência. * Rescende a colina À salva, cheira a cebola ao limão. — Sinto o perfume da amada: por ele daria o mundo. Toda a palavra de amor é como um grande repasto. * Se é para ti, sou o ovo de cotovia à beira do caminho. Se é para outro qualquer, sou o pequeno pássaro que dorme numa ilha longínqua. * Não há raiz da vida, mas é o amado que é raiz da vida. — Quando soube que tu vinhas, o meu ventre
rasgou-se. Não o esfreguei com óleo, nem sei como receber-te. Serei o arrozal perto da fonte, que nem o vento dobra quando passa, nem queima o sol que se despenha em cima. * Subiu a rapariga para cima da amoreira, e ao cimo do limoeiro subiu o homem também. Uma aranha os enlaçou, e tudo aquilo que é belo não deixa que se separem. * Tu eras na floresta um cardeal vermelho, a tua cor aqui é a cor da cotovia. As mulheres dos outros homens são corais espalhados sobre a esteira. Gostam os olhos de vê-los. As mãos não os podem tocar. * Rapariga sozinha na ilha, rapariga suave durante o estio, brilhante e macia rapariga durante toda a primavera. — Não estrago minhas mãos com os trabalhos pesados, não saio à rua pelo sol violento, não saio à rua enquanto o dia se não curva, doce. E não me banho com a água parada da bilha. Banho-me nas móveis e secretas águas das minhas próprias lágrimas.
CANÇÃO TÁRTARA O rosto da minha amada cobriu-se de sangue. A cabeça do falcão cobriu-se de sangue. Soprou o vento e desatou-se uma madeixa de cabelo uma madeixa o roçou, e o rosto cobriu-se de sangue. Construí uma casa, e era tudo num sonho. Uma casa contra o mundo. — A ponta do meu bordão era tão frágil, tão frágil: a noite — a nossa noite — era perigosa e alta. Eu morro porque olhei sempre sempre o meu caminho. Porque olhei para a direita e porque olhei para a esquerda. Nem tu nem eu pelo tempo deixaremos de olhar e olhar para o nosso caminho. Transmudaram-se as águas em cavalos, e das mãos nascia o vinho como dedos. Bebi até ao fundo da minha dor, e ela cresceu, cresceu, ainda mais forte que o vinho.
CINCO POEMAS ESQUIMÓS
Levanto-me da cama com gestos semelhantes aos golpes de asa de um corvo rápido. Levanto-me para saudar o dia. Uá, uá! Minha face afasta-se das trevas da noite e olha para a aurora que se abre. * O grande fluxo do oceano põe-me em movimento, faz-me flutuar. Flutuo como a alga à superfície das águas. E a abóbada celeste abala-me e o ar violento abala o meu espírito e atira-me sobre a poeira. E eu tremo de alegria. * Os mortos que sobem ao céu por degraus sobem ao céu, por velhos degraus já gastos. Todos os mortos que sobem ao céu por degraus gastos, gastos ao contrário, gastos por dentro, sobem ao céu. * Vejo aproximarem-se os brancos cães da aurora: — Alto!, que vos atrelo ao meu trenó de gelo! *
I Espírito do ar, vem, vem depressa. O invocador te chama. Vem, e purifica esta terra. Espírito do ar, vem, vem depressa. Levanto-me: é no meio dos espíritos que eu me levanto. Os invocadores me protegem, conduzem-me por entre os espíritos. Criança, criança, grande criança, levanta-te e vem, grande criança, pequena criança, aparece entre nós. II Quero visitar uma mulher estrangeira, quero desvendar os enigmas do homem. Desato as correias das minhas botas, procuro no homem e procuro na mulher. No rosto das mulheres desfaço as rugas. Caminhei ao longo dos gelos marinhos, e as focas sopravam de dentro dos buracos. Escutei maravilhado o canto do mar e o gemido claro dos jovens gelos. E um espírito antigo traz agora o poder à casa das danças.
POEMAS DOS PELES-VERMELHAS CANÇÃO DE AMOR Esta mulher é formosa como uma flor da montanha, mas é fria, fria, e é fria como a margem de neve onde fria floresce.
A PUBERDADE Sai depressa, depressa. Já quase morrem esta noite os ecos. Mulher virgem, mulher virgem não tem sono. Vela, vela, através da noite. Áspero e gigante, o cacto despedaçado: e minhas penas caídas elevam-se no ar, mais alto que o cume do monte da Mesa. E eis que o jovem moveu as pedras sonoras, e a mulher ouviu, e não pôde dormir. E partiram-se as unhas de meus pés. Quando eu passava, tombaram os ramos da noite, e quebraram-me as penas.
A OBSCURIDADE Esperamos na obscuridade. Vinde, vós que escutais, vinde saudar-nos na viagem nocturna: nenhum sol agora brilha, nem luz agora nenhuma estrela. Vinde, ó vós, mostrar-nos o caminho: que a noite secreta é inimiga, a noite que fecha as próprias pálpebras. E eis como a noite inteiramente nos esqueceu. E esperamos, esperamos, na obscuridade.
RITUAL DA CHUVA Desde os tempos antigos, vem a chuva, vem a chuva comigo. Da montanha de Água, de seus cumes altíssimos, vem a chuva, vem a chuva comigo. Entre a luz dos relâmpagos, relâmpagos que brilham, fulmíneos relâmpagos, vem a chuva, vem a chuva comigo. Entre as andorinhas, andorinhas azuis que gritam, que gritam, vem a chuva, vem a chuva comigo. Atravessando o pólen, o pólen sagrado, vestida de pólen, vem a chuva, vem a chuva comigo. Desde os tempos antigos, vem a chuva, vem a chuva comigo.
PINTURA NA AREIA Para curar-me, o feiticeiro pintou tua imagem no deserto: areia de oiro — teus olhos, areia vermelha — a tua boca, areia azul para os cabelos, e branca, branca areia, para as minhas lágrimas. Pintou durante o dia, e tu crescias como uma deusa sobre a imensa tela amarela.
E pela tarde o vento dispersou tua sombra colorida. E, como sempre, na areia nada ficou senão o símbolo das minhas lágrimas: areia prateada.
AS ESTRELAS «Somos estrelas que cantam, cantamos a nossa luz. Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes. A nossa luz é uma voz que abre caminho aos espíritos. Entre nós três caçadores seguem o rasto de um urso. Não há memória de tempo em que os três o não caçassem. Vemos lá em baixo as montanhas.» Esta é a canção das estrelas.
CANÇÃO DE AMOR Levantei-me cedo, cedo — e era azul toda a manhã. Porém, o meu amor já havia partido: — já tinha atravessado as grandes portas da aurora. No monte Papago a presa na agonia olhou-me com os olhos da minha amada.
A IÚCA Mesmo diante da casa, no alto daquela montanha, cresce a flor da iúca, vibrante tocha dos deuses. É a sua luz que me cega.
É a sua luz que é mais alta do que eu sobre um cavalo. E não se rasga no vento, balançando as suas ancas. Sob o peso das estrelas, muitas vezes estremece. «Porque sou assim tão grande, assim tão só? Ah, ah! Ué!» E a dormideira e a alfazema devagar se acariciam. «Porque sou assim tão grande, tão exposta à solidão? Ah, ah! Ué!» Mas no meio da manhã ela cresce mais ainda. Como a flor da iúca, tu também — alta, intacta. Tocha dentro dos meus sonhos, cada vez mais no espaço. — E a minha mão mal te roça.
DONS DO AMANTE Sobre a tua cabeleira hei-de pôr, para as núpcias, uma coroa de borboletas com suas asas pintadas. Terás de volta ao pescoço flores de abóbora, em prata, e a lua que para ti noites e noites forjei. Andarás pelo povo sobre um cavalo em turquesa. Um cavalo ardente e leve, animado pelo meu fogo de amor. E a teus pés eu lançarei uma pedra quente quente: o coração onde correm milhões de gotas de sangue. (1961-66)
COMUNICAÇÃO ACADÉMICA Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos vermelhos no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho: verdes redondos no sono do pimenteiro: o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono: sono vermelho: sombras amarelas no gato redondo de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimentos de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdíssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silêncio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite do pimenteiro sono da cal folhas do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro: herberto herder: em janeiro mil novecentos e sessenta e três 1963.
A MÁQUINA LÍRICA EM MARTE APARECE A TUA CABEÇA — Em marte aparece a tua cabeça — eu queria dizer. No lugar onde desapareceu a janela, a cabeça de vaca de fogo, aparece a cabeça. Onde era a cortina fria, de pássaro escutando. Em marte, como a roupa bate no vento e na terra as ferraduras batem no meu cabelo. Como o fogo dentro da pedra turquesa, em marte aparece a tua cabeça de vaca. Por detrás da fria cortina — eu queria dizer. Agora sei que devo saber, só. As letras da chuva loucas nas costas — escrevendo, escrevendo. Só, eu sei a dormir. Com um ramo de peixes e um violino no meio dos II, dos mm, dos ii da chuva. Com meu ramo de violinos, só eu no meio da chuva. Agora sei que devo escrever os meus peixes. A tua cabeça aparece na janela de marte em fogo. O fogo que anda em ti que andas como uma pedra turquesa, ao lado da fria cortina. Olhando, escutando como um pássaro, onde chove. Como só agora sei as letras A chuva abre-te, o dia bate, a roupa tropeça com as ferraduras no meu cabelo. E só agora fazes teu gesto com chuva, no meio das letras. Abre-te, oh abre-te. Na cortina, agora, a tua cabeça ao lado dos peixes – escutando, escrevendo, como só agora eu sei: o meu ramo de violinos.
Escuta: o copo, a catedral, o livro, o candeeiro. Eu agora sei escrevendo de lado o fogo da cabeça. Escuta: descasco maçãs, como maçãs, as maçãs aparecem na sua cor ao meio – e juntam-se entre si, e vão sonhar. Escuta chovendo, escutando, escrevendo. A roupa bate no vento. Escuta como só agora bate a cor nas maçãs. A tua cabeça, a cortina fria. Dou-te as letras dos peixes, escutando – só agora, só agora. Escutando em ti, abrindo com a tua chave todas as maçãs na sua cor. Dó agora escrevendo eu sei.
A BICICLETA PELA LUA DENTRO — MÃE, MÃE — A bicicleta pela lua dentro — mãe, mãe — ouvi dizer toda a neve. As árvores crescem nos satélites. Que hei-de fazer senão sonhar ao contrário quando novembro empunha — mãe, mãe — as telhas dos seus frutos? As nuvens, aviões, mercúrio. Novembro — mãe — com as suas praças descascadas. A neve sobre os frutos — filho, filho. Janeiro com outono sonha então. Canta nesse espanto — meu filho — os satélites sonham pela lua dentro na sua bicicleta. Ouvi dizer novembro. As praças estão resplendentes. As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto. Aviões passam no teu nome — minha mãe, minha máquina — mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve. Avança, memória, com a tua bicicleta. Sonhando, as árvores crescem ao contrário. Apresento-te novembro: avião limpo como um alfabeto. E as praças dão a sua neve descascada. Mãe, mãe — como janeiro resplende nos satélites. Filho — é a tua memória. E as letras estão em ti, abertas pela neve dentro. Como árvores, aviões sonham ao contrário. As estátuas, de polvos na cabeça, florescem com mercúrio. Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro, é a neve avançando na sua bicicleta. O alfabeto, a lua. Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem. Era pesada, ao colo, cheia de neve. Ia dizendo o teu nome de janeiro. Enxofre — mãe — era o teu nome. As letras cresciam em torno da terra, as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me: era o atum negro do teu nome, nos meus braços como neve de janeiro. Novembro — meu filho — quando se atira a flecha, e as praças se descascam, e os satélites avançam, e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem (eu vi): era pesada. O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas. Laranjas de pedra — mãe. Resplendentes, as estátuas negras no teu nome, no meu colo. Era a neve que nunca mais acabava. Começo a lembrar-me: a bicicleta vergava ao peso desse grande atum negro. A praça descascava-se. E eis o teu nome resplendente com as letras ao contrário, sonhando dentro de mim sem nunca mais acabar. Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua batia pelo ar fora. Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios do meu nome negro, e nunca mais acabava de nevar. Era novembro. Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio crescendo com toda a força em volta da terra. Mãe — se morreste, porque fazes tanta força com os pés contra o teu nome, no meu colo? Eu ia lembrar-me: os satélites todos resplendentes na praça. Era a neve. Era o tempo descascado sonhando com tanto peso no meu colo. Ó mãe, atum negro — ao contrário, ao contrário, com tanta força. Era tudo uma máquina com as letras lá dentro. E eu vinha cantando com a minha paisagem negra pela neve. E isso não acabava nunca mais pelo tempo fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos de peixe, tua coluna vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha cantando na neve que nunca mais acabava. O teu nome negro com tanta força — minha mãe. Os satélites e as praças. E novembro avançando em janeiro com seus frutos destelhados ao colo. As estátuas, e eu sonhando, sonhando. Ao contrário tão morta — minha mãe — com tanta força, e nunca — mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora.
A MENSTRUAÇÃO QUANDO NA CIDADE PASSAVA A menstruação quando na cidade passava o ar. As raparigas respirando, comendo figos — e a menstruação quando na cidade corria o tempo pelo ar. Eram cravos na neve. As raparigas riam, gritavam — e as figueiras soprando de dentro os figos, com seus pulmões de esponja branca. E as raparigas comiam cravos pelo ar. E elas riam na neve e gritavam: era o tempo da menstruação. As maçãs resvalavam na casa, Alguém falava: neve. A noite vinha partir a cabeça das estátuas, e as maçãs resvalavam no telhado — alguém falava: sangue. Na casa, elas riam — e a menstruação corria pelas cavernas brancas das esponjas, e partiam-se as cabeças das estátuas. Cravos — era alguém que falava assim. E as raparigas respirando, comendo figos na neve. Alguém falava: maçãs. E era o tempo. O sangue escorria dos pescoços de granito, a criança abatia a boca negra sobre a neve nos figos — e elas gritavam na sombra da casa. Alguém falava: sangue, tempo. As figueiras sopravam no ar que corria, as máquinas amavam. E um peixe percorrendo, como uma antiga palavra sensível, a página desse amor. E alguém falava: é a neve. As raparigas riam dentro da menstruação, comendo neve. As cabeças das estátuas estavam cheias de cravos, e as crianças abatiam a boca negra sobre os gritos. A noite vinha pelo ar, na sombra resvalavam as maçãs. E era o tempo. E elas riam no ar, comendo a noite, alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças. E a menstruação escorria em silêncio — na noite, na neve — espremida das esponjas brancas, lá na noite das raparigas que riam na sombra da casa, resvalando, comendo cravos. E alguém falava: é um peixe percorrendo a página de um amor antigo. E as raparigas gritavam. As vacas então espreitando, e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio. Pelas janelas os violinos passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas escorria pela sombra, e elas gritavam e comiam areia. Alguém falava: fogo. E as vacas passavam pelos violinos. E as janelas em silêncio escorriam o seu fogo. E as admiráveis raparigas cantavam a sua canção, como uma palavra antiga escorrendo numa página pela neve, coroada de figos. E no fogo as crianças eram tocadas pelo tempo da menstruação. Alimentavam-se apenas de figos e de areia. E pelo tempo fora, riam — e a neve cobria a sua página de tempo, e as vacas resvalavam na sombra. Em silêncio o seu lume escorria das esponjas. Partiam-se as cabeças dos violinos. As raparigas, cantando as suas crianças, comiam figos. A noite comia areia. E eram cravos nas cavernas brancas. Menstruação — falava alguém. O ar passava — e pela noite, em silêncio, a menstruação escorria pela neve.
EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA Em silêncio descobri essa cidade no mapa a toda a velocidade: gota sombria. Descobri as poeiras que batiam como peixes no sangue. A toda a velocidade, em silêncio, no mapa — como se descobre uma letra de outra cor no meio das folhas, estremecendo nos ulmos, em silêncio. Gota sombria num girassol — essa letra, essa cidade em silêncio, batendo como sangue. Era a minha cidade ao norte do mapa, numa velocidade chamada mundo sombrio. Seus peixes estremeciam como letras no alto das folhas, poeiras de outra cor: girassol que se descobre como uma gota no mundo. Descobri essa cidade, aplainando tábuas lentas como rosas vigiadas pelas letras dos espinhos. Era em silêncio como uma gota de seiva lenta numa tábua aplainada. Descobri que tinha asas como uma pêra que desce. E a essa velocidade voava para mim aquela cidade do mapa. Eu batia como os peixes batendo dentro do sangue — peixes em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia, aplainando na tábua todo o meu silêncio. E a seiva sombria vinha escorrendo do mapa desse girassol, no mapa do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo como as letras nas folhas de outra cor. Cidade que aperto, batendo as asas — ela — no ar do mapa. E que aperto contra quanto, estremecendo em mim com folhas, escrevo no mundo. Que aperto com o amor sombrio contra mim; peixes de grande velocidade, letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim da tábua por onde escorre em silêncio aplainado noutra cor: como uma pêra voando, um girassol do mundo.
MULHERES CORRENDO, CORRENDO PELA NOITE. Mulheres correndo, correndo pela noite. O som de mulheres correndo, lembradas, correndo como éguas abertas, como sonoras corredoras magnólias. Mulheres pela noite dentro levando nas patas grandiosos lenços brancos. Correndo com lenços muito vivos nas patas pela noite dentro. Lenços vivos com suas patas abertas como magnólias correndo, lembradas, patas pela noite viva. Levando, lembrando, correndo. É o som delas batendo como estrelas nas portas. O céu por cima, as crinas negras batendo: é o som delas. Lembradas, correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando. As grandiosas patas brancas abertas no som, à porta, com o céu lembrando. Crinas correndo pela noite, lenços vivos batendo como magnólias levadas pela noite, abertas, correndo, lembrando. De repente, as letras. O rosto sufocado como se fosse abril num canto da noite. O rosto no meio das letras, sufocado a um canto, de repente. Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços sufocados, lembrando letras, levando lenços, letras — nas patas negras, grandiosamente abertas. Como se fosse abril, sufocadas no meio. Era o som delas, como se fosse abril a um canto da noite, lembrando. Ouço: são elas que partem. E levam o sangue cheio de letras, as patas floridas sobre a cabeça, correndo, pensando. Atiram-se para a noite com o sonho terrível de um lenço vivo. E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre a cabeça branca, as patas lembrando pela noite dentro. O rosto sufocado, o som abrindo, muito lembrado. E a cabeça correndo, e eu ouço:
são elas que partem, pensando. Então acordo de dentro e, lembrando, fico de lado. E ouço correr, levando grandiosos lenços contra a noite com estrelas batendo nas patas como magnólias pensando, abertas, correndo. Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando de lado, com as patas no meio das letras, o rosto sufocado correndo pelas portas grandiosas, as crinas brancas batendo. E eu ouço: é o som delas com as patas negras, com as magnólias negras contra a noite. Correndo, lembrando, batendo.
ERA UMA VEZ TODA A FORÇA COM A BOCA NOS JORNAIS: Era uma vez toda a força com a boca nos jornais: e vinham os mortos com sapatos leves, roendo maçãs. Caminhavam balouçando entre as linhas secas dos necrológios, como se a lua lhes tocasse nos cabelos vivos ainda para números de semanas. Uma vez essa força balouçando como bêbeda, se a lua tocasse o gosto, lançava a boca sobre o som dos sapatos leves. E os mortos nas linhas secas, roendo maçãs vivas, andavam pelo escuro de um nosso pensamento. Os mortos com vestidos estampados lá dentro. Nos jornais os cabelos viviam violentamente. Eles sabiam de cor os países completos. Devagar recitavam os palácios do som. E os animais para eles eram de cimento que a erosão lavrasse como uma esponja tremente. Completos, os países de cimento recitavam o som. Os mortos devagar lavravam animais nos palácios violentos. Com orelhas direitas como livros amados, eu ouvia a chegada das semanas fechadas no terror dos jornais. Curvavam-se os mortos como vírgulas na terra, e as folhas — para dentro — eram vivas como águas solitárias. Nos meus livros entravam as cabeças teóricas e as folhas voltavam-se, terríveis, respirando. E eu ouvia a chegada através dos jornais. Os leves sapatos tocavam no som: violento, o cabelo vivia cheio de folhas. Os mortos curvavam-se para dentro como águas solitárias — e de novo partiam através das linhas secas para semanas terríveis em países completos. E não voltavam mais como se a lua não tocasse, balouçando
entre as linhas lavradas, suas cabeças animais, seus teóricos vestidos estampados para dentro. Desapareciam nas orelhas dos jornais.
TODAS PÁLIDAS, AS REDES METIDAS NA VOZ. Todas pálidas, as redes metidas na voz. Cantando os pescadores remavam no ocidente — e as grandes redes leves caíam pelos peixes abaixo. Por cima a cal com luz, por baixo os pescadores cheios de mãos cantando. Cresciam as barcas por ali fora, a proa aberta como uma janela ao sal. Metida na voz, toda pálida, a proa rimava no ocidente com a cal que os pescadores remavam, cantando grande, pela luz fora. Ao sol, ao sal. E o espírito de Deus como num livro movia-se sobre as águas. Com seu motor à popa, veloz, peixe sumptuoso, o espírito de Deus, motor de um número de cavalos, galgava a antiga face pálida das águas. Enquanto, cantando as redes, os pescadores metiam as mãos cheias de cal pelos grandes peixes abaixo. E pelas barcas fora a luz remava pelo ocidente todo pálido, rimando as redes leves com a proa. E o peixe espírito de Deus, rangendo o motor, rompia com um número, remando todo pálido os seus grandes cavalos. Deus cantava no ocidente sobre as redes de cal. a proa aberta — como as guelras da luz. E os pescadores metiam as redes pelo espírito de Deus abaixo. E os remos rimavam com as redes leves no peixe sumptuoso. Por ali fora as guelras caíam na voz dos grandes pescadores. E Deus metido então nas redes, puxado cor de cal para dentro das barcas, as mãos cantando cheias de pescadores. E sobre as águas rangentes, rompendo o leve ocidente, os pescadores remavam
o espírito de Deus para terra — peixe de motor à popa — e a proa grande aberta. E cantavam o seu peixe sumptuoso, espírito pálido na leve cal do ocidente cantando.
TINHA AS MÃOS DE GESSO. AO LADO, OS MALTinha as mãos de gesso. Ao lado, os malmequeres. Tinha as veias por cima das cadeiras, lá no alto. Todo o gesso no alto: os malmequeres. Ele dormia, dormia. Aquele homem que as letras atravéssavam tinha as mãos de gesso sobre as cadeiras. Por cima do alto — dormia, dormia. As letras encostadas aos telhados, e ali começava o livro da idade com as suas rosáceas. Os malmequeres dormiam, dormiam nas cadeiras. E os telhados vinham devagar encostar-se às mãos, nas rosáceas. No alto, no alto — ele tinha as suas veias de gesso como o sol branco encostado. Perguntei-lhe: aonde vais, caçador com o arco-íris? E ele estava coberto de letras encostado às rosáceas, e disse: eu dormia, dormia — com as cadeiras encostadas ao livro da idade, e agora sou caçador. As minhas mãos de gesso lá no alto. Ele tinha malmequeres, e velava pelos telhados cheios de letras, e dizia: as rosáceas encostadas ao meu nome, as cadeiras encostadas, as mãos de gesso encostadas ao meu nome. E eu perguntei-lhe: caçador de arco-íris encostado, aonde vais assim com a morte encostada ao teu nome? Ele tinha o gesso como os malmequeres nas mãos, e disse: eu dormia, dormia — e eis que as letras da idade atravessaram a minha morte. — Aonde vais, encostado à rosácea do teu nome? Ele tinha, e disse:
com as minhas mãos de gesso, encostei-me agora à minha morte, no alto.
JOELHOS, SALSA, LÁBIOS, MAPA. Joelhos, salsa, lábios, mapa. As letras dormiam na noite inclinada, e eram silveiras bravas. Por elas escorregava o sono inclinado: mercúrio, salsa leve. Unidas as letras nos cotovelos, unidas dormindo nos seus frios joelhos de letras. Por baixo, os mapas redondos com seu mercúrio leve e a sua salsa leve inclinada. Bravias silveiras escorregando nos mapas. Meus lábios unidos às letras dormindo. Esse, isso — cabelo quente, telha molhada. Fogo, vestido, cidade, areia. Cantando as mulheres palpitavam às portas, sonhando com atenção. E eu — engenheiro móvel — enquanto a noite sensível. Martelos batiam borboletas como sons na cidade de areia. As letras vergavam num sonho. Cantando linho agudo na atenção sensível, vergadas às portas, mulheres cantavam, palpitando letras na cidade de areia. Longe, perto — cabelo quente, telha molhada. Mulheres, mercúrio, noite, fábrica. Através do livro raso, um estupendo k negro de tanto amor. E o meu grito, copo de pé através de frias fábricas. O radar pontuava a viagem das rosas. Vírgulas na neve batendo nas rosas. Ww, tt, aspas, parêntesis sensíveis. Enquanto através alguém ia gritando pela noite, pela neve — o seu amor: cabelo quente, telha molhada.
Engenheiro, letra, grito, aspas. A terra irada escrevia o seu livro raso. Enquanto por baixo as letras dos peixes fazendo som. Eles vinham sonhando, elas vinham sonhando. Como vírgulas num mapa — os peixes, as letras vergavam num sonho. Martelos batendo som nos peixes. Por baixo os martelos, por cima o radar, no meio os peixes, as letras, as rosas. E dentro de mim as vírgulas grandes — cor de martelos, som de rosas. Esse grito, essa letra — cabelo quente, telha molhada. Som, radar, peixe, k. E um terrível amor — pontapé estupendo, tempestade de areia. Então o cabelo respirava como uma tábua irada. Longe, perto — as silveiras vergavam ao som de mulheres cantando vírgulas, peixes e aspas. Enquanto a visão de um copo de pé e da letra k. E a minha alegria, fábrica de cabelo quente, telha molhada. Copo, muro, livro, tábua. Então o meu cabelo respirava. Telhas voavam pelos canais — II, tt, ii — durante todo o pensamento, e os cabelos no muro batiam finas estátuas. Abrindo no escuro, durante toda a neve, os copos, os vestidos, os mapas. E dentro de mim, rompendo peixes, uma noite sensível cor de martelos. Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse martelo louco nas borboletas. Então o meu cabelo respirava — cabelo quente, telha molhada. Neve, borboleta, vírgula, estátua.
Na noite sensível — louco, louco — loucamente levantava sobre o livro raso essa letra k. Elas tinham asas de castiçal na cara. Enquanto eu — engenheiro móvel — na fria fábrica, um copo de pé, um sentimento de areia. Irado amor em todos os mapas — cabelo quente, telha molhada. Martelo, sono, rosa, porta. Eu comia fogo ao pé das cerejas. Álcool escorrendo num retrato aberto ao contrário da noite. E as cerejas dormiam de tão abertas líricas e loucas. E eu, álcool escorrendo pelas fábricas de neve, abertas. A cabeça aguda dormia nos ares de um livro raso — cabelo quente, telha molhada. Cara, retrato, canal, álcool. Sinistro na mão um peixe levantado louco, alguém gritando, ia gritando pela fábrica fora. Rosas enoveladas vergavam no sono, enquanto letras com os cabelos escorrendo num muro. Extraordinário, pendurado no sono sinistro, um negro peixe morria durante a neve inteira. Com esse peixe, alguém ia gritando: cabelo quente, telha molhada. Gritando, cor de martelo, em peixes com som de rosas: Castiçal, silveira, linho — e: porta porta. 1963.
A MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, fez-se a manhã, dia primeiro. ... e fez a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento. (Génesis). ... e eis que havia um grande terramoto; e o sol tornou-se negro como um saco de silício; e a lua tornou-se como sangue. E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes, abalada de um grande vento: E o céu retirou-se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares. E vi os mortos, pequenos e grandes,... e foram abertos os livros. (Apocalipse). Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. (François Villon) Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. (Dante) Maravilha fatal da nossa idade. Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos — mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas. (Autor) E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes, abalada de um grande vento. E eis que havia um grande terramoto, e o sol tornou-se negro como um saco de silício e a lua tornou-se como sangue. E fez-se a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento. E o céu retirou-se como um livro que se enrola e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos — mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas. E vi os mortos, pequenos e grandes, e foram abertos os livros. Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável — maravilha fatal da nossa idade —, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. ...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves
do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente os mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez-se a separação, e estalavam as cúpulas vermelhas. Maravilha fatal da nossa idade. ...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. Na maravilha desta luz inextricável, vi os homens e as mulheres que estalavam como estrelas, como figos deslumbrados. E o sol negro e a lua de sangue caíram no vento, nas águas, na terra, caíam da selvagem figueira por cima do firmamento que subia e girava como um livro terrível, uma colina que se enrola. E eis que se rasgou um grande terramoto de águas verdes no céu de silício violentamente baixo. E os seres moveram-se dos seus lugares pelo granizo tenebroso, puxando as cúpulas, os sons, os mortos abertos. E havia águas negras na luz abalada, na áspera floresta dos limbos, e as ilhas vermelhas e os montes arrastados amadureciam no terror da nossa idade. No espaço das fábulas os mortos, cegamente presos, estavam aniquilados pelos lábios e beijavam a grande luz, a grande morte. E fez-se a separação entre a boca e os livros. E quando as aguas e as neves estavam dentro do céu, de cuja antiga lembrança custa falar, eu vi os mortos brancos despertar debaixo do céu fatal, e ficavam pequenos e grandes. E estavam todos mortos. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. ...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... ...presos pela boca violentamente brancos os mortos amadureciam e dentro desta luz ficavam as mulheres puxando as fábulas vermelhas e a terrível colina subia pelos sons deslumbrados e os limbos estalavam e a luz rasgou cegamente os seres aniquilados e cúpulas beijavam os lábios arrastados na luz e a morte antiga girava em baixo com homens...
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... ... luz selvagem... e terramoto que se enrola de estrelas... e água abalada... inextricável... o sol num saco de vento... e a lua debaixo das ilhas que se moveram... e livros em silício dentro dos mortos verdes... e coração dos figos abertos... maravilha nos grandes lugares por cima... e montes como dentro das águas negras... espaço... separação... e mulheres vermelhas com cúpulas... a antiga colina do firmamento... e homens violentamente... sons cegamente... e seres arrastados do céu da boca para... luz selvagem... ... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... 1963
HÚMUS
Material: palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Raul Brandão Regra: liberdades, liberdade.
Pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva: o castelo — a escada, a torre, a porta, a praça. Tudo isto flutua debaixo de água, debaixo de água. — Ouves o grito dos mortos? A pedra abre a cauda de ouro incessante, só a água fala nos buracos. São palavras pronunciadas com medo de pousar, uma tarde que viesse na ponta dos pés, o som devagar de uma borboleta. — A morte não tem só cinco letras. Como a claridade na água para me entontecer, a cantaria lavrada: com um povo de estátuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Primaveras extasiadas, espaços negros, flores desmedidas — todos os dias debalde repelimos os mortos. É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis. Uma candeia vem de mão de mulher em mão de mulher, debruça-se sobre uma grandeza. Aumenta. — Quem grita? Só a água fala nos buracos. Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta no interior da terra. Somos um reflexo dos mortos, o mundo não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto — as palavras, palavras. A lua de coral sobe no silêncio, por trás da montanha em osso. É o silêncio. O silêncio e o que se cria no silêncio. E o que remexe no silêncio.
É uma voz. A morte. — Nas tardes estonteadas encontrei uma árvore de pé, do tamanho de um prédio. As árvores atravessam o inverno, ressuscitam. São as primaveras sucessivas, delicadas, as primaveras frenéticas. As primeiras primaveras. Primaveras que atingem o auge nos mortos. Fecho os olhos: há outra coisa enorme. Atrás desta vila há outra vila maior, outra imagem maior. Há palavras que é preciso afundar logo noutras palavras. — Uma vida monstruosa. Quando falo está ali outra coisa quando me calo. Outra figura maior. Fecho os olhos: vejo virem os gestos. O espanto recamado de mundos caminha desabaladamente. — Sinto os mortos. A terra remexe. De mais longe vem um ímpeto. Põe-se a caminho a imensa floresta apodrecida. Ouve-se a dor das árvores. Sente-se a dor dos seres vegetativos, ao terem de apressar a sua vida lenta. Pôs-se a caminho um remexer de treva. E não tardam as dispersas primaveras, uma atrás da outra. Passa no mundo a estranha ventania. Os mortos empurram os vivos. É o tumulto, o peso do espanto, as forças monstruosas e cegas. A pedra espera ainda dar flor, o som tem um peso, há almas embrionárias. — Tudo isto se fez pelo lado de dentro, tudo isto cresceu pelo lado de dentro.
Acrescentou-se o tempo um alto relevo esquecido. O tempo. Acrescentou-se um pórtico aos pórticos, um terraço aos terraços. É um friso fantástico com uma cidade incompleta. Aqui a nave atinge alturas desconexas: o tempo. Ouves o grito dos mortos? — O tempo. É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis. É preciso criar os mortos pela força magnética das palavras. Através da paciência, o esforço do homem tende para a criação dos mortos. Por trás da imobilidade, horas verdes caem de espaço a espaço — gotas de água no fundo de um subterrâneo. E em volta um círculo de montanhas atentas. No alto da noite côncava e branca, uma camélia gelada. E metem as árvores para o interior a tinta e os ramos. Absorção dolorosa, diamante polido, vegetação criptogâmica. — O tempo. E o céu. Basta-nos o nome para lidar com ele. O céu. Uma nódoa que se entranha noutra nódoa. — A água tem um som. Mar inesgotável que desliza no silêncio. Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: ouço-me para dentro. Mal posso dar no mundo um passo sem tremer; sinto-me balouçado num sonho imenso, ando nas pontas dos pés.
E estou só e a noite. Há palavras que requerem uma pausa e silêncio. O lento acordar das vozes submersas: uma treva viva, um buraco de treva. Imaginem isto, imaginem o lojista em debate com a vida subterrânea, o lojista deparando com uma alma esplêndida, e depois outro assombro. E atrás deste assombro há outro assombro. Passos apressados dentro das próprias almas. A pedra abre a cauda de ouro incessante. Mãos sôfregas palpam sedas amarelas, e pergunto, perguntas, perguntam. Oh, palavras não, porque tudo está vivo: o assombro, o esplendor, o êxtase, o crime. Noite caiada com uma mancha vermelha de pólo a pólo, catástrofes boreais, estrelas no caos, terrores eléctricos. — Ouves o grito dos mortos? Também eu atravessei o inferno. Chegava a ouvir o contacto das aranhas devorando-se no fundo. O meu horrível pensamento só a custo continha o tumulto dos mortos. Há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Velhos lojistas olham para si próprios com terror. Uma coisa desconforme levanta-se e deita-se connosco. — São outros mortos ainda. Vê tu a árvore: uma camada de flor — um grito, outra camada de flor — outro grito. Sob o fluido eléctrico, o quintal tresnoita. Até o escuro se eriça. Há diálogos formidáveis na obscuridade.
Nesta primavera há duas primaveras — perfume, ferocidade. Turbilhão azul sem nome. O sonho irrompe como hastes de cactos, pélago desordenado. — Eu sou a árvore e o céu, faço parte do espanto, vivo e morro. Vem a noite. Os céus nocturnos parecem ter gelado em azul. Vem a noite, e com a noite interrogo-me: — Existe? O que existe é monstruoso. Por trás de mim há uma coisa que apavora. — Ouves o grito dos mortos? Respiro. É uma atmosfera de reticências. A parte de dentro é que está viva. Respiro. — A beleza não existe. A miséria conserva, tem os cabelos pretos, perde-os todas as noites com um sorriso de angústia. Aqui nesta cripta está o relento, branco e mole, criado na escuridão e no silêncio. Branco e sem olhos. Branco e mole, onde se ouve o lento trabalho das aranhas no fundo. — Sentiste o teu pensamento avançar mais um passo no silêncio? Sentiste-o avançar no silêncio? Dentro de cada ser ressurgem os mortos. A noite com outras noites em cima. Há como um assassinato de que se não ouvem os gritos. O sol negro. Lepra. As canduras. Só a água fala nos buracos. Estamos como sons, peixes repercutidos. O homem rói dentro do homem,
criam-se olhos que vêem na obscuridade. Deitamos flor pelo lado de dentro. — Os túmulos estão gastos de um lado pelos passos dos vivos, e do outro pelo esforço dos mortos. Moram de um lado o espanto, a lentidão, a paciência, a ferocidade. Aqui agora a escuridão é viva. De pé, de ferro, olhos brancos, verde. Irrompe para o lado de fora. — Está viva. Ouço o ruído calamitoso das águas. São muitas vozes. Os mortos estonteados têm medo de nascerem belos. A noite é de aparato. Atrás disto andam enxurradas de sóis e de pedras, e outras figuras tremendas atrás das palavras. Fica de pé o espanto, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Sob o fluido eléctrico, todo o ano as árvores se desentranham em flor. Pegou-lhes sonho também, é um desbarato, uma profusão que as devora. A alma é exterior, envolve e impregna o corpo. Na pedra recalcada e concentrada, os grandes fluidos desgrenhados. Na árvore, a alma da árvore. Na pedra, a alma da pedra. Ouves o grito dos mortos? É preciso abalar os túmulos, desenterrar os mortos. Através da pedra destas fisionomias, transparecem outras fisionomias. Os mortos, os mortos. Usam a cabeça como quem usa um resplendor. De pé na voragem, pergunto,
perguntas, perguntam. E nesse momento de paixão, todas as forças se concentram, e ponho o pé no mistério. Estalaram os botões dos salgueiros. Um bafo húmido-lilás turba e perturba. A primavera toca mais fundo na loucura, revolve os vivos e os mortos. — Todos deitam flor. Cai o inverno dentro da primavera, engrandece-a: tudo se entreabre em vertigem azul. Os mortos andam. Vagueia a floresta apodrecida e avança desenraizada para mim. Uma inocência atroz, uma tristeza irreflectida põe a mão e molha, deforma tudo, destinge sonho. O que estava por baixo está agora por cima. A flor esbraseada das noites sobre noites de concentração, com o sítio imóvel, as labaredas do sítio imóvel. Tudo está ligado e é conduzido por uma mão enorme. As bocas falam por muitas bocas. — Ouves o grito dos mortos? A um grito em baixo corresponde logo um grito em cima. Os seres extraordinários que ainda não tinham entrado no mundo. Um arranco na profundidade, põe-se a caminho outro panorama. Esta luta entre o inferno e o sonho revestiu-se de cimento e de grandeza. Sustentada num único pilar, a noite — poça azul, ouro gelado —
tem os cabelos em pé. O pavor entrou em plena primavera. Cachorros, agachados de terror, sustentam uma arcatura de luz intolerável. É o sonho em marcha, a que não ouço os passos, uma gota de tinta como uma gota de leite. Delicadeza, abundância, tinta entornada. A cerejeira é uma aparição, a febre devora as macieiras, todas as árvores se consomem de sonho. São construções vivas, fixadas no silêncio, suspensas na luz. Ah, cinematografar a morte de uma flor, uma tábua atónita, um nome transfigurado. — Ouves o grito dos mortos? Como se as palavras gesticulassem para dentro, como uma primavera escorre morte. Agora meto-me medo. Dois castiçais de prata foram a minha vida. As aranhas envelhecem, as sombras caminham, dessa pata monstruosa escorre sempre ternura. A pedra abre a cauda de ouro incessante, somos palavras, peixes repercutidos. Só a água fala nos buracos. Apenas o som devagar de uma borboleta, um exagero minúsculo, medo, uma névoa sensível, uma mulher, o que vale um pássaro. Apenas as velhas, uma roda de aranhas na cabeça — até que adormecem com um sorriso cândido. — Quem grita? Atravessei viva o inferno — diz uma árvore entontecida, tão viva que a confundo com a morte.
É uma inteligência exterior. Sou os mortos — diz uma árvore com a flor recalcada. E assim as árvores chegam ao céu. É o diálogo dos dias e das noites, entre as fazendas petrificadas e os grandes desmoronamentos das estrelas. Mais braços na monstruosa árvore do sonho, cores ininterruptas, colunatas absortas, pórticos imaginários, a sombra da sombra. Também eu atravessei o inferno. Chegava a ouvir o contacto das aranhas devorando-se no fundo. O meu horrível pensamento só a custo continha o tumulto dos mortos. Pergunto, perguntas, perguntam. Oh, palavras não, porque tudo está vivo: o assombro, o esplendor, o êxtase, o crime. As figuras são figuras de delírio, deitam raízes tremendas, atentas, raízes eléctricas. Ah, uma catástrofe que engrandeça, o prestígio da peste, a fascinação das coisas mais altas. Os mortos, uma enxurrada de cores rudimentares, o colérico crime dos mortos. É o grito dos mortos libertos. Imóveis, magnéticas — as sedas amarelas. Acordou toda a peste nas florestas intangíveis. Os astros mudam de cor de queda em queda. É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis. — Ouves o grito dos mortos?
É preciso matar os mortos, outra vez, os mortos. 1966.
CINCO CANÇÕES LACUNARES
BICICLETA Lá vai a bicicleta do poeta em direcção ao símbolo, por um dia de verão exemplar. De pulmões às costas e bico no ar, o poeta pernalta dá à pata nos pedais. Uma grande memória, os sinais dos dias sobrenaturais e a história secreta da bicicleta. O símbolo é simples. Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais — lá vai o poeta em direcção aos seus sinais. Dá à pata como os outros animais. O sol é branco, as flores legítimas, o amor confuso. A vida é para sempre tenebrosa. Entre as rimas e o suor, aparece e des aparece uma rosa. No dia de verão, violenta, a fantasia esquece. Entre o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce sabiamente. E a bicicleta ultrapassa o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa no instante da graça. De pulmões às costas, a vida é para sempre tenebrosa. A pata do poeta mal ousa agora pedalar. No meio do ar distrai-se a flor perdida. A vida é curta. Puta de vida subdesenvolvida. O bico do poeta corre os pontos cardeais. O sol é branco, o campo plano, a morte certa. Não há sombra de sinais. E o poeta dá à pata como os outros animais. Se a noite cai agora sobre a rosa passada, e o dia de verão se recolhe ao seu nada, e a única direcção é a própria noite achada? De pulmões às costas, a vida é tenebrosa. Morte é transfiguração, pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta de rosa interior dá à pata nos pedais da confusão do amor. Pela noite secreta dos caminhos iguais, o poeta dá à pata como os outros animais.
Se o sul é para trás e o norte é para o lado, é para sempre a morte. Agarrado ao volante e pulmões às costas como um pneu furado, o poeta pedala o coração transfigurado. Na memória mais antiga a direcção da morte é a mesma do amor. E o poeta, afinal mais mortal do que os outros animais, dá à pata nos pedais para um verão interior.
CANÇÃO DESPOVOADA
Num tempo sentado em seda, uma mulher imersa cantava o paraíso. Era depois da morte. Num tempo: salsa, avencas dormindo. A infância tinha febre. Então a voz pronunciava lenços, pombas impressas. Arrefeciam peras no silêncio posterior àquele enigma. Porque tem sono a salsa? E o coração dos figos com a doçura oblíqua. Há quem morra para ser de um mês: vivem imóveis os jardins das vozes. Em sonhos de uma loucura clara, ligeiras casas voltavam as costas. Nasciam folhas de ouro se alguém, sorrindo, respirasse. O tempo tem a sua incli nação perigosa: país de uvas negras e varandas sobre a candura. Quando se toca, a infância queima. O paraíso tem uma noite ao fundo: treme. Há quem fique num mês para assistir ao ar. Terrível é o espaço da música e das glicínias paradas na atenção. Quando uma voz diz a criança como seu espelho, este paraíso é de víboras azuis. Então veste-se um pulôver, anda-se pela cegueira com as mãos a ferver, diz-se: o vento, o sono e as violas. Há um crime sagrado onde o mês aparece com. Digo: clareira. Velocidade do tempo, oh inteligência. Aparece com a altura de uma noite mortal. Quem se alimenta de fruta, quem se despe entre noites encostadas, pergunto, quem ama até perder o nome? Eles vêm devagar e põem cores onde a criança se voltava junto à morte. Azul cobalto para os anjos ciclistas anunciando a palavra, e amarelo para os braços abertos, e cíclame
para ficar louco no espaço ao mesmo tempo. Ofereço-te um lírio — diz a canção sentada. Ah, um lírio é o que eu procuro nas ilhas tenebrosas. Por isso canta essa mulher desviada para a inocência de um tempo — mês a respirar tão depressa, e a andar tanto, e a correr tão loucamente, que não há mais do que em voz em cadeira, num lugar do sono, à direita e à esquerda de uma ausência contra a espuma. Olha: eu queria saber em que parte se morre, para ter uma flor e com ela atravessar vozes leves e ardentes e crimes sem roupa. Existe nas ilhas um silêncio para a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio de febre para o lado de uma canção terrível e fria.
CANÇÃO EM QUATRO SONETOS A maçã precipitada, os incêndios da noite, a neve forte: e a rude beleza da cabeça. — Quem ouvirá em que planetas esta imagem da minha morte, quando eu abrir o lenço sobre o coração terrível e suspenso? Uma criança de sorriso cru vive em mim sem dar um passo, amando respirar em sua roupa o cheiro do sangue maternal. O vício do sono apouca as frias glicínias do seu cabelo inocente, inocente. Ela não sofre e apenas sente a máquina que é, com cabeleira e dedos cheios de energia rápida: a magia, os segredos.
Tantos nomes que não há para dizer o silêncio a combustão interior do tempo; uma maçã cortada, uma pomba de éter; o pensamento. Não te chames mais, adolescente comendo uvas negras. Abres a camisa em que escutas todas as mãos do vento. E vês atrás de ti as máquinas resolutas de fabricar as formas rápidas, e convulsas, do esquecimento. Isto no ar há-de ficar como frio limpo. O meu nome parou diante do instante mortal que o guardara. Evapora-se a roupa, mas não sinto.
Às vezes, sobre um soneto voraz e abrupto, passa uma rapariga lenta que não sabe, e cuja graça se abaixa e movimenta na obscura pintura de um paraíso mortal. Nesse soneto nocturno escrevo que grito, ou então que durmo, ou que às vezes enlouqueço. E a matéria grave e delicada do seu corpo pousa no centro desse sopro feroz. E o soneto veloz abranda um pouco, e ela curva o corpo teatral — e o ânus sobe como uma flor animal. O meu pénis avança, no soneto que soletro como uma dança, ou um peixe negro nos frios planos sombrios e sonâmbulos: — a aliança intrínseca de um pénis e de um ânus.
Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre os cotovelos. Batem as folhas da luz um pouco abaixo do silêncio. Quero saber o nome de quem morre: o vestido de ar ardendo, os pés em movimento no meio do meu coração. O nome: madeira que arqueja, seca desde o fundo do seu tempo vegetal coarctado. E, ao abrir-se a toalha viva, o nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus pulmões de algodão queimando. Uma serpente de ouro abraça os quadris negros e molhados. E a água que se debruça olha a loucura com seu nome: indecifrável, cego.
UM DEUS LISÉRGICO Ele viu, a muitas noites de distância o Rosto saturado de furos ígneos absorvido em sua própria velocidade ressaca silenciosa um rosto precipitado para dentro noutro lado do que é visto nas formas: lacunas, parêntesis desapossados, duas tensões de parte a parte da figura — ferroadas brancas Ele viu a fria floresta erguer-se sob o movimento nocturno das massas e o volume cru do Rosto com tudo ordenado em si a energia dos pontos fixos curva de aço a matéria geral húmida: água leite desordenado os meandros percurso feminino Ele viu sobre o espaço maternal uma coruscação estampa presa dentro do fluido desenvolvimento a cabeça de um prego engolfado na madeira e a ponta fulminante um relâmpago noutra parte o Rosto martelado nas suas vísceras um nó veloz, parado como feito no tecido doloroso da atenção Ele viu o Rosto e toda a leveza ameaçadora era tragada pelo núcleo essa primeira sutura no remoinho da carne sobre os níveis primários temperaturas vagarosas o granito bombardeado por refluxos celestes enxuto, raspado enquanto a chuva iluminava toda a frente das terras e o alto aberto e os corredores vaginais da substância a força da Lua no Capricórnio e tenacidade Acima das jubas molhadas pelo sangue ele viu o Rosto com seus buracos vertiginosos concentração de um feixe de linhas brutais centripetamente o Rosto a respirar dentro dele como as malhas dos pulmões onde saltava o oxigénio selvático
OS MORTOS PERIGOSOS, FIM. Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas. Avança o ar a correr com as patas sobre a camisa branca. Então o espaço e surpreendido pelos mortos que transpiram em seus blusões de ouro. Da noite chegam paisagens de água que batem em suas grutas tremendamente claras. Mugidores rebanhos de camélias monstruosas, montanhas às varandas de palácios de seda amarela. Que voam, da raiz à flor, pelo escuro interior da vocação. E os lugares todos esperam doces assassinos que assomam à pontuação da memória. A noite levanta praias cruéis durante a combustão das linhas do sono. Pintados na atmosfera. Com as costas respirando brutalmente — que melancolia combatem, a reluzir, sob as patas de constelações implacáveis. Uma rede de mel fervente, uma rede dolorosa de um mel que se ilumina. Arrancam-se os mortos dentre mel e madeira e dentre ar e velocidade. Uma avenca incandescente na parte mais forte da cabeça — a aterradora curva suspirante do seu sossego alto. Não os leves nos braços por entre ramagens de ouro. Estão pintados no fundo dos tempos da primavera. Suas garras rutilantes latejam com uma doçura horrível. Um pouco à noite, quando os quartos andam e a folhagem se retira para os confins da cabeça, onde a loucura tem os mapas. Não os toques, com dedos animais, em suas semiluas de éter frio. Porque há maneiras graves de os mortos viajarem: sedas desenvoltas, força, mel,
glicínias, planos de energia e de tristeza. Não faças com que esse mês te procure. Leva os mortos como se fossem um lenço verde chegado de uma cidade transparente. O sono está cheio de álcool gelado, os campos arqueiam-se pelo poder de vírgulas selvagens. Nunca ouvi chamar os mortos pelo nome dos seus retratos reclinados brancos. Colinas amedrontadas à chuva. Penínsulas ligadas por cravinho e canela. Toca-os com uma chama leve na crista negra. Respira sobre laranjas que escaldam, se as abres com teus dedos — gota a gota aplicando a soldadura. Saber que lenço lhes pertence, que feixe de linhas taciturnas urdiu sua cara largada no ar. Ou quem vem desse sensível bordado, ou que força condensa sua cor de madeira enxuta. Saber que alcançam tua voz com sua pausa: uma flor nos meios, sobre si mesma. Não. Oh, não leves os mortos como crianças passadas a limpo, em tua morosa vocação, até à carnívora gentileza das visões. Como em redes enxameadas, o mel fermenta em suas cabeças um delírio docemente animal. E se a paisagem quadrúpede se encosta à janela, este mês é olhado pelo espaço todo. Não os conduzas aos símbolos nocturnos, dentre mel e velocidade e dentre madeira e ar. Não te sentes atrás de um lenço parado. Enquanto os mortos culminam como jacintos a pulsar direitos — o teu coração pende crivado de pinhões respirando. E a tua idade suspira
como um animal louco. Quando. 1965-68.
OS BRANCOS AROUIPÉLAGOS o texto assim coagulado, alusivas braçadas de luz no ar fotografadas respirando, a escrita, pavorosa delicadeza a progredir, enxuta, imóvel gravidade, o território todo devastado pelos brancos tumultos do estio, nem o discurso mortal trespassado de láudano, nem a vertigem de um odor de permanganato, caligrafia a escaldar, Cassiopeia fina, largura afogada por uma velocidade, enquanto a acentuar-se em vóltios de magnésio, e essa crispada lentidão, acetilene que subia, apurando o pesponto feroz, a sintaxe como idade, chegava em frio meandro o álcool à memória, esponja a fulgurar lá dentro, num buraco, a congestão da crista sobre o pensamento, cabeça encharcada, os regatos da droga rutilando, óleo cândido, espécie de fotografia perfurada, escorre o veneno, e então exalta-se o mel algures quieto, linhas arquejam, costura-se o ar, atormentado * toda, a doçura trepida, toda ameaçada, um sítio relampejante, roupa atacada pela febre, irradia a gangrena na cabeça, paisagem animal injectada, ou avenca de formigas, uma dor lucilante por furos de memória, cabeça, vírgula atroz de granito, pensamento de cabeça impressa num pensamento de seda forte, fulguram pêlos, fendas de adrenalina, sondas de ozono, flechas, cataratas límpidas, cai a rede em cima do ar em cima, cardume incandescente de botões no frio, planos faíscam debaixo do sangue eriçado, a força toda, queimadura, e uma extensão detrás, refreada, a boca fervendo, em frente de uma geometria obstinada de estrelas pontiagudas *
beleza de manhãs arrefecidas sobre o aniquilamento, paz vertente passada por manhãs em sopro de brancura, sob a pressão esplendente do vazio, sem uma pausa, continuadas, propensas, num plano difundido, embriaguez estática, êxtase horizontal, levitante paragem, quase apaixonamento, quase desgaste para trás, quase um pouco de tempo na sumptuária ausência do espaço dessas manhãs, e como de repente se perfuram de velocidades internas, como se apressam de uma miriápode troca de atenção, escarpas no ar bruto, centro de buracos deslumbrantes, a convulsa clareira dessas manhãs que se extenuam dentro, energia, relampejante textura, uma espécie de fruta rachada fria, para uma treva sua se retiram as manhãs respondidas, toda a beleza assintáctica, uma cara arrasada por lunações abruptas, a madeira fulminada pelo tacto doloroso, pistas de esporões e tramas vivas, os jactos do néon filtrado a prumo, e as manhãs ressuscitam, primitivas, surpreendidas * põem-se as salas ordenadas no compasso das figuras, também se estabelece a noite idiomática, com poros, furos, tubos, supuração das tintas, pespontos rutilantes, a lentidão tremenda dos aromas, nem era luz primeiro, mas bateram por entre as temperaturas, vim quem ver, quem vir assim, por climas climas climas, ora faiscando, ora o frio se vestia, os mapas a dizer todo o arco-voltaico, um leque que o ouro penteava, ramagens de álcool, nessa rede de sono onde o crânio, escorre uma gota viva de veneno, crepitam fungos, fogo alvo, o espírito tem a lavoura da luz, urdiduras nos cimos, minas, graus centígrados, e em baixo as massas tensas da sonolência, com suas úlceras, centopeias bruscas,
saber o que se esquece em som, então sobem as salas, ferventes, brancas, e o clima de Deus espancado de luz rara * geografia em pólvora, solitária brancura deflagrada, é a flor das lâmpadas, poeira a fremir por canos finos, largura escoada, imprime-se o espaço em transe, pulmões na camisa, por ser devagar, por o mel escorrer, distraído, frio, ou fervendo na cabeça, sempre a porejar da pedra, lento no rosto que a luz colérica varre, sempre na atenção pendida, ou grãos luzentes toda a noite no fundo branco, fechado, o mel, no limiar, a casa alagada, flutuante, acesa, e fosforescem cartas, mapas, golfada de seda abrupta em cima do estremecimento do meio-dia, canais de mel, os androceus, manchas queimando, sobre as pautas desdobradas de baixo para cima * animais rompendo as barreiras do sono, os espigões no ar, carregado o sangue em baixo, orquídeas a caminhar com as cabeças cruéis, por trás dos ossos escorregava o mel negro, a fulva devassidão mamífera, imprimiam nas áreas actuais suas passagens leves, delirantes, quadrúpedes, obscuras, franjas tremiam, uma aura amarela equilibrava o espaço animal, um buraco de respiração, braçada de odor rápido, rompiam o sono, as espadanas transparentes na pele, uma luz transpirada, mexiam-se pela alvura varrida, cravados quando aplainado o ar na película, cerimónia fervilhando de ouro na sombra, balanço ritual dos êmbolos, a combustão dos pêlos perfurando as cabeças, coar do tempo gota
a gota, café cerrado, e depois tubos de pedra onde o som ferve e a qualidade ligeira e forte da matéria se transvia * nervuras respirantes, agulhas, veios luzindo ao longo das vozes, espaço que o som apaixona. éter a arder, tumulto dealbado na brancura, e desaguam ínsulas leves, penínsulas, franjas irradiantes, vibrando entre os paredões de luz, istmos, vísceras, doçura malevolente, as vozes fervendo, fervendo, oxida-se a cabeça nas pautas rudes, a morte, áspero enlevo, eriçamento interno, vozes pênseis fluorescendo, manchas carregadas de pimenta, claras, o écran raiado, a comburente aparição de jardins atentos, suspeita vertical do vácuo, vozes, jardins, de patas irracionais, avulsas, as frias vegetações de radium, e sobre túneis de sangue, ressurgidas em cima, as vozes celebrando assustadoramente * essas vozes que batem no ar, esses parques a ferver, essas vozes fulgindo de pólen, cruel delicadeza das aranhas de ouro, vozes queimadas pela pressa dessa luz no campo desse sono fora, estuário, clarão compacto, atormentada energia placentária, e atravessam as imagens minuciosas, delinquentes, rasas, ora dactiloscopias, ora pontilhações pedestres, retratos, ou linhas ríspidas, temperaturas, incessantes climas colonizam o vazio multiplicado, ao meio, na matéria grave, o delírio, cabeça arqueada pela virgulação de pétalas vingativas, texto crispando o corpo no alto, desarrumação do silêncio, arquejante altura, chispas, insectos refractados, os olhos poliédricos vão lendo.
minúsculos, fanáticos massas implacáveis, tensas florações químicas, fortemente maduras, na alvorada que aparece atrás, mortas, e no lençol de gelo manchas bloqueadas, cortes, negras estrias, o som, sangue, tubos de sangue, sangue tubular, som tubular, gemem, rudimentares, assoberbados, os pulmões, folhagem quente, perfura o som no ar a traqueia eruptiva, respiração, cacho a arder nas redes finas, jorro de lâminas, e a morosa manhã renascente, compreendida, rarefeita de folhas, tumulto branco, cancro, precipitação em brasa, uma abertura interior latente, barcos levam todo o álcool lívido sobre águas fotografadas explodindo, a lentidão consome a carne, formigas incrustadas, uma gota de veneno na cabeça transparente, antenas de ouro, o doce povoamento carnívoro, bruscamente o sono exalta as apuradas linhas do esquecimento, ao fundo, batem, pulsam paisagens de uma canção irregular, clara, onde se treme, levemente alto, crivado de imagens implacáveis, os pés tocando a folhagem negra, a cabeça degolada por um esplendor obsessivo * tudo se espalha num impulso curvamente branco, a crista aberta com silêncio fulgurante, a imagem que agoniza, e logo o tempo caído num espaço sem tempo, freme a fonte algures simultânea, e a voz num sulco de sangue criminal, sobre os pulmões o rítmico decalque carbonizado, nervos queimando a lentidão da cabeça pululante em toda a parte, animal, sonolência vibrante, uma auréola selvagem sobre a febre, e pinhas
de ouro incrustadas, inocentes, o perpassar atroz de antigas noites saindo para as luzes frias, de alto a baixo os órgãos doces fendidos pela faca milagrosa, a loucura, gota a gota se destila a droga nesta coisa viva, a dor de ter um rosto a tremer no mundo, entre planos de noite e planos de luz parados sobre a agonia, águas de Deus correm numa paisagem geral e obsessiva, e no terror de uma brancura explosiva, a morte ao alto, fixa 1970.
ANTROPOFAGIAS TEXTO 1 Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão da voz a insinuação de um gesto uma temperatura à sua extraordinária desordem preside um pensamento melhor diria «um esforço» não coordenador (de modo algum) mas de «moldagem» perguntavam «estão a criar moldes?» não senhores para isso teria de preexistir um «modelo» uma ideia organizada um cânone queremos sugerir coisas como «imagem de respiração» «imagem de digestão» «imagem de dilatação» «imagem de movimentação» «com as palavras?» perguntavam eles e devo dizer que era uma pergunta perigosa um alarme colocando para sempre algo como o confessado amor das palavras no centro não tentamos criar abóboras com a palavra «abóboras» não é um sentido propiciatório da linguagem introduzimos furtivamente planos que ocasionais ocupações («des-sintonizar» aberto o caminho para antigas explicações «discursos de discursos de discursos» etc.) fixemos essa ideia de «planos» podemos admiti-los como «uma espécie de casas» ou «uma espécie de campos» e então evidente para serem habitados percorridos gastos será que se pretende ainda identificar «linguagem» e «vida»? uma vez se designou mão para que a mão fosse uma vez o discurso sugeriu a mão para que a mão fosse uma vez o discurso foi a mão partia-se sempre de um entusiasmo arbitrário era esse o «espírito» o «destino» da linguagem agora estamos a ver as palavras como possibilidades de respiração digestão dilatação movimentação experimentamos a pequena possibilidade de uma inflexão quente «elas estão andando por si próprias!» exclama alguém estão a falar a andar umas com as outras a falar umas com as outras estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência para todos os lados sugerindo obliquamente que se reportam a um novo universo ao qual é possível assistir «ver» como se vê o que comporta uma certa inflexão
de voz é uma espécie de cinema das palavras ou uma forma de vida assustadoramente juvenil se calhar vão destruir-nos sob o título «os autómatos invadem» mas invadem o quê?
TEXTO 2 Não se vai entregar aos vários «motores» a fabricação do estio o sussurro da noite apresentada pormenores para um «estilo de silêncio» ou inclinações graves expectando «instantes iluminatórios» é certo que o cenário ganharia uma qualidade empolgante mas desiste-se porque «a mão» vem depressa indagam; que mão? que direcção? que posição? indagam que «acção de surpresa e sacralidade» (se há) o que houver «e vê-se pela pressa» é uma espécie de vivacidade ou uma turbulência íntima e ao mesmo tempo cautela poder serena destreza de «chamar» de dentro do pavor e «unir» por cima do pavor agora estamos a fazer força para afastar o excesso de planos multiplicidades antropofagias para os lados todos que andam «procuram um centro?» sim «uma razão de razões» uma zona suficiente leve fixa uma como que «interminabilidade» serve o cabelo serve uma pedra redonda — a submissão de um animal colocado sobre o seu próprio sangue ingénuo temas de dias consumidos ou consumados teatros para saídas altas entradas altas saídas baixas entradas baixas «movimentos» aí mesmo é que se desmata o sítio excepcional o acaso da ocasião fértil por si mão para «escrever» um propósito inerente a natureza compacta de um «peso movimentado» até se encontrar como «peso próprio» esta doçura que é o escândalo dos «mortos usando cabeças de ouro o terror da riqueza» mão apenas em dedicatória a lavouras desconhecidas da «festa» ela mesma a sua festa inferida de aí estar sobre o rosto que se imprime de dentro a «rotação» irresistível enquanto desce enquanto os lábios fervem da sua «lepra» e trevas e luzes se combinam numa tensão interna «escrita e escritura» desenvolvidas pelo silêncio que as não ameaça mas de si as libera como uma borboleta ávida uma dona do espaço visível proprietária da luz e sua extensão «sinal» daquilo que se abriu por sua energia mesma e nenhum arrepio de horror sequer um «transe» fere o flanco oferecido ao mundo apenas um «nascimento» o ritmo trabalhado noutro e trabalhando
outro ritmo como a malha das artérias um mapa uma flor quentíssima em fundo de atmosfera
TEXTO 3 Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé no sítio uma coisa muito forte na cabeça no coração nos intestinos no nosso próprio pé pode imaginar-se a ventania quer dizer «o que acontece ao ar» é a dança pois vejam o que está a fazer o bailarino que desata por aí fora (por «aí dentro» seria melhor) ele varre o espaço se me permitem varre-o com muita evidência somos obrigados a «ver isso» que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve o sítio rítmico no pé rítmico? e digo assim porque se trata do princípio «de cima para baixo de baixo para cima» que faz? que fazem? oh apenas um pouco de geometria em termos de tempo um pouco de velocidade em termos de espaço dentro de tempo «vamos lá encher o tempo com rapidez de espaço» pensam os pés dele quando o ar está pronto o «problema» do bailarino é coisa que não interessa por aí além mas são chegados os tempos da agonia estamos «exaltados» com este pensamento de morte é preciso pensar no «ritmo» é uma das nossas congeminações exaltadas na realidade algo se transformou desde que ele começou a dançar sem qualquer auxílio excepto não haver ainda nomes para «isso» e haver os ingredientes do espectáculo i. e. a qualidade «forte» do sítio e pés esperem pela abertura de negociações entre «não» e «sim» hão-de ver como coisas dessas se passam não vai ser fácil os recursos de designação as acomodações várias já se não encontram às ordens de vossências comecem a aperceber-se da «energia» como «instrumento» de criar «situações cheias de novidade» vai haver muito nevoeiro nessas cabeças e ainda «o coração caiu-lhe aos pés» o banal a contas com o inesperado talvez então se tenha a ideia de murmurar «os pés subiram-lhe ao coração» pois vão dizendo que exagero logo se verá também Jorge Luis Borges escreveu esta coisa um nadinha espantosa «a lua da qual tinha caído um leão» nunca se pode saber maçãs caem Newton cai na armadilha quedas não faltam umas por causa das outras os impérios caem etc. o assunto do bailarino cai mas sempre em cima da cabeça e estamos para ver Cristo a andar sobre as águas é ainda o caso do bailarino
«o estilo» claro que «isto» apavora a dança faz parte do medo se assim me posso exprimir
TEXTO 4 Eu podia abrir um mapa: «o corpo» com relevos crepitantes e depressões e veias hidrográficas e tudo o mais morosas linhas e gravações um pouco obscuras quando «ler» se fendia nalguma parte um buraco que chegava repentinamente de dentro a clareira arremessada pelo sono acima insónia vulcânica sala contendo toda a febre «táctil» furibunda maneira esse era então uma espécie de «lugar interno» áspera geologia alcalina e varrida e crua exposta assim à leitura que se esqueceu do seu «medo» o corpo com todas as «incursões» caligráficas «referências» florais «desvios» ortográficos da família dos carnívoros «antropofagias» gramaticais e «pegadas» ainda ferventes ou minas com o frio bater e o barulho escorrendo «um mapa» onde se lia completamente o sangue e suas franjas de ouro o irado desregramento da «traça primeira» e o apuramento do mel com a labareda inclusa o corpo na prancheta para a lisura sentada onde se risca a posição mortal «um papel» apenas a branca tensão do néon no tecto o jorro de cima «declarando» qualquer rispidez a suavidade toda uma bastarda graça de infiltração na sonolência ou explosiva «vigilância» combustão das massas ao comprido do «desenho» irregular e só então assim desterrado do ruído nos subúrbios ele apenas agora «composição» forte e atada de elementos escarpas rapidamente decorrendo corpo que se faltava em tempo «fotografia» de um «estudo» para sempre como lhe bastava ser possível tão-só uma certa temperatura grutas aberturas minerais palpitações no subsolo tremores anfractuosidades esponjas onde pulsavam canais dolorosos e a arfante matéria irrompendo nos ecrãs com o susto leve das «manchas» que se uniam essa energia sem espaço súbita «geometria» a costurar de fora mordeduras velozes delicadezas nervuras vivas para seguir até ao fim «com os olhos»
como uma paisagem de espinhos faiscantes «o contorno» que queima de uma lâmpada acesa toda a noite no gabinete do cartógrafo
TEXTO 5 «Uma devassidão aracnídea» se se quiser Põe aqui uma descontente atenção e é quanto basta «aqui» O único problema é encontrar essa se possível dizer como que «clareira obscura» aqui onde existem «áscuas de ouro» o silêncio ex.: «não se precisa sair do silêncio» por favor eu quero dizer que «é preciso entrar nele» no silêncio das clareiras obscuras das áscuas de ouro ficar como um cavalo no campo e não decerto por acaso falo de um cavalo no campo uma coisa completamente viva e completamente distante «que está» notável que se estabeleça um cerco de cabeças com apenas «um toque de lume» veja-se uma expressão tudo a fazer força de dentro no escuro um só «lampejo» tudo para fora uma víscera brilhando «para ver» uma tensão «como se comessem bananas» os intestinos a arderem pelo poder dos alimentos coisa sibilina essa afinal sempre a mesma o toque áspero na raiz dos cabelos «eles eriçam-se» o medo de saber alguma coisa quando se vê o campo o cavalo tudo vivo e longínquo «trouxeram fotografias onde estava o silêncio ainda todo molhado e atravessaram-no parando aqui escrutando» o gosto era já algo tão puro como uma vocação há «aí» uma bruta elegância uma coisa fugitivamente louca «uma devassidão» que é como uma referência às «palavras» mas tinham medo de dormir o sono traz uma gentileza perigosa e também porque «no sono se revela o rosto» bem sei forçoso é colocar os dedos lã no fundo «queima» dizem e «pois é verdade que queima» ora não havia de queimar «que pensam eles?» é o silêncio ainda têm uma certa leviandade porque examinam tudo como se se destinasse a «uma paisagem interrompida pelo frio» em termos despropositados «uma pontuação coerente» precisava-se de «um pintor de cavalos» um homem que abandonasse a família apenas para ser um obscuríssimo «pintor de cavalos» uma criatura viva de dedos vivos longínqua de coração longínquo nada menos que um selvagem que viu «monstros dourados» e a si mesmo dissesse «entrega-te ao que melhor te pode esquecer» ou «dez dedos ainda assim é extenso para quem tem uma vida» animais blocos de ouro uma energia inexplicável
toda a luz sugeria nele uma pulsação nocturna uma leveza indomável uma leveza ele entrava na posse de uma «visão» uma herança de ritmos então poderia destruir tudo numa «devassidão aracnídea» o perto e o longe «o cavalo no campo» ele «o bárbaro» apenas um pintor de cavalos «o impossível»
TEXTO 6 Não se esqueçam de uma energia bruta e de uma certa maneira delicada de colocá-la no «espaço» ponham-na a andar a correr a saber sobre linhas curvas e linhas rectas «fulminantes» ponham-na sobre patins com o stique e a bola como «ponto de referência» ou como «pretexto espaço-tempo» para aplicação da «dança» experimentem uma ou duas vezes ou três reter determinada «imagem» e metam-na «para dentro» assim imóvel e fiquem parados «aí» com a imagem parada talvez brilhando é qualquer coisa como uma sagrada suspensão e abrindo os olhos então o jogo retoma a imagem que entretanto ficou incrustada no escuro a brilhar sempre e dela «parece» que o movimento parte de novo é uma «linguagem» e energia e delicadeza atravessam o ar espectáculo do «verbo primeiro e último» apanhem a figura «absoluta» do pé esquerdo o patim refulge a mão direita «prolonga-se» vamos achar bem que o stique seja a «respiração» extrema e extensa a bola põe-se a «caligrafar» todo um sistema de planos intensos leves «metáfora» decerto minuto a minuto destruída pela pergunta «que jogo é este para o entendimento dos olhos?» a resposta «alegria» tudo esgota mas só um sentimento de urgência corporal dá ao jogo uma «necessária dimensão» «o jogo respira?» perguntam e diz-se «que respira» «então deixem-no lá viver» como se se tratasse de «uma criatura» podemos confundir «isto» com «acertar»? o jogo apenas acerta consigo mesmo e este acerto é o próprio «jogo» nele ressaltam só qualidades de acção força delicadeza envolvimento em si mesmo e o prazer de maquinar o universo numa restrita organização de linhas vividas em «iminência» de imagem em imagem se transfere o corpo sempre à beira de «ser» e parando e continuando e ainda «apagando e recomeçando» como se continuamente bebesse de si e tivesse o ar pequeno para demonstrar a grandeza de si a si mesmo «referido a quê senão ao absurdo de um espelho?» «a enviar-se» cerradamente entre os seus limites zona frequentada pela «ausência viva» destreza porque sim forma porque sim aplicação porque sim
de tudo em tudo de nada em nada pelo gozo «básico» de «estar a ser»
TEXTO 7 Tenho uma pequena coisa africana para dizer aos senhores «um velho negro num mercado indígena a entrançar tabaco» o odor húmido e palpitante sobe dos dedos a subtileza «rítmica» dos dedos chega a ser uma dor fere na cabeça o pensamento da sua devotação extrema quase «intáctil» sobre algo «algo tabaco» o que começa a tornar-se como uma «loucura comovida» por cima dessa massa viva de tabaco «como ele aflora Deus digitalmente debruçado!» de repente «vê-se» a inocente diligência o «sim» sem nada mais o medo como se fosse mel a escorrer do crânio por tudo ser de novo tão concentrado e leve a dor em nós de uma tão forte «ignorância activa» «a fazer-se» uma prova de elegância na «razão» do tempo nenhuma dúvida apenas a lisura branda de um «estilo» transcorrendo apetece não ter mais do que a interminável «escrita» prestes a sufocar e dedo a dedo salva nas suas pautas gravada a direito como uma implacável «pormenorização oracular» como se pode tornar tão veemente uma doçura humana tão pertinaz a graça e terrífica a digitalidade do «silêncio» e a candura quase a corromper-se à força de candura e então o puro toque no tabaco cria uma «fria ocorrência de pavor» pois tudo é «ambíguo» nesta «rima obsessiva» a pertinácia ganha «formas» insuportáveis dedos na nuca ligamentos invisíveis de tendões centros nervosos irradiando impulsos cruéis imóveis animalidades fremindo ocultamente debaixo da «luz» e percebe-se então o «sangue» a ir e vir sempre «entrançando» o movimento dos dias e das noites sobre a tranquila «germinação» e a terra como um monstro «maternal» que parece dormir planetas a gravitar em redor dos dedos uma dolorosa absorção do tabaco pelo ritmo e assim «é isto o estilo?» até que a cabeça é como «a vista» e a ideia desta coisa se transforma «nesta coisa» e quando enfim alguém «realmente» adormece nada pára e o tabaco continua a ser entrançado por dedos «negros» em todos os «sentidos»
e nunca mais será possível esquecer tudo se repercute um toque passa um toque a matéria passa de matéria em matéria o ritmo ligeiro como uma alucinação falanges falanginhas e falangetas no «tabaco terreno» a pulsar «linguagem» extenuante pela sua própria «verdade»
TEXTO 8 Nenhuma atenção se esqueceu de me cravar os dedos na massa malévola e fervente e levemente doce de um grande «vocabulário» até que apenas quis ter as mãos expostas ao ar e à minha frente o deserto pétreo das cacofonias uma pobre selvática e eriçada «linguagem» uma crua «exposição de designações» brutais sem vícios de beleza ou graça ou ambiguidade chegar à «leitura explícita» de mim mesmo «texto» sem marés «colocado» definitivamente sempre em mim se avizinhou o «excesso vocal» da «vocação silenciosa» sempre a «movimentação errática» se aproximou de um «sono extenso» e logo entendi mal se fez para os meus olhos a «dança imóvel» o acesso à «paragem fremente» foi-me dado como ciência infusa o palco apenas sem cenários a personagem sem gestos a fala «não aposta nem suposta» isto só bastaria como «acto» de cima e de baixo uma luz «indiscutível» bloco visão fulminante do «sentido» de tudo a impossibilidade de «rotações e translações» precipitação mortal e ainda voluta faiscante para o corpo chegar-se o arco de si próprio tangível apertado completo contudo estão sempre a virar-me para a «paisagem» dizem «vê as colinas a andarem em todos os espaços ao mesmo tempo» levam-me assim à audácia dos «espectáculos» desviam de mim «o centro» essa paixão da unidade «o compacto discurso» das trevas ou da luz «gradações» sibilam eles contentes da subtileza mas eu estou para além disso unido às vísceras pelo seu próprio fogo não me enxameiem a cabeça com as aspas coruscantes uma nostalgia dourada do «dicionário» que eu podia trava-se um pouco «a marcha» mas vou para um «silêncio que treme» «o violino sobre a mesa» a poeira que vem «produzir a eternidade» depois a alegria total de uma tentação dos dedos parados franquear a violência luminosa
suspensa qualquer maneira de intervir na «música» subindo por dentro a «temperatura» até os termómetros caírem por eles abaixo e a «explosão» preparada sorver-se implosivamente e para sempre se restabelecer a «linha viva» que une ao ar a labareda um discurso sem palavras atravessado pela febre fria de um saber extremo «irredutível»
TEXTO 9 Porque também «isso» acontece dizer-se que se lavra a cantaria ou mesmo «espaços de luminosidade» a negra dança lavra-se sobre a ficção unitária do mundo é um modo demorado de ver «uma porta que se abre» afinal subitamente de uma ordem para uma ordem certa pela «revelação» fulgura aqui a sabedoria do «tacto» dedos a ler por linhas quentes e pensa-se que se há-de encontrar «um nó» o fulcro dessa palpitação a correria dos «sinais» para uma «pauta» através de «temperaturas» surgem ideias como «atmosferas» ou «climas» regista-se entretanto que é uma «transformação do ritmo» «rosto» alguma coisa que procura equilibrar-se acima das águas que requer «a sua zona» além das neblinas e vapores uma «escrita» com a glória própria cometida contra ameaças climáticas distorções de leitura ligas suspeitas de matéria «levezas e pesos» precipitados irreferenciáveis volúveis quem é? que é? que limite estabelece ao concreto? que desencadeamento solicita ao meio das forças? o rosto dirigido não já para o seu próprio «reflexo irradiante» mas a «absorção» do poder difundido para um novo impulso centrífugo «diálogo daqui para lá» cerrada conversa entre forma e formas troca sem fendas comunicação ininterrupta o eco da pancada é a outra pancada e uma pancada única sustém a tensão do som uma «permanência» dos sentidos voltados «entre si» para o que são em si mesmos «sentidos de algo irrefutável» a forma enfim criada pelo «gosto de ser» e para o «gosto de que seja» que a vergastem luzes e serão as «suas» luzes gravita dentro e fora do que é o seu «movimento interior» e «exterior movimento» ao longo da «resposta» quando tudo pergunta «onde?» decerto se tece o que sobre ela fervilha de «temporal» fios partidos ondas quebradas a chama que se desliga da obra quando a mão se levanta da prata mas ficara «gravação» do tumulto na geometria ou severo «número» em tudo o que atravessa a desordem das coisas geralmente «todas elas»
TEXTO 10 Encontro-me na posição de estar freneticamente suspenso das «cenas» nos fundos da «noite» algum «teatro» vem declarar-se pronto para as suas «leituras» o «movimento» procura o «corpo» propriamente permissivo limpo uma «biografia» de animal feita da sua fome e sede e da sua viagem «até onde» «lugares» encontrados «narrativas» a ocupar uma «atenção última» a flor que se organizou de um povoamento de «esforços» florais «tentativas» erros riquíssimos a cena traz ondas de treva o silêncio que a «tradição» manda: «gaste-me» traz alguns truques de «estancar e escoar» um pouco de pavor enquanto há «véspera» mas não é sempre a noite? entanto já se institui uma «crónica diuturna» um helicóptero «por extensão» persegue a sua paisagem uma paixão do pormenor inventa os seus «óculos» porque há «coisas para saber» e para já sabe-se que entre as coisas para saber espera «a coisa» para saber dessas coisas o lado tenebroso do corpo que avança debaixo das luzes? agora «a abertura irradiante» da treva por onde não bem surpresa não bem milagre não bem tremer de pés e mãos não bem isto ou aquilo mas uma «vertigem» que encontrou a «altura» justa se instalou nela fez «a perpetuidade da época de perigo» agarra-se a esse «destino» a «personagem» saída do «trabalho das palavras» dobra-se sobre esse medo esse pasmo e alegria essa antropófaga festa de «estar sobre si» e de essa obscura dominação «estar em cima dela» polpa asfixiando o caroço e agora o caroço cancro de frias nervuras fortes tão «praticável» a «cena» em que os doces buracos se abrem ao veneno essa «troca» de malevolência íntima e energia íntima uma «ironia» como que intangível com que se pintam cenários de montanhas em metal ramagens vermelhas irrompendo de paredes negras uma lua aparentemente desaproveitada tudo «inteligências» para «o equívoco» pés descalços que chegam para iludir a ilusão de iludir e depois apenas «o corpo» onde é «o sítio de nascer» com as suas obras todas implícitas a noite onde se habituou a noite que ele habituou
a ser a única sua noite e o pano corre «escreve-se» depressa a si mesmo «o texto» o corpo escreve-se «como seria e é» que não acaba e começa grande e sempre na «altura» propícia e precipício teatral «maior» e nem «a mão» se moveu para que fosse «escriturada»
TEXTO 11 «Estudara» muito pouco o comportamento das paisagens «do tempo» pergunto «que sabia ele?» bruscamente voltara-se para uma explosão de álcool algures na «biografia» no «mapa» dele naquelas partes que mexem de leve junto ao fígado? à espinal medula? coração? intestinos? nada conhecia das «transcrições» que logo começam a ferver se caem sob os olhos foi apenas o melhor numa «agonia transparente para si mesma» um morto veloz na maneira de pôr os dedos sobre a «escrita impossível» treinara o medo como se faz com uma foca tinha uma cabeça muito boa para isso e o medo apanhava no ar o seu peixe cruamente alimentar percebia ainda que «tudo» poderia ser «electrocutado» de «luz e trevas» não distinguia nada e desejava da sua «desatenção paciente» e do «vocabulário em pânico» fazer pelas cercanias da sua morte fazer talvez uma espécie de «jardinagem» o menos peremptória possível mas exaltante alguém às vezes passando debruçava-se queria «respostas» «o que era e quem e como e onde e porquê» tudo curiosidades estranhas ao seu tão grave «trabalho» todos os dias mais lhe cresciam os «órgãos» inúteis devotara-se ao «movimento» assustador da «limalha» magnetizada morria morria de pura limalha andante e alguém passando desejaria saber do «íman» «onde? qual?» e talvez «para quê?» sim senhores ele trabalhava bem nestes «instrumentos» pequenos eram para sempre o seu «modo de escrever» a tempo «o erro todo» da infância fora para a adolescência e daí entrara nos territórios ferozes e mais tarde pendera-se em pinha fervilhando maduramente como um unido enxame dourado de abelhas negras bem se lhe podia chamar «analfabeto» se algo se pode chamar a quem se interesse tanto por «nada» do «alfabeto» «ele via alguma coisa?» perguntam «via por acaso o que vinha fazendo por fora ou que por fora lhe faziam a ele às imagens às épocas aos centros e subúrbios de tudo?» nunca encontrara a contas com qualquer «casa» qualquer «operário» tão desavindo com a sua obra como ele
tudo estava no «sítio» certo onde não estava apenas o «talento» dele de estar lá por isso nunca fazia bem o que fazia bem era um «mestre» na «arte longa» de perder «gramática» e por isso é que ia sabendo como era isso tudo
TEXTO 12 Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu «suicídio» a bater com os nós dos dedos pelas paredes a abrir e fechar as mãos para que o ar saltasse como «modeladas» («moduladas») aparas de «som» um poeta nos limites da «consumação» à procura de um «ponto de apoio» apenas levemente «perceptível» para a terrífica massa de «silêncio» que lhe cabia a ele que procurara sob as ameaças da confusão «estabelecer as vozes» uma vez pensara: «que o corpo permitisse o corpo» e fora para diante com essa ideia era decerto uma decisão «explosiva» ele estava sentado a fazer aquilo «por dentro» e foi-se vendo pelo seu «rosto» que não era fácil tomar a cargo a coruscante «caligrafia do mundo» mas ele tomou-a até onde pôde e o «corpo» era já o outro lado da «agonia» um «texto monstruoso» que se «decifrava» apenas «a si próprio» depois veio o toque no estuque e nas portas que finalmente não davam nenhuma saída ao excesso «corporal» de tanto «trabalho» tanta «poética transgressora» tanto «nome» abusivamente «físico» veio o ar espadanando à passagem da «natação» desesperada avisos de um nó de som a ainda ingénua «vacilação de planos» quando a vozearia criara por fim a «distância» uma «fractura no espaço» a «vírgula» a fremir na «ausência» isso o «sítio» onde apoiar a «alavanca» porque essa «energia do silêncio» já atingira algumas partes da «biografia» dele do «sono» de tudo quanto fizera seu ou lhe viera enfaixado no «sangue» e o que pretendia era só colocar a «música extrema» ao alcance dos «ouvidos» referir a uma «pauta» o silêncio em toda a parte estivera como tanta gente a «ressuscitar» metade do tempo e metade dele a «morrer» muito e muito achava então que tudo deveria ser levado até à «decifração» por fim havia isso de estuque e dedos para tentar saber e o ar como deserto a ver se dele irrompia «o princípio da fertilidade» do rosto não sei se era «a luz» que o alagava ou «a noite de tantas noites» enquanto o «suicídio» se acercava não como uma espécie
de «regra final de ouro» acercava-se apenas e os dedos a baterem sempre na madeira e o ar fendendo-se enquanto fremiam ainda as barbatanas a ver se havia alguma coisa a seu favor no mundo que não havia 1971.
ETC. Como o centro da frase é o silêncio e o centro deste silêncio é a nascente da frase começo a pensar em tudo de vários modos — o modo da idade que aqui se compara a um mapa arroteado por um vergão de ouro ou o medo que se aproxima da nossa delicadeza e que tratamos com o poder da nossa delicadeza — temos de entrar na zoologia fabulosa com um talento bastante fabuloso pois também somos a vítima da nossa vítima — e ofereço à perscrutação apenas uma frase com buracos assinalando uma cabeça escritora assim era — dizia a própria cabeça — um queijo suíço a fermentar como arcturus fermenta na treva celeste e apura os volumes e a qualidade dos volumes da luz — desde que a atenção criou nas coisas o seu movimento as formas ficaram sob a ameaça do seu mesmo movimento — o mais extraordinário dos nomes sempre esbarrou consigo mesmo com o poder extraordinário de ser dito — qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez é lenta — basta olhar para a paisagem da escrita já antes quando começa a abater-se pelo seu peso e o espírito da sua culpa — porque uma frase trabalha na sua culpa como a paisagem trabalha na sua estação — o merecimento a ver quem a ele chega primeiro ao buraco do coração — ver ou ser visto — ao buraco que transpira no meio do ouro — se é ele o ouro ou se o ouro está em volta tremendo como um nó vivo implantado em cheio na madeira — e a única meditação moderna é sobre o nó absorvendo a madeira toda — uma espécie de precipitação convulsa da matéria para o seu abismo próprio — e sobre a tábua despida incorporando cada nó que fica a palpitar com a força no tecido inteiro da tábua e lançando na tábua a sua energia mergulhada de nó — porque em toda a palavra está o silêncio dessa palavra e cada silêncio fulgura no centro da ameaça da sua palavra — como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro e
cumpre também falar do desafio do espectáculo — o teatro dentro do teatro — o travesti shakespeareano na dupla zona da forma e da inclinação para o sentido enigmático — a rapariga vestida de rapaz interpretando a função oblíqua de rapariga perante o rapaz vestido de rapariga interpretando a misteriosa verdade corporal de rapaz — o que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta através das armadilhas — porque a vertigem é um acesso às últimas possibilidades de equilíbrio entre a verdade que é outra e a outra verdade que é uma verdade de uma nova verdade continuamente — outra regra do espectáculo é inventar a forma seguinte do enigma de modo a que a frase visível fique junto ao rapto — empurrar o rosto para as trevas — ou retirar da dança os pés e ficar à luz uma espécie de imobilidade — o brilho do rosto já sem o rosto mas com toda a energia e todo o impulso de um rosto ser o rosto teatral — porque também a máscara era a abolição de uma falsa liberdade do rosto — e então não era o rosto que estava mas a eternidade de um teorema — a abdicação das formas que morrem de si mesmas — um salto para o centro — e as presenças muitas brancas enchem a cena apenas de brancura central implantada cega na paragem do tempo — perder o nexo que liga as coisas porque há só uma coisa dada por indícios — uma centelha um sopro um vestígio um apelo uma voz — que a metáfora seja atendida como alusão à metáfora da metáfora como cada coisa é a metáfora de cada coisa — e o sistema dos símbolos se represente como o símbolo possível de um sistema de símbolos do símbolo que é o mundo — o mundo apenas como a nossa paixão posta diante de si — a paixão da paixão — nenhuma frase é dona de si mesma — e então o teatro que apresenta a frase não é dono de nada mas só do recurso de ganhar uma regra e recusar a regra ganha — assim como a voz abdica no silêncio e o silêncio abdica na voz para dizer apenas que é uma forma de silêncio
um génio animal inexplicável como uma queda no escuro — enquanto as vozes são cada vez mais astrológicas e loucas — e desaparecemos no silêncio levando com uma grande leveza a queimadura inteira na cabeça 1974.
COBRA Para a Olga.
E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta defronte do ar exaltado. Também se enredava o outono nos pulmões das casas. E guardavam-se lentas estrelas nas arcas, a roupa onde o brilho se dobra. O inverno fazia um remoinho nas câmaras, seus buracos expulsavam a espuma para as ininterruptas paisagens cinematográficas. Um dia era redonda a primavera. E a lua unia a cúspide das artérias às ventosas mais fundas, às rosas nos tentáculos desde os abismos da terra. Que acordava, a lua, as víboras nos alvéolos ou adormecia os bichos-da-seda nas cápsulas ou punha os dedos a luzir diante da boca, abrindo e fechando o poema como um leque de obsidiana. Estive agora na memória com seus fulcros de oxigénio e a energia das patas e as radiações das flores paradas. Um mês nodulunar activo crivando todo o poema ensombrecido pelas veias do mel. Estive em toda a parte onde pulsa o corpo com as órbitas de amianto sob a força pensada, virgem e severa. Desde as águas palpitando entre as bocas e as guelras, desde o sangue sorvido através das válvulas. Nas crateras, o fulgor dos óvulos de faiança. — E é o tempo, o tempo todo: o salto dos sóis no corpo arrancado. — Nesta criança aumenta um arbusto de cálcio. As sementes graves revolvem-se como um pranto. E o medo, este favo cerebral que levo, fermenta debaixo das radiações como um açúcar vivo e gelado. A rotação atómica agarra, entre os frios cabelos e a teia dos ossos e as coxas implacáveis
e o sistema planetário de pés e mãos delgados, agarra agora as esponjas rutilando como abelhas nas furnas ou um gás nas câmaras da morte. Estou deitado, e os lençóis fluem e refluem nessa ressaca sob o ar arqueado. As mãos no poema, o pénis gravitando a prumo como um corno de mármore. A lua mexe nas estações e nas salas. Passa à mesa sobre um litro de anis, sobre pequenos jardins de cristal engarrafados. E o ar gira e explode no rosto rápido. Eu iria até ao centro onde flutua a constelação da dança com as labaredas a mergulhar em baixo. Ou à frente, os relâmpagos do corpo culminando. Toco-lhe as campânulas quando os balcões se debruçam na atmosfera, e as colinas irradiam com os astros cravados e desorientam os olhos. A minha idade escapa-se de um lado para o outro, sob os dedos, como um nervo fulgurante. Vou morrer. O ouro está perto.
A força do medo verga a constelação do sexo. Pelos canais nocturnos entra o mel, sai o veneno branco. O sono estrangula as chamas da cabeça nos veios atados. As costas crepitam numa linha lunar de clarabóias. Rutila a flor do alimento, talhada: o ânus. E brilha rebrilha, uma luva puxada pelo avesso, o corpo puxado pelo avesso com as estrelas desfechadas. As casas ateiam-se. Com linha negra a tecedeira lavra a sua flor, com os martelos os canteiros trazem do fundo do granito um meteoro de púrpura afogado. — A paixão é pura maneira de inteligência. Deus recompensa o crime com a voracidade e a energia, a cegueira inspira o cérebro violento — no plexo solar do espelho. Uma criança abisma-se no génio analfabeto: o pavor que a arranca de tudo. Qualquer doçura lhe alimenta os esplendores da alucinação: pelas altas águas descontínuas, as vozes, as frutas tecidas, movimentos, labaredas parietais, a profundidade dos quartos como pomares atmosféricos. — Oh crianças de negros rostos ressurrectos. Elas adivinham. E tombadas as luas, No cúmulo dos dias, nuvens de mármore sobem dos vulcões dos parques. Há crianças paradas nas cavidades como os olhos das casas.
Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno. Passo por jardins zodiacais, entre flores cerâmicas e rostos zoológicos que fosforescem. Lavra-me uma doença fixa. Ilumina polarmente os quartos. Todos os dias faço uma idade bubónica. Quem vem por fora vê camisas apoiadas à luz, a doçura, partes vidradas do corpo. Perto, deslumbra-se com o pénis como um chifre de coral intacto. Às vezes não sei gritar com a boca toda luzindo. E queima-se em mim nervo a nervo a flor do diamante. Fulgura o oxigénio na sua caixa de vidro e a cerveja gelada como uma estrela num copo. Não falo com ninguém quando o sangue é arrancado pelas luas, à porta, o ar sibilante cheio de paisagens. As víboras sonham no ninho, turquesas, pedras, mas eu estou com um braço de ouro sobre a cama. E vou deixar a terra eléctrica na sua renda concavamente leve. O mundo — este arrepio concêntrico: olho fixo por onde toda a matéria contempla o espaço descentrado. E um jorro desencadeia-se pela coluna com uma rosa mental arrastada para o alto. Nenhum lugar é ouvido nos silêncios que tem de dentro para fora. Posso atar um laço em volta de cada coisa, com um sussurro estreito. Os meus pés resplandecem sepultados nos sapatos. — Fala-se de um tigre, talvez, um tigre profundo, sem sonhos, movendo-se nos aros do seu próprio corpo, um feixe de chamas de cada lado. Mudo a floresta, vejo os planetas passar, os cavalos. E vou deixar o mundo, eu, cometa expulso dos buracos da pedra. De dedo para dedo os anéis luzem, terríveis, de ouro forte, fechados como serpentes fio a fio. Pela força dessa ressaca, a limalha salta entre a boca e o sexo. Abisma-se o mistério
animal até ao centro da caça. Atraio Deus. Leão vermelho a brilhar nas clareiras à frente das incessantes mãos do caçador. Porque eu nunca falo, de noite, com ninguém. A minha arte de ser é venenosa, quieta e aterrada. Mexem no leite, as salas recuam pela casa, nos alvéolos do corpo desatam-se os pequenos astros. E o silêncio torrencial da atmosfera televisionada irrompe pelos quartos amontoados.
A parede contempla a minha brancura no fundo: paisagem resvalada. E com o olhar redondo de ouro ríspido, da parede me fita o cometa, entre as omoplatas, onde começa o nervo da flor toda unida ao cimo da labareda. E rola à noite a luz sobre os lençóis, e os nós do rosto absorvem todos os átomos. Porque sobe um soluço dos centros gravitacionais de um bicho. Um soluço, um tétano. A água escoa-se pelas esponjas dos órgãos e dos fatos. São corpos celestes nos recantos dos salões engolfados, ressumando luz própria — e dos intensos poros da madeira exalam-se os bosques completos. Ou são estrelas negras, os corpos, se a noite se chega para diante, assim depressa, pedra que se desloca varada pelos astros. E as flores nunca baixam as pálpebras sobre os olhos. O umbigo brilha, cego. O púbis brilha, alto como talha. Todo o corpo é um espelho torrencial com as fibras dentro das grutas. Cobra que acorda no fundo de si mesma, o halo ovovivíparo levantado ânulo a ânulo; ou grande raiz fria sustentando o seu ovo soprado; ou as guelras de uma rosa ferozmente em arco. Pela ciência e a paixão do medo, arranco à parede esse nó cristalográfico com a luz estrangulada. Corpo celeste antípoda. Os chifres de ouro afloram na treva. Deus caça-me com uma lança radiosa. Na selva dos meus quartos húmidos, orbitais, volumosos, com uma flecha sonora.
As folhas ressumam da luz, os cometas escoam-se pelos orifícios vivos das casas. E fundem-se as ramas de ouro nos músculos vorazes, os dedos nas massas dos espelhos. E vibra a bolha expelida da carne curva, um rosto a que ceifaram o caule. Não ames roupas, azáleas, água cortada, louça — a leveza. Ama — digo — o que é carregado: as frutas, ou a noite e o calor, e os negros laços atados dos animais. E gravava-se o ouro nos centros ávidos e o ar no espaço e a seda no tacto. O sexo brilhava sobre as mãos no fundo expansivo dos quartos, crepitando com a lepra. Senti nas falangetas o leite manso e a madeira alumiada pelos poros ferozes: o centrípeto feixe das coisas. Senti o mundo tenso como o halo de um dióspiro. Vi a serpente concentrada como um nó de cobalto. — O sonho tão severo e a labareda dentro e o trabalho dos dedos e dos olhos. Pulsava o ar nas costas da pedra deitada ao dia com as crateras fortes: — as narinas e a boca e o ânus. Dia vazado de ponta a ponta branco. Entrava o oxigénio pelas artérias agravadas, a insónia pelas aurículas sombriamente do crânio. A casa cheia tremia vergada pelas luas frontais e veementes a os sóis astrológicos. E estas aram as visões, os maus símbolos Perigosos: a demência, a nudez, o dom, O hipnotismo, o terror, o transe, a graça terrestre e hermética. Sob o choque do ouro estagnado no tórax com a camélia radial explodindo, a brancura ameaçava cada morte. — Violência, claridade, sobressalto.
O espelho é uma chama cortada, um astro. E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos cheios de ar alumiado. De fora, arremessam-se às janelas as ressacas vivas dos parques. Ela toca o nó do espelho de onde salta uma braçada de luz. Cada lenço que ata, a própria seda do lenço o desata. E o rosto que jorra do espelho volta aos centros arteriais. Todos os anos fundos, essa extensa criança sente brotar da terra como as árvores do petróleo a peste bubónica, fina na temperatura, alastrada nos bordados das paredes ou nas crateras da cama. Os lençóis nascem do linho que trepida no abismo da terra, das sementes abraçadas pelas ramas das nebulosas. É perfeito o espelho quando apanha um rosto nuclear. Morre-se muito mais em cada doença, nesses apartamentos que as noites sufocam nos braços de mármore. A energia das jóias. O nó do sexo no espelho, as chamas agarradas entre o umbigo e o ânus. Esse trabalho da claridade quando as válvulas se destapam. Correntes atómicas passam de lado a lado. E ficam os buracos furiosos por onde o mundo sopra um meteoro a jacto, uma cara. Os jardins deslocam-se através de si próprios com as centelhas, defronte das planas constelações dos espelhos. E então, na assimetria severa, ela amaria transformar-se, súbita e solar — equinocialmente no espelho o relâmpago côncavo de um girassol espacial. Que sai assim do corpo: os filões arrancados desse mesmo espelho. E ela imagina na teia de fogo a argila que se transmuda
em porcelana: a curva labareda de uma chávena expelida dos fornos. E entre guardanapos, da mesa à boca, arde em seu anel de estrela metalúrgica a colher em órbita — a assombrosa força terrestre da chávena. E a infância desaparece nas funduras das casas, nos jardins envoltos em nebulosas. O corpo com os electrões fechados.
O rosto espera no seu abismo animal. Vejo agora os estúdios enclavinhados na luz. Depois, serão aspirados pelas ressacas das trevas. E a serpente dorme e fulgura entrançada nos braços. O génio das coisas é baixo como o ouro amarrado em torno do sexo. E nas cavernas de coral vivente pulsam os animais dos horóscopos — andróginos, lunáticos — de cabeças trepanadas por radiações de urânio, movendo-se com as lentas sedas dos corpos pelos sóis à frente e as luas deitadas. E as pupilas ferozes dos mortos contemplam o brilho dos meus poros, o pénis entre as centelhas da minha pele de vitelo brando. A voz ascende como um membro das suas tramas de sangue. Desenvolvem-se nas noites descentradas estes quartos engrandecidos pelo jorro incendiário. Tocam o meio do mundo com os raios. São opacos, vulcânicos. De anel para anel, a garganta por onde o corpo se arranca de dentro. Rosas expiram pelo intenso orifício no meio. As massas de cristal dos quartos planetários
Ele queria coar na cabeça da mulher aprofundada uma labareda, a luz fundida nas clareiras. Tocava-lhe abismadamente o rosto directo, o sexo de ouro bivalve, a jóia do ânus aberto — negra garganta de uma camélia baixando. Queria que ela absorvesse a radiação dos astros centrais, o oxigénio a entrelaçar-se no interior das constelações da carne. E que o membro do corpo inteiro se embrenhasse no sangue que a ligava dentro de estrela a estrela por grandes fibras vibrantes. Os sexos fechados pelas bocas claras, que tudo luzisse anelarmente — e o poder corresse neles, incessante, num insondável quarto, as imagens alinhando-se num incêndio: gárgulas, máquinas redondas, os rostos giratórios. E que em noites soldadas pela respiração nó a nó, sobre lençóis brilhando no seu arrepio de ouro, num sítio de toda a idade com seus animais enredados, estremecessem as roseiras de onde as rosas sorvem o suspiro subterrâneo, o intrínseco movimento atónito. —E então a antiga criança estelar pulsava nele com o oxigénio no extremo dos cordões maternos, soprada interiormente pela claridade dos órgãos afinados na dor e na paixão — suas casas astrológicas movidas pelo fogo baixo e em cima pelo ar muito alto.
A doçura, a febre e o medo sombriamente agravam um forte jardim nos limites da luz olhada. O mel dói, o sangue assalta, o espelho recua até às costas. Também no interior do mundo pesa e palpita um punhado de pérolas. Que a infância é estranha, é uma doença imóvel. Tem um íman no meio. Não é doce usar a paixão do medo, esta maneira de tocar no ouro escurece as mãos. Há crianças que apanham completamente a maçã caída no sono: morrem no coração fotográfico. Porque as labaredas se despenharam nos espelhos. O fogo moveu essa fruta fechada, estrelas congenitais voltaram-se por dentro das crisálidas. Entra uma nuvem se as crianças se afastam, ou reflui a ofuscante madeira dos armários, ou são os lençóis que se arrepiam arrastados pela voltagem dos astros. De baixo para o alto, um incêndio artesiano, um enxame de rosas ferozes. A infância é central como os ramais da água circulando na pedra. Ou a ilha atravessada pela volta dos ecos. Ou a primavera escoada. Ou a espuma que rebenta na fotografia retendo o mundo direito. Através da infância vêem-se os dias botânicos aumentados e os planetas de mármore ascendendo nos quartos e os fotões das abelhas. É um modo límpido de voltar a cabeça para as grutas de ouro, ou expor o ânus branco, ou aproximar ainda o coração dos ávidos sorvedouros da noite. Os mortos reluzem nas cavernas, os nossos mortos de corpo fechado pela perfeição das lágrimas.
Seus órgãos sustidos têm o peso das jóias. Porque a infância é uma visão terrífica, hipnótica. Um transe, os olhos que se tornam secretos, o extremo lunar da casa — pedra queimada no centro da terra.
Tomo o poder nas mãos dos animais — quer dizer: a força quando se soltam as labaredas dos abismos dos quartos. Tudo se agarra no instante em que a casa dorme no centro ateado. Chegar muito lentamente e arrancar a maçã, a mais limpa chama coada pela arvore. A energia das lunações reflui nos nervos do espelho, e a queimadura brilha a pique — flor pulmonar moldada, e em baixo as estrelas pontiagudas das mãos. Assim se reserva nos apartamentos agachados, entre roupas deitadas, o tesouro de um rosto soberano. E a claridade evapora-se do cérebro, ao alto do candelabro: o olho activo de uma flor sonhada. Ascendem dos abismos da elegância os mamíferos arrebatados pela violência astrológica. Ficam de bruços, entre pressões, rotativos, poderosos: fotografias cheias de ar e fogo. E usa-se a morte, uma lembrança genial ou um absoluto inquilinato. — O movimento das casas com os castiçais contínuos como artérias, como terríveis ceptros.
Amo este verão negro com as furnas de onde se arrancam as constelações, um jardim espasmódico quando se atravessam as membranas dos quartos. Resplandeço como um cristal talhado estelarmente na voragem entre a boca e o ânus, como os arcos de um espelho. Toco o nó dos favos — e ferve o mel ao cimo da haste vertebral. Eu amo o tremor das veias que enxameiam as tábuas, amo as colinas de aço nas paisagens. A água sopra nas esponjas que luzem no frio caudal secreto. Vibra a roupa aberta ao longo das cavernas das casas. Com seus passos de pantera a noite avança e bate as pálpebras. — Toda a dança atrai a força, toda a caça atrai os bichos. Deus é atraído pelas canções venosas com os diamantes inteiros. Amo as cabeças, esses laços de pedra. Respira no verão largo a flor com um feixe de artérias.
Que eu atinja a minha loucura na sua estrela expelida pela força dos ventrículos por uma crua boca animal. Nas salas reflectindo os jardins a reluzir com as cadeiras e as mesas sobre as patas de madeira, nos precipícios das casas. — E atrás, a queimadura do rosto repentinamente selado. Eu brilho nos corredores, entre os renques das folhagens e a fogueira de bestas terrestres. Encandeia-me a fundura dos armários que se ateiam pela tensão das roupas encurvadas. Eu amo o ouro baixo nas chamas do dançarino aberto entre a boca e o ânus. As pedras fizeram agora os seus laços. E as luvas vermelhas do escafandrista explodem nas câmaras. — Um bicho em lágrimas, a casa atravessada pelas correntes da paisagem de água, a criança aurífera direita nos recantos dos quartos com um olho radial, um espinho de mármore implantado na testa sumptuosa. E sobe a estrela terrestre com a placenta assente nos feixes desde o umbigo até aos cornos. Eu trouxe serpentes de onde a luz mais ferve, arranquei-as ao mel, eu, criança de boca truculenta, alumiada, bivalve. Nunca vi água que não varasse as casas de lado a lado. Pulsam em mim os fulcros do sal, os cactos. Quando a paisagem sopra pelas janelas, durmo olhando os centros memoriais. Deu-me a inteligência aquilo que toquei: o pénis que vem desde os astros das costas, os ovos no fundo dos alvéolos, as pálpebras negras. Somente o mundo é uma coisa sonora. E eu estou soldado por cada laço da carne aos laços
das constelações. E das cavernas, onde suas garras se prendem como pólipos, e através da minha roupa, fitam o espelho: sangue e ouro e cálcio e mel brilhando. Porque o corpo é uma gruta de onde saltam os sóis, uma insónia que liga o dia ao dia, pelos jardins trespassando os estúdios ainda imóveis, dentro das portas fechadas pelos próprios astros brancos.
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos Detidos: hei-de de partir quando as flores chegarem à sua imagem. Este verão concentrado em cada espelho. O próprio movimento o entenebrece. Chamejam os lábios dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias internos. Vou morrer assim, arfando entre o mar fotográfico e côncavo e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas o sangue que se agrava. Está cheio de candeias, o verão de onde se parte, ígneo nessa criança contemplada. Eu abandono estes jardins ferozes, o génio que soprou nos estúdios cavados. É a dor que me leva aos precipícios de agosto, a mansidão traz-me ás janelas. São únicas as colinas de ar palpitando fechado no espelho. É a estação dos planetas. Cada noite é um abismo atómico. E o leite faz-se tenro durante os eclipses. Batem em mim as pancadas do pedreiro que talha no cálcio a rosa congenital. A carne, sufocam-na os astros profundos nos casulos. O verão é de azulejo. É em nós que se encurva o nervo do arco contra a flecha. Deus ataca-me na candura. Fica, fria, esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança dá a volta à noite, acesa completamente pelas mãos. 1975-76.
EXEMPLOS 1. A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça recolhendo-a de um lado e descrevendo-a de outro lado num sulco vibrante «parecia um meteoro» como se fosse muito simples e então a cabeça desaparecia «a lua» a ferver a grande velocidade pelo céu dentro «um buraco» via-se apenas a intensidade «estávamos com medo pois aquilo assemelhava-se a uma revelação» e foi quando ele apanhou a cabeça outra vez e era agora uma cabeça furiosa cheia de peso» dizia-se «a luz agarra qualquer coisa» oh sim: «com toda a violência» pensai num bocado de carne despedaçado entre as mandíbulas de um tigre: e depois deixou cair esse rosto sustentado atrás pela bela caixa craniana com aquele rastro de cometa «que é isto?» perguntou-se — e pusemo-nos todos a pensar bastante «havia ali um senso arcaico da paixão» talvez uma coisa tão remota e bárbara como: o fausto: o pavor: a caça: «é um movimento uma forma» disse ele «é preciso voltar ao princípio» e então começámos a usar os olhos com a ferocidade das objectivas sem truques capturando tudo selvaticamente e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas um caudal sumptuoso cortado «era tão estranho!» pela ligeireza dos dedos abertos delicado pentagrama a duas alturas «uma estrela refractada» para falar do que se viu na projecção do filme e então podia-se adiar tudo menos aquela ideia de que «não digo beleza» de que uma força impelia tudo e a rapidez criava formas linhas de translação feixes de desenvolvimento ao longo das paisagens redondas como abismos recorria-se ainda a imagens para devolver essa cabeça ao fulgor da sua precipitação contra os olhos a queda «como oxigénio a arder» e a fuga e a correria em que voltava para subir e rodar de um modo que dizíamos: «indomavelmente» porque vistas assim as coisas eram de uma fatalidade total e a irrevogável maneira que tinham de ser livres soltas
impunes — na sua firmeza: «inocentes» — isso fazia medo e havia em nós «um estilo de ver» que nos arrastava implacavelmente para a loucura e a alegria «porque era preciso destruir tudo» sim «de extremo a extremo» para encontrar «o centro» onde o calcanhar gira e roda o corpo todo o sítio talvez onde se formam as massas dos espelhos de que saltam fortemente «os astros os rostos» e não haver «exemplo» mas apenas uma forma rudimentar desfechada contra tudo aqui escavando achado o veio a limpidez primeiramente: aquilo: a cabeça móvel apanhada
2. Eis como uma coisa como que nos interessa: destruir os textos. Passa-se que: o caçador vai à procura de cabeças. Que é como quem diz. Trás cabeças faz um monte. Um monte de cabeças intempestivas, vociferantes, cabeças rebarbativas. Arruma tudo, limpa o ar só para elas, um monte grande luzindo sibilando assim, o vídeo turbilhona. Um monte de desenfreadas cabeças cheias de nós de cá para lá no vídeo com uma pressa faiscante. Atulhadas de pequenas ideias assassinas assim: sibilando a canção estereofónica. Eis que é como que isso que é como que é preciso desmanchar: fazer uma paisagem centrífuga, porque a violência alimenta-se de música, música fervente. Electrochoque para os textos apoiados assim como que em música como que ali. Isso. Como que: o dínamo nas cabeças lírico-psicóticas: truculentas — estragando. Suadas. Soldadas a isto: a ideias frenéticas, como que soldadas como que às mãos, aos dedos todos: frenéticos; às garras. É como que se faz aos textos: toda a destruição. Pensamos que interessa varrer tudo muito bem: não é nada com a atmosfera, não é nada que não seja com destruir por conta da paisagem escrita que começa sempre à volta de um orifício. As estações como que trabalham naquilo de trazer para muito perto do orifício a fruta toda os buracos os ovos as víboras os astros as pedras tudo faiscando. E o orifício. E então e o orifício traga tudo. Como as cabeças ficam faiscando nas mãos. Queremos dizer que como que abanamos depressa as mãos. Não se pode acreditar na beleza concentrada da gramática como que cheia de como que força pura, cintilação, violência. Destrói: esta paisagem eternamente em órbita em torno
deste eixo. Este show treinado como um movimento da terra com o seu furo incandescente no meio, destrói. Empurrar as cabeças cheias de relâmpagos para todos os lados como frases com fósforo. Cortar aos pedaços. Quando o vídeo brilha como uma janela como um lirismo arrebatador. Deitar fora. Ver e marcar onde está o sangue, só.
3. Esta Ciência selvagem de investigar a força por dentro dos olhos: a treva parada numa parte: do outro lado faiscando todos os astros: as obturações as aberturas na carne: não sei ver nos livros a aparição do rosto todo cercado por uma casa: não conheço quando nasce a ribeira no meio: quando nasce quando a ribeira de uma montanha no meio brilhante: a maldade da linguagem se o cinema mostra as janelas das paisagens: e essa forma repleta de passos para indagar: e então é preciso outra maneira de poema: uma espécie furiosa de pessoa comentando com muito pormenor: cabeças cheias de raiva e murmúrios no escuro: a intensidade dos cabelos em volta dos cornos: e logo o poema traz as coisas para o quarto: coloca tudo mais perto do centro: vê-se a teia que vai da fronte às coxas com os braços reluzentes por cima e no meio um remoinho cego: o sexo: a estrela tumefacta: esta ciência é um movimento das mãos contra o espelho: a parte de trás da cabeça onde vibra o meteoro: é a onda aproximada: uma porta na sala que fecha de estreia a estrela; apenas o sangue e a testa um pouco louca entre os dedos: copo de mármore: planeta de aço: uma flor rija ascensional com os pulmões chamejando na terra: essa velocidade que há na noite de lado a lado: e a testa fervente abismada no mundo: e os pólos do corpo: clareira cerrada à volta: esse modo secreto de tudo mexer com uma finura viva: não sei que dedos no estilo para queimar a cara forte paralisada: a combustão dentro da fotografia: a sibilante cara:
a cara: e a maneira sagaz de trazer cada coisa até à própria labareda: as mãos enxutas muito abertas: o medo sem um só grito em frente da noite cosida: camisa redonda: e este saber que vê passar os animais fundos e claros e tem a sua loucura para alimento: e a casa para morrer e falar durante o sono e andar de um canto para outro com os dedos alumiando limpamente: o circuito magnético entre as têmporas: a raiz da ciência desde os pés até aos olhos
4. Esta é mãe central com os dedos luzindo, Sentada branca sob a cúpula da cabeça truculenta, enquanto as ressacas do sangue cantam nas cavernas; este é o pólipo vivo agarrado ao meu peito como um mamilo nas massas tecidas sobre o coração; que tem as garras à mesa entre os talheres e a louça, e noutro quartos é tão profunda se cai o dia pela parede como uma janela, se o espelho cai assim com o dia profundo para dentro sempre e para fora, uma poça; é centralmente toda a mãe com uma cara magnificada expelida pelas noites, sussurrando; matriz mater madre e madrepérola e pedra matricial minada pelos meandros da própria água fina em sua agulharia de veias e artérias; fundamento de pavor e doçura, o pêlo brilhando sobre a testa, os nós todos da cara, a boca até à garganta, o vestido brilhando entre os braços ressaltados e sobre as pernas; este corpo que me engolfa como seu alimento entre os dentes e o ânus, e seu murmúrio impelido dos pulmões, sopro que o sangue entenebrece e na boca clareia como uma volta de seda; os feixes de um candelabro que fixa a casa desde as funduras de sua obscura teia; esta é a mãe animal caçada na floresta mitológica, a besta aluada sob as redes e as flechas; paisagem que eu crio fora com meu movimento, ou beleza acerba de um rosto já sem fronteiras, a fenda na fronte apresentada ao lume implacável de cada estrela; e fundura para os sóis que a noite arremessa, enquanto a lua paralisada sustenta o seu abismo, e as cobras fazem laços dentro da terra,
e nos sítios mais escuros irrompem rosas cor de esperma, e ao alto ascendem os copos em cima das toalhas, rutilando nos seus astros pequenos como unhas, os dedos inumeráveis, os rostos; toda essa árvore de púrpura dos precipícios do mundo até ao centro onde pulsam os frutos vivos como pessoas, como caras, limpidamente como copos abruptos a transbordar de álcool.
5. Não se pode tocar na dança. Toda essa fogueira. Uma paisagem temível vista depressa desaparecida. Porque é tudo sublevado para o olhar. E é profundo quando vibra um colar de água no coração da pedra muito limpa. A dança de baixo para cima. Nunca uma árvore pôde assim respirar tão entranhada. Constelação que palpita em sua imagem de raízes carnais. E as grandes frutas imóveis como rostos contemplados aqui. O sono ferve na cabeça dos mortos. Os diamantes. Os cabelos torcidos como garras. Baixos. Violentos. Ainda. E o fogo arrasta as serpentes para fora. A lua move as portas. O sangue brilha no fundo da boca. Isto é o incêndio dos braços entreabertos, das espáduas. Porque tudo caminha inspirado em si mesmo. Jardins em arco, as casas. E a dança desde o umbigo puxa os tentáculos à volta. O dia expulsa as estrelas das poças. Que os chifres estremeçam sob as lunações giratórias. O leite nas tetas. O pêlo amansa. Pode-se ver a onda a bater nas omoplatas. As coxas rodando os seus lentos planetas que se afastam. Da terra, do meio. Explode a estação mais branca. Branca no ano. Vergam-se os quartos. E as caras demenciais docemente quando aparecem massacradas. Onde a luz acaba e a treva toda se volta. Uma camisa torácica posta apanhada a cada clarão. Isso com as unhas a luzir. Em cima os dedos nas mãos. As cobras hipnóticas. Dizem que o mel novo enlouquece as pessoas. A dança arrasta os mortos. Simétricos, fechados como laços, como jóias. Até às ressacas das paisagens que se movem
dia a dia. Pelos incêndios dentro dos animais. Solenes pedras sumptuárias. A dança guiando as montanhas sobre as águas. Navios cegos. Branca floresta. 1977.
O CORPO O LUXO A OBRA Em certas estações obsessivas, insondáveis pela doçura e a desordem, eu vi sobre o barulho dos buracos terrestres as caras engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia de ossos fechada por membranas que respiram com luz própria. O luxo do espaço é um talento da árvore, a arte do mundo húmido. Por dentro da terra o ouro cresce em cadeia. Vi a massa arterial das casas contorcendo-se no fundo da luz, onde o dia faz uma ressaca onde gira a noite com seu tronco de planetas. Eram rápidas, fortes, espaçosas as noites do poder. O alimento vinha com o apuro do mel. O dom desenvolvia em mim esses mesmos rostos abertos a meio, com a lua e o sol dentro e fora. Lanho a lanho cerrara-se a carne em seu tecido redondo. Vêem-se as raízes animais dos cancros, mas no coração estrangulado, assim estrangulada a água por circuitos cegos, quem vê a queimadura do ouro inteiro? As caras irrompem
dos nós de sangue, dos rins, de uma coluna enraizada, uma constelação calcária. Às vezes o mármore reflui numa onda muscular, e sobre a torção interna as mãos cruas ardem. E o golpe que me abre desde a uretra à garganta brilha como o abismo venoso da terra. A pupila deste animal grande como uma pálpebra ao espelho, nua, a dormir, sob as radiações brancas. Longas estrelas rodam entre os pólos das salas, voltam-se as camisas na translação dos dias ópticos, todo o ar se enche de noites largas. O braço enxuto plantado. Na límpida teia das mãos, a colher que se arqueia desde a traça alimentar à costura cirúrgica da garganta onde a voz rebenta num buraco de sangue. Mas as cabeças, que olham pelos lados novos de gárgulas jorrando toda a força da luz interna, vivem da energia da nossa graça, da ferida da elegância. A violência envenena-me. As aberturas que os braços fazem na água, aquilo que eu fecho quando o sono me corrompe ou quando incito ou afugento as paisagens, o que alimenta as musas
abismadas é tudo quanto me cega. Também as mulheres se alumiam pela abundância, pela boca até ao fundo, o pêlo que salta, omoplatas, mãos redondas, os borbotões da seda escoada. Têm caras ascensionais, magnéticas. Inspira-as o movimento dos quartos, a matriz secreta do ouro afundada entre a vulva e o coração, a órbita das laranjas à volta estuante da estaca. A estrela voltaica queimando a minha obra morosa afina sombriamente cada cara soldada ponto a ponto, sobre as válvulas, sobre a luz que se abre e se fecha na carne lunar, implacável. Tudo faísca: a fruta que se apanha, o feixe vertebral, os orifícios de sangue entre os poros da madeira. Respira, dói. Como uma artéria radial, a atenção que dói de baixo para o alto, as meninges abertas por fendas luminosas. Alimentava-me dos rostos minados pela rede dos nervos negros e das veias até à raiz cravada
da voz — o terrífico aparelho da fome. Toda a obra. Dói. A memória maneja a sua luz, os dedos, a matéria. É mais forte assim queimada no écran onde brilha o buraco da carne, os espelhos fechados de repente vivos como oceanos sob os antebraços, as mãos. Desta cadeira vejo a marcenaria da árvore. Os fulcros do ouro, o hausto do meio da terra. O som espacial da pedra cai no fundo do dia, pulsa a noite vascular, estendida como uma toalha. E dentro dessa noite cheia de ar negro, os planetas luzem como rostos que se aproximam com as fendas de sangue. Às vezes meu sangue enreda-se no fundo dos mortos. O ar, abraçam-no as grandes constelações tácteis. A noite é uma árvore crua, voraz, entranhada. Se a estrela transborda da boca, a água vivente torce-se entre os braços ferozes. E das crateras arranca-se o rosto com os poros brancos a toda a volta. Quando as veias dos mortos fazem um nó furioso
com as minhas veias, a voz costura-se com as linhas de sangue da sua fala. E os dedos gravitacionais sobre a queimadura manobram os pequenos sóis enxameados e baixos. Com a fundura cristalográfica das caras enervadas na claridade, a estrela oficinal crepitando sobre a ressaca redonda da carne. O ouro fundido nos pulmões, cortado na boca. Respira o buraco onde o ar se incendeia. É o equilíbrio lunar do sono, do poder. Eu movo-me no mundo como púrpura, a vara das maçãs fechadas. E escoa-se em mim o caudal nuclear dos astros. Remoinhos de mel obscuro. Os filões do álcool. Esta golfada de luz pela ferida de um espelho. É o rosto fendido e a claridade arrancada ao interior mais forte da imagem. Constelação de sangue, o halo de um orifício nocturno. Os sóis turbilhonam entre Este é o dia rítmico e abundante. Olho a brancura espasmódica, A queimadura central Dessa imagem. Meu sangue envolve os mortos como um braço profundo. Solda-os. E toda a fruta está soldada à potência da sua árvore.
Engolfo-me no espelho como a água que pulsa num rosto, nessa abertura salgada. Recebo a cara nos feixes da minha cara, entre constelações vertebrais, o fundo das artérias. Vi dorsos torcerem-se à volta da sua dor. No meio o sorvedouro fazia um laço de carne. Rodava em torno das válvulas negras a estreia atómica. A fronte ao alto da beleza áspera, labaredas vazadas de lado a lado do corpo como uma corola cesariana. E nessa carne focal curva, o toque de um ferro vivo, um dedo, um osso fechado, no centro das aberturas onde a energia se desencadeia. E é cruel surpreender a inocência frenética, a taciturna doçura com que devora: às vezes a força dos rostos que tem contra Deus. Assim: o nervo que entrelaça a carne toda, de estrela a estreia da obra. 22-23.XI.77.
DE «PHOTOMATON & VOX» Esta série de seis poemas foi extraída do volume «Photomaton & Vox», de que continua a fazer parte constitutiva e funcional.
(é uma dedicatória) Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão a mão transparente, e atrás, nas embocaduras da noite, o mundo completo treme como uma árvore luzindo com a respiração. E ofereces, das unhas à garganta talhada, a deslumbrante queimadura do sono. — Em teu próprio torvelinho se afundam as coisas. Porque és um vergão raiando entre esses braços que irrompem da minha morte se durmo, da loucura se a veia violenta que me atravessa a cabeça se torna ígnea como um rio abrupto num mapa. Quando as salas negras fotográficas imprimem a sensível trama das estações com as paisagens por cima. E jorras desde as costas dos espelhos, seu coração arrancado pelos dedos todos de que se escreve o movimento inteiro. Nunca digas o meu nome se esse nome não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir nas formas lavradas como chamas à tua volta. Os animais que essa labareda ilumina na boca. Desde a obscuridade de tudo que tudo é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito. E da fronte aos quadris em tuas linhas, és cega, fechada. A minha força é a desordem. Reluzes na têmpera enxuta — queima-te. O ouro desloca a tua cara. Um nervo atravessa as frementes, delicadas massas das imagens:
como uma ferida límpida desde a nascença pela carne fora. És alta em mim por essa cicatriz que se abre ao dormir e quando se acorda fica aberta. — Esta espécie de crime que é escrever uma frase que seja uma pessoa magnificada. Uma frase cosida ao fôlego, ou um relâmpago estancado nos espelhos. E às vezes é uma raiz engolfada, e quando toca a fundura das paisagens, as constelações mudam no chão. A truculência que se traça como uma frase na pessoa, uma queimadura branca. Porque ela mostra as devastações magnéticas da matéria. Na frase vejo os fulcros da pessoa. Por furos acerbos as estações que se escoam e a inquebrantável paisagem que as persegue por dentro. A frase que é uma pálpebra viva como roupa fechada sobre a radiação das veias. Que é uma cara, uma cratera. Ou um hausto animal das unhas à testa onde fulguram os cornos em coroa. E esta massa ofegante é queimada por um suspiro, um alimento brutal. O teu rosto cerca-me, a minha morte cerca o teu rosto como uma clareira pulsando na luz cortada. A pessoa que é uma frase: astro rude cruamente encordoado entre as omoplatas. Como se um nervo cosesse todas as partes pungentes e selvagens da carne. Como se a tua frase fosse um buraco brilhando até aos pulmões, com o sangue e a língua na minha garganta. A beleza que te trabalha deixa-te árdua e intacta no mundo, entre o sangue estrangulado na minha memória.
(a carta da paixão) Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça, que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a sua queimadura desde os recessos negros onde se formam as estações até ao cimo, nas sedas que se escoam com a largura fluvial da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas e o silêncio todo branco. Os dedos. A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua alumia-se. O mel escurece dentro da veia jugular talhando a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras, a lua tece as ramas de um sangue mais salgado e profundo. E o marfim amadurece na terra como uma constelação. O dia leva-o, a noite traz para junto da cabeça: essa raiz de osso vivo. A idade que escrevo escreve-se num braço fincado em ti, uma veia dentro da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta da figura cavada no espelho. Ou ainda fenda na fronte começa a estrela animal. Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens. E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo, um alimento desde a raiz dos braços, a força manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda fechada, a límpida ferida que me atravessa desde essa tua leveza sombria como uma dança até ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros do teu vestido. As palavras que escrevo correndo entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso, arterial. E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado. A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo. Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem nos quartos. É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas, entre as mãos sumptuosas. A doçura mata. A luz salta às golfadas. A terra é alta. Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas.
(similia similibus) Quem deita sal na carne crua deixa a lua entrar pela oficina e encher o barro forte: vasos redondos, os quadris das fêmeas — e logo o meu dedo se põe a luzir ao fôlego da boca: onde o gargalo se estrangula e entre as coxas a fenda é uma queimadura vizinha do coração — toda a minha mão se assusta, transmuda, se torna transparente e viva, por essa força que a traga até dentro, onda o sangue mulheril queimado a arrasta pelos rins e aloja, brilhando como um coração, na garganta — o sal que se deita cresce sempre ao enredo dos planetas: com unhas frias e nuas retrato as lunações, talho a carne límpida — porque eu sou o teu nome quando te chamas a toda a altura dos espelhos e até ao fundo, se teus dedos abertos tocam a estrela como uma pedra fachada no seu jardim selvagem entre a água: tu tocas onde te toco, e os remoinhos da luz e do sal se tocam na carne profunda: como em toda a olaria o movimento toca a argila e a torna atenta à translação da casa pala paisagem rodando sobra si mesma — a teia sensível. que se fabrica no mundo entre a mão no sal e a potência múltipla de que esta escrita é a simetria, une tudo boca a boca: o verbo que estás a ser a cada tua morte ao que ouço, quando a luz se empina e a noite inteira se despenha para dentro do dia: ou a mão que lanço sobre esse cabelo animal que respira no sono, que transpira como barro ou madeira ou carne salgada exposta a toda a largura da lua: o que é grave, amargo, sangrento.
(vox) O que está escrito no mundo está escrito de lado a lado do corpo — e tu, pura alucinação da memória, entra no meu coração como um braço vivo: o dia traz as paisagens de dentro delas, a noite é um grande buraco selvagem — e a voz agarra em todo o espaço, desde o epicentro às constelações dos membros abertos: e irrompe o sangue das imagens ferozes: as rótulas unidas aos dentes e, como um sexo trilhado: a boca expele por entre os joelhos o seu grito com a fundura de uma paisagem — uma paisagem arrancada ao meio da noite, com as golfadas de luz que se despenharam: porque não há lembrança dos jardins refrigerados com seus pequenos planetas fotostáticos levitando — a loucura está tão próxima que o meu braço se entranha na água, e este atelier onde escrevo sobe dos precipícios curvos, forte desde o fundo: aquilo que se escreve é o próprio corpo pregado como uma estrela à púrpura das madeiras, aos lençóis ofuscantes cheios de sangue, de água magnetizada — e esta sala brilhando apoia-se às espáduas, e em baixo a queimadura dos intestinos arde do alimento: os cabelos luzem, o rosto plantado em sua estaca de sangue como uma grande veia animal — eu tenho sangue até às órbitas: a estrela fechada eleva-se no remoinho da garganta — e levanto a mão e explode cinematograficamente a imagem da própria mão afogada — porque eu morro da minha vida grave: a longa pálpebra do corpo cerra-se sobre a fenda negra aberta à paisagem que corre como uma chama por toda a casa — ceifem-me os cabelos à luz panorâmica: e nas raízes sangrentas a cabeça queima-se como a lua queima as roupas levantadas — o meio do vento que cresce nesses cabelos cresce dentro de mim: meu coração aumenta como uma pedra aumenta exposta às mãos como outra mão de carne larga — esse
osso vedado alumiando o fundo da cabeleira que cortam como se corta a noite com uma foice, e os ossos se cortam a plena voz, na terra, num incêndio completo, enquanto ceifam: porque há uma cabeça no centro do choque do corpo: uma cabeça movida pelo refluxo escuro dos dias sem fracturas: a cabeça que vê e cheira e que se abre e fecha e ouve e refulge e morde e come depressa e respira para dentro e para fora — e a voz ascende de todas as raízes entrelaçadas — a largura, o sangue, o movimento: a fruta em claridade entre as unhas, labaredas, um puro génio mundial — tudo como uma forma límpida, sutura do coração, uma leveza tremenda no poder: quando o dia é muito perto, uma estrela comprida — as mães brilhavam: o que eu escrevo, elas o escreviam na queimadura da paisagem: uma visão cerrada pela força: e um cometa desentranha-se da branca carnagem das memórias, fervendo entre axilas e falangetas como um braço, ou uma dança luzente na sua teia até às pálpebras — o que se lembra e pulsa: fibras vivas de uma vara embrenhada no meio da água, e à volta os planetas oscilam como folhas cantando desde o abismo — os dedos das mães nas linhas sangrentas que cosem profundamente o espelho e a imagem, como pelas artérias se cose o coração aos pedaços de carne, entre orifícios negros, ressacas fulgurantes, o corpo aberto com o centro estancado na terra.
(walpurgisnacht) Eu não durmo, respiro apenas com a raiz sombria dos astros: raia a laceração sangrenta, estancada entre o sexo e a garganta. Eu nunca durmo, com a ferida do meu próprio sono. Às vezes movo as mãos para suster a luz que salta da boca. Ou a veia negra que irrompe dessa estrela selvagem implantada no meio da carne, como no fundo da noite o buraco forte do sangue. A veia que me corta de ponta a ponta, que arrasta todo o escuro do mundo para a cabeça. Às vezes mexo os dedos como se as unhas se alumiassem. Mas nunca durmo entre os meus braços pulsando como grandes carótidas que alimentem a beleza e rapidez do rosto sobre músculos fechados. Enquanto o sol rompe as membranas dos espelhos: não danço, não durmo, não respiro mais que a terra esquartejada pelas chamas lunares. Não trabalho tanto como no verão o sangue sob o pêlo baixo dos animais, a elegância violenta, o alimento. Há dias em que as mãos se movimentam por si, mal tocando nas fendas o tremor hirsuto de um cometa cravado desde as costas aos lençóis. Nunca sei onde é a noite: uma sala como uma pálpebra negra separa a barragem da luz que suporta a terra. — Agora, a fundura de uma lavoura aérea, o fôlego, uma pedra com o meu tamanho coberto de poros, ou tendões a ligar arquipélagos límpidos na penumbra. Estes, os obscuros fulcros da loucura. Alguém devia tocar-me para sentir que estou vivo, que sou
uma estaca atravessada pelo sangue, e dela rebentam por exemplo: áscuas. Isto é uma fábrica de demência: palavras onde se manobra a púrpura, onde o aroma que mata ascende de jardins construídos levemente na escuridão. E uma imagem fecha tudo o que se fecha: quartos, dias sobre si mesmos, as frutas redondas por força da doçura interna. Quando as vozes ferozes se desengolfam, a terra move-se como um músculo encharcado entre a boca e o coração que não dorme nunca. — E todas as minhas vísceras são inocentes.
(a morte própria) E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho, enquanto a terra me queima os dedos e os dedos entram no coração como uma queimadura e o coração propagado é o incêndio na cabeça — às vezes a cabeça não sabe que os pulmões arrastam as labaredas do mundo como um grande buraco de vozes: um rumor de crepitações: uma força: uma rapidez entre as formas — espelhos luzindo atrás dos rostos: e tu levantas um braço: trazes do fundo de tudo a raiz ainda viva de cada coisa: uma constelação magnética entre os pés afastados — eu vejo a tua morte no meu próprio movimento: na chama correndo pela paisagem fora, a paisagem que ergues, que depois abandonas ao seu próprio espaço de paisagem no tempo, externa: atravessada por noites, por luzes, transformações, ideias de quem vê, pelos seus desenvolvimentos ocultos — vejo que ressuscito no teu modo, essa espécie de estilo ou energia, quando casa e paisagem circulam como ilhas numa torrente à volta — e então o que tocas é esse teu mesmo coração cruzado por imagens luxuosas: o filme aceso: membranas do corpo rutilando à passagem dos astros de mármore e o teu rosto arranca-se à sombria gravidade do fundo da beleza, dos poderes terrestres e o peso de tanta profundidade: e um instante explode essa estrela embrenhada na minha cabeça, como o coração se aprofunda, os dedos puxam as linhas de lume com que se cose a terra, a fenda do seu sangue abismado — às vezes o espelho é o meu próprio corpo, sua ferida: mas entre ilhas, sob o que circula: espuma do ar, os cometas, no sono sumptuoso de animais quase fixos, os rostos abertos aos raios dos nossos rostos, aos nossos dedos que lhes chegam ao meio do coração — porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se no teu movimento entre laços de sangue, cabelos luzindo, as pedras inclinadas para os teus lugares respiradores: a árvore crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração na minha morte, aqui, uma árvore combustível onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos e velozes, entranhado em mim como se eu fosse a árvore e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado, brilhando. 1978.
FLASH Para o Cruzeiro Seixas.
Nenhum corpo é como esse, mergulhador, coroado de puros volumes de água. Nenhuma busca tão funda, a tal pressão, como pesa na água uma ilha fria, a raiz de uma ilha. Uns procuram ramas de ouro. Outros, filões de púrpura unindo sono a sono. Há quem estenda os dedos para tocar as queimaduras no escuro. Há quem seja terrestre. Tu esbracejas entre sal agudo. Não falas, mal respiras, moves-te apenas e fulguras como uma estrela cheia de bolhas. Feroz, paciente, arremetido, mortal, centrífugo. Com todo o peso do coração no centro. * Aberto por uma bala de fora para dentro. Como um olhar de Deus, ou da paisagem, até à raiz do nervo de que vivo todo. Aberto, descoberto. Ou fechado inteiro para sempre. E ao furo imaginário queimado reflui o sangue do mundo. O nó mais duro, o puro nó da carne — o centro. Furioso fulcro do espírito. É aí que penso. Por onde falo ainda tão depressa que ressuscito, ardido. * Sei às vezes que o corpo é uma severa massa oca, com dois orifícios nos extremos: a boca, e aos pés a dança com a coroa de labaredas — a cratera de uma estrela.
E que me atravessa um protoplasma primitivo, uma electricidade do universo, uma força. E por esse canal calcinado sai um ruído rítmico, uma fremente desarrumação do ar, o verbo sibilante, vento: o som onde começa tudo — o som. Completamente vivo. * Boca. Brûlure, blessure. Onde desembocam, como se diz em nome, os canais muitos. Pura consumpção em voz alta, ou num murmúrio, entre sangue venoso, ou traça de lume. Gangrena, música, uma bolha. Arte medonha da paixão. Um poro monstruoso que respira o mundo. Nele se coroam o escuro, o fôlego, o ar ardido. O ouro, o ouro. Tubo sonoro por onde se coa o corpo. Se escoa todo. Em quartos abalados trabalho na massa tremenda dos poemas. Que me olham de tão perto que eu ardo. Um dia hei-de ficar todo límpido, ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver Deus de um canto das palavras, com sistinos dedos pintados em torno à voragem diuturna, tocando na matéria. Ininterrupto, eléctrico. Alguém poderia dar um grito. Quase morro de medo ao sentir o meu nome. Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria a roupa de alto a baixo, enquanto brilha o rosto. Às vezes Deus torna-me rápido.
Às vezes há um candelabro. Às vezes há os mortos de que se extrai o mármore. Pelo poder do nome, traz-se a casa, quarto a quarto, até ao centro. Fazem-se profundas casas de mármore. Mas nunca serei branco nestas câmaras com um candelabro no meio. Separam-nas membranas, espelhos vivos, teias de espelho. E de braços abertos, entre as suas imagens, dormem as pessoas. Cerradas com um galho de centelhas. E Deus não me perdoa a carnagem sonora. Há um candelabro, uma cratera na sala, ou é como se houvesse. Nunca durmo. Só tenho as mãos à frente, entre o rosto e a fogueira. Máxima visão, no abismo, de um planeta de quartzo.
Astro assoprado, sombria ligeireza, dom: eu sei. Nada me toca. Apenas um dedo de mármore na cabeça. Trespassa-a, têmpora a têmpora, coroa de uma agonia na escuridão das camas. Para dançar. A roupa treme ao choque do sangue, magnetizada, viva repentinamente. Ninguém me diz como se tece o casulo, e a seda transpira de si mesma. O arpão de mármore traz, directa do coração, a ferida. Depois danço, e carne e roupa são a mesma coisa, a coisa que dança, a chaga dessa leveza. Prodígio do talento pontuado à força de branca pedra demoníaca. Que me dê essa coroa, que me levante da sonolência, da obscura inocência que em mim corre também, entre os lençóis e o tremendo esplendor das vísceras. Das partes negras, da queimadura na boca, os intestinos onde brilha o alimento, o ânus que me fundamenta nas trevas, e dentre a raiz dos membros — arranca um planeta que dance, limpo, apenas com um anel saturnino à volta. E o eixo de mármore implacável. Que tenha Deus um sonho em carne viva. Uma noite que trema pelo poder astronómico. Mas que me poupe assim concêntrico ao campo, e divagante, a curva tensa: o arco, o braço. E as chispas súbitas, frechas tão ferozmente pela carne dentro até ao escuro do próprio astro, deixando um orifício fulgurante: um tubo de som, sopro de ponta a ponta — aquela baixa música mortal. Vêm os animais, alvorecendo, os cornos a rasgarem a cabeça: outra espécie de luxo, de melancolia. E o corpo é uma harpa de repente.
Animal de Deus, eu. Uma ferida.
Queria tocar na cabeça de um leopardo louco, no luxo mandibular. Sentir os dedos tornarem-se de granito. Sentir a deslumbrante ressaca de pêlo baixo arrebatar-me furiosamente os cinco dedos. Como cinco balas de granito. Uma estrela voltaica. E tragá-la. E de súbito toda aquela púrpura nocturna entrar por mim dentro, da mão à cara. Ou uma ferida que me apanhasse de perna a perna. Entrar em mim a fábula da demência e da animal elegância. Sei que o sangue me pontua, e estremeço de poro em poro com tanto ouro suado que me envenena. Sei que toco. Que há uma combustão nas partes sexuais da minha morte. E se olho esse espelho exalado de mim mesmo, vejo pérolas, a anestesia das pérolas. Mas o fósforo precipita-se onde arrefece a carne, e se torna ligeira. E uma dor instrumental, a minha própria música descoberta, enreda-me como o som enreda os tubos de um órgão. E então nenhuma razão me escurece além do crime, da metáfora directa de um leopardo aluado como uma jóia. E ele levanta a constelação craniana. A boca avança, límpida chaga até ao meu rosto. E neste espelho das coisas de repente unidas todas, beija-me por mim dentro até ao coração. No meio. Onde se morre do silêncio central da terra.
Adolescentes repentinos, não sabem, apenas o tormento de um excesso giratório. Com as cabeças zoológicas. Os anéis nas patas. Oprime-os para dentro um clarão dançante. Aquilo que são fora. A cegueira dos chifres que levantam como uma enorme estrela desabraçada. A sua ligeireza busca o peso da pedra. E o peso que têm de pura luz sem peso, o movimento sinistro no chão, o terror, uma riqueza violenta — buscam alguém que os toque. Na boca. Que os torne transparentes, circulatórios. E quando as turquesas se cruzam de mão a mão, deixando-as em brasa, vê-se que são anjos tocados pelas víboras, anjos anatómicos e atrozes. Expostos à lua como animais. Que são escuros nas espáduas. Devastam o mundo só de olhá-lo com força. O sono que os ataca mostra-os cheios de artérias. E então a delicadeza pesa-lhes como a morte. Basta tocá-los na cara para que fiquem brancos. Atravessá-los com o sangue venoso da insónia, da nossa matéria. E então a sua carne é uma estrela suada
Não te queria quebrada pelos quatro elementos. Nem apanhada apenas pelo tacto; ou no aroma; ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas na funda malha de água. Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela. Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe, trémulo alimento entre roupa alta, nas camas. Magnificência. Levantava-te em música, em ferida — aterrada pela riqueza — a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa. Fazia tremer o mundo. E queimavas-me a boca, pura colher de ouro tragada viva. Brilhava-te a língua. Eu brilhava. Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo, nascesse da carne única uma cana de mármore. E alguém, passando, cortasse o sopro de uma morte trançada. Lábios anónimos, no hausto de árdua fêmea e macho anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem. Modulassem. E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se. Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água. Os planetas fechavam-se nessa floresta de som e unânime pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador da terra. Nome do mundo, diadema.
Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas para vê-las golfar sangue. É quando a pedra está a prumo, quando a estaca solar se crava atrás das casas e amadurece como uma árvore. Mas também ouvi a água bater directa nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava condenado ao extravio mortal. Era um dom que me fundia à substância primária do terror. E à riqueza e energia. E à tremenda doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra rotativa. E que leão me beijou boca a boca, juba e cabelo trançados numa chama única? Esse beijo afundou-se-me até às unhas. Aparelhou-me para besta soberba, para o sono, o brilho, a desordem ou a carnificina. De que leite ardido, de que matriz ou opulência terrena, nos vem a danação? Se a pedra tem uma raiz buscando vida em que teias de carne, há em cima um Deus agudo, de fenda no casco, e braços tão abertos que apanha todo o basalto, como uma estrela elementar. Atrás das rosáceas desabrochadas. Do movimento de estátuas arcangélicas plantadas no refluxo da pedra. Boca: bolha de sangue. E há uma palpitação soturna, uma delicadeza no cerne: o osso vertebral que assenta ao meio, no ânus: o falo — e em torno gira a catedral. Lenta dança de Deus, da escuridão para o alto. O leve poder da lua apenas queima os olhos.
Um espelho, uma trama de diamante onde a cabeça friamente brilhasse. — O fulgor molecular de uma imagem. Arde alto como as torres de calcário. Como arde um animal, a sua coroa, a rosa entranhada na carne. A rosa. Esse terrífico volume, esse cometa fundo à cara. Que luzisse como um braço no espectáculo do corpo. O corpo minado pelo sistema do sono. E nesta luz, a fronte com o corno soldada ao rosto. Os tremendos domínios do sangue, massa fechada com uma áscua no centro. A cabeça que emerge de um esplendor tumultuoso, um estrangulamento. E em baixo o coração bombeia a água estancada no escuro. O pavor do mundo. «La beauté s'ouvre les veines et en meurt.» Uma estrela enorme, um sorvo. O inferno é branco, tem um espelho dentro. * Lenha — e a extracção de pequenos astros, áscuas. De poro a poro, os electrões das corolas. Somente no mais escuro não há nada. No escuro, a carne é um buraco invisual, e o que arde é o pão no estômago, e nos brônquios cortadamente o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência das imagens. O que toca o órgão mais profundo do sopro não é música nem chama: apenas um dedo de mármore entre as têmporas como uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam a boca, morremos afogados, no espelho, no rosto. E se a loucura um instante levanta as pálpebras. A grande válvula do corpo. A escuridão, a terra. Abril, 1980.
A CABEÇA ENTRE AS MÃOS
DE ANTEMÃO Tocaram-me na cabeça com um dedo terrificamente doce, Sopraram-me, Eu era límpido pela boca dentro: límpido engolfamento, O sorvo do coração a cara devorada, O sangue nos lençóis tremia ainda: Metia medo, Se um cometa pudesse ser chamado como um animal: ou uma braçada de perfume tão agudo que entrasse pela carne: se fizesse unânime na carne como um clarão. Um anel vivo num dedo que vai morrer: tocando ainda a cabeça o rítmico pavor do nome, O leite circulava dentro delas, É assim que as mães se alumiam e trazem para si o espaço todo como se dançassem. São em si mesmas uma lenta matéria ordenada. Ou uma crispação: uma ressaca, E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal: eu já tinha uma ferida um nome, E o meu nome mantinha as coisas do mundo todas levantadas
Que lhe estendas os dedos aos dedos: lhe devolvas o sangue, Como as estrelas duplas duplamente se dão força, E fique assim — astro grande estanque cosido em sangue: e a luz obturada, E então no seu pneuma luminoso: um astro cheio, Coração: astéria: carne de olaria pulsando, O espasmo da mão às vezes se arranca aos recessos da cabeça um relâmpago, Ou se retira ao braço o movimento pela musa do sexo, Ou à vertigem se retira o rasgão do ar na dança, Assim a estrela com dois membros cravados recebendo o tremor do mundo, E toda essa massa peristáltica esmaga a argila táctil: um pequeno músculo convulso no fundo de agua: um troço de sangue nas costas, Que lhe passes pelas roupas e a nudez as tuas armas, Ou lhe ponhas no escuro um incêndio: e te ilumines dele, E a tua cara se faça miraculada à combustão, E entres rutilante por uma porta para outra porta, Essa porta que dê para uma porta de ti própria, A mão ateando a escrita que se desloca brilha direita, Toca-te toda: tocas no chão através dela, A terra treme quando lhe tocas, Tudo se transmite e transforma, A gangrena é uma força, Tu és a raiz dele, Estás dentro da luz de fora, Como o choque sísmico da estrela
MÃO: A MÃO O coração em cheio no corpo, Um sopro no coração, E a carne reflui toda. Uma braçada alta, Reflui ao sorvedouro a água áspera, Árdua meada de sangue de mão a mão no escuro. Sob a roupa que a lua exalta, Escafandrista que defendesse o remoinho de ar nos pulmões do remoinho do abismo, Ou defendesse a insónia da surda invasão do medo, Abraçado a essa bolha, Toque leveza baptismal centro, Oh sombria natação com um relâmpago, Camisa molhada até às entranhas: secando à lua entre água e pesadelo, Visto essa camisa brilhando sobre um buraco um escurecimento, A transfusão das imagens. Fendido ao meio dos olhos, Por onde penetra a agudeza do mundo: e me transforma, Quem enterra um diamante e não sabe que o enterra em si, E fosse: pela costura elementar: uma pálpebra por cima de um aparelho da alucinação um organismo do sonho, Alguém que se deitasse com um grito dentro: e acordasse com esse grito
pela boca fora, Que fosse uma cana encontrada no vento: quando é de alguém que o vento se levanta, E os dedos atassem e desatassem o som nos orifícios — música ferramenta a paixão, Que fosse de fôlego a fôlego, Qualidade da coisa que se nomeia, E tudo me abala — O nome a encher uma pessoa como a luz enche o vento, Ou a ferida enche a lembrança, Mantenho os objectos as chamas: à força de respiração: de carne amarga, Pensa-se que a cabeça é toda brusca: a beleza rudemente pela brancura, Com uma vara de sal é que tocaram fundo e me floriram, E eu estremeço desse dardo: dessa pancada na cabeça cheia de sangue e sopro: e desse florescimento, É uma arte em pé ardendo à vista, Que se infunda na matéria acerba o lume. Um ofício: a sua maravilha: apavoram-me, E na madeira se lavrem a pulso os genitais: os membros: o umbigo e a garganta, Da carnagem das gramáticas arranco a música o nome
o número, Trabalho à raiz do ouro frio. Tão agudo tão agudo., Se toda a peça de carne é varada por uma veia inocente: vara-me a iluminação vocabular da memória. Mexida por lunações como na fêmea a massa lêveda. Ou no poema a parte fêmea instrumentada pela magnificência, O que nele se talha em som escrito: órgão. Mão que revolves a substância primordial, Barro Fundamento, Que o hausto atenda à força respirada pela carne em poder, O nó coronário de uma estrela, Peso e melancolia da riqueza e do medo, E que me assome Deus às partes graves: com sua luva súbita no abismo, É ao meu nome que regresso: à ameaça, A limpidez atravessa-me pelos furos naturais ardidos. Entra um astro por mim dentro: faz-me potência e dança, Que toda a noite do mundo te torne humana: obra
TODOS OS DEDOS DA MÃO As cabeças de mármore: um raio as fenda, E fiquem queimadas de dentro até à boca, Ou uma faca lhes corte as carótidas: que as deslumbre o sangue deslumbrante — A garganta: se a faca as encharca, Anéis de mármore rude o pêlo a auréola. Tudo alagado desde os recessos. Brilhando tudo, Que a ferida elementar assome como ao espelho: como à maneira de cicatriz de imagem, A força das janelas, O odor do leite opulento na lembrança, E a úlcera da boca no centro da máquina circulatória: os braços — tudo crispado como um sistema de astros, A estátua é um pulmão dos pés à cara, Devora o ar levantado, A beleza é operatória, Uma coroa da carne da cabeça como se a juba lhe ardesse, De mármore, Brecha anatómica para o soluço dessa massa salgada — o medo: o temerário movimento da dança: a riqueza: o sono: as voragens. Estás cheio de esperma, Transpiras na raiz da cabeleira, A língua treme dentro de ti que és uma fala, Respiradouro assombrado, A mulher a cada dedo que apontavas: a cada poro dela: a cada choque lunar na levedura: ao teu bafo: a leveza que te contemplava: o fôlego dela: estremecendo fincada no chão como uma estaca de fruta, Tu és o raio dela: a rapidez: ela
é o teu sopro, Estala, O suspiro da lenha suada gota a gota, Que lhe apura o corpo e o aprova, Que o apavora, Potência múltipla desordenando os nomes: mantendo o mundo pela desordem
Os braços arvorados acima do trono, Com um rasgão luminoso movido tudo a uma potência orgânica de astro: Astro pleno, Ameaça de desordem sobre uma trama exacta de números de gramática, Se dessa pauta se arrebatasse a cerrada ligeireza da dança. Inominável sistema de peso e graça. Se a matéria crescesse fincada num tendão. Pela abertura fortemente entre os nervos: pelos membros se gerasse pulsando a forma, E uma soberania formal ardesse pelo meio, Os dedos: uma estrela poderosa, Toco-te cheia de fósforo de sangue de força eléctrica, A lua que é o fundamento, O halo da tua onda de oxigénio: de seda. Urdes a brancura que te urde o sono: que te acorda em sobressalto atravessada pelos relâmpagos. És o teu próprio nexo, Toco-te apenas, Suor: tensão: o diamante que toco: tacto contra tacto: a língua presa por uma veia negra: o odor: o bafo — toco-te, e moves-te como uma porta tocada no fecho: apenas como um astro transbordante: palpitas apenas como uma pálpebra sobre o mundo: ou uma luz sem pálpebras que te olha e olha, Respiras apenas: pulmão do quarto afogado: pulmão árduo, Apenas ferida perpétua: fluxo: púrpura ardida — ó raiz transpirada dos meus braços
O sangue bombeado na loucura, Do medo ao modo de escrevê-lo, Entra pelo papel dentro, Queima tudo — os dias que se atrevem no mundo: as massas de ouro: o âmago, Enterra-se de noite um diamante: e a terra move-se. Coração fechado fundo. Como se me furasse um tubo vocalmente até às amígdalas, Sopro pulmonar tornado paixão de música labialidade inocência. Áspero ligeiro ardido, Um lento desenvolvimento: o que se escreve acerbamente pontuado a fogo, A frase a fala, Ligado por veios pungentes ao grande buraco da cabeça: à boca, A cada poro que ao toque ilumina os tecidos: docemente os objectos: os animais e a madeira, Calcinando língua e dedos até às unhas: o pêlo como o pêlo numa estrela — sobre a fronte. Ou os braços que fulguram como espadas no tronco, A ponta das falangetas tremendo, Uma golfada pelo rasgão vocal, Crespa canção: o mover das mãos em torno: e a pancada cortada das artérias: o pesadelo, E é tão compacta a malha da carne tão rude, O fluxo que se desenreda, Como se o corpo todo fosse uma veia, Uma traqueia de onde irrompesse um som — árduo árduo e agudo, E a boca respirando se tornasse numa bolha, O rosto como uma víscera, Que brilhasse varada pelo sangue: alta e ríspida: e brilhasse ainda
quando o dia transparente transpusesse: porta a porta: tudo. As mãos: a cabeça entre as mãos: a voz entre fôlego e escrita. Nas cavernas do mundo
O sangue que treme na cama: a cama que treme na casa: a casa que treme, A paisagem arrancada ao chão, Furos de lume, Os tecidos do corpo, Não é doce esta bolsa de sangue, Que te adiantes: cabeça estelar de tigre, O dia empurra as suas massas, Máquina planetária: Deus: uma faísca em cheio, Ou um dedo apenas direito estendido: com a unha veemente entrando, Que a obra espacial da luz se acomode à tua plumagem, Em que poça de ouro se implanta soberbamente a mão?, Às vezes és uma vara calcinada, Arrebatas a claridade dos mortos: a sua estrela aberta por todos os lados, Não sabes dormir: com a força das entranhas, Apenas um nervo alto te sustenha, O poder devia encher-te de tendões: o implacável prodígio do mundo devia encher-te de ossos — pôr-te estacas, Que raiz de espinho na testa por dentro se embrenhasse — através de soluços: medo: carne estrangulada — até à leveza: à qualidade diáfana do sopro, Onde te concentras: tão trémulo e translúcido: tão levantado como a chama que brota: flor na candeia, Afundas-te iluminadamente na riqueza violenta, A noite bate em branco, Que ardas, Arde tudo, Fora dentro dos buracos, As labaredas atravessam as membranas
Estremece-se às vezes desde o chão, Por se ter uma navalha no bolso: por o sexo ser sumptuoso: por causa dos buracos luminosos na camisa, Tem-se medo do poder da nudez, A finura da carne: uma unhada no coração: o modo de fazer rodar o quarto: o barulho que se ouve nos canos onde a água vive — tudo sob a ameaça de uma riqueza brusca em nós, Quando um raio se desencadeia pela coluna vertebral abaixo, O golpe entre as madeixas frias, Toca-se na cama: e nunca mais se dorme, Toca-se onde os pulmões se cosem à boca para gritar. Às vezes tem-se o dom de fincar os pés na paisagem em massa, Um feixe desenfeixa-se no avesso — estala fora, Com que vozes se encontra a gente quando o pavor se faz música ordem exercício nominal?, Arrancamo-nos a tudo como se arranca a unha a um dedo: ou o dedo à mão: ou a mão ao gesto amansando a terra como se penteia, Pente que reabre a chaga e a alastra, Que a aprofunda como o sangue aprofunda a claridade pequena de um lenço, Se o lenço se molha na costura que sangra perpetuamente, A coroa irrompe da cabeça pelo ímpeto da realeza animal, O choque de um astro calcinaria tudo — o ceptro que nos crava no mundo o manto o escudo os anéis como nós de dedos, Morre-se de alta tensão,
É o relâmpago de um troço avistado, As voragens à força de janelas, Ou é Deus que nos olha em cheio: dentro
ONDE NÃO PODE A MÃO Como se uma estrela hidráulica arrebatada das poças, Tu sim deslumbras, Por coroação: por regiões activas de levantamento: por azougue da cabeça, Brilhas pela testa acima, Ceptro: potência — ah sempre que o chão crepita dos charcos de ouro, E no corpo trancado a veias e nervos: o sangue que se afunda e faz tremer tudo, Tocas com um arrepio de unha a unha o mundo, Pontada que te abre e aumenta ou — onde se um troço dessa massa intestina: e como respirada: às queimaduras primitivas — Boca: sexo: viveza das tripas: uma glândula que te move ao centro, Amadureces como um ovo. Na traça carnal: todo com um golpe com muita força para dentro
Cortaram pranchas palpitando de água: fincaram-nas, Montaram esta casa: suas membranas trémulas: a potência do chão, Este astro opulento entreaberto pelas labaredas, Com uma chaga na camisa: grita. Há alguém que grita com uma imagem em combustão saída do corpo: como a parte de fora de um planeta, Que se não toque nunca nas bolsas onde pulsa a água, Que se não toque nas torneiras onde se ata o gás: nos pontos de tensão por onde o gás rebenta, A morte está tapada em qualquer parte dos dedos enredados em qualquer parte da matéria tremenda sob os dedos, A matéria que mata por fogo ou afogamento, E na garganta como o ar faz o som a morte faz um grito: um estrangulamento, O gás brilha muito: a água brilha: no interior de tudo brilha tanto o medo como uma força, Respiradamente: ah jubilação da cara: o sangue dentro na sua malha sensível canta canta, O lirismo é louco: aterra, O tronco: a dor de um músculo arroteado fremindo, Este uso luminoso imposto ao mundo das paisagens, Assim sobre o pescoço dispõe-se disto — carne martelada por fluxos e refluxos entre as formas e o assombro, A comida por exemplo há que tragá-la, Há que escoar a água pelos ralos da terra; ou entre os braços côncava como uma estrela há que sustê-la. Há que sorver veneno: gás: um
delírio tóxico, Há que ter a transparência da morte, É preciso ser dental: ter entranhas: ser igual ao furor das coisas: da metáfora das coisas, Um pouco de acrescento manual ao raio que destroça a mão, Ou engolir no tubo assoprado tanto do ar do fundo, Há que ser ferramenta de música
DEMÃO Retorna à escuridão o rosto: entre centelhas, Ficasse tão maduro quando de te tragar estremecesses, Que o animassem os elementos: um interior: um limite do mundo, E se afinasse como um galho de marfim cheio de lume, Que fosse um instrumento de crescer na terra: um golpe nela, A braço, Com a mão coroada, Até à bolsa com a lua dentro, No ovo está o astro, Se pelos dedos nesse rosto te plantasses todo na riqueza do sono, Soldado a nervos: osso: feixes de fibras: tímpanos, E as faíscas saltando pelas unhas as deixassem ígneas, E uma veia arpoasse igneamente a massa muscular, Ou a aorta sorvesse a matéria tremenda ao seu abismo, E te encharcasse até ás pálpebras, Essa púrpura por válvulas contra os dentes, Nos fundamentos há vezes em que és ligeiro ao movimento da água, Ou nas paredes onde os canos se cruzam como um corpo onde se cruzam órgãos tubos, Um alento das coisas: dos tecidos do mundo, E por exemplo se a louça e o inox brilhados de dentro: à mesa, E a madeira respira mais rápida, E uma grande massa orgânica magnífica cercada de membros como um homem, Essas pinças na cabeça entre as meninges extraindo uma estrela, Os canais luminosos da cabeça iluminam-te todo, Iluminas-te quando se arranca a língua e há um soluço da fala, Levantas-te soberbamente ao rosto, Como a vara
do vedor fica acesa pelas ramas de água, Como que salga o aparelho do corpo: e o torna substância alta: giratória, Ou se fulgura a trama cristalográfica terrífica da música, Se levanta entre dedos e cordas fundidos, De sangue e ar no escuro: música, O medo do poder: esta ferida tão de um nó de músculos estrangulando uma leveza, O barro violento, A manobra das vozes, Fechas os olhos: e as coisas não te vêem, As mãos brilham-te abertas, A morte aumenta a cara 1981.
AS MAGIAS poemas mudados para português
— Magia — E quem dirá — seja qual for o desencanto futuro — que esquecemos a magia, ou que pudemos atraiçoar na terra amarga a macieira, a canção e o ouro? Thomas Wolfe
— De: Raízes e Ramos — Só existe o tempo único. Só existe o deus único. Só existe a promessa única, e da sua chama e das margens da página todos se incendeiam. Só existe a página única. o resto fica em cinzas. Só existem o continente único, o mar único — entrando pelas fendas, batendo, rebentando, correndo de lado a lado. Robert Duncan
— Um poema (Iniji) que não é como os outros — (J.M.G. Le Clézio) Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela aquilo que pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter. Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música? Talvez músicas silenciosas, tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade. Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado. Em geral, quando passavam, esses grandes poemas, havia um extremo vazio, um imenso vazio (o medo, o cansaço), e era a ele que preferíamos. Ou ainda outros poemas, que falavam de coisas graves, insultavam, blasfemavam. Faziam um grande barulho de trovão, e nós, pequenos homens fracos que não gostávamos de tempestades, metíamos a cabeça entre os ombros, à espera de que aquilo passasse. Os gritos e os insultos, não, isso não era para nós. Cada vez mais poemas, sempre, nos livros. Fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso, nas páginas brancas... Mas olhávamos esse branco das páginas e, de longe, as cristas dos maciços verticais; árduas colinas de que não queríamos aproximar-nos, estavam bem onde estavam, de longe, ao longe. Diziam coisas, esses poemas, e ao mesmo tempo não diziam nada. Palavras voltejantes, não iam a parte nenhuma, sem força, sem duração, sem memória, lidas vagamente, abandonadas depois. Criavam o seu próprio rumor, dispensando ouvidos, zumbir de abelhas invisíveis. Líamos aqui uma palavra, ali outra, e tínhamos dificuldade em ligá-las, pois eram palavras sem raízes, não viviam, pareciam conchas vazias; podia fazer-se com elas um colar. Agora, depois de Iniji, já nos não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água. Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está que apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as paredes dos prédios, acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão. Deve lá estar há muito tempo pois, quando o lemos, reconhecemo-lo imediatamente. Não o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se aproxima, roça e desaparece. Há tanto malfadado saber que turba, perturba. Estas palavras, todas as palavras inquinadas e falsas, inflamando, obstruindo as mucosas, impedem que o ar chegue até nós. Tantas palavras: tantas paredes.
Mas existem outras palavras libertadoras, e não entendemos porquê. Não são as mesmas? Não são, elas também, linguagem dos homens? Chegam facilmente, sem as procurarmos, são leves, não pedem nada, não oprimem. Palavras aéreas, suspensas no céu branco em esquadrilhas imóveis. São elas que vemos, agora, só elas. Como se pôde inventar uma linguagem assim? Gostaríamos de acreditar que se trata de miragem, de acaso, e sabemos contudo (precisamente por causa das palavras da linguagem pesada) que não é simples coincidência. A música fere a música, e as palavras de Iniji reencontram no fundo de nós a sua própria imagem, como sobrevoando um grande lago quieto. O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos reencontrar. Insensato, móvel, penetra em nós e escruta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo de Iniji. Não sabíamos falar. Não possuíamos ideias, nem imagens, perdêramos o norte. Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus. Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança. Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji? Claro, considerávamos importantes essas palavras da linguagem, essas palavras comuns. Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar, ladrar, matar. Mas há outra língua, que falávamos antes de nascer. Uma língua muito antiga, não servia para nada, não era a língua do comércio com os homens. Não era decerto uma língua de sedução, para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras, estas palavras: fluidos. vento, bilha, órfã, carris, dormir, coração, constelada, cisne, lasciate, vapor, contorno, opala, vem... Existiam ao mesmo tempo que a vida, não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, eram movimento. Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como um corpo de delfim, a correr sem esforço ao lado do meu corpo, ultrapassando-o, iludindo-o, rápido através da massa de água que não consegue sustê-lo. Nada dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta língua. Porque nos tornaria mudos? A música entra pelos ouvidos e deve sair pela boca, ou então pelas ancas. Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá Iniji, Djã dã dã, Irritilili. A língua que me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha, acelera, liberta os seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo, bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo, que nos chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras voadoras, de perder a dança, a natação, a vida! Porventura pela primeira vez fixamo-nos a alguma coisa. A língua de Iniji não é um logro. As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.
Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar tudo isso, os adornos medíocres, as máscaras, os anéis, os cintos coleccionados, tudo isso com que nos ataviaram. Desejaríamos acreditar que eram só palavras, as mais inconsistentes. Se quiséssemos, apagar-se-iam, as palavras que diziam que, que acreditavam que... Se julgavam, elas, não as julgaríamos nós, um dia? Mas as palavras não são apenas palavras. Têm longas raízes tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las. Palavras aprendidas, reconhecidas, hábitos, parasitas, eram elas que destilavam veneno. Mas Iniji não pede que se escolha. Não se trata de mudar de vida, mudar de rosto ou nome. Iniji só deseja que nos lembremos. A língua fora do tempo, fora do espaço, a língua que se fala eternamente e sabe esperar por nós: aparece quando já se não esperava, no céu branco, traça as suas pequenas vias negras que não conduzem a sítio nenhum. Não haverá partida. Durante um instante, fala-nos com a sua vida, e falamos-lhe com os nossos olhos. Quando deixa de lá estar, já não está, é como se nada houvesse acontecido. Será forçoso então viver sem Iniji? Voltar a elas, lá em baixo, às palavras que surdamente resmoneiam, rosnam? Não se pode saber: estamos cercados pelo vento.
— Iniji — (Henri Michaux) Não pode mais, Iniji Esfinges, esferas, falsos signos, obstáculos no caminho de Iniji Movem-se margens Fundações afundam-se Mundo. Não mundo só o amálgama As pedras já não sabem ser pedras Entre todos os leitos da terra onde está o leito de Iniji? Menina pá pequena Iniji não pode fazer força Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo um corpo já não tem imaginação não tem paciência com nenhum outro corpo Fluidos, fluidos tudo o que passa passa sem parar passa Ariadne mais fina que o seu fio não consegue reencontrar-se Vento sopra vento em Arraô vento Ananiá Iniji Anâã Animá Iniji Orrenaniâã Iniji e Iniji inanimada Sai meio corpo
meio corpo morto Ananejá Iniji Anajetá Iniji Anamajetá Iniji A bilha não entorna a ciência O fogo não derrama o leite A chave, onde está a chave? Os insectos passam-na uns aos outros As vassouras varrem-na Tu sim, tu; mas eu não tem Eva sou eu órfã da Ideia saída, portas fechadas Já não agarra, Iniji iniji fala com palavras que não são as suas palavras Djã Djã Djã Djã dã dã que tornam Iniji inânime sem regresso nos carris de Irritilili Quantos vespões no verão da sua cabeça Não te detenhas nele, Iniji Se tu vais Njeu Njã vá dá Se tu não njá njarrá rá vais Reboques que a rebocam que ela reboca Aonde regressar? Foi-se o coração do quarto Repetição sempre repetida Oh Dormir, dormir numa ânfora
Paralisia nas águas paralisia nos campos Sofre-se aqui a suprema fealdade o ataque das agulhas voadoras O avesso do perfume, não sabem, eles O raio não é feito para cabeças de crianças mas está lá recreando-se, para ele, para nada, para criar um trovão As montanhas de Niniji estão condenadas Recôncavos, depressões, poços Segundo o mundo, os males Fechou-se a porta das viagens no túmulo jaz Iniji Misturados ao insalubre dos fundos contrários caracteres ficaram nela, o torturante do fogo junto ao monótono da água junto ao inconsistente, ao imperceptível do ar. E sempre o corpo sem vida como a rotação da mó Lá onde não existe nenhuma clareira nascentes, oferendas os infindáveis bordados da teia da aranha invisível tecem árvores com os meus pensamentos não posso fazer nada Somente as amarguras grandes somente a contínua continuação As escalas devoraram a melodia debaixo do tecto, o telhado debaixo do soalho, o leito na estopa os sinos Uma salamandra devorou o meu fogo... Este coração já se não entende com os corações este coração não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos, de bandeiras este coração não é desenvolto com estes corações este coração esconde-se destes corações este coração não se compraz com estes corações. Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji Stella, Stella constelada já te não levantas para mim. Aurora Tão pesados tão pesados tão taciturnos seus monumentos tão impérios, tão quadriláteros tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes, e nós tão nenúfar tão espiga ao vento tão longe do cortejo tão mal na cerimónia tão pouco da nossa idade e tanto a passear tão farinha tão peneirada e sempre na peneira asas de morcego batendo sempre contra a cara Bifurcações e desuniu-se o uno liames ligam lugares Lorenzo O cisne erguido ao rés das águas não disse «minha filha» Porque os gelos porque a fuga dos espíritos aconteceu Quem agora há-de aportar à ilha? As formas fogem em farrapos mergulham, alongam-se, deformam-se luas nos bordos de uma nuvem negra. Tiram-se as luvas cheias de sangue tira-se a camisa cheia de sangue
ah lasciate lasciate Silêncio silêncio Deixai-me nadar pelas paredes fora Ouço murmúrios que me chamam É ele. É o momento. Enfim! Espelhos recolhem-nos Espelhos trocam-nos a perdida deste mundo, a morte do outro mundo Deixai-nos Rorraá Roá Roarrá Rorrâã Hoarre hoâã Tornou-se depois tudo tão duro tão detestável velha mão nodosa sobre um rosto de têmporas raiadas de veias Outrora, outrora o rio de júbilo não tinha o leito ressequido Iniji não vivia ainda atrás das portas de chumbo Não acontecera ainda. Vida, extremidade de um galho... Ah o terrível, o trémulo que tão fácil dissipa o universo inteiro Estes esgares à minha roda sempre sempre que desejam eles? Papéis sempre sempre redistribuídos perdizes, folhas, loucas Vapor apenas vapor
pode acaso o vapor voltar a ser migração? o fio passa repassa fio sem fim a fiar-se casulo que me enclausura Ah! O Juízo sofrida sentença semelhante à síncope vagas fustigantes dedos aduncos tudo são tormentos para a órfã Iniji hospeda efémera das covas, pais, pinças, palavras Eis a estrada longínqua que não vem de volta. Dorme o seio de onde jorrou o leite. Apagou-se o contorno... e a opala... Ficou a sombra só o suspiro dos lábios Vem, vem, vento de Aúrraú tu, vem!
(lugures, Ásia Central) Ao negro mar ressoante possas tu chegar. Possas chegar e três vezes abrir a porta negra. Ao ressoante mar amarelo possas tu chegar. Pela tempestade amarela que sopra possas tu chegar. Possas chegar montado num cavalo amarelo. Empunhando um dardo amarelo possas tu chegar. Possas chegar ao ressoante mar vermelho. Pela tempestade vermelha que sopra possas tu chegar. Possas chegar com as mãos cheias de preciosas pedras vermelhas. Vestido de bárbaros couros vermelhos possas tu chegar.
(Pigmeus, África Equatorial) I O animal corre, e passa, e morre. E é o grande frio. É o grande frio da noite, é a escuridão. O pássaro voa, e passa, e morre. E é o grande frio. É o grande frio da noite, é a escuridão. O peixe nada, e passa, e morre. E é o grande frio. É o grande frio da noite, é a escuridão. O homem come, e dorme, e morre. E é o grande frio. É o grande frio da noite, é a escuridão. Acende-se o céu, apagam-se os olhos, resplandece a estrela. E aqui em baixo é o frio, e lá no alto é a luz. Passou o homem, desfez-se a sombra, libertou-se o cativo. Vem, espírito, vem, por ti chamamos. II O filho foi ver aos pomares se as frutas estavam maduras. Maduras já estavam as frutas. Erram no mundo os espíritos. É o tempo. É a noite que agora começa. Livre agora está o cativo. O filho partiu agora. Foi libertado o cativo. Caminha na outra margem. Olhos fixos, em frente, olhando. Partiu. Já se não volta para trás, olhando. A sombra roçou na parede da cabana. Passou uma centelha. Como o pirilampo que gira, o fogo voa em torno das palmeiras.
(Dincas, Sudão) No tempo em que Deus criou todas as coisas, criou o sol, e o sol nasce, e morre, e volta a nascer; criou a lua, e a lua nasce, e morre, e volta a nascer; criou as estrelas, e as estrelas nascem, e morrem, e voltam a nascer; criou o homem, e o homem nasce, e morre, e não volta a nascer.
— Dança e encantação — (Gabão) Solo: Peias cinzas da vítima votiva, oferecida, errantes espíritos da noite que percorrem a floresta sombria sem descanso... Nunca mais! Coro: i-ô, i-ô, nunca mais. Solo: Espíritos dos mortos que não viram os sacrifícios funerários. Coro: i-ô, i-ô, nunca mais. Solo: Mortos que ainda não passaram passaram o rio das lágrimas. Coro: I-ô, i-ô, nunca mais. Solo: O rio dos suspiros e das lágrimas. Coro: O rio dos suspiros e das lágrimas. Solo: O rio do repouso grande. Coro: O rio do repouso grande. Solo: Espíritos da noite, sombrios espíritos guardadores. Coro: Guardadores.
Solo: Filho meu, guardado sejas, guardado, sempre, para sempre sejas guardado. Coro: lô-iô, para sempre sejas guardado.
— Noutra margem do inferno — (Robert Duncan) Ó mortos interditos, também eu vou à deriva. Ouço-vos junto à ribeira. Mortas vozes alimentadas pelo meu sangue, o amor não cura, não me conforta estar a vosso lado. Eis-me também — há quatro meses — como vós sem amor, levado pela raiva ou pela chuva ou pelos tormentos do frio, levado. É verdade que os cristãos, fila a fila, ficam imortais no seu amor ou no amor de um Deus? cantando? Ó mortos sagrados, os vivos não o Divino é quem invejo. Como vós, por juntar-me aos vivos eu anseio.
— Canto das cerimónias canibais — (Huitotos, Colômbia Britânica) Estão em baixo, atrás dos filhos dos homens, diante da minha paisagem sangrenta onde o sol se levanta, os meus filhos estão em baixo, estão em baixo no meio do teatro sangrento, ao pé da minha árvore sangrenta, estão em baixo. Esmagam os crânios dos prisioneiros, queimam plumas de pássaros. No rio de sangue junto ao céu, estão as rochas do meu voto de guerreiro. E em baixo, no centro da aldeia, os homens trabalham ferozmente, despedaçam os prisioneiros. Cozem-nos, lá em baixo. Diante da minha paisagem sangrenta onde o sol se levanta.
— o coração — (Stephen Crane) No deserto, vi uma criatura nua, brutal, que de cócoras na terra tinha o seu próprio coração nas mãos, e comia... Disse-lhe: «É bom, amigo?» «É amargo — respondeu —, amargo, mas gosto porque é amargo e porque é o meu coração.»
— À Serpente Celeste, contra as mordeduras — (Pigmeus, África Equatorial) Quando à noite o pé tropeça algures, em algo que se contracta e ergue e morde, Serpente — Pai da tribo, concede aos filhos teus que seja um galho que se levanta e bate — não uma das tuas criaturas de boca aguda, a nós, ó Pai da tribo, teus filhos breves.
— Mulher cobra negra — (Gondos, índia Central) Vens tão devagarosa, ó mulher cobra negra, Porque vens tão devagar? Trago-te argolas à medida dos artelhos, Porque vens devagar, ó mulher cobra negra? Trago-te um sari à medida do teu corpo. Porque vens devagar, ó mulher cobra negra? Trago pulseiras à medida dos teus pulsos. Porque vens devagar, ó mulher cobra negra? Porque vens tão devagar?
— Serpente e lenço — (José Lezama Lima) A serpente pegou num lenço e assentou um quadrado tenso como os seus anéis de serpente. Os anéis distendiam-se como o metal e o lenço cobria a mesa de cabeceira. Era uma serpente ou um jorro de luz? Era um lenço ou uma superfície simplesmente lisa, pintada de branco? Pus-me a golpear o lenço com a serpente. E saltavam olhos, escamas, anéis que tremiam como carne de tartaruga. Comecei a compreender o parentesco entre a serpente e o lenço com as pontas dobradas. Escondia um segredo, e contra ele a serpente silvava e mordia. A serpente adormeceu no lenço. O lenço ocultava a serpente, mas tudo respirava debaixo da terra. Era agora o limite que não ondula, e o lenço e a serpente escoavam-se.
(índios Comanches, EUA) Djá i dju nibá u i dju nibá i dju nibá u djá i dju nibá i ná ê nê ná i djá i naí ni ná i dju nibá u i dju nibá i dju nibá u djá i dju nibá i djá ê nê ná
— Na cerimónia da puberdade feminina — (índios Cunas, Panamá) As mulheres que cortam o cabelo às raparigas vão entrando na casa. As mulheres sentam-se por detrás das raparigas. As mulheres agarram nas tesouras e sentam-se. As mulheres agarram nos pentes e nas tesouras. As mulheres põem-se defronte das raparigas. As mulheres estão em pé com as grandes cabaças cheias de água. As mulheres pegam nas cabaças pequenas. As mulheres enchem as cabaças pequenas com aguardente. As mulheres pegam nas cabaças pequenas e seguram-nas. As mulheres bebem a aguardente. As mulheres sentam-se de novo. As mulheres tiram os lenços das cabeças das raparigas. As mulheres agarram nas tesouras. As mulheres penteiam as raparigas. As mulheres cortam o cabelo às raparigas. As mulheres estão a cortar o cabelo às raparigas. As mulheres deixam cair no chão o cabelo das raparigas. Cai no chão o cabelo das raparigas. As mulheres metem as tesouras por entre o cabelo das raparigas. As mulheres acabam de cortar o cabelo às raparigas. As mulheres cobrem as raparigas, cobrem muito bem com os lenços as cabeças das raparigas.
(Austrália) Ondas que se levantam, grandes ondas que se levantam contra as rochas rebentando, ruá, ruá. Com a lua alta a alumiar as águas. Na primavera. E as águas avançam pela erva, rebentando, ruá, ruá. Na praia brava as raparigas banham-se. Escuta o marulho delas batendo as mãos, levantando-as!
— Os grandes feitiços — (Biaise Cendrars)
I Um tosco troço de pau Dois braços embrionários O homem rasga-lhe o ventre E adora seu membro erecto II Quem ameaças Tu que andas Punhos fechados nas ancas Vacilante Mal liberta da prenhez? III Nó de madeira Cabeça em forma de bolota Duro e refractário Rosto glabro Jovem deus assexuado e cinicamente hílare IV A inveja devora-te o queixo Atormenta-te a avidez Levantas-te Aquilo que falta ao teu rosto Torna-te geométrico Arborescente Adolescente V Ei-los ao homem e à mulher Ambos feios ambos nus Ele menos gordo e mais forte Mãos na barriga boca em ranhura de mealheiro VI
O pão do sexo que ela coze três vezes ao dia E o odre cheio do ventre Vergam-lhe O pescoço e as espáduas VII Sou feio! Na solidão à força de aspirar o odor das raparigas Incha-me a cabeça e há-de cair-me o nariz VIII Quis fugir às mulheres do chefe A pedra do sol fendeu-me a cabeça Na areia Ficou apenas a minha boca aberta Como a vagina de minha mãe Gritando IX Ele Calvo Nada mais que uma boca Um pénis longo até aos joelhos Os pés cortados X Ei-la à mulher que mais amo Duas rugas agudas em volta da boca em funil Testa azul Têmporas pintadas de branco O olhar brunido como uma peça de cobre
— Figos — (D.H. Lawrence) A maneira correcta de comer um figo à mesa É parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo, E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida, dessabrochada em quatro espessas pétalas Depois põe-se de lado a casca Que é como um cálice quadrissépalo, E colhe-se a flor com os lábios. Mas a maneira vulgar É pôr a boca na fenda, e de um sorvo só aspirar toda a carne. Cada fruta tem o seu segredo. O figo é uma fruta muito secreta. Quando se vê como desponta direito, sente-se logo que é simbólico: Parece masculino. Mas quando se conhece melhor, pensa-se como os romanos que é uma fruta feminina. Os italianos apelidam de figo os órgãos sexuais da fêmea: A fenda, o yoni, Magnífica via húmida que conduz ao centro. Enredada, Inflectida, Florescendo toda para dentro com suas fibras matriciais; Com um orifício apenas. O figo, a ferradura, a flor da abóbora, Símbolos. Era uma flor que brotava para dentro, para a matriz; Agora é uma fruta, a matriz madura. Foi sempre um segredo. E assim deveria ser, a fêmea deveria manter-se para sempre secreta. Nunca foi evidente, expandida num galho Como outras flores, numa revelação de pétalas; Rosa-prateado das flores do pessegueiro, verde vidraria veneziana das flores da nespereira e da sorveira, Taças de vinho pouco profundas em curtos caules húmidos, Clara promessa do paraíso:
Ao espinheiro florido! À Revelação! A corajosa, a aventurosa rosácea. Dobrado sobre si mesmo, indizível segredo, A seiva leitosa que coalha o leite quando se faz a ricotta, * Seiva tão estranhamente impregnando os dedos que afugenta as próprias cabras; Dobrado sobre si mesmo, velado como uma mulher muçulmana, A nudez oculta, a floração para sempre invisível, Apenas uma estreita via de acesso, cortinas corridas diante da luz; Figo, fruta do mistério feminino, escondida e íntima, Fruta do Mediterrâneo com tua nudez coberta. Onde tudo se passa no invisível, floração e fecundação, e maturação Na intimidade mais profunda, que nenhuns olhos conseguem devassar Antes que tudo acabe, e demasiado madura te abras entregando a alma. Até que a gota da maturidade exsude. o ano chegue ao fim. O figo guardou muito tempo o seu segredo. Então abre-se e vê-se o escarlate através da fenda. E o figo está completo, fechou-se o ano. Assim morre o figo, revelando o carmesim através da fenda púrpura Como uma ferida, a exposição do segredo à luz do dia. Como uma prostituta, a fruta aberta mostra o segredo. Assim também as mulheres. Demasiado maduro, esgotou-se o ano, O ano das nossas mulheres. Demasiado maduro, esgotou-se o ano das nossas mulheres. Foi desvendado o segredo. E em breve tudo estará podre. Demasiado maduro, esgotou-se o ano das nossas mulheres. Quando no seu espírito Eva soube que estava nua Coseu folhas de figueira para si e para o homem. Sempre estivera nua. Mas nunca se importara com isso antes da maçã da ciência. Soube-o no seu espírito, e coseu folhas de figueira. E desde então as mulheres não pararam de coser. Agora bordam, não para esconder, mas para adornar o figo aberto. Têm agora mais que nunca a sua nudez no espírito, E não hão-de nunca deixar que o esqueçamos.
Agora, o segredo Tornou-se uma afirmação através dos lábios húmidos e escarlates Que riem perante a indignação do Senhor. Pois quê, bom Deus! gritam as mulheres. Muito tempo guardámos o nosso segredo. Somos um figo maduro. Deixa-nos abrir em afirmação. Elas esquecem que os figos maduros não se ocultam. Os figos maduros não se ocultam. Figos branco-mel do Norte, negros figos de entranhas escarlates do Sul. Os figos maduros não se ocultam, não se ocultam sob nenhum clima. Que fazer então quando todas as mulheres do mundo se abrirem na sua afirmação? Quando os figos abertos se não ocultarem? _____________ * Requeijão.
— A Príapo — (Tivoli, Roma) Salvé, ó santo Príapo, pai geral, salvé! Dá-me uma juventude viva, faz com que eu agrade aos rapazes e às belas raparigas, que o meu encanto seja irresistível; que festas e jogos ininterruptos afastem de mim os cuidados, e me poupe o medo da velhice lenta, da morte longa, a morte que leva às regiões fatais do Averno, lá onde o rei guarda as almas dos mortos como fantasmas vagos, funesto reino de que se não regressa nunca. Salvé, Príapo, santo pai, salvé! Vinde em bandos, todas, raparigas que venerais os bosques sagrados, as águas limpas; vinde, todas vós, e docemente dizei ao glorioso Príapo: Salvé, ó santo Príapo, pai de todas as coisas, salvé! E ele, afastando as gentes cruéis e sanguinárias, deixa-vos atravessar as florestas no silêncio das sombras calmas. Ele, o deus, afugenta das fontes os impuros que se metem pelos ribeiros dentro, que lavam as mãos, que turvam as águas, que não chamam as raparigas divinas. Dizei; Que Príapo nos seja propício! Salvé, ó santo, ó pai de tudo, salvé! Com teu poder, salvé, Príapo! Salvé! Tu que és nomeado o Gerador e o Autor do mundo, Pã confundido com a Natureza e o Universo inteiro. Tudo se concebeu pela tua força, tudo quanto vive no mar, no céu, na terra. Príapo, salvé, ó santo, ó pai, salvé! O próprio Júpiter depõe os raios terríveis e, inspirado pelo desejo, abandona o trono claro. A ti se dobram Vénus, a bela, e o ardente Cupido, e a Graça com as irmãs gémeas, e Baco, o deus que traz o júbilo. Sem ti não vencem as armas de Vénus, e as Graças não são graciosas, e Cupido e Baco não nos enredam em seu encanto. Com teu vigor sagrado, Príapo, salve, salve! Invocam-te as tímidas raparigas para que lhes desfaças os cordões das vestes há tanto tempo cingidas. Invocam-te as mulheres para que os seus homens tenham o nervo sempre potente e rígido. Salvé, ó santo, ó pai, ó Príapo! Salvé!
— Juventude virgem — (D.H. Lawrence) Às vezes A vida que olha através dos meus olhos E freme em palavras através da minha boca, E me impele como ao resto dos homens, Esquiva-se, e fico atónito. E então Meu peito insondável começa A despertar, e ao longo de ténues Ondas sob a carne, desencadeia-se Um ritmo brusco, e o mudo ventre sonolento Acorda de súbito. O meu doce ventre no sono Vibra e desperta numa vontade, num impulso. Enquanto por bem ou mal Um baixo eu se levanta e me saúda; Homúnculo que se anima desde a raiz E, erguido, bate em mim. Levanta-se, e eu tremo diante dele. — Quem és tu? — Ele é mudo, mas ardente e longo, E não o desdenho. — Quem és tu? Que intentas Fazer de mim, tu, brilhante, iconoclasta? — Como é belo! silencioso. Sem olhos, sem mãos; Mas a chama de barro vivo Ergue-se, a coluna de fogo na noite. E, vindo das profundezas, ele sabe; por si próprio, Ele sabe. Por si próprio, sozinho. Compreende e sabe. Brilhante, confiante, misterioso. Surgiu do nada. Tremo à sua sombra, enquanto ele arde Para atingir o alvo sombrio. Ergue-se como um farol, a noite ferve À volta do seu fundamento, a luz sombria roda
Dentro da sombra, e sombriamente regressa. Lança um apelo, o solitário? O fundo Do silêncio ressoa com o apelo? Move-se invisivelmente? A sua abrupta Curva procura a curva de uma mulher? Viajante, coluna de fogo. Tudo é vão. O calor do teu túmido desejo Transforma-se em dor. Vermelho, sombrio pilar, perdoa-me. Estou agrilhoado Ao rochedo da virgindade. Não ouço a tua voz estranha. Clamamos no deserto. Perdoa Que desenvoltamente me tenha estendido No vale feminino, e tenha dançado A tua dupla dança. Obscura, orgulhosa, curva beleza! Gostaria de abandonar-me ao movimento das ancas. Mas numa só voz as hordas humanas recusam O meu desejo. Arrancaram as portas aos gonzos, Atulharam o caminho. Saúdo-te Apenas para arrancar-te a flor. A tua torre Enfrenta o nada. Perdoa.
— A Grande Rena Louca — (Colômbia) Cacemos a Grande Rena sobre as patas dianteiras, que domina as nossas tribos, percorre as nossas aldeias, — esta Grande Rena Louca. Com o nosso rosto estreito, com a boca cheia de água, deitaremos mau olhado olhando-a direito nos olhos, até que os olhos se fechem, — esta Grande Rena Louca. Foi ela que renovou a beleza alta das coisas, ateando-as com o fulgor, com a altura do seu corpo, com seu emblema de cobre, — esta Grande Rena Louca. Os cornos de cobre virgem! Falem deles, maravilhem-se. Agora vamos caçá-la. Salta acima do grão-chefe de quem se canta a glória, — esta Grande Rena Louca.
As trompas de Ártemis — (Robert Duncan) Lá onde a grande Ártemis cavalga nua, claro lago da dama radiosa despertando os amantes, caçadores e caçados, as trompas ressoam pela noite fora. Ou são apenas os cláxons longínquos? evolando-se e insistindo entanto, apelo às vozes do coração, passeios durante a noite num indefinido desejo, ou os cornos do amante traído, coroa dolorosa da sagrada Lua? Estamos agora acordados. Somos os Reis — bobos, poetas, loucos. Eis a Dama, suas voluptuosas chicotadas, seus grandes olhos fixos brilhando nos jogos da noite. Confundem-se num só o urso que sangra e a matilha. Os caçadores nas armaduras cavalgam até à morte. Foi-se o amor. Os amantes tremem. Resta a Verdade, a eterna fria luz que sobre o mundo se expande.
— Encantação — (México)
Eis chegado o tempo, vara que amas a água, de plantar e dar alento à mulher admirável das oito folhas simétricas. Hei-de plantá-la a preceito na terra mais abundante, longe das ervas daninhas, a mulher admirável das oito folhas simétricas. Príncipe grande, divino sol rompendo as trevas, espanca-a tu sete vezes, que vezes nove lhe batas. Tenho intacta a confiança na regra dos quatro incêndios. — Pai, com tuas quatro flamas, teus quatro incêndios altíssimos, o teu cometa vermelho! Pai e mãe dos deuses, deus com quatro baforadas de centelhas; criatura dos degraus infinitos, boca igual ao rio de névoa, leva os mensageiros da chuva de cabeleiras despenteadas: arautos eternamente insatisfeitos, inquietos, carregados de tormentos e de lágrimas. Ó pai dos quatro sopros ardentes, em ti hei-de eu pensar antes de mim, antes da minha alegria. Antes de em mim pensar, na minha própria alegria, consagro-te o sangue forte, o perfume a sangue forte, do animal cativo. Consagro-te
o coração e a cabeça do cervo das sete rosas na terra que te pertence.
— Canto em honra dos ferreiros — (Mongólia) Ó nove brancos ferreiros de algures, vós a quem se vergam a faúlha que voa, as ferramentas sonoras, a firme bigorna de aço, a lima que range range — vós, descidos ao mundo baixo, um molde de prata ao peito, na mão esquerda as tenazes! É a magia da forja, maravilha de foles poderosos — ó nove brancos ferreiros de algures montados em nove cavalos brancos. O lampejo da chama é soberano!
— Os ferreiros — (Marie L de Weich) Já não terão carne e sangue. O ferro nos olhos duros, nas mãos potentes o ferro. Crepita nos corações grandes, invade as suas entranhas. A força, o pensamento, a vida toda passam para o ferro árduo e frio que não é carne nem sangue.
— As coisas feitas em ferro — (D.H. Lawrence) As coisas feitas em aço e trabalhadas em ferro nascem mortas, como sudários, devoram a nossa vida. E um dia, quando já deitaram velhas raízes na nossa vida, aplacam-se, e apaziguam-nos; e é então que as atiramos fora.
— A identidade dos contrários — (Edouard Roditi) Sonho que sou louco, e na minha loucura Sou mais sensato que num sonho Ou acordado, com medo que me tenham por louco Meus companheiros de sonho. Meu bom senso é diária loucura, Para um mundo em vigília que atribui Mais vigília e atenção mais funda À razão do que a razão possui. Sonho é minha vida diária, cada dia Simula e dissimula até loucura E razão serem ambas semelhantes, E eu ajo enquanto sonho. No sonho, o bom senso e a loucura. Na loucura, o sonho e o dia a dia Ligados, entre si todos semelhantes: Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.
(Conde de Saint-Germain) Da natureza inteira atento escrutador, Eu vi do grande todo o princípio e o fim: O ouro potencial no fundo do torpor E a matéria e o fermento a levedar. Assim, Da alma de maternos flancos, o teor De sua casa, o uso, a forma, eu entendi; Juntos grão e bacelo prontos para a flor; Húmida terra, eu vi o pão e o vinho em ti. Que nada era, e Deus quis: vi que em algo o nada Se tornou, e inquiri onde estava apoiada A vida universal, a geral harmonia. Celebração e dor faziam um só nome, E o eterno me chamou a alma e a fome Da alma. E então morri. E nada mais sabia. 1986-87.
ÚLTIMA CIÊNCIA
Não sendo citações necessariamente fiéis extraídas de quadras populares, nelas contudo se inspiram, ou as tomam como seus modelos directos ou indirectos, as seguintes expressões utilizadas neste poema: «Abaixate, vara alta, (...) põe-te os dedos, deita um braço de fora, serve de estrela», «onde a laranja recebe soberania», «o canteiro (pedreiro) cheira à pedra», «a lua vira o peixe no frio», «o nome escrito na lenha, o tronco reverdeceu.» O verso «os trabalhos e os dias submarinos» contém um título de Hesíodo: «Os Trabalhos e os Dias».
1 Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte. O perfume a sangue à volta da camisa fria, a boca cheia de ar, a memória ecoando com as vozes de agora. Onde está sentada brilha de tantas moléculas vivas, tanto hidrogénio, tanta seda escorregadia dos ombros para baixo. Toca em de onde rompe a rosa. Uma criança luciferina. A mãe fechava, abria em torno a torrente dos átomos sobre a cara. Aquilo que a estrangula dos pulmões à garganta é a rosa infundida. Leva um braço às costas, suando, raiando pelo sono fora. Está queimada onde lhe toca. Falaria alto se o peso a enterrasse à altura das vozes. Via a matéria radiosa de que é feito o mundo. A língua doce de leite, a mão direita na massa agre, o sexo banhado no manancial secreto. O dom que transtorna a criança ardente é leve como a respiração, leve como a agonia. Uma rosa no fundo da cabeça. * Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho, o cordão astral à criança aldebarã, não cortem o sangue, o ouro. A raiz da floração coalhada com o laço no centro das madeiras negras. A criança do retrato revelada lenta às luzes de quando se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore. Não talhem a placenta por onde o fôlego do mundo lhe ascende à cabeça. A veia que a liga à morte. Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega braço a braço. Sufoca. Mas não desatem o abraço louco. Move a terra quando se move. Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide, não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras frisam, deixem-na rasgar-se: — Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva e a criança do sopro, suba tanta opulência. O trabalho confuso: que seja brilhante a púrpura. Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas pulmonares. Deixem que se espalhem as redes da respiração desde o caos materno ao sonho da criança exacerbada, única. * Criança à beira do ar. Caminha pelas cores prodigiosas, iluminações da água, esmeraldas exasperadas, as púrpuras. E entra na clareira. Passa, toda. Está coberta de pólen. A convulsão de uma jóia quando roda abruptamente acesa. A cicatriz no tórax é uma arborescência a sangue e ouro. Nela se embebedam os enxames das imagens estelares, vermelhas, extremas. Os favos no escuro enlouquecem a infância. Nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre o teorema perfeito e terrível. * Engoli água. Profundamente: — a água estancada no ar. Uma estrela materna. E estou aqui devorado pelo meu soluço, leve da minha cara. O copo feito de estrela. A água com tanta força no copo. Tenho as unhas negras. Agarro nesse copo, bebo por essa estrela. Sou inocente, vago, fremente, potente, tumefacto. A iluminação que a água parada faz em mim das mãos à boca. Entro nos sítios amplos. — O poder de reluzir em mim um alimento ignoto; a cara se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue, abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli água. A mãe e a criança demoníaca estavam sentadas na pedra vermelha. Engoli água profunda. * As crianças que há no mundo, vindas de lunações de objectos potentes, fechados, pulsando, suspensas pela alumiação que as toma braço a braço; que têm a despontar nas costas um astro de basalto do seu tamanho. Refulgem pela boca, ouvem as vozes. Devoraram um alimento ardente. Dormem. Só é preciso pensá-las, vê-las, pô-las à mesa com as mãos sobre a toalha, entre facas, louça, carne tóxica. Ou soprá-las para que divaguem numa força de ar. Transmutavam-se. Que transparência no sono, que ciência. Alguém as encontrou, não falam, queimam-nas o combustível astral, a nutrição violenta. A sua arte monstruosa é a atenção nos dedos: separar pelas fendas os planetas, torso mais torso, membros altos, o cérebro selado de todos os mortos. Mostram isto: que a arte que dá a vida mata. Ininterruptas. Assombrosas. Contempladas. * Correm com braços e cabelo, com a luz que espancam, com ar e ouro. Correm como se movessem água. Que inspiração e obra nos laboratórios do mundo. Todas metidas no vento. Tão leves que metem medo. E esplendem os ramais da água apoiada à noite, esplendem, invadem a casa. E as crianças pensam de sala para sala envoltas nela. Até que as embebeda o sono
encharcado nessa água poderosa. E então a água fica de olhos fechados, negra negra negra. Cada sítio tem um mapa de luas. Há uma criança radial vista pelas paisagens, crispada através dos diamantes. Em cada sítio há uma árvore de diamantes, uma constelação na fornalha. Abaixa-te, vara alta, que essa criança de cabeça habituada aos meteoros delira, põe-te os dedos, deita um braço de fora, serve de estrela. Por acto de sumptuosidade. Há uma palavra com uma rosa reluzente. Poros frios, nós de bronze: a madeira está cheia de respiração. A pedra arrancada ao mundo está cheia de respiração. E as luas secam pedra e madeira. É uma imagem da atenção de tudo. Quando alguém escreve, arde o papel por onde passa a imagem. E na criança assim escrita dentro de um saco radioso, a noite contempla-se a si própria. Trabalha-se nas partes doces e ocultas da morte, engrandecendo a mão voltaica que a escreve em nome — essa última ciência: unânime, fundamental, áurea.
2 Os animais vermelhos, ou de ouro peça a peça: as luas encaminham-nos às águas que os afogam até aos ombros. Vejo-os nas florestas das salas pelas portas abertas para outros espaços de água. Inspira-os um ritmo de iluminação ou floração, um deslumbramento. Nos abismos do estio. São assombrosos nos olhos como se movem os diamantes. Bárbaros símbolos da caça, a vida extraordinária, um arco-íris dobrado entre os braços. Essa loucura da infância a cambalear defronte de uma cor direita, ou de um frio acto de água tombando,
ou de uma jóia alerta contra os alvéolos da carne. O terror estelar de uma inocência que bebesse transparentemente por um copo alto. * Ninguém se aproxima de ninguém se não for num murmúrio, entre floras altas: camélias de ar espancado, as labaredas dos aloés erguidas de uma carne difícil. A beleza que devora a visão alimenta-se da desordem. O espaço brilha dela, sussurra quando passa por uma imagem tão leve que não suporta o peso brusco do sangue — as veias da garganta contra a boca. * Ficas toda perfumada de passar por baixo do vento que vem do lado reluzente das laranjeiras. E crepitam-me as pontas dos dedos ao supor-te no escuro. Queimavas-me junto às unhas. E a queimadura subia por antebraço e braço ao coração sacudido. Eu — perfumado e queimado por dentro: um laço feito de odor transposto, ar fosforescendo, uma árvore banhada nocturnamente. Tudo em mim trazido súbito para o meio. Quando este saco de sangue rodava defronte da abertura prodigiosa. * Transbordas toda em sangue e nome, por motivos de lua — os delírios da fêmea e da sibila. Fechada ao tacto, e por dentro devorada pelo clarão dos centros. As épocas extremas de glicínias em luz pendida, uma colina ao meio inebriado de maio, um quarto brilhando no interior da casa. E morres e ressuscitas e transmudas-te em matéria
radial de escrita. Enquanto corres profundamente e procuras onde és visível. Unida, preciosa — de porcelana, mogno, seda. Ao serviço de uma urgência na escola da palavra. Uma desarrumação nova nos elementos da púrpura. Quando os meus dedos te fazem num mistério de baptismo. Que abala a terra a toda a atmosfera inaugural, que abre e encharca e ilumina — como se fosse respiração e sangue e potência planetária: criaturas, objectos, as ordens nominais que os arrancam dos limbos. Quando se tornam translúcidos na fornalha. Quando com tanta luz se tornam ocultos. * Toquei num flanco súbito. A mão que dolorosamente extraíra rosas de mármore dos sítios difíceis. Essa mão agora nos trabalhos da alma: o flanco acordado, o abismo da palavra. Resplandecia. Levantava a pálpebra de jóia instantânea. Das brancas ramas desentranha a corola compacta, intrínseca, propagada na árvore. Flanco e mão. E o nome que os ilumina arboreamente. Onde se escreve mãe e filho diante, a sombria habilidade de bombear o sangue de um vaso para outro vaso. Dulcíssimo leite, plasma agre, a jóia galvanizada mão a mão. «Quando eu morrer.» Porém. Na linha escrita subira um planeta exorbitante. Se eu agora morrer, quem te chamará à roupa que humanamente levantavas entre asteróides, ó carne habitante de um nome? Porém ficaste, sucessiva meteorologia, pressão tão alta têmpora a têmpora: às vezes enlouqueço da palavra que a tudo deste. Há dias poderosos de uma presença total. Toco-te a mão que assombra a minha
mão. — E a cara, tão lírica, aterradora, frente a frente, cercada pela tensão lunar. Vejo-a crispar-se com a minha imagem inserida. E escrevo: «Quando eu morrer.» — erguendo esse espelho em tamanho de espuma. Como se fosse a beleza, a transfusão amarga, o sopro boca a boca. Depois de atravessar altas pedras preciosas, saía a arder. Aparecia em chaga de corpo inteiro. Era agora uma estrela carbonizada, uma aterradora estrela de grandeza principal, quando se olhava da terra.
3 Há uma árvore de gotas em todos os paraísos. Com o rosto molhado, eu posso ficar com o rosto molhado, com os olhos grandes. Neste lugar absoluto pelo sopro, fervem as víboras de ouro aos nós sobre as pedras enterradas. Leopardos lambem-me as mãos giratórias. E eu abro a pedra para ver a água estremecendo. A água embebeda-me. Como nos corredores de uma casa brilha o ar, brilha como entre os dedos. — A minha vida é incalculável. * O dia, esse bojo de linfa, uma vertigem de hélio — arcaicamente como pretexto para luzirem cortejos: animais, bárbaros crânios de ouro; um branco suspiro extenua as gargantas dos áruns; pálpebras no granito despedem-se do mundo. Quando começam os sítios íngremes. Porque a treva aproveita a madurez para onde se debruça a paisagem. E fique a púrpura nos dedos, só por deslizarem. O objecto ao meio é o vaso
em que trabalham. A noite coloca um degrau, até que do invisível — reservatórios de linfa e gás entenebreçam. Os longos mesteres da argila: órgão macio e baixo. O espasmo que o faz rodar, a beleza que o transforma num crânio astral; — Vaso dolorosamente fechado sobre a fulguração da massa de átomos. Embriaga-se à volta do buraco exasperado. O papel redemoinhando às lunações das unhas. Brilha, escurece. Depois é cor de sangue: o sorvo, e o sôfrego movimento externo. * Leões de pedra à porta de jardins alerta — blocos zoológicos, laterais, devorados por líquenes. Vem-lhes — de gotas, botânicas vidradas, insectos, o vento que os embriaga, as coisas plurais da terra — esse fluxo e refluxo de potência cega. Se lhes toco nos flancos, ou nas jubas, ou entre as patas dianteiras, sinto dos dedos ao coração a tenebrosa pancada do sangue. — Guardo no meu segredo aquele segredo central, inseparável. * Uma golfada de ar que me acorda numa imagem larga. Os braços apertam os pulmões da estrela. E o golpe freme a toda a altura negra. Tremo na linha sísmica que atravessa o sono. De ferro em brasa na cabeça. medo e delírio, o sombrio trabalho da beleza com as unhas fincadas na matéria atenta à olaria. E súbito, apenas pelo uso elementar das coisas, esse júbilo terrível. *
Laranjas instantâneas, defronte — e as íris ficam amarelas. A visão da terra é uma obra cega. Mas as laranjas atrás das costas, as mais pesadas, as mais lentamente maduras, as laranjas que mais tempo demoram a unir o dia à noite, que têm uma força maior em cima das mesas, essas. Operatórias. São laranjas ininterruptas trabalhando em imagens as regiões ofuscantes da cabeça. Enriquecem o ofício sentado com um incêndio quarto a quarto da alma. Enriquecem, devastam. — Constelação ao vento avassalando a casa. * Insectos nucleares, cor de púrpura, mortais, saídos reluzindo de sob uma pedra onde de que alucinação. Entrando no sono. Devoram uma zona rude e incandescente não sei se da cabeça. Uma razão da melancolia, louca de sangue. Devoram misteriosamente artérias, neurónios, células deste aparelho de terror e pensamento onde se apoia a estrela talhada. E ficam sulfurosos da substância do sonho. Leves quando arrancam uma rosa de entre as meninges. Mas as moléculas das imagens fazem-nos ferozes, radioactivos. Minam-me o pesadelo, saem ruivos, ébrios de um ouro insalubre. E o mundo inteiro cede ao peso que trazem à membrana entre as coisas simples e o pavor das coisas que crepitam. * Estátuas irrompendo da terra, que tumulto absorvem? Os cabelos resplandecem. Os símbolos que celebram dão à pedra uma tensão, um desenvolvimento, uma aura. Em cada uma delas eu abraço uma estrela. Abraço-a ponta a ponta das mãos numa só massa transpirada. Arrebata-me, calcina-me. O chão é a potência astronómica. No escuro do ar rebentam floras. A carne única
vibra como uma vara de baixo para cima. * Bate na madeira vermelha, bate numa pedra com o buraco aberto à exaltação da lua, bate onde espumejam as ribeiras que atravessam as embocaduras siderais. E a madeira levanta-se, chameja a pedra astrológica, cerra-se a água nos cântaros de lava. A altas atmosferas bate nas estâncias negras. E eu durmo com o sangue luzindo na boca. O ritmo lunar muda-me os sonhos. O rosto queima-se. * Laranja, peso, potência. Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância. A matéria pensa. As madeiras incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar, tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja recebe soberania. E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça. A ferida que a gente é: de mundo e invenção. Laranja assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa inocência da terra. * Os cometas dão a volta e batem as caudas. Têm luz própria, estes peixes orbitais e crisântemos. Nos viveiros das bolhas, ébrios de oxigénio. As águas atravessam as trevas. Atravessam-nas os animais de coração translúcido entre os ombros. Quando um abraço engrandece tudo, cabem na barragem espádua a espádua. As palavras com bolhas dos pulmões à boca. E no bravio espaço de nome a nome — desabrochadamente: guelras, e os cometas florais derramados. Quando a loucura abala as residências vivas
entre a água e a instantânea atmosfera dos besouros, altos, todos, furiosos como jóias. Quando a loucura me abala com ar e água. * Pavões, glicínias, abelhas — e no leque gradual da luz, enxames de bagas preciosas. As águas encharcam a roupa até ao sono. E a música ultramarina através dos meses em búzio. É a experiência da morte nas imagens. O comércio da terra: espuma que se desfolha nas superfícies repentinas, bebedeira de floras, o som que a agonia transmuda em pensamento. Basta às vezes tocar na cara às escuras, na idade às escuras, entre espumas inundando os dias sala a sala — basta para tantas ciências de uma vida louca. Como se ardeu até ficar de ouro! E o coração do ouro era uma pálpebra soldada sobre elementos líricos, vivos, terríficos. A pupila via tudo de dentro para fora. Essa luz feroz na alma húmida. Tornava tão inocente o mundo: as formas que o mundo queimara. O que era largo. Abrasado. O que a morte já tocava às escuras, na cara. * Girassóis percorrem o dia fotosférico, demorado. Mergulham devagar o peso até ao coração unido. Pétalas e pálpebras, soletrou-as conjugalmente o ouro. Acolhe-os a côncava casa do sono. Rodaram como bilhas ou amonites ou ancas pálidas — ao sopro e número do fogo. Passou a onda abaladora. E fecham agora os olhos sobre a deslumbrante chaga das núpcias. Alto e baixo, pai e filha, ouro e imagem, transmutaram-se numa só massa exaltada.
— A carne redonda que se fecha na sua casa madura. * De todos os sítios do parque uma vibração ataca a estátua que sobe o dia inclinado, que entra no escuro com os olhos brancos. O ar ilumina-lhe a boca. Com dedos de ouro brusco a noite fecha-lhe os músculos. Mas abrem-nos um fluxo de seiva, uma temperatura de química radiosa. Porque é no centro dessa massa territorial que o sangue estremece e desabrocha entre pedra e aura. — A lenta estátua carregando a sua estrela até se atrasar noutras pupilas deslumbradas. * Sou um lugar carregado de cactos junto à água, lua, os animais com um clarão na boca, sou uma ciência a sangue. O sítio ainda agora no cérebro: jarro de vidro cheio de leite, o sal. Estes elementos arcaicos — e as mulheres sombrias cantando. Sou um lugar que transborda. Espancaram a luz atrás das costas: de onde eu vinha, criança branca do mundo. Defronte os fogos lavravam-me a testa. Podia dançar sobre as áscuas. Podia ser tão silvestre entre as folhagens do ouro, ter cornos, negra máscara aterradora, silvar como uma cobra. Eu entrava na morte, era o filho da estrela bárbara — erguia-a do meio dos diamantes. De equinócio a solstício abraçava-me uma onda quando subia, quando se despenhava eu dormia dentro como um olho de água. Depois o rosto obscuro. Depois a seda fiada atrás do rosto. Não espero nada. Espero o dom apenas de uma imagem. *
Dias esquecidos um a um, inventa-os a memória. Profundamente se levanta uma bilha vazia. Nem o peso nem a leveza nos embriaga. O perfume a vinho, sim, uma concavidade do sono. Os dias maciços que se modelaram. Ou as luzes à volta do barro onde ficam os ciclos curvamente ligeiros. As bilhas ao alto, entre os ombros, contra a cara amarga, estremecendo com o sangue dos braços e da cara. Plenas como dias enormes, acabados. Que são agora imagens fabulosas, mútuas translações — o escuro em torno dos espelhos vazando de uns para os outros a sua vida clara.
4 Mulheres geniais pelo excesso da seda, mães do ouro vagaroso. Sopram a lua pela boca dos púcaros. À força de labareda, as porcelanas apuram-se, altas, nos dedos. E elas medem girassóis pupila a pupila, paisagens, rasgões da água. Entre os braços arrebatam-se cereais, fogo. A escrita suprema de imaginar por música as coisas: louças, comidas, roupas. Num inebriamento de beleza composta em número. Deitam leite nos cântaros. E inclinam a cara, vêem no precipício a altura voltada daquela arte da vertigem de que são o centro. Se mungem o gado, esplendem de pêlo e segredo, abaladas pelo bafo do fundo; uma vaca é um jarro sumptuoso com o rosto delas, oculto e húmido, o rosto movido a luz. Uma camélia soprada. E as mãos pensando sempre. Quem se banha nessas ribeiras fêmeas escoando-se nas imagens fica infuso, os membros em raio de estrela. Está molhado pelo coração dentro.
Quando pelas suas ciências elas param na memória. Quando se abre uma ferida. Quando a ferida sangra. * Não toques nos objectos imediatos. A harmonia queima. Por mais leve que seja um bule ou uma chávena, são loucos todos os objectos. Uma jarra com um crisântemo transparente tem um tremor oculto. É terrível no escuro. Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer. A boca fica em chaga. * Águas espasmódicas, luas repetidas nas águas. Ninguém sabe se as luas vistas pulsam da pulsação das águas, ou se as águas pulsam pela força das luas exaltadas. E o mundo, o espelho que as luas acordam e de onde transbordam as águas, sou eu que o contemplo, é ele que me contempla, ou trocamo-nos? Vivemos pelo poder das imagens. Pelo sangue e a inocência e o ríspido esplendor e a crispação fundida e a matéria cardíaca e mútua. — De nome em nome passam por mim os sopros. * Paisagem caiada, sangue até ao ramo das vértebras: habitações concêntricas de insónias, luzes, vozes, trevas, bebedeiras — interiores, nupciais, atmosféricas. Se Deus me toca no fundo da palavra. Que ofício debruçado: polir a jóia extenuante, multiplicar o mundo face mais face. Fazer da imagem uma consciência vária. O fogo dessa pedra cada vez mais alerta, preciosa, convulsa, funda, abrasadora.
Trabalhas nela até às unhas. Trabalhas na atenção aterrada, com que louvor de obra, irrealmente. As estações da noite, os sistemas nervosos das avencas do alto, as plumagens. E os dias compactos como o leite guardado nos jarros, ou largos das sedas estendidas. Passam unidos todos uns aos outros nos cotovelos. E lapidas, lapidas. Arrancas-lhe a força eléctrica. Que a ti mesmo. nas mãos e na cabeça, no escuro, no levantamento do ar no sono, te faz desentranhadamente límpido. O relâmpago do âmago. Queima-te a vista. E na cegueira fica apenas, atroz, o coração da jóia. A solidão de uma palavra. Uma colina quando a espuma salta contra o mês de maio escrito. A mão que o escreve agora. Até cada coisa mergulhar no seu baptismo. Até que essa palavra se transmude em nome e pouse, pelo sopro, no centro de como corres cheio de luz selvagem, como se levasses uma faixa de água entre o coração e o umbigo. * Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua arranca um vento às escuras. As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada. Fazemos álgebra, música, astronomia, um mapa intuitivo do mundo. O sobressalto, a agonia, às vezes um monstruoso júbilo, desencadeiam abruptamente o ritmo. — Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo que todo o sangue do corpo vem à boca numa palavra. E o vento dessa palavra é uma expansão da terra. *
Quem bebe água exposta à lua sazona depressa: olha as coisas completas. O barro enlaça a água que suspira lunarmente, que impregna o barro com a sua palpitação aluada. São uma coisa única e plena: uma bilha. Quem bebe e olha fica misterioso, maduro. Tudo se ilumina da altura de uma pessoa imóvel. Quem se dessedenta delira, vê a obra: O que se bebe das bilhas que a lua enaltece — água e nome na boca. * A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se em si mesma. A morte serve-a. Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto. Quando agarro a cara, a rotação do mundo faz rodar a olaria astronómica: uma cara chamejante, múltipla, luxuosa. Deus olha-a. E a arte alta do sono fica pesada: — Mel, o mel em brasa, a substância potente, elementar, ardente, obscura, doce de uma doçura fortíssima, o mel, arrebatada. Uma arte inextricável que, pela doçura, enche as bolsas cruas da carne, embriaga, queima tudo, mata, mata. * O dia abre a cauda de água, o copo vibra com tanta força, as unhas fulguram sobre a toalha. Cada palavra pensa cada coisa. Entre imagens de ouro e vento, a constelação arterial dos objectos do mundo alarga os braços furiosamente de abismo a abismo. A mão convulsa manobra a vida máxima. E então sou devorado pelos nomes selvagens.
* O canteiro cheira à pedra. Da rosa cavada nela cheirará, por dedos e pensamento, à obra? Abre uma coroa. A pedra fecha-se na sua teia de água. Com tantos martelos secos, com tanta idade louca, com tanta pedra inteligente, com tanta mão aluada — o canteiro desentranha outra mão: — A mão do nervo da pedra, rosa assustadora: Que desentranha a prumo forte, em ebriedade e inclinação de lua. Enxofre, sal, rosa potente. — O canteiro é a sua rosa, a sua obra desabrochada. * Abre a fonte no mármore, sob a força dos dedos o vento da luz sacode a árvore. As veias da pedra, o cinzel faz isto, são as veias dos cavalos — e por trás das cabeças estelares respiram rosas. Crianças, que sinistro enlevo, como percorrem o círculo puro da guerra, entre escudos e lanças. E algures, ao meio da primavera lavrada, dança a rapariga, desdobra-se — um sopro move-lhe a cara imovelmente branca. Mas a noite devagar, de fora, natural, a noite de longe, devora joelhos e ferraduras, a espuma que a mão arranca de dentro — a pálpebra grande do mundo que se vê defronte da sua obra. Devora, a noite furiosamente externa entrando, não só a água suave e a máquina da guerra e a soberba ondulação do fogo nas formas, mas a doce e dolorosa mão que ergueu a fábula.
*
O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas. A noite cerra-lhes os corações que sorviam o caos pelas aortas de argila. Flancos contra flancos. O tempo só existe por estes corpos selados. E o azeite repousa. O vinho ensombra-se. O mel amadurece com a voltagem de uma jóia onde mergulha a lua. Se alguém se fecha com a noite por cima. Estou cheio desta noite, deste sono, desta riqueza côncava, arrefecida. Ordena a luz o que o escuro tranca, o sonho atado ao sono numa imagem concêntrica radiando dentro. A imagem diurna ordena em filas que respiram as palavras profundas, as crateras, os cântaros — profundamente. As palavras encostadas ao papel. E o barro suspira. O peso dessa vida insondável: vinho, azeite, mel — o caos que se transforma em número. A imagem multiplica a consciência. A jóia sazonada contra a morte. Uma a uma, as coisas do mundo, as noites desarrumadas, as mãos que as arrumam entre chama e sono, as bilhas uma a uma do tesouro, uma a uma as palavras contra o papel profundo que suspira — bilhas profundas na casa mais profunda ainda. * O mármore maduro desabrocha, move-o pelo meio a estrela de água. E a cobra enrola-se ao torso, mergulha na bolsa tenra. O sopro da víbora incha a pedra de ombro a ombro. E a pedra formada, a víbora fria, a estrela que funciona, transmudam-se umas nas outras. — Todas as canções são canções múltiplas e únicas
de demência. * O espaço do leopardo, enche-o com a magnificência. Com a insónia alumiada enche o espaço da pérola. E há o espaço da boca para encher com a diástole salgada da onda. O teu feroz ofício de bater as pálpebras, a arte plenilúnia das palavras que o pneuma arqueia com tanta força. Há espaços de animais psíquicos, de pedrarias que a luz exemplifica. Quando os dedos se movem nas páginas, quando a cara avança respirando: a palavra cheia do seu espaço ao vento. * Entre varais de sal, no fundo, onde se fica cego. O coração é uma bolha, a boca é uma bolha de oxigénio rude. E brilha o corpo inteiro na espuma esbracejada de um espelho. Nadador louco, vertical, sôfrego, só abre os olhos no abismo. Só quando fica cego, entre varais de sal, no fundo. Quando é uma bolha, ele todo, luzindo dos pulmões à cabeça bêbeda. Ou entre as natações que mão a mão tecem no bloco frígido as corolas velocíssimas. É uma arte da síncope, arborescente, uma tão íngreme arte de cegar frente às pálpebras das ostras. E os olhos defrontam as pupilas hipnóticas, difíceis. Essa arte de lunação das pérolas. Uma arte de olhar revolta, abrupta, mergulhadamente. De cegar quem as olha. * A lua leveda o menstruo, vira o peixe no frio, ilumina o objecto brusco. É um trabalho recôndito do nome, que o nome escrito na lenha,
o tronco reverdeceu. E da madeira a mão levanta abismadamente a corola. A profissão de marceneiro, inspira-a a embriaguez. Deus vê a talha cândida da sua obra. Matriz, umbigo, meio da tábua, a estrela principal, transfundem-se em palavra. O marceneiro arranca das entranhas a sua rosa. A pulso e bebedeira. Arranca o olho que a olhava espelhada. Enquanto se ligam lua e sol debaixo da plaina. * É amargo o coração do poema. A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela, em baixo a outra mão mexe num charco branco. Feridas que abrem, reabrem, cose-as a noite, recose-as com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára de mão a mão salgada, entre os olhos, nos alvéolos da boca. O sangue que se move nas vozes magnificando o escuro atrás das coisas, os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos que escreves entre os meteoros. Cose-te: brilhas nas cicatrizes. Só essa mão que mexes ao alto e a outra mão que brancamente trabalha nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício de elegância bárbara. Até que sentado ao meio negro da obra morras de luz compacta. Numa radiação de hélio rebentes pela sombria violência dos núcleos loucos da alma. * Mergulhador na radiografia de brancura escarpada. Arboreamente explosiva. Busca na constelação salina a flor que traga na boca de bailarino. Uma bolha árdua, estelar, à tona do corpo e da onda.
A morte confundida fora e dentro. Quando não há palavra que se diga e apenas uma imagem mostre em cima os trabalhos e os dias submarinos. * Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas. Rosas ascendem do coração trançado das madeiras. As caudas dos pavões como uma obra astronómica. E o quarto alagado pelos espelhos dentro. Ou um espaço cereal que se exalta. Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias. E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento contra o terror que o arrebata. Os olhos contra as artes do fogo. Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens. * Se olhas a serpente nos olhos, sentes como a inocência é insondável e o terror é um arrepio lírico. Sabes tudo. A constelação de corolas está madura contra o granito alto nas voragens. Rosaceamente. A tua vida entra em si mesma até ao centro. Podes fechar os olhos, podes ouvir o que disseste atrás das vozes do poema. * Dálias cerebrais de repente. Artesianas, irrigadas pela infiltração alimentar do sono. Álcoois, minérios, drogas. Curvam a luz onde se apoiam. Autónomas polpas de jóias quando a treva as cerca. Irrompem do fundo das páginas, continuam se as penso em alumiação no espaço que as exalta. Malévola beleza acentuando uma época fosfórica. Os dedos que as recebem dos dedos queimados queimam-se. Porque tudo se calcina: sono e imagem, dálias verdadeiras, as palavras,
as pessoas. Essa dádiva infernal fechada na metáfora. * Ninguém tem mais peso que o seu canto. A lua agarra-o pela raiz, arranca-o. Deixa um grito que embriaga, deixa sangue na boca. Que seja a demonia: — a arte mais forte de morrer pela música, pela memória.
5 Gárgula. Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa que a mantém suspensa. E a boca demoníaca do prodígio despeja-se no caos. Esse animal erguido ao trono de uma estrela, que se debruça para onde escureço. Pelos flancos construo a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas para o fundo, com força atenta. Construo aquela massa de tetas e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras, umbigo, mandíbulas. Até ao centro da sua árdua talha de estrela. Seu buraco de água na minha boca. E construindo falo. Sou lírico, medonho. Consagro-a no banho baptismal de um poema. Inauguro. Fora e dentro inauguro o nome de que morro. * As varas frias que batem nos meus lugares levantam os dias de espuma, as varas cor de malva nos lugares altos levantam o enxofre na treva. Ei-la, a criança louca — uma rotação turquesa, nos buracos estrelas centrífugas
com membros. Sei agora onde me alcança o vergão de sal; no mamilo rosa esquerda, em cima das válvulas negras. Arranca-se o nervo ao espelho, arranca-se a veia à palavra: não fica o rosto, a criança não fica no abismo sonoro. Louca sob essas varas de gelo, lufadas redondas onde ela se volta, a cabeça radiosamente com membros. Os salões do mundo são atravessados por cometas drapejantes. E explode a espuma no filme sideral. O talento tumultuoso de uma camélia debaixo das varas. E ao meio, eu — inocente, inocente. Largo na testa para a loucura e o baptismo. Arte de redacção: ver isto, ver a morte — dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro. A veia selvagem trespassando a acerba massa dos vocábulos. E nos lugares visuais do paraíso, assinar: o demoníaco — com todas as letras doces. * Os tubos de que é feito o corpo, os tubos violentos, os turvos tubos de chumbo, enche-os o ouro lírico, sensível, alquímico: o luxo o luxo — e só então o corpo é monstruoso. * Pratiquei a minha arte de roseira: a fria inclinação das rosas contra os dedos iluminava em baixo as palavras. Abri-as até dentro onde era negro o coração nas cápsulas. Das rosas fundas, da fundura nas palavras. Transfigurei-as. Na oficina fechada talhei a chaga meridiana do que ficou aberto. Escrevi a imagem que era a cicatriz de outra imagem. A mão experimental transtornava-se ao serviço escrito das vozes. O sangue rodeava o segredo. E na sessão das rosas
dedo a dedo, isto: a fresta da carne. a morte pela boca. — Uma frase, uma ferida, uma vida selada. 1985, revisto em 1987.
OS SELOS
Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos? Nem música nem cantaria. Foi-se ver no livro: de um certo ponto de vista de: terror sentido beleza acontecera sempre o mesmo — quebram-se os seios aparecem os prodígios a puta escarlate ao meio dos cornos da besta máquinas fatais, abismos, multiplicação de luas — o inferno! alguém disse: afastem de mim a inocência eu falo o idioma demoníaco. Há imagens que se percebem: a do leão às escuras bebendo água gelada, a imagem de uma pessoa com a mão gloriosa nas chamas não pára de gritar mas não tira a mão do fogo compreende-se? como se compreende! é uma espécie de força absoluta. Há quem pinte cavaleiros luminosos montados em cavalos azuis. Vão para a guerra, vão matar, roubar, violar. Deus olha. Sangue. Quais os problemas? Vermelho e azul, distribuição de formas, a beleza e os seus segredos — o número, a razão do número que tudo seja perfeito em coral e cobalto. O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante. O homem não é uma criatura entre mal e bem: falava-se com Deus porque Deus era potência. Deus era unidade rítmica. A mão sobre as coisas com vida sua, com essa mão reunir as coisas, refazer as coisas — cada coisa tem a sua aura, cada animal tem a sua aura, como se pastoreiam as auras! em transe: eu sou a coisa. Acabou. Sento-me a conversar com Deus: palavra, música, martelo uma equação: conversa de ida e volta. Depois há gente que fala entre si, depois é o medo, depois é o delírio. Escuta a breve canção dentro de ti. Que diz ela? Não move as coisas com as suas auras, nem tu nem a tua canção pertencem ao mundo cheio, alma que sopra. Nada se liga entre si, Deus não se debruça na canção; destroça a cadência — o demoníaco. Já se não vê um degrau arrancar de outro degrau pelas lentas escadarias de mármore ao fundo. A canção abandonou o seu espaço contínuo. Que se pode fazer? — Apenas um encontro de objectos; um degrau, outro e outro degraus onde ninguém assenta o pé e depois o outro pé — por onde se não sobe para assistir ao braço que torcendo laçasse o corpo todo num umbigo incandescente, por onde ninguém sobe para sentar-se ao órgão e discutir em música as proporções? Aquele que disse:
eu tenho a temperatura de Deus — era um louco meteorológico. Mas se afinal se entende que numa resposta se oculta uma pergunta do mundo, mas se afinal a substância de alguém que pôs a mão no fogo é igual à substância do fogo enquanto grita. A substância de um homem e de uma estrela; a mesma. O poder de criar a canção, isso. Bato na rosácea com o martelo o rosto onde bate a rosácea roda voltado para cima —
Astralidade, zonas saturadas, a noite suspende um ramo. E a luva de ouro a antebraço inteiro — haste, os dedos em cima demoradamente abertos. Ele pinta as chamas atadas umas às outras no retrato. «A criança falou da personagem laranja fogo através do campo.» «Mete medo.» «Como se desentranha do caos?» Enquanto em redor da testa um anel barométrico. «Desfaço.» «É a mim que desfazem se desatam as chamas.» «E a história de Deus?» «Deus está em tudo? perguntou a criança, Deus é o cubo de açúcar que se dissolve todo no leite todo, bebe-se.» O ramo de ouro, a luva laranja fogo a remexer no escuro é a noite que se transfigura, a noite concentrada, grande atmosfera infusa aureamente respirando? Que me faça, alento, no retrato em tela com ramo e halo. Da força em amarelo: a minha guerra nas florestas esbraseadas, sombra a sombra, até luzir. Rosto que Deus, à volta dissolvido, deixe arrancar-se em luva que desabrocha do caos unânime. «E a criança?» «Era um planeta girando com a noite universal no meio —»
Ela disse: porque os vestidos transbordam de vento. A pintura nos vestidos dá a volta anatómica das cores, respiram. Que a estrela corra cheia de espuma com toda a força para trás demorando o movimento da graça, omoplatas, e depois desarruma-se tudo para dentro dos olhos. Então a gente sopra, ela disse que a exultação mantém em suspenso o poder das lágrimas que tudo aquilo, panos e clima floral em escarpados verdes e rosas. Elas não lutam contra o perigo não lutam contra o medo, parecem avançar para nós com os vestidos plenos. Cheio verde, alma, ebriedade, uma braçada, aqui, oh primaveras ampliadas: os elementos puros trabalham na fábula do mundo. Rosa bate sombrio no vento, as pás do vento batem de olho a olho, as cabeleiras depressa. Ela disse: a vista fica rodeada pelo ar, aproximam-se tanto com o ar amontoado entre os cometas; e os vestidos lufada hemisférica entre uma linha azul e uma linha luminosa. Amor, se a porta se abrisse no bosque e entrasse o leopardo entoando o poema da criação, se a cantaria de ouro se fendesse no escuro. Os dedos mexem na aura em cada sítio de cada laranja — fica inteiro de amarelo súbito o manto. Chamem-me como se chama a floresta para junto do fogo. Vê-los entre mim e ela, esses vestidos pulmonares vê-los de alento em alento, vê-la prodigiosamente deslocar-se tocada pelo bafo dos vestidos. E o rosa grande, abruptos verde e pólen, fundidos quando roda na estação bravia — depois ela anoitece. Uma corola ofegante sobe-lhe à boca porque em breve há-de ser o tremor e a treva, por exemplo se essa corola amadurece da sua mão para a minha. Morre-se de ver a pintura, respira-se cara a cara, à porta o leopardo entoa o poema da criação. Um anel, floras e pessoas, somos nós, um anel, uma obra. Mão na mão por aí começamos a fundir-nos bloco vagaroso desde a raiz bloco de ouro. Amor, se a porta na muralha de esmeralda —
A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou uma pele de onça deixem-me com as minhas armas deixem-me entoar as onomatopeias, a minha canção de glória. À noite o cabelo frio de dia caminho por entre a fábula das corolas sim, eu sei, queimam-se de olho a olho selvagem mas não se movem mais altas que eu, mais soberanas, amarelas. Escuto a travessia cantora dos rios no mundo depois aparece a longa frase cheia de água. Guio-me pelas luas no ar desfraldado e grito de água para água levanto as armas gritando enquanto danço o algodão cresce fica maduro o tabaco. Ninguém fez uma guerra maior. Corno chumbado em sangue e osso, crânio com luz própria pousando na sua luz, na pele as pálpebras abrindo e fechando quem se exaltava vestido com elas? Meti na boca um punhado de diamantes — e respirei com toda a força. E tremi ao ver como eu era inocente, assim com dedos e língua calcinados; e levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopeias; era a guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas? A ouro rude. Boca na boca enchê-la de diamantes. Que fique a brilhar nos sítios violentos. Doce, que seja doce, acre mexida na sua curva de argila sombria andando coberta de olhos, onça pintada no meio de flores que expiram. Quem ergue o hemisfério a mãos ambas acima da testa? quem morre porque a testa é negra? quem entra pela porta com a testa saindo da fornalha? o animal cerrado que se toca a medo: o braço estremece, o coração estremece até à raiz do braço entre carmesim e carmesim bárbaro, estremecem a memória e a sua palavra. Tocar na coluna vertebral o continente todo toda a pessoa — transformam-se numa imagem trabalhada a poder de estrela. Quando se agarra numa ponta e a imagem devora quem a agarra. No chão o buraco da estrela —
Entre temperatura e visão a frase africana com as colunas de ar sorvedouros pedaços magnéticos de um lado para outro e alguém que dança quase apenas um rosto martelado, mãos negras. Eu disse: levo a máscara, levo-a deste mundo. Quem sabe se o mundo estremece pela força da máscara pequena. Começa na ponta dos dedos com muito jeito assim para estudar: será que tem fulcros insuportáveis de potência algo que de repente carbonize os dedos? Se eu pegasse na cabeça, se eu me encostasse à sombra dos galhos de marfim enquanto grito. Ouviria os leões a abrir as portas, sentiria o bafo leonino, a misteriosa vida leonina, de frente, batendo, leonina contra mim? E o chifre pelo coração dentro. Através desse marfim rasgando ficar maciço e maduro do marfim fieira a fieira pelo coração e depois o grito. Mãos arrumadas sustendo nos buracos a ferver na volta dos braços a ferver: o sangue e então: como se transborda na frase! Rodam as atmosferas, caem sobre o cabelo coruscante. Como se transborda de coisa a coisa escrita africanamente! paus negros enflorados a rosa, leões pelos corredores, vê-se a juba ao dobrar a esquina do espelho, a rapariga dança, potes monstruosos de barro ocre. E então a luz revoluteada se alguém arranca uma banana do peso cor do ouro; súbito: a ruptura da frase, membros por toda a parte. Esta é a carne despedaçada, aqui. Isto são as colunas de ar. Levo a máscara, disse eu. Quando pus os dedos na frase, a frase sangrava. Tinha aquele lanho, alguém cosera tudo com agrafes de marfim — palavras a marfim e sangue. Disse: levo-a comigo. O continente arqueja pela espinha de ouro. Talvez eu volte, quem sabe? talvez eu ressuscite a frase ocre africana, quem sabe quantos nomes faltam, volte coroado, mãos negras com as iluminações girando, eu: devagar a debruçar-me sobre a furiosa rede dos diamantes —
São estes — leopardo e leão: carne turva e atravessadamente rítmica a sonhar nas noites de água aos buracos. Montanhas das áfricas, montanhas das árvores que sangram. Há tanto ar rodeando as árvores nas montanhas: na sua animalidade dourada, leões e leopardos compactos aligeiram-se com o ar onde crescem as montanhas. Carne violenta, e amargo o sangue que lhes alimenta a elegância — e então eles aproximam-se, leves em seus arcos eléctricos, ao canto e ao movimento dos dedos no giro de uma rosa. Leopardos vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém soprou na boca. Como descem o ar e a água das montanhas, como se embrenham pelas árvores sangrando no escuro — e saem ao reluzir dos dedos e aos cantos roucos, nas áfricas. Penso que os não posso aflorar — a descarga queimaria tudo: mão, e a veia até à garganta e à mágica das palavras unidas. Mas se viessem decifrar as chagas das palmas viradas para a lua. E as coisas mentais da sua loucura negra se abalassem à corola doada nos dedos. Se na volta das cabeças abertas entre os nervos de um brilhante distinguissem a largura da minha noite, e me enchessem do seu bafo, e dançassem. O caos encontrava o equilíbrio dos algarismos. Talvez cantassem, leão e leopardo comigo: garras e unhas lunadas, gargantas, as mesmas pupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furor dourado na escuridão. Que sono é esse de onde saio quando os faço morosamente sair do sono? Fluxo que descerra o fluxo, rosto que embranquece contra outros rostos lado a lado, com força, com segredo. Como se a meia voz se enaltecesse a floresta. As temperaturas difundem-se pelos feixes das pedrarias secretas. Porque é o mundo: vibra tendão a tendão na pedra que se apanha, acordada na sua seiva, pedra de toque ao toque zoológico em tudo: ouro e mármore, o peso da água sobre a música. Que voz me dão as vozes? Que doçura ou inocência ou arte
oculta manobra a minha vida por entre aquilo que se transforma? E a traqueia, quem a modula? A noite estremece nos centros de água. E o cristal das cabeças talhado a fio límpido rasga a membrana: começa a ferver a luz como uma coroação, a realeza do poema animal — leopardo e leão. Oh, cantam em música humana, eles, no trono das montanhas das áfricas redivivas —
Os lugares uns nos outros — e se alguém está lá dentro com grandes nós de carne: por cima a cara. Ele disse: esperava que ficasse iluminada. Queria pintar os anjos. Levara algumas palavras altas, música. Ninguém pinta os anjos mas uma força, as formas dessa força por exemplo: sopram os átomos, acende-se o cabelo, mãos faíscam: cada coisa que tocam essa coisa faísca. Eu precisava de silêncio, disse ele. A maneira visitada de assim dormir com a noite, territórios fechados da cabeça, os braços. Escuta a música: riqueza, dor da memória, jubilação. As palavras verde na sombra, entusiasmo do branco, ouro dimanado — música música. Pinta-se às vezes, sim, às vezes levita-se, outras alguém sussurra ao ouvido. De repente fica-se ofuscante. Por mais janelas que se ponham nesses lugares opacos que nos deram ninguém sabe. Basta um nome aprendido a dormir, o movimento dos dedos em redor do copo. Enche-se por si mesmo, um copo: visão e mistério e idioma imaculado. Foi para desentranhar da coisa mental que é a pintura: os anjos. Que anjos? Colinas chegam junto à cabeça, a cabeça fica, isto é: girando do ombro esquerdo para o ombro direito, a lua silvestre. Um anjo? A morte tem uma doce habilidade doméstica: abre e fecha as torneiras prepara a roupa limpa os espelhos. Anjo. Há dias tão difíceis que preciso do arco-íris, diz ele, trato dos cortiços, as abelhas bruxuleiam no sono, fazem mel, o mel alucina-me, escurece-me. À noite enche-me um gás rutilante, vou para os espelhos astrais, os espelhos atravessam as minhas câmaras, ardo nas câmaras. Brilhando, morro. Poderia pintar os anjos brilhando. Se ao dedo tirasse o anel, se ao cabelo cortasse a madeixa viva, se vertesse no papel uma gota do meu sangue. Trabalho no forno até ficar calcinado louco soberano como um negro com boca de ouro, rodeado por uma tribo de anjos com boca de ouro. Às vezes basta uma palavra: Deus. E ouço a música, pinto o inferno. É uma espécie de inocência ardente, um modo de ir para longe. Sou elementar, anjos são os primeiros nomes. Vim para debaixo dos holofotes, queria fulgurar da cabeça aos pés.
Que as abelhas amadurecessem nas campânulas. Queria um espelho de um tamanho selvagem, que o espelho se vergasse quando eu me abaixava para arrancar as linhas de diamante: era o fulcro, abraso onde começo. E então pintava o mundo com as linhas ferozes, paralelos, meridianos —
Entre porta e porta — a porta que abre à água e a porta aberta aos roseirais coruscantes que o ar sustenta: eu vejo leões. Não são gárgulas: das bocas não jorra a claridade lavrada. Divididos ao meio pelo coração. Uns olham por uma porta, outros olham o mundo por outra porta. São como pais ou mães, ou são os filhos — crianças nuas: ou dormem alto, bebem leite, comem carne, ou saem sob as luzes, ou escutam as canções difíceis. Enquanto no bronze se quebra a linfa macia. E então atravessam o mundo entre porta e porta abrasada em arco vertiginoso. E vêem tudo, e trazem a imagem universal — e enquanto dormem aos meus pés, estremecem de medo pelo excesso da imagem. Um dia serão de pedra. Planto onde é manhã ainda a vara violenta pela carne dentro da terra. Essa matéria forte que palpita com a corrente da seiva através dos botões. Ardente das mãos ao cerne, uma criatura em sangue e respiração planta-se punho e ponta vibrando. Alimenta-a quem dorme cheio de imagens vagarosas. Dança a toda a luz pela noite das ofertas, transforma-se: leão, estrela, criança louca à música. Roda em torno da estaca nas casas de pedra, estua na sua dança. A água alaga o trabalho dos membros: como o ouro espigando, como as agulhas de ouro que tilintam na canção. O que faço com os dedos: um som por cima do escuro — e faísca tudo: zonas crispadas ligando-se uma a uma pelos ecos. E fora, o sítio de coisas aos cometas, e os mortos que estão coroados sempre. E o sítio dentro vivo por si mesmo. Como de repente em mim sazonam as rosas, como se muda tudo em tudo: e vida ou morte; o mundo ou a casa dos leões que rugem quando vêem diamantes, ou dormem com tanto peso. Porque se há uma selva para bichos e paus encarnados de corolas, se é fora ou dentro que se inunda o bronze, ou se criança e vara se fundem fincadas até ao centro. Vozes metem-se pelos tubos. E a pedra plantada crescendo a todo o mundo ressoa — máquina
da música. Criança ou leão dançando de porta a porta. Unindo, pelo nervo de imagem em imagem em chaga, o ouro que espiga nos mortos e o ouro que espiga entre as garras. Quando alguém planta a pedra é para que a pedra cresça. Que na traça das artérias a boca jorre, desde o coração no meio, a púrpura agreste. Palavra que empurra a cara secreta para diante da palavra como uma cara madura —
A poesia também pode ser isso: a dor com que não durmo lavrado completamente íngremes laborações dos aerólitos — e então um pingo de ouro nos recessos do cérebro. Que fosse a aparição contínua. Pode ser o inventário do sono pode no casulo desdobrado quando a seda. E a faixa ao pescoço a boca negra por cima: o canto estrangula-me, canto jubilante, a noite transforma-se. Estou às vezes nos quartos contíguos pelos canos: gás, água violenta. E os objectos ligados peio coração à corrente eléctrica, em cada um seu halo prato garfo copo. Depois a corrente aumenta depois o coração aumenta depois cada objecto aumenta abrasado: é um coração apenas que quando se tocam os perigos de morte. Garfo selvagem copo todo iluminado. Que se coma o idioma bárbaro, palpitação da leveda substância dos vocábulos: no prato. Eu devoro. Às vezes electrocutado, uma ígnea linha escrita para dizer o abastecimento de estrelas em cal escaldando, da poesia. Alguém sai para jardins miraculosos com o espelho arqueado onde se apoiam as luzes magnificando através. Aos pedaços faiscantes do ar chamam: as imagens; ardem nos paus de flora; visitam-nas besouros no meio de alimento e morte. Oh, a poesia brilhante se alguém acorda com a sua nuvem entre os braços com os seus raios o soberano, mas nenhum é mestre nenhum dos que têm o dom das madres é mestre dos elementos — estivesse ele ainda em laço amargo. quente laço, em umbigo ou placenta ou sal, estivesse filho intratável: nunca seria mestre. Ninguém sabe: sono e vigília e dentro e fora e alto e baixo; magia é um arrepio canibal, um canto. E o canto doma os animais, acorda Eurídice pelo coração. Amor, abre-me os feixes na testa com as unhas rútilas, esse equipamento feroz; munificia-me: eu sei eu perdi-me entre a realeza dos mortos eu sei que levaram o, diz-se: quotidiano até ao extraordinário: madres e os cordões irrigando os sacos. Porque tudo é canto de louvor na vida inspirada, tudo porque acaba na mesa: garfo e faca às faíscas e a carne no prato. Devoro a minha língua; cintila ainda. Lirismo antropofágico, visão, oh sucessivo. A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra surpreendida para cada coisa: nobreza, um supremo
etc. das vozes —
Uma razão e as suas palavras, não sou leve não tenho o dom de um paraíso de avencas rutilando ao frio. Estou defronte na malha arterial da minha roupa rosto dedada a dedada. E o sangue nos alvéolos, unhas sexo pêlo. Tenho dentes de mármore que crescem se falo ou como tenho os dentes arrefecidos à comemoração da água. Tu és a mulher profundamente visitada. Dedo contra dedo. Para que passe o pneuma: poder, inocência, morte. Os sítios nunca param: fileiras de objectos astrais uns acima dos outros. Queria chamar a água intensa para cercar-te com uma faixa, que te fizesses a ti mesma por essa intensidade da água. Que Deus é súbito diante quando é mamífera a criatura incandescente, quando é sangrenta. Exemplo do mundo: flauta tocada por quem sabe que génio de música. Porque a razão é ter um galho nos dedos e que, pelo calor dos dedos, o galho floresça. Bater com ele no cabelo até ficar iluminado bater na blusa para a brancura subir no torso: desentranhar-te as reservas de aura. E se o galho te roça pela cara, ver como se faz tão cara acima. E que o espaço se torne visível à volta de galho e mão e cara sobressaltada. Queria abrir-te a cabeça pela estria dulcíssima do sono arrancar a estrela hídrica. Em carne pensadora começar por garganta e língua a razão e as suas palavras com os raios em torno. Para que fiquem abertas as entradas: um ao outro nos levávamos. Nadando nos espelhos sustendo o fôlego unindo pelas ramagens as cicatrizes do tórax. E avançar fundidos num só corpo de canto. Porque do ouro extraído às cavernas apuro um fio fecho-te o rosto no fio puro. Com uma trama pode urdir-se a máscara moldar o tronco de duas pessoas numa estrela única podem-se fazer com ouro do abismo os membros que tem uma estrela para andar até à porta. Um nó de dois laçado à mão, abrasadora. Toda a enxameação de nadadores profundos meu amor do reino animal amor o inferno —
Podem mexer dentro da cabeça com a música porque um acerbo clamor porque dão a volta ao lençol em sangue: torcem-me. Mas eu digo — amo-te para erguer de ti a tua música para entoar-te. Beleza, a força, oh a enflorada, a primitiva, chaga entre, risca dolorosa, o cabelo. E se passam pelos lados duas, arvoradas: uma lua maior que o teu espelho outra — clarão em que te queimavas selada viva, ó pedraria. De repente o superlativo, o visível pelas faúlhas porque: eras a convidada do espaço, eras uma árvore de pérolas se dormias. E eu vergastava-te: branqueava o chão com tuas frutas pequenas, branqueava as mãos, branqueava-me das mãos à voz para acordar de mim a ti com torso fundido. Torso e canto armado. A oblíqua visita das coisas, aquela murmuração de mundo quando se toca com um braço a parte dos fogos, com o outro braço a parte dos sopros que desarrumam a frase das coisas e arrumam coisa a coisa o estilo onde estás escrita. Ouvir no escuro a entoação, ficar rodeada por sangue e nome, pelo abalo da pessoa que outra teia de sangue tece com seu fervor cantando. O seu furor. O medo de que os dedos se não afinem na ferida do sono mas se afundem pelas unhas até à leveza. E a descerrem. E a desentranhem nas suas florações vermelhas, nos orifícios de cal que fervem. Onde há um empréstimo de luzes movo pelas redes sombrias as respirações de um canto aluado a duas vozes convulsas — uma arrebatada aos precipícios e outra nos quartos bruxuleando entre cadeira e mesa com a mão de ouro calcinado em cima. Lençol de sangue, diz. Diz: torcem-me. E eu aumento na operação de sono e som em que ela me transtorna. Pulmões aos nós, gangrenado na boca, a têmpera do canto macio. Tão caldeado o canto que nos transmuda em mundo áureo —
Doces criaturas de mãos levantadas, ferozes cabeleiras, centrífugas pelos olhos para se deslumbrarem com a iluminação, entretecidas, membros com membros, nos confins. Se lhes dão voz, se uma fala nos círculos. «Mestres,». Mas pode alguém ser mestre aqui, de onde se ofuscam, cândidos animais transmudando-se? «Eu sou o manancial nos hortos inocentes.» Nenhum mestre, porque se eles se tocam — um ao outro desabrocham: a pancada no amarelo ou no branco enflora o mundo. «Mas eu não me conheço sem a força que me passa, toda em imagem destravada ao jubileu das memórias; batem-lhe no rosto os galhos de sal, e ele toca-me — e abre — e tranca. Tranca-me numa pedraria vibrante. Para que eu me revele em mim. E me sele nas palavras com veias. Alvoroço a madeira sonora com a fria loucura da música. Às dedadas amasso o bloco a dois reluzindo pela cicatriz que o cose do cóccix ao occípite. Chamo até aos extremos do nome, ele é o nome nas respirações cantadas. Mestres,». Os mestres viram como estremecera ao afundar-se na água negra, quando ela era água metida pela noite dentro. E viram-nos depois sob as varas salgadas: lavradas armas que se encostam ao mundo, altas armas abrasadas contra o mundo nocturno. «Tornei mortal o cantor na sua cana cantora. Deus olha-o na cara, e ele sonha-me; Deus enlaça-o, rutila; Deus e os seus mamíferos, em mim, canto, biografia rítmica. Mestres,». Que não há mestres, esses eram donos dos latifúndios bravios onde se planta o sal. Mas estes, no seu canto pequeno, crispavam-se entre braços e umbigos, entre sexos e bocas. Tinham a sua coroa talhada na polpa de um diamante. Uma coroa cravada na carne da cabeça. Quem é o arco ou a flecha, quem se retesa, quem mata? Porque tanto a flauta como a sua melodia. Tanto a mão como a sua escrita. Tanto uma onda de escarlate cruel
no espelho devassado para baixo e para cima. Arrebata-os o demoníaco. São os indígenas do ouro. Um é a cana, outro é o som. O som destroça a cana. «Mestres,». Cada um é a sua arma, cada um é o lanho da sua arma à altura da garganta cortada. A voz de um no outro, a entoação amarga — 1989.
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